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Introdução
Existe um crescente interesse pela história dos direitos de grupos
sociais parcialmente inseridos na sociedade política das nações emergentes
do processo de independência na América Latina. Esse interesse tem leva-
do estudiosos a investigar os direitos individuais de mulheres, índios e
ex-escravos, em abordagens que conjugam o exame formal da legislação e
a análise das práticas sociais capazes de confirmar as garantias prescritas na
lei, ou mesmo de invalidá-las1 . Ao escolher investigar grupos marginaliza-
dos ou detentores de menor poder nas sociedades patriarcais, historiadores
têm se deparado com a outra face das instituições legais. Assim, o contras-
te entre os direitos garantidos aos homens livres e aos grupos sociais
francês, nos quais os comerciantes pudessem tomar parte, desde que fos-
sem brasileiros natos14 . Surgiram, assim, os tribunais do comércio, na capital
do país e nas principais praças comerciais, onde existissem tribunais da
Relação. Estes últimos eram cortes de recursos inscritas na organização
judiciária regular15 .
Dos Tribunais do Comércio participavam comerciantes eleitos por
um colégio de pares, que não incluíam mulheres, ainda que fossem elas
comerciantes. Aliás, não podiam elas votar nem serem votadas no proces-
so de escolha de deputados nos tribunais16 . Contudo, a situação das famílias
nos processos sucessórios não foi ignorada pelos parlamentares. Deseja-
vam os senadores que o novo modelo institucional fosse destituído dos
vícios do sistema então em vigor, em que juízes de órfãos se imiscuíam na
dissolução das sociedades comerciais e as antigas juntas comerciais indica-
vam curadores de processos de herança que recorrentemente prejudicavam
os interesses das viúvas e dos filhos dos comerciantes. Um dos objetivos,
afirmou Clemente Pereira, era evitar o desvio de patrimônio das famílias
182 em processos sucessórios:
Demais, não estão ainda presentes à nossa lembrança os desgra-
çados exemplos de nomeações feitas nos nossos dias pela junta
do comércio? Não temos conhecimento de administradores que
se levantaram com os seus bens administrados, e os herdeiros
ficaram prejudicados, ou antes roubados? Não vimos nós
eternizadas essas administrações? Estes exemplos, quando a boa
razão não aconselhasse o contrário, destroem a opinião que pro-
põe de em todos os casos a nomeação ser feita por uma autori-
dade judiciária comercial (ANAIS DO SENADO DO IMPÉRIO, 18/8/
1848).
Ao desmontar o jogo de interesses contido na organização da anti-
ga Real Junta do Comércio, abria-se espaço para o estabelecimento de uma
nova correlação de forças competente para intervir em questões relativas à
vida comercial17 . Os grandes comerciantes estabelecidos na Corte tiveram,
assim, um instrumento importante para interferir no andamento da justiça,
em defesa de seus próprios interesses.
Os comerciantes matriculados, isto é, os registrados no Tribunal
do Comércio, passaram a ter foro privilegiado em caso de falência. Os não
Debêntures
Em contraste com as iniciativas individuais de elaboração de um
corpo coerente de leis regulando relações privadas civis, todas elas mal
sucedidas, a legislação comercial recebeu numerosas, embora controver-
sas, modificações entre a edição do Código Comercial e o advento do regime
republicano (GRINBERG, 2002, p. 315-323). Em verdade, na ausência de um
Código Civil extensível a toda a população, coube às leis comerciais regular
relações privadas entre os indivíduos em situações que, de outra forma,
seriam regidas pelo direito civil, particularmente o de família. Obrigações,
contratos, sucessão, herança, locação, hipotecas, há numerosos exemplos
mil réis, e 578 portadores de títulos valendo 100$000 mil réis cada um,
solicitaram o embargo da venda dos ativos da Leopoldina à Companhia
Industrial de Melhoramentos do Brasil. Com respeito ao negócio propos-
to, argumenta Inglês de Sousa que alienar bens durante a vigência contratual
de um empréstimo por debêntures não era expressamente proibido pela
legislação, no entanto, os credores podiam pedir a restauração da garantia
da operação, isto é, embargar a transferência de propriedade, ou obter o
pagamento imediato da dívida. Assim, com base nesses pressupostos, os
credores da ferrovia obtiveram ganho de causa em primeira instância, sen-
do a companhia condenada: podia escolher entre manter a fiança do
empréstimo, ou pagar os credores em dinheiro, somando-se juros e custas
judiciais36 .
