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PSICOLOGIA ARQUETÍPICA

O legado clínico de James Hillman

Jason A. Butler

Aos meus três pais:


Gary – pai de sangue
Bruce – pai da carne
James – pai do pensamento

Sumário

Agradecimentos

1 Introdução

2 Prática imaginal

3 Psicodinâmica arquetípica

4 Palavra e imagem

5 Sensibilidade estética

6 Reflexões e anulação (“undoing”)

Índice
Agradecimentos

Esse livro seria comparativamente parco se não fosse pelas muitas


conversas com meus queridos amigos. Dr. Evan Miller foi indispensável
para acender o fogo, acrescentar combustível e provocar a chama,
sempre me incitando a enfrentar “tópicos de duas pontas”. Bryce Way me
ensinou o que significa sentir uma ideia e assumir o risco de viver esse
sentimento.

Vida Violeta, por todas as longas caminhadas errantes por cemitérios,


florestas e jardins, pelo amor que mostrou pelos meus sonhos, e por seu
espírito feérico, obrigado. Ao meu irmão e minha irmã, Shanna Butler e
Chase Desso, seu apoio me ensinou o que significa ser uma família, um
dom de valor inimaginável.

Tenho uma dívida especial de gratidão com dois mentores muito


importantes, Dr. Robert Romanyshyn e Dr. Michael Sipiora. Vocês me
deram o dom da iniciação na tradição, me apresentando a um elenco de
personagens e ideias que foram generosos e provocantes. Por último,
gostaria de agradecer o Dr. Safron Rossi e os arquivos OPUS pelo
grande esforço realizado para preservar e elaborar a obra de James
Hillman. O tempo gasto pesquisando no material arquivado foi uma
aventura cheia de tesouros.

Capítulo 1

Introdução
Uma das metas principais da psicologia arquetípica tem sido “desfazer a
mochila” da psicologia – fazendo uso intenso de uma postura
metodológica da via negativa, ou descrição pela negação, e
desconstrução. Essa posição resultou em ampla coleção de críticas que,
embora fossem controversas ou mesmo heréticas, causaram um impacto
significativo no campo da psicologia. Contudo, é importante notar que
essa abordagem desconstrutiva é uma fantasia entre muitas. Um
movimento que busque ver o que está por trás dessa metodologia invoca
um encontro imediato com a influência desmembradora de Dioniso, um
deus intimamente associado com a revitalização pela desordem. É a
presença dionisíaca que facilita a re-visão (re-visioning) e
despedaçamento da teoria e prática estagnadas, violentamente fixadas e
dogmáticas. Através do trabalho da psicologia arquetípica, Dioniso foi
apresentado como um parceiro dialético para a abominável
unilateralidade da psicologia como ciência natural apolínea. Por mais
necessária que essa desconstrução tenha sido, o próprio James Hillman
(2005) observou que toda imagem arquetípica tem seu próprio excesso e
intensidade. Sem um elemento explicitamente construtivo, as implicações
clínicas da psicologia arquetípica permanecerão subaproveitadas.

Os vários teóricos que contribuíram para o campo da psicologia


arquetípica ainda não produziram uma obra que sintetize de modo eficaz
uma abordagem arquetípica à psicoterapia (Hillman, 2004). Fiel ao seu
formato dionisíaco, pedaços desmembrados do método terapêutico estão
espalhados por toda a literatura (Berry, 1982, 1984. 2008; Guggenbühl-
Craig, 1971; Hartman, 1980; Hillman, 1972, 1975a, 1977a, 1978, 1979a,
1979b, 1980; Newman, 1980; Schenk, 2001; Watkins, 1981, 1984). Este
estudo é uma tentativa de coletar as peças distintas do método
arquetípico e entretecê-las com sonhos, imagens de fantasia e vinhetas
clínicas no esforço de representar o estilo específico usado pela
psicoterapia arquetípica.

Ainda que respeitemos a importância da desconstrução e da via


negativa, o objetivo desse texto é re-construir e descrever claramente a
contribuição exclusiva da psicologia arquetípica para a prática
terapêutica. Através da coleta cuidadosa das notas individuais sobre o
método terapêutico e a mobilização de uma imaginação ativa a partir dos
textos de Hillman, ou, mais precisamente, Hillman como uma imagem,
esse estudo não só pretende delinear uma abordagem arquetípica à
psicoterapia como também amplificar abordagens existentes para obter
uma compreensão mais lúcida da relevância terapêutica da psicologia
arquetípica. No texto dou muito pouca atenção às veementes falácias de
espantalho de Hillman contra a psicoterapia que, como foi apontado por
David Tacey (1998), são contaminadas por suas projeções. Em vez
disso, minha atenção concentra-se na importância terapêutica integrada
na obra de Hillman, particularmente do seu trabalho com a imagem.

Embora meu envolvimento com a obra de Hillman tenha sido central


para esse estudo, é essencial reconhecer os estilos polimorfos da
psicoterapia arquetípica que foram desenvolvidos por Lopez-Pedraza
(1977), Berry (1982, 1984), Watkins (1981, 1984, 1986), Hartman
(1980), Newman (1980), Schenk (1989), Coppin (1996), Bleakley
(1995) e Giegerich (1998), entre outros.

A psicoterapia arquetípica será definida de modo geral como uma teoria


e práxis da psicologia profunda cujo objetivo é: “a) uma representação
precisa da imagem; b) ficar com a imagem enquanto ela é ouvida
metaforicamente; c) descobrir a necessidade dentro da imagem; d)
vivenciar a insondável riqueza analógica da imagem” (Hillman, 1977a,
p. 82). Seguindo a compreensão de C. G. Jung (1929/1968) da imagem
como psique, Hillman (2004) definiu essa característica básica da
psicologia arquetípica como “a própria psique na sua visibilidade
imaginativa; como um datum primário, a imagem é irredutível” (p. 18)
Edward Casey (1974) qualificou ainda mais a noção da imagem na sua
bem recebida declaração de que uma imagem não é definida por um tipo
particular de conteúdo, isto é, uma forma pictórica, mas sim pela
maneira como o indivíduo vê, ou seja, uma perspectiva imaginal. A
ênfase central permitida para a imagem dentro da psicologia arquetípica
qualifica a tradição como uma psicologia imaginal, o que significa “um
estudo da psique... desenvolvido a partir da natureza e realidade da sua
experiência, que é compreendida aqui como sendo imagens” (Watkins,
1984, p. 102).

Introdução à psicologia arquetípica

James Hillman (12 de abril de 1926 – 27 de outubro, 2011), força


iniciadora e voz sustentadora da psicologia arquetípica, era um autor
prolífico e talentoso, assim como provavelmente o mais influente teorista
junguiano desde Jung. Suas ideias eram provocantes e desde o início da
sua carreira constelaram reações altamente polarizadas na comunidade
psicológica. Enquanto seu trabalho, desenvolvido durante mais de 50
anos, cobre uma ampla variedade de tópicos e contém uma série de
movimentos diferentes e até contraditórios (ver Tacey, 1998), a obra de
Hillman nunca se afasta do seu foco primário: a vivificação e elucidação
de uma psicologia enraizada na imaginação arquetípica.

Depois de obter seu diploma de Literatura Inglesa na Sorbonne em Paris


e um segundo diploma de Ciência Mental e Moral no Trinity College em
Dublin, Hillman seguiu para Zurique, onde foi treinado no Instituto Jung,
fundado há apenas cinco anos. Em março de 1953, Hillman iniciou sua
análise de formação com Carl Alfred Meier, uma das figuras mais
centrais dos primeiros dias do instituto e um analisando de Jung. Durante
sua formação no Instituto Jung, não levou muito tempo para que a
natureza provocadora de Hillman se tornasse conhecida.

Hillman rapidamente deu início ao seu confronto com ideias junguianas


ortodoxas, algumas das quais ele desenvolveria durante toda a sua
carreira, e outras que ele rejeitaria veementemente. Como o primeiro
diretor de Estudos no Instituto Jung de Zurique, dedicado a iniciar um
“processo de regeneração e renovação” (como citado em Russell, 2013,
p. 455), Hillman também começou a confrontar uma geração mais velha
de analistas e suas ideias previamente estabelecidas na direção do
instituto. Hillman foi tomado pelo espírito do novo, pego na tensa
dialética entre o velho e o jovem, senex e puer – um pareamento
arquetípico que investigou e viveu durante boa parte da sua carreira.

Enquanto completava a porção clínica da sua formação analítica,


Hillman reuniu-se regularmente com um grupo de estudantes e um
supervisor experimente para apresentar e criticar material de caso.
Como descreveu na sua biografia, ele achava o processo inteiro
desagradável, notando que “todos estão falando sobre alguém que não
está lá, é tudo fantasia” (Russell, 2013, p. 421). Ele decidiu confiar no
seu instinto, perguntando a um dos seus pacientes, assim como ao
supervisor liderando o grupo, se o paciente podia sentar-se na reunião e
falar por si mesmo sobre seu próprio processo psicológico. Embora o
paciente tenha concordado, o supervisou negou o pedido de Hillman,
considerando-o “radical demais” (p. 421), uma condenação que seria
frequentemente usada em resposta à obra de Hillman.

Fiel ao seu signo astrológico de Áries, Hillman apresentava uma


natureza marcial, confiando na sua raiva como “seu demônio favorito”
(Hillman, 1991, p. 147), a obra de Hillman era incitada “quando alguma
coisa sentia-se ofendida”. Essas áreas de insulto, que nos primeiros dias
da sua carreira estavam principalmente relacionados às interpretações
vigentes do fenômeno do puer, eram sementes para a longa carreira de
Hillman de diferenciar seu pensamento daqueles da escola junguiana
clássica. Ao contrário de muitos estudantes em Zurique que caíram em
um relacionamento sem questionamentos com a teoria junguiana, Hillman
manteve um senso de pensamento crítico que lhe permitiu usar um ângulo
diferente. Hillman resistiu à transformação em um devoto zeloso de Jung,
chamando a influência de Jung de síndrome, “um tipo de projeção
mágica” (p. 426). Hillman observou: “eu estava tão dentro do mundo
junguiano, mas ao mesmo tempo algo em mim se protegia dele”. (p. 426).

Ele se agarrou ao que considerava valioso no fenômeno do puer,


protegendo sua própria experiência vivenciada desse arquétipo das
interpretações redutivas que estava encontrando no Instituto. Naquela
época Marie-Louise Von Franz estava oferecendo uma série de palestras
sobre a patologia do puer. Seguindo Jung, ela enfatizou a relação entre o
puer e a mãe e colocou uma grande ênfase na descida, uma cura terrena
para o puer, e ocasionalmente enviava seus jovens pacientes para
fazendas onde poderiam sujar seus sapatos, um aterramento desse
espírito jovem. Hillman considerava esse movimento terrivelmente
literal e em vez disso trabalhou para desliteralizar a terra, “para ver
através dela, voltando-se para a psique, em vez de ter a psique
transformada em terra” (como citado em Russell, 2013, p. 429).

No início dos anos 60, Hillman tornara-se amigo íntimo de Adolf


Guggenbühl-Craig, que, como Hillman, apreciava paradoxos e virar
ideias consagradas de ponta-cabeça. Uma das suas contribuições mais
notáveis nesse sentido veio de um texto que apresentou durante um
circuito de palestras nos Estados Unidos com Hillman. O texto, chamado
“Juventude e Individualidade”, desafiava a noção junguiana clássica de
que o processo de individuação começa apenas depois que a pessoa
chegou à meia-idade, argumentando que a adolescência introduz muitas
características importantes da individuação psicológica (Russell, 2013).
Recordando esse importante período, Hillman comentou, “a ideia era
que estávamos tentando derrubar a geração mais velha” (p. 495).

Apesar dos muitos movimentos feitos por Hillman para diferenciar esse
pensamento da velha guarda, ou “junguianos de segunda geração”
(Goldenberg, 1975), ele se apegou à noção de fidelidade à tradição. Ele
descreve sua posição claramente em uma carta de 1965:

Faço parte de muitas coisas: minha árvore familiar, os locais onde


fui ensinado, a escola de psicologia da qual sou membro, o país
onde nasci. A doutrina faz parte da minha medula. Eu trabalho
dentro de uma doutrina, me esforço diariamente para sair, para
combatê-la, para alterá-la, para quebrá-la. Mas pelo lado de
dentro.

(como citado em Russell, 2013)


Foi durante esse acalorado debate com a ortodoxia junguiana que
Hillman iniciou sua exploração formal da tensão puer-senex a convite da
conferência Eranos de 1967. Respondendo à sua percepção de que a
psicologia junguiana era dominada pelo senex negativo e o “culto do
antigo” (Russell, 2013, p. 590), Hillman procurou redimir o puer da sua
associação tradicional com a mãe, enfatizando em vez disso o papel
arquetípico na relativização do senex negativo – a força opressiva do
velho sábio. Além disso, Hillman desejava demonstrar o modo como o
senex e o puer são necessários um para o outro, permanecendo como
dois extremos de uma polaridade que é paradoxalmente uma “união de
iguais” (Hillman, 2005, p. 58). Seus esforços para proteger a “úmida
faísca” (Hillman, 2005, p. 54) do puer, para contrabalançar a velha
guarda dentro da sua tradição psicológica, logo o levariam a anunciar
uma diferenciação distinta da psicologia junguiana ortodoxa, iniciando
um novo movimento que ele chamou de psicologia arquetípica.

O primeiro uso do título psicologia arquetípica por Hillman ocorreu em


um ensaio intitulado “Por que Psicologia Arquetípica?”, publicado pela
primeira vez em 1970. Ali ele traçou um número de motivos para adotar
um título que não “junguiano”, “analítico” ou “psicologia complexa”.
Hillman notou a necessidade de diferenciar-se de Carl Jung, o homem,
deixando a posse do nome para a família Jung. Ele também enfatizou o
modo como o adjetivo “arquetípico” “fornece à psique uma chance de
sair do consultório” e “fornece uma perspectiva arquetípica para o
próprio consultório” (Hillman, 1975b, p. 142). Enquanto a psicologia
analítica e complexa constela associações com uma psicologia do
indivíduo, a psicologia arquetípica amplia o escopo para abarcar a
dimensão da cultura, história e a “pluralidade das formas arquetípicas”
(p. 143), uma psicologia politeísta. Por toda a sua carreira, Hillman usou
a distinção da psicologia arquetípica para revisar, questionar, criticar e
descartar muitas das principais características da psicologia de Jung e
da psicanálise em geral.

A posição de Hillman em relação a Jung e Sigmund Freud foi pegar as


suas obras e abordá-las de tal modo a torná-las suas. Ele deu um passo
para trás do trabalho literal como substantivo e psicologizou ou viu
através até o verbo subjacente, como observou “o modo como o solo é
semeado” (1999). Ao fazê-lo, ele assumiu o que compreendeu ser o
modo de trabalho de Jung, em vez de uma aderência literal à sua obra.
Especificamente, é o amor de Jung pelo incomum e idiossincrásico e seu
talento para vincular esses fenômenos com sua raiz subjacente que o
torna radical[1], e seguindo esse espírito, a “herança daimônica de
Jung”, Hillman (1999) declarou-se um “autêntico junguiano”.

Percorrendo com o olhar a obra de Hillman, torna-se claro que suas


teorias nascem de uma aderência similar ao incomum e idiossincrásico.
Hillman tomou a noção de Jung da individuação como diferenciação e
expandiu-a em um modo de teorização assim como um modo de praticar
psicologia. Essa agenda de diferença está disseminada pela obra da
psicologia arquetípica. É importante observar que esse movimento
também é essencial para a prática da psicoterapia arquetípica, onde o
trabalho é prosseguir até a diferença, o incomum, e aprimorá-lo,
seguindo o evento idiossincrásico até sua raiz arquetípica. Como
Hillman (1971) observou, “pois o que é a individuação senão uma
particularização da alma?” (p. 133).

Descrever como a psicoterapia arquetípica é diferente da psicoterapia


junguiana é uma tarefa inevitavelmente sujeita a generalizações
excessivas. O processo psicoterápico está intimamente relacionado às
idiossincrasias do terapeuta e do paciente, fazendo com que declarações
gerais sobre as características de uma terapia “junguiana” ou
“arquetípica” sejam algo intrinsecamente limitado. Contudo, diferenças
nítidas podem ser descritas tomando como base as ênfases teóricas
distintas dessas duas tradições altamente relacionadas.

Diferenciando a psicologia junguiana e a arquetípica

Hillman tem sido justificadamente criticado, principalmente por Tacey


(1998), pelo seu extremismo na tentativa de diferenciar-se de Jung,
desqualificando o mestre enquanto exagerava implicitamente a
originalidade do próprio trabalho. Um exemplo primário pode ser
encontrado no trabalho posterior de Hillman (1992) enfatizando a noção
neoplatônica de anima mundi. Não é preciso forçar a imaginação para
perceber os paralelos entre a anima mundi de Hillman e a descrição de
Jung do unus mundus (1970) e do arquétipo psicoide (1947/1970). Além
disso, como foi apontado por Tacey (1998), “quarenta anos antes de
Hillman, com muito menos fanfarra e bravatas, Jung há havia (re)
descoberto a ideia neoplatônica da anima mundi” (p. 225).

Tanto Jung quanto Hillman estavam tentando reconciliar a profunda


ruptura entre o espírito e a matéria – espiritualizar a matéria e
materializar o espírito, discutindo que a alma é o espaço intermediário
dentro do qual essa conexão ocorre. Contudo, apesar do caráter comum
de suas buscas, Hillman falsamente posiciona Jung como alguém
interessado apenas na psique como interior, declarando em uma palestra
não-publicada, “já para a nossa escola pós-junguiana arquetípica, a
psique está mais externalizada, presente no mundo” (como citado em
Tacey, 1998, p. 225).

Todavia, Tacey demonstrou uma indulgência similar na retórica


exagerada, acusando Hillman de uma perigosamente “incompleta
compreensão de Jung”, “como se Hillman lesse Jung com um olho aberto
e outro fechado” (Tacey, 2001, p. 116). Embora Tacey tenha realçado
várias críticas importantes da obra de Hillman, incluindo a “apropriação
conservadora e simplista da teoria junguiana” (Tacey, 1997, p. ix) no
movimento mitopoético masculino de Bly, Hillman e Meade, uma
pequena nota de pé de página na obra de Hillman, a generalização de
Tacey (201) para toda a “vida e obra” (p. 116) de Hillman amplia a
crítica muito além da razão.

Por exemplo, Tacey deixa de levar em conta o modo como a obra de


Hillman com a imagem forneceu profundos avanços para a noção de Jung
da psique como imagem. Hillman segue as implicações dessa afirmação
de modo muito mais fiel do que Jung, que oscila entre uma orientação
fenomenológica e um essencialismo metafísico. Segundo o aspecto
metafísico da obra de Jung, praticantes junguianos clássicos,
representados por Von Franz (1996), Edinger (1992) e Neumann
(1954/1995), tendem a abandonar os fenômenos psíquicos únicos em
favor da abstração pela amplificação. Já a abordagem arquetípica busca
manter a tensão entre os fenômenos e sua natureza essencial ou
arquetípica de modo muito mais delicado. O fenômeno único recebe
muito mais ênfase clínica e autoridade do que categorias teóricas e
míticas.

A aderência a diferença qualitativa e à particularidade estimulou os


seguintes movimentos críticos importantes, que distinguem a abordagem
arquetípica da teoria e prática junguianas clássicas: do arquétipo ao
arquetípico, do símbolo à imagem, do inconsciente à imaginação, da
compensação à complexidade de conjunções e do um aos muitos. Foi
com essas torções que Hillman distanciou-se da psicologia junguiana
tradicional e formou uma abordagem distinta chamada psicologia
arquetípica. Assim, é importante dar atenção a cada uma dessas
diferenças individualmente.

Arquétipo a arquetípico

A noção psicológica de arquétipo é talvez a mais importante


contribuição de Jung para a psicologia e a cultura. Na obra de Jung
(1964), arquétipo foi definido como tipos primordiais, imagens
universais, “uma tendência a formar tais representações de um tema”, e
“uma tendência instintiva” (p. 58). Baseando-se em Kant, Jung
(1950/1969) observou que o próprio arquétipo é incognoscível; só a
imagem arquetípica cai dentro da experiência humana. Em resposta a
essa distinção, Hillman (2004) descartou o estudo do arquétipo como
noumenon, ou coisa-em-si, e em vez disso concentrou sua atenção
exclusivamente na experiência fenomênica. Seu argumento: “a psicologia
arquetípica, diferente da junguiana, considera o arquetípico sempre
fenomênico, evitando assim o idealismo kantiano implícito em Jung”
(Hillman, 2004, p. 14). Como Robert Avens (1980) observou, “em vez
de perguntar como o arquétipo e a imagem estão relacionados (como
dois eventos distintos), começamos com a “imagem arquetípica” (p. 43).

Esse movimento pode ser descrito como um deslocamento dos


arquétipos como estruturas transcendentes para arquétipos como pessoas
imanentes – um movimento para longe do metafísico e abstrato e rumo ao
imaginal e concreto, do arquétipo como substantivo ao arquetípico como
adjetivo. Ao fazê-lo, os psicólogos arquetípicos tentaram descartar a
metafísica desnecessária difundida na psicologia junguiana para, em vez
disso, se concentrarem em desenvolver a rica exposição da
fenomenologia psicológica iniciada por Jung.

Em um esforço para permanecer dentro dos parâmetros da


fenomenologia psíquica – a experiência vivida da psique, Hillman
(1933) apresentou o importante argumento de que os arquétipos são a
priori não na sua gênese, porque isso envolveria uma crença metafísica
além do alcance da experiência psicológica, mas a priori no seu valor.
O valor arquetípico de uma imagem é anterior e dá forma à experiência
pessoal. Ao invocar a perspectiva arquetípica, o indivíduo coloca uma
experiência individual vívida dentro de uma cosmologia universal,
encontrando seu lugar em relação aos Deuses. No seu uso do termo
Deuses, Hillman (1975a) foi cuidadoso em distinguir a referência
religiosa aos Deuses e seu uso psicológico. Especificamente, ele disse
“a teologia considera os Deuses de modo literal, e nós, não” (p. 169).
Ele acrescentou:

Na psicologia arquetípica os Deuses são imaginados. Eles são


abordados pelos métodos psicológicos da personificação,
patologização e psicologização. São formulados de modo
ambíguo, como metáforas para modos de experiência e como
pessoas na fronteira do numinoso. São perspectivas cósmicas nas
quais a alma participa.
(p. 169)

Ao transformar eventos em experiências através da imaginação, esse


aspecto do numinoso integrado nas experiências cotidianas é revelado.

Diferentemente da psicologia junguiana clássica, a psicologia


arquetípica sugere que qualquer imagem pode ser justificada como
arquetípica; é o modo como a imagem é tratada que facilita sua
qualificação como arquetípica. Como Hillman (1977a) observou:
“a imagem cresce no seu valor, torna-se mais profunda e
envolvente, isso é, torna-se mais arquetípica à medida que seu
modelo é elaborado” (p. 75). Imaginar uma imagem como
arquetípica faz com que ela se torne mais arquetípica (Avens,
1980):

Então, se concordamos que o caráter arquetípico das imagens


consiste na sua polissemia (múltiplos significados) e polivalência,
o adjetivo “arquetípico” deve ser tomado para apontar não a
numinosidade das imagens, mas sim o valor de uma imagem,
dotando-a com a mais ampla, rica e profunda significância
possível.

(p. 45)

Por sua vez, quando qualquer fenômeno psíquico é abordado como


arquetípico, ele também começa a transbordar de valor, excitando a
imaginação, conjurando outras imagens do mito, evocando emoção,
ganhando complexidade e profundidade poética.

O seguinte exemplo pode ajudar a exemplificar essa importante distinção


entre a teria junguiana e a arquetípica. Muitos analistas junguianos de
formação clássica são ensinados a distinguir entre sonhos pessoais,
expressando elementos do inconsciente pessoal, e grandes sonhos ou
sonhos arquetípicos, expressando elementos do inconsciente coletivo.
Esse privilégio hierárquico de um tipo de sonho em relação a outro e a
noção de que é possível classificar um sonho como um grande sonho
independente da experiência do sonhador do sonho coloca o analista em
uma posição inflacionada como árbitro do significado arquetípico.
Segundo a perspectiva da psicologia arquetípica, qualquer sonho pode
ser um grande sonho. De fato, talvez não haja pequenos sonhos, só
pequenas interpretações.

Símbolo a imagem

A noção de símbolo sugere uma ordem superior, um arquétipo ou númeno


metafísico, fora ou além dos fenômenos apresentados – uma coisa
representa alguma outra coisa. Com uma representação simbólica o
conteúdo manifesto aponta para o conteúdo latente apenas parcialmente
cognoscível, como o dedo apontando para a Lua. Como disse Jung
(1912/1967), símbolos funcionam como “um meio de expressão, como
pontes e apontadores” (p. 330).

Enquanto Jung (1912/1967) expressou um desejo de “evitar todas as


asserções metafísicas” (p. 231), Hillman (1975a, 1977a) foi muito mais
enfático em relação a permanecer com a experiência vivida, descartando
qualquer interesse na abstração simbólica além dos fenômenos e se
concentrando apenas no que pode ser vivenciado: a realidade psíquica.
Na sua aderência à realidade psíquica, Hillman seguiu de perto a
afirmação de Jung (1939/1954) de que a psique é imagem. Jung
(1933/1960) insistia que “o que aparece para nós como realidade
imediata consiste em imagens cuidadosamente processadas e... vivemos
imediatamente apenas em um mundo de imagens” (p. 353). Hillman
(1992) ecoa essa mesma sensibilidade na sua designação do “próprio
evento como imagem” (p. 34). Além disso, Jung (1933/1960) notou:
“Imagem e significado são idênticos e, à medida que a primeira toma
forma, o segundo torna-se claro. Na verdade o padrão não precisa de
interpretação: ele exibe seu próprio significado” (p. 201). Hillman
alinhou-se com esse aspecto focado na imagem, ou fenomenológico, da
obra de Jung e usou-o contra a tendência à abstração simbólica
encontrada em outras partes dos escritos de Jung, e com ainda mais
frequência na literatura secundária da psicologia junguiana.

Embora Samuels (1985) junte a prática da psicoterapia arquetípica com


a escola clássica da análise junguiana, notando que as duas escolas
utilizam um método clássico-simbólico-sintético na análise, a citação
que ele usa de Jung para descrever essa abordagem faz mais para
mostrar a diferença entre o método clássico e arquetípico do que para
criar uma ponte entre as duas escolas. Jung escreveu:

É absolutamente necessário fornecer essas imagens fantásticas que


emergem tão estranhas e ameaçadoras diante do olhar da mente
com algum tipo de contexto para torná-las mais inteligentes. A
experiência mostrou que a melhor maneira de fazer isso é por meio
de material mitológico comparativo.

(Jung, 193/1968, p. 33)

Enquanto os praticantes junguianos clássicos enfatizam a necessidade de


contextualizar a imagem fazendo conexões com “material mitológico
comparativo”, a psicoterapia arquetípica demonstrou a maneira como
esse tipo de ligação frequentemente serve como uma defesa
intelectualizada contra a apresentação poderosamente evocativa da
imagem particular (Hillman, 1977b). A natureza defensiva da
amplificação é aparente no comentário de Jung. Ele notou as qualidades
“estranhas” e “ameaçadoras” das imagens, dando a entender que a
amplificação doma a imagem ao generalizar sua particularidade,
embotando a aguda especificidade da imagem. Como Berry (1982)
argumentou de modo tão convincente, a imagem já vem embutida no
contexto da sua apresentação – inteligível na sua demonstração estética.
A amplificação é sempre secundária em relação a atravessar a clareira e
adentrar no mundo revelado pela imagem.
Desse modo, a imagem e não o símbolo recebeu um papel central na
psicologia arquetípica. Hillman (1977a) argumentou que,
fenomenologicamente, símbolos nunca são vivenciados: “símbolos
aparecem, só podem aparecer, em imagens e como imagens” (p. 650.
Enquanto símbolos são sempre abstrações, imagens são sempre
“particularizadas por um contexto, clima e cena específicos... elas são
sempre qualificadas de modo preciso” (p. 62).

O movimento do símbolo para a imagem eliminou o foco na


interpretação de conteúdo latente. Com a imagem, a interpretação, no
sentido de explicar o significado encontrado além dos fenômenos
apresentados, não é necessária porque não é pressuposto que há algum
outro material além daquele que se mostra. A imagem, como disse
Hillman (1979b), não é um símbolo apontando para alguma outra coisa;
em vez disso, o valor metafórico da imagem é intrínseco à apresentação
da própria imagem como uma configuração precisa da psique.
“[Imagens] são a própria psique na sua visibilidade imaginativa; como
datum primário, a imagem é irredutível” (Hillman, 2004, p. 18).

Ao trabalhar com uma imagem, o indivíduo entra no seu significado


latente ao aprofundar a sua apresentação em si. A configuração dos
particulares é a revelação do significado. Como Avens (1980) observou:
“Imagens, no seu modo liberado, são elas mesmas personificações de
significado; que elas significam o que são e são o que significam” (p.
40).

O trabalho focado em imagem é, pela sua própria natureza, perturbador,


porque traz consigo o desconhecido. Ler um evento pelo seu conteúdo
simbólico tende a trocar essa qualidade perturbadora por uma abstração
reificada. Um paciente traz um sonho de uma grande cobra negra e deixa
a sessão com noções conceituais de instinto livre ou do inconsciente, a
lua crescente torna-se a regeneração ou O Feminino, águas reflexivas
tornam-se a função sentimento ou o afeto maternal. Como Hillman
(1977b) declarou em um documento não publicado, “tratar uma imagem
como um símbolo é fugir dela... Com demasiada frequência a
amplificação torna-se uma medida contrafóbica contra o poder da
imagem”.

Do inconsciente à imaginação

Hillman (1991) observou que uma das expansões mais significativa da


psicologia de Jung é a maneira como utilizou o termo imaginação em vez
de inconsciente. A noção de Hillman do imaginal originou-se na obra
Psicologia e Alquimia de Jung (1937/1968) onde Jung define
imaginação como a meta da obra alquímica. “Imaginatio”, escreve Jung,
“é a evocação ativa de imagens (interiores) secundum naturam, um feito
autêntico de pensamento ou ideação que... tenta capturar os fatos internos
e retratá-los em imagens fiéis à sua natureza. Essa atividade é um opus,
uma obra” (p. 167). De fato, Hillman faz disso o opus primário da
psicologia arquetípica.

Em um comentário com o intuito de explicar sua posição em relação ao


uso da noção de “inconsciente”, Hillman (1991) declarou, “não que não
exista inconsciência em nós o tempo todo... mas não vou usar a palavra
como um substantivo abstrato para cobrir as implicações culturais que
existem na [no termo] imaginação” (p. 32). Ele acrescentou:

Além disso, a palavra “inconsciente” vem carregada com


subjetividade e tornou-se um psicologismo. “Imaginação” conecta
você imediatamente a uma tradição e a uma atividade estética.
Com a linguagem. Ela se refere diretamente a imagens, que o
próprio Jung dizia que eram o conteúdo principal do inconsciente.

(p. 32)

Com o movimento do inconsciente para a imaginação, Hillman


novamente firmou sua posição sobre a diferenciação. Ao chamar o
inconsciente de psicologismo, ele está apontando para a maneira como a
palavra murchou até tornar-se um conceito seco, desprovido de qualquer
especificidade – uma palavra morta. Como a noção tornou-se
indissoluvelmente reificada, aqueles que usam o termo se esquecem de
que é uma perspectiva, usando o termo como se “o inconsciente” fosse
um lugar real. Seguindo a definição de Jung (1937/1968) de imaginação
como o ato criativo de formação de imagens, Hillman passou de uma
noção reificada para um ato operante – um ato que é indelevelmente
fundamental para a realidade psíquica.

Além disso, Hillman (1979a) argumentou que referências ao


inconsciente trazem elementos importantes demais juntadas em uma
massa indiferenciada, “coletando em um reservatório nebuloso todas as
fantasias da profundidade, do mais baixo, do mais básico, do mais
pesado (deprimido), e do mais sombrio” (p. 42). Em um esforço para
descompactar o termo e revelar seus inúmeros conteúdos diferentes,
Hillman argumentou:

Enterramos no mesmo túmulo monolítico, chamado de “O


Inconsciente”, o corpo vermelho e terreno do Adão primordial, o
homem e a mulher comuns coletivos, e as sombras, os fantasmas e
os ancestrais. Não podemos distinguir uma compulsão de uma
chamada, um instinto de uma imagem, uma demanda desejosa de
um movimento da imaginação.

(p. 42)

Inerente ao termo inconsciente existe um viés de perspectiva voltado


para a consciência egoica. As imagens apresentadas em sonhos, fantasias
e complexos não fornecem indicação alguma de serem inconscientes. É
só o ego da vigília que é inconsciente. Enquanto os métodos
psicológicos voltados para elucidar a perspectiva do ego precisam da
fantasia de uma coisa reificada chamada de inconsciente, a psicologia
arquetípica, assim como a psicologia da imagem, volta-se para a história
para avançar a noção de imaginação, onde “o ego” é simplesmente um
entre muitos.

Hillman trabalhou para enriquecer as noções psicológicas


contemporâneas com conceitualizações históricas do que é chamado de
inconsciente. Por exemplo, ele em várias ocasiões descreveu a prática
clássica da memoria – uma técnica retórica usada para ordenar a mente
onde as memórias são imaginadas como pessoas (Hillman, 1972, 1975a,
1983). Onde agora existe o inconsciente, antes tivemos as pessoas de
imaginação, e memoria era a arte imaginal de diferenciar e relacionar-se
com essas figuras. A obra de Aristóteles e dos neoplatônicos fala da
memoria como o eco da divindade reverberando na alma da pessoa ​–
imagem e ideia como herança divina (Hillman, 1972). Hillman observou,
“como resultado, as imagens [da alma] tinham que ser consideradas
realidades plenas, não meras fantasias, meras alucinações, meras
projeções – nada que fosse “meramente” alguma coisa” (Hillman, 1972,
p. 172).

A intenção de Hillman ao reclamar a arte da memoria das criptas da


história e atribuir-lhe importância como uma prática psicológica é uma
parte do seu movimento de longa data para evitar as práticas e palavras
mortas da psicologia contemporânea, e por sua vez, alinhar a psicologia
arquetípica com uma linhagem de tradições centradas na imagem como o
neoplatonismo, gnosticismo, cabalismo e alquimia. Localizar a
psicologia arquetípica dentro dessas tradições permitiu acesso a uma
rica variedade de ideias psicológicas que são muito mais precisas e
diferenciadas fenomenologicamente do que aquelas disponíveis na
psicologia contemporânea. Os psicólogos arquetípicos tentaram usar a
recuperação de tradições centradas na imagem para curar a psicologia
da sua dependência de conceitos reificados e excessivamente abstratos
como o inconsciente.
Da compensação à complexidade de conjunções

A psicologia junguiana está cheia de noções de oposição: ego/sombra,


anima/animus, inconsciente/consciente, introversão/extroversão,
pensamento/sentimento e uma variedade de outros pares de opostos. O
relacionamento entre esses polos dialéticos tem, de acordo com Jung,
uma natureza compensatória: quando um aspecto se manifesta de modo
intenso à mente consciente, o outro se apresenta como algum conteúdo
inconsciente. Jung (1934/1966) argumentou que a compensação era
particularmente relevante para a dinâmica dos sonhos. Ele escreveu:

Cada processo que vai longe demais imediata e inevitavelmente


evoca compensações, e sem estas não haveria um metabolismo
normal ou uma psique normal. Nesse sentido podemos considerar
a teoria da compensação uma lei básica do comportamento
psíquico. Muito pouco de um lado resulta em demais do outro. Do
mesmo modo, a relação entre consciente e inconsciente é
compensatória... Quando nos preparamos para interpretar um
sonho, é sempre útil perguntar: qual atitude consciente ele
compensa?

(p. 153)

Para Hillman (1979a), a lei da compensação proposta por Jung não


corresponde à fenomenologia da psique. O texto principal de Hillman
sobre sonhos, Dream and the Underworld, apresenta o argumento de que
a fantasia da compensação inicia um movimento para longe da imagem
apresentada. A fantasia compensatória sugere que a imagem de sonho é
incompleta em si mesma e precisa de uma interpretação que localiza o
elemento de oposição presente nas identificações conscientes do
sonhador. Esse movimento efetivamente traz o sonho para fora do
submundo, um espaço imaginal que Hillman usou para descrever o
terreno nativo do sonho, um reino mítico qualificado pela profundidade,
ambiguidade metafórica, sombra, ocultamento e semelhança.

