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Algumas representações da imagem feminina

em Guimarães Rosa
Rita Felix Fortes

RESUMO
Objetiva-se neste estudo – tomando como referência as obras Sobrados e mu-
cambos, de Gilberto Freyre, Os donos do poder, de Raymundo Faoro, História
das mulheres no Brasil, organizada por Mary Del Priore, e Formação do Brasil
contemporâneo, de Caio Prado Júnior – analisar-se a representação da submissão
feminina no conto “Luas-de-mel”, do livro Primeiras estórias, e a contraposição
subliminar a esta imagem, nos contos “Desenredo” e “Estes Lopes”, do livro
Tutaméia, de João Guimarães Rosa.

Palavras-chave
Tutaméia; imagem feminina; “Luas-de-mel”; “Desenredo”; “Esses Lopes”.

ABSTRACT
The following study refers to Sobrados e mucambos, by Gilberto Freyre, Os do-
nos do poder, by Raymundo Faoro, História das mulheres no Brasil, organized
by Mary Del Priore, and Formação do Brasil contemporâneo, by Caio Prado
Júnior in order to analyze the representation of female submission in the short
story “Luas-de-mel”, from the book Primeiras estórias, and the composition
subliminal to that image in the short stories “Desenredo” and “Estes Lopes”,
from the book Tutaméia, by João Guimarães Rosa.

Key words
Tutaméia; female image; “Luas-de-mel”; “Desenredo”; “Esses Lopes”.

A obra de João Guimarães Rosa – um dos mais importantes escrito-


res brasileiros – é marcada pela diversidade quanto à representação da
imagem feminina. Tanto no romance Grande Sertão: Veredas, quanto nos
seus livros de contos, há verdadeiras santas, assassinas – por vingança
e por piedade –, bem como personagens arquetípicas da submissão pa-
triarcalista, marcante na formação da sociedade brasileira até a metade
do século XX. Neste estudo, objetiva-se analisar algumas representações
das diversas imagens femininas que permeiam a obra do autor, visto
que algumas se ajustam e outras se contrapõem ao contexto patriarcal e

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semi-patriarcal brasileiro da segunda metade século XIX e primeiro quar-


tel do século XX. Analisar-se-á a representação da submissão feminina
no conto “Luas-de-mel”, do livro Primeiras estórias, e a contraposição
subliminar a esta imagem, nos contos “Estes Lopes” e “Desenredo”,
do livro Tutaméia. Enquanto, em “Luas de mel”, as personagens femi-
ninas se ajustam integralmente ao mais arcaico e conservador modelo
patriarcal, nos contos “Desenredo” e “Estes Lopes”, as personagens
Flausina e Vilíria, cada uma a seu modo, contrapõem-se a este modelo
e se aproximam de Lilith: versão revoltada de Eva, que recusa Adão e
desafia os desígnios do Criador.

SA-MARIA ANDREZA: A BOA COMPANHEIRA

O conto “Luas-de-mel” tem claramente delimitados dois eixos temá-


ticos: a violência remanescente dos antigos bandos de jagunços e a pere-
nidade do erotismo no relacionamento entre Joaquim Norberto, o maduro
narrador, e sua mulher Sa-Maria Andreza. A partir do tratamento dado por
Joaquim Norberto à mulher e ao filho, fica evidente o arcaísmo lingüístico
e social ao qual o conto se reporta. Até o século XIX, principalmente no
interior, era comum que marido e mulher se tratassem por sô e sá, sinhô
e sinhá, ou ainda, ioiô e iaiá, que, atualmente, corresponderia a senhor e
senhora. Também Seu Fifino, o jovem filho do narrador, é sempre nomeado
desta forma. Este tratamento cerimonioso entre marido e mulher, pais e
filhos, que há muito caiu em desuso, é retomado por Guimarães Rosa, o
que situa a narrativa lingüisticamente no arcaico sertão de Minas Gerais, em
um tempo impreciso entre o final do século XIX e o início do XX, quando
os bandos de jagunços ainda eram muito comuns no sertão.
A imagem feminina resgatada por Guimarães Rosa está em prefeita sintonia
com a arcaica perspectiva de mundo do narrador. Embora, tanto no que se
refere às funções sociais, quanto às afetivas, as relações entre Joaquim Nor-
berto e Sa-Maria Andreza, sua mulher, sejam harmônicas, indiscutivelmente,

