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em Guimarães Rosa
Rita Felix Fortes
RESUMO
Objetiva-se neste estudo – tomando como referência as obras Sobrados e mu-
cambos, de Gilberto Freyre, Os donos do poder, de Raymundo Faoro, História
das mulheres no Brasil, organizada por Mary Del Priore, e Formação do Brasil
contemporâneo, de Caio Prado Júnior – analisar-se a representação da submissão
feminina no conto “Luas-de-mel”, do livro Primeiras estórias, e a contraposição
subliminar a esta imagem, nos contos “Desenredo” e “Estes Lopes”, do livro
Tutaméia, de João Guimarães Rosa.
Palavras-chave
Tutaméia; imagem feminina; “Luas-de-mel”; “Desenredo”; “Esses Lopes”.
ABSTRACT
The following study refers to Sobrados e mucambos, by Gilberto Freyre, Os do-
nos do poder, by Raymundo Faoro, História das mulheres no Brasil, organized
by Mary Del Priore, and Formação do Brasil contemporâneo, by Caio Prado
Júnior in order to analyze the representation of female submission in the short
story “Luas-de-mel”, from the book Primeiras estórias, and the composition
subliminal to that image in the short stories “Desenredo” and “Estes Lopes”,
from the book Tutaméia, by João Guimarães Rosa.
Key words
Tutaméia; female image; “Luas-de-mel”; “Desenredo”; “Esses Lopes”.
Ele, o sexo forte, ela o fraco; ele o sexo nobre, ela o belo” (1951, p. 253)(grifo
nosso). Esta distinção é tão importante que a simpatia do narrador para com o
padre advém não do fato de aquele ser pio, conforme o convencionado, mas
do fato de ele estar sempre armado. “O padre, moço, espingarda às costas?
Armado de ponto em branco; rifle curto” (ROSA, 1997, p. 95).
Também a respeito da família, o narrador é coerente com esta visão
conservadora. Sua mulher – descrita como santa, meio passada, correta,
corada, sarada, boa companheira, querida etc., é identificada por seus
atributos de dona-de-casa, companheira e, principalmente, parceira sexu-
al. No entanto, apesar do tratamento carinhoso e respeitoso dispensado
à esposa, é em função da vontade do narrador que se organiza todo o
universo doméstico, ou seja, na fazenda Santa Cruz do Onça ele é o único
senhor. A personagem narradora é aquele que seleciona quais vozes serão
entremeadas ao seu discurso e quais serão excluídas.
No entanto, a perspectiva arcaica de Joaquim Norberto e de várias ou-
era uma menina; provoca um duelo entre seu segundo amante e o primo,
ambos da família Lopes, e finalmente, leva à morte o último varão da família,
já um velho – com o qual ela, finalmente, casa-se oficialmente, apossando-
se de todos os seus bens – graças a comidas excessivamente temperadas e
ao excesso de sexo. Embora ela não mate os três filhos que tivera com os
Lopes, também deles ela quer distância: “Má gente, de má paz; deles quero
distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três”. (ROSA, 1976, p. 45).
No discurso de Flausina não transparece qualquer pesar, piedade ou
remorso pelos amantes mortos nem amor pelos filhos. Ao contrário, ela
vangloria-se de ter dado cabo de toda a família, bem como de ter mandado
os filhos para longe. “Meus filhos, Lopes, também provi de dinheiro, para
longe daqui viajarem gado” (ROSA, 1976, p. 48), isto porque, ainda de
acordo com a narradora, “todo mundo vive para ter alguma serventia.
Lopes, não! - desses me arrenego”. (ROSA, 1976, p. 48).
A narradora, ao longo de toda a narrativa, constrói uma série de
argumentos que justificariam seu desejo de vingança, dentre os quais,
alguns são incontestáveis, como o fato de, desde muito jovem, a família
Lopes ter tomado posse dela e, à medida que ela direta ou indiretamente
os elimina, outros tomarem o lugar dos mortos. Portanto, ao contrário
da tradicional visão patriarcal da submissão feminina, a narradora é
mais ardilosa, cruel e violenta que os senhores patriarcais, negando,
inclusive, o decantado instinto materno.
No entanto, a despeito da validade de seu ressentimento, subjacente
ao discurso de Flausina há alguns indícios de que ela é muito vaidosa
e egocêntrica, como por exemplo, seu desejo de chamar-se miss: moça
muito bonita e vaidosa. “Eu queria me chamar Maria Miss, reprovo
meu nome, de Flausina. Deus me deu esta pintinha preta na alvura do
queixo – linda eu era até a remirar minha cara na gamela dos porcos,
na lavagem”. (ROSA, 1976, p. 45).
Sua queda para o mal, bem como uma exacerbada vaidade, faz com
que ela fuja do tradicional arquétipo patriarcal de mulher cordata, passiva
e submissa ao domínio masculino. Ao contrário – a despeito de parcial-
verdade, graças à capacidade com que a personagem lida com essa coisa
– opaca, misteriosa, cerrada sobre si mesma, massa fragmentada e ponto
por ponto enigmática, que se mistura aqui e ali com as figuras do mundo
e se imbrica com elas – chamada linguagem.
Ou seja, Guimarães Rosa, ao conceber o que a personagem Jó Joa-
quim tem de inusitado, delega-lhe a habilidade de, como Adão,– que,
ao dar nome às coisas, participava do processo de criação – reinventar
a mulher. Essa reinvenção resulta da capacidade criativa da linguagem
literária que, partindo da matéria vertente da vida, reescreve a trajetória
humana. Precisamente neste momento da estória, a narrativa dá pistas
ao leitor para que este entenda que, de fato, o tema do conto vincula-se
ao maravilhoso poder transformador da linguagem.
Este processo de transformação, aliás, de subversão da realidade, só é
possível graças ao paciencioso trabalho de Jó Joaquim com a linguagem.
Trabalho este elaborado de forma amatemática “com paciência, sem in-
sistência, principalmente” e que resulta das “antipesquisas, acronologia”
(ROSA, 1977, p. 40) com que a personagem vai reinventar a estória da
sua mulher e, desta forma, reescrever a sua história. Negando a mate-
mática, a cronologia e a pesquisa, a empreitada de Jó Joaquim tem tudo
para fracassar, no entanto, alcança o sucesso absoluto do qual depende
sua felicidade.
Portanto, esta é uma estória sobre o poder construtivo da palavra en-
quanto o caminho para a felicidade humana. É este poder que converte em
inefável – indizível de tão maravilhosa – uma estória que originalmente
era infanda – indizível de tão abominável.
O paciente Jó Joaquim, ao recriar sua mulher, obtém tal sucesso que
eles não apenas vivem bem, mas convolados. O que significa que Vilíria
– finalmente, o emaranhado de letras do início, é ordenado e ela, assim
como uma nova identidade, passa a ter não um, mas O nome dado por
seu criador – mudou de sentimento e de estado, transformando-se de
adúltera em esposa fiel e exemplar. A frase que encerra o conto reitera o
seu caráter fabulista: apenas no plano da linguagem, da fábula e da inven-
REFERÊNCIAS
_____. Primeiras estórias. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
Recebido em 15/04/06
Aceito em 15/05/06