Além disso, segundo Hillman, o posicionamento da imagem apresentada


como compensação para uma atitude inconsciente inevitavelmente
constela a necessidade do ego heroico de ação para retificar o
desequilíbrio, e sob a influência desse dominante arquetípico, a noção
de Jung (1934/1966) de enantiodromia, “a função reguladora dos
opostos” (p. 72), torna-se “uma conversão literal e uma autorregulação
literal” (Hillman, 1979a, p. 79).

É importante notar que Hillman não se opõe à oposição em si;


antes, é na localização do oposto fora da imagem apresentada. Ele
argumenta:

todo evento psíquico é uma identidade de pelo menos duas


posições e é assim simbólica, metafórica e nunca unilateral. Ele só
permanece assim se for tomado por um único lado; quando
tentamos equilibrá-lo, quebramos sua harmonia oculta.

(1979a, p. 80)

O oposicionalismo é uma perspectiva que passa a ser necessária apenas


quando o indivíduo deseja tomar parte sobre um território fora do
espaço do sonho. Quando o ego desperto cruza a ponta para o mundo
inferior, a percepção da oposição unilateral do sonho dissolve-se em
uma complexidade de conjunções – “uma mistura ou união de
“elementos” ou “substâncias” (Conjunction, 2008), a coincidentia
oppositorum da alquimia.

Hillman (1979a) procurou deslocar a noção de oposição de uma


dialética de consciente/inconsciente para uma oposição mais absoluta:
vida/morte, onde a morte é desliteralizada para significar “a
autorregulação de qualquer posição pela psique, por uma percepção não
literal, metafórica. Nesse sentido... conjunção e... a identidade de
opostos significam a percepção simultânea pelas perspectivas da vida e
morte, do natural e do psíquico” (p. 79).

Não há indicação melhor da natureza relativizada do ego e das suas


profundas limitações do que a experiência vivida de um sonho ou
fantasia. Essas experiências psíquicas concentradas oferecem uma
compreensão clara sobre a posição subordinada e marginal do ego em
relação ao séquito de outros personagens psíquicos. A imaginação, como
o modo central da expressão psíquica, rapidamente demonstra que o
modo heroico de consciência, um estilo de consciência egoica ligado à
literalidade, controle e busca da vitória, é falho e limitado em um padrão
sisífico, dirigindo um esforço enorme com pouca consciência dada às
repetições impotentes do indivíduo. Enquanto o ego conta com a luz
brilhante da racionalidade, a imaginação escurece a luz, iniciando uma
perda da certeza da qual a perspectiva egoica depende (Schenk, 2011,
comunicação pessoal). À medida que a consciência egoica começa a
cuidar das muitas mortes chegando incessantemente pelo processo
imaginal, o modo heroico do ser cede a um ego imaginal caracterizado
por uma sensibilidade metafórica interna onde a morte recebe um lugar
em meio à vida e dentro dela.

Hillman (1979a) sugeriu que o sonho é apresentado como um fenômeno


homeopático, “onde a cura é a doença, a convalescência é uma ferida
mais profunda, e o recém-nascido é morte” (p. 82). A imagem tem tudo
que é necessário; abstrações simbólicas ou compensações do mundo
desperto não são necessárias. Cada sonho apresenta a narrativa inteira:
tensão, telos, e tratamento dentro dos dados sensoriais da imagem. Essa
noção dá origem a uma posição metodológica que conduz o ego desperto
para o território do submundo onde nasceu o sonho, e onde ele mantém
sua vitalidade e riquezas.
Do um para os muitos

Um dos principais pontos de discórdia de Hillman em relação à obra de


Jung é o que ele interpretou como um colapso da diversidade politeísta
da psique em uma doutrina monoteísta. No seu ensaio Psicologia:
Monoteísta ou Politeísta, Hillman (1971) abordou uma afirmação de
Jung em Aion: “o estágio da anima/animus está relacionado com o
politeísmo, o Si-mesmo com o monoteísmo” (como citado em Hillman,
1971. [/ 193). Além dessa declaração, Jung (1951/1968) observou que o
trabalho com a anima/animus é um estágio que deve ser atravessado para
chegar ao trabalho mais importante envolvendo o relacionamento do
indivíduo com a totalidade. Jung escreveu:

Qualquer um que deseje realizar a difícil tarefa de compreender


algo não apenas intelectualmente, mas também de acordo com seu
valor-sentimento, deve, para o que der e vier, defrontar-se com o
problema da anima/animus para abrir um caminho para uma união
superior, uma conjunctio oppositorum. Esse é o pré-requisito
indispensável para a totalidade.

(p. 31)

Aqui a totalidade é usada como sinônimo do arquétipo que Jung chamou


de Self (Si-mesmo). A descrição de Jung claramente estabelece uma
hierarquia psíquica. Seu trabalho em Aion estabelece um esquema ou
sistema, frequentemente usado na literatura secundária da psicologia
junguiana, onde o Si-mesmo subordina e aglutina todas as outras todas as
outras tendências arquetípicas. Como resultado, a teoria junguiana
prioriza um relacionamento com o Si-mesmo, ou eixo ego-Si-mesmo
(Edinger, 1992), mais do que a dinâmica relacional com as figuras
multivalentes da psique. Essas figuras tornam-se “problemas” a servem
vencidos no caminho rumo ao Si-mesmo como uma imagem de deus e
arquétipo da totalidade e do equilíbrio. Hillman (1971) observou que a
ordenação hierárquica da psique feita por Jung reflete uma fantasia
evolucionária de progresso linear, popular na academia do século
dezenove e do início do século vinte: assim como “anima/animus é um
pré-estágio do Si-mesmo, do mesmo modo o politeísmo é um pré-estágio
do monoteísmo” (p. 193). Essa é uma fantasia que surge de uma cultura
imperialista dominante, onde o politeísmo e o animismo são
considerados sistemas de crença primitivos e até mesmo infantis, muito
menos desenvolvidos do que o monoteísmo transcendental, isto é, as
religiões abraâmicas. Ao imaginar a psique através do monoteísmo do
Si-mesmo, a psicologia junguiana alinha-se com culturalmente frequente
privilégio da transcendência sobre a imanência, do um sobre os muitos, e
do espírito sobre a alma.

Hillman (1971) argumentou que o fator dominante arquetípico presente,


mas oculto, na noção do Si-mesmo é o velho sábio ou senex. Com o Si-
mesmo como peça central, a psicologia junguiana torna-se psicologia do
senex e assim cai em fantasias de ordem e abstração. O senex como
Kronos consome o panteão dos deuses, devorando seus filhos para
manter seu poder superior.

O status executivo fornecido ao Si-mesmo é antitético à psicologia


arquetípica por vários motivos. Como Hillman (1971) observou, “uma
primazia do Si-mesmo implica que a compreensão dos complexos no
nível diferenciado, anteriormente formulada como um panteão
politeísta... é menos significativa para o homem moderno do que esse Si-
mesmo do monoteísmo.” (p. 193). Quando os complexos nos seus
respectivos núcleos arquetípicos são considerados como secundários em
relação ao princípio da totalidade e integração, os personagens diversos
e dinâmicos da psique, os Deuses, com suas qualidades diferenciadas,
afetos, bênçãos e maldições tornam-se menos acessíveis à imaginação –
ocultos sob o tacão do Si-mesmo monoteísta. De tal modo, a psique é
efetivamente reduzida ao ego e Si-mesmo, os Deuses são efetivamente
reduzidos a doenças e, dentro da maioria das linhas psicológicas, as
doenças são efetivamente reduzidas a algo a ser retificado pela
modificação de comportamento ou análise. Os Deuses desaparecem e
levam consigo suas bênçãos de insight, a prolificidade das imagens e a
oportunidade para relacionamentos formadores de alma (soul-making).

Hillman (1971) argumentou: “Até que sigamos Jung no exame da


diferenciação da totalidade com o mesmo cuidado que ele aplicou à
integração da totalidade, nossa psicologia não satisfaz a necessidade da
psique de compreensão arquetípica dos seus problemas” (p. 207). A
tarefa central da abordagem arquetípica à psicoterapia é revigorar o
relacionamento com as múltiplas figuras da psique como seres
independentes que exigem ser abordados “de acordo com seu próprio
princípio, dando a cada Deus o que lhe é devido naquela porção da
consciência, aquele sintoma, complexo, fantasia que pede um fundo
arquetípico” (Hillman, 1971, p. 197). Isso exige que o terapeuta tenha
uma aguda compreensão da constelação de qualidades contida por cada
dominante arquetípico. Tal compreensão envolve primariamente uma
relativa fluência em mitologia – um tópico que abordaremos
detalhadamente no Capítulo 3.

Ao suspender a noção amorfa de Si-mesmo, o indivíduo é levado a uma


relação direta com a multiplicidade inerente da psique. Cada propensão
arquetípica contém sua própria ordem, equilíbrio, excesso, intensidade e
sombra. E ao relacionar as qualidades particulares apresentadas na
especificidade da imagem, o praticante segue de perto os movimentos da
psique e trabalha para aprimorar a “especificação das qualidades
descritivas [da imagem] e [suas] metáforas implícitas” (Vannoy-Adams,
2008, p. 111).

Em vez de um eixo ego-Si-mesmo, um psicólogo arquetípico pode


imaginar uma multiplicidades de eixos, ou uma ““relativização” do ego
pela imaginação” (Vannoy-Adams, 2008, p. 113). Esse movimento
envolve uma perspectiva policêntrica. O ego é formado por uma
variedade de diferentes propensões arquetípicas, e a organização dos
fenômenos psicológicos correspondentes é imaginada não como uma
mediação pelo Si-mesmo, de acordo com Hillman (1997), mas pelo
“código da alma” – uma noção que explora o conceito platônico que
imagina um daimon, ou ser intermediário, que está inextricavelmente
envolvido com o destino do indivíduo e o desenvolvimento do seu
caráter total.

Clinicamente, esse afastamento das estruturas amorfas e reificadas da


psique permitem um elemento de surpresa, espontaneidade e preservação
do que é único no consultório. Contudo, essa recusa a reificar, estruturar
e sistematizar a anatomia da psique pode deixar os praticantes com um
sentimento de falta de chão. Conceitos e estruturas aliviam a ansiedade
inerente ao misterioso processo de confrontar a psique. No lugar da
abstração conceitual, a psicoterapia arquetípica oferece uma
metodologia que facilita descobrir a base única de cada particularidade
concreta, que cada imagem fornece, limitando assim o efeito
entorpecente causado pelas formulações teóricas. Berry (2008)
descreveu seu método da seguinte maneira:

É melhor trabalhar a partir do evento até a ideia, e não o contrário:


1) comece com o evento vivo, isto é, a imagem; 2) concentre-se na
imagem/evento, sentindo-o; 3) preste atenção nos elementos de
ressonância que começarem a se formar a partir do evento...
Eventualmente, as ideias vão brotar desses elementos.

(p. 329)

Alma e espírito

A batalha assumida pela psicologia arquetípica em defesa dos muitos


contra o domínio pelo um é reiniciada na distinção de alma/espírito de
Hillman. Embora a psicologia junguiana seja uma expressão da alma, há
uma forte propensão de perder de vista a alma em favor ao espírito,
confundindo a psicoterapia com disciplina espiritual e permitindo que a
agenda do espírito domine as necessidades da alma.

Hillman (2005) descreveu o espírito como pertencendo a experiências


de pico, transcendência, ar e alturas montanhosas – a partir das quais
tudo parece unificado. O espírito tem uma natureza próxima com Apolo,
“de visão aguçada”, o deus da luz e da previsão racional, um deus da
pureza, deliberação e disciplina, gêmeo de Ártemis, a caçadora virgem.
O espírito, na sua fantasia de voo, transcendência e experiência de pico,
é também intimamente conectado às dinâmicas do puer aeternus, o
jovem eterno encarnado nas nossas mitologias como os voadores Ícaro,
Faetonte e Peter Pan. Hillman descreveu o puer como “narcisista,
inspirado, efeminado, fálico, inquisitivo, inventivo, pensativo, passivo,
fogoso e caprichoso” (p. 50). O puer é o fogo consumidor do espírito –
alimentando o Pothos, ou anseio insaciável, inerente a qualquer
disciplina espiritual.

A distinção de alma/espírito de Hillman coloca a alma no profundo vale


abaixo da alta montanha do espírito (Hillman, 1975a). No vale há
multiplicidade, diversidade, relacionamento, particularidade,
obscuridade, neblina e nevoeiro – muitas coisas são ocultadas,
bloqueadas da visão. Há imediatez, umidade; é onde as coisas ficam
confusas; onde moram as ninfas, fadas, duendes, ancestrais e gnomos, os
inúmeros personagens da imaginação – um cortejo de vozes e opiniões
(Hillman, 2005). Aqui encontramos a fertilidade, pluralidade e umidade
– exemplificados na amarga umidade das lágrimas. No vale da alma há
espaço para conter as muitas experiências repudiadas pelo espírito.

A alma é fenomenologia, a realidade da experiência. Ao caminharmos


por esse vale, encontrando eventos que podem ser digeridos em
experiências corporificadas (Hillman, 1975a), caindo no lodo e lama,
convivendo com a multidão de personagens, desafios e bênçãos
consteladas nesses relacionamentos, temos a oportunidade de fazer alma.
Aqui a psicologia arquetípica segue a declaração de John Keats
(18992001), “Se preferir, chame o mundo de “o Vale da Formação da
Alma” [the vale of Soul-making]. Então descobrirá para que serve o
mundo” (p. 369). A alma não é um item estático, mas uma maneira de
ver, um modo de estar no mundo e com o mundo. Fazer alma é modelar
criativamente os encontros com a vida.

O ideal espiritual estimula e exagera a identificação com os anseios do


espírito permeado pelo puer. Quando as propensões do puer são
literalizadas, quando a função reflexiva está ausente, a dinâmica do
indivíduo seca por falta de água psíquica – o efeito lubrificante do
como-se, o nem-apertado-demais-nem-solto-demais, como o ajuste de
uma roda de bicicleta, sem o qual ela não poderia girar (Hillman, 2005).

Quando a alma e o espírito se dividem por meio da desaprovação do


espírito pela matéria, ambos sofrem no seu isolamento. Na ruptura entre
o espírito e a matéria, as feridas da alma são forçadas no corpo como
patologia, enquanto o espírito voa atrás do seu ideal escolhido. Contudo,
como foi apontado por Hillman (2005), a noção junguiana clássica de
curar o puer dos seus elevados ideais, aterrando-o com trabalho literal,
é uma violência à natureza dessa propensão arquetípica – um assassinato
do espírito. Em vez disso, é necessário é um “casamento do puer com a
psique” (p. 85), onde o puer começa a aterrar-se no trabalho metafórico
da reflexão imaginal e em uma estética de apreciação das imagens da
psique.

Isso significa que a busca e a procura são uma busca e procura


psicológicas, uma aventura psicológica. Isso quer dizer que o
impulso messiânico e revolucionário conecta-se primeiro com a
alma e deve cuidar primeiro da sua redenção. Só isso humanizará
a mensagem do puer, ao mesmo tempo tornando rubra (reddening,
literalmente “avermelhando”) a alma para conectá-la com a vida.
É nesse reino da alma que os dons do puer são necessários em
primeiro lugar.

(Hillman, 2005, p. 88)


Pontos de contato: relativizando o Ego

Além das elaboradas críticas direcionadas à psicologia junguiana, a


psicologia arquetípica também aderiu ao trabalho de Jung, elaborando
uma parte significativa de sua obra. De fato, Hillman (2004) observou:
“indubitavelmente o primeiro pai imediato da psicologia arquetípica é
Carl Gustav Jung” (p. 14). Embora os pontos de contato sejam
demasiado numerosos para serem nomeados e descritos nesse estudo, há
certas características da psicologia junguiana que são centrais à teoria e
prática arquetípicas. É provável que a mais notável dessas conexões seja
o trabalho, realizado por Jung e Hillman, de revisão da subjetividade
cartesiana dissociada e interiorizada do indivíduo moderno.

A descoberta de uma subjetividade interiorizada

No século dezessete, Descarte construiu uma posição filosófica que teve


vastas implicações psicológicas e teológicas em todo o mundo ocidental.
Para Descartes, cada característica do mundo físico era compreensível
em termos de corpos em movimento. Em uma tentativa de agradar a
Igreja, ele propôs que Deus era a causa inicial do movimento
(Gaukroger, 2006; van den Berg, 1961): “quanto à causa geral [do
movimento], parece-me óbvio que não é outra senão o próprio Deus,
que, em sua onipotência, criou a matéria ao mesmo tempo em que o
movimento e o repouso de suas partes” (como citado em Garber, 1982,
p. 166). Jan Hendrick Van den Berg (1961) notou que o posicionamento
de Descartes de Deus no início da criação efetivamente aboliu o senso
de imanência primordial de Deus. Com Deus removido do mundo
imanente, Descartes estava livre para investigar a matéria e a
personalidade sem precisar se preocupar com questões teológicas.
Como Deus foi despachado para fora da criação, o mundo criado foi
reduzido à realidade objetiva, definida por aquilo que ocupa espaço e é
mensurável, e a realidade subjetiva por um sujeito autorreflexivo. Por
meio dessas grandes alterações na cosmologia, Deus tornou-se uma não-
presença distante e abstrata, e a proclamação de Friedrich Nietzsche
(1866/2001) de que “Deus está morto” marca o momento em que a
distância tornou-se grande demais. A transcendência virou ausência, e a
ausência se transformou em morte.

Esse movimento causou um profundo impacto sobre a consciência


humana. Paul Kugler (2005) comentou:

Antes de Descarte, a existência fundamenta-se em um Deus


transcendente, na Matéria, ou nas Formas Eternas. Mas com o
cogito ergo sum de Descartes – “penso, logo existo” – o sujeito
humano pela primeira vez colocado diretamente no centro da
metafísica ocidental e da compreensão psicológica.

(p. 67)

Descartes realizou uma surpreendente alteração cosmológica: ele


colocou o sujeito humano “no centro do nosso sistema de pensamento”
(p. 67) e pôs a alma no interior da pessoa.

A perda e recuperação/descoberta do imaginal

Com o estrito dualismo de sujeito/objeto, o espaço intermediário, o local


da alma desde pelo menos a cosmologia grega pré-socrática, foi
descartado – deslocado na massiva transposição de Deus e sujeito. A
cosmologia desagregou-se em um sujeito ressequido, em objetos
distintos e sem vida, e um Deus distante. Os anjos do imaginal, “os seres
que nos conectam e nos mantêm em contato com a glória e a sabedoria de
outra ordem de realidade” (Romanyshyn, 2002, p. 111) foram expulsos e
considerados desnecessários. Segundo Hillman (1975a), a psicologia
cartesiana “não deixa espaço para qualquer coisa intermediária, ambígua
e metafórica” (p. 1). Ele acrescentou: “essa é uma perspectiva restrita e
nos levou a acreditar que entidades diferentes de seres humanos que
apresentem qualidades subjetivas interiores, são meramente objetos
“antropomorfizados” ou personificados, e não realmente pessoas no
significado aceito da palavra” (p. 1).

Por volta do século dezenove o sujeito tornara-se tão interiorizado e


isolado que surgiu a necessidade essencial de trazer essa nova estrutura
do eu para uma relação com o imaginal – um restabelecimento do eu
dentro da cosmologia mítica. Antes do desenvolvimento do sujeito
interiorizado, esse relacionamento era uma parte intrínseca da identidade
humana. O indivíduo comunicava-se com os Deuses ou Deus por meio de
ritual, oração e histórias. Jung (1956/1970) comentou sobre o efeito que
essa separação teve sobre o indivíduo moderno: “Uma pessoa sem um
mito é como alguém desenraizado, sem uma verdadeira conexão com o
passado ou com a vida ancestral que continua dentro dela, u ainda com a
sociedade humana contemporânea” (p. 197). O ego isolado, arrancado
do Pleroma[2], tornou-se um sintoma que precisa de uma resposta.
Enquanto a psicologia de Freud localizava uma forma de inconsciência
que era essencialmente sexual em resposta à sexualidade descartada
pelas normas sociais da Viena vitoriana (Van den Berg, 1961), o tipo de
inconsciência localizada por Jung era mítica na sua natureza, um
“inconsciente adquirido filogeneticamente e habitado por imagens
míticas” (Jung e Shamdasani, 2009, p. 208), marcado pelo
relacionamento descartado entre o indivíduo e o imaginal.

O nascimento do ego imaginal

A autoexperimentação de Jung descrita no seu Liber Novus (também


conhecido como O Livro Vermelho) fornece uma documentação
detalhada sobre essa tentativa de reconexão com o inconsciente mítico
(Jung e Shamdasani, 2009). Através das observações registradas em seu
diário, Jung levou à esfera coletiva tanto uma antiga sensibilidade quanto
uma nova maneira de relacionar-se com o imaginal. Devido à divisão
cartesiana, que deu origem à interiorização do assunto e ao nascimento
do ego moderno, Jung foi capaz de descobrir um assunto sujeito
radicalmente novo – um ego imaginal: um senso de si mesmo distinto,
mas fluido, relativizado pelas múltiplas figuras da psique imaginal.

O ego imaginal incorpora uma nova capacidade de relacionar-se com a


imagem utilizando uma sensibilidade metafórica, em vez dos modos
racionais de experimentar a imagem que, segundo Jung, estavam
limitados à expressão artística, especulação filosófica, um modo quase
religioso “levando à heresia e à fundação de seitas”, e um desperdício
da imagem “em toda forma de licenciosidade” (como citado em Jung e
Shamdasani, 2009, p. 211). Com Jung as imagens espontâneas da psique
foram dotadas da riqueza da metáfora inesgotável. Além disso, Jung
reconheceu a importância de viver a própria vida em conexão íntima
com essa sensibilidade metafórica.

Enquanto a ciência positivista se apressava em limitar a experiência


humana aos estreitos parâmetros do que é mensurável e lógico, Jung
relativizou a mente racional como simplesmente um modo de abordar os
fenômenos. Os diálogos imaginais de Jung exerceram um papel
importante no seu processo de diferenciar modos racionais e simbólicos
de experiência. Em um importante diálogo registrado no Livro Negro de
Jung, ele escreveu essa declaração de sua alma:

“Você sabe tudo que há para saber sobre a revelação manifesta,


mas ainda não vive tudo que deve ser vivido nessa época”. O “eu”
de Jung replicou, “posso compreender e aceitar isso. Mas é
obscuro para mim o modo como esse conhecimento poderia ser
transformado em vida. Você precisa me ensinar a fazê-lo.” Sua
alma respondeu, “Não há muito que dizer sobre isso. Não é tão
racional quanto você está inclinado a pensar. O caminho é
simbólico.”
(Jung e Shamdasani, 2009, p. 211)

Jung (1965) eventualmente concluiu que o mais importante era fazer as


pazes com o inconsciente através de um rigoroso envolvimento com o
diálogo: “Eu vi que tanta fantasia precisar ter um chão firme por baixo, e
que preciso retornar inteiramente à realidade... Tive que tirar conclusões
concretas dos insights que o inconsciente me mostrou” (p. 188). Foi essa
tarefa central que deu origem às práticas psicológicas de Jung,
particularmente a imaginação ativa e a análise de sonho, que passaram a
formar o coração da psicoterapia imaginal.

Imagem como ontologicamente real

O extensivo trabalho de Jung marca o nascimento de uma epistemologia


moderna que fornece um status ontológico à imagem psíquica, não como
uma emanação literal de Deus, mas uma realidade “como se fosse” – um
modo que precisa ser abordado a partir de uma sensibilidade metafórica,
ou o que Jung chamou de pensamento simbólico. Desde a antiga filosofia
grega, a metafísica ocidental tem apresentado uma posição incerta em
relação às imagens psíquicas, preferindo as designações de imaginário,
opinião e epifenômeno em relação à noção de realidade imaginal ou
psíquica (Kugler, 2005; Hillman, 1975b; Corbin, 1972). Por sua vez, a
partir de Jung os psicólogos profundos assumiram a defesa radical do
imaginal como sendo real, e o real como imaginal (Romanyshyn, 2002).
Esse sentimento é expresso perfeitamente na declaração de Romanyshyn:
“O imaginal é o fundamento do mundo; portanto, possui prioridade
ontológica em relação ao empírico e racional” (p. 118).

Essa posição ontológica é central para a psicologia junguiana e para


psicologia arquetípica. Segundo Shamdasani, “A noção de que essas
figuras têm uma realidade psicológica por conta própria, e que não eram
apenas fragmentos subjetivos, foi a lição principal que ele atribuiu à
figura de fantasia de Elias: objetividade psíquica” (Jung e Shamdasani,
2009, p. 210). Na sua autobiografia, Jung (1965) escreveu: “Filêmon e
outras figuras das minhas fantasias me provaram que há coisas na psique
que não foram produzidas por mim, mas que se produzem sozinhas e têm
vida própria” (p. 183).

Uma segunda subjetividade

Com o movimento na direção de valorizar a imagem psíquica como


primária em vez de reprodutiva, a agência fornecida ao sujeito
cartesiano deslocou-se e uma segunda agência subjetiva foi descoberta
(Kugler, 2005). Kugler observou: “Na época, era uma ideia radicalmente
nova” (p. 70). Jung referiu-se a essa subjetividade superordenada como
o Self (Si-mesmo); como observado acima, Hillman prefere a noção
politeísta de um panteão de Deuses. De qualquer modo, o ego não é mais
o mestre da casa; é o sujeito imaginal transpessoal, ou sujeitos, que
forma/m o agora altamente relativizado e fluido ego. Como disse Jung
(1942/1954):

O ego está para o Si-mesmo como o movido para o motor, ou


como o objeto para o sujeito, porque os fatores determinantes que
irradiam do nosso Si-mesmo cercam o ego e são, portanto,
supraordenados a este... Não sou eu que crio a mim mesmo, em vez
disso eu aconteço a mim mesmo.

(p. 155)

O ego imaginal é um devoto receptivo e atento da imagem psíquica,


mantendo sua hospitalidade como um tipo de “devoção às coisas como
são... [uma] presença no momento presente que libera a imagem no
evento, desliteralizando o caráter factual do evento, e dissolvendo ideias
preconcebidas sobre o que esse momento é ou o que deve ser”
(Romanyshyn, 2002, p. 118).

Jung (1965) argumentou que o desenvolvimento do indivíduo depende de


uma subjetividade que mantém um relacionamento próximo com as
múltiplas emanações do Si-mesmo arquetípico. Hillman (1975a, 2007)
ecoa esse atributo essencial do ego imaginal na sua repetida
admoestação de que os Deuses devem ser lembrados.

É essa função relativizante (Hillman) ou compensatória (Jung) da psique


imaginal que se destaca como uma das contribuições mais importantes na
obra de Jung e Hillman. A redução por Descartes do mundo vivo a um
recurso mensurável, controlável e consumível veio com um preço
elevado. Desnecessário dizer que os desequilíbrios na psique e na
matéria são tremendos. Através da costura cada vez mais estreita entre
ego e razão, a imaginação tornou-se estranha ao ego (Hillman, 1975b). A
explicação do ego imaginal evidenciado na obra de Jung e Hillman é
tanto uma lembrança do lugar essencial anteriormente fornecido à alma
assim como um novo desenvolvimento voltado para forjar uma conexão
essencial entre o espírito do tempo e o espírito da profundidade (Jung e
Shamdasani, 2009, p. 208).

A questão da relevância clínica

Os vários contribuidores da psicologia arquetípica concentraram seu


trabalho no reflexo de uma nova retórica tanto para a terapia como para
a cultura. A atenção persistente na epistemologia da alma resultou em
uma série de insights em relação ao processo mercurial desse aspecto
do ser, negligenciado de modo tão frequente. Contudo, as implicações
dessas ideias ainda permanecem inexploradas e latentes na sua maior
parte. Muitos psicólogos clínicos consideram a obra de Hillman pouco
prática e até mesmo irrelevante para o trabalho que realizam com o
paciente em sofrimento. Tacey (1998) afirma que Hillman perdeu a
“realidade incorporada da vida psíquica” (p. 218) no que ele considera
uma viagem mental filosófica, invocada apenas pelo seu “efeito
retórico” (p. 2320.

Como Tacey (1998) observou, o efeito retórico é de fato central para a


psicologia arquetípica. Sendo uma psicologia enraizada na estética, a
literatura da psicologia arquetípica busca evocar aquilo que ela
descreve, remetendo-se à antiga noção grega da inseparabilidade entre a
verdade e a retórica – “a retórica qua [por meio da] retórica busca a
verdade” (Grimaldi, 1975, p. 173).

Ao contrário da crítica pouco sutil de Tacey, a psicologia arquetípica


traz uma ampla coleção de ideias evocativas com uma riqueza de
implicações vitais para o campo da psicologia clínica. Tendo como foco
a substituição da fantasia dominante de uma psicologia científica por
uma psicologia do logos da alma, a psicologia arquetípica redefiniu a
noção de terapia, deslocando o foco da cura do sintoma para o cuidado
da alma (Hillman, 1972, 1975a, 1979a; Moore, 1994), uma abordagem
enraizada em pensar psicologicamente sobre a psicologia. A psicologia
clínica, segundo Hillman (1975a), sofre de cegueira em relação a si
mesma e uma escassez de ideias. Incontáveis livros didáticos, manuais
terapêuticos e artigos em periódicos abraçam uma multidão de técnicas
para tratar doenças psicológicas, mas poucos autores dão um passo atrás
para ver as ideias, ou fantasias, que formam e determinam a aclamada
técnica. Já a psicologia arquetípica contribuiu com uma rica literatura
que efetivamente esclarece os determinantes arquetípicos a partir dos
quais a prática terapêutica emerge – um corpo de ideias que “engendram
a reflexão da alma sobre a sua natureza, estrutura e propósito” (Hillman,
1975a, p. 117).

As técnicas da psicologia clínica frequentemente são direcionadas para


amortecer o ego heroico contra os diversos constituintes da psique –
enfrentamento, adaptação, desenvolvimento, crescimento, saúde,
resolução de problemas, tudo a serviço do ego. Em contraste como o
foco monocêntrico predominante em relação à adaptação egoica, a
psicoterapia arquetípica advoga uma polifonia de terapias
correspondente à multiplicidade intrínseca da psique. Cada determinante
arquetípico é visto tanto como um estilo particular de enfermidade e um
estilo particular de método terapêutico. A elucidação dos estilos
encontrados na literatura da psicologia arquetípica pode oferecer à
psicologia clínica uma ampliação de escopo além da mera adaptação
egoica rumo a uma terapia de significância arquetípica.

Os proponentes da psicoterapia arquetípica assumem uma posição


radical contra a estrita aderência ao modelo médico da psicologia
convencional (Hillman, 1975a, 1983; Paris, 2007; Romanyshyn, 2002).
Reduzir sintomas, combater complexos e fortalecer o ego são
movimentos que se afastam de um dos principais modos da expressão da
alma: a patologização. Hillman (1975a) escreveu: “antes de qualquer
tentativa de tratar, ou mesmo compreender fenômenos patologizados, nós
os encontramos como um ato de fé, considerando-os autênticos, reais e
valiosos do jeito que são” (p. 75).

Uma abordagem arquetípica à psicoterapia se afasta da noção de cura


rumo à meta de vivificação e de ver através do sintoma e da imagem de
fantasia. A patologia é redirecionada da fantasia do tratamento para uma
fantasia da poesia e ficção – realçando a particularidade da imagem e a
sua presença metafórica. Embora sempre permanecendo próximo à
imagem, o indivíduo começa a ver através dos seus significados literais
até sua corrente subterrânea mitopoética – um desdobramento
inexaurível de metáfora e revelação.

Além de abandonar a fantasia médica, a psicologia arquetípica também


tentou afastar-se da principal fantasia de Freud que prende a psique ao
desenvolvimento infantil, assim como a fantasia de Jung do
oposicionalismo psíquico (Hillman, 1975a, 2005). Hillman postulou que
a psicanálise foi sufocada pela reificação dessas metáforas. O trabalho
de ver através da própria psicologia ajuda a despedaçar a intensa
identificação com escolas psicológicas e coloca a psique de volta no seu
território natural, que é, defende Hillman (1975a), a expressão
idiossincrásica de um cosmos politeísta. Sem o trabalho de ver através,
a psicologia “permanece em um modelo monoteísta da consciência que
deve ser unilateral nos seus julgamentos e estreito na sua visão, pois não
está ciente da riqueza e variedade das ideias psicológicas” (p. 126).

Capítulo 2

Prática imaginal

Começando com a imagem

De pé em uma densa floresta, a visão é obscurecida, exceto nos pontos


onde as árvores se abrem para o horizonte. A luz que chega pela clareira
revela uma certa perspectiva e lança sombras sobre outras imagens.[3]
Aqui, no espaço da visão interpretativa, nos encontramos já situados
dentro de uma perspectiva. Temos na mão definições e formulações.
Atraídos pela chamada da clareira, seguimos por um caminho, um
método de investigação que revela e oculta. A posição tomada dá lugar a
um estilo particular de interpretação enquanto cobre simultaneamente os
caminhos alternativos de investigação. Presos por hábitos, o caminho
bastante batido, nós perdemos as sombras, a surpresa de uma imaginação
sem freios.

Seguindo o argumento de Jung (1939/1954a) de que “todo processo


psíquico é uma imagem e uma “imaginação (p. 544), a psicologia
arquetípica se estabeleceu como uma psicologia que se abstém de
hábitos, começando em vez disso com a imagem; seja em sonho, fantasia,
sintoma ou evento, todos os eventos psíquicos são tratados como
imaginais, ou seja, metafóricos, expressivos de significado através da
exibição estética, e dotados de uma fecundidade de significado. Em
relação à psique em frente à imagem, a posição tomada é dentro de uma
perspectiva policêntrica, de muitos centros. Começar com a imagem é
como estar em uma floresta onde o caminho sinuoso leva através de uma
multidão de clareiras – cada uma revelando um ponto de vista e um
caminho que era até então desconhecido. A Imagem revela, e então, de
maneira mercurial, muda para um centro diferente, exibindo aspectos do
que foi oculto em uma cascata enigmática de significado. “A verdadeira
iconoclasta é a imagem” (Hillman, 1975a, p. 8), já que ela continuamente
quebra a si mesma e começa novamente.

Enquanto símbolos (falo, seio, água) são, por definição, interpretações


generalizadas, compostos da experiência coletiva, as imagens (olhar
para um imenso arranha-céu, deitar-se na grama de uma colina
arredondada, enfiar o pé em um rio gélido e caudaloso) são sempre,
como Hillman observou, “particularizadas por um contexto, humor e
cena específicos... elas são precisamente qualificadas” (Hillman, 1977,
p. 62). A precisão resulta em diferenciação, que é, de acordo com Jung,
a essência da individuação. Ler um evento pelo seu conteúdo simbólico
troca o fenômeno psicológico real, cheio de significado idiossincrásico
e altamente diferenciado, por uma abstração reificada removida da
psique onde foi criada. Interpretações se transformam em doutrinação,
conduzindo o indivíduo um pensamento alinhado com a hermenêutica de
sua preferência. Não há surpresas, apenas nomes apodrecidos.

Seguindo Jung, Hillman (2004) reconheceu a imagem como o dado


primário da psique, a “fantasia governante por meio da qual a
consciência é possível para começar” (p. 24). Hillman argumentou que a
criação de imagens, poésis, é “a atividade autogeradora da própria
alma” (p. 18). A alma continuamente tece imagens na fantasia e sonho, e
essas imagens mitopoéticas, segundo Hillman (1972), formam a base
fundamental da experiência humana – uma noção que pode ser ligada à
alegação de Aristóteles de que pensamento sempre está associado a uma
imagem.

Tomemos como exemplo o toque de um despertador em uma manhã


particularmente sonolenta. O som toma forma no campo da consciência
do indivíduo, e assim que ele é registrado encontra sua expressão como
sonho. Meu próprio despertador, que é uma gravação do toque de um
campanário, se expressou em um sonho como o sino da escola
dispensando-me da aula da oitava série, assim como sinos de igreja
soando ao longe. Essa propensão para a formação de imagens é
onipresente.

Um segundo exemplo ocorreu na política. Em 13 de julho de 2012, o


Presidente Barack Obama fez a seguinte observação em um evento de
campanha em Roanoke, Virginia:

Se você teve sucesso, foi devido à ajuda de alguém no passado.


Em algum momento de sua vida você conheceu um bom professor.
Alguém ajudou a criar esse inacreditável sistema americano que
possuímos e que permitiu a sua prosperidade. Alguém investiu em
estradas e pontes. Se você hoje tem um negócio – você não
conseguiu isso sozinho. Mais alguém fez com que isso acontecesse.