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eles se enquadram nos moldes tradicionais. Este tradicionalismo é evidente,


por exemplo, na clara distinção entre os papéis e as funções atribuídas a
homens e mulheres, cabendo a eles todas as decisões para além do espaço
interno da casa. Também em relação aos valores, cabe ao homem tudo o que
é viril, violento e arriscado, e à mulher o que é delicado, gentil e recatado,
como exemplifica a descrição do noivo e da noiva, que chegam à fazenda do
narrador, fugindo da família dela, para se casar1. “Ela, era das lindas, sus- 1
A partir da metade do
século XIX, quando o
pendendo as atenções; (...) Só meio assombradazinha, sorrisos desabafados. empedernido patriar-
calismo rural brasileiro
O moço – rapaz ! – dos bons. Vi, com olho imediato. Tinha um rifle longo. entra em decadência,
muitos filhos passam
Tinha o garbo guapo” (ROSA, 1977, p. 94). É marcante a distinção entre as a rebelar-se contra os
casamentos impostos
virtudes femininas e masculinas. A primeira virtude da moça é a beleza e pelos pais e passam a
“roubar” as suas preten-
a segunda o recato, as quais se contrapõem às principais virtudes mascu-
didas, recorrendo a esse
linas: a virilidade, representada pelo rifle, e o garbo masculino, enquanto expediente como forma
de oposição aos pais.
metáfora de força e coragem. Essa contraposição está em perfeita sintonia No entanto, em muitos
casos, as fugas podiam
com a distinção estabelecida entre homem e mulher na sociedade patriarcal. terminar na morte do
noivo e da noiva, tema
Conforme analisa Gilberto Freyre: “É característico do regime patriarcal o que se afigura como o
principal mote do conto
homem fazer da mulher uma criatura tão diferente dele quanto possível. em análise.

Ele, o sexo forte, ela o fraco; ele o sexo nobre, ela o belo” (1951, p. 253)(grifo
nosso). Esta distinção é tão importante que a simpatia do narrador para com o
padre advém não do fato de aquele ser pio, conforme o convencionado, mas
do fato de ele estar sempre armado. “O padre, moço, espingarda às costas?
Armado de ponto em branco; rifle curto” (ROSA, 1997, p. 95).
Também a respeito da família, o narrador é coerente com esta visão
conservadora. Sua mulher – descrita como santa, meio passada, correta,
corada, sarada, boa companheira, querida etc., é identificada por seus
atributos de dona-de-casa, companheira e, principalmente, parceira sexu-
al. No entanto, apesar do tratamento carinhoso e respeitoso dispensado
à esposa, é em função da vontade do narrador que se organiza todo o
universo doméstico, ou seja, na fazenda Santa Cruz do Onça ele é o único
senhor. A personagem narradora é aquele que seleciona quais vozes serão
entremeadas ao seu discurso e quais serão excluídas.
No entanto, a perspectiva arcaica de Joaquim Norberto e de várias ou-

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tras personagens de Guimarães Rosa não abarca todo o universo roseano;


ao contrário, há personagens, no mesmo universo arcaico do sertão, que
se contrapõem e, muitas vezes, confrontam-se com a perspectiva con-
servadora de Joaquim Norberto em relação ao homem e à mulher, como
pode ser observado no conto “Esses Lopes”, do livro Tutaméia.

