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ISBN 978-85-9489-078-8
1. Educação popular 2. Pedagogia freireana 3. Registro
de prática 4. Extensão universitária I. Título
CDU 371
NLM LC 1036
APRESENTAÇÃO.........................................................10
Oscar Jara1
1
Educador Popular y Sociólogo, peruano-costarriqueño. Director del Centro de Estudios
y Publicaciones Alforja de Costa Rica (CEP Alforja – www.cepalforja.org) y Presidente
del Consejo de Educación Popular de América Latina y el Caribe (CEAAL – www.ceaal.
org).
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valioso que la enseñanza y la investigación; por el contrario, debería ser el
núcleo motor y dinamizador de estas.
Los testimonios ricos y maravillosos de la experiencia de la pro-
fesora Gema a lo largo de casi cinco décadas y sus reflexiones críticas al
respecto de ellos no son solo un relato de toda una trayectoria de vida, sino
que son una afirmación de que otra universidad es posible; una universidad
impulsora de proyectos que, a su vez, generan muchas nuevas posibilidades,
en la medida en que dialogan con los saberes de las personas –sean estas
de las comunidades de la Amazonía, o sean de la periferia de una gran
ciudad, como Porto Alegre. El diálogo “freiriano” nos hace ser personas,
nos constituye como sujetos críticos y conscientes y permite que profeso-
ras y profesores de universidades puedan tener “maestros generalmente
analfabetos” de esas comunidades, como ella dice. Este diálogo crítico,
parafraseando a Freire en Pedagogía de la Autonomía, posibilita que quien
enseña aprenda al enseñar, y quien aprende enseñe al aprender. Así, nos
convertimos en aprendices de la vida, de la historia, de la cultura, gracias
al encuentro con la gente común de nuestros pueblos que convierte esos
lugares de encuentro en estados del alma, posibilitando, incluso, como la
profesora nos dice, “descubrir la Amazonía en un barrio de la periferia de
Porto Alegre”. Es decir, nos proporciona aprendizajes sin límites, mientras
se borran las fronteras entre la enseñanza, la investigación y la extensión.
El texto que nos regala la profesora Gema nos permite también
compartir sus descubrimientos y sus asombros vividos a lo largo de cinco
décadas y que se funden en una sola experiencia vital. Como ella dice: “la
extensión siempre sorprende”, y es porque en estos procesos se avanza por
caminos desconocidos y llenos de posibilidades nuevas por descubrir, si
nos dejamos sorprender y si podemos parar un momento para ref lexio-
nar críticamente y rescatar sus aprendizajes. Es decir: necesitamos tener
sensibilidad y humildad para estar abiertos a lo que no conocemos y tener
capacidad ref lexiva para analizar e interpretar lo que experimentamos.
Así, este documento también nos permite atravesar las fronteras entre las
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ideas de la propia profesora y las voces de las personas de quienes aprendió,
posibilitándonos escucharlas directamente como si hubiéramos estado allí,
pues también nos comparte sus frases, sus testimonios, sus costumbres,
al igual que la geografía de los lugares, sus plantas, sus animales, sus
sonidos y sus silencios, en una narración que combina también la prosa y
la poesía de la vida.
Nos dice la profesora Gema:
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Apresentação
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as duas pistas e a forma que se andou por uma e por outra, suas luzes e suas
sombras. De um lado, à esquerda, está a extensão vivida e compartilhada,
o lá fora, a comunidade, a realidade brasileira de periferia, a vida espraiada
na fronteira. Do outro, à direita, a universidade desenhada, intelectual e
teórica, construída, alternando pistas para oportunizar melhores apren-
dizados aos acadêmicos, vivenciando a teoria na prática social no gigante
Brasil, do Amazonas aos Pampas Gaúchos.
Após vários ensaios escritos ao longo de 2015, a viagem deste
livro teve início em 2016, com a elaboração e aprovação do projeto intitu-
lado Extensão de Fronteira – código 30930, na PROREXT – destinado a
buscar dados de vivências de extensão desde a década de 60. No caminho,
encontrei lembranças, vivências e escritos significativos que se tornaram
ponto de partida para este documentário. A volta no tempo possibilitou um
reencontro com personagens, lugares, fatos, percepções sobre a realidade
política e social brasileira e sobre a extensão universitária; tudo captu-
rado na memória, em literatura, em álbuns, em agendas; enfim, na vida
vivida. Ao escrever as minhas memórias sobre as experiências vividas, fui
percebendo o efeito transformador que as vivências tiveram em mim, no
ambiente onde elas se processaram, e nos personagens que encontrei no
caminho. Alguns ex-estudantes contam sobre o aprendizado adquirido
naquele tempo de estudante e sobre como ele repercutiu positivamente em
sua atual prática profissional.
Eu nunca tive dúvida sobre a visceral importância da prática
extensionista, e agora compreendo o valor de seu registro. A vivência de
extensão transcende os conceitos e, ao escrevê-la, se fortalece, pois traz
para o presente o ter estado com, ter construído com, ter convivido com, ter
compartilhado com, ter aprendido com... Enfim, está ali presente novamente
no tempo passado, nas emoções sentidas, nas conexões feitas, na semente
lançada. E agora, na seara colhida e armazenada neste livro.
Alguns mestres do conhecimento e da vida contribuíram na
construção deste livro, como: Paulo Freire, fazendo-se presente no convívio
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e na prática pedagógica desde a década de 70, quando tive o privilégio de
conhecê-lo durante meu mestrado; Edgar Morin, a quem conheci em 2004,
no início de meu doutorado, e quem me auxiliou na compreensão da com-
plexidade prática do viver comum em uma universidade acolhedora; e Oscar
Jara, que chegou quase na prorrogação da vida extensionista acadêmica,
mas conseguiu me convencer sobre a importância da sistematização e da
escrita dessa experiência. Ao seu ensinamento se remete essa escrita em
que relato: a extensão universitária, na primeira parte do livro; os relatos de
vivências, na segunda; e as marcas lendárias que essas vivências deixaram,
na terceira. No entanto, como este livro não é roteiro de filme, mas um relato
de vivências, certamente o leitor se defrontará, em algumas situações, com
a mistura dos três momentos. Sabem por quê? Porque, na realidade, tudo
andou junto, criando uma vivência, e o viver aconteceu. Aconteceu e ponto. E
escrever a vivência na complexidade de fronteiras é uma experiência única.
Parece-me que este livro ficou assim: com gosto de fruto maduro
oriundo de boa semente. Meus votos é que esta obra possa despertar no
leitor o desejo de viver sua própria experiência e elaborar seu aprendizado
com base no que a universidade pode oportunizar abrindo caminhos.
No decorrer da leitura, o livro pode prosear com o leitor e evocar
suas próprias lembranças, vivências e ideias. Pensando nisso, há, no fim do
livro, um espaço em branco para que o leitor possa continuar sua história.
Boa leitura.
Parte Um
Extensão
Universitária
Universidade
Sabe-se que a educação nasce com as civilizações, cria sistemas e
promove iniciativas. A universidade – palavra que vem do latim universitas/
universitátis, que significava universalidade/totalidade/companhia/associação
– surgiu na Idade Média, espalhou-se por toda a Europa e, posteriormente,
por todo o mundo. Desde tempos remotos, a instituição cultivou e trans-
mitiu o saber humano acumulado, desempenhando um importante papel
social (WANDERLEY, 2003). Mas qual é esse papel social tão falado, mas
que poucos realmente conhecem e vivem?
Até finais da década de 1960, a universidade pública configurava-se
como uma instituição de ensino. A sala de aula e a relação professor-aluno
constituíam o ambiente por excelência dessa atividade acadêmica. Entretanto,
na segunda metade da década de 1960, com a Reforma Universitária – Lei
n.° 5.540 (BRASIL, 1968a) – evidencia-se, aos poucos, a inversão dessa
tendência tradicional, convertendo-se a pesquisa em sua atividade acadê-
mica mais valorizada. O corpo docente devia exercer atividades inerentes
ao sistema, articulando, de maneira indissociável, o ensino à pesquisa, e
esta à pós-graduação. Atualmente, os cursos de graduação têm como base
o ensino, a pesquisa e a extensão.
A universidade não está acima nem abaixo da sociedade, mas
sim integrada a ela, incorporando suas deficiências e trazendo uma pers-
pectiva maior de mundo para quem tem a oportunidade de usufruir desse
universo. Devolver ao mundo o conhecimento que se aprende em uma
instituição torna-se um dever à medida que a Universidade vai adicionando
as diferentes características e vivências de estudantes e de professores.
Os estudantes se transformam durante o trajeto acadêmico e transformam
também o ambiente no qual atuarão. A palavra estudante vem do latim
studiosus, que designava uma pessoa dedicada, que gosta de algo, que é
zelosa. O estudante é, por definição, aquele que ama o que faz, que ama
aprender. O papel social da universidade está impresso no estudante, na
sua trajetória e nas suas experiências.
Quando trazemos o acadêmico para o ambiente de extensão,
trazemos também responsabilidade com a nação e uma nova visão de
mundo. Trazemos a consciência de empregar, nas comunidades, os conhe-
cimentos adquiridos. A formação profissional não se compõe somente por
conhecimento técnico-científico adquirido na sala de aula e no laboratório.
Compete à universidade proporcionar uma formação interdisciplinar. A
Extensão Universitária é um meio que a academia tem para oportunizar a
seus estudantes as experiências que ajudarão em sua formação subjetiva.
De acordo com Antoine Lavoisier, “na natureza nada se cria, nada se perde,
tudo se transforma”. Trata-se de um processo natural, uma reciprocidade:
aprende-se e ensina-se. Ambos ganham e nada do que se aprende na Uni-
versidade é em vão.
Como obstetra, posso dizer que é possível comparar a universidade
a um útero: quando o aluno chega, traz sua essência consigo como se fosse
um espermatozoide. No útero, ele se encontra com uma ampla base acadê-
mica para sua formação, como se esta fosse o óvulo. Sua permanência na
universidade – a fixação do óvulo fecundado – individualiza-o, fazendo-o
crescer e se desenvolver junto com a placenta. Ao término desta gestação,
prepara-se para sair, assumindo sua autonomia. Com a formatura, o estu-
dante leva consigo sua essência original mais a transformação no contato
fértil que o profissionalizou.
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Projeto Rondon
Sem moldura, o nome soa como música, sonho, idealismo, solida-
riedade, trabalho, descoberta, desbravamento, encontro, vida, muita vida,
extensão estendida, magia, lembranças boas.
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Rio de Janeiro a bordo de uma aeronave C-47 cedida pelo antigo Ministério
do Interior. Essa foi uma iniciativa do governo coordenada pelo Ministério
da Defesa e em colaboração com a Secretaria de Educação Superior do
Ministério da Educação (SESu-MEC). A equipe permaneceu na área por 28
dias realizando trabalhos de levantamento, pesquisa e assistência. Foi nessa
viagem que surgiu o lema “integrar para não entregar”, dado que os militares
tinham medo de que aquelas áreas fossem parar em mãos estrangeiras;
por isso era preciso que os estudantes dessem atenção para aquela região
do Brasil. A operação foi tão marcante e significativa que foi essencial dar
continuidade ao projeto. Desse modo, a equipe viu a necessidade de dar-lhe
um nome e o intitulou de Projeto Rondon, em homenagem ao Marechal
Cândido Rondon (1865-1958), que foi um militar e sertanista brasileiro que,
abrindo caminho para instalar a rede telegráfica, percebeu a realidade de
abandono e miséria dos brasileiros da região sertaneja.
Com o sucesso da Operação Zero, em janeiro de 1968, foi realizada
a operação PR/1. O número de estudantes inscritos para essa operação foi
tão grande que foram abertas mais vagas: 648 universitários foram ver de
perto a realidade amazônica. A partir dessa segunda viagem, o Decreto
n.° 62.927 (BRASIL, 1968b), de 28 de junho de 1968, deu ao Projeto Ron-
don caráter de permanente e criou um grupo de trabalho para tratar deste
assunto. O grupo era composto pelos seguintes órgãos: Ministério do Interior,
Ministério da Educação e Cultura, Ministério da Marinha, Ministério do
Exército, Ministério da Aeronáutica, Ministério dos Transportes, Ministério
da Agricultura, Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, Minis-
tério da Saúde, Movimento Universitário de Desenvolvimento Econômico
e Social (MUDES) e Conselho de Reitores, representando as entidades de
ensino superior. Também foram criadas coordenações regionais. No Rio
Grande do Sul, a coordenação dividiu-se em duas partes: a Universidade
do Rio Grande do Sul (antiga denominação para a UFRGS) e a Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Em 1970, o Projeto Rondon foi organizado como órgão autônomo
de administração direta e a sua direção nacional viu a necessidade implantar
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ações permanentes, então surgiu a ideia dos Campi Avançados. A ideia
principal dos campi era integrar a comunidade local e, posteriormente,
ajudar no desenvolvimento comunitário.
Em 1975, o projeto foi transformado em Fundação Projeto Ron-
don. No auge do Projeto, havia 23 Campi Avançados que contavam com
programas permanentes e revezamento de equipes – em média, de 30 a
40 dias – nessas bases permanentes. Destacamos aqui dois dos 23 campi
na região amazônica, aos quais este livro se reporta por tratar da minha
experiência vivenciada neles:
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Sendo a Operação Nacional considerada primeira fase.
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Imagem 2 – Localização geográfica dos lugares onde ocorreram as extensões
de fronteiras narradas neste livro: o Campus Avançado da UFRGS (Porto Velho/
Rondônia), o Campus Avançado do Alto Solimões da PUCRS (Benjamin Constant/
Amazonas), a Universidade Luterana do Brasil-ULBRA (Canoas/Rio Grande do Sul),
o bairro Arquipélago (Ilha da Pintada) e bairro Cruzeiro do Sul (Porto Alegre/
Rio Grande do Sul).
AM
PUCRS
UFRGS RO
ULBRA
CRUZEIRO
ILHA UFRGS
UFRGS
Fonte: Arte realizada por Maira Miguel.
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mil estudantes universitários de todas as regiões do país desde 1967 –, foi
benéfico por fortalecer a visão do universo social e estimular a reformulação
da formação acadêmica, tornando a extensão uma prática mais real para
os estudantes e profissionais em processo de qualificação na universidade.
Quem diria que o Projeto Rondon, criado para distensionar o movimento
estudantil em relação ao governo militar, perpassaria décadas, tornando-se
uma referência nacional de Extensão Universitária!
Extensão
Na década de 1980, a Extensão Universitária começou a tomar
espaço nos escritos acadêmicos e hoje, olhando pelo retrovisor, percebo que
a das décadas anteriores foi a extensão mais pura, profissional, humana
e patriótica que eu tenha testemunhado. De acordo com o artigo 1.° da
Resolução n.° 17/2015 (UFRGS, 2015) do Conselho de Ensino, Pesquisa e
Extensão (CEPE):
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se sentiu na prática desde o início, na década de 60, e tomou força com o
impulso de quem, como Jara, conseguiu mostrar a importância do registro
dessa prática acadêmica pelo fato de ser transformadora. Em seu livro Para
sistematizar experiências, ele aponta cinco passos para metodizar o relato: o
ponto de partida, as perguntas iniciais, a recuperação do processo vivido,
a reflexão de fundo e os pontos de chegada. Em um mundo globalizado
onde os conceitos mudam constantemente, a extensão é a ferramenta que
permite aferir sentido aos novos conceitos científicos criados.
Em entrevista para a Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS (OSCAR...,
2013), Oscar Jara reflete sobre a educação popular e afirma que ela implica
uma reflexão crítica sobre a realidade e que envolve processos de consciência
crítica, pois o convívio tem como objetivo desenvolver o aprendizado para
se converter em ação. Nesse sentido, aponta que educar significa pensar
sobre a própria realidade e que preciso conhecer para penetrar nas causas,
nas condições dos acontecimentos do mundo. Também destaca que o
conhecimento deve servir, principalmente, para saber como agir frente a
tais acontecimentos e que só o conhecimento, nesse sentido crítico, permite
que o aluno vá além da posição de aprendiz, para também perguntar-se o
que fazer ante o que acontece. Isso porque o conhecimento verdadeiro surge
quando você se aproxima em um esforço de ação e transformação sobre a
prática. Segundo Jara, o ensino é a transmissão daquilo que é pesquisado,
e a extensão é feita para que a universidade possa trabalhar com pessoas
que estão fora do campus. Numa educação popular, aquilo que se chama
de extensão universitária consiste em uma via através da qual a sociedade
traz temas para a docência e a pesquisa.
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publicando-a em julho de 2012. No documento, é planteada uma série de
propostas ao Ministério da Educação levando em consideração as parti-
cularidades das universidades públicas. Embora não seja um documento
representativo das especificidades das universidades públicas e das particu-
lares, como a PUCRS, não deixa de ser, para estas últimas, uma referência
quanto ao conceito e as diretrizes de extensão universitária.
Em 20 de julho de 2012, a UFRGS lançou a Política de Exten-
são da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mediante a Decisão
n.° 266/2012 do Conselho Universitário (UFRGS, 2012) e, em 29 de abril
de 2015, lançou a Resolução n.° 17/2015, do Conselho de Ensino Pesquisa
e Extensão (UFRGS, 2015), que trata da Política Institucional de Extensão.
23
A esse mesmo respeito, a página institucional da UFRGS mencio-
nava que:
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a formação permanente de professores da rede pública. São mais de mil
ações de extensão em todas as áreas do conhecimento envolvendo alu-
nos, professores e técnico-administrativos diretamente nas comunidades
(EXTENSÃO E CULTURA..., [201-]).
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Parte Dois
Relatos de Vivências
Estimulada pela compreensão da Política Nacional de Extensão
Universitária (2012) e em harmonia com a política interna de
apoio e qualificação de extensionistas da UFRGS no sentido do registro das
vivências, olhei para minha caminhada extensionista de tanto tempo e tão
rica e, então, comecei a escrevê-la. Na tentativa de sistematizar experiên-
cias, encontrei muitos extensionistas que viveram a extensão como uma
experiência pessoal e profissional transformadora, e que me motivaram a
continuar os escritos. No entanto, surgiu a dúvida: como começar a narrar?
Como a extensão é fecunda, tudo aconteceu em um contexto, em um lugar,
em um tempo e em uma realidade com as suas próprias peculiaridades,
refletindo, assim, o Brasil em alguns momentos inspirados em lembranças.
