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Temas de nuestra américa Vol.

33 No 61
ISSN 0259-2339

O diário de Carolina Maria de Jesus.


Uma brasileira marginalizada
El diario de Carolina Maria de Jesus.
Una brasileña marginada

The diary of Carolina Maria de Jesus.


A marginalized Brazilian

Regina Simon da Silva


David Raphael Araujo da Fé
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Brasil
Recibido: 3 de febrero de 2017
Aceptado: 15 de febrero de 2017

Resumo
Neste texto, analisamos o livro consigo uma série de estigmas que mar-
Quarto de despejo: diário de uma favela- caram, pejorativamente, o seu registro:
da (2015), publicado nos anos sessen- era mulher, negra, pobre e semianal-
ta, pela então desconhecida Carolina fabeta. Por isso, suas obras dividem
Maria de Jesus. Escrito sob o formato opiniões acerca do seu valor literário.
de diário, Carolina retrata a visão Este artigo objetiva analisar seu pri-
interna de uma nova realidade que meiro livro, evocando aspectos au-
consternaria a população brasilei- tobiográficos e memorialísticos em
ra até os dias atuais: a favela. Em relação ao seu tempo e espaço.
seus escritos, a autora trouxe
Palavras-chave: Literatura brasileira,
Carolina Maria de Jesus, Diário, Auto-
biografia, Memória.

http://dx.doi.org/10.15359/tdna.33-61.3 Vol.33 No 61 Enero-junio 2017 49


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Resumen stigmata that notoriously marked her


writing since she was a woman, a bla-
En este texto analizamos el libro Quarto ck woman, a poor woman, and a half-
de despejo: diário de uma favelada (2015), -literate woman. That is why his works
publicado en los años sesentas, por la divide opinions about its literary value.
entonces desconocida Carolina Maria This article aims to analyze her first
de Jesus. Escrito bajo el formato de dia- book, evoking autobiographical and
rio, Carolina retrata la visión interna de memorial aspects in relation to his time
una nueva realidad que consternaría la and space.
población brasileña hasta los días actua-
les: la chabola. Keywords: Brazilian Literature, Caroli-
na Maria de Jesus, Diary, Autobiogra-
En sus escritos la escritora conllevó phy, Memory.
una serie de estigmas que señalaron
peyorativamente su registro: era mujer, Introdução
negra, pobre y semianalfabeta. Por ello
sus obras dividen opiniones acerca de O objeto de estudo deste trabalho é
su valor literario. Este artículo objeti- protagonizado por Carolina Maria de
va analizar su primer libro, evocando Jesus, escritora nascida em Minas Ge-
aspectos autobiográficos y memoriales rais, em 1914, que se mudou para a
con relación a su tiempo y espacio. cidade de São Paulo, em meados dos
anos quarenta; presenciou e fez parte
Palabras clave: literatura brasileña, Ca- da formação das primeiras favelas do
rolina Maria de Jesus, Diario, Autobio- Estado e teve seu talento revelado em
grafía, Memoria. uma delas, na favela do Canindé. Fo-
ram necessários 56 anos para que Ca-
Abstract rolina, a mulher negra, favelada, mãe
solteira e, ironicamente, semianalfabe-
In this text we analyze the book Quarto ta, conseguisse adentrar na seleta lista
de despejo: diário de uma favelada (2015), de escritores de literatura brasileira,
published in the sixties by the then unk- com o reconhecimento da importân-
nown Carolina Maria de Jesus. Written cia de seu primeiro livro, Quarto de
as a diary, Carolina portrays the inner despejo, publicado em 1960. Não há
vision of a new reality that would dis- como negar que sua escrita plural, tão
may the Brazilian population until the representativa de uma série de mino-
present day: la chabola [the shack]. In rias, deva ser levada a sério.
her pieces Carolina carried a series of