FLAUSINA: A ARDILOSA ASSASSINA

O conto “Esses Lopes” é narrado em primeira pessoa, por Flausina, a


personagem que, de forma ardilosa, e sem ser apanhada, mata todos os
homens da família Lopes, dos quais fora amante e, do último, esposa
– segundo ela, sempre, a contragosto – e dos quais tivera três filhos. Após
apossar-se de todos os bens dos Lopes, e matar o último deles, manda
seus filhos com os Lopes para longe, casa-se com um jovem e pretende,
enfim, constituir uma nova família: sem sangue dos Lopes.
Embora o conto também se reporte ao universo do sertão – como em
“Luas-de-mel” – e de o tempo, apesar de indefinido, ser similar, e de a
temática ser a violência humana, há uma grande diferença de perspectiva
em relação ao conto “Luas-de-mel”. Em “Esses Lopes” a narradora é uma
mulher – tão perigosa ou mais que qualquer jagunço – mas que, feminina-
mente, não confronta, nem parte para a luta. Ao contrário, ardilosamente,
mata enredando, mentindo, traindo agradando e seduzindo.
Flausina é, para os Lopes, como as moiras para a humanidade.
Aparentemente, seriam os Lopes quem, como Cloto – a tecedeira do
destino humano –, teriam urdido a história da narradora; e como Lá-
quesis – aquela que mede o destino –; mas, de fato, Flausina é como
a moira Átropos, “aquela de quem não se pode escapar” (LIBOREL,
1997, p. 375), ou seja, aquela que corta o fio da vida.
Para matar os Lopes, ela recorre aos seguintes estratagemas: utiliza ervas
venenosas, diluídas no café e na cachaça, que levarão à morte seu primeiro
amante – aquele que a levara à força para viver com ele, quando ela ainda

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era uma menina; provoca um duelo entre seu segundo amante e o primo,
ambos da família Lopes, e finalmente, leva à morte o último varão da família,
já um velho – com o qual ela, finalmente, casa-se oficialmente, apossando-
se de todos os seus bens – graças a comidas excessivamente temperadas e
ao excesso de sexo. Embora ela não mate os três filhos que tivera com os
Lopes, também deles ela quer distância: “Má gente, de má paz; deles quero
distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três”. (ROSA, 1976, p. 45).
No discurso de Flausina não transparece qualquer pesar, piedade ou
remorso pelos amantes mortos nem amor pelos filhos. Ao contrário, ela
vangloria-se de ter dado cabo de toda a família, bem como de ter mandado
os filhos para longe. “Meus filhos, Lopes, também provi de dinheiro, para
longe daqui viajarem gado” (ROSA, 1976, p. 48), isto porque, ainda de
acordo com a narradora, “todo mundo vive para ter alguma serventia.
Lopes, não! - desses me arrenego”. (ROSA, 1976, p. 48).
A narradora, ao longo de toda a narrativa, constrói uma série de
argumentos que justificariam seu desejo de vingança, dentre os quais,
alguns são incontestáveis, como o fato de, desde muito jovem, a família
Lopes ter tomado posse dela e, à medida que ela direta ou indiretamente
os elimina, outros tomarem o lugar dos mortos. Portanto, ao contrário
da tradicional visão patriarcal da submissão feminina, a narradora é
mais ardilosa, cruel e violenta que os senhores patriarcais, negando,
inclusive, o decantado instinto materno.
No entanto, a despeito da validade de seu ressentimento, subjacente
ao discurso de Flausina há alguns indícios de que ela é muito vaidosa
e egocêntrica, como por exemplo, seu desejo de chamar-se miss: moça
muito bonita e vaidosa. “Eu queria me chamar Maria Miss, reprovo
meu nome, de Flausina. Deus me deu esta pintinha preta na alvura do
queixo – linda eu era até a remirar minha cara na gamela dos porcos,
na lavagem”. (ROSA, 1976, p. 45).
Sua queda para o mal, bem como uma exacerbada vaidade, faz com
que ela fuja do tradicional arquétipo patriarcal de mulher cordata, passiva
e submissa ao domínio masculino. Ao contrário – a despeito de parcial-

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mente válidas suas justificativas – ela encarna o espírito da maldade e da


violência, equiparável ao de qualquer matador facínora, distinguindo-se,
apenas, na feminil estratégia de eliminar enredando, jamais confrontando,
visto que não teria forças para tal.

