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Clínica da perversão
JAN-DEZ 89
MLO
REVISfA BRASILEIRA
DO CAMPO FREUDIANO
ANO UI NÚMEROS 4/S
JANEIRO-DEZEMBRO 1989
.Aluanbrt
lliblioteca iligital
1itora FATOR
Editor responsdvel
Comissão Brasileira do Campo freudiano
Biblioteca Freudiana Brasileira/
Sociedade Psicanalftica de São Paulo
Jorge Forbes
Cllnica freudiana
Jairo Gerbase e Maria Angélia Teixeira
Coisa Freudiana
Antonio Godino Cabas e Silvina Perez
Simpósio do Campo Freudiano
Antonio Beneti e Luiz Henrique Vidigal
Conselho Editorial
Antonio Quinet- Redator
Caterina Koltai- BFB/SPSP
Fábio Thá- CF
Nora Gonçalves - Cf
Sérgio Laia- SCF
Produção
Magali Gramacho - Coordenação gráfica
Jairo Gerbase, Maria Luiza Miranda, Nora Gonçalves - Revisão
Victor Arruda - Capa
Co"espondente em Portugal
José Martinho
Consultor
J11cques-Alain Miller
Direitos reservados
Editora FATOR Ltda
Rua Rio Amazonas 23 Matatu
40260 Salvador Bahia Brasil • (071)2336284
ISSN 0103-121X
Contribuição legal
Impresso no Brasil
Junho de 1991
Sumário
Editórial
I - CLÍNICA DA PERVERSÃO
Contribuições teóricas
Casos clfnicos
Conexões
História da Psicanálise
Boletim
OS TR�S SABERES
O que o analista deve saber?
A.Q.
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I - Clínica da perversão
Jacques Lacan
O DESPERTAR DA PRIMAVERA*
J.-A.M
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O despertar da primavera
Pois como saber o que ele é se este está mascarado, e o ator oao usa
aqui a máscara de mulher'!
Só a máscara ex-sistiria no lugar vazio onde eu coloco A mulher. É por
isso que eu oao digo que não haja mulheres.
A mulher como versão do Pai, só se figuraria em Per-versão (3).
Como saber se, como formula Robert Graves, o próprio Pai,.nosso pai
eterno para todos, não é senão Nome entre outros da Deusa branca, aquela
que, no seu dizer, se perde na noite dos tempos ao ser af a Diferente, a Outra
para sempre em seu gozo,- como essas formas do infinito das quais só começa
mos a enumeração ao saber que é ela que nos surpreenderá.
12 de setembro de 1974.
NOTAS DO TRADUfOR
• Texto extraído de: ORNICAR?, revue du Champ freudien, n° 39, ocL�éc., 1986, p. 5-7. Revisio:
Célio Garcia.
1. No original: "Les non�upes errent". Tal frase admite, em franc!s, uma outra leitura, por homofo·
nia, também explorada por Lacan: "os nomes�o-pai erram".
2. Traduzi pela expressão "o que faz as vezes de", o termo lacaniano "semblant", pois se perde muito,
comprometendo-o com a noçio de aparência, semelhança, traduzindo-o apenas por "semblante".
Há algumas traduções • uma inclusive deste mesmo texto de Lacan, feita por José Martinho • que
propõem o termo "simulacro".
3. No original: "Pére-version". Como uma tradução tipo "Pai-versão" ou "Versã�o-Pai" perde, a meu
ver, muito do jogo que Lacan nos lança, decidi por uma tradução onde o hífen que separa o prefi·
xo "Per", destaca a pronúncia fcancesa de "pere".
9
Contribuições teóricas
Norma Werneck
"Cumprir com seu dever" - o que será que essa frase enigmática de Lacan
quer dizer quando ele a associa à essa outra "nao ceder de seu desejo" como
uma via de saída à longa trajetória da análise?
Assumir seu destino, assinar a carta da história pessoal, dizer sim aos im
passes do desejo e da falta. Isso tudo implica na assunçao da castraçao. Aceita
çao da falta, da perda, da incompletude, da inexistência da adequaçao.
Essa temática nos serve de fio condutor à introduçao da questao da per
versao, cujo avatar último remete justamente a recusa da castraçao.
Vamos fazer aqui o balanceamento das vicissitudes pelas quais passa o su
jeito da constituição de sua falta-a-ser, na submissao à lei e à dialética do falo.
Mas vamos nos limitar ao exaro� daqueles que sao redigidos por uma es
trutura particular que é a perversao. E sabido que as vicissitudes pulsionais, pa
ra manter uma terminologia freudiana, se inscrevem de modo a configurar três
grandes categorias estruturais que são a neurose, a psicose e a perversão. Sabe
se também que a cada estrutura corresponde um mecanismo específico no ma
nejamento pulsional. Pulsional porque corresponde a um conceito "princeps"
na distribuiçao daquilo que estrutura a economia psíquica. Entao o mecanismo
psíquico que corresponde à estrutura da perversao é o desmentido - Verleugnung.
Assim vamos tentar situar a perversão dentro do enfoque nas pulsões e
seus destinos partindo do desmentido da castraçao e da clivagem do eu, acom
panhando a evoluçao desses conceitos na determinaçao da estrutura perversa
ao longo da obra de Freud.
11
Nonna Werneck
Se nos 'Três Ensaios' Freud já havia elaborado a idéia dos desvios da pul
são quanto aos fins e ao objeto, salientando mesmo a independência da pulsão
com relação ao objeto, é no estudo sobre a "Pulsão e seus destinos" que Freud
desenvolve essa idéia, dizendo que o objeto não constitui o essencial nem da
pulsão, nem da perversão.
Os destinos da pulsão estudadas neste texto são o retorno sobre a própria
pessoa e a transformação em seu contrário, que são os movimentos pulsionais
que distinguem os pares voyeurista - exibicionista e sado/m�soquista.
Como toda pulsão parcial, a pulsão sado/masquista é auto erótica na me
dida em que aquilo que é visado é a satisfação da zona erógena envolvida.
Freud fala da pulsao sado/masoquista justamente por levar em conta o
12
Alguns aspectos da perversão em Freud
caráter reversivo da pulsao.
FreiJd concebe inicialmente o sadismo primário como o desenvolvimento
excessivo da componente agressiva de pulsao que visa apropriar-se e dominar
o objeto.
A vontade de infligir dor é vista como vontade de dominar ao invés de se
duzir. Já nessa obra Freud vê no sadismo e no masoquismo as perversOes cardiais.
Para que uma perversão seja caracterizada é necessário, no caso do sadis
mo e do masoquismo a existência de ereotização do sofrimento e de um agente
externo ao sujeito. No caso do sadismo, o parceiro é aquele com quem se identi
fica ao torturar. No masoquismo, o gozo se manifesta na erotização dos tormen
tos infligidos pela pessoa amada.
O gozo da dor seria uma finalidade origináriamente masoquista mas que
se constitui sobre um fundo sádico originário. Para Freud nesse período o maso
quismo é secundário com relação ao sadismo; ele seria um movimento pulsio
nal de transformação em seu contrário. A isso se acrescenta um outro movimen
to que é o da transformação do sujeito em ob.jeto.
Assim, tanto no sadismo quanto no masoquismo entra em jogo a pulsao
sado/masoquista. A perversão própriamente dita se constitui no fechamento
do circuito da perversão, isto é, na posição do sujeito em sua relação com o par
ceiro e do papel deste. No sadismo, o sujeito atormenta o parceiro tomado co
mo objeto e goza de modo masoquista pela erotização dos tormentos que ele
lhe inflige enquanto que no masoquismo, o sujeito se faz de objeto frente ao
parceiro que se tornou atormentador em sua fantasia, e ele goza pela erotiza
ção da dor infligida pelo parceiro.
Quanto ao par voyeurista/exibicionista, o mecanismo de retorno sobre a
própria pessoa também se encontra presente: o voyeur goza de olhar um mem
bro ao mesmo tempo que goza de ser olhado por si mesmo. No voyeurismo o
sujeito se identifica ao objeto olhado, enquanto que no exibicionismo tira sua
satisfaçao ao se constituir um objeto para um outro ao qual se exibe.
Vemos assim, como nessa época Freud dá as razOes do mecanismo perver
so acentuando principalmente as moções pulsionais e a posiçao subjetiva fren
te a elas.
Já observamos como na época dos "Três Ensaios" Freud nao atribuía im
portância à função do recalque na gênese das perversões.
No artigo de 1919 intitulado "Bate-se uma criança", no capítulo V, Freud
volta sua atenção para o papel do recalque em sua relação com o Complexo
de Édipo na compreensão da perversão. O conceito do recalque ao lado daque
les de fixação e de regressão deu uma nova luz para o estudo da gênese das per
versões.
Nesse trabalho, Freud articula a perversão com o Complexo de Édipo.
Ela seria a herdeira de uma carga libidinal. A perversão representa uma posição
subjetiva específica constituída na dialética edipiana. Ela é o herdeiro desse com
plexo, ora recalcado.
Com relação ao masoquismo, Freud conserva a tese proposta pela meta
psicologia que o considera não como uma mimifestação primária da pulsao,
mas como uma reversão do sadismo sobre a própria pessoa.
O masoquismo não se caracteriza só pela passividade (que é uma das fina
lidades de algumas pulsOes) mas implica ainda o caráter de desprazer tão estra
nho na realização da pulsão. Concepção que vai ser reformulada no texto de
1924 quando aborda a questão do masoquismo primário.
A causa dessa transformação pulsional estaria ligada à influência da culpa-
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Nonna Werneck
bilidade que toma parte no recalque. A perversão se constituiria assim a partir
de um núcleo recalcado que produziria três efeitos:
- Torna inconsciente o resultado da organização genital;
- Produz uma regressão nessa organização, levando ao estágio sádico anal anterior;
- Transforma o sadismo em masoquismo, por exigência da consciência de cul-
pa contra o sadismo e o incesto.
A pulsão e a fantasia
Esses mecanismos ficam claros no agenciamento fantasmático que os ma
nifesta. Aqui se vê a articulação do Édipo e seus destnos pulsionais com a fanta
sia. A fantasia tem já para Freud nesse período a estrutura irredutível de um
enunciado gramatical cuja gênese se liga a história do indivíduo. Os seus ele
mentos constantes são a compreensão da estrutura do sujeito.
Vamos seguir o exemplo trabalhado por Freud nesse texto em seus três
momentos:
- "0 pai bate uma criança que eu odeio". Essa primeira forma de fantasia, que
tem a estrutura de um enunciado, exprime a fase do Édipo onde a satisfação
provém do desejo incestuoso de ser amado pelo pai.
- O segundo momento "eu sou batida pelo pai" comtém já um caráter masoquis
ta decorrente da culpa ligada à realização de um desejo incestuoso. Manifesta
se já aí a inscrição de uma fixação, da estrutura, representando a satisfação de
um desejo culpado. Freud articula aqui a fantasia ao desejo como aquilo que
o sustenta e que revela a posição do sujeito.
- O terceiro momento, que apresenta a forma impessoal "bate-se uma criança",
traz a marca de uma excitação sexual que é satisfeita com sua evocação, de mo
do masturbatório. A sua forma sádica oculta na verdade um gozo masoquisa
cujo conteúdo foi recalcado devido ao seu caráter edipano e pela influência da
consciência de culpa que toma parte nesse processo.
Freud faz ainda nesse estudo uma importante distinção que incide sobre
as estruturas psíquicas que produzem uma tal fantasia.
Ou seja, ele distingue a perversão da fantasia perversa. Essa fantasia, cons
truída por uma paciente neurótica, é isolada do resto da neurose e é o suporte
daquilo de que se trata na pulsão aí envolvida.
Freud ressalta as notáveis diferenças observadas entre os homens e as
mulheres portadores de fantasias de fustigação.
Nos homens, a segunda fase "eu sou batido pela mãe" é consciente, e nao
é primária, existindo um estágio preliminar inconsciente eu sou batido pelo pai".
Essa fantasia, nos diz Freud, se encontraria nos verdadeiros perversos masoquis
tas e homossexuais. Ela implicaria a adoçao de uma posição feminina ao mes
mo tempo que uma recusa da castração.
Nos perversos, essas fantasias seriam como que sequelas do complexo de
Édipo.
Vê-se como cada vez mais Freud faz do complexo de É dipo o pivO estrutu
rante das perversões, o que leva a desenvolver cada vez mais a questão da cas
tração e seus destinos na explicação de sua gênese.Mas antes de seguir nesta
vertente, vamos ainda examinar a direção que toma suas investigações sobre a
pulsao e suas vicissitudes no seu grande trabalho de 1924 intitulado "O Probfe
ma Econômico do Masoquismo".
A grande modificação introduzida por Freud na sua concepção sobre a
pulsao a partir da obra "Para além do Princípio do Prazer" de 1920, vai redun-
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Alguns aspectos da perversão em Freud
dar numa mudança também no seu conceito sobre o masoquismo.
Freud chamava de pulsao sado masoquista a uma combinação de duas ten
dências pulsionais originárias, uma componente sádica e outra masoquista, sen
do que a perversão própriamente dita seria a expressão dominante de uma de
las que se tornaria independente vinculada à posição subjetiva.
Nesse texto Freud vai tentar compreender a economia psíquica que rege
o masoquismo, agora concebido como primário.
A questão é de como articular o princípio do prazer com o dualismo pul
sional para explicar o masoquismo primário. O prazer agora não se expressa ne
cessariamente como uma redução de tensão provocada por estímulos, na medi
da em que há tensões prazeirosas, como no caso de excitação sexual. Assim,
não se trata de explicar o desprazer pela quantidade de tensOes, mas sim pela
qualidade da excitação envolvida.
Freud, ao longo de seu escrito desenvolve a idéia de que a pulsao de mor
te teria dado origem ao princípio do prazer por uma modificação e acentua o
fato que a libido se impõe à pulsão de morte na regulação dos processos psíquicos.
Assim, o princípio de Nirvana, identificado com a tendência à anulação
da magnitude de excitação, expresaria a tendência da pulsão de morte, enquan
to que o princípio do prazer representaria as aspirações da libido e suas modifi
cações, devido às influências do mundo exterior, o princípio da realidade. A libi
do deve lutar contra a pulsão de morte ou de destruição contrária, que é domi
nante, e o faz orientando-a para o mundo exterior.
Uma parte dessa pulsao ficaria ligada a função sexual, que seria o sadis
mo propriamente dito.
Outra parte permaneceria voltada para o indivíduo adquirindo um caráter
sexual. Esse seria o masoquismo primário erógeno. Este teria um caráter eróge
no devido ao fato que: "a excitação sexual nasce como efeito secundário de to
da uma série de processos internos na medida em que a intensidade dos mes
mos ultrapassa determinados limites quantitativos. Pode-se mesmo dizer que to
do processo algo importante traz um componente à excitação do instinto sexual.
Em consequência, também a excitação provocada pela dor e pelo despra
zer há de ter tal consequência". E adiante Freud diz: "A coexcitaçao libidinosa
na tensão da dor, variável em sua importância segundo a constituição sexual
do sujeito, subministraria, em todo caso, a base sobre a qual pode levantar-se
mais tarde, como superestrutura psíquica, o masoquismo erógeno".
Trata-se então de um modo de apropriação da pulsao de morte pela libi
do, uma er.otização da pulsão de destruição voltada para o eu, aquilo que cons
titui a base do masoquismo. Este, assim como o sadismo testemunham da vincu
lação da pulsão sexual com a pulsao de morte, que vai determinar a estrutura
psíquica.
O masoquismo primário.acompanha a libido em seus estágios evolutivos,
e toma deles sua determinação subjetiva. Assim o medo de ser devorado pelo
pai procede da a fase oral, o desejo de ser maltratado pelo pai da fase sádico
anal e as fantasias masoquistas de castração se ligam à fase fálica.
O masoquismo erógeno constitui fJ base de duas outras formas de maso
quismo concebidas por Freud: o masnquismo moral e o feminino. Este último
caracteriza o masoquismo perverso propriamente dito, e Freud o encontra nas
fantasias e práticas sexuais do perverso masoquista. O conteúdo dessas práticas
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Norma Werneck
consiste em sofrimento, humilhação e dor para o sujeito. Freud interpreta essa
posição como expressão do desejo do sujeito de ser tratado como um menino
mau e em outras fantasias estudads por Freud verifica-se uma representação
de feminilidade: ser castrado, suportar o coito ou parir.
Por essa razão Freud chama de masoquismo feminino aquele que caracte
riza o masoquismo e a homossexualidade masculina enquanto verdadeira perversão.
A feminização da posição subjetiva e sua ligação com o complexo de Édi
po e o de castração, como fatores comuns na perversão em geral vão ser cada
vez mais relacionados por Freud com a recusa da castração (Verleugnung) na
mulher e a clivagem do eu a ela ligado.
É sobre essa vertente que vamos agora acompanhar as investigações de
Freud acerca das perversões.
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Alguns aspectos da perversão em Freud
Ele interpreta a imagem do abutre como representando uma Deusa egíp
cia que teria tal forma e que simboliza a maternidade e que é dotada dos atribu
tos ao mesmo tempo femininos e masculinos.
Trata-se de uma mãe fálica: "Há de fato na vida individual uma época
em que os órgãos genitais masculinos resultam harmonizáveis com a representa
ção da mãe( ...).
Acha essa parte do corpo tão valiosa e importante que na pode crer que
dela careçam as pessoas que o rodeiam e a quem acha semelhantes, e como
não pode adivinhar que existe outro tipo equivalente de formação genital, tem
que acolher a hipótese de que todos, inclusive as mulheres possuem um mem
bro igual ao seu".
E Freud nos explica que só a ameaça de castração acaba por alterar a per
sistente crença na presença do pênis na mulher e de como coexistindo ao lado
do temor por sua própria virilidade, pode estar o desprezo e repugnância pela
mulher, sendo a causa da homossexualidade e do fetichismo. Já nesse tempo,
o objeto fetiche é explicado como um símbolo sustitutivo do pênis da mulher.
Ou melhor, o que já se configura aqui é a idéia de que não se trata exatamen
te do pênis real mas do falo como símbolo da ausência de pênis. A criança hesi
ta entre o reconhecimento da ausência do pênis na mae e a sua negação utilizan
do-se de um 'Ersatz', um símbolo que expressa o seu desejo. Está já presente
de forma embrionária a divisao do sujeito diante da castração que vai ser deter
minante para configurar a perversão.
Nesse estudo sobre Leonardo, Freud aborda a questão da escolha de obje
to homossexual salientando a intensa relação do futuro homossexual com sua
mãe durante os primeiros anos da infância.
Nos diz ele: "Em todos os homossexuais submetidos à análise se descobre
um intensíssimo enlace infantil, de caráter erótico e esquecido depois pelo indi
víduo, a um sujeito feminino, geralmente a mae; enlace provocado ou favoreci
do pela excessiva ternura da mesma e apoiado depois por um afastamento do
pai da vida infantil do filho".
Num dado momento esse amor sucumbiria ao recalque sendo deslocado
para a própria pessoa que se substitui à mãe por identificação. Ao mesmo tem
po, o indivíduo se toma como modelo elegendo pessoas que a ele se assemelham.
O auto-erotismo então se manifestaria nas escolhas do objeto de amor que são
reproduções da própria pessoa. Ele ama o outro como foi amado por sua pró
pria mãe.
A sua eleição objetai segue a direção do narcisismo, a partir da identifica
ção com a mãe fálica.
Assim, o homossexual permanece fiXado à mãe. A ação do recalque man
tém esse amor inconsciente. Ao perseguir um homem o que faz na verdade é
tentar manter-se fiel à mãe, transferindo a excitação causada por uma mulher
à um homem.
No pequeno artigo de 1923 intitulado 'A Organização Sexual Infantil',
Freud faz uma retificçao teórica de grande alcance para a compreensão dos
mecanismos ligados ao complexo de castração e a seus efeitos quanto à estrutu
ração da subjetividade.
Ele explica aí a diferença entre a sexualidade infantil e a adulta, nao pela
primazia dada ao genital, que também é encontrada na infância, mas pela pri
mazia dada ao falo, único órgao genital concebido para ambos os sexos.
Nos diz ele: "Assim, pois, [o menino] atribui a todos os demais seres ani
mados, homens e animais, órgãos genitais análogos aos seus e chega até a bus-
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Norma Werneck
car nos objetos inanimados um membro igual ao que possui".
Nesse artigo Freud descreve a reação do menino diante da percepção da
falta de pênis na menina como uma negação, um desmentido (Verleugnung) que
se apoia depois na convicção de que o membro é pequeno mas vai crescer.
Num outro momento a criança conclui que a menina antes possuía um
órgão semelhante que teria sido cortado. Diante da possibilidade de que o seu
tenha o mesmo destino, instala-se o complexo da castração, que é portanto con
temporâneo da fase da primazia do falo.
Mas essa generalização não se dá de imediato e a princípio o mesmo crê
que a castração foi efetuada como uma punição em algumas meninas, conser
vando assim, a idéia de que a mãe possa ter conservado o seu.
O conceito de desmentido (Verleugnung) será formalizado no texto de
1925. "Algumas Consequências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Se
xos", onde Freud diz que a percepção, pelo menino, do genital feminino susci
ta desinteresse - não vê nada, ou repudia sua percepção ou a atenua dizendo
que vai crescer. Mais tarde, diante da ameaça de castração, tal observação tor
na-se decisiva. Poderão, no entanto, surgir duas reações que podem ftxar-se e
que determinarão permanentemente suas relações com a mulher: o horror ou
o desprezo.
Utilizado inicialmente para explicar o mecanismo da psicose que rejeitaria
um aspecto da realidade, Freud mais tarde se dá conta de que o conceito de
desmentido é insuficiente para distinguir a psicose da neurose, uma vez que é
encontrada em indivíduos não psicóticos sob a forma da recusa da castração.
É no estudo sobre o fetichismo de 1927 que Freud articula o mecanismo
do desmentido com a perversão. No fetichismo, a recusa da realidade vai se cen
trar sobre a falta de pênis na mulher, assim à questão do desmentido da castra
ção, que Freud já havia observado em trabalhos anteriores, notadamente naque
les que tratam da sexualidade infantil. O que configura a perversão fetichista é
a persistência no adulto desse desmentido infantil. Haveria af uma regressão e
uma fixação à um estado da evolução sexual infantil.
Na perversão se organiza um processo de defesa contra a angústia da cas
tração que Freud descreve assim:
( ...) A criança se recusou a tomar conhecimento da realidade percebida:
a mulher não possui um pênis. Não, isso não pode ser verdade porque se a mu
lher é castrada, uma ameaça pesa sobre a posse de seu próprio pênis, contra o
que se rebela esse pedaço de narcisismo com que a natureza previdente dotou
esse órgão".
O horror à castração, pela ameaça e a angústia a ele ligadas encontra
uma proteção, no caso do perverso fetichista sob a forma de uma solução de
compromisso representada por uma ambivalência expressa pela aceitação e pe
la negação dessa realidade ao mesmo tempo, como se verá adiante.
A atitude de reconhecimento da castração produz, no caso da perversão,
um mecanismo que permite contorná-la com a criação do fetiche que represen
ta não exatamente o pênis, mas o véu com que se mantém a ilusão de sua exis
tência e sustenta a fantasia da mãe fálica.
A clivagem do eu
Na sua obra inacabada de 1938 sob o título de "A Clivagem do Eu nos
Processos de Defesa", Freud diz ao se referir à hesitação da criança entre a re
cusa e o reconhecimento da realidade da castração: "A criança responde ao con-
18
Alguns aspectos da perversão em Freud
flito por duas reaçaes opostas, todas duas válidas e eficazes.
De um lado com a ajuda de mecanismos determinados, ela nega a realida
de e não se proíbe nada; por outro lado, ao mesmo tempo ela reconhece o peri
go da realidade, assume, sob forma de um sintoma mórbido, a angústia, face a
essa realidade e tenta ulteriormente se garantir contra ela ( ...)". As duas partes
em litígio receberam seu lote: a pulsao pode conservar sua satisfação; quanto
à realidade, o respeito devido lhe foi pago. No entanto, o sucesso foi atingido
ao preço de uma dilaceração no eu, dilaceração que não se resolverá jamais
mas crescerá com o tempo. As duas reações ao conflito, reaçaes opostas, se
mantém como núcleo de uma clivagem do eu".
Patrick Valas no seu ensaio intitulado 'Freud e a P erversão' publicado
na revi�ta Ornicar o!? 45, comenta assim esse texto de Freud: "Na perversão há
recalque da castração materna, que é desmentida, enquanto que na criança, pa
ra seu próprio pênis, nada mudou" - a recusa da castração da mãe a colocaria,
parece, ao abrigo da sua própria, em lhe fazendo a economia da angústia de
castração.
Mas isso, não sem que ela ressurja sob a forma mascarada de uma angús
tia de receber um castigo do pai: "Essa angústia com relação ao pai, ela também
não diz nada sobre a castração", exceto a remetê-Ia, graças a regressão, à fase
oral, onde ela aparece como angústia de ser devorado pelo pai".
A criação do fetiche representa então, uma solução de compromisso de
duas atitudes opostas diante da realidade: a de reconhecimento, e a do desmen
tido que persistem e convivem ao longo da vida sem se influenciarem mútua
mente. Freud chama de clivagem do eu (Ichspaltung) a essa coexistência, no
eu de duas atitudes psíquicas opostas com relação à realidade da castração.
O desmentido da castração é então indissolúvel da clivagem do eu, que
são os mecanismos que vão estruturar a perversão.
A solução fetichista é um caso particular das diversas formas que pode to
mar a pulsão no encontro com a questão fálica. Isso porque é da ordem da pul
sao que procede o desmentido, na medida em que a pulsão só pode ser conhe
cida pelo seu representante psíquico que é o elemento sobre o qual recai o des
mentido. Uma vez recusada a representação da castração, o "quantum" de afe
to ligado à representação desmentida é deslocada para a representação substitu
tiva, no caso, o fetiche. O fetichismo, pelos mecanismos que ele coloca em ação
aparece como a matriz originária das perversões.
É importante insistir no fato de que a base da questão perversa é sua rela
ção com a castração, o que foi percebido por Freud desde 1908 com seu trabalho
"As Teorias Sexuais Infantis" já mencionadas. E que o mecanismo do desmenti
do (Verleugnung) vai incidir sobre ele.
O desmentido da castração é o elemento comum a toda perversão - tan
to daquelas que são ligadas a uma fixação da libido a um estágio precoce co
mo o voyeurismo, o exibicionismo, o fetichismo, como também das que se cons
tituem mais tarde, como a homossexualidade. Mas a importância da compreen
são do desmentido da castração para a perversão só é possível se pensarmos
na castração com relação ao falo enquanto simbolizando a falta.
Como se expressa muito bem Patrick Valas em seu trabalho já menciona
do: "Dois paios da fantasia permitem assim definir a perversão freudiana: o ob
jeto é escolhido em função da relação do sujeito com a castração, cuja sorte se
decide na dialética edipiana. Quando a câstração é desmentida, o objeto é mar
cado pelo traço do desmentido: a mãe fálica, à qual se substitui a mulher falici
zada pelo fetiche, ou bem o objeto é ele próprio portador do pênis falicizado,
19
Nonna Werneck
ele é um duplo narcfsico do sujeito homossexual".
Isto é, o desmentido da castração implica sempre numa identificação do
sujeito com a mãe fálica.
É essa identificação que determina a posição do sujeito na perversão. É
uma identificação que se liga à dimensão do falo imaginário da mãe.
Renunciar ao falo da mãe seria renunciar também à sua identificação fáli
ca imaginária de ser aquele que completa a mãe.
Mas abordar essas dimensOes imaginárias e simbólicas do falo em sua rela
ção com a castração seria já antecipar os aportes teóricos trazidos por Lacan,
de que se tratará num outro encontro.
20
Nelisa S. Pinheiro
22
Perversão - traços e estrutura
A lógica referida, em seu artigo sobre o tempo lógico, a um mecanismo de pen
samento comum a todos, faz parte do que denominou Outro - uma estrutura
de determinação que determina o sujeito. O inconsciente é definido como .Ü is
curso do Outro. O inconsciente é estruturado como uma linguagem: além da
estrutura binária (como na lingufstica de Saussure, e Jakobson, e na álgebra
de Boole, aplicada aos computadores e à teoria dos jogos), como no "fort-da"
assinalado por Freud enquanto par significante que exprime presença e ausên
cia, Lacan considera a ausência como constitutiva, constituindo-se sobre ela a
cadeia significante. Trata-se de uma hiância constitutiva: de um lado, um isso
real, e, de outro, o ser articulado ao signifocante - WO ES WAR, SOLL ICH
WERDEN. Esse significante é um traço e tem estatuto ontológico, dentro de
uma estrutura discursiva.
23
Nelisa S. Pinheiro
Gide e este reconhece tal correspondência como legado único deixado a ela co
mo testemunha - e ri, revelançlo com o riso, a natureza de fetiche, para ele, das
cartas - uma revelação das "lettres", da "lettre" e da "litérature" enquanto fetiche,
ou seja, aquilo que toma um lugar de onde o desejo se retirou.
"Jeneusse de Gide" é o título de um livro biográfico sobre Gide, escrito
por Jean Delay, um psiquiatra, que recebera do próprio Gide vasta documenta
ção para escrevê-lo. Gide se interessava pela psicanálise e tentara mesmo uma
análise com a polonesa Mrne, Sokolnicka. Havia na atitude tornada para com
seu biógrafo, já um endereçamento a um analista. Endereçou-lhe toda sua cor
respondência, que cuidadosamente guardara, exceto a correspondência com
Madeleine, sua prima e, depois, esposa. E este biógrafo se deu o direito de po
der revelar o que lhe pareceu a intrusão, na obra, da vida privada do autor - o
direito de retirar o véu que a obra literária mantém sobre o desejo do sujeito
que a produz.
Lacan adverte contra o desvelamento: "o estilo é o objeto", lembra ele a
partir de Buffoo. Continua: "há um traço presente em toda verdade: ela se reve
la numa estrutura de ficçao". Trata-se também em Gide, de urna relação do su
jeito com a "lettre", de urna máscara posta no lugar de um desejo confinado à
clandestinidade. Para Gide, era insistente a necessidade de representar, de man
ter uma discussão permanente sobre o ser e o parecer. Também em relação a
Madeleine emergia uma máscara - a do protetor, do amor cortês. A morte e
suas máscaras se sucedem nos seus escritos. Um certo "ideal do anjo", mascaran
do a sexualidade, é associado à sua mãe, e talvez, como um ideal do eu, tenha
feito seu desejo ficar confinado.à clandestinidade.
Apesar de um casamento sem sexo, Madeleine reagiu de modo enciuma
do diante da homossexualidade do marido. Apesar da perda das cartas, da sua
"criança" como ele as chamara, de um pedaço de sua imortalidae, Gide riu. Seu
riso foi uma resposta sobre o estatuto das cartas: elas haviam tomado, como fe
tiche, o lugar de onde o desejo se retirou, e o riso acolhia a subjetividade pega
de surpresa.
24
Antonio Godino Cabas
Que Sade soe encontrar sua cara metade em Masoch, eis uma tolice larga
mente reprisada pela literatura analftlca. Que essa idéia é um mau sonho antes
do que um verdadeiro conceito é o que se depreende do ensino de Lacan. É o
que pretendemos tratar aqui para estabelecer a distancia que separa a obra de
Sade ("Justine ou os infortúnios da virtude") da obra de Masoch ("A vênus das
peles").
26
De Sade a Masoch: Um passo
Em Masoch o gozo se disfarça. Tanto que a princípio tudo leva a crer que
se trata do encontro amoroso de um homem com uma mulher. Porém, os véus
que encobrem o mistério caem por terra muito cedo para dar lugar à revelação
que o gozo do Um não está relacionado com o desejo do Outro. Assim, seu per
sonagem - Severino - não encontra o Outro sexo a não ser para fazer dele uma
estátua de suprema beleza esculpida em um bloco de pedra. Transformada em
mármore ao término da operação masoquista, Wanda não é mais do que a re
presentação de um fetiche forrado de peles. Que é isso senão uma metáfora
muito bem feita para dizer do rechaço ao desejo do Outro?
. Porém, Masoch vai mais longe - já o dissemos - posto que não é mais da
liberdade de gozo do Outro, postulada por Sade, que sua obra trata. É mais va
le de sua petrificação, de sua redução ao estatuto de um puro instrumento ao
serviço de uma vontade cujo verdadeiro mestre e senhor é o destinatário do castigo.
Eis porque Masoch pode dizer: "o gozo é a deusa". Enquanto isso, Wan
da não é mais do que uma vítima, tão infortunada na sua virtude quanto o fo
ra Justine na sua desgraça.
49 Conclusão.
-
BIBLIOGRAFIA
27
Cois a Freudiana
Leopold von Sacher-Masoch é o autor de uma obra que lhe valeu o direi
to de ceder seu nome a um gozo inefável (1). O propósito do presente trabalho
é de estabelecer algumas notas acerca do fantasma de Masoch, um fantasma li
terário que desdobra a versao do sujeito e a petrificaçao do desejo, quando pre
valece um gozo cuja nota é o doce terror de uma demanda que faz da mulher
a carne de Deus.
1 - A paixão do servo
te da Vênus das Peles, uma mulher bela, voluptuosa e cruel, em suma, a deu
sa do amor em pessoa e o "eu" do sonhante, um homem culto, devotado ao cul
to da dama.
Ao contar seu sonho ao amigo cujo nome é nada menos que Severino, ele
obtém a modo de resposta as confidências deste. A maior parte da novela é ocu
pada pelas confissões que, sob forma de manuscrito, ele confia ao amigo sonha
dor. E a história de sua relação com Wanda Dunajew, uma exposição vivida
do fantasma masoquista.
O relato desse caso de amor se desenvolve em três tempos:
O primeiro é a exposição da proposição fantasmática. Severino se esfor
ça em convencer Wanda de encarnar a deusa inacessível de seus sonhos à qual
entregara seu destino dando-se como escravo. Tudo aqui lembra o tratado pa
ra a educação das mulheres. Para isso Severino não poupa nem suas lembran
ças de infância e nem suas referências filosóficas, desfilando o exemplo dos es
cravos que sustentavam, na antiguidade, os prazeres de seus mestres até a sole
ne agonia dos mártires cristaos na Roma Imperial.
O segundo é a demonstraçao. A experiência é levada a efeito sob a supos
ta condução de Wanda que, a esta altura, parece ter aceito seu lugar de Vênus
do do adorador supra-sensual.
O terceiro é o desenlace que se precipita trágica e pateticamente. Apaixonada
por um outro homem - um homem que semelha um mestre - Wanda deixa cair
as peles e submete o servo à derradeira provocação sob o chicote do Grego,
deixando-o amarrado e espancado a mercê de seu fantasma.
No fim, Severino que se julga curado conclui sua história com o enuncia
do de uma moral: Quem se deixa chicotear merece ser chicoteado... A rosada
bruma de minha imaginação se dissipou e ninguém me fará tomar as monas sa
gradas de Benarés (a mulher ideal) ou o galo de Platão (o homem despojado)
pela imagem de Deus.(3)
2 - Do masoquismo
3 - Do fantasma
Severino não busca nem castigo nem humilhações. Esse é o preço pago
com sua pessoa pelo resgate de um desejo preso à deusa. (7) Basta vê-lo retra
tado pelo pintor alemão - seu semelhante - com o pé da Vênus sobre seu pesco
ço, fixa,1o feito puro dejeto. É o riso cruel de Waoda e ele aos pés, reduzido a
29
Anna Alice W. Pietruza et alii
menos do que nada. Esse quadro nao tem sentido senao no campo escópico.
Só o olhar pode dar lastro a uma cena que beira a derrisao.
Essa máscara, esse duplo, esse invólucro é a forma separada que o sujei
to dá de si para encontrar - por meio da ficçao - uma certa sobrevalia. O maso
quista a encontra ao situar-se precisamente como dejeto. Ocorre que essa iden
tificaçao ao objeto a está ligada à captaçao do gozo. Eis sua economia.
Deste modo Severino, um sujeito moroso, afetado pela "agonia solene"
diante das mulheres, parece erguer-se diante de Wanda em desejante. Mas es
sa mudança é o resíduo de uma subtraçao simbólica. Confrontado à mulher ele
nao pode senao reproduzir a abnegaçao de seu gozo e o envolvimento de seu
amor. Do desejo não resta senão a incidência negativa para dar forma ao ideal
de uma Deusa que impureza alguma poderia tocar. (8)
Trata-se do rechaço, do suspeito rechaço, do covarde rechaço do desejo.
E assim o masoquista vive em estado de pura esfera, recuando infinitamente o
desejo e obtendo uma dor - ela própria esperada - que o torne permitido.
Enfim, Masoch é o narrador da lógica da vida de Sade: "Agente do tor
mento, sim, é no Outro que é rechaçada a vontade de gozo que o afeta." (9)
Demonstrador por essência, como todo perverso, o masoquita está em
condições de dar a verdade da empresa sádica ao identificar-se ao objeto. Ele
sabe que coisa busca e onde encontrá-la. Quanto à mulher, ele só quer que se
preste ao jogo.
4 - Do gozo
Dois sao os gozos que concernem à função sexual: o Fálico( <I> ) e o Ou
tro (A). Diante disto Severino tenta tocar o gozo da mulher pois sabe o quan
to ele não está mal transado(10)).
Ainda assim ele experimenta o limite da sua própria divisão. O gozo per
manece impossível. Seu arranjo, mesmo evitando as perturbaçoes do desejo,
não é melhor sucedido.
Resta a dizer que esta estratégia cujo pré-requisito é de ter elevado uma
mulfler à dignidade da Deusa, lhe dá a aparência de estar imerso no Gozo mís
tico. Afinal ele se dedica desde a infância ao culto dos mártires, e seus desejos
diante da Vênus são de uma profunda castidade. Eis que renuncia a tudo, se
despoja de toda razão e se doa ( 1 1). Eis que ele se faz servo do Outro e fica
louco pela falta que o significante de sua demanda lhe faz experimentar.
Mas como não faltaria se é o significante que não existe, posto que não
há A mulher? Nada há de místico nessa proposta em que ele se faz servo para
possuir a Deusa. Não há dialética do ser e do ter, mas colusão de um e outro.
Trata-se, mais vale, do culto da perversão no qual um homem adora uma deu
sa de verdade, (ou seja: de carne e osso), para assujeitá-la até o limite e petrifi
car essa carne. Trata-se de reduzir a Deusa a um pedaço de pedra. Não é que
a sua adoração se acende quanto mais se pareça ela com uma estátua de mármore?
Esse Deus ex-nihilo é certamente um fetiche mas não uma vontade que
possa dividf-lo. No fim, Masoch demonstra com Seu Severino que quando "o
homem quer A mulher, ele não a alcança senão fracassando no campo da per
versão". ( 12)
5 - Conclusão
Há que dizer que é uma obra de pregador. Masoch não faz senão demons-
30
Leopold von Sacher-Masoch
REFER�NCIAS BIBI1IOGRÁFICAS
1. Lacan, ]. Fonctions de la psychanalyse en criminologie, in Écrits, Paris, Ed. du Seuil, 1966. pag. 148
2. Deleuze, G. Apresentação de Sacher-Masoch, Rio de Janeiro, Taurus Editora, 1983, pag. 9
3. Sacher-Masoch, L. A Vênus das Peles, Rio de Janeiro, Taurus Editora, 1983, pag. 301
4. Krafft-Ebbing, R. Las psicopatias sexuales, Barcelona, Ed. Sagitario, 1970, capítulo 12: masoquismo.
5. Krafft-Ebbing, R. Ibidem
6. Freud, S. Psicogenesis de un caso de homossexualidad femenina, in Obras Completas vol. li, Madrid,
Ed. Biblioteca Nueva, 1968, pag. 1004 .
7. Lacan, J. Remarque sur )e rapport de Daniel Lagache, in Écrits, Paris, Ed. du Seuil, 1966, pag. 683
8. Lacan, ]. Jeunesse de Gide ou la lettre et le désir, in crits, Paris, Ed. du Seuil, 1966, pag. 754
É
9. Lacan, J. Kant avec Sade, in Écrits, Paris, Ed. du Seuil, 1966, pag. 778
10. Lacan, J. Le seminaire, Livre XX Encore, Paris, Ed. du Seuil, 1975, pag. 56
11. Dunnand, A. Commentaire de Hadewijch (!e poême XVIII) in Ornicar? n2 47, Paris, Navarin Editeur,
1988, pag. 22
12. Lacan, J. Télévision, Paris, Ed. du Seuil, 1974, pag. 60
31
École de la Cause freudienne
FETICHISMO E FOBIA
werfung, a foraclusão.
Notemos, enfim, que o problema clínico que nos propomos examinar foi
abordado por Freud em seu último artigo, datado de 1937: "Die Ichspaltung im
Abwehrvorgang", "A divisão do eu no processo de defesa". Com efeito, para ilus
trar "essa rasgadura no eu que não sarará jamais", Freud toma o exemplo de
uma criança tornada fetichista na qual subsiste uma fobia do toque. Assim, es
ta falha no eu que Freud constata, falha bordeada, de um lado, por uma perver
sao e, de outro, por um sintoma fóbico, nos introduz à construção por Lacan da
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-ilez 1989 p.32-36
Fetichismo e fobia
33
Guy Clastres et alii
34
Fetichismo e fobia
35
Guy Clastres et alii
çao cirúrgica (apendicectomia), e, a partir deste corte no real, se instala uma fo
bia do botao. Em suma, é o encontro com o real que despertou para a proble
mática do complexo da castração, mas, de modo particular, que deixou no incons
ciente do sujeito a possibilidade de desmentf-lo ( Verleugnung). Este desmenti
do aparece no novo valor dado ao objeto, no que ele perdia seu caráter de uni
cidade, para aparecer múltiplo e ordenado, se destacando sobre o véu de uma
vestimenta feminina. Este a-mais, que ele faz surgir sobre o cobre o véu, o tor
na, ao mesmo tempo, sedutor e necessário, inclusive, ao cumprimento do co
mércio com o Outro sexo. O sujeito encontrou seu fetiche, apto para sustentar
seu gozo. De alguma maneira, é o apagamento de Um do significante fóbico
que faz virar o objeto a, este novo estatuto de símbolo, fixando, então, o mais
de-gozar adquirido nesta virada.
Se o significante da fobia acentua a falta-a-ser do sujeito, sublinhando sua
divisao numa borda, o fetiche a vela, fechando-a sobre a outra, pela "fixação"
do objeto segundo o gozo do objeto a do fantasma ($ <> a).
Para concluir
Enquanto o sintoma fóbico enfatiza a falta do pai, que este sintoma ten
ta suprir, já que foi interpretado por Freud como um apelo ao pai smbólico,
ao Nome-do-Pai, o fetichismo nos parece a tentativa de esquivar essa vertente
da questão, propondo sua própria resposta face ao enigma do desejo do Outro.
Com efeito, o fetiche é e'!te objeto que permite ao sujeito este curto-circuito,
evitando-lhe a passagem pelo Outro do significante, onde sua verdade está escrita.
Ao contrário, é diante deste Outro que o fóbico hesita, se angustia e se
queixa. De seu fetiche, o sujetio não se queixa: aliás, porque se queixaria, já
que ele lhe designa, permanentemente, o ponto de verdade? (Lacan, "A Ciencia
e a verdade"). Neste sentido, ele não tem nada a demandar, uma vez que ele
tem a seu alcance a soluçao que lhe convém.
Como Lacan nos diz, em seu Seminário "A relação de objeto", o fetichis
ta é um simples amante da natureza, enquanto que o fóbico é um metafísico,
pois, ele conduz a questão ao ponto em que há algo que falta.
BIBLIOGRAFIA
36
École de la Caw;e freudienne
este desejo.
Quanto à fobia, ela desengana o desejo em vez de enganá-lo. Desenganar
quer dizer que o desejo só é desejo por ser impossível de ser satisfeito. A fun
çao paterna introduz-se aqui como o que garante o desejo, e a busca de uma
garantia do eu na toda-potência materna esta af desde entao subordinada. É a
este nível que a neurose infantil se constitui e que os traços remanescentes de
pervers!io são desde então, por ela, enquadrados. É a escolha do pequeno Hans
que, nos diz Lacan, "pediu que se escrevesse a Freud que quando ele tinha vis
to as calças, ele tinha cuspido, tinha caído no chão, depois ele tinha fechado os
olhos. É, justamente por isso; por causa desta reação, que a escolha é feita, que
o pequeno Hans não será jamais um fetichista.
Se, pelo contrário, ele tivesse reconhecido que estas calças eram precisa
mente o seu objeto, à saber este misterioso falo que ninguém jamais verá, ele
estaria satisfeito com ele e teria se tornado fetichista" 4 (bis).
Na constituição do fantasma $ <> a, a substituiç!io do objeto a por A ofe
rece, nos diz Lacan, uma possibilidade de "recuperaç!io" do falo imaginário. Es
ta af a eventualidade maior concernente à perversão que abre duas possibilida
des: ou traços de perversao no quadro da neurose, ou perversão como forma
de assujeitamento ao Outro no qual a relação do sujeito ao objeto é tal que o
sujeito "se faz" aí instrumento do gozo do Outro.
Lacan no seminário sobre Hamlet (5), situa a perversão como analisável
e interpretável, do mesmo modo que a neurose, mas situa o fantasma da perver
sao num espaço fora do tempo, contrariamente àquele da neurose, um espaço
no qual os significantes são objetivados, cortados da relação intersubjetiva. (6)
A referência à Nádia seguida por Rosine Lefort, nos permite apreender
um momento fronteiro que Lacan chama "o molde da perversão", com "esta di
mensão imaginária prevalente nesta valorização da imagem, enquanto eJ.a per
manece o testemunho privilegiado de alguma coisa que, no inconsciente, deve
ser articulado, recolocado em jogo na dialética da transferência." (7)
O ponto essencial gira em torno do objeto a e daquilo que do sujeito fi
cou no Outro. Duas soluções: ou o sujeito escolhe entre S 1 e S2, e o que retor
na ao sujeito, de sua demanda, é a mensagem do Outro sob uma forma inverti
da, ou então isto fica no Outro, constituindo o recalque do inconsciente, numa
relação que não se realiza e não afeta o Outro do seu desejo.
