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33 No 61
ISSN 0259-2339
Resumo
Neste texto, analisamos o livro consigo uma série de estigmas que mar-
Quarto de despejo: diário de uma favela- caram, pejorativamente, o seu registro:
da (2015), publicado nos anos sessen- era mulher, negra, pobre e semianal-
ta, pela então desconhecida Carolina fabeta. Por isso, suas obras dividem
Maria de Jesus. Escrito sob o formato opiniões acerca do seu valor literário.
de diário, Carolina retrata a visão Este artigo objetiva analisar seu pri-
interna de uma nova realidade que meiro livro, evocando aspectos au-
consternaria a população brasilei- tobiográficos e memorialísticos em
ra até os dias atuais: a favela. Em relação ao seu tempo e espaço.
seus escritos, a autora trouxe
Palavras-chave: Literatura brasileira,
Carolina Maria de Jesus, Diário, Auto-
biografia, Memória.
a sua obra por meio da autorreflexão ta consegue espaço. A sua história não
que a autora faz dentro dele. Sendo seria contada por outro, mas por ela
também uma criação estética, o coti- mesma. Não seria o morador da casa de
diano da autora, sua condição social, alvenaria o detentor da palavra e sim a
é fator determinante da construção própria dona do barracão.
literária. Daí a autora referir-se ao
texto como sendo estranho. Do discurso de Carolina depreende-se
que ela tinha um senso político aguçado,
Vê-se que, para Carolina, além de sua corroborado por meio do título do livro
importância no âmbito pessoal, seu di- que reforça a ideia de que “a favela é o
ário adquire outra proporção, ele a pro- quarto de despejo. E as autoridades igno-
jeta no mercado literário e faz com que ram que tem o quarto de despejo” (Jesus,
seus escritos íntimos se revelem como 2015: p. 107). Metaforicamente, a autora
testemunhos de uma realidade desco- sugere que, assim como na casa, o governo
nhecida para a sociedade brasileira e também tem um lugar onde “depositar” o
mundial: a favela e seus habitantes. que não se quer ou que se despreza; nesse
Dessa maneira, por mais críticas que caso, o espaço é a favela.
esse gênero possa sofrer, sua importância
como ponto observatório é riquíssimo. O texto, narrado em primeira pessoa,
Carolina teve como espelho grandes no- possibilita a inserção dos subgêneros
mes do cânone literário, personalidades supracitados anteriormente ao gênero
como: Sartre, Virginia Woolf, Florbela principal. O narrador e o autor for-
Espanca e Barthes. Todos eles responsá- mam um ser único, constatação apre-
veis pelo resgate “de uma história social sentada também por Germana Sousa
que foi expurgada dos manuais da histó- (2012: p. 176):
ria oficial e por essa razão podem fazer
girar a lente do observador da história” A escolha do tipo de focalização traz
(Sousa, 2012: p. 172). implicações determinantes para a lei-
tura da obra, pois define o nível de
E assim Carolina o fez, deu voz aos es- implicação (compromisso/descom-
quecidos pela sociedade, aos margina- promisso, consonância/dissonân-
lizados e seus silêncios. A experiência cia, piedade/ironia) que o narrador
que a autora entregava ao público era tem com relação àquilo que narra, o
algo novo, em um contexto literário mundo diegético. Na verdade, a fo-
controlado pela classe dominante, al- calização trata não apenas da visão
guém que advém de uma classe distin- do personagem, mas das relações en-
tre o que diz o narrador e o que sabe que sua enunciação (do autor-narra-
o personagem. dor) revela. Porém, ao mesmo tem-
po, guiado pelo relato, reconstrói o
No entanto, Quarto de despejo requer modelo biográfico que lhe é sugeri-
uma atenção especial do leitor, pois, do (Lejeune, 1980: p.61). [Tradução
ainda que o livro seja autêntico e per- livre nossa] 13
tencente ao gênero não-ficcional, ele foi
editado e compilado por outra pessoa, Devido a esse terreno tão dúbio, os es-
o “descobridor” de Carolina, o jornalis- tudos sobre o gênero autobiográfico re-
ta Audálio Dantas, que realiza o prefá- velam uma problemática em relação à
cio da obra e explica como ela veio à aceitação desse gênero por parte da aca-
luz. Essa constatação não será levada demia. A ambiguidade de seu produto
em consideração neste trabalho, já que faz com que grande parte das críticas lite-
a escrita contida no livro expressa o co- rárias e historiográficas rechace esse esti-
tidiano real somente da autora, não ha- lo. O flerte com a realidade e a ficção si-
vendo relação direta com o seu editor. multaneamente dá margem à imprecisão
Reitera-se aqui que Carolina é a dona quanto a sua classificação, pois não há
das palavras que ela produz. aprofundamento em nenhum dos polos.