Eu entendo a extensão universitária como a força propulsora da
formação cidadã dos acadêmicos, na medida em que se lhes dá a oportuni-
dade de sair da sala de aula para experimentar uma vivência. O convívio ativo
com a comunidade em lugares próximos ou distantes como a Amazônia,
contribui para a desmistificação de barreiras culturais, religiosas, raciais,
regionais, mentais e outras. Os depoimentos mostram que à medida que
o acadêmico tenta colocar em prática as teorias ensinadas, ele vai se modi-
ficando e vai dando forma própria ao conhecimento. Ao compartilhar, os
extensionistas tendem a se tornarem sujeitos mais conscientes sobre sua
vida como cidadãos e futuros profissionais. Sabendo que a universidade
pode ser representada como uma ilha no arquipélago do conhecimento e da
vida, buscamos ouvir outras vozes que se expressaram referindo-se a suas
lembranças em relação ao momento de Brasil vivenciado. Assim, este livro
propõe caminhar na linha de tempo e se coloca como um ancião, trocando
figurinhas, lugares, músicas e lembranças sobre a vida estendida de uns e
outros personagens relacionados com a universidade, no sul e no norte do
Brasil, desde a década de sessenta.
Década de 60
Esta década foi pedra angular para muitas coisas em minha vida.
No ano de 1960, nutrida de sonhos e de liberdade, saí de casa acreditando
que morar em Porto Alegre e prosseguir com os estudos fosse o único
caminho para o futuro que queria ter. No fim dessa década, com o ingresso
na faculdade, compreendi que o estudo seria um caminho sem fim. Na
faculdade, longe de casa, precocemente percebi que minha família foi o
meu berço de extensão porque fui a nona entre quatorze irmãos e precisei
ajudar meus pais a criarem os cinco irmãos menores enquanto os mais
velhos trabalhavam. Mais tarde, fui a primeira a ingressar na universidade
e, já morando fora de casa, continuei alimentando o convívio solidário que
desenvolvi em família.
Das canções que eu cantava naquela década, trago aqui a lembrança
de um verso de Geraldo Vandré que me remete ao início de minha trajetória
como extensionista, “caminhando e cantando e seguindo a canção”. Essa música
me marcou – e ainda marca – pela força interior e destemida para viver
as coisas boas da vida – que pareciam poucas – e então alimentar sonhos,
como quando se é criança e se almeja visitar o Papa em Roma. Um adulto
me fez acreditar que era possível alcançar meus objetivos e me mostrou o
caminho: estudar. Por isso, minha meta era me formar no segundo grau
e, depois, continuar estudando. Havia, na época, um sistema de premiação
ao melhor aluno de cada série, e isso me estimulou muito. Ainda lembro o
prêmio que ganhei na terceira série: um pequeno livro de umas 15 páginas
chamado Burrinho Feliz. Guardo-o até hoje.
Naquele momento, a universidade pública ainda não havia des-
trancado suas portas para ampliar e diversificar os acessos de forma que
eu pudesse ser contemplada e, por isso, trabalhava para pagar os estudos.
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Eu queria vencer, viajar, conhecer o mundo. Em 1969, entrei na Faculdade
de Enfermagem e Obstetrícia Madre Ana Moeller, na Santa Casa, em Porto
Alegre e fiz parte da última turma do curso. A sala de aula ficava no subsolo
de um casarão, e o acesso era por uma escada. A biblioteca, a direção, a
secretaria e outras instâncias administrativas ficavam onde hoje funciona
o Centro Histórico Cultural Santa Casa, que mantém a essência dos traços
arquitetônicos restaurados na fachada externa para a Avenida Independên-
cia, o que gera boas lembranças e o desejo de fortalecer o vínculo com o
passado. Os estágios consistiam em revezamentos entre as enfermarias.
As professoras eram várias religiosas forjadas no conhecimento, na disci-
plina e na dedicação, tentando conduzir os alunos no caminho da virtude
e de valores. Por mérito, ganhei um sininho de bronze que guardei como
tesouro e, em 2015, doei-o ao museu. Hoje percebo que foi nesse contexto
que aprendi a compartilhar, academicamente, práticas e conhecimentos
com os pacientes e seus familiares, a maioria deles vinda do interior.
Lembro que, na sala de aula, a maioria dos alunos eram mulheres. Havia
apenas dois homens: um senhor casado e um belo e simpático jovem que,
após seis meses de convívio, trocou de curso. Só mais tarde percebi o que
significava sua presença naquele contexto de estudantes, ditadura e as –
agora – conhecidas consequências.
Quanto à música brasileira da época, lembro que, no início da
década e enquanto ainda morava com minha família, pouco se podia escutar
no rádio a pilha; apenas se ouvia alguma música caipira na hora do jantar,
depois de escutar a Voz do Brasil, ainda à luz do dia ou – se mais tarde – à
luz da lamparina. Isso quando os ruídos permitiam sintonizar a estação.
O Brasil virou a década nos braços dos movimentos de contestação como a
Tropicália, enquanto a universidade se dedicava a formar cidadãos e futuros
profissionais, oportunizando novas experiências como o Projeto Rondon.
Assim como a música cantava a realidade, a família – como pri-
meira escola – me deu as bases para viver no mundo que se descortinava.
É por isso que a reconheço como o laboratório vivo em que desenvolvi
resiliência para compartilhar vivências e aprendizados, principalmente nos
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mundos de periferia – que eu chamo de fronteira –, onde se processou toda
minha vida acadêmica na UFRGS. Neles, sinto-me por inteiro, desde essa
época, porque a universidade me permitiu construir e compartilhar o novo
transformador, sem deixar à margem o conhecimento raiz existente lá fora.
Década de 70
Esta década marcou o meu Brasil, pátria amada, para sempre.
Vivíamos o auge da ditadura com espiões infiltrados na sala de aula. Mesmo
assim, o Governo e a Universidade mantiveram o Projeto Rondon, ampliando
sua forma de atuação e sua abrangência territorial. A percepção da necessi-
dade de ações permanentes levou à criação de campi avançados em lugares
estratégicos e muito carentes, com a finalidade de promover o homem local
e integrá-lo competitivamente ao mundo em desenvolvimento e, com isso,
desenvolver a Amazônia.
Em 1971, a UFRGS instalou o Campus Avançado, em Porto Velho,
capital do então Território de Rondônia. Em 1972, a PUCRS, na pessoa
de seu reitor, aceitou o desafio do Projeto Rondon de instalar e manter o
Campus Avançado no Alto Solimões (CAAS), em Benjamin Constant, um
dos pontos mais longínquos do país. Lá, onde o caudaloso Solimões beija
nossa terra pela primeira vez, onde as pátrias de três povos amigos – o
peruano, o colombiano e o brasileiro – se juntam: no Alto Solimões do
Estado do Amazonas.
Os campistas que passaram por essa experiência ficaram mar-
cados, deixaram seu legado no conjunto dos 15 anos de ação contínua e
contribuíram para a transformação da região e o desenvolvimento dos
cidadãos. Testemunhei isso nos 11 anos que permaneci nesse Campus.
Minha primeira participação no Projeto Rondon foi em 1971, na Operação
Regional do Projeto Rondon/Rio Grande do Sul, que aconteceu entre junho
e julho em Rondinha e Ronda Alta, quando atuei na campanha mundial
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de erradicação da varíola. No Brasil já não havia casos dessa doença, mas,
mesmo assim, foi realizada uma vacinação nacional de reforço durante esse
período. Participei como acadêmica de enfermagem junto com acadêmicos
da Faculdade Católica de Medicina. Essa experiência me fez sentir o que é
ser universitária na prática com a comunidade. Lembro-me da preparação
do grupo, da acolhida das autoridades, da recepção da comunidade e do
intenso trabalho de vacinação. O processo consistia em flambar a ponta
dupla da agulha na chama da lamparina, encher a seringa com o líquido
vacinal, dar quatro ou cinco picadas para produzir uma escarificação na
pele e, finalmente, inocular a solução num determinado ponto do braço
esquerdo do paciente. Esse processo gerava uma reação no organismo,
deixando no local a marca da pega – essa cicatriz arredondada era a con-
firmação de que o sujeito havia sido vacinado e imunizado contra varíola e
era uma prova para viagens internacionais, como ainda existe hoje com a
vacinação da febre amarela. A cicatriz permanente no braço incomodava os
mais vaidosos, que podiam optar pelo ponto alternativo de inoculação da
vacina, que era na coxa esquerda. Mas, para tomar a vacina, o paciente devia
levantar a saia ou abaixar a calça, o que era um procedimento incomum e
que gerava pudor na época.
Nas férias de inverno, enquanto participávamos de uma a operação
regional no Sul, a UFRGS instalava seu Campus Avançado em Porto Velho,
com atuação prevista para as áreas de Saúde, Administração, Agronomia e
Educação. O primeiro grupo de campistas era composto por doze estudantes
e quatro professores, e cada um destes coordenava um setor. A duração da
permanência dos estudantes no Campus Avançado era de oito anos. Quem
diria que um ano depois, no verão de 1972, e ainda acadêmica de enferma-
gem, eu integraria a equipe multidisciplinar em uma Operação Nacional
do Projeto Rondon, tendo o Campus Avançado da UFRGS, em Porto Velho,
como base de apoio onde se revezavam equipes multidisciplinares durante
o ano todo, ininterruptamente. Nos corredores do prédio do Campus, onde
ficamos hospedados na chegada e na saída da operação, percebiam-se as
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marcas da passagem das equipes de campistas. Muitas já haviam partido
deixando sua mensagem nas paredes do alojamento e, certamente, nas
comunidades onde atuaram.
O grupo dos campistas, como de costume, ficou de atuando durante
janeiro e fevereiro no campus enquanto nós, da Operação Nacional, fomos
distribuídos em pequenos grupos em todo o território. Alguns foram para
Guajará Mirim, cidade que fica na fronteira com a Bolívia e que está sepa-
rada do país vizinho pelo Rio Mamoré. Curiosamente, a Bolívia mantinha
uma marinha viva neste rio, alimentando o sonho de conseguir um dia
recuperar seu acesso ao mar. Lembro-me da música que os habitantes
locais inventaram lá: “eu vou, eu vou para Guajará Mirim / lá mulher é
mato e eu quero uma pra mim”. Eu e um estudante de Medicina ficamos
em Ji-Paraná, que, na época, se chamava de Vila de Rondônia. Lá, nosso
trabalho foi acolher e socorrer os primeiros migrantes vindos do sul que
chegavam em paus de arara e que, da noite para o dia, se estabeleciam de
qualquer maneira para iniciarem seu futuro. Segundo eles, os que sobre-
vivessem teriam terra para criar seus filhos. Essa experiência foi de muito
aprendizado, tendo em vista a realidade de sonhos, sofrimentos, desafios
no meio da esperança dos migrantes, e nossos limites como estudantes
numa realidade que estava em transformação.
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Lembro-me também de um fim de semana em que fomos levados
pelo exército para visitarmos uma mina de cassiterita que pertencia a uma
organização estrangeira instalada no âmago da floresta. Para poder acessar,
era preciso percorrer uma estrada de chão até chegar a uma área privada
onde havia seguranças que controlavam que só entrassem convidados. A
mina tinha uma infraestrutura própria de habitação, com estrada asfaltada,
assistência à saúde e transporte internacional aéreo dos trabalhadores e dos
minérios extraídos. Essa realidade chocou nosso pensamento de estudan-
tes que lá estávamos exatamente para conhecer um Brasil brasileiro, dar
assistência às pessoas e preservar a floresta. Dos mineradores, ganhamos
umas pedras de topázio que trouxemos como lembrança.
Passado um mês dessa operação, voltei com o grupo para Porto
Alegre e continuei trabalhando e estudando. Conclui o curso de enferma-
gem e, na sequência, fiz especialização e iniciei mestrado em obstetrícia.
Quem diria que, com todos os sonhos que eu tinha, no fim da década seria
mestre e estaria enraizada à margem do Rio Amazonas, compartilhando
tudo isso com os ribeirinhos.
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Imagens 4 e 5 – Curso de Parteiras Leigas do Alto Solimões (AM), dezembro 1977
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campistas da PUCRS que haviam chegado uma semana antes em avião da
Força Aérea Brasileira (FAB) e já estavam adaptados com seu trabalho. Só
nos encontraríamos no Natal para celebrarmos juntos.
A duração estimada do curso que fui ministrar era de um mês
com previsão de retorno imediato. Contudo, bons ventos mudaram o rumo
dos meus projetos, dos meus sonhos e de minha vida para sempre.
No Réveillon de 1977 para 1978, faltavam duas semanas para
concluir o curso que eu estava ministrando para as parteiras locais. Então
eu encerraria meu mês de trabalho e voltaria a Porto Alegre para finalizar
meu mestrado na UFRGS e me preparar para o doutorado que começaria
em setembro de 1978, em Paris. Na noite do ano novo – que estávamos
comemorando no Clube 21 – mal sabia eu que, entre danças e celebrações,
dava o primeiro passo ao lado de Adroaldo Piccinini (então vice-diretor do
Campus) e a essa jornada extensionista encerrada em 2017, na UFRGS.
De forma inusitada e na mesma hora, o diretor do Campus Lorenço Carlos
Stein, o grande timoneiro na estruturação das principais linhas de ação do
Campus, organizou um jantar com a presença da equipe e das autoridades
locais a fim de oficializar o noivado da professora com o vice-diretor, tendo
em vista respeitar as tradições e os costumes locais. Após o casamento,
junto com Adroaldo, passamos a morar e a trabalhar no CAAS.
37
Mais tarde, concluí a monografia do Mestrado na Escola de Enfer-
magem da UFRGS, orientada à distância via radiofonia da PUCRS e por
carta, que às vezes demoravam um mês para chegar. Antes de ir para o
Campus, eu havia prestado um concurso de enfermagem do Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) em Porto
Alegre. Tão logo me estabeleci no Amazonas, me chamaram para assumir
o cargo concursado no RS. Então eu vim, assumi e pedi logo transferência
por estar casada e morando em Benjamin Constant, no Amazonas. A minha
solicitação foi atendida, e fui transferida para a coordenação do INAMPS
em Manaus, que estava familiarizado com as atividades do Campus e tinha
com ele um convênio de assistência à saúde da população ribeirinha. Por
causa disso, cederam-me para assumir a Coordenação dos Programas de
Saúde desse Campus do Projeto Rondon/PUCRS.
Desde o início, as atividades em saúde tinham como prioridade o
programa de cobertura vacinal que visava imunizar as crianças ribeirinhas
do Alto Solimões. Nos primeiros anos, as vacinas viajavam com as equipes
de Porto Alegre para o campus. A programação do deslocamento dos barcos
ambulatórios pelo rio Amazonas e afluentes tinha como foco a adequação
do calendário vacinal para que todos recebessem, no mínimo, a primeira
e a segunda dose da tríplice para crianças e da tetânica para os adultos. A
campanha de vacinação foi uma parceria entre o CAAS e o Serviço Especial
de Saúde Pública no AM – Ministério da Saúde. Em comunidades distan-
tes, sempre chegávamos à tardinha para fazer contato e programar com a
aldeia as atividades para o dia seguinte, a partir do esperado e dos recursos
que tínhamos a bordo.
No cotidiano daquela desconhecida e complexa realidade, muitas
vezes me fora posta a prova boa parte da minha bagagem acadêmica de
enfermeira obstetra. Com frequência precisei buscar, paciente e humil-
demente, a compreensão dos fatos em vivências anteriores à faculdade,
alfabetizando-me no convívio com aqueles nativos, cujas vidas tinham tanto
para ensinar. Dessa forma, o convite constante era o de desacelerar, para
38
poder viver plenamente a experiência, e o de não perder tempo, pois sem-
pre havia muito que fazer. Tinha que aprender o máximo para contribuir
na adaptação de cada equipe que chegava lá mensalmente para viver sua
prática acadêmica e sua experiência cívica de tríplice fronteira no Campus.
E isso precisava acontecer da melhor forma possível, dando continuidade ao
programa de saúde que tinha como prioridade a imunização da população
ribeirinha – constituída de aldeias indígenas, caboclos e muitos filhos
dos soldados da borracha – em projetos pré-estabelecidos pelos quais eu
era responsável. Junto com a equipe andavam, sempre que era possível ou
necessário, profissionais da educação, do serviço social, de diversas engenha-
rias e da veterinária para atender demandas pontuais. Segundo Adroaldo,
As vivências dos estudantes, que por trinta ou sessenta dias participavam das
equipes em atuação no CAAS, acabavam se constituindo em um rico acervo de
experiências adquiridas para sua trajetória profissional e pessoal. Apesar das
dificuldades diante das limitações de recursos, era muito animador ver o quão
comprometida estava a grande maioria dos estudantes na realização das tarefas
que lhe cabiam na sua área de atuação profissional. Podia-se ver alegria, bom
humor e compromisso em grande parte dos alunos, mesmo estando longe das suas
famílias, numa região tão longínqua do Brasil e junto a um povo caboclo de
cultura e costumes tão diferentes. A experiência e as vivências de cada estudante
eram mais ou menos prazerosas e proveitosas dependendo do espírito de cada
um para encarar as distintas realidades, cultivando positividade e trabalhando
com entusiasmo.
39
“prometo não prometer nada”. No entanto, todos faziam tudo que estava
dentro de suas possibilidades para resolver o problema de quem precisasse
de ajuda. Particularmente, por mais que eu fizesse muita coisa, sentia
como se a minha ajuda fosse apenas uma gota em meio a um oceano de
necessidades.
Ao se lembrar daqueles tempos, Adroaldo relata que
40
Em 1974, ao iniciar uma nova etapa da minha vida, sem nenhum vínculo maior
que me prendesse, com muita energia, cheio de ideais para fazer algo especial em
favor do ser humano, graduado e iniciando um mestrado – mas sem a convicção
de seguir uma vida na academia – sou convidado a assumir a função de Diretor
Adjunto do Campus em Benjamin Constant.
Década de 80
Apesar de a década de 80 ter sido apelidada por economistas lati-
no-americanos de “década perdida”, também representou o auge do Projeto
Rondon. Lembro-me do trabalho intenso emanado da Coordenação dos
Programas de Saúde do Campus, do acompanhamento das parteiras que
41
instrui e da formação e acompanhamento de agentes de saúde ribeirinhos.
