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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

ADRIANA PINTO FIGUEIREDO

Representações da cultura brasileira contemporânea em

materiais didáticos de PLE

Niterói
2009
ADRIANA PINTO FIGUEIREDO

Representações da cultura brasileira contemporânea em

materiais didáticos de PLE

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós -graduação em Letras da
Universidade Federal Fluminense, na Área
de Concentração Estudos de Linguagem,
Linha de Pesquisa Ensino e Aprendizagem
de Línguas, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor
em Letras.

Orientadora: Profª. Doutora Norimar Júdice

Niterói
2009
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

R484 Ribeiro, Adriana Pinto Figueiredo.


Representações da cultura brasileira contemporânea em materiais
didáticos de PLE / Adriana Pinto Figueiredo Ribeiro. – 2009.
221 f.
Orientador: Norimar Júdice.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras, 2009.
Bibliografia: f. 193-201.

1. Língua portuguesa - Estudo e ensino - Falante estrangeiro. 2.


Cultura brasileira - Século XX. 3. Material didático. I. Júdice, Norimar.
II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD 469.0202
ADRIANA PINTO FIGUEIREDO

Representações da cultura brasileira contemporânea em

materiais didáticos de PLE

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós -graduação em Letras da
Universidade Federal Fluminense, na Área
de Concentração Estudos de Linguagem,
Linha de Pesquisa Ensino e Aprendizagem
de Línguas, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor
em Letras.

Aprovada por:

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________
Profª. Drª Norimar Júdice - Orientadora
Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________________________
Profª. Drª Patrícia Maria Campos de Almeida
Universidade Federal do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________
Profª. Drª. Regina Dell’ Isola
Universidade Federal de Minas Gerais

______________________________________________________________________
Profª. Drª Lygia Maria Gonçalves Trouche
Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________________________
Profª. Drª Rosane Santos Mauro Monnerat
Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________________________
Prof. Drª Adriana Leite do Prado Rebello - Suplente
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________
Profª. Drª. Beatriz dos Santos Feres – Suplente
Universidade Federal Fluminense
Agradecimentos

À minha orientadora Norimar Júdice, pela paciência, disponibilidade, respeito e


profissionalismo excepcionais durante todos os momentos de orientação deste
trabalho;

Aos professores que participaram da Comissão examinadora;

Aos funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da


UFF, pelo apoio administrativo, pela dedicação e atenção;

A todos os colegas com quem tive oportunidade de conviver ao longo do curso e


no Programa de Português para Estrangeiros da UFF, em especial à Pedrina
Barros, Ana Maria Carvalho e Adriana Rebello , pela positividade, o carinho e o
estímulo que sempre me transmitiram;

A Rodrigo, pelo amor, paciência, compreensão e pelo suporte técnico nos


momentos cruciais;

Aos meus pais, meu irmão Breno, minha irmã Bianca, minhas irmãs
emprestadas Letícia e Ana Paula e minha sobrinha Juliana, pelo amor e amparo
em todos os momentos, trazendo a estabilidade e a motivação de que eu
precisava para realizar este trabalho.
RESUMO

Este estudo investiga a abordagem da cultura brasileira contemporânea no


ensino de Português Língua Estrangeira (PLE), por meio da análise de tópicos
culturais contidos em materiais didáticos (MDs) editados no Brasil. Foi
pesquisado, dentre os livros-texto publicados nas últimas duas décadas, um
conjunto de obras de mesma autoria e direcionadas a públicos-alvo semelhantes
a fim de que fossem comparadas a seleção e abordagem de seus componentes
culturais. A avaliação das amostras selecionadas nesses materiais revelou o
início de um processo de vinculação da escolha e do enfoque de seus conte údos
a paradigmas derivados de teorias de representação cultural surgidas no
contexto da recente intensificação da globalização, a partir dos anos 90.

PALAVRAS-CHAVE
Português para Estrangeiros; Cultura brasileira contemporânea; Materiais
didáticos.
ABSTRACT

This study examines the way Brazilian contemporary culture is approached in the
teaching of Portuguese as a Foreign Language, through the analysis of cultural
components from coursebooks edited in Brazil. It was researched, among the
materials published in the last two decades, a group of textbooks by the same
authors and directed to similar kinds of public, so that the selection and approach
of their cultural components could be compared.The evaluation of the samples
selected from these materials revealed the beginning of a process in which their
cultural components are approached in accordance with paradigms established in
recent theories of cultural representation.These theories have been generated
since the 90´s, in the context of the so called latest period of globalization.

KEYWORDS

Portuguese for foreigners, Brazilian contemporary culture, Materials for language


teaching.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 09
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 14
2.1 O DESENVOLVIMENTO DA NOÇÃO DE CULTURA NAS CIÊNCIAS
SOCIAIS 15
2.1.1 A origem social da palavra “Cultura” 17
2.1.2 O debate franco-alemão sobre a cultura 19
2.1.3 O surgimento do conceito científico de cultura 21
2.2 A AMPLIAÇÃO DE FRONTEIRAS NO DESENVOLVIMENTO
DOS ESTUDOS SOBRE CULTURA 26
2.3 OS ESTUDOS LATINO-AMERICANOS DE CULTURA 36
2.4 ALGUNS USOS DA CULTURA NA ERA GLOBAL 39
2.5 DEBATES SOBRE A CULTURA NA ERA GLOBAL 42
2.6 CULTURA E IDENTIDADE 53
2.7 ABORDAGENS CULTURAIS NO ENSINO DE LEs 70
3 O CONTEXTO SOCIOEDUCACIONAL E POLÍTICO EM QUE
A PESQUISA SE INSERE 81
3.1 O QUE DESEJAMOS COMUNICAR 93
4 METODOLOGIA 99
5 ANÁLISE DE DADOS 105
5.1 A ABORDAGEM DE TÓPIC OS CULTURAIS EM BEM-VINDO! –
A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO DA COMUNICAÇÃO 105
5.1.1 Descrição dos tópicos selecionados 105
5.1.2 Resumos dos textos 106
5.1.2.1 Textos I e II : Quem Somos Afinal (1) e (2) ? 106
5.1.2.2 Texto III : Literatura Brasileira 108
5.1.2.3 Texto IV : Música Popular 110
5.1.2.4 Texto V : O Folclore Brasileiro 113
5.1.2.5 Texto VI : Preferência Nacional 116
5.1.2.6 Texto VII : (sem título) - artigo sobre eventos folclóricos nacionais 117
5.1.2.7 Texto VIII : (sem título) - texto sobre festivais
de premiação dos gêneros de arte 118
5.1.2.8 Texto IX : Carnaval 119
5.1.3 Análise dos textos 121
5.1.3.1 Textos I e II : Quem Somos Afinal (1) e (2) ? 125
5.1.3.2 Textos III e IV : Literatura Brasileira e Música Popular 133
5.1.3.3 Textos V, VI e VII : O Folclore Brasileiro, Preferência
Nacional e artigo sobre eventos folclóricos 138
5.1.3.4 Texto VIII : (sem título) - texto sobre festivais
de premiação dos gêneros de arte 143
5.1.3.5 Texto IX : Carnaval 145
5.2 A ABORDAGEM DE TÓPIC OS CULTURAIS EM PANORAMA BRASIL –
ENSINO DO PORTUGUÊS DO MUNDO DOS NEGÓCIOS 149
5.2.1 Descrição dos tópicos selecionados 149
5.2.2 Resumos dos textos 150
5.2.2.1 Texto I : Amazônia – Desenvolvimento Sustentável 150
5.2.2.2 Texto II : (sem título) – texto sobre a criação de um
espaço de cinema comunitário 151
5.2.2.3 Texto III : Iguaria Regional Vence Barreira Geográfica
e Vira Destaque em Restaurantes do Rio e SP 152
5.2.2.4 Texto IV : Agricultura Familiar 153
5.2.2.5 Texto V : Nosso Cardápio em Cordel 153
5.2.2.6 Texto VI : (sem título) – artigo sobre a recente ampliação 154
comercial da marca Cachaça 51
5.2.2.7 Texto VII : (sem título) – entrevista com a artesã
responsável pela Flor de Concha 155
5.2.2.8 Texto VIII : (sem título) – texto sobre a criação de um
pequeno negócio para a comercialização de tecidos bordados
artesanalmente 156
5.2.2.9 Texto IX : Angola – Onde o Brasil Aprendeu a Gingar 156
5.2.2.10 Texto X : Daniella Zylbersztajn – Tataraneta e Neta
de Fabricantes de Bolsas, Cria Objetos de Desejo 157
5.2.2.11 Texto XI : O ‘Design’ com Ingrediente de Sucesso 158
5.2.2.12 Texto XII : A Dança Brasileira Conquistando Espaços 159
5.2.2.13 Texto XIII : (sem título) – texto sobre a integração da imigrante
alemã Gunhild Kruck ao Brasil por meio das artes plásticas 160
5.2.3 Análise dos textos 161
5.2.3.1 Texto I : Amazônia – Desenvolvimento Sustentável ;
e Texto II : (sem título) - texto sobre o empreendedorismo
de José Luiz Zagati na criação de um espaço de cinema comunitário 169
5.2.3.2 Textos III e IV : Iguaria Regional Vence Barreira
Geográfica ... e Agricultura Familiar ; Texto V : Nosso Cardápio em
Cordel ; e Texto VI: artigo sobre a recente ampliação da marca Cachaça 51 171
5.2.3.3 Texto VII : (sem título) - entrevista com a artesã que
idealizou a Flor de Concha ; Texto VIII : (sem título) – texto sobre
a criação de um pequeno negócio para a comercialização de
tecidos bordados artesanalmente 174
5.2.3.4 Texto IX : Angola – Onde o Brasil Aprendeu a Gingar 175
5.2.3.5 Texto X : Daniella Zylbersztajn – Tataraneta e Neta de Fabricantes
de Bolsas, Cria Objetos de Desejo ; Texto XI : O ‘Design’ com
Ingrediente de Sucesso 176
5.2.3.6 Texto XII : A Dança Brasileira Conquistando Espaços 177
5.2.3.7 Texto XIII : (sem título) – texto sobre a integração de
uma imigrante alemã ao Brasil por meio das artes plásticas 179
5.3 DA ABORDAGEM CULTURAL DE ESTRUTURA
NACIONAL À REPRESENTAÇÃO CULTURAL CONTEMPORÂNEA 182
6 CONCLUSÃO 189
REFERÊNCIAS 193
ANEXOS 202
9

2 INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a área de ensino de línguas estrangeiras (LEs) tem

buscado acompanhar a revisão de conceitos e métodos promovida pelo surgimento

contínuo de novas teorias pedagógicas. O projeto behaviorista, por exemplo, após

exercer grande influência no planejamento de cursos e na dinâmica das salas de

aula, foi progressivamente reavaliado, dando lugar à ênfase em objetivos

comunicativos estabelecidos a partir dos interesses e necessidades do aprendiz.

Além da criação de novas técnicas visando ao aprimoramento dos processos

de interação, o enfoque em competências funcionais/estratégicas promoveu

modificações nos modelos de elaboração curricular. Essas modificações podem ser

identificadas nos livros didáticos (LDs), que funcionam como um registro do

planejamento do currículo e atuam fortemente na orientação da prática dos

professores de LEs.

A inserção de tópicos lingüísticos e culturais em contexto situacional é um dos

traços que caracteriza m os materiais didáticos (MDs) utilizados nos ambientes

comunicativistas. No que se refere aos conteúdos culturais, parece haver uma

substituição do objetivo de listar aspectos formais, tradicionais ou eruditos como

representantes de uma dada cultura por preocupações de caráter antropológico e

sociológico.

Com esse deslocamento, muitos pesquisadores voltam seu interesse para

uma categoria da abordagem cultural denominada little c culture, que, segundo a

definição de Hadley (apud Lima,p.30), trata de registrar e explorar comportamentos


10

cotidianos (formas de saudação, hábitos e condutas nos horários das refeições,

aniversários, casamentos, compras na mercearia etc.).

Essa categoria é estabelecida em oposição instrumental à chamada Big C

culture, que, nos parâmetros estabelecidos pelo autor, deve, de maneira geral,

contemplar informações veiculadas em TV e Internet (típicas da cultura de massas),

na literatura nacional, museus, ou eventos culturais (englobando itens tanto da

cultura erudita, quanto da popular).

A partir da observação de tópicos culturais presentes em vários MDs elaborados

para o ensino/aprendizagem do Português como Língua Estrangeira (PLE) – que

tivemos oportunidade de conhecer e utilizar ao longo de nossa prática pedagógica

na área – a abordagem sociológica e antropológica que fazem da cultura nos

pareceu insuficiente para descrever o atual cenário sociopolítico e cultural em que

estamos inseridos.

Algumas reconfigurações nos modos de interpretar e representar as

dinâmicas da cultura contemporânea – conforme descritas na produção de teóricos

como Stuart Hall ou George Yúdice – começaram a emergir na década de 90 e se

consolidam na década presente. Essas reconfigurações procuram dar conta de

aspectos novos de um panorama cultural que reflete a intensificação recente dos

processos de globalização – termo que, neste trabalho, está sendo usado para

sintetizar um complexo de processos e forças de mudança.

Com base na observação desses novos aspectos, passamos a considerar a

hipótese de que a análise contrastiva dos conteúdos culturais de LDs produzidos a

partir dos anos 90, pelos mesmos autores e direcionados a públicos-alvo

semelhantes, pudesse revelar o início de um processo de vinculação da seleção e


11

abordagem desses conteúdos aos paradigmas emergentes de

interpretação/representação da cultura contemporânea.

Dentre os LDs de PLE publicados no Brasil, nesse período, foram

selecionados para esta pesquisa Bem-Vindo! – A Língua Portuguesa no Mundo da

Comunicação (de 1999) e Panorama Brasil – Ensino do Português no Mundo dos

Negócios (de 2006), pois, além de apresentarem as características referidas acima,

ambos obtiveram uma circulação significativa nos segmentos de ensino de PLE aos

quais se destinavam.

Nesses dois LDs, os componentes da Big C culture – com fontes e formas de

veiculação bastante diversas, conforme exemplificadas por Hadley – constituem os

tópicos culturais que foram por nós analisados. Por meio da contraposição dos dois

conjuntos de tópicos culturais selecionados, investigamos os modos de

representação da cultura brasileira contemporânea que podem ser aferidos pela

avaliação da escolha e da abordagem dos conteúdos culturais presentes em

materiais de PLE editados no Brasil.

A apresentação deste estudo é dividida em oito partes. Na primeira,

destacamos a influência da abordagem socioantropológica na seleção de tópicos

culturais que integram grande parte dos MDs de PLE. Essa abordagem, que se

consolida no contexto do desenvolvimento da teoria comunicativista , não contempla

alguns aspectos da cultura brasileira que começaram a emergir no período

contemporâneo. Partindo desse traço que observamos na auto-representação

cultural do Brasil em LDs de PLE, e que motivou a elaboração deste trabalho,

apresentamos nossa hipótese, os objetivos e a estruturação inicial da investigação

realizada.
12

No capítulo 2, relativo à fundamentação teórica, apresentamos o surgimento e

desenvolvimento da noção de cultura nas Ciências Sociais e a expansão dos

estudos sobre a cultura para outros campos disciplinares. Em seguida, descrevemos

as formas de pensar o cultural em sua relação com os processos de formação

identitária, conforme elas têm sido definidas pelos culturalistas que enfocam a

chamada era global. Por fim, apontamos alguns meios de categorização da cultura

comumente utilizados nas pesquisas ligadas ao ensino de LEs.

No capítulo 3, fazemos uma vinculação entre este estudo e o contexto

socioeducacional e político em que ele está inserido. Ao longo do capítulo, tecemos

comentários sobre os resultados de uma pesquisa do CNT/Sensus que atestam a

necessidade de reestruturação dos currículos do sistema nacional de educação.

Dentre as reformulações necessárias está a contextualização sociocultural

adequada dos conteúdos curriculares. Com base nessa avaliação pudemos enfocar

a área de ensino de PLE como parte integrante do sistema educacional vigente, e

evidenciar, que a área, naturalmente, reflete algumas das deficiências desse sistema

e deve incorporar as reformulações que visam o seu aprimoramento.

No capítulo 4, que trata da metodologia, justificamos a escolha dos LDs cujos

tópicos culturais foram analisados em articulação com os objetivos da pesquisa. E

também explicitamos o critério para a seleção dos tópicos culturais inscritos nesses

MDs, listamos esses tópicos e definimos os procedimentos adotados para sua

análise.

No capítulo 5, o corpus é analisado em duas partes. A primeira delas se

constitui de nove textos extraídos da obra Bem-Vindo! e a segunda é composta por

13 textos do livro Panorama Brasil. Antecede a análise de ambas as partes do

corpus a apresentação do assunto, da fonte e de um resumo de cada um dos textos.


13

Na última seção do capítulo , contrastamos os tipos de abordagem da cultura que

fundamentam as duas partes do corpus e destacamos o papel da Lingüística

Aplicada ao Ensino de Línguas nas novas perspectivas de pesquisa que se

estabelecem no cenário sociopolítico e cultural contemporâneo, em que se reabrem

possibilidades de articulação entre trabalho intelectual e compromisso social.

No capítulo 6, na apresentação das conclusões do trabalho, apontamos a

apropriação das estratégias de negociação para a cultura pela sociedade civil – ou

seja, o estreitamento entre o setor privado e o social – como fator determinante para

uma revisão dos objetivos que norteiam a elaboração curricular nos diversos

segmentos educacionais brasileiros. Destacamos também a importância de que o

uso das línguas, além de ser direcionado a funções comunicativas, seja enfocado

em sua função de elaborar e construir o pensamento.

Por último, discorremos acerca do que acreditamos ser a contribuição de

nossa pesquisa para o ensino de PLE : explicitar a necessidade de que utilizadores

e produtores de materiais para a área estejam atentos a informações, modos de

representação e debates sobre as concepções de cultura em voga em nossa

sociedade.

Na sétima e na oitava parte do estudo, respectivamente, estão contidos as

referências e os anexos com os vinte e dois textos extraídos dos dois LDs

selecionados.
14

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Buscaremos nesse capítulo traçar o percurso histórico da elaboração dos

estudos da cultura, desde a gênese social da palavra e da idéia de cultura,

passando pela invenção de seu conceito científico em contextos bastante

embrionários da formação das Ciências Sociais e chegando aos debates científicos

contemporâneos sobre a cultura e aos modos pelos quais ela funciona na época da

globalização.

Ao longo desse percurso, será possível constatarmos que as definições de

cultura irão variar de acordo com os contextos sócio-históricos em que são

construídas. Retornarmos ao período do nascimento da idéia moderna de cultura e

observarmos as divergências semânticas sobre a justa definição a ser dada à

palavra permite percebermos que sob essas divergências dissimulam-se desacordos

em âmbito social e naciona l.

Justamente por isso, não é suficiente em estudos de caráter transdisciplinar,

como esse, tomar emprestado das Ciências Sociais a palavra “cultura” para

determinar uma leitura da realidade, que esconde freqüentemente uma tentativa de

imposição simbólica, já que a cultura não se decreta, ela não pode ser manipulada

como um instrumento vulgar, pois ela está relacionada a processos extremamente

complexos e, na maior parte das vezes, inconscientes (Cuche, 2002, p.15).