Essa autoria evidenciada na primeira Em seu livro Je est un autre, Lejeune in-
pessoa permite que se tenha mais segu- daga sobre a questão do hibridismo au-
rança na relação igualitária entre ficção toral da autobiografia e se dá conta de
e realidade. Esse composto binário é que “a questão ‘quem fala?’ não remete
sustentável pela experiência do autor e apenas aos meandros da personalidade,
do autoconhecimento, fato que o afasta mas também aos ‘autores’ múltiplos de
da ficção ou da representação. Já em re- um mesmo ‘eu’, ao mesmo tempo em
lação ao leitor da autobiografia, Lejeu- que remete ao jogo social pelo qual
ne interpreta que ele os ‘sujeitos’ se reproduzem” (Lejeune,
pacto referencial toma uma dimensão um espaço próprio, se quiser escrever fic-
ínfima e não compromete o resultado ção” (Woolf, 2014: p.12), uma indepen-
do texto, pois tudo o que é descrito é dência de que poucas mulheres gozavam.
justificável pelo hibridismo de suas ca-
tegorias. O pacto autobiográfico per- Levando em conta tal afirmativa, ao ana-
manece intacto, dando legitimidade ao lisar a obra de Carolina, sejam aspectos
diário de Carolina. biográficos ou literários, nota-se uma in-
dependência em relação à subordinação
Carolina e os enfrentamentos masculina e suas implicações. A escritora
do “eu” possui um teto todo dela, o barracão, e é
nesse ambiente, hostil e vicioso, que sua
Após a constatação do hibridismo de literatura é construída:
gêneros e a confirmação do pacto au-
tobiográfico proposto por Phillipe Le- Eu deixei o leito as 3 da manhã por-
jeune, propomos trilhar os caminhos que quando a gente perde o sono
enveredados por Carolina Maria de começa a pensar nas miserias que
Jesus e investigar os enfrentamentos, o nos rodeia (...) Deixei o leito para
cotidiano e sua atuação como escritora. escrever. Enquanto escrevo vou pen-
Nesse sentido, trataremos de três temas sando que resido num castelo cor de
que permeiam a sua obra: o machismo, ouro que reluz na luz do sol. Que
a fome e o racismo. as janelas são de prata e as luzes de
brilhantes. Que a minha vista circula
Os estudos contemporâneos a respeito no jardim e eu contemplo as flores
das narrativas de autoria feminina reve- de todas as qualidades. (...) É preciso
lam uma marginalização dessa escrita e criar este ambiente de fantasia, para
um ocultamento dessas manifestações esquecer que estou na favela (Jesus,
literárias. A sociedade assimilou a ide- 2015: p. 58)15.
ologia machista e patriarcal que afirma
que as mulheres não escreviam por falta A situação marginal de Carolina conferiu
de talento, uma taxação misógina, e que ao seu discurso um caráter de denúncia,
foi amplamente discutida pela escritora
inglesa Virginia Woolf, em um dos seus 15 A obra de Carolina Maria de Jesus apresenta uma
mais icônicos ensaios chamado Um teto série de imprecisões ortográficas, fruto de sua pou-
ca escolaridade, que foi mantida porque esse é o
todo seu, publicado em 1929. Woolf afir- seu registro. Também se observa algumas omissões
mou, com veemência, que “uma mulher em forma de reticências, fruto do tratamento que
precisa ter dinheiro e um teto todo seu, Audálio Dantas deu ao original, para evitar repeti-
ções, tão comuns à linguagem oral.