Na época também lecionei no Colégio Estadual Imaculada Conceição, em
Benjamin Constant, que dependia da Secretaria de Educação do Amazo-
nas. O Campus Avançado mudou o rumo de nossas vidas. Fomos lá para
educar, mas foram dez anos de aprendizado na escola amazônica da vida,
onde o povo nos ensinou que o tempo não acaba e que ser feliz é o jeito de
ser. Nessa época nasceram dois dos meus filhos.
Nos anos de 1980, o Brasil vivia um momento em que cada cidadão
tentava achar seu lugar. E eu estava no meu, bem no coração da pátria ama-
zônica onde se acreditava que começava o Brasil. Vivia-se com intensidade, a
vida cotidiana era comandada mais pela natureza do que pelos cronogramas
estabelecidos. A parada certa era só no dia 7 de setembro, quando todos
festejavam – com muito civismo, de roupa nova e com desfiles – o Brasil
do lugar, naquele momento, no centro de tudo.
Com o auge do Projeto Rondon, muitos campistas passaram por
essa experiência; alguns deles ainda estudantes tinham a alma cheia de
leveza sonhadora e esperança de transformação, como fala a música Coração
de estudante, do Milton Nascimento, fiel representante desse período: “Cora-
ção de estudante / Há que se cuidar da vida / Há que se cuidar do mundo /
Tomar conta da amizade / Alegria e muito sonho / Espalhados no caminho
/ Verdes, planta e sentimento / Folhas, coração / Juventude e fé”.
Lembro-me de alguns depoimentos deixados em seus relatórios
antes de retornarem a Porto Alegre e que representam como foi para eles
essa experiência – enquanto jovens acadêmicos e professores – percebendo
a realidade fora da sala de aula. Eles relatavam que haviam vivido uma
experiência única e de grande valia tanto profissional quanto pessoal, que
utilizaram seus conhecimentos a favor daquele povo, destacando priorita-
riamente que qualquer missão – sem importar a hora, o lugar e a forma
– estará sempre presente nas suas ações. Essa vivência não se compara
aos quatro anos de faculdade passados dentro de uma sala de aula; e digo
isso sem desmerecer a experiência acadêmica, que é base para que essa
42
experiência como campista pudesse se processar. Os campistas deixaram
a certeza de que as sementes que plantaram iriam brotar e que tinham o
desejo de um dia poder retornar.
O Irmão Norberto Rauch, naquele momento reitor da PUC, disse
que a ação do Campus Avançado da PUCRS no Alto Solimões (AM) repre-
sentou a experiência mais significativa e gratificante em termos de exten-
são universitária, e que o projeto deixou profundas e frutuosas marcas
nas comunidades amazonenses atendidas, bem como na comunidade
universitária de alunos, professores e funcionários pelo desenvolvimento
da consciência e do compromisso social com a população brasileira. O
expressivo crescimento numérico e o progresso das comunidades indígenas
dos Ticuna graças aos cuidados e ensinamentos transmitidos na área da
saúde, de modo particular, é um dos indicadores mais expressivos da boa
atuação do Campus. Foi um momento de dignidade para os amazônidas,
porque os fez acreditar neles mesmo e no futuro, e para os participantes
gaúchos, por ter sido – para a maioria deles – uma experiência excelente.
Aquela época deixou boas lembranças e profunda saudade.
No fim dessa década, quando voltei para o sul, a Coordenação do
INAMPS me designou para compor a equipe de Municipalização da Saúde;
na Amazônia era natural o trabalho integrado. Com o pouco que tínhamos,
fazíamos o possível. Saí de lá, onde a prática era estabelecida a partir das
dificuldades da região Amazônica da floresta, para uma realidade política e
institucional advinda da constituição de 1988 e do Sistema Único de Saúde
(SUS), que estava sendo implantado no país. O objetivo deste Sistema era
o de unir os serviços e os recursos de nível federal, estadual, municipal e
outros. Essa estratégia passou a denominar-se de Municipalização da Saúde.
Tão logo cheguei, fui convidada a participar também do Projeto
Integração, da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Canoas,
onde, de forma inovadora de extensão e sustentabilidade, faziam parte os
cursos de Enfermagem, Psicologia e Serviço Social. Íamos às comunidades
de periferia juntos – docentes e discentes – para trabalharmos questões
43
de saúde, educação e cidadania com a comunidade, atuando junto com
professores e alunos do ensino fundamental no interior do bairro Mathias
Velho. O objetivo era possibilitar que os acadêmicos adquirissem vivências
interdisciplinares, testando as teorias acadêmicas na prática comunitária,
desmitificando aos poucos a realidade local e a da universidade e fortale-
cendo sua formação, como o fazíamos na Amazônia. Dessa experiência
trago aqui um fato, apenas um, como ilustração de que a gente nem sempre
conhece o suficiente do grupo com o qual trabalhamos:
Estava se aproximando o dia 21 de abril – dia do índio – e eu, cheia
de vivências amazônicas e de material sobre índios coletados ao longo de 10
anos de trabalho, preparei um arsenal de objetos, informações e centenas
de slides. Chegou o dia e eu levei todo o material preparado. O salão estava
cheio de crianças daquela comunidade. Iniciaram as comemorações. Quando
chegou minha vez, me apresentei, mostrei os objetos levados: tururi, tipiti,
colares, cocares, máscaras, pulseiras, escama e língua de pirarucu etc.
Liguei o projetor e, cheia de amor, comecei a mostrar os slides explicando
as imagens. O silêncio logo se estabeleceu no salão. Todos olhavam muito
atentos, e eu, satisfeita, explicava. Aos poucos, uma a uma, as crianças vie-
ram para frente, atentas para olhar de perto a mágica daquela luz que saía
do projetor dos slides e desenhava imagens na parede. Ninguém estava me
escutando. Ninguém olhava para os objetos que eu mostrava. Não estavam
encantados com o que eu dizia, nem muito menos com os objetos que
levei. O que atraía era dinâmica do projetor: encantavam as imagens que
se formavam na ponta do tubo de luz.
Essa história foi uma das mais marcantes vividas na ULBRA, pois
me fez refletir sobre o quão atentos devemos estar em relação à realidade
local para poder contribuir com a comunidade. A nossa capacidade de
aprender com eles e de nos adaptar para ensinar nunca se esgota, nem o
encantamento diante do novo.
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Imagem 7 – Tururi feito por um índio Ticuna, com a casca do coqueiro apodrecida,
batida e lavada até sobrar só fibra em forma de pano. As gravuras são representações
da floresta feitas com tinta extraída da flora local
Década de 90
Apesar dos esforços de algumas universidades, os campi avançados
não conseguiram manter-se sem o apoio federal nesses espaços distantes
de formação acadêmica. Desta forma, fecharam-se os últimos campi que
serviam de base permanente de extensão das respectivas universidades. O
então nosso Campus Avançado do Alto Solimões (CAAS) – que funcionava
graças a uma equipe permanente estruturada, infraestrutura própria e bases
sólidas – tentou dar continuidade aos programas de alimentação, saúde e
educação, mantendo o trabalho que vinha sendo desenvolvido em parceria
com os então sete municípios da região do Alto Solimões com os quais vinha
se trabalhando desde o início, em 1974. No entanto, em 1990, o Campus
foi o último a encerrar suas atividades, deixando para sempre sua marca e
45
selando o fim de uma era da extensão universitária do tamanho do Brasil.
Mas ficou latente em cada um de nós uma frase de seu relatório: “Uma vez
rondonista, sempre rondonista; uma vez campista, sempre campista. Porque a
vivência no Campus foi um batizado de cidadania e brasilidade.”
“Alô. PRA 338 encerra contato com PRS 215, CAAS, Alto Solimões, Benjamin
Constant/Amazonas. Câmbio final.”
46
professores da região. Para isso eram oferecidos: cursos de licenciatura curta em
Letras e em Ciências e Estudos Sociais; capacitações para professores leigos rurais
de 1.a a 4.a série; preparações de agentes de saúde rurais, de parteiras curiosas e de
atendentes de enfermagem; e programas de confecção de próteses dentárias totais,
de odontologia incremental e de oftalmologia.
Também eram desenvolvidas ações de educação para a saúde que buscavam pro-
porcionar conhecimento às populações, corrigir distorções e tabus nas áreas de
saúde, alimentação e higiene. Para apoiar esse trabalho, foi construído o Barco
Igarinha, que transportava as equipes até as comunidades ribeirinhas para que
elas pudessem acompanhar, supervisionar e orientar o trabalho dos professores
locais. Além do atendimento médico e odontológico, fazia-se todo o trabalho de
educação em saúde, vacinação e imunização das populações ribeirinhas da re-
gião em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde. Por sua vez, quando a
equipe de saúde chegava às comunidades, os agentes de saúde previamente for-
mados auxiliavam nos encaminhamentos e nos atendimentos. Já as equipes do
Serviço Social realizavam um importante trabalho na formação de liderança de
apoio às iniciativas de cunho social que eram desenvolvidas por clubes de mães,
parteiras, agentes de conscientização e exercício de cidadania, incentivando a
participação de todos.
Ao longo dos anos, novos barcos foram agregados para conduzir as equipes de
saúde: o Barco Seringueiro VI, produto de uma parceria com a Superintendên-
cia da Borracha (SUDHEVEA) e que direcionou suas rotas especialmente para
atender as populações da região dos seringais do alto Javari e afluentes; e o Barco
Tücuna, de parceria com a FUNAI, que realizou suas ações especialmente junto
às comunidades indígenas Ticuna.
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subsistência. Para criação de gado, foram adquiridos terrenos em que se cultiva-
ram diferentes espécies de capim. Foi construído um tambo e foram introduzidas
vacas de leite. Também foi construído um grande chiqueiro para criação de porcos
de diferentes raças. Quanto à avicultura, a construção do galinheiro para gali-
nhas poedeiras foi algo totalmente novo na região e resultou no surgimento de
criadores que passaram a explorar a atividade com fins econômicos. Lembro que,
nos primeiros tempos, os pintinhos vinham do Rio Grande do Sul acompanhan-
do as equipes de universitários. Com o tempo, e para garantir que a procedência
fosse adequada e solidária com a economia da região, os animais passaram a ser
adquiridos em Manaus. Esse era o trabalho dos campistas: assegurar condições
sanitárias e higiênicas dos alimentos e fortalecer os pequenos produtores da re-
gião, orientando, acompanhando e incentivando a criação de gado bovino, suíno
e aves.
48
programas e projetos específicos, e sob sua própria coordenação e respon-
sabilidade, algumas universidades mantiveram-se ligadas a projetos de
políticas nacionais, como a Universidade Solidária.
Em 1992, deixei o Projeto Integração para me dedicar a uma
questão pessoal: o nascimento da minha menina. Na época, comecei a
atuar como enfermeira do INAMPS no processo de municipalização da
saúde, tendo como base de trabalho a Escola de Saúde Pública do Estado,
em Porto Alegre, de onde saí aposentada em 1996. Nesse mesmo ano, entrei
na UFRGS como professora da Escola de Enfermagem, lotada no Depar-
tamento de Assistência e Orientação Profissional (DAOP), para ministrar
a Disciplina Enfermagem Comunitária. A prática disciplinar e o estágio
tinham como base a Unidade Básica de Saúde, e a duração do segundo era
em média de três meses.
Das comunidades que receberam assistência, a Vila Pedreira –
com acesso pela Av. Ursa Maior – era a mais vulnerável, e onde focamos
o trabalho. Não tardou para percebermos a necessidade de permanência.
Toda a vivência extensionista amazônica de mais de uma década serviu
para detectar as carências do local e iniciar de imediato projetos de extensão
naquela comunidade, que não demorou para se revelar como um espaço
fértil de partilha de vivências e aprendizados. Como professora de atividades
de ensino, pesquisa e extensão na Vila Cruzeiro – e em substituição a um
professor que se aposentou –, atendia creches, escolas, comunidade local
e formava grupos principalmente com idosos e adolescentes. Convivíamos
também com o mundo das drogas e sentíamos suas consequências. Certa
vez, na Pedreira, enquanto assistíamos uma idosa em sua casa, recebemos
um chamado de um morador da comunidade para atender outro caso. Ao
chegar, percebi que a situação demandava atenção especial, pois a vítima,
embora gravemente ferida, não poderia ser identificada na instituição de
serviço por questões de segurança. Estando a par da situação, fui até um
espaço verde que estava próximo, onde havia plantas medicinais, e ensi-
nei-lhe a colher e usar. Era o que podia fazer, respeitando a confiança e os
49
recursos. Não muito longe dali, outro lugar onde trabalhamos muito com
grupos e lideranças comunitárias foi o Centro Comunitário Arapeí. Com
o passar do tempo trabalhando em atendimentos domiciliares, percebi que
o que realmente queriam as mulheres que trabalhavam fora para poder
sustentar suas famílias era creches onde pudessem deixar seus filhos.
50
minha terceira publicação sobre atividades acadêmicas que integram ensino,
pesquisa e extensão. Há muito aprendizado no convívio com a realidade de
periferia humana e, muitas vezes, ser solidário é tudo o que se pode fazer.
Com a implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF) na região
da Vila Cruzeiro, em Porto Alegre, nosso foco da extensão esteve centrado
numa região chamada Barracão, onde passamos a trabalhar integradamente
o ensino, a pesquisa e a extensão em território delimitado, facilitando até
hoje o vínculo acadêmico com a comunidade e o lugar. Nesse contexto, cito
mais um fato marcante que faz refletir sobre a complexidade de promover a
saúde numa comunidade de diferentes práticas culturais e espiritualidades:
Certa vez, durante um atendimento domiciliar aparentemente
rotineiro, enviei uns alunos junto com um agente de saúde para verificar
a pressão arterial de uma conhecida idosa, porque ela tinha dificuldade de
locomoção. Passada meia hora, vieram me buscar no posto de saúde onde
eu estava com outros acadêmicos para que fosse até a casa da mulher. Ao
chegar lá, encontrei aquela senhora na cama conversando de um modo
diferente sobre o cotidiano e se comportando de forma estranha para todos.
Verificamos a pressão – que estava dentro do previsto – e saímos prometendo
que voltaríamos no dia seguinte. O que estava acontecendo, soube depois,
é que a paciente havia incorporado uma cigana que falava espanhol. Nem
eu nem ninguém, naquele momento, soubemos o que estava acontecendo.
Isso suscitou uma ampla reflexão sobre a falta de preparo acadêmico para a
assistência e nos levou a conhecer outros modos de abordagem em situações
de atendimento, principalmente domiciliar. A partir deste fato, também
estudei outras religiões e terapias e fui abrindo conceitos e ampliando os
aprendizados no convívio com a comunidade.
Como enfermeiros, juramos assistir a todos indistintamente,
mas na faculdade – assim como na religião que professamos ou que nos
foi ensinada – não aprendemos tudo sobre todas as realidades. Uma vez
que mergulhamos na comunidade –principalmente na permanência cons-
ciente – a dualidade de mundos desaparece e predominam sensações que
51
emanam mais do coração do que da mente por nos sentirmos pertencentes.
Nesse sentido, acredito que não podia me permitir achar arriscado entrar
mais fundo na extensão de periferia. Como posso me afastar de espaços
considerados de risco e de alta complexidade se o tempo mostrou que, em
muitas situações, é preciso agir com o que se tem e o com que se pode fazer?
Muitas vezes nesse trabalho ouvimos “era nóis e Deus”, e, com o tempo, isso
tomou forma na compreensão da realidade e nas intervenções possíveis,
acreditando que nós fizemos o que pudemos, e que Ele fez o restante. Per-
cebo que há um espaço sensível para ampliar essas questões na academia
para que, quando estudante se deparar com determinada realidade, possa
elaborar seu aprendizado na integralidade da experiência vivida.
Todos os bolsistas de extensão daquele período se graduaram e
levaram adiante sua formação, tornando-se mestres e doutores em algo que
acreditam. Alguns deles já retornaram para a universidade exercendo uma
docência marcada por essas experiências de extensão de periferia, outros
voltaram para a atenção básica como líderes de equipe e, em suas falas,
referem-se à extensão vivida como uma base sólida em sua caminhada.
Década de 2000
O Brasil, enquanto economia que emergia, impulsionou avanços
para a extensão. Apoiada por uma política própria por meio de programas,
projetos e ações junto às comunidades locais, a extensão universitária foi
ganhando maior visibilidade e teorização das práticas. Também evoluiu e
recebeu maior apoio – inclusive financeiro, como o oferecido pelo MEC
através do Programa de Extensão Universitária (ProExt), criado em 2003
visando principalmente fortalecer a extensão universitária com ênfase na
inclusão social. Percebendo esse ambiente promissor, busquei fortalecer a
extensão vivida no âmbito do doutorado (Programa de Pós-Graduação da
Agronomia) iniciado em 2004 e concluído em 2008. Nele, mergulhei no
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estudo etnográfico e fitotécnico de plantas medicinais utilizadas por pessoas
vinculadas à Equipe de Saúde da Família-ESF. Esta estratégia foi criada pelo
Ministério da Saúde para servir como porta de entrada para que os cidadãos
tivessem um serviço de assistência à saúde próximo de sua residência. Por
outro lado, possibilitou que os profissionais pudessem conhecer de perto os
cidadãos assistidos e que pudessem empoderá-los para serem autônomos
de acordo com sua realidade e práticas culturais. Meu doutorado, que teve
orientação da Prof.a Dra. Ingrid B. I. Barros, tratou sobre isso: o estudo das
plantas por eles utilizadas.
Desde então, consolidou-se a prática integrada de extensão, ensino
e pesquisa. Eu, com tanta vida já compartilhada com população periférica
e ampliando meu espaço de convívio e partilha com movimentos de edu-
cação popular promovidos pelo Ministério da Saúde, entrei nesse novo
milênio com o desejo firme de trazer essa periferia para a academia. Em
seus lares e em seus quintais, aprendi muito e constatei que a maior parte
de seu conhecimento foi herdada de mestres de outrora que, no caminho
e por circunstâncias da vida, perderam a cátedra, mas, que de alguma
forma, mantiveram o conhecimento, a tradição do cultivo e o uso de plantas
medicinais. Com gratidão e aprendendo muito, passei anos escutando esses
mestres geralmente analfabetos da periferia e mais dois anos cultivando
junto com eles aquelas plantas que utilizavam no cuidado da saúde de suas
famílias. Juntos fizemos hortos como laboratórios vivos de aprendizados
para os profissionais e a comunidade envolvidos, compartilhando saberes
e fazeres constantemente em todo lugar. A eles, eu devo meu doutorado.
À universidade, meus aprendizados.
