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LITERATURA

COMPARADA

autor
ANDRÉ LUIZ ALSELMI

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2016
Conselho editorial  luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida

Autor do original  andré luiz alselmi

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  paola gil de almeida, paula r. de a. machado e aline karina


rabello

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  luiz carlos sá

Imagem de capa  sergebertasiusphotography | shutterstock.com

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por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2016.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

A461l Alselmi, André Luiz


Literatura comparada / André Luiz Alselmi.
Rio de Janeiro: SESES, 2016.
120 p: il.

isbn: 978-85-5548-295-3

1. Literatura comparada. 2. Colonialismo cultural.


3. Intertextualidade. 4. Diálogos artísticos. I. SESES. II. Estácio.
cdd 800

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. Conceituação e Percurso Histórico da


Literatura Comparada 7

1.1  Literatura comparada: algumas considerações 8


1.2  Origens da literatura comparada: o diálogo cultural
na Europa do século XIX 10
1.3  O desenvolvimento da disciplina ao longo do século XX 13
1.3.1  Paul Van Tieghem e o comparativismo francês 15
1.3.2  René Wellek e o comparativismo norte-americano 16
1.3.3  Dionyz Durisin e a proposta estruturalista 18
1.3.4  René Etiemble e a ruptura com o comparativismo francês 20
1.4  As grandes escolas comparatistas 21
1.5  Gênese e desenvolvimento da literatura
comparada no Brasil 22

2. Fundamentos Teóricos da
Análise Comparatista 29

2.1  As contribuições da teoria literária para o comparativismo:


o estruturalismo, um ponto de partida 31
2.2  Entre idas e vindas: o lugar da tradição nos
estudos comparados 33
2.3  Importância e limites dos conceitos de influência,
imitação e originalidade 37
2.4  Um breve relato de influências a partir da
perspectiva de Harold Bloom 43
3. A Intertextualidade e seus Desdobramentos 49

3.1  A intertextualidade e sua importância para


os estudos comparados 50
3.2  As diferentes formas de intertextualidade:
alusão, paráfrase, paródia e apropriação 58
3.3  Intertextos: alguns diálogos literários 68
3.3.1 Paráfrase 68
3.3.2 Estilização 69
3.3.3 Paródia 71
3.3.4 Apropriação 72

4. Literatura Comparada e Colonialismo Cultural 79

4.1  Analogia, diferença e dependência 80


4.2  Literatura comparada e descolonização cultural:
a antropofagia e as releituras críticas da tradição 82
4.3  A antropofagia no centro dos estudos comparados:
Leila Perrone-Moisés e o projeto Léryy-Assu 86

5. Literatura Comparada e Estudos Culturais 91

5.1  A literatura na era do audiovisual e do


pleno desenvolvimento da indústria cultural 92
5.2  O permanente diálogo entre a literatura e
as outras artes: a questão da adaptação das obras literárias 94
5.3  Literatura no ciberespaço: o hipertexto e a técnica do remix 102
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

A disciplina Literatura Comparada pretende apresentar um panorama dos


estudos comparativistas a partir da ótica dos principais estudiosos franceses,
norte-americanos e soviéticos. A partir do ponto de vista desses pesquisadores,
procuraremos elucidar os conceitos essenciais desse campo de estudo, com
vistas a compreender como um texto nutre-se de outro, seja para com ele con-
cordar, seja para dele discordar.
No primeiro capítulo, apresentamos a conceituação e o percurso histórico
da literatura comparada enquanto meio de investigação científica. Primeira-
mente, abordamos as origens desse campo de estudo na França, no século XIX.
Na sequência, apresentamos as principais tendências do comparativismo fran-
cês, norte-americano e soviético. Por fim, apresentamos um breve panorama
dos estudos comparados no Brasil.
No segundo capítulo, apontamos os principais fundamentos teóricos da
análise comparatista. Assim, discutimos os conceitos de influência, imitação e
originalidade a partir de diferentes perspectivas. Tomando como ponto de par-
tida as ideias de Harold Bloom, procuramos, na sequência, demonstrar como
os conceitos esboçados podem ser aplicados na análise textual, com vistas a
contribuir para uma plena compreensão do texto literário.
No terceiro capítulo, centramo-nos no estudo da intertextualidade, enfati-
zando sua importância para os estudos comparados. Procuramos, a partir das
considerações de Afonso de Sant’Anna, abordar o conceito de intertexto a partir
de suas diferentes manifestações: a alusão, a paráfrase, a paródia e a apropria-
ção. Por fim, para ilustrarmos a teoria discutida, apresentamos exemplos de
cada um dos tipos de diálogos intertextuais.
No quarto capítulo, discutimos a literatura comparada em sua relação com
o colonialismo cultural. Nesse sentido, com o objetivo de repensar a relação
entre textos a partir da ótica da descolonização cultural, apresentamos concei-
tos como os de analogia, diferença e dependência. Na sequência, destacamos
a importância do projeto Léryy-Assu, desenvolvido por Leila Perrone-Moisés,
para os estudos comparados.
Por fim, no quinto capítulo, discutimos o lugar da literatura na era do au-
diovisual e do desenvolvimento da indústria cultural. A partir da questão da

5
adaptação de obras literárias para a televisão e o cinema, apresentamos algu-
mas considerações sobre o constante diálogo entre a literatura e outras artes.
Finalmente, encerramos nossas considerações discutindo a reconfiguração da
literatura no ciberespaço, a partir do conceito de hipertextualidade.
Ao abordarmos o discurso literário a partir de sua relação com outros textos,
em uma ampla cadeia de significados, esperamos que a disciplina contribua
para que você expanda seus conhecimentos sobre a produção e interpretação
textual, sobretudo no âmbito literário.

Bons estudos!
1
Conceituação e
Percurso Histórico
da Literatura
Comparada
1.  Conceituação e Percurso Histórico da
Literatura Comparada

Neste primeiro capítulo, você irá conhecer as origens da literatura comparada


como disciplina de estudo. Primeiramente, estudaremos a complexidade que
envolve essa área de pesquisa, devido às diferentes orientações metodológicas
que a compõem e aos diferentes objetos de estudos por ela adotados. Na se-
quência, apresentaremos um panorama histórico dos estudos comparados,
iniciando nossa trajetória no século XIX, época em que, na França, são lança-
das as bases da literatura comparada, passando pelo século XX, período em que
surgem principais nomes desse campo de estudo. Por fim, após conhecermos
alguns dos os principais comparativistas e suas orientações metodológicas,
acompanharemos o desenvolvimento dessa disciplina no Brasil, com enfoque
para os principais nomes da literatura comparada brasileira.

OBJETIVOS
•  Conhecer as origens da literatura comparada como disciplina de estudo, a partir do diálogo
cultural na Europa do século XIX;
•  Acompanhar o desenvolvimento da disciplina ao longo do século XX;
•  Conhecer a origem e o desenvolvimento da literatura comparada no Brasil.

1.1  Literatura comparada: algumas considerações

Os grandes pesquisadores da literatura comparada são praticamente unâni-


mes em reconhecer a dificuldade do estabelecimento de limites do campo de
atuação dessa disciplina, dada a mobilidade de seus objetos de estudo, con-
teúdos e objetivos, de acordo com a época e o contexto sócio-histórico-social.
Essa área de estudos reúne investigações bem variadas, desenvolvidas a partir
de diferentes metodologias e objetos de análise.
Em Literatura Comparada, Tânia Franco Carvalhal (2001, p. 6) observa que
a grande divergência de noções e orientações metodológicas presentes nos ma-
nuais de literatura comparada dificulta o estabelecimento de um consenso sobre

8• capítulo 1
a natureza, os objetivos e métodos dessa disciplina. Segundo a autora (p.7), isso
faz com que os pesquisadores posicionem-se de diferentes maneiras: enquanto
alguns tendem a uma conceituação generalizadora, outros preferem restringir o
alcance dos estudos literários comparados a determinados aspectos.
Apesar das diferentes orientações metodológicas, Carvalhal (p. 6) ressalta
que “[...] literatura comparada não pode ser entendida apenas como sinônimo
de ‘comparação’”. Isso porque, segundo a autora, a comparação faz parte da es-
trutura de pensamento do homem e, também, da organização da cultura, sendo
um procedimento presente em diversas áreas do conhecimento, e até mesmo na
linguagem, como ilustram as constantes comparações presentes em provérbios.
©© ROBERT KNESCHKE | SHUTTERSTOCK.COM

Figura 1.1  –  A comparação é algo inerente ao homem. Portanto, sua simples presença na
análise de um texto literário não pode ser o bastante para classificar um trabalho como “es-
tudo comparado”.

De acordo com Carvalhal (2001), mesmo na literatura, ao analisar uma obra,


a crítica literária frequentemente é levada a estabelecer confrontos com produ-
ções de outros autores, a fim de fundamentar sua avaliação crítica. Entretanto,
nesses casos, a comparação aparece de forma ocasional, não ocupando papel
central na análise de uma determinada obra.
A partir dessas colocações, pode-se perguntar: quando, então, estaremos
diante daquilo que propriamente chamamos de “literatura comparada”?
Carvalhal (2001, p.7) esclarece que:

capítulo 1 •9
[...] quando a comparação é empregada como recurso preferencial no estudo crítico,
convertendo-se na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de méto-
do – e começamos a pensar que tal investigação é um “estudo comparado”.
Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo procedimento
em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a
esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e
o alcance dos objetivos a que se propõe.
Em síntese, a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim.

A partir das considerações da autora, fica claro que, apesar de a comparação


não ser algo exclusivo da literatura comparada, é seu emprego de forma siste-
mática que irá caracterizar a atuação dos estudos comparados.

1.2  Origens da literatura comparada: o diálogo cultural


na Europa do século XIX

Como ressaltamos nas nossas considerações iniciais, a literatura comparada


não compreende apenas uma orientação metodológica. Pelo contrário: não só
a metodologia, como seus objetos de estudo, conteúdos e objetivos são mutá-
veis de acordo com o tempo e o espaço. Logo, a tentativa de compreender essa
disciplina de estudo deve, ainda que de maneira breve, passar pelo seu percur-
so histórico.
Em Literatura comparada: história, teoria e crítica, Sandra Nitrini discorre
sobre a gênese do comparatismo no âmbito literário. Segundo a autora (1997,
p. 19), é difícil dissociar as origens da literatura comparada das origens da pró-
pria literatura. Logo, sua gênese nos leva até a antiguidade clássica, com as lite-
raturas grega e romana. Bastou a existência das duas literaturas para se come-
çar a compará-las, a fim de se realçar as respectivas qualidades. Nesse período,
entretanto, ainda não se pode reconhecer a existência de um projeto elaborado
de comparatismo.
Esse exercício de comparação manteve-se ao longo dos séculos, aperfei-
çoando-se até o século XIX, período marcado por uma tentativa intelectual
mais consciente, em que a literatura comparada se instaura, no contexto euro-
peu, como uma disciplina acadêmica. Isso seria resultado de um procedimento
metodológico empregado nas ciências, segundo o qual uma hipótese poderia
ser confirmada a partir da comparação ou do contraste entre elementos.

10 • capítulo 1
©© RAWPIXEL.COM | SHUTTERSTOCK.COM

Figura 1.2  – 

CONCEITO
Em linhas gerais, o cosmopolitismo baseia-se na ideia de que os homens são formadores de
uma só nação. Ao enxergar o mundo como uma grande pátria, essa corrente de pensamento
despreza as fronteiras geográficas.

Nitrini (1997, p. 20) também reconhece que o cosmopolitismo foi outro fa-
tor importante no desenvolvimento da literatura comparada, uma vez que as
viagens facilitavam o contato entre grandes escritores, havendo um intercâm-
bio entre as diferentes literaturas nacionais. A comparação entre as diversas
produções era capaz de abrir, assim, a possibilidade de ampla compreensão do
fazer artístico, além de revelar as influências entre diferentes obras e escritores.
É nesse contexto que, em 1828, 1830 e 1835, Abel-François Villemain, Jean
Jacques Ampère e PhilarèteChasles, respectivamente, deram início ao ensino
da literatura comparada nas universidades francesas. Logo, é na França que a
disciplina lançou suas bases, com diversas publicações (embora de caráter he-
terogêneo) que se utilizavam da expressão “literatura comparada”.

capítulo 1 • 11
Carvalhal (2001, p. 9) associa a divulgação dessa expressão ao nome de Abel-
François Villemain que, em 1828 e 1829, empregou-a nos cursos que ministrou
na Sorbonne. Sua obra Panorama da literatura francesa do século XVIII empre-
ga, além de “literatura comparada”, as expressões “panoramas comparados”,
“estudos comparados” e, ainda, “história comparada”.
Alguns anos depois, em 1830, Jean Jacques Ampère empregou, em sua obra
Discurso sobre a história da poesia, a expressão “história comparativa das artes
e da literatura”. Em 1841, o autor novamente fez alusão ao comparatismo no
título de sua obra História da literatura francesa da Idade Média comparada às
literaturas estrangeiras. Nesse momento, a expressão inseria-se no âmbito lite-
rário e Ampère passava, então, a ser considerado por alguns escritores – como
Sainte-Beuve – como o fundador da “história da literatura comparada”.
A esses dois nomes, acrescenta-se o de Philarète Chasles, que, em 1835, em
sua aula inaugural, “Littérature étrangère comparée”, ministrada no Collège de
France, apresentou as bases da literatura comparada. Na ocasião, Chasles res-
saltou a importância de se avaliar a influência do pensamento de um povo sobre
outro, trazendo à tona as contribuições e assimilações de cada nacionalidade,
seja de maneira espontânea, seja de maneira planejada, na criação de uma obra.
Segundo Carvalhal (2001, p. 10) os três grandes fundadores das bases da
disciplina na França explicitaram a relação entre literatura comparada e his-
toriografia literária, bem como a noção de empréstimo, características que,
posteriormente, integrariam os estudos comparados considerados clássicos. O
comparativismo começou a consolidar-se no território francês justamente no
momento em que se instalava uma ruptura com o chamado “gosto clássico”,
com o triunfo da noção da relatividade no campo artístico.
Nitrini (1997, p. 21) também observa que a expressão “literatura compa-
rada” coincide com o período de formação das nações, num momento de de-
limitação de fronteiras e da ampla discussão sobre a questão da cultura e da
identidade nacional em toda Europa. Tal fato revela, desde a origem, a íntima
conexão que a literatura comparada estabelece com a política.
Da França, a expressão ganhou outros territórios: em 1854, Moriz Carrière
a utilizou na Alemanha; em 1886, na Inglaterra, Hutcheson Macaulay Posnett
a empregou numa obra intitulada Comparative Literature; a partir de 1863, De
Sanctis lecionou literatura comparada em Nápoles, na Itália; mais tarde, nos
Estados Unidos, surgiram os Departamentos de Literatura Comparada nas uni-
versidades de Columbia (1899) e Harvard (1904); em Portugal, o comparativismo

12 • capítulo 1
apareceu em 1912, na obra A crítica literária como ciência, de Teófilo Braga, no
estudo “Literatura comparada e crítica de fontes”, de Fidelino de Figueiredo.
No fim do século XIX e início do século XX, foram criadas as primeiras cadei-
ras de Literatura Comparada em Lyon, Zurich e na Universidade de Colúmbia.
A disciplina também ganhou força com os trabalhos de grandes estudiosos,
como o do dinamarquês Georg Brandes, com sua obra Great Currents, em seis
volumes (de 1872 a 1884).

1.3  O desenvolvimento da disciplina ao longo do século XX

No início do século XX, com um considerável conjunto de textos sobre literatu-


ra comparada, quando as bases da disciplina pareciam estar construídas, Be-
nedetto Croce (2011, p. 70) lançava novamente a questão: “O que é literatura
comparada?”. Em Problemi di estetica, o crítico literário italiano contesta al-
guns comparatistas. Primeiramente, afirma que esse tipo de estudo não pode
ser definido pelo método comparativo, por ser ele muito amplo, sendo empre-
gado em diferentes áreas. Na sequência, afirma:

[...] não há estudo mais árido do que este tipo de pesquisa; o cérebro cansa e expe-
rimenta uma sensação de vazio. Esta aridez, esta sensação de vazio, provém do fato
de serem elas pesquisas de mera erudição; que, por si sós, não levam a explicar uma
obra literária e não fazem penetrar no vivo da criação artística. Seu objeto não é a
gênese estética da obra literária, mas ou a história exterior da obra já formada (acon-
tecimentos, traduções, imitações etc.) ou o fragmento do material diverso que ajudou
a construí-la. [...] Falta (e não pode faltar) o estudo do momento da criação, que é o
que verdadeiramente importa à história literária e artística. (CROCE, 2011, p. 70-71)

Como se pode notar, para Croce, a mera comparação entre diferentes obras
é algo totalmente estéril, pois “[...] estuda somente a tradição literária, preterin-
do os elementos sociais e aqueles psicológicos individuais que têm importân-
cia, igual ou maior, na gênese.” (CROCE, 2011, p. 72).
Além dessas considerações, o crítico também considera a expressão “lite-
ratura comparada” redundante, uma vez que, ao se estudar uma obra literária
em sua totalidade, deve-se investigá-la “[...] em todas as suas relações, posta no

capítulo 1 • 13
campo da história universal (e onde mais poderia ser colocada?), vista em todas
aquelas conexões e separações que a esclarecem.” (CROCE, 2011, p, 73).
Sintetizando: para Croce, por um lado, todo estudo aprofundado de uma
obra literária seria, de certa forma, um estudo comparado, a fim se compreen-
der o contexto em que ela se encontra situada; por outro, o mero estudo com-
parativo não se apresenta como algo produtivo, uma vez que se limita a apontar
as influências entre determinadas obras, sem preocupar-se com o valor de uma
dada produção em si.
Como observa Susan Basnett, o debate sobre a literatura comparada como
disciplina autônoma perpassa todo século XX, sem encontrar respostas livres
de contestação:

[...] qual é o objeto da literatura comparada? A comparação pode ser objeto de uma
disciplina? Se literaturas específicas têm seu cânon, o que seria um cânon compara-
tivo? Como o comparatista seleciona o objeto da comparação? A literatura compa-
rada constitui uma disciplina? Ou é um simples campo de estudos? (BASNETT apud
NITRINI, 1997, p. 23)

Muitas outras perguntas poderiam juntar-se às de Basnett, gerando uma


discussão ininterrupta sobre o assunto. Como sabemos, diferentemente das
ciências exatas, a Literatura encontra-se situada num terreno movediço, o que
exige um contínuo e inesgotável esforço de teorização, num infindável trabalho
de (des)construção de ideias. Nesse sentido, é importante conhecer alguns en-
caminhamentos teóricos dos principais estudiosos do assunto.

CONEXÃO
A fim de conhecer outra perspectiva da trajetória da literatura comparada, leia o artigo “Li-
teratura Comparada ontem e hoje: campo epistemológico de ansiedades e incertezas”, de
Anselmo Perez Alós, publicado na revista Organon, da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, disponível no link a seguir:
http://seer.ufrgs.br/organon/article/view/33469/21342

14 • capítulo 1
1.3.1  Paul Van Tieghem e o comparativismo francês

Dentre os grandes nomes do comparativismo francês, destaca-se o de Paul


Van Tieghem, com seu manual La littérature comparée, publicado em 1931.
No capítulo “Princípios e Métodos Gerais”, o autor apresenta uma importante
distinção entre literatura comparada e literatura geral, que será constante na
área dos estudos comparativistas:

Já que todas as partes que compõem o estudo completo de uma obra ou de um escritor
podem ser tratadas recorrendo-se unicamente à história literária, exceto a pesquisa e
análise das influências recebidas e exercidas, convém reservar esta para uma disciplina
particular, que terá suas finalidades bem definidas, seus especialistas e seus métodos.
Ela prolongará em todos os sentidos os resultados adquiridos para a história literária
de uma nação, e os reunirá àqueles que, por sua vez, foram adquiridos por historiadores
de outras literaturas; com esta rede complexa de influências, constituirá um domínio à
parte. Ela não pretenderá absolutamente substituir as diversas histórias nacionais; com-
pleta-las-á e as unirá; e ao mesmo tempo tecerá, entre elas e acima delas, as malhas de
uma História literária mais geral. (TIEGHEM apud NITRINI, 1997, p.24)

Podemos notar que Van Tieghem considera a literatura comparada como


uma disciplina autônoma, primeiramente por possuir um método e um objeto
próprio: o estudo das diferentes literaturas em seus pontos de contato. A partir
disso, o autor apresenta uma distinção entre literatura comparada e literatu-
ra geral.
Para Van Tieghem, a literatura comparada se ocuparia do estudo das rela-
ções entre diferentes literaturas, numa relação binária (entre autor e autor, obra
e obra etc.). Assim, poder-se-ia, por exemplo, estudar a influência que Gustave
Flaubert exerceu em Machado de Assis por meio da comparação entre as obras
desses escritores. Esse tipo de estudo apresentaria um resultado mais restrito,
não sendo capaz de explicar a história do Realismo, tarefa que caberia à litera-
tura geral, responsável por sintetizar os fatos comuns a várias literaturas.
Assim, baseado numa visão positivista, Van Tieghem acredita que uma obra
poderia ser estudada a partir de três diferentes recortes: em seu contexto na-
cional (literatura nacional), em comparação com a obra de outro escritor, de
outra nacionalidade (literatura comparada), ou no movimento mais amplo que

capítulo 1 • 15
a integra, dentro de uma produção mais universal, a partir da comparação com
várias literaturas (literatura geral). Como observa Sandra Nitrini (1997, p. 25),
essa divisão não resiste à análise, dada a impossibilidade de separar os três
campos de estudo, que se implicam mutuamente.

1.3.2  René Wellek e o comparativismo norte-americano

Dentre os opositores da proposta de Van Tieghem, destaca-se René Wellek.


Em 1958, durante o 2o Congresso da Associação Internacional de Literatura
Comparada, na Universidade da Carolina do Norte, o crítico tcheco, radicado
nos Estados Unidos, juntamente com outros comparatistas formados em uni-
versidades norte-americanas, apresenta sua crítica à divisão proposta por Van
Tieghem. Primeiramente, Wellek reconhece o grande papel que a “literatura
comparada” possui de combater “o falso isolamento das literaturas nacionais”
(2011, p. 120). Na sequência, acrescenta:

[...] Mas duvido que a tentativa de Van Tieghem de distinguir a literatura “comparada”
da literatura “geral” alcance sucesso. [...] Esta distinção, sem dúvida, é insustentável
e impraticável. Por que se poderia, por exemplo, considerar literatura “comparada” a in-
fluência de Walter Scott na França, enquanto um estudo do romance histórico durante
o período romântico seria visto como literatura “geral”? (2011, p. 120)

O autor propõe, então, o fim da distinção entre literatura comparada e lite-


ratura geral, uma vez que esse tipo de separação restringe o trabalho do com-
paratista. Ademais, acrescenta: “[...] a história literária e as pesquisas literá-
rias têm um único objeto de estudo: a literatura.” (2001, p. 122). A crítica do
estudioso dirige-se não apenas a Van Tieghen, mas a outros críticos, como F.
Baldesperger, J. -M. Carré e M. F. Guyard, acusados de adotarem uma metodo-
logia obsoleta.
Wellek fundamenta sua crítica no argumento de que a literatura compara-
da, conforme defendida por Van Tieghen e os outros autores citados, é incapaz
de possibilitar uma análise ampla da obra, considerada em sua totalidade. Para
o crítico tcheco, ao limitar-se ao confronto de dados entre diferentes literatu-
ras, numa espécie de “comércio exterior”, a literatura comparada estaria ocu-
pando-se de dados extraliterários, negligenciando aspectos fundamentais para
o amplo estudo de uma obra.