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A percepção apurada de Carolina fez falavam de sua produção como das


com que, embora ela estivesse em uma classes subalternas escritas dos grupos
situação de extrema pobreza, sua voz oprimidos, subliteratura. No governo
ganhasse o poder de ser a interlocuto- do sucessor de Juscelino, a linguagem
ra e mediadora de uma classe que per- ficou ainda mais feroz: para os con-
manece silenciada até os dias atuais. A servadores, os favelados tornavam-se
sua narrativa de testemunho insere um um caso de polícia; para a esquerda
novo discurso ao meio literário, em uma eles se constituíam em massa muda e
época em que o preconceito e a censura emblemática, carente de doutrinação
estavam em evidência devido às tensões ideológica capaz de atuar de forma de-
decorrentes da Ditadura Militar. A sua cisiva na ordem capitalista.
fala–o grito da outra margem da socieda-
de–foi confrontada, discriminada e igno- Como explicita Levine, o livro Quarto de
rada por muitos; porém, também foi ou- despejo refletia a imagem das injustiças
vida por pessoas de várias classes, como sociais cometidas no Brasil, no governo
afirma Robert Levine (1994: p. 49): de JK.12 Além disso, provocou uma rup-
tura no fazer literário brasileiro, na per-
Para os estrangeiros, mais do que cepção social e acadêmica. A resistência
qualquer coisa, o Quarto e os demais de um eu feminino reage contra os seto-
livros de Carolina desmascararam o res dominantes e sagra-se em uma luta
mito da democracia racial brasileira e interna, onde a fome e o estigma de ser
que até então não havia sido mexido. favelada revelam-se cruéis. A Cinderela
Foi, paradoxalmente, uma mulher ne- negra adentrou em distintas camadas
gra, da favela, que expôs as contradi- sociais contando a história de sua vida,
ções entre a percepção cultural da eli- e mexeu com as bases da tradição lite-
te e da realidade dos pobres. Mas aos rária, rompendo-a, conforme expressa
olhos brasileiros era difícil reconhecer Lejeune (2008: p.113):
essas evidências através de Carolina,
até porque ela própria reforçava em
certas passagens o preconceito racial.
A crítica discutiu a obra de Carolina
em termos bem claros e evidentes 12 O Governo Juscelino Kubitschek é o período de
para qualquer análise de discurso. Ela governo vivido entre 1956 e 1961. Sua eleição foi
marcada pelo plano de ação “cinquenta anos em
foi mostrada nos anos JK como sendo cinco”, já que o ideal era trazer ao Brasil o des-
uma favelada preta, mulher pobre e de envolvimento econômico e social em um período
cor, vítima da miséria. Os acadêmicos curto de tempo.

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Escrever e publicar a narrativa da um vestígio: quase sempre uma


própria vida foi por muito tempo, escrita manuscrita, pela própria
e ainda continua sendo, em grande pessoa, com tudo o que a grafia
medida, um privilégio reservado aos tem de individualizante. [...] Ele
membros das classes dominantes. O pressupõe a intenção de balizar o
“silencio” das outras classes parece tempo através de uma sequência de
totalmente natural: a autobiografia referências. O vestígio único terá
não faz parte da cultura dos pobres. uma função diferente: não a de
acompanhar o fluxo do tempo, mas
Carolina desejou ser dona da própria a de fixá-lo em um momento-origem
história e o foi. Seu diário, assim como (Lejeune, 2008: p. 260).
toda obra autobiográfica, revela e evi-
dencia uma multiplicidade situacional Para Carolina, o seu “estranho” diário é
do pacto autobiográfico, proposto pelo uma criação artística e ao mesmo tempo
autor francês Philippe Lejeune. São uma imersão em sua própria vida, não
aspectos plurais de autor/narrador/ podendo haver dissociações entre am-
personagem e suas relações com a es- bas. Elas estão ligadas através de um fio
crita. Texto e extratexto encontram-se, condutor que é a escrita. Seu produto
imagens do real e identidades cruzam-se é fruto da reflexão e expressa sua visão
e a obra é preenchida de uma afirmação por meio da representação da realidade.
inquestionável, de um “eu” que honra A inexistência de distanciamento entre
a sua assinatura e o seu discurso. A a mulher Carolina e a escritora permite
produção de Carolina carrega consigo que sua voz não termine ao iniciar o seu
essa responsabilidade (pacto) e ecoa por trabalho criativo. Germana Sousa (2012:
várias gerações que se identificam com p. 147) afirma que:
seus pensamentos.
O estudo da obra de Carolina exige
A escrita pluralista de Carolina que se leve em conta os determi-
nantes biográficos que estão em sua
Em sua obra Quarto de despejo (2015), origem. Tampouco é possível pautar
Carolina Maria de Jesus apresenta uma o estudo apenas por eles, um risco
mescla de subgêneros, representações sempre presente no horizonte da crí-
biográficas e autobiográficas que com- tica. É preciso, pois, não negligenciar
põem um gênero principal, que é o nenhum dos dois lados da questão.
próprio diário. Lejeune entende esse O diário de Carolina abre o espaço
processo como sendo para o crítico estudar e compreender