Agora mais próximos, a teoria acadêmica e as práticas populares
em saúde podem dialogar e o conhecimento parece ter mais significado.
As aulas se tornaram mais consistentes e compartilhadas, a prática exten-
sionista se fortaleceu com o doutorado e o convívio modificou o olhar da
pesquisa e do ensino, principalmente quando andam juntos. Na UFRGS,
eu me estabeleci como professora e com o doutorado fui compreendendo
melhor que o registro faz parte do compromisso do professor extensionista. A
53
visão dos jovens acadêmicos que desenvolviam projetos na periferia de Porto
Alegre também contribuiu para a documentação criativa das experiências.
Por isso passei a inserir vídeos livretos e outras produções genuinamente
extensionistas como expressão viva das práticas dos projetos desenvolvidos.
Esses registros trazem consigo a cor, a luz e o movimento do coletivo vivido
e compartilhado. Apesar de ser um experimento de doutorado, a extensão
foi se processando na criação do Horto à medida que a comunidade foi se
envolvendo nesse processo. Os bolsistas dos projetos Cultivando em hortos:
práticas de atenção primária em saúde e Horto Experimental Cruzeiro do Sul
como campo de práticas APS mantiveram crianças, idosos e a comunidade
vinculados ao Horto e nele compartilharam bons momentos. Os acadêmi-
cos – através de oficinas, encontros e celebrações – foram consolidando
a tríplice interação de ensino, pesquisa e extensão nesse espaço vivo de
aprendizagem. Durante o processo do doutorado, aconteceram muitas coisas
além das aulas, dos experimentos e dos registros, e tudo isso gerou um livro
intitulado A praça dos bobos (2017), que é portador de conhecimento sobre
referências associadas a todo o processo de extensão, principalmente em
relação ao conhecimento tradicional e plantas medicinais.
Em 2009, a Pró-Reitoria de Pesquisa (PROPESQ), com o objetivo
de popularizar a ciência, criou um programa chamado Ciência na sociedade,
ciência na escola, identificado como PROPESQ/POP. De imediato fizemos
um projeto que pudesse ampliar e aprofundar nossas ações de promoção de
saúde e sustentabilidade ecológica nesse espaço humano. Assim, foi intro-
duzido um novo parceiro acadêmico nas ações na Vila Cruzeiro: o projeto
Alfabetização Ecológica, que veio enriquecer, fortalecer e ampliar nossas ações,
enraizando-se conosco na comunidade e estendendo-se conosco para a Ilha
da Pintada, em 2011. A realização do projeto consistia em planejar e registrar
todas as atividades, e isso foi levado a sério pela bolsista. Esta sistemática
abriu e ampliou a consciência sobre a importância do registro e também da
extensão que, até então, estava focada mais na prática e no convívio. Fomos
contemplados por todas as sete edições do Programa POP de pesquisa e
criamos, assim, um perfil de continuidade, crescendo e ampliando o projeto
54
inspirado na teoria de Fritjof Capra (2006). Por ter migrado da extensão,
a primeira bolsista POP imediatamente deu personalidade popular a esse
novo projeto de pesquisa, promovendo vivências e registrando-as de forma
próxima com os demais eixos de ensino desenvolvido nas comunidades.
Foi criado um jornal chamando A Folha do Horto e um vídeo com nome
Horto Ecológico Cruzeiro do Sul (HORTO ECOLÓGICO..., 2009) disponível
no Youtube. A primeira das quinze edições do jornal faz parte de um livro
intitulado Jornal de Memórias (2016).
Embora longe da Amazônia, há caminhos que podemos traçar
a fim de que nunca se perca a alma extensionista e de que nunca cesse a
sede de mudança, de empoderamento e de permanência. A Amazônia não
é um lugar, mas tornou-se um estado de alma, de presença. Lá, com os
ribeirinhos, sobre as águas e os barrancos, integrados com a natureza; aqui
com os da periferia, desintegrados da sociedade. Nesse âmbito, encontrei
nesses outros projetos, a motivação para continuar o que comecei. Como na
música “O sol”, de Jota Quest – “pra onde tenha sol, é pra lá que eu vou”–,
caminhei na direção de onde eu deveria estar. E aqui estou, neste momento,
registrando essa jornada cheia de sol.
Segundo Boaventura de Souza Santos em A universidade no século
XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade (2004,
p. 53): “A área de extensão vai ter no futuro próximo um significado muito
especial.” Para mim, esse futuro já chegou. O futuro da extensão está sendo
construído nesta década, e tem raízes na década de 60, quando ainda não
era teorizada dessa forma.
2010 em diante
Esta década iniciou com a consolidação da extensão a partir do
revezamento de acadêmicos, professores e lideranças locais, e da presença
contínua de extensionistas interligados como os fios de um tecido em lugares
55
onde também desenvolvemos pesquisa e ensino, vinculados à comunidade
e às instituições do lugar. A vida continuava, relembrando-nos de ciclos
anteriormente vivenciados, só que em outra realidade.
A extensão sempre surpreende. Estando na comunidade, enquanto
desenvolvemos um projeto, os desafios vão surgindo, demandando adap-
tações, mudando de rumo, renovando equipes, criando parcerias. Nesse
sentido, durante as férias surge um projeto da universidade que nos convida
a ir além da ponte, para o bairro Arquipélago de Porto Alegre, fazendo-nos
conhecer novas fronteiras.
56
por um conjunto de dezesseis ilhas, canais, pântanos e charcos da região
metropolitana de Porto Alegre. Os professores e um grupo de alunos de
diferentes cursos ficamos convivendo com a comunidade local e conhecendo
de perto a vida e a natureza do lugar. Foi tão bom que, para mim, foi como
retornar à Amazônia. Ali me encontrei novamente com a natureza, com
a água, com a equipe multiprofissional, com a possibilidade de ver a lua
cheia e de observar a pesca em um lugar onde, ainda, a pressa não se fazia
presente, mas os desafios afloravam por todos os lados.
57
da Biodiversidade – festejada na Colônia de pescadores-Z5 com a presença
do pessoal da Cruzeiro – e o Dia do Sol – comemorado na SEMA com a
participação das crianças da Escola Almirante Barroso, do grupo de terceira
idade da USF da Cruzeiro e do grupo da USF da Ilha da Pintada). Entre
os bolsistas, dividiam-se as responsabilidades da produção de materiais
didáticos e registros de vivências.
Desde 2011, levamos adiante, além das atividades programadas,
um singular e contínuo registro ilustrado das mesmas, de acordo com os
bolsistas do momento e a integração com o Programa de Popularização
da Ciência – conhecido como BIPOP, da PROPESQ – com a qual compar-
tilhamos muito tempo de nossa caminhada. O resultado disso foi a siste-
matização personalizada tanto da extensão como do BIPOP muitas vezes
juntas, confundindo-as. Enquanto ouvíamos as histórias, conhecíamos as
pessoas e nos aproximávamos da realidade, juntando gerações, descobrindo
personagens e suas valiosas lembranças. Essa vivência deu como resultado
cinco livros: As Histórias do Seu Salomão; As aventuras do Seu João; Iscas
bibliográficas do Delta; Iracema, a Cema da Ilha e Vó Caco. Esses livros,
individualizados e acrescidos de mais vivências e conteúdos, compuseram
o livro manuscrito Ilhas de Conhecimento..., que, embora não tenha sido
publicado, está presente nas bibliotecas da Universidade e em algumas
instituições da Ilha da Pintada. Todos esses trabalhos foram divulgados
em salões, seminários, congressos, eventos de divulgação da universidade
– como UFRGS Portas Abertas –, e em eventos da própria comunidade
da ilha, a fim de compartilhar nossas experiências. O programa Ilhas de
Conhecimento... ganhou o prêmio destaque da UNITV 2012.
Inicialmente nos envolvemos em um projeto integrado a outros
que estavam sendo desenvolvidos no Delta, passando pela Ilha dos Mari-
nheiros e a Ilha das Flores, mas permanecemos na Ilha da Pintada, onde os
seguintes estabelecimentos serviram de âncora para nossos aprendizados,
assim como algumas famílias que compartilharam conosco seus lares,
seres e saberes:
58
• Associação dos Amigos Artesãos e Pescadores da Ilha da Pintada
(AAAPIP);
59
caminhadas, agora sabidamente de Extensão (comunitária, popular, univer-
sitária). Como descrever aqui a experiência amazônica de ações permanentes
de milhares de alunos? Será necessário mensurar resultados significativos
se, de acordo com os relatórios estatísticos de cada grupo, era unânime
que essa foi a melhor experiência acadêmica do curso? Como descrever o
retorno aos locais depois de tanta atuação sem ser mais reconhecido? Já
consagrada nossa prática extensionista, associada ao ensino e à pesquisa,
passamos a fortalecer o registro dessas práticas, sentindo a necessidade
de que aqueles relatos permanecessem na universidade, de retribuir e
empoderar a comunidade; afinal, é a comunidade a protagonista da nossa
formação enquanto acadêmicos. Nesse sentido, começamos a pensar em
uma forma de deixar-lhe algo daquilo que produzimos com ela, e isso
aumentou a consciência com a parceria do projeto BIPOP/Alfabetização
Ecológica, principalmente nas últimas edições. Convido o leitor a acessar
esses documentos (6.ª edição) presente no livro "Jornal de Memórias e
conhecer mais sobre o processo dessa caminhada.
60
Imagens 12 e 13 – À esquerda: Fotografia tirada a partir do saguão do refeitório do
Campus: em primeiro plano, a Rua 21 de abril; em segundo plano, os telhados da
serraria do João Português; ao fundo, o Rio Solimões; e, além deste, o Peru. À direita,
foto aérea da cidade Benjamin Constant
61
A viagem e o reencontro com pessoas e lugares após quase 25 anos foi algo muito
emocionante e também muito gratificante. Serviu também para confirmar uma
frase da Pró-Reitora, Prof.a Jacqueline Poersch, quando comuniquei da nossa in-
tenção de retornar: ‘O que se leva de bom nesta vida são os afetos que cultivamos,
as amizades construídas e as coisas boas que fazemos para e pelos outros.’
Foi lá que minha esposa e companheira Gema – que esteve comigo nessa viagem
– e eu nos conhecemos. Hoje, ela atua na UFRGS como professora e eu conti-
nuo trabalhando na PUCRS. Sua contribuição foi fundamental na coordenação
local dos Programas de Saúde desenvolvidos em Benjamin Constant pelo Cam-
pus Avançado da PUCRS, além de ter desempenhado funções como Professora
do Colégio Imaculada Conceição da SEDUC e na capacitação dos professores e
agentes de saúde.
62
rência cultural no estado do Amazonas como artista, poeta, escritor – chamado
Celdo Braga, que foi um entre mais de 250 alunos de licenciatura curta nos
cursos de Ciências, Letras e Estudos Sociais oferecidos em Benjamin Constant.
Celdo Braga teve, juntamente com outros e graças a uma bolsa da PUCRS, a
oportunidade de cursar a licenciatura plena aqui na PUCRS. Hoje não cansa
de relatar a importância e o significado do Campus Avançado para a região do
Alto Solimões.
Durante o tempo que passamos revisitando o Alto Solimões, vários aspectos cha-
maram nossa atenção, como:
• A memória viva que o povo tem em relação a tudo o que o Campus fez;
• Que a mensagem mais deixada pelo Campus, mais referida e que deixou a
marca mais profunda seja a das pessoas que se lembram do Campus muito
mais pelo que representou, como referência de valores, indicador de possibilida-
des e caminhos… Isso significa que uma luz se irradiou para as pessoas que, de
alguma forma, foram beneficiadas pelos programas;
63
• A alegria irradiante do reencontro que foi externada pelos mais afetuosos abra-
ços, pelas mais entusiasmadas manifestações de gratidão em relação a aquilo
que o Campus representou em suas vidas;
• Que nos lembrassem com reverência como professores que abriram perspecti-
vas de novas possibilidades e passaram segurança profissional e pessoal para
encarar novos desafios;
Sentimos muito orgulho em nome dos mais de 3.000 campistas que ajudaram
a construir essa experiência, sem esquecer os funcionários do lugar, que nunca
mediram esforços e sempre foram fiéis a seus compromissos e ajudaram muito no
trabalho que o Campus desenvolveu.
64
gratidão e reconhecimento do trabalho do CAAS. Dos diversos depoimentos
que circularam nas redes sociais, destaco apenas o de Luiz C. Viana, que é
filho de uma líder comunitária com quem muito trabalhamos:
[...] tive o privilégio de conhecer e acompanhar o trabalho positivo que eles fize-
ram com os cidadãos benjaminenses; o Projeto Rondon fez e faz falta a todos os
cidadãos. Muito obrigado por todo o trabalho positivo realizado junto ao clube
de mães do Umarizal.
Valeu a pena ter feito o Horto porque muitas pessoas vêm aqui pegar folhas de
chá. Conversar. Espero que ele fique aqui para que os nossos filhos conheçam o
que a gente viveu.
65
esperar a mudança virtuosa? Muitos retornam perpassando gerações, quase
refazendo o mesmo ciclo e aparentemente felizes.
Permanecendo nessas comunidades – em revezamento cíclico
de grupos de acadêmicos em atividades de ensino, pesquisa e, mais per-
manentes, extensão – os resultados tendem ser mais evidentes nos apren-
dizados enquanto acadêmicos que refletem sobre sua prática do que nas
transformações percebidas na comunidade. Isso nos levou a pensar o que
seria mais virtuoso: se continuar estimulando a mudança ou tentar com-
preender um pouco mais a realidade e aprender com isso. Dessa forma,
possibilitava-se a revisão das teorias ensinadas para, depois, pô-las em
prática como profissionais.
Nessa ciranda da vida, percebi que a universidade chega à comu-
nidade de diferentes formas e independentemente da sequência pesquisa,
ensino e extensão, e que o acadêmico percebe o espaço múltiplo para pro-
mover o aprendizado e desenvolver o potencial de desenvolvimento local,
um puxando o outro, a partir do diálogo e da permanência. Em Benjamin
Constant, a PUCRS chegou antes com a extensão desenvolvida pelo Projeto
Rondon, apoiando a pesquisa e o ensino de acordo com as necessidades e
com o tempo de permanência. Já na Vila Cruzeiro, o ensino chegou antes
graças à UFRGS, que não demorou em estabelecer a extensão e a pesquisa.
Na Ilha da Pintada, um biólogo da UFRGS que fazia uma pesquisa de dou-
torado abriu um espaço favorável para a presença da universidade a partir
de um projeto de convivência, originando um programa permanente de
extensão, ensino e pesquisa. Havendo permanecido 10 anos em Benjamin
Constant, 20 anos na Vila Cruzeiro e trabalhando desde 2011 também
na Ilha da Pintada, percebo que, andando juntos, o ensino, a pesquisa, a
extensão, a universidade e a comunidade se enriquecem na convivência,
independentemente de quem chega primeiro.
Com a da expansão da Av. Cruzeiro do Sul (PAC – Copa – 2014),
foi recortado parte do barranco onde se encontrava o Horto. A pedido da
comunidade e da equipe de saúde, retornei em 2016 para readequar o que
66
restou do Horto e deixá-lo lindo para o lançamento de O Livro do Horto
(abril de 2017), que conta sua história original.
Depoimentos
Neste espaço, apresentarei algumas das vozes que falam sobre
extensão, ensino e pesquisa, sobre si e o Brasil, sobre esperança e sonhos.
Reflexões, sucessos, aprendizados e espiritualidades estimulados por sua
prática social, de alguma forma, de fronteira.
67
Com o tema Extensão, memória e patrimônio, o 30.° SEURS foi realizado na
cidade de Rio Grande. Foram três dias de aprendizagem, troca de conhe-
cimentos e conexões que nos fizeram crescer, e ensinaram a olhar para
o outro como eu quero ser visto. Ficaram a saudade, os novos amigos, as
pontes construídas e o desejo de nos encontrarmos outra vez; mas, acima
de tudo, ficou a certeza de que na extensão pertencemos uns aos outros e
estamos sempre conectados...
68
vivenciada, trabalhando na sistematização das experiências extensionistas de
quem a precedeu nos projetos aqui relatados. Diante de seu papel, ela relata:
Vivi uma infância tranquila, com muitos sonhos. Adorava escrever e dese-
nhar e me destacava muito na escola por isso. Lembro que assistia As aven-
turas de Tintin apenas porque ele era jornalista. Entrei na universidade em
2015 e, ao procurar uma bolsa em 2016, me surpreendi com a proposta da
autora desta obra. É minha primeira experiência relacionada à extensão.
É muito prazeroso poder ajudar a construir um livro de tantas memórias
e vivências.
EXTENSÃO
DE
FRONTEIRA
69
com muitas pessoas e, embora não estando lado a lado, a vivência acabou
por nos aproximar de um mundo novo chamado ‘extensão popular’. No
momento este livro está em processo de publicação, mas já deu alguns
frutos, como a apresentação no 34.° SEURS, do 03 ao 05 de agosto de 2016
no Instituto Federal de Camboriú-SC. O SEURS é um encontro anual que
congrega universidades públicas dos três estados da região sul do Brasil
que buscam compartilhar trabalhos de extensão.
‘Fala das relações, das trocas, do diálogo, das produções, da integração aca-
dêmica cultural.’
70
A partir dessas respostas e de minha experiência como extensio-
nista, acabei por aprender que:
Acredito que exista, nas diversas opções de caminhos por onde pudermos
passar no transcorrer da vida, uma força abstrata que conduz e direciona
nossos passos até os momentos decisivos e positivos que devemos viver.
Creio que, lá em 2012, essa força me conduziu, ainda no meu primeiro
semestre de vida acadêmica, ao processo seletivo que me levou ao meu pri-
meiro Projeto Rondon. Sabia que estaria em um mundo desconhecido.
71
Hoje, tanto tempo depois desse momento, e após ter participado de quatro
operações, sei que a saudade bate à porta todos os dias e me faz não ter
vontade de parar. No Rondon, eu aprendi que é fácil sentir emoções das
mais belas espécies. Aprendi que posso ser rondonista todos os dias dando
continuidade aos aprendizados e aos momentos solidários e positivos vivi-
dos, assimilando que fazer bem ao mundo é apenas questão de iniciativa;
devo pensar sempre em quem está ao meu redor e que, depois de formado,
meu conhecimento será muito mais proveitoso quando aplicado para o bem
coletivo. A extensão universitária é a parte mais linda da graduação e pou-
cas coisas são mais gratificantes do que aprender ao mesmo tempo em que
se transmite conhecimento.
