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Casamento e Bem Comum: Da não razoabilidade do same-sex marriage1

Carlos Adriano Ferraz2

“Apoiar formas preciosas de vida é mais uma questão social do que individual.
A monogamia, admitindo-se que ela seja a única forma de casamento
moralmente valiosa, não pode ser praticada por um indivíduo. Ela requer
uma cultura para reconhecê-la e apoiá-la através da atitude do público e
através de suas instituições formais”3

Apresentação do problema4
I
Em um influente paper de 19945, o Professor John Finnis, tendo como
base sua teoria do direito natural, tornada notória especialmente com a

1 O presente texto é uma versão revisada de conferencia proferida na UNICENTRO


(Guarapuava, Paraná) a convite do Professor Evandro Barbosa, ao qual agradeço pela
oportunidade que me foi dada para debater os argumentos aqui desenvolvidos. Também
agradeço aos amigos Elton Somensi e Leandro Cordioli pelas conversas esclarecedoras
sobre John Finnis e sobre o Direito Natural contemporâneo. Agradeço especialmente ao
Leandro pelos valiosos comentários pontuais de todo o texto. Também agradeço à Sílvia
Ferraz e ao John Florindo de Miranda pelos profícuos diálogos jurídico/filosóficos sobre os
problemas e argumentos aqui arrolados.
2 Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
3 Raz, Joseph. A Moralidade da Liberdade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 150.
4 Ao apresentar o problema faço apenas uma incursão em autores clássicos para indicar, de

uma maneira meramente descritiva, como eles trataram da questão. Trata-se, pois, de uma
mera abordagem histórica de jaez introdutório. Meu ponto não é discutir (tampouco julgar)
o comportamento individual. O cerne de meu problema, aqui, é discutir em que consiste o
casamento (instituição social) e qual a razão para que seja mais razoável que ele ocorra
unicamente entre um homem e uma mulher. Na verdade, a questão é exatamente essa: há
relações sobre as quais não cabe ao Estado se envolver, pois elas são exclusivamente
pessoais. Cabe ao Estado interferir em relações cujas implicações vão para muito além do
indivíduo, como o casamento, por exemplo. Nesse sentido, os autores “clássicos” aqui
referidos, no contexto da apresentação do problema, não tocaram, a meu ver, no problema
central, a saber, na definição do que seja o casamento (muito embora eles tenham sugerido
elementos que serão constitutivos da visão tradicional de casamento). Nesse sentido, reforço
que não se trata de julgar relações particulares nas quais vige exclusivamente a emoção, o
sentimento. Trata-se de mostrar que o Estado deve voltar sua atenção (regrar) para
relações cujas implicações se estendem aos demais (no presente) e aos pósteros (no futuro).
Relações restritas exclusivamente aos concernidos não são do interesse do Estado. Sua
preocupação deve estar voltada para o bem comum, uma categoria muito mais abrangente,
que envolve os presentes e os vindouros. Assim, o casamento é, como afirmou Tomás de
Aquino, “um bem humano primário e, considerado filosoficamente, tem um objetivo (fim,
finis) duplo: (i) a procriação e o desenvolvimento das crianças é a forma apropriada ao seu
bem, e (ii) fides, a qual vai além da tradução literal por “fidelidade” e inclui não apenas
exclusividade e permanência, mas também a prontidão e o compromisso positivo de estar
unido com seu cônjuge na mente, no corpo e em uma vida doméstica de mútua assistência”
(FINNIS, John. Direito Natural em Tomás de Aquino. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
editor, 2007, p. 47).
publicação de seu já clássico Natural Law and Natural Rights6 (1980),
sustenta uma vigorosa crítica ao comportamento homossexual. Aliás, a
relevância de tal comportamento no contexto da discussão em ética vem,
como ele mesmo aponta em diversos textos, desde a antiguidade. Hoje há
uma banalização generalizada do debate, tal como ocorre com outras
questões altamente polêmicas, como as questões do aborto e do suicídio
assistido, por exemplo. Tais questões têm sido debatidas sob perspectivas as
mais diversas, as quais, em geral, não se sustentam argumentativamente,
pois se baseiam em pontos de vista particulares relativizados e, dir-se-ia,
subjetivizados (e não em “razões” passíveis de objetividade). Nesse sentido,
tentarei, em geral, me abster de tocar no assunto tal como a mídia mais
abrangente, por exemplo, o vem expondo. Procurarei me basear
especialmente em alguns autores, sobretudo no já referido John Finnis, mas
também em Robert P. George e Maggie Gallagher. Por fim, tomarei como
ponto central do problema a questão do matrimônio 7, uma vez que “what we
have come to call the gay marriage debate is not directly about
homosexuality, but about marriage”. Assim, não se trata da questão
simplória “whom to let marry”, mas “about what marriage is”8 Nesse
sentido, e quanto a esse ponto em específico, tomarei como base
especialmente os trabalhos de Robert P. George e Maggie Gallaghan.
Portanto, como mencionei na nota 4, é imperioso reconhecer que a questão
não é discutir a homossexualidade, mas o casamento (o que seja o casamento
à luz do bem comum, do razoável). O foco no homossexualismo nos afasta do

5 Finnis, John. Law, Morality, and “sexual orientation”. Notre Dame Law Review, Volume
69, Number 5 (1994), 1049-1076. Republicado em: Finnis, John. “Law, Morality, and ‘sex
orientation’ ”. In: Finnis, John. Collected essays: Volume III (“Human Rights & Common
Good”). Oxford: Oxford University Press, 2011.
6 Finnis, John. Natural Law & Natural Rights. Second edition. Oxford: Oxford University

Press, 2011.
7 Usarei os termos “casamento” e “matrimônio” como sinônimos. Dado que não estou

preocupado com seu aspecto religioso, levarei em consideração especificamente seu caráter
institucionalizado. O cerne de minha argumentação será de jaez moral, muito embora a
perspectiva religiosa possa estar em harmonia com a perspectiva moral. De qualquer forma,
mesmo a perspectiva legal e política pode (deve, eu diria) também estar em harmonia com a
perspectiva moral.
8 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense . New York:

Encounter Books, 2012.


real problema9. E é por essa razão, penso, que muito do que se vem
discutindo se perde em posições as mais conflitantes e dispersas. Nesse
sentido, a questão central em todos esses debates é: “Que é o casamento?”
Não apenas isso cabe, ainda, perguntar: “Por que o Estado deve ter um
interesse por ele?” Contudo, infelizmente essas questões permanecem, em
geral, ocultas em toda essa discussão.
Outro ponto digno de nota é o seguinte. Em modelos políticos de
caráter democrático/constitucional, teríamos aquilo que Robert Alexy, em
seu seminal “Teoria dos Direitos Fundamentais” 10, define como
“constitucionalismo discursivo”, o qual faz parte do nível da argumentação.
Mas o ponto que aqui quero extrair da teoria da argumentação jurídica de
Alexy é o seguinte: um enunciado dogmático, estabelecido juridicamente,
não pode ser abandonado sem uma justificativa racionalmente justificada.
Como ele deixa claro em “Teoria da argumentação jurídica”, as boas razões
das novas decisões devem ser suficientes para não apenas justificar a nova
solução, mas para também justificar o abandono da solução tradicional. Isso
reflete o princípio da inércia, engendrado por Chaim Perelman: “quem
propõe uma nova solução, suporta a carga da argumentação” 11. Assim, o
ônus da argumentação caberia, pois, àqueles que pretendem anular a visão
até o momento vigente de casamento, e não àqueles que pretendem justificar
a visão tradicional, a conjugal view. Nesse sentido, com essa observação,
quero apenas demonstrar a altamente questionável falta de apego aos
princípios democráticos vigente na discussão tal como ela está posta,

9 Bem como nos conduz ao risco de nos perdermos em debates infrutíferos, em torno dos
quais vige um emotivismo e um preconceito inaceitáveis. Não cabe, aqui, investigar se a
causa do homossexualismo é natural, cultural, biológica, mera escolha, etc. Essa parece ser
uma questão insolúvel. Cabe, sim, discutir o que seja o casamento.
10 Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2009.

Perelman, Chaïm. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. São Paulo: Martins


11

Fontes, 1996, p. 119-121. O princípio da inércia assere, então, que uma determinada
ação/decisão do passado continuará vigendo no futuro, especialmente por uma questão de
coerência ou, mesmo, de hábito. Nesse sentido, ela não poderá ser abandonada sem que
exista uma razão suficiente para a mudança. Com isso, tal princípio garante que possamos
sempre contar com o habitual, com o normal. Assim, o apelo a certa prática já
existente/estabelecida não demanda justificação ou prova. Somente a mudança tem de ser
justificada. Com efeito, tal princípio seria, segundo Perelman, o fundamento da
estabilidade, da segurança social e jurídica. Afinal, ele nos permite recorrer a precedentes
jurisdicionais, isso no caso de uma nova situação se assemelhar com a situação passada.
especialmente se levarmos em consideração o “debate” nos fóruns públicos,
notoriamente nos midiáticos mais abrangentes. Esse é um ponto. O outro é o
desapego à racionalidade (à razoabilidade), manifesto nas diversas opiniões
baseadas em sentimentos e, eventualmente, preconceitos (resultado, penso,
de focar a discussão, equivocadamente, no homossexualismo, e não no
casamento). Mas essas questões surgirão no desenvolvimento de minha
linha argumentativa, a qual passo a expor em um encadeamento de
argumentos.
II
Com efeito, ainda no tocante à questão da apresentação e
posicionamento do problema, podemos tomar como base alguns trabalhos do
Professor Finnis12, nos quais ele não apenas recoloca a questão no plano da
discussão jusfilosófica, mas também nos oferece um panorama histórico da
questão, remontando a autores clássicos tais quais Sócrates, Platão,
Aristóteles, Caio Musônio Rufu, Santo Tomás de Aquino e Immanuel Kant,
todos por ele referidos em seus artigos sobre o tema. Dessa forma, esse ponto
descreve, à luz de alguns expoentes da filosofia clássica, como alguns
autores se aproximaram da questão. Embora eles não tenham, segundo vejo,
abordado a questão fulcral (que é o casamento?), eles lançaram algumas
ideias que constituirão a concepção tradicional de casamento. Nesse sentido,
parece legítima uma breve descrição acerca do que tais autores dizem a
respeito do tema.
Assim, especialmente no texto Law, Morality, and “sexual
orientation”, Finnis esclarece, a partir de uma rigorosa crítica a Martha
Nussbaum, a perspectiva de autores “clássicos” da antiguidade acerca do
comportamento homossexual. O cerne de sua argumentação reside, nesse
texto, em demonstrar que, embora imersos em uma cultura homoerótica,
tais autores desaprovavam tal comportamento, o qual era compreendido por

