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ENTRE A LIBERDADE E O TRABALHO: QUEM SÃO AS VÍTIMAS DA

NOVA ESCRAVIDÃO?

José Filipe Teixeira Carvalho


Pós-graduando em Ensino de História do Brasil pela FAINTVISA
filipecarvalho_@hotmail.com

RESUMO:

O presente estudo propõem analisar as relações de trabalho degradantes e exaustivas no


setor Sulcro-Alcooleiro da Zona da Mata Sul de Pernambuco, que convencionou-se
chamar escravidão contemporânea. Os conceitos de liberdade e trabalho são analisados
no sentido de compreender a ressignificação que essas novas relações de trabalho
adquiriram com o passar do tempo, levando em consideração as diferentes visões de
liberdade ou de trabalho justo para alguns trabalhadores desse setor. Trata-se, no
entanto, não apenas de uma análise econômica, mas de um estudo sobre a experiência
social daqueles que geralmente são alocados pela história oficial como vencidos, o seu
cotidiano, a sua mentalidade. Nesse sentido, a pesquisa analisa a oralidade dos sujeitos
históricos sob a ótica da história vista de baixo, empreendendo dessa forma, uma
interpretação do jogo de significados decorrente das relações de trabalho no recorte
espacial estudado.

Palavras-chave: escravidão contemporânea, liberdade, trabalho.

Introdução

Debaixo do teto de um alojamento insalubre e fétido o trabalhador Josenildo


Andrade se queixa: “e não é igual o que diseram não, porque disseram que era salário
bem... disseram que era um alojamento adequado, quando chega aqui não tem água pra
tomar banho... aí pronto, é bem diferente os negócio, muito diferente mesmo”1. Sob o
sol escaldante do labor cotidiano o trabalhador Misael desabafa: “então o negócio aqui

1
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro: Marluce Melo, Maria
Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes,
edição de Hiran Cordeiro, 2006.
tá ruim, ele não quer tirar o peso da cana... então agente tá trabalhando como se fosse
um escravo, isso não existe”2!
O parágrafo acima pode parecer um romance, ou até uma cena de novela
enfatizando o estreótipo do trabalhador nordestino, mas infelizmente trata-se do
cotidiano de muitos trabalhadores do setor canavieiro da Mata Sul de Pernambuco.
Superexploração, desrespeito aos direitos humanos e a cidadania, maus tratos e
desumanização do trabalhador. São esses os principais aspectos que estão relacionados
ao que convencionou-se chamar escravidão contemporânea ou nova escravidão.
O uso do termo trabalho escravo, nos dias de hoje, suscita dúvidas para alguns
pesquisadores e para a historiografia brasileira. Nesse sentido, o sociólogo e
coordenador do Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo contemporâneo (GPTEC), da
UFRJ, Ricardo Rezende, explica que: “a categoria vem acrescida, algumas vezes, de
complementação – semi, branca, contemporânea, por dívida ou análoga”(LIMA, 2010,
p. 30).
Entre a Liberdade e o Trabalho é escrito no sentido de buscar uma
compreensão histórica do tempo presente empreendendo a interpretação do fenômeno
histórico-social escravidão contemporânea. O conceito legal dessa relação de trabalho
no Brasil “abrange o trabalho em condições degradantes e exaustivas: aquelas condições
que ferem tanto a dignidade, quanto a liberdade”(PLASSAT, 2008, p. 97).
A narrativa deste artigo é construida sob a égide da história vista de baixo, a
ideia central do trabalho é situar os cortadores de cana do recorte espacial estudado
como agentes históricos, fazer com que suas vozes ecoem tão alto quanto qualquer outra
fonte documental, estabelecer uma congruência entre o que está em baixo e o que está
em cima. Este método permite identificar as diversas visões daquilo que seria um
trabalho justo para as nossas personagens históricas.