72
e ref letir sobre o que os idosos têm para compartilhar conosco: suas ale-
grias, suas lutas, seus conhecimentos e suas visões de mundo. A exten-
são me deu a oportunidade de crescer não só academicamente, mas tam-
bém como pessoa. As parcerias com colegas da universidade oriundos de
diferentes cursos e as trocas de saberes com as pessoas das comunidades
valorizam os diversos conhecimentos e experiências e deixam marcas pro-
fundas e benéficas em nossas almas. Enquanto acadêmica do curso de
História, fui bolsista de extensão em 2013 e, depois, bolsista BIPOP em
2014. Hoje, já formada, envio esta mensagem para o livro.
73
Nara, psicopedagoga, relata que:
74
carente da minha cidade. Pude auxiliar os desempregados com o conhe-
cimento adquirido ao longo de minha formação como Técnica em Ges-
tão de RH, contribuindo para suprir suas necessidades pessoais e ofere-
cendo a eles a chance de ter um posicionamento destacado no mercado de
trabalho.”
Desde pequena gostei de manter contato com a natureza, por isso esco-
lhi estudar Biologia. Ao chegar à faculdade, em 2013, pretendia trabalhar
com pesquisa e laboratório, mas a docência me conquistou. Ensinar, estar
em contato com crianças e saber que meus ensinamentos farão parte dos
princípios que formarão suas personalidades é apaixonante. Vejo que na
sala de aula posso transmitir minha vivência não só como bióloga, mas
também como pessoa.
Queria ser médico, ajudar as pessoas, receber presentes dos pacientes mais
satisfeitos. Hoje sou gari. Nem tudo é como queremos, mas as pessoas
ficam felizes em ver a rua limpa.
75
Os seguintes depoimentos foram coletados no 30.° SEURS, reali-
zado em 2012, em Rio Grande/RS, a partir da pergunta “Por que extensão?”.
As respostas foram dadas por acadêmicos, professores, pró-reitores, e outros
participantes durante o SEURS.
•
Porque a extensão pode me levar a novas vivências e à partilha
do saber; de mãos dadas com a comunidade, executando a extensão,
pesquisando e atribuindo conhecimento.
•
Extensão para que a pesquisa faça sentido, para levar o conhe-
cimento para comunidade e também para que se aprenda com ele.
Trocas de conhecimento são sempre positivas.
•
Extensão significa gente que se conecta com mais gente e faz
o mundo girar de forma mais harmoniosa e igualitária.
•
Os Programas de Extensão nos proporcionam trocas de conhe-
cimentos, e isso é muito gratificante. Posso dizer que, de todos os
programas em que participei, saí com uma carga de conhecimento
incrível. Certamente minha formação não seria completa sem isso.
Ser extensionista é se apaixonar pelo que faz e, assim, transmitir
isso para quem nos cerca.
•
A extensão é uma forma clara, objetiva, humana e cidadã de
transmissão de conhecimento. A extensão é a expressão de uma
vontade comum em passar, adquirir e compartilhar o saber.
76
•
Extensão é a ponte entre o conhecimento e a necessidade,
quebrando a distância entre eles e levando às universidades em
direção às necessidades da população.
•
Alfazema: cheiro de vovó. Orquídea: primavera. Alecrim: pra
enfeitar e aromatizar a casa. Violeta: flor da vovó. Mentas: chazi-
nhos dos bebês. Extensão: pra resgatar as memórias e os cheiros
da infância, aproximar pessoas, compartilhar conhecimentos e
aprendizagens.
•
Gente Gente Extensão Gentessss.
•
Extensão é a universidade atuando junto com a comunidade
e para a comunidade.
•
Extensão é o elo entre a universidade, a prática do que se estuda
na comunidade e com a comunidade.
•
Porque nos permite ter contato direto com a comunidade, uma
troca de experiências e vivências.
•
Extensão porque a vida é feita para ser compartilhada, assim
como um livro que vai modificando cada um que o lê.
•
Extensão porque exercendo cidadania também nos tornamos
cidadãos.
•
Sentir esses deliciosos perfumes torna ainda melhor a viagem
ao maravilhoso Rio Grande do Sul.
•
Extensão é um compartilhamento de conhecimento e cultura.
77
É a proximidade de diversos tipos de pessoas em prol da melhoria
de vida.
•
Extensão é uma forma de ligar a universidade a toda a comu-
nidade, interagir na forma de projetos, apontando demandas
importantes e que precisam de incentivo.
•
Muitos caminhos... Muitas lições de sensibilidade... Terra...
Planta... Vida... Amor.
•
Extensão é o resultado de pesquisa e ensino aplicados a partir
de demandas sociais: novas possibilidades, maior integração entre
a comunidade acadêmica e a comunidade externa.
•
Comunidade, interação, universidade; construção conjunta,
ações cooperativas; melhoria das condições sociais.
•
Extensão: oportunidade de conhecermos a comunidade onde
estamos inseridos, participar de seu desenvolvimento e do nosso
próprio desenvolvimento; troca de experiências, novos horizontes.
•
Troque... Trocar amor e abraços, partilhar trabalhos, entregar-
se às emoções, interligar os corações. Deixe a nova era invadir seu
corpo, liberte a Deusa que está em você, acorde para os novos para-
digmas, sejamos vários na mãe Terra. Troque, partilhe, ame, seja,
pense, aja, troque sorrisos e sentimentos, aumente suas conexões,
sejamos a mudança que queremos ver no mundo.
•
O amor é a essência da vida... Meus amigos, meus filhos fazem
parte desse amor que coexiste no meu coração. Amo meus filhos,
são minha vida... Amor.
78
•
Porque não existe trabalho universitário sem que ele esteja dire-
tamente vinculado ao contexto das comunidades locais e regionais.
É compromisso das universidades – especialmente das públicas
– estar em diálogo permanente com as comunidades, valorizando
seus saberes e fazeres e construindo coletivamente novos conhe-
cimentos. Isso é a extensão.
•
Extensão é vida e plenitude; é mostrar para as pessoas que o
mundo é muito maior que o pedacinho de olhar que podemos ter
em nossas vidas. Extensão: um mundo a explorar.
•
Solidariedade, interatividade, sensibilidade ao próximo.
•
A energia que o universo emana é sentida por todos nós.
•
Extensão – a própria palavra já diz – é estender. Estender ideias,
conhecimentos e alimentar a mente do próximo. Sabe-se que, para
o mundo inteiro melhorar, é necessária uma revolução, porém,
estendendo este conhecimento, a mudança ocorre pessoalmente.
•
Porque a nossa vida é extensão desde o dia em que nascemos...
•
Porque extensão é plenitude de vida!!!
•
Eu faço e sempre farei e viverei extensão...
•
Extensão: a melhor forma de interagir com o outro, e de conhe-
cer a si mesmo...
79
Em síntese
Fechando o capítulo das vivências transformadoras em extensão,
percebo que a Universidade possibilita que os alunos vivenciem, enquanto
extensionistas, as teorias acadêmicas estando próximos de seus mestres e
que desmitifiquem as nuances dessas teorias na prática, despertando na
comunidade a possibilidade de também poder sonhar serem acadêmicos
um dia.
Os escritos sobre vivências de extensão caminhando junto com
ensino e pesquisa, há décadas, são consequência da convicção da impor-
tância de documentar, de alguma forma, o vivido na comunidade. Isto
permite fecundar as teorias acadêmicas de um mundo em movimento e
contribuir na formação dos futuros profissionais. Segundo Oscar Jara, a
experiência de sistematizar e registrar a extensão de forma compartilhada
pode retroalimentar o processo tríplice de formação acadêmica pelo fato
de ser transformadora na prática. O gráfico apresentado abaixo representa
nossa dinâmica de construção da transdisciplinaridade a partir da vivência
de extensão compartilhada.
Universidade
nc
r iê
Formação
pe
Acadêmica TRANSDISCIPLINARIDADE
Ex
Circulatória
80
Enquanto se discute conceitualmente sobre as diferenças entre
multi, inter e transdisciplinaridade, a prática fala em outro tom. Partindo da
minha experiência, a teoria transdisciplinar pode ter suas raízes na exten-
são rondonista desde a década de 70, dentro de ambulatórios flutuantes
móveis imersos em comunidades ribeirinhas; ou então a partir do fim da
década de 80, quando trabalhei nas comunidades de periferia, em Canoas,
com projetos compartilhados entre professores, alunos de vários cursos e
a comunidade; ou ainda quando, a partir de 1996, comecei minha atuação
no bairro Cruzeiro em Porto Alegre, onde continuo até hoje. Transdiscipli-
naridade é o aprendizado útil que restou após uma vivência intercultural,
a partir da extensão compartilhada, na prática, com ensino e pesquisa.
O leitor poderá encontrar esse caminho florido nas lembranças e
nos aprendizados adquiridos nos planetas amazônico e gaúcho da extensão
universitária do último meio século. Também o encontrará na voz de quem
semeou e se fortaleceu no duro e frágil cotidiano de carregar o pote rachado
semelhante ao da parábola (O POTE..., [200-]), entre tantas diferenças, desa-
fios, apelos, riscos, riquezas e belezas por caminhos onde nossos irmãos
brasileiros vivem à margem, na casa comum – assim chamada pelo Papa
Francisco na Carta Encíclica Laudato Si’ Sobre o cuidado da casa comum
(PAPA, 2015) – nem sempre bem cuidada, mas cheia de luz.
81
Parte Três
As Marcas
Lendárias Dessas
Vivências
Lembro aqui de uma cena do filme O homem que matou o facínora
(1962) em que, após finalizar uma entrevista, o jornalista se levanta e rasga
ao meio o papel onde havia registrado as respostas e diz: “Aqui é o Oeste,
senhor. Quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda”. De forma
análoga, no capítulo anterior estão publicados os fatos sobre extensão de
fronteira, e no próximo serão relatadas as marcas lendárias indissociáveis
dessa extensão.
Pensando na estrutura deste livro, apresentei, na primeira parte, a
extensão como instituição; na segunda, os relatos das vivências; e, por fim,
senti a necessidade de trazer para o leitor um desenho um pouco lendário
deste Brasil. Mas como pode ser traduzida a cultura de um povo? Como
pode ser chamada? Como pode ser contada? Aqui está um pouco do real e do
imaginário da lenda vivida. Dona de inúmeras lembranças foi a Amazônia,
e não menos surpreendente foi o contexto do nosso cotidiano na periferia
de Porto Alegre da Vila Cruzeiro e da Ilha da Pintada.
A partir das minhas lembranças, começo contando um pouco
da Amazônia que conheci na década de 1970 e 1980, uma vez que atual-
mente a Amazônia é mais conhecida de outras formas. No caso da Vila
Cruzeiro, essa narração está nas páginas iniciais de O Livro do Horto. Já no
da Ilha da Pintada, realizei o lindo sonho de descobrir a Amazônia num
bairro de Porto Alegre e, nela, pescadores nativos quase centenários com
histórias incríveis, algumas registradas no livro Ilhas de Conhecimento:
compartilhando práticas e saberes entre a universidade e a APA Delta do Jacuí
(PICCININI, 2013) e no vídeo Alfabetização ecológica e inclusão tradicional:
memórias, vivências e aprendizado (ALFABETIZAÇÃO..., 2015) já citados. Os
espaços, os lugares e as pessoas deixaram uma marca profunda e tornaram
ainda mais palatável a extensão que eu vivi. Espaços, lugares e pessoas que
marcaram pelo que sobrou de bom nas lembranças dos fatos. Viajar por esse
mundo de vivências e relatá-las é um trabalho muito delicado. Precisa-se
de tempo para perceber que, nas palavras de Mia Couto (LÍNGUA..., 2013):
“no fundo não se está a viajar do ponto de vista geográfico, mas está-se a
viajar por pessoas”, afinando nossa percepção através da convivência, da
escuta e, agora, da escrita.
Amazônia
Muitas vezes, de muitas maneiras e desde diferentes lugares, o
nascer do sol por sobre o tapete verde da floresta e o pôr do sol por sobre o
tapete barrento das águas do Solimões e do Rio Madeira me fizeram imaginar
como seria bom se não houvesse destruição, se todo conhecimento pudesse
ser preservado nos lugares onde as pessoas vivem e isso melhorasse suas
condições de vida. Como seria bom se as pessoas e a natureza pudessem
ficar por inteiro, compartilhando os ciclos como o sol.
86
da FAB (Força Aérea Brasileira) ao lado da pista do aeroporto. Eu ia rumo
a Porto Velho, e outros iam para lugares diferentes da Amazônia... Todos
sabíamos que íamos para o desconhecido. Todos os extensionistas estavam
com seus respectivos líderes e cada grupo aninhado num canto. Apenas
se ouvia murmúrios quando, de repente e como uma revoada de pássaros,
começamos a atravessar a pista correndo ao encontro uns dos outros. Cada
grupo, cada um de nós, se sentindo parte do Planeta Rondon, da sonhada
Amazônia. Se hoje, 44 anos depois, pudesse fazer uma comparação, diria
que aquele momento pareceu com uma revoada de pássaros que vi no ano
de 2013 em Milão, na Itália, durante um entardecer, enquanto esperava o
trem para voltar a Paris. Em 1972, eu era um deles; em 2013, eram pássaros.
Tempos diferentes e experiências inimagináveis.
No hospital de Vila de Rondônia, presenciei um parto mal condu-
zido traumático. A partir disso, e depois de formada, fiz uma especialização
em obstetrícia, procurando entender melhor o que é parir. Continuei por
esse caminho. Como bênção do destino, cinco anos depois fui convidada
para ministrar um curso para parteiras leigas em Benjamin Constant, pela
PUCRS/Projeto Rondon, no CAAS, lugar onde fiquei tempo suficiente para
compreender a natureza da gestação e do partir.
Certo fim de semana, fizemos uma viagem até Vilhena de carona
em um caminhão do correio brasileiro. Lembro-me do estado lastimável
em que chegamos, completamente cobertos pela poeira da estrada de chão
que entrava por uma fresta da carroceria. Percorremos mais de 300 km
sentados sobre fardos de correspondências, revezando-nos para manter
aberta uma fresta da porta de ferro para poder respirar. Tudo isso para
poder compartilhar nossas vivências com os colegas rondonistas.
Em outro fim de semana inesquecível, voltamos a Porto Velho
para passar umas horas com os campistas. De lá fomos juntos para Guajará-
Mirim (Brasil), cidade ligada a Guayaramerín (Bolívia) pelo rio Madeira.
Foi nesta cidade boliviana que conhecemos a chamada marinha-sem-mar
boliviana. Quanto patriotismo na alvorada de presença obrigatória do 5.°
Batalhão de Engenharia e Construção-BEC, com o toque da corneta às 6
87
horas e o hasteamento diário da bandeira! Isso se repetiu no Alto Solimões
durante a semana da pátria.
Durante uma visita ao Museu da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,
pudemos tocar e ver coisas lendárias que, até então, só existiam nas aulas
de História e Geografia do Brasil dos primeiros anos escolares. No entanto,
tocar nos objetos não foi suficiente para desmistificar toda a história da
construção daquela ferrovia.
Também me marcou meu primeiro contato com índios. Lembro
que os vi à beira da estrada tentando pegar carona em caminhões para ir à
cidade, vender artesanato e comprar mantimentos. Eram das tribos Suruis
e Cinta Larga. Deles, comprei pulseiras e colares e conheci um pouco de sua
cultura, mesmo sem ter ido à aldeia. Entre Ji Paraná e Porto Velho – local
onde fomos trabalhar alguns dias –, já havia um assentamento do INCRA.
Do Campus, lembro que havia desenhos e mensagens nas paredes dos
alojamentos; em geral, tratava-se do nome dos campistas e de mensagens
de cada equipe.
Na volta, olhando São Paulo pela janela do avião e vendo lá embaixo
aquela névoa sobre a cidade alguém gritou: “Viva a poluição!”.
88
visitantes e três residências para a equipe permanente e a direção. Além
disso, havia uma horta, a casa das bananas, um galinheiro, um chiqueiro
e um espaço para gado leiteiro.
No início, as viagens para o Alto Solimões tinham ares de aven-
tura, pois eram realizadas em aeronaves da FAB (Douglas C-118, Douglas
C-47 ou Búfalo C-115) e, mais tarde, nos Boeing da Varig que faziam a rota
POA-Manaus-Tabatinga. Para ir de Tabatinga a Benjamin Constant, era pre-
ciso viajar mais duas horas em um barco fretado ou no transporte de linha
chamado Recreio. Todas as sedes dos municípios de abrangência da área de
atuação do Campus margeavam o majestoso Rio Solimões. As populações
(caboclos e índios) concentravam-se nessas sedes ou em pequenas comu-
nidades ao longo do Rio e eram o alvo das ações desenvolvidas pelo CAAS,
sempre com a parceria dos municípios, de entidades e de lideranças locais.
Vivendo no mundo de hoje, parece impossível acreditar o modo
como naquele tempo era feita a comunicação cotidiana: o Grupo Tarefa
Universitária (GTU) da PUCRS transmitia as informações sobre Porto
Alegre para o Campus e desde o CAAS eram veiculadas as notícias para a
PUCRS. Diariamente, às seis da manhã de Porto Alegre – oito da manhã
em Benjamin Constant pela diferença de fusos horários –, estabelecia-se
contato administrativo. Aos sábados de tarde ocorria o contato via radiofonia
entre os campistas do CAAS e os familiares reunidos no GTU da PUCRS.
89
falar com seus familiares do RS. Esse deslocamento até Benjamin Constant
às vezes demorava dias de viagem, quando o rio não estava trafegável ou
quando não havia transporte aéreo da FAB. Uma filha fazendo aniversário,
um pai com saudades, uma esposa à espera... A única comunicação pos-
sível era o rádio amador do Campus. Em um mundo como o de hoje, em
que vivemos constantemente conectados e as informações nos chegam em
segundos, é difícil imaginar como era viver essa realidade. Mas a vivíamos
e escrevê-la agora é maravilhoso. Poder recordar tudo aquilo parecer lenda,
mas foi muito real.
Eu vi e guardo em minhas lembranças imagens bonitas de minha
chegada, do cotidiano e da natureza viva do Rio Amazonas. Eu vi, carrego
comigo e tento deixar aqui um pouco desta Amazônia que parece lendária,
mas que eu vivi como rondonista, enfermeira, mulher, campista, mãe e
esposa. Com a rápida chegada do processo de desenvolvimento econômico
na região amazônica e a sua posterior transformação, junto com o CAAS,
tentamos contribuir para promover o desenvolvimento sustentável daquele
povo, daquela cultura de fronteira e da mata em devastação pelo progresso
que chegava por todas as frentes. No meio de todo esse processo, lembro-me
de ter ficado encantada com muitas coisas. Ou melhor, com quase tudo.