12Finnis, John. “Law, Morality, and ‘sex orientation’ ”. In: Finnis, John. Collected essays:
Volume III (“Human Rights & Common Good”). Oxford: Oxford University Press, 2011.
______. “The Good of Marriage and the Morality of Sexual Relations: Some Philosophical
and Historical Observations,” American Journal of Jurisprudence, 42: 97–134, 1997.
eles como para phusin, “contrário à natureza”13. Nesse sentido,
historicamente, a questão do agir homossexual já foi colocada sob os
spotlights da filosofia prática em autores da antiguidade, como nos acima
referidos. Essa questão foi levantada por Finnis especialmente em seu
debate com Nussbaum. Esse debate ocorreu em torno do caso Romer v.
Evans (1996)14. Contra a posição sustentada por Nussbaum, a qual
defendeu a, digamos, “naturalidade” do comportamento homossexual,
especialmente a partir de uma leitura comprovadamente equivocada dos
autores antigos, especialmente de Platão e Aristóteles15, Finnis logra
demonstrar em que sentido alguns autores clássicos manifestaram uma
posição contrária à ideia de que o homossexualismo fosse algo “natural” (e
que devesse, por essa razão, ser institucionalizado mediante o matrimônio).
Embora eles, especialmente Sócrates e Platão, não o concebessem como algo
“perverso”, o que mesmo Finnis reconhece em sua interpretação desses
autores, eles reiteraram a ideia de que tal comportamento seria, nos termos
de Finnis, “shameful”, “immoral”. O fato de Platão, em “As Leis”, comparar a
homossexualidade com o incesto seria, segundo Finnis, indício dessa posição.
Em suma, em Sócrates e em Platão não haveria qualquer exortação à
institucionalização de tal prática (em uma instituição tal qual a do
casamento). O mesmo ocorreria em Aristóteles. Aliás, nesse há uma crítica
ainda mais severa a tal modo de agir, o qual ele considera objetável tanto
individual quanto socialmente. Basta tomarmos três passagens de suas mais
importantes obras em Filosofia prática, duas de Ethica Nicomachea, outra

13 Posteriormente traduzido, para o latim, por contra naturam, opondo-se, pois, à ideia de
kata phusin (“de acordo com a natureza”).
14
Tal caso envolveu um debate em torno de “direitos civis” e “leis estatutárias”. O ponto
central era a emenda constitucional nº 2 à Constituição do Colorado, a qual impedia que o
Estado do Colorado adotasse medidas antidiscriminatórias em favor de gays, lésbicas e
bissexuais. Tal emenda foi considerada, pela Suprema Corte do Colorado, inconstitucional,
pois feriria a ideia de uma equal protection doctrine. Esse seria, aliás, um exemplo,
segundo Finnis, de como o estado pode adotar medidas que sejam contrárias ao bem
comum. Nesse caso, medida contrária ao casamento, que, como a epígrafe inicialmente
citada nesse paper tem o propósito de sugerir, é um bem social, e não meramente
individual. Trata-se de uma instituição social cujo propósito é, também, social (o referido
bem comum).
15 Vou me eximir de entrar nesse debate em específico, pois ele é esclarecido de forma

precisa por Finnis no ensaio citado. Ele recorre, sobretudo, a alguns estudos consagrados e
aos textos dos autores antigos para demonstrar seu ponto.
de Politica. Na primeira (Livro VII), ao tratar dos estados brutos, ele se
refere aos “morbid states resulting from custom, e.g. the habit of plucking
out the hair or gnawing the nails, or even coals or earth, and in addition to
these paederasty”16. Mais adiante (Livro VIII), distinguindo o homem dos
demais animais, ele afirma, também, que “human beings live together not
only for the sake of reproduction but also for the various purposes of life; for
from the start the functions are divided, and pleasure seem to be found in
this kind of friendship; so they help each other by throwing their peculiar
gifts into the common stock”17. Em Politica, ele afirma que “there must be a
union of those who cannot exist without each other; namely, of male and
female, that the race may continue (and this is a union which is formed, not
of choice, but because, in common with other animals and with plants,
mankind have a natural desire to leave behind them an image of
themselves)18”. Essas são considerações valiosas para o que intento defender
mais adiante, uma vez que sugerem não apenas a biologicamente óbvia
diferença de gênero19 (e os respectivos “peculiar gifts” que eles trazem para
dentro do casamento), mas também o papel social do casamento. Ele não é
um mero meio de satisfação pessoal ou, mesmo, reprodução, mas possui
aspectos bem mais abrangentes. E é importante notar que esses foram
autores não tocados pela tradição judaico-cristã. Esse é também um dos
pontos que aqui será defendido, a saber, que o casamento não é uma
instituição religiosa: ele antecede a religião20, sendo apenas incorporado e
legitimado por essa.

16 Barnes, Jonathan (Ed.) The Complete Works of Aristotle. Princeton: Princeton University
Press, 1995, 1148ᵇ1, p. 1814.
17 Barnes, Jonathan (Ed.) The Complete Works of Aristotle. Princeton: Princeton University

Press, 1995, 1162ª1, p. 1836.


18 Barnes, Jonathan (Ed.) The Complete Works of Aristotle. Princeton: Princeton University

Press, 1995, 1252ª1, p. 1986.


19 Entendo, aqui, gênero em seu sentido biológico, denotando, pois, o mesmo que ‘sexo’.

Assim, compreendo gênero como uma categoria taxonômica que unifica formas de vida
relacionadas filogeneticamente, as quais se distinguem das outras (diferenças de
gênero/sexo, por exemplo) em virtude de algumas diferenças inegáveis, como ocorre no
dimorfismo sexual.
20 Pois antes mesmo do Estado havia, como veremos adiante (ver notas 62 e 63, referentes a

John Locke), relações com as características do casamento tradicional. O estado e a religião


apenas perceberam seu valor relativo ao bem comum e o elevaram ao status de instituição
social, de direito. Ele não foi “inventado”. Em algum momento se percebeu sua importância
Com efeito, no medievo, já no âmago da cultura cristã, vemos tal
questão ser abordada, entre outros autores, por Santo Tomás de Aquino, o
qual teve uma forte influência sobre o jusnaturalismo de Finnis21. Esse, em
seu estudo seminal sobre Santo Tomás, Aquinas22, especialmente no
capítulo IV, “Marriage, Sex, Fides and Integrity”, esclarece aquela que seria
a ideia central da perspectiva de Santo Tomás referente ao sexo, a saber,
que ele está diretamente ligado ao casamento, esse considerado como um dos
“bens humanos básicos” 23 para os quais a racionalidade prática (practical
reasonableness) está voltada. Dessa forma, Finnis esclarece que, em Santo
Tomás, a ideia de “sexual morality” envolve “the willingness and
commitment to belong to, and be united in mind and body with, one´s spouse
in the form of societas and friendship which we call marriage”24. E essa
societas tem dois aspectos basilares, segundo Finnis: “the procreation,
nurture, and the education of children, and the full sharing of life in a
home”25. A procriação é o que assegura que ambos formarão um unum
orgânico. Mas cabe esclarecer que tal unidade ocorre ainda que a procriação
não advenha, pois, ainda assim, o “bem do casamento (sua moralidade) foi
assegurado”, uma vez que, independentemente do resultado, tal ato ocorreu
de uma maneira reprodutiva, isto é, ele foi um actus generationis (ato do
tipo gerador, ou seja, um ato aberto à procriação, ainda que essa não

social e sua razoabilidade. A sociedade civil simplesmente passou a protegê-lo mediante a


instituição do direito, a exemplo do que ocorreu com outras instituições, como a propriedade
privada, etc. Desnecessário mencionar que, ao longo da história, tais instituições foram, e
seguem sendo, colocadas em risco, o que, segundo o que defendo, afeta negativamente o bem
comum (e o florescimento humano em particular).
21 Em verdade, o texto que deu início ao direito natural contemporâneo foi um estudo sobre

Santo Tomás de Aquino: Grisez, Germain. “The First Principle of Practical Reason: A
Commentary on the Summa Theologiae, 1-2 Question 94, Article 2”. Natural Law Forum 10
(1965): 168-201. Com efeito, o texto de Grisez foi o ponto de partida da nova teoria do direito
natural, a qual vem sendo desenvolvida por John Finnis, Robert P. George, et al.
22 Finnis, John. Aquinas. Oxford: Oxford University Press, 1998.
23 Ver: Finnis, John. “Marriage: A Basic and exigent Good”. IN: Finnis, John. Collected

Essays – Vol. III (Human Rights & Common Good). Oxford: Oxford University Press, 2011.
24 Finnis, John. Aquinas. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 145. Nesse sentido, fides

não envolve apenas o comando negativo de não nos unirmos a outra pessoa. Há, também, e
isso é talvez o mais importante, o comando positivo de nos unirmos ao cônjuge. Fides é,
assim, uma razão para o agir.
25
Finnis, John. Aquinas. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 146.
ocorra26). Não foi rompida, então, a ligação entre a atividade sexual e o bem
do casamento. Portanto, o problema dos atos sexuais não se reduz a uma
perspectiva de moralidade pessoal, mas envolve, sobretudo, a rede social. Ou
seja, atos contra bonum matrimonii não se limitam ao foro íntimo, mas
afetam toda a rede social.
Na modernidade, já em uma perspectiva pós-cristianismo
secularizada, temos, por exemplo, a posição de Immanuel Kant a esse
respeito. Ele a expressa de forma clara especialmente em sua Rechtslehre27,
ao comparar a pederastia ao estupro e à bestialidade, atribuindo às
primeiras práticas a pena de castração. Mas há algo em comum entre as três
ações: elas são cometidas “contra a própria natureza”28, violam a dignidade
humana, pois instrumentalizam o indivíduo, desconsiderando seu valor
intrínseco29. Aliás, ao tratar do ‘Direito Conjugal’ (§24), ele afirma:

A comunhão sexual (commercium sexuale) é o uso recíproco que um ser


humano faz dos órgãos e faculdades sexuais de um outro (usus membrorum
et facultatum sexualium alterius), podendo ser ou um uso natural (mediante
o qual pode ser gerado um semelhante) ou um uso de uma pessoa do mesmo
sexo ou de animal não pertencente ao gênero humano30

Assim, o homossexualismo se enquadraria nos crimina carnis contra


naturam, os quais causariam dano à “humanidade na nossa própria pessoa”.
Dessa maneira, a “comunhão sexual natural” é, segundo Kant, ou uma
comunhão segundo a mera ligação sexual, ou a comunhão segundo a lei, isto
é, o casamento. Aqui, o “fim da natureza” é “procriar e criar os filhos”, o que
ele esclarece em seguida, ao tratar do ‘Direito dos Progenitores’ (§28),

26 Tal como ocorre em todo o ‘ato matrimonial’ – intercurso sexual entre homem e mulher no
seio do casamento –, pois a maioria desses atos não leva à procriação (em períodos nos quais
a mulher não está fértil, por exemplo). No entanto, eles devem estar sempre abertos à
procriação: devem ser atos do tipo procriador.
27 Primeira parte da obra Die Metaphysik der Sitten (1797).
28 Kant, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2005, 363, p. 257.


