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Teresa Cristina Marques

Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850


a 1890 *
Teresa Cristina de Novaes Marques* *

Resumo – A introdução da perspectiva de gênero na história econômica


traz benefícios aos campos da história de gênero e econômica, cujas agen-
das de pesquisa persistem correndo paralelas. A proteção institucional dos
direitos de propriedade da mulher no Brasil em face de duas circunstâncias
comuns no capitalismo: a dissolução de uma sociedade comercial em fun-
ção da morte de um dos sócios e a falência do marido comerciante. Para
estudar o grau de proteção que as instituições legais conferiam às mulheres
escolheu-se, como ponto de partida, os debates ocorridos no Senado do
Império em torno do texto do Código Comercial brasileiro, nos últimos
anos da década de 1840. As inovações legais surgidas nas décadas seguintes
que afetaram os direitos das mulheres. Supõe-se que os direitos dos credo-
res são afetados por dois fatores que definem a eficiência da proteção aos 173
direitos de propriedade: a legislação e a jurisprudência dos tribunais. A
conclusão é que quando há maior possibilidade de litígio, o direito de pro-
priedade de um grupo social é menos protegido. As mulheres estavam
contempladas por dispositivos legais que protegiam o patrimônio das fa-
mílias e os bens dotais, mas seus direitos eram menos efetivos do que os
dos demais credores, porque eram mais sujeitos a contestação. No início
do século XX, o desprestígio do dote e seu desuso nos costumes é melhor
explicado pela evolução dos direitos de propriedade no país, e não por
razões de ordem cultural.
Palavras-chave – Gênero. Direitos de propriedade. Investimentos.
Legislação.
.
* Este artigo foi apresentado no XXIV congresso da Latin American Studies Association,
LASA, realizado na cidade de Dallas, Texas, entre 27 e 29 de março de 2003. Gostaria de
agradecer a atenção recebida da equipe de pesquisadores do Arquivo Histórico do Senado
Federal e biblioteca do Senado, onde pesquisei boa parte da documentação aqui examina-
da. Também agradeço os comentários dos dois pareceristas anônimos.
** Professora dos cursos de graduação e pós-graduação Lato Sensu da União Pioneira de
Integração Social (UPIS), em Brasília. E-mail: tcnmarques@uol.com.br.

Econômica, v. 3, n. 2, p. 173-206, dezembro 2001 - Impressa em setembro 2003


Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

Abstract – The introduction of the gender perspective in Economic History


allows the reunion of the research agenda of both disciplinarian fields that
persist on having parallel trajectories. We believe that this process benefits
both fields. The study examines the institutional protection for women’s
property rights, in Brazil, in regard to two extremely common circumstances:
the dissolution of a commercial society due to the death of one of the
partners, and the bankruptcy of a tradesman husband. In other to
understand the institutional solution given to the problem, we examine the
debates of the Brazilian Commercial Code that took place in the Senate
during the last years of the 1840s, as well as the legislation concerning
women’s property rights approved in the decades after Commercial Code
came to public. Assuming that two social factors define how efficiently is
protected someone’s property rights – the written legislation, and the
jurisprudence of courts – whenever there is space for contest, the property
right of a social group is less protected. This happened to women. For
them there were laws protecting the family’s patrimony and dowry, but
174 their rights were less effective than of other creditors because they could
be contested. We sustain that, by the beginning of the XXth century, the
decay of the practice of dowry in Brazilian society is better explained by
the legal evolution of property rights, rather than by cultural reasons.
Key words – Gender history. Property rights. Investment. Law.
.

Introdução
Existe um crescente interesse pela história dos direitos de grupos
sociais parcialmente inseridos na sociedade política das nações emergentes
do processo de independência na América Latina. Esse interesse tem leva-
do estudiosos a investigar os direitos individuais de mulheres, índios e
ex-escravos, em abordagens que conjugam o exame formal da legislação e
a análise das práticas sociais capazes de confirmar as garantias prescritas na
lei, ou mesmo de invalidá-las1 . Ao escolher investigar grupos marginaliza-
dos ou detentores de menor poder nas sociedades patriarcais, historiadores
têm se deparado com a outra face das instituições legais. Assim, o contras-
te entre os direitos garantidos aos homens livres e aos grupos sociais

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subalternos oferece uma visão aprimorada da realidade das práticas sociais


em um momento histórico decisivo para a formação institucional dos Es-
tados independentes na região, como foi a primeira metade do século XIX.
Numerosos estudos partem da idéia de que o pensamento liberal
desenvolvido na Europa se difundiu na América Latina, constituindo os
fundamentos ideológicos da ação política das elites nativas engajadas no
processo de independência e posterior construção do Estado nação2 . Mul-
tiplicam-se os trabalhos sobre as reformas institucionais liberais que se
seguiram ao processo de independência das antigas colônias espanholas,
reformas essas promovidas com o propósito de garantir as bases da nova
ordem política. No Brasil, apesar da rica produção historiográfica sobre as
transformações políticas do período, algumas inovações institucionais –
como a organização da Justiça e a codificação do direito – ainda não foram
plenamente elucidadas.
Este ensaio examina a evolução das garantias institucionais
conferidas aos titulares de duas modalidades de patrimônio – dote e de-
bêntures – na suposição de que essas formas de patrimônio receberam 175
diferentes graus de proteção legal frente a falências, comprometendo, des-
sa forma, a eficiência dessa proteção. Tomamos como hipótese o argumento
de Richard Posner de que a eficiência da proteção dos direitos de proprie-
dade depende da pouca possibilidade de litígios. Estes, quando houver,
devem ser resolvidos de forma breve porque a justiça demorada constitui
um fator institucional negativo para a proteção dos direitos de propriedade
(POSNER, 1998)3 .
Entretanto, para que um grupo social alcance maior grau de proteção
de seus interesses é necessário que ele detenha poder de interferir na arena
política em seu favor. Se os direitos civis se estendem apenas a uma parte
da sociedade, como os homens brancos proprietários, a capacidade de os
grupos sociais excluídos agirem em defesa de seus interesses é reduzida.
Este era o caso das mulheres. Então, neste ensaio, se considerarmos os
proprietários de debêntures e as mulheres com direito a restituição do dote
como grupos de pressão que agiam em favor da ampliação das garantias
institucionais de seu patrimônio, veremos que a evolução das instituições
econômicas caminhou no sentido de proteger os proprietários dos títulos,

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em detrimento das mulheres. A razão política é evidente: as mulheres não


tiveram voz para defender seus interesses quando a sociedade brasileira
discutiu a reforma das instituições de proteção ao patrimônio.
Vejamos, portanto, algumas importantes mudanças na regulação
dos direitos de propriedade que afetaram os interesses das mulheres ao
longo do século XIX.

Liberalismo, família e negócios


O ideário liberal motivou as elites políticas que lutaram pela inde-
pendência das colônias da América e ofereceu os princípios da reorganização
política que teve lugar durante o processo de independência e definição
das bases institucionais do Estado. Entretanto, o termo liberalismo se pres-
ta a muitas definições, pois várias foram as correntes de pensamento que
inspiraram as elites da América Latina e diversas foram as apropriações
que essas elites fizeram do pensamento liberal. No Brasil, esse pensamento
chegou às elites brasileiras na versão francesa de Benjamin Constant, que
176 definiu o princípio do respeito aos direitos do indivíduo como pilar de
sustentação da nova ordem política em oposição ao Antigo Regime4 . Es-
ses direitos foram elencados por Constant como: direito à liberdade pessoal,
à liberdade religiosa, à liberdade de opinião, à garantia contra o arbítrio do
Estado e ao gozo da propriedade (CONSTANT, 1997). Entre nós, as garanti-
as individuais logo se confrontaram com a necessidade de preservar a ordem
social de uma sociedade escravocrata. As soluções encontradas para conci-
liar a defesa dos direitos individuais dos homens livres e a necessidade de
perpetuar a escravidão constituem as contradições do liberalismo à moda
brasileira, como argumentam muitos autores5 .
Se nos detivermos apenas na concepção de propriedade privada
desenvolvida por Benjamin Constant, desconsiderando outros aspectos do
modelo de governo liberal proposto por ele, vemos que o pensador fran-
cês concebia a propriedade privada como uma convenção social e, como
tal, caberia à sociedade regular o seu uso6 . Apesar de a sociedade, repre-
sentada pelo Estado, deter poderes para limitar o uso e usufruto da
propriedade, era imprescindível revesti-la de proteção contra atos arbitrári-
os do mesmo Estado, pois a arbitrariedade contra os bens privados
representava um precedente para atentados contra outros direitos dos indiví-
duos.
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Encontramos eco do pensamento de Constant no texto constituci-


onal de 1824, que protegeu a propriedade privada e garantiu a liberdade
individual (NAZZARI, 2001, p. 159). Da mesma forma, o esforço de
codificação do direito também representou uma etapa da agenda de refor-
mas liberais das nações emergentes (ZIMMERMANN, 1999). Vê-se, no entanto,
que essas reformas fizeram parte de um processo gradual de reconstrução
institucional, em que resquícios da velha ordem poderiam permanecer
embutidos em dispositivos modernizantes, a exemplo da noção de propri-
edade que foi objeto de controvérsia entre os juristas brasileiros. Neste
campo, havia a tradição do direito português que colidia com as inovações
doutrinárias propostas na moderna legislação francesa pós Revolução. Um
exemplo disso era a definição das fronteiras entre as noções de posse e de
propriedade, objeto de longa querela jurídica e que, veremos, atingiu os
interesses das mulheres (GRINBERG, 2002, cap. VI).
Do ponto de vista dos direitos das mulheres, o Código Comercial
as favoreceu ao separar o patrimônio das sociedades comerciais do
patrimônio familiar, possibilitando que o segundo estivesse protegido das 177
vicissitudes da atividade mercantil (NAZZARI, 2001, p. 172-188). Segundo
Muriel Nazzari, a morte do chefe da família, se comerciante fosse, não
mais implicava a ruína de seus herdeiros com a dissolução obrigatória da
sociedade comercial. O Código instituiu mecanismos que possibilitavam
dar prosseguimento às atividades de uma empresa, mediante um novo ar-
ranjo contratual entre os sócios remanescentes e os herdeiros. Pelo sistema
anterior, a morte do marido comerciante levaria à dissolução do negócio e
ao comprometimento da renda da família.
Formalmente, a legislação civil portuguesa, ainda vigente no Brasil
após o processo de independência, assegurava às mulheres o direito de
herdar a metade dos bens do casal. No entanto, mesmo amparadas pela
legislação, que lhes garantia essa porção dos bens acumulados durante o
matrimônio além da restituição dos bens dotais, na hipótese de haver um
acordo pré-nupcial nesse sentido, o exercício efetivo do poder sobre o
patrimônio herdado dependia de práticas sociais, como a anuência dos pa-
rentes e as decisões dos juízes de órfãos, tutores dos direitos dos filhos do
casal (MELO & MARQUES, 2001).