Se o que é amado no objeto é o que lhe falta, e que não se dá senão o
que não se tem, o fetichista coloca o objeto como permanecido no Outro - o
objeto que ele lhe deu. Não se trata do pênis real, mas o pênis enquanto a mu
lher o tem, quer dizer enquanto ela não o tem: o falo simbólico, tanto ausência
como presença, objeto que circula; é portanto sempre o menino que é fetichis
ta e jamais a menina.
Se nós retomamos o véu, Nádia mostra bem que é sobre ele que se pin
ta a ausência sobre o fundo da presença do além: quer seja o objeto, o 5 de de
zembro ou o 17 de janeiro, ou mais tarde a presença da estagiária como tercei
ro termo no espelho que ela simboliza, velando-a antes de emitir seu "pa-pa
pa", paradigma do simbólico.
Aparece aí a diferença entre o sintoma neurótico e a perversão, na medi
da em que Nádia se centraliza sobre o falo, mas sem o fechamento, sem a para
da sobre a imagem, uma vez que ela interroga af o Outro, não somente o Outro
do significante, mas o Outro da Lei. O objeto não interrompe seu questiona
mento, sua história, não faz parada enquanto tal, quer dizer simples metonímia
do véu que fará o fetiche, já que ela introduz a metáfora paterna e isso pela
38
Traços de perverstlo na prdtica com crianças
transferência.
NSo se pode senso reconhecer neste objeto a referência do ponto de re
calc�mento. Al�m do objeto começa o sujeito. Entretanto, pelo fato de que na
fase pré-genital (mais do que na fase pr�-edípica) o Outro é o portador do obje
to - de um objeto que o pequeno sujeito tem que tomar por ele mesmo, nSo
sob forma de uma mensagem, mas de um significante, quer dizer enquanto fal
ta - o conduz a aproximar-se mais perto desta imagem da mae fálica: ou a ima
gem se detém e é fetiche, ou o significante toma o lugar e é o Outro do signifi
cante que coloca o desejo no limite da Lei, o que conduz ao recalcamento e à
castraçao simbólica.
Melanie Klein, sem a dialética significante, faz aqui o quadro da psicose,
pelo objeto real do corpo próprio - o pênis paterno - sem aceder à Imagem do
fetiche. Há, entretanto um ponto de passagem, é esta identlflcaçao à mulher
confrontada a este pênis destrutor, ou inversamente esta identificaçao ao falo
imaginário que a mae pode devorar ou destruir. Daqui, há duas saídas: seja re
al e mortífera na psicose, na ausência da metáfora paterna, seja Imaginária na
perversao. Nos dois casos, há uma Insuficiente slmbollzaçso, ou mesmo sua au
sência e, portanto, uma relaçao dual c nao terceira.
Nádia nos mostra que a criança pode ser entregue a uma rclaçSo pura
mente escópica com suas conscquênclas auto-destrutivas. � um primeiro mo
mento, porque o Menino do Lobo, nas suas reaçoes motoras extremas, nao es
tá menos submetido à destrulçao mortífera sem poder decidir se é ele ou o ou
tro a v!tlma, ponta extrema que nso permite no seu primitivismo estrutural evo
car uma ambiguidade pulsional sado-masoquista: o próprio corpo está ou nao
está a!, no real, c o imaginário que constituiria o fetiche está ausente.
Fica bem evidente nos dois casos a noçao de um objeto a mais, mas com
um estatuto diferente.
Um tal objeto pode ser exemplificado sob tres formas, as mais típicas.
Em primeiro lugar, a título de informaçao, recordemos o Impermeável, atrás
do qual o sujeito se centraliza enquanto Identificado à mae e onde a mie tem
necessidade de ser protegida por um cnvólucro. Em segundo lugar, atrás do pa
no ou da fralda, é o objeto que falta e esta falta interroga a falta no Outro, se
ja a preencher na pervcrsSo, seja dialctizada na trans�rencia para Nádia. E,
em terceiro lugar, para o Menino do Lobo, atrás da fralda está o horror do bu
raco real, diante do qual ele grita seu "lobo" e que � necessário preencher com
um objeto do seu próprio corpo. Quanto ao envólucro do avental, no seu caso,
nao é uma proteçSo do Outro absoluto, mas o ser ou nso ser do sujeito. A ves
timenta, inclusive, nSo serve unicamente para ocultar do objeto, mas, também
para ocultar a falta de objeto; mas para Robert, atrás do avental aO há o vazio,
o buraco do significante, porque ele nSo tem sequer seu primeiro nome. A rela
çao ao Outro passa pela falta significantizada para Nádia e nao pelo objeto re-
al que é o próprio corpo para Robert. ·
� Nádia quem nos diz que a introjeçao, fenOmeno simbólico, pode "lem
brar-se" das suas raízes corporais e orais: quando ela quer servir-se de um de
do (o de Rosine Lefort), que ela molha no mingau para chupá-lo, isto é, encar
ne a recupcraçao do falo Imaginário sobre o corpo do Outro que poderia ter
feito o molde da pervcrsao sem o ato do analista como ponto de parada.
Marie Françoise, autista com seus Impulsos bulímicos c o fetichismo apa
rente do seu marinheiro, mostra a pcrverslo como tentativa de saída possl'vcl
ao seu impasse autista: a prlvaçao, a frustraçao .af fazem surgir o objeto nlo
imaginário, mas real, sem a dimensao fálica, evidentemente.
39
Robert Lefort et alii
40
Traços de perversdo na prática com crianças
REFE�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Lacan, J., Le Séminaire IV, "i,a .. �Jation d'objet" (1956-1957), inédit, séances des 19.121956, 16 et
30.11.1957, 6.2.1957.
2. Lacan, J., "D'une question préliminaire.. ." Ecrits, Seuil; p. 554.
3. Lacan, J., Le Séminaire IX, "L'identificati on" (1961-1962), inédit
4. Bruno, P.
4.(bis) Lacan, J., Le Séminaire IV, "La relation d'objet" (1956-1957)
5. Granon-Lafont, J., Ornicar? 26.27; p. 13.
6. Lacan, J., Le Séminaire IV, séance du 19.121956.
7. Ibidem
8. Acbache'Wiznitzer, S.
9. Lachaize-Oenmichen. , Y.
10. Strauss, M.
1 1 . Solano-Suarez, E.
12. Lacan, J., É crits; p. 859.
13. Fourre, M.
14. Josselin, F.
15. Brisou, J.-C.
16. Mazel, C.
17. Séré de Rivieres, H.
41
École de la Cause freudienne
A HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA
NAS ESTRUTURAS CLÍNICAS
Situando o problema
Retomemos a Freud e consideremos com ele (21) como "patológica toda
A mãe do homossexual
43
Daniele Silvestre et alii
narcfsica, pois que Leonardo amaria nos rapazes a criança que ele mesmo foi
para sua mãe. Esta identificação à mãe coincide com o recalcamento desta,
meio para desembaraçar-se dela.
Em seu comentário do caso de Sadger, Freud faz esta observação essen
cial a respeito da escolha de objeto: " ... em geral, o homem tem dois objetos se
xuais primários (a mãe ou seu substituto, e ele mesmo), e sua vida posterior de
pende daquele ao qual ele permanece fixado. É importante se liberar dos dois.
.. Normalmente, a própria pessoa é substituída pelo pai que não demora a ocu
par uma posição hostil. É neste lugar que a homossexualidade se bifurca" ( 1 2).
Com efeito, o homossexual é aquele que não se "libera de si-mesmo", após ter
recalcado seu amor por sua mãe, identificando-se com ela.
Em Leonardo, Freud desdobra a função da mãe: de uma lado, aquela da
primeira infância, aquela que foi abandonada pelo pai e que colocou seu filho
no lugar do marido, "desposando-o, através de uma maturação muito precoce
de seu erotismo, de uma parte de sua virilidade", por outro lado, u111a segunda
mãe, a mulher do pai, mãe edfpica, porém, estéril. Do gozo da primeira, perma
nece em sua obra, diz Freud, este sorriso estático, marca do amor primeiro,
que se imprime na maior parte de suas obras. Talvez, deva-se ver, também, nes
ta veneração da mãe, por parte do pintor, uma persistência de seu amor por
ela, uma forma de fidelidade, modo de não renunciar a este objeto, apesar do
recalcamento ou graças a ele (9).
Desta primeira elaboração freudiana, decorrerá uma doxa analftica que
impregnou até mesmo o senso comum, fazendo da mãe "fática" a condição da
escolha homossexual (36). Mas esta figura materna, da mesma forma que aque
la do pai, é apreendida, freqüentemente, apenas, em seu estatuto imaginário
(24). Contudo, Freud avançou com algumas precauções sobre a via desta "causa
lidade materna": "...o número dos casos, onde se pode descobrir as condições
requeridas por nós para este tipo homossexual, ultrapassa bastante aquele on
de aparece, realmente, o efeito derivado delas" (10). Há, então, outras condi
ções além daquelas relacionadas com a mãe, em que está sempre referida a
uma carência do pai. Assim, somos levados a supor que, sob o termo da mãe,
Freud designa, de fato, elementos estruturais diferentes, como o deixa pressu
mir sua expressão "as duas mães" (aquelas de Leonardo), da mesma forma que
o pênis tem de ser diferenciado do falo.
Observemos que, sob a pena de Lacan, em seu texto dos Escritos "Juven
tude de Gide", reencontramos a mesma expressão: ele distingue, de uma lado,
a mãe do amor, ou seja, a verdadeira mãe de Gide, de outro lado, a mãe do de
sejo, na pessoa de sua tia, que desperta nele uma comoção, fixando, para sem
pre, como objeto erótico a criança que ele era no olhar clandestino desta tia
(25). Esta duplicação aponta uma particularidade do É dipo gidiano que separa,
de uma lado, o amor fora do sexo, ligado ao dever e à santidade, e, de outro la
do, o sexo tomado da criança que ele foi e que, assim, reduz o falo significante
ao órgão não negativizado em seu gozo (cf. sua leitura de Goethe, aos 18 anos).
A posição particular adotada face à castração da mãe implica uma particu
laridade da metáfora paterna: Lacan dá conta dela pela disjunção entre o amor
de uma mãe inteiramente orientado, para além do pai real, na direção de Deus
e do filho, e o desejo em oposição à Lei que caracteriza a tia adúltera e seduto
ra. Disso resulta em Gide a separação do objeto de amor na pessoa de Madelei
ne, sua mulher, o anjo assexuado, em relação ao objeto do desejo, o jovem ines
crupuloso coni o qual apenas um gozo masturbatório é possível. A referência
aos três registros do real, do simbólico e do imaginário permite, também, escla-
44
Homossexualidade maculina nas estruturas clfnicas
rescer este estereótipo pós-freudiano da mãe homossexual, sobre a qual Freud
já fazia incidir uma divisão ao apontar em um sujeito a oposição entre uma cor
rente de ternura em relação à mãe e a corrente erótica, divisão que, por ser ge
ral na sexualidade masculina, não deixa, por isso, de sofrer uma acentuação na
escolha de objeto homossexual. Assim, poderíamos dizer que alguns homosse
xuais, como Gide, se consagram a amar a mulher na vertente da sublimação,
como lembrança desta mãe, cuja castração eles denegam, e desejam o menino
que eles foram, fetichizando, assim, no pênis de seus parceiros, o falo que eles
mesmos foram para sua mãe. Ferenczi, em sua descrição daqueles que ele cha
ma "homo eróticos de sujeito" (os invertidos propriamente ditos, aqueles que
querem ser amados pelo homem como mulher), acrescenta, não sem paradoxo,
esta observaçao de "que , desta forma, eles realizam com elas(as mulheres) a
componente homossexual de sua sexualidade" (2).
A homossexualidade na psicose
45
Daniele Silvestre et alii
veis desta transformação: a eviração, tal como Schreber nos fêz saber, é um ou
tro. Sobre este horizonte real do empuxo-à-mulher, a homossexualidade traz,
parece, a insuplantável questão do ser para o psicótico; lá onde o significante
falta, o sujeito responde por uma escolha _de gozo. Mas, acrescenta Lacan, se
Schreber se decide pela eviração, como resultado lógico desta homossexualida
de paradqxal, é porque, como sujeito, ele estava ... morto. Esta "desordem provo
cada na junção mais íntima do sentimento da vida no sujeito" o libera para o
Outro, fazendo dele "a esposa de Deus" (28). Clinicamente, é melhor pensar
duas vezes antes de evocar uma eventual posição feminina que não é, então,
sem conseqüências para o sujeito, uma vez que se fazer objeto do Outro pode,
ou não, significar esta morte do sujeito que Lacan evoca. A diferença é realmen
te de peso, pois, é af que nós iremos distingüir masoquismo e psicose.
Rivalidâde e pai
O fantasma "uma criança é espancada" ( 16) só pode ser conhecido, diz
Freud, como um traço primário de perversão (17). Trata-se, aí, da análise de
um fantasma masoquista, e, neste trabalho, nós o abordaremos apenas do pon
to de vista dos meninos. Neles, a relação com o pai é predominante, uma vez
que, atrás do conteúdo consciente "ser batido pela mãe", Freud revela um está
gio precursor, "eu sou espancado pelo pai", que ele reconstrói com seu sentido
escondido de "eu sou amado pelo pai". O laço incestuoso com o pai é, por con
seguinte, central, e, pela reorganização deste tempo inconsciente do fantasma,
o menino se safa de sua homossexualidade. O fantasma consciente mantém a
posição feminina sem escolha de objeto homossexual. Para Freud, é claro que
é a posição masoquista do sujeito que assinala a natureza perversa do fantas
ma. Ele insistirá, no caso da jovem homossexual (20), sobre a noção da concor
dância (ou não) da escolha de objeto com a posição do sujeito (masculina ou
feminina) e, certamente, parece que o traço se faz da homossexualidade mascu
lina uma perversão seja, freqüentemente, aquele do masoquismo.
Quando Freud distingue a homossexualidade perversa e a paranóia, no
seu artigo de 1922 "Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia
e na homossexualidade", é, ainda, a relação com o pai que marca a diferença.
A homossexualidade perversa, com efeito, não se baliza, somente, pela identifi
cação com a mãe, pela escolha de objeto narcfsica e pela alta estima do órgão
masculino, (que o induz a não renunciar �o objeto de amor), mas, também, pe
la relação ao pai: " ... um poderoso motivo para a escolha de objeto homossexual
é a diferença ou a angústia que o pai inspirava, uma vez que a significação da
renúncia à mulher é que renunciar-se à concorrência com o pai ... " (23) Mas, re
nunciar a esta concorrência implica, sem dúvida, uma anterioridade onde ela
estava presente, o que marca uma diferença com relação à psicose onde o pai
. feroz e aniquilador deixa o sujeito excluído da rivalidade. Renúncia à rivalida-
de e exclusão da rivalidade são o índice de uma relação diferente com o comple
xo de castração. Enfim, nos perversos, os rivais tornam-se, após o recalcamen
to da rivalidade, objetos de amor, enquanto que, para o paranóico, as pessoas
amadas tornam-se perseguidores odiados. Freud mantém, então, sua tese da
defesa contra a homossexualidade como causa da paranóia.
É a tese inversa que sustentarão, a seguir, os alunos de Melanie Klein: a
homossexualidade é uma defesa contra a paranóia, mesmo que ela seja seja to
mada como latente ou manifesta, como neurótica ou perversa (cf. Rosenfeld)
(32). Sem entrar nos detalhes, notemos, contudo, que esta tese é homogênea
46
Homossexualidade maculina nas estruturas clfnicas
Conclusão provisória
Texto publicado em Traits de perversion dans le� structures cliniques, Nayarin éditeur, Paris,
pp. 162-171. "L'homossexualité masculine dans les structures cliniques" foi apresentado no VI Encon
•
tro Internacional do Campo Freudiano, Paris, julho de 1990. Revisão de Sérgio Laia e Sara Fux.
REFER�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
47
Daniele Silvestre et alii
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du 1et décembre 1909, p. 333-346.
12. FREUD, S., lbid - p. 307.
13. FREUD, S., - "Le Président Schreber" (1912) in Cinq psychanalyses, Paris, PUF, 1977.
14. FREUD, S., lbid.
15. FREUD, S., - "Un enfant est battu" (1919) in Névrose, psychose et perversion, Paris, PUF, 1973.
16. FREUD, S., lbid.
17. FREUD, S., lbid - p. 221.
18. FREUD, S., "Sur la psychogenese d'un cas d'homosexualité féminine" (1920), in Névrose, psychose
et perversion.
19. FREUD, S., Jbid - p. 249.
20. FREUD, S., lbid - p. 269.
21. FREUD, S., -Trois essais surJa théorie de la sexualité (éd. 1928) Paris, Gallimard - (idées) - 1976; p. 48.
22. FREUD, S., lbid - p. 61.
23. FREUD. S., - "Sur quelques mécanismes névrotiques dans la jalousie, la paranoia et l'homosexualité"
(1922), in Névrose, psychose et perversion; p. 279.
24. GLASER, M., - "Identüication and its vicissitudes as observed in the perversions". Int. J. of Psychoa.,
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25. LACAN, J., - Jeunesse de Gide ou la lettre et !e désir", in Ecrits, Paris, Seuil, 1966; p. 755.
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27. LACAN, J., ld - p. 543.
28. LACAN, J., lbid - p. 558.
29. LACAN, J., - "Subversion du sujet et dialetique du desír", in Écrits, p. 824.
30. NACHT, S., - "Homosexualité - Etudes psychanalytiques" - 1955, 371051, 20, p.1-3.
31. NACHT, S., - "L'homosexualité", in Pathologie de la vie amourese. Essai psychanalytique Paris,
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32 ROSENFELD, H., - "Remarques sur les relations de l'homosexualité masculine avec la paranoia,
l'angoisse paranoide et !e narcissisme", in Etats psychotiques, Paris, PUF, 1949; p. 47-69.
33. ROSOLATO, G., "Les perversions sexuelles". Encycl. Méd. Chir., 37392 A 10, année 1968.
34. SADGER, 1., Minutes de la Société Psycbanalytique de Vienne, Paris, Gallimard, 1978; T. 11, séa
ces des 3 et 10 novembre 1909, p. 286-309.
35. STRACHEY. J., - Standard Edition des oeuvres de Freud. Voi. 1 1, Editor's note, p. 54-62.
36. TORRES, E. M., " From the analysis of a perversion", lnt. J. of Psychoa, 1987, vol. 68, p. 353-370.
37. WIEDEMAN, G. H., - Survey of psychoanalytic literature on overt male homosexuality. Japa,
1962; vol. 10.
48
Sérgio Santana e Jardelina Bacellar Santana (*)
NEUROSE E FANTASIA
Introdução
Fantasias originárias
Neurose e fantasia
Lacan (4) nos dá uma extensa citação, da explosão desses dois termos que
compõem o materna da fantasia, que são o sujeito e o objeto. Lembramos que
na neurose a falta do Outro, o falo significante é confundido com a sua demanda:
"um, no obsessivo, na medida em que ele nega o desejo do Outro, forman
do sua fantasia ao acentuar o impossível do desvanecimento do sujeito, outro,
na histérica, na medida em que o desejo ar só se mantém da insatisfação que
ar se traz ao se esquivar como objeto".
Quer dizer que a resposta à dúvida obsessiva, na falha de uma soluçao
de compromisso, pode ser dada através da fantasia, às vezes através uma passa
gem ao ato, que tem a funçao de retirar o sujeito dessa indeterminação subjeti
va. Quer dizer, de impedi-lo de se dividir como sujeito. É o caso do impotente
que atribui esse sintoma a uma suposta homossexualidade e pode passar ao ato
para buscar a verificação última dessa certeza que o Outro não lhe dá. Retoma
mos assim a questão do desejo no obsessivo, situado graficàmente no esquema
que Lacan denomina de abridor de garrafa em ponto de interrogação: o sujei
to obsessivo recebe do Outro dois significantes que representam o seu desejo
e com os quais estrutura o seu clássico sintoma em dois tempos. Vemos nesse
gráfico que a resposta é o materna da fantasia.
É pois rotineiro que o obsessivo procure sua certeza no ato, no que se
chama uma "travessia selvagem da fantasia"(5). Aqui se levanta todo o proble
ma o qual Lacan diz ser· a pretensa perversão posta no infcio da neurose: "Ela
está no inconsciente do neurótico como Jantasia do Outro"(6) . .
Pelo lado da histérica a fantasia explode no que concerne ao objeto, ou
seja, forma sua fantasia para se esquivar como objeto mantendo assim o dese
jo insatisfeito.
O estatuto de discurso em que foi colocada a histérica, enfatizou o obje
to pequeno a num lugar de verdade, fazendo com que na histérica seu laço so
cial seja a insatisfação. Ser causa mas não ser o fim. O que Dora faz-na constru
ção do seu célebre quarteto, no qual ela se inclui, é o que vai ser chamada a in�
triga histérica, que é a atuação da fantasia histérica: quer dizer, suscitar o dese
jo do homem por uma Outra mulher. O que comprova que na histeria a ques
tão sobre o sexo é uma questão sobre o Outro sexo, ou seja, o que é ser mulher.
É na armação da intriga histérica que aparece o traço de perversão da bis
teria, por excelência, a homossexualidade. Homossexualidade por identificação
a um homem, diferente da jovem homossexual de Freud em que a demanda
de amor e o desafio ao desejo jogam o papel principal.
Esse traço perverso da histérica é compatível com a sua identificação vi
ril: ela como o homem aponta em seu parceiro feminino o objeto cobiçado des
de o ponto de vista do homem.
É na intriga histérica que se diz que se pode achar o "acento da perversao
que é tentador denunciar na presente histeria" (7), escreve Lacan se referindo
à bela açougueira de Freud.
Tudo isso quer dizer que é do ponto de vista de um homem que a bistéri-
50
Neurose e fantasia
ca se interessa por uma mulher, no sentido de se descobrir a si mesma como mulher.
É ainda na histérica que podemos comprovar de maneira clara que o dese
jo é uma defesa contra o gozo e que no obsessivo é uma forma de se certificar
do desejo.
Assim, queremos dizer que na neurose se pode colocar a fantasia como
desejo do Outro e para retomar o tema das fantasias originárias entendemos
que são elas, ainda que a fantasia não esteja reduzida às mesmas que mantém
· a esquiva histérica do gozo (cena de sedução) e a negação do desejo pelo obses
sivo (cena primária).
Se considerarmos a fobia (neurose ou passagem para a neurose) temos
que levar em conta as cenas de castração, atribuindo tal função a um objeto fá
lico que é coberto pela fantasia que o torna impossível de desconhecer o uso
que o sujeito faz da fantasia: esconder sua angústia do desejo do Outro, sua
castração.
Em todos os casos, as fantasias dos neuróticos, implicam uma relação ao
falo: a sedução quando a histérica encarna o falo, a cena primária quando o ob
sessivo constitui a copulação do casal e aquele que olha é então aquele que une,
quer dizer, o falo. Organizam-se na fase do Édipo em que o sujeito é o falo pa
ra a mãe e cuja permanência nessa posição o levará à perversão(8). A castração
simbólica que tira o sujeito desta posição de falo, de ser o falo, tem como conse
quência a constituição das fantasias dos neuróticos, ou, se se quer, das fantasias
originárias cuja função é recuperar o gozo que foi perdido pelo recalque e recu
perar a identificação ao falo da qual o sujeito gozara anteriormente.
"Pois o neurótico não quer, o que ele recusa obstinadamente até o fim
da análise é sacrificar sua castração ao gozo do Outro deixando-o af se servir"(9).
Fantasia fundamental
Existe um fator comum entre as fantasias originárias e a fantasia de espan
camento que é citada como paradigma da fantasia fundamental:( lO) são fanta
sias de um adulto que se remete à infância edfpica. É pois um adulto que fala
da experiência infantil de ser seduzido ou de presenciar uma cena de coito. No
bate-se uma criança, um sujeito infantil é espancado por alguém, ou até pelo
próprio pai daquele que fantasia. Porém, a diferença das fantasias originárias
dos neuróticos, o próprio sujeito não se implica. É por uma construção da fanta
sia fundamental que o sujeito se implica. É esse o traço marcante da estrutura
da fantasia fundamental, além de seu caráter masoquista. Não nos alongaremos
aqui para o que já está bem estabelecido: significação absoluta, afastamento
do resto da trama da neurose, lógica gramatical dessubjetivada, etc.
Interessa-nos no entanto alguns aspectos: a fantasia fundamental é contem
prânea ao recalque primário ( Urverdriingung) e à própria constituição do obje
to. É contemporânea à entrada do sujeito na linguagem o que impoe uma mor
tificação ao sujeito. A fantasia fundamental conjuga o gozo erógeno da pulsão
com o pai obsceno e cruel que escapa à regulação da lei e da castraçao.( l l)
Masoquismo primário é o nome do gozo pulsional real, resto da divisão
fundante que retorna sobre ela - a divisão. A frase construída em análise: "eu
sou espancado por meu pai" opera sobre o que jamais é recordado nem teve
nunca acesso à consciência. Implicar o sujeito na fantasia fundamental é re-si
tuá-lo subjetivamente;
Concluindo diríamos que esta mortificação das origens é um gozo maso
quista, um masoquismo erógeno e a fantasia de ser espancado ou de ver uma
51
Sérgio Santana e Jardelina Bacellar Santana
criança sendo espancada acompanha regularmente o gozo masturbatório.( 12)
Ao contrário do que diz Freud sobre as fantasias originárias: "elas conti
tuem um tesouro de fantasias inconscientes que a análise pode descobrir em to
dos os neuróticos e, provavelmente em todas as crianças"( 13), temos na fantasia
fundamental, em primeiro plano a estrutura do real: ocupa o lugar do real, e
isto justifica a lógica da fantasia, no que lhe acentua também o caracter signifi
cante que instaura numa lógica que culmina em um real, real produzido por es
ta lógica significante"(14 ) .
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
01. LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo. Écrits - Editions du Seuil - 1966.
02. LAPLANCHE, H; PONTALIS, J.B. - Fantasia originária, fantasia das origens e origens das fantasias.
Zahar - 1988.
03. POMMIER, G. O desenlace de uma análise. Zahar, 1990.
04. LACAN, J. - Subversão do Sujeito e dialética do desejo - Écrits - Editions du Seuil - 1966.
05. COTTET, S. - Estudos Clínicos, Transcrição 4, CF/FATOR - 1988.
06. LACAN, J. - Subversão do Sujeito e dialética do desejo - Écrits - Editions du Seuil - 1966.
07. Idem. A direção da cura - Écrits - Editions du Seuil - 1%6.
08. Idem. De uma questão preliminar a todo tratamento pos;;ível da psicose - Écrits - Editions du Seuil - 1966.
09. Idem. Subversão do Sujeito e dialética do desejo - Ecrits - Editions du Seu i! - 1966.
10. MILLER, J. A. - Percurso de Lacan - Zahar - 1988.
1 1 . VIDAL, E - Como se analisa hoje - Manantial - 1986.
12. POMMIER, G. - O desenlace de uma análise - Zahar - 1990
13. FREUD, S. - A interpretação dos sonhos - !mago - 1985.
14. LACAN, J. - A lógica da fantasia - Sem. XIV - Inédito - 1967.
52
Pierre-Gilles Gueguen
UM TRAÇO DE PERVERSÃO
Observaçaes sobre um c aso de Lacan
castração.
A operação sobrevem em resposta a uma interpretação não dada pelo ana
lista mas pela companheira do paciente: ela sonha ter um falo e ela deseja que
esse fálo entre em sua vagina. Observemos, no entanto, que esta sequência é
contada a Lacan em sessão, e ele estima ainda ter que pontuá-la de uma inter
pretação própria (da qual ele não dá a receita). Ele concede, porém, o valor in
trínseco de interpretação ao enunciado do sonho que a comadre faz a seu parceiro.
A operação do. caso consiste pois, af onde se manifesta uma demanda do
paciente (demanda da qual podemos adivinhar que ela é feita sob o modo da
a na !idade), de fazer entrar em jogo a Bedeutung do · falo.
Lacan se recusa a interinar a alegação feita pelo paciente de sua "homos
sexualidade", e daube a clínica americana que dá importância a esta descrição.
Jacques-Aiain Miller, em seu seminário de D.E.A., observa que o termo
de "fábula", que ele emprega a esse propósito, se aplica tanto à maneira que o
paciente tem de utilizar esse suporte para apresentar sua fantasia, como a utili
zação que a clínica dos EUA faz em casos semelhantes do recurso à homosse
xualidade como se tratasse de uma perversão estabelecida mas posta em reserva.
Parece-me que quanto a ele, Lacan prefere remeter no fundo essa alega
ção a uma demanda anal Ja qual sempre pensou (cf. "Radiophonie") que era
um caso de incompetênci� do ana lista interpretá-la como tal.
Mas então, em que podemos considerar que essa fantasia, como toda fan
tasia neurótica, é uma fantasia perversa?
Observemos de início que aqui a fantasia é uma designação pouco preci
sa para evocar um estabelecimento da função significante de uma demanda (se
gundo uma fórmula dos Escritos). Trata-se, então, nesse caso de mostrar as co
ordenadas da passagem da escrita $ <> D a $ <> a .
O que é interessante no jogo de esconde-esconde d o qual s e trata nesse
caso, não é o imaginário da história (a saber, que essa mulher se apresenta pro
vida de uma falo, ou seja, como um homem, erro onde se funde a tese, que La
can repudia, da mãe fática e castradora).
A solução que Lacan dá é uma solução que, do ponto de vista clínico, é
muito sutil no manejo da dialética. Para que o falo, com efeito, possa operar
como significante, ele deve designar as duas vertentes do sintoma obsessivo:
por um lado o desejo do impossível (Lacan utiliza a fórmula: "denegação da na
tureza" obsessiva) e a falta do sujeito que é também falta do Outro, encarnada
nesse caso pela castração da mulher. Somente então o desejo pode aparecer
sob o véu do que o desejo exige para subordinar à fantasia: a garantia e o im
possível; mas a operação ela mesma, sem desvelar o falo, permite que um saber
sob sua efetividade se desprenda. O resultado é agora "apropriar o parceiro a
uma fantasia", e indica ao sujeito o que o divide. Ele lhe dá um apanhado sobre
o que ele maquinou sem saber.
Esta operação é novamente explicada por Lacan na "Subversão do sujei
to... " (Écrits, p. 837). Lacan evoca nesse texto "a passagem da imagem fática
de um lado ao outro do imaginário ao simbólico". Isso designa no caso do ho
mem na rodada do bonneteau, o efeito de retorno, sobre o sujeito, da interpre
tação de sua companheira; ele aí indica que agora o falo muda de valor: "Por
mais que seja suporte de ( -1 ), ele aí se torna <I> (fi maiúsculo), o falo simbólico
impossível de negativar, significante do gozo. E é esse caráter do Outro que ex
plica tanto as particularidades da abordagem da sexualidade pela mulher, quan
to o que faz do sexo masculino o sexo frágil diante da perversão."
Lacan indica em seguida, nesse artigo, o jogo de escapada que se institui
54
Um traço de perversão
nesse momento que ele descreve como aquele onde o objeto a da fantasia se
substitui ao Outro. Temos pois uma sequência lógica: cálculo do falo, apreen
são do- Outro · e estabelecimento da função do objeto a, que pode permitir o cál
culo do objeto (série que enunciava Eric Laurent numa conferência na École
de la Cause Freudienne, em junho de 1990).
E é precisamente nesse momento de conclusão que a perversão pode se decla
rar, no lugar da fantasia perversa do neurótico. Basta, com efeito, como Lacan
o indica na "Subversão do sujeito ... ", que "a perversão aí acrescente uma recupe
ração do que nao pareceria nada original, se aí não interViesse o Outro como
tal de maneira muito particular".
Essa maneira muito particular, Lacan a designa como "se fazer instrumento do
gozo do Outro". ·
para dizer que no momento onde aparece a falta no Outro, o sujeito não pode
consentir a se deixar dividir por ela e a negativá-la de novo.
Para terminar, eis aqui algumas consideraçOes sobre o caso de Gide que
Lacan aborda nos Escritos, acentuando o aspecto do fetichismo que ele comporta.
É uma posição clínica de Lacan: não abordar a homossexualidade enquan
to tal, mas antes como um traço incluído numa estrutura clínica neurótica, per
versa ou psicótica. Mede-se mal, sem dúvida, toda a modernidade dessa posição,
e notadamente que ela evita todo tratamento moralizante da questão, o que,
por exemplo, as categorias do DSM 111 de homossexualidade ego-sintônica ou
distônica não evitam.
Nessa ótica, poderíamos aproximar o caso de Gide e aquele do homem
da rodada de bonneteau por certos aspectos, e notadamente colocando em evi
dência o fato de que Gide teve algumas experiências heterossexuais, o que indi-
ca que ele teria relação com a primeira operação lógica: (�) ; mas . a série pos
terior o leva (seminário D.E.A. de Jacques-Alain Miller de 1989) a escolher
um objeto de amor único e totalmente separado de seus objetos de des.ejo, ao
mesmo tempo em que ele rejeita a divisão do Outro fazendo-a sua leitora privi
legiada e testemunha de sua pureza literária (cf. episódio das cartas queimadas
-
por Madeleine ).
Quer dizer que diante da castração feminina, esse sujeito, assinando assim
uma posição perversa e não mais um traço perverso, escolhe um objeto rolha,
a saber, o objeto da demanda, sem maculá-la da falta fática.
Ele pois está mal pré-disposto para efetuar a operação _:, , ou seja, o cál-
culo em relação ao objeto a, que Lacan desenvolverá nos casos ulteriores e que
já está ao alcance do homem na rodada de bonneteau (cf. os exemplos da "Pro
posição de 1967... ") que demonstram uma posição nova dos sujeitos em relação
ao objeto e da qual Eric Laurent colocou em evidência todo valor clínico quan
do de sua conferência na ECF, em junho de 1990.
(1) N. das Ts: Jogo de ttês cartas que o bonneteau (banqueiro) embaralha após tê-las virado, o joga
dor devendo adivinhar onde se encontra uma de suas cartas.
55
École de la Cause freudienne
A HOMOSSEXUALIDADE NA NEUROSE
Falsos perversos
Foi Maurice Bouvet que ilustrou nos anos 50 esta possibilidade, com nu
merosos exemplos; eles certificam a docilidade do neurótico obsessivo face H
57
Serge Cottet et alii
uma técnica da direçao da cura que favorece os traços homossexuais da transfe
rência ("Importância do aspecto homossexual da transferência de quatro casos
de neurose obsessiva masculina" - 1948). Supondo, com efeito, o obcecado en
cerrado na jaula de seu narcisismo e logo dotado "de uma fraca corrente de libi
do objetai", assistimos a ereçao de fantasias homossexuais, que têm como fuo
çao, segundo Bouvet, abrir uma via de acesso ao outro por meio de uma ídenti
ficaçao viril. No modo pré-genital e regressivo, as fantasias de felaçao realizam
a comuobao fálica com o analista e inauguram uma nova etapa das relaçoes de
. objeto.
Vemos, entretanto, nessas observaçOes, que o surgimento de fantasias ho
mossexuais com relação ao analista oao obedece, de forma alguma, a uma lógi
ca do desenvolvimento. Elas se manifestam em momentos privilegiados, sobretu
do quando sao precedidas de pensamentos agressivos. O que Bouvet traduz
em termos de rivalidade imaginária nao é menos revelador de "(a angústia que
o Outro) inspira de oao ser um semelhante" (cf. Écrits, p. 615).
Em 1958, na "Díreçao da cura", Lacao julgava, severamente, uma técnica
que consiste para o analista em encarnar no real o peso e a medida da boa rela
çao com o objeto, a título de ser ele mesmo o significante fático em pessoa. É
a condíçao para que se efetue um actíng out perverso, que consiste em se conse
guir no real este agalma fático.
De um modo geral, Lacao oao buscou opor neurose e perversao por uma
diferença no desenvolvimento, mas, pela funçao que representa o operador do
("1') da castraçao na fantasia. Sua crítica de uma coocepçao da gênese da ho
mossexualidade fundamentada no Complexo de Édipo invertido, segundo os clás
sicos, permite precisar os avatares da metáfora paterna em cada caso.
Crítico da orientação de Boehm (The feminity complex in man - 1930),
Lacao faz observar que o Édipo do "homossexual" é normal e oao é discriminan
te, do ponto de vista de uma clínica diferencial: neurose ou perversao. A rivali'
dade com o pai existe da mesma forma que os traços de ídeotificaçao viril em
cada caso. Dito isto, Lacan limitou o campo da perversao propriamente dito,
desvinculando-a da demanda de amor dirigida ao pai. Assim, no "Homem dos
lobos", Freud designa com o termo homossexualidade o conjunto dos traços
de submissao passiva ao pai, cooseqaêocía de sua identificação com o gozo matemo.
A este registro de amor pelo pai, Lacao opOs uma versao que acentua o
objeto e, sobretudo, o objeto da fantasia; numa época em que se considerava,
apressadamente, por influência do Kleínísmo, que o pênis do pai era objeto da
cobiça do homossexual, Lacao se referia, antes, a uma topologia do objeto inter
no. Ela correspoode a uma posição subjetiva .b em particular: é a angústia do
encontro com o pênis no interior do corpo da mulher que gera, propriamente,
a ínversao e a exigência de um reaparecimento do objeto no real.
É, pois, a fantasia da potência fálica da mulher, e oao do pai; que opera.
Sem dúvida, esta última oao é o atributo do homossexual. Para lhe garan
tir uma especificidade, Lacao retomou as observaçOes de Boetlm para deduzir
uma conjectura propícia à .efetuaçao desta fantasia: a saber, um pai apaixona
do demais pela mae do paciente, e que oao está em posição de representar a
lei de seu gozo.
Que possa daf resultar um acidente da metáfora paterna, é, realmente, o
que se passa no caso de André Gide; nao se poderia dizer que o desejo de sua
mae foi significado pelo falo. Uma conjuntura, vemos, que, favorecendo a per
versao ao mesmo tempo, oao excluí as inibições, sintomas, angústia.
58
A homossexualidade na neurose
Homossexualidade e histeria
59
Serge Cottet et alii
BIBLIOGRAFIA
60
Jairo Gerbase
FANTASIA MASOQUISTA
E TRAÇO DE PERVERSÃO
Nosso tema supõe que vamos limitar nosso trabalho ao exame de uma de
terminada posição subjeiva, sustentada por uma fantasia que o sujeito pode ser
levado a atuar, de acordo com o cenário dessa mesma fantasia.
Histeria e perversão
Autoerotismo e gozo
FALO, Rovisla Bra•ilcira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1989 p.61 -64
Jairo Gerbase
Pu/são e perversão
62
Fantasia masoquista e traço de perversão
63
Jairo Gerbase
Porém, o fato de que para obter seu gozo autoerótico, masturbatório, lhe
é obrigatório pensar na crucificaçao de Cristo, ou nas torturas de escravos co
mo os descritos em "A Escrava Anastácia" nos leva a pensar que ele realiza
um gozo perverso que deve ser caracterizado como um traço de perversao do
neurótico obsessivo.
Mas pode também lhe ocorrer encenar uma fantasia masoquista sem pas
sar necessariamente ao gozo masturbatório.
Por isso, somos levados a concluir que uma fantasia masoquista deve ser
diferenciada de um traço de perversão. Falta à primeira a natureza de um ato
perverso que se acaba ou num gozo masturbatório ou num gozo sexual propria
mente dito.
64
Jordan Gurgel
penis no coito. E por fim ocorre a mudança do objeto desejado: o penis cede
lugar a um filho.
A busca da feminilidade é uma constante na vida da mulher, a partir de
uma multiplicidade de trocas, com o objetivo de encontrar um equivalente pa
ra o penis.
Mas para Freud surge um impasse: a mudança de sexo (substituição do
clitóris pela vagina), e a mudança do modo de satisfação (substituição da ativi
dade pela passlVldade), não dão conta da problemática feminina. O estatuto
do desejo de ter um filho e a identificação com o pai tampouco resolvem.
Para Lacan a problemática situa-se na divisao entre a linguagem e o cor
po, entre o Simbólico e o Real. O questionamento da feminilidade encontra-se
para além da dialética do Significante e da Castração, seria da ordem de um "in
significável", um "insubjetivável", algo em que não pode haver um traço no in
consciente, senão sob a forma de um umbigo, um buraco, uma hiância.
Atrelado nesta idéia, Lacan define o problema da feminilidade como o
de uma falta no inconsciente, falta de recalque (já que só o significante pode
ser recalcado) - há, portanto, uma falta do significante que represente a mulher
· no inconsciente.
A mulher quer ser reconhecida como sujeito e isso só é possível se algo
advém no lugar dessa falta, e um dos caminhos para suprir esta falta é a HISTE
RIA. A histérlca põe-se ao abrigo do falo, mas logo percebe que isso não a completa.
Toda a Clínica da Histeria gira em torno deste ponto de umbigo: o falo
que a histérica encontrou em seu pai é sempre insuficiente. O pai é estrutural
mente impotente; ele não pode dar a ela o apoio esperado para assentar sua
identidade feminina. Há af uma falta .radical, mais que uma falta no recalque,
é uma impossibilidade de recalcar, porque o significante que deveria ser recalca
do falta pura e simplesmente. Não há no Outro um significante do sexo femini
no. É por isso que a histérica aborda a sexualidade à maneira do homem. Mas
onde estaria a parte feminina da feminilidade? Não há resposta para isso. No
entanto a histérica acha que tem: privada de sua feminilidade ela se coloca no
lugar de objeto de consumo entregue à perversão do homem. _
66
Traço de perversão na histeria
a sexualidade feminina"), nos diz sobre a perversao masculina: "O motivo imagi
nário é o desejo de preservar o falo que é o que interessou ao sujeito na mãe.
Portanto a ausência do fetichismo na mulher deixa suspeitar um destino diferen
te desse desejo nas perversOes que a mulher representa".
A partir destas 2 citações podemos deduzir que pode advir algo além da
fantasia homossexual na histérica (que seria uma vicissitude da própria feminili
dade), algo da ordem de um gozo retido, não submetido à castração simbólica,
relacionado com a perversão polimorfa da criança. Estamos querendo dizer que
a mulher pode dar um passo à frente em busca de sua feminilidade, passando
. ao ato, colocando sua fantasia em ato.
Vejamos um fragmento de um caso clínico:
Erna é uma jovem Sr". que nos procurou trazida pela famfiia. Após a se
paraçao do marido (há 6 meses), passou a vivenciar um certo deslumbramento,
com desinibiçao e euforia, levando-a a atitudes irresponsáveis, tanto profissio
nais como em sua vida privada. Nas entrevistas iniciais quase não falava de sua
sexualidade; referia ter tido "casos" mesmo quando ainda casada, mas, atualmen
te, apesar de muito procurada, estava arredia às investidas dos homens. Durao
te 2 sessões ameaçou contar um segredo: "eu sei que você já está acostumado
com isso, mas é difícil falar ... mas você já sabe, não é?" O imaginário do analis
ta funcionou; em silêncio, naturalmente.
Na 3!! sessao, contou que teve um relacionamento homossexual com uma
amiga da prima, na casa desta, onde estava hospedada. - "eu não sei como acon
teceu ... ela é uma mulher incrível, linda, todo mundo comentava isso ... eu nun
ca imaginei que ela fosse sapatao". Continua seu relato: " ... para mim ela é ao
drógina ... transei 3 vezes e gozei muito ... era como um homem" ... "mas não te
nho nada a ver com mulher ... você sabe que eu gosto de homem". Nas sessOes
seguintes passou a falar do interesse em reconciliar-se com o marido.
Sabemos que na Histeria o mecanismo estruturante é o recalque, diferen
te do desmentido da Perversão, onde o sujeito reconhece e desmente a castra
ção materna. Ele diz um não que resulta, ao mesmo tempo, em um sim e um
nao. Nao podemos então falar de perversão no sujeito histérico, mas sabemos
que este sujeito age, atua. O sintoma histérico é uma ação (nos diz Freud e La
can); a conversão é uma manifestacão de um ato que expressa a divisão do su
jeito, é uma encenação visando a realizaçao do gozo.
Para que ocorra um ato perverso é necessário passar do limite, ultrapas
sar uma certa barreira imposta pela angústia de castração, no qual o neurótico
geralmente se detém. Mas ele pode ir adiante, colocando sua fantasia em ato,
passando ao ato e af teremos um traço de perversão em uma estrutura neurótica.
Voltemos aos casos clínicos:
No caso Dora, ela não faz da Sr!!. K sua parceira sexual, ela não coloca
em ato sua fantasia histérica de procurar uma outra mulher para dar conta de
sua feminilidade e portanto nao há traço de perversão em Dora, porque o tra
ço de perversao sempre implica no ato do sujeito sobre a realidade.
Em Erna, a nossa paciente, a fantasia é colocada em ato e af temos um
Traço de Perversão em uma estrutura neurótica. A nossa reflexão e o propósi
to deste trabalho é colocar o Traço Perversao na Histeria, como um recurso ex
tremo da histérica na tentativa de dar uma resposta ao seu questionamento
em relaçao à sua feminilidade. No caso de Erna foi-lhe preciso fazer um ato ho
mossexual para se dar conta da sua condição de mulher desejante, privada do
falo e colocar-se na posição de objeto do desejo do homem. Restou-lhe, por fim,
a opçao de reconciliar-se com o ex-marido.
67
Jésus Santiago
Durante o Seminário sobre "O desejo e sua interpretação" Lacan nos suge
re, vivamente, a leitura do texto de Glover como exemplo do que seria "um er
ro revelador da apreensão da pesquisa freudiana sobre a perversão ( 1 1)".
A inspiração capital de Glover reside no discernimento da . função de pro
teção que o sujeito encontra no curso das formações perversas, particularmen-
69
Jésus Santiago
70
A toxicomania não é uma perversão
NOTES
71
Jésus Santiago
7. lbid., p. 315.
8. E. Glover, "The relation of perversio-formation to the developement of reality-senae", op. ciL, p. 491.
9. lbid., p. 499.
1 o. lbid., p. 502.