29 Segundo vejo, isto é, à luz do que estou defendendo, tal crítica se estende também ao

heterossexualismo, por exemplo, no sexo pré-marital (e em práticas tais quais a


masturbação). Em verdade, de acordo com o que aqui defendo, todo ato sexual não
matrimonial é uma forma de instrumentalização do sujeito, bem como coloca em risco
aquilo que o casamento assegura. São todos atos contra bonum matrimonii.
30 Kant, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2005, 277, p. 120.


afirmando um “direito originário e inato (...) à manutenção pelos pais até
que sejam capazes de se manter a si próprios” 31. Isso significa afirmar “o
direito dos progenitores de orientação e formação do filho”, ou seja, de
“educa-lo tanto pragmaticamente, para que no futuro possa se manter e
orientar por si próprio, como moralmente, porque, caso contrário, a culpa de
sua injúria recairia sobre os progenitores”32.
Não obstante as particularidades dos autores suprarreferidos, há
alguns elementos que deles pretendo retirar, os quais retornarão ao longo de
minha argumentação. Primeiramente, eles comungam de uma tese comum,
a saber: da não razoabilidade (justificabilidade) da institucionalização
(mediante o casamento) das relações entre indivíduos do mesmo sexo 33.

Alguns argumentos eles já os levantaram, ainda que de forma não


sistemática. Primeiramente, o casamento não é uma questão de mera
fruição pessoal. Ele possui um status social. Em verdade, ele é anterior ao
Estado e à sua “legalização” 34. Em suma, ele é um bem humano, bem
comum. Dessa forma, ele possui certos fins, especialmente a procriação e a
criação dos filhos. E isso, como veremos, pressupõe a diferença entre os
gêneros e a presença dos pais biológicos, cada qual trazendo para a criação
dos filhos aspectos específicos de seu gênero. E a proteção das crianças é,
precisamente, um dos aspectos centrais do casamento, considerado como
instituição social.

31 Kant, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


2005, 280, p. 125.
32 Kant, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2005, 281, p. 126.


33 Apesar de suas posições trazerem elementos para que se questione a razoabilidade do

casamento entre sujeitos do mesmo sexo, eles atentam, em suas considerações,


especialmente para o homossexualismo. Esse não é, contudo, o problema central do
presente texto. O que aqui se discutirá não é exatamente o comportamento privado dos
indivíduos, mas a tentativa de institucionalização desse mesmo comportamento (em uma
instituição social, o casamento). Nesse sentido, o ponto central, aqui, é discutir o seguinte: a
não razoabilidade (justificabilidade) do casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Como já
foi mencionado, e por razões que serão aduzidas ao longo do presente texto, não cabe ao
Estado legislar sobre relações nas quais vige unicamente a emoção, o sentimento. Nesse
sentido, as considerações feitas até esse ponto pretendem apenas colocar o problema,
oferecendo um panorama histórico sobre como autores clássicos se aproximaram do tema.
Não obstante, meu problema será caracterizar o que seja o casamento e justificar que o
razoável é que ele seja exclusivamente entre um homem e uma mulher.
34 Ver, por exemplo, nota 20.
Portanto, a questão fundamental, segundo vejo, diz respeito ao
matrimônio. Ela é a base a partir da qual poderemos considerar, de um
ponto de vista ético, a questão da razoabilidade ou não do casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Em suma, quando estamos discutindo a
legitimidade (ou não) do agir homossexual e do casamento entre pessoas do
mesmo sexo, temos, como background, o problema do matrimônio, o qual é,
segundo defenderei, tendo Finnis como suporte, um basic human good.

Do casamento enquanto Bem Comum: Sua legitimidade


moral
Ponto central

Consideração preliminar. Um dos argumentos levantados em favor do same-


sex marriage diz respeito à suposta neutralidade do estado. Alguns modelos,
especialmente os liberais, como do Dworkin, deixam isso claro. Basta vermos
seu Is Democracy Possible here?35 No entanto, tal pressuposição é falaciosa.
Afinal, essa pretensão é ela mesma uma pretensão moral. Ou seja, ela exige
uma neutralidade moral quando ela mesma não é moralmente neutra. Em
outros termos, ela intenta sutilmente anular uma visão a partir de outra
sem justificá-la, apenas demandando uma suposta neutralidade moral. Ora,
como sugeriu Joseph Raz no livro36 citado ao início desse paper, o governo
simplesmente não pode ser moralmente neutro. Ele irá, inevitavelmente,
assumir uma das duas visões (ou a tradicional ou a que permite o same-sex
marriage, ambas mutuamente excludentes): inexiste meio termo aqui!
Mas voltemos à questão central, a qual tem sido simplesmente deixada de
lado no debate: O que é o matrimônio? Se ele consistisse na mera união
afetiva, então estaríamos autorizados a liberar a poligamia também. O que
justifica o caráter perene, exclusivo e monogâmico do matrimônio é o fato de
ele envolver elementos emocionais e, também, biológicos básicos, a saber, a

35 Dworkin, Ronald. Is Democracy Possible here? Princeton: Princeton University Press,


2006.
36 Raz, Joseph. A Moralidade da Liberdade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
procriação e a consequente propagação da vida. E é nesse sentido que o
Estado deve assegurá-lo (o matrimônio). Em resumo, o Estado deve ter um
interesse em manter a visão tradicional de casamento. Afinal, uma mudança
em nossa visão acerca do que seja o casamento afeta todo o nosso sistema de
valores, sendo que suas implicações culturais, sociais e políticas sequer
foram previstas até o momento 37. Ou seja, permitir, legalmente, o casamento
entre indivíduos do mesmo sexo não é uma simples ampliação da ideia de
casamento para a inclusão de novas formas de relacionamento. Trata-se da
anulação da visão até o momento vigente em prol de uma nova instituição, a
qual não mais contribuiria para os propósitos sociais até então vigentes.

Background jusnaturalista: a ideia de bens humanos básicos

Curiosamente, nos anos 1970 e 1980 os defensores da união entre


pessoas do mesmo sexo rejeitavam a ideia mesma de casamento, o qual
seria, segundo eles, uma instituição ultrapassada. Contudo, especialmente a
partir dos anos 1990 esses grupos cresceram, e surgiu, subitamente, um
interesse pelo casamento. Mas não pela visão tradicional. Afinal, a visão
tradicional, que chamaremos, a partir de agora, seguindo o já citado livro 38
de autoria, dentre outros, de Robert P. George, de conjugal view, possui
algumas características centrais que estão ausentes da visão proposta pelos
revisionistas, tais quais permanência, procriação e foco nas crianças. A nova
concepção (revisionist view, ainda segundo os autores referidos) proposta
conflita com essa visão. Afinal, tal perspectiva foca especialmente nos
aspectos emocionais, psicológicos e sexuais (sua satisfação). Assim, aqui
importa, sobretudo, o consentimento entre adultos. Dessa forma, não se
trata, como enfatizei acima, da ampliação da ideia de casamento, mas da
criação de uma nova instituição (e consequente anulação da instituição até o

37 As pesquisas aqui reportadas são tentativas de entrever os resultados dessa mudança a


partir dos dados já disponíveis. E o resultado, como veremos, é preocupante.
38 George, Robert P. What is Marriage? Man and Woman: A defense. New York: Encounter

Books, 2012.
momento vigente). No entanto, segundo pretendo defender39, a visão
conjugal tem um propósito individual e coletivo: assegurar aquilo que John
Finnis denomina de “florescimento humano” (human flourishing). Como nos
diz Finnis logo ao início de Natural Law and Natural Rights (1980),
“existem bens humanos que só podem ser garantidos por meio das
instituições do direito humano e requisitos de razoabilidade prática a que
apenas essas instituições podem satisfazer”40.
Assim, há instituições que devem ser fomentadas e estimuladas pelo
Estado, assim como há práticas que devem ser desestimuladas pelo
Estado41, e isso tendo-se em vista o interesse social que repousa sobre tais
instituições. Em verdade, há algumas ideias de fundo por detrás do discurso
dos que defendem o casamento entre indivíduos do mesmo sexo, como, por
exemplo, um individualismo exacerbado, um emotivismo e a ideia
equivocada de que gênero é algo construído socialmente, e não um fato
biológico (hoje, além de reconhecermos o dimorfismo sexual corporal – o qual
é mais evidente –, há, também, como estudos na endocrinologia têm
demonstrado, o dimorfismo cerebral – diferenças de gênero que residem em
especificidades cerebrais42). Bom, mas sobre o individualismo, a ideia de
liberdade individual, desde seu auge no século XVII, está intimamente
ligada à ideia de responsabilidade comunitária, com a totalidade do corpo
social. Resumidamente, ela nunca esteve ligada à simples ideia de
permissividade egocêntrica43. Para os autores que construíram as bases da

39 Embora o ônus de demonstrar a inaceitabilidade da visão conjugal de casamento esteja, a


meu ver, com aqueles que a criticam, uma vez que seus opositores deveriam “provar” que
uma mudança de paradigma traria benefícios sociais duradouros.
40 Finnis, John. Lei Natural e Direitos Naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007, p.