Assim, torna-se necessária a investigação da genealogia da cultura a fim de

apreender os modos de refletir sobre as culturas em articulação com as tradições

nacionais, e a busca de contribuições de outros saberes disciplinares que nos

auxiliem na compreensão do estatuto contemporâneo da cultura.


15

Avançaremos, portanto, um pouco além das fronteiras das Ciências Sociais

no que tange à composição interdisciplinar da pesquisa, abordando também a

constituição e a produção científica de outros setores acadêmicos, que têm

influenciado amplamente a atividade de pensar o cultural nos ambientes

universitários brasileiros – os chamados Estudos Culturais, de origem britânica e os

Estudos Latino-Americanos de Cultura. Esses canteiros de produção de trabalhos e

teorias, naturalmente, não deixaram de partir dos saberes construídos por disciplinas

como a Sociologia, Antropologia ou Etnologia, mas têm entre seus principais

pesquisadores, intelectuais de formação bem mais diversificada, o que se configura

como uma característica relevante por motivos que iremos explorar mais à frente.

2.1 O DESENVOLVIMENTO DA NOÇÃO DE CULTURA NAS CIÊNCIAS

SOCIAIS

O etnólogo francês Denys Cuche caracteriza a noção de cultura como algo

inerente à reflexão das Ciências Sociais. A cultura apresentou-se como o elemento

essencial na configuração do Homem como ser social. Nas palavras de Cuche

(2002,pp.9,10), o longo processo de hominização, começado há mais ou menos

quinze milhões de anos, consistiu fundamentalmente na passagem de uma

adaptação genética ao meio ambiente natural a uma adaptação cultural. No decorrer

desta evolução, que resulta no “Homo sapiens sapiens”, o primeiro homem, houve

uma formidável regressão dos instintos,“substituídos” progressivamente pela cultura.

Mas, embora todas as populações humanas possuam a mesma carga

genética, elas foram se diferenciando por suas escolhas culturais, cada uma

inventando soluções originais para os problemas que lhe são colocados. Assim, a
16

noção de cultura compreendida em seu sentido vasto, que remete aos modos de

vida e de pensamento, é hoje bastante aceita, apesar da existência de certas

ambigüidades (op.cit, pp.10,11).

Desde o momento em que a idéia moderna de cultura surgiu, no século

XVIII, ela passou a suscitar cons tantemente debates bastante acirrados. E conforme

Cuche descreve, as Ciências Sociais, por mais que nutrissem compreensivelmente

um desejo de autonomia epistemológica, nunca foram completamente

independentes dos contextos intelectuais e lingüísticos em que elaboram seus

esquemas teóricos e conceituais ... As lutas de definição são, em realidade, lutas

sociais, e o sentido a ser dado às palavras revelam questões sociais fundamentais

(op.cit., p.12).

É por isso que Sayad (apud Cuche, 2002, p.12) afirma que

se pode retraçar paralelamente à história da semântica, isto é, à gênese das diferentes

significações da noção de cultura, a história social destas significações: as mudanças

semânticas, aparentemente de natureza puramente simbólica, correspondem em realidade

a mudanças de uma outra ordem. Correspondem a mudanças na estrutura das relações de

força entre, de um lado, os grupos sociais no seio de uma mesma sociedade e, de outro

lado, as sociedades em relação de interação, isto é, mudanças nas posições ocupadas

pelos diferentes parceiros interessados em definições diferentes de cultura.

Logo, se quisermos compreender o sentido atual do conceito de cultura e

seu uso nas Ciências Sociais, é preciso que se evidenciem os laços que existem

entre a história da palavra “cultura” e a história das idéias. A palavra é aplicada a

realidades muito diversas (cultura da terra, cultura microbiana, cultura física ...), mas

é possível delimitar aspectos que esclareçam a formação do conceito do modo como

é utilizado nas Ciências Sociais.


17

2.1.1 A origem social da palavra “Cultura”

Segundo Cuche, a opção por analisar o exemplo francês do uso do termo

“cultura” é legitimada pelo fato de a evolução semântica decisiva da palavra ter se

produzido na língua francesa do Século das Luzes, antes de ser difundida por

empréstimo lingüístico nas línguas vizinhas (inglês,alemão). Segundo o autor, o

século XVIII pode ser considerado como o período de formação do sentido moderno

da palavra “cultura” no vocabulário francês.

Vinda do latim ‘cultura’ que significa o cuidado dispensado ao campo ou ao gado, ela

aparece nos fins do século XIII para designar uma parcela de terra cultivada ... Até o século

XVIII, a evolução do conteúdo semântico da palavra se deve principalmente ao movimento

natural da língua e não ao movimento das idéias, que procede ... pela metáfora (da cultura

da terra à cultura do espírito) ...

O termo ‘cultura’ no sentido figurado começa a se impor no século XVIII. Ele faz sua entrada

com este sentido no ‘Dicionário da Academia Francesa’ (edição de 1718) e é então quase

sempre seguido de um complemento: fala-se da ‘cultura das artes’, da ‘cultura das letras’,da

‘cultura das ciências’, como se fosse preciso que a coisa cultivada fosse explicitada...

Progressivamente, ‘cultura’ se libera de seus complementos e acaba por ser empregada só,

para designar a ‘ formação’, a ‘educação’ do espírito (op.cit, pp.19,20).

O autor ressalta o fato de, no fim do século XVIII, esse uso passar a ser

consagrado, constando no Dicionário da Academia (edição de 1798), que inc lui, em

sua definição, a expressão “um espírito natural e sem cultura”, marcando, assim, a

oposição conceitual entre “natureza” e “cultura”. Nessa oposição, está a base do

pensamento iluminista, em cuja concepção a cultura se apresenta como um caráter

distintivo da espécie humana.


18

Além disso, irá derivar do Iluminismo, um direcionamento universalista e

humanista para o pensamento da época, segundo o qual a cultura é própria do

Homem (com maiúscula), transcendendo toda distinção de povos ou de classes.

Sendo associada às idéias de progresso, evolução, educação e razão, tão caras à

ideologia do Iluminismo, “cultura” estará então muito próxima de “civilização” 1.

Esse segundo termo, ‘civilização’, por sua vez, com seu sentido original

constituído recentemente (a palavra surge no século XVIII e designa o refinamento

dos costumes), é redefinido pelos filósofos reformistas como o processo que arranca

a humanidade da ignorância e da irracionalidade. Para eles, a civilização poderia e

deveria se estender a todos os povos que compõem a humanidade, e, estando

alguns povos mais avançados que outros (a França particularmente), podendo ser

considerados “civilizados”, esses teriam o dever de auxiliar os mais “selvagens” em

seu ingresso e desenvolvimento no processo de evolução.

O uso dos termos “cultura” e “civilização” no século XVIII marcam a

substituição de uma teologia (da história) por uma filosofia (da história), a

substituição da esperança religiosa pelo início da construção de tendências

epistemológicas fundadas na colocação do Homem no centro da reflexão, no centro

do universo. É nesse contexto, que, em 1787, Alexandre de Chavannes cria um

terceiro termo – Etnologia , que sintetiza o trabalho no campo das idéias que era

empreendido pelos pensadores naquele momento. A Etnologia é então definida

como a disciplina que estuda a “história dos progressos dos povos em direção à

civilização”.

1
As duas palavras pertencem ao mesmo campo semântico, refletem as mesmas concepções fundamentais.Porém,
‘cultura’evoca principalmente os progressos individuais,‘civilização’,os progressos coletivos (op.cit.,p.22).
19

2.1.2 O debate franco-alemão sobre a cultura

O debate franco-alemão, que perdura do século XVIII ao século XX,

estabelecerá um novo pólo no que se refere à concepção de cultura: opondo-se ao

universalismo francês surge uma noção particularista . É nessa polarização que está

o alicerce dos dois modos de definição do conceito de cultura operantes nas

Ciências Sociais contemporâneas.

Na língua alemã do século XVIII, aparentemente, como uma transposição

exata da palavra francesa, se inicia a utilização de Kultur no sentido figurado. O uso

do francês e a influência do pensamento iluminista, ambos em voga entre as elites

na Alemanha, se apresenta como justificativa plausível para esse empréstimo

lingüístico.

No entanto, o significado de Kultur vai se alterar muito rapidamente se

distanciando daquele do termo homólogo francês. A noção universalista francesa de

“civili zação” é calcada na expressão de uma unidade nacional há muito consolidada.

Já na Alemanha, há uma nobreza relativamente isolada da burguesia, ficando

restrito à primeira, conseqüentemente, o controle das ações políticas. Esse fato cria

uma divisão social, pois fomenta a oposição de intelectuais, freqüentemente saídos

do meio universitário – que compõem uma intelligentsia burguesa – aos valores

“corteses” da aristocracia.

Crítica em relação aos príncipes que governam os Estados alemães e

imitam as maneiras “civilizadas” da corte francesa, essa intelligentsia atribui à idéia

de civilização somente o que é aparência brilhante, leviandade, refinamento

superficial. Por outro lado, tudo o que é autêntico e que contribui para o
20

enriquecimento intelectual e espiritual (ciência, arte, filosofia, religião) pertence à

cultura.

Como o povo simples também não tem essa cultura, os intelectuais se

apropriam da missão de desenvolvê-la e fazê -la irradiar e, dessa forma, como

descreve Norbert Elias (apud Cuche, 2002, p.25), a antítese ‘cultura’ - ‘civilização’ se

desloca pouco a pouco da oposição social para a oposição nacional. Uma vez que a

unidade nacional alemã não estava ainda realizada e parecia impossível então no

plano político, a intelligentsia procura essa unidade no plano da cultura.

Ao longo do século XIX, com o ganho de poder dos Estados vizinhos, a

França e a Inglaterra em particular, a “nação” alemã é enfraquecida pelas divisões

políticas internas, fragmentada em múltiplos principados. Com isso, a noção de

Kultur vai tender cada vez mais à delimitação e à consolidação das diferenças

nacionais.

Já em 1774, Johann Gottfried Herder, que pode ser considerado precursor

do conceito relativista de “cultura”, sinalizava a inclinação do pensamento alemão

para a aceitação da diversidade de culturas, afirmando que cada povo, através de

sua cultura própria, tem um destino específico a realizar, pois cada cultura exprime à

sua maneira um aspecto da humanidade (op.cit.,p.27).

Entretanto, um traço novo começa a integrar a caracterização do

naciona lismo alemão após a derrota na Batalha de Iena, em 1806, e a ocupação

pelas tropas de Napoleão 2. Diante da adversidade e com a intensificação do esforço

para definir o “caráter alemão”, não só a originalidade, mas também a superioridade

da cultura alemã passa a ser afirmada.

2
Após vencer a Batalha de Iena, Napoleão reescreveu o mapa da Alemanha com a criação da Confederação do
Reno (1806), liga de príncipes e reis alemães que ele colocou sob sua tutela (Koogan e Houaiss, 1995, p.1099).
21

Para Dumond (apud Cuche, 2002, p.29), esta idéia essencialista e

particularista da cultura está em perfeita adequação com o conceito étnico-racial de

nação – comunidade de indivíduos de mesma origem – que se desenvolve no

mesmo momento na Alemanha e que servirá de fundamento à constituição do

Estado-nação alemão.

Em outro pólo, na França, os particularismos culturais são minimizados, já

que os intelectuais não admitem a concepção de uma cultura nacional antes de

tudo, há uma concepção eletiva de nação, surgida na Revolução Francesa segundo

a qual, todos os que se reconhecem na nação francesa, a ela pertencem,

independentemente de suas origens.

No século XX, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), houve um

enfrentamento brutal dos nacionalismos francês e alemão e a conseqüente

exacerbação do debate ideológico entre as duas concepções de cultura.

2.1.3 O surgimento do conceito científico de cultura

A adoção de um procedimento positivo na refle xão sobre o homem e a

sociedade, durante o século XIX, resulta na criação da Sociologia e da Etnologia

como disciplinas científicas. Todos os fundadores da etnologia científica partilham

um mesmo postulado : o postulado da unidade do homem, herança da filosofia do

Iluminismo. Para eles, a dificuldade será então pensar a diversidade na unidade

(op.cit.,p.33).

Torna-se claro, a essa altura, que se eles reivindicam uma nova ciência, é

porque já não podem se contentar com uma resposta biológica, fundamentada na

existência de “raças” diferentes. Dois caminhos vão ser então explorados :


22

o que privilegia a unidade e minimiza a diversidade, reduzindo a uma diversidade

‘temporária’, segundo um esquema evolucionista; e o outro caminho que, ao contrário, dá

toda a importância à diversidade, preocupando-se em demonstrar que ela não é

contraditória com a unidade fundamental da humanidade (op.cit.,pp.33,34).

Nesse momento , os fundadores da Etnologia começam a associar à palavra

“cultura”, conteúdos puramente descritivos, em contraposição ao sentido normativo

que é atribuído ao termo em sua utilização tanto na França como na Alemanha.

Esse cenário propicia o estabelecimento de duas “escolas” que divergem sobre a

questão da utilização do conceito no singular (a Cultura) ou no plural (as culturas).

Edward Tylor (1832-1927) é um representante da primeira escola (a

universalista), que pode ser considerado responsável pelo reconhecimento da

Antropologia britânica como disciplina universitária : ele se tornou em 1883, na

Universidade de Oxford, o primeiro titular de uma cátedra de Antropologia na Grã

Bretanha. É dele a primeira definição etnológica de cultura, de uma cultura que é

adquirida, com origem e caráter, em grande parte, inconscientes :

‘Cultura’ e ‘civilização’, tomadas em seu sentido etnológico mais vasto, são um conjunto

complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as

outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade

(op.cit,p.35).

Para ele, a hesitação entre “cultura” e “civilização” é característica do

contexto da época. Ele privilegia “cultura” por compreender que “civilização”, mesmo

se tomada em um sentido puramente descritivo, inviabiliza-se como conceito

operatório desde o momento em que é aplicada às sociedades “primitivas”. Segundo

o autor, a etimologia da palavra civilização remete à constituição das cidades e o


23

sentido que a palavra tomou nas ciências históricas designa principalmente as

realizações materiais, pouco desenvolvidas nessas sociedades (op.cit.,p.36).

Herdeiro do Iluminismo, Tylor combateu com ardor a teoria da

degenerescência dos primitivos. Alguns teólogos, que haviam considerado

inimaginável que Deus tivesse criado seres tão “selvagens”, não reconheciam nos

primitivos, seres humanos como os outros. Mas, Tylor, ao contrário, considerava

todos os humanos como seres de cultura e a contribuição de cada povo para o

progresso, digna de estima. Sua maneira de conceber o evolucionismo, portanto,

não excluía um certo sentido de relatividade cultural, rara na sua época.

Havia, contudo, um pensador à altura de Tylor, cuja produção intelectual

pode ser eleita como representativa da escola particularista de cultura. Franz Boas

(1858-1942) será o primeiro antropólogo a fazer pesquisas in situ para observação

direta e prolongada das culturas primitivas, podendo, assim, ser considerado o

inventor da Etnografia.

Oriundo de uma família judia alemã, cursou Antropologia na Alemanha e

após várias expedições etnográficas nos Estados Unidos, decidiu estabelecer-se no

país e adotar a nacionalidade americana. Ao contrário de Tylor, tinha como objetivo

o estudo ‘das culturas’ e não ‘da Cultura’,

ele recusa o comparatismo imprudente da maioria dos autores evolucionistas. Para ele,

havia pouca esperança de descobrir leis universais de funcionamento das sociedades e das

culturas humanas e ainda menos chance de encontrar leis gerais da evolução das culturas

(op.cit.,p.42).

Segundo os princípios do “relativismo cultural”, Boas propõe o respeito e

tolerância em relação a culturas diferentes e a fim de escapar de qualquer forma de


24

etnocentrismo no estudo de uma cultura particular, recomendava abordá-la sem ‘a

priori’... (op.cit.,p.44).3 Considerando a obra de Boas em sua rica diversidade,

descobre-se nela o anúncio de toda a antropologia cultural norte-americana que virá

a ser desenvolvida.

A pesquisa sistemática sobre o funcionamento da cultura não se desenvolve

de forma igual em todos os países, é nos Estados Unidos que esses estudos

encontram melhor acolhida e vão conhecer seu aprofundamento teórico mais

notável. Pelo fato de a legitimidade da cidadania americana ser quase ligada à

imigração – o americano como fundador da nação é um imigrante ou um

descendente de imigrantes – o país comporta um modelo de integração nacional

original que admite a formação de comunidades étnicas particulares.

As mesmas razões se fazem notar no fato de os sociólogos da Universidade

de Chicago, que foi o primeiro centro de ensino e de divulgação da Sociologia nos

Estados Unidos, traze rem a questão dos estrangeiros na cidade para o centro de

suas análises.

Na Antropologia, os estudos delineiam três correntes, que sofrem influências

direta ou indireta dos ensinamentos de Boas. A primeira encara a cultura sob o

ângulo da história cultural, a segunda tem como objetivo elucidar as relações entre

cultura (coletiva) e personalidade (individual) e a terceira aborda a cultura como um

sistema de comunicações entre indivíduos.

Para o enfoque instrumental dessa pesquisa, que será detalhado a

posteriori, vale mencionar a idéia central das pesquisas de duas representantes da

escola “cultura e personalidade” : Ruth Benedict e Margaret Mead. Benedict (1887-

3
O etnocentrismo é o termo técnico para esta visão das coisas segundo a qual nosso próprio grupo é o centro
de todas as coisas e todos os outros grupos são medidos e avaliados em relação a ele [...]. Cada grupo alimenta
seu próprio orgulho e vaidade, considera-se superior, exalta suas próprias divindades e olha com desprezo as
25

1948), aluna e em seguida assistente de Boas, é célebre sobretudo por seus usos e

descrições do conceito de pattern of culture (“modelo cultural”), já encontrado na

obra de Boas.

Para ela, de certo modo, cada cultura oferece aos indivíduos um “esquema”

inconsciente para todas as atividades da vida, apresenta seu pattern mais ou menos

coerente de pensamento e ação. O que define então uma cultura, não é a presença

ou ausência de tal traço ou de tal complexo de traços culturais, mas sua orientação

global em certa direção ... (op.cit.,p.78).

Margaret Mead (1901-1978) também considera a idéia de que há “modelos”

culturais particulares de dadas sociedades, mas ocupa-se especificamente de

investigar os modos pelos quais os modelos operam no processo de transmissão

cultural e de socialização da personalidade. Segundo a pesquisadora, a estrutura da

personalidade adulta resulta da transmissão da cultura pela educação desde a

infância.

A escola “cultura e personalidade” revelou aos teóricos da área a

importância da educação no processo de diferenciação cultural. É claro que como as

demais correntes, suas teorias não estarão livres de deficiências. Um certo

essencialismo, que consiste em conceber a cultura como uma realidade em si, é

ainda perceptível na obra de Benedict, na medida em que ela propunha que todas

as culturas buscavam um objetivo relacionado com a orientação de seu pattern, à

revelia dos indivíduos.

Mas, Margaret Mead, como a maioria dos antropólogos da escola “cultura e

personalidade” reagiu contra o risco de reificação da cultura. Ela afirma que a cultura

estrangeiras .Cada grupo pensa que seus próprios costumes são os únicos válidos e se ele observa que outros
grupos têm outros costumes, encara-os com desdém (Simon, apud Cuche,2002,p.46).
26

é uma abstração (o que quer dizer uma ilusão). O que existe são indivíduos que

criam a cultura, que a transmitem, que a transformam.