revelando não somente a sua expressivi- não comia. Acendeu o fogo e assou a
dade literária, como também um viés po- carne. A fome era tanta que ele não
lítico e social de uma classe periférica. A poude deixar assar a carne. Esquen-
sua escrita, de tom realista, rompeu com tou-a e comeu. Para não presenciar
a tradição literária e chamou a atenção aquele quadro, saí pensando: faz
de um público que se encontrava alheio de conta que eu não presenciei esta
a essa realidade, feito impensável de ser cena. Isto não pode ser real num paiz
alcançado pelo discurso oral, comum nas fértil igual ao meu. Revoltei contra
comunidades pobres onde poucos são os o tal Serviço Social que diz ter sido
que leem ou escrevem. criado para reajustar os desajustados,
mas não toma conhecimento da exis-
As adversidades enfrentadas por Caroli- tencia infausta dos marginais. Vendi
na eram muitas, mas a que ela mais en- os ferros no Zinho e voltei para o
fatizou em seus escritos refere-se àque- quintal de São Paulo, a favela.
la provocada pela fome. Em diversos
momentos, a autora narra as batalhas No outro dia encontraram o pretin-
diárias para conseguir comida para si ho morto. [...] Não trazia documen-
e para os seus filhos. A fome, em um tos. Foi sepultado como um Zé qual-
lugar de extrema pobreza, surge como quer. Ninguém procurou saber seu
a pior inimiga, fato que lhe causava nome. Marginal não tem nome.
muita revolta, principalmente porque … De quatro em quatro anos mu-
ela tinha consciência da injustiça que da-se os políticos e não soluciona a
reinava no Brasil de sua época. Em um fome, que tem sua matriz nas favelas
de seus relatos mais fortes, é possível co- […] (Jesus, 2015: p. 40).
nhecer a dolorosa vida de Carolina e de
outros favelados: São inúmeras as passagens de Quarto de
Despejo que escancaram a realidade da
[...] Os lixeiros haviam jogado carne desigualdade social daquele Brasil – e
no lixo. E ele escolhia uns pedaços. por que não o de hoje –, descrições que
Disse-me: ganharam repercussão imediata entre os
Leva, Carolina. Dá para comer. brasileiros, haja vista o sucesso do livro.
Deu-me uns pedaços. Para não ma- Em seguida, com a publicação da obra
guá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a em vários países europeus, uma parte
não comer aquela carne. Para comer ignorada do país foi revelada e a origina-
os pães duros ruídos pelos ratos. Ele lidade da obra de Carolina reconhecida.
disse-me que não. Que há dois dias
Esse fato histórico, tão importante para […] Uma senhora que fez compra
a literatura brasileira, pouco é lembrado gastou 43 cruzeiros. E o senhor
por nossa sociedade. Eduardo disse:
- Nos gastos quase que vocês empa-
O preconceito que permeia a vida de taram.
Carolina também invade a sua obra, Eu disse:
caracterizado em um dos temas mais - Ela é branca. Tem direito de gastar
recorrentes em seu livro, o racismo. mais.
Quarto de Despejo retrata as feridas desse Ela disse-me:
assunto ainda tão presente no cotidia- - A cor não influi.
no social: “Enquanto eu estava na rua o
Alexandre maltratou a mãe do soldado Então começamos a falar sobre o
Edison. Quando eu cheguei ele come- preconceito. Ela disse-me que nos
çou insultar-me: ― Negra suja. Ordiná- Estados Unidos eles não querem ne-
ria. Vagabunda. Lixeira” (Jesus, 2015: p. gros na escola.