17.
41 Elas são, conforme John Finnis, bad forms of life (Finnis, John. Law, Morality, and

“sexual orientation”. Notre Dame Law Review, Volume 69, Number 5 (1994), 1049-1076.
42 Leia-se, por exemplo, o seguinte estudo (publicado nos Arquivos Brasileiros de

Endocrinologia & Metabologia, órgão oficial de divulgação científica da Sociedade Brasileira


de Endocrinologia e Metabologia, afiliada à Associação Médica Brasileira): Damiani,
Durval; Damiani, Daniel; Ribeiro, Taísa M. and Setian, Nuvarte. “Sexo cerebral: um
caminho que começa a ser percorrido”. Arq Bras Endocrinol Metab [online]. 2005, vol.49,
n.1, pp. 37-45.
43 Dentre os autores que descrevem a perda do sentido original da ideia de ‘direitos’, veja-se,

por exemplo: Glendon, Mary Ann. Rights Talk. The Impoverishment of Political Discourse.
New York: The Free Press, 1991. Sowell, Thomas. Civil Rights: Rhetoric or Reality? New
York: William Morrow, 1984.
Bill of Rights (1689), da United States Declaration of Independence (1776) e
da Déclaration des droits de l’homme et du citoyen (1789), importavam,
sobretudo, os interesses mais amplos da sociedade. Nesse sentido, pensemos
em um dos aspectos do casamento trazido pelas considerações dos autores
acima, a saber, o das crianças. Ora, uma concepção razoável (justa) de
casamento não pode ser moralmente neutra (e isso vale para todas as
instituições sociais). O Estado é moralmente neutro em relação a outros
tipos de relação social, como a amizade (independentemente do grau de
envolvimento e dos benefícios mútuos), por exemplo. Não cabe ao Estado
interferir sobre esse tipo de relação. Mas quanto ao casamento as coisas são
diferentes. Aqui é necessária uma regulamentação estatal, pois estamos
tratando de um tipo de relação cujas implicações são sociais, interferem
sobre o tecido social. E isso, aliás, é algo que os defensores do casamento
entre indivíduos do mesmo sexo sequer respondem, a saber, o porquê do
interesse do Estado sobre o casamento. Na verdade, eles se eximem de tocar
nessa questão, a qual, aliás, deve ser o ponto de partida. Mas eles se eximem
da questão porque, muito provavelmente, a resposta seja dada pela conjugal
view. Assim, o Estado deve levar em conta, por exemplo, o fato de que uma
criança, como veremos em seguida, precisa de seus pais biológicos. E disso
dependem não somente essas crianças, individualmente consideradas, mas o
bem comum. Assim, além do foco no aspecto meramente afetivo do
casamento, os defensores do casamento entre indivíduos do mesmo sexo
também usam, frequentemente, o seguinte recurso (à casuística, eu diria), o
de que pessoas do mesmo sexo, se casadas, poderiam adotar e amparar
crianças rejeitadas por seus pais biológicos44. Mas esse propósito se desfaz

44Outro argumento defende que o casamento deve ser aberto a todos. Ora, ele é aberto a
todos: “Since marriage is between a male and a female, and all people are either male or
female, marriage is in principle open to all people” (Farrow, Douglas. “Rights and
recognition”. In: Cere, Daniel; Farrow, Douglas (Ed.) Divorcing Marriage. Montreal: McGill-
Queen´s University Press, 2004, p. 99). A asserção de Farrow ecoa a posição já anunciada
por Richard Posner, que, em um texto dos anos 1990, já afirmara que “in this respect there
is already perfect formal equality between homosexuals and heterosexuals” (Posner,
Richard. “Should there be homosexual marriage? And if so, Who should decide?” Michigan
Law Review 95 (1996-1997): 1580. Cabe notar, então, que mesmo os defensores da “visão
tradicional” (conjugal) são favoráveis à igualdade acerca do casamento. A todos deve ser
permitido acesso a ele. A questão fundamental é, primeiramente, defini-lo. A questão é
explicitar o que é o casamento e por que ele importa para o Estado, bem como quais seriam
diante da ideia tradicional de casamento, o qual é constituído por duas
instâncias, a instância biológica (ímpeto para a procriação) e a instância
social, isto é, uma cultura que favoreça a procriação e a criação (nurture).
Portanto, se a dignidade humana residisse em como “eu” me sinto (em
uma perspectiva essencialmente individualista, emotivista), eu então seria a
medida, a fonte da regra, o que levaria à opressão. Logo, temos que
distinguir entre o que é nossa satisfação pessoal (subjetivo) e o que é, para
usarmos a expressão de Kant, nossa dignidade como pessoa (objetivo). Aliás,
essa “dignidade” já está assegurada pelo direito45, de tal forma que essa
tentativa de revogar a concepção tradicional, visão conjugal, de casamento
tem como propósito impor uma perspectiva relativizada e subjetivizada de
casamento, baseada, exclusivamente, em uma emoção, o que está manifesto
na ideia de que “tudo o que importa é o amor”. Certamente ele importa. Mas
em um casamento há muito mais em jogo. Ele não se restringe aos
indivíduos, pois tem implicações sociais no presente e no futuro. Colocado
em outros termos, aqui está em conflito o individual, a busca por uma boa
vida, e o público, a busca pelo bem comum mediante as instituições sociais.
Nesse sentido, mesmo do ponto de vista da neutralidade liberal, o casamento
entre sujeitos do mesmo sexo estaria vedada. O liberalismo político de
Rawls, por exemplo, em uma linha argumentativa bem distinta da de
Finnis, mantém que a família “é parte da estrutura básica, já que uma de
suas funções essenciais é ser a base da produção e reprodução ordenadas da

as consequências de sua redefinição. Essas são questões simplesmente deixadas de lado no


debate atual.
45 Isso é plenamente esclarecido por Helena Lobo da Costa, professora de Direito processual

penal na USP, que, em artigo publicado no Jornal do Advogado (Março/2011), uma


publicação da OAB/SP, argumenta que uma lei contra a “homofobia”, por exemplo, seria
inútil de um ponto de vista jurídico, uma vez que tudo aquilo que poderia ser considerado
crime contra um homossexual já está previsto no Código Penal brasileiro (e, note-se, vale
para todo e qualquer indivíduo). Por exemplo, o artigo 140 de nosso Código Penal já
condena aquele que ofende a dignidade ou o decoro de outra pessoa, praticando, assim,
injúria (a qual pode ser simples ou real, nesse caso envolvendo violência). A autora também
cita o artigo 129, que legisla sobre agressões corporais, bem como outras passagens do
Código Penal que tipificam vários crimes contra indivíduos e sua dignidade.
sociedade e de sua cultura de uma geração para outra” 46. Ou, como fica mais
claro logo adiante:

Uma função central da família é providenciar de maneira razoável e eficaz a


criação e o cuidado dos filhos garantindo seu desenvolvimento moral e sua
educação para a cultura mais ampla. Os cidadãos têm de ter um senso de
justiça e as virtudes políticas que sustentam as instituições políticas e
sociais justas. Além disso, a família tem de desempenhar essa função
gerando filhos em número adequado para a manutenção de uma sociedade
durável47

Nesse contexto Rawls não se compromete com uma perspectiva


específica de família, como ele próprio deixa claro. No entanto, como
pretendo argumentar, apenas a conjugal view dá conta dessa tarefa da
família que ele mesmo descreve. Isso porque, desse ponto de vista, o
casamento vem em benefício das gerações vindouras (e não apenas dos
imediatamente concernidos). Afinal, como ele deixa claro em uma nota de
rodapé do texto citado, ele tem “em mente é que uma sociedade política é um
sistema de cooperação de uma geração para a outra” 48. Trata-se, pois, de
uma preocupação com a sobrevivência sem qualquer pressuposição
metafísica. Isso fica claro se tomarmos também Hart como referência. Como
ele afirma em “O Conceito de Direito” (The Concept of Law, 1961),

Porque não se trata apenas de uma maioria esmagadora de homens desejar


efectivamente viver, mesmo à custa de miséria hedionda, mas de isso
reflectir em todas as estruturas do nosso pensamento e linguagem, em
termos das quais descreveremos o mundo e nos descreveremos uns aos
outros. Não podemos subtrair o desejo geral de viver e deixar intactos
conceitos como perigo e segurança, dano e benefício, necessidade e função,
doença e cura; porque estes são modos de simultaneamente descrever e
apreciar as coisas, por referência à contribuição que dão para a
sobrevivência, a qual é aceite como um objectivo49

Trata-se, pois, de um “fato social acerca da natureza humana”.

46 Rawls, John. Justiça como equidade: Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 230.
47 Rawls, John. Justiça como equidade: Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes,

2003, p. 230/231.
48 Rawls, John. Justiça como equidade: Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes,

2003, p. 237.
49 Hart, Herbert L.A. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007,

p. 208.
Além disso, o impacto da família (do “espírito de família”) sobre a
economia50, por exemplo, parece já ter sido reconhecido por Alexis de
Tocqueville, notadamente quando ele afirma:

O que se chama espírito de família funda-se com frequência numa ilusão de


egoísmo individual. As pessoas procuram se perpetuar e se imortalizar de
certa forma em seus pósteros. Onde termina o espírito de família, o egoísmo
individual entra na realidade de suas inclinações. Como a família passa a se
apresentar ao espírito apenas como uma coisa vaga, indeterminada, incerta,
cada qual se concentra na comodidade do presente; pensa-se no
estabelecimento da geração que virá, e só51

Em outros termos, o casamento é uma alternativa de suprimirmos o


“egoísmo individual” em prol dos “pósteros”.
Mas voltando a Rawls, quando ele menciona o dever familiar de
promover o “desenvolvimento moral” dos filhos, ele tem em mente o
desenvolvimento das duas faculdades morais fundamentais por ele tornadas
notórias (no contexto do liberalismo político), quais sejam, um senso de
justiça e a capacidade de formar uma concepção racional de bem. Ora, a
capacidade de formar uma concepção de bem depende fortemente do
reconhecimento de nossa história pessoal, do reconhecimento de nossos pais
biológicos. Tal vínculo biológico é uma das condições para que possamos
desenvolver nossa “identidade narrativa” 52, nossa concepção racional de
bem. Essa é uma das razões, segundo vejo, pelas quais o Estado deve
fortalecer a ideia de uma visão conjugal acerca do casamento. Na verdade, o
ponto é que, especialmente em sociedades democráticas que estimam valores
liberais, crianças são necessárias. E elas devem ser educadas. Isso conduz à
necessidade de que elas sejam criadas pelos seus pais biológicos, uma vez

50 Como esclarecerei adiante, o casamento envolve, também, elementos econômicos: ele tem
um peso na economia. Nesse sentido, cabe sublinhar que pouco se fala sobre os impactos
econômicos do divórcio, por exemplo. São vários os elementos que dão suporte à
razoabilidade do casamento em sua perspectiva tradicional, da monogamia, etc.
51 Tocqueville, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 59.
52 Ver: Velleman, David. “Family History”. Philosophical Papers, Vol. 34, N. 03 (November