A história vista de baixo3 e a escravidão contemporânea na Mata Sul de


Pernambuco

Fazer uma pesquisa, ou escrever um trabalho sobre o tempo presente, implica na


construção de uma história diferente da habitual. Mas que história é essa? E qual é a
habitual? E por que ela é diferente? Calma! Vamos esmiuçar nosso pensamento.
2
Ibid.
3
SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo. IN: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. São Paulo:
UNESP, 1992. p. 39-62.
Primeiro, a ideia é de escrever uma história vivida pelo povo, relatar a vida daqueles
que geralmente tem suas vivências tragadas pelas vicissitudes do tempo. Ou seja, a
experiência social dos vencidos, daqueles que geralmente são descartados pela história
oficial, uma história vista de baixo.
Podemos dizer que essa tendência da escrita da história tomou corpo em 1966,
“quando Edward Thompson publicou um artigo sobre „The History from Below‟ em
The Times Literary Supplement. Daí em diante, o conceito da historia vista de baixo
entrou na linguagem comum dos historiadores” (BURKE, 1992, p. 40-41). Atualmente,
boa parte dos historiadores utiliza ou aceita a história vista de baixo, mas o grande
problema é o seguinte: ela deve ser utilizada como tendência historiográfica ou apenas
como uma ferramenta metodológica? Segundo a afirmação de Jim Sharpe:

como abordagem, a história vista de baixo preenche comprovadamente duas


funções importantes. A primeira é servir como um corretivo à história da elite
[...] a segunda é que, oferecendo está abordagem alternativa, a história vista
de baixo abre a possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão
histórica, de uma fusão da história da experiência do cotidiano das pessoas
com a temática dos tipos mais tradicionais da história [...] qualquer tipo de
história se beneficia de uma abertura no pensamento do historiador que a está
escrevendo4.

A discussão em torno da aplicabilidade da história vista de baixo como


tendência historiográfica ou como ferramenta metodológica, já foi grande. Os
historiadores mais conservadores ou preconceituosos preferiam admiti-la apenas como
ferramenta. Atualmente, esta discussão já está assentada e estabelecida, hoje, a história
social é uma corrente historiográfica amplamente aceita. Nesta pesquisa utilizamos as
duas formas; tanto como tendência historiográfica, no sentido de delinear a escrita do
trabalho; quanto como uma ferramenta metodológica, tendo em vista suplementar outras
fontes. Essa amálgama de técnicas, a utilização de fontes sem preconceito e sua análise
séria, nos proporciona visões da história sob outras dimensões, que até então não eram
tão comuns na história. Em relação ao direcionamento da história vista de baixo o
historiador E. P. Thompson explica:

estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão


do “obsoleto” tear manual, o artesão “utópico” e mesmo o iludido seguidor
de Joanna Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da
posteridade. Seus ofícios e trabalhos podiam estar desaparecendo. Sua
hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrógada. Seus ideais
comunitários podiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais

4
Ibid. p. 53-54.
podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda perturbação
social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria
experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser,
condenados em vida, vítimas acidentais5.

Estamos procurando o cortador de cana superexplorado, o trabalhador rural


alienado de seus direitos trabalhistas, o homem do campo que laborando em função de
outrem espera por dias melhores. É essa a dimensão do estudo que Thompson se refere,
que aqui adaptamos para facilitar o entendimento. Com uma diferença; nós vivemos no
mesmo tempo que essas personagens históricas vivem, porém, não compartilhamos da
mesma realidade social, desse âmbito de exploração e desrespeito aos direitos humanos.
A partir do momento que a pesquisa toma como mote a história vista de baixo,
ou seja, escrever a história da escravidão contemporânea na Mata Sul de Pernambuco do
ponto de vista de suas vítimas, os escravos do açúcar, percebe-se que os cortadores de
cana dessa região também são agentes históricos, dotados de diferentes visões de
liberdade ou de trabalho justo para suas vidas. Essas visões estão relacionadas ao tipo de
trabalho que lhes é imposto em seus novos cativeiros, um trabalho degradante e
exaustivo associado à restrição de sua liberdade.
O conceito de visões de liberdade que é utilizado nesta pesquisa é do
historiador Sidney Chalhoub. Esse conceito foi adaptado para realidade dos cortadores
de cana da Mata Sul de Pernambuco. Para Chalhoub, em seu livro Visões da Liberdade,
os escravos do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX tinham diferentes
visões de liberdade e cativeiro, essas diferentes perspectivas acabaram contribuindo
para o processo que culminou com a abolição6.
A história vista de baixo, do ponto de vista dos trabalhadores rurais que são
escravizados na Mata Sul de Pernambuco, não pode estar dissociada das estruturas de
poder que a cercam. Se por um lado, essa tendência nos ajuda a ter uma visão mais
ampla da história, compreendendo dimensões que até então não apareciam com
frequência nas narrativas; por outro, precisamos compreender os mecanismos que
produzem determinadas situações, que no caso proposto são as práticas análogas as de
trabalho escravo no recorte espacial desta pesquisa. Sobre essa questão Sharpe nos
elucida:

5
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004. p. 13.
6
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
como nossos sentimentos nos recordam, a expressão “história vista de baixo”
implica que a algo acima para ser relacionado. Esta suposição, por sua vez,
presume que a história das “pessoas comuns”, mesmo quando estão
envolvidos aspectos explicitamente políticos de sua experiência passada, não
pode ser dissociada das considerações mais amplas da estrutura social e do
poder social [...] ignorar este ponto, ao se tratar da história vista de baixo ou
de qualquer tipo de história social, é arriscar a emergência de uma intensa
fragmentação da escrita da história7.

Para evitar uma fragmentação da história no decorrer desta pesquisa, é


necessário explicar primeiro o que está em cima e depois o que está em baixo, segundo
a visão historiográfica. Até porque, as estruturas de poder de hoje, apesar de ser herança
de velhas estruturas, funcionam de forma diferente. Esse tipo de análise está
relacionada, segundo Sharpe, em “situar um acontecimento social dentro de seu
contexto cultural pleno, de forma a ele poder ser estudado mais em um nível analítico
que apenas em um nível descritivo” (BURKE, 1992, p. 58). Essa ideia de contexto
cultural pleno pode ser corroborada pelos estudos de Thompson sobre a cultura popular
plebéia nos séculos XVIII e parte do XIX, segundo o autor:

no estudo desses casos, espero que a cultura plebéia tenha se tornado um


conceito mais concreto e utilizável, não mais situado no ambiente dos
“significados, atitudes, valores”, mas localizado dentro de um equilíbrio
particular de relações sociais, um ambiente de trabalho de exploração e
resistência à exploração, de relações de poder mascaradas pelos ritos do
paternalismo e da deferência. Desse modo, assim espero, a “cultura popular”
é situada no lugar material que lhe corresponde8.

Diante da explicação de Thompson sobre o conceito de cultura popular, torna-se


indispensável para está pesquisa escrever a história vista de baixo a partir desse
conceito, pois, ele alerta para o mascaramento social que é produzido pelas ideologias.
Dentro da explicação do autor, se a cultura popular for encarada fora desse contexto, ela
pode servir como justificativa das desigualdades sociais. A história vista de baixo
procura evitar essas desigualdades, construindo a história daqueles que são alocados
como vencidos. Sobre a importância da história vista de baixo, Sharpe afirma:

ela proporciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos
sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham
conhecimento da existência de sua história [...] os propósitos da história são

7
SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo. IN: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. São Paulo:
UNESP, 1992. p. 54.
8
THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das letras, 1998. p. 17.
variados, mas um deles é prover aqueles que a escrevem ou leem de um
sentido de identidade, de um sentido de sua origem. Em um nível mais
amplo, este pode tomar a forma do papel da história, embora fazendo parte da
cultura nacional, na formação de uma identidade nacional. A história vista de
baixo pode desempenhar um papel importante neste processo, recordando-
nos que nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas, primeiros-
ministros, ou generais9.

É nesse sentido que a história desses trabalhadores rurais da Mata Sul de


Pernambuco é analisada neste trabalho, a trajetória de pessoas que vivem em situações
análogas a de escravo em pleno século XXI. A nova escravidão, a partir de agora, será
explicada através de suas vivências, as visões de liberdade ou de trabalho justo dos
escravos do açúcar.