16 • capítulo 1
Outra crítica é dirigida à “motivação patriótica” da literatura comparada,
numa espécie de “contabilidade cultural”. A partir da análise de alguns estu-
dos comparativos, Wellek constata que as pesquisas teriam se apegado a um
nacionalismo, “[...] provando o maior número de influências possível sobre
outra nação ou, mais sutilmente, provando que sua própria nação assimilou e
compreendeu um grande escritor estrangeiro melhor do que qualquer outra.”
(2001, p. 126). Assim, a literatura comparada teria servido apenas para manifes-
tar uma espécie de patriotismo estéril.
A partir dessas ideias, Wellek considera que a literatura comparada, tal como
defendida por Van Tieghen, Carré e Guyard, torna-se uma espécie de “subdis-
ciplina”, por sua atuação restrita, limitada à busca de “fontes e influências”:

Eles acreditam em explicações causais, na informação obtida a partir da investigação


dos motivos, temas, personagens, situações, enredos etc., que são tributários de algum
outro trabalho cronologicamente anterior. Eles acumularam uma enorme gama de
paralelos, semelhanças e, algumas vezes, identidades, mas raramente se perguntaram
o que essas relações devem mostrar, exceto, possivelmente, o fato de que um escritor
conheceu e leu outro escritor. Obras de arte, no entanto, não são simples somatórias
de fontes e influências; são conjuntos em que a matéria-prima vinda de outro lugar dei-
xa de ser matéria inerte e passa a ser assimilada numa nova estrutura. (2011, p. 123)

Podemos notar que, para Wellek, o estudo comparativo só faz sentido se


houver uma superação do mero confronto de semelhanças entre obras e auto-
res, com uma análise crítica dos dados, investigando de que forma os elemen-
tos aproveitados são assimilados na nova estrutura.
Após criticar a separação entre estudos comparados e crítica literária,
Wellek propõe a retomada da perspectiva crítica, uma vez que “Uma obra de
arte não pode ser analisada, caracterizada e avaliada sem que se faça uso de
princípios críticos, mesmo que assumidos de forma inconsciente e formulados
de modo obscuro.” (2011, p. 129). O crítico propõe, ainda, um estudo que aban-
done “o cálculo de créditos e débitos nacionais” ou o “mapeamento de rede de
relações”, em benefício de um estudo centrado no texto literário em si.
Em sua obra Literatura comparada, Tânia Franco Carvalhal apresenta algu-
mas considerações sobre as ideias de Wellek. Segundo a autora, a crítica tecida
pelo tcheco apresenta-se como grande contribuição para que o comparativismo
tradicional seja repensado, pois revela os pontos fracos das propostas clássicas:

capítulo 1 • 17
“[...] o exagerado determinismo causal das relações, a ênfase em fatos não lite-
rários, a análise dos contatos sem atentar para os textos em si mesmos, o bina-
rismo reducionista.” (2001, p. 38). Carvalhal observa, entretanto, que, apesar
de apresentar uma série de restrições aos estudos comparados, as críticas de
Wellek, “[...] ao desnudarem o comparativismo tradicional, não lhe davam rou-
pa nova para cobri-lo.” (2001, p. 38).

CONEXÃO
A fim de se aprofundar nos estudos sobre a literatura comparada na visão latino-america-
na, leia o artigo “A literatura comparada e o contexto americano”, de Eduardo F. Coutinho,
publicado na revista Raído, da Universidade Federal da Grande Dourados, disponível no link
a seguir:
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/viewFile/87/94

1.3.3  Dionyz Durisin e a proposta estruturalista

Baseado no estruturalismo de Praga, o tcheco Dionyz Durisin apresenta uma


metodologia inovadora, considerada, por alguns críticos, como um novo para-
digma nos estudos comparativos, consistindo numa ruptura com as propostas
mais tradicionais. O mérito de Durisin encontra-se na tentativa de sistematiza-
ção das diferentes relações literárias. O crítico tcheco apresenta-se como um
dos maiores nomes nos estudos comparatistas e formalistas do Leste Europeu,
ao lado de Victor Zhirmunsky, ambos herdeiros do formalismo russo.
Sandra Nitrini (1997, p. 90) considera que:

Segundo este estudioso, o objetivo da literatura comparada é a compreensão da


essência tipológica e genética do fenômeno literário, vale dizer, de seus constituintes
estéticos, finalidades, autores, escolas literárias, gêneros, estilos etc., tanto quanto a
revelação de leis internas que caracterizam o fenômeno literário como um fenômeno
geral, sem se considerar sua história específica. Tal tarefa só se realiza mediante a
combinação da aproximação histórico-literária do fato literário com a teórica.

18 • capítulo 1
De acordo com essas considerações, é de se esperar que Durisin não veja
uma oposição entre a história literária e a literatura comparada. Pelo contrá-
rio: para o teórico, esta se inclui naquela, sendo um de seus constituintes. Em
decorrência disso, Durisin considera a literatura comparada como um procedi-
mento de trabalho de pesquisa, e não como uma disciplina autônoma. Para o
teórico tcheco, a literatura comparada também mantém estreita relação com a
crítica literária, na medida em que fornece a esta um material teórico capaz de
contribuir para a compreensão do fenômeno literário.
A teoria de Durisin também incorpora o conceito de literatura mundial,
constituída por um conjunto de obras, de algum modo mutuamente conecta-
das, de todas as literaturas nacionais. Assim, o teórico descarta a ideia de litera-
turas nacionais isoladas e, além disso, nega a restrição da literatura aos grandes
cânones, numa espécie de compilação dos grandes clássicos. Em seus estudos,
o tcheco considera o processo interliterário a partir de duas categorias: uma
“individual” (a literatura nacional) e outra “geral” (a literatura mundial, com
mútuo condicionamento).
Na tentativa de sistematizar essa relação entre as literaturas individuais,
Durisin apresenta uma distinção entre as relações genéticas (contatuais) e as
relações tipológicas (analogias). As relações genéticas se subdividem em exter-
nas (como a circulação de uma determinada literatura em contexto de outra
nacionalidade) e internas (os casos de influência de uma literatura sobre outra,
por meio da investigação de seus modos de atuação). Segundo o crítico, esses
contatos podem ser diretos ou indiretos.
As relações tipológicas, por sua vez, preocupam-se com a recepção e con-
sistem na avaliação da natureza das relações interliterárias, determinando os
graus de influência de um sistema literário sobre outro. Nesse sentido, essas
relações podem ser divididas em integradoras e diferenciadoras. As primeiras
ocorrem quando há uma identificação com o conteúdo assimilado (fonte), ha-
vendo uma integração desse conteúdo na recepção; enquadram-se nessa cate-
goria a alusão, o empréstimo, a imitação, a filiação, o plágio, a adaptação e a
tradução. As segundas, por sua vez, caracterizam-se pelo esforço de se salientar
a distinção, numa relação negativa com o conteúdo original (fonte); é o caso da
polêmica literária e da paródia.
As classificações de Durisin baseiam-se no princípio de que a assimilação de
elementos estrangeiros acarreta, em maior ou menor grau, uma transformação
desses elementos no sistema em que é incorporado, implicando certa atividade

capítulo 1 • 19
ou criatividade. Assim, as transformações podem ser de ordem social, literária
ou psicológica. As operações sociais compreendem os fatores ideológicos liga-
dos à filosofia da época e do artista; as de ordem psicológicas estão relaciona-
das às particularidades dos artistas, ou seja, às suas idiossincrasias; por fim, as
de ordem literária, por fim, estão relacionadas, dentre outros fatores, à classi-
ficação dos gêneros (lírico, épico, dramático) e suas diferentes possibilidades.
O teórico tcheco acredita que o estudo comparado exige uma união dos
fatores genéticos e tipológicos, o que gera uma complexidade nos estudos de
aproximação entre as diferentes literaturas, exigindo sensibilidade dos mode-
los de pesquisa adotados. Sua teoria, brevemente apresentada neste capítulo,
apresenta maior complexidade aos leigos, com uma série de nomenclaturas e
sistematizações que, se por um lado aumentam a dificuldade de compreensão,
conferem um caráter mais científico ao campo de estudo da literatura compa-
rada. Além disso, as ideias de Durisin conferem maior sentido aos trabalhos
comparativos, ao focar seus estudos na investigação das semelhanças e dife-
renças permeadas por uma série de fatores – sociais, psicológicos, literários - ,
porém com vistas a estudar a transformação operada pelos autores em cada
literatura nacional. Nesse sentido, o teórico supera a mera constatação de con-
tatos e influências, como fizeram alguns de seus precursores.

1.3.4  René Etiemble e a ruptura com o comparativismo francês

A distinção entre literatura geral e literatura comparada, proposta por Van


Tieghen, também é rebatida pelo francês René Etiemble. Seus mais importan-
tes escritos sobre literatura comparada encontram-se reunidos em Comparai-
son n’est pas raison (1963) e Essais de Littérature (vraiment) générale (1794).
Para esse crítico francês, todas as literaturas têm a mesma importância, sejam
elas europeias ou asiáticas. Segundo Carvalhal (2001, p.32), Etiemble é “um hu-
manista na acepção exata do termo”, dada sua despreocupação com as divisões
políticas e fronteiras geográficas.
Carvalhal (2001, p. 32-33) observa que as ideias de Etiemble – com constan-
te questionamento ao comparativismo tradicional – levam muitos a aproximá
-lo mais da escola norte-americana que da francesa. Logo, distanciando-se de
grande parte dos críticos franceses, Etiemble é um crítico da visão nacionalis-
ta, visto que considera as trocas entre as nações como fator primordial para a
compreensão da civilização dos homens. Na esteira de Karl Marx, Etiemble crê

20 • capítulo 1
numa interdependência universal das nações”, considerando as obras como
um patrimônio universal.
A partir dessas bases, Etiemble propõe uma análise de obras semelhantes
desconsiderando seus contatos ou derivações, a fim de determinar as “inva-
riantes literárias”, ou seja, um pano de fundo comum a todas as literaturas.
Dessa forma, o crítico francês propõe a divisão de duas perspectivas considera-
das incompatíveis pela tradição: a da reflexão crítica e a da investigação históri-
ca. Portanto, quando se fala em “comparativismo francês”, deve-se ter noção de
que não se trata de uma unanimidade na visão dos estudiosos do tema. Admite-
se, isto sim, haver certa tendência dos críticos franceses a uma determinada
visão mais tradicional dos estudos comparados.

1.4  As grandes escolas comparatistas

Ao mergulharmos no universo da literatura comparada, é comum encontrarmos


o termo “escolas” para denominar diferentes perspectivas dos estudos compa-
rados. Segundo Carvalhal (2001, p. 14-15) o termo começa a ser empregado a
partir do momento em que René Wellek se opõe ao historicismo dominante
nos estudos franceses, sugerindo “[...] uma cisão entre a suposta ‘escola’ fran-
cesa e outra, norte-americana.”. Logo, inicialmente, a palavra refere-se a duas
diferentes perspectivas de estudo. Entretanto, segundo a autora, a incompati-
bilidade entre essas duas perspectivas não é tão grande, havendo, na orienta-
ção norte-americana, muito do historicismo francês e, na orientação francesa,
uma multiplicidade de direcionamentos, com diferentes campos de atuação.
Para fins didáticos, passamos, adiante, a apresentar as grandes “escolas”, de
acordo com Carvalhal (2001, p. 14-16).
Como vimos, é na França que são lançadas as bases da literatura compara-
da. Os estudos comparados da época e as ideias expressas no primeiro número
da Revue de Littérature Comparée, fundada por Fernand Baldensperger e Paul
Hazard em 1921, atestam que, em sua origem, a pesquisa comparada seguia
duas orientações básicas e complementares. A primeira orientação considera-
va válidos os estudos em que se comprovava a existência de um contato real
entre autores e obras, ou autores e nações. Assim, as pesquisas procuravam es-
tabelecer filiações e apontar empréstimos ou imitações, privilegiando as pes-
quisas de fontes e influências.

capítulo 1 • 21
A segunda orientação, por sua vez, estabelecia um vínculo entre os estudos
comparados e a perspectiva histórica, tornando a literatura comparada um
ramo da história literária. Isso se justificava pelo fato de a disciplina, novida-
de à época, ter atraído historiadores literários como Ferdinand Brunetière,
responsável por lançar “[...] os pressupostos de uma história dos grandes mo-
vimentos literários com base na comparação entre eles.” (CARVALHAL, 2001,
p. 14). Essas duas orientações encontram-se na base da “escola francesa”, de-
signando “[...] um grupo representativo de estudos onde predominam as rela-
ções ‘causais’ entre obras, ou entre autores, mantendo uma estreita vinculação
com a historiografia literária”. (CARVALHAL, 2001, p. 14).
A “escola norte-americana” tem como porta voz René Wellek, cujas ideias
pudemos conhecer, e distancia-se ligeiramente da francesa por seu ecletismo,
com absorção de noções teóricas do new criticism, corrente crítica que se de-
senvolveu nos Estados Unidos a partir da década de 30. Ademais, distingue-se
da orientação francesa por dois aspectos mais: primeiramente, por privilegiar
o estudo do texto literário em si, em detrimento das relações entre autores ou
obras e, por fim, por aceitar a comparação dentro das fronteiras de uma úni-
ca literatura.
A “escola soviética”, por sua vez, tem como porta voz Victor Zhirmunsky e
possui como característica central o fato de enxergar a literatura como produto
da sociedade. Essa orientação preocupa-se em separar as analogias tipológicas
e as importações culturais (ou influências). Nessa linha, destaca-se o teórico
Dionyz Durisin, sobre o qual já discorremos anteriormente.
Para concluir, como observa Carvalhal (2001, p.15), ao empregarmos o ter-
mo “escolas”, é preciso ter em mente “[...] que a intenção classificatória só tem
sentido com relação a uma feição clássica dos estudos literários comparados.”,
uma vez que há um entrecruzamento entre as diferentes orientações, numa es-
pécie de intercâmbio teórico.

1.5  Gênese e desenvolvimento da literatura comparada no Brasil

Em Literatura comparada, Tânia Franco Carvalhal (2001, p. 27) afirma que,


“[...] se tivermos que escrever a história do comparativismo no Brasil, teremos
de recorrer a estudos pontuais, dispersos em jornais e livros de crítica literá-
ria, pois estão aí, sem dúvida, as maiores contribuições.”. Nesse sentido, não
temos, ao menos nas origens da disciplina, grandes publicações destinadas

22 • capítulo 1
exclusivamente ao tema. A seguir, apresentaremos uma breve trajetória dos es-
tudos comparados no Brasil, a fim de que você possa conhecer os principais
estudiosos dessa disciplina em nosso país. Nosso percurso baseia-se no artigo
“A literatura comparada no Brasil”, de Gilda Neves da Silva Bittencourt, publi-
cado em 1996 no volume 10 da revista Organon, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
De acordo com Bittencourt, primeiramente, é preciso considerar que os
estudos comparativos, de certa forma, estiveram presentes na atividade crítica
desenvolvida na literatura brasileira desde o Romantismo, como reconhece o
crítico Antonio Candido de Mello e Souza, ao considerar que “[...] a nossa pro-
dução foi sempre tão vinculada aos exemplos externos, que insensivelmente os
estudiosos efetuavam as suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando
a esses como ponto de reparo." (MELLO E SOUZA, 1988, p. 17). Nesse sentido,
muito antes da discussão sobre literatura comparada como disciplina, com
objeto e metodologias específicas, estudiosos da literatura brasileira, esponta-
neamente, já a praticavam.
Nessa esteira, o primeiro nome citado por Bittencourt é Tobias Barreto,
que, ainda no século XIX, em 1886, no Recife, iniciou um curso de Literatura
Comparada, publicando em jornais vários estudos, os quais tinha a preten-
são de reunir em um volume para publicação. Embora não tenha conseguido
concretizar seu intento, seus escritos foram publicados por seu amigo e testa-
menteiro literário, Sílvio Romero, na segunda edição dos Estudos alemães, de
Barreto. O título de sua obra demonstra o empenho que dedicou ao estudo da
literatura alemã: por ser um admirador da cultura germânica, seus trabalhos
encontram-se centrados sobretudo nas obras dessa nacionalidade.
Os estudos de Tobias Barreto encontram base teórica nos estudos de Georg
Brandes, crítico dinamarquês. Na mesma linha de pensamento dos grandes
comparatistas europeus do século XIX, Brandes limitava o estudo comparativo
às grandes obras, pois somente elas poderiam ser capazes de ser severamen-
te confrontadas culturalmente. Assim, Barreto acaba por priorizar a literatura
alemã, na tentativa distorcida de escancarar relações de dependência cultural.
Isso também pode ser notado, de forma mais implícita, nos trabalhos de outros
críticos brasileiros, como se a filiação a ilustres autores europeus atestasse a ca-
pacidade do brasileiro, numa confortante relação de parentesco, como observa
Antonio Candido (1988, p.17).

capítulo 1 • 23
Segundo Bittencourt, diferenciando-se das orientações da “escola france-
sa”, surgem, no início do século XX, algumas tentativas de ruptura com essa
perspectiva tradicional dos estudos comparados, sob dois aspectos: primeira-
mente, por enxergar o estudo comparativo como uma atividade de crítica histó-
rica; em seguida, por incorporar em seu escopo a relação entre a literatura eru-
dita e a literatura popular, antecipando aquilo que mais tarde seria defendido
por René Wellek. Nessa perspectiva, destaca-se o crítico João Ribeiro, que, em
1905, dedica um capítulo à literatura comparada em Páginas de estética.
Assim, de acordo com Carvalhal (2001, p. 22), se considerarmos que Paul
Van Tieghem exclui do campo da literatura comparada os contos populares e
as lendas, veremos que João Ribeiro alia

[...] os interesses linguísticos aos literários, pois é uma implícita noção de língua como
sistema que o leva a considerar a existência de uma literatura orgânica, popular, espon-
tânea, que fluiria paralelamente à literatura oficial. É justamente essa literatura não regu-
lada por normas que João Ribeiro gostaria de ver confrontada com a outra, a impressa.

Conclui-se, então, que o grande mérito de João Ribeiro reside em acolher


aquilo que, antes, encontrava-se marginalizado, a literatura popular, debruçan-
do-se sobre a análise de temas e mitos, defendendo a relação entre literatura
oral e literatura escrita.
Ao lado do nome de Ribeiro, podemos citar o de Otto Maria Carpeaux, que
adota a comparação como um dos princípios de seus trabalhos, sempre per-
meados pela visão crítica na análise das obras, com tentativa de situá-las no
conjunto das produções textuais. Segundo Tânia Franco Carvalhal (2001, p. 23),
Carpeaux, por meio da relação entre a literatura brasileira e as estrangeiras, foi
responsável por revelar aos brasileiros inúmeros escritores até então desco-
nhecidos, como Franz Kafka. Seus principais estudos comparados podem ser
conferidos em História da literatura ocidental (1959), ou ainda em ensaios crí-
ticos dispersos.

24 • capítulo 1
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.3  –  Machado de Assis foi um dos escritores que ocuparam a cena dos estudos
comparados brasileiros. É grande o número de trabalhos que investigam as influências de
autores estrangeiros – sobretudo ingleses – sobre o escritor realista brasileiro, com estudos
que procuram demonstrar ora sua limitação, ora sua genialidade.

Nos estudos comparados brasileiros, merece destaque também o nome de


Eugênio Gomes, que, a partir da investigação das influências inglesas na obra
de Machado de Assis, busca identificar não apenas pontos de contato, mas
também transformações e adaptações operadas pelo escritor realista brasilei-
ro. Nesse sentido, em Machado de Assis – influências inglesas (1939), o críti-
co rebate as acusações de Silvio Romero (outro conhecido crítico brasileiro),
segundo o qual as obras de Machado não passariam de imitação às obras dos
ingleses Sterne e Swift.
As influências recebidas por Machado de Assis despertaram o interesse de
muitos críticos. Além do trabalho de Eugênio Gomes, merecem destaque os es-
tudos do gaúcho Augusto Meyer, realizados a partir da influência do crítico ale-
mão Ernest Robert Curtius, cuja obra, Literatura Europeia e Idade Média Latina
(1948), foi traduzida pelo próprio Meyer. Para além da metodologia de Curtius,
Meyer ressaltou a importância de se superar o mero estudo de influências, por

capítulo 1 • 25
meio da filiação passiva. Assim, privilegiou a análise estilística das obras, com in-
tuito de destacar as divergências e inovações promovidas por Machado de Assis.
Outro grande nome a ser citado é o de Antonio Candido de Mello e Souza,
responsável por introduzir a disciplina na Universidade de São Paulo e de criar
o setor de Teoria da Literatura e de Literatura Comparada, em 1962. Em seus
ensaios e estudos críticos, Candido manifesta, desde seus primeiros escritos,
uma tendência comparatista. Isso pode ser percebido já em sua ilustre obra
Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, de 1957, em que o au-
tor discute as relações interliterárias entre Brasil e Europa.
Hoje, no Brasil, uma gama de pesquisadores integra a ABRALIC – Associação
Brasileira de Estudos Comparados, fundada em 1986, em Porto Alegre, no I
Seminário Latino-americano de Literatura Comparada, na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, com a participação de comparatistas europeus e latino-a-
mericanos. Desde sua fundação, a associação possui os objetivos de fomentar a
discussão acerca dos estudos comparatistas por meio de eventos destinados ao
público acadêmico. Além disso, publica periódicos especializados em literatura
comparada e realiza a divulgação de pesquisa nesse campo de estudo.

CONEXÃO
Para conhecer um pouco mais da história da ABRALIC e ter acesso aos diversos volumes
da Revista Brasileira de Literatura Comparada, acesso o site da associação, disponível no
link a seguir:
http://www.abralic.org.br

ATIVIDADES
A partir da leitura deste segundo capítulo, responda às questões a seguir.

01. A literatura comparada pode ser considerada uma disciplina autônoma, com metodolo-
gia e objeto de estudo próprios?

02. Aponte dois grandes fatores que contribuíram para o desenvolvimento da literatura com-
parada no século XIX, comentando-os.

26 • capítulo 1
03. Por que para alguns teóricos, como Benedetto Croce, a expressão literatura comparada
é tida como redundante?

04. Dentro da perspectiva de diferentes “escolas” nos estudos comparados, que aspectos
separam a orientação francesa da norte-americana?

05. Considerando-se as contribuições dos pesquisadores do Leste Europeu, qual é a rele-


vância dos estudos de Dionyz Durisin para a literatura comparada?

REFLEXÃO
A apresentação do percurso histórico da literatura comparada, neste primeiro capítulo, deve
levar você a conhecer a trajetória desse campo de estudo, bem como seus principais críti-
cos. A partir dos diferentes pontos de vista, espera-se que você seja capaz de compreender
a heterogeneidade de objetos e orientações metodológicas da disciplina. Entretanto, essa
multiplicidade de visões não deve ser encarada de forma negativa; pelo contrário, devemos
ver nesse embate teórico um enriquecimento de ideias acerca desse campo de estudo, por
meio da constante (re)formulação teórica. Longe de se anularem, as diferentes orientações
apenas aguçam o espírito crítico do pesquisador, na busca de novas soluções para falhas
apontadas em suas metodologias.

LEITURA
A fim de se aprofundar nos estudos sobre a origem da literatura comparada e suas principais
orientações, sugerimos que você leia o capítulo 1 – “Percursos Históricos e Teóricos” – da
obra Literatura Comparada: História, teoria e crítica, de Sandra Nitrini, cujas referências en-
contram-se a seguir. Para ter uma visão mais ampla do percurso da literatura comparada
mais especificamente no Brasil, sugerimos a leitura do capítulo 3 – “Literatura comparada no
Brasil” – do mesmo livro.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP,
1997.

capítulo 1 • 27
Para conhecer melhor as ideias de Antonio Candido sobre literatura comparada, leia o ar-
tigo “Antonio Candido e a formação da literatura comparada”, de Waltencir Alves de Oliveira,
publicado na conceituada revista Itinerários e disponível no link:
http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2995

A fim de conhecer mais a fundo o trabalho desenvolvido pelos comparativistas brasileiros


no final do século XX, leia o artigo “O comparativismo brasileiro dos anos 90: globalização
e multiculturalismo”, publicado por Eduardo F. Coutinho na revista Ipotesi, da Universidade
Federal de Juiz de Fora, disponível no link:
http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2009/12/O-comparativismo-brasileiro1.pdf

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. A literatura comparada no Brasil. Organon, Porto Alegre,
v. 10, n. 24, 1996. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/28687>.
Acesso em 20 jan. 2016.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001.
CARVALHAL, Tânia Franco. “Dez Anos da ABRALIC (1986-1996): Elementos para Sua História”.
Organon, Porto Alegre, Vol.10, No. 24, 1996. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/organon/
article/view/28683/17366>. Acesso em: 23 jan. 2016.
CROCE, Benedetto. A “literatura comparada”. In: COUTINHO, Eduardo Faria; CARVALHAL, Tania
Franco (orgs.). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
MELLO E SOUZA, Antonio Candido. Palavras do homenageado. Anais do I Congresso ABRALIC.
PortoAlegre, UFRGS, p. 17-20, 1988.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP, 1997.
WELLEK, RENÉ. A crise da literatura comparada. In: COUTINHO, Eduardo Faria; CARVALHAL,
Tania Franco (orgs.). Literatura comparada: textos fundadores.

28 • capítulo 1
2
Fundamentos
Teóricos da Análise
Comparatista
2.  Fundamentos Teóricos da Análise
Comparatista

Neste segundo capítulo, você irá conhecer alguns conceitos fundamentais dos
estudos comparados. Primeiramente, discutiremos alguns pontos centrais da
proposta estruturalista, que se configura como elementos de ruptura com a
proposta clássica francesa. Na sequência, abordaremos o papel da tradição nos
estudos literários, notando como, em momentos históricos distintos, ela assu-
me diferentes valores e concepções. Por fim, a partir de diferentes perspectivas,
estudaremos elementos centrais da proposta comparativista, como os concei-
tos de influência, imitação e originalidade. Por fim, por meio de um breve es-
tudo de algumas cartas de Caio Fernando Abreu, procuraremos demonstrar a
aplicabilidade de algumas teorias apresentadas.

OBJETIVOS
•  Reconhecer contribuições da crítica histórica e da teoria literária para os estu-
dos comparados;
•  Refletir sobre o papel relativo da tradição literária em diferentes momentos históricos;
•  Conhecer os conceitos de influência, imitação e originalidade, a partir de diferentes pers-
pectivas teóricas;
•  Saber aplicar os diferentes conceitos teóricos estudados na análise de um texto, com vis-
tas a compreendê-lo de forma ampla.