11. J. Lacan, le s�minaire, livre VI, le Désir et sou interpretation, (1958), in�dit, 13 mai 1959.
12 lbid., 11 juin 1959.
13. S. Freud, "Le clivage du moi dans le processus de défenae" (1938), Ré�ultat, idées, problemes, PUF,
p. 284.
14. J.-L. Gault et d'autres, "Structure du f�tichisme", Traits de perversions dans les structures cliniques,
Navarin, p. 29.
15. lbid., p. 31.
16. J. Lacan, La logique du fantasme, le �minaire, livre XIV, in�dit, 10 de mai 1967.
72
Maria do Rosário Collier do R�go Barros
Como dizer algo deste texto de Lacan, objeto de nosso cartel, "A Juventu
de de Gide", que tem como subtítulo "a letra e o desejo", e onde está em ques
tão, entre outras coisas, o problema da relação do homem à letra?
Lacan se apoia, neste escrito, nos livros de Jean Delay ( 1 ) e de Jean Schu
lumberger que fazem a psicobiografia de Gide, utilizando para isto o que ele
chama "pequenos papéis", ou seja, notas pessoais, diário íntimo, caderno de lei
tura e toda a sua enorme correspondência.
A letra, então, se refere af ao conjunto dos escritos de Gide, seus roman
ces e todos esses "pequenos papéis", onde as cartas tomam um lugar todo espe
cial, sobretudo pelo vazio deixado por aqueles que Madeleine Rondeaux-Gide,
prima e esposa de Gide, queimou.
Madeleine descobre o que ela sempre quis . ignorar: as relações homosse
xuais de Gide quando ele parte para a Inglaterra ao encontro do amante, pelo
qual tinha se apaixonado.
Então, desesperada pela "transfiguração por amor" que ela percebe pela
primeira vez nele, e num movimento de "ciúme elementar", como diz Schulum
berger, ela queima as cartas endereçadas a ela por Gide durante 30 anos de cor
respondência, após lê-las uma por uma.
Diante desta traição, ela diz ter que fazer alguma coisa. "Eu tanto sofri...
Eu queimei tuas cartas para fazer alguma coisa ... "
Este ato, Lacan o compara ao ato de Medéia, ato pelo qual Madeleine
mostra claramente que ela se separa do ser ideal que Gide quis fazer dela (2).
Ato que Lacan considera como o de uma "verdadeira mulher", "em sua
inteireza de mulher".
É deste ato que cu gostaria de partir para tentar apreender, levando em
conta o efeito dele sobre Gidc, o que este escrito de Lacan pode nos ensinar
sobre a articulação da letra e do desejo, ou, mais precisamente, da letra e do
gozo. Digo da letra c do gozo porque parece ser o que se revela a partir do va
zio deixado por essas cartas queimadas. Essas cartas, diz Lacan, "ocupavam o
lugar mesmo de onde o desejo se retirou" (3).
Neste vazio as cartas, enquanto objeto, vieram se instalar.
A reação de Gide a este vazio, que encontramos no que ele escreve no
seu diário íntimo e -no seu escrito "Et nunc manet in te", nos revela a dimensão
de objeto "a", de condensador de gozo dessas cartas, às quais Lacan dá um esta
tuto de objeto fetiche.
Então, o gozo não está presente explicitamente neste texto, mas na sua
presença está aí indicada no vazio deixado pelas cartas queimadas que, ao desa
parecerem, revelam sua função de gozo.
A letra é aí abordada no momento em que ela falta, é queimada, o que
denuncia sua dimensão de objeto.
É importante sublinhar aqui o equívoco da palavra "letre", em francês,
que reenvia tanto à carta como a letra.
Então: a letra-carta e o desejo.
FALO, Revista 13rasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1 989 p.73-75
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
74
Gide e Madeleine: Um ato de Medéia
Ele a constitui assim, como objeto de seu amor, amor etéreo, como dizia
ele, não carnal, e evitava de se confrontar com o desejo dela. Ele a provia des
tes objetos, acreditando com isso lhe dar o gozo que faltava e que não conse
guia, dar de outra forma, porque nos, braços de uma mulher ele se sentia de
mármore e ela se tornava uma estátua. E o que ele diz em "Se o Grão não Morre ... ".
Ele se assegura de um gozo, se pode dizer assim, não contaminado pelo
desejo (vontade de gozo).
Estas cartas é o que liga Gide c Madeleine. Este ato de Medéia produz
assim, como diz Lacan, uma fratura na consistência imaginária deste laço, fazen
do ecoar sem cessar para Gide o "não há relação sexual".
Com este ato, Madeleine o obriga a confrontar-se com a "não relação se
xual" que ele tentava tanto fazer existir.
Ela o obriga a confrontar-se com a falta na mulher, nesta mulher não toda.
Por isto, por este ato, ela se torna uma ''verdadeira mulher", ou seja, ape
nas uma mulher, castrada, desejante, que, como tal, "só é sem ter", como diz
Lacan no Seminário "0 Desejo e sua Interpretação".
Diante desta constatação, Gide entra num trabalho de luto que, com a
morte de Madeleine, se torna infindável, patológico.
Por que?
Minha hipótese é de que este trabalho de luto, frente ao buraco no real
aberto pelas cartas queimadas; como pela morte de Madeleine, exigia de Gide
separar-se, ou seja, subjetivar a perda de um objeto já perdido desde sempre
que ele tentava, pelo objeto fetiche, fazer existir, para em sua "vontade de go
zo" devolvê-lo ao Outro.
Perder este objeto ao qual ele mesmo estava identificado, era perder seu
próprio ser, o que para ele significava morrer.
Gide escreve: "Perdi o gosto de viver, tudo me é indiferente. Eu só vivo,
desde este ato, de uma existência póstuma, e como à margem da verdadeira vida".
A morte aparece justamente aí, onde a castração parece impossível para
Gide, porque tem que ser desmentida.
A sombra do objeto recai sobre o sujeito, como diz Freud em "Luto e
Melancolia" a propósito do luto melancólico. Gide, identificado a este objeto,
cairia junto com ele.
No trabalho de luto, o objeto fica sempre perdido e o Outro para sempre
descon;pletado. O sujeito pode, então, investir um novo objeto.
E este trabalho que Gide não consegue completar.
Queria terminar com uma frase de Gide que ilustra essa dificuldade com
a castração e a particularidade do seu trabalho de luto.
"É o melhor de mim que desaparece e que não contrabalança mais o pior".
O pior, podemos pensar, é justamente para ele a falta radical do Outro,
a falta radical da mulher.
Para as jornadas de Cartéis do Corte Freudiano.
NOTAS
1. Jean Delay que Lacan tanto elogia, tem o mérito de criar o que ele chamou de psicobiografia, on
de não é de uma história natural dos espíritos que se trata, como em Saint-Beuve, onde a obra apa
rece como um reflexo puro e simples da vida do sujeito.
Ao contrário deste, Delay toma todos esses "pequenos-papéis" endereçados por Gide à posterida
de, através dele, enquanto biógrafo, em sua dimensão de ficção, de fantasia.
2. Lacan diz na pág. 761 dos Escritos, comparando Gide a Jasão: "Pobre Jasão: parte para a conquista
do tosão de ouro da felicidade, ele não reconhece Medéia!" Medéia, mulher de Jasão, o ajuda com
sua magia na busca desse tosão de ouro - espécie de troféu, de graal, objeto agalmático. Mas Jasão
a tra i. E para vingar-se, ela mata, estrangula seus filhos.
3. J. Lacan: Escritos, pág. 762.
4. J. Lacan: Escritos, pág. 41.
75
Sonia Alberti
"0 hotel estava situado fora da cidade, cujos arredores, deste lado, são
arenosos. Fazia pena ver essas oliveiras, tão belas no campo ao redor, submergi
das pela metade na duna movediça. Um pouco além, éramos surpreendidos por
um riacho, um magro curso d'água, surgido da areia o tempo suficiente para
refletir um pouco do céu antes de ligar-se ao mar. Uma assembléia de lavadei
ras negras, acocoradas perto desse pouco d'água doce, tal era o assunto diante
do qual vinha de se instalar Paul." ( 1) Paul era companheiro de viagem de An
dré Gide, ambos virgens, tendo partido juntos de Paris em 1893 para conquista
rem no norte da África aquil_o que antes por "timidez, pudor, nojo... " (2), não
haviam experimentado. "Eu havia prometido juntar-me a ele; mas, por mais can
sativa que fora a caminhada na areia, eu deixei me levar para a duna por Ali -
esse era o nome do jovem carregador:" que acompanhava o turista francês "nós
atigimos em seguida um tipo de funil ou de cratera, cujas paredes dominavam
um pouco a paisagem, e donde era possível ver chegar. Assim chegado lá, sobre
a areia em cdeclfnio, Ali joga xale e mantô: ele lá se joga a si mesmo e, todo
deitado de costas, os braços em cruz, começa a me ohar rindo. Eu não era to
lo a ponto de nao compreender seu convite: mesmo assim não respondi imedia
tamente. Sentei-me, não longe dele e, no entanto nem tão próximo, e, olhan
do-o fixamente por minha vez, esperei, com grande curiosidade, pelo que ele
iria fazer ( ...). Sobre o limite do que se chama: pecado, eu ainda hesitava? Não;
eu ficaria por demais decepcionado se a aventura tivesse que se terminar pelo
triunfo de minha virtude - que (então) eu já desprezava, eu já tomara em hor
ror. Não; foi bem a curiosidade que me fez esperar... E eu vi seu riso lentamen
te dissipar, seus lábios se fecharem sobre seus dentes brancos; uma expressão
de tristeza sombreou eu rosto charmoso. Enfim ele se levantou:
"Então, adeus, disse ele.
"Mas pegando a mão que ele me estendia, eu o fiz rolar pelo chão. Seu
riso imediatamente reapareceu. Ele não se impacientou por muito tempo co
mo os nós complicados de seus laços que faziam a vez do cinto; tirando de seu
bolso um pequeno punhal, ele cortou de uma só vez o emaranhado. A roupa
caiu; ele jogou longe sua camisa, e se levantou nu como um deus. ( ... ) No esplen
dor adorável da tarde, de que raios se vestia minha felicidade!... (3)
Essa foi, relatada pela pena do próprio escritor, a sua primeira experiência.
A outra, descrita no mesmo livro, relata sobretudo o estado no qual Gi
de se encontra após uma cena dessas que ele chama de puro prazer:
"Minha felicidade foi imensa e tal que eu não posso imaginá-la mais ple
na se o amor af se misturasse. Como haveria af questão de amor? Como eu te
ria deixado o desejo dispor de meu coração? Meu prazer era sem ruminaçOes
e não devia ser seguido de nenhum remorso. Mas como eu chamaria então mi
nhas exaltações ao fechar em meus braços nus esse pequeno corpo selvagem,
ardente, lascivo e tenebroso?...
"Eu fiquei por muito tempo, depois que Mohammed me deixara, num es
tado de jubilação fremente, e, mesmo já tendo, a seu lado, atingido cinco vezes a
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.76-82
A homossexualidade de André Gide
volúpia, eu revivi muitas vezes ainda o meu êxtase e, retornando ao meu quar
to de hotel, prolonguei até o amanhecer os seus ecos.
( .. .... .. ........... )
.. .. .
77
Sonia Alberti
dade. De outro lado a esposa, escolhida no reflexo dos caracteres maternos, ob
jeto de puro amor, o que faz da impotência psíquica o segundo fator de maior
incidência na queixa do psicanalista - como diz Freud no texto que se segue àque
le, na trilogia sobre a vida amorosa. No amor, a mesma demanda, mas no dese
jo a marca da impotência que está longe de reconhecer no desejo a marca do
significante que mortifica.
A homossexualidade não é da ordem da perversão em geral. A questão
pois que se coloca é a de saber se estamos diante dessa divisão tal qual Freud
a desenvolve no texto de 1910, o que nos fará concluir uma homossexualidade
neurótica, ou se, como em Gide, a homossexualidade aponta não para uma im
potência do desejo mas para um desejo, que, com diz Lacan, jamais foi humani
zado (9).
Do quebra-cabeça de sua história, dos petits-papiers aos textos auto-biográ
ficos, passando pelos romances que, como dizia Delay, psicobiografavam o artis
ta, o que nos fica hoje que nos permite diagnosticar mais esta do que a outra
das hipóteses?
A começar, como mostrou Stella Jimenez em seu trabalho, um enigma,
o qual o próprio autor nos deixa de forma consciente: deixando a vida sem na
da ter compreendido, ele relega a tarefa ao psiquiatra. E aqui Gide se diferen
cia fundamentalmente de Schreber que tem certeza de seu delírio e em suas
Memórias procura mostrar ao psiquiatra aquilo o que seus contemporâneos não
queriam entender.
Se Gide tivesse querido realmente esclarecer o enigma, ele não o poderia
ter tentado? Sua passagem rapidíssima no divã de Mme. Sokolnicka, deixa mais
uma vez a questao da análise quando o traço não é traço mas estrutura, e sua
observação sarcástica para com Freud e a psicanálise no tempo em que o Pai
da Psicanálise ainda era vivo, de maneira que ele poderia tê-lo procurado pesso
almente, demonstram que aquele excesso estranho não trazia problemas para ele.
Se no início Gide ainda viveu a relação com Mériem - prostituta árabe
com a qual foi bem sucedido -, o desejo ali não insistiu. Assim que apareceu a
mãe, mesmo a tendo afrontado anunciando que iria rever Mériem, Gide não ti
nha mais coragem ( 10) para repetir a experiência. É no longo fio de Ariadne
que o desejo se imprime. Não, ao contário, o objeto de escolha homossexual
torna-se, após Mohammed, a sua "normal", de forma que , o desejo se normali-
za aí na clandestinidade, como diz.
E no entanto, escreve Gide, há muito mais formas de homossexualidade
que um heterossexual pode supor, e uma faz horror a outra. Assim Gide se hor
roriza quado assiste a penetração anal de Mohammed. Nada disso é para ele.
"Para mim, que não compreendo o prazer senão face a face, recíproco e sem
violência, e que muitas vezes, igual a Whitman, o mais furtivo contato satisfaz,
eu fiquei horrorizado por um lado pelo jogo de Daniel, e por outro, de ver se
prestar, tão complacente, Mohammed" ( 1 1).
Nada disso escaparia a Freud já em 1905 em seus Três Ensaios ... , ou se
ja, somente dez anos após essa experiência de Gide, já postulava que "Entre os
homens a relação per anum não corresponde de forma alguma à inversão; mas
turbação é de igual frequência o único alvo, e delimitações do alvo sexual - até
o simples espargimento sensível (Gefuehlsergiessung) - são aqui até mais co
muns do que no amor heterossexual ( 12).
Delay já aponta que o modo de gozar em Gide não sofre qualquer altera
ção com a puberdade. O prazer sempre foi e sempre será masturbatório. Evi
dentemente não se trata aqui de falta de criatividade, Gide dá vastas provas de
78
A homossexualidade de André Gide
que sofre tão pouco da falta desta como da falta de poder condensar em seu
objeto sexual as duas tendências - a terna e a prazerosa. Trata-se antes de um
alvo sexual que veio para ficar, para se substituir ao gozo primário da primeira
infância, fenômeno que Lacan identifica a um "mimodrama de sua histeria infan
til": a quebra da louça, a estranha metamorfose de Gribouille, que nesta época
o levam ao orgasmo.
Vertente do ser nessa criança solitária, educada na mais estrita moral pro
testante, e para a qual fica a pergunta: foi ou não foi desejada? Delay contra
põe a história de Kafka à de Gide: Kafka é o filho de uma mãe dece e de um
pai tirânico, Gide é filho de um pai doce e de uma mãe tirânica ( 13). E é claro
que quando se coloca essa pergunta é sobre o desejo da mãe que nos perguntamos.
Há um certo momento em que Gide esclarece esse desejo. É quando a
mãe diz: eu não vou deixar você ser um virtuose no piano pois há algo melhor
para você do que simplesmente interpretar as obras dos outros ( 14). Gide já
era quase adulto mas isso não invalida o fato de que aí se reconhece um dese
jo da mãe. E se reconhecemos que todo desejo é desejo do Outro, a obra literá
ria de Gide está aí para respondê-lo. E no entanto ...
Em 1884, no dia de ano novo (Gide tinha quatorze anos), voltando da ca
sa de Anna Shackleton, "já contente de si, do céu e dos homens, curioso de tu
do, alegre de nada e rico imensamente do futuro" ( 15) Gide viu de repente, des
cer no céu em sua direção, como em resposta à sua felicidade, uma pequenina
coisa voadora e dourada, à maneira do Espírito Santo. "Eu levantei a mão; um
lindo canário nela se alojou; ele palpitava como meu coração que eu sentia en
cher meu peito.
"Voltei correndo para perto de minha mãe, contente de trazer o canário;
mas sobretudo o que me enchia, o que me levantava da terra, era a certeza en
tusiasmante de ter sido celestialmente designado pelo pássaro. Eu já me inclina
va a me acreditar uma vocação; quero dizer uma vocação de ordem mística;
me parecia que uma espécie de pacto secreto me ligava dali em diante, e quan
do ouvia minha mãe desejar para mim tal ou tal carreira ( ... ) eu me prestava a
seus projetos por conveniência, ( .. ) como se prestaria alguém a um jogo, mas
.
sabendo bem que o interesse vital estava em outro lugar. Por um pouco eu te
ria dito a minha mãe: Como disporia eu de mim? Não sabe então que eu não
tenho o direito? Você ainda não compreendeu que eu sou eleito? Eu acho mes
mo que um dia em que ela me empurrava a escolha de uma profissão, eu lhe
retruquei alguma coisa desta ordem." (16)
Não é possível datar pelo texto o que veio antes e o que veio depois na
história de Gide, se foi a mãe quem lhe disse primeiro que ele serviria para al
go melhor do que simplesmente interpretar a obra dos outros ou se foi essa cer
teza mística, que beira o delírio, de ser eleito pelo Espírito Santo e que se repe
te inúmeras vezes em seus textos autobiográficos. Provavelmente ambas passa
gens são concomitantes, pois não resta dúvida que as duas dizem respeito a
uma e mesma coisa. A elas não é possível deixar de associar todo o sentimento
de solidão e de dessemelhança experimentado por Gide desde a memória a
mais remota e que deixou esta marca de palavras ditas com desespero aos on
ze anos, pouco depois da morte do pai: "eu não sou igual aos outros! Eu não
sou igual aos outros!" ( 17).
Desespero que evoca o mesmo Schaudern, que poderíamos traduzir co
mo 'calafrio na espinha do ser' (tremblement du fond de l'être, como diz Delay),
e que Gide já experimentara, quando seu pai ainda era vivo. Lacan o retoma,
esse Schaudern, para mostrar que aí se aloja sua própria morte. Algo que pode-
79
Sonia A/bem
80
A homossexualidade de André Gide
râmetro em sua paranóia. Para Gide, ele crê no que sente mas porque isso o
coloca na série dos autores que começa a encontrar então - de Goethe a Proust,
passando por Nietzsche e Oscar Wilde, e que lhe restituem a vida. Para estes,
trata-se de levar a lei do Outro às últimas consequências, o que nós, lacanianos,
não podemos deixar de associar à obra de Sade. Gide escreve: "Começou a me
parecer que o dever não era talvez para cada um o mesmo, e que Deus poderia
ele mesmo ter em horror esta uniformidade contra a qual protestava a nature
za, mas ao que tendia, me parecia, o ideal cristão, pretendendo macerar a natu
reza. Eu não admitia mais senão as morais particulares e apresentando às vezes
imperativos opostos. Eu me persuadia que cada ser, ou pelo menos: cada elei
to tinha que desempenhar um papel sobre a terra, o seu precisamente, e que
não se assemelhava a nenhum outro... " ( 18). E é então que Gide relê o Evange
lho com novos olhos, denunciando o que dele fizeram as Igrejas, e projetando
escrever: O cristianismo contra Cristo ( 19). "Emancipar-me da regra; legitimar
meu delírio, dar razão à minha locura" (20). E é assim que Gide ergue uma no
va moral, em adoração a um Apolo desconhecido (21), com a ajuda de Goethe,
a ajuda de Nietzsche, e que tem como Outro o seu Corpo Próprio, a Natureza
do romantismo alemão, o Diabo que no seu corpo se aloja e, finalmente, a pró
pria Literatura. Seu gozo vem completar esse Outro, e como escreve ao que vi
mos no início, esse gozo é da ordem da exigência, do imperativo "diabólico" que
deve ir além da exaustão, nesse gozar face a face, onde a castração não se mos
tra. Daf que até a velhice pode dizer: "eu não sou senão uma criancinha que
se diverte" e, confirmando o que Freud disse em 1938, "eu não colo, eu jamais
pude colar perfeitamente com a realidade. Não há nem mesmo, propriamente
falando, desdobramento que faça que, em mim, alguém continue espectador
daquele que age" (22). Haveria prova mais explícita da redução do Outro à divi
são subjetiva? "Não: é aquele mesmo que age, ou que sofre, que não se leva a
sério. Eu creio mesmo que na hora da morte, eu me direi: 'tiens! il meurt' (o
ral ele morre)" (22).
Mas se é em Goethe que primeiro encontrou a mensagem, reconcilian
do-o com a vida, é também a partir de sua leitura que ele pode deixar cair sua
inibição e tornar-se escritor a ponto de vir a ser Prêmio Nobel de Literatura.
Finalmente, na adolescência, sua mãe o obrigava a escrever cartas para a avó
paterna, que escrevesse qualquer coisa, mas que escrevesse sempre ... Essa litera
tura, até o último momento, seis dias antes da morte, como diz Gide, é também
um imperativo (23).
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1. GIDE, André Si /e grain ne meurl in Joumal 1939-1940 Souvenirs, Paris, Bibliotheque de la Pieda-
de, Gallimard, 1954, Vol 104, p. 560.
2. Idem, p. 552.
3. Idem, pp. 560-1.
4. Idem, pp. 593-4.
5. FREUD, Sigmund "Die Ichspaltung im Abwehrvorgang" (1938) in Studienausgabe, Frankfurt a. M.
, S. Fischer Verlag, 1975, VoL III, p. 393.
6. Idem.
81
Sonia Alberti
7. FREUD, Sigmund "Ueber einen besonderen Typus der Objektwahl beim Manne" (1910) in Studie
nausgabe, op. cit,. Vol. V.
8. Cf. C01TEf, Serge Freud et /e désir du psychanalyste, Paris, N avarin, 1982. p. 154.
9. LACAN, Jacques "Jeunesse de Gide ou la Jettre et )e désir" (1958) in Écrits, Paris, Seu i!, 1966. pp. 753-4.
Com relação a essa falta da palavra que humaniza o desejo, gostaria ainda de acrescentar que sem
ela o desejo permanece identificado à sujl causa e, jamais submetido ao - da castração, impossibili
tando o "immer was anderes", fixando o alvo da pulsão.
10. GIDE, A, op. cit., p. 569.
11. Idem, p. 596.
12. FREUD, Sigmund "Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie" (1905) in Studienausgabe, op. cit., VoL
v. p. 57.
13. DELAY, Jean La jeunesse d'André Gide, Paris, Gallimard, 1956. VoL 1, p. 267.
14. GIDE, A, op. cit., p. 516.
15. Idem, p. 478.
16. Ibid.
17. Idem, p. 439.
18. Idem, p. 542.
19. Idem, p. 607.
20. Idem, p. 606.
21. Idem, p. 570.
22. GIDE, André "Ainsi soit-il ou Les jeux sont faits" in Joumal ... op. cit., pp. 1226-7.
23. Idem, p. 1243.
82
Marie Claire Boons
P ropor-se ao Outro ser "sua" falta, até mesmo lhe oferecendo por ser sua
própria morte em se servindo desta parte vazia, perdida - preservada? - na Alie
nação significante, e assim, do próprio lugar daquilo quP neste Outro faz lacu
na, questionar um desejo do qual se trata de provar - nos três sentidos desta
palavra, seja "pór o desejo do Outro à prova", "reconhecer se ele tem as qualida
des requisitadas", "sentir" este desejo, - tal seria o "gesto" do sujeito que Lacan
inscreve no coração mesmo do segundo processo de "causação" do sujeito, aque
le da Separação. Como sabemos, esta interseção das hiâncias, desenha o lugar,
em abismo, do objeto "a", o objeto que faltará sempre, e que circunscreve a pulsão.
Sabemos também que, em seu intinerário circular em torno do objeto per
dido, a pulsão que parte do corpo e a ele faz retorno, não sem haver por um
instante excedido o princípio do prazer, por um ganho transitório do gozo, rom
pendo assim o equilíbrio mantido das tensões internas do aparelho psíquico, es
ta pulsão se serve necessariamente de um objeto qualquer, indefinidamente subs
tituível, do qual ela espera um efeito de retorno ligado à suscitação do objeto
perdido. Quer dizer que utilizando este qualquer objeto, a pulsão abre, no pró
prio lugar da perda, a possibilidade fulgurante de preenchê-la, e é sobre isso,
sobre esse ganho de gozo, que no instante seguinte ela se fecha.
Para Freud, como para Lacan, a montagem pulsional e o trajeto que ela
implica, ressalta de uma subjetivação sem sujeito que lhe advém de ter desapa
recido sob o surgimento identificatório de sua Alienação no Outro do significan
te. É pois esta parte vazia de todo significante que é posta em risco no proces
so de Separação, acomodada à falta percebida no Outro.
Em outros termos: o sujeito faz de seu desaparecimento um objeto para
o outro e este objeto, declara Lacan, é talvez o primeiro objeto do sujeito. O
primeiro objeto que ele (o sujeito) propõe a este desejo parenta!, do qual o ob
jeto é desconhecido, é sua própria perda - PODE ELE ME PERDER? - (Os
quatro conceitos, Ed Francesa p. 194).
Com repeito à problemática do sentido, constituída na Alienação, pode
mos resumir as coisas assim - coagulado sob um primeiro significante fora senti
do, o S I que o prende a um qualquer ideal recebido do Outro - o sujeito sucum
be, quando da colocação em circuito do S2, o segundo significante, pelo qual o
sentido se introduz. Este segundo significante é portanto responsável pela que
da do sujeito, (por seu recalque originário), e por sua entrada no jogo do senti
do e do não sentido.
Na Separação, é sua parte fora sentido que o sujeito arrisca: ele faz de
sua perda, - e, em sua fantasia, de sua morte - o objeto do desejo do Outro, o
"Che vuoi?" advindo na transferência: "Que quer ele de mim?" passa por um
"Pode ele me perder?" questão cuja incidência toma ao final do tratamento uma
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1 989 p.&3-86
Marie Claire Boons
forma radical.
Assim, ao se incluir como falta no Outro, o sujeito se faz ser, o "se faz"
remetendo aos modos próprios da libido em jogo na pulsão. Em busca dos obje
tos sempre cessfveis, nos limites das zonas erógenas que ela recorta sobre o cor
po e separa de suas funções, a pulsao se liga à produção em eclipse do objeto
perdido. Como sabemos, para que o objeto funcione como causa, é necessário
que haja af um traço desta perda. O objeto perdido só é perdido se passa pela
provação de sua queda. É um objeto que foi perdido, cuja perda provoca o de
sejo e que, no instante reversivo da pulsão, vai surgir e se perder. Que é, se per
dendo. Não é um objeto foracluído que não estaria no campo. Está no campo
e a pulsão o faz circular na vacilação de seu jorramento e de sua escapada.
Os suportes do objeto perdido são hoje célebres, tantas vezes enumera
dos, e são fundamentalmente quatro, mas, podemos contar entre eles, além da
placenta evocada no livro XI do Seminário, o falo como; objeto imaginário, o
jato de urina, o fonema, o nada. (Écrits, p. 8 17). Eles materializam a perda, de
la são "as figuras": se eles oferecem um suporte de ser a parte desaparecida do
sujeito, servem também para simbolizar o mais profundo "objeto perdido" do
qual nos é dito no Livro XI do Seminário, que ela é esta parte de si mesmo que
o vivente perde por ter que entrar no ciclo sexual para se reproduzir.
Por isto Lacan propõe a pulsao como tendo duas faces: ela presentifica a
sexualidade no inconsciente, e (ela) representa, em sua essência, a morte.
Modelada em torno do objeto a pulsão é, portanto, - no início de um cor
po "aparelhado" pelos significantes, - em tomada de contacto com um real de
um gozo sempre em excesso sobre aquilo que dele faz passar como sexualida
de, na economia psíquica inconsciente e na dialética do desejo. Mas ela repre
senta também a morte e dizer da pulsão que ela representa, é, ao mesmo tem
po, colocá-la a partir das leis significantes: é engajá-la nos circuitos do semblante.
Na pulsão, o sujeito não está lá, ou melhor, como dissemos, ele só está
Já segundo sua parte vazia, aquela ejectada de sua inscrição alienada ao significante.
Ora, um dos traços que distingue a pulsao da perversão é principalmente
que na perversão o sujeito está Já encarnando o objeto perdido, a "totalização
do laço": na própria perversão do circuito pulsional, onde implicou um outro
qualquer, o qual divide ou angustia, e do qual recebe na vergonha, na surpresa
ou no viés de uma identificação imaginária, seu ser de objeto: este objeto que
em sua "encenação" o perverso vem a ser, não é o objeto "a" enquanto ausência,
no qual se margeia sua busca, mas, em seu lugar exato, um destes, perdidos e
por um instante restituídos, que o figuram: voz, olhar, seio, fluxo de merda, flu
xo de urina etc.
Atribuamos um lugar à parte no teatro perverso, à posição masoquista
do sujeito, a qual não é, como se empenha em sublinhar Lacan, o puro e sim
ples avesso do desejo sádico.
Evocarei aqui uma paciente muito antiga. Ela se lembra de uma frase que
foi decisiva para uma longa paixão amorosa. "Eu te dobrarei à minha lei", esta
frase única pronunciada pelo homem encontrado, nela desencadeou um orgas
mo. A continuação da ligação fez aparecer, ao nível sexual, um modo de rela
ção intenso e cúmplice onde ela gozava ao ser forçada à obscenidade. Este ho
mem tornou-se para ela, nos instantes repetidos de um gozo obtido, a voz de
comando enquanto ela perdia progressivamente toda possibilidade de uma pala
vra que fosse sua. Quando ele se apaixonou por uma outra mulher, certamen
te ela não faltou ao encontro com a dor e nem em se constituir como dejeto
desta relação, afinal bastante banal, tanto assim que caracteriza em nossas sacie-
Posição perversa e fim de análise
85
Marie Claire Boons
-:e frequentemente com uma força particular, uma posição masoquista onde é
o gozo que ele retorna com força e resiste a toda colocação de saber, que ele,
o analisante, enunciara, a menos que, por um mesmo efeito, sejam convocados
em seu corpo, ainda sobre o divã, doenças que o destruam.
Trata-se de agarrar ao sujeito suposto saber do qual o analista foi supor
te, no próprio momento em que este entra em vacilação, trata-se de inquietar
este Outro, de alertá-lo, de suscitar nele a angústia, agitando a bandeira da des
truição, de fazê-lo reagir a qualquer preço, como se fosse absolutamente neces
sário que ele cuspa, enfim, um pedaço, como se houvesse uma última palavra
a mais, uma palavra do fim que a pronunciaria, e que seria o todo do enigma
do desejo e. do gozo.
Assim como o voyeur procura o que não se pode ver e, surpreendido pe
lo outro, torna-se, por inteiro, olhar escondido, da mesma forma, o analisante,
face a uma recrudescência da pulsao masoquista, se empenha em encarnar o
nada do gozo que não se pode dizer e do qual nada quer saber, quando af se
trataria de largar este nada, deixando vir as palavras a respeito deste nada, e
elaborando o que estas palavras dizem, ou seja, dotando do nada em questão
de um nome suplementar. Em suma, fazendo a volta do nada, com palavras com
pondo um saber. Isto, o analisante resiste a fazer, pelo fato de que este gesto
não somente faz o Outro imcompleto, não somente deixa mal a demanda de
amor, como também o confronta com as relaçOes sexuais. Há af, portanto, uma
manobra extrema para evitar a torsão pela qual a Separação representa o retor
no da Alienação.
Porque, depois de tudo, esta torsão consiste essencialmente nisto; por
um lado, o analisante, afinal de contas, indefinidamente relançado, deixa de tra
zer o material a aquele que não é mais presumido como detentor de suas cifras,
se confronta com o fracasso do sentido e o larga, deixando efetivamente aque
le que não cessou, por outro lado, de representar este fracasso, em sua flutua
ção silenciosa em sua poltrona.
Mas, ao mesmo tempo, é de fato se apropriando das condiçOes significan
tes que lhe foram feitas na Alienação, em as fazendo-as suas, como faz seu o
fantasma que fixava sua relação ao gozo; fantasma do interior do qual ele sabe
que de agora em diante se desdobra, e se desdobrará ainda sua história signifi
cante que ele pode, enfim, deixar sua própria bagagem - o equipamento de seu
passe - pelo saber que ele emite, que ele pronuncia, ele, o analisante, a seu pro
pósito. Desde af, hei-lo pronto para um desejo de saber que servira à história
de outros sujeitos.
Destacado, acéfalo, não estará preparando o seu desejo, não para encar•
nar, mas sim para representar o ideal, não para encarnar o objeto, mas sim pa
ra simulá-lo, mesmo se seu corpo e mais particularmente a sua voz evocam es
te objeto para efeitos de verdade e de sentido? Não lhe virão estes da palavra
de alguns outros, à qual ela poderá, daí em diante, decifrar, conduzir a este pon
to de onde se arranca e se elabora um pouco de saber a respeito do real?
86
Antonio Quinet
Goal
Nos Três ensaios, l'reud nos diz que Schaulust pode se tornar uma perver
são sob três condições:
Primeira: quando esse gozo do olhar se limita exclusivamente às partes geni-
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.87-92
Antonio Quinet
tais.
Segunda: quando o sujeito desconhece o nojo. E ele dá o exemplo do vo
yeur das funçOes de defecação e admite uma grande plasticidade e reversibilida
de de objetos que podem servir para satisfazer diversas pulsOes simultaneamente.
Terceira: quando no lugar de preparar o ato que ele chama de normal, a
cópula, ela se desvia deste.
Freud termina pela afirmação de que os exibicionistas mostram suas par
tes genitais para que façam o mesmo com eles - o que denota nessa perversão
o circuito da pulsao: o exibicionista se exibe para que em retorno alguém se exi
ba para ele, presentificando o que Freud designa por atividade e passividade.
Numa nota de 1920, ele observa que o exibicionista depende em grande parte
do complexo de castração, e que aí se encontra a afirmação renovada da inte
gridade do órgão sexual masculino e a sexualidade infantil do menino diante
da idéia de que esse órgão falta ao aparelho genital feminino.
O exibicionista mostra o pênis para se assegurar do desmentido da amea
ça de castração (a "reafirmação da integridade do órgão sexual") pela positiva
ção da falta ( + ), onde vem oferecer à vista, não apenas seu pênis como órgão
real mas a própria posição do sujeito como falo. O perverso em seu ato mostra
ao mesmo tempo que ele é o falo e que tem o falo. Isto permite depreender
uma dupla identificação do perverso com respeito ao significante fático: ele se
identifica com o falo que falta ao Outro materno; e se identifica com o Outro
falicizado, como o travestismo o ilustra.
Em toda perversão o sujeito joga com o significante fático, daí Lacan de
nominar o fetichismo de "a perversão das perversoes", onde é manifesta a valo
rização do falo. A perversão é uma via na qual o objeto se envereda para cons
tituir-se, na verdade, como esse objeto simbólico para enganar o desejo da mãe.
A questão sobre o desejo do Outro, o sujeito responde colocando-se nessa posi
ção de ser seu falo. A valorização do significante fático na perversão se situa,
portanto, na dimensão da tapeação: trata-se de tapear o Outro a respeito de
sua castração, desmentindo-a. Essa dimensão de jogo, de encenação, de burla
está sempre presente. O coupeur de nattes corta as tranças reafirmando a castra
ção para melhor desmenti-la. O que o exibicionismo mostra é o que não se po
de ver, o falo simbólico que ele tenta representar pelo pênis; O voyeur procura
ver o objeto como ausência para tampar o furo no Outro.
Lacan nos diz, no Seminário XI, que o olhar pode representar a falta cen
tral manifesta no fenômeno da castração ( .JV,- ). Com efeito, encontramos a
correlação do olhar com a castração desvelada no mito da cabeça da Medusa,
comentado por Freud no artigo de 1922 com esse mesmo título.
A cabeça de Medusa tem serpentes no lugar de cabelos e a percepção de
seu olhar é mortal, petrifica o espectador. Atenas, a deusa virgem, carrega a ca
beça de Medusa em seu escudo de guerreira com o objetivo de aniquilar seus
inimigos. A decapitação (da cabeça cortada de Medusa) e a multiplicação dos
símbolos fálicos (as serpentes) denotam, segundo Freud, a castraçao - permitin
do-o fazer equivaler ao horror provocado pela Medusa com a angústia do meni
no diante do órgao sexual feminino, cujo efeito retroativo é conhecido como
ameação de castração. A visão da cabeça de Medusa deixa o espectador rígido
de terror - petrificação que Freud identifica com a ereçao do pênis. O mito de
Gorgona ilustra dois aspectos presentes no domínio visual - horror e prazer -
horror da castraçao e o prazer escópico. Prazer mixto de horror, o mito demons
tra a vinculação de Eros com a pulsão de morte e expressa o paradoxo do go
zo no âmbito escópico, a Schaulust, que é desvelado na perversão.
88
Schaulust e perversão
89
Antonio Quinet
90
'ichaulust e perversão
zer já que o sujeito desaparece diante do objeto. Vemos, por meio deste exem
plo, como a pulsao se manifesta na neurose: ela se satisfaz no sintoma, mostran
do-nos em sua constituição o gozo, Schaulust, do objeto causa de desejo. O pre
ço desse gozo foi o desaparecimento da visão.
Peeping Tom é também o nome de um filme de Michael Powel, realiza
do em 1960, que foi censurado por muitos anos.
O Peeping Tom é um caso muito peculiar: ele não é o voyeur clássico que
espia em toilettes e lugares escondidos para capturar o olhar no momento da
surpresa ou pânico quando a vítima o descobre. Mark Lewis é um fotógrafo pro
fissional e cameraman que usa o seu trabalho para fotografar ou filmar os últi
mos momentos das mulheres que ele mata: ele filma o rosto e a expressão da
vftima exatamente no momento em que ele está matando com o tripé da sua
câmera, o qual tem uma faca afiada no final de um dos pés. O olhar aterroriza
do da vítima é multiplicado por um engenhoso mecanismo revelado no final
do filme. Ele começa filmando uma linda modelo que se exibe para ele e de re
pente ele aponta para ela um tripé de onde sai uma faca. Ao mesmo tempo
em que se aproxima da vftima com a câmera e a sua faca afiada ereta - aponta
da para a garganta da vftima - ele retira de dentro da máquina um espelho pa
ra que a mulher petrificada de pavor possa ver o seu próprio olhar esgazeado.
O espelho serve para amplificar ainda mais o pânico da mulher. Desta maneira
extremamente sofisticada ele reproduz o par imaginário do estádio do espelho,
porém, ao invés da jubilação, prolonga o terror a fim de capturar o olhar co
mo objeto a - ele faz isso por saber que, de certo modo, esse olhar incapturá
vel é um olhar de morte, um olhar de medusa - o mesmo olhar presente na pin
tura de Holbein "Os embaixadores". Trata-se de uma tentativa de tirar esta foto
grafia impossível de alguém sendo visto pelos próprios olhos - como Édipo de
pois de ter arrancado os seus - no momento em que a mulher de certa manei
ra já morreu, pois já não poderá escapar da morte, estando, no entanto ainda
viva. O dispositivo do espelho no momento da morte é a resposta à questão for
mulada por uma de suas vítimas: "O que é que pode me matar de medo?" A
resposta e Mark Lewis é a amplificação do medo. Contudo, nós, como especta
dores, sabemos que o medo é para Mark o significante-mestre que provém do
Outro. Seu pai era um cientista, um biólogo que dedicou sua vida à análise do
medo - das reações humanas ao medo. O diagnóstico de escopofilia é dada no
final do filme pelo psiquitra chamado para ajudar nas investigações dos crimes.
A explicação é sugerida quase no começo, quando Mark mostra à sua vizinha,
H elen, um dos filmes que seu pai fizera quando garotinho.
O filme mostra o menino como o principal objeto de interesse, curiosida
de, pesquisa e experiências do pai. Este, interessado nas reações do medo, ate
moriza o filho de vária maneiras enquanto vai filmando suas reações. Há uma
cena em que o pequeno Mark está dormindo quando, de repente, veinos uma
luz refletir-se em seu rosto, despertando-o. O espectador sabe que se trata do
pai que, com uma lanterna focaliza o rosto do menino dormindo na penumbra
do quarto. A técnica cinematográfica nos permite identificar esse foco de luz
como o olhar do Outro. O pai aparece como um sádico ao tentar compreender
a ansiedade do sujeito... e com este propósito não dispensa nenhum meio, até
mesmo o de colocar um lagarto na cama do menino para despertá-lo e filmar
seu pânico. Este filme dentro do filme tem a mesma função da peça dentro da
peça (the play in the play) em Hamlet, de Shakespeare; a qual, segundo Lacan,
torna presente a estrutura fictícia da verdade (Sem. VI, 1 1 de Março de 59) c
·
serve para Hamlet como uma orientação para suas ações. "The play is the thing
91
Antonio Quinet
wherein 1'11 catch lhe conscience of the king". Parafraseando Hamlet podemos
dizer que para Mark Lewis "The film 's the thing wherein 1'11 catch lhe look of
Helen". Com efeito, sua vizinha fica horrorizada com o que vê e Mark a olha
enquanto ela o filme de seu pai o olhando - e o espectador olhando tudo isso
o que provoca o Unheimlich de uma infinitização do olhar do olhar do olhar.
O filme do pai de Mark não é apresentado como ficção mas como um documen
tário, podendo desta maneira escamotear o que ele realmente é: a revelação
da sua fantasia inconsciente que poderia ser assim formulada: "Uma criança é
olhada", o que pode ser desdobrado em: "Uma criança é torturada pelo olhar do pai".
Outra cena extremamente signicativa é aquela em que o menininho está
sentado numa cerca olhando um casal de namorados beijando-se. Repentina
mente, o casal se vira e descobre o pequeno Mark completamente absorvido
em seu ato. E a câmera está sempre lá, nas mãos do grande Outro que se diver
te com a situação e não tem a piedade nem consideração por nada da ordem
do pathos; um Outro que não admite nenhum afeto - "Enxugue suas lágrimas
e não chore, seu menino bobo." - diz a voz do Outro em "off''. Nestes exemplos
podemos perceber a posição do perverso de ser, segundo Lacan, "um instrumen
to do gozo do Outro". Na vida adulta, a câmera de seu pai não está mais cons
tantemente sobre ele. Entretanto, ele faz o que tem de fazer como uma tarefa,
servindo ao gozo do Outro como um mandamento do supereu, do qual não po
de escapar. O Outro observa-o o tempo todo. A única coisa que pode detê-lo
é a prisão - ele a evoca pelo menos duas vezes. Helen, sua vizinha, não é capaz
de contê-lo, apesar de sua vocação histérica de salvá-lo da infelicidade. A mãe
de Helen, que é cega e por isso vê para além do mundo das aparências, se con
sidera bastante forte para detê-lo em sua corrida em busca do gozo - e o acon
selha a falar com alguém sobre isto. Ela sabe que falar é um modo de limitar
o gozo com o simbólico. O caso dele é urgente, e ele realmente se esforça em
falar, mas quando o psiquiatra lhe diz que a análise leva tempo, ele desiste - e
faz de Helen uma testemunha de seus gostos. No final do filme ele tem a esco
lha de ir para a prisão, mas prefere abandonar-se completamente à ordem dita
da pelo gozo - ele faz com ele o que fazia com suas vftimas: mata-se fitando o
seu horrível olhar agonizante no espelho, realizando sua identificação com o ob
jeto e fechando sobre si mesmo o circuito da pulsão escópica ao �e oferecer
em holocausto ao gozo do Outro for ever. Efetuação da versão do pai: sua pere
version.
92
Casos Clínicos
Serge André
TRANSFER�NCIA E INTERPRETAÇÃO EM
UM CASO DE PERVERSÃO (*)
disso, ele apresentava certas singularidades (por exemplo, ele passava a noite
acordado e dormia durante o dia), e mencionava uma angústia arrebatadora,
eu me decidf a tomá-lo em análise.
Somente após um longo ano de análise é que a natureza de seu sintoma
me pareceu clara, assim como sua estrutura subjetiva de perverso fetichista.
Nesse período, a análise foi marcada - e isso, desde a primeira sessão propria
mente dita - por uma transferência maciça se manifestando por verdadeiros aces
sos de pânico durante a sessão. Minha presença na poltrona c meu silêncio ins
piravam nesse analisante um verdadeiro terror, contra o qual ele não cessava
de lutar, enc'lrquilhado sobre o divã em um mutismo doloroso, de onde emer
gia, periodicamente, um "você me faz medo" ou um "eu quero ir embora imedia
tamente!" Após algumas sessoes, ele começou uma espécie de diário do qual,
gradativamente, ele me trazia páginas; na maioria das vezes, essas eram redigi
das em forma de cartas que me eram endereçadas e que lhe eram ditadas pelo
horror que eu lhe inspirava. Essas páginas, não desprovidas de um talento literá
rio que eu situaria no estilo de Maldoror ('Les Chants de Maldoror' de Isidore
ducasse, Conde de Lautreamont - nt), eu tive a impressão de que ele me entre
gava como a oferenda destinada a conjurar a potência de um deus feroz. Seu
conteúdo detalhava o menor de meus gestos, cada pose de meu corpo, cada do
bra da minha roupa, e ralatava o que ele chamava "a experiCncia atroz", isto é,
sua relação comigo! Ele a descrevia, eu cito, como "a aspiração em um cômo
do onde se é a poeira", e me designava por diversos sobrenomes tais como: "a
aranha Nilfisk" ("Nilfisk é uma marca de aspirador), "a aspiro-batedeira", "o pol
vo multi-tentaculado", "a borboleta de ouro de tromba sugadora", ou o "bura
co sem fundo"; em contrapartida, ele próprio se apresentava como "uma mani
festação do ridículo", "uma pilha de carne para salsicha explodida", "um tipo es
pecial de fodido", "um puro produto de polução", "uma alimpadura" etc ... Por
diversas vezes, ele termina suas missivas com um desenho, traçado com os ca
racteres da máquina de escrever: o desenho de uma bacia de WC, na qual ele
inscreveu, um dia, a seguinte legenda: "Mas, enfim, bem lá no fundo, encontrar
se-á os restos bem escondidos dos traços de nossos pais."