“COM ELAS QUEM É QUE PODE?”

Segundo o Gênesis (2-20), Deus criou a mulher porque “não é


bom que o homem esteja só”, entretanto, assim como ocorrera com
o restante da criação divina, a mulher, somente ao ser nomeada pelo
homem, passa do plano concreto, mas efêmero, da existência material,
para o plano transcendente e mais perene, embora abstrato, das pala-
vras. De acordo com a simbologia bíblica, a mulher é uma recriação
divina, a partir do homem, o primeiro a ser criado. Mas, também em
relação à mulher, cabe ao homem o papel de nomeá-la, portanto, de
torná-la perene.
O primeiro parágrafo de “Desenredo”, narrado em terceira pessoa,
além de apontar para o tom fabulista do conto, remete, à dificuldade
do narrador em captar o nome da mulher e, conseqüentemente, em
defini-la, o que faz dela um ser fugidio e extremamente ambíguo. A
personagem masculina Jó Joaquim, ao contrário, é plenamente de-
finível e captável através dos singelos adjetivos que o caracterizam.
“– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de
cerveja”. (ROSA, 1967, p. 38)(grifo nosso). Basta uma frase para que se
tenha o perfil da personagem, definida, apenas, como quieta, boa e tão
agradável quanto o cheiro de cerveja – associação inusitada e singela,
vinculada ao sentido olfativo, portanto, basta sentir, sem necessidade
de reflexão. Mais que isso, Jó Joaquim, além de simples e bom, é um
homem extremamente comum, sem nada de notável, visto que “tinha
o para não ser célebre”. (ROSA, 1977, p. 38).

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A personagem feminina é exatamente o contrário. Antes mesmo


de descrevê-la, o narrador prenuncia que, com as mulheres ninguém
pode, uma vez que sua própria criação se deu à revelia do homem e
que este, sempre a cochilar, não está à altura da sagacidade inerente
à condição feminina. “Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir,
e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia” (ROSA, 1976,
p. 38). Os três nomes – resultantes do embaralhamento das mesmas
letras – é um indicativo da difusão da personagem, enquanto arqué-
tipo feminino prenunciador de um ser ardiloso, dissimulado e, prin-
cipalmente, ainda disforme. Os atributos físicos da mulher reiteram
as características prenunciadas pela mistura do seu nome. “Antes
bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão” (ROSA, 1976, p. 38).
A beleza é o primeiro atributo desta mulher arquetípica, beleza esta
associada a um caráter fugidio, evidenciado pelo olhar de mosca
viva, que, ao contrário da mosca morta, nunca se deixa captar. Além
do olhar, os demais atributos físicos corroboram a idéia de que esta
mulher sintetiza o feminino no que ele tem de mais sedutor e que
aguça, instintivamente, a fome masculina.
O pão é o símbolo do alimento essencial, portanto, vincula-se,
instintivamente à busca pela saciedade e pela vida. Esta simbologia,
quando transmigrada para o plano da fome, enquanto instinto e desejo
sexual, reitera a idéia do arquétipo feminino de sedução, evidentemente
associado ao engodo. Portanto, o desejo de Jó Joaquim por esta mulher
remonta ao desejo primordial do homem pela mulher.
Jó Joaquim, assim como os Lopes, é completamente enredado pela
mulher que, além de trair o marido com Jó Joaquim, trai a ambos com
um terceiro. Entretanto, no contexto patriarcal rural do conto, desta
mulher infanda, ou nefanda, de tão abominável – segundo o dicionário
– “não se deve falar, por ser digno de aversão; execrável” (HOUAISS,
2001, p. 2003) será, através da palavra, transformada por Jó Joaquim
em algo inefável, ou seja, em algo “que não se pode nomear ou des-
crever em razão de sua natureza, força, beleza; indizível, indescritível”