30 • capítulo 2
2.1  As contribuições da teoria literária para o comparativismo: o
estruturalismo, um ponto de partida

No capítulo anterior pudemos ter uma visão da literatura comparada a partir de


três orientações: a francesa, a norte-americana e a soviética. Além disso, acom-
panhamos o desenvolvimento dos estudos comparados no Brasil. Apesar das
divergências entre as diferentes correntes teóricas, há um ponto de convergên-
cia entre elas: a discussão sobre as influências que uma determinada literatura
recebe de outra. No embate entre os diferentes posicionamentos, muitos es-
tudos desenvolvidos nos campos da história literária e da teoria da literatura
foram aproveitados no âmbito da literatura comparada. Nesse sentido, procu-
raremos demonstrar os diferentes percursos oferecidos pelas concepções teó-
ricas de cada estudioso.

CONEXÃO
Para saber mais sobre do trajeto da literatura comparada na Universidade de São Paulo,
desde sua incorporação até os estudos mais recentes, leia o texto “Teoria literária e literatura
comparada”, de Sandra Nitrini, disponível no link a seguir:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141994000300068

Ao longo de seu percurso histórico, a literatura comparada tradicional,


como foi concebida, em seus primórdios, na França, sofreu reformulações, re-
sultantes das reflexões sobre a constituição e funcionamento dos textos. Assim,
muitos teóricos passaram a preocupar-se com os laços entre a literatura e ou-
tros sistemas semióticos, estes, centro das preocupações de muitos formalistas
russos. Segundo Carvalhal (2001, p.46), o grupo de formalistas rompeu “[...]
com a análise concebida em termos de causalidade mecânica, de larga difusão
no século anterior, que fazia intervir na investigação do literário o biografismo,
o psicologismo, a história literária e a sociologia.”.
Rejeitando o estudo da obra apoiado na biografia e na sociologia, esses estu-
diosos preconizavam o princípio da imanência da obra, colocada no centro das
preocupações dos pesquisadores. Consideravam, assim, o texto literário um
produto fechado, que deveria ser estudado em si mesmo, com vistas a analisar
sua construção interna. Ao restringirem o seu estudo ao produto final (a obra),

capítulo 2 • 31
excluindo as relações extratextuais, esses estudiosos acabaram por impor limi-
tações à pesquisa interpretativa.
Entretanto, dois representantes do grupo formalista – Iuri Tynianov e
Roman Jakobson – opuseram-se ao fechamento proposto pelos estruturalistas,
propondo o fim do levantamento de fenômenos, em detrimento da análise des-
tes. Em seu ensaio “Da evolução literária”, Tynianov (apud CARVALHAL, 2001)
considera impossível estudar a literatura de forma isolada, ignorando suas cor-
relações com o sistema literário. Para o autor, o lugar de uma obra só pode ser
definido a partir de uma relação diferencial, ou seja, situando-a numa série li-
terária ou extraliterária.
Tynianov (apud CARVALHAL, 1997) considera, ainda, que o valor de um ele-
mento pode variar de acordo com o sistema em que se encontra. Logo, um dado
literário extraído de seu contexto original e integrado em outro contexto não
pode ser considerado idêntico, pois, no novo sistema, exercerá papel diferente.
Carvalhal (1997, p. 47) considera que essa constatação muda a compreensão do
comparatismo como mero cotejo de semelhanças e diferenças, já que o autor
propõe que se considere não apenas um elemento em si, mas a sua função em
diferentes contextos.
De acordo com Carvalhal (1997, p. 47),

Com Tynianov, também fica claro que a obra literária se constrói como uma rede de
“relações diferenciais” firmadas com os textos literários que a antecedem, ou são
simultâneos, e mesmo com sistemas não literários. Nessa linha de reflexão, Tynianov
irá [...] arguir a ideia de “tradição” tal como era concebida na historiografia tradicional.
Para ele, a tradição não se desenha numa evolução linear e contínua, mas se constitui
um processo bastante conflituado, de idas e voltas.

A partir das ideias de Tynianov, outros estruturalistas, como o tcheco Jan


Mukarovsky, enxergarão a obra como parte integrante de um grande sistema
de correlações. Nessa esteira, fugindo à ideia de texto como unidade autossu-
ficiente, também se inserirão os trabalhos de Mikhail Bakhtin. Em sua Poética
de Dostoiévski, o teórico russo faz uma análise da obra desse autor numa pers-
pectiva diacrônica, interpretando-a como uma construção polifônica (marca-
da pelo entrecruzamento de vozes), a partir da qual várias ideologias se con-
frontam. Nesse sentido, ao determinar o caráter polifônico do texto literário,

32 • capítulo 2
construído numa espécie de mosaico, abre perspectiva para outras formas de
se abordar o texto literário.
À medida que os estudos comparados se desenvolvem, algumas questões
começam a vir à tona e alguns conceitos passam a ser recorrentes. Logo, termos
como “tradição”, “influência”, “imitação e “originalidade” passam a ocupar a
cena nos estudos comparados, não sem suscitar discussões entre os diversos
teóricos da área. Assim, no item a seguir, passaremos a discutir esses termos a
partir da visão de alguns estudiosos. Longe de tentarmos chegar a um consen-
so sobre o tema (algo praticamente impossível em uma área como a literatura),
nossas explanações pretendem apenas fazer com que você conheça algumas
ideias de grandes teóricos para que, assim, possa escolher, dentre as orienta-
ções, aquela que melhor lhe caiba dentro de seu objeto de estudos.

2.2  Entre idas e vindas: o lugar da tradição nos estudos comparados

A ruptura com a concepção clássica de literatura comparada (baseada no mero


cotejamento de textos), com prioridade para a análise da natureza das relações
interliterárias fará com que a crítica repense alguns conceitos, como o de tradi-
ção literária. Com isso, a antiga concepção de originalidade também será posta
à prova. O abandono de uma metodologia descritiva e a adoção de uma postura
crítico-analítica fará com que a história dos estudos comparados ganhe outros
rumos, ou, ainda, outras dimensões.
Uma das consequências dessa visão crítica da literatura comparada é a rup-
tura com a visão de tradição como algo fluído e linear. Segundo Carvalhal (2001,
p. 53), “[...] a tradição se desenha menos sobre as continuidades (a reprodução
do “mesmo”) do que sobre as rupturas, os desvios, as diferenças.”. Como obser-
va a autora (2001, p. 53), “Modernamente o conceito de imitação ou cópia perde
seu caráter pejorativo, diluindo a noção de dívida antes firmada na identidade
das influências.”.
Tal fato deve-se ao reconhecimento de que a repetição, a alusão, a colagem
ou a paródia nunca são inocentes: estão sempre carregadas de intencionalida-
de, querendo promover uma transformação no texto antecessor. Nesse sentido,
Carvalhal (2001, p. 54) considera que “[...] a repetição, quando acontece, sacode
a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o re-inven-
ta.”. Isso demonstra que a criação não está ligada à ideia do novo, mas sim ao rea-
proveitamento de ideias que, na pena de outro escritor, ganham nova roupagem.

capítulo 2 • 33
CONCEITO
Em seu romance Esaú e Jacó, Machado de Assis discorre sobre o “aproveitamento de fontes”,
considerando que “[...] as próprias ideias nem sempre conservam o nome do pai; muitas apa-
recem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai
levá-las à feira, onde todos as têm por suas.” (apud CARVALHAL, 2001, p. 54).

A relação entre originalidade e tradição também pode ser estudada a partir


do ensaio “A tradição e o talento individual” (1917), de T. S. Eliot, em que o es-
critor expõe seu ponto de vista sobre a criação poética, a crítica e a poesia. Para
Eliot, quando um leitor lê uma determinada obra, busca nela seu ponto de dife-
renciação das demais, ou seja, sua originalidade. Entretanto, o que geralmente
acaba constatando é que a parte mais individual de seu trabalho é justamente
aquela que garantiu a genialidade a seus antecessores. Isso porque, segundo
Eliot, a tradição não seria percebida por uma semelhança, mas por um “senso
do histórico”.
O senso de histórico, para Eliot, consistiria na percepção da atualidade
no presente, impelindo o autor a escrever com o sentimento de que a litera-
tura compõe uma arte universal. Isso fica claro quando o escritor inglês (apud
CARVALHAL, 2001, p. 62) afirma que “[...] nenhum poeta, nenhum artista de
qualquer arte, tem valor isolado. Seu significado, sua apreciação é feita em rela-
ção a seus antecessores. Não é possível valorizá-lo sozinho, mas é preciso situá
-lo, por contraste ou comparação, entre os mortos.”.
Carvalhal (2001, p. 62) considera que suas proposições têm ainda maior re-
levância quando se referem à criação de uma obra nova que rompe com a que
a antecedera, pois esta nova obra altera a nossa compreensão, modificando a
ordem existente. Consequentemente, o mesmo ocorre com todos os trabalhos
de arte que a precederam. Nesse sentido, o presente não apenas é dirigido pelo
passado, como também possui o poder de alterá-lo. O texto inovador seria, en-
tão, aquele capaz de promover uma leitura divergente das fontes que o precede-
ram, sendo, desse modo, capaz de revitalizar a tradição instaurada.
Assim, passado e presente encontram-se numa constante interação dialé-
tica, em que este é influenciado por aquele e, ao mesmo tempo, tem poder de
modificá-lo, ao menos no âmbito de sua interpretação. Logo, como assinala
Carvalhal (2001, p. 63), “[...] a cada passo a tradição pode ser virada do avesso e
lida de trás para frente.”.

34 • capítulo 2
Nessa esteira, encontra-se o pensamento de Jorge Luis Borges em ensaio in-
titulado “Kafka e seus precursores”. No estudo, Borges rastreia os precursores
de Kafka, por meio de afinidades de formas, às vezes de tom, sem preocupar-se
com os contatos seguros e comprováveis entre textos. Em suas conclusões, o es-
critor argentino constata que em cada um dos autores levantados encontra-se,
em maior ou menor grau, a idiossincrasia de Kafka. Porém, como observa o au-
tor, isso não poderia ser encontrado nesses textos se Kafka não tivesse escrito.
Assim, a leitura de Kafka promove um “desvio” na leitura de seus precursores.
Como conclui Carvalhal (2001, p. 65),

[...] para Borges, é o texto de Kafka que faz realçar o anterior e lhe dá sentido. Ele
o revaloriza ao convertê-lo em um de seus precursores. Desse modo, se dívida
há, é do texto anterior com aquele que provoca sua redescoberta e não [...] des-
te para com aqueles que suposta ou realmente os influenciaram. Assim, Bor-
ges desloca o ângulo de observação, reverte a cronologia, quebra com o siste-
ma hierárquico que nela se apoiava. Ao fazê-lo, abala não só a noção de “dívida”,
como permite que a interação entre dois textos seja entendida sob outro prisma.

Para tornamos as ideias de Borges um pouco mais claras, centremo-nos na


análise de dois fragmentos poéticos, um de Gonçalves Dias, escrito em 1843
(texto I) e outro de Murilo Mendes, composto em 1930 (texto II).
© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.1 – Gonçalves Dias (1823 – 1864) é um dos grandes autores do Romantismo
brasileiro. Seu poema “Canção do exílio” é um dos mais conhecidos da língua portuguesa,
sendo, também, um dos mais parodiados das letras brasileiras.

capítulo 2  • 35
Texto I

Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

GONÇALVES DIAS, Antônio. Poemas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.


Texto II

Minha terra tem macieiras da Califórnia


onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.

MENDES, Murilo. Poesias (1925 - 1955). Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959.

É notável a influência que o texto I exerce sobre o texto II. Entretanto, jamais
poderíamos dizer que Murilo Mendes inspirou-se no poema de Gonçalves Dias
por falta de criatividade. Pelo contrário: nesse caso, a relação é estabelecida a
partir de uma ruptura, fazendo com que o texto II ganhe novo sentido no con-
texto em que é produzido. Para que isso fique claro, passemos, brevemente, a
uma breve análise conteudística dos fragmentos.
O poema de Gonçalves Dias situa-se no primeiro momento do Romantismo
brasileiro, no qual havia uma apologia ao nacionalismo, advinda da ruptura da
colônia, Brasil, com a metrópole, Portugal. O poema, escrito na época em que o
escritor encontrava-se em Portugal, cursando direito em Coimbra, revela uma

36 • capítulo 2
exaltação dos valores da nacionalidade brasileira, representada pelo advérbio
“lá”, em oposição a “cá” (Portugal). Nesse sentido, trata-se de um poema sau-
dosista e nacionalista, evidenciado pela distância das belezas naturais de seu
país de origem.
O poema de Murilo Mendes, por sua vez, não apresenta uma afirmação dos
valores nacionais. Pelo contrário, trata-se de uma denúncia da falta de elemen-
tos genuinamente brasileiros. Nesse sentido, o poeta procura demonstrar que
a pátria brasileira encontra-se marcada pelo ecletismo estrangeiro que, nesse
caso, gera insatisfação, como se pode notar no tom irritadiço do poeta, ao afir-
mar que “A gente não pode dormir / com os oradores e os pernilongos”.
Se fôssemos aplicar a visão de Borges a essa comparação, não haveria ne-
nhuma dívida de Murilo Mendes em relação a Gonçalves Dias. Pelo contrário:
ao retomar o texto do poeta romântico, o escritor modernista revitaliza-o, pro-
movendo nova leitura, num outro contexto histórico, diferente das interpre-
tações que teve no momento em que foi publicado. Nesse sentido, a contem-
poraneidade não só é influenciada pela tradição, como tem o papel de operar
transformações sobre ela.
Ao repensar os conceitos de tradição e originalidade, Borges e Eliot rompem
com a noção de tradição como algo linear e, também, com a ideia de criação
como algo extremamente novo, com vistas a promover uma ruptura com o le-
gado cultural anterior. Nessa linha, muitos teóricos apresentarão seu ponto de
vista sobre os limites dos diferentes graus de influência, que podem variar da
imitação à originalidade. Esse é justamente o ponto que passamos a discutir no
item a seguir.

2.3  Importância e limites dos conceitos de influência, imitação e


originalidade

Em sua obra Literatura comparada: história, teoria e crítica, no capítulo


“Conceitos fundamentais”, Sandra Nitrini (1997, p. 126) discute, a partir da vi-
são de alguns teóricos, alguns conceitos como influência, imitação e originali-
dade, os quais, a partir do percurso traçado pela autora, passaremos a apresen-
tar a seguir, em linhas gerais.
Primeiramente, Nitrini (1997, p. 127) apresenta a visão de Cionarescu, se-
gundo o qual o conceito de influência possui duas acepções distintas, a saber:
a qualitativa e a quantitativa. A influência quantitativa refere-se à soma de

capítulo 2 • 37
relações de contato de qualquer espécie estabelecidos entre um emissor e um
receptor. Diz respeito, por exemplo, ao estudo da influência que um determina-
do escritor exerceu na literatura francesa, a partir da tradução de sua obra, das
imitações, dos contatos pessoais, das críticas e das pesquisas publicadas sobre
o autor na França.
A influência qualitativa, por sua vez, refere-se ao trabalho artístico resulta-
do do contato – direto ou indireto – de um autor com uma determinada fonte.
Tomada nesse sentido, ela não se confunde com a imitação porque esta é muito
mais localizável, por meio de traços composicionais, procedimentos, episódios
específicos, ao passo que aquela – a influência – é mais sutil, menos material,
tendo como resultado uma transformação na visão artística manifesta no texto
original, a partir de sua recepção no novo contexto em que é empregada. Assim,
a influência não se confunde com a tradução ou a imitação, que são facilmente
localizáveis pela simples comparação entre textos.
Nitrini (1997, p.128) apresenta os quatro sentidos de imitação delineados
por Cionarescu, a saber:
1. Imitação como mimesis, no sentido platônico, como idealização de
uma ação. Nesse sentido, mais do que reproduzir a realidade, caberia ao escri-
tor selecionar e transpor, de maneira ideal, dados da realidade para a sua obra.
2. Imitação dos principais escritores consagrados, numa espécie de adap-
tação dos grandes autores antigos ao contexto da época, tendência vinculada à
retórica do Renascimento.
3. Imitação como um processo de adaptação renascentista, tendo como
resultado uma obra cujo título remete ao seu modelo, prática comum nos sé-
culos XVI e XVII. Como exemplifica Nitrini (1997, p. 129), “A tragédia grega
Iphigène de Racine é uma imitação da tragédia de Eurípides.”.
4. Emulação de grandes modelos do passado, numa espécie de imitação
livre dos grandes escritores consagrados. Esse seria, para Cionarescu o sentido
que interessa para os estudos comparativos.

Nitrini (1997, p. 129) observa que, a fim de tornar clara a distinção entre
influência, imitação e tradução:

38 • capítulo 2
[...] Cionarescu recorre aos cinco componentes da obra literária: tema (compreendido
como matéria e organização da narração); forma ou molde literário (o gênero); os re-
cursos estilísticos expressivos; as ideias e sentimentos (ligados à camada ideológica);
e, finalmente, a ressonância afetiva, registro inconfundível da personalidade artística
dos grandes escritores. O fenômeno da influência limita-se à absorção de um ou
outro desses aspectos. Quanto maior o número de elementos aproveitados da obra
de autor por outro, tanto mais ele vai-se aproximando da imitação, da paráfrase, até
chegar à tradução, quando todos os seus elementos são considerados.

A partir das ideias apresentadas, podemos perceber que, em linhas gerais,


Cionarescu considera que a influência consiste na semelhança, nem sempre
de fácil detecção, entre um dos componentes da obra literária (tema, forma,
recursos estilísticos, ideias), ao passo que a tradução, situada no polo oposto
ao da influência, seria a plena coincidência entre dois textos. Entre esses polos,
estariam situadas as outras relações de maior ou menor imitação, como a pará-
frase e a paródia.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.2  –  Paul Valéry foi um dos responsáveis por renovar o conceito de influência: para
o poeta simbolista francês, a originalidade trata-se de uma questão de digestão do produto
ingerido pelo escritor, a partir do contato com determinado autor ou obra.

capítulo 2 • 39
Além das ideias de Cionarescu, merecem destaque as considerações feitas
por Paul Valéry, responsável por renovar o próprio conceito de influência literá-
ria, segundo Nitrini (1997, p. 132). Isso se deve ao fato de o escritor francês ter
considerado os empréstimos não mais como imitação ou dependência de um
escritor em relação a outro, mas como fonte de originalidade, ao considerar a
inserção do novo na criação. Dentre os muitos sentidos de “influência” levanta-
dos pelos estudiosos no pensamento de Valéry, Nitrini (1997, p. 133) centra-se
na “[...] influência recebida, que consiste no contato misterioso de dois espíri-
tos ou na dívida de um autor para com outro, isto é, a influência propriamente
dita, [...] que ele chamou de “modificação progressiva de um espírito pela obra
de outro”.
Assim, para explicar essa espécie de influência, o escritor francês recorre
à psicologia, aplicando-a à sensação que experimentou ao ter contato com a
obra de Mallarmé, o que fica explícito em “Carta sobre Mallarmé”, endereça-
da a Jean Royère. Segundo Valéry, ao ter contato com a obra de Mallarmé, aos
vinte anos, “teve o choque”, criando uma ruptura com os ídolos de sua idade e
tornando-se fanático, tendo uma sensação de conquista espiritual. Percebe-se,
a partir disso, que o contato com um grande escritor faz com que ele encontre
a sua própria identidade. Entretanto, paradoxalmente, a fim de se tornar um
grande escritor, há a necessidade de romper com as influências, ou, ao menos,
superá-las.
De acordo com esse pensamento, Valéry não vê qualquer oposição entre
influência e originalidade, na medida em que é a influência que faz o escritor
tomar conta de sua própria identidade. Nesse sentido, o escritor francês chega
a afirmar (apud NITRINI, 1997, p. 134): “Nada mais original, nada mais próprio
do que nutrir-se dos outros. Mas é preciso digeri-los. O leão é feito de carneiro
assimilado.”. Portanto, podemos considerar que, para Valéry, o que distingue
a originalidade do plágio são os graus de assimilação ou a qualidade da diges-
tão do produto ingerido, como define o próprio escritor (apud NITRINI, 1997,
p.135, grifo do autor):

Plagiário é aquele que digeriu mal a substância dos outros: torna seus peda-
ços reconhecíveis.
A originalidade, caso de estômago.

40 • capítulo 2
Não há escritores originais, pois aqueles que merecem este nome são desconhecidos,
ou mesmo irreconhecíveis.
Mas existem aqueles que aparentam sê-lo.

Ao fazer tais considerações, o escritor francês define o processo de criação a


partir da genial metáfora do ato de digestão, com perfeita assimilação da “subs-
tância dos outros”, descartando a originalidade no sentido absoluto de origem
primeira. Nesse sentido, plágio seria, portanto, uma falha digestiva, deixando à
mostra os pedaços dos objetos ingeridos.
Dentro dos conceitos de influência, imitação e originalidade aqui discutidos,
vale citar também Harold Blooom que, em seu livro The Anxiety of Influence,
publicado em 1973, discorre sobre a questão da influência de maneira central.
Segundo o autor, esta faz-se extremamente necessária para se (re)atingir a ori-
ginalidade dentro dos valores da tradição literária ocidental. Influenciado pelas
ideias de Freud, Bloom defenderá a ideia de que a história da literatura – mais
especificamente da poesia – é feita a partir das influências poéticas, pois grandes
poetas “[...] fazem a história deslendo-se uns aos outros, de maneira a abrir um
espaço próprio de fabulação (BLOOM apud NITRINI, 1997, p. 146).
Influenciado pela psicanálise, Bloom fará uma leitura do complexo de
Édipo à luz da literatura. Numa releitura da obra de Freud, o crítico americano
reescreve a história literária, considerando que:

Os poetas vivem preocupados à sombra de um poeta “forte” anterior a eles, como


filhos oprimidos pelo pai; e qualquer poema pode ser lido como uma tentativa de
escapar dessa “ansiedade da influência” pela remodelação sistemática de um poema
anterior. O poeta, preso à rivalidade edipiana para com seu castrante “perseguidor”,
buscará desarmar essa força penetrando-a de dentro, escrevendo de uma maneira
que revê, desloca e modifica o poema precursor; nesse sentido, todos os poemas
podem ser lidos como uma reescritura de outros poemas, e como “interpretações
errôneas”, ou “incapacidade de entenderem” tais poemas, como tentativa de isolar sua
força esmagadora, para que o poeta possa abrir espaço à sua própria originalidade
imaginativa. Todo poema é, por assim dizer, um “atrasado”, o último de uma tradição;
o poeta forte é aquele que tem a coragem de reconhecer esse atraso e procura enfra-
quecer a força do precursor. (EAGLETON, 2006, p. 277)

capítulo 2 • 41
Aplicando-se as ideias de Bloom à literatura, de uma forma geral, pode-se
perceber que o grande dilema da formação identitária de um escritor desenvol-
ve-se sobretudo no campo da escrita literária.
Se por um lado as leituras e influências constituem importantes elemen-
tos na formação de um autor, por outro, também representam uma castração,
uma repressão. A partir disso, desenvolve-se, no poeta, uma tentativa de supe-
rar seus antecessores. Nesse sentido, os “poetas fortes”, como designados por
Bloom, criam sua obra a partir de uma “desleitura” de seus antepassados, a
partir de apropriações (mas também transformações criativas), com o objeti-
vo de inscrever-se na história literária. Para Bloom, essa relação entre poetas
é conflituosa, consistindo, segundo Nitrini (1997, p. 148) num “[...] contínuo
processo de “desleitura”, isto é, de “correção criativa”, concretizado por meio
dos movimentos revisionários [...]”.
Até o momento, vimos a concepção de influência, imitação e originalidade
a partir de diferentes perspectivas. Dentre tantos caminhos, você deve estar se
perguntando: ao fazer uma análise comparada, qual deles devo trilhar? Que
teórico devo adotar? Qual é a metodologia maia adequada? Não há uma respos-
ta adequada a essas questões. Para se fazer uma ampla análise literária, deve-se
ter em conta, sobretudo, dois aspectos muito importantes.
Primeiramente, não devemos tentar escolher uma teoria e aplicá-la a um
texto, fazendo com que ela dirija a nossa interpretação. O caminho deve ser o
inverso: cada texto, em sua especificidade, pede uma determinada teoria e um
determinado teórico. Portanto, para estudarmos a literatura de forma aprofun-
dada, precisamos, primeiramente, conhecer a fundo nosso objeto de estudo,
pois é ele que constituirá o ponto de partida de nossa pesquisa.
Em segundo lugar, ao analisarmos um texto, é preciso superar a noção de
literatura como produto autossuficiente. Assim, devemos abrir nossos horizon-
tes, estudando o texto não apenas em sua materialidade (aspectos temáticos,
formais, estilísticos), mas também em suas relações com o contexto histórico,
social, cultural, artístico etc. Precisamos, assim, enxergar o texto dentro de uma
grande rede de relações que ele estabelece com outras manifestações huma-
nas, sejam elas artísticas ou não.
Após termos apresentado algumas ideias de críticos, teóricos e escritores
como Cionarescu, Borges, Eliot, Valéry e Bloom, passamos, agora, a demons-
trar a aplicabilidade dessas teorias. Para isso, a partir da perspectiva de Bloom,
discutiremos a influência de Clarice Lispector sobre o escritor Caio Fernando

42 • capítulo 2
Abreu. Nosso objetivo, aqui, não é comparar obras, mas rastrear, nas cartas do
escritor gaúcho, aquilo que Bloom considera a “angústia da influência”.