A multiplicação de casos semelhantes apressou a discussão no Con-
gresso de uma lei que regulasse a emissão de debêntures por sociedades
anônimas, e, inclusive, tratasse do espinhoso assunto do valor dos juros a
serem restituídos aos credores. Surgiu a lei 177A, de setembro de 1893,
debatida calorosamente no Congresso no ano anterior. Essa lei estipulou 193
que, na hipótese de liquidação forçada da S.A., seus debenturistas deveri-
am ser ressarcidos pelo valor de face dos títulos que possuíssem acrescido
de 5% de anuidades e juros por vencer. Não suficiente, os parâmetros dos
acordos entre credores e liquidantes da sociedade anônima foram objeto
de nova regulação, em maio de 1897, ditada pelo calor das pressões dos
credores estrangeiros da Estrada de Ferro Leopoldina (COLEÇÃO Leis do
Brasil: Decreto 2.159, de 22/5/1897). Esse episódio foi comentado por
Carvalho de MENDONÇA (1899, p. 70):
Esse ato do Poder Executivo Federal foi fortemente atacado na
imprensa e no Congresso, como inconstitucional. O que é exato
é que foi uma medida ocasional para servir à liquidação da Com-
panhia Leopoldina e todos conhecem o valor desses regulamen-
tos ad rem.
O privilégio gozado pelas debêntures em caso de dissolução da
sociedade emissora, uma inovação do direito brasileiro na era republicana
plenamente aceito pelos tribunais, foi criticado por juristas, como Hercula-
no Inglês de Sousa:
Considerações finais
A queda em desuso do dote é intrigante. Nazzari atribui maior peso
explicativo às transformações de costumes observadas na sociedade brasi-
leira ao longo do século XIX. A estrutura de poder familiar deu, lentamente,
lugar a indivíduos. Por certo, o modelo de família mudou. Mas a proteção
aos direitos da mulher não sofreu ganhos positivos, ao contrário. Até o
advento do estatuto da mulher casada, em 1962, era indiscutível o jugo do
marido no interior das relações matrimoniais. O dote tinha, ao menos, a
virtude de oferecer à mulher alguma salvaguarda para o futuro, além de
colocá-la em uma posição de maior poder frente ao marido, especialmente
se contasse com o respaldo de seus parentes.
Entretanto, buscar entender o desaparecimento formal de uma prá-
198 tica de longa tradição no meio social, tomando-se por base a transformação
nos costumes, deixa sem resposta questões relativas à evolução dos direitos
de propriedade no quadro institucional do país. Se observarmos, compara-
tivamente, o dote e outras formas de transmissão do patrimônio, veremos
que os legisladores brasileiros optaram por revestir de garantias os detento-
res de outros ativos, que não o dote. Esse permaneceu como uma relíquia
do passado, quando a riqueza era imóvel propriedades fundiárias, em
grande medida e havia pouca mobilidade social. As transformações
vivenciadas na economia brasileira requereram inovações institucionais a
fim de que os capitais fossem aplicados, sem restrições, em oportunidades
de investimento mais vantajosas. O dote, por toda a limitação imposta ao
seu detentor, que formalmente apenas usufruía de um bem pertencente à
sua mulher, não era uma forma de propriedade conveniente para os novos
tempos.
O modelo explicativo de Nazzari enfatiza o papel das transforma-
ções dos costumes para a queda em desuso do dote. Ainda que a autora
admita que o dote se apresentava como uma forma de propriedade obsole-
ta para as conveniências do jogo capitalista, a força de sua explicação recai
sobre as transformações no seio da família que tornaram desinteressante a
Notas
1 Eis alguns exemplos de trabalhos recentemente publicados sobre o assunto: Carmen
DEERE & Magdalena LEÓN, Land and Property Rights in Latin America, Pittsburgh
University Press, 2001; Elizabeth DORE & Maxine MOLYNEUX (eds.), Hidden Histories
of Gender and the State in Latin America, Durham: Duke University Press, 2000. No
Brasil, entre outras, temos as contribuições de Keila GRINBERG (2002) O fiador dos
brasileiros, e de Hebe MATTOS, Raça, escravidão e cidadania no Brasil Monárquico, Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
2 A exemplo da coletânea de ensaios editada por Eduardo ZIMMERMANN (1999): Judicial
Institutions in Nineteenth-Century Latina America, e de extensa produção historiográfica
sobre o papel do liberalismo na construção da nação brasileira
3 Os argumentos de Posner são comentados por George STIGLER (1992) em Law or
Economics?
4 Embora um exemplar da obra Sophysmes, do escritor liberal inglês Jeremy Bentham
pertencesse à biblioteca pessoal de Paulino José Soares de Souza o Visconde do Uru-
200 guai (1807-1866) apenas a obra de Benjamin Constant, Cours de politique
constitutionnelle, é mencionada no influente livro do Visconde: Ensaio sobre o Direito
Administrativo (Apud CARVALHO, 2002).
5 Escreveu Thomas HOLLOWAY (1999, p. 66): Brazilian liberals, and even conservative
nationalists of the Independence period, saw the extant judicial institutions and
procedures both as antiquated relics of a bygone era and as a legacy of colonial
oppression. A dilemma emerged that reflected the contradictions of a liberal ideology
within a highly stratified society held together by political patronage, economic
exploitation and physical coercion.
6 La propriété, en sa qualité de convention social, est de la compétence et sous la juridiction
de la société. La société possède sur elle des droits quelle na point sur la liberté, la vie
et les opinions de se membres. (CONSTANT, 1997, p. 442)
7 A historiadora portuguesa Maria Beatriz Nizza da SILVA (1993) cita como fonte: Real
Junta do Comércio, Administração de Bens; Arquivo Nacional - Rio de Janeiro.