As vítimas da nova escravidão e o trabalho

eu comecei a trabalhar com idade de 7 ano. Então era, meu pai num queria,
mai eu fui escondido dele, e aí quando eu quis parar de trabalhar ele disse
agora você vai porque você foi que foi se oferecê ao senhor de engenho pra
trabalhar, aí eu continuei trabalhando até completar 67 ano 10.

Este depoimento é do trabalhador rural Antônio Severino. A partir dele


podemos fazer o seguinte questionamento: Qual o sentido do trabalho? Segundo Marx,
“o trabalho produz coisas boas para os ricos, mas produz a escassez para o trabalhador”
(MARX, 2006, p. 113). Este conceito está em confluência com as relações de trabalho
do recorte espacial estudado, essa relação é personificada na superexploração e na
privação dos direitos dos trabalhadores. Podemos observar essas práticas a partir dos
seguintes depoimentos:

então o negócio aqui tá ruim, ele não quer tirar o peso da cana... então agente
tá trabalhando como se fosse um escravo, isso não existe [...] meu dinheiro
aqui na cana aqui, as vez dá pra descolar as vez num dá, as vez eu ganho 20
conto, 25, 18, agora também tem dia que não ganho nada, volto pra casa, as
vez né [...] eu sô trabalhadera, sô fichada e nunca tive dereito a nada, nem
atestado, quando agente tá grávida tem atestado, não tive adereito a esse
atestado, abono de famía nunca tive, décimo e féria sempre arecebi uma
besteirinha e depoi num pago mai11

9
SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo. IN: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. São Paulo:
UNESP, 1992. p. 59-60.
10
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro: Marluce Melo, Maria
Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes,
edição de Hiran Cordeiro, 2006.
11
Ibid.
Misael, José Armando e Severina Conceição são as personagens da citação
acima, esses trabalhadores não tem apenas o seu trabalho alienado, mas toda a sua
existência, vivem em função da sobrevivência, presos ao trabalho pela necessidade. O
trabalho para essas pessoas é sinônimo de pobreza, exploração e mortificação do corpo,
consistindo desde o princípio em uma coisa exterior a eles. A alienação do trabalho,
segundo Marx, consiste em:

em primeiro lugar, o trabalho é exterior ao trabalhador, ou seja, não pertence


a sua característica; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si
mesmo, não se sente bem, mas, infeliz, não desenvolve livremente as
energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. Por
conseguinte, o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto no
trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas
imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade,
mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades [...] assim, chega-se à
conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo nas
suas funções animais – comer, beber e procriar, quando muito na habitação,
no adorno, etc. – enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal. O
elemento animal torna-se humano e o humano, animal12.

A forma desumana que é dispensada a esses trabalhadores, o meio em que


vivem, condicionam a sua consciência acerca do trabalho. Essas práticas estão
relacionadas as péssimas condições de alojamento, alimentação precária, falta de
saneamento básico e água potável. Essas péssimas condições acabam provocando
problemas de saúde, neste caso, o atendimento médico é negligenciado ao trabalhador.
Podemos observar essas evidências a partir dos depoimentos de três trabalhadores
rurais:

agente muitas vez dorme sem tomar banho aqui que num tem água, toma
banho ali num riacho que tem ai, capai até de pegar uma doença [...] rapai a
alimentação aqui é mei difícil, a alimentação daqui é mei embasado, porque
aqui até agora essa alimentação que nós temo, a comida é mal coisada ai, tem
que comprar, as vêi agente mermo que fai [...] tem um ai adoeceu, passou
quase dois dia doente, depoi foi que chegou uma caminhonete ai e levo ele,
ninguém sabe pra onde foi esse dotô13.