2.4  Um breve relato de influências a partir da perspectiva de Harold


Bloom

Neste item, tomamos como base de análise a coletânea Cartas, obra organizada
por Italo Moriconi em 2002, que reúne a produção mais significativa de Caio
Fernando Abreu no gênero epistolar. A partir das ideias do crítico americano
Harold Bloom, tomando-se as correspondênciasdo escritor gaúcho, pode-se fa-
cilmente analisar a influência que grandes escritores exerceram sobre o autor,
constituindo, muitas vezes, uma espécie de bloqueio. Isso fica evidente em car-
ta a Hilda Hilst (29/04/1969)1 :

Desde que cheguei, não escrevi nada. Absolutamente NADA. Estive relendo coisas
minhas e de outros para descobrir novamente aquilo que falamos uma vez: estou
completamente cerceado dentro dessa linguagem. De tudo o que escrevi, só reconhe-
ço como uma tentativa de libertação O ovo, que tem muita coisa em comum com o
Osmo. (ABREU, 2002, p. 367)

O trecho da correspondência a Hilda apresenta o jovem escritor, ainda no


início da carreira, limitado pelas influências, com as quais se confronta cons-
tantemente. O termo “libertação” revela o peso da tradição e uma tentativa de
ruptura com ela, para que possa encontrar sua própria identidade literária.
Dentre as principais influências do autor, destaca-se Clarice Lispector, por
quem o escritor gaúcho nutria uma espécie de adoração, como revela em carta a
José Márcio Penido (22/12/1979): “Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que
mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, saca-
neada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. (ABREU, 2002, p.
518). Essa adoração também pode ser notada em carta a Hilda Hilst (29/12/1970),
na qual o escritor narra seu encontro com Clarice, descrevendo como entrou
numa “espécie de transe”: “É impossível sentir-se à vontade perto dela, não por-
que sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está
sabendo exatamente o que se passa ao seu redor.” (ABREU, 2002, p. 415).

1  As indicações entre parênteses referem-se às datas das cartas citadas.

capítulo 2 • 43
COMENTÁRIO
Aqui, poderíamos traçar um paralelo entre o “transe” sentido por Caio Fernando Abreu em
seu encontro com Clarice Lispector e o “choque” experimentado por Paul Valléry ao entrar
em contato com a obra de Mallarmé. Seria possível, a partir dessa semelhança, aprofundar-
mo-nos na relação entre a sensação experimentada por Caio e a concepção de influência
sob a ótica de Valéry. Entretanto, optamos por desenvolver nossa análise a partir das ideias
de Bloom.

Entretanto, as correspondências revelam algo além da admiração que o es-


critor nutria por Clarice Lispector: a influência que a escritora exerceu em sua
obra. Em correspondência a Thereza Falcão (12/11/1989), ao comentar sobre
sua obra infantil, As frangas, Caio assume que:

[...] o livrinho todo não existiria se não fosse Clarice Lispector. De cabo a rabo, é uma
homenagem a ela. Penso se, em algum momento, talvez a Ulla poderia ler A vida ínti-
ma de Laura. Laura é um verdadeiro mito para elas, uma espécie de Marilyn Monroe
das frangas. Afinal, foi a primeira vez que foi dito em público que as galinhas também
têm uma vida íntima. (ABREU, 2002, p. 177)

Nesse sentido, o escritor reconhece que se insere numa tradição. Porém,


instaura-se, aqui, um paradoxo: se por um lado essa tradição lhe oferece contri-
buições, por outro, cria-lhe entraves para encontrar sua verdadeira identidade
como escritor. Afinal, apesar de sua admiração por Clarice Lispector, o escritor
só pode ser reconhecido como um grande autor na medida em que se distancie
de suas influências, o que, em alguns momentos, torna-se algo difícil, como
reconhece em carta a Lucienne Samôr (11/02/1995):

Clarice disse tudo? Certa vez um crítico do Le magazine Litteraire disse que meu
texto parecia o de uma Clarice Lispector que tivesse ouvido muito rock’n’roll e tomado
algumas drogas. Fiquei lisonjeadérrimo. (ABREU, 2002, p. 326)

44 • capítulo 2
A partir desse dilema, observa-se um escritor que, num embate de ideias,
ofuscado pelo brilho de suas influências, tenta conquistar sua própria identi-
dade. Na tentativa de constituição de sua identidade literária, percebe-se, fre-
quentemente, uma busca de enfraquecimento da tradição, como em carta a
Hilda Hilst (13/06/1969), em que Caio revela: “Relendo a Paixão segundo GH
cheguei a bocejar em cima. Não sei, aquele entusiasmo todo que eu tinha senti-
do da primeira vez parece que sumiu.” (ABREU, 2002, p. 373).
Frequentemente, as cartas demonstram essa busca de libertação da tra-
dição, como podemos perceber em correspondência enviada a Hilda Hilst
(08/03/1971):

Falar em tarefa, estou demais satisfeito com o que estou escrevendo. Acho que final-
mente achei a minha forma. Estou escrevendo coisas estranhíssimas: consegui fundir
toda aquela subjetividade com elementos mágicos, políticos e até ficção científica.
A linguagem é a mais simples, depurei muito e consegui uma coisa demais singela,
isto é, um contraste: a forma simples e o fundo muito louco, cheio de conotações e
metáforas. Não sei se é autoelogio, mas acho que sou o único cara no Brasil que está
fazendo literatura pop MESMO. (ABREU, 2002, p. 417)

A expressão “minha forma” demonstra a vontade de Caio Fernando Abreu


de conquistar um lugar na cena literária, por meio de forma e estilo literários
próprios. Nesse sentido, o escritor envereda-se pela trilha da literatura POP e
parece determinar sua identidade ao considerar-se “o único cara no Brasil que
está fazendo literatura pop MESMO”. Aqui, pode-se notar como essa identida-
de literária é constituída pela diferença: o escritor. Este só tem valor na medida
em que se diferencia dos demais, apresentando uma identidade singular. Entra
em jogo, aqui, a questão da originalidade. Embora guarde muitas semelhanças
com a obra de Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu não se confunde com a
escritora, possuindo linguagem e estilo próprios.
Livrando-se das amarras da tradição, o autor reconhece em carta a Hilda
Hilst (11/01/1973): “Meu trabalho está bem diferente do que você conhecia, para
melhor, já liberto de todas aquelas influências de Clarice Lispector.” (ABREU,
2002, p. 431). Caio Fernando Abreu consegue, pouco a pouco, conquistar sua
particularidade no universo literário, posicionando-se como ícone de uma ge-
ração, o que reconhece em carta enviada a José Márcio Penido (22/12/1979):

capítulo 2 • 45
Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de Nirlando
Beirão na última Isto É (do dia 19 de dezembro, please, leia), chamado "O recomeço
do sonho". Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura emoção - porque ele reabili-
ta todas as vivências que eu tive nesta década. Claro que ele fala de uma geração
inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha
geração. Termina com uma alegria total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É
atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te
ilumina? (ABREU, 2002, p. 521)

Na comparação estabelecida entre Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector,


pode-se chegar à seguinte conclusão: embora ambos possuam muitas seme-
lhanças (a introspecção, o monólogo interior e o fluxo de consciência, por
exemplo), algumas características são únicas (como, no caso de Caio Fernando
Abreu, a vertente pop e a linguagem desbocada), determinando a singularida-
de dos escritores. Entretanto, para conquistar sua identidade literária, o escri-
tor gaúcho parece passar por um conflito com seu ídolo: Clarice Lispector. Aos
poucos, pelo enfraquecimento desta, o escritor coloca-se no centro da cena lite-
rária, ocupando um espaço próprio, insubstituível nas letras brasileiras.

ATIVIDADES
Compare os trechos I e II, de Gonçalves Dias (1843) e Mário Quintana (1966), respectiva-
mente, e responda às questões de 1 a 3.

Texto I

Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
GONÇALVES DIAS, Antônio. Poemas.
Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

46 • capítulo 2
Texto II

Minha terra não tem palmeiras...


E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis

QUINTANA, Mário.Antologia poética. Rio de Janeiro:


Editora do Autor, 1966.

01. Você consegue enxergar alguma semelhança temática, formal ou estilística entre eles?
Explique.

02. De acordo com as ideias de Borges e Eliot, estudadas neste capítulo, pode-se dizer que
existe uma dívida do texto II para com o texto I?

03. Partindo da ideia de Paul Valéry, para quem a criatividade é uma questão de digestão,
você considera o texto II original? Justifique.

04. Considerando-se os conceitos de influência, imitação e originalidade, explique o signifi-


cado da seguinte frase, de Paul Valéry: “O leão é feito de carneiro assimilado.”

05. Explique a relação de mão dupla estabelecida por T. S. Eliot entre o presente e o passa-
do, ou, em outras palavras, a contemporaneidade e a tradição.

REFLEXÃO
Neste segundo capítulo, a apresentação dos conceitos de tradição, influência, imitação e
originalidade deve levar você a perceber a multiplicidade de encaminhamentos teóricos do
campo da literatura comparada. Espera-se também, que, com diferentes abordagens dos
fenômenos literários, você possa ter uma visão mais ampla dos estudos comparados, sendo
capaz de ajustar objeto de estudo, referencial teórico e metodologia com vistas à ampla aná-
lise de um texto literário. Por fim, a análise da influência de um escritor sobre outro deve levar

capítulo 2 • 47
você a reconhecer a aplicabilidade das teorias estudadas no auxílio de uma compreensão
mais completa de um escritor ou de uma obra.

LEITURA
A fim de se aprofundar nos estudos sobre os conceitos de tradição, influência, imitação e
originalidade, tão importantes para a literatura comparada, sugerimos que você leia o capítulo
2 – “Conceitos fundamentais” – da obra Literatura Comparada: História, teoria e crítica, de
Sandra Nitrini, cujas referências encontram-se a seguir.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP,
1997.
Para compreender mais a fundo alguns conceitos estudados neste capítulo, bem como
a aplicação da teoria da literatura comparada na análise de um texto, leia a dissertação “A
imitação como procedimento criativo: intertextualidade e memória ovidiana nas Metamorfo-
ses de Antonio Dinis da Cruz e Silva”, de Pedro Berger Ferreira, disponível no link a seguir:
http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/pbferreira.pdf

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, C. F. Cartas. Organização Italo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001.
EAGLETON, T. Teoria da Literatura: uma introdução.São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP, 1997.

48 • capítulo 2
3
A Intertextualidade
e seus
Desdobramentos
3.  A Intertextualidade e seus
Desdobramentos

Neste terceiro capítulo, você irá conhecer os conceitos de dialogismo e polifo-


nia, conforme formulados por Mikhail Bakhtin em sua obra Problemas da poé-
tica de Dostoiévski. A partir das ideias do teórico, veremos como o texto não se
encontra isolado e nem possui um caráter monofônico, sendo composto por
diversas vozes. Na sequência, veremos como as ideias de Bakhtin influencia-
ram outros estudiosos, como Julia Kristeva que, aproveitando-se das ideias do
teórico russo, formula sua teoria sobre a intertextualidade. Por fim, sendo a in-
tertextualidade definida, em linhas gerais, como o diálogo entre textos, apre-
sentaremos as principais formas de relação estabelecidas entre dois ou mais
textos, como a alusão, a paráfrase, a paródia e a apropriação, a partir de suas
diferentes manifestações.

OBJETIVOS
•  Ser capaz de, na leitura e análise de um texto literário, detectar a intertextualidade e
seus desdobramentos;
•  Conhecer as diferentes formas de intertextualidade: a alusão, a paráfrase, a paródia e
a apropriação.

3.1  A intertextualidade e sua importância para os estudos


comparados

A partir da segunda metade do século XX, o desenvolvimento do conceito de


intertextualidade – termo citado no capítulo anterior – traz novo fôlego aos es-
tudos comparados. Um dos nomes mais importantes para o desenvolvimento
do conceito é Julia Kristeva que, a partir da leitura de La poétique de Dostoïes-
ki, de Mikhail Bakhtin, ressalta o caráter dialógico e totalizante do texto. Na
obra Literatura comparada: história, teoria e crítica, Sandra Nitrini apresenta
os principais pontos de relevância da teoria de Kristeva, a partir da leitura do
teórico russo. Nesse sentido, valemo-nos dos apontamentos de Nitrini a fim de
traçar uma breve trajetória do conceito de intertextualidade.

50 • capítulo 3
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Figura 3.1  –  Ao estudar o caráter polifônico da obra de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin en-
contra-se nas origens dos estudos sobre a intertextualidade. Para ele, o caráter dialógico
da linguagem faz com que um texto recorra a outros textos, nunca se encontrando isolado.

O formalista russo Bakhtin destaca-se por ter sido um dos precursores na


elaboração de uma teoria que rompe com a concepção de isolamento textual,
defendendo a ideia de que uma obra literária se elabora a partir de sua relação
com outra(s). Para o teórico russo, o sentido de uma obra não é fixo, estável.
Pelo contrário: como ressalta Nitrini (1997, p. 159), para o teórico, a produção
literária constitui “um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo entre
diversas escrituras: a do escritor, do destinatário (ou do personagem), do con-
texto atual ou anterior.”. Nesse sentido, o texto encontra-se imerso na socieda-
de e na história, elementos que constituem textos que o escritor lê e reescreve.
Temos, assim, a concepção de uma “escritura-leitura”.
Para Bakhtin, o discurso poético tem caráter polivalente e pluridetermina-
do e, nesse sentido, distancia-se do discurso corrente. Em decorrência disso, a
literatura se desenvolve à margem da cultura oficial. Bakhtin baseia-se na lógi-
ca do discurso carnavalesco a fim de explicar a maneira como se estabelece o
discurso literário. Numa época de centralização de poder e de controle das in-
formações e comportamentos, o carnaval – fenômeno popular, cultural e social
– abre espaço para a irreverência e contestação dos valores preestabelecidos de
diferentes formas: por meio da inversão de papéis, da eliminação de distâncias
sociais, da ocupação de espaços públicos, entre outras. Nesse sentido, por meio
do riso e do entretenimento, o carnaval apresenta-se como um espetáculo de
função catártica, promovendo uma flexibilização ou até mesmo uma inversão
dos valores tidos como absolutos, procurando enfraquecê-los.

capítulo 3 • 51
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Segundo Bakhtin, ao integrar elementos antagônicos, o carnaval, enquan-


to manifestação sociocultural, promove uma travestização da realidade, li-
bertando, mesmo temporariamente, o indivíduo das convenções sociais.
Analogamente, a literatura, ao romper com a lógica e com a linguagem corren-
te, liberta-se das convenções do discurso tradicional.
A visão carnavalesca dissolve os limites entre elementos antagônicos, ao
integrar, lado a lado, coisas que se contrapõem: a imaginação e a realidade, a
cultura erudita e a popular, o céu e o inferno, o sagrado e o profano. A mesma
carnavalização pode ser observada no âmbito literário na paródia, por exemplo,
recurso que discutiremos adiante. A própria linguagem poética, em si, teria um
caráter carnavalesco, já que, segundo Nitrini (1997, p.159) “[...] ao quebrar as
leis da linguagem censurada pela gramática e pela semântica, realiza como que
uma contestação social e política”.
Convém considerar então que, para Bakhtin, o texto constitui um espaço
onde diferentes vozes dialogam ou se entrecruzam. A leitura consiste em ouvir
as diferentes vozes que se manifestam no tecido literário: a do sujeito da escri-
tura, a dos destinatários e a dos textos exteriores. Vale ressaltar que, para que
haja esse dialogismo, a linguagem deve tornar-se discurso e possuir um autor
do enunciado. Daí decorre a concepção de texto não como produto isolado, au-
tossuficiente, mas produto histórico-social. Logo, o texto insere-se nessa via de
mão dupla: há, por um lado, a assimilação da história e da sociedade no texto e,
por outro, a inserção do texto na história.
A partir dessas considerações, Bakhtin chega ao conceito de ambivalência
do texto literário, na medida em que toda escritura consiste na leitura prévia de

52 • capítulo 3
um corpus literário e, nessa medida, apresenta-se como absorção e réplica de
outro texto. Em outras palavras, na escritura de uma obra, um autor vale-se da
palavra de outro(s). Mesmo que não o faça de maneira consciente e determina-
da, ao escrever, o sujeito incorpora em seu texto as suas leituras prévias, os dis-
cursos com que teve contato e toda sua experiência de mundo. Em decorrência
disso, o espaço textual é polifônico e ambivalente, já que nele se manifestam
diferentes vozes consoantes ou dissonantes.
Ao tecer tais considerações, segundo Kristeva (apud NITRINI, 1997, p. 161),
Bakhtin faz uma importante descoberta para a teoria literária: “[...] todo tex-
to se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transfor-
mação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se o da
intertextualidade e a linguagem poética lê-se, pelo menos, como dupla.”. É a
partir dessas considerações que Kristeva, baseada em uma ampla concepção de
texto como “sistema de signos”, elabora o conceito de intertextualidade.
©© WIKIMEDIA.ORG 

Figura 3.2  –  Baseando-se na teoria de Mikhail Bakhtin sobre o caráter dialógico do texto, a
búlgaro-francesa Julia Kristeva formula sua teoria sobre a intertextualidade, segundo a qual
o texto se constitui a partir de um “mosaico de citações”, inserindo-se numa ampla rede de
relações com outros textos, os quais retoma e com os quais dialoga.

capítulo 3 • 53
A intertextualidade baseia-se no princípio de que:

O texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura réplica de um outro
(outros textos). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus literário anterior ou sincrô-
nico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no texto. A ciência paradigmá-
tica deve levar em conta uma ambivalência: a linguagem poética é um diálogo de dois
discursos. Um texto estranho entra na rede de escritura que o absorve, segundo leis
específicas, ainda a serem descobertas. Assim, no paragrama de um texto, funcionam
todos os textos do espaço lido pelo escritor. (NITRINI, 1997, p. 162)

Kristeva lembra ainda que, para os antigos, “ler” significava também co-
lher, recolher, tomar, roubar, reconhecer os traços. Essa significação, tão cara
à compreensão de intertextualidade, sugere uma apropriação das ideias do(s)
outro(s). Nesse sentido, “escrever”, por sua vez, seria a leitura transformada em
produção. Nitrini (1997, p. 162) ressalta que, com base nisso, Kristeva conside-
ra que a linguagem poética está “[...] duplamente orientada: para o ato da remi-
niscência (evocação de uma outra escrita) e para o ato da somação (a transfor-
mação dessa escritura).”. Diante disso, um texto recupera outros textos, porém,
a partir da somação, constrói sua própria significação.
Como observa Nitrini (1997, p. 163), no âmbito dos estudos literários, as
ideias de Kristeva originaram muitas (re)elaborações do conceito de intertex-
tualidade. Dentre os que se dedicaram ao estudo do conceito, Nitrini destaca
Laurent Jenny. Segundo o autor, em La stratégie de la forme, a ampla noção de
intertextualidade coloca ao pesquisador um amplo problema de identificação,
pois, a princípio, qualquer discurso seria de natureza intertextual, visto que
não se origina do nada, mas é fundado a partir de um conhecimento prévio do
autor. Diante dessa dificuldade, Jenny propõe que se considere a intertextua-
lidade apenas em seu caráter explícito, ou seja, quando, num texto, puderem
ser reconhecidos elementos anteriormente materializados em outro(s) texto(s).
Assim, de acordo com Nitrini (1997, p. 163) Jenny considera a intertextualida-
de como “[...] o trabalho de transformação e assimilação de vários textos operado
por um texto centralizador que mantém o comando do sentido.”. A partir disso,
a teoria do autor leva em consideração três aspectos essenciais no fenômeno da
intertextualidade: 1. O reconhecimento de outros textos em qualquer produção
literária; 2. O trabalho de transformação que os textos assimilados sofrem ao

54 • capítulo 3
serem incorporados; 3. A unidade de sentido promovida pelo intertexto, ou seja,
sua capacidade de absorção e unificação de ideias em um novo texto.
A partir desses três elementos, Jenny considera que a análise literária deve
primeiramente “[...] avaliar as semelhanças que persistem entre o enunciado
transformador e o seu lugar de origem e, em segundo lugar, ver de que modo o
intertexto absorveu o material do qual se apropriou.” (NITRINI, 1997, p. 164).
Em outras palavras, ao analisar as relações intertextuais, o pesquisador deve
deter-se não apenas na semelhança entre os textos comparados, mas também
nas diferenças, investigando de que forma o já-dito ganha nova significação em
seu novo espaço de circulação.
Nitrini também reconhece as contribuições de Cláudio Guillén no desen-
volvimento da noção de intertextualidade para os estudos comparados. O es-
panhol também opõe-se à noção genérica de intertexto defendida por Kristeva.
Para Guillén, a intertextualidade tomada como o anonimato e a generalidade
promove um retrocesso aos estudos comparados, uma vez que, muitas vezes,
torna impossível a detecção de fontes. Nesse sentido, a intertextualidade im-
plícita, tomada em sentido amplo, não resolve o problema da pesquisa de in-
fluências, uma vez que desconsidera o caráter mais importante da criação: a
individualidade de cada escritor.
Por outro lado, para Guillén, a intertextualidade explícita pode abrir cami-
nho para trabalhos interessantes e esclarecedores. Nesse sentido, para o autor,

O intertexto refere-se a algo que aparece na obra, que está nela, e não a um processo
genético, cujo centro de interesse localizava-se sobretudo no trânsito, relegando a um
segundo plano tanto a origem quanto o resultado. O conceito de influência tendia a
individualizar a obra literária, sem nenhuma eficácia. O conceito de intertexto leva em
consideração a sociabilidade da escrita literária, cuja individualidade se realiza até cer-
to ponto no cruzamento particular de escrituras prévias (apud NITRINI, 1997, p. 165).

Com essas considerações, o escritor espanhol distingue influência de inter-


textualidade. Para Guillén, outra diferença encontra-se no fato de a pesquisa
de influência voltar sua atenção para os sujeitos criadores, ressaltando a con-
tinuidade da literatura, ao passo que a intertextualidade preocupa-se com os
objetos criados, desconsiderando-se os sujeitos da criação. Nessa medida, am-
bas encontram-se em polos opostos. Por fim, enquanto a influência perpetua

capítulo 3 • 55
a ideia de reprodução de modelos, a intertextualidade a derruba, pois enxerga
a produção literária como um amplo sistema de trocas, relativizando a ideia de
propriedade e de originalidade.
Vale ressaltar que, ao priorizarmos a discussão sobre intertextualidade no
campo da literatura, estamos fazendo um recorte do conceito, apresentado so-
bretudo pela visão de alguns estudiosos da área dos estudos literários. É válido
lembrar, entretanto, que a Linguística Textual, outro campo de estudo das ciên-
cias da linguagem, oferece teorias para se pensar a intertextualidade não ape-
nas no texto escrito, mas em outros sistemas de comunicação. Nessa área, des-
tacam-se pesquisadores como José Luiz Fiorin, Diana Barros, Ingedore Villaça
Koch, entre outros.
A fim de podermos demonstrar, na prática, o conceito de intertextualidade,
selecionamos trechos de duas canções brasileiras: “A Rita”, de Chico Buarque
(texto I) e “Resposta da Rita”, de Ana Carolina (texto II).

Texto I
A Rita levou meu sorriso
No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
E o que me é de direito
Arrancou-me do peito
E tem mais
Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Que papel!
Uma imagem de são Francisco
E um bom disco de Noel

Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/


a-rita.html#ixzz3yUXMALH8>. Acesso em: 28 de jan. 2016.

Texto II
Não levei o seu sorriso
Porque sempre tive o meu
Se você não tem assunto
A culpada não sou eu

56 • capítulo 3
Nada te arranquei do peito
Você não tem jeito faz drama demais
Seu retrato, seu trapo, seu prato
Devolvo no ato pra mim tanto faz

Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/ana-carolina


/resposta-da-rita-feat-chico-buarque.html#ixzz3yUWx74zN>.
Acesso em: 28 de jan. 2016.