Então, nosss sessões não .eram fáceis de conduzir; ele, esperando angustia
do que eu reagisse a suas oferendas, e eu, convidando-o a me falar sem a distân
cia do escrito, quer dizer, a se dirigir à minha presença e não à minha ausência.
Os finais de sessão eram particularmente delicados, meu analisante se encontran
do dividido entre o terror e o pânico de que eu me aproximasse dele, e a exigên
cia, também exacerbada, que eu me mostrasse gentil para com ele. Mai� de
uma vez, quando, literalmente, ele foge do meu consultório, pára na escada, a
uma boa distância de mim, para me gritar: "Afinal, você gosta de mim?".
Apesar de tudo, ele me falava um pouco, e, assim, eu descobri que sua in
fância fora marcada pela ausência do pai e pela grande diferença de idade que
o separava de seus irmãos e irmãs. Com efeito, ele nasceu tardiamente, crian
ça não esperada de um casal que havia passado os quarenta anos e que já tinha
vários adolescentes crescidos. Aliás, ele não tinha, rigorosamente, nenhuma lem
brança de seu pai, a não ser a visão de uma cabeleira negra gomalinada; ele se
explicava pelo fato de que seu pai morrera quando ele acabava de completar
cinco anos. A esse respeito, o trabalho de análise lhe impôs fazer uma descober
ta que clareou a obscuridade que caiu sobre esse pai: assim, ele conseguiu levan
tar o véu de que, até então, tinham-lhe, cuidadosamente, escondido, a saber,
que a morte de seu pai foi, na verdade, um suicídio. Contudo, ele não pôde elu
cidar suas razões, sua família recusava respoder a suas perguntas. Ele tinha vivi-
94
Serge André
do com sua mãe, desde sempre ou quase, uma verdadeira vida de casal, já que,
muito rapidamente após a morte do pai, os irmãos e irmãs mais velhos tinham
abandonado a casa. Esse casal foi mais consolidado pelo desaparecimento do
pai, na medida em que esse foi seguido por um revés da sorte: o padrão de vi
da da casa, até então muito alto, teve que ser, de um dia para outro, reduzido
a uma quase-sobrevivência alimentar.
Mas, a respeito de tudo isso, ele falava pouco, obnubilado que estava pe
la transferência, e por suas nevralgias cotidianas. Ora, a análise começara há
cerca de um ano, quando ele se pôs a se queixar de que suas dores - até então
localizadas no lado esquerdo da face, da fronte ao osso maxilar - começaram a
se estender e a descer pelo pescoço, em seguida, passando pelo ombro, a inva
dir o lado do braço e do antebraço. Essa notícia me fez decidir a tomar essa "ne
vralgia facial" como um fenômeno de conversão. - não há, com efeito, nenhum
trajeto nervoso que corresponda à linha que descrevia sua dor. Eu comecei, en
tão, a interrogá-lo, sistematicamente, sobre essas dores e sobre o contexto no
qual elas apareciam. Ele admitiu, muito rapidamente, que elas deviam estar liga
das a fantasmas masturbatórios, já que, desde que a nevralgia se manifestou,
sua primeira reação era de se masturbar. Em seguida, ele percebe que seus fan
tasmas eram anteriores à dor nevrálgica, e que havia, certamente, uma ligação
de causa e efeito entre eles.
·
Então, com as maires dificuldades, ele me fêz uma confissão que esclare
cia a formação de seu sintoma e abria uma porta para a estrutura de seu dese
jo. Essa confissão comportava inicialmente uma lembrança infantil, a mais anti
ga de suas lembranças, dizia ele. Quando ele tinha a idade de sete anos, aproxi
madamente, ele teve a oportunidade de observar uma menina africana urinan
do; a menina tinha uns dez anos e ainda não era púbere. Olhando por baixo
da porta da privada, ele pôde ver, distintamente, o sexo da menina que ainda
não estava oculto pela penugem pubiana, e surpreendeu-se tanto pela linha que
desenhavam os lábios unidos do sexo, quanto pelo jato brilhante que dalf saía.
Desde aquele dia, me diz, ele ficou obsecado por essa visão, por essa linha do
sexo feminino glabro, linha que ele reencontrava em todos os lugares: bastava,
por exemplo, que ele percebesse um grão de café, ou, então, que ele cruzasse
com uma mulher que o olhasse com um ar afetado, (os lábios cerrados), para
que ele entrasse em ereção e se sentisse impelido a se masturbar.
Mais marcante ainda, esse rapaz que gostava de escrever e desenhar, só
podia fazê-lo por intermédio de máquinas, pois, a simples visão de certos traços
saindo de sua caneta induzia nele fantasmas masturbatórios. Ele me declarou,
também, que, regularmente, fazia curtas viagens nos países limítrofes, com o
único fim de procurar revistas pornográficas onde ele pudesse encontrar figuras
do sexo feminino glabro e não excitado, quer dizer, não entreaberto. Da mes
ma forma, ele não podia se impedir de fazer, pelo menos uma vez por mês, o
circuito das prostitutas até descobrir uma cuja forma do sexo lhe conviesse -
aliás, ele não mantinha com ela nenhum outro ato sexual, senão o. de olhar seu
sexo e dormir em seus braços.
Sua relação com a mulher tinha sido, certamente, perturbada pela exigên
cia precisa de seu fetichismo. Sua mulher tinha aceito, rapidamente, raspar o
púbis e lhe oferecer para comtemplar a linha de seus lábios unidos; mas, desde
que ela entrasse em excitação, era preciso, rapidamente, apagar a luz para que
ele não visse a fenda se abrir. E, além de tudo, desde que ele teve um filho, seu
sexo não se fechava mais como antes: permanecia uma ligeira irregularidade.
Na linha, uma abertura mínima dos lábios, inspirava em· meu analisAnte umu
95
Transferência e interpretação
aversão horrível.
Esses elementos me permitiram situar esse rapaz como um perverso feti
chista, ou, pelo menos, de assim qualificar seu fantasma. Seu fetiche fora susci
tado no instante de ver inicial quando, ante& mesmo de perceber a castração fe
minina na menina africana, ele viu alguma coisa na superfície do buraco, a sa
ber a linha formada pelos lábios. Em seguida, por metonímia, o caráter de feti
che se estendeu a toda uma série de linhas e de traços.
A partir do momento em que ele me fêz essas confidências, o estilo de
seu discurso mudou. Inicialmente, ele tornou-se falante. Em seguida, a insolên
cia e o desafio tomaram o lugar do pânico e da submissao que tinham, até en
tão, marcado a transferência, e a continuidade de seu diário se interrompeu.
Ele começa, por exemplo, a ironizar o meu saber de psicanalista - sobre o qual,
aliás, ele tinha adquirido alguns conhecimentos -, fazendo-me observar que, cer
tamente, nao fora por acaso e, sim, por causa de seu grafismo que Lacan tinha
escolhido a letra "Phi" para designar o símbolo do gozo sexual... Dito de outra
forma, ele . começou a me de mostrar que meu saber nao estava organizado de
maneira diferente do seu fantasma, e que nós estávamos ligados, cada um à sua
maneira, a nosso grao de café...
- Mas sobre essa função do desafio perverso, eu voltarei daqui a pouco.
Faltava elucidar seu sintoma de nevralgia facial. A soluçao apareceu quan
do eu lhe pedi para me contar, mais uma vez, a cena durante a qual ele tinha
observado a menina urinando. Ele me descreveu, precisamente, a porta do ba
nheiro, esburacada de alto a baixo, o sexo da mocinha e o jato de urina. "Vo
cê nao estava deitado sobre o lado esquerdo, o lado do rosto apoiado sobre o
solo?", pergunto-lhe. - "Sim!", me respondeu ele, completamente capturado pela
minha intervenção. E ele acrescenta que, ao se levantar, ele tinha sentido em
seu rosto o formigamento causado pelos cascalhos (graviers: cascalhos e também
cálculo urinário na terminologia médica nt) sobre os quais ele tinha apoiado
-
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Serge André
ponto de me mostrar sobre seu próprio corpo o signo todo poderoso que deve
ria conjurar o borrar da castração, mas, me falou disso com detalhe, e me en
viou o cartão do tatuador onde estava desenhado a figura que ele faria traçar
sobre as costas. Tratava-se de uma mulher-dragao, as pernas afastadas, que ele
iria trazer nas costas de tal maneira que a fenda do sexo dessa mulher, não de
senhada como tal, se confundiria com a linha que separava suas próprias náde
gas. Assim, ele realizaria sobre seu próprio corpo, a denegação perversa: rapaz,
lado cara e moça, lado coroa - e sabe-se lá se o lado coroa não é um simples
prolongamento do lado cara ou vice-versa. Aliás, fazendo de si o próprio carre
gador do fetiche, ele expunha uma proteção a mais contra o pai imaginário, o
pai terrível e castrador que, por lbe ter faltado, realmente, não era menos poten
te fantasmaticamente: bastava, com efeito, uma vez ta•uado, que ele lhe voltas
se as costas para mostrar-lhe que ele era mulhP:r, logo. já castrado - saborean
do em segredo o engodo dessa castração em trompe-l'oeil. (Pintura visando es
sencialmente criar, pr artifícios de perspectiva, a ilusão de objetos reais em rele
vo - nt).
A mim também, seu psicanalista, ele volta as costas, de uma certa forma .
.. É o motivo pelo qual pensei ser bom adverti-lo de que essa tatuagem era, so
mente, uma dissimulação. Ele me respondeu que disso eu nada sabia e que, ne
gligenciando a solução que lhe oferecia essa tatuagem, eu não levava em conta
a dor que ele deveria suportar durante meses, até mesmo anos, sob a agulha
do tatuador. A esse respeito, ele não estava completamente sem razão, pois, as
sim, ele me reenviava à necessidade do sintoma - a tatuagem tomando o lugar
da nevralgia da qual eu o tinha livrado.
A lição desse percurso, pitoresco sem nenhuma dúvida e cheio de ensina
mentos, bem que poderia ser essa: aliviando esse sujeito de seu sintoma, a psica
nálise talvez o tenha conduzido ao pior, o analista, finalmente, sendo, apenas,
· um intermediário na direção do tatuador. Sem dúvida - mas, isso não é uma ex
plicação, somente, uma interrogação a mais. O desenlace desse caso é tributário
da modalidade de transferência própria ao perverso? Modalidade que vou ten
tar, para concluir, articular a alguns traços de estrutura.
Sobre a transferência perversa, eu direi que o caso, do qual eu acabo de
lhes relatar brevemente o essencial, é absolutamente exemplar. A mudança que
afeta a transferência desse analisante, no momento em que seu sintoma se escla
rece, nos dá quase que uma materialização da Spaltung própria ao perverso:
de um lado a angústia - esse é o lado onde a castração é presentificada - , e do
outro lado, o triunfo - quando o feitche reencontra sua potência. A essas duas
vertentes da transferência e da denegação correpondente, dois modos de discur
so e dois endereçamentos distintos.
Na primeira vertente, o analisante não se comporta de maneira diferente
que um neurótico; ele oscila entre duas posições: aquela na qual se identifica
ao suposto objeto do qual o Outro se nutre (a poeira para o aspirador), e aque
la que ele só pode se afirmar como sujeito, com a condição de se castrar de seu
imaginário. A dialética dessas posições é conhecida: é aquela em que o sujeito
busca, desesperadamente, embora temendo alcançar, enganar o Outro, e aquela
em que o sujeito supõe que o que o Outro lhe demanda é a sua própria castra
ção. Nessa primeira fase, o sintoma é colocado à frente até ocupar, ao máximo,
todo o discurso do sujeito; o fantasma, ao contrário, é mantido secreto, sua apro
ximação sendo marcada por um desvanecimento subjetivo traduzido pela humi
lhação - o amor é, então, exigido do analista, como uma condição prévia para
que o fantasma seja abordado, porque, somente o fato áe ser amado pode rcs-
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Transferência e interpretação
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Serge André
partir de então, ele próprio ocupa essa posição de sujeito suposto saber. É exa
tamente o que se produz na segunda fase da análise que eu lhes relatei, quan
do nela, após a retirada do sintoma, meu analisante se torna arrogante e come
ça a me mostrar que meu desejo só pode ser estruturado como um desejo feti
chista - e, mesmo, que o próprio saber analítico só pode celebrar o fetichismo
do falo. Ele se apresenta então como o detentor de um saber do qual ele quer
me convencer de que sou somente o servidor e, diferente dele, sem o saber.
Ele se sente encarregado, desde então, a me iniciar na realidade de meu
desejo de psicanalista, e não CaJ?.Sa de me lembrar que foi o estudo da perver
são que ensinou a Freud o que é o desejo. Ele então não mais me demanda
amá-lo - o que ele me demanda, é reconhecer que eu gozo, e, mais especifica
mente, que eu gozo com sua presença de analisante, o que me coloca em posi
ção de sujeito suposto gozar.
Pois, para ele, bem entendido - e é também um traço de estrutura da per
versão - , só há desejo que conduza ao gozo. Nenhum lugar, então, para um de
sejo insatisfeito - o que constitui, como nos ensina a histérica, a definição radi
cal do desejo. É exatamente af que se situa o desconhecimento próprio à lógi
ca perversa: não que o perverso reduza o desejo somente à consciência de tê
lo, ou acreditar tê-lo, mas ele erige como uma necessidade absoluta o fato de
satisfazê-lo - o gozo torna-se um dever decorrente da lei absoluta do desejo - ,
um dever, do qual ele faz questão de que o parceiro, o Outro, seja persuadido,
também. É o que Lacan formula quando define o desejo perverso como "vonta
de de gozo". Sendo o gozo obrigatório, "exigido pela Natureza", como diz SA
DE, não há mais, evidentemente, lugar para a culpa, exceto a de se esquivar
ou de não estar à altura de seus preceitos. Solução prática para a culpabilida
de, sem dúvida. De onde uma certa euforia - que não evita, entretanto, ao per-
. verso sentir penosamente a injunção superegóica de sua lei.
Que ele esteja prestes a gozar, não é uma sinecura; mais do que tudo, é
a prisão que tem no horizonte um deus que, por não ser enganador - sabe-se
o que ele quer - , é mais exigente, a ponto ,do sujeito acabar por se oferecer a
ele em holocausto para não ser devorado. E então que, no caso evocado, o ta
tuador vem ocupar um lugar, lugar que o analista só pode deixar para outros:
o de instrumento desse deus obscuro.
Publicado em Acres de /'École de la Cause Freudienne; Transferi el lnterprétation dans les névroses et
les psychoses. Angers, vol. VI, Junho de 1984, p. 15.
Revisão de Sara Fux
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Genevieve Morei
UM FETICHISMO MALOGRADO
Esse título me foi inspirado por uma observação de Freud, que nota, no
"O Fetichismo", que este "poupa ... ao fetichista tornar-se homossexual, ao pres
tar à mulher este caráter pelo qual ela se torna suportável, enquanto objeto se
xual". Este não é sempre o caso. Assim, para Gide, o fetiche que constitui sua
correspondência com Madeleine não lhe permitiu nem desejá-la, nem evitar a
homossexualidade. Nem a Heitor, cujo nome eu escolhi, devido à excitação in
controlável que o dominou diante de uma tal "academia de homem" de Davi,
onde Heitor deitou-se nu no chão, tendo só o sexo velado por um vermelho de
um modo tão ambíguo que se poderia pensar em um ferimento.
Heitor, que, por profissão, é expert em imitação, especialista em laços so
ciais, cuja divisa seria "a de levar a harmonia às partes divididas", grande enga
nador do Outro, que ele consegue quase sempre tapear, evoca, pela sua infân
cia, o sujeito descrito por Freud em sua Jchspaltung de 38. Ele se lembra, com
efeito, de uma fobia de serpente, o que obrigava sua mãe a verificar o conteú
do de cada armário, e a embrulhá-lo num lençol ao dormir.
Contra o pesadelo assustador que lhe trazia todas as noites a imagem de
um "homem de metralhadora", ele tinha, como consolo, o travesseiro da mãe,
chinelos de sola entrançada, e de conservar consigo a palmatória de sua mãe,
cujos fios ele tinha trançado uma de suas lembranças mais antigas.
Esta série de objetos, ditos contrafóbicos, anunciavam o fetiche com o
qual ele se garantirá contra a castração materna.
É, com efeito, no início de tratamento, um sonho - "das serpentes verdes
escarlates" evocando-lhe, conjuntamente, o verde do travesseiro do divã e o es
carlate da ereção que lhe lembravam, além de sua fobia de serpente, esse tra
vesseiro materno cuja presença ele buscava e que avançava em sonho para sufocá-lo.
O "homem da metralhadora" é, evidentemente o pai, e o pai, para ele, se
reduziu à essa encarnação pura da angústia de castração, não tendo, sequer, re
cebido o disfarce que lhe assinala a metáfora da fobia. Nas na rrativas desse re
sistente que teria matado muitos alemães, Heitor percebia um gosto pelo assas
sinato. Na Alemanha após a guerra, ele teria conquistado as mulheres. Mas,
no entanto, desde antes do nascimento de seu filho, esse homem viril, matador
e trepador, tinha entregue as armas diante da mãe de sua mu lher, Marcelle.
Esta, "única a encarnar a legitimidade da família", dirá Heitor, descendia de
uma linhagem de mulheres alfaiates desde a Revolução (i.e., confeccionavam
calças para homens). Quando da morte de seu pai, o pai de Heitor havia rene
gado sua mãe que não tinha querido enterrar seu marido. Ele, então, havia se
deixado adotar por Marcelle como o filho que ela, jamais, tivera. Assim, toda
a família se encontrava sob o corte de Marcelle, que dirigia o atelier, e que foi,
para Heitor, criado nesse ambiente feminino, um nome-do-pai.
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan·dez 1989 p.l00-103
Um fetichismo malogrado
O momento de virada de sua infância se situa quando, aos sete anos, ele
emerge de uma grave doença apanhada no jardim de Marcelle, da qual sua mãe
o salvou ao dedicar-se, inteiramente, a ele.
É , aliás, ao sair de uma doença que deu à sua mãe pretexto para cuidá
lo de novo, que Heitor, não suportando mais ser "envolvido pelo amor mater
no", demandou uma análise. Apenas curado, ele se lança em duas atividades,
cuidadosamente distinguidas por ele, mas cuja comunhão de estrutura não lhe
escapará.
- Um travestismo, tendo aprendido a costurar desde cedo, Heitor confecciona
trajes femininos, que ele veste sob os olhares cúmplices de sua mãe e espanta
dos de seu pai, que, no entanto, não -dirá nada. Os dois mais belos teriam sido
um vestido de noiva e o traje de Maria Antonieta com crinolina.
- A premissa de sua homossexualidade: em seguida, ele arma uma tenda no jar
dim de Marcelle e convida os meninos, que ali se despem em troca de bombons.
Ele descreve, então, a excitação ligada ao olhar possível de Marcelle rodando
em torno Q,a tenda, como um "E" a mais. Assim, um pênis atrás de um véu so
bre o qual paira um olhar: tal é a estrutura comum desses dois traços de perversão.
Mas, a diferença entre o, •1ois, que o tempo não desmentirá, é que o pri
meiro sustenta uma idealização, faz existir a mulher como toda fálica atrás de
seu véu, mas exclui toda excitação sexual, enquanto que o segundo causa a ere
. ção. Do lado do travestismo, encontra-se "a elisão do pênis como vivo", escrita
por J.-A. Miller, unida, nós veremos, ao ideal do eu materno I.
Do lado da homossexualidade, a excitação é devida à presença positiva
do pênis, rp, sobre a imagem narcísica i(a).
Aos quinze anos, Heitor, instigado por sua mãe, entra como dançarino
em um grupo folclórico. Lá, a clivagem das duas atividades, extremamente mo
dificadas, continua. A dança será, agora, associada ao travestismo. Heitor dan
ça como homem, mas, se fantasia de mulher em casa, diante do espelho e sem
pre sob o olhar, agora fantasmado, do Outro. No grupo folclórico, ele se torna
rapidamente mestre de ballet, e, apaixonado por adereços femininos torna-se
especialista na touca do Poitou, a qual requer uma técnica particular: pregar a
renda em dobras. Cada dançarina terá sua touca alta, amorosamente costura
da por Heitor, versão sublimada do travesseiro-serpente - falo materno. Em ca
sa, de acordo com as sessões costumeiras, sempre diante do espelho, mas não
ao mesmo tempo, ele se contempla nu em ereção, se fotografa e se masturba.
A homossexualidade virá a seguir, em continuidade, o parceiro sendo esco
lhido como duplo narcísico.
Mas, de fato, ele, onde está?
Um "set" de quatro figuras, onde se distribui o suj eito, ordena sua relação
ao gozo; a balconista, o homem da metralhadora, o bicho papão, e o filho.
Heitor está dividido em "uma oposição de duas básculas identificatórias",
para retomar Lacan falando de Gide, duas identificações à sua mãe, a balconis
ta e o bicho-papão. A balconista é a mãe virgem de antes do casamento, o bi
cho-papão é a mãe envolvendo seu filho de amor e sufocando-o - o que não é
sem evocar o pesadelo gidiano "o abrigo me devora". É preciso saber que a mãe
renunciou à dança, quando de sua gravidez.
Assim, a primeira figura é aquela, fálica, da mãe intacta virgem e dançari
na. Heitor é a sua representação extraída de um filme do casamento de seus
pais: a mãe está aí, velada de branco, e ela repele o pai que a olha com cupidez.
Esta cena dá a matriz fantasmática do pênis velado, sob o olhar. É em tem
pos que, identificado à virgem dançarina à balconista segundo suas palavras -,
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Genevieve Morei
que Heitor deseja e se mascara, mentalmente, se coloca "em uma pele de mu
lher" para encontrar um homem.
Mentalmente, porque, jamais, ele se travestiu, realmente, em um contex
to homossexual, o que implica para ele a virilidade. Um sonho, durante o trata
mento, mostrou que o olhar do pai como figura da lei era essencial para criar
o efeito balconista. Mas a visão ideal pode se fender, a fantasia mostrando, en
tão, sua função de encobrimento do real. O ponto de horror é atingido quan
do a mulher, de olhada, mas, intacta, se torna possuída pelo "homem de metra
lhadora".
Heitor o evita, de hábito, identificando-se ao "bicho-papão" - nós o vere
mos - desde que ele tem uma relação sexual efetiva com um homem. Mas isso,
dá a chave do medo que o toma diante de seu chefe, quando, tendo mentido
muito sobre suas capacidades, por ocasião de uma mudança de emprego, ele
se via a um passo de ser desmascarado.
Tomado de pânico, ele ia vagar em torno dos "camionistas brutais" à saí
da do trabalho, com a idéia insuportável de se fazer maltratar, sexualmente,
por eles. O conteúdo desvelado, "ser amado pelo pai", que significa a castraçao
materna, suscita, entao, nele, uma aspiração obscura de que uma lembrança
obscura dá a pista, mas, que encontra seu limite em uma violenta angústia de
castração diante do pai, imodificada desde o pesadelo do "homem da metralhadora".
A segunda identificação ao "bicho-papão" coloca em cena a mãe, agora
completada falicamente pelo filho. O que é escamoteado, no salto de uma iden
tificaçao à outra, é a castração materna, equivalente à perda da virgindade.
Heitor narra essa história edificante: a mãe não queria filhos para conti
nuar a dançar. Ela não perdoará, então, a seu marido por sua gravidez e, grávi
da, fêz uma depressão severa, desejando, apesar de tudo, uma filha.
Quando da pergunta tradicional sobre o sexo no nascimento, a resposta
veio do bebê, que lançou um jato de urina sobre o olho de seu pai.
Este se felicitou pela virilidade de seu filho e a mãe, subitamente restabe
lecida, se pós a cuidar da criança. Assim, o bicho-papão é a mãe preenchida pe
lo filho, marcada, no entanto, pela castração sofrida pela balconista.
Heitor, então, se ele não deseja . senão como "balconista", não goza de
seus parceiros, senão como "bicho-papão", imitando o amor materno em seu la
do colante, envolvente, marcado por aquilo que ele chama sua "neurose tátil",
uma tendência a tocá-los sem parar, a manipulá-los, sem o seu consentimento.
Por outro lado, ele se vê conduzido a violar sua intimidade, a levantar o
véu, como ele diz, literalmente, vasculhando por toda parte, colocando-os num
catálogo com fotos tomadas sem seu conhecimento, gravando sua voz no telefo
ne em cassetes, para seus "arquivos". Mas, essa violação da intimidade, é, fre
qüentemente, mais moral, como mostra o exemplo seguinte, tirado de um gran
de número de anedotas semelhantes. Ele encontra um jovem, a cada vez, com
o estado de espírito da costureira: é talvez o encontro - ele não é bobo, dizen
do, aliás, que ele, jamais, amou um homem. Ele recebe, pouco depois, uma cor
respondência do jovem lhe anunciando que ele se enganara, que ele quer for
mar uma família, que ele se arrepende dessa única aventura homossexual.
Heitor, imediatamente, corre para consolá-lo, o aprova, louva seus proje
tos matrimoniais. Ao mesmo tempo, ele se aproxima dele, fisicamente, causa
sua ereção, o faz gozar, o que produz a confusão do outro, assim dividido ente
seus ideais e seu gozo. Isso obtido, ele cessa de interessar a Heitor, que o dei
xa, instantaneamente. Onde se vê que ele não se faz instrumento do gozo do
Outro, que ele só vem completá-lo para fazer surgir, ao mesmo tempo, sua divisão.
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Angelina Harari
UM HOMOSSEXUAL CASA-SE
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Angelina Harari
BIBLIOGRAFIA GERAL
LACAN, Jacques. Écrits. Du "Trieb" de Freud et du désir du psychanalyste. Paris, Seuil, 1966.
MILLER, J.-Alain. Notas pessoais das conferências no 11 Encontro Brasileiro do Campo Freudia
no. São Paulo, 1989.
MI LLER, J.-Alain: Cours 1989. "Les divins détails". Paris.
SOUER, Colette. "Anticipations de la fin" In: Actes de l'École de la Cause Freudienne. MarseiUe,
1989, p. 68.
REFE�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. LACAN, Jacques. Le Seminaire; livre XI; Jes quatre concepts fondamentau de la psychanalyse.
Paris, Seuil, 24 j uin 1964, p. 247.
2. FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In:_. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. v. XVIII. Rio de Janeiro, !mago, 1974, p. 211.
3. LACAN, Jacques. D'un autre a l'Autre (inédito) Séminaire 1968-69, 5 mars 1969. (tradução livre).
4. FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. op. cit p. 211.
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João Batista
TRAÇOS E TROCAS
Via vultos, não conseguia dormir com medo que seu pai viesse lhe pegar. Co
menta que ele nunca lhe fez carinho, nunca lhe botou no colo, mas bater, batia.
Por ser a mais velha tinha que ser a responsável por tudo. Ela era acusada pe
la irmã de ter concorrido para a morte do pai, em virtude de ter namorado
um homem que ele não queria.
A Sr" Z. comenta seus sonhos, ou melhor, seus pesadelos onde aparece
frequentemente a figura do "lobisomem". Fala que seu pai teria sido mordido
por um cão. Volta a falar do seu medo de ser estuprada pelo pai e, traz outra
versão .do "estupro" da sua prima. Segundo sua irmã, teria sido uma surra que
seu pai teria dado em sua prima. Ele teria feito isso por perversidade, diz ela.
Outras lembranças da infância surgem e com elas, sua raiva de bonecas.
Só brincava com homens e talvez por isso, essa coisa tivesse ficado em sua cabe
ça. Sonha frequentemente com a doutora, pretende procurá-la, fala do desejo
de se separar do marido e, se isso acontecer, não vai mais querer viver com ho
mem nenhum, pois, eles não sabem tratar bem uma mulher. Desculpa-se e per
gunta se sou casado. Sr" Z fala de sua passagem pelo Convento, da amizade
que tinha com uma freira louca e, ao falar o nome da freira, comete um ato fa
lho, troca pelo nome da doutora.
Tentaremos agora um comentário sobre a fantasia da Sr" Z.
"Meu pai estuprou minha prima", faríamos correspoder à primeira fase:
"meu pai está espancando uma criança" e, o que ele fez com ela, vai fazer comi
go. Passaríamos aí, a segunda fase, a fase masoquista: "Estou sendo espancada
por meu pai".
Como pensar a terceira fase?
Freud nos diz que a terceira fase envolve a fantasia com uma excitação
sexual intensa, fornecendo um meio para satisfação masturbatória mas, a Sr"
Z não me fala em masturbação, o que não afasta a possibilidade disso ocorrer.
Ela me fala de uma paixão pela doutora, um ódio, fala da sua raiva pela bone
ca, de não querer viver mais com homem nenhum. Não poderíamos pensar em
um "Traço de perversão na histeria?":
No intuito de um estudo comparativo, apresentar-lhes-ei um outro caso
da nossa clínica. Trata-se de uma pessoa do sexo feminino, com 38 anos de ida
de, exercendo a profissão de Trocadora ou Cobradora.
A morte de uma sobrinha querida, levou R.B. à internação em um hospi
tal psiquiátrico. Este fato ocorreu há mais ou menos oito anos. R.B. é peremp
tória na afirmação de não gostar de meninos, não suportar choro de menino.
Essa é a questão a que leva a procurar um psiquiatra, do qual se queixa de não
tê-la ouvido direito e encaminhado para psicoterapia. A agressividade aflora.
O segundo internamento de R.B., se deu há mais ou menos oito meses,
quando agrediu uma passageira, por problemas de "troco". Daí para cá, ela vem
sendo acompanhada por psiquiatras, sendo agora encaminhada à psicoterapia,
o que a aborreceu muito, em virtude de ter que se apresentar na Perícia Médi
ca do INPS e só ter a receita de um medicamento. O que será que eles vão di
zer? Questiona-me mais ainda: "Você é analista?"
R.B. coloca em dúvida a necessidade de terapia no seu caso, fala da ques
tão sexual se dizendo lésbica. Conta-me que já teve mais de 70 mulheres, viveu
com uma mais de 12 anos e ultimamente está com outra há dois anos. Esta tem
uma filha com a qual disputa o seu amor.
A menina é um impecilho na vida do casal, tem sete anos de idade e ciu
ma muito da mãe, o que fez com que R.B. forçasse a sua ida para a casa da avó.
R.B. é a sétima filha e, antes dela, nasceram seis homens. Ela diz que foi
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Traços e trocas
uma filha desejada pois, se fosse homem teria que ser batizado pelo irmão mais
velho. - Existe uma crendice que o sétimo filho homem, se não batizado pelo
irmão mais velho, viraria "lobisomem".
Sua famflia, segundo ela, é de pretos burgueses, só ela e um irmão que é
motorista, são "ferrados". Este significante ela usa frequentemente para se dizer
pobre, sem nada, diferente dos outros, pois, os outros cinco são formados.
Ela atribui à morte de sua mãe a desagregação da família, tinha 16 para
17 anos quando assumiu seu lesbianismo. Antes desse fato, R.B. teve alguns na
morados e com dois deles namorou na porta. Eles ficavam na porta e ela corren
do na rua, jogando bola, brincando com os meninos pois, não suportava o conta
to corporal e já no segundo beijo os enjoava.
Sobre o pai, ela o considera muito desligado, o oposto dela. Apesar de
dizerem que ela se parece muito com ele, até o jeitão.
É como homem que R.B. ama as outras mulheres e isso fica claro no seu
jeitão. Ela se identifica com o pai, é ferrada como o irmão, não leva desaforo
para casa, dá o "troco".
O jeitão desligado do pai teria desapontado R.B., daí sua consequente
transformação em homem, tomando a mãe como objeto de amor, em lugar de
pai. É com a morte da mãe que ela assume seu lesbianismo e parte à busca de
uma mãe substituta, uma metonímia louca.
O pai de R.B. é por ela julgado impotente, incapaz de oferecer-lhe o reco
nhecimento de seu pertencimento fálico, daí fazer-se homem, assegurar a lei,
pertencendo a uma ordem que supostamente escaparia a castração. Ocupando
o lugar do pai real ela tornaria mais honrosa a representação do pai imaginá
rio. Ela tinha todas as mulheres, uma horda. Haveria disposição de pagar o pre
ço de se fazer objeto oferecido no mercado das trocas?
O que teria levado R.B. a ocupar o lugar do mestre e se fazer homem?
Provavelmente a organização da subjetividade fantasística semelhante à do me
nino teria sucedido à castração. Um investimento da fase fálica com recusa do
gozo proposto no lugar Outro. É sabido que uma mulher pode na sua intrepi
dez frente a castração de se fazer o signo do "homem verdadeiro"; ora sabe-se
também que o ideal histérico aponta a substituição levando esta faculdade as
suas últimas consequências, sofrendo porém um corte no momento da sua reali
zação. É como homem que R.B. seduz uma mulher, um homem comparado
ao pai pelo jeitão, um rival para ela.
· R.B. goza em ser o que não tem. Ela faz um revezamento de objeto pelo
fatG cie não aceitar que o mesmo assuma seu sexo senão ao preço da castração.
Ela me disse ter sido uma filha desejada e por isso, o que ela desejava era o
que lhe faltava, ser o desejo da mãe, ser o falo, o que está em outro lugar.
Ela não podia ouvir o choro de menino, se refere a filha da sua compa
nheira como impecilho na vida do casal e provoca a separação mãe/filha. Isso
me faz pensar na equação (menino/falo).
O fato de ter colocado em dúvida a necessidade. de uma terapia no seu
caso e de ter falado da sua satisfação quanto a escolha objetai, fizeram-me ques
tionar sobre a disposição da entrevistanda em pagar o preço da "troca". Um no
vo tipo de escolha objetai face ao reconhecimento da natureza do seu desejo.
Outra forma de amor para ela seria insuportável.
1 09
João Batista
REFE� NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Jean-Jacques Gorog
do amor, e o amor, é isso que Lacan nos ensina no exame da transferência, im
plica, pela sua emergência, o conjunto da cadeia significante do sujeito, ou se
ja, o que o sujeito é como desejante. O perverso coloca de lado esta dimensão
por se agarrar à divisão subjetiva do outro, aos significantes do Outro, de quem
sua provocação suscita a mobilização, o amor ou o ódio do outro, que ele vive
rá por procuração. A operação de masoquista, de sse ponto de vista, é mais com
plexa que aquela do sádico, na medida em que seu corpo parece marcar a divi
são infligida pelo instrumento de tortura. Mas, se trata, apenas, de um transpor
te que mascara isso que é visado no outro, a divisão do outro, provocada pelo
gozo doloroso do sujeito. A punição antecipa a culpabilidade e daí a este qua
dro o aspecto enganoso de uma subjetivação do desejo. O gozo, aí, é bem real
e a castração, no lugar do Outro. O amor colocado ao abrigo é uma preocupa
ção de rigor ético, que terá lugar de moldura do objeto esperado no gozo, co
mo se sabe, desde a "Filosofia na Alcova" e seu comentário, por Lacan, em
"Kant com Sade".
Para nossa paciente, a preocupação se manifesta de outra maneira: o pe
dido de criança exige o amor e a parte de gozo levantada sobre aquela que o
incesto e sua lei interditava. Isto quer dizer que ela não pode se contentar do
desejo do homem, fosse ele carregado de todo o peso dos significantes de sua
história desde quando esse desejo é tomado numa operação que desconhece
sua própria dimensão desejante, seu amor, para tudo dizer, em proveito do re
al de um gozo desarrumado.
Ela exige que, então, a criança a vir encontre seu lugar na série de gera
ções da qual ela é o produto. É nisso que sua demanda de análise merece ser
entendida e permitirá que o traço de perversao aí encontre sua significaçao, pa
ra retomar o título de um artigo de Lacan que é tão-somente um outro nome
da Direçao da Cura, numa subversão do sujeito e na dialética de seu desejo.
Esta significação, pode-se adivinhar sem dificuldade, resolve-se na reorientação
do desejo, segundo um vetar que restitue ao traço de perversão seu avesso, a
saber, a fantasia bem conhecida desde o artigo de Freud: "Bate-se numa crian
ça". Nesse caso, se verifica que, do traço à fantasia, aquela, contrariamente, ao
.. traço restitui o desejo que restou errático na sua dimensão de privaçao quanto
ao exercício fático do pai, do traço à fantasia, há um intermediário obrigatório
que é a falta de gozo fático, um sintoma constituído, a frigidez alegada, logo
que falta a marca sobre o corpo que a escondia e que cobria seu pudor, até af.
Pode-se, naturalmente, considerar que se trata, aí, de uma perversão tran
sitória, porque a sequência demonstrou, com efeito, o caráter transitório desta
perversão.
É verdade que a dimensão ética apresentada no início fornecia o augúrio
de uma saída, de preferência, feliz. Mas, parece-me que é outra coisa que La
can toma em consideração com a perversao transitória. É o efeito obtido de
uma cura mal orientada sobre a escola do desejo. Outros efeitos são possíveis
desde o actíng-out do homem dos miolos frescos, abundantemente comentado
por Lacan, até a psicose que ele evoca igualmente em relação a essa questão
em L 'Ethíque (p.348).
Os exemplos são numerosos onde são causados pelo desconhecimento da
função do "desejo do analista", evocado sobre esse ponto desde a Escritos, mas,
não ainda formalizado antes do seminário XI, e não figuram, portanto, no tex-
to correspondente dos Écrits. ,
Pode·se fazer o catálogo dos erros dos analistas não-tolos? E ao que La
can se empenha a precisar, os diversos tipos de desvios atestados no movimen-
112
Traços de perversão, perversão transitória
113
J. -Jacques Gorog
não é parte integrante da cura, é, por definição, uma parte não integrável, por
assim dizer, visto que o gozo como tal não pode fazer sintoma. Para que a en
trada em análise seja efetiva, é preciso que o traço desvele sua função, ou seja,
aquela de suprir o defeito do gozo ao qual o desejo imprime s_ua marca.
Que nao tenha sentido fazer de sua vida um covarde (Ecrits p. 782) res
ponde à aposta da psicanálise. É porque o homem, perverso disso que ele detém
o órgao, experimenta algumas dificuldades e se sustenta de uma mulher, e da
coragem que nela vem disso que ela não tem a perder (louca, quer dizer, não
louca de todo) para poder orientar seu desejo em função do interdito que a per
versão a mais assegurada nao pode transgredir. É isso que indica Sade ao fim
da Filosofia da Alcova e que r_ � " " "' retoma em conclusao de seu seminário so
bre a Ética: "Noli Tangere Matrem".
114
Marie Hélene Brousse
homem de letras e no sentido estrito das cartas escritas à sua prima e mulher
Madeleine - um fetichismo cujo traço de perversao se estende a todos os seus
pequenos papéis, nem sempre constando no endereço o destinatário. As cartas
a Madeleine sao, com efeito, um fetiche, no sentido em que, por elas estarem
no lugar de seu próprio ser, sem que delas ele tirasse cópia, ele pensava poder
completar o Outro - que aqui é igualmente o Outro sexo que Madeleine encar
na - e assim poder assegurar o gozo. Esse gozo ele o inscreve, ao contrário da
brevidade que caracteriza suas práticas sexuais, no registro da posteridade, tal
vez da eternidade. No que se vê que, aí, se situa uma denegaçao da morte co
mo de toda castraçao do Outro.
Essa colocaçao, a nu, da posiçao subjetiva de Gide, que Lacan opera, is
to é, a colocaçao enquanto fórmula da relaçao particularizada de um sujeito
com a castraçao e significante fálico, de uma lado, e com o objeto, de outro, é
um verdadeiro modelo de aproximaçao clínica. Ela se revela, por essa razao, ex
tremamente preciosa para a abordagem clfnica de certos casos.
Acontece que, de fato, fui levada a receber três sujeitos cujas práticas se
xuais se reduziam às auto-eróticas. Atingindo os trinta anos, esses sujeitos se ti
nham resguardado, sempre, de toda relaçao com o outro sexo e apresentavam,
portanto, como um sintoma, essa virgindade da qual se queixavam por faze-los
sofrer, mais pelo distanciamento entre eles e o que se lhes impunha sob a for
ma de um imperativo social, do que pela falta de gozo, que de modo algum ex
perimentavam. De fato, "seus maus hábitos", para retomar a expressao, de um
deles, lhe trazem um gozo que, por ser solitário, nao é a menos e, sim, a mais,
satisfatório. É conveniente que o sexo masculino ou feminino desses sujeitos
nao se constitui uma variável diferencial, sem dúvida porque, do ponto de vis
ta da lógica da sexuaçao, esses dois homens e essa mulher se situam, no que diz
respeito a seus .sintomas, do lado masculino. Nao dispondo de tempo para de
senvolver os três casos, deles lembrarei, essencialmente de um, se bem que um
certo número de traços sejam comuns aos três. Assim, todos se caracterizam,
na lógica de suas existências, pelo que chamarei "uma muito grande normalida
de." Pontuais e eficazes em seus trabalhos, sem expansOes, sem expansões em
116
Auto-erotismo e traço de perversão
117
Maria Hélene Brousse
118
Yasmine Grasser
O amor é cego e tem os olhos para não ver. O álibi serve de defesa ao su
jeito que quer escapar de um perigo. O sujeito que toma o amor por álibi gela
o desejo do Outro para se preservar dele. A este respeito, se ele é neurótico,
usará do amor como uma defesa a fim de continuar a não querer saber nada
do desejo no sentido do recalcamento. Se ele é perverso, o amor servirá de co
bertura à sua vontade de gozo, a fim de desmentir a hiância do desejo. Ainda
mais, frente à perda do objeto do amor, af onde o neurótico reage pelo afeto
da angústia, o perverso invocará o amor, não como uma significação, mas, co
mo um vel que joga sobre a ausência insuportável.
J ohn, que será questão no momento, tem 17 anos. Ainda bebê foi fiXado
ao "não ver" do Outro do amor, e, em consequência, teve que erguer seu ser
vivo sobre uma ausência de luto de criança que ele encontrou em sua mãe, de
pois, sucessivamente, em duas mães adotivas. Isto se soube, quando ele tem
15 anos, de sua segunda mãe adotiva, que fez ressurgir sob meus olhos a fun
ção de um olhar cego pelo amor. Foi entre eles um amor à primeira vista ( 1).
Para esta mulher, este amor comporta um desejo de criança; para John, vai ser
a condiçao de sua escolha de objeto homossexual. Nesta ocasião, ela evoca sua
primeira infância, passada numa primeira família adotiva, onde o amor, e não
o desejo, o inclina à fidelidade a uma mulher em impasse com a maternidade.
Ela o veste de menina e ele exibe para ela uma feminilidade que ele tem, mas,
que ele dá em forma de amor, visando o esposo. Atualmente, ele já tentou reto
mar a vestimenta feminina da infância e se ofereceu aos homens.
Nossos caminhos se cruzaram numa instituição de educação, após a mor
te de sua primeira mãe adotiva. Neste lugar aonde o conduziu seu destino, ela
cairá estarrecido diante da posição do analista. Depois de dois anos de evitamen
to, ele suspenderá seu funcionamento para vir me falar. Há para ele um real
de possibilidade de entrar no trabalho de transferência? Nós tentaremos esbo
çar uma resposta.
John dá a idéia de que foi uma criança desejada, mas, um guri indesejá
vel. Isto se deduz de diferentes figuras de abandono que estruturaram seu desejo:
11.' - Ele é esquecido por seus jovens pais, de 16 anos, num hospital. Eles nun
ca retornaram para procurá-lo no serviço de pediatria onde foi hospitalizado
por um estado de mal formação (dedo supranumerário, hérnia inguinal). Eles
desapareceram com uma menina recém-nascida. Ele tem 16 meses.
21.' - Ele é cedido pelo pediatra a uma mulher que passava, diariamente, sob as
janelas do serviço com um carrinho de bebê vazio. Ela foi sua primeira mae adotiva.
31.' - Ele é abandonado por esta mãe adotiva, que morre de câncer. Ele tem 1 1 anos.
41.' - Ele é deixado, entre 1 1 e 13 anos, aos cuidados deste pai adotivo, que o
acusa da morte de sua mulher, mas que lhe pede, também, para consolá-lo.
511 - Ele é retirado e permanece numa instituição durante dois anos, dos 13 aos
15 anos.
611 - Enfim, ele encontra sua segundas mae adotiva. Ele tem 15 anos. Ele a cha
ma de mamae. Ela diz a seu propósito: "Nós nos adotamos".
Assim, embora esquecido no hospital devido à sua pequena irma, cedido
a um casal que o veste de menina, largado aos caprichos de um homem que lhe
pediu para valorizar seu ser no feminino, sob pena de castigos, J ohn é sempre
reconhecido pelo Outro do amor. A chave de seu desejo se interroga como se
segue: um menino nao é para ver, mas, que dá ele a ver quando se apresenta
vestido de menina?
Durante nossa primeira entrevista, ele abre diante de seu peito um cartaz
de Michael Jackson. Sua cabeça ultrapassa. Ele nada diz. Ele me olha. Procura
ele me dividir? Mas, eu recebo a questão muda: sob a vestimenta de Michael
· Jackson, aliás, ele mesmo, que dá a ver? Ao mesmo tempo, sua segunda mãe
adotiva, que o acompanha, me explica que ela lhe fez passar o gosto de urinar
à noite ao lado de seu leito. Eu deduzi que, no banheiro, ela não via se ele uri
na em pé como um guri ou sentado como uma menina. Ele não confunde a
mãe do amor, cujo lugar ela ocupa, com o Outro do desejo.