As duas primeiras descrições são dos trabalhadores Jailson e João da Silva. Em


suas falas, eles deixam entrever o tratamento desumano que lhes é dispensado. O

12
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosoficos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 114-115.
13
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro: Marluce Melo, Maria
Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes,
edição de Hiran Cordeiro, 2006.
trabalhador Jailson ainda afirma: “aqui num tem lenha né, pra cozinhar, tem que saí
cada cá pra cuidar de seu cumê tem que ir atrai de lenha” 14. O terceiro relato é de José
de Souza, nele percebemos o caráter descartável que a nova escravidão atribui aos
trabalhadores, até porque, diferente da antiga escravidão no Brasil, em que um escravo
custava muito caro, “James Tuckey, oficial da Marinha Britânica, relatou que, em 1803,
um negro adulto era vendido por 40 libras no Rio de Janeiro, seria hoje o equivalente a
cerca de 10.000 reais” (GOMES, 2007, p. 219). Atualmente a nova escravidão se vale
de um grande exército de reposição de trabalhadores, devido ao desemprego, a fome e a
miséria.
As práticas análogas a de trabalho escravo analisadas nesta pesquisa, não se
limitam a superexploração do trabalhador e a dissolução de sua dignidade, mas também,
a alienação de sua cidadania, que neste caso refere-se a privação de seus direitos
trabalhistas. Reginaldo Souza, trabalhador rural, vive essa realidade da privação dos
direitos. Um fragmento de sua história é aqui narrado para que possamos encaixá-lo em
nosso quebra-cabeça:

depoi que eu tô aqui, depoi desse 17 ano que eu tô completando aqui, eu fui
pra Ribeirão eu recebi o PIS uma vez, quando foi da outra vez que eu fui
durante esses 17 ano... Cheguei lá na Caixa, o caba da Caixa disse: ói você
num tem PIS mais não, eu digo oxen! E eu num recebi ano passado, por que
eu num tenho? Disse: seu patrão num dipusita dinheiro não. Aí ói, ele nem
dipusita dinheiro pra PIS, nem dipusita dinheiro pra INSS [...] Fai uns 12 ano
que ele num paga nem décimo nem fera, e tinha um administrador aqui que
quando nós dizia; rapai as fera da gente, rapai como é que vai sê, ele dizia é,
eu vou caçar uma fera bem boa pra solta aqui pra pegar vocêsi 15.

As vivências de Reginaldo Souza nos confirmam a privação dos direitos


trabalhistas que alguns trabalhadores rurais da Mata Sul de Pernambuco sofrem. No
discurso da personagem também é perceptível a coerção que é imposta a esses
trabalhadores, as ameaças e intimidações que funcionam como uma espécie de
instrumento mantenedor da ordem, como se esses labutadores e seus patrões vivessem
em um mundo a parte, fora da lei. Essas práticas nos levam a refletir sobre o que é um
trabalho justo para essas pessoas ou quais são suas visões de liberdade?

As visões de liberdade ou de trabalho justo para as vítimas da nova escravidão

14
Ibid.
15
Ibid.
Os conceitos de visões de liberdade e trabalho justo confundem-se quando são
relacionados à escravidão contemporânea. Pois, percebe-se que para os trabalhadores
rurais de nosso recorte espacial, liberdade significa trabalho justo, e este é dotado de
visões peculiares, estas, muitas vezes divergem daquilo que realmente deveria ser um
trabalho justo. É nesse sentido que o trabalhador José Luís nos relata a insatisfação com
o seu trabalho, mas não com o labor em si, mas pela forma como ele é avaliado:

O feitô aqui faz o que quer com o camarada, o que tá acontecendo é que eu
chamei ele pra tirar a média da cana e ele num quer tirar, disse que não tirava
aqui porque a cana aqui tava forte e ali tava mais fraca, eu chamei ele pra
tirar aqui e ainda deixava mai uma braça da valeta pra num tirar, tirar de uma
braça pra cima e ele num aceitô não, aí mandou eu cortar pra amarrar. Aí
quer dizer, no caso ele tá obrigando o camarada a trabalhar a pulso né, desse
jeito ele quer que o cara trabalhe de graça pra empresa. Eu acho que
compretamente errado, é porque se ele tirasse o peso da cana nós ia trabalhar
pelo certo, e ele sem tirar o peso como é que agente sabe que tá trabalhando
pelo certo? Eu tô achando que eu tô trabalhando um tipo quase de graça 16.