8 O artigo 353 do Código Comercial trata da liquidação de sociedades comerciais em que
houvesse menores interessados; os artigos 308 e 309 tratam da dissolução de socieda-
des comerciais em função do falecimento de um dos sócios. Um acórdão do tribunal da
Relação de Porto Alegre (uma corte superior de recursos), emitido em setembro de
1883, associado a uma decisão da Relação da Corte (Rio de Janeiro), datada de junho de
1888, constituíam a jurisprudência firmada acerca do processo de liquidação de socie-
dades na existência de herdeiros menores. A questão foi tratada da seguinte forma pelos
tribunais, conforme Salustiano Costa, em nota ao artigo 353 da lei: Deve proceder ao
juízo do inventário à partilha somente dos bens particulares do casal com exclusão dos
da casa comercial, que só deverão ser sobrepartilhados depois de sua respectiva liquida-
ção com um curador. (COSTA, 1896, nota 491).
9 A exemplo da consulta feita a juristas sobre a situação de Maria e João (nomes fictícios),
que viviam separados há vinte anos, período em que ela teria criado sozinha o filho do
casal. Após a morte da mãe, Maria herdou bens de que João tomou posse. A resposta
elaborada por Caetano Alberto Soares à questão sobre os direitos de Maria foi contun-
dente: Posto que ela não vivia com seu marido, não deixa este por isso de ser cabeça do
casal e nessa qualidade tem o direito incontestável de receber e administrar todos os
bens do mesmo casal. Cabe ao marido a administração de todos os bens.(RODRIGUES,
1873, p. 274).
10 O decreto republicano que instituiu o casamento civil revigorou a tradição do direito
romano de designar o homem como chefe da família, com o poder de administrar os
bens do casal, fixar residência da família e outras prerrogativas (COLEÇÃO de leis do
Brasil: Decreto N. 181, 24/1/1890).
11 Escreveu o juiz do Supremo Tribunal Federal, Antônio Joaquim Macedo Soares: o
dote, segurança para a mulher, é uma pêa para o marido, que dele não pode dispor a seu
bel-prazer.(SOARES)
12 Devido, sobretudo, à resistência das elites em regular a situação civil dos libertos, não
houve consenso mínimo necessário para que fosse elaborado um Código Civil no tem-
po do Império. A regulação dos costumes da vida privada dos cidadãos do país (família
e casamento, por exemplo) permaneceu ao encargo das velhas leis portuguesas, compi-
ladas no século XVII e alteradas posteriormente, nas chamadas Ordenações Filipinas.
As Ordenações regeram questões de ordem privada dos indivíduos até o advento da
República, que decretou um Código Civil provisório em 1890. Este último, vigorou
durante o espaço de tempo em que os juristas discutiram, acidamente, a elaboração de
um corpo definitivo de leis civis do país, finalmente aprovado em 1916 (GRINBERG, 201
2001 e 2002; MERCADANTE, 1980).
13 O senador Clemente Pereira criticou a situação caótica da justiça: [...] eu fui testemu-
nha, como juiz, de ver causas reformadas duas e três vezes em diversas instâncias, e até
mesmo em grau de revistas, porque os juízes entendiam, uns, que tinham aplicação para
o caso as leis comerciais de uma nação, e outros que eram antes aplicáveis as de outra
nação. Portanto, o comércio muito deve lucrar com a codificação comercial que, redu-
zindo, a um complexo de regras certas e concordes entre si com aplicação às necessidades
das nossas circunstâncias comerciais, deve fazer desaparecer essa incerteza dos julga-
dos por falta de certeza de lei, que é o maior mal que o comércio podia sofrer. E se não
pudemos obter o maior bem, obter algum é diminuir o mal. (ANAIS DO SENADO DO
IMPÉRIO DO BRASIL, 27/5/1848).
14 As vozes discordantes da proposta de criação dos tribunais comerciais partiam de
parlamentares liberais, que defendiam a autonomia das províncias, contrariamente ao
projeto de centralização política e administrativa que motivava os conservadores, então
no poder. O principal opositor ao projeto de Clemente Pereira, o senador mineiro
Bernardo de Vasconcellos, afirmava ser preferível deixar ao encargo da justiça comum
o julgamento de questões comerciais, a conferir poder a tribunais especiais, como o
Tribunal do Comércio da Corte. Além da distância entre a capital do país e o interior
das províncias submetidas à competência do tribunal situado no Rio de Janeiro, este
seria composto por deputados comerciantes baseados na cidade. A essa proposta, o
senador Vasconcellos objetou que os comerciantes da corte tenderiam a julgar as ques-
tões em conformidade com seus próprios interesses. Para o debate entre Vasconcellos
e Clemente Pereira, veja: ANAIS DO SENADO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 21 e 23/8/1848).
15 O texto do Código, finalmente convertido em lei em junho de 1850, previu a criação de
Tribunais do Comércio na Corte (Rio de Janeiro), na Bahia, em Pernambuco e no