2.2 A AMPLIAÇÃO DE FRONTEIRAS NO DESENVOLVIMENTO DOS

ESTUDOS SOBRE CULTURA

Ao contrário dos Estados Unidos, cujo contexto, tal como o descrevemos,

favoreceu uma interrogação sistemática das diferenças culturais e dos contatos

entre as culturas, a França, que não se via como um país de imigração, só teve este

campo desenvolvido e reconhecido muito tardiamente, na década de setenta.

Mesmo tendo sido convertida em país de imigração de forma maciça e estrutural

desde a segunda metade do século XIX, a representação unitária de nação, unida à

exaltação da civilização francesa, concebida como modelo universal, explica em

parte o fraco desenvolvimento da reflexão sobre a diversidade cultural nas ciências

sociais na França durante muito tempo (op.cit.,p.67).

Essa constatação corrobora a afirmação de Mattelart e Neveu (2004, p.11) de

que o modo de refletir sobre as culturas, de articulá-las, também é tributário das

tradições nacionais. Segundo eles, se no domínio socioantropológico, a contribuição

precoce dos pesquisadores americanos, de Margaret Mead a Clifford Geertz, via

Escola de Chicago é eminente, a contribuição alemã também conheceu uma vasta

difusão, quer se trate, no século XIX , de Humboldt ou de Herder, ou, no século XX,

da Escola de Frankfurt.

No entanto, as reflexões originárias do Reino Unido, que se apegam ao estatuto

da cultura e a sua significação, eram, de modo geral, desconhecidas na França.

Mattelart e Neveu (2004) buscaram, então, fazer uma breve reconstituição histórica
27

de uma tradição recente, consagrada pelo rótulo de Estudos Culturais, que inspira

em quase todo o planeta um fluxo sem equivalente de trabalhos e de teorias sobre o

estatuto contemporâneo da cultura.

No cenário das pesquisas acadêmicas brasileiras sobre cultura, mais

especificamente nas da área da Lingüística Aplicada, que ora abordamos, a

influência dos ensinamentos da chamada Escola de Birmingham se fez presente na

última década, sobretudo nas teorias do último intelectual a compor o grupo de seus

quatro fundadores – Stuart Hall.

Ao trazer para nosso referencial teórico algumas das linhas de pensamento dos

Estudos Culturais britânicos, estamos ampliando as fronteiras não só no que

concerne às tradições nacionais que participaram na formação de nosso modo de

conceber a cultura nos tempos atuais, mas também no que se refere às diferentes

contribuições interdisciplinares que atuaram no processo de desenvolvimento dessa

concepção.

Para compreendermos essa diversificação disciplinar, é preciso ressaltar que na

Inglaterra do século XIX,

simultaneamente as humanidades, e especificamente a literatura nacional, aparecem como os

instrumentos privilegiados de civilização e de compreensão do mundo, enquanto as ciências, a

economia, a sociologia nascente são vistas com suspeição; e que ... esses tropismos

intelectuais se perpetuam para além do século (Lepennies, apud Mattelart e Neveu, 2004, p.35).

Desde 1813, por meio dos estudos literários ingleses, se constrói e se propaga a

representação de um tipo ideal de inglês, um exemplo moral. Esse processo pode

ser chamado de política da “anglitude” (Englishness) e representava uma estratégia

de containment (contenção) dos colonizados de uma parte do império,


28

particularmente a Índia. Com ele, visava-se uma espécie de controle ideológico das

imagens que poderiam ser construídas acerca do ocupante pelos autóctones, a

partir da observação direta de seus feitos e gestos.

A institucionalização dessa literatura humaniza nte só ocorre, no entanto, no fim

do século XIX, quando os estudos de Literatura Inglesa, ignorados pela elite

acadêmica de Oxford e de Cambridge, que dá preferência à Filologia clássica, força

entrada pela porta de trás. Seus programas de ensino são estabelecidos então nas

escolas técnicas, nos colégios profissionais e nos cursos de educação permanente

para adultos dispensados pelas universidades.

Esse movimento literário que pode ser chamado genericamente de English

Studies (Estudos Ingleses) também ganha um espaço, na segunda metade do

século XIX, no mercado da “nacionalização da literatura”, com a publicação de

antologias destinadas ao uso do grande público, como English Men of Letters (Os

Homens de Letras Ingleses). Todavia, apenas após a Primeira Guerra Mundial (1914

-1918), que traz à ordem do dia a necessidade de um cultural revival (renascimento

cultural) da nação inglesa, é que ocorrerá a entronização dos estudos ingleses no

curriculum normal das universidades.

Embora, uma das realizações mais duradouras dos English Studies do

entreguerras seja sua abordagem da crítica de textos literários, no período de sua

integração no currículo universitário, não foi possível ignorar o histórico já construído

desse campo de ensino na formação de adultos. Os integrantes desse setor do

ensino propunham um questionamento sobre a necessidade de tentar subtrair o

estudo literário do isolamento textual e reconectá-lo com as realidades sociais.

Trava-se, assim, um debate na imprensa pelos educadores que atuam na

formação de adultos dos meios populares sobre as visões contraditórias da


29

pedagogia a adotar. Dele participam autores como George Orwell, Harold Laski ou

Herbert Read.

Quem, da “massa” ou da “classe”, privilegiar na escolha do perfil dos professores? A primeira

opção tem a simpatia dos partidários de uma modernização da educação popular preferentemente

vinculada ao estilo universitário e centrada nas artes e nas letras. A outra linha, mais apoiada em

realidades regionais, valoriza as tradições puritanas do movimento operário e milita em favor de uma

abordagem sociológica em sentido amplo, apoiando-se na economia, na filosofia e na política e

buscando mobilizar as pessoas mais avançadas da classe operária para formar quadros (Mattelart e

Neveu, 2004, p.39).

As duas visões partilham um questionamento sobre o papel da cultura como

instrumento de reconstituição de uma comunidade, de uma nação, em face das

forças dissolventes do desenvolvimento capitalista. Os Estudos Culturais participam

desse questionamento, mas optam de modo decisivo por uma abordagem via

classes populares.

A etapa de cristalização desses estudos ocorre nos anos 1960 e se apóia em

um trabalho de amadurecimento que se inicia quase dez anos antes, simbolizado

pelas figuras de três, dentre os quatro fundadores da Escola de Birmingham.

O primeiro deles é Richard Hoggart (1918 -), que, em 1957, publicou um livro

que os pesquisadores dos Estudos Culturais reconhecerão como fundador de seu

campo de estudos :The Uses of Literacy : Aspects of Working-Class Life with Special

References to Publications and Entertainments (Os Usos da Alfabetização :

Aspectos da Vida da Classe Trabalhadora com Referências Especiais a Publicações

e Formas de Entretenimento), no qual o autor estuda a influência da cultura

difundida em meio à classe operária pelos modernos meios de comunicação.


30

Hoggart inicia sua atuação no campo pedagógico no departamento extra-muros

da universidade de Hull, onde trabalha durante cinco anos no seio das estruturas de

educação de adultos no meio operário. Como intelectual, ele reivindica uma filiação

humanista, uma inscrição em uma tradição de estudos da literatura e da civilização

para cuja redefinição de objetos e métodos ele contribui ao recusar os a priori

elitistas da tradição universitária.

Ele sempre proclamou sua não-pertinência ao mundo dos sociólogos, sua

formação acadêmica original é a de um professor de Literatura Inglesa, mas disso

não se pode concluir que ele não tenha podido produzir boas obras sociológicas. A

atenção aos receptores dos conteúdos culturais, e não aos emissores, manifestada

por suas análises, não impede que suas hipóteses permaneçam profundamente

marcadas pela desconfiança com a industrialização. A própria idéia de resistência

das classes populares, que é a base de sua abordagem das práticas culturais

populares, ancora-se nessa crença.

A idéia de resistência à ordem cultural industrial é consubstancial à multiplicidade de objetos de

pesquisa que caracterizarão os domínios explorados pelos estudos culturais durante mais de

duas décadas. Ela remete à convicção de que é impossível abstrair a “cultura” das relações de

poder e das estratégias de mudança social (op.cit, p.45).

Esse axioma partilhado alicerça os trabalhos de inspiração marxista de outros

dois fundadores britânicos : Raymond Williams (1921-1988) e Edward P.Thompson

(1924-1993), ambos ligados à formação de adultos das classes populares. Esses

trabalhos se ocupam de questionar o papel dos sistemas de educação e de

comunicação (imprensa, padronização da língua) e dos processos de alfabetização


31

na dinâmica de mudança social. Eles também almejam contribuir para elaborar um

programa democrático de reformas das instituições culturais.

O período é então ainda dominado pelo debate sobre a antinomia sumária que opõe a “base

material” da economia à cultura, fazendo desta última um simples reflexo da primeira. Sair desse

dilema impossível e redutor é um dos desafios com que os estudos culturais terão de se

enfrentar (op.cit., p.47).

Esse será um dos objetivos identificados nos trabalhos mais recentes daquele

que será o quarto homem a se unir ao trio de fundadores. Oito anos mais novo que

Thompson, Stuart Hall (1932 -), ainda era uma figura-chave das revistas da nova

esquerda intelectual, quando sua produção científica chega à maturidade no limiar

dos anos 1970.

Jamaicano de origem, ele deixa seu país em 1951, e durante seu período de

formação acadêmica em Oxford, onde se graduou em Letras, estabelece seus

primeiros vínculos com militantes da esquerda marxista. Ele, assim, como Williams e

Hoggart, tem uma origem popular, o que os torna personagens deslocados do

mundo universitário britânico. Com Thompson, irá se irmanar em sua dimensão

cosmopolita, em uma experiência da diversidade das culturas.

Essas trajetórias sociais atípicas ou improváveis se chocam com a dimensão socialmente

restrita do sistema universitário britânico e condenam desde logo os intrusos à ‘escolha’ de

posições externas (a educação de adultos no meio operário) a esse sistema ou situadas em sua

periferia. Os fundadores freqüentemente se vêem destinados a estabelecimentos pequenos ou

recentes (Warwick), a instituições estabelecidas à margem das universidades (em Birmingham),

a componentes ‘extraterritoriais’ do mundo universitário (‘extra-mural departments’, Open

University) ... (op.cit., p.52).


32

Não causa espanto, portanto, que ao fundar, em 1964, o CCCS - Centre for

Contemporary Cultural Studies (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos), na

Universidade de Birmingham, Hoggart enfrente como primeiro desafio atestar a

seriedade do empreendimento, junto a seus pares mais tradicionalistas.

Ele propunha a utilização de métodos e instrumentos da crítica textual e literária,

deslocando sua aplicação das obras clássicas e legítimas para os produtos da

cultura de massa e para o universo das práticas culturais populares. Esse objetivo

inicial gerou desconfiança entre os sociólogos em relação aos recém-chegados que

avançavam sobre seu território e igualmente entre os especialistas em estudos

literários que identificavam como possível conseqüência do procedimento proposto,

o desvio de seus saberes para objetos menores.

Esses conflitos trazidos pela inovação que representava a chegada de uma

abordagem permeada de interdisciplinaridade, naquele ambiente de rigores

acadêmicos, não impediu a crescente visibilidade científica do CCCS, devida,

sobretudo, à circulação de working papers (artigos mimeografados, que formavam

uma revista artesanal), a partir de 1972.

Como o definem Mattelart e Neveu (2004, p.56), o centro foi um caldeirão de

cultura de importações teóricas, de trabalhos inovadores com objetos julgados até

então indignos do trabalho acadêmico. Houve uma rara combinação de

comprometimento social e político e de ambição intelectual, que produziu durante

mais de quinze anos, até 1980, uma impressionante massa de trabalhos.

Para os autores, três dados constituem o dinamismo desses anos : o primeiro se

refere à renovação de objetos e de questionamentos – a cultura não era mais objeto

de devoção ou de erudição, mas questionada em seu relacionamento com o poder.


33

O segundo, que já foi referido, mas deve ser enfatizado, nasce de uma

combinação singular entre pesquisa e engajamento : o centro encarnou um desses

raros momentos da vida intelectual em que o engajamento dos pesquisadores não

se esteriliza na ortodoxia ou na cegueira, mas se apóia em uma forte sensibilidade

aos desafios sociais semeados pelo efeito-gueto do mundo acadêmico (op.cit.,p.92).

O terceiro está associado à recusa de patriotismos de disciplina : a Escola de

Birmingham não fez desaparecer as divisões instituídas pelas especializações

universitárias. Mas a recusa das fronteiras entre análise literária, sociologia do

desvio, etnografia, análise da mídia gerou uma interdisciplinaridade fecunda

(op.cit.,p.93).

Nos anos 1980, a atenção às repercussões ideológicas da mídia e às respostas

dinâmicas dos públicos se expandirá em um contexto político completamente

diverso. São os tempos do tatcherismo, que tem como efeito acelerar o

deslocamento das identidades sociais ligadas ao mundo operário de ontem. Esse

deslocamento também é marcado por uma forma de fracasso dos grandes

referenciais políticos, que a impotência de um Labour Party (Partido dos

Trabalhadores) confinado na oposição traduz.

Longe de constituir dois domínios distintos, os trabalhos sobre a mídia e o espaço público, de

um lado, e sobre as identidades sociais, de outro, vão encontrar a partir de então uma forte

articulação (op.cit., p.109).

Na década seguinte, Stuart Hall – considerado o empreendedor e o intelectual

mais preocupado com a sistematização da teoria no seio dos Estudos Culturais –

procura despertar a atenção dos pesquisadores para um novo momento político que

implica a necessidade de um “reposicionamento” das investigações a serem


34

desenvolvidas no campo acadêmico. Ele descreve, em 1991, alguns fatores de força

maior que obrigavam a “abrir as fronteiras”:

1) a ‘globalização’ de origem econômica, o ‘processo parcial de decomposição das

fronteiras que moldaram tanto as culturas nacionais como as identidades individuais,

especialmente na Europa’;

2) a fratura das ‘paisagens sociais’ nas ‘sociedades industriais avançadas’, o que faz com

que o ‘eu’ (self) seja doravante parte de um ‘processo de construção das identidades

sociais, no qual o indivíduo se define situando-se em relação a diferentes coordenadas e

não é redutível a uma ou outra coordenada (seja ela a classe, a nação, a raça, a etnia

ou o gênero)’;

3) a força das migrações que ‘transformam nosso mundo em silêncio’;

4) o processo de homogeneização e de diferenciação que mina, de alto a baixo, a força

organizativa das representações do Estado-nação, da cultura nacional, da política

nacional (Hall, apud Mattelart e Neveu, 2004, p.111).

Ao longo dos anos 1980, além da institucionalização dos Estudos Culturais na

Grã Bretanha, havia ocorrido um arranque de sua expansão mundial, que se

prolonga no limiar do século XXI. Essa expansão, se deve, em parte, ao fato de as

lógicas sociais e intelectuais que tinham feito de Birmingham um grande núcleo de

importação conceitual encontrarem seu equivalente em numerosos países.

Trinta anos depois dos primeiros textos marcantes de Birmingham, a influência

dessa corrente de pesquisa se estende, seus pólos se redistribuem. Os Estados

Unidos constituem um novo transmissor e uma base essencial desse

desenvolvimento, mas em inúmeros países o ensino de Estudos Culturais se

estabelece, por vezes com a criação de departamentos, e sempre com a difusão de

manuais, livros e revistas, e com a ampliação dos objetos a serem considerados.


35

Uma informação ilustrativa das proporções dessa expansão dos Estudos

Culturais é que : no outono de 2002, um mecanismo de busca registrava na web

mais de dois milhões e quinhentas mil referências distintas a partir do termo

(op.cit.,p.127). A rápida expansão trouxe, todavia, alguns prejuízos – como se

poderia esperar, muitos dos trabalhos desenvolvidos não apresentaram a qualidade

ou o aprofundamento que seriam desejáveis, pois se constituíram a partir de uma

internacionalização mal contextualizada.

Na opinião de Mattelart e Neveu (2004, pp.165,166),

para escapar a uma inexorável depreciação, os estudos culturais devem voltar a questões

com as quais se confrontavam nos anos 1970: onde se situam hoje as conexões

interdisciplinares produtivas? Como a militância pode ser o motor e não uma ameaça para o

trabalho intelectual? E também devem encarar desafios inéditos: a administração de riscos

decorrentes de uma institucionalização acabada, o questionamento sobre o que mudou na

economia e o estatuto do cultural.

No que se refere ao estatuto da cultura, é preciso considerar a cultura na era

chamada “global”, o que significa efetuar uma reflexão mais atenta à boa articulação

entre o global e o local, grandes desafios e pequenos objetos. Esse tipo de enfoque

pode dar a uma análise ambiciosa do cultural apoios mais firmes. Alguns trabalhos

realizados recentemente sobre os territórios e as diásporas se ocuparam

exatamente disso, e também de tecer laços inéditos entre as disciplinas.

Esse é um dos únicos campos onde o programa de pesquisas de Birmingham

se mantém respeitado, mesmo que a marginalização das referências marxistas faça

o léxico aqui resvalar de resistência e subversão para cidadania e espaço público. A

questão das diásporas, das imigrações e da mobilidade espacial é essencial,

porquanto permite uma abordagem concreta das formas e dos efeitos da


36

globalização... ela é ainda o lugar do confronto com novas mitologias sociais

(op.cit.,p.188).

Contribuições importantes foram oferecidas pelos trabalhos de Stuart Hall

acerca dos objetos de estudo acima referidos. Algumas de suas conclusões serviram

como embasamento para as linhas de pensamento adotadas ao longo dessa

pesquisa. No entanto, o ritmo da produção do pesquisador jamaicano tem se

atenuado ao lo ngo da década presente, o que naturalmente motiva em nós uma

busca por atualização nas pesquisas da cultura de globalização na produção de

outros intelectuais.

2.3 OS ESTUDOS LATINO-AMERICANOS DE CULTURA

Embora os Estudos Culturais, sobretudo pela trajetória de sua constituição e

consolidação, tenham nos inspirado e fornecido um bom nível de compreensão dos

mecanismos em operação na cultura contemporânea, faz-se necessário

compreendermos algumas especificidades da atuação desses mecanismos na

cultura da América Latina, e mais especificamente do Brasil.

Para isso, é preciso nos situarmos no panorama dos chamados Estudos Latino-

Americanos de Cultura. Neles, a interrogação sobre as culturas populares e as

identidades culturais na América Latina é rica de uma vasta memória política, assim

como os Estudos Culturais britânicos.

Mas, diferentemente dos estudos da Escola de Birmingham, que foram

inaugurados por pesquisadores provindos de uma esquerda em busca de um

modelo alternativo de mudança social, os Estudios Culturales se estruturaram nos


37

anos de chumbo dos regimes autoritários e nos posteriores anos cinza das

transições democráticas, na confusão ou na desorientação das forças progressistas.

Os nomes mais representativos da produção sobre as culturas populares

contemporâneas na América Latina também não adotam diretamente os estudos de

Birmingham em seus quadros de referências. Dentre esses nomes, estão o

colombiano Jesús Martín-Barbero, o argentino, radicado no México, Nestor García

Canclini, o brasileiro Renato Ortiz e o mexicano Jorge González.