Posteriormente, a mídia, particularmente os canais jornalísticos


conservadores como a Fox News, explodiram com respostas a uma
frase, “você não conseguiu isso sozinho”. Arrancada do seu contexto de
apresentação, a frase tornou-se imagem e foi costurada no mito
republicado do individualismo e livre empreendimento. Aprofundando a
imagem, descobrimos uma narrativa completa baseada em uma fantasia
literalizada que foi inculcada nas pessoas através da mídia e retórica de
campanha, um complexo coletivo cheio de afeto, defesas
psicologicamente primitivas e um tipo de obstinação ideológica que
ajudou a conduzir os Estados Unidos a um impasse político e uma série
de crises sociais, econômicas e religiosas: desemprego galopante, uma
recessão devastadora, pessoas perdendo suas casas, guerra religiosa,
crimes de ódio e assim por diante.

Todos nós estamos sujeitos a sermos capturados por essas imagens,


sujeitas a perspectivas monocêntricas e ações tacanhas. Contudo, uma
vez que a imagem tenha sido libertada da crosta rígida do literalismo,
ele se revela como carregada em termos de perspectiva, metáfora e
afeto, e determinada – na verdade supradeterminada – por psicodinâmica
pessoal, construções sociais e padrões arquetípicos. Para melhor ou
pior, essa criação de imagens é um fenômeno constante – informações
sensoriais, emoções, pensamentos, tudo surge e retorno de uma matriz
imaginal subjacente. Simplesmente não podemos experimentar fora da
nossa capacidade de criação de imagem situada cultural-historicamente.
Contudo, segundo Jung, podemos desenvolver certa flexibilidade
psicológica em relação com esses complexos culturais “reconciliando o
espírito do tempo com o espírito das profundezas (Jung e Shamdasani,
2009, p. 208), alimentando diálogo entre a imaginação mitopoética,
nossa história coletiva e a visão mais estreita da consciência do ego.

A preocupação central da vida de Jung (1921/1971) foi explicar a


fenomenologia dessa matriz mitopoética, chamada por ele de esse in
anima, uma realidade psíquica que existe como um espaço mediador
entre o físico, esse in re, e o intelectual, esse in intellectu. Segundo
Jung: “só através da atividade vital específica da psique é que a
impressão sensorial adquire aquela intensidade, e a ideia, aquela força
efetiva, que são os dois elementos indispensáveis da realidade viva” (p.
52). A imagem oferece intensidade e força efetiva. Em outras palavras, a
imagem evoca o estímulo emocional que liga cada um de nós à vida.

Segundo Berry (1984), essa terceira posição da imaginação, localizada


como uma força mediadora entre a ideia e a matéria, é um lugar de
atividade criativa, uma realização estética, que “cria a realidade todos
os dias” (Jung, 1921/1971, p. 52). Berry (1984) escreveu:

Como esse in anima é um ponto intermediário entre o subjetivo e o


objetivo, imaginativo e material, interno e externo, fantasia e
realidade, compartilha algo da natureza de cada um deles, mas de
uma nova forma não-literal, que Jung chama de “imagens”. As
imagens são os veículos da realidade psicológica.

(p. 124)

Da posição intermediária da imagem, as distinções entre interno e


externo se tornam irrelevantes. A imagem transcende, ou antes, dissolve
as limitações das fronteiras cartesianas. A imagem, como a emoção, está
sempre relacionada com a experiência interna e externa. A psicanálise
contemporânea descreveu esse espaço de mediação como a natureza
intersubjetiva da psique – estamos sempre em uma experiência
relacional (Stolorow, Brandchaft, e Atwood, 1987). Mesmo uma
experiência de isolamento e solidão faz parte de um relacionamento (R.
D. Solorow, comunicação pessoal, 18 de maio de 2012).

Imagem e afeto

Muito embora os fenômenos imaginais e afetivos tenham valor por conta


própria, o método terapêutico geralmente favorece sentimentos enquanto
negligencia o imaginal, o que Hillman (2004) considera que
eventualmente resulta em fortalecer a posição habitual do ego: “A
unicidade intensificada trazida pelas emoções, seu efeito monocêntrico e
limitador sobre a consciência, fornece suporte para a tendência já
monoteísta do ego de apropriar-se e identificar-se com suas
experiências” (p. 59). Desconsiderar a camada imaginal da própria
experiência emocional tende a causar uma identificação inflexível com o
sentimento como a totalidade da experiência, em vez de ser apenas uma
face de um fenômeno complexo. O sentimento é tratado como literal e
inequívoco. O “eu” em “eu estou triste”, ou “eu estou zangado”, é um
“eu” inchado, um “eu” que devorou todas as outras figuras imaginais
presentes na emoção, resultando em uma imaginação indiferenciada e um
ego sobrecarregado.

Como uma psicologia polivalente e fenomenológica, a psicoterapia


arquetípica está interessada nas múltiplas faces de uma experiência
assim como na particularidade de cada face. Descritores como raiva,
tristeza, medo e alegria são amplos e gerais – palavras mortas que pouco
fazem para diferenciar a própria experiência. Uma imagem, como já
observei, é sempre particular. Quando a raiva é qualificada por uma
imagem, o indivíduo ganha uma riqueza de material para se trabalhar.

Por exemplo, um paciente notou que esta zangado. Ele passou a


descrever como quando caminhava através de uma rica vizinhança e via
um carro importado sentia vontade de quebrar a janela ou furar os pneus.
A sua raiva era qualificada pela destruição, ou antes, a destruição é a
raiva: uma raiva-de-quebrar-janelas-e-furar-pneus. Um movimento
terapêutico subsequente poderia explorar essa imagem como metáfora.
Ao rastrear a inter-relação da imagem, é possível extrapolar que ele
passa rapidamente da raiva para a inveja até a destruição de material
valioso. Poder-se-ia seguir o caminho onde a imagem oferece uma
revelação da resposta do paciente à sua situação socioeconômica. Sua
raiva é, ao menos parcialmente, uma resposta à sua posição em uma
hierarquia econômica onde ele está separado da prosperidade por uma
barreira transparente, provocado pela riqueza do outro lado. De que
outras maneiras a sua raiva esmaga e corta aquilo que tem valor?
Relacionamentos íntimos? Sucessos pessoais? Memórias familiares?
Como essas experiências deixam ele com pneus vazios, janelas
quebradas e punhos sangrando? Poderíamos pensar nessa dinâmica em
termos da transferência. De que maneiras ele poderia destruir o valor
alimentado durante o tratamento, ou como ele poderia quebrar a janela
de vidro da neutralidade entre ele e eu para nos trazer ao mesmo nível –
quebrados, irados, destruídos?

A imagem de quebrar vidro e cortar pneus chegou lado a lado, alimentou


e ajudou a diferenciar a imagem já sempre presente da apresentação.
Esse paciente já estava revelando imagens da sua raiva com gesto, tom,
respiração e cadência. Enquanto a técnica psicanalítica cuida da
apresentação como um material derivativo, interpretando essas
expressões como apontadores para uma imagem central – transferência, a
psicologia arquetípica vira essa noção de ponta-cabeça, discutindo que o
gesto, tom, respiração e cadência são a imagem central, são a
transferência. A apresentação é significado.

A resposta incorporada nesse tipo de terapia imaginal é uma ação


psicológica que está por baixo do literalismo e dos atos destrutivos que
se originam do literalismo. A janela do carro importado torna-se uma
janela imaginal através da qual o paciente tem a oportunidade de
capturar pedaços da alma-no-mundo. A caminhada enraivecida pela
vizinhança rica é transmutada em um lugar onde a psique está na
superfície, e significado e materialidade se encontram.

Um sonho:

Eu estava sozinho diante da porta de um elevador. Um grupo de


sujeitos mal-encarados se aproximou de mim. Um deles tinha
três dardos na sua mão. Ele me mostrou a parte traseira dos
dardos, a cauda – uma parte do dardo que estabiliza sua
trajetória. Ele me desafiou a lutar com ele com os dardos.
Apavorado com a situação, me recusei. Ele continuou a me
pressionar, e eventualmente peguei os dardos. Enquanto estava
bem perto, ele começou a jogar seus dardos no meu corpo. Usei
meu braço e mão esquerda para desviar o ataque. Contudo, eu
ainda estava sendo atingido. O grupo de sujeitos comentou que
eu não devia tentar me defender. Subitamente, sem pensar, lancei
minha mão direita no pescoço do homem e perfurei sua jugular
com meu dardo. Girei o dardo por um momento para aumentar o
ferimento. Depois corri.

O sonho fornece uma constelação de emoções: medo intimidador,


defensividade, raiva assassina e um retorno ao medo. Contudo,
simplesmente extrapolar esse padrão de emoções deixa partes
significativas da imagem para trás.

Nos detalhes particulares da imagem, considero que o sonho realça o


relacionamento entre sentir-me atacado e defender-me no meu padrão
contínuo de me elevar (para meu intelecto; para longe de sentimentos
agressivos). O sonho também demonstra uma precisão semelhante a um
dardo na minha agressão; o modo como me apresentei como uma placa
de dardos, com minha “mosca” exposta; a qualidade súbita da minha
raiva; a maneira como corro (N.T. em inglês “to dart”, “correr
subitamente”, mas também “dardo”) e fujo; a maneira como perco o
controle e ataco a jugular, e depois corro como louco.

O sonho sublinha a conexão da agressão e da fuga por meio da repetição


na linguagem do sonho, usando palavras como “cortar” e “correr” (“cut”
e “run”), que é uma expressão (“cut and run”, “sair correndo, fugir
rapidamente”) que soldados usam para descrever uma retirada covarde.
O sonho também faz uma conexão entre luta, fuga e estabilização,
evocando perguntas sobre a natureza desestabilizada da minha resposta à
agressão – é o modo como fujo de uma luta descontrolado e sem
trajetória direta?

O sonho faz muitas perguntas e abre muitas portas – aspectos diferentes


revelados com cada retorno. Cada movimento feito com a imagem é uma
conclusão, e cada final evoca outro início, alimentando uma relação em
contínuo aprofundamento. Esse modo de reflexão imaginal, dotado de
uma variedade aparentemente ilimitada de conclusões,[4] deve ser
claramente diferenciado de modos de interpretação que substituem essas
conclusões com cessação. Com demasiada frequência as interpretações
se baseiam no que é conhecido, cauterizando a experiência imaginal em
uma narrativa particular. Mantendo o contato com a imagem, ficamos
perto do que é desconhecido, permitindo que aquilo que foi descoberto
interpretativamente morra na procissão contínua de inícios.

Contudo, o envolvimento com as imagens do sonho e da fantasia também


pode trazer um senso de organização psicológica – uma topografia
emocional que pode ser usada para que o indivíduo se oriente na
realidade psíquica. Na sua autobiografia, Jung (1965) descreveu a
maneira como usava a imagem para administrar a violenta investida das
emoções que ele experimentou durante um período profundamente volátil
na sua vida:

Até o ponto em que consegui traduzir as emoções para a imagem –


isto é, encontrar as imagens que estavam ocultas nas emoções –
pude me acalmar e tranquilizar interiormente. Caso houvesse
deixado essas imagens ocultas nas emoções, eu teria sido
despedaçado por elas. Havia uma chance de que eu conseguiria
dividi-las; mas nesse caso eu teria inexoravelmente caído em uma
neurose e teria sido finalmente destruído por elas de qualquer
maneira.

(p. 177)

Jung, como um homem velho depois de muitos anos trabalhando com a


psique, sugeriu que se a imagem permanecesse latente na emoção, ele
teria sido despedaçado ou cairia em uma neurose, dando a entender que
a neurose está vinculada com uma falha da imaginação. Quando a
imaginação torna-se monocêntrica, evocando uma rígida identificação
com uma perspectiva, como o fiasco de “você não conseguiu isso
sozinho”, o indivíduo ou cultura torna-se sujeito um tipo de relação
patológica com o eu e o mundo.

A capacidade de imaginar, ou seja, a habilidade de relacionar-se com a


constelação de imagens associada com a experiência emocional do
indivíduo, é central na formulação de saúde psicológica de Jung. Jung
não está sozinho nessa alegação. Os autores do Manual de Diagnóstico
Psicodinâmico listaram como uma das nove principais características
que compõem o funcionamento psicológico “a capacidade de formar
representações internas”, que eles descrevem como “a capacidade do
indivíduo de simbolizar afetivamente experiências significativas
afetivamente (isto é, organizar a experiência em uma forma mental em
vez de somática ou comportamental)” (PDM Task Force, 2006, p. 73).

Apesar da concordância em relação à importância da capacidade


simbólica, o modo como essas imagens ou representações internas são
compreendidas varia amplamente entre as linhas freudiana e junguiana
da psicanálise. Uma diferença central pode ser traçada até uma
discordância primária entre Jung e Freud. Como Berry (1984) observou:

Ao contrário de Freud, Jung vê as imagens da psique não como


derivadas de eventos ou realizações de desejos alucinadas, mas
antes como imagens independentes, imagens de uma imaginação
psíquica cujas intenções são distintas dos desejos ou preocupações
do ego pessoal.

(p. 14)

Segundo a perspectiva de Jung, a imagem é impessoal, e a emoção é a


maneira como ela exerce sua influência sobre o indivíduo. Sendo assim,
as emoções, como os sintomas, não são simplesmente experiências a
serem resolvidas ou sublimadas, mas também necessitam de
responsabilidade e relacionamento imaginal.

As emoções provocam ação. Por baixo da emoção, por baixo de todas as


emoções, está uma fantasia. O que o indivíduo faz com a emoção é,
segundo uma perspectiva psicológica, secundário em importância em
comparação com compreender a fantasia que está forçando a
experiência. Qual face (N.T.: character no original, que tanto pode ser
“característica” quanto “personagem”) da psique está chamando
atenção? Quando essa pergunta encontra sua resposta, a emoção torna-se
relativizada e qualificada pela imagem, e o indivíduo tem uma
oportunidade de sair das garras da fantasia e mover-se para uma ação
psicologicamente informada – uma ação que começa com a psique.

Esse tipo de relação psicológica é bem representado na relação de Jung


com Filêmon:[5]

Por meio dele foi esclarecida a distinção entre eu mesmo e o


objeto do meu pensamento. Ele me confrontou de uma maneira
objetiva, e compreendi que há algo em mim que pode dizer coisas
que não sei e que não pretendo dizer, coisas que podem até ser
direcionadas contra mim.

(p. 183)

Embora o relacionamento de Jung com Filêmon seja bastante amigável, o


texto acima faz a importante observação de que as imagens psíquicas não
são necessariamente benignas. Assim como Freud (1920/1975)
reconheceu uma função da psique que é fundamentalmente antivida, o
encontro de Jung com o inconsciente ensinou-lhe que as imagens podem
ser tanto sábios consultores, como Filêmon, assim como algo mais
semelhante à possessão demoníaca – imagens alimentadas por um
impulso agressivo voltado contra o ego.

A distinção frequentemente deixam de ser reconhecida ou é minimizada


na literatura da psicologia arquetípica, onde a imagem frequentemente é
elevada acima e é considerada superior às necessidades do ego.
Descrevendo o relacionamento entre ego e imagem, Hillman (1975a)
observou: “O ego adentra o reino delas primeiro como um espreitador,
depois como seu pupilo, finalmente como seu zelador, realizando
pequenos ajustes, mantendo o prédio funcionando, a caldeira ligada,
aquecida” (p. 41).

Por todo o texto de Hillman (1975a) ele apresentou um argumento, tanto


persuasivo quanto necessário, sobre a necessidade de relativizar “os
modos habituais de experimentar com aquilo com que estamos tão
identificados que o chamamos de ego, de eu” (p. 43); contudo, seu
argumento frequentemente deixa de considerar os casos onde a imagem
melhor seria servida por uma fantasia da imagem-eu tomando uma
posição em relação a uma força brutalmente opressiva e destrutiva. Um
relacionamento inequivocamente subserviente em relação à imagem não
só é perigoso como também inibe a tensão necessária que deve existir
entre o ego e a imagem.
Relacionando-se com imagens

A tensão relacional que se forma entre o ego e a imagem não precisa ser
necessariamente verbal. Como observado por Mary Watkins (1984),
“cada imagem revela seu próprio caráter – o modo particular como
forma e expressa a natureza do imaginal – sendo ela mesma. Ela conta o
que está fazendo ao fazê-lo, ao se expressar pela ação” (p. 99). A
imagem se define pela sua apresentação e movimentos. Esse ponto
importante lembra o praticante da paciência e observação necessárias
para o trabalho imaginal e impede que o indivíduo interrogue a imagem.
Relacionar-se com a imagem exige um despertar do senso de percepção
diante da particularidade única dos fenômenos a mão. Contudo, como
Hillman (1979b) observou, os sentidos, uma vez adaptados ao imaginal,
perdem os limites estabelecidos pelo literal e ganham a qualidade mais
fluida da metáfora, “de modo que possamos “ler uma imagem” como diz
Lopez-Pedraza, e “ouvir a psique falando” como diz Robert Sardello”
(p. 131).

Assim como o indivíduo trata de uma expressão particular da imagem,


também é importante notar o estilo particular da consciência com que ele
está identificado ao envolver-se com a imagem. O ego tem muitas faces,
e todas são constituídas arquetipicamente. Psicologizar, ou ver através,
para chegar ao estilo subjacente pode libertar o indivíduo de uma
posição rígida em relação à imagem. Mais importante, o ego heroico
tende a sufocar a imagem com literalismo e exploração – como Watkins
(1986) escreveu, “esse tipo de ego heroico adentra o imaginal, mas
frequentemente para seu próprio ganho e para voltar ao seu reino usual
mais rico e mais sábio do que antes” (p. 116).

Relativizando o herói
A psicologia arquetípica frequentemente mirou sua afiada espada da
crítica na garganta do herói, tentando liberar a psicologia imaginal da
determinação e limitação rotineiras desse estilo de consciência. Talvez,
integrada nessa posição, haja um pouco do próprio herói. Semelhante
cura semelhante – o herói deve em última instância usar sua força
heróica para conter em si mesmo o impulso para a ação.

O trabalho imaginal apresenta o desconhecido, o misterioso, o


surpreendente. Quando está diante do desconhecido, o estilo heroico de
resposta é conquistar. Pela conquista, o herói não só se absolve da
ansiedade estimulada pelo desconhecido, como também, como visto em
inúmeros contos de fadas e mitos, ganha a estima, adoração e
recompensa do mundo civilizado.

Como a desesperada população do vilarejo que tem sido atormentada


pelos ataques de um dragão, aqueles que suportam um sofrimento da
alma querem uma força igualmente forte e oposta para aliviar o
sofrimento – um herói para matar o dragão. O impulso de oferecer algum
alívio imediato é uma tentação persistente por todo o tratamento. Para
complicar as coisas, esse impulso não vem apenas do paciente. O desejo
heroico do terapeuta costuma estar à mão, oferecendo uma interpretação
ou algum outro gesto na esperança de manter um senso de eficácia.

Esse estilo de resposta rouba a vitalidade da imagem. Como Hillman


(1979a) observou, quando o poderoso Hércules visita o mundo inferior,
ele saca sua espada e fere Hades. Diante da morte, o herói responde com
violência: “Em vez de morrer na metáfora, matamos literalmente;
recusando a necessidade de morrer, nós atacamos a própria morte” (p.
110).

Berry (1982) qualificou esse estilo de consciência como “aquele modo


que corta a continuidade inerente e a intraconexão da imagem onírica
como um todo” (p. 68). Ela acrescentou:

Esse modo continuamente faz divisões entre o bem e o mal, amigos


e inimigos, positivo e negativo, de acordo com até que ponto essas
figuras e eventos obedecem nossa noção de progresso. Então,
interpretar como “negativos” ou “positivos” esses mesmos
personagens é aceitar a narrativa pelo seu valor superficial, sendo
assim pego na ideia de movimento do ego onírico.

(p. 68)

Essa observação é extremamente valiosa para a abordagem arquetípica


da psicoterapia. O impulso rumo à ação heroica é claramente uma forma
de resistência à expressão psicológica da imagem, sua natureza
egodistônica, e quanto mais distante a imagem está do modo habitual de
fantasia do indivíduo, mais forte o desejo de reformá-la.

Sendo assim, as associações pessoais produzidas pelo indivíduo em


relação a uma imagem são abordadas como expressões secundárias e
podem frequentemente fazer mais para qualificar a perspectiva do ego
para com essa imagem do que a própria imagem (Berry, 1982, 70). É
como se as associações pessoais e elaborações contextualizassem o ego
na constelação particular ou no relacionamento imaginal. Contudo, a
imagem, como dito acima, chega com seu próprio contexto. Uma meta
essencial para trabalhar sonhos a partir de uma perspectiva imaginal é
diferenciar claramente e manter a tensão entre as suposições do ego
onírico e do ego desperto, assim como qualidades essenciais da imagem.
Quando a atenção se volta para as posições imaginais e egoicas, a
fixidez da consciência se solta, permitindo mais fluidez psicológica.

Berry (1982) ofereceu uma diretriz importante a ser seguida e que pode
limitar o reducionismo e monocentrismo da consciência heroica. Essa
diretriz, chamada de “regra de Layard”, afirma: “Nada no sonho está
errado, exceto talvez o ego onírico” (p. 83). Hillman (1979a) expressou
uma ideia similar ao descrever um dos princípios primários do trabalho
arquetípico com os sonhos: conservação. Segundo ele, “A conservação
significa agarrar-se ao que é até mesmo assumir que o que é está certo”
(p. 117).

Vejamos, por exemplo, o seguinte sonho:

Estou diante da entrada da garagem da casa da minha mãe


olhando para a parte traseira do carro do meu pai. Metade do
carro, o lado do motorista, pende sobre um buraco no chão.
Aparentemente, a entrada da garagem foi escavada. Estou muito
ansioso com a possibilidade de o carro cair no buraco; contudo,
também estou ciente de que se fosse até o assento do motorista
para mover o carro até uma posição segura, o meu peso
certamente faria com que ele despencasse no abismo.

Considerando esse sonho a partir da perspectiva da Regra de Layard, as


imagens rapidamente revelam valências diferentes, evocando
pensamentos sobre a falta de fundamento e a importância de deixar as
coisas caírem. Saindo da perspectiva ansiosa do ego onírico, podemos
começar a imaginar que é essencial para o carro - aquilo que eu dirijo ou
que me dirige - balançar na beira do abismo, sempre prestes a cair no
desconhecido, no inesperado, onde os impulsos são frustrados,
confundidos e virados de cabeça para baixo.

Ego imaginal

À medida que esse modo de relacionar-se com a imagem torna-se


internalizado, o indivíduo começa a ganhar acesso a um estilo de
consciência caracterizado por um relacionamento ativo com a imagem e
morte, onde a morte significa a perda de todas as concepções do mundo
diurno, uma perspectiva formada por Hades: “receptivo, hospitaleiro
mais impiedosamente aprofundando, afinado com o noturno, sombrio, e
com uma temível e gélida inteligência que oferece abrigo permanente na
sua casa às condições incuráveis do ser humano” (Hillman, 1979a, p.
202). O ego larga mão das suas armas favoritas - racionalidade,
pensamento positivista, causalidade, literalismo, força e crescimento.
Como Cérbero guardando os portais do mundo inferior, o ego imaginal
protege a imagem dos batalhões da redução levado pela força conduzida
pela ansiedade do literalismo.

Hillman (1979a) notou que o afastamento do literalismo exige uma


descristianização da imagem, revertendo a proibição contra a liberdade
da imaginação, uma proibição que, por exemplo, não faz distinção entre
a fantasia do adultério e o ato em carne e osso, impedindo a consciência
de todas as implicações metafóricas de uma fantasia adúltera. Por outro
lado, ao manter uma sensibilidade metafórica, fornecendo autonomia à
imaginação, a energia do ego, não mais direcionada para o reforço
constante das muralhas de defesa, pode em vez disso se perguntar sobre
o motivo dessa imagem. Quais são suas implicações?

Watkins (1986) descreveu vários estágios de desenvolvimento que o


indivíduo pode atravessar a medida que começa a se relacionar com o
imaginal – se afastando do outro imaginal como uma extensão do ego
para incorporar uma autonomia claramente diferenciada. Ela notou que à
medida que o ego é visto em relação a um cortejo de diversas vozes “a
verdade é redefinida. Ela não é atributo de uma única voz, mas surge
entre as vozes na interface das múltiplas perspectivas dos personagens”
(p. 121). Watkins defendeu o desenvolvimento de um ego que possa
funcionar como narrador em uma novela funcionaria – um “intermediário
hermético para as várias vozes que a pessoa encontra” (p. 128). A
perspectiva do ego desenvolve-se a partir de uma fantasia de onisciência
em relação aos vários acontecimentos psicológicos até uma
compreensão que deve se desenvolver pelo diálogo, “que preserva a
integridade do eu e do outro” (p. 128), um relacionamento eu-tu.

Hillman (1975a) descreveu esse tipo de formação de imagem como


personificação. Ele afirmou que “personificar é uma maneira de estar no
mundo e experimentar o mundo como um campo psicológico, onde as
pessoas são fornecidas com eventos, de modo que os eventos são
experiências que nos tocam, nos comovem, nos solicitam” (p. 13). A
personificação muda o foco das questões racionais/analíticas “por que”
e “como” para a pergunta imaginal “quem”. Localizar o “quem” em uma
experiência alimenta o relacionamento com o próprio mundo “para que
possamos acessá-los com nossos corações” (p. 14).

Instinto e imagem

A ênfase de Hillman na personificação como um dos modos primários do


ato de fazer alma está afinada com as linhas psicopoéticas correndo
pelas obras de Freud e Jung. Muito embora Freud tenha tentado
enquadrar a psicanálise como uma disciplina da ciência, ele também
estava claramente ciente do aspecto mítico da psique. No ensaio de
Freud (1920/1975) Além do Princípio do Prazer ele começou a usar o
termo Eros para descrever o instinto libidinal. Esse movimento conectou
a característica central da sua psicologia com a antiga tradição
mitopoética cercando essa figura. Em um espírito similar, Freud
observou que “Instintos são seres míticos, esplêndidos na sua
indefinição” (Freud, 1933/1954, p. 118).

Jung também descreveu a conexão entre o instinto e a polifonia dos


personagens psíquicos. Jung (1939/1954b) colocou a imagem como o
fenômeno psíquico primário, notando que “nada pode ser conhecido a
menos que primeiro apareça como uma imagem psíquica” (p. 480). Além
disso, também afirmou (1933/1960): “Podemos dizer que a imagem
representa o significado do instinto” (p. 204). De acordo com Jung, só
podemos experimentar o instinto como imagem. A agressão e a
sexualidade sempre aparecem como figuras personificadas de algum
modo, e a maneira como aparece, sua apresentação estética, é
representativa do seu significado.

O deslocamento na ênfase do instinto com a imagem traz consigo uma


mudança na ação terapêutica. Comentários interpretativos que visam
elucidar vários derivativos instintivos e afetos perdem o efeito mais
próximo da experiência e mais precisamente qualificado da imagem.
Contudo, seguindo a asserção de Jung de que a imagem comporta o
significado do instinto, um fracasso em diferenciar completamente a
imagem resulta em um fracasso de diferenciar totalmente o significado
da expressão instintiva. A qualificação que a imagem teria
providenciado é substituída por especulações conceituais do terapeuta e
do paciente.

A natureza da imagem

A abordagem arquetípica à imagem é distinta da abordagem de Jung, já


que Jung postulava uma distinção entre uma imagem virtual ou a priori,
consistente com sua noção de arquétipo, e a imagem arquetípica. Só é
possível inferir a imagem virtual da imagem arquetípica, já que a
imagem virtual não está disponível para a experiência. Isso é similar ao
conteúdo manifesto e latente de Freud (1900/1953), exceto que em Jung
o pensamento onírico latente teria uma significância arquetípica. Por
outro lado, Hillman (199) e Berry (1984) defenderam uma abordagem
psicopoética à imagem onde só interessa o que foi apresentado – o
conteúdo manifesto – “a imagem como fenomenalmente imediata”
(Berry, 1984, p. 131).

A psicologia arquetípica considera que uma imagem é diferente de um


objeto interno, já que a última é derivativa da primeira.
Fenomenologicamente, o indivíduo experimenta o sonho primeiro, e
depois são feitas suposições sobre a que a imagem se refere (isto é, uma
imago materna internalizada). Embora a imagem seja análoga ao
conceito de objeto interno, de modo algum é igual ou redutível a essa
formulação conceitual particular.

Além disso, a noção de imagem não está limitada ao que pode ser
percebido visualmente. Uma imagem pode ser uma expressão idiomática,
um aroma, um sabor, um toque; mesmo “a própria linguagem é... uma
imagem” (Jung, 1939/1959, p. 160). Casey (1974) argumentou que a
imagem é um modo de abordar os fenômenos. Berry (1984) ofereceu o
seguinte esclarecimento:

A imagem pode ser uma entidade particular em um sonho ou


configuração no sonho, o sonho por inteiro, o sonho dentro de uma
situação, sintoma, o curso de uma doença, etc. A imagem é
simplesmente aquilo sobre o qual o trabalho de elaboração (N.T.:
no original crafting, ”artesanato, construção, manufatura, processo
artístico”) se concentra como um fato dado e inegociável.

(p. 156)

Interpretação arquetípica

Como notado acima, a psicologia arquetípica fez fortes críticas aos


métodos interpretativos que se afastam dos fenômenos de apresentação.
Por outro lado, Berry (1984) imaginou o ato interpretativo como um
ofício estético que é mimético em relação ao modo como a psique cria
imagens a partir da natureza. A abordagem estética foi descrita de modo
convincente por Berry (1984) como “tomar como base (grounding) os
detalhes sensuais imediatos do que se apresenta”, dando a entender
“fatos distintos, levando a descrições em vez de racionalizações
secundárias sobre descrições” (p. 69).

O trabalho da psique é uma poésis, tecendo juntos resíduos do dia,


memórias distantes e a ativação de estruturas intrapsíquicas em um tipo
particular de criação psicológica, uma imagem. Do mesmo modo, uma
abordagem arquetípica na interpretação de fenômenos psíquicos busca
uma “conaturalidade afetiva” ou uma “atitude de correspondências”
(Berry, 1984, p. 151) com a imagem específica. Em vez de formular uma
interpretação a partir da compreensão intelectual de conceitos
psicológicos, a interpretação deriva de uma sensibilidade estética. Como
foi observado por Ronald Shenk (1989), “não são necessários sistemas
de proporção, harmonia, oposições ou compensação para elucidar o
significado. A própria aparência é tudo que é necessário quando
percebida pelo olhar estético” (p. 161). O significado é derivado não de
uma pré-concepção de uma fonte de significado, mas de princípios
estéticos, “por modo de similaridades, reverberações e improvisações
miméticas ou paralelas” (Berry, 1984, p. 151) à expressão psíquica
única.

De uma perspectiva arquetípica, o sonho, na sua apresentação como tal,


já produziu uma expressão significativa da psique – o sonho é primário
(Berry, 1984). A interpretação é uma atividade secundária que tem o
potencial de fornecer ainda mais significado a partir do sonho. De uma
perspectiva arquetípica, o ato interpretativo pode ser mais preciso e
efetivo quando é feito via mimese dos valores já expressos pelo próprio
sonho. Citando Berry:

Em uma interpretação... [a forma manifesta do sonho] deve ser


reproduzida novamente, mas de um modo compatível com, ou
possibilitado pelo original – com o mesmo tom ou clave, mas
como uma variação contrastante ou improvisação dele.

(p. 153)

Interpretações singulares podem facilitar um poderoso insight, mas elas


vêm com o preço pesado de perder a fecundidade natural da imagem. Um
modelo arquetípico para a interpretação poderia notar algo a partir de
uma determinada perspectiva, mas a formulação é mantida em mente
como uma perspectiva entre muitas – vendo através do que foi dito, para
quem foi dito, reconhecendo assim a qualidade sempre relativa de
qualquer interpretação.

A obra de Berry (1982) ofereceu uma representação clara da


interpretação – oferecendo aqueles que trabalham com sonhos uma
oportunidade de refletir sobre as várias fantasias que, para melhor ou
pior, formam as interpretações feitas ao encontrar um sonho.
Transformando a tarefa de “consciência interpretativa” na sua própria
abordagem, ela nota um pressuposto fundamental da psicoterapia
arquetípica: “o sonho é um produto imaginal por si só. Independente do
que fazemos ou não com ele, é uma imagem” (p. 57).

Como uma imagem, cada sonho chega com seu próprio contexto, que é
anterior até mesmo à analogia mais aparente do contexto da vida
desperta. Como Berry (1982) observou, o próprio sonho tem textura,
texto e tecedura. À medida que o corpo da imagem, sua sensualidade e
lugar, tornam-se mais diferenciados através da atenção cuidadosa, o
sonho vai começar a se localizar com estando situado dentro de um
domínio psíquico particular. Por exemplo, o sonho mencionado acima
apresenta uma variedade de circunstâncias que, quando tomadas juntas,
formam um ambiente dentro do qual o sonho pode começar a ser
compreendido nos seus próprios termos. “Casa da mãe” e “carro do pai”
configuram o “eu” do sonho como “eu-filho”, “um filho de”, gerado por
aquilo que está presente no sonho. Conectar o sonho ao contexto do
mundo diurno prenderia as imagens à família literal do sonhador,
colocando uma lente de desenvolvimentista sobre o sonho, remodelando
a imagem de apresentação dentro da fantasia de tempo linear e
desenvolvimento causal. Contudo, Berry (1982) argumentou: “Com a
imaginação qualquer questão de referente objetivo é irrelevante... Como
lemos em Jung, imagens nos nossos sonhos não são reflexos de objetos
externos, mas sim “imagens internas”” (p. 57).

Jung (1928/1966) descreveu a leitura do sonho no nível subjetivo,


diferenciando sua abordagem ao sonho da leitura de Freud do sonho no
nível objetivo. Uma interpretação no nível subjetivo envolver referir
“cada parte do sonho e todos os atores nele de volta ao próprio
sonhador” (p. 84). É importante ressaltar que esse modo de interpretação
foi combinado com o que Jung chamada o método sintético ou
construtivo. Essa posição interpretativa envolvia reforçar e estender o
significado pelo uso da amplificação. Segundo Jung: “Assim como a
análise decompõe o material de fantasia simbólico nos seus
componentes, o procedimento sintético integra-o em uma declaração
geral e inteligível” (p. 81). Esses três níveis de interpretação, objetivo,
subjetivo e sintético, oferecem caminhos diferentes para o sonho, cada
um revelando e ocultando os diferentes significados integrados no tema
onírico.

A psicologia arquetípica se diferencia de Jung e Freud por manter-se


próxima da investigação do que a psique está dizendo sobre si mesma
por meio do sonho. Hillman (1979a), no seu estilo altamente polêmico,
ofereceu uma poderosa crítica dos métodos objetivo e subjetivo. Nas
suas palavras:

Ouso dizer isso alto e claro? As pessoas com quem interajo nos
sonhos não são representações (simulacra) de seus
correspondentes vivos nem de partes de mim. Elas são imagens de
sombra que ocupam papéis arquetípicos; são personas, máscaras,
e por trás delas há um númen.

(pp. 60-61)

Ele acrescentou: “A imagem do sonho de uma pessoa humana não pode


ser tomada em termos da sua realidade, já que a imagem em um sonho
pertence às sombras do submundo e, portanto, se refere a uma pessoa
arquetípica na forma humana” (p.61).

É essencial observar que a veemente retórica de Hillman pretende tornar


evidente para o leitor a tendência ubíqua de deixar de lado o sonho para
voltar à vida desperta e reduzir o sonho àquilo que pode ser conhecido e
usado pelo ego. Ao ler Hillman, é importante pensar criticamente sobre
o que ele está dizendo e evitar a armadilha da literalização do seu
argumento. Por exemplo, associações pessoais com uma figura de sonho
não precisam apenas elucidar o nível pessoal da imagem do sonho. A
psique escolheu trançar uma imagem a partir dessa figura específica: as
associações pessoais do indivíduo com aquela figura podem ajudar a
qualificar ainda mais a aparência dessa imagem, esclarecendo a
constelação arquetípica a que ela pertence. Mesmo Hillman (1979a)
desiste da sua missão de des-humanizar o sonho, admitindo uma resposta
“ambos-e” à questão sobre as dimensões pessoal versus arquetípica do
sonho. Ele observou: “as pessoas com quem jantei e que retornam no
meu sonho encarnam as duas coisas, minhas características e ações e
características e ações divinas” (p. 100).

As dinâmicas interpessoal e intrapsíquica representadas em um sonho


podem ser importantes pontos focais em determinados períodos do
trabalho do terapeuta com um paciente, mas essas posições podem
obscurecer dimensões arquetípicas do fenômeno psíquico. O argumento
de Hillman (1979a) indica a chamada, feita pela própria psique, para
permitir o senso mais amplo de valor para a imagem psíquica – para
reconhecer que nos sonhos somos visitados por daimones, ninfas, heróis
e deuses na forma dos nossos amigos da noite passada” (p. 62). O
método arquetípico é um processo para reverter a imagem até a sua
origem mítica, e como Hillman (1979a) notou, “eles se tornaram seres
míticos, não tanto por amplificar seus paralelos míticos como por ver
através das pessoas imaginativas dentro das máscaras pessoais. Só as
pessoas do sonho são essenciais para compreender as pessoas no sonho”
(pp. 63-64).