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a sua obra por meio da autorreflexão ta consegue espaço. A sua história não
que a autora faz dentro dele. Sendo seria contada por outro, mas por ela
também uma criação estética, o coti- mesma. Não seria o morador da casa de
diano da autora, sua condição social, alvenaria o detentor da palavra e sim a
é fator determinante da construção própria dona do barracão.
literária. Daí a autora referir-se ao
texto como sendo estranho. Do discurso de Carolina depreende-se
que ela tinha um senso político aguçado,
Vê-se que, para Carolina, além de sua corroborado por meio do título do livro
importância no âmbito pessoal, seu di- que reforça a ideia de que “a favela é o
ário adquire outra proporção, ele a pro- quarto de despejo. E as autoridades igno-
jeta no mercado literário e faz com que ram que tem o quarto de despejo” (Jesus,
seus escritos íntimos se revelem como 2015: p. 107). Metaforicamente, a autora
testemunhos de uma realidade desco- sugere que, assim como na casa, o governo
nhecida para a sociedade brasileira e também tem um lugar onde “depositar” o
mundial: a favela e seus habitantes. que não se quer ou que se despreza; nesse
Dessa maneira, por mais críticas que caso, o espaço é a favela.
esse gênero possa sofrer, sua importância
como ponto observatório é riquíssimo. O texto, narrado em primeira pessoa,
Carolina teve como espelho grandes no- possibilita a inserção dos subgêneros
mes do cânone literário, personalidades supracitados anteriormente ao gênero
como: Sartre, Virginia Woolf, Florbela principal. O narrador e o autor for-
Espanca e Barthes. Todos eles responsá- mam um ser único, constatação apre-
veis pelo resgate “de uma história social sentada também por Germana Sousa
que foi expurgada dos manuais da histó- (2012: p. 176):
ria oficial e por essa razão podem fazer
girar a lente do observador da história” A escolha do tipo de focalização traz
(Sousa, 2012: p. 172). implicações determinantes para a lei-
tura da obra, pois define o nível de
E assim Carolina o fez, deu voz aos es- implicação (compromisso/descom-
quecidos pela sociedade, aos margina- promisso, consonância/dissonân-
lizados e seus silêncios. A experiência cia, piedade/ironia) que o narrador
que a autora entregava ao público era tem com relação àquilo que narra, o
algo novo, em um contexto literário mundo diegético. Na verdade, a fo-
controlado pela classe dominante, al- calização trata não apenas da visão
guém que advém de uma classe distin- do personagem, mas das relações en-