A infância de John
John sofreu abandono, mas, não foi deixado caído como Schreber, mas,
sim, como o menino Gide, cuja solidão foi envolvida de um misterioso amor
maternal. Com Gide, este amor ficou separado da carne, tendo sido disjunto
do desejo da tia para o pequenino menino que ele tinha sido entre seus braços
(É crits, p. 756). Com John, existe, igualmente, separação entre amor e gozo,
mas, à diferença de Gide, ele foi desejado, não por uma mulher, mas, pelo pri
meiro pai adotivo como menino vestido de mulher. Deste fato, um desejo de
gozo feminino se fixou à sua carne e ele o retoma por sua conta aos 16 anos,
quando se oferece como mulher aos rapazes de seu bairro. Esta disjunção, reto
mada da infância, é colocada em ato pelo olhar cego da janela de sua segunda
mãe adotiva, que nao podia nem vê-lo nem crer em seus ouvidos quando um
vizinho lhe conta.
John pede a todas as mulheres o amor cego, condição de seu gozo. Para
se assegurar, ele inventa um manejo: chegando sem ser visto por trás de uma
mulher, ele se apossa de sua mão, de surpresa, e fala, com convicção e rapida
mente: "bom dia, minha senhora". Uma cobiça furtiva tinge sua carícia clandes
tina, abusa da mão que se deixou pegar, e a torna, de repente, cúmplice de
uma vontade de gozo feita para dividir. O "bom dia, minha senhora", que cobre
a cena, é feito para prevenir toda objeção e chamar a solicitude da senhora que,
tocada em seu coração, responde, sempre, com uma voz rosnenta, mas, gentil,
confirmando por aí que nada foi visto. Imediatamente com um giro da bacia,
John encosta seus genitais sobre a mesa para se consagrar ao que não é para
se ver, ou seja, ser o reflexo do Outro feminino, a fim de fazê-lo existir.
Este gosto por mãos de mulheres provém do desejo de um pai por uma
pequena mão de criança vestida, de menina. Est? nova versão de pai produz
no imaginário de John a mudança de uma criança nasculina em menina seduzi
da. No curso desta substituição, ele recupera um rtsto de gozo masoquista. As
sim, no seu caso, a incidência de um desejo perverso proíbe o gozo fático ao
nível do órgão e dá forma ao ideal feminino, que ele faz existir com seu mane
jo do qual ele é, somente, o instrumento.
120
O álibi do amor na perversão
O luto desmentido
Quando sua primeira mãe adotiva morre, John tem 1 1 anos e ele fica só
com seu pai adotivo. Entre eles, nao há mais a mediação cega do amor donde
surgia o charme do ideal feminino. Não há, senão, a morte muito real e o ódio
que ele cria. A criança será retirada.
Lacan, a propósito do luto, nos adverte sobre sua função. Na !içao de
3 1/01/63, não é suficiente, ele diz, falar nem ver onde está o sujeito no momen
to da perda do objeto de amor. O luto é, para Lacan, outra coisa que uma iden
tificaçao ao objeto perdido, como o diz Freud ao fim de "Inibiçao, Sintoma e
Angústia": estar de luto implica ser a falta do Outro. Em consequência, já que
o amor é dar o que não se tem, no momento de um luto, a falta faz retorno so
bre o sujeito e lhe revela no que ele faltou para o Outro, e, daf, resulta uma
dor de existir para o sujeito.
Na perversão, do fato de um desmentido que faz existir o Outro, a dor é
deixada ao encargo do Outro.
Se o pai adotivo de John é neurótico, mas ele o é, ele fará aparecer um
substituto no lugar aonde faltou à sua esposa. Por um efeito de encontro, eu
tive o conhecimento do curioso fantasma que subjugou este homem. Ele infor
mou, ao serviço social, que se ocupava de John, que ele seguia os passos de seu
pai judeu, sobre seus lugares de trabalho. Quanto a John, ele só produziu, de
pois do falecimento, cenas de cemitério. Sobretudo, ele releva deste momento
um sinal, aquele da cruz, a partir do qual ele vai exibir as séries macabras de
objetos fabricados, de desenhos, de redações. De maneira concomitante, ele se
envolve numa produção sonora, ritmada e descontínua, evocando o apito de
uma locomotiva. No luto, estes dois seres reorganizam suas vidas a partir disto
que faz ou não retorno da falta a representar no que eles faltaram ao Outro.
O trabalho de um mostra que se trata da falta a ser pai. A atividade do outro
desvenda a estrutura de um desmentido. John se ocupa, com efeito, somente
de fabricar cruzes, que fazem sinal de significante, e de produzir os sons, que
são, somente, o índice de um gozo Outro, com o objetivo de fazer tela à ausên
cia real da mãe. Os sinais da cruz têm por função tampar o que do buraco da
morte faz objeção à existência sonorizada do Outro. Nenhum afeto de luto vem
assinar a implicação subjetiva de John nesta perda, que se revela ser, não cau
sa de um trabalho, mas, ocasiões de funcionamento de um sujeito dividido en
tre os sinais imaginários e os sons bem reais, segundo uma estrutura que des
mente a ausência. É uma maneira de suprir a falência do Outro.
121
Yasmine Grasser
sexuais.
G DM
DM (-) (rp)
(Escritura da metáfora paterna de John)
A posição do analista
Toda esta construçao me foi dada durante dois anos, no período em que
ocupei o lugar de morto para este menino e os serviços sociais e públicos, que
tiveram por tarefa a de se ocupar dele, a partir da posiçao da mae de amor. Se
o todo de amor tem por resultado o clandestino de um gozo fora da lei, o nem
tudo do princípio fálico desfaz o envolvimento do amor e libera a causa do dese
jo. Eu fui, entao, para John, o ao-menos-uma que nao se deixou pegar a mao
por ele, para poder, pois, recolocar em jogo o (-1) do desejo.
122
O álibi do amor na perversão
123
Conexões
Slavoj Zizek
discurso sui generis, um laço social glogal, determinante de todo o edifício so
cial. Poder-se-ia dizer que o fascismo, com sua ideologia corporativista, do re
torno ao mestre pré-burguês, parasita de certo modo o discurso capitalista sem
mudar sua natureza fundamental - a prova está precisamente nesta figura do
"judeu" como inimigo.
Para entendê-lo deve-se partir do corte decisivo, nas relaçoes de dominação,
que se produz com a passagem da sociedade pré-burguesa à sociedade burgue
sa. Na ordem pré-burguesa, a sociedade civil ainda não se libertou dos laços "or
gânicos", quer dizer, trata"se de relaçoes imediatas de dominação e de servidão"
(Marx). A relação do senhor a seu servo(*) é uma ligação "interpessoal", de
um assujeitamento direto, cuidado paternal por parte do senhor e veneração
por parte do servo ... Com o surgimento da sociedade burguesa, esta rede, rica
de relações afetivas e orgânicas entre o amo e seus súditos, se encontra rompi
da. O servo se liberta da tutela e se coloca como sujeito autônomo, racional;
ora, a lição fundamental de Marx é que o trabalhador permanece, entretanto,
assujeitado a um certo senhor, que o lugar do senhoe está somente deslocado.
O fetichismo do amo personificado cede lugar ao fetichismo da mercadoria. A
vontade da pessoa do amo é substituída pelo poder anônimo do mercado, aque
la famosa "mão invisível" (Adam Smith) que decide o destino dos indivíduos
f!Or detrás de suas costas...
E neste quadro que deve se situar a aposta fundamental do fascismo: ao mes
mo tempo que preserva a relação fundamental do capitalismo (aquela entre o
"capital" e o "trabalho"), ele quer abolir seu caráter anorgânico, anônimo, selva
gem, quer dizer, convertê-la de novo numa relação orgânica de dominação pa
triarcal entre a "cabeça" e as "mãos", entre o chefe e seus "seguidores" e substi
tuir, novamente, a mão invisível anônima pela vontade do senhor. Ora, enquan
to se permanece no quadro fundamental do capitalismo, esta operação não fun
ciona. Há sempre um excedente da mão invisível que contraria o desígnio do
senhor; é a única maneira de dar conta deste excedente, é - para o fascismo, cu
jo campo "epistêmico" é aquele do senhor - personalizar novamente a mão invisível.
Imagina-se, então, um outro senhor, um senhor oculto, que segura em verda
de todos os fios entre suas mãos, cuja atividade clandestina é o verdadeiro se
gredo detrás daquela mão invisível anônima do mercado: o "judeu".
Quanto ao stalinismo, deve-se concebê-lo mais como paradoxo da sociedade
de classes com uma só classe; esta é a questão: o "socialismo real" é uina socie
dade de classes ou não? A chamada "burocracia dominante" não é simplesmen
te a nova classe, ela está no lugar, ela faz as vezes da classe dominante. Isto de
ve ser tomado literalmente e não numa perspectiva evolucionista - teleológica
(esta perspectiva diria que ela já tem alguns traços da classe dominante, e o fu
turo mostrará se ela vai se consolidar em classe dominante propriamente dita),
quer dizer, que este "no lugar" não é de forma alguma concebido como marca
de um caráter inacabado, de um "a meio do caminho". No socialismo real, a bu
rocracia dominante se encontra no lugar da classe dominante, a qual não exis
te, ela ocupa seu lugar vazio; dito de outra forma, o socialismo real seria este
ponto paradoxal onde a diferença de classes torna-se verdadeiramente diferen
cial: não se trata mais de uma diferença entre duas entidades positivas, mas de
uma diferença entre a classe ausente e a classe presente, entre a classe faltante
(dominante) e a classe existente (trabalhadora). Esta classe faltante pode, aliás, .
ser a classe trabalhadora mesma, enquanto oposta aos trabalhadores "empíri
cos"; deste modo, a diferença de classes coincide com a diferença entre o uni
versal (a classe trabalhadora) e o particular (a classe trabalhadora "empírica").
126
Traços de perversão nas estruturas políticas
desvio de I desvio de
esquerda I direita
\
127
Slavoj Zizek
128
Traços de perversão nas estruturas políticas
1 29
Slavoj Zizek
Contribuição d a Sociedade para a Psicanálise teórica na Yugoslávia, com Slavoj Zizek (rela·
tor), i n Traits de perversion dons les structures cliniques, Navarin É diteur, Paris, julho de 1990.
(*) Neste pa rágrafo o autor mantém somente os termos "/e maitre et ses sujets", optamos por jo·
gar com as relações de oposição· senhor/servo e amo/súdito para por em relevo as várias for
mas que o discurso do mestre ganha na his·tória.
NOTAS
130
Mirta Zbrun
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.Bl -134
Mirta Zbrun
132·
Verdade, gozo e perversão
• Membro do Corte Freudiano Assoçiação Psicanalítica Rua Pio Correa, 127!1 02 CEP: 22464 - Jardim
Botânico RJ.
-
Trabalho apresentado ao "Sixieme Reencontre intemationale du Champ freudien. Paris, 6-9 julho
1990. Traits de Perversion dans les structures cliniques.
133
Mirta Zbrun
NOTAS E REF�NCIAS BIBUOGRÁFICAS
1. Carlos Drummond de Andrade, "Poesia completa e prosa". Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar,
1977. 1315 p.
2. Jacques Lacan, Le Séminaire, Livre XX, p. 73.
3. J. A. Miller, Falo 2, p. 148-149.
4. Jacques Lacan, Écrits, p. 842
5. Jacques Lacan, "Kant avec Sade" in Écrits.
6. Collete Soler, "A clínica do Real" Seminário do Campo Freudiano do Brasil.
I. É necessário levar a vacilação própria da neurose ao seu limite para produzir uma forma outra que
é a perversão. No limite, radicalizando essa forma neurótica, esta ganha um traço perverso. O des
mentido do personagem - não admite ter cometido tais atos - coloca-o na estrutura neurótica com
o que constitue seu traço. Lacan está interessado na produção desse efeito especial da cadeia signi
ficante que é "ser sujeito", havendo duas formas estruturais combinatórias compondo dita cadeia:
a neurose e a psicose. O traço de perversão surge com a ruptura do sujeito como efeito da cadeia.
No sujeito da perversão o traço se constitui num ponto da cadeia em que a castração se divide, Spal
tung separando o objeto, manifesta uma dupla posição: de um lado, como todo sujeito submetido
à lei da interdição; do outro, ele no desmentido como uma forma original-própria de construção
do "real" na perversão. Portanto nesse ponto da estrutura ele não está submetido a nenhuma proibi
ção, e o ato dito perverso se confina com a aparição do objeto pequeno a em sua especificidade
de coisa real-impossível, constitutiva de toda fantasia ( S <> a ) onde opera como causa. Nesse
ato o desejo se desregula da lei e o gozo não fálico se apresenta como gozo do Outro. Estamos dian
te de um sujeito que não teve acesso à lei, que traz em sua ação a verdade do gozo, a chave de seu
saber particular com o que dominará sua vítima. O objeto em sua vertente real - pequeno a, mais
de-gozar - é interrogado no outro.
11. O outro exerce um efeito de estrutura no universo simbólico do sujeito onde funciona como JlÚ
cleo não simbolizável, traumatizante. No encontro com a mulher - Dona Deolinda, a vítima - ela
exerce sobre ele um efeito de exposição do trauma. O que ele pode negar perante a lei, já não é
possível. Quando ele vê a mutilação, não pode mais negar a presença do objeto traumático, do re
al insuportável. Ela faz uma espécie de "análise selvagem" com a exposição desse real não simboli
zável e traumático. Se o traço de perversão é aquela forma da não foraclusão do gozo oral, esse
momento coloca ele diante da violência traumática da falta-a-ser recoberta até então pelos signos
de uma seqdência de atos "irrazoáveis" do sujeito.
FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke: S. Fischer Verlag. Frankfurt an Main, 1972 17, Band. "Die lch
spaltung im Abwehrvorgang".
LACAN, Jacques. Écrits. Editores du Seuil, Paris. 1966. Le Champ Freudien. "Kant avec Sade". Le
Séminaire. Éditiones du Seuil, Paris. Volume 111, VII, XI.
MILLER, J.-Alain. Matemos I e li. Manantial. Buenos Aires, 1987. Los Ensayos.
134
Bernard Baas
O DESEJO PURO
- a propósitç de "Kant com Sade" de Lacan - •
"Desejo puro" é uma expressão que não nos surpreenderia ler num diálo
go de Platão. Pelo menos sob esta forma literal, no que é de meu conhecimen
to, ela não se encontra af. Em compensação, Platão fala do "prazer puro" - e é
nesta ocasião que ele se defronta mais proximamente com a questão do desejo
- no Filebo, um dos últimos diálogos, consagrado à determinação do lugar do
prazer no que Platão chama de "a vida boa". A parte central e a mais importan
te (1) do Filebo assenta-se sobre o estatuto ético do prazer. Resumamos breve
mente: Platão distingue estado de prazer, estado de dor e estado neutro (2).
Este estado neutro é também chamado "harmonia", de modo que a dor caracte
riza a dissolução da harmonia e que o prazer acompanha o movimento que ten
de à reconstituição desta harmonia. O estado do homem que não experimenta
ria nem dor nem prazer, que, então, conheceria apenas o estado neutro, a har
monia, seria tal que poderíamos dizer que "sua vida é a mais divina de todas" (3).
Entretanto, este homem divino, isto é, aquele cuja vida é absolutamente
boa - em uma palavra (para Platão): o sábio, o filósofo - não poderia permane
cer estranho a qualquer prazer, tanto que é verdadeiro que, para os gregos, não
poderíamos separar o Bem e a felicidade. O sábio conhece, então, os prazeres
que lhe são próprios: os prazeres puros, isto é, os prazeres que não são precedi
dos de nenhum sofrimento, de nenhuma falta dolorosa. Mas isso não significa
que eles não seriam precedidos de nenhum desejo. Pois a alma do filósofo dese
ja o bem, o saber e a verdade. Af estaria, então, o "desejo puro" enquanto mo
vimento da alma não acompanhado desta dor, desta falta que caracteriza os ou
tros de.sejos e que faz os prazeres impuros.
136
O desejo puro
137
Bemard Baas
determinar a relação entre Lacan e Kant, que é, igualmente, aquele entre a psi
canálise e a filosofia, Lacan não elaborando somente um comentário de Kant,
mas talvez também um cometimento (II). Daí porque não poderíamos entrar
no estudo desse texto sem passar pelo umbral que o próprio Lacan nos ordena
transpor: a filosofia moral de Kant. Desta, eu lembrarei suscintamente os ele
mentos essenciais o que nos interessa aqui.
**
138
O desejo puro
139
Bemard Baas
**
O libertino nao age, por conseguinte, visando seu próprio prazer sensível,
mas o gozo da natureza. Nesse sentido, a apatia deve ser oposta à sensibilida
de. O mesmo Dolmancé diz, mais adiante: "os prazeres que nascem da apatia
valem maisque aqueles que a sensibilidade vos dá" (3 1). Certamente Sade em
prega aqui, ainda, o termo prazer. Mas essa sentença indica sem ambiguidade
que mais além do prazer sensível, é outra coisa que o sujeito apático encontra.
Todos os comentadores modernos (M. Reine, Bataille, Klossowski, Blan
chot, Barthes) marcam o lugar determinante que ocupa o conceito de apatia
na obra de Sade. E é também aproximado o texto de Sade e aquele de Kant
que Adorno e Horkheimer construíram sua tese segundo a qual a formalização
da razão, junto com a apatia, leva a instrumentalizar todo objeto empírico e,
então, a tratar os outros como simpes coisas submetidas à legislação de uma
pura lei (32). Tal seria, segundo Horkheimer e Adorno, o sentido do que a filo
sofia, de Kant até Nietzsche inclusive, tem escrito e que "só um realizou nos
menores detalhes; a obra do Marquês de Sade mostra o entendimento não diri
gido por um outro, isto é o sujeito burguês liberado de toda tutela" (33). Isso
exigiria muitos comentários, pois são numerosos e pesados os pressupostos des,-
140
O desejo puro
**
1 41
Bemard Baas
1 42
O desejo puro
Retornaremos Jogo a esta função do Outro em sua relação com a lei. De início,
o que deve ser precisado é que o sujeito, aqui, se esvanece e se reduz, enquan
to agente-executor, agente-tormentador, ao que Lacan chama de "objeto a".
Deste objeto a, eu não darei, de imediato, nenhuma definição. Guardemos so
mente - e Lacan não exige mais - seu lugar na estrutura, seu lugar de agente,
sua função simples e exclusivamente mediadora para a execução da lei, enfim,
sua função de agente-executor.
Mas o agente, justamente, é apenas o agente. Ele é apenas o mediador
que torna a ligar, rejeitando-os numa mesma entidade, o autor da lei e aquele
que é assujeitado à lei, isto é - no duplo sentido dessa palavra - o SUJEITO
mesmo da lei. Desse sujeito (como fonte da lei), o agente recebe a injunção
de realizar seu dever e, quanto ao sujeito (como sujeição à lei), ele o submete
aos efeitos desse dever. Para esse sujeito assujeitado, não está em questão ne
nhum prazer om nenhum bem-estar (Wohl): há apenas a dor, dor patente da
vítima no cerimonial sadiano, dor da humilhação, reconhecida por Kant como
o preço que se paga sempre pela submissão à lei (42). Para o agente executor
da lei, a regra, então, é a apatia, isto é, a desaparição do prazer. No imperati
vo kantiano, o prazer é (segundo os termos de Lacan) o "rival estimulante" o
"cúmplice desfalecido" da vontade da qual a lei lhe advém (43). Enquanto ele
é apático, enquanto "sua presença se resume a ser apenas o instrumento" da lei
(44), o agente executor realiza um ato rigorosa e perfeitamente moral, no mes
mo sentido em que Kant define a ação moral.
Qual é, esta vontade que comanda a realização apática da lei? É , diz La
can, a vontade do Outro ( 45), enquanto ela não é vontade de prazer, mas vonta
de de gozo. Para não confundir as perspectivas, é necessário repetir aqui o im
perativo sadiano e captar tudo o que implica sua formulação por Lacan: "eu te
nho o direito de gozar do seu corpo, pode ME dizer qualque um ( ... ) . Nesse im
"
perativo, o "eu" que enuncia seu direito ao gozo não é o "me" que enuncia o im
perativo, de modo que este imperativo sadiano implica e manifesta a divisão
subjetiva como divisão entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação: ( . .. )
"
a bipolaridade onde a lei moral se instaura não é outra que não esta refenda
do sujeito que se opera a partir de toda intervenção do significante, principal
mente entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. A lei moral não tem
outro princípio·' (46). No imperativo sadiano, o "me" do "pode me dizer", o
"me" ao qual o imperativo se impõe, é o sujeito da enunciação, isto é, tanto o
autor como a vítima da lei, ou ainda, o Outro. O imperativo se impõe a esse
"me"; assim, Lacan pode dizer que aqui o imperativo é imposto a nós "como
AO Outro" ( 47). O "eu" que diz "eu tenho o direito", o sujeito do enunciado,
se reduz a ser apenas o agente da lei que ele impõe ao Outro. Esta divisão, es
ta "refenda" do sujeito é, precisamente, segundo Lacan, o que o imperativo kan
tiano escamoteia ("Aja de tal modo que ... "), escamoteamento que implica esse
logro de que a lei vem "DO Outro" ( 48), enquanto que, de fato, ela procede
da divisão subjetiva. É por isso que Lacan diz que a máxima sadiana é mais ho
nesta (49), pois ela indica que o Outro é o sujeito da enunciação, enquanto que
a máxima kantiana, para mascarar a divisão subjetiva, se apresenta como ema
nando de uma voz interior.
Observemos incidentemente que Lacan oferece aqui a Kant uma metáfo
ra que não se encontra em seu texto, mas pertence mais propriamente à retóri
ca de Rousseau (50). Esta confusão não é insignificante considerando o que
nos interessa neste estudo, a saber, o engajamento (efetivo, ainda que impensa
do ou, pelo menos, não explícito), via Lacan, do questionamento transcenden-
143
Bemard Baas
tal à teoria do desejo. Ao não perceber a que deve a Kant (e não somente nes
te escritQ, como nós veremos mais adiante), Lacan lhe oferece um motivo que
lhe é tanto mais estranho quanto ele não poderia estar de acordo com a pers
pectiva transcendental, visto que ele advém da consciência empírica e do senti
mento�interior, e mesmo do amor de si.
Mas o essencial aqui é o convite lacaniano de reconhecer que Sade é mais
verdadeiro que Kant, no que ele manifesta a divisão subjetiva, o desvanecimen
to ou a AFANISE do sujeito (5 1). Para não ter de suportar sua divisão e a dor
cruel que ela implica, o sujeito sadiano, mas também o sujeito sádico, incide so
bre o Outro o efeito cruel da lei que ele invoca no Outro e, desvanecendo, ele
se reduz a ser apenas o agente apático desta lei, ou seja, objeto a.
É por isso que Lacan diz que "A filosofia na alcova" "dá a verdade" da
Crítica da razão prática (52). O imperativo kantiano, assim como o imperativo
sadiano, procede da vontade do Outro. Mais além do prazer que parece visar
o desejo, há o gozo que exige o desvanecimento do prazer. Mais além do bem
estar, do Wohl, que parece motivar toda ação, há o contentamento de si, a
Selbstzufriedenheit da qual Kant fala (e que Lacan não evoca - nós retornare
mos a isso), que implica fazer o sacrifício de seu Wohl, de seu bem-estar. O de
sejo seria, então, apenas "o avesso" da lei moral e a lei moral o avesso do desejo (53).
É necessário, aqui, marcar um tempo e medir o que está em jogo nesta
conclusão de Lacan, na qual frequentemente se detêm os leitores de "Kant com
Sade", pois ela recupera, precisamente, a interpretação freudiana da lei moral:
o imperativo categórico como imperativo do supereu. Reportemo-nos aos tex
tos de Freud citados acima e, mais particularmente, ao ensaio intitulado O eu
e o isso, onde Freud descreve e explica o contentamento que o sujeito experi
menta, na experiência moral, ao se submeter ao imperativo do supereu que, en
tretanto, o faz sofrer. E Freud prossegue com esta nota espantosa:
144
O desejo puro
**
Eu darei o lance inicial com esta nota: "Kant com Sade" é atravessado por
uma diferença que se deixa captar apenas em sua tipografia: "lei" está escrito
tanto com um "!" minúsculo, quanto um "L" maiúsculo. Não poderia ser um sim
ples acaso. Quais são, então, essas duas leis ou, pelo menos, essas duas ocorrên
cias da lei?
Na passagem que precede imediatamente a última citação, Lacan evoca
o apólogo kantiano da forca (56): um indivíduo, diz Kant em suma, preferiria
muito mais renunciar ao seu desejo luxurioso do que ter de realizá-lo ao preço
de ser enforcado (57). Certamente, é patente que muitos dos heróis de Sade
encontrariam nesta ameaça de potência um motivo suplementar para o cumpri
mento do desejo, isto é, para o cumprimento de seu dever de agentes-executo
res e apáticos. É por isso que Lacan precisa: "a forca não é a Lei", com um "L"
maiúsculo. "A Lei - acrescenta ele - é outra coisa, como o sabemos desde Antí
gona" (58). Que "outra coisa"? E por que Antígona? Retornaremos a isso. Por
ora, observemos que se a forca não é a Lei, é que, por conseguinte, ela é ape
nas a lei. Ora, é também com uma minúscula que Lacan escreve "lei" quando
ele diz, um pouco mais adiante, que "lei e desejo recalcado são uma única c
mesma coisa". O que é esta lei? Algumas linhas atrás, nós tínhamos já compre
endido: trata-se do imperativo do supereu, a lei do supereu cuja lógica é estrita
mente freudiana. Segundo essa lógica, o supereu é - se podemos dizer - a con
cretização, ou ainda, o efeito do Complexo de Édipo. Ora, sabemos, pelo me
nos desde Lacan, que esse complexo de Édipo é um mito. É o próprio mito de
Freud (outros diriam, seu sintoma). A substância desse mito freudiano consis
te em colocar a mãe como experiência de satisfação originária. Mas, se trata-se
de um mito, a questão é então - mais além do mito - de saber onde o desejo
se origina. Essa é a questão que Lacan não pretende esquecer jamais. Ela nos
leva mais além do supereu, mais além da lei (do supereu); ela é a retomada la
caniana da questão freudiana do mais além do princípio do prazer.
Esta questão que Lacan apresenta como a questão ética por excelência,
atravessa e anima todo o livro VII de seu Seminário, Ética da psicanálise que
antecede apenas dois anos a redação de "Kant com Sade" e que se constitui -
poderíamos mostrá-lo facilmente - como sua preparação. Toda a pesquisa de
Lacan, nesse Seminário, gira em torno do que le chama de "a Coisa" (das Ding),
conceito (mas, nesse caso, mais ainda que qualquer outro, não sabemos se pode
mos verdadeiramente falar de "conceito") que ele retoma de Freud, mais preci
samente do Freud do Projeto (60), e que ele pretende infletir num sentido
mais ou menos heideggeriano. Mais além do desejo enquanto desejo articula
do a um objeto desejado (ou seja, ao que chamo de epitúmeno), há a Coisa,
1 45
Bemard Baas
das Ding. Precisemos: enquanto objeto perdido, das Ding nos remete ao concei
to freudiano de "experiência de satisfação", entendido certamente como experi
ência originária. Mas é justamente esta originalidade que faz problema aqui.
Para Freud, há, Gertamente, uma experiência originária, cujos traços mnésicos
constituem um tipo de imagem dissolvida do objeto de satisfação pela qual ela
determina a elaboração do desejo do sujeito e o leva a reencontrar o que foi
perdido, segundo uma lógica da identidade (identidade de percepções e/ou iden
tidade de pensamentos). Trata-se, por conseguinte, de uma originalidade empí
rica, de um VIVIDO, como se diz. Sabemos o quanto a tradição kleiniana se en
gajou nesta via de explicação da atividade desejante do sujeito fazendo de to
dos os mecanismos psíquicos meios mais ou menos diretos, mais ou menos des
viados, de reencontrar o objeto que, na origem, era o único capaz de apaziguar
o estado de desolação, a Hilflosigkeit: o corpo da mãe. Eis af a chave das aspira
ções e a chave do mistério. Ela abre, nos é assegurado, todas as portas do labi
rinto do inconsciente. Percorram em todos os sentidos o dedal das representa
ções, os nós associativos, os fantasmas e os devaneios, vocês reencontrarão sem
pre o corpo da mãe. Eis aí, segundo esta tradição, o que daria sentido a esta
"coisa perdida", eis aí o que daria corpo a das Ding.
Assim, das Ding seria o sentido - talvez mesmo a verdade - originário, cu
ja perda irremediável comandaria então, no inconsciente, os jogos de significan
tes, produzindo fantasmas e sintomas e, mais particularmente - sob a forma es
tranha desta "libido dessexualizada" da qual falam Freud e Melanie Klein - a su
blimação como tentativa de reconstruir essa imagem mnésica quebrada, dissolvi
da, decomposta, do corpo da mãe. Ha aí uma antropologia da desolação, da
desrelição que se sustenta pela fábula que, aqui como alhures, a constitui: aque
la da perda originária de um bem precioso, de uma origem designada, mais ain
da, figurada, imajada. Lacan não se engana, ao falar a esse propósito de um
"mito kleiniano" (61) - mais ele pertencia também a Freud.
A função desse mito enquanto logro é evitar o que deveria, ao contrário,
nos interpelar: como é que alguma coisa tão preciosa como essa experiência ori
ginária, alguma coisa tão insubstituível como este tipo de soberano bem do
qual certificamos a realidade empírica inicial, pode ser obliterado assim, até que
a perda afete não somente o seu vivido, mas a sua própria imagem? Mais sim
plesmente: o que é que, no sujeito, torna possível a perda de onde procede o
desejo? Eis af precisamente a pergunta que uma teoria transcendental do dese
jo deve fazer. E é ela que Lacan faz. .
Ou, melhor, que ele nao faz, mas a qual, no entanto, ele responde. Lacan
emprega essa palavra - "a Coisa", das Ding precisamente porque das Ding não
é dizfvel, menos ainda figurável, porque dar um conteúdo a esta Coisa é já en
trar no jogo dos significantes, é já confundf-la com o objeto desejado, reduzi
la a um epitúmeno. Ora, a Coisa está mais além do jogo significante pelo qual
se trama a função desejante do sujeito, mesmo se ou, muito mais, porque ela
é a sua condição de possibilidade. Ela é, diz Lacan, o "fora-de-significado" (62).
Isso leva Lacan a dizer que, se a Coisa "não fosse no fundo VELADA, nós não
estabeleceríamos com ela esse tipo de relação que nos obriga - assim como a
todo psiquismo - a circundá-la, mesmo a CONTORNÁ-LA, para concebê-la" (63).
Trata-se, com efeito, de CONTORNAR senão de DESVELAR, pois como
desvelar o que advém da categoria da falta ou, melhor, constitui a falta como
categoria? Nós empregamos aqui, de propósito, o termo kantiano de "catego
ria", mas não se trata de completar a tábua kantiana dos conceitos puros do en
tendimento - tanto menos porque mal veríamos a qual "julgamento" do entendi-
146
O desejo puro
menta faríamos corresponder a categoria da falta, no sentido em que a empre
gamos aqui. Entretanto, esta categoria certamente se relaciona a um julgamen
to, mas este não advérn do entendimento. Ele advém da faculdade de desejar,
é simplesmente o julgamento do sujeito desejante quando ele diz: "este objeto
é desejável". E, no discurso de Lacan, mesmo se ele se interdita uma tal formu
lação - mas, justamente, esta reserva é em si um problema sobre o qual retorna
remos -, trata-se mais de determinar as condições a priori desse julgamento,
ou seja, de elaborar uma lógica transcendental do desejo.
A coisa, das Ding, tal como Lacan a nomeia, não é o significado originário
que constituíram o contínuo de todas as derivas significantes. Esse processo de
deriva, esses mecanismos de substituição concernem apenas ao desejo concebi
do como desejo de um objeto desejado, como um desejo epitumenaL Ora, das
Ding está mais além do desejo epitumenal, isto é, mais além da lei do supereu.
Com das Ding, trata-se apenas do seguinte: a perda é anterior ao que está per
dido. Se bá desejo, e se o desejo emprega todos os desvios do processo substitu
tivo, da metonímia significante, não é em virtude da perda de uma origem qual
quer, mas justamente porque a perda é, ela mesma a origem. No "paraíso per
dido" que se trate da mãe de qualquer coisa que se queira), o "paraíso" advém
do mito, só o "perdido"advém do reaL Trata-se do "real" no sentido em que La
can o entende, isto é, não o "mundo exterior" da fenomenologia, mas o não-·
mundo, o "imundo" (64). Nilo bá o nada anterior a das Ding enquanto a perda
mesma, salvo quando somos logrados pelas aparências do fantasma ou do mito.
É por isso que o objeto do desejo, o objeto desejado é sempre objeto re
encontrado. Este objeto, todavia, enquanto epitúmeno, jamais foi previamente
perdido: "o objeto é por sua natureza um objeto reencontrado. Que ele tenha
sido perdido, é a consequência disso, mas só-depois" (65). A lei, do supereu, es
tá articulada a este objeto desejado - mais exataente, ao desejo deste objeto.
Já a Lei, está do lado da Coisa, enquanto a Coisa é a perda mesma, a falta fun
damental e originária, pura falta que constitui o sujeito enquanto dividido. E é
por isso que "a forca não é a Lei", que ela é apenas a lei que ameaça de puni
ção e que, no fundo, se endereça ainda ao bem estar, ao Wohl, ao pathos do su
jeito: "pois a forca não é a Lei, nem pode ser veiculada por ela. Furgao, há ape
nas o da polícia, que pode até ser o Estado, como se diz do lado de HegeL Mas
a Lei, como sabemos desde Antígona, é outra coisa (66).
É, de fato, o que Hegel não sabe, pois, na tragédia de Sófocles, vê apenas
o conflito entre a moralidade familiar e o direito da cidade (67). Por fim, e de
maneira geral, a relação de Hegel com Kant é sempre de transgressão de um
ultrapassamento pelo qual Hegel pretende dar conteúdo e consistência ao que
eera apenas formal no pensamento kantiano - principalmente ultrapassamento
dos impasses da "moralidade subjetiva" na "moralidade objetiva", isto é, a cons
tituição do Estado (69). Deste ponto de vista, é notável que o trabalho de La
can tenha sido, de certo modo, regressivo, posto que, após a referência inicial
e massiva a Hegel - cuja problemática do reconhecimento lhe permitia dar con
teúdo e consistência ao desejo - ele preferiu a reflexão kantiana, que o levava
a pensar o desejo na perspectiva formal - a priori, isto é, como questão transcen
dental. A lógica desta regressao implicava em abandonar a consistência do dese
jo para reconhecer, antes de todo conteúdo empírico, a pura forma da Lei.
Pois não há consistência do lado da Coisa, do lado da Lei. A Coisa só con
cerne à Lei do desejo enquanto ela é a instância de onde procede a faculdade
de desejar, no que esta faculdade se dá um objeto de desejo. Dito de outra ma
neira, a Coisa é o ponto de articulação da Lei porque, de um ponto de vista es-
147
Bemard Baas
trutural, ela ocupa o lugar exato do que Kant chama de "incondicionado absolu
to", termo que Lacan não renegaria (70). Expiquemos esta nota muito simples
mente, por um tipo de paralelo homólogo.
Na ordem do conhecimento, tal como a Crítica da razão pura o analisa,
o entendimento aplica aos fenômenos a categoria da causalidade; desde então,
podemos conceber os fenômenos numa série causal onde cada um deles, enquan
to causa de um efeito, é a condição mesma deste efeito. É por isso que Kant fa
la da "série das condições". Mas, se nos remontamos a esta série das condições,
,
nos arriscamos a jamais podermos nos deter. E por isso, explica Kant, sobre o
entendimento que fornece o CONCEITO PURO da clfusalidade, há a razão,
que leva a este entendimento a IDÉIA do incondicionado absoluto (que será,
na ocasião, Deus como causa primeira e causa de si). Nisso consiste a função
reguladora, e somente reguladora, desta idéia do incondicionado.
I INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus)
I
Faculdade de conhecer
= entendimento puro
(a priori)
I Fênomeno I
Na ordem do desejo, tal como Lacan o analisa, a faculdade de desejar se
aplica aos objetos de desejo. É em relação a esses objetos do desejo, esses epitú
menos que a cadeia substitutiva ou cadeia metonímica do desejo se mobiliza.
Se buscamos a origem desta cadeia - o que se chama, na terminologia clínica
da psicanálise, de regressão -, arriscamos bastante não chegarmos a parte algu
ma (exceto a construir o mito do corpo da mãe ou num outro grito primai). É
por isso que, explica Lacan, (pelo menos segundo a leitura que me parece se im
por), sobre a faculdade de desejar, que faz do objeto sensível um objeto deseja
do (que se remete ao epitúmeno), há a Coisa - isto é, a pura falta, que não é o
substituto, nem a metonímia de nada antes dela - há o incondicionado.
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)
Faculdade de desejar
(a priori)
epitumeno
148
O desejo puro
A conjunção desses dois diagramas - que manifesta de maneira patente
este encontro dos discursos filosóficos e psicanalítico que eu havia anunciado -
autoriza três notas que são decisivas para a compreensão não apenas da teoria
lacaniana do desejo, mas também - e sobretudo - da correlação, afirmada por
Lacan, entre a questão do desejo e a problemática ética (isto é, a questão da Lei).
1) Toda a crítica kantiana da metafísica, na "Dialética transcendental", con
siste em estabelecer a ilegitimidade de toda pretensão do entendimento de co
nhecer o incondicionado. Kant diz, em suma, que o incondicionado não é cog
noscfvel, mas somente pensável. A faculdade de conhecer procede da idéia do
incondicionado absoluto, de modo que ela não poderia constituir esta idéia en
quanto o objeto de conhecimento. A função reguladora - e somente regulado
ra - da idéia do incondicionado é dirigir o entendimento para um certo alvo, on
de, num ponto, as linhas diretrizes de todas as suas regras se convergem e, ain
da que se trate apenas de uma idéia (jocus imaginarius) - isto é, um ponto de
onde os conceitos do entendimento não partem realmente, posto que ele está
colocado inteiramente fora dos limites da experiência possível - ela serve para
lhe dar maior unidade com a maior extensão" (71 ). Kant acrescenta que esse
"foco imaginário" das regras do conhecimento pode dar a "ilusão" de ser ele
mesmo um obJeto. Mas esta ilusão não deve nos enganar: o incondicionado não
é um OBJE;TO que podemos conhecer; é somente uma IDÉIA que podemos
PENSAR. E por isso que, com a exclusão do uso CONSTITUTIVO, o uso RE
GULADOR é o único legítimo. A regulação exclui a constituição.
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus)
(regulação)
'
Faculdade de conhecer
e entendimento puro
(a priori)
1 49
Bemard Baas
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)
(Lei)
'
neste Outro é, por conseguinte, a confissão de que este Outro deve ser e perma
necer não barrado. O Outro como figura do acesso ao gozo é também, nesta
figuração mesma, figura da inacessibilidade essencial deste gozo. Lacan não se
engana ao escrever na conclusão de seu texto: "Dolmancé, Sade o viu, fecha à
questão por um No/i tangere matrem. V ... ada e costurada, a mãe permanece in
terditada. Nosso veredito sobre a submissão de Sade à Lei está confirmado"
(74). Desta vez, é "Lei" que Lacan escreve, aquela que interdita fazer da Coisa
ium objeto do desejo. A Lei interdita o logro que instituiria o mito.
2) Minha segunda nota necessita o acréscimo de um novo diagrama aos
dois precedentes. Ele concerne, desta vez, a estrutura kantiana da razão no seu
uso prático. A vontade livre e autônoma se reporta à ação empírica exigindo
que a máxima desta ação seja universalizável. Ora, como vimos, esta universali
zação, enquanto ela é a con?ição mesma da moralidade, supõe a rejeição de to
do elemento "pat,plógico". E por isso que, na Dialética da razão pura prática",
Kaot dirá que o sujeito, enquanto ele age moralmente, pode - não DEVE, mas
PODE - postular a imortalidade de sua alma e a existência de Deus, de modo
que a felicidade (impossível aqui em baixo por causa do próprio desejo) seria
dada à sua alma que, existindo eternamente, poderia, então, chegar à perfeição
moral na qual ela não pôde chegar na existência sensível (75). Esses são os "pos
tulados" da razão prática. Mas, logicamente, Kant insiste que a liberdade da von
tade está ligada ao caráter hipotético dos postulados. Pois, se nós fazemos dos
postulados da razão PRÁTICA um conhecimento certo para a razão TEÓRI
CA, não se trataria mais propriamente, para nós, de agir por dever (segundo a
exigência de autonomia), mas somente por medo ou por esperança, o que é pró
prio de uma vontade heterônoma, isto é, submetida ao "patológico" (76). É por
isso que Kant diz (com uma insistência que lhe valeu alguns aborrecimentos)
que a fé não poderia, de forma alguma, preceder a moralidade para lhe servir
de móbil,pois isso nos obrigaria· a considerar a religião como advinda, ela mes
ma, do mal radical (77).
"Admitir a exist6encia de Deus não é um dever", diz Kant (78). Os postu
lados da razão prática não constituem a condição prévia para a moralidade. Se
é necessário crer em Deus e na imortalidade da alma (necessidade subjetiva e
não objetiva) para que apareça "a ESPERANÇA de participar um dia da felicida
de na medida em que nós tivermos o cuidado de não sermos indignos dela"
(79), não é todavia necessário crer nisso para agir moralmente, nem mesmo pa
ra experimentar a satisfação que acompanha o cumprimento de uma ação mo
raL De fato, Kant estabelece a realidade desta satisfação antes dela ser questão
nos postulados da razão prática. Esta satisfa(,ião não advém do bem-estar. Ela
não procede nem da esperança de uma recompensa, nem do medo de um casti
go. Ela não é, então, "patológica", mas diz Kant, somente "satisfação negativa":
150
O desejo puro
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus - imortalidade da alma)
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus - imortalidade da alma)
151
Bemard Baas
Poderíamos, entao, indagar aos psicanalistas se não seria oportuno inscre
ver a letra J, como índice do Gozo (IV) - não, certamente, do gozo que o sujei
to sadiano visa em seu fantasma (gozo ilusório de uma "satisfação positiva"),
mas deste gozo muito particular, sobre o qual Lacan nos assegura de que algu
ma coisa dele pode ser atingida no tratamento - no lúgar exato em que a Lei é
significada, ao interditar o acesso do desejo à Coisa.
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)
(Lei)
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus)
u (cons � ão)
Faculdade de conhecer
= entendimento puro
(a priori)
3) Em cada uma das três estruturas assim expostas (razão teórica, razão
prática, desejo puro), está manifestada claramente a distinção entre, de uma
parte, uma faculdade a priori (ou seja, respectivamente: o entendimento, a von
tade, a faculdade de desejar) e, de outra parte, os elementos empíricos, isto é,
a posteriori, aos quais se aplica esta faculdade (ou seja, respectivamente: o fenô
meno, a ação empírica, o epitúmeno). Ora, para cada vez (no conhecimeno, na
ação moral e no desejo), trata-se de realizar a unidade do elemento a priori e
do elemento empírico, isto é, de realizar a unidade de dois elementos heterogê
neos por natureza. Em que condição uma tal unidade, aparentemente impossí
vel e entretanto necessária, é realizável? Como alguma coisa a priori pode se
associar, se unir a alguma coisa de empírico? Como reconduzir à unidade o que
não é da mesma natureza? Tal é o problema que Kant chama de problema da
síntese, problema que manifesta, em cada um dos três diagramas propostos, o
lugar por ora deixado vazio entre a faculdade a priori e o elemento a posteriori
152
O desejo puro
ma transcendental" (81).
Na Çrítica da razão prática, Kant reencontra igualmente esse problema da sínte
se: como uma ação necessariamente empírica poderia proceder ao mesmo tem
po da vontade autônoma, isto é, da liberdade transcendental do sujeito? Aqui
- como foi lembrado acima - Kant resolve o problema da síntese pela "típica"
do julgamento prático puro: a máxima da ação empírica, para ser moral deve
poder "sustentar a prova da forma de uma lei universal" (82), da qual a lei natu
ral em geral é o tipo.
Podemos então completar os dois diagramas (da razão teórica e da razão práti
ca) inscrevendo respectivamente o esquema e o tipo no lugar em que deve ser
realizada a síntese.
'
153
Bemard Baas
é simplesmente o objeto a.
O objeto a ocupa, assim, na estrutura do desejo, o lugar homólogo àquele
do esquema na estrutura do conhecimento. Assim como o esquema não está
de forma alguma NO objeto do conhecimento, mas constitui (isto é, causa) es
te conhecimento, o objeto a nao pertence ao objeto desejado (epitúmeno), mas
constitui ("causa") o desejo deste objeto. E poderíamos aqui avocar tudo o que
na clínica psicanalítica apoia esta tese: o objeto a é sempre designado como ob
jeto separado, desvinculado, seja a propósito do seio, das fezes, da voz ou do
olhar: "(... ) é entre o seio e a mae que passa o plano de separaçao que faz, do
seio, o objeto perdido em causa no desejo" (84).
Mas, se ele nao é redutível ao objeto desejado, o objeto a não é tampou
co identificável ao sujeito do desejo. Ele só está articulado ao sujeito do dese
jo no que esse sujeito é dividido. Esta divisão advém ao sujeito porque seu dese
jo não procede de nada consistente, mas somente da pura falta da Coisa. É a
falta da Coisa que o barra, s (sujeito barrado do desejo), tal como ele se articu
la (é articulado) ao objeto a no fantasma: s <> a (85). "Como lemos até aqui,
sabemos que o desejo, mais exatamente, se sustenta num fantasma do qual pe
lo menos um pé está no Outro, e justamente aquele que conta, mesmo e sobre
tudo se ele chega a mancar" (86).
Pois o pé manco (isto é, edipiano) do desejo não é movido simplesmente
pelo objeto empírico desejado, mas, de início e fundamentalmente, pela faculda
de a priori de desejar, enquanto ela procede da falta absoluta da Coisa. É no
fantasma que o sujeito dividido reencontra, sem que ele o saiba, a causa de seu
desejo, ou seja, o objeto a. É por isso que Lacan prossegue: "o objeto (isto é,
o objeto a), nós mostramos na experiência freudiana que o objeto do desejo,
af onde ele apareceu nu, é apenas a escória de um fantasma onde o sujeito nao
volta de sua síncope" (87).