O brasileiro Renato Ortiz, por exemplo, com suas pesquisas sobre a “moderna

tradição” e a globalização do “internacional-popular”, assim como os demais, é

influenciado pelas tradições européias “postas em diálogo” com as referências

provindas da América Latina. Na avaliação das reflexões de Ortiz, é possível

identificar a presença das idéias derivadas dos estudos de Roger Bastide sobre a

aculturação, desenvolvidas em seus contatos com o “mundo negro brasileiro”, e de

Marcel Mauss, outro importante pensador francês.

Há ainda outros dois pontos em comum entre os Estudos Latino -Americanos de

Cultura. O primeiro é o fato de que, a despeito das convergências existentes entre

suas pesquisas, os estudiosos não viram utilidade em agrupar sob uma

denominação única a diversificada gama de estudos, tendo sido o termo genérico,

que utilizamos nesse texto, instrumentalizado estritamente para efeito da nossa

análise.

O segundo refere-se à falta de perspectivas de carreira para numerosos

pesquisadores, devida às dificuldades econômicas e/ou políticas que se perpetuam

em seus países. Esse ponto associa-se ao primeiro, na medida em que essas

dificuldades também impedem o financiamento de projetos intracontinentais de

cooperação.
38

Como conseqüência, os Estudios Culturales foram naturalizados sob o rótulo

Latin American Cultural Studies pelos departamentos de Literatura Ibero-Americana

ou das Línguas Espanhola e Portuguesa das universidades dos Estados Unidos. O

fato é bem elucidativo da maneira com que a globalização, que é também a

geopolítica da apropriação, trata as exceções culturais ou intelectuais (Mattelart e

Neveu, 2004, p.145).

O custo dessa apropriação é uma representação equívoca do encaminhamento

dos trabalhos produzidos na América Latina, um apagamento de suas raízes e

singularidades, além do risco de neutralização de todo efeito social possível de sua

pesquisa em suas sociedades.

Nesse ponto, é válido tomar o exemplo, nos anos 1960, do trabalho significativo

do pedagogo Paulo Freire, com a “Pedagogia do Oprimido”, que em consonância

com sua época, remetia a uma reflexão sobre os elementos de resistência

historicamente contidos nas culturas populares. Hoje, por outro lado, o que

constatamos no Brasil e no restante da América Latina é a carência da produção

contínua e constante de um volume de trabalhos de pesquisa sobre cultura

contemporânea, do qual se possa extrair obras representativas como a de Freire,

que não estejam empobrecidas de um sentido político compatível com o seu tempo.

Mattelart e Neveu (2004, pp.155,156) apontam algumas inconsistências de

grande parte dos trabalhos produzidos por estudiosos latino-americanos da cultura

na sua configuração presente:

a ausência de perspectiva histórica, que explica notadamente a adesão precoce e acrítica à

noção de globalização; o desconhecimento das análises formuladas pela economia política das

indústrias culturais e das indústrias informacionais; a hesitação em se interrogar sobre as lógicas

dos sistemas técnicos; a crescente defasagem diante das novas dinâmicas do movimento social;
39

e por fim, mas não por último, a carência de problematização do novo estatuto do saber e dos

intelectuais no capitalismo contemporâneo, caracterizado pelo duplo movimento de subsunção

do trabalho intelectual e de intelectualização geral do trabalho e do consumo a partir da

expansão, em todos os setores da vida, das tecnologias da informação e da comunicação.

2.4 ALGUNS USOS DA CULTURA NA ERA GLOBAL

Tendo descrito de forma sucinta o panorama atual dos Estudos Latino-

Americanos de Cultura, que apresenta um quadro de escassez de trabalhos sobre o

estudo das representações culturais da forma como se caracterizam no século XXI,

tornar-se-á mais clara a nossa motivação para adotar os resultados obtidos pelas

investigações do pesquisador George Yúdice 4 acerca dos modos como a cultura tem

sido mobilizada nesse período.

Embora a leitura de trabalhos do sociólogo brasileiro Renato Ortiz5 tenha

contribuído para nosso entendimento dos fenômenos da dinâmica cultural dos

tempos atuais 6, é na produção de Yúdice que encontramos as especificidades

relativas à recepção que vários setores sociais brasileiros têm feito da conceituação

de cultura elaborada e distribuída por diferentes mecanismos operantes nos

movimentos de integração transnacional.

Para Yúdice, na medida em que a globalização pluralizou os contatos entre os

diversos povos, houve uma conseqüente problematização do uso da cultura como

um expediente nacional. A partir do reconhecimento de que, enquanto os retornos

econômicos foram substanciais nos anos 1990, a desigualdade cresceu

4
George Yúdice é professor do Programa de Estudos Americanos e de Literaturas e Línguas Espanhola e
Portuguesa e diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos e do Caribe na Universidade de Nova York.
5
Renato Ortiz foi pesquisador do Latin American Institute da Universidade de Columbia.
6
Especialmente a leitura da obra Mundialização e Cultura (2003).
40

exponencialmente e a fraca premissa da teoria econômica neoliberal não foi

confirmada, multiplicaram-se os investimentos na sociedade civil e a cultura é a sua

maior atração.

Santana (apud Yúdice, 2006, p.31) afirma que o velho modelo de apoio público

às artes por parte do Estado está morto. Os novos modelos consistem de parcerias

com o setor público e com instituições financeiras internacionais, em particular os

Bancos de Desenvolvimento Multilateral (BDMs) como o Banco Mundial e o Banco

Interamericano de Desenvolvimento.

Se a maioria dos esquerdistas, seguindo Marx e a noção de ideologia de

Gramsci, já acreditavam que a cultura é uma luta política, eles estabeleciam,

entretanto, uma oposição entre os domínios da economia e da cultura. Já, nos dias

de hoje, o que se pode identificar é uma culturalização da economia.

Essa culturalização, por sua vez, não aconteceu naturalmente, ela foi

cuidadosamente coordenada através de acordos comerciais e de propriedade

intelectual. Ela tornou-se, com o auxílio da nova tecnologia de comunicações e

informática, a base de uma nova divisão internacional de trabalho cultural,

necessária ao fomento da inovação e para a criação de conteúdo. Portanto, a nova

fase do crescimento econômico, a economia cultural, também é uma economia

política.

Nessa economia, o lucro é obtido na possessão, que é o mesmo que criação

dos direitos de propriedade, os que não têm esses direitos ou que os perderam

devido à aplicação de leis concebidas para favorecer os interesses das corporações

são relegados ao trabalho de provedores de serviço e de conteúdo.

É por isso que, segundo Yúdice (2006, p.38), os Estados Unidos, a fim de

manter seu domínio sobre a nova economia, em um relatório de 1995, a respeito da


41

Propriedade Intelectual, realizado pelo Grupo de Estudos da Casa Branca (IITF),

informava m que :

todos os computadores, telefones, scanners, impressoras, interruptores, roteadores, cabos,

redes e satélites do mundo ... não criarão uma infra-estrutura nacional de informação (NII)

se não houver conteúdo. O que levará a NII em frente é o conteúdo que se desloca através

dessa infra-estrutura: recursos informativos e de entretenimento; acesso aos recursos

culturais mundiais; inovação de produtos; e maior variedade no consumo cultural.

A nova divisão internacional de trabalho cultural imbrica a diferença local com

administração e investimento supranacionais. Isto não significa que os efeitos dessa

cultura transnacional crescente – evidente nas indústrias do entretenimento e na

assim chamada sociedade civil global das ONGs – sejam homogeneizados (op.cit,

p.17). Diferenças regionais e nacionais, entendidas como campos de força

diferentemente estruturados, formam o sentido de qualquer fenômeno e revelam-se

funcionais para o comércio e o ativismo globais.

Nas últimas três décadas, muitos teóricos romperam com a tônica estatista do

marxismo tradicional e com a mercantilização modernista das artes, colocando a

estética e a comunidade na formulação de uma alternativa cultural-política para a

dominação. Partindo, igualmente, de âmbitos sociais microestruturais, a política

cultural torna-se, assim, fator visível para repensar os acordos coletivos. Esse termo

reúne o que na modernidade pertencia à emancipação, por um lado, e à regulação

por outro. Essa conjunção é talvez a expressão mais clara da conveniência da

cultura.

Ela é utilizada para resolver uma série de problemas para a comunidade,

problemas que antes eram de domínio da economia e da política. Nas palavras dos

representantes do Banco Mundial, proferidas em 1999, pode-se constatar que esse


42

é um projeto claramente estabelecido pelos principais agentes da economia

transnacional, que tem obtido êxitos progressivamente maiores nessa última década:

A cultura material e expressiva é um recurso [grifo nosso] subvalorizado nos países em

desenvolvimento. Ela pode gerar renda através do turismo, do artesanato, e outros

empreendimentos culturais. O patrimônio gera valor. Parte de nosso desafio mútuo é analisar os

retornos locais e nacionais dos investimentos que restauram e extraem valor do patrimônio

cultural – não importando se a expressão é construída ou natural, tais como a música indígena,

o teatro, as artes (Banco Mundial, apud Yúdice, 2006, p.31).

Todos esses fatores têm operado uma transformação naquilo que entendemos

por cultura e o que fazemos em seu nome e essa transformação, que segue

assumindo contornos específicos, conforme a descrição de Yúdice, será abordada e

exemplificada mais detalhadamente nos comentários acerca da análise dos tópicos

culturais selecionados para essa pesquisa.

Antes, contudo, é preciso esclarecermos que há diferentes interpretações por

parte dos teóricos acerca do processo de estabelecimento daquilo que Yúdice

demonina “culturalização da economia”. Para melhor entendermos essas

controvérsias, reconstituiremos as bases sobre as quais ela é construída, que são,

como havia sido mencionado, os acordos comerciais e de propriedade intelectual.

2.5 DEBATES SOBRE A CULTURA NA ERA GLOBAL

De acordo com Warnier (2000,p.110), a habilidade para tecer acordos

comerciais de âmbito internacional veio sendo desenvolvida de modo paulatino a

partir da segunda metade do século XIX . O autor faz uma síntese desse

desenvolvimento com as seguintes palavras :


43

o sucesso do telégrafo provocou a criação, em 1865, da União Telegráfica Internacional. Esta

União serviu de modelo para muitos outros setores da comunicação e da mídia: os correios

(1874), pesos e medidas (1875), rotas marítimas (1879), proteção da propriedade industrial

(1883), da propriedade das obras literárias e artísticas (1886), ferrovias (1890), etc.

Durante aproximadamente um século, a experiência das organizações internacionais permitiu

elaborar know-how e o hábito de cooperação mundial no setor da mídia, das comunicações e

dos transportes. A própria noção de organização mundial, limitando a soberania dos Estados

através de regulamentos e decisões restritivas em escala global, ganhou terreno gradualmente.

Após a Segunda Guerra Mundial, nos países devastados pela guerra, foi preciso

reerguer o sistema educativo, as bibliotecas, os museus. Essa necessidade motivou

a criação da UNESCO (United Nations Educacional, Scientific and Cultural

Organisation), em Londres, no mês de novembro de 1945, com a assinatura de um

ato constitutivo.

A organização tem atualmente 111 Estados membros e sua ação é

coordenada por uma Conferência Geral que reúne representantes de todos os

Estados membros e por um Secretariado Geral presidido por um diretor. Os recursos

que utiliza provêm das contribuições dos Estados membros e de fundos extra-

orçamentários captados caso a caso, por certos projetos. Os trabalhos são

realizados em ligação com as Comissões Nacionais de cada país, com ONGs e

organismos internacionais, como o Banco Mundial.

A UNESCO sempre se mostrou especialmente ativa no que se refere ao

patrimônio mundial, tomando medidas jurídicas e técnicas. Porém, a educação e o

patrimônio mundial não apresentam motivos de maiores conflitos econômicos e

políticos, o que tornou relativamente fácil convertê-los em objetos de consenso.


44

Em contrapartida, em uma reunião da UNESCO realizada em Argel, em

1973, foi levantado o tema do desequilíbrio Norte-Sul na estrutura e nos fluxos de

informação dominados pelas agências de notícias e as mídias do Norte. A

Conferência gerou deliberações que foram chamadas de uma Nova Ordem Mundial

da Informação e da Comunicação (NOMIC).

Em 1978, a organização tenta dar início à NOMIC, por meio de uma

“Declaração sobre os princípios fundamentais” que deveriam nortear as atividades

dos órgãos de informação. Em 1980, as mídias ocidentais se insurgiram contra as

tentativas de liberalização do acesso à informação. No contexto da Guerra Fria, isso

pareceu inaceitável tanto para os soviéticos, quanto para a mídia americana, que

temiam perder assim a vantagem da qual gozavam, tendo o controle mundial não só

da informação, como da comunicação.

Em 1984, os Estados Unidos se retiraram da UNESCO, seguidos pela Grã

Bretanha e Cingapura, reduzindo 25% do orçamento de funcionamento da

organização e deflagrando uma crise que acabou por promover reformas de gestão.

É claro que, a essa altura, a entidade já havia, progressivamente, desde a sua

fundação, ampliado seus campos de competência, passando a uma política mundial

da cultura. E, embora ela tivesse militado em favor da idéia de que a cultura é um

assunto importante demais para ser abandonada somente aos seus mercadores, os

produtos culturais já eram, então, também mercadorias.

Portanto, levadas pela onda de liberalização das trocas que ganhou força

nos anos 80, as organizações comerciais buscaram afirmar sua influência sobre as

trocas culturais. Essas organizações (o GATT – Acordo Geral sobre as Tarifas

Alfandegárias e o Comércio; e depois a OMC – Organização Mundial do Comércio)


45

têm um papel cuja importância para o comércio mundial é vital : estabelecer as

regras do jogo das trocas comerciais.

O comércio mundial é um setor no qual as práticas preferenciais,

protecionistas e até desleais são a regra e não a exceção, logo, como afirma

Warnier (2000, p.115),

o problema a resolver é o seguinte : como estabelecer regulamentos universais, a

multilateralização dos acordos e o alinhamento das tarifas e das barreiras alfandegárias

sem colocar o fraco à mercê do forte? Em outros termos, como colocar um boxeador peso

pluma e um peso pesado no mesmo ringue, com as mesmas regras de jogo?

O GATT, com sede em Genebra, fundado por um tratado multilateral que

entrou em vigência em 1948, era o responsável pela fixação de regras para as

trocas comerciais mundiais, com vistas a equacionar o problema citado. Ele foi

substituído em 1995 pela OMC.

No meio da década de 80, dada a intensificação da globalização dos fluxos

financeiros, tecnológicos e comerciais, tornou-se inevitável que os produtos das

indústrias culturais caíssem no domínio do GATT e da OMC, à despeito dos debates

suscitados pela NOMIC.

Ainda assim, durante a Rodada do Uruguai do GATT (1986-1993), os

franceses se engajaram vigorosamente em favor da retirada das produções

audiovisuais das negociações, alegando a “exceção cultural” – a expressão foi

inventada por Jack Lang, então Ministro da Cultura.

Segundo Yúdice (2006, p.37), os franceses já discutiram longamente sobre o

fato de que os filmes e a música, em sua opinião, são cruciais para a identidade

cultural e não deveriam ser sujeitos aos mesmos termos do mercado, como, por
46

exemplo, carros e tênis. Os negociadores americanos contra-argumentaram que os

filmes e programas de televisão são bens, sujeitos aos mesmos termos.

Warnier (op.cit., p.116) afirmava, que – no período da produção/publicação

de sua obra (a qual citamos nesse estudo), entre os anos de 1999 e 2000 – o

cinema francês produzia de 100 a cento e 120 longas-metragens por ano, e era

ameaçado diretamente pela concorrência americana.

Nas pesquisas que resultaram na elaboração de nossa dissertação de

mestrado, pudemos constatar que as reivindicações francesas a respeito do tema

continuavam se renovando e fizemos referência no capítulo inicial da obra à 32ª

sessão da Conferência Geral da UNESCO, realizada em 2003, que tinha como tema

a sustentação da diversidade cultural, sobre a qual a França encabeçou várias

propostas.

A reportagem publicada na revista Isto É, intitulada Mistura Fina, menos de

um mês depois da Conferência 7, afirmava que a França, com uma política de cotas

obrigatórias de 40% de filmes nacionais em todas as salas de cinema, exemplificava

a sua interpretação da necessidade de proteção para a produção de cultura

nacional.

O Ministério da Cultura francês justifica a validade do apoio do Estado

nesse caso, por se tratar de uma questão de sobrevivência, pois a possibilidade de

criação artístico-cultural tornara-se demasiado frágil. Também ressalta, no entanto,

que o estímulo à produção francesa não significa fechar barreiras para os enlatados

hollywoodianos, uma vez que a diversidade cultural só faz e fará sentido se não

tolher a liberdade de expressão, seja ela dos artistas ou do público.

7
A edição é a de 12 de novembro de 2003 (pp.83,84,85) e a Conferência se realizou entre os dias 29 de setembro
e 17 de outubro deste mesmo ano.
47

Mas deve estar claro que o essencial é que a diversidade cultural seja

interpretada em cada país; e que se promova a união entre os vários países

interessados em assegurar um espaço democrático de interação internacional.

Desse modo, manifestações culturais das mais diversas proveniências poderão

conviver de modo igualitário.

A associação da “exceção cultural” com a sobrevivência da diversidade

cultural – ou ao menos, da diversidade na produção das indústrias culturais – que o

Estado Francês visou estabelecer, está clara nas declarações de representantes do

Ministério da Cultura durante a 32ª Conferência da Unesco , conforme acabamos de

relatar. Essa associação contrasta com a afirmação de Warnier (op.cit, p.116), de

que o cinema francês está enraizado em uma tradição cultural de cinema de autor e

tem o benefício de um apoio do Estado, que o encara como um instrumento de

influência da língua e da civilização francesas.

É possível que a tradição universalista e civilizadora do modo de conceituar

a cultura que vigorou na França desde o século XVIII, adentrando o século XX,

ainda influencie, em alguma medida, as linhas de pensamento dos governantes

franceses quando estes atuam nas negociações internacionais sobre o tema.

Contudo, como é esperado na dinâmica da arena política, eles não se

furtam, na 32ª Conferência da Unesco, a um enquadramento em uma argumentação

oposta, a da sustentação da diversidade e pluralismo de culturas, em mais uma

tentativa de assegurar o direito à “exceção cultural”.

De toda forma, seria bem mais coerente com o posicionamento político da

França no campo de forças instaurado no cenário internacional das disputas

comerciais, partindo do pressuposto evidente de que ela está situada em posição


48

não hegemônica, aliar-se àqueles que visam a preservação de suas produções

culturais em lugar de rivalizar com a massificação da cultura americana.

Essa massificação não deixa de ser, uma vertente contemporânea da

universalização de outros tempos idealizada pelos franceses, exceto pelo fato de

que ela tem obtido resultados em uma progressão rápida e constante, na medida em

que se vale de mecanismos e recursos bem mais eficientes. Além disso, o contexto

sócio-histórico e de interdependência das nações nos tempos atuais tem se

configurado como terreno fértil para seu crescimento.

No caso da “exceção cultural”, os representantes franceses só conseguiram

obter sucesso ao final da Rodada do Uruguai, em 1993. Mas tratava-se apenas de

um sursis, pois vários fatores se opuseram à prolongação deste privilégio,entre eles :

a compressão digital, o cabo, os satélites, etc.; as novas tecnologias que derrubam,

uma a uma, todas as fronteiras que protegem a comunicação cultural.