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De fato, os historiadores têm encontrado consistentes indícios de


desvio do patrimônio familiar em casos de heranças que envolviam a parti-
lha dos bens de sociedades comerciais (SILVA, 1993)7 . Pesquisas revelam
terem sido usuais os conluios entre os credores e os agentes legalmente
autorizados a administrar a herança da família, juízes de órfãos e liquidan-
tes, não estando, portanto, assegurado que o patrimônio acumulado pelo
comerciante chegasse às mãos de seus herdeiros, nem mesmo que os bens
dotais, legalmente pertencentes à mulher, fossem inteiramente restituídos
à esposa após a morte do marido.
A existência de dívidas constituía outra circunstância que possibili-
tava o desvio da riqueza acumulada, não sendo incomum o comerciante
falecido legar dívidas à sua família, que dispunha de escassos meios para
verificar a exatidão do montante devido e a justeza do pleito dos credores,
principalmente porque os comerciantes não eram obrigados a adotar um
método de escrita mercantil padronizado, nem mesmo após a edição do
Código (MARQUES, 1998a). Desse modo, era difícil controlar precisamente
178 o grau de endividamento de um negócio comercial, ou saber com precisão
o paradeiro dos títulos emitidos. Na ausência de prova material contrária
ao pleito dos credores, os tribunais decidiam em favor destes, contra a
viúva.
Por todos os problemas decorrentes da incerteza dos direitos sur-
gidos no dia-a-dia das famílias, o destino delas e a garantia de que a riqueza
familiar não se dissipasse em processos de herança estiveram no rol das
preocupações dos legisladores responsáveis pela construção da nova or-
dem legal. Além de permitir o prosseguimento do negócio do marido após
a sua morte, outra inovação introduzida no Código Comercial que prote-
geu os interesses dos herdeiros foi a separação das competências dos juízes
de órfãos e juízes comuns. Coube aos primeiros proteger os interesses dos
filhos menores do casal, mas apenas os juízes comuns podiam interferir na
liquidação de uma sociedade comercial, motivada pela morte de um dos
sócios. Nos anos seguintes, as decisões das cortes de apelação brasileiras
conferiram ainda maior clareza ao processo de liquidação das sociedades,
separando a partilha dos bens da empresa comercial da partilha dos bens
pessoais do comerciante e sua família8 .

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Segundo Nazzari, esse seria o ponto inicial de um longo processo


de reforma institucional que acompanhou a mudança nos costumes. A antiga
família patriarcal, onde todos gravitavam em torno do pai, foi lentamente
dando lugar a um modelo de família nuclear, composta por marido, mulher
e filhos. Nesses termos, casamentos que envolvessem a concessão de dote
às mulheres não mais garantiam vínculos de fidelidade e obediência dos
genros para com os sogros. O dote amparado por contrato pré-nupcial
passava às mãos do marido, a quem cabia a responsabilidade de administrá-
lo como bem entendesse, embora o marido não estivesse autorizado a alienar
esse patrimônio, ou hipotecá-lo. Em verdade, pela letra da lei, esses bens
deveriam ser restituídos à mulher no caso do falecimento do marido.
Nazzari argumenta que, ao longo do século XIX, esteve em curso
no Brasil uma transição nos costumes. A sociedade composta por famílias
ampliadas, onde os laços de respeito e hierarquia mantinham os filhos e
seus cônjuges enredados no poder do patriarca, deu lugar a uma sociedade
individualista, composta por famílias nucleares, marido e mulher. Essa foi a
principal razão para a queda em desuso do dote. 179
Como também observa a autora, após a abolição do tráfico de es-
cravos em 1850, outras formas de transmissão do patrimônio ganharam
maior proteção legal, como por exemplo: ações de sociedades anônimas,
títulos públicos e privados. Esses títulos passaram a ser legados como he-
rança e tinham a virtude de não exigir do herdeiro o envolvimento direto
na atividade produtiva, além de oferecer um suprimento de renda vitalício.
Assim, ao invés de dotar filhas e filhos antes do casamento, os pais preferi-
ram lhes legar herança na forma de títulos, ações e imóveis. Daí a autora
observar a tendência de redução no número de dotes mencionados nos
inventários desde meados do século XIX.
Podemos argumentar, contudo, que a herança paterna entrava no
rol do patrimônio familiar da herdeira, que, em face do estatuto da mulher
dentro do casamento, normalmente celebrado sob o regime de comunhão
de bens, passava a ser administrado pelo marido, mesmo se o casal vivesse
separado. Embora houvesse a possibilidade de divórcio, só admissível em
situações extremas e sujeito à interferência da Igreja, a mudança da condi-
ção de dotadas para a de herdeiras não favoreceu a posição das mulheres
na sociedade conjugal9 .

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Embora favorável à difusão da economia de mercado, através de


instrumentos de captação de poupança privada para empreendimentos,
como ações e títulos ao portador, esse cenário de mudança dos arranjos
familiares não foi favorável às mulheres, pois, sem o dote, elas passaram à
condição de esposas sem uma contribuição formal para o patrimônio fa-
miliar, exceto, como vimos, na eventual herança paterna. Como ainda
permaneciam excluídas, em grande parte, do mercado de trabalho, as espo-
sas tornaram-se vulneráveis aos maridos, seus tutores de fato, e de direito10 .
Sem dúvida, surgiram claros desequilíbrios de poder dentro da relação
matrimonial, ao contrário da situação anterior, quando as mulheres goza-
vam da proteção de seu pai e irmãos, ainda que arcassem com os custos
dessa proteção.
O que se passava com a instituição do dote? Segundo Nazzari, o
surgimento do indivíduo e de outras formas de transmissão de patrimônio
reduziram a importância do dote, que continha o inconveniente de ser um
180 patrimônio não mobilizável, indisponível de fato para investimentos de
risco característicos de uma economia capitalista. Bem mais adequadas ao
jogo capitalista eram as ações de companhias, títulos públicos ou debêntu-
res, e os contemporâneos tinham absoluta clareza disso11 . Entretanto, a
explicação para a queda em desuso da prática do dote não deve ser busca-
da, apenas, nas transformações econômicas e de costumes que estavam em
curso na sociedade brasileira. Seria oferecer uma explicação demasiada-
mente genérica e mecanicista a um processo no qual as lideranças políticas
tiveram elevado grau de interferência quando elaboraram novas leis. Se a
tramitação de uma lei já é um processo político-decisório complexo, o que
dizer da redação e aprovação de um corpo de proposições legais como é
um código? Há que se considerar o pensamento jurídico e político dos
grupos políticos que conseguiram fazer prevalecer a sua visão de mundo e
moldaram o texto final do Código. Além de preceitos jurídicos, a forma
como esses homens concebiam o papel do Estado na regulação das
transações entre entes privados também transparece na lei elaborada, como
as profundas modificações que o Código Comercial imprimiu no rito de
falências.

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As inovações contidas no Código Comercial


Há muito os comerciantes brasileiros reclamavam a elaboração de
um corpo de leis coerente que regulasse as relações contratuais. A contar
do momento da Independência, o processo de consolidação institucional
do novo país dera passos importantes. A prioridade, por certo, foi a elabo-
ração de uma carta constitucional, o que resultou na Constituição
promulgada em 1824. Seguiram-se o Código Criminal, aprovado em 1830,
e o Código de Processo Criminal, dez anos depois. Restava ainda elaborar
um conjunto coerente de leis civis e de leis comerciais, mas os contempo-
râneos viram maior urgência em centrar esforços políticos na regulação da
vida comercial do que no reordenamento jurídico de leis civis12 . Ainda
assim, apesar do consenso político em torno da sua necessidade, o Código
Comercial esteve em discussão entre meados da década de 1830 e o ano de
1850. E não cessou com a promulgação do código o processo de
reestruturação institucional, pois as decisões proferidas pelos tribunais e os
avisos ministeriais conferiram os ajustes necessários entre a interpretação 181
da lei e as práticas comercias.
Antes da elaboração do Código, as lacunas na legislação portugue-
sa eram preenchidas com recurso a leis de outros países, que os juízes
entendiam serem pertinentes aos casos que estivessem examinando. Esses
procedimentos traziam grave incerteza jurídica e acarretavam , na opinião
de parlamentares contemporâneos, efeitos perniciosos sobre as relações
contratuais que o Código viria a sanar, esperavam eles13 .
Estava o projeto do Código em processo adiantado de discussão
no Senado quando, em 27 de maio de 1848, o presidente da comissão
redatora, o senador e ministro da Justiça José Clemente Pereira, defendeu
o reordenamento institucional contido no projeto de lei em debate. O prin-
cipal ponto de discórdia entre os parlamentares era a criação de uma justiça
especial para causas comerciais. Contrariamente à idéia, argumentou Perei-
ra que havia graves problemas jurídicos em se distinguir uma questão
comercial de outra meramente civil, além dos elevados custos estimados
para a criação de um ramo da organização judiciária exclusivo para tratar
de causas comerciais. A saída encontrada foi a criação de tribunais especi-
ais, a exemplo de instituição semelhante existente no sistema judiciário