O fantasma torna possível a síntese da faculdade a priori de desejar e do
objeto empírico, síntese operada pelo objeto a, na sua articulação com o sujei
to barrado do desejo. Trata-se, exatamente, do mesmo dispositivo do qual a sín
tese transcendental na teoria kantiana do conhecimento procede. De fato, o es
quema opera a síntese transcendental por intermédio de uma determinação a
priori do tempo, que é homogênea em relação à categoria e ao fenômeno (88).
Ora, o tempo, como "forma do sentido interno, isto é da instituição de nós mes
mos" (89) constitui - se podemos dizer - a única realidade permanente do sujei
to através da diversidade de suas representações. Mas, trata-se aí apenas de
uma realidade empírica a não ser como fenômeno: "mas todas essas questões
de ordem transcendental que ultrapassam a natureza não poderão jamais serem
resolvidas, mesmo quando a natureza nos fosse inteiramente desvelada, posto
que nao nos é dado observar nosso próprio espírito com uma outra intuiçao
que nao seja aquela de nosso próprio sentido íntimo. De fato, ( . ..) nós nao co
nhecemos a nós mesmos a não ser pelo sentido íntimo, isto é, como fenômenos" (90).
Nós podetpos situar a necessidade de um sujeito transcendental,, nós pode
mos até PENSA-LO como substância (isto é, a alma, o puro eu-penso), mas
nós nao podemos pretender CONHECE-LO, pqsto que a idéia de um substra
to de todas as representações é apenas uma IDE/A, incognoscfvel enquanto tal.
O sujeito em sua pureza de sujeito (ou seja, como sujeito transcendental) nao
poderia se tomar a si mesmo como objeto de conhecimento. Eis o que estaría
mos fundamentados a designar como a "refenda" kantiana do sujeito do conhe
cimento. É a esse sujeito, sujeito dividido, sincopado que se articula o esque
ma na síntese transcendental.
154
O desejo puro
Na ordem do conhecimento e na ordem do desejo, a unidade necessária
do a priori e do empírico é realizada pela articulação entre o sujeito dividido e
o objeto transcendental; respectivamente: ESQUEMA da síntese, objeto a do
fantasma.
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)
(Lei)
epitumeno
Kant dizia: "se todo nosso conhecimento começa COM a experiência, não
resulta daí que ele derive todo DA experiência" (91). De maneira homóloga,
nós podemos dizer agora: se é certo que não há desejo sem objeto desejado,
nao resulta daí que o desejo deriva do objeto desejado. O que torna possível
esse desejo, o que permite à faculdade de desejar se exercer, o que então "cau
sa" verdadeiramente o desejo, é o objeto a, entendido estritamente como obje
to transcendental. O objeto a é esquema do desejo.
Ele é o esquema muito mais do que tipo. Pois devemos notar aqui que,
com o objeto a, Lacan resolve talvez o que fazia problema para o julgamento
prático puro. Eu lhes reenvio aqui ao segundo parágrafo da "T(pica do julgamen
to prático puro", onde Kant estabelece a impossibilidade de u m esquema da lei
para a vontade livre e, portanto, a necessidade do "tipo" desta lei (92). Ora, es
ta necessidade da típica advém porque Kant não concebe outra liberdade além
daquela da vontade transcendental, com a exclusão do desejo sempre determina
do empiricamente. A partir do momento em que, como sugere a meu ver a lei
tura de Lacan, u ma faculdade de desejar a priori é concebida, então é possível
pensar a mediação (pela qual o desejo a priori se aplica ao objeto sensível) se
gundo um procedimento não somente análogo, mas mesmo homólogo àquele
do esquematismo.
Constatamos simplesmente, para confirmar esta homologia entre o esque
ma e o objeto a, que Lacan declara "incaptável" (93) o objeto a como causa
do desejo exatamente como Kant faz com o esquema enquanto transcendental
que, mesmo estando engajado necessariamente na relação do sujeito cognoscen
te com a experiência, não é entretanto apresentável nesta experiência. O obje
to a não é apresentável, ele não é figurável, a não ser no fantasma, e notada
mente no fantasma sadiano (mas, justamente, trata-se do fantasma e não da ex
periência) onde ele é o agente executor da Lei, o algoz insensível e apático, ou,
155
Bernard Baas
dito de outro modo (como vimos), o sujeito se esvanecendo ao não ser mais
que o agente.
QUADRO RECAPITULATIVO
KANT KANT
Critica da razão pura teórica Critica da razão pura prática
+
unive�Iização
tipo
]
LACAN
crítica do desejo puro
INCONDICIONADO ABSOL �
(Coisa)
_j
�
__
(Lei) J - (�o)
faculdade de desejar
(a prion)
***
156
O desejo puro
no sujeito, deve ser reportado ao desejo como processo de universalização. Que
se trate do conhecimento fenomênico (desejo de saber), da vontade autônoma
(desejo de bem fazer) ou do desejo epitumênico (desejo de objeto), o movimen
to procede sempre de uma faculdade a priori ela própria regulada pela Lei do
incondicionado absoluto e aplicável à experiência apenas por intermédio de
um objeto transcendental (esquema, tipo, objeto a). Poderíamos até dizer (mas
isso exigiria seguramente um exame mais aprofundado) que não há outra facul
dade a priorig além da faculdade de desejar. É por não ter reconhecido isso que
Kant teria sido a separar a razão teórica e razão prática. A teoria transcenden
tal do desejo realizaria, assim, a unidade da crítica em torno do objeto a.
Af está uma observação que só podemos sustentar a título de sugestão
de pesquisa. Ela, aqui, está argumentada de maneira insuficiente. Mas ela auto
riza pelo menos a hipótese que esta designação enigmáticade objeto a viria pa
ra Lacan de seu encontro com Kant: objeto a... priori. A queda do priori, que
deixa apenas o a, não seria inexplicável. Pois, como concebemos agora, talvez,
é certo que Lacan acabou não escrevendo sua Crítica do desejo puro. Mas ele
não o fez. Como se (e segundo a própria lógica elaborada por Lacan) nesse cru
zamento, nessa interseção, nesse recobrimento parcial do discurso psicanalítico
e do discurso filosófico, alguma coisa devesse cair: o próprio Kant, o filósofo
como tal, como questionamento transcendental. É igualmente notável que, em
parte alguma, Lacan, emprega essas expressões - "questionamento transcenden
tal", "faculdade a priori de desejar" - , enquanto que sua pesquisa procede inti
mamente disso. Ou muito mais, segundo a palavra do próprio Lacan, "ertima
mente", de modo que poderíamos dizer, forçando um pouco as coisas, que Kant
é o objeto a do discurso de Lacan. Pois em toda esta lógica do desejo, é certa
mente o trabalho inestimável de Lacan (94) que nós lemos; mas em todas as
etapas e, como diria ainda Lacan, nos "intervalos" de seu discurso, podemos
pontuar o questionamento transcendental. Lacan, certamente, mas, também, Kant.
Eu não o digo somente à guisa de "boutade". Pois me parece que alguém
poderia escrever um "Lacan com Kant".
Haveria, de fato, ainda muito a dizer, e notadamente do lado da estética.
É no Seminário sobre a Ética da psicanálise que Lacan aborda a questão do be
lo e da sublimação. Da sublimação, conceito bastante confuso na obra de Freud,
Lacan dá essa definição na forma de um Witz soberbo: "a sublimação eleva o
objeto à dignidade de Coisa" (95).
Entendamos: à Ding-dade, à coisidade da Coisa, isto é, ao incondiciona
do (este incondicionado do qual Kant diz que, postulando-p, nos é permitido
esperar que nos tornemos DIGNOS da felicidade). Reportemo-nos ao meu qua
dro recapitulativo e compreenderemos facilmente o sentido desta definição: a
sublimação apresenta no sensível o índice doque é absolutamente inapresentá
vel, absolutamente fora de figuração, isto é, a Coisa. É o "Deus sem figura", co
mo diz Lacan (96), para fazer paralelo com a concepção kantiana do sublime
como apresentação daquilo mesmo que há de inapresentável, isto, justamente,
as idéias da razão. Nos dois casos, a sublimação - o sublime - indica a presença
sensível do incondicionado, isto é, do absolutamente inapresentável.
Mas o que é belo, o que é simplesmente belo e não sublime, tem precisa
mente como efeito nos preservar da insustentável presença do inapresentável.
No Seminário sobre a Ética da psicanálise, evocando a ligação entre a ética e a
estética (ligação precedentemente estabelecida por Kant na Critica da faculda
de de julgar), Lacan fala da beleza do objeto desejado como do que mantem o
sujeito desejante à distância da Coisa: "a verdadeira barreira que detém o sujei-
157
Bemard Baas
siano diz então que está entre o número das grandes leis que reinam sobre o
mundo e que presidem toda aliança (poderíamos dizer, a toda síntese) - é o
olhar já destacado do objeto desejado, e que vem causar o desejo do sujeito de
sejante. Himéros é o olhar como objeto a.
Mas Antígona - figura "apática" por excelência (isso não é de forma algu
ma paradoxal: evoquemos tudo que opõe o caráter de Ismênia àquele de Antf
gona! E comparemos o par sofoclesiano das duas irmãs, uma tristemente afeta
da, a outra tragicamente voluntária, com aquele que Sade dá a versão de sua
crueza: Justine e J�liette! ) - precisamente porque mais nada poderia afetá-la
"patologicamente" para fazê-la retornar de sua decisão trágica, não se preocu
pa mais em prestar a menor atenção ao canto do coro, nem aos lamentos do
corifeu. I;:la já está mais além desta lei pela qual o desejo acaba por nascer no
mundo. E à outra Lei que ela se destina, ao desejo sem objeto, ao desejo fora
do-mundo que a consagra ao imundo. Ao querer, contar a lei mas também se
gundo a Lei, se apropriar de seu desejo, ao querer se apropriar da origem mes
ma de seu desejo, ao querer se apropriar do Mesmo do qual seu desejo proce
de e que resta entretanto interdito a esse desejo, Antfgooa se condena a não
ser mais que sujeito petrificado, rochedo frio de onde brotam como nascentes,
158
O desejo puro
suas lágrimas, última figura do himéros agora caído e separado: ''ANTÍGONA
- já me contaram o deplorável fim da estrangeira de Frígia, da filha de Tântalo
que, sobre o cume do Sípilo, bruscamente sentiu sobre ela, tão tenaz como a
hera, a rocha subir e escravizá-la, tanto que agora, dissolvendo-se sob a água
do céu, tal como nos é relatado, ela se vê coberta de uma neve eterna e, desde
então, são os rochedos que as lágrimas de seus olhs inundam. Eis aí aquela com
quem mais me fez parecer o destino que me abate" (104).
Curiosa comparação, posto que Antígona já sabe que ela está condenada
a ser enclausurada viva. Mas é verdade que, em face da Coisa que vai surgir, e
na ausência de todo objeto desejado, não há mais necessidade de se preocupar
com qualquer adequação. Nada mais resta, a não ser figurar o objeto profunda
mente faltante do desejo, ou, melhor, figurar a falta mesma do objeto, isto 'é,
o Mesmo como falta: nada mais resta, a não ser figurar a Coisa. E Antígona es
colhe (escolhe?) esta figura de nuvem cuja brancura certamente pode imajar a
ausência de toda culpabilidade; mas esta imagem é ainda símbolo inspirado pe
la lei que, aqui, não é mais colocada. Pois a nuvem, a nuvem eterna que o dese
jo sem objeto de Antfgona aspira, é esta nuvem cuja brancura é a brancura
mesma do Iençoi.Ora, é também a brancura que designa Madam�" de Saint-An
ge, desde o primeiro diálogo de A filosofia na alcova, brancura o e Eugénie, fu
turo objeto desejado, mas neste momento ausente, faltante: "sua tez é de u ma
brancura deslumbrante... seus olhos de um negro de ébano e de um ardor!...
Oh! meu amigo, não é possível manter esses olhos lá" (105). Mas, quando Eugé
nie foi instituída, ininterruptamente, como objeto desejado, sua brancura não
estará mais em questão. Ela não será mais figura do insustentável, mas posição
manipulada.
Certamente, a aproximação desses dois textos, aquele de Sófocles e o de
Sade, pode surpreender. Mas sua agudeza aparecerá, talvez, se nós pensarmos
no curioso exemplo de Platão: o desejo puro do prazer puro da pura brancura.
O que é esta pura brancura. O que é esta pura brancura, esta brancura - como
diz Platão - no ponto mais extremo do branco? É o branco sobre o qual nada
aparece, nenhum traço, nenhuma atração, nenhuma figura. É a brancura, para
falar propriamente, sublime (sub-limes_, log ' abaixo do limite mais além do
qual nada mais é figurável. A brancura sublime é a figuração do que há de infi
gurável; e o desejo puro é o desejo desta brancura sublime.
O desejo puro é o desejo branco.
NOTAS
* Texto publicado originalmente em: ORNICAR? Revue du Champ Freudien, n2 43, outubro/dezembro,
1987, pp.56-91. As notas que se seguem foram divididas entre NOTAS DO TRADUTOR (NT) em al
garismos romanos ou entrecolchetes) e NOTAS DO AUTOR Revisão de Sara Fux.
a) NOTAS DO TRADUTOR
I. Baas emprega, aqui, a palavra sujet, que admite, em francês, tanto o sentido de •sujeito", como aque
le de "tema". Considerando que Lacan prefere falar de "sujeito ao inconsciente" do que de "sujei
to do desejo" e que todo o esforço de Baas aqui é de sustentar uma "teoria transcendental do dese
jo" que se construiria nas entrelinhas do texto lacaniano, preferi traduzir - neste momento apenas
- o termo sujei por "tema".
11. No original: "(... ) Lacan n'y faisant pas seulement office .de commentaÍeur de Kant, mais peut-être
159
Bernard Bass
auni de commetant" (p.59). Para manter o jogo de palavras do original entre commenlateur e com
metant, preferi modificar um pouco a frase, ressaltando que Lacan não faz apenas um comentário
em relação a Kant, mas algo da ordem de um cometimento. A meu ver, com este jogo de palavras,
Baas nos indica que Lacan toma o texto não só para comentá-lo, mas também para realizar - atra
vés dele e nele mesmo - um cometimento, um empreendimento de grande e de alto risco, uma lei
tura diferente e muito particular do texto kantiano.
III. Em frnncês, lâche. Este termo, em Lacan, recebe uma conotação bastante especial, relacionada
tanto com "ne lâche pas le signifiant" ("não largue o significante"), como com o "covarde", aquele
que, se desapegando dos significantes que lhe representam, se furta ao desejo em nome de uma
vida que é muito mais uma sobrevivência, no sentido da expressão popular: "ele não vive, ele so
brevive". Assim, ao lâche podemos contrnpor o corajoso, aquele que - como Antígona .- não se cur
va aos limites que a sobrevivência impõe ao desejo e à própria vida concebida mais além do cir
cuito dos bens.
IV. letra "J" é a inict ouissance, "gozo". Preferi manter a inicial francesa à nossa (G) devido ao
:Í dl{j
aspecto formal e mesmo matêmico que, a meu ver, esses esquemas de Baas têm.
b) NOTAS DO AUTOR
10. lbid.
1 1 . "O problema econômico do mascqui•mo", Névrose, Psychose el Perversion, trad. Laplanche, PUF, p.295.
12. Le séminaire, livre XI, Senil, p. 247 (grifos nossos).
13. A citação precedente foi extraída da sessão �c 24 de junho de 1964; a redação de "Kant com Sa
de" data de setembro de 1962. Cf. J. Lacan, Ecrits, Senil, p. 765-790. Daqui em diante, escrevere
mos KS e acrescentaremos - para uma precisão maior - o número do parágrafo.
14. KS, p. 768, parg. 4.
15. Critique de la pratique (daqui em diante: C.RPtque), Prefácio (nota I do parg. 10), trnd. Gibelin,
Vriu, p.20-21. Cf. também: "Anlhropologie d'un point de vue pragmatique, primeira parte, livro Ill,
"Da faculdade de desejar", trad. M. Foucault, Vriu, p. 109: "o desejo é a autodeterminação do po
der de um sujeito pela representação de um fato futuro, que seria o efeito desse poder".
16. F011dements de la Métaphysique des moeurs (Daqui em diante: FM.M.), primeira seção, trad. Del-
bos, Delagrave, p.98.
17. lbid., p. 99.
18. lbid.
19. C.RPtque, primeirn parte, livro I, capítulo 2, p. 76.
20. Cf. F.MM., p. 93-97.
21. lbid., p. 157-158. Cf. também, in C.RPtque, primeira parte, livro I, capítulo I (p.46), o teorema
IV, onde Kant caracteriza a autonomia da vontade pela "independência em relação a toda matéria
da lei (isto é, de todo objeto desejado)".
22. F.M.M., p. 137.
23. lbid., p. 165.
24. KS, p. 767, parg. 5. Cf. C.RPtque, primeira parte, livro I, capítulo I, escólio do teorema III, p. 40.
25. Métaphysique des moeurs (Doctrine de la Vertu), Introdução, parágrafo XVII, trad. Philonenko,
Vriu, p. 81. O texto precisa: "esta apatia moral consiste em que os sentimentos nascidos das impres
sões sensíveis perdem sua influência sobre o sentimento moral à medida em que o respeito pela
lei toma-se mais potente que todos eles". Cf. também: Anlhopologie. p. 1 1 1 : "a apatia, quando a
natureza gratifica com ela uma alma suficientemente foréte, é uma fleuma bem-aventurada (no
1 60
O desejo purv
sentido moral). Não se exatament' por isso um sabio; mas da natureza se sustenta este favor de
poder tomá-lo mais facilmente do que qualquer outro".
26. KS, p. 770, parg. 4.
27. H. Arendt, EicJunann à Jerusalém (Rapport sur la banalité du mal), cap. VIII, Gallimard, p. 152-155.
28. Hans Frank: Die Technik des Staates, 1942, p. 15-16, citado por H. Arendt, op. cit, p. 153.
29. H. Arendt, op. cit., 154.
30. Sade, La philosophie dans le boudoir, Gallimard, "Folio", p. 107-108 (grifos nossos).
31. Ibid., p.257.
32. M. Horkheimer e Th. Adorno, La dialectique de la raison (publicado em 1947). trad. Kaufhoz,
Gallimard, "Te!", p. 92-127.
33. Ibid., p.97.
34. Maurice Blanchot, "La raison de Sade", Lautréamont et Sade, Minuit (1963), p. 1549.
35. Ibid., p. 45 e 46.
36. KS, p. 768-769.
37. KS, p. 770, parg. 2.
38. Cf. Kant, Metaphysique des moeurs (Doctrine du Droit), parágrafo 24, citado por Walter Benjamin,
"AS AFINIDADES ELETIVAS de Goethe", trad. M. de Gandillac, Essais I, Denoel-Gonthier, p.
28 e 29.
39. KS, p. 770, parg. 4.
40. Ibid., parg. 7.
41. Cf. KS, p. 773, parg. 3 e p. 774, parg. 5 e 6.
42. Cf. C.R.Ptque, primeira .parte, livro I, cap. 3, p. 91 -92: "a humilhação do lado sensível é uma e:ral-
tação da estima moral do lado intelectual".
43. KS, p. 773, parg. 9.
44. Ibid., parg. 4.
45. Não poderíamos determinar univocamente o que Lacan, nesta ocasião, chama de "o Outro". Aqui,
o Outro não se reduz ao "tesouro de significantes, pois ele designa também a alteralidade de uma
instância que, para não ser sujeito, mantém, todavia lugar de sujeito para esse "mesmo" diante do
qual ele surge como "Outro". Por conseguinte, não se trata simplesmente desse "outro em nós" do
qual Valéry fala a propósito da linguagem. Não é exatamente, tampouco, o Outro sob a espécie
do próximo (do Nebenmensch do qual Freud fala). Mas o Outro é pelo menos um substituto-de
sujeito susceptível de se investir num outro. Sobre esta questão do Outro em Lacan, cf. nosso estu
do: "A comissura do sei", Descanes et les fondements de la psychanalyse, a ser publicado em breve
por Osiris-Navarin. [N.T.: Tal estudo já está publicado: BAAS, B. e ZALOSZYC, A. Descanes et
les fondements de la psychanalyse. Paris, 1988].
46. KS, p. 770, parg. 7-8.
47. Ibid., parg. 5.
48. Ibid., parg. 6.
49. Ibid., parg. 9.
50. Não encontramos, no texto de Kant, nenhuma retórica da "consciência m<!ral" (caso contrário, te
ríamos em alemão Gewissen e não Bewusstsein), nem da "voz do dever". E na "Profissão de fé do
vigário saboiano" que retine o famoso: "Consciência! Consciência! Instinto divino, imortal e celes
te voz!" (Rousseau, LÉmile, Gamier-Flammarion, p. 378). Em Kant, nada disso. Mesmo seu liris
mo ocasional permanece estritamente coerente com o frio rigor da Analítica: "Oh dever! Grande
e sublime nome, não compreendes em ti nada que agrade, nada que se insinue pela lisonja, mas
exiges a submissão". C.R.Ptque, p. 98.
51. Cf. KS, p. 774, parg. 3.
52. Cf. KS, p. 765-766.
53. KS, p. 787, parg. 9.
54. Freud, "O eu e o isso", cap. V, Essais de psychanalyse, trad. Jankélévich, Payot, p. 225.
55. KS, p. 787 parg. 6 (grifos nossos).
56. KS, p. 781, parg. 4.
57. Cf. C.R.Ptque, primeira parte, livro I, cap. I, p. 43-44.
58. KS, p. 782, parg. 3.
59. Lacan, Le séminaire, livro VII, L 'élhique de la psychanalyse, 1959-1960, Se ui!, 1986.
60. Freud, "projeto de uma psicologia científica", trad. Berman, La naissance de la psychanalyse, PUF,
p. 315-369.
61. Le séminaire, livro VII, p. 128.
62. Ibid. , p. 67.
63. Ibid., p. 142 (grifos nossos).
64. Cf. A Juranville: Lacan et la philosophie. PUF, p. 39.
65. Le séminaire, livro VII, p. 143.
66. KS, p. 782, parg. 3.
67. Cf. Hegel, Phénomenologie de l'esprit, trad. Hyppolite, Aubier, tomo 11, p. 30 e ss. Cf. também Esthé-
1 61
Bemard Bass
tique, "A poesia", 111 C, Aubier, p. 406-407.
68. Cf., principalmente, Phénomenologie, tomo I, p. 343 e ss. ("A razão legisladora") e p. 348 e ss. ("A
razio examinando as leis").
69. C!. Principes de la philosophie du ároi1, principalmente parg. 135.
70. La:can, aliás, emprega essa expressio em "A significação do falo", Écrils, p. 685 e ss.
71. Cf. Cririque de la rison pure (daqui em diante, C.R.Pure), "Apêndice à dialética transcendental:
douso regulador das idéias da razão pura", trad Bami, Gamier-Fiammarion, p. 505.
72. KS, p. 774, parg. 1 .
73. Cf. C.R.Pure, "dialética transcendental", livro I , capítulo 3, 2 ! seção: "Do ideal transcendental (pro-
tótipo transcendental)", p. 463 e ss.
74. KS, p. 790, parg. 7.
75. C.R.Prque, primeira parte, livro 11, cap. 2, p. 136 e ss.
76. lbid. . p. 14,.3.
77. Cf. La religion dans les limites de la simple rnison.
78. C.R.Prque, p. 139-140.
79. /bid. , p. 143 (grifos nossos).
80. lbid., p. 132 e 133.
81. C.R.Pure, "Analítica dos princípios", cap. I, "Do esquematismo dos conceitos puros do entendimen
to", p. 188.
82. C.R.Prque, primeira parte, livro I, cap. 2, "Típica do julgamento prático puro", p. 83.
83. C.R.Pure, "Introdução à lógica transcendental", p. 110: "sem a sensibilidade, nenhum objeto nos
seria dado; sem o entendimento, nenhum seria.11ensado. Os pensamentos sem matéria são vazios;
as intuições sem conceitos são cegas. É tão necessário tomar os conceitos sensíveis (isto é, acres
centar aí o objeto dado na intuição), quanto tomar as intuições inteligíveis (isto é, submetê-las
aos conceitos). Essas duas faculdades ou capacidades não poderiam tampouco trocar suas funções.
O entendimento não pode ter intuição de nada, nem os sentidos podem pensar algo. O conheci
mep.to só pode resultar da união delas".
84. "Posição do inconsciente", Écrirs, p. 848.
85. Cf. p. 774, parg. 5-7 - C!. também, no "Nota sobre o relato de Daniel Lagache", Écrirs, p. 656:
"por conseguinte, ainda que seja necessário que o eu-objeto se esforce para afastar o eu-objeto
para se fazer TRANSCENDENTE, verdadeiro, senão o bom sujeito, o sujeito do desejo, tanto na
iluminação do fantasma, como na sua morada não-ciente, não é outro que a Coisa, que é, com ele
mesmo, o mais próximo e o que mais lhe escapa".
86. KS, p. 780, parg. 7.
87. lbid., parg.. 8. Cf. também as observações sobre a divisão do sl!jeito na sua relação com o agalnuz
como objeto a, "Subversão do sujeito na dialética do desejo", Ecrils, p. 825.
88. Cf. C.R.Pure, "Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento", p. 188.
89. C.R.Pure, "Estética transcendental", 2! seção, parg. 6B, p. 91.
90. C.R.Pure, "Nota sobre a anfibologia dos conceitos da reflexão", p. 291.
91. C.R.Pure, Introdução, p. 57.
92. C!. C.R.Prque, p. 82
93. KS, p. 780, parg. 10.
94. Trabalho, de fato, inestimável Mas também frequentemente não estimado. De início, por muitos
daqueles que reclamam disso abertamente. Entretanto, poderíamos dizer da teoria lacaniana do
desejo exatamente a mesma coisa que o que Kant diz a propósito da típica: ela nos preserva, ou
pelo menos deveria nos preservar, do misticismo e do empirismo (Cf. C.R.Prque, "Típica do julga
mento prático puro", p. 83-84). Pois a psicanálise também tem os seus místicos e seus empiristas.
Lacan faz, aí, as vezes de "cúmulo", posto que ele só é evocado para cumular o vazio teórico de
um discurso que se ompraz no mito da origem ou na experiência clínica. De fato, é o cúmulo!
95. Le séminaire, livre VII, p. 133.
96. KS, p. 773, parg. 1 .
97. Cf. L e séminaire, livre VII, p . 256 (cf. também p . 342-345).
98. KS, p. 775-776.
99. Le séminaire, livro VII, p. 370 - Cf., sobre esse ponto preciso, o comentário de A Zaloszyc: "Infer
no do desejo", Lenre m=elle de I'ECF, n9 44, pp. 1 1 -13. Eu fui pré-convidado e incitado a reali
zar este estudo, que apresentei no seu seminário, em 5 de junho de 1986.
100. Sófocles, Anligone, verso 798.
101. Tradução P. Mazon, Gallimard, "Folio", p. 121.
102 Tradução R. Pignarre, ed. Garnier-Flammarion, p. 88.
103. Holderlin, L 'Anligone de Sophocle, trad. Ph. Lacoue-Labarthe, Ch. Bourgeois, p. 95.
104. Versos 823-832, trad Mazon, op. cir. , p. 122-123.
105. Sade, op. ciL , p. 47.
1 62
Jo Attie
1 64
Traço perverso e sublimação
perverso, ela assinala uma estrutura: é u m desmentido quanto à castração da
mãe e a fixação do sujeito ao seu gozo - vontade de gozo, dirá Lacan.
A experiência do real do sujeito da sublimação lhe traz uma outra certe
za. Uma certeza, fundada em sua fantasia, de uma visão do mundo, quer dizer,
de u ma verdade que ele deve transmitir pela sua arte. Um exemplo paradigmá
tico de uma tal experiência do real nós encontramos nas epifanias de Joyce. Jac
ques Aubert, em sua introdução à obra de Joyce na Pleiade, justamente com
Catherine Millot em "Joyce com Lacan", a explicitam muito bem. As condições
não se prestam aqui a longas demonstrações, mas, posso assegurar-lhes que de
tais experiências encontramos o testemunho em toda sublimação exitosa.
Eu não acrescentaria, senão, um único exemplo às epifanias de Joyce. É
aquele de Kandinsk descobrindo a abstração na pintura. Voltando num fim de
tarde, ao crepúsculo, a seu atelier, ele fica sob o "charme de uma visão inesperada".
"Vejo, subitamente, um quadro de uma beleza indescritível, impregnado
de um grande ardor interior. De início, eu fiquei muito espantado, dirigindo
me, rapidamente, em seguida, na direção deste quadro misterioso sobre o qual
eu não via, senão, formas e cores e cujo tema era incompreensível. Mas, de lo
go, encontrei a palavra do enigma: era um dos meus meus quadros que estava
apoiado no muro, de lado ( ... ) agora, eu estava fixado, o objeto prejudicava os
meus quadros. Um abismo terrível, uma profusão de questões de todas as sor
tes, em que uma responsabilidade em jogo se apresentava a mim. E a mais im
portante: o que é que deve substituir o objeto faltante?" (4)
Tal é a experiência inicial, na qual Kandinsky reencontrou, no exterior, a
pintura que ele já trazia consigo. E ei-lo aí, lançado em uma revolução radical
quanto à tradição pictórica.
A que remete esta experiência, este toque de real, como digo em meu ar
gumento?
Bem, o sujeito faz a experiência da face real do significante promovido à
condição de objeto com o que isso implica de gozo, donde, a certeza que se se
gue. E se, aqui, o artista disto pode fazer alguma coisa, é que o significante não
o reenvia mais uma vez a uma significação fálica. O significante, ou o objeto vis
to, tratam aqui, distintamente, de seu valor fálico.
Assim, a sublimação aparece como uma resposta do real, resposta do su
jeito ao real da fantasia.
Dentro dessa ótica, o neurótico é o menos dotado da sublimação. O per
verso, devido à sua liberdade de ação quanto à sua fantasia, pode jogar melhor
com os significantes e seu deslocamento. A foraclusão do Nome-do-Pai e da sig
nificação fálica obriga o psicótico a elaborar um delírio, ou a criar uma obra,
demonstrando-nos, por aí, em qual lugar vem essa criação. Quer dizer, no lugar
do objeto do fenômeno elementar, que se manifesta por causa da foraclusão
da significação fálica.
Neste encontro consagrado aos traços de perversão, podemos dizer que
toda obra contém em si uma fantasia, ou seja, um traço perverso. Todavia, ler
a obra nesta ótica não parece ser o interesse de Lacan. Tomá-la como um sinto
ma parece-lhe, de outro modo, mais consequente. Mas, não é mais o mesmo
sintoma que habita na formação reativa. Antes, há, af, um sintoma em sua es
sência de sintoma, na medida em que ele não é interpretado. Ele é tomado co
mo sendo a resposta do sujeito à sua fantasia. Resposta em que as coordenadas
imaginárias, simbólicas e reais de uma existência são, mais ou menos, mistura
das ou, mais ou menos, ordenadas. Esta resposta pode levar alguns ao psicanalis
ta, outros em direção a uma produção de objetos socialmente valorizados, nos
1 65
Jo Attie
diz Freud.
Uma tal perspectiva dada à sublimação permite sublinhar todo o alcance
da formulação de Freud: é um destino particular da pulsao. É o funcionamen
to propriamente dito da pulsao. Ela nao se destaca nem do recalcamento, nem
do desmentido perverso, nem da foraclusao. Ela deixa, de uma só vez, a parte
desigual a cada um de poder aí recorrer.
Três observações para concluir:
Primeira - De início, o único critério que podemos reter é a resposta do
sujeito a seu real, através de um objeto, qualquer que seja o valor do objeto
produzido. Do lado dos artistas, Lacan nao desdenha, de modo algum, todos
"artesãos, fabricantes de vestidos ou de chapéus, os criadores de formas imagi
nárias" (5).
Segunda - O homem de ciência, por excelência, nao está atravancado pe
lo estatuto do sujeito e da significação fálica. Ele é, antes, o mais obcecado e
convencido pela idéia da existência de um saber no real. Acontece-lhe escrever
as bordas deste real, do mesmo modo que as sublimações, que sempre proce- ·
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Sega!, Hanna Psychanalyseet esthélique - 1952, Repris dans Revue Française de Psychanalyse S -6, 1 979.
•
2. Freud, S. . Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mentaL Standard Ed. voL Xll pg. 284.
3. Lacan, J. Compte rentlu de Logique du fantasma - Ornicar 29.4. Kandinsky Regards sur le passé -
· -
166
A lexandre Stevens
UMA CARTA
1 68
Uma carta
um sujeito de desejo, cujo desejo está preso na sua armadilha;
2 - Mas mais ainda pode-se pensar que Madame de Sade, com � leitura desta
carta, deve ter alguma vacilaçao subjetiva. Ele nao apenas lhe diz - "você é per
versa", mas ainda "eu desejo satisfazê-la mas nao posso sem faltar a honra (com
o que ele pOe a honra de seu lado"), mas no entanto disse quanto a isso uma
palavra a meu testa de ferro que, portanto, conhece seu gosto pela coisa e vai
satisfazê-la em meu lugar." A vacilaçao subjetiva, o malestar, e mesmo a angús
tia que deve ter experimentado Madame de Sade (suponhamo-lo ao menos),
eis o que pode-se escrever: S, sujeito dividido, incerto de suas inscrições para
o Outro. Tem-se portanto:
v
a
/\ �
Esta fórmula escreve que o perverso se faz objeto a para uma Vontade de Go
zo a fim de provocar no Outro a emergência (a prova) de uma divisao do sujei
to. Isto indica ao mesmo tempo que a castraçao foi de fato marcada pelo per
verso. O outro é castrado e dividido.
Mas é necessário ainda completar a fórmula:
a �
Com efeito, se se trata de fazer vacilar Madame, de fazer aparecer sua divisao,
é ao menos com a idéia de que para além deste sujeito dividido um pur!l sujei
to do prazer seria alcançável em "S, sujeito bruto do prazer" (Lacan, Ecrits p.
775). Eis o materna da perversao, que se pode escrever de maneira mais curta
a - $ . Precisemos o lado do objeto.
Notem que situei a com o objeto sob o qual se propõe o perverso. E eu disse
que este objeto é aqui o corpo de Sade proposto ao Outro sob a forma do obje
to. De fato digamos de imediato que isto só é exato pelo estilo cômico que ele
dá a sua carta e pelo fantasia masoquista que a sustenta.
Mas há um segundo objeto em jogo aqui, o da pulsao invocante em jogo
no fantasia sádica. Quem nao ouve nesta carta a voz obscena que profere: mas
goze minha cara! É a voz do testa de ferro no próximo encontro de Madame
de Sade. Há uma Ordem de Gozar, um imperativo, vindo do Outro da máxi
ma; esta ordem subsume uma voz. O materna permanece portanto tal mas a
quadrilha se completa localizando esta voz do testa de ferro em "V".
Que constatamos aliás do lado do Sujeito quer dizer do lado do Outro, a
vítima ou a cúmplice, aqui Madame de Sade? O perverso faz aparecer a divisao
do parceiro ($) quer dizer sua submissao à castraçao. Mas ao mesmo tempo ele
nao reconhece esta castraçao. Ele leva o cenário além, mais longe, algumas ve
zes até o limite da morte sempre com a idéia de encontrar um sujeito bruto
do prazer, um sujeito fora da castraçao (S, não barrado).
O perverso vê a castraçao, ele sabe dela, mas nao a reconhece. Ele é lo
go imaginariamente velada. Esta maneira particular de se relacionar com a cas
traçao é o que Freud designou com o termo Verleugnung. ·
1 69
Alexandre Stevens
O que nos ensina Freud com efeito? O fetichista, confrontado com a au
sência do pênis materno viu a castração mas não a reconhece, ele se detém so
bre o último véu que se torna fetiche. Portanto, o fetiche mostra e ao mesmo
tempo anula a castração - nao haveria necessidade do véu se nao fosse necessá
rio velar esta ausência. Esta Verleugnung termo que Lacan traduz por "desmen
tido" deve ser situada no materna da perversão ao nível da flecha $ - S
que põe em jogo ao mesmo tempo a falta ($) e um prazer referido ao falo en
quanto ele não falta (S).
1 70
Sérgio Laia
1 72
Aids e suas metonfmias
meu ver, a partir desse significante AIDS. Não sem ironia. Pois, por u m lado,
ele tem sido associado muito mais a um controle dos corpos e das práticas, a
um investimento intenso do casal heterossexual e monogâmico como uma das
raras possibilidades de se evitar o contágio. Entretanto, por outro lado, uma sé
rie do que Foucault chama de "sexualidades periféricas" são desencadeadas por
esse significante. Assim, por exemplo, o "Manual de Aconselhamento/AIDS",
distribuído pelo Ministério da Saúde, lista como alto risco, num contato sexual,
de sermos infectados por alguém já portador do HIV, se esse alguém for "pros
tituto(a)", "usuário de drogas injetáveis (ou seus parceiros sexuais)", se o núme
ro de parceiros sexuais for muito grande e/ou se os tipos de contatos sexuais fo
rem, principalmente, '"passivo' em relação anal" e/ou '"passivo' em relação vagi
nal" ( 15). Entretanto, nessa mesma direção, mas já apontando para a "implanta
ção perversa", esse manual prescreve o "sexo oral (pênis, vagina, ânus)" cumo
baixo risco de contágio, nos diz que "o contato sexual é seguro se o sangue, es
perma ou secreção vaginal/servical não são partilhados" e cita como exemplo
do contato seguro as carícias e os abraços ( 1 6). Ainda nesta última direção, nos
deparamos, através da mídia e de outros manuais de prevenção da AIDS, com
toda aceleração e dispersão do receituário de "como se fazer sexo, sem o sexo",
de como ser reconhecido através deste outro significante - "sexo seguro" - que
ressurge dos tempos pré-penicelfnecos e pré-anticoncepcionais, se deslocando,
agora, mais intensamente, a partir do significante AIDS. Nesse deslocamento,
outros significantes são articulados, produzindo outros deslocamentos, nomean
do as mais diversas práticas periféricas - "filmes e teatros pornôs", "transas tele
fônicas", "masturbações-a-dois", "bonecos infláveis" ... evocações contundentes,
acrescentaria, do que a psicanálise situou sob a égide do parcial: o olhar, a voz,
o dejeto, o fetiche ... o objeto, enfim. É desde af que eu gostaria de retomar La
can, mas passando, antes, por Baudrillard.
Se, como vimos, no universo foucaultiano, sexo, sexualidae, "sujeito de
desejo" estão inseridos na produção desenfreada do "dispositivo de sexualidade",
com Baudrillard somos levados a concluir que toda essa aceleração acaba por
se efetivar - o feitiço virando contra o feiticeiro - como uma estratégia de simu
lação que, ao invés de produzir o sexual, o faz desaparecer. A proliferação des
se dispositivo, esse verdadeiro êxtase sexual que temos presenciado há alguns
séculos e que se intensifica, a meu ver, com o significante AIDS, acabaria, en
tão, segundo esta outra perspectiva, nos precipitando vertiginosamente num va
zio, nos distanciando da cena e da ilusão - referências que o "dispositivo de se
xualidade" nos proporcionava. É que esse excesso de produção sexual acaba por
nos fazer tomar o sexo como algo transparente, invertendo, então, a estratégia
do dispositivo que é de situá-lo como "o" segredo. Em outras palavras: trata-se
de um segredo que se falou tanto dele que, de tão comunicado, deixou de ser
segredo, tornou-se transparente a todos.
Esse excesso de exibição do corpo, essa excrescência na qual o sexo se
transformou pela sua própria aceleração produtiva, não nos diz mais da sexuali
dade. Assim, como o trem-bala japonês e o Concorde francês, pela velocidade
que nos proporcionam, fazem desaparecer a paisagem e o Atlântico, reduzindo
a viagem a um puro deslocamento. Nessa cultura da velocidade, de exasperação
do visível, do "show", do "look" até ao êxtase, o sexo implode e a obscenidade
irrompe. O obsceno, então, "é o mais verdadeiro que o verdadeiro, é o pleno
de sexo, o êxtase do sexo, é a forma, é a forma pura e vazia, a forma verdadeira
mente tautológica da sexualidade ( .. ), o sexo elevado a potência sexual, ( ... ), a
.
1 73
Sérgio Laia
A partir da lógica baudrillardiana, diria que, num campo onde tudo tor
na-se passível de ser captado como sexual e/ou como possível de produzir uma
satisfação dessa ordem, num mundo em que o significante AIDS acelera a im
plosão de "sexualidades periféricas" que vão da estimulação da pornografia à
evocação do prazer que se pode ter saboreando uma boa comida ( 18), nada é
sexual. Vale lembrar, então, a citação que Baudrillard ( 19) faz de Barthes que,
contrapondo o Japão aos Estados Unidos, dizia que no primeiro a sexualidade
está no sexo e em nenhum outro lugar, mas no segundo, ela está em toda par
te, menos no sexo. Talvez o que tenhamos hoje, e cada vez mais, seja uma ex
pansão dessa maneira americana de lidar com o sexo. Daí, quem sabe, esse dife
renciamento, esse vazio, essa pouca ou nenhuma representabilidade que inun
da tudo aquilo que aprendemos a situar como o político, o social, o sexual... É
que se a cultura sempre se pautou pelo modo de produção que implica a partilha
coletiva dos simulacros, das ilusões, das cenas e dos segredos, em nossos dias,
com a irrupção do obsceno, vivemos muito mais "o modo de aparição do real" (20).
Em toda parte, menos no sexo - não é bem esse, me pergunto, o estrata
gema que o significante AIDS acelera? Não é algo dessa ordem que encontra
mos nessa busca alucinada de "como fazer sexo"? Mais ainda: será essa outra
forma de apreender o título que Célio Garcia nos sugeriu para o trabalho cole
tivo do $ impósio no VI Encontro Internacional do Campo Freudiano (21 ) ?
Não será essa dimensão do obsceno que encontramos n a escansão lacaniana
de perversion como "versão do pai" (22) especialmente se considerarmos a de
núncia que alguns psicóticos nos fazem, com todo rigor, de que o pai - em sua
promessa de dar o que não tem, de nomear o inominável - é sempre um impostor?
Aparecimento e desaparecimento, supremacia do objeto sobre o sujeito,
fixação do objeto e dispersão infinitizante do sujeito - a meu ver, são também
esses mesmos termos que podemos ler na montagem que Lacan nos faz do fan
tasma sadiano (23). Se articularmos isso à concepção freudiana d e que todo fan
tasma é perverso e o nosso último anteparo d o vazio d a desolação primordial
que desde sempre nos rodeia, o que virá nos surpreender é, por um lado, o obs
ceno, por outro, a proliferação do parcial. É que o obsceno, desde sua própria
etimologia (diante da cena), nos faz passar a um campo outro que o representa
cional. Em outras palavras: invasão do real, evasão do sujeito, domínio do objeto.
Na obra de Sade, se a lemos com Lacan, o libertino sempre pensa que -
movido pela apatia, submetido ao desejo como vontade de gozo (V) , como se
fosse um objeto (a) - ele pode escapar da evanescência que a Natureza faz, a
todo instante, insidir sobre ele, os outros, e as coisas. Ou, ainda, que ele pode
escapar da própria morte, pois, através do movimento acima, ele visa aceder
ao próprio "Ser-supremo-em-maldade". Contudo, ele é surpreendido quando
vê reaparecer, na figura patológica (de PATHOS, paixão) da vítima (.8) a eva
nescência da qual se tenta furtar. Desde aí, uma outra volta deve ser realizada,
para sustentar o desmentido de que o libertino não desvanece: a vítima é infini
tizada (S) nos jogos incessantes do prazer na proliferação dos sacrifícios, na eter
nização infernal do castigo, como se ela não já tivesse sido marcada pelo desapa
recimento. Daí, esclarece Lacan, essa repetição infindável de cenas e, ao mes
mo tempo, essa fixidez e frieza que caracteriza a obra sadiana.
Nessa leitura lacaniana de Sade, encontro um último referencial que sus
tenta minha tese de que o significante AIDS tem funcionado como um aciona
dor/acelerador tanto do obsceno, quanto da proliferação perversa. É que AIDS,
como alguns outros significantes que se deslocam na obra sadiana, é da ordem
de SCWARMEREIEN (24). Esta palavra, Lacan a retira de Kant e significa, na
1 74
Aids e suas metonfmias
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"Crítica da Razão Prática (25) fanatismo, toda presunção e arrogância dos ho
mens quando se acham capazes de realizar a perfeição sem um combate - contí
nuo, paciente, e mesmo impossível de alcançar vitória nesta vida - do mal que
lhes constitui. Num outro contexto, penso que poderia dizer que AIDS tem se
presentificado como um significante que se articula, muitas vezes, por oposição,
a ideais como "a sexualidade sadia", "o sexo normal" etc, e a verdadeiros fanatis
mos, como o de a atribuir a peste aos "gays", o de imaginarizar as mais bizarras
formas de contágio como uso de toalhas de banho, banheiros, copos, etc.
Mas Lacan acaba, num deslocamento, traduzindo SCHAR 11EREIEN por
essains que significa enxame, mas também, em francês, é homófono de si. Tal
passagem ganha ainda mais importância para nosso propósito, se a articulamos
a leitura que Cottet (26) nos faz do grafo acima, situando o objeto a no cam
po do significante mestre (S 1 ), assim chamado por ser aquele que sustenta a
cadeia significante em seu desenrolar metonfmico, por ser aquele que vem re
presentar um sujeito para um outro significante. No texto de Lacan isso se ex
plicita quando ele nos permite situar nesse grafo o imperativo sadiano do direi
to ao gozo, isto é, a versão sadiana da lei moral. Esta, nos ensina o psicanalista
francês, Kant, aparece no momento em que o sujeito moral "não tem mais dian
te dele nenhum objeto, em que ele encontra uma lei que não tem outro fenôme
no que alguma coisa de já significante, que se obtém de uma voz da consciência
que, ao se articular em máxima, propOe a ordem de uma razão puramente prá
tica ou vontade" (27). Se a razão desde Freud é a razão do inconsciente, pode
mos, então, a2roximar lei e gozo através dessa instância paradoxal, herdeira do
complexo de Edipo: o supereu.