Nesse ponto, as idéias de Warnier (op.cit., p.141) afinam-se com as de

Yúdice, quando o autor detalha a atuação americana nesse mercado globalizado de

cultura :

na realidade, os americanos pretendem construir, sobre a identidade dos canais de

comunicação digitalizados, uma identidade de processamento dos conteúdos culturais. É o

que chamamos de ‘convergência’ (das telecomunicações e do audiovisual, dos conteúdos e

dos canais), em nome da qual os grupos multimídias mais poderosos pretendem fazer

progredir sua interferência sobre os conteúdos, bem como sobre os suportes, de acordo

com a política de liberalização dos mercados e da concorrência mundial.

Para Yúdice, o fato de os direitos autorais estarem cada vez mais nas mãos

dos produtores e distribuidores dos maiores conglomerados de entretenimento , que

cumpriram pouco a pouco os requisitos para obter a propriedade intelectual, chega


49

ao ponto de converter os “criadores” quase que em meros “provedores de conteúdo”.

É natural que nessa conjuntura, o cinema de autor francês sinta-se ameaçado,

provocando uma espécie de debate franco-americano sobre a cultura.

Há divergências, todavia, na interpretação que os dois autores apresentam

das reverberações desse confronto, que é, na esfera cultural, representativo dos

argumentos do movimento antiglobalização. Para Warnier (op.cit., p.165), confundir

as indústrias da cultura com a cultura, é tomar a parte como o todo, é desprezar

aquilo que o pesquisador chamará de “conservatórios culturais”, locais onde há

produção de autenticidade, revelando a capacidade das culturas para resistir à

erosão.

Esses locais são clubes, escolas, criações de animais, plantações de frutas,

conventos, etc. Em alguns deles, haverá grupos em que os sujeitos vivem melhor

dançando, cuidando do vinho ou dos animais do que assistindo aos espetáculos de

marketing, mesmo que todos usem blue jeans e bebam Coca-cola.

Por tudo isso, o autor considera que falar de globalização da cultura trata-se

de um abuso de linguagem, porque o que existe para ele é a globalização de certos

mercados dos chamados bens culturais (cinema, audiovisual, disco, imprensa,

especialmente as revistas). E assim, o debate sobre a americanização da cultura em

escala mundial revela-se como um falso debate, fortemente inscrito nas angústias do

imaginário.

Para justificar esse ponto de vista, Warnier opõe o que chama de uma

abordagem macrosociológica da cultura atual, que enfoca a emissão de cultura

globalizada, à outra, microetnológica, que deveria ocupar-se da recepção localizada.

Adotando o ângulo de visão da segunda abordagem, entender-se-á que cada

cultura, cada grupo conserva sua particularidade e defende sua identidade


50

recontextualizando os bens importados. E, nesse sentido, outros pólos de criação

cultural se contrapõem eficazmente à criação americana, principalmente na Europa,

na Ásia e na América Latina.

Essa visão positiva de Warnier, sobretudo no tocante aos “conservatórios

culturais, pode-se associar ao que Yúdice (2006, p.45) classifica como a projeção de

Santos, de um novo paradigma utópico. Ela pode ser melhor sintetizada nas próprias

palavras de Santos (2001, p.145), para quem uma espécie de ética da informação

poderia ser viabilizada em função da capacidade da cultura popular de rivalizar com

a cultura de massas :

a popular, essa cultura da vizinhança, valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da

escassez e a experiência da convivência e da solidariedade ... Tal cultura realiza-se

segundo níveis mais baixos de técnica, de capital e de organização, daí suas formas típicas

de criação. Isto seria, aparentemente, uma fraqueza, mas na realidade é uma força, já que

se dá, desse modo, uma integração orgânica com o território dos pobres e o seu conteúdo

humano. Daí a expressividade dos seus símbolos, manifestados na fala, na música e na

riqueza das formas de intercurso e solidariedade entre as pessoas.

A cultura de massas produz certamente símbolos. Mas estes, direta ou indiretamente ao

serviço do poder ou do mercado, são, a cada vez, fixos. Frente ao movimento social e no

objetivo de não parecerem envelhecidos, são substituídos, mas por uma outra simbologia

também fixa : o que vem de cima está sempre morrendo e pode, por antecipação, já ser

visto como cadáver desde o seu nascimento. É essa a simbologia ideológica da cultura de

massas.

As idéias de Santos são fundamentadas, segundo a descrição de Yúdice

(op.cit., p.45), na ativação de um “princípio comunitário”, baseado na solidariedade,

e de um princípio “estético-expressivo”, baseado na autoria e na artefatualidade, que


51

por sua vez, deveria levar a alternativas emancipatórias como a abolição da

hierarquia Norte-Sul. Essa linha de pensamento adotada por Santos, se opõe ao que

o próprio autor denomina pensamento único, como o próprio título da obra citada

sugere 8.

O jornalista Ignácio Ramonet (apud Warnier, op.cit., p.160), exprimiu o temor

de ver o desenvolvimento desse pensamento único9, o qual é constituído

pelo credo do liberalismo econômico, que, por ser infinitamente citado, comentado e

discutido por ensaístas, jornalistas, universitários, homens políticos de direita e de

esquerda, e pelos meios de comunicação que citam-se entre si e competem para ganhar os

pontos de audiência, acabam por adquirir ‘tal força de intimidação que sufoca qualquer

tentativa de reflexão livre e torna difícil a resistência contra este novo obscurantismo’.

Warnier, todavia, considera infundado o temor de Ramonet, que, para ele

privilegia uma abordagem globalizante da geopolítica mundial e subordina a ela os

fatos da cultura. E as críticas se estendem para todos os numerosos analistas que

menosprezam o que é muito modesto e local para ser captado pela mídia e que é

apreendido apenas pela sensibilidade da Etnologia.

É claro que devemos levar em conta a pertinência das observações de

Warnier quanto à relevância dos estudos da recepção e recontextualização dos

produtos de mídia realizadas diferentemente por cada cultura local. Conforme

Mattelart e Neveu (2004,p.197) definem, esse processo é uma espécie de destilação

no cotidiano dos valores orientados, que acaba por gerar antídotos, réplicas e

aculturações contraditórias. Entretanto, essa dinâmica em nada empana o fato de

8
O título é Por uma outra Globalização : do pensamento único à consciência universal.

9
Ele utiliza a mesma expressão de Santos.
52

que está em andamento a instauração de uma nova mentalidade coletiva e de um

horizonte de expectativas e de frustrações crescentes.

É natural que o enfoque das investigações sobre a cultura na

contemporaneidade parta do jogo cultural que deriva de reviravo ltas das estruturas

de poder de nações mais hegemônicas. Elas operam, hoje, em escala planetária,

sim, embora não homogeneamente – devido à inédita interdependência político-

econômica entre as nações – uma reconfiguração constante, crescente e

significativa de um grande número de culturas e subculturas locais.

Essas culturas podem ser grandes e complexas estruturas sociais urbanas,

ou outras em processo de urbanização, ou ainda culturas rurais, ou mesmo mais

primitivas, que, de todo modo, já começam ou estão em vias de começar a sofrer

influências de processos de modernização, com seus benefícios ou seus prejuízos e,

inevitavelmente, também, com suas incoerências.

A reconfiguração das culturas locais se apóia na força e vitalidade da

mentalidade coletiva, à qual Mattelart e Neve u se referem. Ela tem provocado

continuamente, mesmo que de formas muito complexas e diferenciadas e em ritmos

muito distintos, revisões vigorosas nos valores e no modus vivendi dos sujeitos que

integram essas culturas ou subculturas.

Compõe essa mentalidade a instrumentalização da cultura, a que nos

referimos anteriormente nos estudos de Yúdice acerca dos usos da cultura na era

global. Mattelart e Neuveu (op.cit., p.195) reforçam a teoria de Yúdice, quando

afirmam que

pouco a pouco se impôs uma noção de cultura instrumental, funcional com relação à

necessidade de regulação social da nova ordem social sob efeito dos novos imperativos da
53

gestão simbólica dos cidadãos e dos consumidores pelos Estados e pelas grandes

unidades econômicas.

Mais adiante será possível exemplificarmos como os cidadãos têm adotado

essa mesma instrumentalização no modo como conceituam, representam ou

integram as negociações sobre suas próprias culturas ou produtos culturais locais. A

apropriação dessa conduta por parte dos sujeitos só é possível porque atrelada à

reconfiguração de suas culturas está a reestruturação permanente de suas

identidades culturais.

2.6 CULTURA E IDENTIDADE

Stuart Hall propõe três concepções de identidade relacionadas a categorias de

sujeitos características de distintas fases da história recente – o sujeito do

Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

No final da Idade Média, ainda predominava uma ordem secular e divina que

configurava apoios estáveis em termos de tradições e estruturas, os quais se

sobrepunham sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo

soberano. Apenas no intervalo entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o

Iluminismo do século XVIII surgiu o “indivíduo soberano”, que para muitos teóricos,

foi o motor que colocou todo o sistema social da “modernidade” em movimento.

A concepção primária desse novo sujeito deve sua formulação ao filósofo

francês René Descartes (1596-1650), que foi profundamente influenciado pelas

revoluções no pensamento científico do século XVII. Atingido pela profunda dúvida

que se seguiu ao deslocamento de Deus do centro do universo, Descartes O definiu

como o Primeiro Movimentador de toda criação e explicou o resto do mundo como


54

sendo composto por duas substâncias distintas – a substância espacial (matéria) e a

substância pensante (mente).

No centro da “mente” ele colocou o sujeito individual, constituído por sua

capacidade para raciocinar e pensar. Desde então, esta concepção do sujeito

racional, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento, tem sido

conhecida como o “sujeito cartesiano”. Ele era o sujeito da modernidade em dois

sentidos : a origem ou “sujeito” da razão, do conhecimento e da prática; e aquele

que sofria as conseqüências dessas práticas – aquele que estava sujeitado a elas

(Hall, 2004, p.28).

Essa categoria de sujeito estava inserida em uma economia clássica, na qual o

comércio era descrito através de um modelo que supunha indivíduos separados que

[possuíam propriedade e] decidiam, em algum ponto de partida, entrar em relações

econômicas ou comerciais (Williams, apud Hall, 2004, p.29).

No entanto, à medida em que as sociedades modernas se tornavam mais

complexas, elas adquiriam uma forma mais coletiva e social. As teorias clássicas

liberais de governo, baseadas nos direitos e consentimento individuais, foram

obrigadas a dar conta das estruturas do Estado-nação e das grandes massas que

fazem uma democracia moderna.

Emergiu, então, uma concepção mais social do sujeito, que possibilita classificá-

lo como um sujeito sociológico. Esta concepção é, em grande parte, um produto da

primeira metade do século XX, quando as Ciências Sociais assumem sua forma

disciplinar atual.

Já na segunda metade do século XX, o período da modernidade tardia, se

operaram cinco grandes avanços na teoria social e nas Ciências Humanas ocorridos

no pensamento, ou que sobre ele tiveram seu principal impacto. Sua conseqüência
55

mais significativa foi o descentramento final do sujeito cartesiano e uma forçosa

revisão do conceito de sujeito sociológico.

Em um primeiro momento, considerando que estamos relacionando as

diferentes categorias de sujeito às variantes econômico-sociais nas quais se

configuram, é preciso levar em conta a relevância do trabalho de Marx, que

pertence, naturalmente, ao século XIX e não ao século XX, mas foi reinterpretado na

década de sessenta, dentre outros modos, a partir de sua afirmação de que os

homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas. Seus

novos intérpretes leram isso no sentido de que os indivíduos podiam agir apenas

utilizando os recursos materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por gerações

anteriores.

O estruturalista marxista Louis Althusser (1918–1989), por exemplo, afirmou

que, ao colocar as relações sociais (modos de produção, exploração da força de

trabalho, os circuitos do capital) e não uma noção abstrata de homem no centro de

seu sistema teórico, Marx deslocou duas proposições-chave da filosofia moderna :

que há uma essência universal de homem ; e que essa essência é o atributo de

“cada indivíduo singular”, o qual é seu sujeito real. Esse “anti-humanismo teórico”

destacado por Althusser teve um impacto considerável sobre muitos ramos do

pensamento moderno.

Um segundo questionamento significativo do pensamento ocidental do século

XX ocorre com a descoberta do inconsciente por Freud, que arrasa com o conceito

do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada.

A leitura que pensadores psicanalíticos, como Jacques Lacan, fazem de Freud é que a imagem

do eu como inteiro e unificado é algo que a criança ‘aprende’ apenas gradualmente,


56

parcialmente, e com grande dificuldade. Ela não se desenvolve naturalmente a partir do interior

do núcleo do ser da criança, mas é formada em relação com os outros ... (Hall, 2004, p.37).

Para Lacan, os estudos de Freud propiciam uma concepção da identidade como

algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo

inato, existente na consciência no momento do nascimento. Nas descrições da teoria

psicanalítica, existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade, ela

permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo

formada”.

Por isso, Hall propõe que em vez de falar da identidade como algo acabado,

deveríamos falar de identificação. Pois, ao considerarmos as descobertas

freudianas, o surgimento da identidade passa a ser entendido não tanto na plenitude

da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas em uma falta de

inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das

quais nós imaginamos ser vistos por outros.

Conseqüentemente, essas considerações que futuramente se consolidam como

uma forma de pensamento pós-freudiana também contribuem para trazer

instabilidade a noções que implicam o sujeito racional e a identidade como fixos e

estáveis.

O terceiro descentramento do sujeito cartesiano está associado ao trabalho do

lingüista estrutural Ferdinand de Saussure, para quem a língua é um sistema social

que preexiste a nós e não um sistema individual. E, sendo assim, falar uma língua

não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais,

significa também ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em

nossa língua e em nossos sistemas culturais.


57

A partir da chamada “virada lingüística” que os estudos de Saussure iniciaram,

alguns filósofos modernos da linguagem por ele influenciados, como Jacques

Derrida, passaram a argumentar que o/a falante individual não pode nunca fixar o

significado de sua identidade, pois, as palavras carregam ecos de outros significados

que elas colocam em movimento.

Como Hall (2004,p.41) descreve, tudo que dizemos tem um “antes” e um

“depois” – uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. O significado é

inerentemente instável : ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é

constantemente perturbado (pela diferença).

O quarto e principal fator que contribuiu para uma reconfiguração das noções de

identidade e sujeito é a produção do filósofo e historiador francês Michel Foucault.

Ele ressaltou um novo tipo de poder, o “poder disciplinar”, que se desenvolveu ao

longo do século XIX e se concentrou em novas instituições que “policiam” e

disciplinam as populações modernas – oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais,

clínicas e assim por diante.

Seu objetivo consiste em manter ‘as vidas, as atividades, o trabalho, as

infelicidades e os prazeres do indivíduo’, assim como sua saúde física e moral, suas

práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com base no

poder dos regimes administrativos ... (op.cit.,p.42). No entanto, é importante

observar que embora esse poder seja o produto das novas instituições coletivas e

de grande escala da modernidade tardia, suas técnicas individualizam ainda mais o

sujeito.

Isso ocorre na medida em que o conhecimento especializado dos profissionais e

o conhecimento fornecido pelas “disciplinas” das Ciências Sociais propicia a

acumulação e o ordenamento sistemático de um aparato documentário individual –


58

que permite aferir a distribuição dos indivíduos numa dada população, por exemplo –

e torna -se um componente essencial do crescimento desse modo peculiar de

controle nas sociedades modernas.

O quinto descentramento é o impacto do feminismo. Em primeiro lugar, como um

dos “novos movimentos sociais” que emergiram durante os anos sessenta. Dentre

eles, estão as revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e

antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos revolucionários do

“Terceiro Mundo”, os movimentos pela paz e tudo aquilo que está associado com

“1968”.

Do conjunto constituído por esses movimentos, cabe destacar algumas

características que promoveram uma revisão significativa da posição social do

sujeito e da conceituação de identidade que os precederam. Agrupavam-se como

características : uma forma cultural forte e o fato de que esses movimentos

afirmavam tanto as dimensões “subjetivas” quanto as “objetivas” da política.

Além disso, eles refletiam o enfraquecimento ou o fim da classe política e das

organizações políticas de massa com ela associadas, bem como sua fragmentação

em vários e separados movimentos. E, uma vez que cada movimento apelava para a

identidade social de seus sustentadores, ocorreu o nascimento histórico do que veio

a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada

movimento.

Já como crítica teórica, o feminismo questionou a clássica distinção entre o

“dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”. O slogan do feminismo era : “o pessoal é

político”. Assim fazendo, ele contribuiu para desestabilizar as definições e

delimitações entre o sujeito cartesiano e sociológico.


59

Para melhor esclarecermos esse ponto , devemos lembrar que , no caso do

sujeito do Iluminismo, o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa,

uma visão muito “individualista” do sujeito e de sua identidade. Na noção de sujeito

sociológico, passa a haver uma consciência de que este núcleo interior do sujeito

não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras

pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e

símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava (op.cit.,p.11).

Trata-se, nesse caso, portanto, de uma concepção “interativa” da identidade

e do eu. A identidade, na acepção sociológica do termo, preenche o espaço entre o

“interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o público, ela costura o sujeito à

estrutura (seus mundos culturais), tornando ambos reciprocamente mais unificados e

predizíveis.

Entretanto, no período corrente, que tem sido classificado como pós-

moderno, em que os processos de globalização se intensificaram de forma

acelerada, as identidades, que compunham as paisagens sociais bem mais

estanques de outrora, estão entrando em colapso, devido a mudanças estruturais e

institucionais. Por isso, o próprio processo de identificação pelo qual nos projetamos

em nossas identidades culturais, sofreu ampliação considerável em seu caráter

provisório e variável, tornando-se, assim, bem mais complexo.

Com a multiplicação dos conteúdos e sistemas de representação cultural,

somos confrontados por um número exponencialmente crescente de identidades

possíveis e, ao mesmo tempo, bastante cambiantes, com as quais, ainda que de

modo temporário, poderíamos nos identificar. É a partir desse contexto que se pode

conceber o delineamento de um novo sujeito, um sujeito pós-moderno.


60

Para entendermos a conceitualização desse “sujeito fragmentado” e de suas

identidades culturais nos períodos que vêm sendo chamados de modernidade tardia

e pós-modernidade, é necessário tomarmos como ponto de partida um grupo

particular de identidades culturais, que são as identidades nacionais, e avaliarmos

como elas estão sendo afetadas ou deslocadas pela fase recente do processo de

globalização.

Em primeiro lugar, devemos considerar que as identidades nacionais não

são componentes com os quais nascemos, mas são formadas e transformadas no

interior da representação. Assim sendo, as pessoas não são apenas cidadãos/ãs

legais de uma nação, elas participam da idéia da nação tal como representada em

sua cultura nacional.

Uma nação é, portanto, uma comunidade simbólica, o que explica seu poder

para gerar um sentimento de identidade e lealdade (Schwarz, apud Hall, 2004, p.49).

A mesma lealdade e identificação que eram dadas à tribo foram transferidas à

cultura nacional e o “teto político” do Estado-nação se tornou uma fonte poderosa de

significados para as identidades culturais modernas.

A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização

universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de

comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições

culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional. Dessa e de

outras formas, a cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e

um dispositivo da modernidade. (Hall, 2004, pp.49,50).