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francês, nos quais os comerciantes pudessem tomar parte, desde que fos-
sem brasileiros natos14 . Surgiram, assim, os tribunais do comércio, na capital
do país e nas principais praças comerciais, onde existissem tribunais da
Relação. Estes últimos eram cortes de recursos inscritas na organização
judiciária regular15 .
Dos Tribunais do Comércio participavam comerciantes eleitos por
um colégio de pares, que não incluíam mulheres, ainda que fossem elas
comerciantes. Aliás, não podiam elas votar nem serem votadas no proces-
so de escolha de deputados nos tribunais16 . Contudo, a situação das famílias
nos processos sucessórios não foi ignorada pelos parlamentares. Deseja-
vam os senadores que o novo modelo institucional fosse destituído dos
vícios do sistema então em vigor, em que juízes de órfãos se imiscuíam na
dissolução das sociedades comerciais e as antigas juntas comerciais indica-
vam curadores de processos de herança que recorrentemente prejudicavam
os interesses das viúvas e dos filhos dos comerciantes. Um dos objetivos,
afirmou Clemente Pereira, era evitar o desvio de patrimônio das famílias
182 em processos sucessórios:
Demais, não estão ainda presentes à nossa lembrança os desgra-
çados exemplos de nomeações feitas nos nossos dias pela junta
do comércio? Não temos conhecimento de administradores que
se levantaram com os seus bens administrados, e os herdeiros
ficaram prejudicados, ou antes roubados? Não vimos nós
eternizadas essas administrações? Estes exemplos, quando a boa
razão não aconselhasse o contrário, destroem a opinião que pro-
põe de em todos os casos a nomeação ser feita por uma autori-
dade judiciária comercial (ANAIS DO SENADO DO IMPÉRIO, 18/8/
1848).
Ao desmontar o jogo de interesses contido na organização da anti-
ga Real Junta do Comércio, abria-se espaço para o estabelecimento de uma
nova correlação de forças competente para intervir em questões relativas à
vida comercial17 . Os grandes comerciantes estabelecidos na Corte tiveram,
assim, um instrumento importante para interferir no andamento da justiça,
em defesa de seus próprios interesses.
Os comerciantes matriculados, isto é, os registrados no Tribunal
do Comércio, passaram a ter foro privilegiado em caso de falência. Os não

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matriculados, que a historiografia demonstrou serem os muitos pequenos


comerciantes que não se matriculavam, fosse por falta de incentivo, ou por
serem incapazes de cumprir os requisitos (especialmente, o de manter uma
escrita mercantil uniforme), estavam sujeitos ao rito sumário de falência, a
critério do juiz de direito (VIEIRA, 1985). Se esses próprios comerciantes
não gozavam de mínimas prerrogativas, o que dizer de suas mulheres? Tra-
tamos aqui, portanto, dos direitos e deveres dos grandes comerciantes.
Os processos de herança simples, que não envolvessem a dissolu-
ção de casas comerciais, permaneciam sob a alçada da justiça comum,
embora isolados da interferência dos juízes de órfãos. Entretanto, havia
duas circunstâncias que podiam dar origem a problemas para as famílias: a
dissolução de uma sociedade após a morte do comerciante com herdeiros
menores e os processos de falências18 . Em ambas as situações, o Tribunal
do Comércio tinha diferentes graus de ingerência.
Na liquidação de casas comerciais motivada pela morte do comer-
ciante, a interferência do Tribunal era menor. O processo corria sob a
responsabilidade do juiz de órfãos, a quem cabia nomear um curador espe- 183
cial para acompanhar a liquidação, observando os interesses dos herdeiros
menores, e do juiz de direito, a quem cabia realizar a liquidação. A jurispru-
dência dos tribunais consagrou o princípio de que as dívidas do comerciante
falecido deveriam ser saldadas, primeiro, pela venda do patrimônio da soci-
edade e, só depois disso, far-se-ia a partilha dos bens particulares do casal.
Além dessa decisão que protegia, minimamente, o patrimônio familiar, o
Tribunal do Comércio da Corte também elaborava um rol de curadores
fiscais, entre os quais os juízes de órfãos deveriam escolher os curadores
especiais19 . Ainda assim, a proteção do patrimônio familiar e a continuida-
de do nível de renda da família estavam submetidos ao princípio maior da
proteção dos direitos dos credores, havendo, portanto, a possibilidade de
que os bens do casal fossem dilapidados.
No caso de falecimento de um comerciante sem herdeiros presen-
tes, caberia ao juiz de direito nomear um liquidante dos ativos do falecido,
a fim de efetuar o pagamento de seus credores. Esses liquidantes podiam,
contudo, ser destituídos pelo Tribunal do Comércio, se houvesse entendi-
mento de que estavam agindo de má-fé20 . Mas esse caso não afetava o
direito das mulheres, então não nos deteremos sobre o assunto.

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Se os tribunais dispunham de instrumentos legais para interferir


em processos de dissolução e liquidação de sociedades, era sobre os pro-
cessos de falências que estas entidades tinham mais poder. Aliás, o desenho
institucional pretendido pelos redatores do Código estabelecia essa como
a razão principal para a criação dos tribunais. Todas as demais competênci-
as dos Tribunais do Comércio – registro de comerciantes, habilitação de
corretores – tinham caráter administrativo e eram consideradas de menor
importância em face da capacidade de instruir os processos de falência.
Na sessão de 23 de agosto de 1848, o senador José Clemente Perei-
ra subiu à tribuna para defender a proposta da comissão. Na impossibilidade,
teórica e fiscal, de se criar um foro comercial privativo no país, pretendia-se
que os tribunais fossem revestidos de poderes especiais para atuar em três
etapas decisivas do rito de falência. Primeiro, os deputados comerciantes
estavam melhor habilitados, de acordo com Pereira, a qualificar o tipo de
falência – se culposa ou fraudulenta – o que trazia implicações muito im-
portantes, pois, na hipótese de o comerciante incorrer em falência
184 fraudulenta, estava sujeito a prisão e arresto de bens. Segundo, os tribunais
funcionariam como instância para ouvir e habilitar os credores à massa
falida. Terceiro, decidiriam se o comerciante tinha condições de executar
uma proposta de concordata com os credores, também de grande impor-
tância para a eventual reabilitação do comerciante falido e a preservação de
seus bens pessoais (ANAIS DO SENADO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 23/8/1848).
O ritual seguia os seguintes passos: o comerciante que cessava seus
pagamentos dispunha de três dias para ingressar com uma declaração de
falência no Tribunal do Comércio, em seguida, o Tribunal fazia a relação
dos credores, declarava aberta a falência e nomeava um curador dos bens
do comerciante. Emitia-se, então, a sentença declaratória que era enviada
ao juiz de direito, a quem cabia executar judicialmente o comerciante. Mais
adiante no processo, os bens do comerciante podiam ser vendidos para
saldar as dívidas, antes, porém, o Tribunal tinha de ser ouvido. Concluída a
instrução judicial do processo, este retornava ao Tribunal, que qualificava o
tipo de falência. Se julgasse o comerciante culpado de fraude, cabia ao juiz
emitir o mandado de prisão. Diante da sentença definitiva, o comerciante
podia recorrer ao tribunal da Relação, instância judiciária superior, como já
comentamos21 .

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Qual a situação das mulheres dos comerciantes em face da ruína


dos negócios de seus maridos? Os bens adquiridos durante o matrimônio
estavam ameaçados durante o processo de falência. Mesmo após a morte
do marido, se surgisse algum credor por dívida contraída pelo comerciante
ainda em vida a viúva era citada judicialmente22 . Já os bens dotais estavam
protegidos. Até que ponto?
O Código Comercial estabeleceu quatro categorias de credores,
dispostos em ordem decrescente de prioridade de direito sobre a massa
falida: credores de domínio, privilegiados, com hipoteca e quirografários.
A mulher casada foi qualificada como credora de domínio no que dizia
respeito aos bens dotais e parafernais (bens não dotais que a mulher levava
para o casamento). Assim o assunto foi tratado no texto final do Código,
que era imperfeito na proteção dos interesses da mulher, pois supunha pré-
condições para habilitá-la como credora da massa falida. Entretanto, o
quadro poderia ter sido pior, caso algumas emendas apresentadas no Sena-
do tivessem sido aprovadas. Uma delas, em particular, previa que a mulher
do comerciante fosse considerada credora hipotecária (terceira na linha de 185
prioridade) dos bens dotais23 .
Pode-se afirmar que o Código buscou preservar os interesses das
mulheres, garantindo explicitamente o seu direito à restituição do dote em
caso de falência do marido comerciante, e instituindo os Tribunais do
Comércio, onde os casos de falência seriam submetidos ao julgamento de
um colégio de comerciantes. Era esse o propósito da comissão de juristas
que, sob a presidência do ministro José Clemente Pereira, elaborou os
regulamentos do Código logo após a sua aprovação (NABUCO, 1997, v. I, p.
132). Ao proteger as mulheres e, em conseqüência, as famílias, e instituir
uma entidade corporativa com competência para interferir em processos
civis, os legisladores do Código deixavam transparecer uma concepção de
Estado ainda apegada à tradição da velha ordem jurídica portuguesa, herdeira
dos princípios do direito romano. Pairava o espectro do Estado tutor das
relações privadas, num sinal de que a transição ideológica não se completara.
Essa organização da justiça em matéria de falências perdurou por
25 anos após a edição do Código Comercial. Um decreto legislativo de
outubro de 1875 extinguiu os tribunais do Comércio, reinstaurando o anti-
go sistema de juntas comerciais, com competência restrita ao registro de

