Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
NOVA ESCRAVIDÃO?
RESUMO:
Introdução
1
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro: Marluce Melo, Maria
Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes,
edição de Hiran Cordeiro, 2006.
tá ruim, ele não quer tirar o peso da cana... então agente tá trabalhando como se fosse
um escravo, isso não existe”2!
O parágrafo acima pode parecer um romance, ou até uma cena de novela
enfatizando o estreótipo do trabalhador nordestino, mas infelizmente trata-se do
cotidiano de muitos trabalhadores do setor canavieiro da Mata Sul de Pernambuco.
Superexploração, desrespeito aos direitos humanos e a cidadania, maus tratos e
desumanização do trabalhador. São esses os principais aspectos que estão relacionados
ao que convencionou-se chamar escravidão contemporânea ou nova escravidão.
O uso do termo trabalho escravo, nos dias de hoje, suscita dúvidas para alguns
pesquisadores e para a historiografia brasileira. Nesse sentido, o sociólogo e
coordenador do Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo contemporâneo (GPTEC), da
UFRJ, Ricardo Rezende, explica que: “a categoria vem acrescida, algumas vezes, de
complementação – semi, branca, contemporânea, por dívida ou análoga”(LIMA, 2010,
p. 30).
Entre a Liberdade e o Trabalho é escrito no sentido de buscar uma
compreensão histórica do tempo presente empreendendo a interpretação do fenômeno
histórico-social escravidão contemporânea. O conceito legal dessa relação de trabalho
no Brasil “abrange o trabalho em condições degradantes e exaustivas: aquelas condições
que ferem tanto a dignidade, quanto a liberdade”(PLASSAT, 2008, p. 97).
A narrativa deste artigo é construida sob a égide da história vista de baixo, a
ideia central do trabalho é situar os cortadores de cana do recorte espacial estudado
como agentes históricos, fazer com que suas vozes ecoem tão alto quanto qualquer outra
fonte documental, estabelecer uma congruência entre o que está em baixo e o que está
em cima. Este método permite identificar as diversas visões daquilo que seria um
trabalho justo para as nossas personagens históricas.
4
Ibid. p. 53-54.
podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda perturbação
social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria
experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser,
condenados em vida, vítimas acidentais5.
5
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004. p. 13.
6
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
como nossos sentimentos nos recordam, a expressão “história vista de baixo”
implica que a algo acima para ser relacionado. Esta suposição, por sua vez,
presume que a história das “pessoas comuns”, mesmo quando estão
envolvidos aspectos explicitamente políticos de sua experiência passada, não
pode ser dissociada das considerações mais amplas da estrutura social e do
poder social [...] ignorar este ponto, ao se tratar da história vista de baixo ou
de qualquer tipo de história social, é arriscar a emergência de uma intensa
fragmentação da escrita da história7.
ela proporciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos
sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham
conhecimento da existência de sua história [...] os propósitos da história são
7
SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo. IN: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. São Paulo:
UNESP, 1992. p. 54.
8
THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das letras, 1998. p. 17.
variados, mas um deles é prover aqueles que a escrevem ou leem de um
sentido de identidade, de um sentido de sua origem. Em um nível mais
amplo, este pode tomar a forma do papel da história, embora fazendo parte da
cultura nacional, na formação de uma identidade nacional. A história vista de
baixo pode desempenhar um papel importante neste processo, recordando-
nos que nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas, primeiros-
ministros, ou generais9.
eu comecei a trabalhar com idade de 7 ano. Então era, meu pai num queria,
mai eu fui escondido dele, e aí quando eu quis parar de trabalhar ele disse
agora você vai porque você foi que foi se oferecê ao senhor de engenho pra
trabalhar, aí eu continuei trabalhando até completar 67 ano 10.
então o negócio aqui tá ruim, ele não quer tirar o peso da cana... então agente
tá trabalhando como se fosse um escravo, isso não existe [...] meu dinheiro
aqui na cana aqui, as vez dá pra descolar as vez num dá, as vez eu ganho 20
conto, 25, 18, agora também tem dia que não ganho nada, volto pra casa, as
vez né [...] eu sô trabalhadera, sô fichada e nunca tive dereito a nada, nem
atestado, quando agente tá grávida tem atestado, não tive adereito a esse
atestado, abono de famía nunca tive, décimo e féria sempre arecebi uma
besteirinha e depoi num pago mai11
9
SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo. IN: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História. São Paulo:
UNESP, 1992. p. 59-60.