Para fortalecer essa dimensão arquetípica do sonho e ficar com a


imagem apresentada, pode ser útil imaginar que o sonho é vedado da
experiência desperta da vida – todas as referências e relacionamentos
são para outros aspectos da imagem – como se o sonho pouco se
importasse com a experiência histórica do sonhador. Naturalmente, essa
abordagem será eventualmente deixada de lado à medida que as
analogias com a vida desperta preencherem a mente do indivíduo, mas
essa posição defende contra o hábito persistente de arrancar sonhos do
contexto inerente à imagem.
Ao manter o contexto imaginal do sonho, o pai e a mãe do sonho
mencionado acima tornam-se des-literalizados, qualificados não pelos
pais do sonhador mas pelas imagens por meio das quais esses papéis
aparecem. O “eu” no sonho é também um eu-imagem, contextualizado
pelo sonho. Uma abordagem arquetípica ao sonho alimenta uma
perspectiva que pode ver os muitos “eus” da psique, permitindo-lhes
autonomia distinta do “eu” que observa o sonho. Hillman (1976a)
observou: “O comportamento do ego onírico reflete o padrão da imagem
e dos relacionamentos dentro da imagem, em vez dos padrões e
relacionamentos do mundo diurno” (p. 102).

Manter o “eu” do sonho como um “eu” específico contextualizado pelo


próprio sonho mantém a trama já fornecida pela imagem. O
“entrelaçamento” (Hillman, 1978, p. 157) de cada elemento do sonho é
também reforçado pelo realce dos relacionamentos entre as imagens
dentro da imagem geral mais ampla do próprio sonho. Para esclarecer o
contexto imaginal e abrir a implicação metafórica de cada imagem,
Hillman (1978) fez uso de um estilo de notação, que ele chama de
quando-então (now-then), um método que vincula uma imagem com outra
como contextualmente necessário. Berry (1982) referiu-se à importância
essencial de cada imagem e aos relacionamentos entre cada imagem
como a intra-relação, ou “a democracia total da imagem” (p. 60).

No exemplo acima, o sonho estabelece o “eu” na entrada da garagem da


casa da mãe, ou talvez essa imagem represente o impulso (drive) até a
mãe, ou a mãe do caminho da garagem (também drive no original). A
notação quando-então realça as seguintes relações: quando o caminho
está ocupado pelo carro do pai, então é visto pelo “eu” por trás. Quando
o “eu” vê por trás o carro do pai, que ele dirigiu ou que o impulsionou,
então ele sente-se ansioso quanto à instabilidade, deseja ter um chão
mais sólido, fica preso na ambivalência.

À medida que as metáforas inerentes à imagem tornam-se mais


aparentes, o sonho começa a apresentar questões específicas:
Será que o modo como eu dirijo (minha vida, meu trabalho, meu “ato
de olhar para trás”) é o pai da instabilidade e ansiedade da falta de
fundamento – o medo de desabar? Ou, será que sou pai da ansiedade
com meu caminho cavado na direção rumo à “casa da mãe”? Como
seria cair no posso dos meus impulsos? Terá o meu “impulso materno”
ido para o subterrâneo, onde ameaça engolir o carro do meu pai
(minha capacidade de me mover, de me separar da minha mãe, de
penetrar no mundo)? Quando estou em um caminho rumo à mãe, então
vejo o carro que conduziu meu pai como instável, em perigo de cair na
falta de chão. A matéria sólida do meu impulso/caminho até a mão está
desestabilizada e perdendo terreno? Como me senti inseguro em
relação a entrar no carro do pai – tomar seu lugar, desabando no
assento do motorista?

Além de mostrar a interconexão das imagens do sonho, onde “todas as


partes têm um direito igual de serem ouvidas e de pertencer ao corpo
político” (Berry, 1982, p. 60), seguindo o contexto da imagem com a
notação quando-então também demonstra a noção de Berry da
simultaneidade da imagem. No sonho citado acima, todas as
características chegam juntas como uma constelação altamente
específica.

A mesma qualidade de simultaneidade está presente na psicopatologia.


Por exemplo, os vários sintomas da depressão: tristeza, irritabilidade,
perda de interesse, retardo psicomotor – essas características chegam
juntas como uma gestalt completa. Elas são relacionadas, mas não por
causação. Ao manter essas peças diferenciadas juntas como expressões
da particularidade da depressão, é possível compreender a qualidade e o
tom emocional da experiência do indivíduo – a imagem da depressão.
Com os sintomas e o sonho, podemos imaginar a sequência de apresentar
imagens como “uma série de superposições,... cada evento
acrescentando textura e tornando o resto mais encorpado” (p. 59).

Enquanto cada imagem sempre pertenceu ao sonho, algumas imagens se


destacam por conterem mais valor poético. Berry (1982) propõe que as
imagens que se destacam pela sua peculiaridade podem ser consideradas
“extremamente valiosas, porque são exemplos do opus contra naturam”
(p. 62). Como um sintoma, elas se destacam do que é normal e deve ser
esperado. Elas solicitam cuidados, e levam a mente para fora das
expectativas convencionais (egoicas).

Imagens peculiares, como o carro meio suspenso sobre um caminho


inexistente, invocam um senso de curiosidade. Elas simultaneamente
protegem o sonho de uma redução simplista enquanto também convidam
o sonhador a se espantar com a estranha representação – o valor oculto
no repulsivo e absurdo, incitando/causando o insight no indivíduo que
leva ao reconhecimento de que todos os fenômenos psíquicos, sintomas,
fantasias e sonhos têm importância.

Um sonho também pode se abrir virando essa ideia de ponta-cabeça,


imaginando a imagem mais comum, ordinária e mundana como cheia de
valor. A experiência banal, o tédio da labuta diária, quando encontrado
como imagem, recebe a oportunidade de mostrar que ela também tem
importância metafórica, gravitas psíquica. Um homem vai trabalhar todo
dia e naquela noite sonha que ele está no seu trabalho fazendo cópias
para seu chefe obeso. Essa cena, tão facilmente descartada ao despertar,
sem dúvida está cheia de significado. Dar valor a esse sonho pode
oferecer uma oportunidade de reconhecer a maneira como esse homem
sente-se mecanizado no trabalho, simplesmente outra cópia, sendo
engolido pelas exigências do seu chefe. Talvez sonhar o mundano seja a
maneira da psique de trazer profundidade àquilo que é facilmente
descartado como sem alma, um reconhecimento de que todas as
experiências estão imbuídas com atividade imaginal e implicação
metafórica.

Terapia imaginal

A aderência à metáfora e à imagem exigiram que os psicólogos


arquetípicos explicassem um método clínico que coloca a imagem na
posição primária. Como Hillman e Berry declararam em uma palestra
não publicada: “Nossa abordagem pode ser chamada de uma terapia
focada na imagem. Assim, o sonho como uma imagem ou feixe de
imagens é paradigmático como se estivéssemos colocando todo o
procedimento psicoterápico dentro do contexto de um sonho” (como
citado em Hillman, 2004). Com a terapia como sonho, os eventos que
ocorrem por toda a seção estão enraizados em uma posição metafórica –
todos os fenômenos por toda a hora tornam-se sementes para reflexão
psicológica.

Um método que é central para a formação de imagem é o uso de Hillman


(1975a, 1975b, 1979a) da epístrofe, ou reversão – uma noção derivada
da descrição de Henry Corbin (1997.) de ta’wil. A reversão envolve
colocar um fenômeno no seu contexto arquetípico seguindo as conexões
feitas pela semelhança. A reversão, segundo Hillman (1979b), é:

Um método que conecta um evento à sua imagem, um processo


psíquico para seu mito, um sofrimento da alma para o mistério
imaginal expresso ali. A epístrofe, ou o retorno pela semelhança,
oferece à compreensão psicológica uma avenida principal para
recuperar a ordem da confusão dos fenômenos psíquicos, além da
ideia de desenvolvimento de Freud e de opostos de Jung.

(p. 4)

Ainda que Hillman tenha exercitado a reversão com mais frequência em


relação à teoria, esse método tem um lugar essencial na práxis
arquetípica.

Não é necessário ter muita experiência clínica para aprender que a tarefa
aparentemente simples de sentar-se com um indivíduo em uma sala de
consulta por 50 minutos pode rapidamente parecer assustadora à medida
que o terapeuta tenta navegar entre o turbilhão caótico do conteúdo
psíquico. Essa experiência levou à necessidade essencial de algum tipo
de filtro organizador. Na passagem acima, Hillman faz referência aos
filtros primários de Freud e Jung – fantasias por meio das quais
fenômenos psíquicos podem ser percebidos, organizados e narrados. A
fantasia, seja ela desenvolvimentista ou compensatória, é uma metáfora,
e, como todas as metáforas, é e não é. A fantasia da reversão, embora
certamente não esteja além da crítica, abre os fenômenos à
multiplicidade presente no mito; evitando assim, espera-se, a redução
para um sistema mecanizado de interpretação. Além disso, a reversão,
como uma posição hermenêutica para o terapeuta e paciente, encoraja as
duas partes a se manterem próximos da particularidade do fenômeno.
Segundo Hillman (1979a), “só esquadrinhando o evento à mão podemos
descobrir quais das muitas constelações arquetípicas são semelhantes a
ele” (p. 4).

É importante salientar que o movimento não é de evento para mito, mas


antes o indivíduo localiza o evento no cosmos do mito pela semelhança,
e então trabalha com tessitura dos dois como uma imagem. Embora esse
movimento certamente tenha suas raízes na análise junguiana, a
psicologia arquetípica diferencia-se, como já foi argumentado acima,
evitando a abstração na interpretação simbólica.

Vejamos, por exemplo, a seguinte narrativa não publicada de Hillman


(1975c) trabalhando com um dos próprios sonhos:

Procurando por uma imagem, procurando por uma figura de


alma. Estou subindo a torre na fortaleza. Uma sala vazia. Sem
princesa, nenhuma outra Sheila-Danielle na glande elevada, alta
assim, isso é uma ponta de lápis, emitindo continuamente sêmen
cremoso.

Hillman permite que associações pessoais e arquetípicas dancem para


dentro e para fora da página. Elas então e então abrem caminho para a
próxima analogia em um fluxo sempre cambiante de significado. Ele as
oferece ao sonho, e o sonho as aceita e continua no seu going-on-being
[continuar a ser] (Winnicott, 1971). Ele impede que as referências
amplificadoras sejam forçadas no sonho retornando rapidamente à
imagem. As interpretações analíticas, por outro lado, tendem a
interromper o fluxo, dizendo que isto é isso. A imagem é desmontada,[6]
e o significado é decifrado.

Hillman (1975c) acrescentou: “Descendo até o terreno. Um velho com


pés enfaixados, pés enrolados em feltro, uma figura indefinida, como o
homem encapuzado no autorretrato de Michelangelo. Nós caminhamos
por todo o terreno, dois velhos, zeladores, zelando.” O texto do sonho
ganha a riqueza de uma associação cultural ao autorretrato de
Michelangelo. Ele cresce com mais significado e referências, torna-se
mais volumoso. Hillman joga com a linguagem do sonho, notando a
maneira como a imagem dos zeladores implica em cuidar zelosamente.
Ele vai mais além, explorando as implicações imagísticas dos “pés
envolvidos em feltro”. Os “pés de feltro” (felt feet) no jardim são
justapostos com a sala vazia no topo da torre.

O modo de trabalho sobre sonhos de Hillman é como uma dança com a


imagem apresentada – uma experiência relacional, onde outras imagens
são feitas através da linguagem do sonho, associações e similaridades.
Hillman exemplifica um tipo de imaginação ativa dentro do texto do
sonho, preservando os fenômenos psíquicos ao ficar com a imagem
enquanto também se envolve com ela ativamente pelo jogo.

Trabalho com a imagem

Por toda a literatura da psicologia arquetípica, podemos encontrar


contínuas referências a um dos axiomas primários da prática arquetípica:
“ficar com a imagem” (Berry, 1982; Hillman, 1975a, 1978, 1979b). Esse
lema confirma uma posição metodológica que preserva o significado
particular apresentado na imagem sempre única ao vivificar os detalhes
da imagem. Como observado acima, o praticante arquetípico evita
abstrações e interpretações que transformam uma imagem viva, dinâmica
e precisamente qualificada em um mero conceito. A prioridade
ontológica é concedida à imagem, afirmando sua posição como “aquilo a
que voltamos repetidas vezes, e que é o fundamento primário e a fonte de
nossa consciência imaginal” (Berry, 1982, p. 64).

Ao trabalharmos com um sonho ou fantasia, o praticante tem uma


oportunidade de entrar no mundo que a imagem apresenta, de operar com
a linguagem e epistemologia nativa daquela imagem específica,
posicionando-se dentro do tema imaginal – linguagem, gesto, estilo,
perspectiva, interpretação, tudo nascido da imagem. Quando a
amplificação é utilizada, é usada no serviço da especificidade da
imagem, não como um método hermenêutico de decifrar o significado
oculto ou latente. Usando uma metáfora alquímica, a imagem recebe um
espaço de contenção no rudimento da psique, repetidamente dissolvida e
coagulada, aquecida e resfriada, secada e umedecida, e através dessas
operações, a imagem torna-se como uma tintura – um potente
medicamento de origem psíquica.

À medida que o material é elaborado, o tema do sonho reafirmado


através de uma cascata lúdica de linguagem, a pontuação é fluida ou
removida, as palavras são unidas ou recebem hífens, compostos são
decompostos, a linguagem pode ter múltiplos significados, o corpo do
sonho é preenchido, “um crescimento ocorre” (Berry, 1984, p. 161), e as
similaridades do sonho-para-a-vida emergem.

Hillman (1977) observou, “podemos encontrar a alma na imagem e


compreendê-la... através do jogo de palavras que é também uma maneira
de falar com a imagem e deixá-la falar. Nós assistimos esse
comportamento – como a imagem se comporta consigo mesma” (p. 81).
O material primário de onde o jogo emerge é a constelação da linguagem
providenciada pela imagem. As palavras usadas para descrever a
imagem são o fator essencial no trabalho do sonho como imagem – como
disse Hillman (1978): “Não há mais nenhum lugar para encontrar seu
significado” (p. 170). Berry (1982) descreve o jogo linguístico como um
tipo de “reafirmação” que revela “um nuance metafórico, ecoando ou
refletindo o texto além da sua declaração literal” (9.72). Ela
acrescentou, “isso pode ser feito de duas maneiras: primeiro substituindo
a palavra real com sinônimos e equivalentes... Segundo, simplesmente
reafirmando as mesmas palavras, mas enfatizando a qualidade
metafórica dentro das próprias palavras (p. 72).

Vejamos por exemplo o seguinte sonho:

Um dos sujeitos que pintam a cara de azul (o Blue Man Group) estava
mostrando a mim e à minha namorada como aplicar maquiagem
branca no rosto, para que ele pudesse ser pintado com tinta colorida.
Comecei a aplicar a maquiagem branca. Fiquei surpreso com a
rapidez com que ela cobriu os traços do meu rosto.

Quando o sujeito de rosto azul (blue in the face, também “sem fôlego,
exausto, até ficar roxo”) nos mostra como aplicar maquiagem (to make
up, mas também “fazer as pazes”), e não make down (preparar a cama
para alguém que vai passar a noite), meu rosto fica branco. Quando faço
as pazes, cubro meu rosto (por vergonha). Ele mostra como
branquear/apagar meu rosto, maquiando meus traços – me ensinando a
perder face. Será que ele está exausto de me dizer como fazer as pazes
com minha namorada?

Quando o “eu” é mostrado, ele está junto com “minha namorada” que
também é “mostrando à minha namorada”, um pareamento necessário. Só
quando o “eu” está com “mostrando minha namorada”, é que o “Man
with the Blues” (Homem triste), de rosto azul, é mostrado. O sonho
demarca precisamente a constelação do complexo.

À medida que a imagem agora revelou algumas das suas metáforas


intrínsecas, ela também se torna um campo maduro para analogia,
conectando-se com vários fenômenos da vida desperta e padrões
psicológicos. Através de uma pergunta simples que convida o sonhador a
refletir sobre com o que esse sonho parece, a imagem tem oportunidade
de tocar a vida do sonhador e ganhar importância. Por exemplo:

A maquiagem de rosto branco é como quando faço uma cara


para cobrir meu embaraço em uma festa, a brancura do
esquecimento que desejo alcançar. Também lembra quando eu
entro em pânico por achar que alguém não gosta de mim,
dissociando quando tenho sentimentos intensos. É como me
transformar em uma tela vazia – pronto para acomodar a cor
que preciso ser, moldando a mim mesmo, disfarçando minha
“verdadeira cor” (true color, natureza autêntica) e as
características que fazem de mim um indivíduo. Ficar brando é
como é como se misturar, não querer se destacar – como encarar
o mundo com meu privilégio de branco.

Quando um sonhador começa a conectar a imagem de sonho a padrões,


comportamentos, fantasias e memórias similares, a riqueza das ligações
aflora, a imagem começa a mostrar sua profundidade, e o sonhador ganha
uma oportunidade de experimentar a veracidade e valor da realidade
psíquica. Ao contrário da interpretação, a analogia não cessa com um
único significado. Uma analogia flui para outra, preenchendo uma
constelação complexa e constelando um complexo. Tudo isso vem de
manter-se próximo ao retrato preciso da imagem.

Hillman (1977) notou o modo como a psicoterapia arquetípica a utiliza a


analogia de um modo similar aos anatomistas, onde um relacionamento
analógico implica “semelhança na função, mas não na origem” (p. 86).
Muito embora a implicação de origem seja um movimento rumo a uma
redução simplista, com a analogia o relacionamento entre uma imagem
de sonho e um tema mitológico pode ser explorado sem indicar implícita
ou explicitamente que a imagem é um ou outro arquétipo.

Ao trabalhar em termos de semelhanças, a ambiguidade da imagem é


mantida, o que por sua vez dá origem a mais fantasia – o sonho continua
a sonhar a si mesmo. Alem disso, a teia de similaridade levada por cada
imagem revela seu lugar na família das coisas, onde e como têm lugar as
dimensões idiossincrásicas e pessoais da imagem dentro do cosmos da
significância arquetípica (Hillman, 1975d).

Outro sonho:

Estou na casa da minha mãe junto da bancada da cozinha. Como


presente de aniversário, minha namorada me deu uma cobra
preta bem enrolada em um pacote, e aparentemente sem vida. Ela
foi embalada e parece ter sido fabricada e produzida em massa.
Eu tiro a cobra da embalagem e ela começa a se desdobrar e a
encher. Eu leio a embalagem; a cobra supostamente é inofensiva.
Vou ao banheiro, com a intenção de prender a cobra ali.

Quando estou na casa da minha mãe, na bancada (N.T.: no original


countering, “retorquindo, protestando, contestando”; é um jogo de
palavras com counter, “bancada”), então a minha namorada me dá algo.
Quando a namorada-na-casa-da-mãe dá, então uma cobra preta é
estreitamente embalada. Há uma ligação próxima e estreita entre a
namorada e a mãe, embalando algo sem vida? Quando o “eu” que está na
casa da minha mãe ganha um presente da namorada, então uma cobra
preta sem vida é fabricada e produzida em massa. Quando a minha-
namorada e o eu-na-casa-da-minha-mãe estão amarrados juntos sem
vida, é dada o desdobramento e enchimento da cobra preta.

À medida que os relacionamentos com a imagem são revelados, a


imagem ganha vida com personificações altamente qualificadas como o
eu-na-casa-da-minha-mãe. Com ou ouvido psicologicamente afinado,
isso pode parecer simplesmente um complexo materno, mas a imagem
diz muito mais do que essa abstração conceitual. Veja a particularidade
que surge ao ficar com a imagem. Esse relacionamento eu-mãe-namorada
é contestado na cozinha, onde ele cozinha os alimentos, onde fornece
comida, onde o “eu” toma uma posição e responde à mãe-namorada – o
feminino limitador que prende a cobra preta, que contesta o instinto.

Assim como a cobra preta parece sem vida e presa de início, só


ganhando vida à medida que é desembalada, quando uma imagem recebe
atenção, começa a se desdobrar e a tomar corpo. Como o sonhador desse
sonho, eu não sou deixado com palavras mortas como libido reprimida e
dependência materna. Em vez disso, me pergunto sobre a qualidade de
cobra-preta-preta e embalada, a qualidade sem vida no meu
relacionamento com minha namorada e antes disso com a minha mãe. A
cobra é realmente inofensiva ou isso é simplesmente o desejo do
complexo ego-namorada – como a cobra foi embalada? Eu também tenho
que me indagar como fui cúmplice no aprisionamento da cobra. Será que
eu a projetei na minha namorada, e ela está me devolvendo a cobra no
meu aniversário – um renascimento da qualidade de cobra negra (black-
snakeness)?

Estendendo a notação quando-então ainda mais, Hillman (1978) sugeriu


o valor de eternizar a imagem transformando o quando da sequência
quando-então em sempre que. Por exemplo, a sequência observada
acima: quando supõe que a cobra é inofensiva, o “eu que vai ao
banheiro” pretende manter a cobra presa, mostrando um relacionamento
entre supor um caráter inofensivo, um eu que vai ao banheiro, e o desejo
de conter a cobra. Eternizando o relacionamento, a imagem ganha mais
valor: sempre que um caráter inofensivo é suposto, o “eu que vai ao
banheiro” pretende manter a cobra contida. O relacionamento torna-se
inextricável – cada característica é essencial para essa dinâmica.

Um efeito similar pode ser desenvolvido pela singularização da imagem.


Ao colocar apenas na frente do quando, a ocasião na qual a ação do
sonho ocorreu é especificada (Hillman, 1978). Além de especificar mais
a imagem, a singularização ajuda a impedir a generalização de uma
dinâmica psicológica exibida em um sonho. Hillman apontou a qualidade
desesperançada que pode surgir quando uma imagem é apresentada como
morta, morrendo ou grotesca. Quando generalizada, o sonhador pode
começar a sentir que toda a sua vida psíquica é refletida pela imagem
perturbadora. Singularizar a imagem faz com que a imagem fique com
sua apresentação relativizada.

Outra técnica notada por Hillman envolve contrastar a imagem


apresentada com uma imagem diferente. Ele considera essa técnica
particularmente útil quando o sonhador indica que não tem uma fantasia
em relação à imagem – não tem ideia porque essa imagem está no sonho.
Comparar uma imagem contra a outra encoraja o sonhador a escolher um
elemento distinto da imagem onírica particular e começa a dar à imagem
um senso de necessidade.

Hillman (1978) também notou o valor de não fazer nada com uma
imagem, simplesmente deixando-a ficar por perto. Ele se refere a isso
como “manter imagens” e indica que é particularmente útil quando uma
imagem parece dura, densa, impenetrável. À medida que a imagem se
aproxima, é possível manter um olhar periférico sobre ela e notar
quaisquer mudanças, qualquer sinal de vida que possa emergir com o
passar do tempo. Muitas vezes o material que chega espontaneamente na
hora de manter imagens ajuda a iluminar a matéria da imagem.

Finalmente, Hillman (1977) recomenda àqueles trabalhando com sonhos


que prestem atenção nas disjunções no sonho, “o hiato” (isto é, quando,
mas, subitamente, então, até, contudo, depois). “A imagem agora tem
uma tensão interna, os indícios de uma trama, até mesmo um toque de
antecipação” (p. 72). Em uma elaboração dessa ideia, ele acrescentou:
“Quando isso ocorre no meio de uma imagem, anuncia um hiato nas
conexões ocultas que podem significar uma desconexão oculta, uma
justaposição que faz com que a faísca da consciência salta através de um
espaço vazio” (Hillman, 1978, p. 182).

Sentidos da imagem
Hillman (1979b) observou que o processo de trabalhar com sonhos
invoca um deslocamento da percepção sensorial típica: os sentidos se
tornam metáforas (ou metamorfoseados). O indivíduo vê uma imagem,
mas não através da retina do olho; em vez disso a imagem é vista através
da imaginação, o que significa que não só percebemos sua forma como
também “vemos” as implicações intrínsecas à sua forma. Nós ouvimos a
narrativa do sonho, mas também “ouvimos” as metáforas consteladas
pelas imagens apresentadas. Como se a imagem puxasse o sonhador para
a imaginação, os sentidos, tão frequentemente o órgão do literalismo,
tornam-se a via regia, aprofundando a imagem nos seus múltiplos
significados. Como observou Hillman, a palavra “sentido” refere-se
tanto a “concreto, físico, diretamente tangível, como também significado,
significância, direção, invisivelmente mental” (p. 136). Os sentidos dão
sentido à imagem, sensibilizando o sonhador ao sonho e facilitando a
sensibilidade para a particularidade de cada imagem.

Como tal, o sonho é adentrado pela via da estética. Aqui, Hillman está
seguindo de perto Jung, “notando que a elaboração estética cuidadosa de
um evento psíquico está no seu significado” (Hillman, 1979b, p. 135).
Essa elaboração cuidadosa significa ficar com a imagem como tal,
completa, realizada, permitindo que a imaginação expresse o significado
implícito na própria imagem. O movimento de manifesto para latente não
envolve mais um afastamento da imagem derivativa rumo a um
pensamento-sonho único não-representado. Em vez disso, o movimento
no significado latente do sonho é evocado cuidadosa e repetidamente
“virando” a imagem na própria mente, ouvindo o que dizem suas
metáforas. Experimentalmente, a imagem começa a ganhar espaço na
mente do sonhador. O indivíduo entra na imagem e vive por meio dela.
Quando mais os eventos se desdobram, a imagem é acoplada
analogicamente com a vida desperta, relacionamentos, psicodinâmica.
Segundo Hillman: “podemos amplificar uma imagem a partir dela
mesma, simplesmente abordando-a com mais sensibilidade, sintonizando
nela, focalizando-a” (p. 139). Isso não quer dizer que o conhecimento
obtido com uma referência amplificadora não seja mais útil. O
conhecimento do símbolo, de referências culturais e conceitos
psicológicos são úteis na maneira como o indivíduo ouve a imagem. À
medida que a imagem começa a ganhar vida, ela evoca uma atração
gravitacional onde o tema mitológico, associações pessoais, outros
sonhos e fantasias, e temas terapêuticos similares encontram um padrão
de órbita, aumentando a diferenciação da cosmologia psíquica
individual.

Além disso, é possível escolher colorir a imagem temporariamente com


uma referência específica, como se estivesse corando uma lâmina para
uso com um microscópio. A cor ajuda a aprimorar o contraste e iluminar
os detalhes. Diferentes corantes vão iluminar e diferenciar os vários
componentes da imagem. É importante salientar que o biólogo, depois de
aplicar um corante em uma amostra, não focaliza sua atenção no próprio
corante. Do mesmo modo, em uma psicoterapia focalizada na imagem, a
referência amplificadora ou conceitual não tem precedência sobre a
imagem de apresentação.

Como disse Watkins (1984), a formação em psicologia oferece uma série


de ferramentas que eventualmente podem ser contrárias ao trabalho do
indivíduo com a imagem. Uma ideia, um conceito, ou uma amplificação
mitológica só é útil se abre a imagem (Hillman, 1975a). Conceitos, como
símbolos, frequentemente afastam nossa atenção da imagem para uma
formulação psicológica estabelecida. Hillman (1975a) escreveu:
“através da sua imagem, comportamento e humor nos levam a reconhecê-
los como “anima” e “pai”, e ainda que possamos adquirir insight através
desse reconhecimento arquetípico, não vemos literalmente a anima ou o
pai” (p. 144).

Diferenciação qualitativa
A elaboração de eventos em imagens, seja na vida onírica ou desperta,
depende em grande parte do modo particular como os substantivos, as
pessoas concretas, lugares e pessoas, são qualificados por
modificadores (Hillman, 1978). Ao trabalhar a partir de uma perspectiva
arquetípica, cuidar desses qualificadores torna-se uma parte essencial do
processo. O praticante vincula os modificadores aos substantivos e os
relaciona como se fossem necessários uns para os outros.

As qualidades idiossincrásicas nas quais uma imagem aparece, seu


contexto, humor e cena, são o que distingue uma imagem de um símbolo
(Hillman, 1977). Enquanto modos simbólicos de interpretação oferecem
o benefício de conectar o sonho, e consequentemente o sonhador, a uma
realidade coletiva maior, a imagem sempre qualificada ilumina as
características únicas do complexo no seu retrato preciso de
características intra-relacionadas. A imagem diferencia-se do evento
psíquico.

Hillman (1978) descreveu como a maneira de reverter a imagem -


revertendo o modo usual de discurso, transformando substantivos em
descritores - abre novas perspectivas em relação ao sonho: “Não só as
imagens podem ser revertidas; o ato de reverter é uma etapa ao fazer
imagens” (p. 164). Por exemplo, um dos sonhos descritos acima incluía
uma cobra negra. Ao reverter a linguagem da imagem, também
poderíamos imaginar um negrume em forma de cobra, uma representação
da maneira como a minha escuridão serpenteia – para longe da visão e
para o subterrâneo, enrolada e presa.

Essa noção de reversibilidade da fala do sonho também pode ajudar a


fazer imagens dos verbos no sonho. Hillman (1978) observou: “uma
primeira etapa ao imaginar um verbo é mantê-lo conectado a um
advérbio” (p. 167). Para continuar com nosso exemplo, o texto do sonho
lê: minha namorada me dá uma cobra preta estreitamente embalada. Ao
juntar o verbo e o advérbio, agora temos dar estreitamente. Invertendo
isso, temos doação estreita. Uma imagem formou-se ligada à maneira
como “minha namorada” realiza uma doação estreita. Ou para inverter
mais uma vez, quando o ego onírico recebe, a estreiteza é algo dado.
Hillman sugeriu que a imagem-verbo pode diferenciar mecanismos
específicos usados pelo sonhador, por exemplo, a maneira como eu me
estreito (me limito, me aperto, me fecho) quando minha namorada me
presenteia com meu negrume.

Advertência

É importante notar que o desenvolvimento da sensibilidade metafórica


da qual a psicoterapia arquetípica depende é na verdade uma conquista
psicológica significativa. Indivíduos funcionando em um nível limítrofe
ou psicótico de organização muitas vezes relacionam-se com sua
experiência psicológica como uma coisa-em-si. Isso foi descrito por
autores psicanalíticos, como Hanna Segal (1957), como uma equação
simbólica, e veio a ser associado com tratamentos psicoterápicos
profundamente difíceis. Na opinião deste autor, a psicoterapia
arquetípica não é a melhor opção de tratamento em tais casos. Trabalhar
com indivíduos organizados em um nível limítrofe ou psicótico pode
exigir anos de trabalho cuidados no campo da transferência antes que
eles sejam capazes de jogar com imagens psíquicas.

Capítulo 3

Psicodinâmica arquetípica

Mitos não nos dizem como, eles simplesmente oferecem o fundo


invisível que faz com que comecemos a imaginar, a questionar, a ir
mais fundo.
(Hillman, 1945a, p. 158)

Uma das principais metas da teoria arquetípica é descobrir as fantasias


orientadoras que moldam a maneira como a psicologia aborda a psique.
Foi sugerido (Hillman, 1972, 1975a) que essas fantasias são sempre
determinadas arquetipicamente, sendo de natureza coletiva. Como
decretos do inconsciente coletivo, elas encontram sua raiz, seu archai,
em temas mitológicos. A teoria da psicologia profunda sempre foi sujeita
a um mito particular que enquadra e guia a interação terapêutica. Como
uma metáfora orientadora, o mito da terapia revela tanto quanto oculta. O
mito canaliza o fluxo caótico do conteúdo clínico, oferece uma maneira
de “ver através” e princípios que podem ser usados para ver, forma
aquilo em que se presta atenção, e então o que é apresentado.

O uso do mito de Édipo por Freud marca a descoberta pela psicologia


das bases mitológicas da psique. A experiência de Freud dessa história
como uma realidade viva permitiu que ele oferecesse vários insights
sobre fenômenos psíquicos específicos de natureza arquetípica, como a
competição, o ciúme, a triangulação, a perda trágica, anseios incestuosos
e o luto. A grande jogada de Freud foi perceber que o que nós
experimentávamos como crianças, um poderoso amor por nossa mãe e
um ódio igualmente poderoso por qualquer um que a levasse embora,
eventualmente formava a base para todos os outros relacionamentos, e
conflitos psíquicos experimentados na infância continuariam a ser
recapitulados através da expressão sintomática até que fossem
efetivamente trabalhados até uma resolução. Esse insight foi fundamental
para formar a compreensão de Freud (1916/1977) da sua metapsicologia
e abordagem terapêutica. Seu método psicanalítico eventualmente passou
a concentrar em rastrear esses momentos mercuriais de movimento
infantil pela cuidadosa observação da transferência.

Desde o primeiro uso do termo por Freud (1895/2004), a transferência


permaneceu como um foco primário na análise freudiana e passou a
ocupar um papel mais dominante em derivações contemporâneas da
análise junguiana. Na seção seguinte iremos rever algumas das
principais perspectivas do conceito da transferência para fornecer o
fundo necessário para diferenciar uma perspectiva arquetípica.

Evolução do conceito de transferência

A contribuição de Freud à noção de transferência

Freud (1912/1981) descreveu a dinâmica da neurose como uma


introversão da libido – um estado onde a libido se recolheu do mundo
externo, influenciando o funcionamento psicológico do indivíduo através
da fantasia inconsciente. Ele argumenta que o aumento da libido
inconsciente ativa “as imagos infantis do sujeito” (p. 5), que então
influenciam a percepção da realidade do indivíduo de várias maneiras.

Freud (1912/1981) notou que o ímpeto para essa introversão da libido


deriva das inevitáveis experiências infantis onde a satisfação libidinal
era frustrada – o conflito edípico. Diante dessa frustração, é possível ver
que foi, na época, prudente recuar do mundo externo onde “a atração da
realidade havia diminuído” (p. 6). Sustentando o princípio de que a
natureza é fundamentalmente conservadora, Freud acreditava que a
libido tende a regredir e repetir os padrões anteriores – cuja dinâmica
seria moldada pelo trauma edípico (Singer, 1970). Assim, a
transferência consistiria primariamente de sentimentos eróticos e
fantasias, o impulso agressivo para obter e manter a afeição do objeto, e
as ansiedades associadas com fantasias de transgredir um tabu
fundamental.
Para liberar a libido aprisionada, Freud acreditava que o analista deve
vencer as resistências construídas pelo paciente inconscientemente como
meio de proteção e conservação do sintoma. Para Freud (1915/1981),
quando a investigação se aproxima da porção inconsciente dos
complexos, surge certa tensão ambivalente, onde o paciente é divido
entre servir as resistência e prosseguir com a investigação analítica. A
partir dessa tensão, e como satisfação para a resistência, o material
inconsciente que aflorar será transferido para o analista.

A teoria de Freud torna clara a diferenciação entre a transferência


positiva e a transferência negativa. Em relação à transferência positiva,
Freud (1912/1981) considerava todas as expressões conscientes de
relações positivas para o analista, tais como “simpatia, amizade,
confiança e similares” (p. 7), como expressões atenuadas derivadas de
uma meta sexual primordial e inconsciente. Freud (1912/1981) escreveu:
“originalmente só conhecíamos objetos sexuais; e a psicanálise mostra
que as pessoas que na nossa vida real são apenas admiradas ou
respeitadas podem ainda ser objetos sexuais para nosso inconsciente”
(p. 7). Freud acreditava que é essencial remover a transferência negativa
assim como a transferência erótica, como um cirurgião remove um tumor.
Ele concluiu que a transferência então serviria a análise de modo
admirável (Wolstein, 1954, p. 70).

Apesar de sua advertência que a transferência negativa e a erótica devem


ser removidas e sua declaração de que a transferência é “a mais
poderosa resistência ao tratamento” (Freud, 1912/1981, p. 5), ele
declarou inequivocamente que a análise da transferência era o coração
do tratamento analítico.

É precisamente ela [a transferência] que nos presta o serviço


inestimável de tornar os impulsos eróticos ocultos e esquecidos
imediatos e manifestos. Pois no final de contas, é impossível
destruir quem quer que seja in absentia ou in effigie.

(p. 8)
A contribuição de Klein e Bion para a noção de transferência

A contribuição de Melanie Klein à noção de transferência expandiu a


teoria para incluir vários fatores adicionais importantes. Um dos
principais acréscimos foi a consideração das raízes pré-edípicas da
transferência, isso é, a transferência narcísica. Klein postulou que as
relações objetais existem desde o nascimento, e como disse Segal
(1983), “é a compreensão do funcionamento da fantasia primitiva que é a
base da sua compreensão da transferência e do fundamento das suas
raízes inconscientes” (p. 269). Quanto à fantasia primitiva, Klein seguiu
a declaração de Freud (1916/1977) que “as fantasias primordiais são um
legado filogenético” (p. 461). Seu método terapêutico baseia-se em
grande parte no pressuposto de que o material de fantasia pré-edípico é
de natureza endógena e coletiva. Ela também seguia o pressuposto de
Freud de que a fantasia tem uma relação integral com os instintos. Segal
(1964) observou: “A fantasia pode ser considerada a representante
psíquica ou correlato mental, a expressão mental dos instintos” (p. 12).