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

empresas24 . Quatro anos antes, o então ministro da Justiça, Nabuco de


Araújo, capitulara a pressões de parlamentares que desejavam o fim do
modelo jurídico-administrativo híbrido dos tribunais do Comércio e anun-
ciara o envio de um projeto (Sessão do Senado do Império, 3/8/1871)
reformulando a justiça de causas comerciais, agora exclusivamente sob a
competência da justiça comum:
Advertido pela experiência, não quero hoje os tribunais de Co-
mércio que instituí em 1855, e não quero esses tribunais por
conformidade com um princípio que constitui o grande
desideratum de nosso povo, isto é, que a jurisdição definitiva no
país só seja exercida por juízes vitalícios.(NABUCO, 1997, v. I, p.
253)
A reforma de 1875 aboliu o colégio de comerciantes com poderes
para instruir processos de falências onde eles próprios poderiam ser parte
interessada. Restaram os dispositivos contidos no Código que protegiam
os interesses das mulheres credoras de bens dotais. Para que a esposa pu-
186 desse reivindicar o resgate do dote na condição de credora de domínio da
massa falida, o Código estabeleceu como condição primordial que esses
bens tivessem sido registrados em repartição pública em até quinze dias
após o casamento. Desconsiderava-se, assim, o costume e a tradição como
prova de direito; instituía-se a burocracia do Estado como o foro adequado
para legitimar as transações entre os indivíduos25 . Ao mesmo tempo, cria-
va-se uma situação sui generis, pois o registro público do comércio fora
instituído pelo Código, em junho de 1850, tendo iniciado suas funções no
ano seguinte. E os casamentos celebrados antes desta data, não estavam
cobertos pela lei? Como deveriam agir os moradores de províncias distan-
tes, onde não houvesse registro público do comércio e uma vez que recorrer
aos tribunais localizados nas principais cidades do litoral era muito onero-
so? E os concubinatos, tão freqüentes na vida social brasileira? A lei era
omissa nestes casos.
A exigência do registro gerava incerteza quanto aos direitos das
mulheres credoras de bens dotais, e por isso os tribunais foram chamados
a se pronunciar sobre o assunto26 . Essa incerteza, porém, só foi reduzida
em 1890, quando a nova lei de falências fixou o procedimento dos tribu-

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nais abolindo a prova do registro administrativo dos bens. Até a lei de


falências de 1890 foram freqüentes os litígios de mulheres contra os gestores
das massas falidas, que argumentavam serem elas credoras inábeis pela au-
sência de escritura dos bens dotais estimados27 .
Se houvesse escritura dos bens, a justiça poderia dar ganho de cau-
sa à mulher, mas isso também dependia da natureza do bem. Caso o dote
tivesse sido concedido na forma de dinheiro, ouro, ou coisa semelhante, o
Código Comercial não previa a recuperação do patrimônio da mulher.
Tampouco se previa que a esposa fosse indenizada pelo mal uso dos bens
dotais, sua alienação indevida, ou mesmo a deterioração do patrimônio por
inépcia do marido.
Afinal os problemas relativos aos direitos das mulheres pelos bens
dotais estimados se restringiam à existência ou não de registro? Então uma
medida administrativa ou uma reforma legal poderia sanar as dúvidas defi-
nitivamente. Vejamos o porquê disso não ter acontecido, uma vez que
credores de domínio, embora prioritários, estavam bastante vulneráveis a
litígios. 187
Tudo começava no velho direito medieval português, que não dis-
tinguia posse de propriedade. O esforço de codificação do século XIX
correu no sentido de separar esses dois institutos. O posseiro estava ampa-
rado no direito natural, ao passo que o proprietário tinha direitos que
decorriam de uma relação contratual chancelada pelo Estado. Aquele que
tem a posse de um bem só a perde se aquele que reivindica o mesmo bem
provar que a coisa lhe pertence. Assim, escreveu um comentarista do direi-
to português, citado por GRINBERG (2002 p. 205)28 :
Título XIII: dos direitos e obrigações que resultam da posse. O
possuidor presume-se senhor da coisa enquanto não se prova o
contrário. Entretanto que outro não prova que a coisa é sua, é o
possuidor desonerado de mostrar o título da sua posse. Em pa-
ridade de direitos é o possuidor da melhor condição que qual-
quer outro. Todo detentor ou possuidor deve ser protegido pela
Justiça contra qualquer violência que pretenda fazer.
Estava o posseiro, portanto, em posição mais favorável do que aquele
que reivindicava a propriedade de um bem. Certamente um problema com
implicações sociais sérias, a exemplo da dificuldade de aplicação da Lei de

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

Terras de 1850, que esbarrou na prática social da posse. Acrescenta, ainda,


Keila GRINBERG (2002, p. 206):
Pelo direito português, e por extensão também pelo brasileiro,
que neste caso havia mantido as regras romanas, a propriedade
só era adquirida no momento em que o comprador tomava pos-
se do bem. Antes de isso acontecer, quem adquiriu algo não po-
dia ser considerado proprietário, ainda que tivesse um contrato
que o provasse.
Ora, a mulher é proprietária do dote estimado, este é um patrimônio
seu que escapa à ação dos credores29, mas o bem de que ela requer a resti-
tuição está de posse do marido, ou de posse da massa falida e cabe a ela o
ônus de provar que o bem lhe pertence. Não importa que o Código Co-
mercial classificasse a mulher casada como credora de domínio pelos bens
dotais estimados, e que as leis de falência do período republicano a tratas-
sem como credora reivindicante, o efeito jurídico era o mesmo. Tratava-se
de um credor com preferência sobre os demais, mas seus direitos não eram
188 certos, dependiam de interpretação dos tribunais30 .
O reivindicante requeria o retorno da posse de algo que era seu.
Para que seu pleito tivesse sucesso era necessário provar a sua qualidade de
proprietário e a existência da coisa reclamada na posse da massa falida.
Também Carvalho de Mendonça considerou incertos os direitos dos
reivindicantes na reforma de 1890. Para ele:
A lei, ora restitui a tais credores a qualidade de proprietários que
haviam perdido, ora esquece a exigência da identidade com a
coisa, criando em vez da reivindicação impossível de uma coisa
que não existe em poder da massa, mais do que um privilégio, já
sobre o produto da venda, já sobre aquilo em que ela fora sub-
rogada, já finalmente sobre o seu valor.
O instituto da reivindicação na falência não se apresenta de for-
ma rigorosa como no direito comum.
A reivindicação na falência desperta quase sempre graves con-
trovérsias. Os interesses em jogo não são para desprezar; de um
lado a massa dos credores esforçando-se por evitar o
depauperamento do ativo da falência, do outro o desejo, aliás

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natural, que experimentam os credores de fugir à lei do dividen-


do. [Isto é, o rateio dos bens do falido.]
Deve, pois, a reivindicação ser exercida com a máxima prudência
para que se evitem as fraudes e abusos, não sendo permitida
além dos limites legais, devendo o juiz, em caso de dúvida, pro-
nunciar-se contra o reivindicante e a favor da massa dos
credores.(MENDONÇA, 1899, v. II, p. 42)
Não pense o leitor que a incerteza com relação ao sucesso da ação
reivindicatória afetava apenas os direitos das mulheres pelos bens dotais
estimados, pois também os fazendeiros de café, quando depositavam seu
produto em consignação nos armazéns das casas comissárias, tornavam-se
credores reivindicantes dos comissários. O que dizer dos estoques de café
compostos pelo blend de mais de um tipo de café de origens diversas?
Como atender aos interesses dos proprietários do café? Restituindo-lhe o
café estocado – mas qual? Oferecendo-lhe o produto da venda? E se os
negócios estivessem embargados por outros credores e a casa comissária
estivesse desestruturada pelo processo de falência? 189
Enfim, as implicações da legislação de falências não diziam respei-
to apenas a grupos excluídos do poder, como as mulheres, afetavam também
grupos de grande força política, como os cafeicultores. Na falta de um
Código Civil que regulasse as relações privadas entre os indivíduos, coube
ao legislador comercial ditar regras casuísticas para solucionar os proble-
mas que surgiam. É o que veremos na próxima seção.