Assim, da mesma forma que, em Sade, alguns significantes ordenam a en
cenação de toda uma série de orgias, de toda uma exibição de corpos dispersos,
de toda uma proliferação do parcial, o significante AIDS tem ordenado tam
bém, uma exasperaçao do sexo, uma busca frenética de novos vícios, uma preci
pitação dos corpos. Mas já pude observar, com Baudrillard, que esse excesso
de sexualidade nos aponta também para o desaparecimento do responsável, pa
ra irrupção do real. No caso do significante AIDS, o real se presentificaria, por
exemplo, na figura derradeira e inexorável da morte.
Desde af, duas últimas questOes devem ser colocadas. A meu ver, elas
abrem entre nós um campo de discussão que, certamente, não se esgota neste
escrito. É que, de um lado, encontramos nos perversos uma estratégia similar
àquela dos libertinos sadianos: ao fixar um objeto de satisfação (um fetiche,
por exemplo), eles tentam desmentir a castração da qual, como todo ser falan
te, eles são vítimas. É por se posicionarem assim - como sabedores de seu go
zo e de sua vontade, por não terem no seu desejo uma questão, mas uma res
posta - que eles são raros ou, quando muito, temporários nos consultórios dos
analistas: satisfeitos, eles jamais perguntam e, por conseguinte, nunca deman
dam. Contudo, de outro lado, mas ressaltando que a AIDS não é, de forma ai-
1 75
Sérgio Laia
guma, específica dessa estrutura clínica que é a perversão, será que esse novo
significante (AIDS), ao presentificar essa castração real que é a morte, não po
derá conduzir alguns perversos à análise? Nesse viés, e no que a sexualidade é
sempre perversa, será que o silêncio dos analistas quanto a esse significante não
implica num recuo diante da perversão?
Texto apresentado - com algums pequenas alterações - na IX Jomada de Trabalhos do $impósio do Cam
po Freudiano. Belo Horizonte, 01-02 de junho de 1990.
REFE�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FOUCAULT, M. História da sexualidade:a vontade de saber (1976). Rio de Janeiro, Graal, vol. I,
1985, 5� ed.
2 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas (1964). São Paulo , Martins Fontes, 1987, 4! ed., p. 404.
Para essa aproximação entre as noções de homem e de sexualidade, ver o belíssimo trabalho de Mil
ler: MILLER, J.-A. Michel Foucault et la psychanalyse. In: Michel Foucault philosophe - Rencontre
internationale. Paris, Des travaux,!Seuil, 1989, pp. 77-86.
3. BAUDRILLARD, J. Esquecer Foucau/t (1977). Rio de Janeiro, Rocco, 1984, pp. 92-93.
4. Entre nós, já assisti um debate, no colóquio "História da sexualidade", em Belo Horizonte, 1987,
com Chaim Samuel Katz, sobre o tema "AIDS: é possível prevenir sem moralismos?" Há também,
um artigo de Maria Rita Khel (A psicanálise e o domínio das paixões), que foi sua conferência
no Seminário da FUNARTE sobre a paixão, em 1987, posteriormente publicado pela Companhia
das Letras (Os sentidos da paixão). Soube, também, mas desconheço o estágio no qual esse traba
lho se encontra, que Jurandir Freire Costa estava pesquisando esse tema. Do exterior, posso citar,
publicados nos volumes IVN da revista VECTORES, em 1988, os artigos "La opinion, la prensa y
el SIDA" e "E/ SIDA. un fenomeno psicossomático?", respectivamente de Gérard Miller e M. Amou
retti; na revista "ORNICAR?", n2 45, François Leguil também reflete sobre a AIDS.
5. SONTANG, S. AIDS e suas metáforas (1988). São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
6. FOUCAULT, M. Op. cit. , 1976, pp. 73-123.
7. FOUCAULT, M. Op. cit., 1976, p. 09.
8. FOUCAULT, M. Op. cir. , 1976, p. 14.
9. São essas tecnologias, "tecnologias de si", que atraíram a atenção de Foucault em seus últimos tra
balhos. Para elucidá-Ias, esse filósofo modifica o seu plano inicial de uma História da Sexualida
de situada a partir da Idade Clássica e nos faz retomar à civilização greco-romana e à patrística
cristã, onde elas teriam surgido e de onde elas teriam se transmutado até nós através de uma passa
gem de uma "arte da existência" (TECHNEÉ TOU BIOU), que tem sua grande expressão nos gre
gos, para uma "hermenêutica do desejo", que recebe grande impulso a partir do século XIX com a
sustentação, por parte de todas as técnicas de radical "psi", de uma "scientia sexualis".
Ver: FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité: l'usage des plaisirs. Paris, Gallimard, v. III, 1984.
FOUCAULT, M. Le soici de soi. Paris, Gallimard, v. III, 1984.
10. SONTANG, S. Op. cit., 1988, p. 21.
12. FOUCAULT, M. Op. cit., 1976, p. 48.
13. Ver: "AIDS, quanto mais você conhece, mais você pode evitar" (Programa de educação da popula
ção elaborado pelo SUDS/SP, 1987).
14. Essa relação AIDS/"vontade de saber" e a que trabalharei mais longamente (AIDS!"implantação
perversa") foram analisadas com grande precisão por Maria da Conceição Rodrigues num excelen
te trabalho: "Doenças sexualmente transmissíveis - discurso em silêncio" (Monografia do Curso
de Especialiação em Saúde Mental, Escola de Saúde de Minas Gerais, 1990.
15. Ver: "Manual de aconselhamentos/AIDS" (Ministério da Saúde, Divisão nacional DST/AIDS, 1989,
p. 16.
16. Idem.
17. BAUDRILLARD, J. Les stratégies fatales. Paris, Grasset, 1983, p. 76.
18. Ver, para este último ponto: Como evitar as DST. Ministério da Saúde. Divisão nacional DST/AIDS.
Tradução O.P.S., 1989, p. 16.
19. BAUDRILLARD, J. Op. cit., 1 977, pp. 22-23.
20. BAUDRILLARD, J. Op. cit., 1983, p. 71.
21. O título do trabalho é: "A obscenidade está por toda parte?".
22. LACAN, J. Le sinthome (Seminário inédito, 1974, que tem algumas conferências publicadas na re-
1 76
Aids e suas nutonfmias
vilta "'RNICAR?"
23. LACAN, J. K.aat avec Sacie (1962). la: iam. Paria, Seail, 1966, pp. 76S-790.
24. LACAN, J. Op. c#., p. m.
:ZS. JCANT, E. cntiqu• ti. 14 ,.._, prv,;qu.. Paria, QUADRIAOE/PUF, 198S.
26. CO'ITJIT, S. O JHI1YUÚllrO do gozo. Salvador, Fator, 1989, p. 43.
27. LACAN, J. Op. cil., p. 767.
1 77
História da psicanálise
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA
SEGUNDO FREUD
O artigo de 1920 "Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade
feminina", constitui a mais importante contribuição de Freud à questão. Reto
ma no citado artigo, algumas de suas prévias elaborações e deixa suspenso, al
guns pontos que serão tratados ulteriormente.
Antes de 1920
Freud destaca a presença da homossexualidade feminina, em particular
nas estruturas clínicas diferentes: reprimida na neurose, manifesta-se em outros
casos que todavia não são explicitamente "perversos", e por último sob a forma
de uma figura persecutória no delírio de uma paranóica. Em Tres ensayos...
(1905), o problema da inversão, remete a todo aquele que no ser humano é de
modo intrínseco, discordante entre a pulsão de seu objeto. A homossexualida
de como eleição de objeto não é uma transformação do processo de "decisão
do comportamento sexual". Se entende que possa ser transclínica, quanto à seu
estatuto em cada estrutura clínica, poderia se determinar um critério diferen
cial, sobretudo na função de sua forma: reprimida, atuada ou delirante.
Em 1920
Em "Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina", a história
libidinal do caso equivale à história edípica.
Nesta. época Freud define a posição edípica normal da menina pelo desejo
inconsciente de ter um filho do pai. A eleição homossexual da jovem se inscre
ve como resposta à decepção desse desejo edfpico " ..."não é ela que tem o filho,
sim a competidora, a quem em seu inconsciente ela odeia: a mãe" (pág. 256).
"Indignada e amargurada", abandona "o amor ao homem e o papel feminino"
se converte em homem e toma a mãe como objeto de amor no lugar do pai"
(págs. 256-257). Esta mudança de posição libidinal, foi para ela o modo de vin
gar-se de seu pai: para "desafiar a seu pai" permaneceu homossexual, sua vene
ração ostentosa de Dama de duvidosa reputação não teve outro efeito que ati
çar o enfurecimento deste.
Assim, o texto nos apresenta a eleição homossexual como uma transforma
ção do complexo de Édipo e por sua vez como renovação de uma "fixação infan- •
Depois de 1920
No seu artigo "Algumas consequências psíquicas da diferença anatOmica
entre os seltos (1925), Freud introduz uma assimetria essencial entre o menino
e a menina quanto à articulaçao de Édipo e a da castraçao. Retomando seus
avanços de 1923, declara: Enquanto o complexo de Édipo do menino sucumbe
pelo efeito do amplexo de castraçao, o da menina se faz possível e é introduzi
do pelo complexo de castraçao" (pág. 130).
Enquanto o menino, perante a falta do órgao da menina, começa por ne
gar sua própria percepçao, que só tomará sentido mais tarde, no a posteliori
de uma ameaça de castraçao, a menina parte de sua própria falta: De entrada,
julgou e decidiu. "Viu, sabe que nao o tem e quer possuí-lo (pág. 127). Desen
volve uma inveja do pênis cujas numerosas consequências psíquicas Freud assi
nala. O que a conduz ao Édipo é o complexo de castraçao. Se afasta de sua
mae, "renuncia ao desejo do pênis para substituí-lo pelo desejo de um filho, e
com este desígnio, toma ao pai como objeto de amor" (pág. 130).
A inveja do pênis, que constitui a pré-história do complexo de Édipo, en
contra um de seus destinos edípicos no complexo de masculinidade. Nos artigos
de 1925, 1931 e 1932, Freud elabora a problemática da sexualidade feminina,
até entao menos teorizada e refere-se à homossexualidade feminina, ao comple
xo de masculinidade, de que é um "efeito extremo" (1932, pág. 174).
Este llltimo, é uma das três atitudes possíveis perante a castraçao, sendo
as outras duas a inibiçao sexual e ... o Édipo (1931) o da "feminilidade normal"
( 1932).
Formaçao reativa frente à Penisneid, o descreve como um exagero da mas
culinidade ameaçada. A homossexualidade manifesta-se resultante, será portan
to nao edípica? Freud dissipa o mal entendido em duas ocasiOes: Ela nao está
em continuidade direta com a "masculinidade infantil", porém sempre estará
marcada pela dialética edfpica.
SEGUNDO OS PÓS-FREUDIANOS
1 79
A. Stevens-Lysy et alii
seguir na força de artigos simultaneamente publicados nolnternazionale Zeitschrift
[ar Psychoanalysis e em inglês no International Journal of Psycho-Analysis, a
unanimidade está distante de concretizar-se; em rigor, cada qual coloca sua pró
pria "aplicação do saber". Por conseguinte, neste debate a questão da homosse
xualidade feminina será considerada em função dos grandes temas da teoria freu
diana em discussão, a do pênis e a da castração, segundo o quadro seguinte:
Homossexualidade:
1. Conservação da posição pré-edípica (detenção)
2. Regressão à posição pré-edípica, consecutiva à decepção quanto ao pai. Esco
lhe substitutos da mãe.
3. Identificação com o pai, identificando-se ao objeto (o pai) abandonado co
mo objeto de amor.
180
A homossexualidade feminina
181
A. Stevens-Lysy et alii
nante.) A homossexualidade constitui uma das saídas anormais do complexo
de castração feminino, como vingança pela castração feminina atribuída ao pai,
por identificação com o pai, tomando apoio na bissexualidade originária. Esta
saída é neurótica ou perversa segundo fique reprimida ou não (Hipótese 3,4,5,6
do quadro).
Dentro desta mesma tendência universalizante citemos a Sachs, Bousfield,
van Ophuijsen e os fantasmas dos desejos homossexuais masculinos ativos ("eu
possuo um pênis", (Hipótese 5); Stekel e a fuga até o mesmo sexo para evitar
o sadismo masculino, favorecida pela bissexualidade primitiva (Hipótese 6); Sad
ger, é quem apresenta o interessante caso de uma mulher que escolhe a homos
sexualidade inteirando-se de que seu pai tinha uma amante, porém não tira dis
to nenhum ensinamento quanto à alguma teoria sobre o amor (Hipótese 2,3);
Ferenczi, que o toma por posição quanto à homossexualidade feminina antes
de seu "Diário Clínico", apoiando sobre as teses freudianas, e de Saussure, que
vê na homossexualidade algo como uma tentativa de escapar aos desejos edípi
cos (Hipótese 3), um desdobramento narcisista onde o sujeito se reflete em si
mesmo no qual projetou bem sua feminilidade, ou bem sua agressividade para
com os homens. Por este caminho, o destino da feminilidade se deixa captar es
sencialmente nos términos de identificação com a mãe, ou no desvio constituí
do pela homossexualidade com o pai, onde os componentes bissexuais originá
rios prestam sua colaboração.
Ficam então as "analistas mulheres, que tinham em conta a primazia do
pênis e as que Freud pedia-lhes que elaborassem um conhecimento sobre a fe
minilidade. A contribuição de Jeanne Lampl de Groot na matéria é considerá
vel, porque ela formula em 1927, sua concepção de uma relação pré-edípica
da menina com sua mãe, assim como as três saídas possíveis do complexo de
castração feminino (inibição, Penisneid, Édipo) que Freud fará suas quatro
anos depois. Sua teoria da homossexualidade feminina em 1927 e 1933, pode
confundir-se com o quadro. Não obstante, Lampl de Groot acabará universali
zando o binômio atividade-passividade na matéria da diferença sexual. Ruth
Mack Brunswick, também bem perto nesta fase da teoria freudiana contribui
no debate com sua publicação em 1928, de um caso que mostra uma fiXação
pré-edípica homossexual à irmã maior, "perversa", substituta da mãe morta, na
origem de uma paranóica (delírio de zelos), onde a situação edípica não chegou
a instalar-se (Hipótese 1). Rutb Mack Brunswick confirmará sua tese em 1940
num artigo inspirado em seus debates com Freud, tomando nota do importan
te número de mulheres que apresentam "ausência total de Édipo normal" e fi
cam fiXadas à sua mãe. Descobrirá um desejo primário de filho na origem da
Penisneid. Marie Bonaparte, que formula as três saídas do complexo de castra
ção sob o modo das "renunciadoras, reivindicadoras e aceitadoras", insiste por
que diz respeito às Homossexuais-reivindicadoras na insistência ao gozo fático,
na negativa a renunciar ao erotismo clitoriano, causada por uma bissexualida
de constitucional excessiva (Hipótese 5,6). Marie Bonaparte desejará com ânsia
erradicar o clitóris, cujo gozo viril, se supõe que constitui um obstáculo para o
gozo feminino, vaginal; Bonaparte fixa a bissexualidade num fundamento orgâ
nico. A insistência de Helen Deutsch sobre a relação pré-edípica com a mãe, a
levará definir por um lado da feminilidade como maternidade, onde a vagina
um "paõo dei yo", a semelhança do pênis para o varão, e pelo outro a homosse
xualidade na relação mãe-filho, descuidando portanto da relação com o pai: subs
titui portanto o binômio homem-mulher pelo binômio filho-mãe, onde é o filho
que faz o homem (ativo) e a mãe representa o polo feminino, masoquista. A
182
A homossexualidade feminina
homossexual escolhe "partenaires" que apresentam características "m4e-fllho"
(podendo ser vários, o bem alternando os papéis), para opor-ie aoa laços bastao
te poderosos, e foge assim do perigo de uma identificaçao masoquista com a
mae (Hipótese 1 ). Portanto, onde Freud evidencia uma prudência notável e fala
de "repressão particularmente inexorável" do "enigma da feminilidade", o atrati
vo da "resimetrização" ou para ser mais exatos da positivizaç4o da feminilidade
que os autores acabaram constatando.
Podemos constatar, que as teorias sobre a homossexualidade feminina
nos pós-freudianos não puderam desprender-se do debate sobre a sexualidade
feminina e sobre o pênis. Seu interesse na época deste debate, que oferece sem
dúvida um interesse primordial para a questao do pênis quanto à homossexuali
dade, rebaixa a questão: estes autores, efetivamente apesar da apresentaçao de
casos interessantes (Sadger, Deutsch, Ruth Mack Bruoswick), não há rastros
de uma teoria da homossexualidade que se emancipe deste debate e a conside
re dese um ângulo mais clínico. Assim as agudas particularidades de Freud a
propósito da jovem homossexual foram despretensiosamente varridas.
SEGUNDO LACAN
A reconsideração da homossexualidade feminina por parte de Lacao, des
de os anos 50, pode ordenar-se em torno de duas interrogações: Convém ou
não incluir na perversão o caso da homossexualidade relatada por Freud? e o
que dizer das reservas pronunciadas por Freud quanto ao êxito de tratamento
da homossexualidade feminina?
183
A. Stevens-Lysy et alii
da jovem homossexual e a bofetada de Dora.
No seminário XI, estes dois casos ilustram a fórmula de desejo da histéri
ca (pág. 187): "o desejo do homem é o desejo do Outro". Estas duas mulheres
sustentam o desejo do pai, desafiando-o, e "Dora por procuração".
A cura da homossexual
Estas diferentes observações sobre o caso relatado por Freud, colocam
de entrada, a questão do tratamento psicanalftico da homossexualidade feminina.
É particularmente valioso para nós a releitura proposta por Lacan em
1971, do que escreveu em seu texto sobre a sexualidade feminina. As dificulda
des que surgem na cura da homossexualidade, recebem assim nova luz, a ser
articulada com a sexualidade feminina e particularmente com a maneira em que
se situa uma mulher com respeito à função fálica.
Em 1960, Lacan utiliza como referência os estudos de Jones, que toma
as coisas num "medium" que talvez faria melhor em sustentar, "medium" que
Lacan levará a sério até o ponto de subverter seu alcance. Jones bifurca o dese
jo do sujeito na escolha que impõe entre ele e seu objeto incestuoso, aqui o
pai, e seu próprio sexo. Segundo Jones, a menina deve escolher entre seu ape
go erótico ao pai e sua feminilidade. Ou ao pai ou a vagina. Se renuncia ao pai,
desenvolverá na idade adulta "uma atitude vaginal positiva com respeito ao coi
to". Se não renuncia ao pai, a relação de objeto se converte em identificação: a
menina se identifica com o pai-pênis e renuncia ao mesmo tempo ao seu sexo.
Lacan qualifica de excessivamente cômodo, este recurso à identificação, na me
dida em que se torne perante a questão que Jones expõe em primeiro plano.
O que se trata é uma elevação do objeto: poderia dizer de um desafio realçado.
Esta expressão condensa a maneira com que Lacan aborda a homossexua
lidade feminina. O objeto de que se trata é o denominado objeto "incestuoso",
ou seja o que apresenta, no caso de Freud, sob a figura do pai. Contrariamen
te a Dora, cujo desejo histérico é sustentar o desejo do pai procurando-o, a jo
vem homossexual de Freud desafia o pai: intima-o a sustentar seu desejo de ho
mem com respeito a uma mulher. Este ponto de partida no amor desprezado
no real. Assim, Freud não deixou de insistir na origem da posição homossexual
em que havia uma decepção procedente do pai. Tal decepção não explica tudo,
pois esta mulher poderia reagir possuindo um amante. Não é este o caminho
que escolhe, e sim de dar à este amor desprezado a aparência de uma amor cor
tês. Coloca em primeiro plano, uma peculiar forma de amor, que se destaca
por dar o que não tem, quer dizer a falta. Daí, a idéia que o discurso sexual sus
tentaria para a homossexual., "com a máxima segurança. A homossexual sabe
de sua incapacidade para aceitar que o objeto incestuoso "não assegura seu se
xo a não ser ao preço da castração. O que não aceita é passar pela maneira
em que o pênis determina para cada ser sexuado.
Em 1971 Lacan torna precisa a especificidade da posição da homossexua
lidade neste ponto. A homossexual sustenta o discurso sexual com a máxima se
gurança porque não se arrisca a "tomar o pênis por um significante". Este enun
ciado situa a problemática da homossexualidade ao lado do sujeito e de suas
identificações.
O argumento de Lacan gira em torno da forma em que geralmente abor
damos a "pequena diferença" entre meninas e varões. O que os distingue não é
o natural, mas algo que retoma consistente ao natural, algo que Lacan chama
"um erro". O juízo de reconhecimento dos adultos ao redor, apoia-se um erro
184
A homossexualidade feminina
no que consiste em não reconhecê-los mas em função de critérios sob a depen
dência à linguagem." As meninas e os varões não se distinguem em função do
natural, o da anatomia; o que os distingue são os ditos dos pais. Enquanto não
prossegue, retificamos d�endo, por exemplo: "é um varão falido". Para ser mais
preciso: o "erro" consiste em fazer passar enganosamente para o Real, a peque
na diferença por mediação do órgão. Consiste em postular a pequena diferen
ça em função do órgão, tomando não como tal mas pelo que é, quer dizer, um
instrumento, um significante. O erro comum e necessário, consiste em tomar o
pênis por um significante mais que o significado; o significante é o gozo". Este
enunciado problematiza, à partir da homossexualidade feminina, a função do
pênis, ao tempo que dá conta de um fato clínico perfeitamente observável, a sa
ber: a impotência do Pênis para possibilitar que o neurótico sustente o discur
so sexual com a máxima segurança. Este "erro" é aquele em que o transexual e
a homossexual não aceitam. A paixão do transexual consiste em querer liberar
se deste erro, porém se equivoca numa só coisa: em forçar o discurso sexual
por meio da cirurgia. A homossexual chega ao mesmo por outro caminho. Tra
ta o pênis à maneira das "Preciosas", que seguem um modelo para nós. Distan
te de tomar o pênis por um significante, se propõe partí-lo por sua própria von
tade. Isto é o que significa: Portanto. Desse modo, ao romper o pênis por sua
própria vontade acabam com esse erro comum e necessário.
Esta abordagem específica do pênis, não deixa de ter consequência na cu
ra e coloca a questão de saber o que, para a homossexual é acessível ao discur
so psicanalítico. A questão merece ser colocada, já que tratar ao pênis como
uma letra é só o que resulta pelo lado do amor cortês, situá-la "numa cegueira
total sobre o que corresponde ao gozo feminino". Aludindo uma obra de Apolli
naire, Lacan recorda-nos que "a mulher não sabe gozar mais que numa ausên
cia". É preciso que seja em certo modo, excêntrica com relação a si mesma.
Pelo contrário, "a homossexual não está na ausência absoluta no que lhe
resta de gozo". Está bastante presente na demonstração do que uma mulher
não tem. Contrariamente a histérica, que converte a castração imaginária no
seu risco identificatório, a homossexual imagina como elemento da realidade o
pênis. Poderíamos dizer, um excesso de presença consistente no feito de sua
paixão, a semelhança do transexual é querer liberar-se do erro - digamos "neces
sário" - de tomar o pênis como um significante.
Isso faz cômodo o discurso do amor, porem está claro que exclui do dis
curso psicanalítico. Em consequência, se esta cegueira é cabalmente o que faz
cômodo o discurso do amor, está claro que oferece-lhe uma entrada possível
no discurso analítico. No lugar da abordagem do pênis, tem o efeito de ampu
tá-lo, no sentido de que a homossexual chega a produzir na cura, um discurso
sobre o amor cortês, que termina excluíndo-a do discurso analítico.
Este ponto de tropeço coincide com as reservas emitidas por Freud, porem
constitui também um convite a renovar o debate, e o inanalizável deve situar
se aqui, no campo, que por obra da estrutura, determina a sexuação.
185
Ângela Batista e Nelisa Pinheiro
MASOQUISMO FEMININO
ge suas observaçOes relativas ao masoquismo feminino aos homc;ns, por ser es
se o material de que dispOe quanto ao conteúdo manifesto das fantasias em ques
tão: ser amordaçado, amarrado, espancado, sujado e aviltado (2). O masoquis
mo deseja ser tratado como uma criança pequena, desamparada, e mais particu
larmente como uma criança travessa; o que vai indicar uma posiçao caracteristi
camente feminina significando ser castrado ou ser copulado ou dar à luz a um
bebê. Ainda no texto, aponta (3) para uma equivalência entre o infantil e o feminino.
. No artigo sobre "Sexualidade Feminina" (4), Freud se refere ao masculi
no e ao feminino como conceitos que descrevem modos de expressao da libido.
Há uma única libido, e o que vai importar é o destino da pulsao.
Cita af algumas analistas mulheres, tais como Jeanne Lampl de Groot e
Helen Deutsch, como tendo sido capazes de perceber mais facilmente a expres
sao desse tipo de masoquismo, ao lidarem com pacientes mulberes que se acha
vam em tratamento com elas e que sustentavam, pela transferência, uma substi
tuta materna adequada (5).
187
Ângela Batista e Nelisa Pinheiro
188
Masoquismo feminino
189
Ângela Batista e Nelisa Pinheiro
"É somente af que a relação dos sexos é representada no nfvel
do inconsciente.
Para o resto, a relação sexual fica entregue ao aleatório do cam
po do A Fica entregue às explicações que se lhes dêem".
"Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada.
Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada
a não ser que o experimenta - isto ela sabe".
" ... há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos.
Eu falava da última vez as psicanalistas mulheres - que tentam
nos dizer, pois bem, nem uma palavra! "
190
Masoquismo feminino
que nao se inscreve como linguagem, tentamos falar da relaçao sexual no que
ela tem de contingente e de impossibilidade.
Tirésias ao ser argüido sobre a verdade do gozo responde que o gozo amo
roso se compunha de 10 partes, a mulher dele obtinha nove e o homem apenas
uma. Ou seja, Tirésias revela a mulher como sendo a portadora de um gozo a
mais, e de um deslizamento do gozo por "nove partes". O que nos faz pensar
nas razOes de ocultaçao deste gozo a mais, presentes na noçao de masoquismo
feminino, na produçao psicanalítica que analisamos.
Véu · Proteção de um gozo, para cobrir um hCNTor. Horror do feminino-castrado. HCNTor do de.rcq
nhecido, do inominável e do morte.
REFEIU!NCIAS BIBUOGRÁFICAS
1. FREUD, SIGMUND., "O Problema econômico do masoquismo", Ed. Standard Brasileira, vol. XIX,
pág. 297. 1924.
2. Freud, S. op. cit., pág. 202
3. Freud, S. op. cit., pág. 203.
4. Freud, S. "Sexualidode Feminina" Ed. Standard Brasileira, vol. XXI., pág. 261.
•
12. LACAN, J. - Seminário Livro 20 - "Mais, ainda" - pág. 12, 79, 100-101,105.
191
11 - O problema da Escola hoj e
Jacques Lacan
ATO DE FUNDAÇÃO
DA ESCOLA FREUDIANA DE PARIS
21 de junho de 1 964
Fundo - tão só como sempre estive rá para que tudo o que façam de valio
na minha relação com a causa psicana so tenha a repercussão que mereça
lftica - a Escola Francesa de Psicanáli no lugar que lhe convenha.
se, da qual assegurarei, para os próxi Para a execução do trabalho ado
mos quatro anos, pelos quais no pre taremos o princípio de uma elabora
sente nada me impede de responder, ção baseada num pequeno grupo; ca
pessoalmente a direção. da um deles (e temos um nome para
Este título, em minha intenção, designar esses grupos) será composto
representa o organismo onde deve cum por três pessoas, no mínimo, e de cin
prir-se um trabalho - que, no campo co no máximo - quatro é a medida cer
aberto por Freud, restaura a lâmina ta. MAIS UMA, encarregada da sele
cortante de sua verdade - que traz a ção, da discussão e do destino reserva
praxis original que ele instituiu, sob o do ao trabalho de cada um.
nome de psicanálise, no dever que re Após um certo tempo de funcio
torna a ele no nosso mundo - que, por namento se proporá aos elementos
uma crítica assídua, denuncie os des de um grupo sua permutação para ou
vios e os compromissos que amortecem tro.
seu progresso, degradando sua utiliza O cargo de direção não consti
ção. tuirá um caciquismo cujo serviço pres
Tal objetivo de trabalho é indis tado se capitalizaria pelo acesso a um
solúvel de uma formação a ser realiza grau superior, e ninguém deverá sen
da nesse movimento de reconquista. tir-se rebaixado por entrar no nível
Quer dizer, sao habilitados aí com ple de um trabalho de base.
nos direitos aqueles que eu mesmo for Pela razão de que todo empreen
mei, e estão convidados todos aqueles dimento pessoal levará seu autor às
aue possam contribuir dando a essa condições de crftica e de controle em
formação a legitimidade da prova. que todo trabalho a ser desenvolvido
Aqueles que vieram a esta Esco será submetido à Escola.
la se comprometerão a realizar uma Isto não implica de modo algum
tarefa submetida a um controle inter uma hierarquia de cabeça para baixo,
no e externo. Será a eles assegurado, mas uma organização circular cujo fun
em contrapartida, que nada se poupa- cionamento, fácil de programar, se afir-
FALO, Revista Brasileira do ·eampo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989, p.l93-201
lacques Lacan
mará na experiência. mo rompo com standards afirmados
Constituiremos três seções, cujo funcio na prática didática, assim como os efei
namento assegurarei com dois colabo tos imputados a meu ensino no curso
radores auxiliando-me em cada uma das minhas análises, quando ocorre
delas. que meus analisados o assistam a títu
lo de alunos. Serão aí incluídos, se for
1) SEÇÃO DE PSICANÁLISE PURA, preciso, os únicos impasses a conser
o u seja, praxis e doutrina d a psicanáli var de minha posição em tal Escola,
se propriamente dita, que nada mais ou seja, aqueles que a indução mes
é - o que será estabelecido em seu lu ma que meu ensino visa engendraria
gar - senao a psicanálise didática. em seu trabalho.
Os problemas urgentes a serem levan Tais estudos, cujo ponto culminante
tados sobre todas as saídas da didáti -é o questionamento da rotina estabele
ca verao aqui abrir-se o caminho pa cida, serão recolhidos pelo diretório
ra uma confronta- da seção que cuida
çao entre pessoas rá das vias mais pro
que tenham experi- pícias para susten
ência da didática e tar os efeitos de
candidatos em for- sua solicitação.
maçao. Sua razao Três sub-seções:
de ser está funda- - doutrina da psica
da sobre o que nao Um psicana lista é nálise pura;
deve ser velado: a - crítica interna de
saber, a necessida dida ta a partir da sua praxis como for
de que resulta das realização de uma mação;
exigências profissio - controle dos psica
nais cada vez que ou mazs nalistas em forma
levam o analisado psicanálises que ção;
em formaçao a as Proponho, enfim,
sumir uma respon se rev elarem como princípio de
sabilidade, por me didáticas doutrina, que esta
nos analítica que seção, a primeira,
seja ela. como t ambém
É no interior deste aquela _da qual di
problema, e como rei no título 3Q o
caso particular que destino, nao se limi
deve situar-se a en te em seu recruta
trada em supervi- mento à qualifica-
sao. Prelúdio para definir este caso se ção médica, pois a psicanálise pura,
gundo critérios diferentes da impres em si mesma, não é uma técnica tera
sao de todos e do preconceito de ca pêutica.
da um. Pois sabe-se que é atualmen
te sua única lei, quando a violação da 2) SEÇÃO DE PSICANÁLISE APU
regra implicada na observância de CADA, o que quer dizer: de terapêuti
suas formas é permanente. ca e de clínica médica.
Desde o começo, e em todos os casos, Nela serao admitidos grupos médicos,
será neste contexto assegurado um con sejam ou não compostos pos sujeitos
trole qualificado ao praticante em for psicanalisados, ainda que contribuam
mação na nossa Escola. em pequena medida à experiência psi
Serão propostos ao estudo assim ins canalftica; pela crítica de suas indica
taurado os traços pelos quais eu mes- ções nos seus resultados, - pela experi-
I94
Ato de fundação da EFP
mentação dos termos categóricos e da, sem a qual a ordem das afinidades
das estruturas que aí introduzi como que as ciências que chamamos conjetu
sustentáculos da urdidura da praxis freurais desenham ficará à mercê dessa
diana, - isto no exame clfnico, nas defideriva polftica que cresce com a ilusão
nições nosográficas, na própria posição de um condicionamento universal.
dos projetos terapêuticos. Então, mais três ·sub-seções:
Aqui, mais três sub-seções: : · comentário contínuo do movimento
- doutrina da cura e de suas variações; psicanalítico;
- casuística; - articulação com as ciências afins;
- informação psiquiátrica e prospecção - ética da psicanálise, que é a praxis
médica. de sua teoria.
Um diretório para autentificar cada O fundo financeiro constituído primei
trabalho como sendo da Escola, tal ro pela contribuição dos membros da
que sua composição Escola, pelas sub
exclua todo confor- venções que obti
mismo preconcebi- ver eventualmente,
do. além dos serviços
que prestará en
3) SEç.f.O DE IN Uma psicanálise quanto Escola, se
VENTARIO DO rá inteiramente re
CAMPO FRE U se constitui como servado ao seu es
DIANO. Assegura didá tica pelo forço de publicação.
rá primeiro a expo Em primeiro lugar,
sição e a censura querer do sujeito um anuário reuni
crítica de tudo o e esse querer deve rá os títulos e o re
que oferecem nes sumo dos trabalhos
se campo as publi ser questionado da Escola, onde
cações que nele se na medida em que quer que tenham
pretendem autori sido p u blicados,
zadas. se aproxime do no qual figurarão,
E mpreenderá a desejo guardado por simples solicita
atu alização dos ção, todos os que
princípios dos quais em segredo nela terão estado
a praxis analftica em função.
deve receber seu A adesão à Escola
estatuto na ciência. se dará mediante
Estatuto que, tão a apresentação em
particular quanto se deva enfim reco um grupo de trabalho constituído co
nhecê-lo, não poderia ser o de uma mo já dissemos.
experiência inefável. A admisão será decidida a princípio
Convocará, enfim, tanto a instruir nos por mim mesmo, sem que eu leve em
sa experiência como a informá-la do conta as posições tomadas por qual
que, instaurado pelo estruturalismo quer pessoa no passado em relação a
em certas ciências, possa esclarescer mim, certo como estou de que os que
aquilo cuja função demonstrei na nos me deixaram terão sempre rancor de
sa - e, em sentido inverso, o que, de mim por não poder retornar, pois não
nossa subjetivação, essas mesmas ciên seu eu quem os odeia.
cias puderem receber como inspiração Minha resposta ao restante só cocerne
complementar. rá ao que eu poderia presumir ou cons
No limite, uma praxis da teoria é exigi- tatar sobre o valor do grupo e do lu-
195
Jacques Lacan
gar que pretenda ocupar primeiramen tido a introdução recente do que se
te. chama "a lista", já que uma sociedade
A organização sa Escola segundo o pôde utilizá-la com fins que desconhe
princípio de circulação que indiquei ciam da maneira mais clara as próprias
será fixada pelos cuidados de uma co condições tanto da análise a ser empre
missão, aprovada por uma primeira endida como da análise em curso.
assembléia plenária, e se manterá por Condições onde o essencial é
um ano. Essa comissão a elaborará, a que o analisado seja livre paraescolher
partir da experiência percorrida, no fi seu analista.
nal do segundo ano, quando uma se
gunda assembléia haverá de aprová-la. 2 - DA CANDIDATURA À ESCOLA
Não é necessário que as adesões cu Uma coisa é a candidatura a
bram o conjunto deste plano para que uma Escola, outra coisa a qualificação
funcione. Não preciso de uma lista nu
de uma psicanálise didática.
merosa, mas de tra- A candidatu
balhadores decidi-
· ra à Escola exige
dos, como sei des- uma seleção, regu
de agora. lada segundo seus
objetivos de traba
lho.
NOTA ANEXA O cargo será
sustentado, a princí
Este ato de Uma coisa é a pio, por um simples
fundação conside comitê de recepção
ra nulos os simples candidatura a uma chamado Cardo,
hábitos. Parecem, Escola, outra coisa ou seja, dobradiça
no entanto, abertas em latim, o que in
certas questões a qualificação de dica seu espírito.
àqueles que ainda uma psicanálise Lembremo
se regem por esses nos d e que a psica
hábitos. didática nálise didática só é
Um guia do exigida para a pri
usuário, com sete meira seção da Es
títulos, dá aqui as cola, embora seja
respostas mais soli desejável para to
citadas, - de onde das.
se presumirá as
questões que elas 3 - DA PSICANÁ-
dissipam. USE DIDÁTICA
A qualificação de uma psicanáli
1 - DO D1DATA se como didática foi feita, até o mo
Um psicanalista é didata a partir mento, por meio de uma seleção da
da realizaçao de uma ou mais psicaná qual, para julgá-la, é suficiente consta
lises que se revelarem didáticas. tar que desde que existe não permitiu
É um preconceito, de fato, que articular nenhum de seus princípios.
se passou sempre assim nos fatos, não Ninguém tem mais chance de
dependendo de nada além de um anuá se afastar no futuro, salvo rompendo
rio que confirme os fatos, sem que se primeiro com um hábito que se pres
possa pretendê-lo exaustivo. ta ao desdém. O único princípio cer
A utilização do consenso dos pa to a ser proposto, principalmente por
res tornou-se caduca por haver permi- ter sido desconhecido, é o de que a
196
Ato de fundação da EFP
197
Jacques Lacan
primeiros a aceitarem o cargo segun- balho.
do minha demanda serão publicados O "seminários", inclusive o nos-
antes de 20 de julho. Eu mesmo enca- so curso na Hautes Études, nada funda-
minharei a ·um deles, que me faria a rão caso não reenviem a essa transfe-
demanda. rência.
Nenhum aparato doutrinário, e
6 DO ESTA TUTO DA ESCOLA
- especialmente o nosso, tão propício
Minha direção pessoal é provisó quanto possa ser à direção do trabalho,
ria, embora prometida por quatro pode prejulgar as conclusões que se
anos, os quais nos parecem necessá rão seu. resto.
rios para colocar a Escola em ação.
Embora seu estatuto seja desde
agora o da associação declarada na lei PREÂMBULO
de 190 1, achamos que se deve primei
ro fazer passar no Pode -se le
seu movimento o vantar a questão,
estatuto interno em primeiro lugar,
que será, num pra- da relação desta
zo fixado, propos- fundação com o en
to ao consenso de sino, que não dei
todos. xa sem garantia a
Lem bremo decisão de seu ato.
nos de que a pior Ficará esta
objeção que se po belecido que, por
de fazer às Socieda Se é admitido na mais qualificados
des da forma exis que sejam os que
tente é o esgota Escola pelo Cartel estiverem capacita
mento do trabalho, ou pelo Cardo dos para discutir
manifesto até na esse ensino, a Esco-
qualidade, que elas la não dependerá
causam em seus dele e nem mesmo
melhores partici- o. ministra, já que
pantes. prossegue lá fora.
O sucesso da Se para esse
Escola se medirá ensino, com efeito,
pelo surgimento a existência de uma
de trabalhos recebí audiência que ain
veis em seu lugar. da não tomou sua
dimensão foi revelada no mesmo movi
7 DA ESCOLA COMO EXPERIÊN mento que impôs a Escola, é ainda
-
198
Ato de fundação da EFP
199
Jacques Lacan
psicanalistas irrepreeosíveis sob qual do de duvidosa verdade, têm aspecto
quer ponto de vista, já que lhes teria mais digno do que as flutuaçOes da
bastado, assim como para o resto dos moda ou as premissas cegas nas quais
sujeitos formados por Lacao, renegar se fiam tantas terapêuticas no domínio
seu ensino para serem reconhecidos em que a medicina não terminou de
por uma certa "Internacional", e é no se delimitar quanto aos seus critérios
tório que só se deve à sua escolha e (os da recuperação social são isomor
ao seu discernimento o fato de terem fos aos da cura?), e parece até atrasa
renunciado a esse reconhecimento. da quanto à nosografia: dizemos a psi
É a Escola que volta a questio quiatria numa questão para todos.
nar os princípios de uma habilitação É até muito curioso ver como a
patente e do consentimento daqueles psicanálise serve aqui de pára-raios.
que notoriamente a receberam. Como, sem ela, se levaria a sério aqui
No que se afirma ainda freudia lo que se orgulha de opor-se-lhe? Daí
na, o termo Escola um statu-quo no
vem agora a nosso qual o psicanalista
exame. fica à vontade mes
Deve . ser to mo que se saiba
mado no sentido de sua insuficiência.
de que nos tempos A psicanálise
antigos queria dizer se distingue primei
certos lugares de A psicaná lise ro, no entanto, por
refúgio, e até bases permitir um aces
de operação contra a tualmente não so à noção de cura
o que já podia cha tem nada mais em seu domínio,
mar-se de mal-estar ou seja: devolver
na civilização. seguro para seus sentidos aos
Se DOS limi va lorizar seu a tivo sintomas, dar lugar
tarmos ao mal-es ao desejo que eles
tar da psicanálise, do que a produção mascaram, retificar
a Escola pretende de psicana listas de modo exemplar
dar seu campo so a apreensão de
mente a um traba- uma relação privile
lho de crítica: à giada - ainda tería
abertura do funda- mos que ilustrar
mento da experiên- distinçOes de estru
cia, ao questiona- tura que as formas
mento do estilo de de enfermidade exi-
vida no qual ela desemboca. gem, reconhecê-las nas relaçoes do ser
Os que se engajam aqui sentem que demanda e que se identifica com
se o bastante sólidos para enunciar o essa demanda e com essa identificação.
estado de coisas manifesto: que a psi Ainda seria necessário que o de
canálise atualmente não tem nada sejo e a transferência que as animam
mais seguro para valorizar seu ativo tivessem revoltado aqueles que têm a
do que a produção de psicanalistas - experiência disso, até se tornar intole
deixando esse balanço bastante a dese ráveis os conceitos que perpetuam
jar. uma construção do homem e de Deus
Não se trata de estarmos deixan onde entend.imento e vontade se distin
do-nos levar por alguma auto-acusação. guem de uma pretensa passividade
Estamos conscientes de que os resulta do primeiro modo, à arbitrária ativida
dos da psicanálise, mesmo em seu esta- de que se atribui ao segundo. A revi-
200
Ato de fundação da EFP
asao que do pensamento chama as co exige o encontro do que há de mais
nexões ao desejo, que Freud impOe valioso numa experiência pessoal com
aos psicanalistas, parece estar além aqueles que o intimarão a confessar
de seus meios. Sem dúvida, estes se se, considerando-a um bem comum.
eclipsam pelos cuidados que os redu As próprias autoridades científi
zem à debilidade daqueles que sao so cas são aqui reféns de um pacto de ca
corridos por ele. rência que faz com que não seja de fo
Há um ponto, todavia, em que ra que se deva esperar uma exigência
o problema do desejo não pode ser de controle, que estaria na ordem do
eludido: é quando se trata do próprio dia em todos os lugares, alhures.
psicanalista. Este é um assunto unicamente
E nada é mais típico da tagareli daqueles que - psicanalistas ou não -
ce do que aquilo que dá validade a es se interessam pela psicanálise em ato.
ta proposta: é isso que condiciona a É a eles que se abre a Escola,
segurança de sua intervenção. para que ponham à prova seu interes
Perseguir nos álibis o desconhe se - não lhes estando interdito a sua
cimento que se abriga em papéis falsos lógica.
201
Jacques-Alain Miller
ACIER L'OUVERT *
203
Jacques-Alain Miller
nidade como a nossa ainda que sem 14
intenção, efeitos de mal-estar e de des Chegou o momento da Escola
locação? Eu só os nomeio para convi da Causa Freudiana "dar a volta sobre
dar-lhes a fazer isso que P. Martin, si mesma". Não há necessidade d e
um dia, chamava "dar uma volta sobre uma dissolução formal para que o pac
si mesmo" (que não seja uma pirue to que nos liga a ela se verifique neces
ta). Aliás, muitos o têm feito. sário a ser renovado.
Questionar seus fundamentos
12 tornados opacos. Reconstituí-los e tor
Tenho falado durante esses dez ná-los transparentes.
largos anos em tom impessoal (dizer Em uma palavra é necessário
se, e me apliquei a desaparecer na as fundar a Escola da Causa Freudiana
sinatura coletiva das instâncias na Es com novo vigor. Que chegue a ser ela
cola, a dar aos seus textos esse tom im mesma a fim de permanecer a mes
pessoal e estando seguro que ali se fa ma ali onde se fizer necessária.
lava uma vontade eeral.
Foi em vão. E de "Jacques-Alain, 15
Miller de sobrenome" que se reclama. À dialética do ponto 9, oponho
Acantoado, acossado, desbancado com o seguinte:
cócegas, com estocadas, a tiro de ca 1. Ter escrito a Lacan em 1 980,
nhão e lança chamas. de novo em 1981, ter sido admitido
Bem. Vocês ganharam. Eis me em 1982 na Escola que ele havia adota
aqui. De agora em diante, eu digo eu do, não é ter estabelecido com ele
na Escola. Vejamos se vocês ganharam um vínculo místico, em nome do qual
com a mudança. pisotear a Escola de 1990 (ver Assem
bléia do 02 de dezembro).
Sua invenção transferencial é
13
própria de cada um; não julgo; só di
São vocês que me fazem sair de go que ela pode ser incompatível com
minha reserva. o grupo.