Uma segunda expansão advogada por Klein (1952/1981) é a noção de


que a transferência inclui tanto elementos de relacionamentos passados
como aspectos do mundo mental atual do paciente. De acordo com Klein,
a mistura de passado e material psicológico atual é projetada no
analista, que então assume o papel do bom e mau objeto. Wilfred Bion
(1962), um analista de formação kleiniana, demonstrou a maneira como
projetar material psicológico não digerido, elementos beta, no terapeuta
é na verdade uma forma de comunicação primordial. A análise da
transferência de um ponto de vista kleiniano é uma re-elaboração desse
material não processado no que Bion chama de elementos alfa, que então
podem ser digeridos e integrados pelo paciente. Esse deslocamento da
observação distante para um relacionamento diádico íntimo é uma das
principais contribuições de Klein e Bion (Mitchell e Black, 1995).

Um terceiro elemento encontrado na obra de Klein é que a transferência


pode ser observada não só em declarações diretas sobre o analista, mas
também em comunicações mais sutis e indireta. De fato, Klein
(1952/1981) supôs que os elementos inconscientes do material da
transferência podem ser encontrados na totalidade do material
apresentado. Por exemplo, o deslocamento de sentimentos de
transferência pode ser encontrado na discussão dos relacionamentos
íntimos, atividades, trabalho e sonhos do paciente. Klein concluiu que
esse deslocamento muitas vezes se origina de uma defesa divisora
(splitting defense) onde o paciente está tentando preservar o bom
analista ao transferir os sentimentos difíceis surgindo na situação
analítica imediata para outras pessoas (Mitchell e Black, 1995).

Uma nota importante final sobre a abordagem kleiniana para a


transferência é que analistas kleinianos muitas vezes vão começar a
trabalhar com o material de transferência do início do tratamento. A
ideia fundamental sobre esse método é que o analista deve estar disposto
a ir direto ao cerne do material mais ansiogênico de uma maneira que
reconheça de modo empático a experiência e que crie espaço para ela
dentro do relacionamento analítico. Esse movimento, de acordo com os
kleinianos, dá ao paciente um sentimento de alívio e uma inclinação de
expressar material psicológico difícil.

Relações objetais e a psicologia complexa de Jung

A teoria de Klein de um mundo objetal interno compartilha várias


características importantes com a psicologia de Jung. É digna de nota a
similaridade da formulação de Jung do relacionamento entre
instinto/arquétipo e imagem de fantasia. Como observado no Capítulo 2,
Jung (1933/1960) afirmou: “Podemos dizer que a imagem representa o
significado do instinto” (p. 204). Segundo Andrew Samuels (1985):
“Jung escreveu sobre as fantasias inconscientes como “fantasias que
“desejamos” tornar conscientes e que se manifestam na forma de
imagens... A fantasia inconsciente derivada do instinto busca objetos
externos com os quais, na expressão de Bion, “se acasalar” (p. 43). A
descrição de Jung do intercâmbio dinâmico entre imagens de fantasia e
objetos externos corrobora precisamente a noção de Klein de
identificação projetiva.

Um segundo paralelo importante é encontrado na ênfase de figuras


personificadas da psique. Fundamental para a teoria de Klein, e para a
escola maior de relações objetais, é a noção de que a psique é habitada
por uma multidão de figuras que têm autonomia distinta da vontade do
ego. Essas figuras, chamadas objetos internos, se formaram, de acordo
com Thomas Ogden (1983), através de um processo defensivo
envolvendo “uma divisão do ego em partes que quando reprimidas
constituem objetos internos que estão em um relacionamento inconsciente
particular um com o outro” (p. 227). Ogden também observou:

Esse relacionamento interno é formado pela natureza do


relacionamento objetal original, mas de modo algum possui uma
correspondência absoluta com ele... O relacionamento objetal
interno pode mais tarde ser re-externalizado por meio da projeção
e identificação projetiva em uma configuração interpessoal,
gerando assim os fenômenos de transferência e contratransferência
da análise e de todas as outras interações interpessoais.

(p. 227)

Em um ensaio seminal, Jung (1934/1960) postulou a seguinte definição


de um complexo:

A imagem de uma certa situação psíquica que é fortemente


acentuada emocionalmente e é, além disso, incompatível com a
atitude habitual da consciência. Essa imagem tem... um nível
relativamente alto de autonomia, de modo que está sujeita ao
controle da mente consciente apenas até certo ponto e, assim,
comporta-se como um corpo estranho animado na esfera da
consciência.
(p. 36)

Então ele acrescentou, “a etiologia da sua origem é frequentemente o que


poderíamos chamar de trauma, um choque emocional ou coisa parecida,
que fragmenta uma parte da psique [grifo acrescentado] (p. 98).
Embora afirmando uma etiologia ambiental, Jung postulou que os
complexos são organizados por dominantes arquetípicos da psique.

Apesar da cisma histórica entre as escolas junguiana e freudiana de


psicanálise, foi notado (Samuels, 1985) que tanto Freud quanto Klein
chegaram perto de estabelecer algo bastante similar à noção junguiana de
uma camada arquetípica da psique na sua postulação de que a fantasia
primitiva é herdada filogeneticamente e formada por esquemas pré-
subjetivos.

A tensão entre o ambiente da infância e a disposição inata foi e continua


sendo uma questão de ênfase nos derivados junguianos e freudianos da
psicanálise (Samuels, 1985). Onde é posta a ênfase depende, até certo
ponto, da preferência idiossincrásica do praticante individual, assim
como a escola particular com ele se identifica.

Alguns teoristas, como Storr (como citado em Samuels, 1985), tentaram


simplificar a distinção ao postular que uma abordagem de relações
objetais deveria focar principalmente as origens do desenvolvimento dos
objetos internos dominantes, e que os seguidores da obra de Jung
enfatizavam as predisposições inatas. Contudo, uma generalização tão
limpa não corresponde ao espectro encontrado entre os clínicos dessas
escolas. Segundo Samuels (1985), “tanto os kleinianos e a escola
Desenvolvimentista dos pós-junguianos postulam uma interação [entre
ambiente e predisposição inata] (p. 43). Apesar disso, como uma
heurística geral, podemos supor que um psicoterapeuta arquetípico
provavelmente defenderia que estruturas preexistentes assumem
precedência ontológica e terapêutica em relação à experiência pessoal
(Samuels, 1985; Hillman, 1975a).
Em uma tentativa de diferenciar objetos internos de dominantes
arquetípicos, Samuels (1985) defendeu que “embora objetos internos
necessariamente tenham um componente arquetípico, eles também
derivam do mundo externo e assim não são estruturas, nem tem o poder
de predisposição do arquétipo ou padrão inato” (pp. 42-43). Jung
(1934/1960) atribuiu ao complexo um status ontológico significativo,
postulando uma conexão direta entre o complexo e aquilo que foi
chamado de numinosum: “onde o reino dos complexos começa a
liberdade do ego chega a um fim, pois os complexos são agências
psíquicas cuja natureza mais profunda é ainda desconhecida” (p. 104).

Como foi mencionado no Capítulo 4, a psicologia arquetípica


argumentou com veemência por essa distinção entre a imagem
arquetípica e o objeto internalizado, como exemplificado pela
declaração de Berry (1982) “com a imaginação qualquer questão de
referente objetivo é irrelevante” (p. 57). A intensa ênfase no aspecto
transubjetivo da imagem encontrado na literatura da psicologia
arquetípica deve ser lida como uma reposta ao que Hillman (1975a)
chamou de uma ênfase excessiva na subjetividade (p. 189). O motivo
dessa posição de enfrentamento contra a redução do imaginal ao pessoal
deriva da sua aderência à declaração de Corbin:

No ta’wil devemos levar as formas sensíveis de volta às formas


imaginais e então elevá-las a significados ainda mais altos;
prosseguir na direção oposta (levando as formas imaginativas de
volta às formas sensíveis...) é destruir as virtualidades da
imaginação.

(Corbin, 1997, p. 240)

Jung, ao contrário, não desvalorizava o fator pessoal. Samuel (1985)


apontou a maneira como a noção junguiana de complexo serve como uma
ponte entre a experiência pessoal do indivíduo e a capada arquetípica da
psique: “Experiências externas na infância e por toda a vida se
aglomeram ao redor de um núcleo arquetípico. Eventos na infância, e
particularmente conflitos internos, fornecem esse aspecto pessoal” (p.
47). Jung (1934/1960) argumentou que o indivíduo entra e sai de estados
de projeção e identificação com vários complexos. Sendo assim, os
complexos aparecem na terapia de modo mais direto através do campo
de transferência.

A contribuição de Kohut para a noção de transferência

O próximo grande desenvolvimento na teoria psicanalítica da


transferência veio com a psicologia do self de Heinz Kohut (1971). Com
a postulação de uma linha narcísica separada de desenvolvimento
distinta das relações objetais, Kohut deslocou o foco da visão clássica
do material de transferência para um objeto separado para a noção de
uma transferência selfobjeto, onde o paciente está vivendo em uma fusão
inconsciente com o objeto. Levando em conta essa distinção, o analista é
confrontado com a tarefa de diferenciar a dimensão do selfobjeto e a
dimensão das relações objetais do material de transferência. Ao
trabalhar com a transferência do selfobjeto, o analista busca manter uma
consciência astuta em relação à necessidade particular que ele está
sendo solicitado a realizar através da fusão narcísica. Kohut postulava
que a interação psicológica com o analista como selfobjeto preenche os
déficits do paciente e permite que o self nuclear do paciente torne-se
mais integrado e independente.

Os psicólogos do self classificam a transferência como a “experiência


aqui-e-agora do analista pelo paciente” em vez de uma distorção do
presente no esforço de repetir padrões do passado (Mitchell e Black,
1995, p. 166). Esse movimento, que marca um afastamento dramático em
relação à teoria clássica, implica que o material de transferência do
paciente é uma experiência subjetivamente válida do analista (p. 166). A
escola intersubjetiva expandiu essa ideia na teoria de que a transferência
é uma criação do analista e do paciente, enfatizando a “interação
totalmente contextual das subjetividades com influência recíproca e
mútua” (Mitchell e Black, 1995, p. 167).

A contribuição de Jung para a noção de transferência

Jung diferenciava entre os aspectos pessoais e arquetípicos da


transferência, colocando uma ênfase significativa nessa última. Samuels
(1985) sugeriu que Jung estava preocupado com preservar sua
contribuição distinta à psicanálise, o inconsciente coletivo, e assim
limitou seu foco ao aspecto pessoal da transferência. A principal obra de
Jung (1946/1966) sobre a fenomenologia da transferência estava
concentrada em expandir a noção do pessoal para o transpessoal,
argumentando que as dinâmicas da terapia não podiam ser reduzidas ao
desenvolvimento infantil do paciente. Para uma compreensão plena do
intercâmbio terapêutico, argumentou, a dinâmica da transferência deve
ser relacionada co a narrativa mítica.

Seu afastamento dos aspectos pessoais da transferência era parte de uma


iniciativa maior. Em vez de usar a transferência para intensificar o
relacionamento entre paciente e analista, tornando centrais os conflitos
psíquicos que emergem entre as duas pessoas presentes, Jung parecia
estar mais interessado no analista e paciente voltando sua atenção plena
para a experiência direta das imagens de fantasia e sonho do paciente.
Uma porção significativa do trabalho do analista, descrito por Jung
(1934/1966) como uma abordagem educativa e sintética, era fornecer
material amplificador e orientação à medida que o paciente aprofunda
seu relacionamento com as imagens apresentadas.

A perspectiva de Jung em relação à transferência era bastante diferente


da de Freud. Enquanto Freud tratava o fenômeno da transferência como
um retorno do reprimido, uma recapitulação do trauma de
desenvolvimento infantil, Jung imaginava a transferência através de uma
fantasia do possível. O paciente coloca sobre o analista material que
permanece fora da sua atenção consciente para alimentar um
relacionamento significativo com o conteúdo psíquico ainda
desconhecido (Wiener, 2010). Nesse sentido a perspectiva de Jung tem
uma notável similaridade com a noção de Bion (1962) de normal, que é
a identificação comunicativa e projetiva.

Jung usava intensamente a metáfora alquímica para elucidar os vários


estágios que o paciente experimentaria diante da psique do analista e do
seu próprio material psíquico. Em A Psicologia da Transferência, Jung
(1946/1966) usou dez das imagens do Rosarium Philosophorum, um
texto alquímico datado de 1550 DC, para descrever a diferenciação e
integração gradual dos opostos psíquicos, a coniunctio, representada no
Rosarium como a união sexual do Sol masculino e da Luna feminina.
Muito embora uma revisão dessas imagens enigmáticas e complexas
esteja além do escopo desse estudo, é importante tomar nota da
abordagem subjacente usada por Jung no seu estudo sobre transferência.

Podemos argumentar que o estudo psicológico de Jung sobre a alquimia


foi um afastamento radical do modo estruturalista dominante que tenta
postular sistemas conceituais autorizados. Seu respeito pelas
profundezas incognoscíveis e mercuriais da psique precisava de um
paralelo dialético que era igualmente não-conceitual e poético. Na
alquimia, ele encontrou uma tradição que precisava de uma sensibilidade
metafórica – uma tradição rica na sua exposição de conteúdo simbólico,
diferenciação qualitativa e respeito pelo desconhecido e incognoscível.
Exemplificando seu profundo respeito pelo enigmático, Jung
(1946/1966) usou as seguintes linhas para sua epígrafe de A Psicologia
da transferência: “eu inquiro, eu não afirmo: eu não estou determinando
nada com certeza final; eu conjecturo, tento, comparo, pergunto” (p. 1).

É importante notar que esse movimento rumo ao mitopoético como


espelho para os processos da psique tornou-se um método fundamental
para a psicologia arquetípica. Hillman (2004) afirmou que “ao contar
com mitos como sua retórica primária, a psicologia arquetípica se
baseou em uma fantasia que não pode ser tomada histórica, física,
literalmente” (p. 31). É essencial para esse movimento a palavra mitos.
Uma psicologia arquetípica precisa de uma pluralidade de metáforas que
corresponda à natureza policêntrica da própria psique.

A contribuição de Hillman para a noção de transferência

Hillman (1975b, 2004, 2007) argumentou que o foco singular no mito


centrado no herói de Édipo, exemplificado por algumas escolas da
psicanálise, induziu um tipo de cegueira auto-infligida similar ao próprio
Édipo. A aderência rígida à dinâmica edípica como o fundamento
reprimiu a polifonia natural da história dentro da qual a psique floresce.
Seguindo tanto Freud quando Jung, Hillman (1972) tento enriquecer a
maneira como psicólogos abordam, e, portanto, formam o encontro
terapêutico oferecendo uma história diferente como guia para o
desdobramento enigmático da psique na terapia e na vida.

Especificamente, Hillman revisou a noção de transferência ao localizar


esses fenômenos, tão centrais à psicoterapia profunda, dentro da
dinâmica do conto de Apuleio sobre Eros e Psiquê. Uma implicação
primária derivada desse movimento é o posicionamento do padrão
relacional de Eros, a encarnação criativa/destrutiva do amor, e Psiquê, a
bela mortal atravessando seu difícil processo iniciático, como a
narrativa dominante para os inúmeros fenômenos de transferência que
ocorrem sempre que duas pessoas compartilham a intimidade
psicológica. Como um mito de iniciação, essa história fornece à terapia
um tema de redenção psíquica através do amor, “contudo”, diz Hillman
(1972), “ela não deixa de lado a tortura, o suicídio e o Hades” (p. 60).

A redenção, ou o movimento bem sucedido da psique dentro e através do


tema mitológico, é uma característica que falta no mito de Édipo, assim
como no mitema favorecido por Jung da jornada do herói:

Um complexo de Édipo, como a tragédia de Édipo, não tem


redenção aparente, tampouco o herói da jornada no mar noturno,
que, ao tornar-se o rei senex, precisa ele mesmo ser destronado no
final. A maldição do rei-herói deve passar para as próximas
gerações, e uma psique mimetizando esses modelos arquetípicos
será presa em um conflito heroico cego e sombrio do problema
familiar.

(Hillman, 1972, p.60)

Por outro lado, o tema Eros-Psiquê termina com a redenção da


coniunctio mais elevada: Psiquê e Eros são unidos na presença dos
Deuses em celebração. Hillman (1972) argumentou que essa união
ocorrendo entre a presença das figuras arquetípicas é uma confirmação
de uma característica a priori da história: “Os processos – hoje
chamados de psicodinâmicos – que somos forçados a atravessar são
miticamente governados. O que transpira na nossa psique não é da nossa
psique; tanto o amor quanto a alma finalmente e desde o início pertencem
ao reino da realidade arquetípica” (p. 104).

Os padrões nos quais a alma é feita são determinados arquetipicamente.


Anima, o potencial de alma de cada indivíduo, “torna-se psique por
meio do amor” e é “eros que engendra psique” (Hillman, 1972, p. 54).
Eros age como um meio, uma metaxy ou psicopompo, induzindo o
indivíduo em, ou vinculando-o a um elemento da alma particular e
constituído arquetipicamente – como uma mãe com uma criança, ou um
vínculo quase tangível entre dois amantes. O fascinosum do
relacionamento amoroso deve seu poder à força daimônica do Eros. A
flecha de Eros liga os dois juntos e alimenta o contêiner a parti do qual a
alma pode tomar forma e crescer. O amor ilumina Psiquê, faz com que
ela saia da aridez e opacidade, conduzindo-a até os desafios que a
colocam no mundo, onde ela se conecta ao opus da formação da alma e
ao mysterium da iniciação arquetípica.

O mito de Eros e Psiquê descreve o modo como fazer-alma ocorre no


espaço intermediário formado pela tensão erótica do relacionamento.
Contudo, essa é uma tensão muito diferente daquela que é encontrada no
amor afrodítico, onde a tensão move-se rapidamente para a ação e a
geratividade (Hillman, 1972). Por outro lado, Eros faz alma quando a
tensão entre ação e inibição pode ser mantida, trazendo os impulsos
instintivos em um contêiner psíquico onde podem ser trabalhados e
diferenciados. O fruto dessa tensão é a imaginação.

Uma das tarefas primárias da psicoterapia profunda é fortalecer a


propensão para comportar elementos arquetípicos-instintivos dentro do
vaso do relacionamento terapêutico, onde o tipo de ação envolvida é
primariamente a ação imaginativa, isso é, dentro e através da fantasia.
Abster-se do literal aquece o material e alimenta o anseio que conduz a
alma. Como Psiquê separando sementes, o paciente suporta o fardo de
verificar uma avassaladora pilha de eventos da vida, revivendo as
experiências emocionais por meio da transferência. Inibições que
impedem a emergência do afeto e ação que rapidamente eclipsariam o
espaço psíquico florescente tornam-se pontos primários de reflexão,
fortalecendo assim a capacidade imaginativa do paciente.

Como Psiquê suportou a tensão entre o total desespero e seu anseio


apaixonado por Eros, ela recebeu ajuda essencial sem a qual teria se
perdido. É importante salientar que a fonte da ajuda não veio de uma
figura heroica, mas de pequenas criaturas, as formigas, e do gavião, e de
um deus fluvial anônimo. De modo similar, talvez a resolução da
transferência tenha menos a ver com interpretações heroicas do terapeuta
e mais a ver com a oportuna emergência de orientação a partir dessas
figuras não-humanas ocupando o espaço entre terapeuta e paciente. A
história sugere que as imagens arquetípicas aparecendo em sonho e
fantasia são a via regia para a cura, e o trabalho do terapeuta é
testemunhar a luta e experimentar com o paciente a intensidade e as
vicissitudes intrínsecas ao ato de fazer a alma.

Imaginar a transferência como um fenômeno arquetípico coloca o


relacionamento terapêutico dentro de uma narrativa transpessoal. Vista
através da lente de Eros e Psiquê, a transferência torna-se não só uma
projeção de “sentimentos, desejos e modos de relacionamento
anteriormente organizados ou experimentados com pessoas no passado
do sujeito, e em quem sujeito estava altamente investido” (Denis, 2005,
p. 1776), mas também vivendo a partir e através da base mitológica por
meio da qual a psique é formada. Como Hillman (1972) observou,
“através do analista as intenções do mito da coniunctio são transferidas
para o analisando” (p.109). Longe da tela em branco da psicanálise
clássica, o terapeuta arquetípico é imaginado como um canal para a
iniciação de Psiquê a Eros e de Eros a Psiquê, experimentadas entre as
pessoas no relacionamento terapêutico assim como as pessoas da psique
– as figuras míticas que criam por meio das suas qualidades e inter-
relações o que viemos a chamar de psicodinâmica.

Como Samuels (1985) observou, o foco de Hillman na amplificação


mítica da situação de transferência posicionou-o perto da abordagem
junguiana clássica da transferência. Contudo, se seguirmos as
implicações da obra de Hillman sobre a imagem, encontraremos uma
abordagem para a transferência que é muito similar à psicanálise
contemporânea e à escola desenvolvimentista da psicologia analítica.

A imagem da análise e na análise é a transferência. O trabalho íntimo na


transferência é um envolvimento fenomenológico com a imagem - uma
imaginação ativa de duas pessoas (cf. Davidson, 1966). Ao contrário da
crítica redutiva de Hillman da abordagem psicanalítica para a
transferência, onde ele argumentou que “a transferência habitualmente
desvia a libido do objeto, isto é, amor por qualquer coisa além da
análise, em uma reflexão narcísica sobre a análise” (p. 65), o trabalho de
transferência não é necessariamente um processo redutivo. O terapeuta
assume uma multidão de imagens e trabalha junto com o paciente para
diferenciar e experimentar sua presença emocional. A transferência é a
maneira como o terapeuta empresta corpo à imagem. A imagem encarna
na sua carne, no som da sua voz, nas pinturas da sua parede – toda a
configuração analítica é uma topografia imaginal. O quadro cerca a
imagem.

A meta de direcionar o foco primário para a transferência na prática


psicanalítica é a mesma meta que a psicologia de foco arquetípico
atribui à imagem – psicologizar a vida do indivíduo, ver através do
literalismo. A transferência é o estilo onde a vida do paciente foi
literalizada – o motivo porque o paciente está na terapia. A preferência
de Hillman por “fazer amizade” com a imagem está expressando a
mesma abordagem geral que os praticantes psicanalíticos descrevem
alternadamente como “devaneio maternal” (Bion, 1962, p. 309),
“estabelecer um objeto de contenção” (Mitrani, 2001, p. 1085) e
“assumir a transferência” (Mitrani, 1999, p. 47). Hillman descreve fazer
amizade como uma participação no sonho – “entrar na sua imagem e
humor, querer saber mais sobre ela, compreender, jogar com, viver, com,
levá-la e familiarizar-se com” (p. 57). Embora Mitrani (1999) leve a
ideia mais longe, argumentando que “o analista é capaz de sentir que é a
parte indesejada do eu do paciente ou aquele objeto insuportável que foi
identificado introjetivamente com o paciente” (p. 48), os paralelos entre
uma abordagem arquetípica para a imagem e uma abordagem Bioniana
para a transferência são significativos, questionando a posição polêmica
de Hillman (1989) contra a ênfase que a psicanálise atribui a trabalhar
na transferência.

A contribuição da fenomenologia à noção de transferência

Van den Berg (1972) escreveu sobre a distinção o entre o mundo abstrato
e não-emocional da observação científica e as percepções pré-reflexivas
comuns a experiência vivida de cada ser humano. Ele argumentou que
objetos, ao contrário do pressuposto da ciência natural de base
cartesiana, não existem à parte da experiência subjetiva; sujeito e objeto
são co-criados e formados pelo contexto onde se encontram. Van den
Berg escreveu: “nunca vemos objetos sem alguma outra coisa. Vemos
coisas dentro do seu contexto e em conexão conosco mesmo: uma
unidade que pode ser quebrada apenas para o detrimento das partes” (p.
37).

Levando esse argumento adiante, Van den Berg (1961) ofereceu uma
crítica importante da teoria de projeção e das condições que tornam essa
teoria necessária. Van den Berg rastreou a emergência histórica do self
interior, usando um dos ensaios mais influentes de Martinho Lutero,
escrito em 1520, e a Mona Lisa de Da Vinci como momentos distintos no
desenvolvimento de uma identidade interior como sendo separada e
distinta do mundo externo. Esses artefatos culturais marcaram o momento
quando o elemento humano foi confinado dentro dos limites da pele.
Sujeito e objeto foram divididos e a noção de projeção eventualmente
tornou-se necessária como uma ligação entre o objeto e os elementos da
identidade interior do indivíduo. Van den Berg (1961) escreveu: “O
mundo não é contaminado por nada humano; ele pode parecer
contaminado, mas a teoria da projeção mostra a verdadeira natureza das
contaminações: são sentimentos extraviados” (p. 217).

De acordo com Van den Berg (1972), o fenômeno denominado projeção


parte do princípio que existem objetos puros fora do campo da
percepção, e o paciente, devido a uma doença mental, projeta um
“estado defeituoso de mente sobre os objetos que ele percebe” (p. 19).
Van den Berg joga fora a premissa dos objetos puros, a res extensa de
Descartes, e insiste que as supostas projeções são na verdade uma
descrição precisa do mundo do paciente. É levando a sério as
observações do paciente que o psicólogo pode começar a visualizar a
experiência vivida pelo indivíduo sofredor: “Quando o paciente
psiquiátrico diz como vê o mundo, ele declara, sem desvios e sem erros,
como ele é” (p. 46). O mundo, de acordo com os fenomenologistas,
sempre está imbuído de subjetividade, que é dada ao indivíduo. A noção
da psicologia profunda de uma subjetividade interiorizada que é
projetada em um mundo desincorporado é uma relíquia da divisão
cartesiana e, como foi demonstrado por Van den Berg, não corresponde à
experiência vivida pelo indivíduo.

Em um movimento para longe desse persistente fantasma cartesiano, a


fenomenologia advoga uma posição terapêutica que leva a sério a
realidade vivida pelo indivíduo, suplantando teoria com descrição, e
permitindo que a experiência pré-reflexiva do indivíduo fale por si
mesma. O psicólogo fenomenológico evita a abstração em observações
teóricas obscuras, e em vez disso tece uma história baseada na
“interpretação do que ele observa: pela audição, visão, olfato e tato”
(Van den Berg, 1972, p. 77).

Seguindo Van den Berg, Romanyshyn (2011) levou essa crítica


fenomenológica de modo mais direto ao consultório, discutindo que a
transferência não é uma transferência de objetos arcaicos do paciente
para o analista, mas antes uma representação corporificada entre duas
pessoas. Para defender esse argumento, Romanyshyn fez uso da noção de
Merleau-Ponty de carne, descrita como “o sensível exemplar... uma
coisa geral, entre o indivíduo espaço-temporal e a ideia, um tipo de
princípio encarnado que traz um estilo de ser sempre que há um
fragmento de ser” (como citado por Romanyshyn, 2011, p. 46).
Utilizando esse conceito, Romanyshyn argumenta que a porta principal
por onde os personagens da transferência entram é o corpo vivido do
paciente e do terapeuta, e o estilo específico de oferecimento pela carne
é transmitido através do gesto. O gesto revela um mundo, uma clareira
por onde o indivíduo expressa sua história e destino, atraindo a outra
“carne para carne em um campo de impregnação” (p. 50).

Romanyshyn (2011) argumentou que o corpo gestual do paciente exibe a


ponta da transferência. O caráter no gesto do corpo sintomático pergunta,
e mesmo exige, que o terapeuta responda ao elenco dos personagens
psicológicos do paciente. O terapeuta é solicitado a dar corpo àquilo
que foi perdido e cujo luto não foi adequado. Para trabalhar de modo
eficaz com uma transferência, o terapeuta deve “ajudar o paciente a criar
um novo corpo de compreensão, criando com o paciente outro campo
gestual” (p. 52).

Uma porção significativa do processo terapêutico está centrada na


criação de uma linguagem para conter e criar significado a partir da
experiência psíquica. Os psicoterapeutas geralmente negligenciam o fato
de que o significado sempre tem um corpo, uma certa forma, movimento,
tom, cor e tensão carnal, e ainda que as palavras tendam a nos
desencaminhar, a carne é sempre fiel às figuras psíquicas para quem o
indivíduo buscou tratamento. Prestar atenção na carne no gesto permite
que o terapeuta e o paciente monitorem mutuamente os deslocamentos
sutis feitos por figuras que de outro modo seriam invisíveis na sala. O
compromisso expresso por meio do corpo sintomático permite uma
expressão mais direta, e assim, uma possível resolução. As figuras que
carregam o sintoma são diferenciadas e pranteadas, não mais
perturbando o corpo vivido do paciente, um movimento do espesso ao
sutil. A imagem sintomática na carne é pesada, densa, e não refinada.
Quando encontra uma expressão mimética por meio da palavra e
movimento, a carne pode ser moldada em uma corporificação mais sutil
e capaz de ser vivida.

Mitos guias ou guias míticos

Como uma psicologia do pluralismo, a terapia arquetípica cuida dos


múltiplos estilos que podem tornar dinâmica a transferência. Lopez-
Pedraza (1977) comentou: “Para nosso estudo da psicologia arquetípica
temos de ter em mente que todos os Deuses diferentes, dentro de suas
diferentes psicologias arquetípicas, têm seu próprio modo de
transferência” (p. 22). Como a transferência é sempre situada
mitologicamente, surgindo do estilo particular de um deus ou outro, o
terapeuta arquetípico deve estar familiarizado com o tema mitológico na
media em que se relaciona com a experiência humana. No resto deste
capítulo irei rever elementos particulares da mitologia clássica como foi
compreendida pela lente da psicologia arquetípica, terminando com um
exemplo de caso que pretende demonstrar uma compreensão arquetípica
da psicodinâmica.

Psicopatologia e mitologia

Como foi observado na introdução desse estudo, cada deus tem um estilo
de cura e doença particular que lhe é inerente. A psicologia arquetípica
assumiu o projeto de re-visar a patologia vendo através das várias
doenças que preenchem o consultório e os hospitais psiquiátricos. As
afirmações de Jung (1939/1954) de que “cada processo psíquico é uma
imagem e um “imaginar” (p. 544), e cada imagem é formada por um
complexo constituído arquetipicamente (Jung, 1934/1960), levou os
teóricos arquetípicos a concluir que toda expressão patológica tem no
seu núcleo uma figura mítica.

Essa conclusão, e a re-visão arquetípica do mito e psicopatologia que


derivou dela, não é uma tentativa de criar uma nova nosologia, como se
pudéssemos substituir o Manual Diagnóstico e Estatístico pela mitologia
clássica. Em vez disso, o movimento rumo à diferenciação da dimensão
mítica da patologia foi conduzido com a meta de excitar a imaginação ao
trazer a fantasia do diagnóstico de volta ao contato com sua fonte
primária, “pois de que outro modo a psicologia, como concebida no
presente, poderia despertar para si mesma” (Hillman, 2007, p. 158). De
uma perspectiva arquetípica, a abordagem mítica ao diagnóstico e
formulação nunca poderia tornar-se uma nosologia estatística porque
“mitos não aterram, eles abrem” (Hillman, 2004, p. 20).

A psicologia arquetípica levou a sério o argumento de Jung (1929/1968)


de que a imagem é psique. Como tal, a psicopatologia e os sofrimentos
da psique são concebidos como doenças da imagem, ou talvez mais
especificamente uma doença do relacionamento entre o ego e a imagem.
Especificamente, quando uma narrativa se fossiliza em um relato rígido
de como são as coisas, o indivíduo abdica da receptividade para a
multidão de possibilidades imaginais, o que, segundo uma perspectiva
mítica, significa fracasso em propiciar os muitos deuses em favor ao um
com quem o indivíduo se identificou. Assim como Orfeu foi
violentamente despedaçado pelas mênades devido ao seu culto exclusivo
a Apolo, o indivíduo psiquicamente doente construiu uma perspectiva
cronicamente estreita e foi dilacerado pelas possibilidades de
perspectiva que foram até então impedidas de se manifestar.

O terapeuta arquetípico é um doutor da fantasia, tornando uma fantasia


relativa ao psicologizar ou ver através da sua raiz mítica. À medida que
o deus na doença toma forma, uma série de possibilidades imaginais
torna-se mais disponível, porque, como Hillman (1975a) colocou, “um
instinto modifica outro; uma história leva a outra; um deus implica outro”
(p. 148). Diferenciar a figura mítica leva a um processo de moldar os
diversos atributos da imagem-sintoma.

A psicologia arquetípica intervém no lado do envolvimento criativo com


determinantes arquetípicos. O indivíduo é responsável por refinar a
maneira como esses determinantes se apresentam na sua vida. Esse
refinamento ocorre na e através da imaginação, sendo que um aspecto
essencial é como o terapeuta formula o material do paciente. Ao buscar
formulações informadas arquetipicamente, os psicólogos arquetípicos se
voltaram para a mitologia clássica da Grécia para iluminar ainda mais o
modo como essas histórias formam vida diante da psicodinâmica do
indivíduo. Os psicólogos arquetípicos exploraram as implicações
psicológicas de muitos mitos e muitos deuses. Uma revisão completa
desse corpo de trabalho está além do escopo desse estudo. Na seção
seguinte, vou explorar aspectos dos mitos e figuras míticas que
considero mais relevantes para o processo psicoterápico.
Formulação de caso arquetípica

Christine Downing (2006) argumentou que a psicologia profunda


começou com a percepção inicial de Freud, “Eu sou Édipo”. Ao refletir
sobre uma série de sonhos que tivera um ano depois da morte do seu pai,
Freud viu através do mito subjacente que estava formando sua
experiência psicológica. Ele percebeu que o que parecia mais privado,
perigoso e tabu era ao mesmo tempo um drama universal dentro do qual
cada ser humano devia encontrar seu caminho. Essa compreensão
monumental teve um profundo efeito sobre o método psicoterápico,
expandindo a amplitude da formulação de casos de uma visão
personalista do diagnóstico e prognóstico até uma compreensão mítica
do indivíduo. Ao encontrar Édipo no seu paciente, Freud localizou-se em
um lugar com tração terapêutica significativa, onde as idiossincrasias até
então enigmáticas do paciente se encaixaram como parte de uma
constelação edípica. Ciúmes, rivalidades, sentimentos ambivalentes para
com os próprios pais, sexualidade regressiva – todos esses fenômenos
ganharam lugar como características quintessenciais da situação edípica.

O movimento de Freud de observar fenômenos psíquicos, como sonhos,


sintomas e comportamentos, até localizá-los em um mito particular, foi
que chamou a atenção de Jung a Freud e tornou-se a semente a partir da
qual Jung construiu sua formulação de um inconsciente arquetípico. Jung
(1912/1967) escreveu:

Ao penetrar nas passagens subterrâneas de nossas próprias


psiques, capturamos o significado vivo da civilização clássica, e
ao mesmo tempo estabelecemos uma base firme na nossa própria
cultura a partir do qual é possível ganhar uma compreensão
objetiva dos seus fundamentos.

(pp. 4-5)
O fundamento da psique é mais claramente representado na história, e
mais precisamente na mitologia – a história imaginal da humanidade. O
método de amplificação de Jung foi construído a partir dessa premissa,
assim como um dos métodos terapêuticos centrais da psicoterapia
arquetípica: a reversão. Exemplificando esse ponto, Hillman (2005)
escreveu:

Nossas vidas seguem figuras míticas: nós agimos, pensamos,


sentimos apenas como permitido pelos padrões primordiais
estabelecidos no mundo imaginal. Nossas vidas psicológicas são
miméticas em relação aos mitos... A tarefa da psicologia
arquetípica, e da sua terapia, é descobrir o padrão arquetípico
para formas de comportamento.