Debêntures
Em contraste com as iniciativas individuais de elaboração de um
corpo coerente de leis regulando relações privadas civis, todas elas mal
sucedidas, a legislação comercial recebeu numerosas, embora controver-
sas, modificações entre a edição do Código Comercial e o advento do regime
republicano (GRINBERG, 2002, p. 315-323). Em verdade, na ausência de um
Código Civil extensível a toda a população, coube às leis comerciais regular
relações privadas entre os indivíduos em situações que, de outra forma,
seriam regidas pelo direito civil, particularmente o de família. Obrigações,
contratos, sucessão, herança, locação, hipotecas, há numerosos exemplos

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

da interferência do direito comercial em áreas próprias do direito civil


(MERCADANTE, 1980, p. 185; GRINBERG, 2001)31 .
O pragmatismo motivou os legisladores a buscarem fórmulas que
amparassem as transações econômicas, desde as já existentes até as modali-
dades de transações comerciais que se desejava difundir no país, pois muitas
iniciativas legais no campo do direito comercial visavam a incentivar o in-
vestimento privado sob determinados arranjos contratuais, como as ações
de sociedades anônimas e debêntures (modalidade de título ao portador).
Assim, importantes modificações nas instituições jurídicas podem se ante-
cipar às relações econômicas, embora se reconheça que, em muitos
momentos, o direito caminha passos atrás das transformações da econo-
mia, como argumenta MERCADANTE (1980, p. 178):
O Direito nem sempre acompanha as transformações do ritmo
das forças produtivas. Os dispositivos conservam-se literalmen-
te, quando na verdade não são mais a mesma instituição jurídica,
só formalidade.
190
Observamos ambas as situações nas mudanças introduzidas nas
prerrogativas das sociedades anônimas e sociedades em comandita, bem
como nos dispositivos relativos aos processos falimentares, entre 1882 e a
primeira década do século XX. Por um lado, a legislação referente a socie-
dades anônimas, especialmente a lei de 1882 e o decreto de 1890, respondeu
a pressões do corpo político buscando criar situações jurídicas novas, com-
patíveis com projetos de política econômica dos responsáveis por sua
elaboração32 . As leis de falência e as que regularam a emissão de títulos,
por outro lado, quase sempre assumiram o caráter casuístico de responder
com medidas disciplinadoras a tendências do mercado.
Retomando a hipótese que enunciamos no início deste ensaio, con-
sideramos que a eficiência da proteção dos direitos de propriedade depende
de haver menor possibilidade de litígio. Assim, os títulos ao portador, como
as debêntures, foram revestidos de proteções adicionais de modo a assegu-
rar o pleno ressarcimento do capital investido em tais papéis. Isto é, já no
período republicano, os litígios, quando houve, quase sempre foram resol-
vidos em favor dos debenturistas porque a justiça entendia que a lei os
amparava frente aos emissores dos títulos33 . Essa forma de transmissão de

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patrimônio foi, portanto, menos sujeita a litígios do que outras, como o


dote.
Isso se deveu a mudanças drásticas na legislação de debêntures,
ocorridas no decurso de poucos anos. Em 1882, ainda não havia consenso
político em torno da necessidade de dotar tais instrumentos de garantias
especiais. A nova lei autorizou as sociedades anônimas a emitir debêntures
como forma de obter capital de terceiros, com prazos dilatados de resgate,
porém, sem a contrapartida de conceder poder de decisão aos emprestadores
(COLEÇÃO Leis do Brasil: Lei 3.150, 4/11/1882, art. 32, e decreto 8.821, de
dezembro de 1882, art. 21). Os debenturistas que emprestavam dinheiro à
sociedade eram autorizados apenas a assistir às assembléias de acionistas,
sem poder votar. Como mínima salvaguarda de seu investimento, podiam
nomear um fiscal para examinar o andamento dos negócios da empresa.
Desse modo, a interferência do debenturista na empresa era pequena e se
tornava irrelevante em caso de liquidação da sociedade anônima, quando
passavam a ser credores sem qualquer preferência sobre os ativos. Eis por-
que, até o advento das reformas republicanas, empréstimos por debêntures 191
foram pouco usados para captar recursos no mercado a fim de financiar
projetos comerciais ou industriais.
A primeira importante modificação nas práticas comerciais relati-
vas às debêntures surgiu no decreto elaborado por Rui Barbosa para reformar
as sociedades anônimas e as comanditas por ações, editado em janeiro de
1890. Essas sociedades puderam, a partir de então, contrair empréstimos,
dentro e fora do país, emitindo títulos cobertos por todo o ativo da empre-
sa, e, em caso de sua dissolução, os portadores de debêntures teriam seu
capital ressarcido antes de todos os demais credores (COLEÇÃO Leis do
Brasil: Decreto 164, 17/1/1890, art. 32).
Surgia uma modalidade de obrigação que assumia caráter de hipo-
teca sem que fossem determinados exatamente que bens serviam de lastro
para o valor nominal do título, pois todos os bens da empresa sustentavam
a emissão das debêntures. O jurista Inglês de Sousa chamou as debêntures
de hipoteca tácita e criticou o rumo das mudanças introduzidas pelos go-
vernos republicanos na matéria (SOUSA, 1898, p.287):
O direito brasileiro dá-lhe [à debênture] um caráter sui generis,
forçoso é reconhecê-lo, que transforma de simples quirógrafo

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

em título preferencial, exercendo o seu privilégio sobre a genera-


lidade da massa e não sobre determinados bens.
O decreto 917, de 1890 [reforma a lei de falências] manda contar
juros em favor das obrigações ao portador admitidas ao passivo
das sociedades comanditárias. Os debenturistas têm por fiança
todos os ativos da sociedade, preferindo a outros quaisquer títu-
los da dívida.
As inovações legais do início da República contribuíram para en-
grossar o anedotário do período do Encilhamento, quando empresas sérias,
e outras nem tanto, inundaram a praça do Rio de Janeiro com papéis
autodenominados debêntures, porém, destituídos dos formalismos exigi-
dos para garantir os direitos dos portadores34 . No entanto, essas práticas
fraudulentas disseram respeito a um conjunto menor das empresas que
levantaram fundos por intermédio do mercado de capitais. Nos anos que
se seguiram à bolha especulativa da capital federal, importantes empreen-
dimentos se valeram do instrumento das debêntures para obter
192 financiamento junto a investidores nacionais e estrangeiros, e os tribunais
brasileiros sustentaram o privilégio dos portadores aos ativos das empre-
sas. As estradas de ferro, por exemplo, haviam promovido emissões de
títulos que tiveram curso nas praças financeiras européias, especialmente
em Londres, e os direitos dos debenturistas foram reconhecidos pelos tri-
bunais brasileiros com o amparo da nova legislação, às vezes com
interferência direta do governo, interessado em preservar o bom relaciona-
mento com os credores internacionais do país.
Um caso célebre, que causou grande controvérsia no meio político
brasileiro, foi o da liquidação da Estrada de Ferro Leopoldina, requerida
por um grupo de debenturistas britânicos, liderados por Edward Herdman,
em 1897. Com a suspensão prolongada do pagamento dos rendimentos
dos debenturistas, Herdman requereu em juízo a liquidação da companhia
obtendo uma sentença favorável que o nomeou síndico do processo de
liquidação por ele representar a maior parte dos credores da ferrovia.
Herdman e o Banco da República passaram a controlar a Leopoldina a
partir de então35 .
Esse foi o desfecho de um litígio iniciado quatro anos antes, quan-
do 581 debenturistas portadores de títulos no valor nominal de 200$000

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mil réis, e 578 portadores de títulos valendo 100$000 mil réis cada um,
solicitaram o embargo da venda dos ativos da Leopoldina à Companhia
Industrial de Melhoramentos do Brasil. Com respeito ao negócio propos-
to, argumenta Inglês de Sousa que alienar bens durante a vigência contratual
de um empréstimo por debêntures não era expressamente proibido pela
legislação, no entanto, os credores podiam pedir a restauração da garantia
da operação, isto é, embargar a transferência de propriedade, ou obter o
pagamento imediato da dívida. Assim, com base nesses pressupostos, os
credores da ferrovia obtiveram ganho de causa em primeira instância, sen-
do a companhia condenada: podia escolher entre manter a fiança do
empréstimo, ou pagar os credores em dinheiro, somando-se juros e custas
judiciais36 .
A multiplicação de casos semelhantes apressou a discussão no Con-
gresso de uma lei que regulasse a emissão de debêntures por sociedades
anônimas, e, inclusive, tratasse do espinhoso assunto do valor dos juros a
serem restituídos aos credores. Surgiu a lei 177A, de setembro de 1893,
debatida calorosamente no Congresso no ano anterior. Essa lei estipulou 193
que, na hipótese de liquidação forçada da S.A., seus debenturistas deveri-
am ser ressarcidos pelo valor de face dos títulos que possuíssem acrescido
de 5% de anuidades e juros por vencer. Não suficiente, os parâmetros dos
acordos entre credores e liquidantes da sociedade anônima foram objeto
de nova regulação, em maio de 1897, ditada pelo calor das pressões dos
credores estrangeiros da Estrada de Ferro Leopoldina (COLEÇÃO Leis do
Brasil: Decreto 2.159, de 22/5/1897). Esse episódio foi comentado por
Carvalho de MENDONÇA (1899, p. 70):
Esse ato do Poder Executivo Federal foi fortemente atacado na
imprensa e no Congresso, como inconstitucional. O que é exato
é que foi uma medida ocasional para servir à liquidação da Com-
panhia Leopoldina e todos conhecem o valor desses regulamen-
tos ad rem.
O privilégio gozado pelas debêntures em caso de dissolução da
sociedade emissora, uma inovação do direito brasileiro na era republicana
plenamente aceito pelos tribunais, foi criticado por juristas, como Hercula-
no Inglês de Sousa:

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

Nossa opinião diverge da adotada no foro. A teoria seguida pe-


los tribunais é que a debênture deve, em caso de liquidação, ser
paga antes de qualquer outro credor, isto é, que todo o acervo
social fica sujeito ao pagamento da debênture.