O trabalhador José Luís relata a insatisfação e a revolta com a forma como seu
trabalho é avaliado. Para ele, um trabalho justo ou trabalhar pelo certo, seria se a cana
cortada por ele fosse avaliada pelo peso e não pela quantidade. Luís também expressa
com veemência a coerção que os trabalhadores sofrem no campo, quando afirma que o
feitor faz o que quer ou que ele está obrigando o camarada a trabalhar a pulso. Além de
José Luís, outras personagens elencam nossa história, alguns se deslocam de uma região
a outra em busca de melhores condições de trabalho. Vamos analisar essas experiências
em dois depoimentos:

tá fazendo 1 mês que eu trabalho aqui, agora que, agente vem da Paraíba pra
vê se ganha algum dinheiro por qui, mas chega aqui é meio fraco viu, aí num
dá pra gente ficar trabalhando, muitos desanima, outros fica trabalhando
porque é o jeito que tem [...] Quando o empeleitero da gente trouxe agente
disse que a usina é boa, a, vocês ganha muito dinheiro lá, e eu tô vendo que
não tá dando pra mim não, eu vou dar baixa na minha carteira e vou mim
bora17.

Os relatos são dos trabalhadores José de Souza e José Roberto. Eles elencam
uma prática muito comum na escravidão contemporânea, que é o aliciamento de
trabalhadores de uma região para outra. Geralmente esse aliciamento é feito por

16
Ibid.
17
Ibid.
terceiros, estes são conhecidos como gatos, empreiteiros ou contratadores. Eles atraem
os trabalhadores através de promessas utópicas, e como podemos observar a partir dos
depoimentos, os trabalhadores se deparam com uma realidade totalmente diferente.
Outro problema discutido por eles é em relação ao salário:

aqui não existe salário, aqui agente corta uma tonelada de cana a 8 real, se
agente trabalha e o que fazer e se fazer uma ganha 8 real, aqui não tem salário
certo [...] Agente luta, luta, luta pra fazer o salário e não tira o salário da
gente, de jeito e maneira nenhuma, o seguinte é esse [...] Uma tonelada de
cana é 100 feixo de cana, aí dá uma tonelada e nós ganha 8 conto, mas na
balança dele não é pra gente contar 100, agente tem que contar 110 porque 10
fica pra eles18.

Ivete Cavalcante, Ronaldo e Reginaldo Souza. As práticas descritas por eles em


relação ao salário nos remetem a um pensamento de Marx sobre a situação dos
trabalhadores em sua época, o autor assim afirma: “o trabalhador deve apenas ter o que
é necessário para querer viver e deve querer viver unicamente para isso ter” (MARX,
2006, p, 152). As condições materiais desses trabalhadores são as necessárias apenas
para sua sobrevivência. Em contrapartida, percebemos nos discursos dos trabalhadores
certa consciência de sua situação, da alienação de suas vidas. Isso ocorre devido às
denúncias e a divulgação dos crimes de trabalho escravo. Assim como afirma Xavier
Plassat:

com a divulgação do tema, objeto de campanhas públicas, de ações de


prevenção e, a partir de 2003, alvo de um Plano Nacional de Erradicação, a
denúncia do trabalho escravo ganha novos patamares. Muitos trabalhadores
agora sabem que a situação que lhe é imposta, de degradação e até de
aprisionamento, não é nada “normal” ou “cultural”, como alguns ainda
teimam em afirmar: é crime e deve ser denunciada 19.

Em suma, as visões de liberdade ou de trabalho justo estão relacionadas às


condições materiais de vida dos trabalhadores. Analisar a escravidão contemporânea na
Mata Sul sob a ótica deles é inseri-los na história como agentes históricos, não apenas
como meras vítimas, mas, no âmbito de luta por melhores condições de vida. É no
cotidiano desses sujeitos que estão as pistas para interpretarmos os significados
herdados pela escravidão. Esta, que deixou marcas muito profundas não apenas nas

18
Ibid.
19
PLASSAT, Xavier. Trabalho escravo: 25 anos de denúncia e fiscalização. IN: Conflitos no Campo
Brasil 2009. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p. 90.
práticas de trabalho, mas no imaginário de vários trabalhadores que são remanescentes
de um sistema tão cruel e excludente chamado escravidão.