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tre o que diz o narrador e o que sabe que sua enunciação (do autor-narra-
o personagem. dor) revela. Porém, ao mesmo tem-
po, guiado pelo relato, reconstrói o
No entanto, Quarto de despejo requer modelo biográfico que lhe é sugeri-
uma atenção especial do leitor, pois, do (Lejeune, 1980: p.61). [Tradução
ainda que o livro seja autêntico e per- livre nossa] 13
tencente ao gênero não-ficcional, ele foi
editado e compilado por outra pessoa, Devido a esse terreno tão dúbio, os es-
o “descobridor” de Carolina, o jornalis- tudos sobre o gênero autobiográfico re-
ta Audálio Dantas, que realiza o prefá- velam uma problemática em relação à
cio da obra e explica como ela veio à aceitação desse gênero por parte da aca-
luz. Essa constatação não será levada demia. A ambiguidade de seu produto
em consideração neste trabalho, já que faz com que grande parte das críticas lite-
a escrita contida no livro expressa o co- rárias e historiográficas rechace esse esti-
tidiano real somente da autora, não ha- lo. O flerte com a realidade e a ficção si-
vendo relação direta com o seu editor. multaneamente dá margem à imprecisão
Reitera-se aqui que Carolina é a dona quanto a sua classificação, pois não há
das palavras que ela produz. aprofundamento em nenhum dos polos.

Essa autoria evidenciada na primeira Em seu livro Je est un autre, Lejeune in-
pessoa permite que se tenha mais segu- daga sobre a questão do hibridismo au-
rança na relação igualitária entre ficção toral da autobiografia e se dá conta de
e realidade. Esse composto binário é que “a questão ‘quem fala?’ não remete
sustentável pela experiência do autor e apenas aos meandros da personalidade,
do autoconhecimento, fato que o afasta mas também aos ‘autores’ múltiplos de
da ficção ou da representação. Já em re- um mesmo ‘eu’, ao mesmo tempo em
lação ao leitor da autobiografia, Lejeu- que remete ao jogo social pelo qual
ne interpreta que ele os ‘sujeitos’ se reproduzem” (Lejeune,

vive sua relação com o texto de dois


modos simultâneos: sensível a voz 13 No original: “Celui-ci vit sa relation au texte sur
deux plans à la fois: sensible à la voix narrative, il
narrativa (eu), tem a impressão de a l’impression d’être en situation de communica-
estar em situação de comunicação tion avec l’auteur-narrateur et l’integre à l ‘image
qu’il se fait de lui tout ce qui révèle son énoncia-
com o autor-narrador, integrando tion. Main en même temps, guidé par le récit, il
à imagem que dele faz tudo aquilo reconstruit le modèle biographique qu’on lui sug-
gère” (Lejeune, 1980:p.61).

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1980: p. 8) [Tradução livre nossa)14. soal, não representando uma verdade


Desse modo, no diário de Carolina te- absoluta. Para Lejeune (2008: p. 37):
mos essa soma de “eus”: o eu autor, o
eu narrador, o eu personagem e o eu Na autobiografia, é indispensável
real, confirmando, mais uma vez, que que o pacto referencial seja firmado
o gênero diário pertence ao gênero au- e que ele seja cumprido: mas não é
tobiografia. Essa ligação textual e extra- necessário que o resultado seja da
textual é aferida quando o leitor toma ordem da estrita semelhança. O pac-
consciência da história de vida de Caro- to referencial pode ser, segundo os
lina, aceitando-a como verídica. O con- critérios do leitor, mal cumprido,
trato do pacto autobiográfico, segundo sem que o valor referencial do texto
Germana Sousa (2012: p. 159), é “con- desapareça (ao contrário) o que não
cretizado pelo título que evidencia, pela é o caso nas narrativas históricas ou
referência ao gênero (diário, autobio- jornalísticas (grifos do autor).
grafia, memórias, confissões) que o tex-
to tem em relação com a vida do autor”. Interpretando o exposto, ainda que certas
afirmações de Carolina possam não ser to-
A partir do subtítulo do livro, Diário talmente fiéis à realidade, elas são justifica-
de uma favelada, várias informações são das pelo que o gênero diário implica. Ger-
passadas aos leitores como: tratar-se de mana Sousa (2012: p. 165) sustenta que
uma favelada e o gênero da obra, diário; “o diário é um gênero íntimo que, contra-
revelações que se confirmam quando o riamente à autobiografia, não fixa o ‘eu’
leitor as relaciona ao histórico de vida e não busca a compreensão da totalidade
da autora. Porém, existe outro pacto de si mesmo, devido à sua temporalidade,
que é passível de falsidade: o pacto refe- que é a do fragmento e do presente”. Ape-
rencial. Como saber se o que foi escrito sar de ser um gênero sólido, a fragmenta-
por Carolina é verdade? Por mais que ção de pensamentos e o “congelamento”
a autora utilize nomes e endereços que dos momentos não abrangem a totalidade
atestam veracidade aos fatos, certas opi- do “eu”, da verdade ou das mudanças de
niões manifestadas são de caráter pes- pensamentos ocorridas após a escrita. No
diário, tudo é reflexo do momento.
14 No original: “La question ‘Qui parle?’ ne renvoie
plus seulement aux méandres de la personnalité, Após essas observações, compreende-
mais aux ‘auteurs’ multiples d’un même ‘jê’, en
même temps qu’au jeu social par lequel les ‘sujets’
mos que, nesse emaranhado de gêneros
se reproduisent” (Lejeune, 1980: p. 8). que se configura o Quarto de despejo, o