Imagem 16 – Este homem vive da floresta, caça e constrói os telhados com as palhas
90
o lugar
91
Enquanto estrangeiros, chamou nossa atenção esse cotidiano em
que tudo se processa a partir do rio. Pelo barulho do motor, os ribeirinhos
sabiam qual barco se aproximava – se era o recreio trazendo mercadorias e
turistas; se era o Igara Catuçaua, o Marubo, ou o Seringueiro, nossos barcos
da saúde; se era o Igarinha, o barco da educação; ou os barcos da fiscali-
zação, dos militares, dos traficantes ou da guarda de fronteira. O anúncio
da aproximação de cada uma dessas embarcações gerava na comunidade
comportamentos específicos que, com o tempo, foi possível identificar. Nada
diferente do que acontece na metrópole. Porém, lá, no âmago da floresta
amazônica, o som do barulho dos motores era a toque para a mobilização
dos ribeirinhos, em todos os sentidos, pois todos os acessos são pelo rio.
Na mata predomina a escuta atenta do som do silêncio, inter-
rompido pela folha que cai, pelo vento que sopra, pelo silvo de um pássaro
ou pelo ecoar dos trovões que anunciam a chuva que se aproxima e que
formará córregos, encherá igarapés e embelezará lagos quietos que pare-
cem ter caído no sono. No meio da floresta, sempre se teme a possibilidade
de a discreta onça estar à espreita, antes de ser percebida pelo mateiro ou
pelo caçador. Aliás, é preciso destacar: só se entra no mato acompanhado
pelo mateiro, que é quem conhece o ambiente e seus segredos, quem sabe
entrar e sabe sair. É possível ingressar na floresta de duas formas: de canoa
ou andando a pé, remando até as cabeceiras dos igarapés, onde moram os
caboclos que conhecem o lugar, e depois andar com eles até seus roçados
ou um pouco mais.
Nos passeios de fim de semana de verão, viajávamos pela estrada
BC-Atalaia – que nem sempre estava transitável – para visitar os colegas
rondonistas. No caminho costumávamos parar várias vezes, seja para tentar
atravessar o Igarapé Branco e o Igarapé Preto ou para bater nas gigantes
espátulas da centenária sumaumeira e ouvir o som se propagar a grandes
distâncias. Essa estrada, que havia sido criada para chegar por terra ao
Pacífico sem demora, estava abandonada. Restou a cicatriz na floresta do
sonho de chegar até lá. Quem tenta andar por essa estrada corre o risco
92
de se defrontar com uma onça em seu mundo natural, bebendo água ou
atravessando para o outro lado.
Percorri carreiros – atalhos por onde se anda a pé dentro da flo-
resta – para visitar alguma pessoa ou alguma roça pequena instalada nas
clareiras da floresta, onde havia pés de milho e de mandioca. Para encurtar
caminhos, também naveguei em canoas pelos varadouros durante as cheias,
quando o rio tomava conta da floresta.
Apesar de ter andado mata adentro, não vi nenhum jaburu nem
o pássaro do canto mais lindo, o uirapuru. Pode considerar-se bem aventu-
rado aquele que teve o privilégio de ouvir. E alguns o ouviram, mas eu não.
Em áreas desmatadas vi muitos japins, que costumam construir todos os
ninhos no mesmo lugar. Por causa disso, as árvores remanescentes ficavam
parecendo pinheiros de Natal vivos, lindos e barulhentos; principalmente
no entardecer.
Durante um passeio de fim de semana, fomos com os campistas
até a Laguna Sacambú, no Peru, e ali pude ver cardumes de piranhas. Isso
impediu que eu mergulhasse, mas observar a beleza do lago e das piranhas
foi suficiente. Não vi nenhuma travessia do gado no lago, portanto, não
pude confirmar se é verídica a expressão “boi de piranha”, que se refere
à estratégia pela qual, diante da necessidade de atravessar um rio ou um
lago, o boiadeiro sacrificaria uma res fazendo-a entrar primeiro na água
para distrair os cardumes de piranhas e que, assim, o resto da boiada possa
atravessar em segurança.
Em outro lago que visitei durante uma expedição ao centro da
mata, vi uma jaçanã sobre uma vitória régia no alto de um igarapé. Depois
de andar de barco até onde era possível, tomamos a canoa e, carregando-a
mata adentro, atravessamos igapós andando sobre troncos caídos que serviam
como pontes suspensas. Mesmo correndo o risco de achar peixes poraquê
debaixo da água e formigas de fogo em cima, precisávamos chegar ao lago
onde se navegava em silêncio com a canoa, como uma forma de vivenciar
o coração da mata nativa. Privilégio igual não há. Ao viver esse momento,
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tranca-se até a respiração para ouvir a voz do silêncio e rezar. Nesse lago
ajudei a pescar um pirarucu de mais de 40 kg. Como lembrança, ganhei
o couro do peixe, que limpei em casa junto com meus filhos pequenos.
Ainda hoje guardo comigo algumas de suas escamas.
Também vi os lendários botos tucuxis que, em saltos sincronizados
precediam os barcos fazendo acrobacias. Segundo uma lenda local, em noites
de festa, os botos saem dos rios em forma de belos rapazes e encantam as
moças, engravidando-as e voltando depois para o rio. Esse mito deu origem
à expressão filhos do boto utilizada na região para se referir a crianças de
pai desconhecido.
Nas viagens pelos igarapés, vi de perto pássaros de muitas cores e
com raros trinados, se sentindo donos da floresta. Alguns animais – como
araras, jabutis, jiboias – não tinham medo de gente e apareciam no quintal de
minha casa e meus filhos pequenos brincavam com eles. Soltos e mansos,
iam e vinham para comer e brincar.
Vi muitas espécies de mosquitos além do carapanã, como o maruim,
do mucuim, cuja presença incomoda tanto que certamente contribui para
o retardo da povoação da Amazônia. Os insetos são quase invisíveis, mas
o efeito de sua picada perdura por muitos dias, provocando inchaço e uma
coceira insuportável. Lidar com eles é uma arte.
A ave preta conhecida como jacamim-de-costas-escuras morava no
quintal, perto da cozinha e junto com os macacos-prego que nos encantavam
com suas macaquices. Aliás, havia muitas espécies de macacos na mata e
no quintal; inclusive adotamos um deles como filho e demos a ele o nome
de Michita. Os pequenos saguis viviam no ombro das pessoas, debaixo dos
cabelos das índias. Certa vez ganhei um macaco-da-noite, uma espécie rara,
mas logo o levei para a mata e o soltei. O ronco do macaco guariba parecia
inspirado na longa tosse da coqueluche dos humanos; tanto que lá se diz
que quem sofre dessa doença “está com guariba”.
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a terra e o povo
95
Imagens 17, 18 e 19 – Ribeirinhos aguardando a chegada do barco Igara Catuçaua
a vida no caas
96
Nossa alimentação era coletiva se realizava no refeitório com toda
equipe e funcionários. Havia duas cozinheiras que se revezavam na sede do
Campus e uma em cada barco. A comida era saudável e diversificada: havia
variedade de peixes, de carne de caça, de frutas nativas. Aos poucos, também
fomos cultivando hortas e pomares e buscamos alcançar a sustentabilidade
de produtos animais. Se quiséssemos pescar, só precisávamos pegar o anzol
e descer o barranco; se quiséssemos colher uma fruta nativa, podíamos ir
até o fundo do Campus ou até quintal de minha casa, onde havia muitas
plantas nativas frutíferas da floresta amazônica que, seguidamente, estavam
cercadas de animais da mata. Lembro que eu colhia bananas maduras direto
do pé, graviolas de mais de quilo, pupunhas vermelhas e amarelas, fruta
pão, buriti, caferana, cupuaçu, araçá-boi, açaí, amêndoas silvestres, jambo,
cajá-manga e biribás. Havia também uma grande castanheira, ingazeiros
com vagens de mais de metro e uvaia. Aos poucos, foi construída uma
grande horta coletiva coberta onde se cultivava tomate, salsa, pimentão,
curuá, maxixe e outros. Os ribeirinhos e os habitantes das cidades vizinhas
não costumavam cultivar hortas e foi por isso que a nossa foi um ponto de
atração entre eles e foi mais um motivo para eles visitarem o Campus. Lá
a terra nos dava quase tudo de que precisávamos, e os produtos faltantes
podiam ser adquiridos na vizinha Colômbia.
reserva de alimento
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não custa muito dinheiro, nem custa fazer também” – e a casa de farinha –
situada perto de sua pequena roça de macaxeira e onde o caboclo estoca seu
alimento. Visitei centenas de tapiris. Alguns ficavam nas aldeias, e outros
se isolavam franciscanamente ao longo do rio Amazonas ou do Javari, seu
primeiro afluente.
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dos ribeirinhos e eram uma ameaça. Na fazenda do Campus, eu vi sinais
de presença de uma onça que vinha caçar o gado que se afastava um pouco
do rebanho e da área desmatada próxima do rio. Muitas vezes os caboclos
as matavam quando rondavam seus tapiris e depois utilizavam seu couro
para decorar suas residências.
Certa vez, visitei um seringal e colaborei colhendo látex de uma
seringueira que tinha mais de um metro de cicatriz usando uma caneca.
Mais tarde, participei da fabricação das pelas, que são as bolas produzidas
pela condensação do látex colhido da seringueira e despejado lentamente
sobre uma vara quente que roda sobre o fogo. Uma vez produzidas, as pélas
de até 20 kg são armazenadas e transportadas do seringal até os pontos
de venda. Enquanto defumavam o látex, os adultos jogaram uma pequena
péla para que as crianças brincassem como se fosse uma bola de futebol.
Dos seringueiros, ganhei uma péla que guardo até hoje e que me fez com-
preender a origem da expressão “vamos jogar uma pelada”.
Nos tapiris de aldeias e recreios, vi muita gente descansando sobre
maqueiras – uma espécie de rede que durante muito tempo foi o único
lugar de descanso que o homem amazonense teve antes de ter acesso à
cama e que ainda é utilizada pela maioria dos ribeirinhos em seus tapiris
e nas embarcações fluviais. Eu mesma sesteei muitas vezes nas maqueiras
durante as viagens a bordo de nossos barcos.
Durante o mês que permaneci em Tonantins para dar um curso
para agentes de saúde daquela região, compreendi a atitude de espera dos
ribeirinhos. No porto vi atracar um recreio vindo de Manaus com destino
a Benjamin Constant que carregava mercadorias e passageiros. Não lembro
se era o Dominique, o Almirante Monteiro ou o Itaúna, só sei que levava
oito dias de viagem para fazer todo o percurso e que Tocantins estava, mais
ou menos, a metade do caminho. Ao saber de sua chegada, muita gente,
silenciosamente, sentava-se no barranco que estava perto do porto e esperava
mercadorias, o bem amado, turistas, novidades, encomendas, o esperado
e o que nunca vinha. Após algumas horas, o recreio recolhia a prancha de
99
acesso e soltava as amarras para zarpar, seguir sua viagem e parar de porto
em porto nas comunidades ribeirinhas – como se fosse ônibus – até chegar
ao destino. Enquanto estive no Tocantins, também vi o barco do governa-
dor fazendo campanha para conseguir a reeleição e a vibração silenciosa
de muitos ribeirinhos que, sentados no barranco, esperavam a chegada
“do padrinho”. Eu vi aquela campanha eleitoral messiânica sustentada no
abandono amazônico dos ribeirinhos.
O trabalho apenas de subsistência parecia ser da natureza da
população local. Aristóteles, em sua obra A Política, explica que o trabalho,
em seu sentido manual e artesanal, era considerado algo degradante para
o homem livre e era inferior face à vida contemplativa. Dito isso, relembro
aqui os caboclos que, ao serem chamados para fazer algum serviço, como
cortar a grama, não se negavam, mas se constrangiam de fazê-lo diante de
outras pessoas. Isso nos levou a refletir sobre os fatores culturais de cada
região e sobre como as singularidades eram de difícil entendimento e nos
surpreendiam. Consequência disso, o nosso cotidiano consistia em trabalhos
de manutenção, de plantio, de cultivo, de limpeza e de compra de rancho.
Enfim, não havia uma instância de trabalho em que nós não estivéssemos
envolvidos, além da função de direção do CAAS.
culturas regionais
100
Carne de Macaco, Ataláia do Norte: Eu ainda não estava lá, mas
Adroaldo narra mais uma vivência com a equipe:
Creio que tenha sido em Maio de 1975. Era a primeira operação do barco de
saúde Igara Catuçaua longe da sede do CAAS. A viagem foi pelo Rio Javari e
seus afluentes Ituí, Itaquaí, Quixito e Curuçá. Viajamos durante cinco dias. Por
questão de segurança, só viajamos durante o dia até chegarmos ao Estirão do
Equador, onde existe um Pelotão de Fronteira do Exército Brasileiro. Lá inicia-
mos o roteiro de atendimento das populações ribeirinhas daquela região, consti-
tuídas basicamente de madeireiros e seringueiros ainda remanescentes do ciclo
da borracha e também de alguns povoados indígenas de Marubos e Maiurunas.
Lá pelo décimo dia de viagem, chegamos numa curva do rio e vimos que, no
outro lado da enseada, havia somente um tapiri acima da barranca do rio – a
região do rio Javari era muito pouco habitada. O comandante do barco Igara
fez a manobra de aproximação na direção do tapiri na enseada do rio, e o mo-
vimento do barco levantou uma onda maior que fez emergir uma enorme sucuri
na proa do barco. Todos os integrantes da equipe foram até a proa do barco para
ver aquela cena inusitada da enorme sucuri e foi acompanhando o barco que se
aproximava da margem. Um caboclo desceu até a margem para nos receber, e
todos nós fizemos sinal para avisar que a cobra estava se aproximando. Então, o
caboclo – com toda a tranquilidade do mundo – apanhou uma das varetas que
estavam espetadas na margem e que serviam para amarrar as pequenas canoas
que aí aportavam e, com um gesto como quem espanta galinhas – 'chiu, chiu!'
–, espantou aquela enorme cobra, que imediatamente submergiu e desapareceu
daquele cenário.
Aquele caboclo morava sozinho, longe de tudo e de todos e estava ansioso por ver
gente, pois já havia algum tempo que não via ninguém. Quando começamos
conversar, ele disse que, na noite anterior, uma onça tinha rondado a casa e que
os cachorros, amedrontados, tinham subido para o jirau de cima da casa. Tam-
bém disse que havia um tempo que o patrão não aparecia para recolher a seringa
101
e trazer os produtos – o rancho – de que tanto necessitava. Estava acabando a
reserva de sal, açúcar e café e só tinha mais dois ou três cartuchos para sua es-
pingarda. Por sorte, sempre carregava comigo minha espingarda calibre 16 – que
era o calibre que todo mundo usava na região – e tinha comigo duas caixas de
cartuchos. Apanhei um punhado de cartuchos e mais alguns pacotes de biscoitos
e dei para aquele homem que lá vivia sozinho. Só ele, Deus e aquela natureza em
toda a sua plenitude. Quando nos preparávamos para partir – depois de que a
equipe de saúde o tivesse examinado, dado as vacinas de prevenção e constatado
sua boa condição de saúde –, o homem me pediu que esperasse um pouco, subiu
os degraus da escada do seu tapiri e da lá retornou com um prato que tinha pe-
quenos pedaços de carne ainda com sangue. Entregou-me aquele prato dizendo
que era carne de macaco que havia caçado no dia anterior. Agradeci e partimos.
Nossa cozinheira, Dona Celina, preparou aquela carne e todo mundo da equipe
provou carne de macaco pela primeira, e talvez única, vez na vida.
102
bem as palavras nem os métodos de cura utilizados onde não há médico.
Mesmo assim, repetia as palavras de acordo com as instruções que o rezador
havia me dado, pois sabia que esse tipo de tratamento era, muitas vezes,
a única opção.
Festa da Moça Nova, Belém do Solimões (1979): A partir da pri-
meira menstruação, as meninas da tribo Ticuna ficam confinadas num
curral construído pela família dentro da própria casa. O objetivo é isolá-las
do contato masculino até que a família possa preparar a Festa da Moça Nova.
Durante os sete dias de celebração, apresenta-se a filha para a comunidade,
a tribo exibe toda a sua cultura e a menina é submetida aos mais diferentes
testes como rito de passagem. A festa é regada a caiçuma, bebida feita a
partir da fermentação da mandioca mastigada pelas anciãs e consumida
por todos no decorrer do ritual. Esse ritual sofreu algumas modificações
no momento em que chegou “a religião da cruz”, que proíbe o consumo de
bebida alcoólica. Foi nos permitido uma foto, que se encontra abaixo, com
a menina que esta com Cocar na cabeça e vestida de Tururi.
Imagem 23 – Registro feito durante uma Festa da Moça Nova: uma vivência única
103
Última mamada, Benjamin Constant (1978): Como esquecer? Era
sábado, estava eu na casa de uma parteira, cujo filho casaria naquele dia.
Antes de ir para a igreja, o noivo passou pela casa da mãe para dar sua última
mamada. Esses e outros fatos aconteceram nos meus dois primeiros anos
na região; muitas vezes causando estranhamento e, outras, dificultando
meu raciocínio para o atendimento das demandas em saúde, que vinham
de todas as partes, independentemente da hora, dia ou lugar.
“Filho?”, “Deixa comigo!”: Estava casada havia três anos e ainda
não tínhamos filhos. Aos domingos, era comum que os índios da região
fossem ao CAAS para trazer e vender seu artesanato, pois sabiam que,
geralmente, a equipe estava em casa e costumava comprar. Um daqueles
dias veio junto Seu Vicente, o ancião e xamã da aldeia, pai de Urias, nosso
amigo. Conversamos com ele sobre assuntos do Campus e da aldeia e, após
uma pausa, ele disse “filho?”, perguntando por que ainda não tínhamos
filhos, sendo que – pelo menos lá – procriar é consequência direta de ser
casado. Nós, que estávamos fazendo exatamente tudo o possível para que
eu engravidasse, respondemos que ter filhos era tudo o que a gente queria.