Considerações finais

Ao analisarmos alguns aspectos da relação de trabalho que este artigo


convencionou chamar de escravidão contemporânea, percebemos que existe um grande
leque de possibilidades para a análise do tema que, neste trabalho teve como mote
estabelecer uma discussão teórico-metodológica da história, no sentido de criar
mecanismos de análise e de problematizações sobre o assunto, é percorrendo esse
caminho que esta pesquisa propôs analisar e discutir a relação dos trabalhadores com o
seu trabalho e as visões de liberdade ou de trabalho justo para eles, tendo como foco o
recorte espacial da Mata Sul de Pernambuco.
A discussão teórico-metodológica citada acima teve como campo de batalha a
história vista de baixo e a oralidade dos sujeitos históricos que, teve como referência
para o estudo a obra A Escrita da História de Peter Burke. E é percorrendo,
especificamente, as linhas do artigo A História Vista de Baixo de Jim Sharpe que o
trabalho caminha para tentativa de uma construção histórica mais ampla.
As práticas de trabalho e a mentalidade de alguns trabalhadores remetem
determinadas ideias desse artigo à alguns conceitos de Karl Marx. O sentimento de
exterioridade que alguns trabalhadores do setor canavieiro tem em relação ao seu
trabalho, a desumanização que é promovida pela escravidão contemporânea, abrem
espaço para estabelecermos uma relação entre os conceitos de Marx discutidos nesse
texto e a vivência de algumas de nossas personagens.
Não seria possível realizar este trabalho sem a análise da cultura local, e esta
cultura foi analisada sob a ótica do conceito de cultura popular do historiador E. P.
Thompson. Ele coloca a ideia de cultura como uma prática, uma relação de exploração e
resistência ou, colocar a cultura no lugar material que lhe corresponde. É na oralidade
dos sujeitos históricos que percebemos a força desse conceito para análise histórica, até
porque, é o próprio Thompson que dará início a essa tendência da história vista de
baixo.
Tendo este artigo como direcionamento a história social, então como seria
possível fazê-la sem a visão que os trabalhadores tem de sua própria situação? Não séria
um tanto ilógico? É seguindo essa orientação que o conceito de visões da liberdade do
historiador Sidney Chalhoub é adaptado para a escrita deste artigo, a ele é acrescido a
ideia de trabalho justo. Tendo enfatizado em algumas discussões o seguinte
questionamento: Quais seriam as visões de liberdade ou de trabalho justo para os
trabalhadores que vivem em situações análogas a de escravo no setor canavieiro da
Mata sul de Pernambuco? É nesse sentido que suas vozes ecoam como fonte
documental, o testemunho de uma história vivida em tempo presente.
Este artigo propôs a discussão sobre algumas concepções teórico-metológicas
da história, discutir um tempo presente sob a ótica de alguns conceitos bem
sedimentados da história social, este é o eixo central deste trabalho. Lembrando que
esse texto é apenas uma visão, dentre tantas outras que a história nos possibilita deleitar.

Referências bibliográficas:

BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte
corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo:
Editora Planeta do Brasil, 2007.
LIMA, Vivi Fernandes de. Terra da Vergonha. IN: Revista de História da Biblioteca
Nacional, nº.54, Rio de Janeiro, março de 2010.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosoficos. São Paulo: Martin Claret, 2006.
PLASSAT, Xavier, Nova Geografia do Trabalho Brasileiro: Mudança ou revelação? IN:
Conflitos no Campo 2008. São Paulo: CPT, 2009.
________. Trabalho escravo: 25 anos de denúncia e fiscalização. IN: Conflitos no
Campo Brasil 2009. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
__________. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004.

Recursos audiovisuais:
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro:
Marluce Melo, Maria Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de
Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes, edição de Hiran Cordeiro, 2007.

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