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pacto referencial toma uma dimensão um espaço próprio, se quiser escrever fic-
ínfima e não compromete o resultado ção” (Woolf, 2014: p.12), uma indepen-
do texto, pois tudo o que é descrito é dência de que poucas mulheres gozavam.
justificável pelo hibridismo de suas ca-
tegorias. O pacto autobiográfico per- Levando em conta tal afirmativa, ao ana-
manece intacto, dando legitimidade ao lisar a obra de Carolina, sejam aspectos
diário de Carolina. biográficos ou literários, nota-se uma in-
dependência em relação à subordinação
Carolina e os enfrentamentos masculina e suas implicações. A escritora
do “eu” possui um teto todo dela, o barracão, e é
nesse ambiente, hostil e vicioso, que sua
Após a constatação do hibridismo de literatura é construída:
gêneros e a confirmação do pacto au-
tobiográfico proposto por Phillipe Le- Eu deixei o leito as 3 da manhã por-
jeune, propomos trilhar os caminhos que quando a gente perde o sono
enveredados por Carolina Maria de começa a pensar nas miserias que
Jesus e investigar os enfrentamentos, o nos rodeia (...) Deixei o leito para
cotidiano e sua atuação como escritora. escrever. Enquanto escrevo vou pen-
Nesse sentido, trataremos de três temas sando que resido num castelo cor de
que permeiam a sua obra: o machismo, ouro que reluz na luz do sol. Que
a fome e o racismo. as janelas são de prata e as luzes de
brilhantes. Que a minha vista circula
Os estudos contemporâneos a respeito no jardim e eu contemplo as flores
das narrativas de autoria feminina reve- de todas as qualidades. (...) É preciso
lam uma marginalização dessa escrita e criar este ambiente de fantasia, para
um ocultamento dessas manifestações esquecer que estou na favela (Jesus,
literárias. A sociedade assimilou a ide- 2015: p. 58)15.
ologia machista e patriarcal que afirma
que as mulheres não escreviam por falta A situação marginal de Carolina conferiu
de talento, uma taxação misógina, e que ao seu discurso um caráter de denúncia,
foi amplamente discutida pela escritora
inglesa Virginia Woolf, em um dos seus 15 A obra de Carolina Maria de Jesus apresenta uma
mais icônicos ensaios chamado Um teto série de imprecisões ortográficas, fruto de sua pou-
ca escolaridade, que foi mantida porque esse é o
todo seu, publicado em 1929. Woolf afir- seu registro. Também se observa algumas omissões
mou, com veemência, que “uma mulher em forma de reticências, fruto do tratamento que
precisa ter dinheiro e um teto todo seu, Audálio Dantas deu ao original, para evitar repeti-
ções, tão comuns à linguagem oral.