Para analisarmos a cultura nacional como um sistema de representação,

caberá defini-la antes como um discurso, nos termos em que o vernáculo é descrito

pelo Penguin Dictionary of Sociology (apud Hall, 2004, p.50) – um modo de construir
61

sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que

temos de nós mesmos.

Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que

conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como

argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma ‘comunidade

imaginada’ (op.cit.,p.51)

Podemos concluir, então, que os integrantes de uma dada nação

compartilham uma narrativa da cultura nacional, que lhes é contada e recontada

continuamente. Essa narrativa possui algumas características principais e, dentre

elas, há duas que oferecem contribuições para as argumentações centrais de nosso

trabalho.

Em primeiro lugar, há uma narrativa da nação apresentada nas histórias e

nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Ela tem significado e

importância, na medida em que conecta nossas vidas cotidianas a um destino

nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. Em segundo

lugar, está a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade.

Ela se apóia no princípio de que os elementos essenciais do caráter nacional

permanecem imutáveis, a despeito de todas as vicissitudes da história.

Tendo como base, como exemplificamos, algumas estratégias discursivas,

podemos dizer, de forma sintetizada, que uma cultura nacional atua como uma fonte

de significados culturais, um foco de identificação e um sistema de representação.

Ernest Renan (apud Hall, 2004, p.58) define alguns mecanismos interacionais que

contribuem para a longevidade da narrativa da cultura nacional, ao afirmar que três

coisas constituem o princípio espiritual da unidade de uma nação: ... a posse em


62

comum de um rico legado de memórias ..., o desejo de viver em conjunto e a

vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva, a herança que se recebeu.

Podemos considerar essas três características, descritas por Renan, como

ressonantes daquilo que constitui a cultura nacional como uma “comunidade

imaginada”. Elas deixam claro, então, que a palavra nação refere-se tanto ao

Estado-nação como a uma condição de pertencimento.

As identidades nacionais representam precisamente o resultado da reunião entre essas

duas metades da equação nacional – oferecendo tanto a condição de membro do estado-

nação político quanto uma identificação com a cultura nacional : ‘tornar a cultura e a esfera

política congruentes’ e fazer com que ‘culturas razoavelmente homogêneas, tenham, cada

uma, seu próprio teto-político’ (Gellner, apud Hall ,2004, p.58).

Dizendo de outro modo, a cultura nacional busca unificar seus membros sob

uma mesma identidade cultural, a despeito de suas diferenças em termos de classe,

gênero ou raça. Resta-nos questionar se a identidade nacional é uma identidade que

de fato anula e subordina a diferença cultural.

Talvez seja mais razoável pensá-la como um ‘dispositivo discursivo’ que

representa a diferença como unidade ou identidade, já que todas as culturas

nacionais são de algum modo atravessadas por profundas divisões e diferenças

internas, sendo ‘unificadas’ apenas através do exercício de diferentes formas de

poder cultural (op.cit.,p.62).

Por um lado, deve-se concordar que, na “modernidade”, as culturas

nacionais, do modo como são idealizadas, tenderam, de maneira geral, a se

sobrepor a outras fontes, mais particularistas, de identificação cultural.

Contudo, a partir da “globalização” – termo que, conforme já mencionamos,

nesse trabalho, está sendo usado para sintetizar um complexo de processos e


63

forças de mudança – ocorre um movimento de distanciamento da idéia sociológica

clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por

uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao

longo do tempo e do espaço.

Essa perspectiva que enfoca a compressão de distâncias e de escalas

temporais é um aspecto central para a análise dos efeitos que a globalização exerce

sobre as identidades culturais. Mas, precisamos lembrar sempre que a globalização

não é um fenômeno recente, pois o capitalismo foi, desde o início, um elemento da

economia mundial, nunca permitindo que suas aspirações fossem determinadas por

fronteiras nacionais.

No entanto, embora a tendência à autonomia nacional tenha,

paradoxalmente, convivido com a tendência à globalização durante toda a

modernidade, é inegável que, desde os anos 70, tanto o alcance quanto o ritmo da

integração global aumentaram enormemente. Nessa última fase, a mais recente da

globalização, tornou-se cada vez mais marcada a separação entre espaço e lugar.

Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez

que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas

pela ‘presença’ – por uma atividade localizada ... A modernidade separa, cada vez mais, o

espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão ‘ausentes’, distantes (em

termos de local), de qualquer interação face-a-face. Nas condições da modernidade ..., os

locais são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes

deles (Giddens, apud Hall, 2004, p.72).

Os lugares permanecem fixos, pois é neles que temos “raízes”, o espaço

pode ser “cruzado” num piscar de olhos pelas novas tecnologias. Isso permite que

os fluxos culturais entre as nações e o consumismo global criem possibilidades de


64

“identidades partilhadas” – como “consumidores” para os mesmos bens, “clientes”

para os mesmos serviços, “públicos” para as mesmas mensagens e imagens. No

interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais

começam a receber novos delineamentos.

Em certa medida, o que está sendo discutido é a tensão entre o “global”

(contribuição universalista) e o “local” ( contribuição particularista) na formação das

“identidades”. É possível observar novos modos de articulação dos aspectos

particulares e universais ou novas formas de negociação da tensão entre os dois na

origem mesma da constituição dos “processos de identificação”. Estão sendo

produzidas novas identificações “globais” e novas identificações “locais”.

A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de “nichos” de

mercado), na verdade, explora a diferenciação local ... Este local não deve, naturalmente,

ser confundido com velhas identidades, firmemente enraizadas em localidades bem

delimitadas. Em vez disso, ele atua no interior da lógica da globalização [grifo nosso]

(op.cit., pp.77,78).

Além disso, a globalização é muito desigualmente distribuída ao redor do

globo, entre regiões e entre diferentes extratos da população dentro das regiões. E a

proliferação das escolhas de identidade é mais ampla no “centro” do sistema global

que nas suas periferias, as quais também estão se apropriando de seu efeito

pluralizador, embora num ritmo mais lento e desigual.

Entretanto, em todo o sistema, os confortos da Tradição são

fundamentalmente desafiados pelo imperativo de se forjar uma nova auto-

interpretação, baseada nas responsabilidades da Tradução cultural (Robins, apud

Hall, 2004, p.84). E o exercício dessa Tradução é um exemplo do caráter político das
65

novas identidades, isto é, de seu caráter “posicional” e conjuntural (sua formação em

e para tempos e lugares específicos).

Hall exemplifica o exercício da Tradução como sendo realizado pelos

integrantes das “novas diásporas” criadas pelas migrações pós-coloniais, já que eles

são obrigados a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente

serem assimilados por elas e sem perder completamente suas identidades.

Mas, deixa claro que as culturas híbridas constituem apenas um dos

diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da

modernidade tardia. Há muitos outros a serem descobertos. De acordo com o ponto

de vista proposto por esse trabalho, esse mesmo processo de Tradução está sendo

realizado, quando integrantes de comunidades locais ou mesmo grupos sociais

maiores que compõem nações “periféricas”, ou não hegemônicas culturalmente,

passam a atuar no interior da lógica da globalização.

Essa hipótese encontra suporte teórico no que Cuche (2002) denominará

concepção relacional e situacional da identidade. Como informa o autor, a identidade

como manifestação relacional foi assim definida na obra pioneira de Frederik Barth,

em 1969. Barth enfocou a identidade, como uma construção elaborada em uma

relação que opõe um grupo aos outros grupos com os quais está em contato.

Uma cultura particular não produz por si só uma identidade diferenciada : esta identidade

resulta unicamente das interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação que

eles utilizam em suas relações. Logo, ... para definir a identidade de um grupo, o importante

não é inventariar seus traços culturais distintivos, mas localizar aqueles que são utilizados

pelos membros do grupo para afirmar e manter uma distinção cultural (Cuche, 2002, p.82).

Assim, as identidades, sejam individuais ou coletivas, se constroem e se

reconstroem no interior das trocas sociais. Esta concepção dinâmica, forçosamente


66

se opõe àquela que poderia tomar traços de uma “identidade nacional” como

atributos originais e permanentes. Ocorre, então, uma mudança radical de

problemática : o estudo da relação é colocado no centro da análise e não mais a

pesquisa de uma suposta essência que definiria a identidade.

Nessa perspectiva, a identidade existe sempre em relação a uma outra, ou,

em outras palavras, identidade e alteridade são ligadas e estão em uma relação

dialética. Portanto, a identificação acompanha a diferenciação. E ao falarmos, nesse

ponto, em identificação, é importante ressaltarmos a convergência de idéias nas

proposições de Hall (2004) e Cuche (2002), no que se refere à distinção entre

identidade e identificação.

Como mencionamos anteriormente , Hall afirma que as descobertas de Freud

contribuíram para que o surgimento da identidade passasse a ser entendido não

tanto na plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas na

falta de inteireza que é preenchida pelas formas através das quais nós imaginamos

ser vistos por outros. Conseqüentemente, Hall propõe que, em vez de falar da

identidade como algo acabado, deveríamos falar de “identificação”. Ele também fala

de um processo de identificação pelo qual nos projetamos em nossas identidades

culturais.

Igualmente, Cuche (2002, p.183) sugere que

na medida em que a identidade é sempre a resultante de um processo de identificação no

interior de uma situação relacional, na medida também em que ela é relativa, pois pode

evoluir se a situação relacional mudar, seria talvez preferível adotar como conceito

operatório para a análise o conceito de ‘identificação’ do que a ‘identidade’. A identidade é

sempre uma concessão, uma negociação entre uma ‘auto-identidade’ definida por si mesmo

e uma ‘hetero-identidade’ ou uma ‘exo-identidade’ definida pelos outros.


67

Nas lutas sociais, a identidade entrará em jogo se considerarmos que nem

todos os grupos têm o mesmo “poder de identificação”, pois esse poder depende da

posição que se ocupa no sistema de relações que liga os grupos. Só podem impor

suas próprias definições, de si mesmos e dos outros, os que dispõem de autoridade

legítima, isto é, de autoridade conferida pelo poder. Assim sendo, as próprias

definições de identidade, em seu conjunto, funcionam como um sistema de

classificação, fixando as respectivas posições de cada grupo.

Cabe reforçar aqui a idéia de que, no contexto da fase mais recente da

globalização, observamos revisões significativas nos valores e modus vivendi de

muitas das culturas e subculturas das nações não hegemônicas, com a instauração

de uma espécie de nova mentalidade coletiva, nos termos de Mattelart e Neveu.

Dentre as bases estruturadoras dessa mentalidade, está incluída a

instrumentalização da cultura, ou sua mobilização como recurso, conforme

abordamos anteriormente na descrição de parte dos estudos de Yúdice sobre os

usos da cultura na era global. É por meio desses mecanismos que consideramos

que um número já representativo de comunidades e grupos sociais integrantes

dessas nações passam a atuar no interior da lógica da globalização.

É preciso esclarecer, contudo, que o processo de formação identitária não

deve ser interpretado de forma simplificadora, já que não existe grupo ou indivíduo

que esteja fechado a priori em uma identidade unidimensional – cada indivíduo

compõe o todo de seu processo de identificação a partir de suas diversas

vinculações sociais (de sexo, de idade, de classe social, de grupo cultural, ...).

A identidade é tão difícil de se delimitar e de se definir, precisamente em razão de seu

caráter multidimensional e dinâmico. É isto que lhe confere sua complexidade mas também
68

o que lhe dá sua flexibilidade. A identidade conhece variações, presta-se a reformulações e

até a manipulações.

Para sublinhar esta dimensão mutável da identidade que não chega jamais a uma solução

definitiva, certos autores utilizam o conceito de “estratégia de identidade” [grifo nosso].

Nesta perspectiva, a identidade é vista como um meio para atingir um objetivo (Cuche,

2002, p.196).

A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que

determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações

e suas escolhas. Dito de outra forma, por ser um motivo de lutas sociais de

classificação que buscam a reprodução ou a reviravolta das relações de dominação,

a identidade se constrói através das estratégias dos atores sociais.

No entanto, embora os grupos e indivíduos não sejam desprovidos de uma

certa margem de manobra, é inapropriado pensar que eles possam fazer o que

desejarem em matéria de identidade, pois as estratégias devem necessariamente

levar em conta a situação social, a relação de força entre os grupos, as manobras

dos outros, etc.

Além disso, a partir da constatação de que a identidade está sem cessar em

movimento, e de que cada mudança social leva-a a se reformular de modo diferente,

essas variações de identidade, que poderiam ser chamadas de deslocamentos,

encontram, de uma maneira geral explicação no conceito de estratégia. Ele

evidencia a relatividade dos fenômenos de identificação.

As estratégias de afirmação dos atores sociais que são ao mesmo tempo o

produto e o suporte das lutas sociais e políticas, apresentam-se, portanto, como o

substrato essencial da identidade. Enfatizando o caráter estratégico da identidade,

podemos ultrapassar o falso problema da veracidade científica das afirmações de

identidade.
69

O que existe é uma espécie de “fronteira”, que, nesse caso, trata-se,

evidentemente, de uma fronteira social, simbólica. Ela é estabelecida pela vontade

de uma coletividade de se diferenciar e o uso de certos traços culturais como

marcadores de sua identidade específica.

É importante perceber, todavia, que participar de certa cultura particular não

pressupõe a aquisição de uma identidade, que se concebe em uma vinculação

estreita e direta com todos os conteúdos e mecanismos de funcionamento dessa

cultura, já que uma mesma cultura pode ser instrumentalizada de modo diferente e

até oposto nas diversas estratégias de identificação.

Abordando a questão por essa perspectiva, não parece adequado estudar o

conteúdo cultural de uma dada identidade, e sim os mecanismos de interação que,

utilizando a cultura de maneira estratégica e seletiva mantêm ou questionam as

“fronteiras” coletivas.

É precisamente esse contraste entre inventariar os conteúdos culturais que,

em tese, compunham as identidades nacionais; e observar os novos processos

identificatórios, cujo surgimento e desenvolvimento é propiciado quando se

estabelecem certos contextos específicos da contemporaneidade, que constitui o

foco central de nossa investigação.

Qualquer mudança na situação social, econômica ou política pode provocar deslocamentos

de fronteiras. O estudo destes deslocamentos é necessário se quisermos explicar as

variações de identidade. A análise da identidade não pode então se contentar com uma

abordagem sincrônica e deve ser feita também em um plano diacrônico (Cuche, 2002,

pp.201,202 ).

Optamos, assim, por adotar o viés teórico de Cuche (2002), que sugere que

a única questão pertinente a se propor, tomando como premissa que a identidade é


70

uma questão social, é : Como, por que e por quem, em que momento e em que

contexto é produzida, mantida ou questionada certa identidade particular ? (op.cit.,

p.202).

2.7 ABORDAGENS CULTURAIS NO ENSINO DE LE(S)

Iniciamos essa seção, ressaltando o princípio essencial para a realização

dessa pesquisa, de que os estudos sobre a cultura têm influenciado sobremaneira

os estudos lingüísticos, assim como as descobertas no campo da Lingüística têm

proporcionado o surgimento de novos enfoques e interpretações para os fenômenos

culturais. E prosseguiremos, procedendo à definição e classificação dos estudos

socioculturais e sociopolíticos no âmbito das pesquisas – nesse caso, mais

especificamente da Lingüística Aplicada – sobre a aquisição de LEs.

Ellis (1994, p.196), ao comentar os resultados de pesquisas que visam

investigar a influência dos fatores socioculturais no aprendizado de uma segunda

língua (L2) 10, afirma que o impacto de tais fatores na proficiência dos aprendizes é

grande, mas a influência não é direta.

Segundo o autor, os fatores socioculturais influenciam indiretamente o

aprendizado da L2 de duas maneiras. A primeira é determinando as oportunidades

individuais que os aprendizes experimentam. Por exemplo, a classe socioeconômica

e o grupo étnico dos aprendizes pode afetar a natureza e a extensão do insumo ao

qual eles são expostos. A segunda é contribuindo para modelar as atitudes que os

aprendizes assumem em relação ao aprender.

10
Tomamos os resultados de pesquisas sobre a aquisição de L2 que consideramos serem igualmente válidos para
a aquisição de LEs.
71

Para Lightbown e Spada (1993, p.40), as atitudes dos aprendizes em

relação às comunidades das línguas-alvo, juntamente com suas necessidades

comunicativas, formam as bases da motivação. Assim, dependendo dessas atitudes,

a língua -alvo se converte em fonte de enriquecimento ou de ressentimento, levando-

se em conta, dentre outros condicionantes, a dinâmica social e as relações de poder

entre as línguas.

As influências socioculturais têm sido identificadas e estudadas com o intuito

de que se possa excluí-las do rol de dificuldades para o aprendizado de segundas

línguas ou línguas estrangeiras e convertê -las cada vez mais em elementos neutros,

ou mesmo facilitadores.

Como Tollefson (apud Ellis, 1994, pp.214,238,239) assinala, a maioria dos

modelos para a aquisição de L2 é calcada na visão neo-clássica de que os

aprendizes fazem escolhas, pesando os benefícios e custos do aprendizado da

língua. No entanto, os modelos não levam em consideração os fatores estruturais

que moldam essas escolhas, o ‘background’ histórico das forças econômicas,

políticas e sociais que determinam as escolhas individuais (p.238).

A necessidade de se considerar esses fatores é reconhecida por Brown

(1994, p.181), quando o autor tece o que chama de considerações sociopolíticas e

afirma que a relação entre língua e sociedade não pode ser longamente discutida

sem se tocar nas ramificações políticas da língua e das políticas de línguas.

Não só Tollefson (1991,1995), como Byram (1989), Pennycook

(1994,1995,1998), Auerback (1995) e Kramsch (1993,1998) estão entre os autores

que conferem destaque aos estudos no campo sociopolítico para que se operem

reformulações na área do ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras.


72

E dentre essas reformulações estão novos modos de compreender e

abordar a interculturalidade nas interações de sala de aula, cujos conteúdos e

enfoques devem se estender para além do situacional.

Puren (2004,p.56) equaciona esse deslocamento de perspectiva no trabalho

com a cultura no ensino de LEs. Para o autor, considerando a necessária

adequação entre fins e meios nos projetos de ensino, é premente, que, com base

em avaliações dos direcionamentos da política internacional e seus desdobramentos

socioculturais nos dias de hoje, revisitemos as estratégias dos modelos

comunicativistas.

Assim fazendo, será possível perceber que a perspectiva intercultural na

didática das línguas-culturas se abriu, certamente, nesses últimos anos, a questões

relativas a situações de contato permanente entre culturas diferentes, como no caso

de sociedades multiculturais e de fenômenos individuais ou coletivos de mestiçagem

cultural (op.cit.,p.62). Pode-se, então, associar a essa perspectiva, o objetivo de

preparar-nos a viver juntos com nossas diferenças (De Carlo, apud Puren, 2004,

p.62).

Porém, a culminação do processo de globalização em algumas empresas

deu lugar a situações qualitativamente diferentes que serão cada vez mais

freqüentes no futuro : é habitual, por exemplo – independentemente de que alguém

se alegre ou se lamente – que executivos franceses tenham que trabalhar em inglês,

em um site da internet de sua empresa, não só com alemães ou italianos, mas

também com outros franceses (op.cit.,p.62).