Como você deve ter percebido, as duas canções estabelecem uma intertex-
tualidade explícita, uma vez que o diálogo entre ambas é facilmente detectável
já a partir do título de cada uma. Entretanto, podemos perceber que, distan-
ciando-se da mera imitação, os discursos estabelecem entre si uma tensão, por
manifestarem vozes dissonantes.
A música de Chico Buarque, anterior à de Ana Carolina, manifesta a voz de
um eu lírico fragilizado, marcado pelo abandono. Além disso, esse sujeito diri-
ge a Rita – a responsável pela sua dor – uma série de acusações que, em suma,
tornam-na responsável pela sua infelicidade. A composição de Ana Carolina,
em contrapartida, constitui uma espécie de defesa de Rita às acusações feitas
na canção anterior. Nesse sentido, apresenta-se como uma voz antagônica em
relação àquela manifesta na canção de Chico.
A comparação entre as canções evidencia que elas em nada se aproximam
em termos de sujeitos do discurso e de ideologias manifestas, embora uma sir-
va de inspiração para a escrita de outra, sendo seu ponto de partida. Ambas as
músicas constituem, assim, composições únicas, marcadas pela individualida-
de de seus criadores. É justamente essa retomada, seguida de uma transfor-
mação criativa, que caracteriza a intertextualidade. Uma análise mais detida
mostraria outros pontos de contato e distanciamento, porém, nosso objetivo
não é aprofundarmo-nos em sua análise, mas apenas ilustrar, de maneira geral,
o conceito de intertextualidade.
Avançando nos estudos sobre o conceito de intertexto, o diálogo entre tex-
tos pode se estabelecer de diferentes formas, consequentemente recebendo
diferentes classificações. A partir disso, para que você conheça esse conceito
mais a fundo, no próximo item, passamos a discutir os diferentes tipos de inter-
textualidade: a alusão, a paráfrase, a paródia e a apropriação. Para isso, basea-
mo-nos nos estudos de Afonso Romano de Sant’Anna.

capítulo 3 • 57
CONEXÃO
Para conhecer o emprego da intertextualidade em outro campo de estudo (a Análise do
Discurso), acesse o link a seguir e leia o artigo “Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado
e Chico Buarque de Holanda: um encontro pelo viés da Análise do Discurso”, de Cristiane
Venzke Nogueira. Nele, a autora analisa a relação entre os poemas “Poema de sete faces”
de Carlos Drummond de Andrade, “Com licença poética” de Adélia Prado e “Até o fim” de
Chico Buarque, nas categorias apresentadas pela análise do discurso, como o dialogismo, a
interdiscursividade e a intertextualidade.
http://gorila.furb.br/ojs/index.php/linguagens/article/download/1658/1305

3.2  As diferentes formas de intertextualidade: alusão, paráfrase,


paródia e apropriação

Na introdução de sua obra Paródia, Paráfrase & cia, Afonso Romano de Sant’Anna
(2007, pp. 5-6) propõe apresentar não um estudo acabado sobre as diferentes rela-
ções intertextuais, mas apontamentos para que se pensem alguns conceitos per-
tinentes ao diálogo entre textos. O autor parte da premissa de que a paródia não
pode ser estudada de maneira isolada, como fizeram alguns dos teóricos que o
antecederam. Assim, propõe o estudo desse conceito ao lado de outros, como o da
paráfrase e da estilização. Ainda nas considerações iniciais, o autor ressalta a visão
semiótica que perpassa seu trabalho. Em decorrência disso, seus apontamentos
remetem não apenas ao texto literário, mas à moda, ao jazz, à pintura clássica e
moderna, à mímica, ao cinema, dentre outras formas de manifestação artística.
Após apresentar suas considerações iniciais, antes de entrar no estudo dos
termos propriamente ditos, Sant’Anna (2007, pp. 7-10) enumera quatro propo-
sições que, segundo ele, constituem o ponto de partida de seu trabalho. A pri-
meira observação feita pelo autor é o fato de haver uma relação entre paródia
e modernidade, pois esse “efeito de linguagem” tem se tornado cada vez mais
constante nas obras contemporâneas. Segundo Sant’Anna, essa recorrência
teria se dado, principalmente, a partir do surgimento de vanguardas como o
Futurismo, em 1909, e o Dadaísmo, em 1916. Entretanto, o autor assinala que,
apesar de ser um traço da arte contemporânea, a paródia não é uma invenção
recente, pois pode ser observada em textos literários da Antiguidade Clássica.

58 • capítulo 3
Para Sant’Anna, a intensa presença da paródia na contemporaneidade está
relacionada ao surgimento de outras formas de comunicação, como o jornalis-
mo. Como observa o autor, da mesma maneira que a pintura teve que se rein-
ventar a partir da invenção da fotografia, deixando de ser “fotográfica, a litera-
tura, ao concorrer com outros meios de comunicação, tornou-se mais literária.
Nesse processo, segundo Sant’Anna (2007, p. 8, grifos do autor)

[...] a linguagem literária muitas vezes acabou por alargar seu espaço internamente,
numa alquimia de materiais estilísticos e formais que tornam o texto literário num
código que só os iniciados podem decodificar. Dentro dessa especialização, surge a
paródia como efeito metalinguístico (a linguagem que fala sobre outra linguagem), e,
como veremos mais adiante, é possível distinguir não apenas uma paródia de textos
alheios (intertextualidade) como uma paródia dos próprios textos (intratextualidade).

A partir das considerações do autor, pode-se perceber que a paródia surge,


então, como uma forma de particularização do texto literário, fazendo com que
ele se distinga de outros gêneros textuais, como a notícia, a reportagem etc.
O segundo apontamento feito pelo autor trata-se de um reparo histórico:
para Sant’Anna, embora Bakhtin tenha dado contribuições inquestionáveis
aos “estudos socioliterários modernos”, seu nome não deve ser associado ao de
precursor dos estudos sobre paródia. Segundo o autor, tal crédito cabe a outro
formalista russo, Iuri Tynianov, que, dez anos antes, em seus estudos, expôs
ideias que mais tarde seriam apresentadas por Bakhtin.
O terceiro apontamento feito por Sant’Anna refere-se ao fato de os dois teó-
ricos russos – Tynianov e Bakhtin – terem trabalhado apenas com os conceitos
de paródia e estilização. O autor (2007, p. 9) se propõe, então, a superar essa
dicotomia simples, desenvolvendo “[...] contrastivamente os conceitos de pa-
ráfrase e apropriação.”. Segundo Sant’Anna, esses dois últimos conceitos, ao
funcionarem como elementos de tensão, podem melhor esclarecer a paródia e
a estilização. Nesse sentido, o autor deixa claro que adotará uma metodologia
da definição dos conceitos a partir de contrastes.
Por fim, em seu último apontamento, o teórico ressalta o fato de conceitos
como a paráfrase, a paródia, a estilização e a apropriação serem pertinentes
não apenas à literatura, mas a outras manifestações artístico-culturais como o
jazz, a moda, a pintura, a confecção de jornais etc. Com isso, Sant’Anna (2007,

capítulo 3 • 59
p. 10) explicita o caráter semiológico de seus estudos, demonstrando que “[...]
os problemas fundamentais da linguagem não são apenas linguísticos, mas se
repetem com outros materiais, em outros domínios artísticos.”.
Após essas considerações, Sant’Anna ( 2007, pp. 13-14) passa à discussão
dos conceitos propostos. Primeiramente, o autor centra-se na paródia, apresen-
tando, brevemente, um esboço dos estudos sobre o conceito antes de Tynianov
e Bakhtin. Na sequência, detém-se na definição de ambos os autores sobre pa-
ródia e estilização, ressaltando que eles apresentam posto de vista convergente
sobre o fenômeno. Para os teóricos russos, os dois fenômenos – a paródia e a
estilização – se assemelham por terem uma vida dupla: por trás de uma e de
outra, há uma obra estilizada ou parodiada.
Entretanto, a diferença está no fato de que, na estilização, há uma concordân-
cia entre os dois planos, ao passo que, na paródia, os planos encontram-se discor-
dantes. Em outras palavras, enquanto a estilização mantém a ideologia da obra
original, a paródia subverte-a, sendo uma espécie de antagonista do texto fonte.
Após apresentar os conceitos de paródia e estilização dos teóricos rus-
sos, Sant’Anna (2007, p. 17) detém-se na discussão do conceito de paráfrase.
Primeiramente, o autor constata que, diferentemente do que ocorre com a pa-
ródia, há uma despreocupação em relação ao estudo do termo. Para o estudio-
so, essa ausência de um percurso teórico da paráfrase ocorre pela sua proxi-
midade com a imitação ou a cópia. Já que à história geralmente interessam os
elementos de ruptura, e não de continuidade, é compreensível que esse concei-
to tenha sido relegado a um segundo plano.
Após o sentido diversificado do termo paráfrase, Sant’Anna (2007, p. 17)
detém-se na definição proposta pelo dicionário de Beckson e Gansz (apud
SANT’ANNA, 2007, p. 17), segundo o qual a paráfrase “[...] é a reafirmação, em
palavras diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita. Uma paráfrase
pode ser uma afirmação geral da ideia da obra como esclarecimento de uma
passagem difícil. Em geral ela se aproxima do original em extensão.”. Na se-
quência, Sant’Anna (2007, pp. 18-20) discute a relação entre tradução e paráfra-
se, ressaltando que, enquanto muitos teóricos materialistas consideram o ato
tradutório uma paráfrase, outros teóricos idealistas consideram que o discurso
poético é impossível de ser parafraseado. Nesse sentido, para estes últimos, a
tradução seria, então, uma espécie de estilização, na medida em que implica
um esforço criativo por parte do tradutor.

60 • capítulo 3
Após apresentar alguns exemplos de paródia, paráfrase e estilização a par-
tir da “Canção do exílio”, de Gonçalves dias, Sant’Anna (2007, p. 27) concentra
seus esforços na tentativa de definir a paródia em oposição à paráfrase. Para o
autor, esses conceitos se polarizam de tal forma que poderíamos pensá-los a
partir de dois diferentes eixos: um eixo parafrásico e um eixo parodístico. Para
o autor (2007, pp. 27-28),

[...] a paródia, por estar do lado do novo e do diferente, é sempre inauguradora de um


novo paradigma. De avanço em avanço, ela constrói a evolução de um discurso, de
uma linguagem, sintagmamente. Em contraposição, se poderia dizer que a paráfrase,
repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se
oculta atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma.

A oposição entre a paráfrase e a paródia apontada pelo autor (2007, pp. 28-19)
baseia-se em muitas distinções, que esquematizamos na tabela a seguir:

PARÁFRASE PARÓDIA
Intertextualidade das semelhanças Intertextualidade das diferenças
Continuidade Descontinuidade
Discurso em repouso Movimentação do discurso
Condensação Deslocamento
Reforço Deformação
Caráter ocioso Caráter contestador

Resumindo, Sant’Anna vê na paráfrase uma intertextualidade das seme-


lhanças, porque esta não subverte o sentido do texto fonte, mantém-no em re-
pouso, apresentando suas ideias sob uma forma de condensação. Nesse sen-
tido, reforça uma determinada ideologia e, por isso, possui caráter ocioso. A
paródia, em contrapartida, apresenta-se como intertextualidade das diferenças
por promover uma descontinuidade ou ruptura com o texto fonte, subvertendo
a ideologia original, por meio de uma movimentação (leia-se transformação)
do discurso. Em decorrência disso, promove uma deformação no texto fonte, o
que lhe confere um caráter contestador.
Após essas distinções, Sant’Anna discute a questão das vozes no discur-
so parafraseado e no parodiado. Aqui, convém, mais uma vez, transcrever as
palavras do autor, que elucida, claramente, os pontos de divergência entre os
dois conceitos:

capítulo 3 • 61
[...] assumindo uma atitude contra-ideológica, na faixa do contra-estilo, a paródia foge
ao jogo de espelhos denunciando o próprio jogo e colocando as coisas fora de seu
lugar “certo”. Já a paráfrase é um discurso sem voz, pois quem está falando está
falando o que o outro já disse. É uma máscara que se identifica totalmente com a voz
que está atrás de si. Nesse sentido, ela se difere da paródia, pois, nesta, a máscara
denuncia a duplicidade, a ambiguidade e a contradição. Por isso é que, usando um
paralelo numa linguagem mística, se pode dizer: a paráfrase faz o jogo do celestial, e a
paródia faz o jogo do demoníaco. O angelical é a unidade, o demoníaco é a divisão. E
já que falei em jogo, posso acrescentar nova comparação: na paráfrase, não há a ten-
são entre os dois jogadores, é como se estivessem jogando o mesmo jogo, do mesmo
lado. Enquanto a paródia é uma disputa aberta do sentido, uma luta, um choque de
interpretação. (2007, pp. 29-30).

Como se pode notar, as analogias empregadas para definir antagonicamen-


te paráfrase e paródia são abundantes. Entretanto, longe de tornarem a leitura
exaustiva, elas iluminam a compreensão dos conceitos, pela sua capacidade de
ilustração.
Após formular sua teoria com base no contraste entre paródia e paráfrase,
Sant’Anna (2007, p. 35), considerando fraca a dualidade paródia/estilização
apresentada pelos teóricos russos, propõe discutir a estilização não como um
conceito opositivo à paródia, mas como um efeito “[...] que pode ocorrer tanto
dentro da paródia quanto da paráfrase.”. O autor apresenta, então, três diferen-
tes modelos teóricos capazes de explicar os conceitos de estilização, paráfrase,
paródia e apropriação.
Em seu primeiro modelo teórico, Sant’Anna (2007, p. 35) considera a pa-
ródia uma espécie de estilização negativa, em contraposição à paráfrase, uma
estilização positiva. Para o autor, os termos positivo e negativo não assumem
um valor ético ou ideológico: apenas demarcam maior ou menor aproximação
com a fonte. Sant’Anna considera que, quando a estilização se desenvolve na
mesma direção ideológica do texto de origem, tem-se um efeito pró-estilo, re-
sultando numa paráfrase. Quando, porém, a estilização se desenvolve em sen-
tido contrário ao texto-fonte, tem-se um contra-estilo, que define, justamente,
a paródia.

62 • capítulo 3
A partir disso, o autor apresenta o seguinte esquema (2007, p. 36):

(1) texto original

(2) paráfrase ...................................... (3) paródia

pró estilização contra

Com esse modelo, Sant’Anna considera a estilização uma técnica, cujos


efeitos (mais intensos ou menos intensos) resultariam na paráfrase ou na pa-
ródia. Assim, o autor considera a estilização uma técnica (meio) para se atingir
um determinado efeito (resultado). Com isso, problematiza as relações textuais
não mais de forma dualística, mas de maneira triádica.
Não satisfeito com a apresentação deste modelo, Sant’Anna (2007, p. 38)
propõe um outro tipo de raciocínio para se pensar a paráfrase, a estilização e a
paródia, fundamentado na noção de desvio. O autor (2007, p. 38, grifos do autor)
considera as diferentes relações intertextuais “[...] desvios maiores ou menores
em relação a um original. Desse modo, a paráfrase surge como um desvio míni-
mo, a estilização como um desvio tolerável, e a paródia como um desvio total.”.
Na sequência, o autor (2007, pp. 39) explica, mais detidamente, cada um
dos desvios. Em primeiro lugar, por desvio tolerável entende o máximo de ino-
vação permitida por um texto sem que seu sentido seja subvertido. Nesse caso,
o resultado seria a estilização, que resulta num texto que se mantém fiel ao pa-
radigma inicial, pois o autor afasta-se muito pouco do original. Sant’Anna con-
sidera que esse desvio, além de tolerável, é desejável, pois representa uma certa
marca de autoria do texto, evitando que ele caia na paráfrase. A paródia, por sua
vez, consiste numa perversão – ou inversão – do sentido original.
Para que os conceitos de estilização e paráfrase não sejam confundidos, o
autor (2007, p. 39, grifos do autor) recorre a outra analogia, aproximando a esti-
lização do jogo e a paráfrase do ritual, pois, “No ritual, a participação individual
é mínima. Há uma hierarquia e uma linguagem estabelecidas. No jogo, há fle-
xibilidade, e o resultado é imprevisto, apesar das regras que cercam os elemen-
tos.”. Sant’Anna (2007, p. 41) resume bem os três tipos de desvios ao afirmar
que “[...] a paródia deforma, a paráfrase conforma e a estilização reforma.

capítulo 3 • 63
Apesar da diferença entre os três conceitos, o autor (2007, p. 40) propõe que
eles sejam agrupados em dois conjuntos, haja vista a proximidade entre os con-
ceitos de paráfrase e estilização (por reafirmarem o sentido do texto-fonte), ao
passo que a paródia encontra-se na contramão desses conceitos (por subverter
a estrutura ou sentido do texto de origem). Recorrendo a uma analogia entre
esses conceitos e a matemática, Sant’Anna afirma:

[...] é lícito dizer que a paráfrase e a estilização fazem parte de um mesmo conjunto
em relação à paródia. Sendo que a paráfrase aí seria algo semelhante àquilo que em
matemática se chama “diferente de zero”, ou seja, um valor quase imperceptível de
diferença, enquanto a estilização corresponderia ao valor 1. Nessa relação, a paródia
poderia ser algo semelhante a – 1.

O autor (2007, p. 40) propõe, então, o seguinte esquema:

conjunto 1 conjunto 2

Estilização = 1
Paródia = – 1
Paráfrase ≠ 0

Por fim, com receio de que sua conceituação torne-se muito restrita,
Sant’Anna ressalta que não existe uma incompatibilidade completa entre es-
ses conceitos, havendo até mesmo a possibilidade de eles aparecerem num
mesmo texto, com deslizamentos de efeitos de um para outro. Como assinala
o autor (2007, p. 42), ao considerarmos a estilização como algo que se encontra
entre a paródia e a paráfrase, estamos, novamente, numa formação triádica,
representada pelo seguinte esquema:

Paráfrase Estilização Paródia

A essas duas propostas iniciais, Sant’Anna (2007, p. 43) apresenta um tercei-


ro modelo de análise, incorporando, aos três elementos apresentados, o con-
ceito de apropriação, considerado, pelo autor, um termo pouco definido, por
ter sido recentemente incorporado pela crítica literária.

64 • capítulo 3
Segundo o pesquisador (2007, p. 43), a técnica da apropriação teria sido incor-
porada à literatura a partir das artes plásticas, especialmente pela influência do
Dadaísmo, a partir de 1916. Como exemplo, o autor cita os ready-made de Marcel
Duchamp: ao apropriar-se de objetos de uso comum, como um urinol de louça, e
expô-los num museu, o artista estaria empregando uma técnica de apropriação.

Figura 3.3  –  “A fonte”, de Marcel Du-


©© .WIKIMEDIA.ORG

champ, é um exemplo de ready-ma-


de. Apresentada como obra de arte
em um concurso promovido nos Es-
tados Unidos, a obra, assinada por
“R. Mutt”, nome da fábrica que produziu o
objeto, foi rejeitada pelo júri, por não en-
xergar nela nenhum trabalho artístico. O
nome de Duchamp, entretanto, percorreu
o mundo, ganhando adeptos desse tipo
de arte.

Sant’Anna (2007, p. 43) considera que essa técnica assemelha-se à colagem,


que consiste na “[...] reunião de materiais diversos encontráveis no cotidiano
para a confecção de um objeto artístico.”. Segundo o autor (2007, p. 44), essas
obras são um retrato da sociedade industrial e constituem uma crítica da ideo-
logia. Dentre as várias considerações sobre esse tipo de arte, merece destaque a
seguinte observação do autor (2007, p. 44-45):

Independentemente do fato de o expectador gostar ou não do resultado, é impor-


tante anotar que tipo de efeito isso produz. Ora, essa técnica artística, tão moderna,
na verdade usa de um artifício velhíssimo na elaboração artística: o deslocamento.
Deslocamento que está muito próximo daquele estranhamento e do desvio de que
falamos anteriormente no princípio deste estudo. Tirado de sua normalidade, o objeto
é colocado numa situação diferente, fora de seu uso.

Segundo Sant’Anna (2007, p. 45), os artistas que se servem dessa técnica


buscam estabelecer um corte com o cotidiano usando elementos do próprio
cotidiano. Dessa forma, “re-apresentam os objetos em sua estranhidade”. De
acordo com o autor, esse tipo de técnica, comum nos anos 60, ficou conhecido

capítulo 3 • 65
como arte conceitual, por colocar a ideia de realização da obra em primeiro pla-
no, deixando o produto final em plano secundário. A forma, nesse caso, serve
sobretudo para “[...] desarrumar, inverter, interromper a normalidade cotidia-
na e chamar a atenção para alguma coisa.”.
Avançando, Sant’Anna (2007, p. 46) considera a apropriação uma radicaliza-
ção da paródia, ou, em outros termos, uma paródia levada ao extremo. Nesse sen-
tido, é oposta à paráfrase e divergente da estilização, pois toma um objeto de outro
e subverte-lhe o significado. Assim, por meio da apropriação, o autor não escreve,
apenas transcreve ou articula, por meio de bricolagem, o(s) texto(s) de outrem.
Como observa Sant’Anna, (2007, p. 46), “Se o autor da paródia é um estilizador
desrespeitoso, o da apropriação é o parodiador que chegou ao seu paroxismo.”.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 3.4  –  Segundo Sant’Anna, o que caracteriza a apropriação é o desrespeito à obra


do outro, ou seja, a dessacralização. É o que ocorre, por exemplo, com a obra “L.H.O.O.Q”, de
Marcel Duchamp, que faz da obra “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, um simples material
para que ele realize a sua.

A partir da definição de apropriação, Sant’Anna (2007, p. 47) propõe, então,


um terceiro modelo de análise, concebido a partir de quatro termos distribuí-
dos em dois conjuntos, assim esquematizados:

66 • capítulo 3
paráfrase paródia

estilização apropriação

conjunto das similaridades conjunto das diferenças

Sant’Anna (2007, p. 48) observa dois eixos de similaridades: de um lado, en-


contra-se a paráfrase e a estilização; de outro, a paródia e a apropriação. Nos
dois conjuntos, considera uma gradação: enquanto a paráfrase é o desvio míni-
mo, a estilização é o desvio tolerável, ambas sem alteração do sentido original.
A paródia, por sua vez, é o desvio do texto-fonte com inversão de significado.
Essa inversão, levada ao extremo, tem como resultado a apropriação.

A apropriação não pode ser confundida com o plágio, definido pelo Michaelis – Mo-
derno Dicionário da Língua Portuguesa (2016) como ato de “Cometer furto literário,
apresentando como sua uma ideia ou obra, literária ou científica, de outrem”. O plágio
diferencia-se da apropriação em muitos aspectos. Dentre eles, pode-se citar o fato
de o plagiador ocultar a fonte original e, também, de não haver subversão do sentido
original do texto, como no caso da apropriação.

Após apresentar os três diferentes modelos de representação da relação en-


tre os diferentes conceitos, Sant’Anna (2007, p. 51) apresenta, de maneira mui-
to didática, exemplos dos diferentes desvios. Em suas classificações, o autor
(2007, p. 61) alerta, entretanto, que “[...] o crítico e o estudante devem estar pre-
parados para encontrar textos de difícil e ambígua classificação.”. Por sua ex-
celente contribuição aos estudos entre as diferentes relações entre textos, con-
sideramos a obra Paródia, paráfrase & cia, de Affonso Romano de Sant’Anna
um manual de consulta essencial não apenas aos pesquisadores de literatura
comparada, mas aos estudantes de linguagens e comunicação, de forma geral.

capítulo 3 • 67
3.3  Intertextos: alguns diálogos literários

Neste item, apresentamos alguns exemplos dos conceitos discutidos anterior-


mente, com o objetivo de fazer com que a ilustração contribua para uma com-
preensão mais plena de cada uma das formas de intertexto no âmbito literário.

3.3.1  Paráfrase

Em sua obra, Sant’Anna considera o início do poema “Europa, França e


Bahia”, de Carlos Drummond de Andrade (texto II), uma paráfrase de “Canção
do Exílio”, de Gonçalves dias (texto I). Atente-se à comparação entre os trechos:

Texto I
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
[...]

GONÇALVES DIAS, Antônio. Poemas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

Texto II
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos
Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’
Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
Onde canta o sabiá!

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa.


Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2002.

Na comparação entre os trechos, percebe-se, segundo Sant’Anna (2007, p.


24) um deslocamento mínimo, com o recurso da “citação e transcriação dire-
ta” dos versos de Gonçalves Dias. Notemos, sobretudo, que não há uma sub-
versão da ideologia do poema original. Também devemos considerar que não

68 • capítulo 3
há alteração significativa de sentido ou de estilo suficientes para caracterizar
uma estilização. Tem-se, portanto, uma espécie de reprodução do texto origi-
nal, o que caracteriza, portanto, uma paráfrase. Se continuarmos na leitura do
poema, entretanto, perceberemos que esse recurso é utilizado por Drummond
apenas em um pequeno fragmento do texto. O poema, em todo seu conjunto,
caracteriza-se como uma obra completamente original.