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revelando não somente a sua expressivi- não comia. Acendeu o fogo e assou a
dade literária, como também um viés po- carne. A fome era tanta que ele não
lítico e social de uma classe periférica. A poude deixar assar a carne. Esquen-
sua escrita, de tom realista, rompeu com tou-a e comeu. Para não presenciar
a tradição literária e chamou a atenção aquele quadro, saí pensando: faz
de um público que se encontrava alheio de conta que eu não presenciei esta
a essa realidade, feito impensável de ser cena. Isto não pode ser real num paiz
alcançado pelo discurso oral, comum nas fértil igual ao meu. Revoltei contra
comunidades pobres onde poucos são os o tal Serviço Social que diz ter sido
que leem ou escrevem. criado para reajustar os desajustados,
mas não toma conhecimento da exis-
As adversidades enfrentadas por Caroli- tencia infausta dos marginais. Vendi
na eram muitas, mas a que ela mais en- os ferros no Zinho e voltei para o
fatizou em seus escritos refere-se àque- quintal de São Paulo, a favela.
la provocada pela fome. Em diversos
momentos, a autora narra as batalhas No outro dia encontraram o pretin-
diárias para conseguir comida para si ho morto. [...] Não trazia documen-
e para os seus filhos. A fome, em um tos. Foi sepultado como um Zé qual-
lugar de extrema pobreza, surge como quer. Ninguém procurou saber seu
a pior inimiga, fato que lhe causava nome. Marginal não tem nome.
muita revolta, principalmente porque … De quatro em quatro anos mu-
ela tinha consciência da injustiça que da-se os políticos e não soluciona a
reinava no Brasil de sua época. Em um fome, que tem sua matriz nas favelas
de seus relatos mais fortes, é possível co- […] (Jesus, 2015: p. 40).
nhecer a dolorosa vida de Carolina e de
outros favelados: São inúmeras as passagens de Quarto de
Despejo que escancaram a realidade da
[...] Os lixeiros haviam jogado carne desigualdade social daquele Brasil – e
no lixo. E ele escolhia uns pedaços. por que não o de hoje –, descrições que
Disse-me: ganharam repercussão imediata entre os
­­­Leva, Carolina. Dá para comer. brasileiros, haja vista o sucesso do livro.
Deu-me uns pedaços. Para não ma- Em seguida, com a publicação da obra
guá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a em vários países europeus, uma parte
não comer aquela carne. Para comer ignorada do país foi revelada e a origina-
os pães duros ruídos pelos ratos. Ele lidade da obra de Carolina reconhecida.
disse-me que não. Que há dois dias

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Esse fato histórico, tão importante para […] Uma senhora que fez compra
a literatura brasileira, pouco é lembrado gastou 43 cruzeiros. E o senhor
por nossa sociedade. Eduardo disse:
- Nos gastos quase que vocês empa-
O preconceito que permeia a vida de taram.
Carolina também invade a sua obra, Eu disse:
caracterizado em um dos temas mais - Ela é branca. Tem direito de gastar
recorrentes em seu livro, o racismo. mais.
Quarto de Despejo retrata as feridas desse Ela disse-me:
assunto ainda tão presente no cotidia- - A cor não influi.
no social: “Enquanto eu estava na rua o
Alexandre maltratou a mãe do soldado Então começamos a falar sobre o
Edison. Quando eu cheguei ele come- preconceito. Ela disse-me que nos
çou insultar-me: ― Negra suja. Ordiná- Estados Unidos eles não querem ne-
ria. Vagabunda. Lixeira” (Jesus, 2015: p. gros na escola.
98), ofensas que expõem o forte precon- Fico pensando: os norte-americanos
ceito racial em nosso país. são considerados os mais civilisados
do mundo e ainda não convenceram
O livro apresenta um diagnóstico preci- que preterir o preto é o mesmo que
so da dominação racial que impera em preterir o sol. O homem não pode
nossa sociedade. Vale salientar que Ca- lutar com os produtos da Natureza.
rolina não teve uma educação de quali- Deus criou todas as raças na mesma
dade, assim como tantos outros de sua epoca. Se criasse os negros depois
mesma esfera. Desse modo, nota-se a as- dos brancos, aí os brancos podia re-
similação de um discurso social ampla- voltar-se (Jesus, 2015: p. 122).
mente propagado, sentido nas inúme-
ras vezes em que Carolina é preconcei- Essa passagem ilustra bem a contradição
tuosa consigo mesma, quando afirma a que nos referimos. Carolina repete o
que não gostava de preto. Segundo Joel mesmo discurso da dominação branca
Rufino dos Santos (2009: p. 133) “o do qual é vítima quando afirma que
preconceito racial existe entre os pobres eles podem gastar mais, simplesmente
e pretos porque o racismo é sistêmico”. pelo fato de serem brancos. Porém,
Em um diálogo com uma senhora que diante da resposta de sua interlocutora,
comprava em um mercado, podemos Carolina reflete acerca da questão da
observar esse discurso contraditório: desigualdade social e parece perceber
sua incoerência.