Portanto, quando não se trata apenas de ‘viver juntos’ (co-existir ou co-

habitar), mas de ‘fazer juntos’ (co-atuar), não nos podemos conformar em assumir

nossas diferenças : necessitamos imperiosamente criar juntos semelhanças


73

(op.cit.,p.62). Por isso, se deve operar o deslocamento da perspectiva no trabalho

com a cultura no ensino de LEs, passando do intercultural ao que Puren chama de

co-cultural, que deriva do objetivo co-acional.

Tomamos a proposta de Puren como ponto de partida para a apresentação

de algumas idéias que nortearam a idealização desse trabalho.

Pode parecer, à primeira vista, observando-se o exemplo dos executivos

franceses, que a leitura do co-acional não transcende os limites do situacional. No

entanto, o autor assinala o fato de que o trabalho com língua estrangeira em

contexto francês tratava de intercâmbios mais ou menos circunstanciais : com a

comunicação à distância – escrever em português a uma empresa brasileira, falar ao

telefone em alemão com um colega austríaco; ou com a saída do país – participar de

uma reunião de trabalho em espanhol com engenheiros mexicanos (op.cit.,p.62).

Com a progressão da integração européia, se passa a condiderar que todo aluno

deve estar preparado para realizar uma parte de seus estudos em língua

estrangeira, para cursar uma parte de sua carreira universitária no estrangeiro e para

desenvolver uma parte de sua atividade profissional em outro país (op.cit.,p.62).

Como o autor ressalta, os projetos comuns dos executivos franceses,

alemães, ou italianos e dos estudantes integrantes da comunidade européia (ambos

os grupos, referidos nos exemplos) exigem que se focalize mais intensamente o

tema da alteridade, extrapolando a esfera mais superficial em que se detinha a

perspectiva intercultural, quando ainda não havia demandas para que se estipulasse

como objetivo o desenvolvimento de habilidades relacionadas à ação comum.

Nesse aspecto, identificamos um alinhamento bastante nítido entre as idéias

de Puren e algumas das reflexões sugeridas pelos estudiosos das culturas e


74

identidades na pós-modernidade, as quais perpassaram os direcionamentos dessa

pesquisa.

Como foi mencionado anteriormente, a perspectiva intercultural se abriu a

questões relativas a situações de contato permanente entre culturas diferentes,

como no caso de sociedades multiculturais e de fenômenos individuais ou coletivos

de mestiçagem cultural, mas procedeu à interpretação de tais questões orientada

por um ideal de reconhecimento ou aceitação da diferença.

Todavia, a noção de fazer junto, salientada por Puren, tem alterado as

concepções da diferença que propiciavam esse tipo de posicionamento. Essas

concepções se apóiam em uma definição antropológica, segundo a qual, a tradição

cultural satura comunidades inteiras, subordinando os indivíduos a formas de vida

sancionadas comunalmente (Hall,2003,p.73).

Na cultura da modernidade, entretanto, encontramos indivíduos cuja

formação cultural é híbrida. Logo, se sempre houve uma escala entre o ser igual ou

diferente, hoje, sua gradação está potencializada.

Ocorre que os projetos comuns (fazer junto) requerem negociação bem mais

freqüente e intensa que os intercâmbios circunstanciais, e a negociação se tornou

mais complexa, uma vez que implica localizar os interesses e direitos comuns nos

inúmeros espaços da escala igual-diferente. Isto é, interesses e direitos são forjados

nos sistemas de valores culturais que eram mais fáceis de estabelecer, quando as

fronteiras que delimitavam o pertencimento cultural eram, ou, ao menos, eram

interpretadas, de forma mais claramente delineada.

Para ilustrar, salientamos, o fato de que pensamos nossos interesses e

direitos em uma negociação, cada vez mais, sob o prisma do liberalismo formal,

berço dos princípios do politicamente correto, que se tem difundido rapidamente por
75

todo o ocidente, o que já leva a indagar sobre as reais possibilidades da

sobrevivência da diversidade cultural nessa era de padronização conceitual.

Desse modo, para negociarmos ações comuns com membros de culturas

orientais (que são aqui tomados na acepção hibridizada, assim como nós), teria de

haver uma profunda revisão dos paradigmas formadores da diferença, como ocorreu

recentemente, quando os britânicos, em um esforço por amenizar os confrontos do

multiculturalismo em seu país, reconheceram os direitos dos Sikhs de usar turbantes

sem suspender as obrigações dos empregadores quanto a regulamentos de saúde e

segurança (Hall,2003,p.81).

Uma decorrência da passagem do inter ao co-cultural, na condução de

interações como a que descrevemos acima, é a desestabilização que pode ser

promovida na influência das culturas hegemônicas no cenário mundial, forçando as

culturas em interação à uma revisão de seus sistemas conceituais.

Podemos concluir, portanto, que os estudos socioculturais e sociopolíticos

têm influenciado a Lingüística por uma trajetória que, grosso modo, nos conduziu de

uma noção simplista de aculturação, o processo de se tornar adaptado a uma nova

cultura (Ellis,1994,p.230), até o movimento da interculturalidade, que moldado pelas

demandas da co-culturalidade, aponta para a tendência cada vez mais freqüente da

transculturação.

O termo transculturação é cunhado por Hall (2003), e tomamos a liberdade

de defini-lo como um espaço ou tempo para nossa cultura/identidade, que está além

da esfera de nossa tradição cultural, tanto quanto está além da tradição cultural do

outro.

Quando falamos de interculturalidade neste trabalho, temos em mente essa

interculturalidade em pleno processo de mutação. Da mesma forma, as


76

investigações na área da cultura que propomos para o campo da Lingüística

Aplicada trazem embutidas a concepção de Tollefson (apud Ellis,1994,p.238), que

nos motiva a enfocar a história como ferramenta essencial à compreensão da

relação língua-sociedade-cultura.

Nosso enfoque da história não pretende, contudo, efetuar uma busca daquilo

que Signorini (1998,p.104) chama de arqueologia fundadora e que orienta grande

parte da perspectiva historicista. Estamos cientes de que a história nos cerca e

delimita, porém não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir

(Deleuze, Derrida e Foucault, apud Signorini,1998, p.104).

O que desejamos é jogar com os paradigmas de nosso passado histórico,

mobilizando-o em auxílio de nossa inserção mais lúcida e consciente no presente

social. Pensamos que o ensino de PLE pode ser, para qualquer tempo, lugar e

grupo ensinados, um terreno de exercícios que [desenvolvam] uma domesticação

progressiva dos rudimentos de um pensar histórico ... (Moniot, 1991, p.34). Mas

esse pensar histórico não se traduz em operações que visam ao resgate de uma

tradição.

Seria um resgate ilusório, pois a tradição não implica algo fixo. É antes um

reconhecimento do caráter encarnado de todo discurso. É um tipo especial de

conceito discursivo, na medida em que este desempenha uma tarefa distinta; busca

compor oficialmente, dentro da estrutura de sua narrativa, uma relação entre o

passado, a comunidade e a identidade. Ela depende do conflito e da controvérsia. É

um lugar de disputa e também de consenso, de discurso e de acordo (Scott, apud

Hall, 2003, p.93).

Neste ponto, vale lembrar o imperativo de se desafiar muitos dos confortos

da Tradição, em função da necessidade de se forjar uma nova auto-interpretação,


77

baseada nas responsabilidades da Tradução cultural, conforme apresentado

anteriromente. Essa polarização Tradição / Tradução, que é um dos

desdobramentos mais importantes da tensão entre o “local” (contribuição

particularista) e o “global” (contribuição universalista) na formação das identidades

culturais, é um aspecto central de nossas reflexões ao longo dessa pesquisa.

A questão que se impõe, então, é como essa tensão se tem refletido nas

representações culturais e identitárias que integram o campo do ensino de LEs. E

que tipo de instrumentalização teórica elegeremos para delimitar a linha de

investigações que norteará o desenvolvimento deste trabalho.

De acordo com Viana (2003), considerando um panorama bastante amplo,

os conceitos de cultura podem ser alocados, em termos de diferenças básicas, em

dois grandes grupos – humanístico e antropológico, embora dentro de cada grupo, e

especialmente no antropológico, existam diferenças significativas na compreensão e

no uso do termo.

Zimmermann (apud Viana, 2003, pp.41,42) distingue dois aspectos da

cultura. O primeiro é representado pela maneira de gerenciar a vida cotidiana; o

sistema específico de um grupo para organizar e conceituar as práticas cotidianas,

assim como a maneira de fundamentá-las em teorias filosóficas e religiosas. Dessa

forma, ... a cultura é o conjunto de práticas e o sistema gerador das mesmas. O

segundo aspecto representa um conjunto de produtos culturais, ou seja, o produto

de tais práticas, como edifícios, obras de arte, música e literatura.

Enquanto para Zimmermann, os dois sentidos se complementariam,

para Stern (1992), eles se oporiam (pelo menos, em relação ao tratamento da questão

cultural no ensino de línguas), pois a postura deste é de que o choque maior entre os

conceitos refere-se à diferença básica entre um viés antropológico (modo de viver) e um


78

viés humanístico clássico (grandes realizações de uma nação), ambos, segundo Stern

(op.cit.), reconhecidos como legítimos pelos teóricos, o que resultou na utilização de rótulos

como : cultura com ‘C’ (maiúsculo) ou cultura formal no conceito humanístico clássico, e

cultura com ‘c’ (minúsculo) ou cultura profunda no antropológico (Viana, op.cit.,p.42).

Os títulos que Viana classifica como rótulos, cultura com ‘C’ maiúsculo e

cultura com ‘c’ minúsculo, na verdade, compõem um paradigma de referência que

veio ao auxílio de um grande número de culturalistas na tarefa de categorizar uma

ampla gama de elementos culturais para fins de análise teórica. Como costuma

ocorrer com grande parte dos termos guarda-chuva, a intensificação de seu uso

acabou gerando uma grande diversificação nas definições para as respectivas

categorias, atenuando, por vezes, seu valor funcional.

Bennett, Bennet e Allen (2003) afirmam que a distinção entre Big C e little c

culture [nomenclatura adotada pelos autores] é utilizada tanto pelos lingüistas,

quanto pelos interculturalistas e apresentam as definições que são comumente

propostas por professores e pesquisadores da área de ensino de LEs. Segundo

Bennett, Bennet e Allen (op.cit., p.243), na obra Standards for Foreign Language

Learning (1996,p.40) – Referências para a Aprendizagem de Língua Estrangeira

(1996,p.40) – Cultura é definida como cultura formal, incluindo as instituições formais

(sociais, políticas e econômicas), as grandes figuras da história, e aqueles produtos

da literatura, das belas artes e ciências que foram tradicionalmente destinados à

categoria da cultura de elite.

Já a cultura, é definida como aqueles aspectos da vida diária estudados pelo

sociologista e o antropologista : moradia, vestuário, alimentação, ferramentas,

transporte, e todos os padrões de comportamento que os membros da cultura

consideram necessários e apropriados.


79

Nas definições mais genéricas da Big C Culture, ela é apontada como uma

categoria que abrangerá os aspectos culturais mais visíveis, uma espécie de cultura

de superfície. No outro pólo, a little c culture é caracterizada pelo estudo de aspectos

invisíveis, ou menos tangíveis, representando uma cultura que está submersa.

Evidentemente, os dois padrões utilizados para categorizar os aspectos de uma

dada cultura e suas respectivas e variadas definições acabam por fazer uma

representação falsamente homogênea e estática.

Ainda que a categorização seja um recurso necessário para instrumentalizar

o pesquisador, é importante ressaltarmos sempre que as linhas divisórias entre os

aspectos culturais são meramente simbólicas e a definição dos conjuntos de

elementos culturais será adequada, na medida em que se ajuste ao propósito de

uma investigação específica. E sendo assim, só poderá ser tomada como correta na

observância de sua aplicação temporal e circunstancial .

Descrevemos a natureza e funcionalidade do paradigma Big C – little c

culture, em sua apresentação mais tradicional – cuja conceitualização é coincidente

nas obras de Viana (2003) e Bennet, Bennet e Allen (2003) – para ilustrar a

utilização inicial dessas categorias como instrumentos de pesquisa na área da

Lingüística Aplicada ao ensino de LEs.

No entanto, ao longo do tempo, esse paradigma foi sendo redefinido, com

uma revisão e atualização consideráveis dos componentes culturais que cada uma

de suas categorias passou a contemplar. Uma conceituação mais recente da

oposição Big C – little c culture que apresenta a operacionalidade necessária à

condução de nossa pesquisa é proposta por Hadley (apud Lima, 2000, p.30). De

acordo com o modelo elaborado pelo pesquisador, a little c culture se configura

como uma espécie de registro e exploração de comportamentos cotidianos (formas


80

de saudação, hábitos e condutas nos horários das refeições, aniversários,

casamentos, compras na mercearia etc.)

Em contrapartida, em um recorte bem mais amplo, o da Big C culture ,são

enfocadas, por exemplo, informações veiculadas em TV e Internet (típicas da cultura

de massas), na literatura nacional, museus, ou eventos culturais (englobando itens

tanto da cultura erudita, quanto da popular).

Esta pesquisa tem como objetivo a análise da abordagem de conteúdos

culturais selecionados para integrar materiais didáticos (MDs) voltados ao ensino de

Português como Língua Estrangeira (PLE), que será realizada por meio da

contraposição de livros didáticos (LDs) produzidos em períodos, e,

conseqüentemente, em contextos socioeducacionais diferentes. Nosso interesse se

dirige às formas de auto-representação cultural que podem ser aferidas a partir da

avaliação das escolhas e da apresentação dos conteúdos nos respectivos materiais.

Tendo em vista esse objetivo, a pesquisa contemplará os textos, dos dois

MDs referidos, que versam sobre os tópicos culturais característicos da Big C

Culture, concebida na diversidade de fontes e modos de veiculação de cultura

sugeridos no modelo de Hadley.


81

3 O CONTEXTO SOCIOEDUCACIONAL E POLÍTICO EM QUE

A PESQUISA SE INSERE

Com o objetivo de estabelecer uma ponte inicial entre essa pesquisa

acadêmica e o contexto socioeducacional e político em que está inserida, teceremos

alguns comentários sobre a publicação de três textos, reunidos na seção Especial

Educação da revista Veja12 - edição de 20 de agosto de 2008. O conjunto de textos

apresenta uma avaliação dos resultados da pesquisa encomendada pela própria

Veja ao CNT/Sensus para aferir o grau de satisfação de alunos, pais e professores

com a qualidade do ensino nas escolas brasileiras.

A leitura dessa reportagem remeteu-nos a uma inquietação antiga, que

perdura desde o início de nossa formação em Lingüística Aplicada, ainda na

graduação em Letras, iniciada em 1991. À época, um intenso debate se travava

sobre os méritos e desvantagens da utilização da metodologia estrutural e/ou da

comunicativa (a qual havia se estabelecido como panacéia por volta do início dos

anos 80) no ensino das LEs.

A alteração ou alternância de métodos se configurava para nós como um

tema com o qual despendíamos a quase integralidade do tempo de nossas aulas e

estudos (relativos ao ensino de Língua Inglesa, nesse caso). Enquanto isso, embora

o como ensinar não se revelasse como um fator desprezível para elevar o grau de

motivação dos aprendizes, entre outros desafios pedagógicos, parecia que sua

abordagem isolada e precoce mitigava a relevância de uma questão anterior : o quê

ensinar.

12
Revista Veja, Editora Abril, edição 2074, ano 41- n°33, pp.72 à 78, 80, 82, 84, 86, 87.
82

É precisamente sobre os conteúdos, e, vinculados a eles, os objetivos do

ensino de todas as disciplinas nas escolas brasileiras, que tratam os textos de Veja.

No primeiro deles, as jornalistas Mônica Weinberg e Camila Pereira, atestam que

pais, professores e alunos fazem uma avaliação positiva das escolas públicas e

particulares, segundo revela a pesquisa CNT/Sensus, o que é um contraste em

relação à realidade.

Levantamentos estatísticos realizados pelo Inep/MEC e OCDE, para citar

alguns, comprovam não só a formação precária de um grande número de

professores brasileiros, como o desempenho deficitário dos alunos em testes de

avaliação nacionais e internacionais.

No segundo texto, as mesmas autoras, buscam estabelecer uma relação

entre os resultados de um segundo grupo de dados da pesquisa e uma forte

presença do binômio educação/ideologia em escolas visitadas para a realização da

reportagem, e em apostilas e livros de história, geografia e português (os mais

adotados em 2000 escolas privadas do país).

A conclusão obtida é a de que a doutrinação esquerdista é predominante em

todo o sistema escolar privado e particular, é algo que os professores levam mais a

sério do que o ensino das matérias em classe. E 75% dos livros didáticos analisados

trazem informações distorcidas por miopias ideológicas, erros factuais ou ambos.

No último texto, um artigo de Gustavo Ioschpe, se propõe a neutralidade

como um dever em sala de aula. Ele afirma que, sob sua ótica, a formação política

de cada um é sua prerrogativa individual, sujeita apenas à interferência dos pais. E

diz não acreditar que a maioria dos professores brasileiros, com seu baixo preparo

intelectual, tenha condições de oferecer ao aluno a exposição complexa e

multifacetada que as questões inerentes à formação da cidadania exigem.


83

Percebemos, ao concluir a leitura dos textos recém-publicados, que a

inquietação surgida no período em que cursamos a graduação e motivadora das

pesquisas por nós desenvolvidas no mestrado e da pesquisa ora em curso,

confirma-se como um desafio central no processo de reformulação do sistema

educacional vigente, incluindo os diferentes nichos desse sistema onde se alocam

as modalidades de ensino das línguas estrangeiras.

Vincular o argumento basilar dessa pesquisa à apresentação do debate

proposto por Veja para a sociedade brasileira não representa uma escolha de

caráter aleatório. Pelo contrário, baseia-se no questionamento da existência

concreta de escolhas com esse caráter, pois, acreditamos que o ato de escolher, por

si, pressupõe uma ruptura com a neutralidade, ainda que envolva diferentes níveis

de reflexão e consciência.

Ao somar os dados estatísticos coletados por institutos de pesquisa, as

reportagens realizadas pelas jornalistas supracitadas e os comentários críticos

tecidos pelo ensaísta no texto final, o Especial Educação de Veja descreve um

ensino com altos índices de deficiência e obsolescência e permeado de

doutrinações ideologizantes nas escolas brasileiras , de acordo com o que pôde ser

depreendido sob a ótica de seus autores.

Tomamos para análise, um debate referente a um dado segmento do ensino

brasileiro – as escolas públicas e particulares – para, partindo dele, estabelecermos

a rede de analogias necessárias a uma investigação do sistema educacional como

todo. Pois, acreditamos, assim como Mourin (apud Martinazzo, 2004, p.41), que no

pensamento complexo (não simplificador) não existe interrupção do conhecimento.

Ele ocorre num movimento circular ininterrupto, num vaivém entre a parte e o todo,...

o conhecimento das partes permite conhecer melhor o todo, e vice-versa.


84

Assim, ao tecermos considerações relacionadas às conclusões apresentadas

na reportagem de Veja, estaremos naturalmente, derivando-as de nossos próprios

paradigmas experienciais no campo do ensino, articulando, portanto, outras partes

do todo que constituem o sistema educacional no Brasil.