2005), p. 357-378. Ver, também: Velleman, David. “Narrative Explanation”. The


Philosophical Review, Vol. 112, No. 1 (Jan., 2003), p. 1-25. Expressão utilizada por David
Velleman em dois influentes artigos. Embora ele esteja levando em consideração
especialmente a inseminação artificial, seus argumentos valem para a adoção de crianças
por casais do mesmo sexo. Elas perderiam tal identidade, o que criaria um obstáculo à
criação de uma concepção de bem.
que um casamento entre pessoas de sexos diferentes que criam sua prole é
intrinsecamente gerador (procriador) e mais adequado à formação das
crianças geradas nesse contexto. Quanto ao primeiro ponto, não há o que
discutir: é preciso indivíduos de sexos diferentes para que uma nova forma
de vida seja gerada. Agora, quanto à ideia de que os pais biológicos são os
mais adequados para sua criação, muitos estudos dão força a essa tese.
Como veremos no decorrer dessa exposição, pesquisas acuradas53 têm
demonstrado que a estrutura familiar é fundamental na criação de crianças.
Algo, aliás, que, em geral, “sabemos” intuitivamente. Assim, a família
formada pelos pais biológicos (na qual há poucos conflitos) contribui
sobremaneira para a formação das crianças, para o desenvolvimento das
faculdades morais acima referidas. Por isso o problema não está apenas em
uma criança ser criada por indivíduos do mesmo sexo, mas também em
crianças serem criadas apenas pela mãe, ou por familiares distantes, ou por
pessoas que apenas coabitam (e não são seus pais biológicos), e assim por
diante. Crianças criadas nesses contextos têm, na média geral, certos
resultados negativos, como maior necessidade de terapia, maior índice de
doenças sexualmente transmissíveis, maior acesso a programas de
assistência do estado, maior índice de uso de drogas, mais casos de
infidelidade, de depressão, etc. Isso fica claro, por exemplo, em um estudo
recente (2012) – talvez o mais completo e exaustivo feito até o momento –
conduzido pelo The New Family Structure Study (NFSS), mantido pela The
University of Texas at Austin54. Com efeito, esse estudo corrobora o que

53 Cabe deixar claro, não obstante, que as pesquisas que serão arroladas ao longo desse
trabalho não são nem o ponto de partida nem o fundamento do que aqui se está defendendo.
O ponto de partida é o aspecto da razoabilidade da ideia de casamento que aqui se defende.
As pesquisas apenas vêm ao encontro dessa ideia, corroborando-a.
54 Disponível em: http://www.prc.utexas.edu/nfss/index.html. Como podemos ler no site:

“The New Family Structure Study (NFSS) is a comparative project which seeks to
understand how young adults (~ages 18-39) raised by same-sex parents fare on a variety of
social, emotional, and relational outcomes when compared with young adults raised in
homes with their married biological parents, those raised with a step-parent, and those
raised in homes with two adoptive parents. In particular, the NFSS aims to collect new
data in order to evaluate whether biological relatedness and the gender of young adults'
parents are associated with important social, emotional, and relational outcomes.
Moreover, because there have been no large-scale studies of young adults who have spent
time in households with two parents of the same sex, the NFSS seeks to field exactly such a
study. Accordingly, the NFSS would provide scholars with an up-to-date portrait of the
afirmei acima, indicando os índices que comprovam que há, sim, uma
diferença significativa entre crianças criadas por pais biológicos em um
ambiente de pouco conflito e aquelas criadas por pais do mesmo sexo.
Além disso, há outro aspecto, mas sobre esse não me deterei, qual
seja, o da suposta “construção de gênero” 55. Dado ser essa (a diferença entre
gêneros) um fato biológico, sequer vou tecer comentários sobre a ideia de que
o gênero é, de alguma forma, “construído” socialmente. Segundo vejo, essa
seria uma tentativa similar à de nos jogarmos do vigésimo andar de um
edifício e tentarmos, assim, reconstruir a lei da gravidade. Especialmente
em autores da Filosofia da biologia (e isso para nos restringirmos aos
autores no âmbito da Filosofia), encontramos sólidos argumentos que
demonstram a absurdidade dessa ideia. Tomemos, por exemplo, Matt Ridley
e seu livro “Nature via Nurture”56 (2003). Especialmente no capítulo dois ele
deixa claro essas diferenças, e isso a partir de um ponto de vista biológico.
Nas palavras dele, “hoje ninguém nega que homens e mulheres são
diferentes não só na anatomia, mas também no comportamento (...) apesar
das exceções57 – há diferenças mentais e físicas consistentes entre os sexos”
58. E tal dado é importante para o nosso argumento, uma vez que, como já
apontado na citação de Aristóteles, o casal traz, para dentro do casamento,
elementos específicos para a formação das crianças, os quais representam as
diferenças entre os gêneros essenciais à formação mental (cognitiva e moral)
da criança.

association between a variety of different family structure background experiences and the
welfare of young adults”.
55 Ver nota 18.
56 Ridley, Matt. O que nos faz humanos: genes, natureza e experiência . Rio de Janeiro:

Record, 2008.
57 Não vou, aqui, discutir sobre possíveis elementos que talvez venham, segundo o ponto de

vista biológico, a causar o comportamento homossexual, como a influência dos hormônios


sexuais durante o desenvolvimento fetal. Sobre isso, podemos ler o (já referido) interessante
artigo: Damiani, Durval; Damiani, Daniel; Ribeiro, Taísa M. and Setian, Nuvarte. “Sexo
cerebral: um caminho que começa a ser percorrido”. Arq Bras Endocrinol Metab [online].
2005, vol.49, n.1, pp. 37-45. Novamente, enfatizo que não se trata, aqui, de discutir ou
mesmo problematizar o homossexualismo. Meu problema é defender uma visão razoável de
casamento, a qual excluiria o same-sex marriage.
58 Ridley, Matt. O que nos faz humanos: genes, natureza e experiência . Rio de Janeiro:

Record, 2008, p. 73/74.


Talvez por essa razão os defensores do casamento entre pessoas do
mesmo sexo saibam que não poderão, pelo menos não democraticamente,
impor a revisão do casamento. Nesse sentido, ferindo o princípio dos “freios e
contrapesos”, checks and balances, para usarmos a expressão cunhada por
James Madison, a qual reflete a separação dos Poderes proposta por
Montesquieu, o STF tem imposto sua ideologia59 sobre a sociedade civil,
sendo que uma decisão recente exemplifica claramente o que estou
afirmando, a saber, a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 60
segundo a qual todo cartório no território brasileiro deverá celebrar o
casamento entre sujeitos do mesmo sexo61. Ora, tais instituições não são
instâncias representativas62, de tal forma que não lhes caberia deliberar
sobre questões que passariam (deveriam passar), necessariamente, pelo
legislativo (para uma eventual reforma constitucional, se for o caso). Aliás, é
digno de nota que mesmo nos US essas questões têm sido decididas fora do
fórum legislativo, deixando de lado tanto a ideia de democracia majoritária
quanto a ideia de democracia liberal, a qual tem como objeto os ‘direitos
fundamentais’. Ora, casar é um direito fundamental. No entanto, a decisão
de unir-se a alguém do mesmo sexo é um direito acidental, e não
fundamental. Uma crítica sofisticada a esse recurso a supostos “direitos
civis” nós a encontramos em Jeremy Waldron, na obra Law and

59 Aqui temos um exemplo do “ativismo judicial”, nesse caso colocado em prática pelo STF, o
qual recorre eventualmente a ideologias privadas em detrimento do direito existente ou
mesmo de um processo legislativo (democrático). Nesse caso a decisão judicial é muitas
vezes baseada em perspectivas não objetiváveis. Ao invés de valores absolutos, as decisões
são tomadas a partir de opiniões fortemente influenciadas por certas ideologias.
Desnecessário dizer que isso ameaça aquilo que John Finnis denominou de “human
flourishing” (eudaimonia). Ainda sobre o “ativismo judicial”, ver, por exemplo: Teixeira,
Anderson Vichinkeski. “Ativismo judicial: Nos limites entre racionalidade jurídica e decisão
política”. Revista Direito GV, São Paulo 8 (1), Jan-Jun 2012, p. 037-058.

60 Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, aprovada durante a 169ª Sessão Plenária do


Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A Resolução foi publicada na quarta-feira, 15 de
maio/2013, no Diário da Justiça Eletrônico (DJ-e) e entrou em vigor na quinta-feira, 16 de
Maio/2013.
61 Decisão tomada sem que sequer se colocasse a questão: “Que é o casamento?” Na verdade,

a exemplo da discussão tal como essa tem sido espraiada, apenas se respondeu à questão
“quem vamos deixar casar?”
62 O STF não é a última palavra porque é infalível: ele é infalível porque é a última palavra.
Disagreement (1999), na qual ele defende63 que dar aos juízes a palavra
final no que diz respeito ao significado dos direitos constitucionais é
inconsistente com o right of rights, a saber, o direito democrático de as
pessoas comuns participarem de maneira equânime de decisões públicas.
Em suma, dar aos juízes tal poder faz de nós, segundo Waldron, second-class
citizens.
Além disso, outro problema que surge de se permitir que duas pessoas
do mesmo sexo casem envolve, segundo Mary Ann Glendon, um problema de
justiça distributiva, pois esse mesmo direito (e suas implicações) não vale,
por exemplo, para irmãos solteiros que residem juntos, tampouco para um
indivíduo que cuida de um familiar doente. Como nos diz ela:

There is a real problem of distributive justice here. How can one justify
treating same-sex households like married couples when such benefits are
denied to all the people in our society who are caring for elderly or disabled
relatives whom they cannot claim as family members for tax or insurance
purposes? Shouldn't citizens have a chance to vote on whether they want to
give homosexual unions, most of which are childless, the same benefits that
society gives to married couples, most of whom have raised or are raising
children?64

Na passagem acima ela aponta para os três principais problemas que


mencionei acima, quais sejam, o da necessidade de recorrermos a uma
instância de deliberação democrática para decidirmos tais questões, o da
justiça distributiva (afinal, as decisões recentes, como a indicada, ferem o
princípio da publicidade, privilegiando um grupo em específico, sem levar
em conta o bem comum), bem como o problema das crianças. Esse último
problema, sobre o qual discorri acima, também é levantado por Mary Ann
Glendon no artigo citado. Segundo ela, a redefinição do casamento (a
anulação da visão conjugal) estabeleceria “that marriage is mainly an
arrangement for the benefit of adults”. E o ponto central dessa discussão é o
casamento. Assim, a perspectiva revisionista não levaria em consideração o
aspecto mais profundo do casamento, o qual, como já foi dito, precede o

63 Waldron, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 2004. Ver
especialmente capítulo 11, “Participation: The Rights of Rights”.
64 Glendon, Mary Ann. "For Better or for Worse?" The Wall Street Journal (February 25,

2004).
Estado. Esse apenas o legaliza tendo em vista seu interesse em assegurar o
bem comum. Aliás, essa é uma ideia que já encontramos em um texto
clássico do jusnaturalismo moderno, no “Segundo tratado sobre o Governo”
(Second Treatise on Civil Government, 1690), de John Locke, especialmente
no capítulo VII, ‘Da sociedade política ou civil’, onde lemos que “a primeira
sociedade foi entre homem e mulher, que deu origem à de pais e filhos”65
(The first society was between man and wife, which gave beginning to that
between parents and children). Com efeito, em seguida ele caracteriza essa
sociedade da seguinte forma:

Conjugal society is made by a voluntary compact between man and woman;


and tho' it consist chiefly in such a communion and right in one another's
bodies as is necessary to its chief end, procreation; yet it draws with it
mutual support and assistance, and a communion of interests too, as
necessary not only to unite their care and affection, but also necessary to
their common off-spring, who have a right to be nourished, and maintained
by them, till they are able to provide for themselves66.