Antes de tudo, convém destruir o erro muito corrente que su-


põe que toda debênture é uma obrigação de natureza hipotecá-
ria, quando, na verdade, e do texto do decreto n. 164, de 1890, se
vê, a debênture é um título meramente quirografário, preferindo,
embora, a qualquer outra dívida preferencial e obrigação hipote-
cária corre a mesma diferença que entre direito pessoal e direito
real. Sendo assim e dizendo a lei que as debêntures têm por fian-
ça todo o ativo e bens da sociedade, é claro que ela não lhes quis
dar senão essa garantia de fiança, mesmo porque seria absurdo
admitir uma hipoteca que não se fixasse sobre determinados bens
(apud BIOLCHINI, 1919, p. 123).
Em verdade, talvez os casos das estradas de ferro não sejam exem-
194 plares para ilustrar a ausência de risco sobre os direitos de propriedade dos
debenturistas. Algumas falências de ferrovias geraram ruidosos processos
judiciais, que nem sempre contemplaram os interesses dos credores. Isso
porque, não basta um dispositivo legal para garantir plenamente esses di-
reitos. Se considerarmos que as quebras das ferrovias geraram processos
complexos que envolviam atores políticos de peso, como o governo da
União, garantidor dos juros da maior parte das emissões, os governos esta-
duais e credores estrangeiros (bancos e investidores), a organização da justiça
e os arranjos de poder vigentes nos estados interferiram no resultado das
ações, prejudicando os credores, mesmo se eles fossem debenturistas. Por
isso assistimos, durante as três primeiras décadas do século XX, a numero-
sos casos de falências de ferrovias que esbarraram em conflitos de jurisdição:
disputas judiciais se os processos deviam correr na justiça do estado onde
fora dada a concessão, ou se deviam ser julgados em foro privilegiado, por
tribunais superiores situados na Capital Federal. Quase sempre quando a
União era parte interessada no negócio, os processos foram julgados no
Supremo Tribunal Federal, sendo o representante da União nomeado sín-
dico dos bens da empresa em liquidação. Nesses casos, pairava ameaça

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sobre os direitos dos credores dispersos, os portadores de títulos, fossem


brasileiros, fossem estrangeiros37 .
As falências das ferrovias trazem à discussão os aspectos extrínsecos
da legislação reguladora dos direitos de propriedade, isso é, a interferência
dos arranjos políticos momentâneos e da organização do Estado sobre as
garantias desses direitos. Trata-se de um fenômeno que a literatura do Di-
reito & Economia denomina de poder de enforcement, traduzível por poder
de validação efetiva dos direitos assignados no texto legal. Ainda que os
debenturistas de ferrovias pudessem estar sujeitos a tais interferências do
quadro institucional do país, contavam com amparo inequívoco da legisla-
ção para fazerem valer os seus direitos, afinal de contas um instrumento
mínimo para garantir seus interesses.
As debêntures de ferrovias, por essas razões, perderam credibilidade
entre os investidores, entretanto, se observarmos os títulos ao portador
como um instrumento de captação de recursos por empresas privadas –
indústrias e prestadoras de serviços públicos – constatamos que importan-
tes empreendimentos foram realizados com base nessa forma de 195
financiamento. Então as críticas de Inglês de Sousa ao instituto das debên-
tures perdem a força, pois poucos foram os casos de insucesso que
motivaram os debenturistas de empresas industriais a buscar os tribunais.
Favorecendo a aceitação dos títulos pelos investidores no mercado de ca-
pitais bastavam a promessa de privilégio de ressarcimento em caso de
liquidação do negócio e o bom nome comercial e político dos integrantes
da empresa emissora. Esses parecem ter sido os principais atrativos que,
somados ao compromisso de pagamento anual de juros, incentivaram o
investimento em debêntures emitidas por empresas industriais. Na esteira
dessa prática de mercado, a expansão dos negócios da cervejaria Brahma,
no Rio de Janeiro, e também, a da Antártica, em São Paulo, muito deveram
a emissões de debêntures. Outro grupo empresarial de expressão no cená-
rio econômico brasileiro, o grupo Guinle, financiou grandes projetos com
emissões de debêntures38 .
Entre as cervejarias, sabemos que a Brahma contraiu empréstimos
por debêntures em setembro de 1897 (700:000$000), outubro de 1903
(800:000$000), novembro de 1905 (2:000:000$000) e agosto de 1916
(2:500:000$000). Quanto à Antártica, há registro de um empréstimo de

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

6:000:000$000, em janeiro de 1913, cujo intermediário na colocação dos


títulos nos mercados brasileiro e europeu foi o banco Brasilianische Bank
Für Deutschland (MARQUES, 2003, cap. II e IV).
Nos negócios do grupo Guinle, sabemos que a Companhia de Te-
cidos Aliança emitiu um empréstimo de 7:000:000$000 mil réis, em
dezembro de 1926 (Diário Oficial, 26/3/1927 apud MARQUES, 1998b). O
hotel Copacabana Palace também foi erguido com recurso ao mesmo sis-
tema de financiamento, a partir da emissão de títulos no valor de
6:000:000$000, em agosto de 1922 (Diário Oficial, 21/9/1937 apud MAR-
QUES, 1998b, cap. VI). E se considerarmos a Cia. Progresso Industrial,
conhecida como Bangu, como parte integrante da rede de negócios dos
Guinle, dada a proximidade comercial de Guilherme da Silveira –
controlador da Bangu – com Guilherme Guinle – controlador do grupo
de igual nome –, constatamos a mesma prática de levantar empréstimos
por debêntures para sustentar projetos de expansão. Por exemplo, em maio
de 1919, a Bangu emitiu títulos no valor de 9:000:000$000, com o habitual
196 prazo de quinze anos para resgate e pagamento de juros de 8% ao ano
(Diário Oficial, 3/1/1934 apud MARQUES, 1998b, cap. VI).
As garantias legais que revestiam esses títulos ao portador mostra-
ram-se tão adequadas que alguns bancos preferiram conceder financiamento
a empresas através da compra desses papéis, ao invés de conceder emprés-
timos diretos, com garantia hipotecária. Ao menos, esse foi o padrão de
relacionamento estabelecido entre a Brahma, a Antártica e o banco alemão
Brasilianische Bank Für Deutschland, desde os primeiros anos de funcio-
namento de ambas as fábricas. Em contrapartida, o banco Boavista, parte
dos negócios dos Guinle, não participou de nenhuma operação de financi-
amento de projetos do grupo, que foram realizados com capital de terceiros,
levantado na bolsa de valores. O Boavista manteve o perfil de um banco de
depósito, com critérios bastantes conservadores para conceder emprésti-
mos.
Todos os exemplos arrolados apenas insinuam uma realidade
econômica que a historiografia ainda não esclareceu plenamente. Resta-
nos muito a conhecer sobre o mercado de debêntures que envolvia
indústrias, bancos e investidores no início do século XX. O que se sabe é

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que o declínio das transações com debêntures, observado por HABER


(1997;1998) na bolsa de valores do Rio de Janeiro, foi mais acentuado após
a I Guerra Mundial. Antes disso, é provável que uma parte do capital es-
trangeiro ingressado no país entre 1906 e 1914 tenha sido aplicado em
títulos privados, promovendo o crescimento de negócios industriais, en-
quanto que o comportamento do mercado no pós-Guerra permanece mal
esclarecido.
O que teria levado os títulos ao portador a serem menos
comercializados no pós-Guerra? Não teria sido a legislação entre 1890 e
1933 a responsável pelo descrédito gradual desta forma de investimento,
ao contrário, esses parecem ter sido anos de ouro no mercado de títulos ao
portador no Brasil, a despeito da competição dos títulos da dívida pública
pela preferência dos mesmos investidores. Na qualidade de observador
privilegiado, o economista Alexandre Kafka escreveu, em 1946, que as
debêntures haviam deixado de ser um bom investimento com a corrosão
do valor da moeda nacional, fazendo a taxa de inflação superar o rendi-
mento dos juros pré-fixados pagos aos debenturistas. Outra circunstância 197
econômica nociva à credibilidade das debêntures foi a depreciação do va-
lor real dos ativos das empresas emissoras, resultado da crise dos primeiros
anos da década de 1930. Isso levou o governo a baixar, em 1933, novas
regras de conciliação compulsória entre debenturistas e empresas, com cla-
ro prejuízo para os primeiros (KAFKA, 1946):
Finalmente, é preciso mencionar um fator desfavorável no
desenvolvimento das sociedades anônimas públicas: as condições
econômicas do meio lhes dificultam oferecer como instrumento
de inversão outro que não a ação ordinária. A debênture, como
título de renda e valor capital fixo (e, em pequena parte até a ação
preferencial), está sujeita à desvalorização do dinheiro,
infelizmente bastante comum no país. Além disso, a debênture
está prejudicada pelo dispositivo legal que vincula o montante da
sua emissão ao capital nominal, independente de ser realizado
ou não, e o esteve ainda mais, antes de 1938, e a partir de 1933,
na vigência do decreto que estabeleceu a comunhão geral e
necessária dos debenturistas, determinando a lembrança desse
período ainda hoje certo descrédito da debênture. Sobretudo, há

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

e sempre houve, a grande competição dos títulos públicos contra


a debênture.

Considerações finais
A queda em desuso do dote é intrigante. Nazzari atribui maior peso
explicativo às transformações de costumes observadas na sociedade brasi-
leira ao longo do século XIX. A estrutura de poder familiar deu, lentamente,
lugar a indivíduos. Por certo, o modelo de família mudou. Mas a proteção
aos direitos da mulher não sofreu ganhos positivos, ao contrário. Até o
advento do estatuto da mulher casada, em 1962, era indiscutível o jugo do
marido no interior das relações matrimoniais. O dote tinha, ao menos, a
virtude de oferecer à mulher alguma salvaguarda para o futuro, além de
colocá-la em uma posição de maior poder frente ao marido, especialmente
se contasse com o respaldo de seus parentes.
Entretanto, buscar entender o desaparecimento formal de uma prá-
198 tica de longa tradição no meio social, tomando-se por base a transformação
nos costumes, deixa sem resposta questões relativas à evolução dos direitos
de propriedade no quadro institucional do país. Se observarmos, compara-
tivamente, o dote e outras formas de transmissão do patrimônio, veremos
que os legisladores brasileiros optaram por revestir de garantias os detento-
res de outros ativos, que não o dote. Esse permaneceu como uma relíquia
do passado, quando a riqueza era imóvel – propriedades fundiárias, em
grande medida – e havia pouca mobilidade social. As transformações
vivenciadas na economia brasileira requereram inovações institucionais a
fim de que os capitais fossem aplicados, sem restrições, em oportunidades
de investimento mais vantajosas. O dote, por toda a limitação imposta ao
seu detentor, que formalmente apenas usufruía de um bem pertencente à
sua mulher, não era uma forma de propriedade conveniente para os novos
tempos.
O modelo explicativo de Nazzari enfatiza o papel das transforma-
ções dos costumes para a queda em desuso do dote. Ainda que a autora
admita que o dote se apresentava como uma forma de propriedade obsole-
ta para as conveniências do jogo capitalista, a força de sua explicação recai
sobre as transformações no seio da família que tornaram desinteressante a

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perpetuação da prática da concessão do dote (NAZZARI, 2001, p. 263/271).