(pp. 179-180)

Como notado em outra parte desse estudo, localizar o pessoal dentro do


arquetípico facilita o movimento profundamente terapêutico na direção
da valorização da própria experiência do indivíduo, incluindo a própria
patologia. O reconhecimento do deus na doença desloca a fantasia de
uma com o herói/vítima lutando com a vida ou desesperadamente
sofrendo nela para uma fantasia de viver o próprio destino e moldar o
próprio caráter em relação mimética com as figuras arquetípicas da
imaginação. Sem reversão, a psicoterapia permanece personalista,
forçando a pessoa a carregar o peso que pertence por direito a um deus.
Em um documento não publicado, Hillman (1975c) observou: “Não só a
ideia, texto ou imagem é libertada das suas associações pessoais e
históricas, sua knowness (N.T.: “qualidade de ser conhecido”), como
também a alma ao libertar, torna-se livre e volta à sua fonte”. A
qualidade libertadora inerente a reverter o pessoal ao arquetípico é
representada miticamente na metamorfose de Narciso da inflação
narcísica até o florescimento do imaginal.
Narciso

As desordens narcísicas receberam atenção explícita na literatura


psicanalítica desde Havelock Ellis (1897/2007) usou o termo como um
sinônimo para o autoerotismo; contudo, como observado por Hillman
(1979), o próprio Narciso foi na maioria dos casos ignorado no estudo
do narcisismo. Removido do seu contexto imaginal e tornado em um
“ismo” do psicodiagnóstico, Narciso foi limitado a uma única
implicação, cortada dos inúmeros insights disponíveis na história de
Ovídio, incluindo a causa prospectiva, ou final, desse mitologema, que
Hillman (1979) considerava nada menos do que a formação do amor
pela alma.

Como um padrão arquetípico, refinar o próprio relacionamento com o


tema de Narciso não é uma tarefa limitada àqueles que sofrem de um
transtorno de caráter narcisista. A história de Narciso apresenta a
negociação experimentada universalmente entre o amor de outra pessoa.
A história de Ovídio oferece compreensão mítica sobre as vicissitudes
intrínsecas ao movimento de um amor instintivo primitivo até o
desenvolvimento de um relacionamento psicológico com outros, com o
mundo e com a alma.

Nathan Schwartz-Salant (1986) notou que a dinâmica de Narciso é um


aspecto da constelação puer-senex. A obra de Hillman (2005) sobre o
puer também notou esse paralelo. Ele descreveu o puer como
“narcisista, inspirado, efeminado, fálico, inquisitivo, inventivo,
pensativo, passivo, fogoso e caprichoso” (p. 50). Como observado
acima (Capítulo 1), o puer tem uma afinidade com o espírito das alturas,
relutante em descer do voo do intelecto abstrato e busca espiritual para
relacionar-se com a psique e o mundo. De acordo com Schwartz-Salant
(1986), no tratamento a dinâmica do puer assume “o inverso da visão
clássica da individuação: Ele vai de cima para baixo, por assim dizer,
de estar preocupado primeiro com o espírito e então com questões
instintivas e da sombra” (p. 21).
O Narciso de Ovídio oferece um importante entendimento sobre a
maneira como o puer pode encontrar o fundamento metafórico de que ele
precisa para estabelecer-se como uma figura psíquica robusta. Segundo
Hillman (2005): “O colapso e queda no mundo de fazer-alma, assim
como as feridas que afetam a perfeição do puer e sua ambição nas
alturas são estruturalmente integrados nos mitos” (pp. 163-164).Narciso
demonstra a propensão do puer para uma anulação (undoing)
autoinduzida, a partir da qual cresce um senso mais preciso de para onde
direcionar sua sede.

Depois de caçar cervos com suas redes o dia inteiro, Narciso foi atraído
a um lago refletor, descrito por Ovídio da seguinte maneira:

Havia uma fonte argêntea de águas límpidas,

que nem pastor, nem cabras que pastam nos montes

tocaram, nem um outro gado ou algum pássaro

ou fera perturbara, ou ramo quedo de árvore.

Havia grama em volta nutrida de húmus,

e uma selva vetando o sol neste lugar.

(Ovídio, Metamorfoses, tradução de Raimundo Nonato Barbosa de


Carvalho)

Vedado do padrão de caça/fuga tão familiar a narciso, sua sede cai nas
mãos de Pothos, irmão de Eros, que reflete de volta para Narciso um
“anseio por aquilo que não pode ser obtido” (Hillman, 2005, p. 182).
Pothos exerce um papel central no movimento do puer das alturas
estratosféricas do autoenvolvimento até o relacionamento. Estimulando
uma cascata incessante de fantasia, a prima materia da realidade
psíquica, Pothos arrasta o espírito até o envolvimento psicológico e
fornece a energia necessária “para que possamos continuar amando” (p.
184).

Quando Narciso fitou o lago, lamentou a natureza insaciável do seu


desejo. O anseio e a dor tornaram-se idênticos, revelando a natureza
inseparável de Pothos e pathos. “Enquanto se lamenta, rasga, no alto, a
túnica, e soca o peito nu com os punhos marmóreos” (Ovídio, Ibid.)
Como a queda de Ícaro, o ferimento do puer conduz sua iniciação à vida
psicológica.

A psique assume a divisão necessária entre perseguidor e perseguido,


como Hillman (2005) notou: “consciência desse aspecto duplo da
individualidade é precisamente a iniciação” (p. 189). Ele acrescentou:

Essa iniciação não nos torna inteiros; em vez disso, ela nos torna
conscientes de estarmos sempre em uma sizígia com outra figura,
sempre em uma dança, sempre refletindo um outro invisível. Quer
o outro seja senex para o puer, fêmea pra o macho, mãe para a
criança, morte para a vida em qualquer forma, o outro é constelado
de um momento para o outro – está sempre além do alcance... O
outro é uma imagem inalcançável, referindo-se não a himeros
[desejo físico] e anteros [amor correspondido], mas sim a Pothos.
Ou antes, o outro é uma imagem que é alcançável apenas pela
imaginação.

(p. 190)

Narciso oferece um reflexo quintessencial da natureza dupla da


consciência do puer. Seu anseio tira-o de si mesmo e leva-o ao outro.
Ele quebra a superfície virginal do reflexo do lago, mergulhando seus
braços na água, onde encontram a umidade do relacionamento.

Moore (1994) descreveu a água como o direito de nascimento de


Narciso e sua essência especial. No ato de ver profundamente a água,
Narciso estava buscando sua herança familiar – sua mãe, um nenúfar (um
tipo de flor), e seu pai, um deus fluvial que ele provavelmente jamais
conheceu. Seu revestimento por uma fixidez impenetrável (neurose) foi
transmutado ao ver através da sua história e herança, avistando a
oscilante e translúcida imagem que era sua própria alteridade – o
acompanhamento mercurial do duplo.

No início da história, a mãe de Narciso pergunta a Tirésias, o vidente


cego, se seu filho teria uma longa vida, ao que ele responde “se não se
conhecer” (Ovídio, ibid.). Esse presságio essencialmente liga o
autoconhecimento e a morte. Mais importante, Tirésias foi um dos
poucos com a permissão de manter sua alma de sangue no submundo do
Hades. Tirésias conheceu a morte em vida e encontrou a vida na morte.
Ele sabia que o autoconhecimento era na verdade conhecimento da alma,
e como Jung (1956/1970) observou, esse tipo de conhecimento é sempre
morte para o ego (p. 546). A impenetrabilidade autoimposta que
efetivamente garantiria proteção a Narciso das muitas mortes inerentes
ao ato de relacionar-se foi rompida através da dor tremenda associada
com o amor. Esse amor precisa de dualidade (two-ness); Narciso teve
que se diferenciar para fora da totalidade primitiva, o narcisismo
primário de Freud (1914/1957), e encarar o tremendo desejo de reflexo
do outro, sem o qual ele sentia-se totalmente vazio e indigno.

O Narciso de Kohut: a criança deficiente

Kohut apresentou uma representação convincente e clinicamente útil da


fenomenologia de uma desordem narcísica, particularmente o vazio ou
déficit que caracteriza formas específicas de narcisismo. Contudo, como
apontei antes, suas observações só tem uma vaga relação com o mito de
Narciso. A ênfase de Kohut nas deficiências do desenvolvimento infantil,
que continuam a afetar o adulto, indica que a sua leitura de narcisismo
não é por meio de Narciso, mas antes pelo arquétipo da criança; a
deficiência no centro da psicologia de Kohut é a tragédia da criança
abandonada (Hillman, 1975b).

De uma perspectiva arquetípica, Kohut fundiu a criança real com a


criança mítica. Como disse Jung (1950/1969): “Na realidade
psicológica... a ideia empírica “criança” é só o meio... pelo qual
expressar um fato psíquico que não pode ser formulado de maneira mais
exata” (p. 161). O fracasso de diferenciar o real do arquetípico levou a
uma visão inflacionada da infância – “o culto da criança” (Hillman,
1975b, p. 18). A memória da infância foi misturada com reminiscências
do imaginal. Sendo assim, a imaginação da psicologia permanece
travada em fantasias da criança, rastreando origens, evocando regressão
a serviço do ego, e teorizando caminhos lineares de desenvolvimento.

A psicologia de Kohut, enraizada em fantasias da infância trágica, perde


a eficácia terapêutica ao se afastar do gênero trágico do qual deseja se
apossar. A abordagem kohutiana imagina que com reparação suficiente
feita através da transmutação de internalizações e de reflexo empático, o
déficit com que o indivíduo vive pode ser preenchido. A tragédia torna-
se comédia, a tensão aliviada. Ironicamente, esse esforço de preencher o
déficit, de mudar a criança, é um esforço de livrar-se dela de uma vez
por todas (Hillman, 1975b). Hillman argumentou que o choro da criança
é uma necessidade arquetípica e a tragédia da memoria da infância é um
determinante arquetípico: deve permanecer fiel à forma trágica:
“Podemos imaginar o abandono da criança e a necessidade de socorro
como um estado contínuo, uma necessidade estática que não evolui rumo
à independência, não evolui de modo algum, mas permanece como um
requisito da pessoa realizada e amadurecida” (p. 31). De um ponto de
vista arquetípico, a criança deve ser vivida no presente, oferecendo-lhe
espaço psíquico para a sua dependência, sensibilidade, necessidade de
ajuda, desejos infantis, fantasias de onipotência e anseios por uma fusão.

Deméter e Perséfone
Como Downing (2006) observou, há muitos vínculos essenciais entre a
lenda de Narciso e a história de Deméter e Perséfone. Downing
observou a maneira como as duas histórias lidam com o problema de
isolamento do mundo, quando a proteção que antes serviu bem o
indivíduo torna-se uma parede que precisa, às vezes de modo violento,
ser derrubada, levando a uma iniciação em relação à alma e ao mundo.
Enquanto Narciso foi cercado em um estado de autoisolamento,
Perséfone foi cercada nos braços da mãe, presa por um laço que foi
quebrado por Hades, indicando mais uma vez a relação entre o
autoconhecimento e a morte. Para conhecer a si mesma como a Rainha
do mundo inferior, Perséfone teve que morrer para sua mãe e perder o
mundo que ela conhecia.

O Hino Homérico a Deméter trouxe imagem e narrativa para a dinâmica


universal que se desdobra entre uma mãe e uma filha, oferecendo uma
riqueza de significado para a psique das mulheres. Contudo, a relevância
desse mito não está confinada a um único gênero. Karl Kerényi
considerou o tema Deméter-Perséfone um dos mitos mais significativos
para toda a humanidade (Downing, 1998). Em Eleusis: Archetypal
Image of Mother and Daughter, Kerényi (1967) argumentou que a
representação da perda entre Deméter e Perséfone é característica [e
característica da perda que cada indivíduo experimenta a medida que ele
ou ela é tirado da fusão original com a mãe, uma dependência tão intensa
que levou Donald Winnicott (1940/1992) a argumentar “Não existe essa
coisa chamada bebê; existe um bebê e uma mãe” (p. 52).

Downing (1981) apoiou o argumento de Kerényi citando o “culto das


duas deusas” (p. 37), os mistérios eleusinos da Grécia antiga, aonde
homens e mulheres vinham encontrar a iniciação no conhecimento desses
dois poderes distintos: Mãe e Donzela. Ela notou que durante o período
do ritual, os homens assumiam nomes com terminações femininas,
sugerindo que a iniciação envolvia uma intensificação do aspecto
feminino da psique humana.

À medida que a psicologia profunda veio preencher o significativo vazio


deixado pelas tradições iniciáticas, os psicoterapeutas foram induzidos
no papel de transmitir os muitos mistérios da alma. O analista conduz a
análise, uma palavra que é cognata com a palavra “afrouxar”,
implicando que o trabalho analítico pretende afrouxar os locais rígidos
da psique, permitindo que a alma encontre seu caminho através do
processo iniciático de modo mais direto. Muitas vezes esse
afrouxamento envolve puxar o que era um em dois através do terceiro. A
diferenciação, cortar a coniunctio menor, interpretar a dependência e o
enredamento, a frustração ótima da situação analítica, a metabolização
de identificações, todos esses são atos onde o afrouxamento, a separação
e, portanto, a perda, ocorrem. O Hino Homérico a Deméter representa a
mais profunda dessas separações necessárias e abre vários modos de
imaginar a perda.

Como Downing (1981) notou, no Hino Homérico a Deméter de Homero,


encontramos Perséfone através da perspectiva de Deméter. É a sua
perda, dor e raiva que o leitor encontra de modo mais direto. Deméter
fornece uma imagem essencial da depressão, essencial porque, como
arquétipo, ela leva tanto a patologia quanto a cura. Como Berry (1994)
observou:

“semelhante cura semelhante”... uma vez que tenha sido


reconhecido um padrão arquetípico, sabemos um bocado sobre
como curá-lo. Isto é, nós o tratamos com ele mesmo –
aprofundando-o, expandindo-o (de modo que ele não esteja fixado
de modo tão estreito) e ao dar-lhe substância, corpo (para que
possa agora começar a carregar o que está tentando expressar).

(p. 197)

Berry então comenta que o sintoma expressa sua causa final (Jung), mas
que o faz através de um meio-termo (Freud) de um modo que tenta
impedir que a meta seja algum dia alcançada (Adler).

Homero representou claramente a expressão mítica do luto: a terra


arrasada, desprovida de vida pela maldição de Deméter, os apelos
desesperados que ela lançou aos Deuses pelo seu auxílio, suas tentativas
de anular a perda com outra criança, seu isolamento, perda de apetite e
recusa em ser consolada. A perda o outro é, como Freud (1914/1957)
argumentou, experimentada como uma perda pelo eu. As tentativas de
Deméter de acobertar as implicações totais da sua perda talvez sejam
mais evidentes na sua dedicação em cuidar de Demofonte, a quem ela
“ungiu com ambrosia como um filho de um deus e respirou seu doce
hálito sobre ele”. Deméter estava formando uma criança de fantasia.
Suas tentativas de torná-lo imortal refletem a adesão melancólica a um
objeto interno eternamente presente. Ela estava tentando trazer de volta
aquela parte de si mesma que foi perdida quando Hades levou sua filha.
Cuidar de Demofonte foi um meio-termo entre seu profundo desejo de
recuperar o que havia perdido, uma realização de desejo, e a percepção
total das implicações da sua perda, um pensamento quase intolerável.

Seguindo o telos do mito, descobrimos que uma depressão demetriana


está conectada, através da sua filha nas profundezas, ao mundo inferior
de Hades. Deméter, Deusa da vida, colheita e grão encontra seu inferno
por meio do rapto da sua filha, e assim a senhora das estações aprendeu
intimamente que a perda está conectada com a vida. Em resposta a essa
característica, Berry (1994) extrapolou as seguintes implicações:

Quando estou afinado com Deméter e recebendo seus dons,


também devo esperar algumas das dificuldades associadas e as
tendências inconscientes desse arquétipo. Então, também, minha
necessidade sempre será aprofundar teleologicamente na direção
de Hades, o reino da minha filha. Assim, eu sofro, mas também
resisto – pois isso também é parte do meu padrão mítico. Não há
caminho para fora de um mito – apenas um caminho mais para
dentro dele.

(p. 199)

Descobrimos em Deméter um senso de familiaridade, sua expressão de


perda tão perto do que conhecemos pela experiência. Deméter, Deusa da
colheita, terra e grão, é uma face do nosso apego à vida e do nosso ódio
a todas as coisas do mundo inferior, especialmente a morte. A depressão
demetriana aperta seu espesso manto e bloqueia a perspectiva do mundo
inferior, obscurecendo o significado psicológico da perda. A perda de
Deméter é apenas literal, e sua raiva de Hades por tomar sua filha ofusca
as riquezas que ele sempre traz, impede que transforme seus dons de
crescimento e vegetação em crescimento psíquico (Berry, 1982). A
perda não tem redenção.

O período de isolamento por depressão de Deméter começa a mudar


quando ela se encontra relacionando-se com um grupo de mulheres
afetivas. O ápice nessa transição vem através da força penetrante do
humor. A velha Baubo interpretou uma dança para Deméter, onde ela
levantou a saia e comicamente exibiu a vulva. Esse movimento
inesperado rompe a rígida aderência de Deméter à autodestruição,
trazendo-a de volta ao relacionamento com o mundo ao seu redor. Como
Downing (194) observou, Baubo “muitas vezes é representada sentada
em um porco, com as pernas abertas, segurando uma escada na vertical
em sua mão” (p. 240). Ela oferece uma maneira de sair através do
movimento para cima da escada. Assim como a risada começa no fundo
do estômago e cascateia para cima pelo corpo, entrando o corpo em uma
canção melodiosa, Baubo acessa as profundezas da depressão,
levantando as saias do segredo e da ruminação, e encontra uma maneira
de nos fazer rir da tolice de tudo isso.

Rapto psíquico

O Hino a Deméter de Homero começa com um momento aparentemente


mundano – uma jovem colhendo flores em um campo com sua mãe de pé
à distância. Depois do rapto, contudo, a reflexão mostra uma cena de
tamanha perfeição que o coração anseia estar de volta àquele lugar. A
descrição de Homero monta a cena em um campo de vida abundante – as
flores e as donzelas juntas, uma perfeita imagem da psique virginal com
uma qualidade de “estar-em-si-mesmo” (in-one-selfness) (Downing,
1981, p. 38), uma qualidade experimentada apenas através de um olhar
para trás de reminiscência imaginal. A ruptura sempre já aconteceu. A
perfeição intocada, a qualidade de donzela-com-flores-e-campo, por
mais frequente que seja em fantasias, é apenas uma preliminar para a
perda inevitável. Todas as partes do mito são necessárias, e uma delas
nunca está sem a outra – a perfeição e a perda ligadas de modo
inextricável.

A representação de Homero dessa necessidade vem através de um


conluio incomum, ou seja, importante, entre Zeus e a Terra. Gaia, ela
mesma uma mãe, “fez crescer uma armadilha para a virgem de rosto de
flor para gratificar, por desígnio de Zeus, o Anfitrião das Multidões”
(Homero, trans. 2001, p. 10). Gaia conhece a necessidade do rapto (N.T.
no original rape, que também significa “estupro”) (Berry, 1982).

A mesma flor que forma a penúltima imagem do mito de Narciso, assim


como seu nome, é usada para atraí-la. O rapto de Perséfone é constelado
quando ela agarra o narciso, ou poderíamos dizer, sendo agarrada pelo
seu narcisismo (Berry, 1982). A Perséfone do campo, a donzela virgem,
sofria devido à sua falta de sofrimento, protegida pela mão materna que
lhe dava tudo. Sem a ruptura de Hades, Perséfone estaria fixada em uma
fusão fechada, desprovida de tridimensionalidade.

Berry (1982) cuidou do tratamento terapêutico dos motivos de Deméter-


Perséfone. Ela notou as implicações negativas de interpretar o rapto
como “’um animus destrutivo’ ou ‘sombra negativa’” (p. 27). Fazê-lo
seria ignorar a necessidade de ruptura e perda da virgindade inocente.
Hades, perda e morte são experiências psicológicas essenciais,
particularmente quando o indivíduo foi limitado por um relacionamento
de fusão com a mãe. “O “estuprador” pode ser constelado em resposta à
virgindade estreita demais da sonhadora, e seu propósito pode ser guiá-
la fisicamente até aquele corpo mais profundo, que está por trás de todas
as superfícies, o reino psíquico” (p. 27).
As defesas de Deméter também podem facilmente dominar um tratamento
terapêutico. Podemos imaginar um tratamento psicoterápico bem-
sucedido como a combinação apropriada de prender e soltar, vida e
morte (Levin, 2002). Deméter resiste à morte necessária do significado,
os estados de desconhecimento, a perda do familiar. Quando a atenção é
focalizada primariamente na reunião, culminação, colheita, Hades é
forçado a trabalhar a partir do submundo, projetando maneiras de tirar o
chão de baixo do tratamento.

Édipo

Reflexões psicológicas sobre os paralelos entre Narciso e Perséfone


mostram a maneira como essas histórias formam um mito de iniciação ao
amor pela morte, o movimento do fechamento para a formação da
identidade através do relacionamento. Do mesmo modo, podemos
considerar a tragédia de Édipo como refletindo um aspecto diferente
desse mesmo problema, como se os três mitos fossem facetas diferentes
da mesma gema. Freud (1914/1957) descreveu o amor narcisista como
um estágio intermediário entre o autoisolamento completo, onde o outro
ainda não existe, e o estágio onde o indivíduo realizou o amor do objeto.
Downing (2006) descreveu esse estado de narcisismo primário como
representativo da “fantasia de que a separação não é a verdade suprema,
de que no início estávamos inteiros conosco mesmo e éramos um com o
mundo” (p. 312). Não pode haver perda porque não há investimento
emocional fora de si mesmo. O amor narcisista é um amor do eu como
objeto. Embutido no tema de Narciso há desafios que precisam ser
enfrentados para que o indivíduo alcance aquele amor de si mesmo que
chega pelo amor da alma no sentido usado por Hillman (1975a).

Por outro lado, Freud (1910/1960) argumentou que a maneira como


vivemos o mito de Édipo forma nossa capacidade de amar outra pessoa.
O ponto de contato, onde as duas facetas se encontram, é a representação
da profunda perda inerente à separação entre o indivíduo e o objeto do
seu amor, seja ele um amor pelo eu, a fantasia do narcisismo primário,
ou o amor pela mãe, ou seja, a fantasia de incesto. Como disse Downing
(2006), nosso movimento para o outro na dinâmica edípica é uma
resposta à perda do nosso narcisismo primário. Ela escreveu, “Nosso
movimento inicial rumo ao outro expressa o anseio impossível de que o
outro nos devolva a totalidade perdida. É na verdade uma expressão de
anseio de fusão, expressa um desejo de ser, não de ter” (p. 312). Ela
acrescentou,

Apenas, poderíamos dizer, quando reconhecemos a existência de


um rival, admitimos que a mãe não existe apenas em relação a nós,
só quando adentramos o mundo edípico, emerge a possibilidade do
amor verdadeiro, de Eros.

(p. 312)

A história de Édipo, como a de narciso, ilumina a natureza trágica do


anseio, de que nós ansiamos por uma fantasia, além do alcance e
proibida no sentido mais profundo. Para Freud, o mundo edípico foi
marcado pelo luto e ambivalência: “Nós estamos apaixonadamente
apegados àqueles de quem dependemos e apaixonadamente ressentidos
dessa dependência” (Downing, 2006, p. 288).

Jung, no seu afastamento do que considerava a leitura literalista de


Édipo por Freud e sua ênfase excessiva na sexualidade, reinterpretou o
tema do incesto em termos da atração sentida pelo indivíduo para
cultivar um relacionamento dinâmico com o inconsciente profundo. Jung
(1912/1967) escreveu: “na experiência psíquica real, a mãe corresponde
ao inconsciente coletivo, e o filho à consciência, que se considera livre,
mas que repetidamente sucumbe ao poder do sono e da inconsciência
embotada” (p. 259). Jung afirmava que o “filho da mãe” (p. 259) sempre
morre jovem, mas o herói pode vencer a imago-mãe negativa, matando o
dragão, livrando-se de um relacionamento de fusão com o inconsciente.

Ele considerava que a aparição do tema do incesto era uma indicação de


que o indivíduo havia sido iniciado em um movimento rumo à
individuação. Jung (1946/1966) argumentou: “Onde quer que apareça
esse impulso para a totalidade, ele começa se disfarçando sob o
simbolismo do incesto, pois a menos que ele o busque dentro de si, a
contraparte feminina mais próxima de um homem deve ser encontrada na
sua mãe, irmã ou filha” (p. 263). Para Jung, o incesto era uma
manifestação inicial do que se tornaria, com o desenvolvimento da
capacidade para pensamento simbólico, um relacionamento vital com o
inconsciente mítico.

Hillman (2007) argumentou que a aderência de Freud a uma formulação


mitológica do comportamento humano, sua insistência de que somos
Édipo, trouxe uma iniciação de escala cultural na tragédia de Édipo,
formando inextricavelmente a maneira como vemos nossa história: “Os
primeiros anos da infância e memórias reprimidas são tão fatídicos, na
nossa cultura, porque a psicanálise domina nosso culto de almas e Édipo
é o mito dominante praticado no culto” (p. 161). O desenvolvimento da
psicanálise por Freud baseado no seu insight sobre esse mito posicionou
Édipo como a figura regente, o dominante arquetípico da prática
psicanalítica. O incesto, parricídio, e busca incessante da verdade
através do raciocínio redutivo são a base de grande parte da psicanálise.
Embora essas características possam ajudar a organizar e esclarecer a
experiência do paciente, Hillman argumentou que há outras
características desse mito que, se não forem reconhecidas, podem ser
destrutivas para o tratamento terapêutico.

Hillman (2007) interpretou o problema central no mito de Édipo não


como incesto e parricídio, mas sim o literalismo. Ele argumentou que
tanto Laio quanto Édipo deixaram de ver o significado secundário dos
oráculos. Eles os tomaram literalmente, e assim caíram sob sua
influência. Essa negação da metáfora, sugeriu Hillman, é representada no
mito pelo tema do infanticídio. Laio, o típico rei rígido defendendo seu
trono, foi ameaçado pelas possibilidades apresentadas por uma nova
criança – a personificação arquetípica da possibilidade imaginativa. Sua
resposta foi prender os pés do bebê e deixá-lo para morrer no monte
Citéron. Se Hillman está correto em colocar Édipo como o dominante
arquetípico da análise, então tanto o paciente quanto o terapeuta sempre
estarão, de uma forma ou outra, em relação a esse motivo infanticida,
matando o segundo sentido ao se apegar a um único mito e interpretações
sistemáticas.

Exemplo de caso

Preâmbulo

O seguinte sumário do histórico e tratamento de um paciente é, como


todas as vinhetas clínicas, uma fantasia. Coletei os pontos nodais
biográficos do paciente e insights terapêuticos particulares e usei-os
para ser autor de uma narrativa. O resultado é um produto literário que
me ajuda, como clínico, a imaginar a dinâmica psicológica do paciente e
a aprender com minha experiência no tratamento. Mas isso também tem o
potencial de me cegar para formulações alternativas – maneiras
diferentes de imaginar. Apesar das limitações intrínsecas que vem com a
história de caso, formulação e sumários de tratamento, reflexões como
esta são um aspecto essencial da psicoterapia. Uma característica
distinta que separa a formulação de caso arquetípica daquelas
tipicamente encontradas no campo da psicologia é o movimento rumo à
relativização da história de caso como uma narrativa fictícia – uma
tentativa de escrever uma ficção curativa (Hillman, 1983).

História de caso e formulação

O Sr. C era um homem euro-americano de 33 anos, filho único criado


por uma mãe solteira. Seu pai deixou o lar antes do seu nascimento, e o
Sr. C nunca o conheceu. Desde a infância, Sr. C tinha uma forte paixão
por tocar bateria. Ele recebeu sua primeira bateria aos sete anos e
começou a ter lições particulares aos 10. Na sua adolescência ele
praticava de quatro a seis horas por dia. Ele frequentemente tecia
reminiscências sobre seu padrão de matar regularmente aula para que
pudesse ficar em casa e praticar música. Quando a sua mãe descobriu,
reagiu matriculando-o em um programa independente de base doméstica
para que pudesse seguir sua paixão pela bateria e concluir o ensino
médio.

O Sr. C passou 10 anos no exército servindo como médico de combate,


começando aos 18. Duas vezes foi mandado servir em combate. Na
época do nosso primeiro encontro, o Sr. Cera um estudante universitário
estudando biologia. Ele completou três anos na faculdade e estava
procurando um estágio para o verão vindouro.

O Sr. C usava intensamente um estilo de consciência hipermasculino,


marcado pela insensibilidade emocional e racionalidade excessiva. Sua
vida emocional e conexão com sua imaginação sofreram com essa
profunda rigidez. A confiança e capacidade intelectual que o Sr. C exibia
para o mundo cobriam uma grande dose de ansiedade e dúvida. Ao
discutir sua depressão, ele notou que uma das coisas que o perturbava
era sua falta de confiança. Ele acrescentou, “sinto-me como se não
conhecesse as pessoas bem o bastante para compartilhar ciclos de
pensamento e emoção que são ilógicos ou bizarros”. Sua psique era rica
com fantasia, mas, aprisionado pelo medo da rejeição, ele mantinha suas
imagens seladas dentro da sua psique altamente privada e
compartimentada.

O Sr. C apresentava-se como um indivíduo que trabalhava duro e que


tinha expectativas intensas em relação a si mesmo. Por exemplo, ele
notou que uma das coisas que o faziam se esforçar mais era “manter-se
competitivo”. Declarações como essa estimulavam minhas próprias
perguntas sobre o pai ausente – imaginando seu fascínio com a
competição como um movimento de conquistar o orgulho e atenção do
pai impulsionado pelo puer. Schenk (2001a), seguindo Hillman, notou
que “[o puer] representa uma busca pelo espírito na forma do pai celeste
e um anseio de redimir o pai, ultrapassando-o” (p. 79).

Quando o Sr. C fracassava, ele era tomado por autocrítica semelhante ao


senex e autopunição. Isso, por sua vez, agravava a sua ansiedade,
enquanto chegava como tensão física, problemas para dormir, e um
estômago perturbado. Quando seu nível de depressão era alto, o Sr. C
descrevia uma tendência de ser retraído, tímido, distante e inibido, mas
também irritável, nervoso e impaciente. Por todo o nosso tempo juntos, o
Sr. C descreveu um medo constante de rejeição, anseio por um outro
compreensivo, e uma raiva profundamente enraizada derivada do
isolamento psicológico em que estava vivendo.

Seu relacionamento com sua mãe era amplamente colorido por tons do
tema do herói/filho-grande mãe. O enredamento que descreveu era um
tema proeminente em toda a sua vida. Ele frequentemente lutava contra a
fusão tentando “matar o dragão” [7] através da raiva, rejeição explícita
de sua mãe e uma atitude misógina para com as mulheres. Além disso, a
guerra que travava contra o pai alimentava sua atitude punitiva e
desconfiada. Como o Rei Laio, pai do Rei Édipo, o Sr. C morria de
medo de perder o reino para a nova criança, então praticava
regularmente matar o espaço potencial com sua crítica extrema e estilo
cético de consciência.

Reflexões sobre abordagem terapêutica

Sr. C procurou a terapia para trabalhar sobre sua depressão e


incapacidade de confiar. Na nossa sessão inicial, ele descreveu seus
sintomas depressivos, pronunciando cada palavra com se fosse feita de
chumbo. Sua descrição pesada acumulou-se no chão do consultório,
gradualmente formando uma parede densa entre ele e eu. Corroborando
essa vívida imagem de separação, o Sr. C começou a descrever seu
senso de isolamento e um padrão de retirada paranoica para fantasia
solipsista. A parede de palavras o mantém preso no seu próprio mundo
bizarro, onde sua vulnerabilidade e emotividade foi
protegida/aprisionada por um escudo de chumbo.

Ao imaginar sua personalidade de uma perspectiva diagnóstica, ele


claramente encaixa no critério de transtorno de personalidade
esquizoide. Os praticantes psicanalíticos gostariam de levantar as
origens desenvolvimentistas do seu caráter e as manifestações da sua
patologia na transferência. A teoria de sedução de Laplanche (1997)
sugeriria que as emoções e fantasias que assombram sua mente são
restos de uma sedução primordial, que o Sr. C, quando bebê, foi incapaz
de traduzir ou significar. No início do seu desenvolvimento, esses restos
se condensaram em um objeto internalizado, um significador enigmático,
que estimula “uma excitação permanente do funcionamento semiótico
instintivo do bebê” (Levin, 2002, p. 138). A barragem de fantasia e
emoções “bizarras” eram uma tentativa de “traduzir um fragmento
intraduzível” (p. 138).

Dessa perspectiva laplanchiana, o tratamento visaria prender “imagens e


símbolos em estruturas significativas e estáveis” (p. 142) e liberar as
narrativas cristalizadas que se tornaram patogênicas. Laplanche
argumentou que alguns desses fragmentos permanecem intraduzíveis,
continuamente excitando a fantasia “como um pedaço de metal
indigerível alojado no estômago” (Levin, 2002, p. 138).

Na sua formulação da teoria da sedução notada acima, Laplanche (1999)


assumiu uma posição forte contra as teorias estruturalistas, argumentando
que as fantasias do indivíduo são totalmente idiossincrásicas: não há
“necessidade de referir-se ao arquetípico e ao inconsciente da espécie”
(p. 156). Muito embora uma abordagem laplanchiana provavelmente
fornecesse uma tração terapêutica significativa, uma abordagem
arquetípica junta a diferenciação e análise das fantasias idiossincrásicas
e sintomas com um processo de ver através da patologia pessoal até o
fundo mítico, além de colocar o desenvolvimento pessoal dentro de u
contexto significativamente mais amplo com possibilidade imaginativa.
Em vez de focar primariamente em rastrear as fantasias do Sr. C até suas
raízes desenvolvimentistas e interpretar a maneira como seu isolamento
paranoico vem à tona na transferência, a psicoterapia arquetípica tentaria
vivificar a imaginação da ferida. Quais são os personagens em ação
aqui; como eles agem no consultório; e como ele está resistindo a sua
influência?

Uma perspectiva arquetípica afirma que as imagens que povoam a psique


de fato têm um relacionamento integral com nossa experiência corporal
com outros no mundo, mas também tem uma natureza arquetípica. O
estilo em que elas se aglomeram é mitopoético. Como tal, elas também
podem ser levadas à simbolização através de uma epístrofe, uma
reversão, não necessariamente até a infância do indivíduo, mas à vida
primitiva da humanidade – essas histórias atemporais que nós contamos
com o propósito de criar significado, dando linguagem àquilo que seria
de outra maneira intraduzível. O efeito terapêutico de tal movimento é
ligado ao valor. O que parece inteiramente pessoal é, na verdade,
transpessoal e vem acontecendo desde tempos imemoriais.

Como notado acima, Levin (2002) comparava os fragmentos


intraduzíveis a pedaços de metal alojados no sistema digestivo,
resistindo às tentativas incansáveis da psique de digeri-los. Contudo,
poderíamos argumentar que a imagem que ele usou para qualificar essa
experiência traz consigo uma significativa “necessidade de referir-se ao
arquetípico” (Laplanche, 1999, p. 156). Ao ampliar o contexto da
investigação, descobrimos que o fragmento intraduzível é um problema
antiquíssimo, isto é, arquetípico – o que a alquimia chamava de veneno
teimoso, “o velho resto, o chumbo, a gralha, o lodo negro que sobrou”
(Hillman, 2005, p. 274). Hillman observou que “as incrustações mais
recalcitrantes do complexo, seus hábitos mais antigos... não são restos da
infância nem introjeções parentais, mas fenômenos senex, isto é, a
estrutura e os princípios pelos quais o complexo permanece” (p. 274).
Para uma psicologia alquímica, o metal indigerível é “o foco para o qual
sua operação volta repetidas vezes... o componente senex do complexo”
(p. 274).
A alquimia oferece muito em termos de insight em relação à
transmutação do metal. Para a alquimia a metáfora digestiva seria apenas
uma operação entre muitas. O metal da alquimia precisava não só da
solução no ácido como uma variedade de atividades diferentes,
incluindo moer, apodrecer, aquecer, resfriar, secar, umedecer, e
combinar com outras substâncias, cada movimento derivando de atenção
cuidadosa com a dinâmica do material. As operações realçadas pelos
alquimistas acrescentam uma complexidade significativa à metáfora
digestiva usada com frequência na teoria psicanalítica. Sem o recurso à
natureza arquetípica da psique, o insight da alquimia e de outras
tradições mitopoéticas permanece em grande parte dormente, apenas
para ser redescoberto pouco a pouco pelos movimentos intuitivos do
analista.

Tratamento

No início do tratamento, o Sr. C. compartilhou uma fantasia de um Rei


em um trono lamentando a terra devastada em que seu reino se tornara.
Ele permaneceu com essa imagem por várias sessões, tocando nas várias
maneiras como sua situação psíquica carecia de fertilidade. Ele
descreveu a maneira como seus pensamentos depressivos dominavam
seu espaço mental, evitando qualquer novo crescimento, o modo como
todos seus relacionamentos pareciam frios e estéreis, carecendo das
fagulhas de inspiração que poderiam ser construídas em uma chama de
Eros. Juntos, investigamos o modo como ele e eu sentíamos essa
esterilidade no tratamento. À medida que ele encontrou a linguagem para
nomear “o conhecido não pensado” (Bollas, 1989), o Rei triste começou
a afrouxar sua pegada, e o Sr. C. lentamente desenvolveu a capacidade
de ver a imagem como um fenômeno distinto, separado de, mas
relacionado a si mesmo.