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A obra de Carolina ganha importância Em um segundo momento, Carolina


ao retratar a condição subalterna dos retrata o óbvio em uma sociedade onde
negros no Brasil, desde os tempos co- impera a desigualdade social. Essa me-
loniais. O desenvolvimento do país não mória foi registrada em 13 de maio16, um
apagou seu passado, que segue contami- dia especial para ela: “…Nas prisões os
nando as novas gerações que repetem as negros eram os bodes expiatórios. Mas
mesmas práticas, nas estrelinhas de seus os brancos agora são mais cultos. E não
discursos e ações cotidianas, dificilmen- nos trata com despreso. Que Deus ilumi-
te identificadas e punidas. ne os brancos para que os pretos sejam
feliz” (Jesus, 2015: p. 30). O agradeci-
Destacamos, assim, alguns momentos do mento dispensado aos brancos mostra a
diário que comprovam o delicado limiar hierarquização e a dependência que os
das questões raciais vividas por Carolina. negros mantêm em relação a aqueles. Pe-
Analisando-os, percebemos que a imposi- dir a bênção em nome alheio para ser
ção social opera sua prática a partir da cor tratado de maneira digna demonstra
do indivíduo: submissão e humilhação em relação ao
outro. Carolina, dessa forma, autodeno-
[…] Fui na casa de uma preta levar mina-se subordinada e vítima da desi-
umas latas que ela havia pedido. gualdade social.
Latas grandes para plantar flores. Fi-
quei conhecendo uma pretinha mui- No fragmento seguinte, depreende-
to limpinha que falava muito bem. -se, por meio da conotação da cor
Disse ser costureira, mas que não negra, certo pessimismo, uma acomo-
gostava da profissão. E que admira- dação em relação à posição do negro
va-me. Catar papel e cantar (Jesus, na sociedade:
2015: p. 25).
Antigamente era a macarronada o
Nesse fragmento, vemos que o que cha- prato mais caro. Agora é o arroz e
ma a atenção de Carolina é o fato de feijão que suplanta a macarronada.
reconhecer entre os moradores da fave- São os novos ricos. Passou para o
la uma mulher negra que foge à regra: lado dos fidalgos. Até vocês, feijão
é limpinha e fala bem, características e arroz, nos abandona! Vocês que
pouco comuns à sua raça; causa estra- eram os amigos dos marginais, dos
nheza pela exceção. favelados, dos indigentes. Vejam só.

16 Dia simbólico em que se comemora a abolição


dos escravos no Brasil.