A isso ele se refere como “sabedoria”:

Wherein one cannot but admire the wisdom of the great Creator, who
having given to man foresight, and an ability to lay up for the future, as well
as to supply the present necessity, hath made it necessary, that society of
man and wife should be more lasting, than of male and female amongst
other creatures; that so their industry might be encouraged, and their
interest better united, to make provision and lay up goods for their common
issue, which uncertain mixture, or easy and frequent solutions of conjugal
society would mightily disturb.

Apesar de seu pressuposto metafísico, o aspecto central das


considerações de Locke estão em harmonia com a visão secular que aqui
estou defendendo. Assim, o casamento não foi criado pelo Estado, nem pela
religião, mas já estava em um Estado anterior à instituição da sociedade
civil. Tal como ocorre com outros direitos naturais, como com a propriedade
privada, por exemplo, ele foi apenas legitimado pelo Estado, que deveria lhe
dar garantia e proteção (assim como ele o deve fazer no tocante aos demais

65 Locke, John. The second treatise of Government. New York: Macmillan Publishing
Company, 1998, p. 44.
66 Locke, John. The second treatise of Government. New York: Macmillan Publishing

Company, 1998, p. 44.


direitos naturais) 67. Em suma, relações sociais como a expressa pelo
casamento (em sua perspectiva tradicional) já ocorriam no “estado de
natureza” lockeano. Dessa forma, o casamento é um bem independente do
Estado, e mesmo da religião. E isso está de acordo com a conjugal view, pois
essa considera que o casamento é valioso em si mesmo. E o que o torna um
bem público, bem comum, é o fato de ele estar diretamente relacionado,
como vimos nos autores citados até o momento, com a prole, com as gerações
seguintes, em suma, com as crianças. Essa é a principal razão pela qual o
Estado deve assegurar a conjugal view. Só ela atende a essa exigência
moral. A revisão da ideia de casamento perde esse propósito. Ela permite,
por exemplo, que mesmo casais de sexo diferentes abandonem seus
respectivos cônjuges (e filhos) para a realização de seus interesses pessoais,
como uma nova paixão, por exemplo. Ora, venho insistindo que o casamento
é, enquanto instituição, uma forma de união cujos principais aspectos não
envolvem apenas preferências pessoais (e mesmo certas particularidades
culturais). Em suma, o casamento, e isso se depreende do que estou
expondo, é uma realidade triádica: pessoal, social e moral. Nele está
justificado o sexo, pois, como é colocado por Robert P. George e Patrick Lee,
“in chaste marital intercourse the couple act in a fully integrated way”. Na
relação matrimonial ambos, homem e mulher, “become one physically and
personally”68. Isso não aconteceria em uma relação que fugisse desse padrão,
como ocorre nas relações homossexuais e na masturbação, por exemplo, em
que não há união nesse sentido, mas nas quais os corpos são “extrinsic
instruments” para “private gratifications”.
Em outro livro, What´s Marriage (2012), Robert P. George, entre
outros, oferece um definição de casamento que vem ao encontro do que
estou, aqui, expondo. Nos termos dos autores,

67 Desnecessário dizer que, assim como ocorreu com a propriedade privada ao longo da
história, também o casamento afastou-se muitas vezes daquilo que ele deveria ser. A
proposta do same-sex marriage exemplifica isso no contexto atual. A permissão do divórcio
seria outro exemplo.
68 George, Robert P.; Lee, Patrick. Body-Self Dualism in Contemporary Ethics and Politics.

Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 197.


Marriage is, of the essence, a comprehensive union: a union of will (by
consent) and body (by sexual union); inherently ordered to procreation and
thus the broad sharing of family life; and calling for permanent and
exclusive commitment, whatever the spouse´s preferences69

Especificando ainda mais os aspectos pessoais, sociais e morais do


casamento, afirmam os autores

Marriages have always been the main and most effective means of rearing
healthy, happy, and well-integrated children. The health and order of
society depend on the rearing of healthy, happy, and well-integrated
children70

O ponto é que a redefinição do casamento afeta negativamente


aspectos centrais da união matrimonial, como, por exemplo, que ela está
orientada para a procriação e para a vida familiar (cuidado com a prole, ou,
como dizem os biólogos e filósofos da biologia, “altruísmo parental”). Assim,
a visão revisionista consolidaria (ilegitimamente, penso) a ideia de que o
casamento é uma mera união afetiva. Mas esse é apenas um dos aspectos do
casamento. Se ele for o único a ser considerado, se perderá as ideias de
permanência e exclusividade sexual que tal instituição demanda. Não
apenas isso, o casamento, dado ser anterior ao Estado, é um pano de fundo,
um horizonte a partir do qual o indivíduo age. Ou seja, não agimos no vácuo,
sempre partimos de certos valores, de algo semelhante ao que Habermas
chamou de Lebenswelt. Há valores que estão simplesmente entrincheirados,
e a partir deles agimos, de tal forma que uma mudança na concepção de
casamento entra em conflito com essa ideia autoevidente que temos acerca
do casamento e dos demais bens humanos básicos71. Ora, com isso volto ao

69 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense. New York:
Encounter Books, 2012, p. 06.
70 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense . New York:

Encounter Books, 2012, p. 07.


71 Em “Lei Natural e Direitos Naturais” (Natural Law and Natural Rights, 1980) John

Finnis estabelece sete bens humanos básicos. Mas eles não se esgotam, não
necessariamente, nesses sete. Por exemplo, em 2008 (Finnis, John. “Marriage: A Basic and
exigent Good”. IN: Finnis, John. Collected Essays – Vol. III [Human Rights & Common
Good]. Oxford: Oxford University Press, 2011) ele coloca o casamento como “um bem
humano distinto e fundamental”, corrigindo (em verdade, ele já havia feito essa “correção”
em Aquinas) uma lacuna que haveria na obra clássica de 1980. Não obstante, o bem
humano 1. Vida concerne ao impulso elementar de autopreservação. Ele envolve não apenas
saúde física, mas também mental (psicológica). Indica também a busca pela
que afirmei inicialmente: o governo/estado não pode (e nunca é) moralmente
neutro.
Além disso, essa visão já entrincheirada é individual e socialmente
mais adequada aos fins do Estado porque, justamente em virtude das
características citadas acima, ela garante maior estabilidade econômica,
dada a exclusividade e a orientação voltada para a vida familiar. Nesse
sentido, uma redefinição do casamento colocaria em risco tal estabilidade
econômica (individual e social). Portanto, o casamento extrapola as
preferências e interesses individuais. Como já indicado, há uma
inquestionável diferença entre homens e mulheres, e essas diferenças são
levadas para o casamento, especialmente para a criação dos filhos (como já
fora sugerido por Aristóteles). Com a redefinição do casamento isso se

autorrealização. O 2. Conhecimento é buscado pela mera curiosidade, pelo “querer saber”.


Aqui Finnis não está pensando no conhecimento simplesmente instrumental. O 3. Jogo é o
3º. Valor constitutivo do bem estar humano, e significa, segundo Finnis, o “engajar-se em
atividades que não têm qualquer propósito, além de seu próprio desempenho, e que são
desfrutadas por si mesmas.” A 4. Experiência estética envolve o impulso para criar algo
belo. A 5. Sociabilidade, por seu turno, envolve o estabelecimento de relações pacíficas entre
os indivíduos, alcançando forma plena na “amizade”. A 6. Razoabilidade prática é a
capacidade de utilizar-se “com eficiência a inteligência (no raciocínio prático que resulta em
ação) nos problemas de escolher as ações, o estilo de vida e de dar forma ao caráter.” A
razoabilidade prática implica na busca por uma ordem nas ações, dando a elas um aspecto
razoável. É razoável, por exemplo, ajudar um estranho (ainda que não o façamos). Por fim,
a 7. Religião envolve (pelo menos desde Cícero, segundo Finnis) o reconhecimento de uma
ordem de coisas que está além do humano. Trata-se, também, de algo razoável. É razoável
perguntar por uma ordem no universo, ainda que cheguemos a uma resposta negativa ou ao
agnosticismo. Com efeito, a partir do reconhecimento do que é razoável chegamos à ideia
mesma de “natureza humana”. Sobre os critérios de razoabilidade prática, os quais são
fundamentais nesse contexto, Finnis elenca nove. 1. Formação de um plano racional de
vida; 2. Não estabelecer preferências arbitrárias entre os bens humanos básicos; 3. Não
estabelecer preferências arbitrárias entre os sujeitos; 4. Conseguir manter um afastamento
dos projetos particulares nos qual se esteja envolvido, para poder avaliá-los de forma
crítica; 5. Fidelidade: não devemos abandonar compromissos de forma leviana, sem
justificativa razoável; 6. Devemos realizar o bem no mundo – seja em nossa vida seja na dos
demais, e isso por meio de ações eficientes (razoáveis); 7. Todas as ações devem respeitar
todos os bens humanos básicos; 8. Devemos fomentar tanto o bem individual quanto o bem
comum, o bem comunitário; 9. Devemos obedecer aos ditames de nossa consciência. Com
efeito, o “produto” desses requisitos, dessas demandas de racionalidade prática, é a
moralidade. Assim, Finnis logra correlacionar o conceito de direito (exercício da força
normativa) com o de justiça (critério de moralidade, de validade/justificação). A ideia
mesma de direito natural demanda a existência do direito positivo (que não a simplesmente
reflete: não há “identidade” entre direito natural e direito positivo. O direito positivo pode
instanciar de diferentes maneiras o direito natural, dependendo de aspectos sociais,
históricos, etc.). Afinal, o direito natural é uma ideia embaçada. Dessa maneira, o direito
positivo deve ser guiado pela ideia de moralidade com vistas ao bem individual e comum
(florescimento humano).
perderá, o que terá um impacto na formação das crianças, o qual será
sentido na medida em que isso afetará seu pleno desenvolvimento emocional
rumo a uma “vida feliz”. Na verdade, a redefinição do casamento o tornará
semelhante a uma mera amizade, diferindo dessa pelo grau do sentimento
envolvido. Assim, embora o casamento deva envolver amizade, ele não se
reduz a ela: o que torna um indivíduo um bom amigo não é o que o torna um
bom cônjuge. Novamente, insisto que é por essa razão que o Estado não deve
ter interesse em regulamentar a amizade (como não deveria ter interesse em
legitimar as uniões entre indivíduos do mesmo sexo). Se imparcial e voltado
especialmente para os interesses sociais, ele, o Estado, deverá regular o
casamento tradicional (conjugal view), pois ele difere da mera amizade. Essa
não precisa, como já afirmei, ser regulada pelo Estado. Eu não preciso, por
exemplo, de uma autorização do Estado para começar ou terminar uma
amizade. Por que? Ora, porque “ordinary friendships simply do not affect
the common good in structured way that could justify legal regulation”72.
Isso não ocorre com o casamento. Aliás, toda cultura parece ter regras para o
casamento. Mas por que isso ocorre? Ora, segundo os autores de What´s
Marriage, isso se dá porque