3.3.2  Estilização

Um exemplo de estilização pode ser encontrado no soneto “Sete anos de pastor


Jacó servia”, de Luís de Camões, em que o autor estabelece um diálogo com
uma passagem bíblica. Leia primeiramente o trecho bíblico e, na sequência, o
soneto do poeta português:

Texto I
E Labão tinha duas filhas; o nome da mais velha era Lia, e o nome da me-
nor Raquel.
Lia tinha olhos tenros, mas Raquel era de formoso semblante e formosa
à vista.
E Jacó amava a Raquel, e disse: Sete anos te servirei por Raquel, tua fi-
lha menor.
Então disse Labão: Melhor é que eu a dê a ti, do que eu a dê a outro homem;
fica comigo.
Assim serviu Jacó sete anos por Raquel; e estes lhe pareceram como poucos
dias, pelo muito que a amava.
E disse Jacó a Labão: Dá-me minha mulher, porque meus dias são cumpri-
dos, para que eu me case com ela.
Então reuniu Labão a todos os homens daquele lugar, e fez um banquete.
E aconteceu, à tarde, que tomou Lia, sua filha, e trouxe-a a Jacó que a possuiu.
E Labão deu sua serva Zilpa a Lia, sua filha, por serva.
E aconteceu que pela manhã, viu que era Lia; pelo que disse a Labão: Por que
me fizeste isso? Não te tenho servido por Raquel? Por que então me enganaste?
E disse Labão: Não se faz assim no nosso lugar, que a menor se dê antes
da primogênita.
Cumpre a semana desta; então te daremos também a outra, pelo serviço que
ainda outros sete anos comigo servires.

capítulo 3 • 69
E Jacó fez assim, e cumpriu a semana de Lia; então lhe deu por mulher
Raquel sua filha.
E Labão deu sua serva Bila por serva a Raquel, sua filha.
E possuiu também a Raquel, e amou também a Raquel mais do que a Lia e
serviu com ele ainda outros sete anos.

Gênesis 29:16-30. Bíblia online. Disponível em: <https://www.bibliaonline.


com.br/acf/gn/29>. Acesso em: 29 de jan. 2016.

Texto II
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel, lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros set'anos,


Dizendo: — Mais servira, se não fora
Pera tão longo amor tão curta a vida.

CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. Disponível em: <http://www.dominiopubli-


co.gov.br/download/texto/bv000164.pdf>. Acesso em: 29 de jan. 2016.

A comparação entre os dois textos evidencia que Camões utiliza dados


do texto bíblico para a construção de seu poema. Entretanto, podemos notar
que o aproveitamento se estabelece no plano do conteúdo, havendo, em ter-
mos formais, um trabalho artístico por parte do poeta português: enquanto o
texto de origem encontra-se em prosa, o texto de Camões é escrito em versos

70 • capítulo 3
decassílabos, com rico esquema de rimas. Ao lançar mão desses recursos, o
poeta cria um texto no qual imprime seu estilo pessoal, havendo, portanto,
uma estilização.
As transformações operadas por Camões não se reduzem à forma textual:
o poeta também omite alguns dados da passagem bíblica, como o fato de Jacó
ter recebido Raquel uma semana após seu casamento com Lia. A ausência
dessa informação, no soneto, confere ao poema maior dramaticidade, pois o
leitor é levado a pensar que Jacó recebeu a mão de sua amada somente após
14 anos de trabalho. De modo geral, podemos perceber que há um desvio tole-
rável em relação ao conteúdo original, o que caracteriza, justamente, o recurso
da estilização.

3.3.3  Paródia

O poema “Vou-me embora de Pasárgada” (texto I), publicado por Millôr


Fernandes em 2001 na Folha de São Paulo, é uma paródia do célebre poema
“Vou-me embora pra Pasárgada” (texto II), de Manuel Bandeira. Leia o início
dos dois poemas, para que possamos compará-los:

Texto I
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive.
[...]

BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa.


Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

capítulo 3 • 71
Texto II
Vou-me embora de Pasárgada
Sou inimigo do rei
Não tenho nada que quero
Não tenho e nunca terei
Vou-me embora de Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
A existência é tão dura
As elites tão senis
Que Joana, a louca da Espanha
Ainda é mais coerente
Do que os donos do país.
[...]

Millôr Fernandes. Folha de S. Paulo, março de 2001.

A comparação entre os poemas nos faz perceber uma série de semelhanças,


principalmente nas construções gramaticais, como no início dos textos, com a
formação “Vou-me embora [...]”. Há, assim, uma espécie de semelhança estru-
tural entre os dois poemas. Entretanto, podemos perceber que o texto de Millôr
inverte completamente o sentido do texto de Bandeira, fato já percebido no tí-
tulo, com a troca da preposição “pra” por “de”, no texto de Millôr.
Enquanto o poema de Bandeira descreve um lugar utópico, onde o autor en-
contraria a felicidade, o de Millôr caracteriza o contrário: um lugar de descon-
tentamento, infelicidade. Ao descrever fatos que se assemelham à realidade
cotidiana, Millôr desconstrói o sentido de Pasárgada de Bandeira, fazendo com
que, de lugar utópico, passe a significar a própria realidade brasileira, caracte-
rizada a partir de uma aguçada crítica. Isso pode ser percebido sobretudo pelas
oposições que se estabelecem entre “amigo” (texto I) e “inimigo” (texto II), ou
entre as afirmações, no poema de Bandeira, e as negações, no de Millôr. Se cote-
jarmos os poemas, perceberemos que texto de Millôr promove uma subversão
do sentido do poema de Bandeira, o que caracteriza o recurso da paródia.

3.3.4  Apropriação

Para ilustrar o recurso da apropriação, tomamos o exemplo de Sant’Anna (2007,


p. 51), que cita o poema “A descoberta”, da série “Pero Vaz Caminha”, da obra

72 • capítulo 3
Pau Brasil, de Oswald de Andrade (texto II), em que o poeta recorta trechos da
carta de Caminha (texto I). Leia os fragmentos:

Texto I
[...]
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-
feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha
obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais
de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os marean-
tes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno.
E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra!
[...]

A Carta, de Pero Vaz de Caminha. Fonte: Carta a El Rei D. Manuel.


Dominus: São Paulo, 1963.
Texto II
A descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo


Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
[...]
ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.

Como observa Sant’Anna (2007, p. 51), as frases que compõem o fragmento


são retiradas de diferentes partes da carta de Caminha, dando origem a um novo
texto. Ao se apropriar das palavras do viajante, dispondo-as de outra forma, numa
espécie de colagem, o poeta promove “uma re-leitura do passado e uma leitura
do presente”, fazendo com que haja um deslocamento de sentido. Nesse caso, o
poeta modernista esvazia o sentido primeiro da carta de Caminha, conferindo-
lhe nova significação. Estamos, portanto, diante da técnica da apropriação.
Neste item, não tivemos o objetivo de aprofundar cada uma das análises,
mas sim de demonstrar como cada recurso se desenvolve na prática. Estudos
consistentes de cada um dos textos analisados podem ser encontrados em

capítulo 3 • 73
excelentes revistas científicas no ambiente virtual. Para ter acesso a eles, suge-
rimos que você acesse sempre artigos de revistas bem conceituadas, de grandes
órgãos de pesquisa e de universidades.

ATIVIDADES
Leia os trechos a seguir para responder às questões de 1 a 3.
Texto I
Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
[...]
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.

Texto II
Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,


desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
[...]
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

01. Explique que tipo de relação os textos I e II estabelecem.

02. Em que aspectos os textos I e II se aproximam e em que elementos eles se diferenciam?

03. Explique o título do poema de Adélia Prado, “Com licença poética”.

74 • capítulo 3
Leia os textos a seguir para responder às questões 4 e 5.
Texto I
Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias


Do despontar da existência!
Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
[...]
ABREU, Casimiro. Obras Completas de C. De Abreu. Rio de Janeiro:
Editora Zélio Valverde, 1947.

Texto II

Ai que saudades que tenho


Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais...
Me sentia rejeitada,
Tão feia, desajeitada,
Tão frágil, tola, impotente,
Apesar dos laranjais.

Ai que saudades que eu tenho


Da aurora da minha vida,
Não gostava da comida
Mas tinha que comer mais...
capítulo 3 • 75
Espinafre, beterraba,
E era fígado e era fava,
E tudo que eu não gostava
Em porções industriais.
[...]
ROCHA, Rute. Ai Que Saudades... In: ABRAMOVICH, F. (org.). O mito da Infância Feliz.
São Paulo: Summus Editorial, 1983.

04. Dentre os diferentes tipos de intertextualidade estudados ao longo deste capítulo, como
podemos classificar a relação estabelecida entre os textos I e II? Justifique.

05. Pensando na relação entre os dois textos, explique a importância do repertório do leitor
para o conceito de intertextualidade.

REFLEXÃO
A discussão apresentada ao longo deste terceiro capítulo deve levar você a compreender o
caráter dialógico e polifônico do texto, como o concebeu Mikhail Bakhtin. O desenvolvimento
do conceito de intertextualidade em suas diferentes concepções deve levar você a perce-
ber o texto não como produto fechado, monológico, de significação estável. Pelo contrário:
esperamos, isso sim, que você compreenda a imbricada rede na qual um texto encontra-se
inserido. Por fim, as diferentes espécies de relações estabelecidas entre os textos têm o
objetivo de levar você a, mais que dominar uma nomenclatura, compreender as diferentes
possibilidades de diálogo textual.

LEITURA
Para se aprofundar no estudo dos conceitos discutidos ao longo deste capítulo, sugerimos a
leitura das seguintes obras:
BARROS, Diana L. P. ; FIORIN, José L. (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade.
São Paulo, SP: Edusp, 1999.
KOCH, Ingedore G. Villaça; BENTES Anna Christina; CAVALCANTE,Mônica Magalhães.
Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo:Cortez, 2007.

76 • capítulo 3
Para uma compreensão mais didática do fenômeno da intertextualidade em suas dife-
rentes manifestações, sugerimos a leitura do quarto capítulo – “Texto e intertextualidade”
– da seguinte obra:
KOCH, Ingedore Villaça & ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto.
2. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. rev. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
BUARQUE, Francisco Buarque de. “A Rita”. Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/chico-
buarque/a-rita.html#ixzz3yUXMALH8>. Acesso em: 28 de jan. 2016.
CAROLINA, Ana. “A resposta da Rita”. Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/ana-carolina/
resposta-da-rita-feat-chico-buarque.html#ixzz3yUWx74zN>. Acesso em: 28 de jan. 2016.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001.
Michaelis - Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.
br/ moderno/portugues/>. Acesso em: 29 de jan. 2016.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, teoria e crítica. São Paul: EDUSP, 1997.
SANT’ANNA, Afonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo: Ática, 2007.

capítulo 3 • 77
78 • capítulo 3
4
Literatura
Comparada e
Colonialismo
Cultural
4.  Literatura Comparada e Colonialismo
Cultural

Neste quarto capítulo, você estudará a relação entre os estudos comparados e


o colonialismo cultural. Primeiramente, retomaremos a visão tradicional da li-
teratura comparada, fundada no conceito de analogia, na busca de semelhan-
ças entre obras de diferentes identidades nacionais, a fim de apontar certas
familiaridades. Na sequência, abordaremos os estudos comparados sob outra
perspectiva: a da diferença, baseada no contraste entre obras que possuem al-
guma similaridade. Por fim, veremos o papel da antropofagia na ruptura com
o estudo de fontes e influências, com uma desconstrução da ideia de cultura
periférica como receptora passiva de uma cultura dominante.

OBJETIVOS
•  Conhecer a relação entre literatura comparada e colonialismo cultural a partir do estudo de
conceitos como a analogia, a diferença e a dependência;
•  Situar a literatura comparada no processo de descolonização;
•  Compreender a literatura comparada no processo de antropofagia cultural, a partir de re-
leituras críticas da tradição.

4.1  Analogia, diferença e dependência

Em nosso percurso pelos estudos comparados, pudemos ver como, aos poucos,
diversos teóricos foram dando suas contribuições a esse campo de estudo. As-
sim, conceitos como o de “fonte” e de “influências”, recorrentes nos estudos
iniciais, foram sendo cada vez menos utilizados, em benefício de um estudo
mais voltado para a pesquisa qualitativa, que procurasse superar o mero estudo
quantitativo de dados assimilados por um determinado escritor.
Como observa Tânia Carvalhal, (2001, p. 75),

Ao empreenderem a investigação da “fortuna de um verso” ou das “fontes remotas” de


determinado texto, os comparativistas clássicos tinham uma ideia fixa: identificar a

80 • capítulo 4
semelhança ou originalidade entre as obras aproximadas. Daí a formação dos longos
paralelismos, já referidos e criticados. Mas havia nesse procedimento uma outra inten-
ção: estabelecida a analogia, instalava-se o débito. E a relação se convertia num saldo
de créditos e débitos.

Segundo a autora (2001, p, 76), esse cotejamento entre obras possuía uma in-
tenção explícita: realçar a dependência cultural de um país em relação a outro.
Dessa forma, o estudo desembocava na revelação de uma “dominação cultural”.
Como repercussão, havia um fortalecimento dos valores nacionais, reforçado
pela uma ideologia colonizadora. Resultava daí que os estudos comparados, a
partir da investigação das influências, terminavam por revelar que uma deter-
minada cultura era dominante e, portanto, superior a outra. Nesse sentido, as
analogias coroavam os países com uma cultura consolidada, tornando os países
mais novos “parentes pobres” ou “herdeiros remotos”, como observa Carvalhal.
Carvalhal (2001, p. 76) aponta que a formação de linhagens ou “famílias”
também reforçava essa relação, na medida em que determinado autor era va-
lorizado por ser considerado “herdeiro” da obra de um nome célebre. Dessa
forma, a produção mais recente era estigmatizada, sendo “devedora” de uma
obra original, numa espécie de cópia, ou, quando valorizada, tomada justa-
mente por sua semelhança com a obra que a antecedeu. Nesse sentido, a “fon-
te” adquiria um valor absoluto, sendo as obras que influenciava consideradas
espécies de sombra de um objeto original. Esse é, justamente, o dado apontado
por Silvino Santiago em “O entre-lugar do discurso latino-americano”, em que
o autor (SANTIAGO, 1978, apud CARVALHAL, 2001, p. 76) observa:

A fonte torna-se a estrela intangível e pura que, sem se deixar contaminar, contamina,
brilha para os artistas da América Latina, quando estes dependem da sua luz para
o trabalho de expressão. Ela ilumina o movimento das mãos, mas ao mesmo tempo
torna os artistas súditos de seu magnetismo superior. O discurso crítico que fala
das influências estabelece a estrela como único valor que conta. [...] Seja dito entre
parênteses que o discurso crítico que acabamos de delinear nas suas generalidades,
não apresenta em sua essência diferença alguma do discurso neocolonialista: os dois
falam de economias deficitárias.

capítulo 4 • 81
Para Santiago (apud CARVALHAL, 2001, p. 77), para que se acabe com esse
discurso neocolonial e se abandone essa hierarquia cultural, é preciso um novo
discurso crítico que abandone a caça às fontes e às influências e volte-se para a
diferença, considerando-a um valor crítico. Ao se substituir a analogia pelo con-
traste, a diferença passa, então, a ser um recurso preferencial capaz de afirmar
a identidade nacional. A partir dessas considerações, a comparação passará a
englobar não apenas a analogia, mas também a diferença, obtida a partir do
contraste entre dados.
Como observa Carvalhal (2001, p. 78), ao aceitar essa possibilidade nos es-
tudos comparados, a atuação comparativista é redimensionada, sendo encami-
nhada não mais apenas em uma direção (da Europa para as culturas periféricas),
mas podendo reverter a direção para si própria, da periferia para o antigo centro.

4.2  Literatura comparada e descolonização cultural: a antropofagia


e as releituras críticas da tradição

Segundo a Carvalhal (2001, p. 78), essa tentativa de mudança de rota – da cul-


tura central europeia para a periférica – será levada a cabo por Oswald de An-
drade, em 1928, no “Manifesto antropófago”, publicado na primeira edição da
Revista de Antropofagia. A seguir, transcrevemos um fragmento do texto:
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 4.1  –  Em seu “Manifesto antropófago”


(1928), Oswald de Andrade propõe que o dado cul-
tural estrangeiro seja “devorado”, para que somente
se assimile apenas aquilo que se julgue interessan-
te à cultura nacional. O escritor combate, assim, a
aceitação passiva de elementos estrangeiros na
literatura nacional.

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.


Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os
coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

82 • capítulo 4
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatiga-
dos de todos os maridos católicos suspeitos postos em
drama. Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o
mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a
hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da
cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o
que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida.
E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de
todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a
sua pobre declaração dos direitos do homem. (ANDRADE, 2016)

CONEXÃO
Para ler o “Manifesto Antropofágico” na íntegra, clique no link a seguir:
http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf

No manifesto, o escritor , adotando o discurso do “contra’, apresenta uma


proposta radical de ruptura com o passado histórico, com a relação direta de
importação cultural, por via de um processo canibalesco, no qual todo e qual-
quer elemento estrangeiro seja devorado, com vistas à criação de uma identi-
dade nacional. Nesse sentido, como observa Carvalhal (2001, p. 79), o escritor
propõe uma inversão do processo, passando de devorado a devorador.
A autora também recorre à explicação de Haroldo de Campos, segundo o
qual a antropofagia oswaldiana está relacionada a uma “transculturação”, ou
uma “transvaloração”, estabelecida a partir de uma visão crítica da História, que

capítulo 4 • 83
resultaria numa transformação cultural do dado devorado, a partir da influência
de elementos de outra cultura. Trata-se de um procedimento que permite desde
a apropriação até a desconstrução dos valores culturais dos países tidos como
dominantes. Segundo Carvalhal (2001, p. 79), “É agora o representante da cultura
periférica e dependente que investe contra a do colonizador, mutilando-a, espre-
mendo-lhe o suco para extrair dela apenas o que lhe serve.”.
Segundo Carvalhal (2001, p. 80), a proximidade entre a proposta antropo-
fágica e as relações intertextuais despertou o interesse dos comparativistas da
última década do século XX. Entretanto, a autora alerta para a necessidade de
se olhar os dois lados da questão, a fim de se evitar os extremismos e as genera-
lizações. De um lado, na concepção tradicional dos estudos comparados, a via
de mão única (da cultura dominadora para a dominada) a tornava determinista
e restringia seu campo de visão. De outro, porém, a inversão dessa via de mão
única pode resultar numa espécie de autossuficiência nacionalista, fazendo
com que passemos da admiração passiva da literatura europeia para uma espé-
cie de ufanismo radical.
Para a autora (2001, p. 80), o fascínio da proposta antropofágica não está
apenas na reversibilidade do processo (por meio da inversão dominador-domi-
nado), mas no seu caráter seletivo, ao selecionar com capacidade crítica o dado
interessante da cultura alheia. Nesse sentido, Carvalhal (2001, p. 80) admite
que a proposta oswaldiana “[...] abre caminhos, articulando os dois pólos – o
das culturas periféricas e o das culturas do centro – igualmente envolvidos (e
interessados) nesse processo.”. Aceitar esse dado é importante para se evitar o
confronto de nacionalidades. A rejeição ao “paralelismo binário de oposições”,
em benefício de um estudo sobre os “nexos” das relações entre obras, resulta
num estudo mais abrangente do fenômeno literário.
Segundo Carvalhal (2001, p. 82), na perspectiva da literatura compara-
da tradicional, o “eurocentrismo” era fortalecido pela constatação de uma
dependência cultural dos países colonizados, cujos olhos estavam voltados
para a Europa. Assim, o centro parisiense atraía os olhares dos escritores dos
países periféricos. Instaurava-se, então, o que Antonio Candido (1960, apud
CARVALHAL, 2001, p. 82) constatou como uma oscilação: de um lado, “afirma-
ção de um nacionalismo literário” e, de outro, um “declarado conformismo, a
imitação consciente dos padrões europeus”.

84 • capítulo 4
Candido (apud CARVALHAL, 2001, p. 82) associa essa oscilação a uma ten-
são entre o dado local (substância da expressão) e os modelos herdados da tra-
dição europeia (forma da expressão). Para o estudioso, a literatura brasileira,
entre 1900 e 1945, teria se esforçado constantemente na superação de alguns
obstáculos, como o complexo de inferioridade frente a países étnica e cultural-
mente consolidados. Nesse sentido, “[...] o intelectual brasileiro oscila entre a
identificação com o universal e a afirmação do particular, vivendo um processo
de dilaceramento.” (CARVALHAL, 2001, p, 83).
A partir das ideias de Candido, Carvalhal (2001, p. 83) ressalta que:

[...] a consciência da ação simultânea de ambas as inclinações gera muitas vezes a


contradição, magistralmente fixada na imagem de Mário de Andrade, de sabor confes-
sional: “Sou um tupi tangendo um alaúde”. Interessa observar que Mário de Andrade
não oculta o fato; ao contrário, ele expõe a contradição em toda sua nudez, como se,
para ele, assumir a própria condição dilacerada fosse a solução para ultrapassá-la.

A partir dessas considerações, Carvalhal (2001, p. 83) observa que a aceita-


ção do conflito, para Mário de Andrade, apresenta-se como uma espécie de an-
tídoto, já que, como afirma Silviano Santiago (1982, apud CARVALHAL, 2001,
p. 84), longe de fingir que a dependência não existe, ressalta-se a sua inevitabi-
lidade. Em vez de falar de dívidas e débitos em relação às culturas dominantes,
realça-se o seu poder coercitivo. Santiago (1982, apud CARVALHAL, 2001, p. 84,
grifos do autor) também considera que o texto “descolonizado” acaba por ser
mais rico que o original, “[...] por conter em si a representação do texto domi-
nante e uma resposta a esta representação no nível da fabulação”.
Carvalhal encerra suas considerações ressaltando que a adoção dessa pers-
pectiva de estudos confere relevância às literaturas periféricas, aumentando
o interesse no confronto destas com as consolidadas literaturas europeias.
Segundo a autora (2001, p. 84), “[...] a autonomia cultural não está na recusa
frontal de “olhar para fora”, mas na capacidade crítica desse olhar.”. Nesse sen-
tido, os estudos comparados podem contribuir para a investigação do proces-
so de descolonização artística e cultural brasileira, a partir da análise de seus
avanços e retrocessos.

capítulo 4 • 85
4.3  A antropofagia no centro dos estudos comparados: Leila
Perrone-Moisés e o projeto Léryy-Assu

Dentre as relevantes contribuições aos estudos comparados, em sua obra Lite-


ratura Comparada: história, teoria e crítica, Sandra Nitrini (1997, p. 268) desta-
ca o projeto Léryy-Assu, que é marcado pela tentativa de relacionar a teoria da
intertextualidade à do antropofagismo como forma de se pensar a relação que
a literatura brasileira estabelece com as estrangeiras. A preocupação de Perro-
ne-Moisés está em saber de que maneira os brasileiros “devoraram” a cultura
francesa, investigando de que forma as contribuições estrangeiras foram acli-
matadas e incorporadas à literatura nacional.

CONCEITO
Segundo Leila Perrone Moisés (apud NITRINI, 1997, p. 268), o projeto se denomina
Léryy-Assu “[...] para indicar seu espírito de “antropofagia cultural”. Quando Jean de Léry
entrou em contato com os índios, no século XVI, esses brasileiros lhe perguntaram seu nome
e, quando ele o deu, os indígenas imediatamente o rebatizaram em língua tupi: Leryy-Assu,
que quer dizer “Grande Ostra”.

De acordo com Nitrini (1997, p. 269), o projeto, idealizado e implantando


por Leila Perrone-Moisés em 1978 no programa de pós-graduação da área de
Língua e Literatura Francesa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, ocupava-se do estudo das relações entre as literatu-
ras brasileira e francesa e possuía dois objetivos principais: 1. verificar de que
maneira alguns dados da literatura francesa foram assimilados na brasileira;
2. criar um centro capaz de documentar as relações entre Brasil e França por
meio da catalogação de dados históricos, para auxiliar no estudo de futuros es-
tudos que se ocupassem da relação entre os dois países.
Além de resultados relevantes, Nitrini (1997, p. 270) ressalta que o projeto
ofereceu importante contribuição para a reflexão sobre o percurso da literatura
comparada nas décadas de 1970 e 1980. Na visão de Perrone-Moisés, os estudos
dessa época ainda estavam presos à concepção tradicional de literatura compa-
rada, baseada na história de uma literatura universal, cuja história seria linear e

86 • capítulo 4
sequencial. Nessa concepção, os estudos comparados estavam fundamentados
na pesquisa de fontes e influências, desmerecendo a produção de países como
o Brasil, tidos como devedores de uma cultura superior.
A partir disso, o projeto Léryy-Assu opõe-se aos estudos comparados tradi-
cionais, que considera as obras produtos acabados, e debruça-se sobre o pro-
cesso de transformação dos textos. Pressupõe-se, então, o procedimento da in-
tertextualidade, aliado à ideia de uma visão antropofágica de nossa literatura.
Se o “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade levanta-se “contra todos
os importadores de cultura enlatada”, propondo uma recepção crítica e seletiva
de dados, o projeto preocupa-se em investigar de que maneira essa transforma-
ção de dados em algo novo se estabelece.
Nitrini também coloca em relevo a grande contribuição de Leila Perrone-
Moisés quando esta afasta “os termos comparar, fonte e influência”, devido ao
peso que possuem numa literatura anteriormente colonial. Perrone-Moisés ob-
serva (apud NITRINI, 1997, p. 271):

Há um crítico francês que chamou a atenção para o aspecto aquático e fluido desses
termos: a “fonte”, isto é, a origem, de onde sai a água pura e influência”, que seria a
recepção passiva desse fluxo.
Ora, as literaturas americanas já nasceram em línguas que não lhe são próprias,
línguas que já têm uma tradição. E como de fato já fomos colônias, permanece a
sensação de dívida e, junto com ela, o rancor do povo devedor.
Depois a palavra “comparar”, que está no nome da literatura comparada, já carrega a
idéia de valor. Em gramática, um “comparativo” é “de superioridade”, “de igualdade” ou
“de inferioridade”. E de acordo com os pressupostos historicistas da literatura com-
parada, na comparação de nossas literaturas com as literaturas metropolitanas, nós
vamos sempre levar desvantagem.