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(HOUAISS, 2001, p. 1609). A ação da mulher que, dada a sua vilania,


não deveria jamais ser verbalizada, sofre um apagamento lingüístico
e, no vazio deixado por esse apagamento, Jó Joaquim reescreve uma
estória que, de tão maravilhosa, estaria além da possibilidade de uma
plena descrição. Ou seja, o tema de “Desenredo”, superficialmente, é
o do adultério feminino, mas, em uma dimensão mais profunda, o que
está em discussão é a capacidade humana de, a partir de uma construção
discursiva, elaborar a maior das quimeras humanas: a felicidade.
A personagem parte de sua fantasia a respeito da virtude da mulher
e executa, cuidadosamente, uma reescritura do passado, portanto, ao
parafrasear o passado, ele reconstrói o futuro. Tanto é assim que a mu-
lher, após trair Jó Joaquim – que, após a morte do marido, passara da
condição de amante à de marido, e como os tempos se parafraseiam,
é traído não mais como amante, mas como marido –, “ viajou fugida a
mulher, a desconhecido destino”. (ROSA, 1976, p. 39).
Como Lilith: “primeira mulher a ser criada, ela pronunciou o ‘nome
inefável’ que lhe deu asas por meio dos quais fugiu do jardim do Éden,
onde abandonou Adão”. (BRUNEL, 1997, p. 583). A partir da fuga, Jó
Joaquim “Dedicou-se a endireitar-se” (grifo nosso) (ROSA, 1976, p. 39).
O extraordinário trabalho de Jó Joaquim será a forma como ele, de
maneira obnubilada e misteriosa, se põe a recriar o passado de sua mu-
lher. Ou seja, é através da linguagem que vai surgir uma outra pessoa,
completamente diversa daquela adúltera contumaz, que o traíra como
amante e como esposa.
A principal motivação da personagem é aquela subjacente a todas as
empreitadas humanas: a busca da felicidade. É esta busca que leva Jó
Joaquim a remir, no sentido de reaver e de resgatar, a moral de sua mulher
para, desta forma, poder reatar o casamento. De maneira extremamente
sagaz, ele espalha, como um aroma – que entranha sem que se dê conta
ou permissão – a idéia de que sua mulher nunca tivera amantes, ao
contrário, sempre fora honesta, e sua má fama resultava de embustes e
lérias. O que inicia como puro embuste, converte-se na mais absoluta

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verdade, graças à capacidade com que a personagem lida com essa coisa
– opaca, misteriosa, cerrada sobre si mesma, massa fragmentada e ponto
por ponto enigmática, que se mistura aqui e ali com as figuras do mundo
e se imbrica com elas – chamada linguagem.
Ou seja, Guimarães Rosa, ao conceber o que a personagem Jó Joa-
quim tem de inusitado, delega-lhe a habilidade de, como Adão,– que,
ao dar nome às coisas, participava do processo de criação – reinventar
a mulher. Essa reinvenção resulta da capacidade criativa da linguagem
literária que, partindo da matéria vertente da vida, reescreve a trajetória
humana. Precisamente neste momento da estória, a narrativa dá pistas
ao leitor para que este entenda que, de fato, o tema do conto vincula-se
ao maravilhoso poder transformador da linguagem.
Este processo de transformação, aliás, de subversão da realidade, só é
possível graças ao paciencioso trabalho de Jó Joaquim com a linguagem.
Trabalho este elaborado de forma amatemática “com paciência, sem in-
sistência, principalmente” e que resulta das “antipesquisas, acronologia”
(ROSA, 1977, p. 40) com que a personagem vai reinventar a estória da
sua mulher e, desta forma, reescrever a sua história. Negando a mate-
mática, a cronologia e a pesquisa, a empreitada de Jó Joaquim tem tudo
para fracassar, no entanto, alcança o sucesso absoluto do qual depende
sua felicidade.
Portanto, esta é uma estória sobre o poder construtivo da palavra en-
quanto o caminho para a felicidade humana. É este poder que converte em
inefável – indizível de tão maravilhosa – uma estória que originalmente
era infanda – indizível de tão abominável.
O paciente Jó Joaquim, ao recriar sua mulher, obtém tal sucesso que
eles não apenas vivem bem, mas convolados. O que significa que Vilíria
– finalmente, o emaranhado de letras do início, é ordenado e ela, assim
como uma nova identidade, passa a ter não um, mas O nome dado por
seu criador – mudou de sentimento e de estado, transformando-se de
adúltera em esposa fiel e exemplar. A frase que encerra o conto reitera o
seu caráter fabulista: apenas no plano da linguagem, da fábula e da inven-