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Até o feijão nos esqueceu. Não está A análise de temas tão significativos re-
ao alcance dos infelizes que estão quer um aprofundamento bem maior
no quarto de despejo. Quem não do que o proposto neste artigo acadê-
nos despresou foi o fubá. Mas as mico. Sabe-se que são temas complexos,
crianças não gostam de fubá. Quan- que demandam um espaço bem maior
do puis a comida o João Sorriu. Co- de conteúdo e pesquisa. Assim, espera-
meram e não aludiram a cor negra -se que esse breve olhar acerca desses
do feijão. Porque negra é a nossa três tópicos norteadores da obra de Ca-
vida. Negro é tudo que nos rodeia rolina sirva como um ponto de partida
(Jesus, 2015: p. 43). para um olhar mais crítico e intrínseco
de um leitor/pesquisador interessado
O humor presente no texto não es- em questões tão pertinentes para o en-
conde a crítica da autora em relação tendimento da construção da imagem
ao empobrecimento da população e a de um Brasil que é refletido em obras
luta diária pela sobrevivência. A palavra literárias como essa.
“negro” alude a tudo o que é negativo,
sujo, perigoso. Para finalizar, Quarto de despejo refor-
ça o pressuposto de que a Literatura é
Já na próxima citação, Carolina expressa algo atemporal. Não pode e não deve
um juízo de valor errôneo, como se os ser vista apenas como mero objeto es-
atributos fossem meramente categoriza- tético, sem levar em conta o contexto
dos por meio da raça: “A Florenciana é histórico e os valores ideológicos so-
preta. Mas é tão diferente dos pretos por cioculturais presentes em uma esfera
ser ambiciosa. Tudo que ela faz é visando externa, mas que possui livre acesso ao
lucro. Creio que se ela fosse dona de um universo literário.
matadouro havia de comer os chifres e os
cascos dos bois” (Jesus, 2015: p. 75). Se- Carolina Maria de Jesus criou um po-
guindo seu raciocínio, um negro nunca deroso instrumento de transformação
poderia ser ambicioso, pois não faz parte social, rompeu barreiras civis e literárias
de sua natureza. Uma frase que remete e deu ao mundo uma lição de sobrevi-
ao processo de colonização que impede vência, expondo uma visão interna da
que um negro ascenda socialmente, dis- favela e de como era sua vida e lingua-
curso assimilado e sempre repetido por gem. Seu feito, mesmo estando fora dos
Carolina em várias partes de sua obra. padrões literários do cânone, tem for-
ça e representatividade, ao caracterizar

60 O diário de Carolina Maria de Jesus. Uma brasileira marginalizada


Regina Simon da Silva
Enero-junio / 2017
Temas de nuestra américa Vol.33 No 61
ISSN 0259-2339

uma nação que esconde seus males à Referencias bibliográficas


margem, em um quarto de despejo.

A obra de Carolina transita livremente, Jesus, C. M. (2015): Quarto de despejo:


desde a sua composição sem amarras, diário de uma favelada. São Pau-
por onde passeia entre os mais diver- lo: Ática.
sos gêneros literários (autobiografia, Lejeune, P. (1980). Je est un autre: L’au-
diário, memórias) ou pelo tempo, onde tobiographie, de la littérature
nos deparamos com temas de extrema aux médias. Paris: Seuil.
contemporaneidade, vistos e debatidos Lejeune, P. (2008): O pacto autobiográfi-
como: os feminismos, as desigualdades co: de Rousseau à Internet. Belo
sociais e a questão dos preconceitos. Horizonte: UFMG.
Entrar em contato com essa narrado- Levine, R. (1994):Uma história para
ra-testemunha é confrontar experiên- Carolina. En: Meiry, J. C. S. B.;
cias sociais e literárias. Este artigo serve Levine, R. M. (Orgs.). Cinderela
como meio sensorial, no que tange ao Negra: a saga de Carolina Maria
vivenciar o outro. Que esta produção de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ.
sirva como resgate aos escritos de Caro- Santos, J. R. (2009). Carolina Maria de
lina Maria de Jesus e mostre que a Lite- Jesus: uma escritora improvável.
ratura não pode ser vista só como um Rio de Janeiro: Garamond.
mecanismo puramente acadêmico, mas Sousa, G. (2012): Carolina Maria de Jes-
como uma arma capaz de transformar o us: o estranho diário da escritora
homem, elevando-o ao grau máximo de vira lata. Vinhedo: Horizonte.
sua serventia, e de melhorar a si mesmo.

O diário de Carolina Maria de Jesus. Uma brasileira marginalizada 61


Regina Simon da Silva

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