Sua atenção então se deslocou para focar seus “absurdos pensamentos


emocionais” e “inseguranças absurdas”. Ele notou sua extrema
sensibilidade à crítica, e suas frequentes tentativas de evitar o confronto.
Ele contou muitas histórias onde ele compulsivamente se distanciou de
relacionamentos. Quando ele descobria a proximidade com alguém, a
intimidade que compartilhavam estava limitada ao seu caráter defensivo
e à dificuldade em mostrar-se vulnerável.

Na metade do tratamento ele teve uma fantasia de um garotinho em um


playground cercado por um grupo de bullies. Eles estavam batendo no
menino e zombando dele por ser diferente. Notei que essa fantasia era
essencialmente o outro lado do seu rei triste. A fértil centelha do puer
estava aprisionada em meio a um círculo de bullies, envolta na vergonha
que essas figuras haviam causado no menininho. A desconfiança crônica
do Sr. C., sua suposição de que o afeto que sentia vindo dos outros era
inautêntico, derivava dessa antecipação de que há um grupo de bullies
em cada pessoa esperando que ele mostrasse vulnerabilidade, de modo
que pudesse atacar sua fraqueza.

Apesar do movimento em algumas áreas, o Sr. C continuava a acreditar


que estava, como costumava dizer, “vendo o mundo objetivamente”. Ele
possuía um arsenal de exemplos que poderia usar para defender sua
perspectiva, para “exteriorizar questões para longe da psique” (Hillman,
2005, p. 276). A qualidade senex na psicologia do Sr. C investia em
localizar o problema fora dele mesmo. Sua paranoia, embora tirânica e
destrutiva, dava-lhe um senso de ordem a partir do qual podia
compreender o mundo. Se ele permitisse espaço para a perspectiva do
puer, essa ordem seria interrompida, e ele teria que encarar o torvelinho
da ambivalência e conflito psíquicos.

A dominação do senex estava impedindo a conexão vitalizante entre eros


e psique (Hillman, 2005, p. 277). Quando uma fagulha do puer conseguia
penetrar na grossa camada da consciência do senex, era rapidamente
extinta, impedindo qualquer oportunidade para geratividade que chega
com reflexo psicológico nas inspirações do puer. Em vez de alimentar o
processo erótico da geração de significado, essas inspirações eram uma
fonte de tremenda ansiedade. Através da lente sombria do senex
negativo, seus sentimentos e fantasias, ricas com significado e
criatividade psíquica, eram pervertidos em “absurdos pensamentos
emocionais” e “inseguranças absurdas”.

Sem reflexão psicológica, sua ansiedade não tinha outro modo de


expressão além de sintomas somáticos: tensão física, nervosismo,
problemas para dormir, e um estômago perturbado. Comentando sobre a
relação psique-soma, Jung (1935/1976) escreveu o seguinte:

O fato psíquico e o fato fisiológico se juntam de uma maneira


peculiar. Eles acontecem juntos e são, na minha opinião,
simplesmente dois aspectos diferentes para nossa mente, mas não
na realidade. Nós os vemos como dois devido à total incapacidade
da nossa mente de pensá-los juntos.

(p. 65)

Sua expressão defensiva da psique como sintoma físico era um esforço


de manter a divisão a que Jung se referia. Contudo, como todos os
sintomas neuróticos, seus sintomas físicos eram defensivos e
expressivos. Suas reclamações corporais eram uma expressão da
“profundidade na superfície” (Schenk, 2001b, p. 20), expressando
significado psicológico através da apresentação estética.

Com atenção consistente às dinâmicas dos seus sintomas físicos,


pudemos nos restabelecer em um relacionamento mais direto com sua
psique através da imagem. O estômago irritado era imaginado com um
caldeirão fervilhante de raiva. A tensão que sentia no seu corpo era
como chapas de pedra do deserto, seu nervosismo, um fio elétrico
desencapado. Essas imagens emergiam através de um processo simples
de ficar com o sintoma e seguir sua riqueza analógica através de
associações. Os sintomas eram janelas voltadas para o cosmos
psicológico do Sr. C, sua polis imaginal – as figuras que estiveram lá o
tempo todo formando seus pensamentos, sentimentos, comportamentos e
sonhos.
Vários meses depois do início do tratamento, o Sr. C apresentou o
seguinte sonho:

Um homem com um grande facão está me perseguindo em um


campo aberto. Ele quer cortar fora os meus braços. Estou
apavorado, então continuo correndo o mais rápido que posso. Mas
por mais rápido que eu corra, ele continua bem atrás de mim.

(Sonho de cliente, 8 de julho de 2009)

O vínculo entre correr e ser perseguido deu origem a uma olhada mais
próxima na maneira como sua corrida tornava necessária uma
perseguição, como ele se distanciava, fazendo com que os outros
corressem atrás dele. Observei o jogo entre as palavras perseguido
(chased) e casto (chaste). Isso abriu uma discussão da conexão entre o
desejo por perfeição e a falta de fertilidade que ele sente nos
relacionamentos.

Essa discussão permitiu que entrássemos no que eu considerei o aspecto


mais importante do sonho – o desmembramento dionisíaco. Como
Downing (1993) notou, Dioniso dissolve limites, e sua aparência “é
sempre experimentada como ameaçadora, avassaladora, como
epidemia” (p. 69). O ego onírico, apavorado e correndo, representa uma
resposta típica à influência dionisíaca. Contudo, para compreender o que
essa imagem está oferecendo, temos que relativizar o eu-apavorado do
sonho, tratando-o como uma imagem distinta da consciência desperta do
Sr. C.

Nós já qualificamos esse “eu” como perseguido e casto, correndo pela


perfeição, morrendo de medo de perder os braços. Jogando com o
trocadilho, ele comparou a imagem de perder os braços (arms, também
“armas” em inglês) a perder suas armas principais, sua atitude
autocrítica e seu medo paranoico de que os outros explorariam sua
vulnerabilidade. Ele começou a reconhecer o valor dessa figura
dionisíaca e a importância de ser desmembrado. De modo mais amplo,
ele teve uma experiência na qual sua perspectiva deslocou-se de “a
psique, como o resto do mundo, está querendo me pegar” até o
reconhecimento que essa figura que invocava tal terror, tanto no sonho e
ao despertar, estava na verdade chegando com certa necessidade
fatídica, infligindo morte para que a vida possa continuar.

Essa experiência foi central para construir sua fé psicológica que, como
Hillman (1975a) observou,

Começa no amor das imagens, e ela flui principalmente através das


formas de pessoas em devaneios, fantasias, reflexões, e
imaginações. Sua crescente vivificação fornece uma convicção
crescente de ter, e então de ser, uma realidade interior de profunda
significância que transcende a vida pessoal do indivíduo.

(p. 50)

Vários meses depois de ter o sonho, o Sr. C teve uma fantasia em que
estava correndo pelo campo aberto do seu sonho. Subitamente ele parou,
voltou-se para o homem com o facão, e assistiu pensativo enquanto esse
homem cortava seus braços. Ele descreveu como olhou para baixo e viu
sua carne caída no capo e refletiu como seus braços, que ele usou como
armas, entrariam em decomposição, tornando-se fertilizante fonte de
vida para esse campo aberto. Ele comparou essa imagem de fertilidade à
abertura das possibilidades psicológicas. O campo tornou-se um campo
de imaginação, de onde uma multidão de potenciais emergiria. O Sr. C
viveu com essa qualidade desmembrada em uma variedade de maneiras,
sendo que a mais proeminente foi sua capacidade crescente de desmontar
suas paranoias de senex e suas fantasias de ataque a si mesmo.

Capítulo 4

Palavra e imagem
Hillman (1975) argumentou que as palavras são portadoras da alma:
“elas são presenças pessoais que possuem mitologias inteiras: gêneros,
genealogias (etimologias sobre origens e criações), histórias e modas; e
seus próprios efeitos de proteção, blasfêmia, criação e aniquilação” (p.
9). Em uma poderosa rejeição do nominalismo comum à filosofia
moderna do Ocidente, Hillman tornou a linguagem psicológica ao
afirmar “palavras são pessoas” (p. 9), e sua presença influencia
intensamente a natureza da psique. Essa posição traz uma renovação
necessária para a noção de uma cura pela fala, encorajando o clínico a
tratar cuidadosamente das palavras usadas na sessão – vivificando a
imagem presente no mundo.

Nos seus esforços de explicar ainda mais uma perspectiva arquetípica da


linguagem, Coppin (1996) realizou uma importante investigação da
discrepância entre uma teoria psicológica que defende a multiplicidade
inerente da psique enquanto continua a usar um estilo de linguagem que
conota singularidade monolítica e reificação. No esforço de representar
um estilo de linguagem que reflita melhor a natureza policêntrica da
psique, Coppin argumentou o seguinte: “é melhor considerar a linguagem
uma figura autônoma viva da psique” (p. 82); contudo, a psicoterapia
sofre de um padrão de uso da linguagem para reduzir, objetificar e
domesticar as imagens da psique. Uma abordagem mais centrada na
psique envolve usar a linguagem para expressar as qualidades concretas
das imagens. As imagens apresentadas pelo paciente fornecem o material
primário para o encontro terapêutico, e o psicoterapeuta pode ajudar a
evocar imagens posicionando-se em um estado de sonho desperto ou
imaginal, falando ao paciente com um senso lúdico. Por exemplo,
associações sonoras, neologismo e repetição frequentemente realçam o
imaginal, isto é, a natureza metafórica e multifária da linguagem (p. 84).

A linguagem do particular
Como notei anteriormente neste texto, uma das metas primárias de uma
psicoterapia arquetípica é a diferenciação cuidadosa da psique na sua
variedade de expressões. É dada uma importância significativa ao
pressuposto de que a expressão mais fundamental da psique é a imagem.
Como tal, as palavras suadas na terapia pretendem trazer à frente essas
imagens. A linguagem é usada para esclarecer as qualidades particulares
da imagem apresentada. Esse movimento requer que os participantes
primeiro deixem de lado sua subjetividade habitual e permitam que a
imagem fale sobre suas qualidades. Lockhart notou que “uma das
influências sutis do ego é generalizar o que ele vê no outro” (como
citado em Coppin, p. 91). Essa tendência a generalizar pode rapidamente
perverter toda uma nova expressão da psique em algo que já é conhecido
ao paciente, terapeuta, ou ambos. O ego responde com ansiedade diante
daquilo que não é familiar, sem confiar na significativa importância
terapêutica do que é desconhecido.

Uma abordagem arquetípica serve para contrabalançar essa tendência ao


valorizar o detalhe sutil e peculiar da imagem. Como disse Lockhart,

O destino exato e individualidade da pessoa estão ligados a esses


detalhes... os detalhes desconhecidos ou não prontamente
compreendidos não devem ser esquecidos. O mais adequado é
ficar em silêncio diante deles e deixar que eles falem.

(como citado em Coppin, 1996, pp. 91-92)

O paciente e o terapeuta lentamente elucidam uma representação dos


detalhes da imagem, compensando, quando apropriado, os hiatos no
conteúdo verbal para que os dois indivíduos tenham o tempo e
privacidade para o devaneio, descansando na nuvem do
desconhecimento.

Filósofos pós-modernos, principalmente Jacques Derrida (1974) e


Ludwig Wittgenstein (1953), argumentaram que a linguagem sempre
força a experiência em uma realidade referencial já conhecida, ou como
Derrida (1974) observou, “não há nada fora do texto” (p. 155). Cada
palavra pronunciada só carrega significado em relação e em contraste
com outras palavras. A visão pós-moderna da linguagem tem
implicações significativas para a psicoterapia, onde a linguagem é
provavelmente o componente mais central. A prisão linguística descrita
pelos filósofos pós-modernos induz uma visão pessimista em relação à
possibilidade de surpresa que chega à medida que sistemas conceituais e
o discurso convencional são momentaneamente despedaçados. Ao
resumir o ponto de vista de Wittgenstein, Sanford Drob (2008) escreveu:
“qualquer gesto na direção ao significado transcendental é, como um
movimento no jogo de xadrez, compreensível apenas como tal dentre de
um contexto, uma forma-de-vida/jogo de linguagem que fornece esse
sentido” (p. 157).

No mesmo ensaio, Drob (2008) argumentou que a psicologia arquetípica


construiu um argumento que mostra mais otimismo em relação ao
problema da linguagem.

Ao escrever incessantemente fora do discurso dominante, ao


implorar para que permaneçamos com nossa experiência e imagens
não interpretadas, e ao criar novas metáforas que desconstroem e
expandem nossa concepção da psique, Hillman combateu o ponto
de vista de que a “verdade” ou “realidade” é definida
simplesmente pelo modo como esses termos funcionam nas nossas
convenções e teorias principais.

(p. 160)

Hillman (1975) sustenta que as palavras não são necessariamente


policiais à espreita, mas que podem ser de fato usadas de um modo que
quebre sistemas de significado pré-estabelecidos, como usar um espinho
para remover um espinho. Para ele, “o verdadeiro iconoclasta é a
própria imagem, que explode seus significados alegóricos, liberando
surpreendentes novos insights” (p. 8).
Para “chegar alem de uma prisão linguística de nossa própria criação”
(Drob, 2008, p. 165) precisa de um deslocamento na consciência da
subjetividade típica do indivíduo para as próprias coisas. Hillman
descreveu esse modo de cuidado como notitia: “aquela capacidade de
formar noções verdadeiras de coisas a partir da percepção atenta”
(como citado em Coppin, 1996, p. 114). Esse é um movimento que evita
a limitação da experiência em uma narrativa do “eu”. Em vez disso, o
terapeuta e o paciente se movem para o mundo das coisas e das suas
respectivas qualidades. Hillman se referiu a isso como uma “revolução
adjetiva” – “um retorno das qualidades secundárias às coisas – cores,
texturas, gostos” (p. 114).

A prática de notitia é refletida mais diretamente no estilo arquetípico do


trabalho sobre os sonhos. Os movimentos feitos com o sonho são
centrados primariamente na elucidação das qualidades e estados das
várias imagens como entidades independentes. O trabalho de
interpretação pode, em última instância, remeter-se ao ego onírico e ao
ego desperto, mas antes de fazê-lo, o sonho recebe o tempo e o espaço
necessários para compreender as imagens por conta própria. Isso
envolve entrar em uma variedade de perspectivas apresentadas pelas
imagens: não só representações dos múltiplos lados do ego desperto,
mas como entidades autônomas distintas do estilo dominante da
consciência. Esse mesmo movimento estende-se ao encontro terapêutico
na sua totalidade, como entidades autônomas distintas do estilo
dominante da consciência. Esse mesmo movimento estende-se para o
encontro terapêutico na sua totalidade, onde as imagens do mundo diurno
são também abordadas através do paradigma do sonho, abrindo espaço
para a autonomia e significado metafórico.

Um paciente comentou que durante sua semana havia se sentido como se


houvesse deixado cair um punhado de balas de arma de ar comprimido.
Elas haviam se espalhado caoticamente pelo chão, e ele estava tentando
desesperadamente catá-las todas. Enquanto dizia isso, a sua fala soava
agitada e rápida. Ele rapidamente passou a outra associação. Enquanto
ele fazia uma pausa, trouxe sua atenção de volta à imagem. Embora “o
eu” fosse a característica primária dessa imagem, tentem não assumir
que ele e eu conhecíamos essa figura ou que era o mesmo “eu” que
estava atualmente sentado na minha frente. Voltei sua atenção à imagem
perguntando o que como “eu”, essa figura que deixava cair balas de arma
de ar comprimido, se parecia. Minha referência à “figura” e “esse eu” é
um movimento simples, mas essencial para estruturar um diálogo que
reflete a pluralidade da psique. Ele rapidamente replicou que “ele
parece comigo”, evidenciando o desejo do ego de permanecer com o que
é conhecido. Pedi-lhe que fosse à imagem do “eu” e descrevesse-o como
se estivesse falando com uma pessoa cega. Sua fala, respiração e gestos
se desaceleraram enquanto ele vocalizava os detalhes da imagem. A
figura começou a tornar-se mais complexa - cabelo desgrenhado, olhos
grandes se movendo rapidamente, suor na testa, braços agitados. Quando
ele pegava uma bala, várias outras caíam da sua mão, como se as balas
estivessem resistindo aos seus esforços de colhê-las. Com a emergência
desses detalhes, ele foi capaz de diferenciar essa figura do “eu”
observador com que ele estava atualmente identificado. Deixar as balas
caírem e o “eu” frenético tornaram imagens importantes para seu
tratamento. Levando tempo para notar e diferenciar a imagem,
desenvolvemos uma linguagem compartilhada para um complexo que nos
trouxe tremenda dificuldade por toda a sua vida.

A imagem que esse paciente apresentou tornou-se imediatamente


acessível a uma abordagem imaginal, principalmente porque já havia
personificado sua experiência. Tais experiências não são infrequentes na
psicoterapia; contudo, o terapeuta pode melhorar esse modo primário de
formação de imagem ao modelar um estilo de linguagem que busque a
personificação. Coppin (1996) claramente descreveu a intenção de
personificar a linguagem.

Em suma, podemos dizer que a personificação significa dar


subjetividade às coisas através da fala. Por exemplo, podemos
mudar a frase “estou com depressão” (I really have the blues)
para “a depressão me tomou” (The blues sure have me). Nessa
sentença a depressão (the Blues) é subjetiva... Hillman sugere isso
como um movimento linguístico que relativiza o ego e anima o
mundo psicológico.

(p. 115)

O terapeuta vivifica a imagem personificada na sentença ao inverter o


sujeito e o objeto. Isso é particularmente importante com sentimentos. Ao
realçar a presença personificada do sentimento, o terapeuta e o paciente
animam o sentimento, colocando o paciente “em uma posição mais
receptiva e fluida em relação à experiência” (p. 116).

Hillman (1975) descreveu a tração terapêutica adquirida através do uso


da personificação da linguagem:

O que era antes um afeto, um sintoma, uma obsessão, agora é uma


figura com quem posso falar. Usando a expressão de Jung, estamos
revertendo a história nas nossas almas, pois ao personificar eu
devolvo a doença ao seu Deus e entrego ao Deus o que é seu de
direito.

(p. 34)

Aqui Hillman apontou para a noção de que o sintoma busca a realização.


Ele precisa de algum tipo de expressão e ação. Em termos mitológicos,
os Deuses foram ofendidos e é necessário oferecer reparação através de
um aprofundamento incorporado do estilo específico que foi negado.

Entrando no diálogo

Durante a seção, pacientes costumam passar para um estilo diferente de


diálogo, evocando no terapeuta um sentimento palpável de que um
personagem diferente entrou na sala. Talvez seja o tom, a posição
ideológica, o ritmo, os gestos, ou qualquer outra das características
auxiliares da comunicação. O terapeuta cuida dessas mudanças e chama
atenção para elas. Com cuidado e atenção, essas mudanças sutis podem
se desenvolver em personagens altamente diferenciados, acentuando a
diversidade da psique do paciente.

Coppin (1996) realçou a maneira como Watkins e Hillman seguem a


linguagem do paciente e prestam atenção nas imagens já embutidas no
seu discurso. Para Watkins, essas imagens tornam-se as metáforas
orientadoras para o tratamento. Ela descreveu sua abordagem como uma
tentativa de “guardar as imagens dos seus sonhos e imaginação ativa, de
modo que quando estivermos falando sobre coisas diferentes aparecendo
na sua vida, será através dessas imagens que poderemos ver através dos
eventos” (Coppin, 1996, p. 126).

Hillman descreveu a maneira como ele escuta o discurso do paciente e


reflete de volta para ele ou ela o que foi dito, enquanto dá à frase “uma
nova flexão (fresh twist), onde o terapeuta devolve as imagens ao
paciente com uma ligeira, mas perceptível mudança” (Coppin, 1996, p.
117). Seguindo Berry (1982), poderíamos imaginar esse movimento
como mimético, no estilo da ninfa Eco. Na sua raiva, Hera amaldiçoou a
sua fala: “Quando alguém termina de falar, tudo que ela pode fazer é
repetir a última palavra, e ecoar de volta a voz que ouviu” (Ovídio,
trans. 1986, pp. 357-390).

A qualidade geradora do discurso de eco reverbera através da história.


Berry, (1982) notou que o diálogo de Eco com Hera estava ocultando o
encontro erótico entre Zeus e as ninfas. Suas palavras “tornam possível...
uma certa fertilidade oculta” (p. 116). O terapeuta oferecendo uma nova
flexão às palavras do paciente torna acessível o poder procriador da
palavra, as metáforas que já estão sempre embutidas na linguagem,
porque toda linguagem se origina da base poética da mente.

Linguística arquetípica
O estudo de Kugler (1982) chamado The Alchemy of Discourse (A
alquimia do discurso) foi essencial para elucidar ainda mais o
fundamento mitopoético a partir do qual a linguagem foi formada. Sua
exposição começa colocando Jung na vanguarda da descoberta da
dimensão inconsciente que está inserida na linguagem. Os primeiros
experimentos de Jung com a associação de palavras levaram-no a
concluir que à medida que a atenção de um indivíduo diminui, isto é, à
medida que ele torna-se mais inconsciente, as associações baseiam-se
cada vez mais na estrutura fonética em vez da estrutura sintática. Além
disso, associações fonéticas, que se baseiam no som, se aglomeram,
formando um complexo significativo, uma imagem sonora, refletindo uma
camada da psique onde logos e imagem estão inatamente conectados.
Kugler usou o exemplo do “complexo floral” (flower complex), que
consiste nas palavras flor, deflorar e defloração; cravo (carnation),
carnal e carnificina; violeta, violar e violento. Enquanto essas palavras
não trazem um relacionamento sintático significativo ou etimológico, “as
puras relações entre os sons” (p. 52) de fato portam um significado de
imagem arquetípico.

O complexo floral descrito acima é representado bem claramente no


Hino a Deméter de Homero. Como foi narrado anteriormente (Capítulo
3), Perséfone, donzela virgem, estava colhendo flores no campo. Assim
que sua mão pega a mais bela das flores, a terra se abre violentamente, e
Hades leva Perséfone capturada de volta ao seu reino subterrâneo para
completar seu ato de violação. Esse tema mostra uma reunião de
palavras relacionadas foneticamente, trazidas para um relacionamento
significativo através de uma fantasia arquetípica (Kugler, 1982).

A pesquisa de Jung, que corrobora declarações feitas por Freud


(1900/1953), Jacques Lacan (1953/1981), Ferdinand de Saussure
(1916/2011), Claude Lévi-Strauss (1958/1983), e Theodore Thass-
Thenemann (1973), documentou os dois níveis da linguagem operando
sincronicamente. Kugler (1982) descreveu a utilidade do nível manifesto
na seguinte declaração: “o metonímico funciona concatenando palavras
em cadeias lineares de acordo com as leis da gramática e sintaxe” (p.
109). Essa é a linguagem do ego, onde os significados são limitados a
uma única forma. Enquanto o ego forma a realidade em uma fantasia
singular, há outro processo operando, onde os eventos são
experimentados como polissêmicos. Kugler descreveu isso como “a
operação metafórica na linguagem” que “associa palavras de acordo
com algum grau de paridade semântica ou fonética (identidade ou
analogia), não sintática (p. 109). Esse nível de experiência foi chamado
de processo primário (Freud, 1900/1953), pensamento de fantasia (Jung,
1912/1967), ordem simbólica (Lacan, 1953/1981), e a base poética da
mente (Hillman, 1975). É a estrutura linguística do que a psicologia
profunda chamou de inconsciente, “um tesauro arquetípico interior, um
dicionário psíquico que liga imaginalmente significados relacionados
arquetipicamente através de uma paridade de valores fonéticos” (Kugler,
1982, p. 103).

À medida que o ego é fixado em um significado, os significados


ulteriores são relegados a expressões fora do próprio campo de
consciência, representado mais diretamente como as pessoas nos nossos
sonhos. A neurose, de acordo com Jung (1950/1969), é unilateral, a
condição do ego excessivamente fixado, cortado do sistema vitalizante
da “nossa alteridade imaginal” (Kugler, 1982, p. 100).

Como eu notei nesse estudo, uma meta primária na psicoterapia


arquetípica é a reconstituição do relacionamento do indivíduo com o
imaginal, a relativização do ego e seu estilo linguístico, ao ver através e
ouvir através da apresentação do ego para a “multiplicidade de
significados subjacente dentro da fisionomia da sua imagem da alma
(imaginação)” (Kugler, 1982, p. 93). Contudo, o significado inconsciente
não chega por meio da tradução do terapeuta de significado metafórico a
metonímico, como no trabalho das psicologias do ego. Como Berry
(1982) demonstrou, interpretações que traduzem a imagem sempre serão
relativas à perspectiva particular com que o terapeuta se identificou. A
psicologia arquetípica advogou uma abordagem à imagem que favorece
multiplicidade de significado em relação a uma única verdade. O
movimento poderia ser descrito como um deslocamento do
fortalecimento do ego através do estímulo a uma narrativa coesiva para
fortalecer a base poética da mente através da iniciação nas muitas
narrativas da psique arquetípica. Kugler (1982) notou a maneira como o
psicoterapeuta arquetípico trabalha para manter o significado na imagem,
mantendo sua fecundidade poética, permitindo que as palavras do
sonhador “falem por elas mesmas través da sua polissemia intrínseca”
(p. 93). Essa abordagem foi vista detalhadamente no Capítulo 2.

Kugler (1982) resumiu seu estudo na seguinte declaração:

Uma baixa na consciência passa o modo linguístico de associação


a partir de uma consideração dos conceitos-significados
associados com os objetos de referência para uma consideração
dos conceitos-significados conectados através de uma paridade
fonética para o significador do objeto – seu padrão fonético. Esse
processo envolve liberar a alma (o conceito significado) do seu
aprisionamento na matéria (o objeto literal de referência).

(p. 117)

A asserção de Kugler tem implicações significativas para o modo como


o terapeuta cuida do paciente na psicoterapia. Se a atenção é focalizada
e a concentração alta, então as próprias associações internas do
terapeuta serão na maior parte sintáticas, singulares e baseadas no ego.
Por sua vez, se o terapeuta permite que sua atenção seja suavizada, as
associações serão compostas de uma mistura de sintático e fonético,
egoístico e imaginal.

Na privacidade da sua própria mente, o terapeuta é encorajado a abrir


espaço para jogar com a imagem linguística oferecida pelo paciente,
espaço para devaneio quando os significados subjetivos e objetivos se
misturam, e palavras podem preencher suas formas imaginais. Desse
lugar de atenção suspensa de modo homogêneo (Freud, 1900/1953), ou
devaneio (Romanyshyn, 2002), o terapeuta tem a oportunidade de ouvir a
linguagem estagnada da patologia e oferecê-la de volta ao paciente com
uma “nova flexão” (Coppin, 1996, p. 117) ao que foi dito.

O estudo de Kugler (1982) sobre a base arquetípica da linguagem


culmina em uma exposição na alquimia do discurso. Ele notou a maneira
como os alquimistas compreenderam como as palavras se conectam
através do som e realçaram sua confiança no jogo entre o significado
subjetivo e objetivo da palavra. Por exemplo, Kugler notou o significado
duplo da palavra solução: uma resposta a um problema e uma substância
líquida. Aqui temos dois referentes objetivos completamente diferentes,
relacionados apenas pelo relacionamento fonético. Contudo, os
alquimistas encontraram valor na ligação, trabalhando seus problemas
subjetivos como se trabalhassem através das várias transformações de
uma substância líquida. Kugler notou “a imagem acústica é a interseção
entre o externo e interno, entre o literal e metafórico” (p. 113).

O psicoterapeuta arquetípico trabalha para ver através do estilo


literalista da linguagem até a imagem arquetípica integrada nos
elementos fonéticos da palavra usada. Cada palavra traz consigo
vínculos associativos com outras palavras, não só através do significado
como pelo som. Cada palavra chega já em um mito, uma imagem
arquetípica que transcende as idiossincrasias do indivíduo e a linguagem
particular do indivíduo. Ao aprender a reconhecer e relacionar-se com a
sintaxe arquetípica da imaginação, o paciente recebe a oportunidade e
experimentar sua imersão fundamental na linguagem, de modo que
através de palavras já nos encontramos em um mar de padrões e
significado, que cada fala é constituída arquetipicamente, que por trás da
singularidade do discurso egoico existe uma “inerência do anjo no
mundo” (Hillman, 1975, p. 9), e a partir de tais experiências o indivíduo
vem a desenvolver um profundo respeito pela profundidade, mistério,
complexidade e riqueza da psique.

A linguagem da metáfora
A psicologia arquetípica fez uso significativo da linguagem emprestada
de algumas disciplinas particulares que se especializaram em
diferenciação qualitativa concreta, como a arte da memória, mitologia, e
alquimia (Hillman, 1975). Em um breve ensaio transcrito de uma
palestra em Zurique, Hillman (1980b) descreveu a própria linguagem
alquímica como um modo de terapia. Hillman começa essa exposição
com uma discussão sobre a conexão entre a linguagem e a neurose,
declarando que “a unilateralidade que caracteriza toda a neurose em
geral é também encontrada especificamente como uma unilateralidade na
linguagem” (p. 119). Por implicação, isso significa que a fenomenologia
da neurose deve ser encontrada no “estilo de discurso em que a neurose
está abrigada” (p. 119). A terapia da psique torna-se terapia das
palavras; o terapeuta arquetípico dirige o tratamento para retificar a
perda da sensibilidade metafórica em relação à linguagem – uma
reconexão entre palavras e sua raiz imaginal.

Hillman (1975, 1980b) argumentou que uma psicologia alquímica


mantém a sensibilidade metafórica viva usando palavras-imagem como
sal, enxofre e mercúrio – descrições poéticas da personalidade.
Palavras-imagem trazem uma constelação de qualidades e contextos. A
linguagem alquímica, afirmou Hillman (1980b), fornece uma alternativa
às abstrações secas dos manuais de psicologia. O uso de termos como
ego, inconsciente e transferência abstraem da experiência vivida da
psique e sacrificam a precisão terapêutica. Hillman pediu uma
retificação da psicoterapia através do uso terapêutico das metáforas
concretas da alquimia e linguagem diferenciada qualitativamente.

Rumo a uma psicoterapia alquímica

A seção seguinte fornece uma resenha descritiva do trabalho de Hillman


sobre a alquimia. A meta principal dessa resenha é reunir os aspectos
mais clinicamente úteis da psicologia alquímica de Hillman e continuar
com seu esforço abrangente de realçar o modo como as metáforas
embutidas na linguagem alquímica constituem um léxico mais
psicológico do que a linguagem conceitual. Como Hillman (1980a)
notou, “A base poética da mente implica que a psicologia da mente terá
que encontrar seu caminho até a fala poética” (p. 46).

Possivelmente, a contribuição mais clinicamente relevante de Hillman à


fala poética é encontrada no seu trabalho com o simbolismo de cor
alquímico, que atraiu atenção ao modo como as dinâmicas da psique e
suas vicissitudes são refletidas nas sombras da imagem. Uma
psicoterapia alquímica convida atenção cuidadosa a esses
deslocamentos na sombra, a transmutação de qualidades, o fluxo de
adjetivos – uma re-visão poética da psicodinâmica.

Prima materia

O primeiro movimento na direção do opus da alquimia ou o trabalho da


psicoterapia é localizar a prima materia, uma substância que está
paradoxalmente oculta porque está em toda parte, imaginada como uma
variedade de substâncias: leite de virgem, mercúrio, esterco, serpente,
fumaça branca, morte. De modo mais amplo, a matéria prima é feita do
que se apresenta espontaneamente à imaginação. Schenk (2006) traça
analogias aos primeiros movimentos da psicoterapia – “o encontro na
sala de espera, o primeiro olhar no rosto, as palavras iniciais ditas. O
que o rosto está dizendo hoje? O corpo? As primeiras palavras?” (p.
156).

A matéria prima também foi descrita como uma massa confusa, uma
massa não-diferenciada, ambivalência inconsciente, os momentos nos
quais a pessoa está se movendo em várias direções ao mesmo tempo,
sem saber para onde se voltar, cheia de dúvida, desespero e um senso de
necessidade. A ansiedade da incerteza inspira um desejo de mover-se
rumo à coagulação, forçando prematuramente essa nova experiência no
padrão de algo conhecido e familiar.
Hillman (1980a) descreveu a necessidade de diferenciar a brancura do
início da brancura prateada do albedo. O material virginal é
caracterizado por uma “inocência não trabalhada” (Hillman, 1980a, p.
24), sem pecado, sem mancha, pureza, que carece do calor e
flexibilidade que surge ao trabalhar o material. O branco virginal é pré-
negro, um estado de inconsciência, uma participação mística, indo com o
fluxo, a “ausência de más vibrações” (no bad vibes) da gíria
californiana. Esse branco virginal, como Perséfone no campo de flores,
precisa da morte e putrefação da nigredo, a atração de Hades para o
submundo da alma.

Para mover a matéria primária do seu estado virginal até o primeiro


estado do opus, o nigredo, é essencial ir além no negrume que
caracteriza esse estágio do trabalho. As operações associadas com
nigredo, ou seja, mortificatio e putrefactio, sugerem a necessidade da
morte. O material bruto do início tem que morrer para seu significado
pré-reflexivo e depois sofrer um processo semelhante a uma moeção
lenta se uma substância com pilão e almofariz, de modo que possa
fermentar e apodrecer em um negrume mais negro do que o negro
(Hillman, 1997). Como observou Hillman, “o nigredo não é o início,
mas um estágio realizado” (pp. 6-7).

Nigredo

Embora sombras sejam lançadas por todos os estágios do opus, como


uma heurística geral poderíamos considerar o confronto mais
significativo com a sombra como uma característica essencial da
nigredo. Os sintomas do corpo, humor e pensamento começam a falar, e
seu hálito fede com aquilo que foi negligenciado e deixado para
apodrecer. A nigredo envolve tanto uma digestão psicológica da sombra
como uma digestão pela sombra; isto é, a psique é infundida com o logos
do negro. O negro dissolve todas as outras cores, e, como Hillman
(1997) apontou, “ao ausentar a cor, o preto impede que os fenômenos
apresentem suas virtudes” (p. 80. A leveza do espírito, o ar do intelecto,
a leveza do riso, tudo isso se torna negro, de modo que o espírito é
desinflado (a queda de Ícaro), o pensamento é fervorosamente sombrio,
e o único riso é aquele da amarga ironia.

Hillman (1977) descreveu a qualidade desconstrutiva da nigredo,


pegando o que estava fixo e dissolvendo suas propriedades, abrindo
espaço psíquico para um novo paradigma. Para que espaço se abra, é
preciso ver a experiência do nigredo como uma experiência, não como
uma identidade. Os alquimistas imaginavam o movimento essencial rumo
à desindentificação como decapitação, que “permite que a mente
reconheça e, portanto, seja mais livre daquilo que o corpo sente”
(Hillman, 1997, p. 11). Essa operação de separatio cria um
desligamento significativo no trabalho, permitindo relacionar-se com
estados psíquicos como coisas-em-si-mesmas, movendo o opus adiante
até o reflexo prateado do albedo.

Albedo

No seu ensaio de duas partes, Silver and the White Earth (Prata e a
Terra Branca), Hillman (1980a, 1981b) desenvolveu uma alquimia da
função reflexiva, referida como albedo, o prateamento da psique, ou
consciência de anima. Esse é um modo onde “ver, escutar, cuidar se
deslocam dos apegos grosseiros da nigredo”, onde a matéria e os
processos mentais são divididos e o material é denso e difícil, “para
uma nova transparência e ressonância. As coisas brilham e falam. Elas
são imagens, corpos de sutiliza. Elas se dirigem à alma mostrando as
suas almas” (Hillman, 1981b, p. 25).

A exposição de Hillman (1980a) sobre a albedo descreve com precisão


qualitativa as qualidades psíquicas da prata e sua relação com a
imaginação, patologia e os outros constituintes psicofísicos da alquimia.
Hillman comparou esse estágio intermediário entre a nigredo e a rubedo
com o caráter intermediário da realidade psíquica. Ele também
contrastou a dolorosa quietude da nigredo, com a emoção inerente à
albedo. Enquanto a nigredo fala de um passado aparentemente congelado
e emperrado, “a albedo fala sobre “o que está acontecendo”, esse
movimento e aquele: como a psique está se movendo e o que
movimentos o paciente e o analista fazem em resposta” (p. 33).

O movimento do preto ao branco também pode tornar-se aparente nos


momentos em que o senso de maldade inerente e culpa inextricável do
indivíduo, “as entranhas da putrefactio” (Hillman, 1981b, p. 33), se
dissolvem em um estado onde pensar pode ser uma fonte de geração. As
memórias são tomadas com um senso lúdico. A fixidez das ruminações
da nigredo dão lugar à memória como imagem, isto é, fluida, complexa e
rica com uma diversidade de significado.