10
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro: Marluce Melo, Maria
Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes,
edição de Hiran Cordeiro, 2006.
11
Ibid.
Misael, José Armando e Severina Conceição são as personagens da citação
acima, esses trabalhadores não tem apenas o seu trabalho alienado, mas toda a sua
existência, vivem em função da sobrevivência, presos ao trabalho pela necessidade. O
trabalho para essas pessoas é sinônimo de pobreza, exploração e mortificação do corpo,
consistindo desde o princípio em uma coisa exterior a eles. A alienação do trabalho,
segundo Marx, consiste em:
agente muitas vez dorme sem tomar banho aqui que num tem água, toma
banho ali num riacho que tem ai, capai até de pegar uma doença [...] rapai a
alimentação aqui é mei difícil, a alimentação daqui é mei embasado, porque
aqui até agora essa alimentação que nós temo, a comida é mal coisada ai, tem
que comprar, as vêi agente mermo que fai [...] tem um ai adoeceu, passou
quase dois dia doente, depoi foi que chegou uma caminhonete ai e levo ele,
ninguém sabe pra onde foi esse dotô13.
12
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosoficos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 114-115.
13
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro: Marluce Melo, Maria
Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes,
edição de Hiran Cordeiro, 2006.
trabalhador Jailson ainda afirma: “aqui num tem lenha né, pra cozinhar, tem que saí
cada cá pra cuidar de seu cumê tem que ir atrai de lenha” 14. O terceiro relato é de José
de Souza, nele percebemos o caráter descartável que a nova escravidão atribui aos
trabalhadores, até porque, diferente da antiga escravidão no Brasil, em que um escravo
custava muito caro, “James Tuckey, oficial da Marinha Britânica, relatou que, em 1803,
um negro adulto era vendido por 40 libras no Rio de Janeiro, seria hoje o equivalente a
cerca de 10.000 reais” (GOMES, 2007, p. 219). Atualmente a nova escravidão se vale
de um grande exército de reposição de trabalhadores, devido ao desemprego, a fome e a
miséria.
As práticas análogas a de trabalho escravo analisadas nesta pesquisa, não se
limitam a superexploração do trabalhador e a dissolução de sua dignidade, mas também,
a alienação de sua cidadania, que neste caso refere-se a privação de seus direitos
trabalhistas. Reginaldo Souza, trabalhador rural, vive essa realidade da privação dos
direitos. Um fragmento de sua história é aqui narrado para que possamos encaixá-lo em
nosso quebra-cabeça:
depoi que eu tô aqui, depoi desse 17 ano que eu tô completando aqui, eu fui
pra Ribeirão eu recebi o PIS uma vez, quando foi da outra vez que eu fui
durante esses 17 ano... Cheguei lá na Caixa, o caba da Caixa disse: ói você
num tem PIS mais não, eu digo oxen! E eu num recebi ano passado, por que
eu num tenho? Disse: seu patrão num dipusita dinheiro não. Aí ói, ele nem
dipusita dinheiro pra PIS, nem dipusita dinheiro pra INSS [...] Fai uns 12 ano
que ele num paga nem décimo nem fera, e tinha um administrador aqui que
quando nós dizia; rapai as fera da gente, rapai como é que vai sê, ele dizia é,
eu vou caçar uma fera bem boa pra solta aqui pra pegar vocêsi 15.
14
Ibid.
15
Ibid.
Os conceitos de visões de liberdade e trabalho justo confundem-se quando são
relacionados à escravidão contemporânea. Pois, percebe-se que para os trabalhadores
rurais de nosso recorte espacial, liberdade significa trabalho justo, e este é dotado de
visões peculiares, estas, muitas vezes divergem daquilo que realmente deveria ser um
trabalho justo. É nesse sentido que o trabalhador José Luís nos relata a insatisfação com
o seu trabalho, mas não com o labor em si, mas pela forma como ele é avaliado:
O feitô aqui faz o que quer com o camarada, o que tá acontecendo é que eu
chamei ele pra tirar a média da cana e ele num quer tirar, disse que não tirava
aqui porque a cana aqui tava forte e ali tava mais fraca, eu chamei ele pra
tirar aqui e ainda deixava mai uma braça da valeta pra num tirar, tirar de uma
braça pra cima e ele num aceitô não, aí mandou eu cortar pra amarrar. Aí
quer dizer, no caso ele tá obrigando o camarada a trabalhar a pulso né, desse
jeito ele quer que o cara trabalhe de graça pra empresa. Eu acho que
compretamente errado, é porque se ele tirasse o peso da cana nós ia trabalhar
pelo certo, e ele sem tirar o peso como é que agente sabe que tá trabalhando
pelo certo? Eu tô achando que eu tô trabalhando um tipo quase de graça 16.