Parece-nos que falta uma variável importante a esse modelo explicativo: a
lei e seus elaboradores.
Como vimos, a legislação econômica tem um duplo caráter: o de
reagir a inovações de costumes e o de propor novos arranjos contratuais.
Opera no primeiro sentido quando responde a práticas de mercado que
carecem de regulação jurídica, e no segundo sentido, oferece um sistema
de incentivos que alteram as expectativas dos cidadãos cujos interesses são
atingidos pela inovação legal. Se a comunidade política responsável pela
elaboração da legislação brasileira no último quartel do século XIX tendeu
a revestir debêntures e ações com maior proteção, em detrimento do dote
e de outras formas arcaicas de transmissão de propriedade, a legislação
teve papel importante para desincentivar a perpetuação da prática do dote.
Além de criar incentivos para o uso de determinadas formas de patrimônio,
as transformações no espírito da legislação comercial brasileira, observáveis
a partir de 1882, revelam a mudança da concepção do papel do Estado
como entidade reguladora das transações privadas. A lei de sociedades 199
anônimas de 1882 reduziu muito a interferência do Estado na constituição
dessas empresas, e as reformas republicanas de 1890 completaram a obra
das reformas liberais tardias quando conferiram um outro status aos
debenturistas diante de processos de falências. Assim, a obsolescência do
dote como forma de patrimônio não é absoluta, e sim relativa. Apenas o
exame comparativo das garantias oferecidas a outras formas de proprieda-
de que competiam com o dote ilumina a trajetória dessa antiga prática
social.
Poderia ter sido diferente? Envolvidas com outras causas, as mu-
lheres brasileiras não reivindicaram proteção para o seu patrimônio. As
professoras, escritoras e jornalistas que, entre os anos 1870 e 1930, expuse-
ram-se na cena pública em defesas da causa feminina, centraram seus
esforços, primeiro, na luta pelo direito à educação e, segundo, pelo direito
de votar. A obtenção desses dois direitos consumiu toda a capacidade de
mobilização política de três gerações de brasileiras. Não poderíamos, por-
tanto, imputar a elas o descaso com a questão dos direitos de propriedade.

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

Ainda assim, foi de forma silenciosa, sem que vozes tivessem se


levantado em sua defesa, que o dote foi relegado à condição de ser uma
forma de propriedade pouco protegida das vicissitudes do jogo comercial.

Notas
1 Eis alguns exemplos de trabalhos recentemente publicados sobre o assunto: Carmen
DEERE & Magdalena LEÓN, Land and Property Rights in Latin America, Pittsburgh
University Press, 2001; Elizabeth DORE & Maxine MOLYNEUX (eds.), Hidden Histories
of Gender and the State in Latin America, Durham: Duke University Press, 2000. No
Brasil, entre outras, temos as contribuições de Keila GRINBERG (2002) O fiador dos
brasileiros, e de Hebe MATTOS, Raça, escravidão e cidadania no Brasil Monárquico, Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
2 A exemplo da coletânea de ensaios editada por Eduardo ZIMMERMANN (1999): Judicial
Institutions in Nineteenth-Century Latina America, e de extensa produção historiográfica
sobre o papel do liberalismo na construção da nação brasileira
3 Os argumentos de Posner são comentados por George STIGLER (1992) em Law or
Economics?
4 Embora um exemplar da obra Sophysmes, do escritor liberal inglês Jeremy Bentham
pertencesse à biblioteca pessoal de Paulino José Soares de Souza – o Visconde do Uru-
200 guai (1807-1866) – apenas a obra de Benjamin Constant, Cours de politique
constitutionnelle, é mencionada no influente livro do Visconde: Ensaio sobre o Direito
Administrativo (Apud CARVALHO, 2002).
5 Escreveu Thomas HOLLOWAY (1999, p. 66): “Brazilian liberals, and even conservative
nationalists of the Independence period, saw the extant judicial institutions and
procedures both as antiquated relics of a bygone era and as a legacy of colonial
oppression. A dilemma emerged that reflected the contradictions of a liberal ideology
within a highly stratified society held together by political patronage, economic
exploitation and physical coercion.”
6 “La propriété, en sa qualité de convention social, est de la compétence et sous la juridiction
de la société. La société possède sur elle des droits qu’elle n’a point sur la liberté, la vie
et les opinions de se membres.” (CONSTANT, 1997, p. 442)
7 A historiadora portuguesa Maria Beatriz Nizza da SILVA (1993) cita como fonte: Real
Junta do Comércio, Administração de Bens; Arquivo Nacional - Rio de Janeiro.
8 O artigo 353 do Código Comercial trata da liquidação de sociedades comerciais em que
houvesse menores interessados; os artigos 308 e 309 tratam da dissolução de socieda-
des comerciais em função do falecimento de um dos sócios. Um acórdão do tribunal da
Relação de Porto Alegre (uma corte superior de recursos), emitido em setembro de
1883, associado a uma decisão da Relação da Corte (Rio de Janeiro), datada de junho de
1888, constituíam a jurisprudência firmada acerca do processo de liquidação de socie-
dades na existência de herdeiros menores. A questão foi tratada da seguinte forma pelos
tribunais, conforme Salustiano Costa, em nota ao artigo 353 da lei: “Deve proceder ao
juízo do inventário à partilha somente dos bens particulares do casal com exclusão dos
da casa comercial, que só deverão ser sobrepartilhados depois de sua respectiva liquida-
ção com um curador.” (COSTA, 1896, nota 491).

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9 A exemplo da consulta feita a juristas sobre a situação de Maria e João (nomes fictícios),
que viviam separados há vinte anos, período em que ela teria criado sozinha o filho do
casal. Após a morte da mãe, Maria herdou bens de que João tomou posse. A resposta
elaborada por Caetano Alberto Soares à questão sobre os direitos de Maria foi contun-
dente: “Posto que ela não vivia com seu marido, não deixa este por isso de ser cabeça do
casal e nessa qualidade tem o direito incontestável de receber e administrar todos os
bens do mesmo casal. Cabe ao marido a administração de todos os bens.”(RODRIGUES,
1873, p. 274).
10 O decreto republicano que instituiu o casamento civil revigorou a tradição do direito
romano de designar o homem como chefe da família, com o poder de administrar os
bens do casal, fixar residência da família e outras prerrogativas (COLEÇÃO de leis do
Brasil: Decreto N. 181, 24/1/1890).
11 Escreveu o juiz do Supremo Tribunal Federal, Antônio Joaquim Macedo Soares: “o
dote, segurança para a mulher, é uma pêa para o marido, que dele não pode dispor a seu
bel-prazer”.(SOARES)
12 Devido, sobretudo, à resistência das elites em regular a situação civil dos libertos, não
houve consenso mínimo necessário para que fosse elaborado um Código Civil no tem-
po do Império. A regulação dos costumes da vida privada dos cidadãos do país (família
e casamento, por exemplo) permaneceu ao encargo das velhas leis portuguesas, compi-
ladas no século XVII e alteradas posteriormente, nas chamadas Ordenações Filipinas.
As Ordenações regeram questões de ordem privada dos indivíduos até o advento da
República, que decretou um Código Civil provisório em 1890. Este último, vigorou
durante o espaço de tempo em que os juristas discutiram, acidamente, a elaboração de
um corpo definitivo de leis civis do país, finalmente aprovado em 1916 (GRINBERG, 201
2001 e 2002; MERCADANTE, 1980).
13 O senador Clemente Pereira criticou a situação caótica da justiça: “[...] eu fui testemu-
nha, como juiz, de ver causas reformadas duas e três vezes em diversas instâncias, e até
mesmo em grau de revistas, porque os juízes entendiam, uns, que tinham aplicação para
o caso as leis comerciais de uma nação, e outros que eram antes aplicáveis as de outra
nação. Portanto, o comércio muito deve lucrar com a codificação comercial que, redu-
zindo, a um complexo de regras certas e concordes entre si com aplicação às necessidades
das nossas circunstâncias comerciais, deve fazer desaparecer essa incerteza dos julga-
dos por falta de certeza de lei, que é o maior mal que o comércio podia sofrer. E se não
pudemos obter o maior bem, obter algum é diminuir o mal.” (ANAIS DO SENADO DO
IMPÉRIO DO BRASIL, 27/5/1848).
14 As vozes discordantes da proposta de criação dos tribunais comerciais partiam de
parlamentares liberais, que defendiam a autonomia das províncias, contrariamente ao
projeto de centralização política e administrativa que motivava os conservadores, então
no poder. O principal opositor ao projeto de Clemente Pereira, o senador mineiro
Bernardo de Vasconcellos, afirmava ser preferível deixar ao encargo da justiça comum
o julgamento de questões comerciais, a conferir poder a tribunais especiais, como o
Tribunal do Comércio da Corte. Além da distância entre a capital do país e o interior
das províncias submetidas à competência do tribunal situado no Rio de Janeiro, este
seria composto por deputados comerciantes baseados na cidade. A essa proposta, o
senador Vasconcellos objetou que os comerciantes da corte tenderiam a julgar as ques-
tões em conformidade com seus próprios interesses. Para o debate entre Vasconcellos
e Clemente Pereira, veja: ANAIS DO SENADO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 21 e 23/8/1848).
15 O texto do Código, finalmente convertido em lei em junho de 1850, previu a criação de
Tribunais do Comércio na Corte (Rio de Janeiro), na Bahia, em Pernambuco e no

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

Maranhão (MARQUES, 1998a, cap. II).