Ao fim de seus 12 anos de existência, em 1990, o projeto deixou resultados


consideráveis para o estudo crítico das relações entre a literatura francesa e a
brasileira. Seu encerramento deveu-se à integração dessa linha de pesquisa no
Núcleo de Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estudos Avançados, da USP,
fundado pela iniciativa de Mário Carelli e Leila Perrone-Moisés, em 1988.

capítulo 4 • 87
ATIVIDADES
Para responder às questões de 1 a 3, leia um fragmento do “Manifesto Antropófago”, de
Oswald de Andrade:

“Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo


nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O
rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo.
Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessida-
de da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisi-
ções exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofa-
gia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento
que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças
românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.”
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>.
Acesso em: 10 de fev. 2016.

01. O que propõe Oswald de Andrade, com esse manifesto?

02. Que tipo de diálogo intercultural o autor propõe? De que modo ele se daria?

03. Por que podemos afirmar que as ideias de Oswald de Andrade, em seu manifesto, pro-
movem uma reflexão sobre o direcionamento dos estudos comparados tradicionais?

04. Diferencie os conceitos de analogia e diferença, nos estudos comparados.

05. Que tipos de resultados as pesquisas que elegem a analogia como base de comparação
costumam obter? E os estudos que elegem a diferença como foco para a análise?

88 • capítulo 4
REFLEXÃO
A discussão apresentada ao longo deste capítulo deve levar você a perceber como os estu-
dos comparados mais recentes tendem a rejeitar a mera pesquisa de fontes e influências, ba-
seada na busca de analogias. Isso porque esse tipo de pesquisa, geralmente, contribui para
manter o eurocentrismo, deixando de reconhecer o valor das obras de países periféricos,
tidas como imitação de uma obra anterior. Espera-se que você possa compreender como
a literatura comparada, em seus estudos contemporâneos, ao eleger a diferença como um
dado de comparação, volta-se para a investigação da originalidade de um texto em relação
a outro. Com isso, inverte-se a relação entre cultura dominadora e cultura dominada, deslo-
cando-se a atenção do centro para a periferia. Isso permite reconhecer o valor de uma obra
não pela imitação, mas, justamente, por aquilo que tem de original em relação a outra anterior.

LEITURA
A fim de que você possa aprofundar seus conhecimentos sobre os tópicos discutidos nes-
te capítulo, sugerimos a leitura do artigo “O comparatismo franco-brasileiro sob o signo da
antropofagia, da transculturação e da transferência cultural”, de Sandra Nitrini, publicado no
13o volume da revista Ponto-e-vírgula (2013), disponível no link a seguir:
http://revistas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/download/19538/14467

Sugerimos, ainda, a leitura dos seguintes textos:


PERRONE-MOISSÉS, Leyla. “A Nossa França”. Entrevista a Eloisa N. Silveira. Jornal da
Tarde. Caderno de Programas e Leituras, 8 de maio de 1982.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Literatura comparada, intertexto e antropofagia”. In: Flores
da escrivaninha.São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Oswald. “Manifesto Antropófago”. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/cdrom/
oandrade/oandrade.pdf>. Acesso em: 10 de fev. 2016.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP, 1997.

capítulo 4 • 89
90 • capítulo 4
5
Literatura
Comparada e
Estudos Culturais
5.  Literatura Comparada e Estudos Culturais
Neste quinto capítulo, você irá conhecer as relações entre a literatura e outras
artes. Inicialmente, apresentaremos algumas considerações a respeito da inter-
textualidade em diferentes meios, como o verbal e o não verbal. Na sequência,
nos centraremos no profícuo diálogo entre literatura e cinema, apresentando
algumas considerações importantes sobre a questão das adaptações de obras
literárias para o audiovisual. Por fim, discutiremos como, no ciberespaço, o tex-
to ganha novos contornos, com a ampliação do conceito de intertextualidade,
por meio da noção de hipertextualidade e da técnica do remix.

OBJETIVOS
•  Situar a literatura na era do audiovisual e do pleno desenvolvimento da indústria cultural;
•  Compreender o permanente diálogo entre a literatura e as outras artes, a partir da questão
da adaptação das obras literárias;
•  Repensar a literatura na era digital, a partir do conceito de hipertextualidade.

5.1  A literatura na era do audiovisual e do pleno desenvolvimento


da indústria cultural

Poesia é como pintura [ut pictura poesis]; uma te cativa mais, se te deténs mais perto;
outra, se te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contem-
plada em plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma
vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre.
(HORÁCIO, 1984, pp. 109-110)

Até aqui, estudamos a intertextualidade limitada ao campo da linguagem


verbal, ou seja, restrita apenas a textos pertencentes ao mesmo sistema lin-
guístico: a escrita. Entretanto, a intertextualidade apresenta-se de forma mui-
to mais ampla, promovendo diálogos que podem ser expressos em diferentes
linguagens, desencadeando uma constante (re)construção e (re)significação
de textos que migram de um suporte a outro, como das folhas de papel às te-
las do cinema. Assim, é fato que a literatura não se encontra isolada de outras

92 • capítulo 5
manifestações culturais. Pelo contrário: como afirma Souriau (1983, p. 14),
“Pintores, escultores, músicos, poetas, são levitas do mesmo templo. Servem,
senão ao mesmo deus, pelo menos a divindades congêneres”.
Souriau destaca que as diversas formas artísticas são como idiomas diferen-
tes e, portanto, a invenção artística exige, nos seus vários campos de atuação,
diferentes formas de pensar. Tomando as ideias do autor como ponto de par-
tida, podemos pensar que existe, então, uma sintaxe da literatura, uma sintaxe
da pintura, e assim por diante. Cada artista, seguindo a estrutura de seu “idio-
ma artístico”, dispõe os elementos de uma forma diferente. Não é incomum,
entretanto, que constantemente nos deparemos com traduções de um campo
artístico para outro, numa espécie de transcriação.
O diálogo entre a literatura e a pintura, por exemplo, possui origens remo-
tas, despertando o interesse de muitos pesquisadores. Ao longo dos séculos,
escritores tentaram materializar, a partir das palavras, as imagens consagradas
pelas artes visuais. Da mesma forma, pintores também se inspiraram em obras
literárias, a fim de representá-las por meio das artes visuais. Cada uma a seu
modo, as diferentes artes estabeleceram, ao longo dos séculos, diálogos profí-
cuos com outras manifestações artísticas, dando origens a grandes obras mar-
cadas pela intertextualidade em diferentes suportes.
Dentre as relações entre a literatura e as outras artes, destaca-se (sobretudo
na contemporaneidade) o diálogo estabelecido entre o texto literário e o cine-
ma. Muitas obras – das mais clássicas aos famosos best-sellers – inspiraram
longas-metragens. Como observa Bueno (2010), uma das primeiras adaptações
da literatura para o cinema baseou-se na obra Da terra à lua, do escritor fran-
cês Júlio Verne, que deu origem, em 1902, a Viagem à lua, de George Meliès,
considerado um dos pioneiros na arte do cinema e, também, o “pai dos efeitos
especiais” nas telinhas.

CONEXÃO
Para assistir ao clássico Viagem à lua (1902), de Georges Meliès, clique no link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=-FHVDghnJ_4

Como destaca KOBS (2007), a utilização de obras literárias como base para
os filmes intensificou-se em 1908, com a criação da Sociedade de Filmes de

capítulo 5 • 93
Arte, que tinha o objetivo de romper com a previsibilidade das produções, cria-
das a partir de modelos. Assim, investia nas adaptações, com vistas a surpreen-
der o público, a partir da imprevisibilidade da trama. O cinema aproveitava-se,
então, de toda a engenhosidade do texto literário, recorrendo a enredos que
pudessem despertar o interesse dos telespectadores.
Com o surgimento da televisão, em meados do século XX, a literatura ga-
nhou ainda mais espaço no meio audiovisual. Além dos filmes, que marcaram
presença nesse novo meio de comunicação, vários programas televisivos tam-
bém recorreram a adaptações, como O sítio do pica-pau amarelo, de Monteiro
Lobato, produzido pela TV Tupi em 1952. Muitas outras obras viriam juntar-se
a essa. Assim, ganharam suas versões nas telas obras como O meu pé de laran-
ja lima (1970), de José Mauro de Vasconcelos, e Éramos seis (1977), de Maria
José Dupré. Ainda hoje, é grande a recorrência de textos adaptados às mídias
audiovisuais, como a minissérie brasileira Capitu, uma releitura da obra Dom
Casmurro, de Machado de Assis, produzida pela Rede Globo e exibida em de-
zembro de 2008, em 5 capítulos.
Vários pesquisadores já se ocuparam do estudo da relação entre a literatura
e o cinema. Entretanto, longe de um consenso, de acordo com Bueno (2010), a
adaptação divide os teóricos entre, de um lado, os favoráveis às adaptações e, de
outro, aqueles que enxergam nelas apenas aproveitamentos superficiais, por
serem incapazes de captar o essencial dos textos literários, chegando, muitas
vezes, a desvirtuá-los. Independentemente da posição que se adote, é impor-
tante constatar que a prática da adaptação já é algo consolidado na indústria
cultural. Assim, sua presença pode ser notada não apenas no cinema, mas tam-
bém na televisão, um dos meios de comunicação mais importantes do Brasil e
do mundo. A seguir, nos aprofundaremos em alguns pontos cruciais do diálogo
entre literatura e audiovisual.

5.2  O permanente diálogo entre a literatura e as outras artes: a


questão da adaptação das obras literárias

A adaptação de obras literárias para outros meios traz à tona várias questões:
Todos os elementos presentes na obra original devem compor a obra adapta-
da? É preciso manter-se fiel ao texto base? Que limitações as diferentes lingua-
gens da adaptação e da obra adaptada impõem? Essas questões estão no centro
das preocupações dos estudiosos do tema e suscitam algumas reflexões sobre a
relação entre as duas produções, a literária e a audiovisual.

94 • capítulo 5
Primeiramente, é preciso considerar que as adaptações promovem um
afrouxamento das barreiras entre cultura popular e cultura erudita. O Brasil
é, sabidamente, um país cuja maior parte da população não possui acesso à
educação de qualidade. Somado a esse fator, acrescenta-se o fato de a maior
parte dos brasileiros ocupar uma posição desprivilegiada, com pouco acesso
à cultura e pouco incentivo à leitura. Cria-se, assim, um desnível social, o que
resulta numa grande massa populacional que tem acesso quase que exclusi-
vamente à cultura popular, a partir dos grandes meios de comunicação, como
a televisão e a internet. Sem uma boa formação de base e sem incentivo, para
muitos, escritores como Machado de Assis ou Guimarães Rosa ainda permane-
cem inacessíveis.
A adaptação de textos literários para produtos culturais de massa, desti-
nados ao grande público, promove um reposicionamento da cultura erudita,
antes restrita a apenas uma pequena parcela da população. Como produções
veiculadas por amplos meios de comunicação (como é o caso das telenovelas,
num meio midiático como a televisão, por exemplo), essas adaptações atingem
a grande massa, configurando-se como uma fonte de conhecimento histórico e
social. É o caso, por exemplo, da telenovela Gabriela, da Rede Globo, uma adap-
tação da obra Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. Essa produção audiovi-
sual, por valer-se de um meio de comunicação de massa, certamente atinge um
público muito maior que o livro impresso.
©© FABIANO BATTAGLIN/GSHOW

Figura 5.1  –  Novela das 6 - Êta mundo bom!

capítulo 5 • 95
CURIOSIDADE
Uma das primeiras formas de expansão do texto literário se deu no século XIX, na França,
com a criação dos folhetins, narrativas seriadas publicadas em jornais. Com o passar do
tempo, essas publicações foram mudando de suporte. Primeiramente, elas migraram para as
rádios, surgindo as radionovelas. Atualmente, essas narrativas constituem as nossas séries e
telenovelas, que fazem parte da cultura nacional.

Portanto, é fato inegável que o texto literário, ao ser adaptado para outros
meios de comunicação, expande seu público. Entretanto, algumas considera-
ções devem ser feitas. Talvez a principal delas seja a constatação de que “o livro
não é o filme” e vice-versa. A transposição de uma obra literária para o meio
audiovisual só é possível a partir de adaptações, nem sempre pequenas, que ora
agradam, ora desagradam o receptor. Quantas vezes você foi ao cinema assistir
à adaptação de uma obra e saiu pensando que o livro era muito melhor que o
filme? Isso se deve ao fato de a adaptação ser um processo que leva em conta
vários fatores, os quais veremos a seguir.
Primeiramente, vamos considerar as transformações operadas no texto li-
terário por conta da mudança temporal. A telenovela Gabriela, citada anterior-
mente, teve sua primeira versão em 1975, com um remake em 2012. Se compa-
rarmos as duas versões, notaremos diferenças entre o cenário, as vestimentas
e até mesmo a linguagem das personagens. Isso ocorre porque, de acordo com
Balogh e Mongioli (2009), exige um updating da obra, com vistas a atualizar
e tornar mais agradável o produto dentro do gosto da contemporaneidade. O
mesmo ocorre na transposição de um livro para um filme: a narrativa geral-
mente sofre uma atualização, adaptando-se aos padrões culturais e ao gosto
do público da época e do meio de comunicação. Há, portanto, alterações que
interferem tanto na forma quanto no conteúdo da obra literária.
Outro elemento capaz de (re)definir os contornos das adaptações é o objeti-
vo do produtor e sua relação com o público. Se por trás da obra impressa havia
um autor e sua idiossincrasia, que encontrava na arte uma forma de manifes-
tação subjetiva, por outro, nos meios de comunicação em massa, geralmente
tem-se os produtores preocupados com a recepção e o lucro obtidos pelo seu
produto cultural. Assim, muitas intervenções são introduzidas em obras clássi-
cas a fim de torná-las mais atraentes ao telespectador.

96 • capítulo 5
Além das diferenças temporais e dos objetivos do produtor, interferem nas
adaptações os diferentes sistemas de linguagem. Para muitos estudiosos, a
adaptação de um texto literário para o audiovisual consiste numa espécie de
tradução intersemiótica, constituída pela tentativa de recriar um conjunto de
signos de um sistema específico para outro sistema divergente. Essa é, justa-
mente, a posição de Julio Plaza, que concebe a tradução intersemiótica

como prática crítico-criativa, como metacriação, como ação sobre estruturas e even-
tos, como diálogo de signos, como um outro nas diferenças, como síntese e re-escri-
tura da história. Quer dizer: como pensamento em signos, como trânsito de sentidos,
como transcriação de formas na historicidade. (PLAZA, 2003, p. 209)

De fato, se considerarmos as especificidades de cada forma – a literária e


a audiovisual – constataremos que a linguagem audiovisual, por meio da qual
acompanhamos o desenvolvimento da história nas telas, é construída a par-
tir de um complexo jogo de elementos verbais e não verbais. Como lembram
Howard e Mabley (1996, p. 21),

Em se tratando de cinema, “bem contada” não significa apenas uma história bem
narrada, habilmente estruturada e tramada. A história tem de ser mostrada em cenas
esmeradas, com papéis bem concebidos (e bem interpretados) que inspirem o
cenógrafo, o fotógrafo, o compositor, o montador e todos os demais colaboradores a
acrescentarem seus talentos à forma final com que as imagens e palavras do roteiris-
ta aparecem perante o espectador.

Ao avaliarmos a transposição de uma obra para o meio audiovisual, deve-


mos ter em mente o fato de a literatura e a televisão ou o cinema trabalharem
com diferentes sistemas de representação. Assim, pensamentos e reflexões
das personagens são elementos que enfrentam resistência na passagem de um
meio para outro.
Pode-se, então, considerar que, em cada um dos textos – o literário e o au-
diovisual – os sentidos são construídos a partir de diferentes artifícios: no texto
literário, o significado é estabelecido a partir da materialidade da palavra poé-
tica, não livre de plurissignificação; no texto cinematográfico, o sentido é dado
por diversos elementos: a palavra, o som, a imagem e outros subsistemas por
eles abarcados.

capítulo 5 • 97
COMENTÁRIO
Como observa Carla Giffoni (2016), “No livro se pode explorar a vida interior dos persona-
gens, enquanto a TV, em geral, não permite isso. Num romance, por exemplo, o autor pode
escrever: Maria pensava nos momentos bons do último aniversário que teve com a mãe. Na
televisão, como mostrar que Maria está pensando? Impossível. O roteirista tem que traduzir
isso em imagens, colocando, por exemplo, Maria a olhar para uma foto onde aparecem mãe e
filha, Maria a chorar, tendo uma música de fundo que contribua para criar o clima de saudade
e lembranças.”

Kristeva, cuja teoria sobre a intertextualidade conhecemos anteriormente,


também pensou sobre a questão do intertexto no âmbito semiológico, ou seja,
em domínios discursivos diferentes, como é o caso da relação entre cinema e
literatura, manifestações com diferentes plataformas. Partindo das ideias da
autora, podemos afirmar que, ao recorrer à literatura, o audiovisual faz com
que um determinado conteúdo acabe coexistindo em diferentes suportes,
dando origem a um grande intertexto midiático. Isso faz com que o texto lite-
rário, antes restrito a um público letrado e erudito, ganhe maior universalida-
de, produzindo, por meio das adaptações, um emaranhado de significados e
interpretações.
Os textos adaptados, entretanto, costumam ser constantemente desqua-
lificados, devido à análise do público à luz do conceito de fidelidade à obra
de origem. Porém, deve-se ter em mente que as adaptações, ainda que guar-
dem semelhanças com a obra em que se inspiraram, possuem certa autono-
mia e independência, devendo, portanto, ser lidas como novas obras, frutos
de um trabalho de (re)criação, e não de reprodução. Como reconhece Barros
(2007, p. 69), no processo de adaptação, “o volume de recursos, o veículo para
o qual se destina, e a época em que foi feita às vezes podem influenciar mais
no estilo de uma produção do que o texto no qual ela é inspirada”. Entender
essa diferença significa reconhecer que as adaptações devem ser estudadas
não apenas em seus pontos de contato com a obra original, mas também em
suas especificidades.

98 • capítulo 5
COMENTÁRIO
Ao considerarmos o diálogo entre a literatura e o audiovisual, devemos reconhecer que:
1. Há, na contemporaneidade, uma diluição das barreiras entre os diferentes tipos de arte,
como a literatura e a música, ou a literatura e o cinema; 2. As adaptações de obras literárias
para outros sistemas linguísticos não devem ser qualificadas a partir do conceito de fideli-
dade, pois cada obra é única, sendo resultado de um processo de (re)elaboração, e não de
reprodução; 3. As relações entre as diferentes artes devem ser analisadas não apenas a
partir de suas semelhanças, mas também de suas singularidades, com vistas a reconhecer o
mérito de cada obra.

O texto literário e o audiovisual diferem-se entre si não apenas na forma de


constituição, mas também na maneira como são recebidos pelo público, como
observa Martin (1963). Para o autor, o discurso audiovisual consiste numa re-
produção planejada e dirigida da realidade, por meio da qual as imagens, em
movimento, são capazes de falar e manifestar-se diretamente ao público leitor.
O discurso literário, por sua vez, é formado por palavras abertas a diferentes
significações, sem o caráter unívoco da imagem. Portanto, a obra literária seria
marcada por uma plurissignificação maior em relação à obra adaptada.
Expandindo essas observações, Reimão (2004, p. 109) centra-se nas diferen-
tes formas de fruição, apreensão e decodificação:

o leitor de um texto impresso utiliza, prioritariamente, um único sentido – a visão – e


basicamente em uma direção – a linearidade da linha impressa. O telespectador utiliza
simultaneamente a audição e a visão e cada uma delas em uma multiplicidade de sen-
tidos e direções [...]. A primeira forma de apreensão tende a ser mais concentrada e a
segunda mais emotiva.

As considerações da autora são importantes porque apontam para uma re-


flexão sobre os mecanismos de interpretação dos diferentes textos nos diferen-
tes suportes em que circulam. Ademais, deve-se considerar que o audiovisual,
além de geralmente ser menos plurissignificativo, aponta para um texto que já
foi lido e direcionado pelo olhar do adaptador.

capítulo 5 • 99
©© ALBERTO ANDREI ROSU | SHUTTERSTOCK.COM

Uma das grandes diferenças entre a literatura e o cinema reside no fato de


o livro geralmente ser imaginativo, oferecendo ao leitor ampla significação e
interpretação, ao passo que o cinema costuma ser mais literal, impondo a re-
presentação, por meio da imagem, ao telespectador.
O adaptador, aliás, define os contornos adquiridos pelo texto literário em
uma transposição. Suas decisões geralmente estão pautadas nos objetivos dos
meios de comunicação de massa e, consequentemente, nas expectativas dos
receptores. Como observam Gomes e Barbosa (2008), embora as adaptações li-
terárias ofereçam ao público a tão esperada novidade, elas devem encaixar-se
nos moldes de atração dos veículos a que são destinadas. Assim, personagens
complexas das obras literárias muitas vezes acabam sendo simplificadas, ga-
nhando contornos mais definidos, haja a vista a maior identificação e envol-
vimento do público com personagens tipos. Portanto, na adaptação, são co-
muns alterações significativas nas personagens, sejam elas de natureza física
ou psicológica.
Segundo Sales (1976), a leitura permite que a imaginação do leitor pense as
personagens, o ambiente e outros elementos como bem entender. Ao serem
transpostos para o audiovisual, entretanto, esses elementos ganham materiali-
dade, reduzindo a liberdade de imaginação do leitor, que se confrontará com o

100 • capítulo 5
já-dado, de acordo com uma idealização de seus criadores. Sobre esse aspecto,
quantos telespectadores já saíram do cinema pensando: “o filme é totalmente
diferente do que eu imaginei ao ler o livro”. Como já afirmamos, nesse caso, há
de se ter cautela em relação aos julgamentos baseados na mera comparação
por semelhanças, haja vista que cada leitor, de acordo com seu repertório, faz
uma interpretação do texto literário.
Sales (1976) também considera que, se a personagem do audiovisual é inter-
pretada por um ator desconhecido, não há grandes problemas na representa-
ção. No entanto, se a representação se dá por atores consagrados, já conhecidos
pelo público, a atuação fica comprometida, já que tais atores geralmente são
relacionados a personagens de ficção que incorporam o imaginário coletivo.
Assim, um ator como Leonardo DiCaprio remeterá ao personagem Jack, de
Titanic. Logo, será sempre marcado por traços de antigas personagens suas.
Assim, pode-se considerar que o ator faz uma dupla interferência no texto de
origem: pela interpretação que extrai do texto, a partir de sua atuação, e pela
sua trajetória profissional, que resgata marcas de personagens anteriores.
Outra distinção importante concernente às diferentes manifestações artís-
ticas está relacionada ao seu manuseio. Como observa Lúcia Correia Marques
de Miranda Moreira, (2005, p. 20), nas narrativas audiovisuais, há “um processo
de criação complexo, na medida em que tudo que leva ao resultado final é ma-
nuseado por muitas mãos, inevitavelmente, ligadas a muitas cabeças e a um
exercício múltiplo da imaginação criadora.”. Assim, se o texto literário é mar-
cado, em sua essência, pelo solitário fazer artístico, o texto cinematográfico,
em contrapartida, configura-se como produção coletiva, marcado por muitas
contribuições de diferentes sujeitos.
Enfim, muitas são as questões a se considerar quando abordamos a passa-
gem de um texto para outro suporte, o que nos leva a concluir que nosso jul-
gamento crítico deve reconhecer os diferentes elementos de que o produtor
dispõe no momento de uma adaptação. Assim, longe de ser julgada somente a
partir do conceito de fidelidade a um modelo original, cada obra deve ser consi-
derada como um novo objeto artístico, marcado por suas especificidades. A ex-
pressão de um determinado conteúdo em diversos meios, longe de corromper
uma obra, amplia seus sentidos, possibilitando novas interpretações e leituras,
enriquecendo, dessa forma, o repertório do leitor.

capítulo 5 • 101
5.3  Literatura no ciberespaço: o hipertexto e a técnica do remix
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CONCEITO
Em uma de suas acepções, o termo “cibercultura” pode ser entendido como uma nova forma
de relação de trocas entre a sociedade no espaço virtual eletrônico, a partir da década de
70, com o desenvolvimento das tecnologias digitais e da informática aplicadas à telecomu-
nicação. O ciberespaço constitui-se como o ambiente virtual de circulação da cibercultura.