O trabalhador José Luís relata a insatisfação e a revolta com a forma como seu
trabalho é avaliado. Para ele, um trabalho justo ou trabalhar pelo certo, seria se a cana
cortada por ele fosse avaliada pelo peso e não pela quantidade. Luís também expressa
com veemência a coerção que os trabalhadores sofrem no campo, quando afirma que o
feitor faz o que quer ou que ele está obrigando o camarada a trabalhar a pulso. Além de
José Luís, outras personagens elencam nossa história, alguns se deslocam de uma região
a outra em busca de melhores condições de trabalho. Vamos analisar essas experiências
em dois depoimentos:
tá fazendo 1 mês que eu trabalho aqui, agora que, agente vem da Paraíba pra
vê se ganha algum dinheiro por qui, mas chega aqui é meio fraco viu, aí num
dá pra gente ficar trabalhando, muitos desanima, outros fica trabalhando
porque é o jeito que tem [...] Quando o empeleitero da gente trouxe agente
disse que a usina é boa, a, vocês ganha muito dinheiro lá, e eu tô vendo que
não tá dando pra mim não, eu vou dar baixa na minha carteira e vou mim
bora17.
Os relatos são dos trabalhadores José de Souza e José Roberto. Eles elencam
uma prática muito comum na escravidão contemporânea, que é o aliciamento de
trabalhadores de uma região para outra. Geralmente esse aliciamento é feito por
16
Ibid.
17
Ibid.
terceiros, estes são conhecidos como gatos, empreiteiros ou contratadores. Eles atraem
os trabalhadores através de promessas utópicas, e como podemos observar a partir dos
depoimentos, os trabalhadores se deparam com uma realidade totalmente diferente.
Outro problema discutido por eles é em relação ao salário:
aqui não existe salário, aqui agente corta uma tonelada de cana a 8 real, se
agente trabalha e o que fazer e se fazer uma ganha 8 real, aqui não tem salário
certo [...] Agente luta, luta, luta pra fazer o salário e não tira o salário da
gente, de jeito e maneira nenhuma, o seguinte é esse [...] Uma tonelada de
cana é 100 feixo de cana, aí dá uma tonelada e nós ganha 8 conto, mas na
balança dele não é pra gente contar 100, agente tem que contar 110 porque 10
fica pra eles18.
18
Ibid.
19
PLASSAT, Xavier. Trabalho escravo: 25 anos de denúncia e fiscalização. IN: Conflitos no Campo
Brasil 2009. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p. 90.
práticas de trabalho, mas no imaginário de vários trabalhadores que são remanescentes
de um sistema tão cruel e excludente chamado escravidão.
Considerações finais
Referências bibliográficas:
BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte
corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo:
Editora Planeta do Brasil, 2007.
LIMA, Vivi Fernandes de. Terra da Vergonha. IN: Revista de História da Biblioteca
Nacional, nº.54, Rio de Janeiro, março de 2010.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosoficos. São Paulo: Martin Claret, 2006.
PLASSAT, Xavier, Nova Geografia do Trabalho Brasileiro: Mudança ou revelação? IN:
Conflitos no Campo 2008. São Paulo: CPT, 2009.
________. Trabalho escravo: 25 anos de denúncia e fiscalização. IN: Conflitos no
Campo Brasil 2009. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
__________. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004.
Recursos audiovisuais:
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. SUGAR SLAVES. Recife: IN: Roteiro:
Marluce Melo, Maria Luisa Mendonça, Plácido Júnior e Thiago Thorlby, direção de
Maria Luisa Mendonça e Thalles Gomes, edição de Hiran Cordeiro, 2007.