98), ofensas que expõem o forte precon- Fico pensando: os norte-americanos
ceito racial em nosso país. são considerados os mais civilisados
do mundo e ainda não convenceram
O livro apresenta um diagnóstico preci- que preterir o preto é o mesmo que
so da dominação racial que impera em preterir o sol. O homem não pode
nossa sociedade. Vale salientar que Ca- lutar com os produtos da Natureza.
rolina não teve uma educação de quali- Deus criou todas as raças na mesma
dade, assim como tantos outros de sua epoca. Se criasse os negros depois
mesma esfera. Desse modo, nota-se a as- dos brancos, aí os brancos podia re-
similação de um discurso social ampla- voltar-se (Jesus, 2015: p. 122).
mente propagado, sentido nas inúme-
ras vezes em que Carolina é preconcei- Essa passagem ilustra bem a contradição
tuosa consigo mesma, quando afirma a que nos referimos. Carolina repete o
que não gostava de preto. Segundo Joel mesmo discurso da dominação branca
Rufino dos Santos (2009: p. 133) “o do qual é vítima quando afirma que
preconceito racial existe entre os pobres eles podem gastar mais, simplesmente
e pretos porque o racismo é sistêmico”. pelo fato de serem brancos. Porém,
Em um diálogo com uma senhora que diante da resposta de sua interlocutora,
comprava em um mercado, podemos Carolina reflete acerca da questão da
observar esse discurso contraditório: desigualdade social e parece perceber
sua incoerência.
Até o feijão nos esqueceu. Não está A análise de temas tão significativos re-
ao alcance dos infelizes que estão quer um aprofundamento bem maior
no quarto de despejo. Quem não do que o proposto neste artigo acadê-
nos despresou foi o fubá. Mas as mico. Sabe-se que são temas complexos,
crianças não gostam de fubá. Quan- que demandam um espaço bem maior
do puis a comida o João Sorriu. Co- de conteúdo e pesquisa. Assim, espera-
meram e não aludiram a cor negra -se que esse breve olhar acerca desses
do feijão. Porque negra é a nossa três tópicos norteadores da obra de Ca-
vida. Negro é tudo que nos rodeia rolina sirva como um ponto de partida
(Jesus, 2015: p. 43). para um olhar mais crítico e intrínseco
de um leitor/pesquisador interessado
O humor presente no texto não es- em questões tão pertinentes para o en-
conde a crítica da autora em relação tendimento da construção da imagem
ao empobrecimento da população e a de um Brasil que é refletido em obras
luta diária pela sobrevivência. A palavra literárias como essa.
“negro” alude a tudo o que é negativo,
sujo, perigoso. Para finalizar, Quarto de despejo refor-
ça o pressuposto de que a Literatura é
Já na próxima citação, Carolina expressa algo atemporal. Não pode e não deve
um juízo de valor errôneo, como se os ser vista apenas como mero objeto es-
atributos fossem meramente categoriza- tético, sem levar em conta o contexto
dos por meio da raça: “A Florenciana é histórico e os valores ideológicos so-
preta. Mas é tão diferente dos pretos por cioculturais presentes em uma esfera
ser ambiciosa. Tudo que ela faz é visando externa, mas que possui livre acesso ao
lucro. Creio que se ela fosse dona de um universo literário.
matadouro havia de comer os chifres e os
cascos dos bois” (Jesus, 2015: p. 75). Se- Carolina Maria de Jesus criou um po-
guindo seu raciocínio, um negro nunca deroso instrumento de transformação
poderia ser ambicioso, pois não faz parte social, rompeu barreiras civis e literárias
de sua natureza. Uma frase que remete e deu ao mundo uma lição de sobrevi-
ao processo de colonização que impede vência, expondo uma visão interna da
que um negro ascenda socialmente, dis- favela e de como era sua vida e lingua-
curso assimilado e sempre repetido por gem. Seu feito, mesmo estando fora dos
Carolina em várias partes de sua obra. padrões literários do cânone, tem for-
ça e representatividade, ao caracterizar