16 As mulheres comerciantes não podiam votar nem ser votadas nos colégios comerciais,
tampouco podiam ser corretoras, agentes de leilões e intérpretes, segundo o Código
Comercial, Título Único, revigorado pelo Aviso do Ministério da Justiça nº 36, de 25/
1/1881 (apud VIEIRA, 1985).
17 O Tribunal da Real Junta de Comércio e Navegação foi instituído pelo Príncipe Regen-
te D. João VI, logo após a transferência da família real de Lisboa para o Rio de Janeiro,
em 1808. No seu projeto original, a Real Junta funcionava como uma entidade consul-
tiva da Coroa em questões de política econômica e, simultaneamente, como arena de
interesses entre o Estado e os grandes comerciantes estabelecidos na praça do Rio de
Janeiro. Faziam parte da entidade deputados comerciantes indicados pelo Regente, na
sua maioria nascidos em Portugal. Após a Independência, o poder da Real Junta foi
sendo lentamente esvaziado. Uma diferença importante entre o modelo da Real Junta e
os Tribunais do Comércio instituídos pelo Código Comercial era que, nestes últimos,
apenas comerciantes brasileiros podiam fazer parte (MARQUES, 1998a).
18 O acórdão revisor da Relação da Corte, n. 6.170, de 7/6/1862, revigorado pela decisão
do Tribunal do Comércio do Maranhão, de 18/12/1862, estabeleceu o entendimento
de que os juízes de órfãos não eram competentes para proceder à liquidação de uma
sociedade comercial (apud COSTA, 1896, nota 491).
19 O edital do Tribunal do Comércio da capital do Império, de 12/9/1855, estabeleceu a
relação dos curadores fiscais, depositários de bens e administradores das massas falidas
(COSTA, 1896, p. 912).
202 20 Accórdão da Relação da Corte, n. 6 492, 26/6/1888 (apud COSTA, 1896, comentário ao
art. 310).
21 Houve tentativa de se conferir aos Tribunais do Comércio poderes para julgar recursos
dos despachos de qualificação de falência. Mas o ministério da Justiça do Império não
admitiu atribuir tanto poder a uma entidade composta por comerciantes. Apelações,
onde coubesse, eram da alçada dos tribunais da Relação (Aviso 271/1865, apud COSTA,
1896, nota 1.290).
22 Decidiu a Relação da Corte, em 12/12/1879: “a falência do negociante falecido não
pode ser decretada sem exibição dos títulos exigíveis e não pagos antes do falecimento,
e sem justificação da insolvência ao tempo da morte, com citação da viúva, cabeça do
casal” (COSTA, 1896, nota 1265).
23 O senador José Maya, em 2/6/1848, apresentou a seguinte emenda ao projeto de lei
em discussão: “Art. As somas doadas ou legadas à mulher por testamento ou doação,
com cláusula expressa de que seriam excluídas da comunhão, tendo sido empregadas
em bens de raiz, títulos, apólices ou outros objetos certos, e constando do contrato da
sua aquisição a declaração do emprego expressamente estipulada, e provando-se a ori-
gem de tais somas por inventário ou por outro documento autêntico, a mulher reaverá
para si esses bens, títulos ou objetos certos em que se verificou o emprego.” Porém, se
estes mesmos bens estivessem sob encargos de hipotecas ou dívidas, a mulher respon-
deria por elas. Em outra parte da emenda, Maya determinou a qualificação da esposa
entre os credores: “Art. A mulher do falido entrará na classe dos credores hipotecários
pelos bens dotais, consumidos ou alheados ao tempo da quebra e arras prometidos pela
escritura, não excedendo à taxa legal.” (ANAIS DO SENADO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 2/6/
1848)
24 Decreto legislativo n º 2.662, 9/10/1875 (MARQUES, 1998a, cap. II).

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25 Código Comercial, art. 874, § VII.


26 O jurista COSTA (1896) criticou o Código por deixar de considerar a mulher como
credora de domínio se os bens dotais não fossem registrados em até 15 dias após o
casamento (COSTA, 1896, p. 485). Um accórdão do Tribunal da Corte, de 5/12/1861,
estabeleceu que o privilégio do dote frente à massa falida permanecia, ainda que os bens
dotais tivessem sido registrados após a criação do registro público do comércio. No
mesmo sentido, decidiu o Tribunal do Recife, em 1866: “Para considerar a mulher casa-
da como credora de domínio pelos bens dotais, nenhuma outra condição exige-se senão
serem os títulos lançados no registro do Tribunal do Comércio dentro de quinze dias
subseqüentes à celebração do casamento.” Accórdão revisor do Tribunal do Comércio
do Recife, 8/10/1866 (apud COSTA, 1895, p. 485).
27 Veja a sentença favorável à viúva Anna Arantes, exarada por um tribunal de Recife, em
20/7/1882 (O DIREITO, v. 55, maio/ago., 1891, p. 177-9). Escreveu José Xavier Carvalho
de MENDONÇA (1899, p. 230) sobre o assunto: “o decreto 917 acabou com todas as
questões do Código Comercial. Hoje, não é necessário, para que a mulher possa
reivindicar os bens dotais e parafernais possuídos antes do casamento, que os respectivos
títulos se achem lançados no registro do comércio dentro de 15 dias após o casamento”.
28 José Correia Telles, Digesto português, p.86. Não consta indicação de local de edição.
29 Frase do jurista Antônio Joaquim Macedo Soares, Reflexões sobre o processo de falência
(O DIREITO, v. 51, p. 323).
30 Credor reivindicante não é credor da massa falida, ele reivindica restituição de bem seu
em poder do falido. O direito dos reivindicantes não é certo, depende de interpretação
(DINIZ, 1924, p. 153). 203
31 GRINBERG (2002) argumenta que não apenas a escravidão foi um empecilho para a
codificação das leis civis no Brasil. Também outras questões de difícil solução, como a
relação entre o Estado e a Igreja, retardaram a elaboração de um conjunto coerente de
leis nesse campo do direito.
32 Trataram de sociedades anônimas: a lei 3.150, de 4/11/1882, complementada pelo
decreto n. 8.821, de 30/12/1882, o decreto n. 164, de 17/1/1890, e o decreto n. 434, de
4/7/1891. Modificaram o instituto das falências: o decreto 917, de 24/10/1890, uma
lei de 1902, e a lei 2.024, de 17/12/1908. Alteraram os critérios e os requisitos para a
emissão de debêntures: a legislação de sociedades anônimas (1882, 1890, 1891), o de-
creto legislativo 177A, de setembro de 1893, e o decreto 2.159, de 22/5/1897.
33 Tome-se o caso da falência da Cervejaria Bavária, situada no bairro da Tijuca, Rio de
Janeiro. No segundo semestre de 1898, a Bavária deixou de pagar os juros que devia a
debenturistas. Assim, os maiores credores, o Banco de Depósitos e Descontos e a Haupt
Biehn & Cia. requereram a falência da empresa e foram nomeados síndicos da massa.
Em novembro de 1899, a Cervejaria Brahma levantou um empréstimo junto ao banco
Brasilianische Bank Für Deutschland (o único empréstimo direto registrado nos qua-
renta anos da história da empresa examinados) no valor de dez mil libras a fim de
comprar o controle da Bavária no leilão da massa falida desta empresa. A Brahma
assumiu a Bavária e pagou o que devia ao banco alemão em agosto de 1901. Em verda-
de, o processo não correu de forma perfeita, pois os acionistas da Bavária chegaram a
ganhar na justiça o direito de recuperar o capital que já havia integralizado na empresa,
certamente, uma irregularidade legal. No entanto, é notório que o desfecho do caso
Bavária se deu de forma rápida e razoavelmente adequada aos interesses dos seus mai-
ores credores (BRAHMA, cx. 67, apud MARQUES, 2003, p. 54). Agradeço a Aldo Musacchio

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Dote e falências na legislação comercial brasileira, 1850 a 1890

a cessão de informações sobre o processo falimentar da Bavária, obtidas no Arquivo


Nacional.
34 SOUSA (1898, p. 49) comenta a ausência de escrituração do montante da emissão, entre
outras irregularidades.
35 Arquivo Nacional, Fundo Corte de Apelação: processo relativo à Estrada de Ferro
Leopoldina, 1897 (apud MUSACCHIO, 2001, p. 10).
36 Accórdão da Câmara de Comércio do Tribunal Civil e Criminal, 13/10/1893 (apud
SOUSA, 1898, p. 511).
37 5ª Câmara da Corte de Apelação. Agravo de Petição n. 757. Agravantes: o Banco do
Brasil e outro, síndicos da liquidação forçada da Cia. Sorocabana. Agravados: o Banco
Norte América e outros credores dessa liquidação forçada. Memorial dos agravados.
Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1924. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Falência
da São Paulo Northern Railroad Company (Araraquara). Conflito de jurisdição n. 784.
Suscitante: a Cia. Comercial Construtora. Suscitado: o juiz da 1ª Vara Cível e Comercial
de São Paulo (JORNAL DO COMÉRCIO, 1929).
38 As pesquisas do historiador norte-americano Stephen HABER (1997; 1998) corroboram
o uso disseminado de empréstimos por debêntures para financiar projetos industriais.
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Econômica, v. 3, n. 2, p. 173-206, dezembro 2001 - Impressa em setembro 2003

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