Societies rely on families built on strong marriages to produce what they


need but cannot secure: healthy, upright children who become conscientious
citizens. As they mature, children benefit from the love and care of both
mother and father, and from their parent´s committed and exclusive love for
each other73

Portanto, a revisionist view tornaria desnecessária a influência do


Estado, pois o casamento se assemelharia à amizade, cujo elo entre os
indivíduos é meramente emotivo. Em resumo, só faz sentido o Estado
intervir sobre o casamento no contexto da visão tradicional. E isso aponta
para um dos problemas graves na “nova visão” acerca do casamento, uma
visão, segundo seus defensores, mais “inclusiva”. Ora, qual seria, então, a
diferença entre a relação de dois homens que vivem juntos e pretendem

72 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense. New York:
Encounter Books, 2012, p. 15.
73 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense . New York:

Encounter Books, 2012, p. 16.


casar e dois colegas de quarto? Os defensores da revisão do casamento
provavelmente dirão: trata-se da diferença na intensidade da emoção que os
une. Mas há situações em que as pessoas se unem emotivamente de forma
intensa, como em momentos de tragédia, por exemplo. Assim a ideia de
‘união emotiva forte’ não explica o problema colocado acima. Somente a
visão tradicional o faz. Há, ainda, outro problema ainda mais complexo e
com implicações que mesmo os revisionistas, pelo menos a maioria, não
aceitariam, a saber: se o casamento se justifica pela ligação emotiva, então
liberemos a poligamia também. Afinal, se o que importa é o elo emocional,
está justificado o casamento entre três, quatro ou mais pessoas. Por que
restringir a duas apenas? Isso não seria, também, discriminação? Não
estaríamos discriminando pequenos grupos dos benefícios do casamento?
Aliás, podemos ir ainda mais longe. Se o vínculo que justifica o casamento
for essencialmente emotivo, afetivo, então não haveria problema em
permitirmos que a mulher solteira se case com um de seus gatos74. E esse é
o problema de justiça distributiva levantado por Mary Ann Glendon no
artigo já citado75. Em suma, o “argumento” em prol do casamento entre
indivíduos do mesmo sexo permite, consequentemente, tanto a poligamia
quanto o “casamento” sem intercurso sexual (entre pessoas que
simplesmente coabitam, como irmãos, por exemplo). Isso porque teríamos,
nessas relações, vida doméstica comum e fortes laços afetivos (os elementos
básicos de um casamento para os defensores do same-sex marriage).
Assim, como já mencionado, “for two individuals to unite organically,
their bodies must coordinate toward a common biological end of the hole
that they form together”76. Ou seja, o casamento passa, em um primeiro

74 Não apenas isso. Se o que importa é o sentimento, por que não permitir o human-animal
marriage??? Pelo menos desde 1998 já surgiram tentativas nesse sentido
(http://en.wikipedia.org/wiki/Human%E2%80%93animal_marriage). Vejam: se o que
importa é o sentimento (sua intensidade), como não atender ao pleito daqueles que desejam
casar com seus animais de estimação? Rejeitar essa possibilidade não seria, então, uma
forma de discriminação?
75 Glendon, Mary Ann. "For Better or for Worse?" The Wall Street Journal (February 25,

2004).
76 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense . New York:

Encounter Books, 2012, p. 25.


momento, pelo propósito biológico da reprodução. Diferentemente do que
ocorre em outras atividades, como a digestão, por exemplo, a qual podemos
realizar individualmente, tal não ocorre com a reprodução. Assim, o
biological good da reprodução só ocorre pela união de gêneros diferentes.
Assim, nossos órgãos estão coordenados para um fim biológico (imanente):
sustentar a nossa vida biológica. É isso que se quer dizer quando se fala em
uma união entre mente e corpo: a mente representa o aspecto afetivo,
emotivo, a fides, e o corpo representa o biological good. Logo, para que dois
indivíduos unam-se organicamente, e sejam “uma só carne”, faz-se
necessário que eles estejam coordenados na direção de um fim comum: a
reprodução. Em “The Clash of Ortodoxies” (p. 77) Robert P. George diz o
seguinte:

Marriage, precisely as such a relationship, is naturally ordered to the good


of procreation (and the nurturing and education of children) as well as to the
good of spousal unity, and these goods are tightly bound together. The
distinctive unity of spouses is possible because human (like other
mammalian) males and females, by mating, unite organically – they became
a single reproductive principle.

Ou, como ele coloca logo em seguida, “reproductive-type acts unite a


male and female as a single organism, viz., make them ‘two-in-one-flesh’.
Assim, a reprodução, embora seja uma função que mantém a unidade, é
realizada por dois indivíduos formando um par. Ou seja, essa é a única
atividade orgânica que demanda a união de dois indivíduos . O propósito
(imanente) de nosso coração, de nossos rins, de nosso pulmão, pernas, etc, é
alcançado individualmente. Tal não ocorre com nossos órgãos sexuais. Aqui
se faz necessária a união “em uma só carne”. Façamos o seguinte
experimento de pensamento sugerido por Germain Grisez. Imaginemos que
a evolução tenha se desenvolvido de forma diferente em nós. Imaginemos
que podemos nos reproduzir individualmente. Mas também imaginemos que
precisamos de outro indivíduo cujos aspectos biológicos são distintos dos
nossos para, digamos, digerir alimentos. Ora, somente quando unidos a esse
outro organismo poderíamos, nós e ele, digerir alimentos. Não formaríamos,
quando da digestão, um único organismo, uma unidade (uma só carne)?
Essa é uma questão biológica pura e simples. Tal união envolve, sim,
sentidos, sentimentos, emoções, razão, vontade, etc. Não se trata da mera
função reprodutiva. Há, aqui, aquilo que John Finnis denomina, a partir de
sua leitura de Santo Tomás de Aquino, de “fides”. Em uma preleção sobre
Santo Tomás de Aquino, no item “Adultério e outros tipos de atos contrários
ao bem do matrimônio” 77, John Finnis diz:

O matrimônio é, afirma Tomás de Aquino, um bem humano primário e,


considerado filosoficamente, tem um objetivo (fim, finis) duplo: (i) a
procriação e o desenvolvimento das crianças é a forma apropriada ao seu
bem, e (ii) fides, a qual vai além da tradução literal por “fidelidade” e inclui
não apenas exclusividade e permanência, mas também a prontidão e o
compromisso positivo de estar unido com seu cônjuge na mente, no corpo e
em uma vida doméstica de mútua assistência.

Segundo Finnis, o casamento é um “bem humano básico”. E esses


“bens” são assim caracterizados por ele78:

Basic human goods are not intelligible in an essentially individualistic way.


They are understood as aspects of human well-being that are good not only
for me but for anyone ‘like me’ – a qualifier than turns out to include any
other human person: they are good as realized in the life of a stranger in the
same way, in principle, as in my life.

Mas atentemos, agora, para a dimensão da vida doméstica, o da


criação da prole. E isso não significa que meramente criar uma criança seja
suficiente para que uma relação constitua casamento. Monges que criam
uma criança em um mosteiro não constituem um casamento. Não obstante,
cabe enfatizar que, por outro lado, não ter filhos não significa não estar
casado. Nesse sentido, casais inférteis são legitimamente casados. O que,
digamos, “consuma” o casamento é a união física, o ato sexual (isso, aliás,
está, se quisermos recorrer à casuística, razoável e devidamente expresso
em códigos legais de diversos países). Todavia, devemos ter em mente que a

77 Finnis, John. Direito Natural em Tomás de Aquino. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
editor, 2007, p. 47.
78
Finnis, John. “Marriage: A Basic and exigent Good”. IN: Finnis, John. Collected Essays –
Vol. III (Human Rights & Common Good). Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 318.
procriação amplia o casamento, levando-o a outro nível. E isso por uma
razão simples: ela corporifica a união expressa na ideia de “um só corpo”.
Em outros termos, o casamento está voltado também para esse fim, mesmo
quando por fatores contingentes (e alheios à vontade dos cônjuges) ele não
ocorre. Em suma, o ato sexual consuma o casamento e permite a procriação.
E esse aspecto da procriação está ausente das relações entre indivíduos do
mesmo sexo. Não há, nesse caso, comprometimento com a vida familiar, a
qual é essencialmente procriadora. Mas tracemos mais algumas
considerações sobre casais inférteis. Usemos o exemplo levantado pelos
autores de What´s Marriage?. No casamento há uma cooperação mútua com
vistas à vida familiar (plenamente realizada mediante a procriação). Mas,
lamentavelmente, nem sempre isso ocorre. Isso, contudo, desqualificaria
essa relação como casamento? Não. Por exemplo, um time de futebol
desenvolve suas habilidades com o propósito de vencer um jogo. Mas o
desenvolvimento dessas habilidades é valioso, ainda que eles não vençam o
jogo. Assim a diferença entre um casamento entre indivíduos de sexo
diferente que se reproduzem em relação àqueles que não se reproduzem é de
grau (e não de tipo). Em ambos os casos a união está dirigida para a
procriação. Nas palavras dos autores de What´s Marriage?, sobre os casais
inférteis, a união sexual deve “combine the right behavior with the right
intention; it must be a real bodily union ( coitus) that seals a certain kind of
union of mind and hearts”79. Ou seja, ainda que o casal seja infértil, seus
corpos estão unidos de forma similar a como os órgãos em um único corpo
estão, isto é, voltados para um fim imanente, um fim biológico, a saber, a
reprodução80. Permanece, então, o right behavior e a right intention, dado
que a relação está ordenada para a reprodução. Assim, embora a
infertilidade seja uma perda, uma vez que não permite a corporificação do