No contexto da cibercultura, a literatura encontra novos meios de textualida-


de, tal qual o hipertexto, definido como uma escrita não sequencial, marcada por
ramificações, permitindo ao leitor optar por diferentes caminhos de leitura. Com
o espaço virtual, a noção de intertextualidade expande-se, com a criação de uma
ampla rede textual, num emaranhado de discursos constituídos por um grande
número de outros textos culturais. Nesse universo, o leitor, que antes possuía
uma participação mais passiva e menos autônoma no processo de decodificação,
agora é solicitado a participar ativamente, decidindo, a cada passo, os rumos to-
mados pela sua leitura. O hipertexto faz com que o contato entre diferentes textos
se estabeleça de forma muito mais direta e explícita, a partir de uma cadeia ines-
gotável de discursos, por meio dos chamados hiperlinks.

102 • capítulo 5
Além da hipertextualidade, na era tecnológica, também destaca-se, no am-
biente virtual, a técnica do remix. Em seu artigo “Ciber-cultura-remix”, André
Lemos (2005) observa que a cibercultura é regida pela “remixagem”, definida
pelo “conjunto de práticas sociais e comunicacionais de combinações, cola-
gens, cut-up de informação a partir das tecnologias digitais.”. Segundo o autor,
nesse início de século, as novas tecnologias informacionais alteram os proces-
sos não apenas de comunicação, mas também de produção, de criação e de
circulação de bens e serviços, promovendo uma reconfiguração cultural a que
chama de “ciber-cultura-remix”. A seguir, passamos a discutir alguns aspectos
importantes dessa nova produção cultural, de acordo com Lemos.
Segundo o Lemos (2005), as culturas primitivas orais e mesmo a sociedade
medieval não possuíam a noção de autor, tal como a concebemos hoje, nem a
ideia de propriedade de bens simbólicos. Essas noções surgiram apenas no sé-
culo XVIII, com o capitalismo e a imprensa. Com a chegada da modernidade in-
dustrial, surgia a ideia de um escritor, dono de sua criação, que cede, mediante
pagamento, seus direitos a um editor. Isso perdurou até meados do século XX,
quando o artista, rompendo com a barreira de autoria, passou a usar produções
de outrem, em processos de recombinação. Tem-se, então, a crise da arte e, jun-
to com ela, um afrouxamento das noções de autoria e propriedade.
Como observa Lemos (2005), na era cibernética,

só é possível apropriações sob o signo da recriação. Não há mais autor, original e obra,
apenas processos abertos, coletivos e livres. [...] Na cibercultura, novos critérios de cria-
ção, criatividade e obra emergem consolidando, a partir das últimas décadas do século
XX, essa cultura remix. Por remix compreendemos as possibilidades de apropriação,
desvios e criação livre (que começam com a música, com os DJ’s no hip hop e os
Sound Systems) a partir de outros formatos, modalidades ou tecnologias, potencia-
lizados pelas características das ferramentas digitais e pela dinâmica da sociedade
contemporânea. Agora o lema da cibercultura é “a informação quer ser livre”. E ela não
pode ser considerada uma commodite como laranjas ou bananas. Busca-se assim, pro-
cessos para criar e favorecer “inteligências coletivas” (Lévy) ou “conectivas” (Kerkhove).
Essas só são possíveis, de agora em diante, por recombinações.

Numa era em que o processo criativo parece ter sofrido um esvaziamento, o


remix surge como uma possibilidade de (re)criação a partir do já dado, dando

capítulo 5 • 103
origem a um produto que, partindo de algo pronto, constitui-se, entretanto,
como novo, promovendo novas leituras e interpretações.
Para que a ilustração se torne mais clara, recorremos a Figueiredo e Barreto
(2016), que consideram:

Em termos simples, remixar é editar através de diferentes meios obras previamente ela-
boradas. Esta prática se torna conhecida na música, mas não se restringe a ela. Outras
formas artísticas, inclusive a literatura, fazem uso de remix. Lessing (2008) explica que
o remix é uma resposta à cultura do read only no qual poucos produtores e editores
são responsáveis por um consumo de massa. Isso coloca em choque a própria noção
de produção e consumo massivos. O remix permite apropriações, aliás, ele é feito de
apropriações. Autor e editores (publishers) perdem controle sobre a obra, que ganha
novas e inesperadas proporções.

Remixar é, produzir um material novo a partir de outros já existentes. A téc-


nica do remix descentraliza o poder das mãos de poucos produtores e editores.
Estes perdem o controle de sua obra, que passa a ser fruto de constantes apro-
priações e transformações. Como ressalta Levy (1999), o universo virtual cons-
titui um depósito de textos, acessível a todos, sendo uma memória coletiva ali-
mentada em tempo real, podendo ser coletivamente percorrida e enriquecida.
De acordo com Lemos (2005), a “cultura-ciber-remix” é regida por três leis:
1. a ideia de que “pode tudo na internet”, ou seja, a emergência de múltiplas vo-
zes e discursos, antes reprimidos pela edição da informação pelo mass media;
2. a noção de que “o computador é a rede” e de que “a rede está em todos os lu-
gares”, baseada num princípio de conectividade generalizada, em que todos es-
tão conectados, seja por computadores, seja por smartphones; 3. a ideia de que
“tudo muda, mas nem tanto”, consolidada pela reconfiguração de práticas, por
meio da remediação de um meio sobre outro, sem substituição de seu antece-
dente (como o reaproveitamento do cinema nos jogos eletrônicos, por exemplo).
Nesse contexto, Lemos (2005) observa que a arte eletrônica destaca-se como
um dos principais expoentes da cibercultura, por sua capacidade de utilizar-se
de processos abertos, coletivos, inacabados. Assim, esse tipo de criação

coloca em sinergia processos interativos, abertos, coletivos e planetários, problemati-


zando as noções de espaço e de tempo, o lugar do espectador e do autor, os limites do

104 • capítulo 5
corpo e do humano, as noções de real e de virtual. [...] As possibilidades tecnológicas
passam a interessar os artistas contemporâneos desde a década de 1960. A partir das
tecnologias digitais surgem novos formatos como a música eletrônica, a “body arte”, a
“web-arte”, a “net-arte”, os hipertextos, a robótica, a realidade virtual, as instalações in-
terativas, e as demais formas artísticas em interface com a literatura, o cinema, o teatro
e a dança. Busca-se assim, a criação e a produção de processos que questionem e
problematizem a época atual.

O autor (2005) também ressalta que, na arte eletrônica atual, encontramos


os três princípios que regem a “ciber-cultura-remix”: a ideia de conexão, com
obras em rede; a liberação da emissão, com a fusão de autor, espectador e usuá-
rio; e a reconfiguração dos formatos artísticos anteriores.
A respeito da liberação da emissão, no universo virtual, a leitura assume
praticamente um papel de jogo, cuja regra principal é a interatividade. Assim,
como observam Figueiredo e Barreto (2016), o leitor busca uma nova forma de
leitura por meio da qual ele também possa atuar de maneira imediata e direta,
buscando interação e representatividade. Logo, a interpretação textual deixa de
ser a busca de um sentido para se tornar a própria produção de sentidos. Em de-
corrência disso, o espaço cibernético apresenta-se como um grande ambiente
de sociabilidade.
Nesse ambiente de virtual, a comunicação rompe com a linearidade e acon-
tece de maneira múltipla, com a emissão de mensagens simultâneas entre di-
versos usuários, interligados por uma rede de conexões. Diante disso, os inter-
nautas colocam-se frente ao texto não apenas como mero receptores, mas como
construtores e até mesmo transformadores do sentido original. É o que ocorre,
por exemplo, no processo de remixagem textual, em que um discurso, ou frag-
mentos de um discurso, são reaproveitados na reelaboração de um novo texto.
Pela fácil capacidade de disseminação de textos, a plataforma virtual acaba
contribuindo para a circulação de textos mais eruditos, muitas vezes com citações
retiradas de seu contexto original, constituindo espécies de aforismos. No extre-
mo desse processo, surgem os textos fakes, cuja autoria é falsamente atribuída a
um autor. Fora de seus contextos originais, esses fragmentos são constantemen-
te lidos, assimilados e transformados. Isso se deve ao fato de esses discursos di-
gitais serem, de acordo com Manovich (2001), plásticos e reaplicáveis facilmente
por meio do comando Ctrl-C + Ctrl-V. A facilidade em copiar conteúdos e colá-los
facilita a reapropriação, ou seja, a incorporação de conteúdos preexistentes.

capítulo 5 • 105
Como lembram Figueiredo e Barreto (2016), a reapropriação de conteúdos
por meio de caricaturas ou charges não é algo novo, uma vez que, há um século,
os jornais e revistas têm se valido desse recurso. Entretanto, com o ambiente vir-
tual, há um multidirecionamento do fluxo, permitindo que as apropriações se-
jam produzidas por qualquer sujeito, e não apenas do lugar privilegiado do autor.
Há que se considerar, também, a facilidade de recursos como o de copiar e colar,
que não exigem do emissor o domínio de uma técnica apurada de produção.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 5.2  –  Em seu artigo, Figueiredo e Barre-


to (2016) citam um exemplo de intertextualidade
presente no ambiente virtual: “a célebre frase de
Lispector, ‘felicidade é pouco, o que eu desejo ain-
da não tem nome’, publicada no livro Perto do Cora-
ção Selvagem, ganhou uma nova versão: ‘macum-
ba é pouco, o que eu quero fazer pra vc ainda não
tem nome’.”

CONEXÃO
No link a seguir, você pode ter acesso a um artigo que analisa a reapropriação da obra de
Clarice Lispector nas redes sociais dentro da cultura do remix.
http://www.ojs.ufpi.br/index.php/rbhm/article/view/4165/2476

A técnica do remix também promove uma flexibilização dos limites entre


literatura erudita e popular ou de massa, uma vez que frequentemente essa téc-
nica também se serve de cânones, operando transformações, dando-lhes novas
significações. Embora possa haver controvérsias sobre a qualidade dos textos
que circulam no ciberespaço, é preciso reconhecer que a apropriação contribui
para a disseminação de muitas obras e promove, além disso, releituras, enri-
quecendo o acervo artístico-cultural.

106 • capítulo 5
ATIVIDADES
A fim de que você possa notar, na prática, as questões teóricas discutidas ao longo deste
último capítulo, sugerimos que você leia uma obra que possua adaptação para o cinema e
assista ao filme baseado nessa obra.
Como sugestão, indicamos O primo Basílio, de Eça de Queirós.
Link do livro: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000227.pdf
Link do filme: https://www.youtube.com/watch?v=mD4bGo0Yprc
A partir da comparação entre o filme e o livro, responda às questões a seguir:

01. De qual das duas obras você mais gostou: do livro ou do filme? Aponte os motivos
da escolha.

02. Você acredita que o filme tenha seguido o livro à risca, ou sentiu falta de algum elemento
da obra no longa? Justifique.

03. Qual das duas produções é mais aberta, permitindo múltiplas leituras e interpretações?

04. Você considera uma produção superior à outra? Se sim, qual delas e por quê?

05. De acordo com as discussões teóricas apresentadas neste capítulo, é possível que um
filme seja totalmente fiel a um texto literário?

REFLEXÃO
A discussão tecida ao longo deste último capítulo deve levar você a enxergar o diálogo entre
a literatura e as outras artes como uma fonte de criação de novos textos, sejam eles verbais
ou não. Espera-se que, a partir da apresentação dos elementos presentes nos diversos su-
portes, você consiga enxergar a especificidade de cada obra de arte, para que, assim, seja
capaz de fazer um julgamento comparativo mais crítico e pertinente, teoricamente embasado.
Por fim, com a discussão dos novos contornos da literatura no ciberespaço, espera-se que
você seja capaz de constatar como os produtos artísticos e culturais são moldados pelas
tecnologias e pelas relações sociais, adquirindo diferentes aspectos, de acordo com a época
em que se inserem.

capítulo 5 • 107
LEITURA
A fim de aprofundar seus conhecimentos sobre a relação entre literatura e cinema, sugeri-
mos a leitura do artigo “Tradução intersemiótica: do texto para a tela”, de Thaís Flores No-
gueira Diniz, publicado nos Cadernos de Tradução, disponível no link a seguir:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/5390/4934

Ainda sobre a relação entre cinema e literatura, indicamos a leitura das seguintes obras:
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1963.
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo, Editora Perspectiva, 2003.

Para se aprofundar na questão da literatura no ciberespaço, indicamos a leitura das


obras a seguir:
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALOGH, Anna Maria. MONGIOLI, Maria Cristina Palma. Adaptações e Remakes: entrando no jardim
dos caminhos que se cruzam. In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo de (org.). Ficção televisiva no
Brasil: temas e perspectivas. São Paulo: Globo, 2009. p. 313-351.
BUENO, Chris, 2010, Literatura e cinema: adaptando linguagens. In: Ciência e Cultura, vol. 62, n.
1, SBPC. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-
67252010000100024>. Acesso em: 15 de mar. de 2016. Disponível em <http://www.facom.ufba.br/
ciberpesquisa/andrele-
FIGUEIREDO, Carolina Dantas de; BARRETO, Anderson Gomes Paes. A Hora da Estrela Virtual:
leitura, literatura, reapropriação e remix de Clarice Lispector nas redes sociais. Disponível em:
http://www.unicentro.br/rbhm/ed08/dossie/09.pdf. Acesso em 15 de mar. 2016.
FLORY, Suely Fadul Villibor (org.). Narrativas ficcionais: da literatura às mídias audiovisuais. São
Paulo: Arte & Ciência Editora, 2005.
GIFFONI, CARLA. O eterno namoro entre a literatura e o audiovisual. Disponível em: http://static.
recantodasletras.com.br/arquivos/4762524.pdf?1397076299. Acesso em 15 de mar. 2016.
GOMES, Márcia; BARBOSA, Fabrício. A transposição das personagens na adaptação de obras
literárias para o audiovisual. IX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste,
2008.

108 • capítulo 5
HORÁCIO. Arte poética. Trad. R. M. Rosado Fernandes. Lisboa: Clássicos Inquérito, 1984.
HOWARD, David; MABKEY, Edward. Teoria e prática do roteiro. São Paulo: Globo, 1996.
KOBS, Verônica Daniel. A invasão silenciosa da visualidade. Revista SCRIPTA UNI- ANDRADE:
Publicação Anual da Pós-Graduação em Letras. Curitiba: n. 5, p. 59-70, 2007.
LEMOS, André. Ciber-cultura-remix. Seminário “Sentidos e Processos”. São Paulo, Itaú Cultural,
agosto de 2005. Disponível em: http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/remix.pdf.
Acesso em 15 de mar. 2016.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: MIT Press, 2001.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1963.
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo, Editora Perspectiva, 2003.
REIMÃO, Sandra. Livros e Televisão: correlações. São Paulo: Ateliê̂ Editorial, 2004.
SALES, Paulo Emílio Gomes. A personagem cinematográfica In: A personagem de ficção. São
Paulo: Perspectiva, 1976.
SOURIAU, E. A correspondência das artes: elementos da estética comparada. Tradução de
Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto e Maria Helena Ribeiro da Cunha. São Paulo: Cultrix, 1983.

GABARITO
Capítulo 1

01. Há, ainda hoje, controvérsias sobre o reconhecimento da literatura comparada como
ciência autônoma. Enquanto alguns teóricos, como Van Tieghem, consideram-na como uma
disciplina autônoma, por possuir método e objeto próprios, outros, como o teórico tcheco Du-
risin, situam-na num ramo de disciplinas maiores, dentro da história literária. Esta é, inclusive,
a constatação de Susan Basnett, ao afirmar que o debate sobre a literatura comparada como
disciplina autônoma perpassa todo século XX, sem encontrar respostas livres de contestação.
02. Em primeiro lugar, pode-se citar a comparação como procedimento metodológico em-
pregado nas ciências, segundo o qual uma hipótese poderia ser confirmada a partir da com-
paração ou do contraste entre elementos. Em seguida, pode-se citar o cosmopolitismo como
outro grande fator responsável pelo desenvolvimento dos estudos comparados, uma vez que
as viagens propiciavam o contato entre grandes escritores, havendo uma troca entre as dife-
rentes literaturas nacionais. Dessa forma, a comparação entre as diferentes produções abria
a possibilidade de maior compreensão do fazer artístico, além de revelar as influências entre
diferentes obras e escritores.

capítulo 5 • 109
03. Para Croce, a expressão “literatura comparada” é redundante porque, ao se analisar
uma obra literária em sua totalidade, deve-se investigá-la no campo da história universal,
posta em sua relação com outras obras. Logo, todo estudo aprofundado de uma obra literária
seria, de certa forma, um estudo comparado, a fim se compreender o contexto em que ela
se encontra situada.
04. A “escola norte-americana” distancia-se ligeiramente da francesa em alguns aspectos,
dentre os quais podemos citar: a) seu ecletismo, ou seja, a absorção às ideias de outras corren-
tes literárias; b) o foco do estudo do texto literário em si, em detrimento das relações entre au-
tores ou obras; c) o fato de aceitar a comparação dentro das fronteiras de uma única literatura.
05. Apesar de não considerar a literatura comparada como uma disciplina autônoma, Durisin
confere um caráter mais científico ao campo dos estudos comparados, ao apresentar uma sé-
rie de sistematizações e nomenclaturas para caracterizar as diferentes relações interliterárias.
Ademais, os estudos de Durisin conferem maior sentido aos trabalhos comparativos, ao focar
seus estudos na transformação operada pelos autores em cada literatura nacional, superando
a mera constatação de contatos e influências, como fizeram alguns de seus precursores.

Capítulo 2
01. Podem ser notadas várias semelhanças entre os textos, dentre elas, os versos curtos,
as imagens recorrentes (terra, palmeiras, sabiá, aves). Os dois versos iniciais diferenciam-se
apenas pela introdução do advérbio de negação “não”, por Quintana.
02. Não, pois, para esses autores, ao recuperar certos aspectos de um texto que se inse-
re na tradição, o novo texto revitaliza-o, coloca-o em evidência e faz suscitar outras inter-
pretações, muitas vezes diferentes, até mesmo, das interpretações que o texto antecessor
suscitou à época de sua divulgação. Assim, para Borges, se dúvida há, é do texto anterior
com aquele que provoca sua redescoberta, e não deste para com aqueles que suposta ou
realmente os influenciaram.
03. O texto II pode ser considerado original por promover uma transformação de seu ante-
cessor, no qual se inspira. Os textos I e II possuem interpretações completamente distintas,
com exaltação da pátria e crítica à nova situação desta, respectivamente. Nesse sentido, não
se pode falar em imitação, devendo-se reconhecer, isso sim, a apropriação criativa do texto
de Gonçalves Dias por Quintana.
04. Para Valéry, a assimilação de outros textos é algo praticamente inevitável. O escritor
compara a criação ao ato de digestão das ideias assimiladas. A partir dessa analogia, o que
diferencia o bom escritor do mau escritor é justamente a sua capacidade de digerir o produto
ingerido. Nesse sentido, a grande obra é aquela em que as influências não são facilmente
perceptíveis, ao passo que a obra de má qualidade ou o plágio, por sua má digestão, deixa à
mostra as partes assimiladas.

110 • capítulo 5
05. Para Valéry, não só a tradição influencia na produção contemporânea, como é, por esta,
modificada. Em outras palavras, o presente não apenas é dirigido pelo passado, como tam-
bém possui o poder de alterá-lo. Para Eliot, o texto inovador seria aquele capaz de promover
uma leitura divergente das fontes que o precederam, sendo, desse modo, capaz de revitalizar
a tradição instaurada.

Capítulo 3
01. Os textos I e II estabelecem uma relação de intertextualidade, pois o poema de Adélia
Prado dialoga com o texto de Drummond, numa espécie de apropriação.
02. Os textos I e II se aproximam no paralelismo sintático dos versos, já que ambos iniciam-
se com um adjunto adverbial de tempo (“Quando eu nasci”) e possuem como sujeito um anjo
que faz uma declaração. Entretanto, os textos se diferenciam completamente no conteúdo.
O texto de Drummond apresenta um “anjo torto” que “diz” uma espécie de maldição: ser
gauche (esquerdo, errado). O texto de Adélia Prado, por sua vez, apresenta um “anjo esbelto”
que “anuncia” ao eu-lírico a sua necessidade de ser porta-voz de uma classe: a feminina.
Enquanto o eu-lírico de Drummond se define como “gauche”, o eu-lírico de Adélia Prado se
considera “desdobrável”. Nesse sentido, pode-se dizer que os dois poemas expressam ideo-
logias completamente distintas.
03. O título do poema de Adélia Prado, “Com licença poética”, mostra sua filiação ao texto
de Drummond. Assim, ao pedir liberdade poética, a autora retoma os versos do poeta, porém,
veste-os de uma roupagem totalmente original, ressignificando-os. O resultado desse recur-
so intertextual é um produto extremamente original, um novo poema, com nova significação.
04. O texto II consiste numa paródia do texto I. Embora os versos iniciais se repitam em
ambos os poemas, o texto de Rute Rocha promove um desvio total do sentido do texto de
Casimiro Abreu. Enquanto no poema do poeta romântico predomina o saudosismo, por meio
de imagens que retratam a infância do eu-lírico como algo terno e prazeroso, o texto de Ro-
cha apresenta um sentido inverso: a infância, no texto da autora, é marcada por passagens
desagradáveis, o que faz com que os versos iniciais, tomados a Camisiro de Abreu, ganhem
sentido oposto, por meio da ironia. Tem-se, então, uma subversão do sentido original do poe-
ma de Casimiro de Abreu, o que caracteriza a paródia.
05. Sendo a intertextualidade o diálogo entre textos, muitas vezes ela só será percebida
pelo leitor caso este tenha um amplo repertório, que lhe permita, a partir da leitura de um
texto, recuperar informações ou dados de outro. Nesse sentido, a intertextualidade só será
detectada no poema de Rute Rocha caso o leitor tenha um conhecimento prévio do texto de
Casimiro Abreu.

capítulo 5 • 111
Capítulo 4

01. Em seu “Manifesto antropófago” , Oswald de Andrade propõe uma ruptura com o pas-
sado histórico, com a relação direta de importação cultural. Em outros termos, o escritor
combate a aceitação passiva de elementos estrangeiros.
02. O escritor propõe que, por meio de um processo canibalesco, o dado cultural estrangeiro
seja “devorado”, para que somente se assimile aquilo que se julgue interessante à cultura
nacional.
03. As ideias de Oswald de Andrade fazem com que desloquemos o foco de estudos do
centro para a periferia, uma vez que, segundo o autor, a assimilação de elementos artísticos
e culturais estrangeiros não seria passiva, constituindo uma cópia ou imitação dos cânones,
mas uma forma de repensá-los, e até mesmo de combatê-los, a partir de uma (re)leitura
crítica e consciente da tradição.
04. A analogia consiste em comparar diferentes obras com o objetivo de detectar as seme-
lhanças entre ambas, ao passo que a diferença consiste em contrastar diferentes obras que
possuem certa familiaridade com o objetivo de apontar-lhes as particularidades.
05. As pesquisas baseadas na analogia geralmente desembocam no estudo de fontes e
influências, terminando por constatar que uma obra é uma espécie de cópia ou imitação de
outra. As pesquisas focadas na diferença, em contrapartida, costumam ser mais abrangentes,
na medida em que, para além das semelhanças, apontam as especificidades de uma deter-
minada obra, considerada como um novo objeto artístico (apesar de influenciado por outro),
e não como mera imitação de uma produção anterior.

Capítulo 5

01. Resposta pessoal. Nesse caso, deve-se atentar à coerência entre a escolha de uma das
produções e os motivos que dão embasamento a essa preferência.
02. Resposta pessoal. Entretanto, deve-se considerar que, por haver a tradução de uma
linguagem para outra, dificilmente um filme conseguirá manter todas os dados presentes em
uma obra literária, seja pela sua extensão, seja pelos recursos de que dispõe. Caso o aluno
tenha optado por basear-se na obra O primo Basílio, poderá consultar um artigo que estabe-
lece uma comparação entre o livro e o filme, disponível no link:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ah-
UKEwih3YzFicPLAhWIlB4KHcKZB7wQFggdMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.unigran.
br%2Finterletras%2Fed_anteriores%2Fn12%2FCINEMA_E_.doc&usg=AFQjCNHTGVylz-
cDJrBrJn62TFN1UR7H9aA&sig2=pFnRbpNcykALtHIHCmLjpg

112 • capítulo 5
03. Resposta pessoal. Porém, espera-se que o aluno veja o caráter polissêmico do texto
literário, uma vez que nele o leitor possui maior liberdade de imaginação do ambiente, das
vestimentas, das personagens etc. No filme, esses elementos já estão definidos, fato que lhe
confere um caráter mais fechado.
04. Resposta pessoal. Espera-se, contudo, que o aluno reconheça a especificidade de cada
uma das produções, com suas qualidades e limitações. Assim, torna-se difícil julgar, em ter-
mos de qualidade, qual produção é melhor, o que resulta numa resposta bastante subjetiva.
05. É praticamente impossível que um filme seja completamente fiel a um texto literário, haja
vista as diferentes linguagens e os diferentes recursos empregados pelos dois tipos de pro-
dução. Se o filme e o livro dispõem de linguagens diferentes e, também, de diferentes meios,
dificilmente o resultado será o mesmo.

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