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cionice, Jó Joaquim poderia alcançar tamanho sucesso. Pode-se afirmar


que Vilíria nasceu duas vezes, a primeira, “quando passou do nada para
o existente” (LINS, 1975, p. 117), e a segunda, quando Jó Joaquim alçou-a
“a um plano mais alto, sutil” ( LINS, 1975, p. 117), e a recriou através
da palavra. Ou seja, a mulher que Jó Joaquim disse, se fez.
As personagens femininas dos contos “Luas-de-mel”, “Esses Lo-
pes” e “Desenredo”, são muito diversas. Em “Luas-de-mel” elas en-
quadram-se perfeitamente nos arquétipos femininos patriarcais; em
“Esses Lopes”, a narradora, uma calculista assassina, é o avesso da
submissão e da doçura feminina; em “Desenredo”, a personagem, de
adúltera contumaz – coisa inadmissível no arcaico universo do sertão
– é recriada, a partir da linguagem, convertendo-se na mulher ideal.
Ou seja, a despeito de os três contos enquadrarem-se no universo
sertanejo roseano, Guimarães Rosa não se prende a um único modelo
feminino, nem usa o meio e as contingências sociológicas como cami-
sas-de-força que abarcariam toda a diversidade humana; ao contrário,
o autor desvela que, no sertão, podem ser encontradas mulheres de
todos os naipes e tipos, inclusive aquelas que enquadram-se, apenas,
da dimensão ideal da linguagem, graças à qual o narrador, como Adão,
pode nomear o mundo, e criar a sua companheira ideal a partir de
uma construção discursiva. É coerente com o projeto literário de Gui-
marães Rosa que em qualquer lugar possa haver gente de todo tipo,
a despeito das contingências geográficas e sociais, visto que o sertão2, 2
Praticamente toda a obra
rosiana situa-se, espacial-
ou o planalto central, uma região geograficamente bem delimitada, mente, no Planalto Cen-
tral brasileiro, formado,
é apenas um pré-texto regional, do qual medra a mágica linguagem predominantemente,
pelo cerrado, que abarca
roseana, cujo húmos é a trágica travessia humana. É esta capacidade uma grande parte de Mi-
nas Gerais e Goiás, mas
de captar, através da linguagem, o que há de mais maravilhoso e
também terras do Mato
Grosso e da Bahia.
horripilante na condição humana que faz – conforme afirma o autor,
em entrevista com Günter Lorenz – de Goethe, Dostoiévski, Tolstoi,
Flaubert e Balzac “sertanejos” – visto que, na perspectiva rosiana, o
sertão é, também, o mundo – companheiros de Guimarães Rosa, a
transitarem pelos sombrios desvios da alma humana.

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REFERÊNCIAS

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Paulo: Paulus, 1985.

BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind


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COUTINHO, Eduardo (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1983. (Coleção Fortuna Crítica).

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: a decadência do patriarcalismo


rural no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.

HOUAISS, Antonio et. al. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Rio


de Janeiro: Objetiva, 2001.

LINS, Osman. “Retábulo de Santa Joana Carolina”. In: Nove, novena.


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ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras Estórias). 4. ed. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1976.

_____. Primeiras estórias. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

Rita das Graças Felix Fortes


Professora de Literatura Brasileira no Curso de Letras da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná e do Mestrado em Letras da Unioeste.
Mestre em Letras – área de concentração de Literatura Brasileira – pela
Universidade Federal de Santa Catarina, e Doutora em Letras – área de
concentração em Literatura Comparada – pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
E-mail: fortes@rondonet.com.br

Recebido em 15/04/06
Aceito em 15/05/06

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