79 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense. New York:
Encounter Books, 2012, p. 74.
80 Desnecessário também esclarecer que diagnósticos de infertilidade são, muitas vezes,

revertidos por tratamentos cada vez mais sofisticados, de tal forma que um diagnóstico de
infertilidade nem sempre (não necessariamente) é definitivo (diferentemente das relações
entre sujeitos do mesmo sexo, as quais jamais serão do tipo reprodutivo). Além disso, a
exceção à regra não é o fundamento da lei. O interesse do Estado deve estar voltado para as
relações matrimoniais que produzirão crianças.
casamento, ela não é o único propósito, tampouco o único aspecto, do
casamento. O casamento é um bem em si. Ele não pode ser
instrumentalizado, seja para o fim da procriação, seja para o fim de uma
fruição pessoal. Ambos os aspectos são fundamentais ao casamento. Ele
envolve, como já mencionei, permanência (através do tempo) e exclusividade
(a todo tempo). Ora, somente uma visão tradicional dá conta desses aspectos
essenciais ao casamento, pois eles decorrem da ideia de união plena entre
mente e corpo, entre aspectos subjetivos (emocionais) e sociais, a procriação
e o cuidado da prole com vistas às gerações seguintes. Obviamente, se
ficarmos com o aspecto meramente emotivo não conseguiremos sustentar
aspectos tais quais exclusividade e permanência, os quais são de interesse
estatal (e, portanto, devem fazer parte da concepção matrimonial). Essa é a
razão pela qual as culturas em geral regulam as uniões, as regram. Como
diz John Finnis em Lei Natural e Direitos Naturais81:

Todas as sociedade humanas encaram a procriação de uma nova vida


humana como, em si mesma, uma boa coisa, a menos que existam
circunstâncias especiais. Nenhuma sociedade humana deixa de restringir a
atividade sexual; em todas as sociedades existe alguma forma de proibição
de incesto, algum tipo de oposição à promiscuidade ilimitada e ao estupro,
alguma preferência por estabilidade e permanência nas relações sexuais

Refletindo o que vimos até aqui, dizem os autores de What´s


Marriage?

For these new and highly dependent people, there is no path to physical,
moral, and cultural maturity without a long and delicate process of ongoing
care and supervision – one to which men and women typically bring
different strengths, and for which they are better suited the more closely
related they are to the children82

Ora, aquilo que denominamos “civilização”, ainda segundo os autores,


depende da formação de indivíduos bem constituídos (sendo formação, aqui,
entendida em sentido amplo). Assim, a sociedade depende, para sua

81
Finnis, John. Lei Natural e Direitos Naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007, p.
89.
82 George, Robert P. (et al) What is Marriage? Man and Woman: A defense . New York:

Encounter Books, 2012, p. 38.


manutenção, de casamentos tradicionais. Essa é, aliás, uma ideia
sustentada por Maggie Gallagher em Debating same-sex marriage (2012),
quando ela afirma :

The critical public or ‘civil’ task of marriage is to regulate sexual


relationships between men and women in order to reduce the likelihood that
children (and their mothers, and society) will face the burdens of
fatherlessness, and increase the likelihood that there will be a next
generation that will be raised by their mothers and fathers in one family,
where both parents are committed to each other and to their children83

Daí a necessidade, pois, já observada em outras culturas, de o Estado


regrar o casamento. Do ponto de vista do bem comum, telos do estado justo,
legítimo, é melhor fortalecer o casamento do que remediar os efeitos de sua
dissolução. Alguns dos principais efeitos negativos da dissolução do
casamento (arrolados pelas pesquisas aqui referidas) são 1. Uma má
formação educacional, 2. Uma má saúde, física e mental, 3. Um mau
desenvolvimento familiar e sexual, bem como 4. Um mau comportamento.
Isso é algo mensurado, por exemplo, por um estudo do The Witherspoon
Institute, o qual está localizado em Princeton, New Jersey, e tem como
propósito geral levar o público a uma compreensão abrangente dos
fundamentos morais de sociedades democráticas. Nesse estudo84 (2008) os
efeitos negativos sobre a formação das crianças são mensurados pelos
seguintes critérios: 1. A má-formação educacional é medida pelos índices de
formação em programas de pós-graduação; 2. Os problemas de saúde física e
mental são medidos pelos índices de ansiedade, depressão, uso de drogas e
suicídios; 3. O mau desenvolvimento familiar é medido pelo senso de
identidade, bem como pela conformidade com a idade da puberdade; 4. O
mau comportamento é mensurado pelo índice de agressões, delinquência e
detenção/prisão.

83 Gallagher, Maggie. “The case against Same-Sex Marriage”. In: Gallagher, Maggie;
Corvino, John. Debating Same-Sex Marriage. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 96.
84 Marriage and the Public Good: Ten Principles. Princeton: The Witherspoon Institute,

2008. Disponível para download em: http://winst.org/publications/print/.


Aliás, os dados acima valem não apenas para casamentos entre
pessoas do mesmo sexo, mas também para crianças criadas apenas por um
dos pais, bem como por pais não biológicos. Na média geral, as crianças
criadas por sujeitos que não sejam seus pais biológicos tendem, em média, a
manifestar os problemas acima referidos.
Portanto, o Estado deve tornar o casamento uma instituição estável,
sendo que essa estabilidade só se justifica dentro de um casamento
tradicional. Tal estabilidade é do interesse do Estado; desde, é claro, que ele
esteja em busca do bem comum. Daí a preocupação do Estado com relação ao
casamento. Aliás, cabe mencionar algo pouco referido quando se discute essa
questão: o casamento promove o desenvolvimento econômico. E isso por uma
razão bem simples: Dada a preocupação com o “futuro dos filhos”, os pais
acabam por crescer economicamente e, assim, promovem o avanço
econômico. Sobre isso há um estudo conduzido por Bradford Wilcox85, no
qual é demonstrado que a riqueza da nação depende, em grande medida, da
saúde da família (de famílias bem estruturadas e de pouco conflito). Assim,
por exemplo, o fracasso do casamento tradicional exige uma cada vez mais
invasiva atuação do Estado para decidir questões de paternidade, de guarda
dos filhos, de regulamentação de visitas, etc. Isso amplia ainda mais as
funções do Estado na vida privada, aumentando seus gastos e limitando as
liberdades individuais. Aliás, para que possamos nos aperceber dos custos
do divórcio, cabe citar um estudo coordenado por Benjamin Scafidi. Segundo
tal estudo, os custos, em impostos, do divórcio, são (nos US) de 112 bilhões
ao ano. Como é colocado na apresentação do estudo:

Most of the public debate over marriage focuses on the role of marriage as a
social, moral, or religious institution. But marriage is also an economic
institution, a powerful creator of human and social capital. Increases in
divorce and unwed childbearing have broad economic implications,
including larger expenditures for the federal and state governments. This is
the first-ever report that attempts to measure the taxpayer costs of family
fragmentation for U.S. taxpayers in all fifty states. Among its findings: Even

85 Wilcox, Bradford; Dew, Jeffrey. “Is love a flimsy foundation? Soulmate versus
institutional models of marriage”. Social Science Research 39 (2010) 687-699.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ssresearch.2010.05.006
programs that result in very small decreases in divorce and unwed
childbearing could yield big savings for taxpayers86

Assim, o que estou defendendo é que há uma boa razão para o Estado
se preocupar com o casamento. Ele não é um mero meio de satisfação
pessoal. Ele está ligado ao desenvolvimento da comunidade mesma. Pais e
mães têm, como mencionei, “dons” específicos para oferecer aos seus filhos.
A ausência de um deles resulta em problemas para o desenvolvimento da
criança, o que causa, também, problemas sociais os mais diversos.
Certamente há casamentos com altos níveis de conflito, e isso entre pais
biológicos. No entanto, ainda assim, isso não justifica suprimirmos a ideia
tradicional de casamento, pois isso tornaria regra o que atualmente é
acidental. Aliás, outros dados podem ser trazidos ao debate, apenas para
instanciarmos essas ideias. Por exemplo, meninas criadas sem a presença
paterna tendem, em média geral, a ser mais vulneráveis aos abusos sexuais,
bem como, em geral, engravidam ainda na adolescência. Os meninos criados
sem a presença paterna tendem, também de acordo com a média geral, a
manifestar comportamento agressivo. Há alguns estudos que mostram
exatamente esses dados. Me baseio, aqui, em três: “Does Father Absence
Place Daughters at Special Risk for Early Sexual Activity and Teenage
Pregnancy?”87, coordenado por Bruce Ellis; “Father Absence and Youth
Incarceration “88, de Sara McLanahan; e “Reconcilable Differences: What
Social Sciences Show About Complementarity of Sexes & Parenting”89.
Apesar de pesquisas distintas, há elementos em comum entre elas.
Há, por exemplo, uma tese geral presente nelas, a saber, que o casamento, e
isso unicamente na visão tradicional, é uma união entre marido e mulher, a

86 Scafidi, Benjamin (Org.) “The Taxpayer Costs of Divorce and Unwed Childbearing: First-
Ever Estimates for the Nation and for All Fifty States”. Institute for American Values.
2008. Disponível em: www.americanvalues.org
87 Ellis, Bruce (et al). “Does Father Absence Place Daughters at Special Risk for Early

Sexual Activity and Teenage Pregnancy?” Child Development. Volume 74, Issue 3, pages
801–821, May 2003.
88 McLanahan, Sara S.; Harper, Cynthia C. “Father Absence and Youth Incarceration”.

Journal of Research on Adolescence. 14 (3), 369–397, 2004.


89 Wilcox, Bradford. “Reconcilable Differences: What Social Sciences Show About

Complementarity of Sexes & Parenting”. Touchstone, November 2005. Disponível em:


http://www.freerepublic.com/focus/f-news/1549173/posts
qual constitui um bem comum, bem válido por si mesmo, e que leva ao bem
das crianças, dos cônjuges e do Estado (o qual visa ao bem comum). Afinal,
como vimos, todas as culturas, de alguma forma, têm algum tipo de
instituição que se assemelha à nossa ideia tradicional de casamento. Se
fôssemos assexuados, e nossa prole não precisasse de cuidado, de nurture,
haveria casamento? Certamente não. Assim, há instituições criadas pelo
Estado e instituições reconhecidas e protegidas pelo Estado. Em ambos os
casos tais instituições surgem para dar conta de alguma demanda social.
Como diz Maggie Gallagher, “when a basic institution such as marriage
emerges over and over again in diverse human societies, then it is probably
responding to some basic and universal problem that human societies need
to address”90. As razões, para Gallagher, são simples: 1. “Sex between men
and women makes babie”s; 2. “Society needs babies”; 3. Children ought to
have a father as well as a mother”. Em resumo, sexo leva à procriação, o
que assegura que teremos uma nova geração. E essa nova geração se
beneficiará da presença paterna e materna. E eles estarão tão mais
apegados quanto mais fortes forem os laços genéticos que os une.

90Gallagher, Maggie. “The case against Same-Sex Marriage”. In: Gallagher, Maggie;
Corvino, John. Debating Same-Sex Marriage. Oxford: Oxford University Press, 2012, p.
108.

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