Não, é Ela. A Besta. A Hidra 2. Inversamente, ter sido adota
de Efepe. da por Lacan e presidida por ele, con
Eu já havia me entendido com tar com uma centena de membros nQ
ela freqüentemente desde os meus vin 1, ter a adesão de uma filha de Lacan
te anos. Eu acreditava tê-la vencido, e do redator de seu Seminário não as
e que suas cabeças estando separadas, segura a escola da Causa Freudiana
o animal não existia mais - e eis que nenhuma legitimidade. Eu recuso a
súbito, eu a vi erguer-se diante de mim palavra - e não é de hoje (3). A legiti
na Escola, bem viva semelhante a si midade na França é o nome por excelên
mesma com todas as suas patas e to cia da causa perdida, aquela que uma
das as suas cabeças, chiando, fazendo nobreza encontrou para suportar seu
caretas, uivando, tentando atirar sobre narcisismo, de derrota (ver Chateau
mim uma infame túnica de Neso ... briand).
Mas, basta de "forma épica". Tra 3. Finalmente, "o último Lacan"
ta-se de colocar a estrutura a nu. é inseparável do destino de uma esco
Existe a escola n!l 1 e existe a la que foi criada para fazer-lhe corte
Escola n!l 2. Não façamos confusão so jo. Aqueles que o recusavam se foram
bre isso. A segunda é a contra-experi por eles mesmos. Se alguém desta Es
ência da primeira. A EFP não poderia cola pensa atualmente ter feito um er
renascer na ECF, exceto com a condi ro de juventude, e se as confidências
ção de fazê-la desaparecer. de algum outro lhe deixou ressabiado
204
Acier L 'Ouvert
205
Jacques-Alain Miller
- Como você explica este grande tumul estender esta exigência consumista ao
to do meio psicanalítico? terapeuta? Quer se saber de que é
que ele é feito ... Portanto, Leclaire re
J.-A.M. - Por um efeito de aniversário. torna, e é como se soasse a hora de
Nós estamos aos dez anos anos da dis botar seus assuntos... em Ordem. A
solução, é hora para cada um de fazer nebulosa que se seguiu à dissolução
suas contas. No grupo do qual eu fa se sente doente, fica com medo; don
ço parte, a Escola de Causa freudia de arrumações, reaproximações, peti
na, estava programado a partir de 1982... ções, e, ao mesmo tempo, um ressenti
mento vivo contra o grupo que apare
- Mas e os outros? ce como o mais poderoso, a Escola
da Causa, cujo mal é ser o único ca
J.-A.M. - Os outros também estão pro paz de fazer figura, fazer frente à IPA.
gramados, mas sem o saber.
- E a IPA?
- Como é isto?
J.-A.M. - Lá também o prazo dos dez
J .-A.M. - Comecemos pelo franco-ati anos tem o seu papel. Esperava-se des
rador do meio. Desde a dissolução, te lado que, morto Lacan, seu "movi
Serge Leclaire circula. Ora no palco, mento" desapareceria com ele, e que
na televisão, ora nos bastidores, de se poderia recuperar com calma bons
um alto funcionário a outro. pedaços de seu ensino. Mas não é o
Bem. Após dez anos, era tem caso: a audiência de Lacan se expan
po para ele de reencontrar um porto. diu incrivelmente entre os praticantes,
Ei-lo, portanto, de volta e naturalmen enquanto que a ideologia ipefsta se
te como porta voz do Zeitgeist, o espí curva e fracassa na sua velha interpre
rito do tempo. Também, ao tomar o tação neurobiológica da metapsicolo
público por testemunha, ele interpela gia freudiana. É um enorme contra
seus cplegas sobre eles próprios, sobre senso planetário. A IPA faz atualmen
a desordem de seus negócios. E... te o luto difícil de uma ambição qua
se secular: se ver reconhecida como
APOCALIPSE detentora do monopólio da psicanálise.
207
Jacques-Alain Miller
análise. foi vencido no plano institucional pe
la IPA, e que deixou passar. Não se
- Isto não me parece desarrazoado! assuste de eu voltar à raiz do proble
ma. Como definir o psicanalista? A
J.-A.M. - Com efeito. Mas espere que resposta, aquela que sempre foi dada
eu lhe faça ver as consequências ime pelo senso comum dos psicanalistas é:
diatas. Em primeiro lugar, isto reme o psicanalista é um praticante da psica
te automaticamente a psicanálise às nálise. Ora, é esta resposta mesma que
mãos de uma gerontocracia. Em segun deve ser interrogada, colocada em dú
do lugar, isto valoriza indevidamente vida, contestada e mesmo recusada.
um auto-proclamado "saber lidar com Pelo menos na orientação de Lacan.
o inconsciente", onde a dimensão de E de acordo com o desejo de Freud,
repetição que comporta a prática ana que não reduzia de modo nenhum a
lítica apaga o elemento da surpresa, a psicanálise à terapêu tica.
propriedade de imprevisibilidade que
não é eliminável do inconsciente. O in - Não compreendo mais. O psicanalis
consciente "é sempre a mesma coisa", ta não é um praticante da psicanálise?
salvo que suas manifes-
tações, suas formações, J.-A.M. - Eu não digo
nunca são semelhantes. isto. Eu digo que o psi
A via gerontocrática canalista, enquanto tal,
engendra o culto do Por que um nao é um praticante,
padrão: na instituição, analista hav eria nem tao pouco um teó
ditadura conformista; rico da análise. Definir
na cura, privilégio da de se preocupar o psicanalista como
do ao paciente obsessi com a transmissão um praticante é se con
vo, sendo o sujeito his denar a reconhecê-lo
térico desconhecido, da psicanálise? no "só-depois", de fac
rejeitado, classificado Por que não girar to, pelo fato de que ele
de "borderline", empur fu nci ona como tal.
rado para a "psicotera apenas a manivela Ora, trata-se de saber
pia", a não ser que fos da prá tica ? se o psicanalista pode
se "obsessionalizado". ser reconhecido en
Disto resultou a forma- quanto tal antes que
ção de um tipo ideal ele pratique a psicaná-
de Analista: o praticante que envelhe lise.
ceu na luta, experimentado mas tam
bém sabendo de tudo, tipo de sábio - Desculpe-me, mas isto é aberrante!
moderno, cético, apagado, exceto quan
do acredita que alguém o prejudicou, J.-A.M. - É ao contrário, é o direito
pois é também hipersucetível. comum. Tome um médico. Para exer
cer a medicina é necessário antes ser
JOVENS E VETERANOS médico. Imagine você um tipo bancan
do o cirurgião durante dez anos, re
- Mas isto é inevitável? talhando daqui e dali, e depois alguém
dizer: "Ah, sim, aquele ali, ele não se
J.-A.M. - Foi necessário. Freud rapida saiu tão mal, pode-se nomeá-lo cirur
mente se encontrou em guerra com gião" : Trata-se de saber se a qualifica
sua própria criação. Ele não pôde im ção analítica não pode, ela também,
pedir os americanos de impor o mono ser reconhecida enquanto tal antes,
pólio médico. Pode-se dizer que ele ou independentemente, de função.
208
Entrevista sobre a causa ana/(tica
Quer dizer, de jure, de direito enao zido um "analista de Escola", bem, ele
apenas de fato, só-depois. recebe igualmente este título. Mas en
fim, o jogo seria conseguir delimitar
- Mas como? E como definir este psica "ser-um-analista" fora da funçao. Vo
nalista? cê compreende em que a idéia de uma
"ordem de psicanalistas" se ela pode
J.-A.M. - Da maneira mais simples: o se referendar em Freud, que a desejou,
psicanalista é que resulta de uma psica e depois deixou por conta da IPA, vai
nálise. Nao é mais do que levar a sério na direçao oposta à tentativa de Lacan.
a condiçao sine qua non do psicanalis Isto seria colocar no posto de coman
ta: que ele fez uma análise. do os velhos que, não contentes de se
rem notórios, desejariam ainda um cer
- E por que Freud não teve esta idéia? tificado do Estado, e o direito de con
ceder. Isto seria IPA para todos. Ora,
J .-A.M. - Freud foi impedido de ter envelhecer na prática não é na psicaná
esta idéia pelo fato de que ele pensa lise garantia de nada.
va que uma análise
comportava um ele -A Ordem é uma opera
mento irredutível, dem ção anti-jovens?
bocava num impasse,
e portanto tinha um J.-A.M. - Lacan bem
horizonte infinito. La dizia que a responsabi
can pensou que deste lidade da Escola era
mesmo elemento irre de fazer avançar a aná
dutível se poderia fa lise, nao de constituir
zer o princípio do pas uma casa de repouso
se terminal de uma aná para os veteranos.
lise, como processo fi
nito. Sua hipótese é - Portanto, você não
de que este momento quer ouvirfalar de uma
pudesse ser autentica Ordem?
do por uma transmis
são feita pelo sujeito, J.-A.M. - A IPA não
em condições especiais, quer ouvir falar disto
a outros analisandos que nele reconhe por que ela pensa que é a Ordem. Os
ceriam o atravessamento que ele havia grupúsculos da nebulosa lacaniana não
feito, uma vez que eles ainda estariam a desejam porque sabem que não são
com a tarefa de dar este salto, mas já muito apresentáveis, que são quase to
teriam as primícias deste além. dos pequenos baronatos que evacua
ram o questionamento sobre o psicana
- Então são sobretudo os jovens? lista que o "passe" comporta, e que
quando funciona é se remetendo ao
J.-A.M. - Sim! Os que Lacan propu charme de um discreto veterano. Os
nha instalar como "analistas da Esco membros da Escola da Causa freudia
la" não eram os veteranos, mas os jo na não querem porque estão ligados
vens. Por outro lado, compreenda, a ao "passe", por razOes essenciais, mes
Escola deveria igualmente reconhecer mo que sua prática efetiva tenha deixa
os praticantes de facto. Tendo feito do a desejar.
suas provas na direção da cura, e sem
excluir o caso em que um tenha produ- - Em que?
209
Jacques-Alain Miller
J.-AM. - De que se trata no passe? J.-AM. - Sem dúvida. Há vinte e cio-
De aprender porque vias, sempre im- co anos. Isto m� ajudou muito.
previsíveis, um sujeito em análise veio
a se dizer que ele tinha a capacidade - Como assim?
de interpretar o inconsciente e de assu
mir o lugar de analista e que ele esta J.-AM. - Fizeram de meu nome uma
va à altura de querer o que um analis linha divisória. Contra minha vontade,
ta deve querer. Isto supõe que não se mas é assim. E isto coligou em tomo
creia saber, de um saber pré-concebi de mim amigos muito fiéis e muito nu
do, o que é um analista, e que se dei merosos. A IPA mantém um olho em
xe ensinar pelo candidato. E se ele efe mim: eu não posso ir a Londres sem
tivamente lhe ensinou, você o nomeia que seu Presidente alerte suas redes
de "analista da Escola", ou seja, o equi sobre meu desejo de "conquistar a In
valente renovado do que Freud chama glaterra" - Textual. Os lacanóides me
va de "analista didata", aquele que é detestam, por ver em mim sua Nêmesis.
capaz de ensinar. Ora, é difícil, quan
do se é membro de um juri, conservar - E por haver sido distinguido pelo Pai,
durante muito tempo por Lacan, como Lau
esta posição de igno rent Fabius por Mitter
rância metódica. Ten rand...
de-se naturalmente a
uma posição inversa. J.-AM. - Exageraram
O que falseia a experi muito.
ência.
- Você é o genro dele...
- Foi o que aconteceu
na Escola da Causa? J .-AM. - Nisto eu te
nho a franqueza de
J .-AM. - Eu não digo
acreditar que fui distin
isto. Aconteceu, sem
guido por minha milher.
dúvida, na Escola freu
diana de Paris. Pode
acontecer conosco.
- Voltemos à Escola.
Eu debaterei com meus
Por que assumir o ris
colegas da Escola. co de declarar a crise?
- Por que você colocou esta Escola J.-AM. - O risco era o d e não o fazer,
em crise? de deixar se instalar e se alastrar u m
mal-estar que pouco a pouco a teria
J.-A.M. - Ah, eu creio ter apenas trans
minado, paralisado. Eu sempre pensei
formado um mal-estar em crise, para
que o momento do despertar viria.
que nós estivéssemos à altura de tra
Esta Escola foi, afinal, feita para La
tá-lá. Porque esta Escola é a principal
can, para responder ao que era sua
instituição de orientação lacaniana que
4emanda, sua exigência, no naufrágio
existe no mundo. Ela tem um papel
central no Campo freudiano, que es da dissolução. Ela foi ao mesmo tem
po a tábua de salvação onde subiram
tá presente em quase quarenta países.
O futuro da psicanálise passa por ela; uma centena de membros da Escola
Ela merece que se lhe dê atenção. E freudiana, enquanto que outros esta
o que explica aliás que ela seja um alvo. vam ao mar e improvisavam algumas
jangadas com os escombros de navios,
- Você especialmente... ou seguiram sozinhos, a nado. Nós
210
Entrevista sobre a causa analftica
chegou o momento de nos interrogar aspira como todo mundo a gozar agra
mos sobre o que queremos fazer jun davelmente de sua competência profis
tos nos próximos dez anos que vêm. sional. O colega "analista entre si" as
pira incessantemente a se aposentar.
- O que é que você entende por "repen- Aquele que não tem a garantia da Es-
sar a Escola"? cola sofre e reivindica. Portanto, não
funciona, range. Ou bloqueia. Ou se
J.-AM. - Reinventá-la. Eu não creio desarticula. Assim, sem pensar que
que a novidade introduzida por Lacan existe u m "bom sistema", é necessário
tenha sido compreendi- reorganizar, relançar
da até hoje, que se te- a experiência. Não é
nha captado que o con- para fazer funcionar
ceito de Escola é u m mas antes para impe
conceito essencial da dir, impedir que se aco-
psicanálise. Qual é a Não é um Wisstrieb mode. Eu compreen
diferença entre o con do bem estes pratican
ceito de Sociedade de que sustenta a tes que uma vez que
psicanálise e o da Esco cura, mas este é acreditam ter adquiri
la? Uma sociedade é do uma competência
estabelecida sobre a susceptível de e sobretudo que se as
crença, ou axioma, de surgir ao término segura de um estabele
que se sabe o que é o cimento profissional,
Analista. Que ninguém da experiência deixam o grupo analíti-
entre aqui se não for co com alívio. Mas es
analista! A Escola é ta solução de desespe
estabelecida sobre um ro não assume a trans-
dado totalmente con- missão concreta da psi
trário: que não se sabe isto, mas que canálise. Evidentemente, pode-se colo
se pode aprender, caso por caso. É o car a questão: por que um analista ha
lugar por excelência onde se coloca a veria de se preocupar com a transmis
questão do que é ser analista, onde são da psicanálise? Por que não girar
esta questão é aberta, dá lugar a um apenas a manivela da prática?
trabalho, onde as respostas são postas
à prova. O passe tem uma ligação es - Bem, sim Por que não?
sencial com o conceito -de Escola. A
Escola não é "os analistas em si", é o J.-AM. - Os psicanalistas têm bastan
contrário. A presença do praticante te dificuldade de se situar com relação
não garantido, ou do não-analista, é à psicanálise. Numa certa medida, exis
um componente ineliminável, de tal te a psicanálise e não apenas uma que
forma que a questão: "E você, em que outra cura? A psicanálise é uma abstra
é que você está autorizado a se fazer ção? Defendê-la e expandi-la no mun
de analista?" permanece insistente pa do não será um ideal, já que uma psi
ra cada um, inclusive para o analista canálise deveria terminar por um cre-
211
Jacques-Alain Miller
púsculo dos ídolos, uma liquidação tas com relação à psicanálise e a sua
da transferência, uma queda das iden- transmissão.
tificações, uma travessia da fantasia?
Para dizer a verdade, esta dificuldade J.-AM. - Sim, eu falo daqueles que
não é aguda na IPA que é protegida se referem a Lacan. É um fato agora
por sua função de defesa profissional. confirmado, e ao qual deve se dar ra
Ela o é para os "lacanianos" entre as zão mais do que censurar, que para
pas, dos quais muitos vivem em gru muitos, sua relação à causa analftica
pos bem pequenos, o que não é defei tornou-se problemática. Eles perderam
to, mas é sem perspectiva histórica. o senso de suas responsabilidades, eu
não digo nas curas, mas a respeito da
- O que é que isto quer dizer, os "laca psicanálise enquanto tal.
nianos" entre asas?
- A causa analftica? O que é isto?
J.-AM. - A Internacional, por causa
do monopólio médico que ela preconi J..-AM. - Eu já chego lá. A experiência
zou em vários países, a despeito da psicanalítica, a da associação livre, in
oposição de Freud, duz o sujeito a recolo
criou ela própria, ao car em causa, de for
longo dos anos, um vas- ma generalizada, suas
to espaço exterior, po- escolhas, suas idéias,
pulado por analisados seus valores, ela faz "va-
que ela se recusava a cilar os faz-de-contas",
reconhecer como ana Os psicanalistas dizia Lacan. Donde
listas porque eram de todas as há uma saída possível
não-médicos. A estes da experiência analfti
se juntaram aqueles tendências são os ca que levaria o sujei
que por princípio, ou "enfants gatés " de to a uma posição que
por espírito libertário, Lacan designava co
recusavam o padrão Lacan mo a dos "esperta
rígido. Terminou sen- lhões". E "os esperta-
do muita gente. E em lhões erram... " E aliás
todos os países latinos, o título de um seminá
esta gente seachou pro- rio, homofônico com
*
gressivamente imanta- "Os Nomes-do-Pai" .
da por Lacan, que dava legitimidade O espertalhão pode ser alguém muito
a sua recusa, que lhes permitia positi bem, alguém como o cínico, que no
vá-la. Isto é claro na América Latina. final de sua acese tenha chegado ao
Mas alguma coisa desta ordem se pas saber de que o discurso universal, de
sou também na França, de tal forma que o Outro do discurso universal, os
que para a Escola freudiana afluiu valores da civilização, tudo isto não e
uma multidão que se colocava sob a mais que um faz de conta, não existe,
égide e a proteção de Lacan. Daí a se que só o gozo é real, e que este gozo
render à disciplina, muito exigente, não e o sozo do Outro, mas o gozo
de seu ensino, havia uma margem e do Um. E o que ilustra, ao seu modo,
mesmo um abismo. a nobre figura de Diógenes, reprova
da pela moral das famílias. O proble
LACAN E DIÓGENES ma não escapou a Lacan, ele o situou
em seu lugar, ele nomeou este esperta
- Voltemos à questão que você próprio lhão e ele mostrou bastante bem que
colocou: a dificuldade dos psicanalis- esta saída da experiência não era a
212
Entrevista sobre a causa analítica
que fazia o analista. Müs visivelmente, uma Escola, onde uma multidão a ele
isto nao impediu que estes "esperta se juntará. E é ainda a esta causa que
lhOes" proliferassem em torno dele, ele se refere para dissolver e relançar
com o resultado lamentável que nós a exJ:?eriência. Ora, o que é esta cau
vemos, nisto que eu chamava de N ebu sa? E o contrário do que Freud cha
losa. mou de "a castração". Para Freud, a
castração era a causa deste "horror
- Lacan não é um pouco responsável de saber" que é o recalque. Bem, a ex
por isto? periência da associação livre, tal co
mo dirigida por um analista, vai contra
J.-A.M. Ah, plenamente, na medida
- o recalque, porque ela vai no sentido
em que a experiência analítica compor de circunscrever no sujeito a causa
ta de fato, para o sujeito, um "beneff de seu horror de saber. É disto que
cio clínico", quer dizer, o estabeleci se trata, é da queda desta causa, uma
mento com seu gozo de uma relação vez circunscrita, e da emergência em
emancipada daquilo que Freud chama seu lugar, da causa de um "desejo de
va de "o Supereu", que saber". É neste senti
constrange o sujeito a do que Lacan pode sus
renunciar a seu gozo tentar que não é um
para empanturrá-lo, Wisstrieb que sustenta
se bem que seja este a cura, mas que este
gozo renunciado que é suceptfvel de surgir
reapareça sob a másca ao término da experiên
ra da consciência mo cia.
ral, tanto mais exigen Bem, eu tentei mostrar
te quanto mais se te isto no meu curso des
nha cedido. Mas esta te ano do Departamen
mais-valia cínica, se ela to de Psicanálise, a cau
se constata, não é de sa analftica não é se
todo suficiente para não a causa deste Wiss
autenticar a produção trieb propriamente ana
de um analista ao final lítico que Lacan desig-
de uma análise. Não é nou com o desejo do
porque Diógenes mise- analista.
rável está em seu barril que ele está A causa analítica não é uma Grande
fora de todo laço social. Causa nem uma Causa Justa, ela é o
que o sujeito encontra numa modalida
- Como se introduziu aí a "causa analí de que lhe é toda particular, em decor
tica"? rência de sua análise, e com a qual ele
pode operar, se ele desejar, como pra
J .-A.M. - Repare que havia para Freud ticante.
uma evid6encia da causa analftica. É
uma referência constante de sua cor DE SPINOZA A STENDHAL
respondência com seus discípulos. E
Lacan não deixa de chamar a atenção - Mas se esta causa é particular a ca
para isto no momento da criação da da um, eu não vejo como ela permita
Escola freudiana em 1964. Ele sempre reunir...
esteve só, diz ele, na "sua relação com
a causa analítica", e é precisamente J.-A.M. - A causa do horror de saber
disto que ele se autoriza para fundar é própria a cada um, a causa do dese-
213
Jacques-Alain Miller
jo de 1111hcr será também? Ou pode ela como saber da castração quer dizer
ser colocada em denominador comum? que eles são imcomparáveis. Aliás, ve
n u aposta ds Escola: que há um dese ja na Ética de Spinoza, onde a compa
j o de saber de um tipo especial, que ração é proscrita do conhecimento,
merece ser designado como o desejo não há relação sexual... E isto nos per
do analista; correlativamente, este de mite im;entar um amor de um tipo iné
sejo, que não é o desejo próprio a tal dito. Na análise, se trataria também
sujeito que pratica a análise, mas o de inventar um ...
desejo de alguma forma ligado ao dis
positivo da análise, que este desejo tem - Inventar um amor?
uma causa que é, ela também, de es
trutura e que merece ser chamada a J.-A.M. - Spinoza inventa um, Sten
causa analítica; que os analistas, e dhal inventa um ... Eu associo os dois
não somente eles, são suceptfveis de porque eu reli um na tradução nova
trabalhar em função desta causa; é o de Robert Misrahi, e porque eu li a
que define seu pertencimento a uma biografia do outro por Michel Crouzet
Escola. A dificuldade para eles é que ( 1 ) L 'Amor inte/lectualis Dei, mais Do
eles só podem ser ali Amor, não seria uma
membros ativos, en- má fórmula para um
quanto analisandos, fim de análise... No fim
analisandos da causa da análise não se tra-
analítica. É o que se ta somente de saber
vê quando os pratican se o sujeito se aliviou
tes da análise se aventu do que atrapalhava a
ram a aparecer fora sua relação com o go
de seus consultórios, zo, mas se a causa ana
nos grupos permanen lítica tomou consistên
tes ou transitórios (con cia para ele. E verificar
ferências, colóquios, a emergência do dese
etc.): seus colegas os jo do analista, tal é o
mandam de volta ao objetivo do procedi
divã! mento do passe.
214
Entrevista sobre a causa analftica
215
Jacques-Alain Miller
cessário constatar que não são tanto se trata de Freud e Lacan. Mas em se
os jornalistas e sim os psicanalistas, gundo lugar, é necessário animar este
eles próprios que animam esta cabala saber com um sopro novo, fazê-lo avan
maldosa, e que os "lacanianos" não to çar e isto pede trabalhadores decidi
mam nisto uma parte menor do que dos, uma Escola, Escolas que sejam
os "ortodoxos"! dignas deste nome. Em terceiro lugar,
digo aos lacanianos sem Escola: quan
- Isto o inquieta? to tempo vocês vão bancar as almas
penadas? os dândis do "depois de mim
J.-AM. - Eu vejo nisto um sinal dos o dilúvio"? os bandidos de Carnaval?
tempos. Enquanto o estruturalismo Não já é tempo de vocês se unirem e
era moda, por volta de 1966, o tom fazerem a sua própria Escola e parar
não era tão mesquinho. Nos dias de de se obsecarem com a Escola da cau
hoje, se acredita crescer injuriando sa e comigo? Muitos dentre vocês os
Lacan para propósitos inconfessáveis; convocam à unidade: federação, confe
a ira do colega leva a descrer da pró deração, conferência, convenção, re
pria psicanálise. O que se passa? Vou de, pouco importa o nome, eu sou a
lhe dizer: os psicanalis- favor. Em quarto lugar,
tas, de todas as tendên eu não vejo porque
cias, são os "enfants ga não me endereçar tam
tés" de Lacan, eles vi bém à Sociedade Psica
vem do crédito, da con nalítica de Paris para
sideração que seu tra dizer a seus membros:
balho valeu, na Fran já que um de seus anti
ça, para a psicanálise, gos presidentes se lan
e este crédito eles o ça periodicamente con
dilapidam alegremen tra os "lacanianos" e
te. Continuem assim, Lacan em monólogos
meus amigos! Comam incoerentes que ocu
seus pães! pam a grande impren
sa, vocês acreditam
- Qual é a sua estraté que isto serve à Socie
gia? dade de vocês? E à cau
sa analftica? Falo-lhes
J.-AM. - Ela é muito desta causa porque,
simples. Em primeiro lugar, é a estraté diferentemente de outros, vocês não
gia de Guilherme de Orange: "Eu con perderam o juízo, creio, mesmo que
servarei". Eu conservarei uma alta vocês a compreendam de modo dife
idéia da psicanálise, que foi a de Freud rente de nós. Há debate entre nós, e
e de Lacan, segundo a qual a psicaná até mesmo polêmica; será necessário
lise é um momento essencial da aventu que este debate e esta polêmica sejam
ra do espírito, como se dizia nos anos levados de forma tão vil, tão grossei
30. Ela não esgotou suas virtualidades ra? Não é um debate, nem uma polê
em um século de existência. Fazer mica o que vocês querem, mas sim
uma psicanálise permanece uma via um anátema? Que seja, mas então,
subjetiva essencial na idade da ciência por favor, encontrem para lancá-lo al
enquanto remaneja o mundo prepara guém que o faça em grande estilo!
todos os dias a cama da análise, e se
rá assim enquanto o saber psicanalíti
co não valer nada no mercado dos sa - E a Ordem dos Psicanalistas? Uma
beres, o que é ainda o caso quando última palavra?
216
Entrevista sobre a causa analftica
J -�AM. - Nao haverá Ordem dos Psica- o inconsciente? E entao sobre a psica
nàlistas, mas poderá haver outra coi- nálise? Mas vao tentar afogá-la na psi
sa: normas européias relativas ao exer- coterapia, isto é certo.
cício da psicoterapia. Uma vez que ha
ja liberdade de estabelecimento para 22 de março de 1990.
os participantes da Comunidade euro
péia, a questao estará necessariamen
te aberta. Os países que já regulamen NOTAS
tam, Alemanha, Países-Baixos, vao im
1. Spinoza, A Ética, Tradução nova de Robert
por sobre seus territórios sua manei Mishari, PUF, 1990.
ra de agir: tratamentos reembolsados, Michel Crouzet, Stendhal ou o Sr. Eu-Mamo,
de duraçao pré-determinada. Que fa Flammarion, 1990.
rao os outros? A Itália já escolheu pu 2 François Regnault, Deus é Inconsciente, Nava
rin, 1988.
blicar a lista de seus psicoterapêutas Post-scriptum: Sugiro que se remetam à Nota
reconhecidos; a comissao encarrega italiana de Jacques Lacan, publicada em 1982
da de instalar seus institutos de forma na Omicar n2 25 (Navarin).
21 7
Jacques-Alain Miller
219
Jacques-Alain Miller
nove anos exerceram responsabilida ca grupos sem hierarquia, digamos
des nas instâncias, se verifica que a que a hierarquia traduz o fato de estru
proporção é considerável. Quanto à tura de que o significante se ordena
transparência, é sem dúvida levada tão em sequências de subordinação, na
longe quanto permite o caráter a miú qual o mínimo é o par ordenado do
do confidencial das informações que significante-mestre e do saber, S l -S2.
chegam das diferentes instâncias res A função de que a hierarquia é inelutá
ponsáveis de uma Escola de psicanálise. vel em um grupo como o nosso tem a
A permutação e a transparência caução de Lacan. "De qualquer for
são menores no Conselho da Escola. ma, lembrava a sua Escola no momen
O Conselho é, com efeito, estatu to em que a convidava a se pronunciar
tariamente como uma Presidência cole sobre a Proposição de outubro, será
tiva, que se renova lentamente, e dá preciso que passem pela atribuição
base a associação. Esta instância se tem de funções diretivas a alguns, para ob
mantido há muito tempo na discrição ter uma distribuição prudente de vos
que sua missão de regulação geral exi sa responsabilidade coletiva."
gia; porisso se suspeitou que adorme 2) O grau. É a ordem ascenden
cera; ano passado se te que instaura em sua
pôde ver que não era dimensão própria o sig
o caso. nificante S2. Os sujei
Quanto ao que tos se distribuem na
se agita com toda liber Não se é admitido escala de um grau em
dade nas reuniões do função de um saber,
Conselho, o conteúdo na Escola a título suposto ou explícito,
se tem levado regular de psicanalista, iniciático tanto quan
mente ao conhecimen to universitário, do pa
to de todos cada vez porém como thema ao materna.
que se chega a um acor "trabalhador 3) A indistin)ãO
do entre seus mem hierarquia-graus. E o
bros. Desvelá-lo pre decidido" do poder em nome do sa
maturamente seria Campo freudiano ber. Exemplos: a "Re
um fator de confusão, pública" de Platão, a
que entorpeceria a re- Burocracia celeste, o
flexão de um órgão com discurso universitário,
encargos a longo pra- as Sociedades da IPA
zo, que só deveria atuar em função 4) A distinção hierarquia-graus.
de finalidades superiores. Traduz o fato de que S2 não é S l , que
o saber constitui uma ordem sui gene
7 ris, diferente da do poder. É, por exem
plo, o fundamento do privilégio que
Se a opção da permuta data de está na origem da Universidade.
1980 (lembremos que seu Diretor ha Que quer dizer a distinção hie
via deixado a Diretoria da EFP sem rarquia-graus quando se trata do que
qualquer mudança durante dez anos), chamamos uma Escola?
a distinção hierarquia-grau foi explici Podemos observar em primeirís
tada por Lacan desde 1967 e apresen simo lugar que todos os membros têm
tada por ele como solução do proble voz igual na Assembléia, que todos
ma da sociedade analítica. Vale a pe os membros e membros associados têm
na comentá-la: voz igual no Congresso; nenhuma fun
1) A hierarquia. Deixando de la ção administrativa está estatutariamen
do a questão de saber se há em políti- te reservada a uma categoria de mem-
220
Esboço das opções fundamentais da ECF
221
Jacques-Alain Miller
não podem ser aperfeiçoadas? Esta Escola, menos sweet home, eu a
A questão foi colocada para o procedi aceito, de minha parte, sem reserva,
mento de nomeação dos AE; poderia tal qual, tal qual se tornou. Pois ela
também sê-lo para os AME. não é outra coisa que a consequência
de nossa ação, que vai não mais-além
9 do bem e do mal, mas mais-além do
princípio do prazer e que aposta sem
A comunidade de trabalho que pre do pai ao pior. .
é a nossa na Escola se quer e se sen Uma Escola de orientação Iaca
te una. Diana não poderia ser um casulo nem
Esta opção de unidade determi tampouco um monolito. Lacan é um
nou para a Escola a escolha de uma bloco, uma Escola não é um bloco. A
estrutura nacional e não inter-regional; desavença, a diferença, a divisão são
condicionou seu estilo de direção e o elemento mesmo de nossa prática.
de animação, resultado de uma busca Não sabemos trilhar nosso caminho
constante de consenso; comportava entre o lnconsistante, o Inconciliável,
também algumas consequências mais o Insolúvel, que são como Alector,
distantes que ficaram desapercebidas Tisífone e Megera, as Erinies da rela
durante muito tempo, como a criação ção que não existe, a relação sexual,
de outras Escolas. cuja ausência condiciona todas as or
A crise do ano passado, sem pre dens do discurso? Não sabemos quan
judicar a mínima parte das pessoas do se trata do sujeito, que o impasse
no funcionamento graças à perseveran não é fatal? Que um passe é possível,
ça de nosso Diretório e de seus secre ou melhor, contingente?
tariados de cidades, marcou os limites Sim, em toda análise, o passe
do consenso e dissipou as miragens não é mais que contingente, como o
que podiam engendrar sua busca a próprio amor que chamamos transfe
qualquer preço. rência.
Este período terminou. A Esco Certamente, a opção do ódio es
la da Causa freudiana, tal como nós a tá sempre aberta. Mas esta opção ja
concebemos, tal como nós a temos fei mais esteve, desde sua criação, entre
to e amado há 9 anos, vive. A Escola as opções fundamentais da Escola da
da Causa freudiana segunda época se Causa freudiana.
rá sem dúvida atravessada por tensões
que poderão tomar mais rangente seu
funcionamento tão bem azeitado. Paris, 15 de outubro de 1 990.
222
Jacques-Alain Miller
* *
224
Colette Soler
APRESENTAÇÃO DA
ESCOLA EUROPÉIA DE PSICANÁLISE
agora em diante, desde esse 22 de se Publicado in Uno por Uno Boletim de
tembro de 1 990, seremos colegas da la Escuela Europea de Psicoanalisis
mesma Escola. De minha parte ale editado em Barcelona. Nfl 14/15, No
gro-me com isto. É um ponto de bas viembre 1990.
ta, uma consequência lógica e uma jus
ta sançao do trabalho destes dez últi
mos anos. Barcelona, 22 de setembro de 1990.
226
Eric Laurent
ENTREVISTA SOBRE A
ESCOLA EUROPÉIA DE PSICANÁLISE
228
Escola Européia de Psicanálise
guir. Não seria mal prnpor a formaçãodos psicanalistas. Como em muitas ou
de uma comissao de história desta Estras coisas, na França esta questão fun
cola Européia, que pode dar muito ciona a nfvel do debate da fazenda,
bem a cada um a idéia acerca da histó
no qual se colocam problemas em tor
ria de onde surge este sifgnificante no
no disto que diz respeito unicamente
vo, o qual é a história que este signifi
ao fato de se os analistas devem ou
cante vem reordenar. Pode-se também nao devem pagar o I.V.A. O tema es
constituir uma comissão das bibliotecas.
tá · vigente em todos os pafses, o que
O futuro é chegar a ter um ponto de constitui outra razao para formar uma
basta logo que os estatutos estejam comissao de elucidação das práticas
estabelecidos e a partir do qual se pre
de regulamentaçao e prever respostas
parará a primeira Assembléia desta tanto a nfvel nacional como a nível eu
Escola com todos aqueles que consti ropeu.
tuam o primeiro interior deste signifi
Gostaria de acrescentar que se o pro
cante. blema se coloca nos Estados Unidos
isto está muito ligado ao fator cultural
Poderia dizer-nos algo -, será a nfvel de pro
mais a respeito da atua cessos por mal exercí
lidade européia? cio da profissao. Ali a
Desse modo, a regulamentaçao da psi
A atualidade européia Escola Européia coterapia é a tendência
é a dialética da regula a passar pelos tribunais.
mentação/des-regula de Psicanálise é
mentaçao destas práti Una; mas se pode Esta nova Escola tra
cas de psicoterapias. duz um certo desinteres
Em todos os pafses da também adaptar se pelo que acontece
Europa, da velha Euro às consistências na América Latina, so
pa, isto é, da Europa bretudo pelo que acon
do Norte, sem os paf destas tece na Argentina?
ses do Leste que só comunidades de
há pouco aderiram à Suponho que não. Nao
essa problemática, exis traba lho vejo nenhuma possibili
te uma regulamentação dade de pensar de que
mutio precisa destas maneira dentro da co
práticas. A Itália é o primeiro pafs lati munidade de trabalho do Campo Freu-
no onde existe na atualidade uma legis diano poderia existir um certo desinte
laçao. Somente Bélgica, França e Espa resse pela América Latina. Esta união
nha não têm este tipo de legislação. entre as comunidades de trabalho da
Sabemos que na Espanha existe algo Argentina e França, na Venezuela de
em preparaçao, porém nossos amigos sencadeou um movimento que não
pensam que têm suficientes contatos deixa de produzir efeitos. Os efeitos
com a representação nacional para acal que agora estão se produzindo na Ar
mar as intenções de regulamentaçao gentina têm uma vigência peculiar
sobre este ponto. Anuncia-se então em relação ao tema da Escola, que se
um debate público. Na Bélgica já exis desenvolveu com a constituição de
te uma regulamentaçao das psicotera uma sociedade analítica em Buenos
pias praticadas por médicos, não ve Aires, a SABA.
mos nenhuma razão para que os psicó Amanhã em Buenos Aires, o grupo
logos escapem disso e por aproxima do Simpósio discute sua refundação
ção se acercarão ao núcleo central, como sociedade analftica e simultane-
229
Entrevista sobre a Escola Européia de Psicanálise
amente existem também outros proje- péia não parece muito adequado ago-
tos em direçao a uma Escola. Ocorrem ra para a América Latina. Outra coi-
discussOes, tudo isso tem uma atualida- sa irá existir que terá todo seu interes-
de muito precisa, que seguimos com se: Isto seguirá construindo-se numa
muito interesse. Mas as distâncias nao dialética que nao cessa.
sao as mesmas. Os 6.000 kilômetros,
mesmo com o fax, nao permitem via 15 de outubro de 1 990.
gem e intercâmbios tão frequentes co
mo os que �xistem na Europa. Deve-
mos respeitar isto, e levar em conta o
fator distância, o fator "d". O tema Publicado in Uno por Uno Boletim
da Escola se introduz numa dialética de la Escuela Europea de Psicoanalisis
entre Europa e América Latina. O editado en Barcelona. N2 14/15, No
modelo de integraçao da Escola Euro- viembre 1990.
230
Boletim
Célio Garcia
O RADICAL FREUD
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/S, jan-dez 1989, p.231 -234
Célio Garcia
De início vai aos gregos - Platão, Aris dade. A observação de Deleuze pode
tóteles. Até os gregos "não houve ca mesmo ser considerada como algo que
os anterior ao cosmos". Será em Lucré reúne Freud, Lacan, Deleuze, Lyotard
cio que Luiz Alfredo vai encontrar a e até Derrida. Algo que nos teria trazi
radicalidade de um acaso original; a do a pós-modernidade (se este termo
natureza não é necessidade, mas pu não estivesse já tão desgastado... e
ro acaso. Registrada esta pista, Luiz em tão pouco tempo!)
Alfredo está em condições de passar Minha leitura leva a uma conclu
até a discussão recente do tema já ao são provisória: aqui estaria o radicalis
nível do discurso científico. Monod mo (mal radical?) da Psicanálise quan
de início, depois Prigogine vão ser tra do desde Freud e graças a leitura de
zidos à baila. Lacan ficamos sabendo que o mal ra
Ainda no capítulo três quando trata dical não estava aó nível das pulsOes,
va da "ordem e acaso", o filósofo Luiz nem da pulsão de morte, muito menos
Alfredo se pergunta - Não seria uma numa maldade original do ser huma
característica comum à Filosofia e à no -(por falta ou por princípio, pouco
Ciência o repúdio ao acaso? importa); o radical está em pensar a
"Na verdade, acrescenta, a própria his dispersão do real (Lacan), ou mesmo
tória da Filosofia já implica um com como Freud que jamais concordou com
promisso com a ordem. Ambas, a Filo uma síntese em se tratando de Psicaná
sofia e a Ciência, são amantes da or lise. O mal radical que dá título ao li
dem, e frente aparente do mundo pro vro teria que ser trazido a um plano
duzirem a inteligibilidade ao bem es onde não tivéssemos como horizonte
tar comum". Para terminar o parágra a natureza moral do homem.
fo, Luiz Alfredo, leitor incansável da Nem tão pouco bastaria discutir
vasta cogitação sobre o tema, conce a questão da destrutividade ou a "pos
de: "à Literatura coube produzir o dis sibilidade de uma ação ter como me
curso do trágico, lugar do acaso e do ta a destruição sistemática" (p. 151
mistério". LAGR) com interlocutor que poderia
Pretendo desdobrar esta demar ser biólogo. Logo seríamos denuncia
cação, esta divisão de trabalho entre dos como defendendo uma contradi
Filosofia, Ciências e Literatura. ção lógica. Esta discussão tem sido te
Retomo no entanto, o capítulo ma de mesa-redonda entre cibernéti
de Luiz Alfredo para assinalar a men cos, biólogos, de um lado e psicanalis
ção à Deleuze ainda no capítulo dois tas de outro. Não há a menor chance
"o fundamental em Lucrécio é a afir de um entendimento. E, no entanto,
mação da natureza como princípio do sabemos, nós psicanalistas, que há má
diverso e de sua produção". quinas desreguladas (seres humanos
Não contente desta marcação que, uma vez no mundo, correm para
do texto de Lucrécio, Deleuze conclui sua própria destruição) que funcionam
- "A natureza é uma soma infinita que a partir desta regulagem! A tentação
não totaliza seus elementos". Esta cita de síntese continua a inspirar a leitu
ção de Deleuze está à página 32 de ra do texto e Freud. Seja em se tratan
Luiz Alfredo. De fato esta multiplicida do da Biologia que busca na identida
de inconsciente é de tal sorte a "me de através das respostas ou da história
lhor concepção que se preste aos nos do ser vivo algo garantidor da própria
sos propósitos" (LAGR) que ela pode existência ou organização.
ria ser o que marca nossa contempora A radicalidade do inconsciente
neidade e com ela a Psicanálise seria está pois nesse "caos determinista" (va
este lugar para pensar uma ética e mos dizer uma palavrinha sobre este
uma teoria que dê forma à multiplici- termo proveniente da Física do acaso),
232
O radical Freud
233
Boletim
Ili ENCONTRO BRASILEIRO págs.
DO CAMPO FREUDIANO Consiste num conjunto de trabalhos
O que pode um analista? apresentados nas Jornadas de Outo-
- funçao na cura - formação teórica no de 1989 da École de ta Cause freu
- futuro i'lstituicional dienne, sob o tftulo "La sexualité dans
les desfilés du signifiant". O livro, co- .
14 a 18 de Julho de 1991 mo o tftulo sugere, enfoca a questão
Hotel Meridien Salvador Bahia da sexualidade - em Freud e Lacan,
entre a ciência e o mito - convergin-
MILLER NA BAHIA do para a perspectiva clfnica, na dire
A Cf e o Campo freudiano têm a hon çao de uma clfnica da sexualidade.
ra de receber pela primeira vez na Ba
hia o psica,nalista J.-A. MILLER O Tivemos a alegria de contar com Anto
aluno da Eco/e Norma/e Supérieure, nio Di Ciaccia, psicanalista italiano,
discfpulo de Althusser, Derrida, Fou que desenvolveu para nós deforma ope
cault, conhece LACAN e a partir de en rativa, o conceito freudiano de transfe
tão se toma seu principal interlocutor. rência; Di Ciaccia participou de nossa
MILLER desenvolverá em três seminá reunião clfnica e proferiu conferência
rios o tema: "Introdução ao desejo de sobre a Escola de Lacan nos tumultua
Lacan: suas incidências na psicanálise", dos dias de hoje. A TRANSCRIÇÃO
pretlmbulo ao Encontro de Paris 1991, da Cf, nfl7 será dedicada ao Seminário
que comemorará 1 O anos da morte de de Di Ciaccia. Di Ciaccia é Analista
Jacques LACAN. Membro da Escola da Causa freudia
na, Membro da Escola Européia de Psi
1. S OLER, Colette - Artigos Clínicos . canálise, Diretor da Revista do Campo
Trad. Elena Lopes Cólb. Editora FA freudiano na Itália, LA PSICOANALI
TOR, S alvador. 1991, 159 págs. SI, Presidente do Instituto freudiano
Trata-se de uma coletânea de artigos na Itália. Tem vários artigos publica
de Colette S oler, que derivam de con dos, alguns dos quais encontram-se na
ferências e publicaçOes em periódicos Biblioteca da Cf.
franceses , com revisão de traduçao
feita por membros da Cf. Aborda os • IH Jornadas Nacionais do Campo
temas da Transferência, Interpretaçao freudiano na Argentina, que contará
e Psicose. Quanto à transferência, a com a participaçao de Jacques -Aiain
autora viualiza a questao sob o ângu Miller e que ainda nao tem local fixa
lo da cura, relacionando-a à interpre do. O tema da convocatória é "0 que
tação, ao acting-out, à angústia e ao cura o analista?" e acontecerá- no mes
ato analítico. De referência ao tema de novembro de 1991.
da interpretação, Soler discute a natu
reza e as regras desta, referenciando • VII Encontro Internacional do Cam
se em obras de Lacan, principalmen po freudiano realizar-se-á durante a
te L'Etourdit. A psicose é situada en segunda quinzena do mês de julho de
quanto problemática, pela via da au 1992, na cidade de Caracas, Venezu
sência de um sgnificante, o Nome-do ela. Tema "As estratégias da Transfe
Pai, cuj a ênfase é dada em artigo espe rência em Psicanáli&e" e a inscrição
cffico. para os pafses da América (Sul, Cen
tral e Norte), deverao ser encaminha
2. QUEHACER DEL PSICOANALI das para Vll Encuentro dei Campo
SIS. La sexualidad en los desfiladeros Freudiano, Ateneo de Caracas, 311 Pi
dei significante. Ediciones Manantial, so, Apartado 662, Caracas 1010 A,
Buenos Aires, Argentina, 1991, 157 Venezuela.
234
Diagramação, composição em fonte Times, arte-final e
fotolito em filme de poliéster produzido no sistema
de editoração eletrônica da Editora FATOR Ltda
Rua Rio Amazonas 23 - Matatu, 40260, Salvador, Bahia,
te!.: (071 )2336284!2345696.
Impresso em off-set nas oficinas da Jotadáblio Gráfica e
Editora Ltda, Av. Suburbana 2715 - Lobato 40150,
Salvador, Bahia, te1.:(071)3928495/3922780,
em julho de 1991.
MLO 4/5
REVISTA BRASILEIRA DO CAMPO FREUDIANO
A Escola de Lacan
Ato de fundação da
Acier l'ouvert
A causa analítica
do Campo freudiano
ISSN 0103-121X