Ele olhou bem nos olhos de meu marido e disse “deixa comigo!” Exatamente
nove meses depois nasceu Alexandre no Hospital de Clínicas de Porto Ale-
gre. Para que tudo – ou nada – fique claro: não recebi visita ou conselho e
nem vi mais seu Vicente por longo tempo. Também nunca lhe perguntei
absolutamente nada. Foi coincidência? Coisa de Deus? Magia? Só sei que
está tudo bem e que acredito, com mais este fato, que há muito mais coisas
entre o céu e a terra do que a vã filosofia nos ensina.
“A muié descansou, mas não desocupou”: Certa vez, um caboclo
chegou à porta de minha casa bem na hora do almoço e bateu. Quando eu
abri, ele, de remo na mão, tirou o chapéu e disse essas palavras com uma
ansiedade difícil de achar naquele povo. Fazendo um sinal claro com os
lábios, indicou a direção: “dona menina, ela está ali no porto” disse apontando
para um barranco à beira do rio Amazonas. Foi um diálogo difícil demais
que eu não pude compreender para atender o chamado. Tratava-se de um
104
funcionário da fazenda do Campus que trouxera na canoa a sua esposa
que tinha dado à luz um filho, mas estava sofrendo uma hemorragia por
causa da placenta retida e estava entrando em estado de choque. Entender
a cultura de um povo que fala pouco, confia muito na gente e se comunica
com gestos mínimos, foi um grande aprendizado.
“Meu irmão, pra que pressa se o tempo não acaba?”: Essa pergunta
foi feita por um caboclo ao ser cobrado para acelerar o carregamento de um
barco. Naquele momento, surpreendeu a todos porque havia pressa, havia
espera, havia necessidade e o trabalho precisava ser feito. Quando ouvi
essas palavras, lembrei-me de que, enquanto crianças, a gente se desafiava a
citar, sem errar e da forma mais rápida, o seguinte versinho sobre o tempo:
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Imagens 24, 25 e 26 – Cenas do cotidiano dos ribeirinhos, em que o rio comanda
a vida. De esquerda à direita: trapiche no porto para banho de menino; casa na canoa
para que a família possa viajar: pátio roçado para que as onças e as cobras não
possam chegar até o caminho do porto
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vida estendida ao pé da letra, construída a cada instante e com constantes
surpresas nas demandas da comunidade ribeirinha e dos vizinhos estran-
geiros – colombianos e peruanos – com os quais compartilhávamos muitas
coisas, como a compra de combustol (combustível) para barcos na Islandia
ou dos mantimentos em Letícia, na Colômbia. Lá carecíamos de quase
tudo. Com o tempo e uma equipe de trabalho mais permanente, o CAAS
foi se tornando referência na região para que os ribeirinhos pudessem
vender seus cachos de bananas e os índios pudessem comercializar seus
artesanatos, para que fosse possível promover encontros internacionais de
fronteira, para poder hospedar autoridades e andarilhos e para oferecer
aconselhamentos dos mais diversos enfoques possíveis. O Campus era ponto
de apoio para elaborar pesquisas, abrigar pessoas em trânsito, promover
encontros... Tudo convergia lá, onde se ajeitava a mesa, as cadeiras e, sem
maiores cerimônias, os encontros aconteciam. Era comum o diretor dizer
“vamos dar uma sentadinha” significando a realização de uma reunião
para tratar desses assuntos.
Seja trabalhando com as equipes de estudantes ou nas áreas admi-
nistrativa, social, política ou religiosa, morávamos no emprego, como se
diz, em terra firme ou nos barcos. Assim, estávamos disponíveis 24 horas
por dia. Com frequência, na janela da casa aparecia alguém circulando ou
pedindo alguma coisa e sempre dávamos nosso melhor para ajudar den-
tro das nossas possibilidades. As vivências eram muito intensas. Estando
com os ribeirinhos, procurávamos achar soluções para prepará-los para a
autonomia e desestimular a dependência e a espera de milagres, como às
vezes acontecia. Aprendíamos, ensinávamos e trabalhávamos no silêncio
da espera, no compasso das batidas do terçado roçando ou descascando
macaxeira. Eu trabalhava atracada em algum porto atendendo ribeirinhos
e pelas noites, minhas horas vagas, lecionava no colégio as disciplinas
curriculares de maior complexidade – psicologia, filosofia e programas de
saúde – para os professores locais. Paulo Freire estava à flor da pele. Com
os alunos locais, foi criado e mantido durante anos um projeto de promoção
de hábitos saudáveis que instruía os alunos das séries avançadas para que
107
eles levassem ações educativas para as crianças das séries iniciais. Lembro
que, muitas vezes, as mães desses pequenos educadores acompanhavam
as atividades de higiene que eles promoviam, como a lavagem de mãos,
escovação de dentes e passeios de educação ambiental. Lá, assim como
aqui, o povo esperava muito da gente. Lá éramos e aqui ainda somos con-
siderados diferentes porque chegamos à comunidade e porque eles sabiam
e sabem que trazíamos soluções. Muitas vezes, era necessário trabalhar
dobrado para desconstruir a imagem de “curador universal” e canalizar os
processos de forma eficaz.
A busca da autossuficiência constituiu-se, desde o início, como uma
meta a ser atingida dado que a gestão do CAAS – principalmente no que
se referia à alimentação – não poderia ficar limitada à cultura extrativista.
Mesmo que naquela época e naquela região fosse abundante a carne de caça
e pesca, também havia necessidade de obter outras carnes, especialmente
suína, bovina e de frango. Para poder obtê-la, gradativamente fomos intro-
duzindo a criação de galinha poedeira, de suínos e de gado para leite e para
corte. Além de alcançar a autossuficiência nestes produtos, o trabalho era
conduzido visando desenvolver as boas práticas da criação animal junto à
população e introduzir novas culturas de subsistência para as populações
da região.
A prática era transdisciplinar, pois, naquele mundo em franco e
irreversível processo de transformação, a transdisciplinaridade se construiu
em nós a partir do convívio cotidiano das equipes multidisciplinares que se
revezavam para atender as demandas dos programas básicos de educação,
alimentação e saúde e das comunidades desses sete municípios ribeirinhos
da área de abrangência do CAAS.
Dos programas básicos mencionados, destaco aqui minha primeira
experiência, o Curso para parteiras leigas (1977). No primeiro dia de curso, as
alunas – senhoras parteiras, entusiasmadas e felizes por serem alunas pela
primeira vez– se apresentavam da seguinte forma: “Eu sou fulana, tenho
70 anos, fiz 500 partos e estou aqui para aprender [...]”; “Eu sou siclana,
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peguei muito meninu nas barrancas desse riu [...]”; “Eu sou beltrana, meu
pai me casou menina, tenho 17 neto e tô cansada de hôme [...]”; “Eu perdi a
conta, mas por onde ando tá cheio de marmanjo me chamando de madrinha
[...]”; “Eu tive 10 fiios mas já aposentei a perseguida fais é tempo [...]”; “Eu
graças ao bom Deus fiz 200 partos, não perdi um.”
Naquele dia elas me deram uma aula magistral de humanismo,
superação, entusiasmo, ternura e vida vivida. Todas elas eram analfabetas
e parteiras havia mais de 30 anos, e algumas havia mais de 60. Não havia
o que ensinar, mas fazia-se necessário conviver e aprender seus modos de
viver sua realidade e perceber as carências teóricas no meio da abundância
de prática vivida. Esse curso foi superdivertido e de muito aprendizado para
todos, pois havia uma liberdade de expressão e um apetite de aprendizado
em todos, inclusive em mim. Esse encontro ocorreu há mais de 30 anos
e provavelmente foi a melhor aula e a maior lição da minha vida como
professora. Às vezes, aqui sinto falta dessa sede de conhecimento. Pensar
naquelas mulheres me fortalece. Trabalhar em escolas ribeirinhas e na
formação de agentes de saúde foi muito estimulante. Nem sequer a água
invadindo a sala de aula era motivo para faltar ao trabalho. De todas aquelas
parteiras, lembro que eu aprendi muitas coisas com Dona Laura. Ela me
ensinou sobre o cultivo em uma horta montada em uma canoa furada que
ficava suspensa por causa dos predadores e das alagações. Também me
mostrou como preparar o caribé, uma calda energética que ela fazia para que
suas parturientes adquirissem a força e a energia necessárias para o parto.
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Imagens 27, 28 e 29 – As estações das escolas ribeirinhas do Alto Solimões em tempo
de vazante, de enchente e de cheias, respectivamente
Creio que tenha sido no ano de 1976, quando o governo do estado do Amazonas
decretou estado de calamidade pública em razão da grande cheia dos rios Negro
e Amazonas. Na ocasião, o governo do estado requisitou o barco Igara Catuçaua
para atender as populações ribeirinhas da periferia de Manaus e dos municípios
próximos. Na coordenação da operação, acompanhei o planejamento das ações
110
com a Secretaria de Saúde do Estado. Com uma equipe de profissionais da saúde
da própria secretaria, saímos para realizar um trabalho de assistência à saúde
e vacinação da população das áreas alagadas no município de Novo Airão. No
segundo dia de atuação, e enquanto estávamos atracados prestando assistência
em uma casa que estava em área totalmente alagada, vi se aproximando duas
canoas que saíram de dentro do igapó e pararam a alguma distância do nosso
barco. Quando comecei a fazer sinal para que se aproximassem, vi que havia
algo estranho com as pessoas que estavam nas canoas. Um pouco receosas, co-
meçaram a se aproximar do Igara e aí pude perceber que algumas levavam pa-
nos que encobriam parcialmente os rostos e os braços. Com a aproximação, pude
verificar que se tratava de leprosos que tinham partes do corpo (nariz, orelhas,
mãos...) já parcialmente consumidos pela doença. Com toda certeza foi um dos
momentos mais impactantes que já vivenciei ao longo da minha vida. A cena
bíblica da cura dos leprosos estava aí diante dos meus olhos, que naquele mo-
mento se turvaram com a emoção da cena. Tentando me refazer, iniciei um diá-
logo dizendo que estávamos ali para prestar assistência. O líder do grupo – um
senhor que se comunicava bem – agradeceu dizendo que há muito tempo não
tinham nenhum tipo de assistência. Numa manifestação conformista, mas ao
mesmo tempo muito consciente, disse que só tinham ‘Ele lá de cima’ para cuidar
deles. Rapidamente a equipe de saúde passou a prestar os cuidados em saúde
possíveis que aquelas pessoas necessitavam.
111
pouco que ela falava, dizia não conhecer homens. Também perguntei para a
senhora que ali estava, mas ela dizia não saber de qualquer contato. Poucas
horas depois, nasceu a criança em um hospital militar que havia não muito
longe dali. Aquela foi a minha segunda aula amazônica de obstetrícia. A
primeira, é claro, foi o curso de parteiras. Rapidamente, muitas lições foram
se acumulando em minha bagagem de vida. Aos poucos comecei a apren-
der que a vida ensina de um modo um pouco diferente ao da universidade
e que ambas as formas de ensino precisam andar juntas. Em momentos
como aquele, de quase abandono total, quando nossos conhecimentos
profissionais parecem não se aplicar, aflora o saber humano e a intuição.
Mal de Reza: Certa noite, já era tarde e eu estava retornando de
uma reunião na comunidade. Ao passar por uma casinha de palafita, vi
gente e uma lamparina acessa no meio da sala. Cheguei perto da escada e
vi um menino deitado no chão que parecia estar muito mal. Havia silêncio,
dor e resignação. Fiz algumas perguntas a alguém mais próximo e com-
preendi que eles estavam aguardando sua morte porque, segundo eles, o
menino estava com “mal de reza” e que não tinha cura. Fiz o que pude e
consegui levá-lo, junto com alguém de confiança da família, para oferecer
atendimento médico no Hospital Militar. Depois soube que o menino não
faleceu disso, pelo menos não naquela noite. Este fato me fez refletir sobre
princípios religiosos e científicos e sobre o mundo de necessidades que
se espraiam na nossa frente, dia após dia, nesse mundo tão real. Aprendi
muito sobre o tanto que ainda não sabemos.
Urgente ou importante?: Naquele mundo de fronteiras tão distante,
evidentemente, acontecem situações de urgência. Certa vez, por exemplo,
um senhor estava prestes a enfartar e precisava ser levado até o hospital.
No entanto, a viagem demoraria cerca de três dias e havia risco de que ele
viesse a falecer durante o trajeto. Contrapondo-se a esse fato, a programação
de continuar lá para vacinar, educar e semear foi levada adiante. Urgência
ou importância? Mesmo com preparo e conscientização sobre a realidade de
lá, muitas vezes surgiam situações que exigiam a tomada de decisões sérias
112
não só por parte daquele que estava atendendo, mas também por parte de
toda a equipe e a tripulação, tendo em vista que uns conheciam a situação
de urgência enquanto que os outros sabiam sobre a realidade do rio. Nosso
preparo para tomar decisões difíceis em um mundo cheio de necessidades
era limitado. Essa era uma reflexão frequente entre os membros da equipe
nas viagens de atendimento fluvial, dado que estávamos a dias de distância
de centros de apoio para tratar os casos de maior complexidade.
Apesar de já ter visto uma prática similar aqui também, foi lá
que vi primeiro a “coleção de medicamentos” identificados pela cor e pela
forma. Algumas pessoas, ao ouvirem o barulho conhecido do motor do
barco, olhavam para os medicamentos que guardavam como relíquias em
casa, tentavam identificar os que poderiam estar faltando na “coleção” e
simulavam doenças, neles mesmos ou em algum familiar, para poder
aumentar a coleção. Desta forma, eles tentavam garantir o abastecimento
de medicamentos para usar em épocas em que a gente não estivesse por lá,
ou seja, a maior parte do tempo. A cada viagem, antes do barco-ambulatório
zarpar para atendimento, refletíamos junto com a equipe sobre a clínica
e a prescrição, tendo em vista a realidade de abandono, as distâncias e os
riscos corridos pelo uso incorreto dos medicamentos. Para tentar remediar
este problema, foi realizado um curso de agentes de saúde ribeirinhos. O
primeiro objetivo era que cada comunidade tivesse um agente que facilitasse
o contato, a comunicação e o processo educativo de promoção da saúde a
partir do reconhecimento dos recursos locais. O segundo objetivo era que,
quando fosse necessário receitar medicamentos, seu uso correto estivesse
de acordo com a prescrição.
113
Imagem 30 – Barco Igara Catuçaua chegando a uma comunidade para oferecer
atendimento em saúde; no alto do barranco do rio vazante, a comunidade que espera
114
desanimado que dizia estar condenado a morrer porque tinha uma ferida
braba incurável. Naquele momento estava comigo uma enfermeira ameri-
cana que estava participando de uma missão religiosa na Amazônia e que
recentemente tinha retornado dos Estados Unidos, onde tinha sido operada
da coluna e, por causa disso, estava tomando papaína, enzima presente
no mamão. Pensando nos efeitos dessa enzima e no estado de abandono
do ribeirinho, fomos ao seu quintal e colhemos um mamão maduro que
cortamos ao meio. Colocamos uma metade sobre sua ferida e demos para
que ele comesse a outra, enquanto o orientávamos sobre alimentação e cui-
dados de higiene. Fomos falando do poder regenerador da papaína, sobre
fé e sobre o futuro. Depois aprendi mais sobre papaína, fé e leishmaniose.
Até onde eu sei, aquele senhor não morreu dessa doença e nem tão cedo.
Em 1978, passei eu sete dias acampada em Tonantins para um
curso de formação de agentes de saúde ribeirinhos. No primeiro fim de
semana, um dos alunos perguntou se podia ir a sua casa para visitar seu
irmão doente e nos convidou para que fôssemos com ele. Ele acreditava que
eu o poderia curar. Ao chegarmos lá, deparei-me com um senhor deitado,
imóvel, com quase todos os músculos paralisados. Segundo o aluno, seu
irmão piorava a cada dia. Diante daquelas condições, o que eu poderia fazer
além de permanecer um pouco ao seu lado compartilhando a sua realidade
de abandono, longe de tudo e de todos? Eu não conhecia a fibrodisplasia
ossificante progressiva. Da mesma forma, ninguém lá sabia como tratá-la,
pois nunca tinham visto essa doença antes. A casa do paciente ficava a sete
dias de Manaus e ainda mais longe de Letícia, na Colômbia, onde havia um
hospital. O único recurso de saúde era nosso barco que tinha como tarefa
prioritária as imunizações realizadas em retornos programados. Aquele
aluno, irmão do paciente, não retornou ao curso. Viu que eu não podia fazer
tudo, muito menos o que ele precisava naquele momento. Como profissio-
nais da saúde, com frequência nos é cobrado aquilo que não podemos dar,
e nós, ao não podermos cumprir com todas as demandas, desfazemos aos
poucos os mitos construídos e abrimos, na marra, outras buscas.
115
A vida extensionista nos surpreende de todas as formas, e a adap-
tação a um novo ambiente também nos leva a reformular nossos limites.
Sustos e sobressaltos podem ocorrer independentemente da intenção, do
local, da época e da circunstância. Desses eventos, trago aqui mais um
relato de Adroaldo:
Relato aqui um fato real ocorrido durante uma das operações do barco de saúde
Igara Catuçaua. Havíamos atracado e estávamos prestando atendimento a uma
comunidade de índios Ticuna. Era período de cheias. As pessoas chegavam por
terra e de canoa para buscar atendimento. As canoas ficavam atracadas junto ao
barco Igara. Ao ver aquelas canoinhas ali atracadas, um estudante de Medicina
decidiu por conta dar uma volta, convencido de suas habilidades de remador. De-
samarrou a canoa e, sem que percebêssemos, saiu remando. Mas aconteceu que
ele não tinha noção da força da correnteza do Rio Solimões. Ainda não havía-
mos reparado em sua ausência quando um índio ticuna chegou até nós dizendo
que a canoa havia. Ao perceber nosso desespero, o índio logo explicou que no mo-
mento em que o estudante entrou na canoa e saiu remando, vinha descendo pela
correnteza do rio um grande tronco de árvore que acabou abalroando e virando
a canoa. O índio, percebendo a situação de risco que o estudante estava correndo,
imediatamente correu com sua canoa e levou o estudante para a margem. Foi
aí que veio até nós no barco para dizer que a canoa havia virado. Foi um susto
muito grande, primeiramente para o estudante, que acreditava conhecer a arte
de remar, mas desconhecia a força do Rio Solimões, mas também para nós, pois
seria uma grande tragédia perder um colega naquelas condições, longe de tudo e
de todos. Refeitos do susto, o fato acabou virando motivo de chacota e de gozação
para com aquele que se julgava conhecedor da arte da canoagem. Por isso, sem-
pre que as novas equipes chegavam, uma das principais recomendações dadas
era ‘respeitem a força das águas do Rio Solimões’.