Os pacientes com traumas infantis severos podem consistentemente


rejeitar as tentativas do terapeuta de branquear sua memória negra.
Tendo sido severamente afetados por tais experiências, eles
frequentemente precisam que a memória continue literal para
justificar suas atuais dificuldades psicológicas. Para encontrar o
lúdico na memória, o reflexo da prata, seria necessário que o
indivíduo começasse a assumir responsabilidade pelos seus fatos
psíquicos. Em tais situações, onde a estagnação é quase sufocante,
Hillman (1981b) ofereceu a seguinte sugestão:
Parece que a melhor maneira de segurar o mais preto do preto –
aquela patologia inerte e irremediável – é novamente com a alma
prateada, aquela qualidade de compreensão apropriada à mais
santa das essências, aquela mente iluminada e compassiva que
pertence à anima branca. Só ela pode destilar do negrume
completo algum fio d’água de possibilidade.

(p. 29)
Bion rotulou os dados sensoriais e proprioceptivos brutos dos elementos
beta da mente (elementos b). Como o paciente gravemente traumatizado
mencionado acima é incapaz de digerir a imagem intolerável (Lopez-
Pedraza, 1977) do trauma psíquico, a sua mente é geralmente
sobrepujada e precisa de um terapeuta pensante e sensível para digerir o
material. Esses elementos b são projetados no terapeuta, que serve como
receptáculo para o material psicológico não digerido. Através de um
devaneio semelhante a um sonho, o terapeuta recebe, processa, e se afina
empaticamente com o material. Bion chamava isso de função alfa. Essa
contenção transmuta o material em um elemento alfa (elementos á) – uma
experiência digerível que pode ser devolvida ao paciente. O paciente
recebe o elemento á mais tolerável, que permite oportunidade de pensar
e sentir a experiência. Bion (1962) oferece o seguinte exemplo:

Se um bebê que está morrendo, pode despertar medos de que está


morrendo na mãe. Uma mãe. Uma mãe bem equilibrada pode
aceitar esses medos e responder terapeuticamente: isto é, dizer de
uma maneira que faça com que o bebê sinta que está recebendo sua
personalidade assustada de volta, mas de uma forma que ela pode
tolerar – os medos são administráveis pela personalidade do bebê.

(p. 310)

Bion referiu-se a esse intercâmbio como continente/conteúdo (♀ ♂). O


continente (♀) é essencialmente o objeto onde o elemento b é projetado,
e o conteúdo (♂) é o material que é projetado no continente (Bion,
1962).

Contudo, o movimento da nigredo à albedo, ou de elemento b a elemento


á, não deve ser confundido com a absolvição da dor psíquica. Em vez
disso, o deslocamento é de um tipo de dor, uma dor caótica, putrefata,
infecciosa, para uma dor do luto. “A sombra... não é lavada para longe,
mas sim construída no corpo da psique e torna-se transparente o bastante
para qualquer um ver” (Hillman, 1981a, p. 34). Tais transições chegam
em gradações, passando, como Hillman (1981a) notou, do preto para o
azul (from blacks to blues), onde o indivíduo encontra o poema na dor,
as canções trêmulas do humor melancólico.

Os dois ensaios de Hillman (1981a, 2006) sobre o azul tiveram como


objetivo diferenciar esse estágio do período de mortificatio do negro. O
medo inominado sem espaço ou tempo, a experiência da morte da alma,
desloca-se no azul para uma depressão com forma e substância, lamento
e tristeza. A partir dessa perspectiva, a depressão indica uma procissão
através do opus e é uma experiência valiosa em si mesma. Hillman
(1981a) argumentou que o azul “é simplesmente a cor da imaginação” (p.
39). Ele destacou as seguintes amplificações:

o humor azul que patrocina os devaneios, o céu azul que chama a


imaginação mítica aos seus confins mais remotos, o azul de Maria
que é a epítome ocidental da anima e sua instigação à fabricação
de imagens, a rosa azul do romance.

(p. 39)

Com esse deslocamento para o azul, a psique se encontra nos blues onde
o devaneio e a imaginação substituem a fixação do ego com um senso
florescente de alma.

Mais importante, a transição de preto para azul e para o branco não


adere a um caminho reto e firme. O material pode prontamente regredir
de volta ao seu estágio enegrecido, “os corvos negros se arrastando
sorrateiramente de volta ao ninho” (Hillman, 1981b, p. 21), ou cair de
volta na brancura de talco da negação, um movimento análogo ao
alquimista jogando o material no fogo e fechando a tampa do forno.
Hillman aconselhou aos clínicos a manter uma consciência prudente
quando aparecer uma brancura, para evitar confundir uma fuga até a
saúde como uma verdadeira albedo. Ele sugeriu que o indivíduo deveria
levar o corpo à experiência ficando perto “dessas formas ocultas dentro
de cada uma das mudanças emocionais manifestas que levaram ao
albedo” (p. 35). As imagens apresentadas são o corpo da albedo. Elas
são a carne da anima, o axis mundi da consciência reflexiva, sempre
indicando o que está acontecendo agora, fornecendo assim um alívio
necessário da iteração aparentemente infindável da experiência passada.

Contudo, esse alívio da albedo pode tornar-se um impedimento. A


intensificação do fogo da análise é necessária para manter o
envolvimento, uma fermentação, que filtra a alma e traz uma nova onda
de intensidade. Sem um aquecimento apropriado do material, pode
ocorrer a vitrificação. Isso foi descrito como uma impenetrabilidade
vítrea, onde “insight coagula em verdade” (Hillman, 1981b, p. 40), e o
material é isolado da multidão de perspectivas presentes na variedade
de metais.

Vitrificação é uma experiência de densidade psicológica, onde “um


cachorro é um cachorro é um cachorro” (Winnicott, 1971, p. 33), e a
realidade psíquica é negada. Hillman (1981b) escreveu que “nada
ocorre até que possamos ver através do fixo como fantasia e coagular a
fantasia em formas e limites” (p. 40). É estabelecido um binário entre o
ego de mente literal e o “problema” “lá fora” na “realidade”. Hillman
citou Maria, a Judia: “se dois não se tornam um, isso é, se o volátil não
combina com o fixo, nada acontece” (como citado em Hillman, 1981b, p.
40). A fixação do literalismo tem que combinar com a volatilidade da
fantasia psíquica, permitindo, como notado por Gaston Bachelard
(1987), na sua descrição do trabalho da imaginação, deformação ou
contorção da experiência sensorial. Quando o trabalho imaginativo da
deformação é mantido separado do material, os problemas banais, a
condição neurótica, os impasses relacionais, tudo permanece fixo “nada
vai ocorrer” (Hillman, 1981b, p. 40).

Prata

Hillman (1980a) descreveu a prata como um metal da lua, branco ou


acinzentado na cor e associado com o estágio da albedo do processo
alquímico – “a lunificação do material” (p. 24), calcinação pela
secagem, lustração ou coagulação. A prata refletora só vem depois de um
extenso trabalho sobre o material. Ele precisa do calor dos processos
mentais, direcionando o intelecto e a paixão sulfúrica para a condição
psíquica. Quando o inverso é verdade, quando o enxofre domina a prata,
a superfície refletora da prata é escurecida pelo fervoroso enxofre,
literalizando desejos em ação ardente.

Então imagine esse metal como um ar branqueado não-tangível, um


corpo branco prateado, etéreo como o orbe da lua cheia flutuando,
suspenso na receptividade azul-escuro, uma mente dura, fria e
brilhante no seu ápice, cujos efeitos são nutrientes, assim como
dessecantes e adstringentes.

(p. 24)

Uma imaginação adstringente corta através da oleosa qualidade


fleumática de uma imagem, liberando seu movimento, soltando sua
mordacidade, produzindo uma experiência psíquica que pode ser
agudamente incisiva, ou duramente mordente, ou cáustica.

A brancura reflexiva da prata é a contraparte feminina para o vermelho


ou dourado ativo. As propriedades reflexivas frias da lua complementam
e contêm o princípio ativo do ouro alquímico. “É a dura mente lunar,
sólida na realização das suas formas imaginativas, que permite que o
ouro seja batido em uma forma específica e ganhe definição” (Hillman,
1980a, p. 26). Sem as qualidades da prata, o ouro formado é um ouro
comum, carecendo da fineza da prata, a estética do insight, verdade sem
beleza. A prata restringe o ouro da atividade solar descontrolada do
herói, “habilitando o ouro a reconhecer que ele e todo o seu poder é
mantido para a atuação das imagens psíquicas” (p. 30).

Na sua revisão do relacionamento entre a prata e o chumbo, Hillman


(1980a) notou “uma brancura com as asas de uma pomba pode emergir
de um estado plúmbeo que parece envolvê-la completamente. O coração
embotado e pesado do chumbo oculta uma pomba de prata” (p. 33). O
chumbo fez sua casa no peso da patologia, a preguiça e torpor da
depressão, as facetas densas e inamovíveis do caráter. A prata que é
oculta no chumbo sugere que dentro das formas mais teimosas e fixas de
sofrimento do indivíduo há uma pomba branca, que, dada a provocação
certa, vai voar para fora da cobertura plúmbea, assinalando uma paz
conciliadora e uma clareza refletora entre o caráter plúmbeo
patologizado e o ego sofredor.

O caráter emperrado e estagnado do chumbo é o ponto onde a prata é


minada. A prata contida dentro do chumbo implica que o insight refletor
e a depressão são intrínsecos um ao outro. Bolsões de alma são
localizados nas áreas onde o chumbo deteve o movimento para frente –
as manias, hesitações, fixações e momentos melancólicos da vida diária.

O polimento necessário da prata vem através da iteratio, a repetição do


conteúdo dentro do rudimento do tratamento. O encobrimento da
capacidade reflexiva do indivíduo, através da vergonha, literalismo,
negação, projeção, é esclarecido pela interpretação, reflexão empática
surgindo da prata da mente dos terapeutas, e a lenta diferenciação da
condição psíquica. Contudo, a prata manchada da reflexão nebulosa
pode servir para um propósito importante, permitindo “a incorporação
correta, que não pode ocorrer até que a alma sucumba totalmente a Luna”
(Hillman, 1980a, p. 40). Aprofundar-se no tipo particular de aluamento
que capturou o indivíduo permite que o tempo da psique banhe-se no seu
próprio reflexo, do qual ele pode voltar à terra com um sentido da
realidade e confiabilidade da imagem.

Veios de prata também podem ser minados através das imagens fugidias
da fantasia. Aqui vemos o relacionamento entre o mercúrio e a prata. O
mercúrio (quicksilver) na prata (silver) permite que esses momentos
passem sem pausa ou reflexão, mascarando a densa poesia do devaneio e
dos sonhos acordados. O mercúrio acelera a prata, mercurializando seu
reflexo, conectando a mineração da prata para mudança rápida e
imprevisível assim como o furto. Momentos reflexivos devem ser
roubados do movimento de fluxo rápido da imagem, a participação
mística da psique virginal. Por sua vez, Benedictus Figulus, um
alquimista do século dezesseis, notou que “Mercúrio pode ser animado
apenas pelo fermento branco da prata” (como citado por Hillman, 1980a,
p. 27). “O Deus e guia da obra inteira” (p. 27) torna-se animado, isto é,
vivo, apenas através do “fermento mental, a animação de pensamento e
reflexão, a intervenção ativa da imaginação” (p. 27).

A prata é o material alquímico pelo qual podemos experimentar a


ressonância e ressoamento (re-sounding) do material de um paciente,
como a nova flexão (fresh twist) e jogo de palavras descritos acima.
Hillman (1980a) descreveu o ouvido prateado (silvered ear) como “a
arte de ouvir musicalmente, deixando a palavra ressoar, como o Segundo
Músico joga com o som prateado da música do Primeiro Músico,
capturando uma inflexão adicional das palavras” (p. 43). O segundo som
implícito no ressoamento é o mundo inferior da palavra. Assim como os
antigos gregos imaginavam que morte incitava uma separação da psique
do corpo, o segundo som de prata marca a liberação da imagem da
referência material ao qual a palavra estava presa. “Esse ouvido presta
atenção na retórica, ritmo, som, respiração e silêncio; na evocação das
essências psíquicas... de modo que tudo dito ou lido importa para a alma
porque possui matéria psíquica” (p. 44).

Do branco para o amarelo

A transição do branco para o amarelo acontece por meio do enxofre. A


substância adesiva do enxofre tira a mente das reflexões ressonantes da
prata e para a relação com o objeto desejado (Hillman, 1991), um
processo análogo à noção de Freud da catéxis (1933/1964). Ela prende a
mente a um objeto através da emoção, e seu fogo é semelhante às paixões
pegajosas da energia libidinal. O enxofre tem um segundo lado. Em
Mysterium Coniunctionis, Jung (1956/1970) descreveu o enxofre como
estando relacionado à vontade consciente e à compulsão inconsciente.
De qualquer forma, ele traz o indivíduo para o mundo, para a ação.

Esse intermediário entre o branco e o vermelho, o amarelamento ou


citrinitas, é uma ação que foi sujeita às muitas mortes e fermentações do
nigredo e aos insights imaginais da albedo, produzindo um calor sempre
crescente sentido no retorno da emotividade, a aurora logo antes do
nascer do sol da rubedo. Enquanto as agitações da ação passional
durante a nigredo ou albedo podem refletir uma postura defensiva contra
a dor do preto ou o frio gelado da prata, o amarelamento da obra marca
um deslocamento necessário da unio mentalis, a união da alma e
espírito, rumo a um encontro com a alma no corpo e no mundo. Jung
notou a qualidade redentora da rubedo iniciada pela citrinitas: “nesse
estado de “brancura” o indivíduo não vive... Para... ganhar vida é
preciso ter “sangue”... a rubedo, o “rubor” da vida... então o opus
magnum está terminada” (como citado por Hillman, 1991, p. 91).

Hillman (1991) usou essa exposição da citrinitas para criticar teóricos e


praticantes psicanalíticos pela sua fixação no reflexo psicológico da
albedo, notando que enquanto permanecerem nesse estágio do trabalho,
os problemas do mundo serão reduzidos, através de medidas
interpretativas, às projeções do paciente. Por outro lado, ele prossegue
dizendo “acreditamos magicamente que a autotransformação escorre (se
multiplica e se projeta) para o mundo” (p. 93).

Embora seu ensaio sobre o amarelamento da obra tenha marcado o


anúncio formal de Hillman do seu afastamento da psicoterapia de prática
privada e assim serve, de certa forma, como um argumento de apoio para
essa significativa transição, sua admoestação contra a subjetivização
inequívoca de toda ansiedade, particularmente as preocupações
declaradas do paciente em relação à destruição incessante do mundo, é
uma crítica profundamente importante da prática terapêutica. Atenção
adicional será dada à volta de Hillman para o mundo no capítulo
seguinte.
Rubedo ou a meta do trabalho

O ensaio de Hillman (1993) sobre o estágio final do opus alquímico, a


rubedo ou pedra filosofal, caracteristicamente procura desliteralizar a
noção de meta como um desenvolvimento linear de um lugar para outro.
Em vez disso, argumenta Hillman, cada operação alquímica, cada
imagem, é em si mesma uma meta, completa por conta própria. Por
exemplo, o telos das ruminações aparentemente intermináveis da
nigredo, o vasculhamento da infância do indivíduo, a busca por causa e
condição, é em última instância um reconhecimento do quinhão recebido
do destino. A meta está bem ali nos fatos básicos da própria vida do
indivíduo, sem precisar de uma mudança na substância, mas sim uma
mudança na mente.

A meta está sempre presente e sempre alusiva. A característica essencial


da meta alquímica não é a sua realização, mas a ideia. Jung tornou isso
claro: “a meta é importante apenas como uma ideia; o essencial é a obra
que leva à meta: essa é a meta de uma vida” (como citado por Hillman,
993, p. 235). A noção de meta é necessária para manter o investimento
do indivíduo na tarefa tremenda de formar uma alma robusta.

O paciente sempre chega com uma meta em mente, uma fantasia de


propósito para a qual ele ou ela veio ao tratamento, e sem a qual não
haveria paciente nem terapeuta. Essa fantasia, junto com a fantasia do
terapeuta de tratamento, é levada pelas várias operações junto com a
prima materia do problema apresentado. Ela é torturada, morta, seca,
umedecida, coagulada e dissolvida, sempre presente no consultório,
penetrada e permeada pela mão mutável de Mercurius. À medida que a
psique muda, o mesmo acontece com a meta.

Hillman (1993) descreveu a meta como:


Frágil, macia, como açúcar, maleável como cera. Essa pedra
derreta facilmente; ela recebe impressões como uma tabula rasa e
então, de modo igualmente fácil, deixa-as partir. Ela pede para ser
afetada, penetrada e, porque é transparente, vista através. Como
suas bordas não são fixas, sua defesa é se render e suas respostas
são sempre indefinidas. Ela se permite ser empurrada por aí sem
alterar sua substância. Como acera, sua condição reage ao clima
dos seus arredores. Com o calor do toque humano, ela toma a
forma das mãos que a seguram, mas ainda assim permanece
autoconsistente... Qualquer momento oferece o novo começo, a
inocência de um quadro negro apagado.

(p. 255)

Com palavras como frágil, macia, calor, derreter, cera, ceder, indefinito,
reagir e receber, temos a impressão de que uma mente bem trabalhada
está longe do herói empedernido idealizado com tanta frequência nas
telas da nação [N.T.: Os EUA]. A psique da rubedo é paradoxalmente
sempre fiel à forma e sempre receptiva a novas formas, já que responde
ao que é apresentado.

Além disso, a psique ruborescida foi despertada para uma compreensão


de que a meta que ela buscou alhures, a atração arquetípica da jornada
do herói, sempre foi ofuscada pelo fato de que a meta já foi e ainda está
ao nosso redor e totalmente revelada. O avermelhamento para a vida
acontece através da atração erótica do mundo – o prazer recebido
através de ceder à beleza da anima mundi. A redenção do mundo ao qual
o alquimista se referiu não é uma transmutação do próprio mundo, mas
antes um despertar dos próprios sentidos para a gloriosa gema brilhando
em cada coisa – “uma exaltação do corpo material do mundo” (Hillman,
1993, p. 265), um despertar estético que atrai o indivíduo para fora do
sono subjetivo rumo ao mundo das coisas.
Capítulo 5

Sensibilidade estética

Os dois ensaios de Hillman, The Anima Mundi: The Return to the Soul
of the World (1982) e The Thought of the Heart (1984) (“A Anima
Mundi: O Retorno da Alma do Mundo” e “O Pensamento do Coração”)
marcaram uma mudança significativa no campo da psicologia
arquetípica. Ele descreveu esse movimento como um deslocamento na
“ideia de profundidade da psicologia da pessoa interior para uma
psicologia das coisas, uma psicologia profunda da extroversão”
(Hillman e Ventura, 1992, p. 53). Enquanto sua ênfase anterior era
claramente a favor de psicologizar e da “reflexão que ocorre em termos
outros do que aqueles apresentados” (Hillman, 1975, p. 135), o trabalho
mais recente de Hillman pediu uma psicologia estética, enfatizando
“aparências como tais, criadas como são, nas formas em que foram
dadas, dados sensoriais, fatos puros, Venus Nudata” (Hillman, 1992, p.
43).[8]

Hillman (1992) situou a psicologia da estética no templo de Afrodite,


declarando: “ela aparece acima de tudo no manifesto, não como
conteúdo (pois permanece disponível apenas para a compreensão), mas
como imagem visível manifesta, a apresentação exibida” (p. 56).
Enquanto críticos como Tacey (1998) chamaram isso de “uma irrupção
desastrosa de contradição declarada” (p. 230), talvez seu movimento
seja uma explicação da psicologia politeísta que Hillman declarou
representar, um deslocamento do foco de uma psicologia do invisível
(Hades) para uma psicologia da apresentação (Afrodite).

Com sua exposição sobre a beleza, Hillman continuou com seu amor
pela imagem, mas trouxe esse amor de uma noção intrapsíquica de anima
para uma noção transpsíquica de anima mundi – uma ideia derivada das
tradições filosóficas platônicas e neoplatônicas. Hillman (1992)
escreveu: ““Receber” (taking in) significa interiorizar o objeto em si
mesmo, na sua imagem, de modo que a sua imaginação seja ativada (em
vez da nossa)” (p. 48), um tipo de devaneio que tenta ver o mundo
através dos olhos de outra criatura. O pintor Franz Marc expressou um
argumento similar: “é uma convenção empobrecida colocar animais nas
paisagens como vistos pelos homens; em vez disso devíamos contemplar
a alma do animal para adivinhar seu modo de visão” (como citado em
Bleakley, 1995, p. 391).

Esse tipo de imaginação precisa de um despertar da natureza animal do


coração, o que Hillman (1992) chamou de coração “despertado para a
vida por um rugido” (p. 64) – uma resposta estética que corta através do
sonho anestesiado do indivíduo contemporâneo e chama sua atenção para
a beleza do particular.

Uma psicoterapia estética apresenta uma forte contraforça às formas de


tratamento mecanizadas e extraídas de manuais - a própria negação da
particularidade e da resposta sensual. Bleakley (1995) ofereceu uma
alternativa para tais sistemas sem sentido, defendendo “uma estética da
informação” (p. 387) similar à atenção altamente focalizada do caçador
rastreando um animal. O psicoterapeuta abre seus sentidos à forma do
paciente, notando uma pegada aqui, um aroma ali, e juntando os dados
sensuais com a intuição, cognição e imaginação. Essas impressões são
então oferecidas de volta ao paciente, fornecendo assim uma
oportunidade para internalizar, ou despertar para sua própria
sensibilidade estética.

O cuidado gerenciado e o desejo de um conserto rápido levaram a uma


série de estilos de tratamento que visam estritamente a função, isso é, o
comportamento. Embora tais tratamentos tenham apresentado sucesso
empiricamente, poderíamos argumentar que tratar função com pouca ou
nenhuma atenção à forma, isso é, à estética do relacionamento
terapêutico e a vida do paciente, resulta em uma colusão com uma
negação de âmbito cultural do humano e do animal. Seguindo o
argumento do zoólogo alemão Adolf Portmann (1986) de que a exibição
de apresentação de uma animal está à serviço da beleza, Bleakley (1995)
notou a mesma necessidade de ser visto e de ver esteticamente como uma
característica primária do animal humano. Além disso, é defensável que
a atrofia do próprio senso estético pode muito bem estar na origem de
muitos transtornos funcionais.

Vários psicólogos arquetípicos, como Berry (1984), Schenk (1989),


Hillman (1992), Bleakley (1995) e Romanyshyn (2002), apontaram para
uma abordagem alternativa que oferece uma reorientação radical,
priorizando a estética, tanto como meio quanto meta (Bleakley, 1995). A
psicoterapia estética coloca “o ato de notar antes do ato de interpretar”
(p. 390), diferenciação da apresentação antes da eliminação da
patologia, e estende a preocupação da psicoterapia da função do sujeito
ao modo como o paciente está respondendo às coisas do mundo, pessoas
e seu próprio ser.

A sensibilidade estética, a resposta do coração à apresentação das


coisas, é um requisito da alma; “a psique é a vida das nossas respostas
estéticas” (Hillman, 1992, p. 39). A alma alimenta-se de beleza.
Contudo, essa noção de beleza não deve ser confundida com a beleza
suave e florida tipicamente associada a esse termo. Antes, como Plotino
declarou ”Nós possuímos beleza quando somos fiéis ao nosso próprio
ser; a feiúra é passar para outra ordem” (como citado em Hillman, 1992,
p. 59). Análoga à avaliação do animal pelo olfato, esse modo de
resposta ao belo mina a cognição fria com uma resposta enraizada na
imediatez e uma lembrança correspondente da cosmologia a que
pertencemos.

A noção grega de Kosmos é uma ideia enraizada na estética: “ela se


refere ao posicionamento correto das múltiplas coisas no mundo, sua
composição ordenada” (Hillman, 1992, p. 44). Uma perspectiva
cosmológica suporta o singular e o único, enquanto a noção do universo
funde coisas em um todo unificado. Quando o particular é perdido no
lugar do general, o indivíduo perde a conexão essencial com a beleza, e
a beleza não é nada menos do que o modo como “os Deuses tocam
nossos sentidos, alcançam o coração, e nos atraem à vida” (p. 45). A
afirmação de Jung (1929/1968), “os deuses se tornaram doenças” (p.
113) mostrou sua veracidade em relação à patologia do indivíduo assim
como à doença da alma do mundo. Quando os Deuses não capturam mais
nossa atenção pela beleza, eles são relegados à expressão pelo sintoma,
demonstrando as maneiras como nos movemos até outra ordem.

Bleakley (1995) escreveu “um olhar animalizante e uma estética


animalizante podem ser educados através da atenção a metáforas de
forma assim como a forma real, embora essas metáforas pareçam ter
maior vitalidade se permanecerem perto do biológico” (p. 390). Ficar
perto do biológico exige uma educação específica – uma educação
experimental baseada em um aguçamento da percepção. Em termos
claros, o desenvolvimento de uma sensibilidade estética exige que o
indivíduo saia e preste atenção, andando com os dois pés até a poética
do local.

As metáforas animais que usamos no vernáculo diário não são


arbitrárias. Elas exibem de uma maneira muito simples o que Hillman
quer dizer com alma do mundo. Cada coisa em uma alma, isso é, uma
expressão de significado, e fala alma através de apresentação. Os
movimentos, sons, cores, formas, texturas, comportamentos do mundo
natural todos dizem uma história, e a habilidade de ouvir essas histórias
é o solo a partir do qual uma sensibilidade estética é formada.

A apreciação da anima mundi dá lugar a uma profunda expansão do


círculo de relações de um indivíduo. Hillman (11992) notou que “a
intimidade ocorre quando vivemos em um mundo de eventos particulares
e concretos, notáveis pelo que [William] James chamava de “eachness”
[particularidade, caráter único] (p. 120). A res extensa de Descartes, um
mundo morto de objetos exploráveis, é revivido para qualquer indivíduo
que viva a partir da noção de que a natureza, como Alfred North
Whitehead (1938/1968) insistia, está viva, constantemente se revelando
pela particularidade da apresentação.
A psicoterapia, na sua aderência aos domínios subjetivo e intersubjetivo,
coloca responsabilidade indevida sobre os ombros do indivíduo e da
família. Hillman (1992) aconselhou psicoterapeutas a diferenciar entre
“a neurose do eu e a neurose do mundo, a psicopatologia do eu e a
psicopatologia do mundo” (p. 93). No centro desse “sonho anestesiado
do subjetivismo” (p. 100) é uma perda de capacidade de resposta
àquelas coisas que estão fora do domínio subjetivo do indivíduo. O
psicoterapeuta tem uma obrigação ética de ajudar a despertar a
sensibilidade animal do paciente e iniciar o retorno do indivíduo ao seu
lugar “na família das coisas” (Oliver, 1993, p. 110).

A pesquisa sociopsicológica investigando a teoria construtivista coletiva


demonstrou que a construção do eu e o modo como indivíduos constroem
a autoestima está em relação direta com as perspectivas e métodos
idiossincrásicos sancionados pela cultura a que eles pertencem
(Kitayama, Matsumoto, Markus, e Norasakkunkit, 1997). Apesar de
evidências sugerindo que importantes atributos do eu são construídos
socialmente, a tendência na psicoterapia é centrar a atenção nos fatores
pessoais relacionados com a etiologia e prognóstico do transtorno
psicológico. Hillman (2006) defendeu que o movimento de voltar-se
para dentro, tão presente na terapia, é na verdade emblemático da mesma
tendência narcisista que a terapia procura tratar. Ele apontou para a
descrição de Freud do narcisismo como uma inversão da libido do
objeto para longe do mundo, rumo ao ego individual, e sugeriu que uma
introversão adicional ignora o fato de que para o indivíduo narcisista o
chamado da beleza, o encanto do sensual (Abram, 1996), tornou-se
reprimido, não mais capaz de atrair o indivíduo para o mundo por meio
da apreciação estética.

Muito da responsabilidade é colocada sobre os pais do indivíduo,


particularmente o espelhamento inadequado da mãe (Kohut, 1971),
deixando o impacto da qualidade em declínio das escolas, professores
sobrecarregados, financiamento reduzido para programas públicos,
comidas altamente calóricas e excessivamente processadas, e arquitetura
opressiva como fatores de contribuição não-examinados. Sem a análise
do inconsciente social, o indivíduo é forçado a desnudar o fardo (N.T.: o
autor faz um jogo de palavras com bare, “desnudar” e bear, “suportar”)
o fardo da patologia socialmente construída, e energia que poderia ser
dirigida para a mudança social é invertida e usada para tornar-se um
indivíduo introvertido mais sensível (Hillman e Ventura, 1992).

Encorajar pacientes a desenvolver melhores habilidades de


enfrentamento reforça a conformidade com um mundo neurótico. Uma
adaptação mais efetiva é um desvio do problema; o sintoma certamente
vai mudar, criando assim outro problema a que o indivíduo deve se
adaptar. Alternativamente, Hillman (1992) defendeu uma expansão da
preocupação etiológica para incluir “o inconsciente reprimido
projetando a partir de um mundo de coisas” (p. 100).

Juan Tubert-Oklander (2006) argumentou que os fenômenos


inconscientes que a psicanálise deseja tornar conscientes não são
simplesmente características idiossincrásicas da mente do indivíduo,
mas antes, como a pesquisa sociopsicológica indicou, “os processos
inter- e transpessoais permeiam o indivíduo, determinando assim sua
experiência e comportamento, e tornando-se o estado mais profundo do
inconsciente” (p. 146). A divisão generalizada entre os assim-chamados
interior e exterior é uma noção antiquada, desacreditada por uma
variedade de campos da neurociência à física e à psicologia do
desenvolvimento. Cada fenômeno intrapsíquico é situado cultural e
historicamente (Cushman, 1996). Além disso, Tubert-Oklander
argumentou que a tendência psicanalítica de focar a atenção
exclusivamente nos elementos intrapsíquicos do material de
apresentação do paciente pode ser um ato de negação efetivamente
obscurecendo as características patogênicas da sociedade e fortalecendo
ainda mais sistemas dominantes de autoridade.

Watkins e Shulman (2008) sugeriram que a sensibilidade psicológica


profunda de escutar e seguir as vicissitudes dinâmicas do sintoma não
devem apenas levar o terapeuta e o paciente à análise da alma individual
e suas feridas, mas também a alma e feridas da comunidade. Elas
oferecem uma tripla orientação: “rumo ao sintoma, rumo aos
compromissos teóricos e ideológicos do ouvinte, e rumo a contextos
sociais e institucionais que o cercam” (p. 54).

As várias escolas da psicanálise são fundamentalmente subversivas na


sua tentativa de descobrir o oculto e o reprimido e atribuindo valor ao
que foi esquecido; contudo, à medida que a análise foi relegada a um
foco estrito no inter e intrasubjetivo, sua potência subversiva diminuiu, e
como Hillman e Ventura (1992) observaram, “as pessoas estão ficando
mais e mais sensíveis, e o mundo está ficando cada vez pior” (p. 3).

Uma sensibilidade estética convida o psicoterapeuta e o paciente a


ficarem lado a lado e a se voltarem para o mundo, desacelerando e
ampliando a esfera de importância além do sistema familiar,
desenvolvimentista e intrapsíquico. Ao dar tempo para notar a resposta
estética do indivíduo a acontecimentos políticos, ambientais e
comunitários, os eventos começam a ganhar um novo significado, e a
alma mais uma vez ganha o seu próprio lugar no mundo das coisas.

Capítulo 6

Reflexões e anulação (“undoing”)

Por todo esse estudo, tentei reunir os ingredientes primários para uma
psicoterapia arquetípica – um método de construção em resposta à
desconstrução de Hillman, uma fantasia hefestiana de coletar pedaços de
método, trançando-os com sonhos, imagens de fantasia, e vinhetas
clínicas em uma tentativa de construir uma representação do estilo
particular assumido pela psicoterapia arquetípica.

O rosto da psicoterapia arquetípica que tomou forma é uma onde a


apresentação fenomenal da imagem psíquica recebe autonomia e
privilégio radical. Como uma psicologia imaginal, a psicoterapia
arquetípica preocupa-se com a preservação da complexidade e múltiplos
significados da imagem, cuidadosa atenção à apresentação da imagem
pela diferenciação das suas características particulares e esclarecimento
do seu contexto, humor e cena, e o uso da linguagem que vivifica a base
poética da mente – descobrindo as imagens ocultas nas palavras,
sentimentos e eventos. As interpretações, quando feitas, são expressas
com um senso da sua própria relatividade – que cada coisa conhecida
traz consigo seu outro lado. A singularidade de significado é suplantada
por uma multidão de relacionamentos analógicos vinculando a imagem e
a vida desperta, uma cascata sempre cambiante de significado. O
desenvolvimento do ego é suplantado pelo cultivo de um ego imaginal –
relativizado pelos muitos centros da psique, uma disposição de morrer
muitas mortes. O teste da realidade é suplantado pelo desenvolvimento
de um sentido de imagem – uma sensibilidade estética hábil na arte da
descrição imaginal, assumindo um estilo mimético à apresentação
específica. Associações pessoais, amplificações, e interpretações são
posicionadas secundárias aos encontros estéticos com a imaginação.

A barreira de informação recebida ao trabalhar como um terapeuta exibe


uma estrutura organizadora. Os teoristas e praticantes são classificados
de acordo com o lugar onde localizam seu princípio organizador. Uma
abordagem arquetípica luta pelo mais amplo campo de inclusão:
comportamentos, pensamentos, defesas, emoções, derivados da
transferência, símbolos – todos são imaginados como imagens,
expressões de uma psique que está sempre localizada em uma fantasia
arquetípica ou outra. Encontrar esse local, através de uma tradição
diferenciada qualitativamente como a mitologia clássica, alquimia ou
astrologia oferece uma ampla faixa de experiência individual com um
valor profundo, excita a imaginação do terapeuta e do paciente, e ajuda o
indivíduo a reconhecer seu lugar como um membro integrado em um
Kosmos de profundidade e significado.

Anulação

Desde o início, esse trabalho estava destinado ao fracasso. A


psicoterapia arquetípica tem um estilo baseado em múltiplos, politeísmo
e na descrição pela negação. Meus esforços para a construção
eventualmente terão de ser desconstruídos. Afirmar que essas páginas
contêm o etilo da psicoterapia arquetípica seria inteiramente falso, uma
codificação de uma tradição que, para ser fiel a si mesma, precisa
manter-se mercurial e policêntrica, com muitos centros.

Essa obra ofereceu uma representação parcial de um centro entre muitos,


um instantâneo de uma imagem sempre cambiante. Minha meta ao
providenciar essa imagem é inspirar mais imaginação, não para decidir a
questão, mas para abri-la, não para concluir, mas sim começar.

[1] Radical: “a. Relativo à uma raiz ou raízes; fundamental para ou


inerente aos processos naturais da vida, vital; esp. Designando o humor
ou umidade anteriormente considerado presente em todos os organismos
vivos como uma condição necessária para sua vitalidade. b. de uma
qualidade, atributo, ou característica; inerente à natureza ou essência de
uma pessoa ou coisa; fundamental” (Radical, 2008).

[2] Pleroma: “um estado ou condição de absoluta plenitude;


originalmente e principalmente a plenitude do ser ou identidade de
Deus” (Pleroma, 2008).

[3] Os termos clareira e horizonte foram usados por fenomenologistas


como Heidegger e Gadamer para descrever a situação do indivíduo em
um contexto cultural. Artefatos culturais como linguagem e as várias
outras práticas sociais formam o que está disponível para a percepção –
a clareira através da qual experimentamos o mundo. A imagem da
clareira na floresta era uma metáfora frequentemente usada por
Heidegger para descrever o desvelamento.

[4] Aqui conclusão pode significar igualmente “uma declaração ou


descrição resumida ou inclusiva” ou “um problema, charada, enigma”
(Conclusion, 2008).

[5] Filêmon era uma figura imaginal que aparecia frequentemente nos
experimentos de imaginação ativa de Jung. O relacionamento entre Jung
e Filêmon é representado de maneira mais direta no recentemente
publicado Livro Vermelho (Jung e Shamdasani, 2009).

[6] Análise: “a separação de uma todo em componentes mais simples”


(Analysis, 2008).

[7] Jung (1912/1967) e Erich Neumann (1954/1995) descreveram a


separação necessária de uma mãe pessoal e arquetípica como a tarefa
heroica de matar o dragão.

[8] Embora o retorno de Hillman para o mundo contenha dentro dele um


uso intenso, mas implícito de conceitos-chave da fenomenologia, uma
revisão das inter-relações entre a psicologia arquetípica vai além do
escopo desse estudo. Indico ao leitor o ensaio de Michael Sipiora
(1999) entitulado “The Anima Mundi and the Fourfold: Hillman and
Heidegger on the “Idea” of the World”.

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