116
8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS): Não sei se o leitor se deu
conta, mas viver naquela região amazônica, no Alto Solimões, era como
morar em outro planeta. Era uma realidade desconhecida, diferente de tudo
o que os livros falam sobre as regiões do Brasil e do mundo. E, naquele
lugar, o contato e a comunicação eram difíceis. Quando trabalhava no CAAS,
recebia, de vez em quando, notícias da família e dos amigos por meio da
rádio da PUC. Gostaria de contar aqui como fiquei sabendo que na CNS de
1986 haveria participação popular representada por organizações sociais.
Uma colega enfermeira do grupo que trabalhava no Hospital de Clínicas
de Porto Alegre (HCPA), então professora na Escola de Enfermagem da
UFRGS que estava envolvida com o ensino e integrada com movimentos
sociais, percebendo o inédito, foi até a rádio para me contar. Lembro-me
do entusiasmo dela ao me dizer que nessa conferência haveria – além dos
políticos e dos profissionais da saúde – gestores, trabalhadores e organizações
sociais; todos juntos militando e discutindo em Brasília, a situação de saúde
do Brasil. Os resultados daquela CNS influenciaram o texto da Constituição
Federal, dois anos depois, em 1988. Quando retornei do Amazonas, passei
a contar essa história como mais uma das importantes experiências amazô-
nicas. Desde a implantação do CAAS, em 1972, já se trabalhava o modelo
integrador que estava sendo discutido na 8.° CNS devido às limitações
de recursos. Havia até um Conselho Comunitário e todos os segmentos
participavam de forma efetiva nas questões de desenvolvimento regional,
como sobrevivência e busca de melhorias. Hoje, trinta anos depois da 8ª
CNS, parece-me que tudo o que se busca construir desde então com o SUS
já se praticava lá pela necessidade, pelo sonho coletivo e por sermos poucos
parceiros de sobrevivência, naquele mundo tão distante.
Não havia nenhuma programação específica para o lazer dos cam-
pistas, mas, aos finais de semana e sempre que era possível, organizava-se
algum passeio junto com a equipe toda. De acordo com os lugares onde
os barcos estavam atracados, criavam-se situações de lazer singulares,
como visitar um seringal, tomar banho num lugar seguro ou participar
em algum evento cultural local. Na cidade de Benjamin Constant, sempre
117
que possível, íamos ao clube 21, que era um espaço de chão batido, coberto
de palha, onde havia festa aos sábados à noite. Para muitos, o 21 se tornou
inesquecível pelos ritmos de cumbia e merengue tocados. Lembro que no
Réveillon de 1977, depois da missa, todos fomos lá continuar a celebração
da passagem do ano conforme os costumes daquele lugar, considerando a
capital da região do Alto Solimões.
118
e singelo nos remeteu à ideia de que as crianças, sempre atentas, leem a
natureza e tudo percebem.
Em 2001, quando aconteceu o primeiro Fórum Social Mundial
na PUC, levamos o grupo de adolescentes do nosso projeto de extensão
para que conhecessem a universidade e o ambiente cultural criado pelo
Fórum. Os mais disciplinados foram de ônibus e levamos o resto do grupo
de carro. Todos portavam seus respectivos crachás. No portão de entrada
da universidade, ao observarem encantados a diversidade dos convidados
– pessoas de outros países e de outras culturas chegando, ornamentadas
de forma nunca antes vista –, as crianças começaram a correr pelos pátios
da PUC para conversar com um e outro participante. A toda hora voltavam
buscando papel e caneta para pedirem autógrafos aos ilustres e excêntricos
visitantes. Na medida do possível, as crianças eram por nós apresentadas aos
convidados. Mesmo sem entender tudo aquilo, os requisitados atenderam
as crianças com muito carinho.
A visita à Feira do Livro de Porto Alegre, na Praça da Alfândega
também foi inesquecível para todos e muito trabalhosa para todos nós
que, sensíveis e atentos, conduzimos as crianças da melhor forma possí-
vel naquele mundo encantado da cultura, que poucos podiam acessar. A
maioria deles nunca tinha visitado sequer uma biblioteca, quem dirá o
centro da capital do RS.
Meninos adolescendo na Garagem foi um projeto especial realizado
com crianças/adolescentes em situação de vulnerabilidade social que eram
agrupadas semanalmente em uma garagem cedida para realizar encon-
tros de formação. Certa manhã, 15 anos depois de encerrar esse projeto
de extensão, um senhor que voltava do trabalho me abordou na sinaleira,
perto de onde hoje fica o Horto, dizendo: “Tia, te lembra de mim? Eu sou
o Fulano”. Era um daqueles meninos. E a mágica continuou acontecendo...
Assim como aquele menino tinha virado homem, o Horto também
cresceu. Tanto no cultivo como nas vivências nele processadas. Assim, os
registros coloridos se transformaram em O Livro do Horto, os jornais trimes-
trais compuseram o livro Jornal de Memórias e as oficinas lúdicas viraram
119
filmes cujos vídeos estão no Youtube, como foi mencionado anteriormente.
Não posso deixar de mencionar a montagem da peça e a projeção do filme
O mágico de Oz no Horto, com Dorothy andando no caminho amarelo da
espiral, decorado com areia trazida da Ilha da Pintada.
120
fui em sua direção. No palco elas foram acolhidas pelos músicos, tocaram
os instrumentos e saíram felizes – muuuito felizes – pelo privilégio de ter
vivido mais essa experiência. Não sei como os músicos interpretaram essa
situação, mas foram muito generosos com as crianças.
121
afins que compunham um belo espaço de biodiversidade. Lindo. O pessoal
da vila, principalmente o grupo dos Guardiões Mirins do Horto e o grupo
de Raio de Luz participavam do evento. Assim, agendava-se um horário
para buscá-los, participar, visitar a universidade e depois, levá-los de volta.
O horto de plantas medicinais foi um sonho no Brasil, o sonho
das Farmácias Vivas, da produção de plantas medicinais e de fitoterápicos a
partir da cultura popular apoiada pela universidade, da integração da aten-
ção básica de saúde a partir da Estratégia de Saúde da Família. O Horto da
Cruzeiro, inicialmente, era composto por canteiros lineares que seguiam
o padrão derivado de um experimento fitotécnico de doutorado de cultivo
de plantas medicinais. Uma vez findo esse experimento, com o tempo e
devido às diferenças da biodiversidade física e da diversidade cultural dos
cuidadores, o horto foi adquirindo a personalidade de quem nele trabalhava.
Aos poucos, também fomos conectando, através do ensino, outras dimensões
de saúde e de cura a elementos da natureza e a formações diferenciadas
dos canteiros, como o de forma de espiral, cujo caminho interno media 34
metros. Nele foram incluídas plantas de espiritualidade e bioenergética a
partir das sete dimensões do corpo humano, as sete cores do arco-íris e
um simbólico túnel de luz no centro, oportunizando vivências singulares
a quem se permitisse encontrar seu caminho de encontro.
Ilha da Pintada/Ufrgs -
Porto Alegre, RS (2011-2016)
Do lado lendário que entra nesse momento da historiografia da
Ilha da Pintada, recortei, entre outros, o projeto que me levou pela primeira
vez lá num mês de janeiro. Não posso deixar de mencionar aqui meu reen-
contro pessoal e existencial com a Amazônia. Quando atravessei a ponte
122
que separa Porto Alegre da ilha, vi ao longe o município de Eldorado do Sul
e, ao fim da Ilha da Pintada, a sede da SEMA, que cuida da APA do Delta
do Jacuí na Ilha Mauá. Lá, fixando residência junto com o grupo durante
uma semana, senti-me novamente em casa, na Amazônia, num bairro de
Porto Alegre.
A origem do nome Ilha da Pintada atribui-se a três versões dife-
rentes: a primeira refere-se a um peixe; a segunda, a uma onça; e a terceira,
a mais comentada e talvez a mais lendária, refere-se à origem da povoação
da Ilha há muito tempo. Pescadores antigos contam que os navegantes
que por ali transitavam frequentavam a casa de uma mulher ruiva e cheia
de pintas no rosto conhecida como “a pintada”. Existe uma pintura dessa
lendária mulher exposta na AAAPIP (Associação dos Amigos, Artesãos e
Pescadores da Ilha da Pintada).
O lado incrível de tudo o que aconteceu na Ilha, para mim, foi
perceber, em cada projeto vivido, a magia do vínculo criado com pessoas,
instituições e ambientes. Esses vínculos fortaleceram e desmistificaram
a presença da universidade entre os ilhéus pescadores. A UFRGS estava
presente em seus lares, suas escolas, entre seus afetos, durante os passeios
com as crianças, na construção dos jornais, nas celebrações compartilhadas
com a comunidade, enfim, em seu cotidiano. Os ilhéus estavam de portas
abertas e, em sua sala de visitas, contavam histórias incríveis da ilha e de
suas vidas nelas entrelaçadas. Durante nossa passagem pela Ilha, tivemos
contato com muitas pessoas e ouvimos muitos idosos. Dentre eles, gostaria
de apresentar aqui a Dona Cema, a Vó Caco, Seu Salomão, o Seu João e o
Seu Alfredo, que foram âncoras de afeto e de conhecimento sobre a Ilha
para todos nós. No painel abaixo, vemos alguns registros dos extensionistas
realizando atividades coletivas com escolas e a comunidade e atuando, de
diferentes formas, na promoção da consciência ambiental.
123
Imagens 33, 34 e 35 – De esquerda à direita: crianças durante uma oficina de sachês
aromáticos, confeccionados a partir de plantas aromáticas da Ilha e retalhos
de panos; registro de crianças de uma creche local criando sua horta no pátio
da escola; e a comunidade construindo conosco uma horta comunitária no pátio
de uma antiga igreja
124
sobre sua vida, a Ilha e sua profissão. A partir das histórias que eu pude
ouvir, escrevemos um manuscrito intitulado Iracema, a Cema da Ilha, que
está disponível nas bibliotecas da Escola de Enfermagem e da FABICO, na
UFRGS. Dona Cema também faz parte do livro Ilhas de Conhecimento...,
obra também disponibilizada nas mesmas bibliotecas da universidade e
na AAAPIP.
Quem não foi lá pedir uma reza e a bênção da Vó Caco? Ela nas-
ceu na ilha, tem mais de 70 anos e atende diariamente a todo aquele que a
procurar. Dona Caco, em sua singularidade, oferece uma reza, uma benção,
uma acolhida espiritual, e a pessoa sai de lá se sentindo em harmonia e com
o coração cheio de ternura ao ver que ainda se preserva o costume antigo
de fazer o bem. Um pouco de sua história está registrada no livro Vó Caco
– que, assim como o livro de Dona Cema, integra a obra Ilhas do Conheci-
mento – e no documentário Alfabetização ecológica e inclusão tradicional:
memórias, vivências e aprendizado, disponibilizado no Youtube. A Vó Caco
também palestrou na UFRGS junto com outros espiritualistas populares.
Seu João é pescador e um personagem único e aparentemente
solitário. Intelectual de primeira, apesar de ser analfabeto. Lúcido, perspicaz,
contador de histórias da Ilha, relata inimagináveis histórias, lendas, fatos.
Se o leitor quiser conhecer Seu João mais de perto, sua história também
está narrada no livro Ilhas do conhecimento... e no documentário Alfabe-
tização ecológica e inclusão tradicional: memórias, vivências e aprendizado
disponível no Youtube.
Seu Alfredo, um jovem moço quase centenário, e Dona Sueli,
sua esposa há mais de 70 anos, sempre nos acolhem em sua casa com
um café passado na hora e uma ternura irresistível. Família linda, espaço
acolhedor. Ela, artista do crochê. Ele, aposentado, na marra, aos 94 anos,
quando negaram a renovação de sua carteira de pescador. Muitas vezes,
sentamos à beira do Guaíba esperando sua volta da pescaria. Ali, em seu
porto e enquanto limpava os peixes junto com o neto que nos últimos anos
pilotava sua canoa, ele contava sobre o seu cotidiano de pescador. Com o
125
objetivo de registrar o imenso conhecimento e sabedoria do casal ribeirinho,
decidimos escrever o livro de suas histórias, mas acabamos cometendo a
nossa maior gafe até hoje registrada. Fazendo alusão ao tanto conhecimento
acumulado nesses quase 100 anos de vida na Ilha e de pescador, demos ao
livro o nome de Iscas bibliográficas do Delta, em lugar de um título como
Seu Alfredo e Dona Sueli ou Um casal que se ama há mais de meio século.
Toda vez que retorno a sua casa, ele e sua esposa brincam e nos cobram
explicações sobre o título que lhe foi dado a seu livro.
Ao visitá-los logo após a celebração festiva de seus 70 anos de casa-
dos ocorrida na Colônia de pescadores Z5, constatei que eles pareciam um
casal de noivos, lindos, saudáveis e amorosos. Acolhedores como sempre,
seu Alfredo fez cafezinho pra nós e Dona Sueli nos ofereceu suas obras
de arte feitas em crochê sobre toalhas de louça. Eu levei umas frutas para
oferecer a eles e ela me mostrou a casa ainda cheia de flores.
126
Conclusões Após
uma Vida
Dedicada à Extensão
A imagem a seguir representa o fluxo da minha caminhada exten-
sionista como estudante, mestre e doutora, no tempo, no espaço e nas suas
interfaces em Porto Alegre, em Rondônia, no Amazonas/Alto Solimões e
voltando a Porto Alegre, na sequência.
CONSOLIDAÇÃO
Início da Extensão Extensão
1960 2016
Fonte: Elaborada por Maira Miguel (bolsista PRAE) exclusivamente para este livro (2016).
130
desse silêncio um dos fiéis disse, em dialeto talian: “Padre, abassa la grep-
pia”, que, literalmente, significa “abaixa o cocho”. Com isso, ele quis dizer
que eles não estavam compreendendo nada do que o padre falava, mas que
queriam entender. “Abaixar o coxo” significa colocar a comida ao alcance
do gado e, no caso do fiel, o pedido era para colocar a palavra ao alcance da
cultura e da compreensão deles. Assim como nessa história, o físico Carlo
Rovelli – respeitável cientista sensível às dificuldades enfrentadas pelos
menos letrados –, em seu livro intitulado Sete breves lições de física, ante-
cipou-se a abaixar o cocho para saciar a curiosidade dos que tinham sede
de compreensão, decodificando a física quântica e apresentando-a de uma
forma entendível ao grande público Ainda nesse âmbito, Mia Couto, o grande
mestre acadêmico da literatura e da compreensão das linguagens, chama a
atenção para a necessidade de compreender o invisível. Para ele, o invisível
vai além do código padrão da linguagem e se volta para a necessidade de
perceber a singularidade de cada um, expressar-se e ser compreendido.
Aquele fiel falando em dialeto talian, Mia apontando aos aspectos ocultos
da linguagem, e o físico Carlo, ao aproximar o conhecimento científico do
leigo, levam-nos a perceber que, no fundo, e queira compreendamos ou
não, há algo em comum que nos une e que acessamos de diferentes formas
para expressar. Este livro foi meu tema de casa e nele apresentei o código
de acesso à extensão de fronteira: a presença compartilhada. Câmbio.
131
Para o Leitor
133
Apêndices
Esta foto panorâmica foi tirada em janeiro de 2016. Coloquei-a
na primeira página deste livro apenas para me lembrar de onde andei nas
férias. Parecem dois caminhos, mas é um mesmo lugar captado duas vezes
pela movimentação da câmera fotográfica. Seria a caminhada extensionista
desenhada desde duas perspectivas diferentes: a de universidade privada na
floresta Amazônica e a da universidade pública em Porto Alegre? Seriam
fronteiras a serem iluminadas? Seria o vigor da selva acadêmica margeada
pela extensão?
Ao longo da escrita deste livro, reparei que talvez ele converse de
alguma forma com o livro A Praça dos Bobos (2017), Pela Porta que se Abriu
(2015), O Livro do Horto (2016) e O Livro Jornal de Memórias (2016).
135
Imagem 37 – Barco da saúde Imagem 38 – Comunidade indígena
ticuna ribeirinha do Rio Solimões
136
Imagem 43 – Parteiras em treinamento Imagem 41 – Comunidade ribeirinha
para ausculta fetal em época de cheias
137
Referências
ALFABETIZAÇÃO ecológica e inclusão tradicional: Memórias, vi-
vências e aprendizado. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=dZUEQ6-aPAw>. Acesso em: 14 jul. 2016.
139
CULTIVANDO VIDAS. 2011. Disponível em: <https://www.youtu-
be.com/watch?v=it9_xcPTYr0&nohtml5=False>. Acesso em: 15 maio
2016.
140
JARA, Oscar. Para sistematizar experiências. Tradução de Maria Vi-
viana V. Resende. 2. ed. Brasília, DF: MMA, 2006.
141
PICCININI,Gema Conte. Jornal de Memórias. Porto Alegre: Grá-
fica da UFRGS, 2016.
142
Nesta obra foram utilizadas as fontes Scala e Great Vibes.
Páginas internas em papel offset 75 g/m2
e capa em papel supremo 250 g/m2.
Editoração e impressão:
(S¸GJDBEB6'3(4
3VB3BNJSP#BSDFMPT
1PSUP"MFHSF34
HSBGJDB!VGSHTCS
XXXVGSHTCSHSBGJDBVGSHT
/ÑDMFPEF&EJUPSB¾ºPF3FWJTºPEB(S¸GJDBEB6'3(4 ]
Neste livro, foram empregadas técnicas historiográfi-
cas a fim de narrar as histórias e lembranças. Assim, busca-se
elaborar um registro a partir de fatos apresentados no contex- Extensão de Fronteira:
to temporal e geográfico-comunitário em que esse processo
Memórias de Vivências de Periferia
foi vivenciado. Trago para você um pouco da lembrança que
guardo na memória sobre o tanto que vivi, lá e aqui, misturan-
do um pouco os fatos e as histórias com o lugar, geográfica e Gema Conte Piccinini
humanamente falando.
Algumas vivências fixam lembranças que, de algum
modo, tentam se expressar. Se quiseres compartilhar desta
viagem é só fechar os olhos e viajar no tempo; depois, ler e
entrar no teu imaginário.