Parece-nos que a necessidade do reestabelecimento de objetivos e

reformulação dos currículos não se exclui de nenhum dos segmentos onde tivemos

oportunidade de atuar : cursos particulares de idiomas, ensino médio regular e

supletivo em escolas públicas , cursos de extensão universitária voltados ao ensino

de línguas estrangeiras ministrados aos estudantes da própria universidade e de sua

comunidade.

Com base nessas experiências profissionais aliadas aos ensinamentos

adquiridos com a vivência universitária, ao longo de toda a nossa formação nos

cursos de licenciatura e pós-graduação, cremos poder intuir a veracidade de pelo

menos três aspectos da realidade educacional brasileira apontados direta ou

indiretamente pelo estudo da revista.

Apresentando números, estatisticamente, bastante expressivos, eles revelam

um panorama preocupante da rede nacional de ensino fundamental. Segundo os

dados coletados, 22% dos professores do ensino básico não têm diploma

universitário ; a orientação das aulas ministradas por grande parte dos professores

se faz calcada nos livros didáticos eleitos pelas instituições onde lecionam ; e 60%

dos estudantes chegam ao fim da 8ª série sem saber interpretar um texto ou efetuar

operações matemáticas simples.

Nesse ponto, gostaríamos de clarificar a importância de levar em conta o

panorama descrito acima , antes de estreitarmos o foco sobre aquele que será o

objeto da pesquisa : o ensino de LEs, e mais especificamente, o ensino do


85

Português como Língua Estrangeira (PLE) nos diferentes segmentos em que ele

ocorre no Brasil, hoje.

Tendo como contextos de ensino, basicamente, os programas de convênio

para alunos estrangeiros de graduação, estabelecidos por governos de diferentes

países com as universidades federais brasileiras; cursos de extensão oferecidos

pelas universidades aos alunos estrangeiros de sua comunidade ; cursos de idiomas

e aulas particulares oferecidas aos profissionais de empresas estrangeiros,

residentes no Brasil , cabe perguntar em que medida a realidade sociopolítica e

educacional brasilleira, que se reflete no segmento investigado por Veja, afeta o

campo de atuação do ensino de PLE.

E mais ainda, que contribuição as pesquisas na área de ensino de PLE

podem oferecer a um projeto mais amplo de reestruturação do sistema educacional

e reelaboração dos modelos curriculares operantes nas instituições de ensino na

atualidade?

A partir dessas reflexões, é preciso expor alguns pontos de discordância

encontrados no debate proposto pelos redatores da matéria de Veja. Um bom

exemplo está em uma das perguntas formuladas para as 3000 pessoas de 24

estados brasileiros, entre pais, alunos e professores de escolas públicas e

particulares : Qual é a principal missão da escola ? Dentre as opções de respostas,

incluíam-se : formar cidadãos, contribuir para a formação profissional, ensinar as

matérias.

Para os pesquisadores revelou-se como pendor ideológico, que 78% dos

professores entrevistados tenham optado por formar cidadãos, para nós surgiu de

imediato a indagação dos motivos pelos quais as três opções teriam de ser

excludentes e não complementares. De onde deriva a necessidade de haver uma


86

missão principal ? E, além disso, quantas visões diferentes teriam os entrevistados

sobre o significado de cada uma das opções ?

Assim como os jornalistas julgam que a opção por formar cidadãos atrela-se

a uma vocação para a doutrinação esquerdista por parte dos professores, o que

pode ser parcialmente verdade, o que para eles (os jornalistas) significa contribuir

para a vida profissional ou ensinar as matérias ?

O colunista Gustavo Ioschpe aponta a neutralidade na escola como um

dever e indigna-se com o fato de que apenas 8,9% dos professores brasileiros, em

pesquisa da Unesco, consideram uma finalidade importante da educação transmitir

conhecimentos básicos.

Segundo ele, é mais grave que o já referido “pendor ideológico” tenha

atingido o nível de formação de políticas públicas, na medida em que os critérios de

avaliação de livros didáticos do ensino fundamental estabelecidos pelo MEC incluam

um, dentre seis itens, cujo tópico é “cidadania e ética”.

Contudo, para refletirmos sobre os direcionamentos determinados pelas

políticas públicas para esse setor nas décadas recentes, é preciso levarmos em

conta que a concepção do modelo educacional brasileiro desde a sua idealização na

Constituição de 1988 (capítulo III, seção I, art. 205) fala de uma educação ... visando

ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e

sua qualificação para o trabalho.

Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional se reafirma a proposta

constitucional, com a descrição de objetivos nos seguintes termos :

- a formação da pessoa, de maneira a desenvolver valores e competências necessárias à

integração de seu projeto individual ao projeto da sociedade em que se situa;


87

- o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o

desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.

- a preparação e orientação básica para a sua integração ao mundo do trabalho, com as

competências que garantam seu aprimoramento profissional e permitam acompanhar as

mudanças que caracterizam a produção no nosso tempo;

- o desenvolvimento das competências para continuar aprendendo, de forma autônoma e

crítica, em níveis mais complexos de estudos.

Segundo a nova Lei (n° 9.394/96, Art.1°,2°), a educação deverá vincular-se

ao mundo do trabalho e à prática social e, como apregoam os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN), essa vinculação é orgânica e deve contaminar toda a

prática educativa ... (p.22).

Portanto, o conjunto dos objetivos propostos pela LDB para a educação

nacional, de fato, contempla aspectos como o desenvolvimento da formação ética, e

do exercício da cidadania na base da formação do pensamento crítico e da

conquista da autonomia intelectual por parte do aprendiz.

Porém, estabelece, como igualmente essencial na preparação do estudante,

a aquisição gradual e atualização constante das competências necessárias para que

ele atue eficientemente em um mercado de trabalho com regulamentações e modos

de produção em constante processo de mudança.

Assim sendo, pensamos, que, talvez, frente à constatação de que os

professores brasileiros, geralmente com preparo insuficiente, não tenham condições

de oferecer ao aluno a exposição complexa e multifacetada inerente às questões

relativas à formação da cidadania, deveríamos enfocar a urgência do aprimoramento

na formação dos professores e não a exclusão da formação da cidadania como

componente do projeto naciona l de educação.


88

Além disso, se por um lado devemos nos opor firmemente a qualquer forma

de doutrinação partidária no ambiente da escola, que deve ser politicamente neutra,

tanto quanto o estado deve ser laico, como sugere Ioschpe (p.87). Por outro lado,

isso não significa excluir o componente político naturalmente presente nos

conteúdos curriculares.

Mesmo porque, como a LDB ressalta, é fundamental a integração do projeto

individual do aprendiz ao projeto [ou, diríamos com mais propriedade, aos projetos]

da sociedade em que se situa. O pensamento crítico do indivíduo socializado é

intrinsecamente um pensamento político e integrado ao mundo das idéias, que

antecede e muitas vezes, se mantém desvinculado de comprometimentos

partidários.

Do mesmo modo, abordar, de maneira estanque, certos valores

sociopolíticos, não nos parece adequado, ou mesmo viável, sobretudo, em um

contexto social como o brasileiro. Observamos essa inaplicabilidade conceitual, na

afirmação de Ioschpe (p.87) de que mais de 75% dos professores inquiridos no

decorrer do estudo, acham que a igualdade é um valor superior à liberdade.

Em nosso entender, o conceito de liberdade de escolhas e desenvolvimento

não se pode sustentar quando um grande percentual de indivíduos na mesma

sociedade apresenta desigualdades tão acentuadas, que possivelmente não serão

transpostas no decorrer de várias gerações. E a inquietação que decorre da

configuração social presente pode, ao menos parcialmente, justificar a forte

presença do binômio educação/ideologia nas escolas visitadas e livros e apostilas

avaliados para a reportagem.

Com isso, como já ficou claro, não pretendemos glorificar doutrinações

ideologizantes nas escolas brasileiras, e, muito menos ocultar o fato de que uma
89

avaliação positiva de escolas públicas e particulares, contrastaria com uma realidade

que, em qualquer pesquisa, irá revelar um ensino bastante deficiente e obsoleto em

diversos setores da educação nacional.

O que pretendemos é fazer ver ao leitor de nossa pesquisa os fatores que,

sob nosso ponto de vista, tornam relevante que se opere uma contextualização

sociocultural adequada dos conteúdos que integram os currículos de quaisquer

segmentos de ensino que desejemos estruturar ou reformular. A contextualização

referida é apontada pelos PCN, no tocante aos Conhecimentos de Língua

Estrangeira Moderna (p.153), dentre as competências e habilidades a serem

desenvolvidas pelo aprendiz. São elas :

- Representação e comunicação

- Investigação e compreensão

- Contextualização sociocultural

Como professores, assumirmos uma postura participativa no que concerne à

escolha, desenvolvimento e utilização dos conteúdos formadores das grades

curriculares nos diversos segmentos de nosso ensino é um movimento essencial no

sentido de elevarmos o nível de um sistema educacional em visível processo de

deterioração nas últimas décadas.

E, conforme afirma Auerbach (1995,p.20,21),

os materiais podem ser vistos como a mais concreta forma física de representação das

diferentes perspectivas de desenvolvimento curricular e conteúdo, com questões de poder

relacionadas à sua seleção e uso ... O livro-texto é visto como a espinha dorsal do currículo (e, em

alguns casos, ele literalmente ‘se torna’ o currículo).


90

Essa posição é reiterada por Weinberg e Pereira (as jornalistas

supracitadas) ao ressaltarem o dado obtido na pesquisa do CNT/Sensus, de que

grande parte dos professores estabelece a orientação de suas aulas calcada nos

livros didáticos eleitos pelas instituições onde lecionam. Conseqüentemente, neles

encontraremos, diluídas nos grupos de unidades didáticas, muitas das tendências

que identificamos como atuantes na dinâmica contemporânea do ensino.

Logo, como sugere Sternfeld (1997, p.53) é preciso incentivar professores a

considerar características dos materiais que utilizam ... pois, desse modo, será

possível que eles se tornem mais confiantes em desenvolver seu senso de

plausibilidade (Prabhu, 1997) 13, o que pode frutificar na criação de novos materiais.

No caso do ensino de LEs, por exemplo, em geral, o que se constata,

infelizmente, é a atuação de um grande número de profissionais, que obtiveram nos

cursos de formação de professores um mero treinamento a partir de certos

modismos sobre como ensinar línguas, isto é, recebem uma formação pautada por

dogmas (Moita Lopes, 1996, p.180).

Ao invés disso, o que deveria ocorrer nos cursos de formação é o

estabelecimento como meta da aquisição sempre renovada, por parte dos

professores, das teorias e das técnicas que melhor orientam o desenvolvimento de

materiais didáticos adequados aos propósitos por eles estabelecidos.

Uma preparação de base é essencial para habilitá-los a avaliar criticamente

os materiais disponíveis em suas respectivas áreas de atuação, e assim, torná -los

capacitados para integrar equipes dentro das instituições que sejam responsáveis

pela escolha dos MDs a serem adotados.

13
Nota do Autor : Dr. Prabhu, de Bangalore, ministrou aulas na UNICAMP durante o período de 18/03/96 a
08/04/96. Ele define senso de plausibilidade como a intuição que permite ao professor saber o que é mais
produtivo para sua classe, à luz de sua experiência enquanto professor.
91

Desse modo, eles poderão estar igualmente aptos, se for o caso, em

consonância com os ambientes pedagógicos em que atuam, a desenvolverem seus

próprios materiais, e assim fazendo, estariam gradualmente se especializando e

qualificando para compor quadros designados ao planejamento curricular dos

cursos.

Em outras palavras, consideramos que os MDs podem ser convertidos em

um elemento de estímulo ao aprimoramento da formação dos professores,

sobretudo se esses profissionais forem incentivados a se converterem de usuários a

produtores de materiais, o que os levaria paralelamente a uma aproximação com a

pesquisa.

Nesse sentido, seguimos a linha de pensamento de Prabhu (apud

Sternfeld,1997) e (apud Maley,1998), que sugere que os professores analisem os

materiais que utilizam como etapa inicial de um processo no qual adquirem

autonomia de maneira gradativa com vistas à elaboração de seus próprios MDs.

Além disso, com base na idéia de que os materiais são ferramentas de

documentação e legitimação dos currículos, ampliar o número de professores-

produtores, reforçamos uma vez mais, corresponde a ampliar sua participação nas

decisões curriculares.

Esse movimento, naturalmente, implica uma descentralização do processo

de normatização curricular do modo como opera hoje. Mas, na medida em que essa

descentralização ocorra de forma sistemicamente organizada, poderá gerar grandes

progressos no sentido de reconfigurar os currículos em apropriação com os

contextos socioeducacionais em que se situam.

Um dos obstáculos que se impõem a esse movimento, é o fato de muitos

professores, envolvidos em uma certa cultura de ensinar, demonstrarem dificuldades


92

em acatar uma função recriadora e renovadora do universo educacional que

integram. E, assim fazendo, reforçam para seus alunos a tendência a fazer escolhas

determinadas pelos padrões de sua cultura de aprender.

Da mesma forma, essa cultura, que é um conjunto de hábitos

tradicionalmente instaurados nas atividades educacionais de que o aprendiz

participou ao longo de sua trajetória acadêmica, acaba por criar resistência a

adaptações e mudanças. Não que devessem desvincular-se das contribuições

positivas de sua cultura de aprender, apenas ela não deveria representar um círculo

fechado de comportamentos impermeáveis a inovações.

Na verdade, acreditamos haver em todo estudante um anseio natural pela

novidade, a descoberta, o desafio, capaz de propiciar a superação de quaisquer

resistências, que deve ser intensamente estimulado pelo professor, com os recursos

dos quais ele pode dispor. E não percebemos o livro didático, como muitos o fazem,

como um recurso limitador.

Portanto, não ecoamos a afirmação de Auerbach (1995, pp.23,24) de que os

aprendizes, via de regra, respondem melhor aos materiais que parecem menos

textlike, ou seja, característicos de livros-texto. Entendemos essa rejeição à

abordagem dos livros-texto como uma rejeição ao próprio currículo, com sua seleção

e uso de conteúdos, uma vez que, como a própria autora explicitou, o livro-texto é,

muitas das vezes, a espinha dorsal do currículo, quando não o currículo em si.

Então, embora não se deva invalidar o uso de materiais outros (os

autênticos, por exemplo), devendo-se sim incentivar a sua utilização, insistimos em

que o incômodo causado a tantos pelos livros-texto, origina-se em um sistema, do

qual ele é representativo, e que o antecede.


93

Aquilo a que nos propomos é precisamente revalidar o livro-texto em todas

as suas utilidades didáticas e em uma utilidade pedagógica maior, que é a de atuar

como vetor, na medida em que funciona como uma espécie de arquivo de

determinado sistema vigente de ensino de LE, na própria avaliação e reestruturação

desse sistema.

3.1 O QUE DESEJAMOS COMUNICAR

É preciso retornarmos, nesse ponto, à inquietação, anteriormente referida,

causada pela atenção e tempo quase integrais dispensados no ensino universitário

de Lingüística Aplicada no Brasil – em especial no final dos anos 80 e no decorrer

dos anos 90 – ao questionamento sobre as conquistas e desvantagens do uso da

abordagem comunicativa em concomitância ou oposição à abordagem estruturalista

nas salas de aula de LEs.

Fazemos esse retorno, antes de tudo, para esclarecer que nossa crítica

direciona-se não à investigação propriamente, e sim ao enfoque quase exclusivo das

questões metodológicas (como ensinar ?), na medida em que identificamos igual

importância nos demais questionamentos que devem nortear o planejamento de

cursos, que são os objetivos (para que ensinaremos ?) e os conteúdos (o quê

devemos ensinar ?).

Estamos inteiramente cientes de que pensar um ensino de LEs com

objetivos comunicativos representou e representa, sem dúvida, um grande avanço

no tocante à oposição estabelecida a partir dele à algumas camisas de força que

vigoraram em um bom contingente dos ambientes estruturalistas de ensino.

Nesses ambientes, orientou-se o aprendiz, muitas vezes, no sentido de um

manejo quase obsessivo dos recursos formais para a manipulação do idioma. Com
94

essa finalidade, atrelaram-se aos procedimentos mecânicos, grupos de conteúdos

descontextualizados, em blocos estanques dentro do conjunto dos programas de

curso, e, com regularidade, dissociados das necessidades e características do

público-alvo.

Nas décadas seguintes, a partir das reflexões acerca das melhores

estratégias a serem adotadas no auxílio ao aprendiz em sua busca pela ‘aquisição

eficaz’ do idioma estrangeiro, se começou a questionar a definição em si do que

seria uma ‘aquisição eficaz’, e, com o tempo, percebeu-se que ela só se poderia

estabelecer em função dos interesses, necessidades e objetivos do próprio aprendiz.

Durante longo tempo cultivou-se, porém, a noção de um aprendizado ideal

setorizado e hierarquizado, no qual os estudantes não poderiam utilizar a língua

para propósitos criativos e comunicativos até que tivessem ‘dominado’ ou

‘automatizado’ o que era designado como conteúdo básico de vocabulário,

estruturas frasais e linguagem de sobrevivência. Segundo Auerbach (1995, p.22), a

justificativa para a fixação de tal rotina era a de que ela representava o necessário e

desejável para os alunos.

Orientando-nos, então, pela seqüência objetivos-metodologias-conteúdos,

do modo como se fazia, podemos considerar que ensinávamos para auxiliar o

aprendiz no processo de aquisição da língua estrangeira; e o fazíamos de forma a

estimular o desenvolvimento de seu conhecimento e acurácia no trato dos aparatos

gramaticais; coletando, por fim, os componentes conteudísticos que melhor se

ajustavam a essa proposta, com nuances técnicas caracteristicamente segmentárias

e hierarquicamente gradativas.

O projeto behaviorista, assumido pelos educadores, ao longo de décadas, foi

progressivamente reavaliado e passamos a considerar que o processo de aquisição


95

(objetivo) seria melhor orientado, enfocando-se o uso/funcionamento da língua

estrangeira em seus direcionamentos situacionais (metodologia) e uma vez mais,

passamos a elencar os elementos integrantes do currículo (conteúdo) em

consonância com as metas previamente determinadas.

A revisão de conceitos resultou essencialmente em dois deslocamentos :

- o incentivo a uma dinâmica interacional e comunicativa desde as etapas

iniciais do aprendizado de LE, adaptando-a ao estágio estimado de conhecimento do

estudante;

- a inserção em contexto situacional dos tópicos lingüísticos e culturais (os

privilegiados pelo nosso estudo), guardado o teor imaginário e de uso meramente

técnico da fronteira que erguemos entre eles.

Pode-se dizer, conseqüentemente, que a abordagem dos tópicos culturais

no ensino de LEs, caracterizada em sua apresentação nos materiais didáticos e

mais sistematizadamente nos livros-texto, teve uma função auxiliar no ensino

estruturalista e mantém essa mesma função no ensino comunicativo de enfoque

situacional.

A essa altura, cabe refletirmos se em um planejamento de curso, cujo

modelo de elaboração curricular fosse orientado por uma seqüência objetivos-

conteúdos-métodos, haveria espaços e funções diferenciadas das que foram

mencionadas para os tópicos lingüísticos e culturais. E, no que concerne à seleção

de tópicos culturais, a que objetivos ela tem sido vinculada?

Embora com outras palavras, já foi explicitado ao longo de nosso argumento,

que além da língua construída como comunicação, empregada para auxiliar nosso

aprendiz no bom desempenho em diferentes contextos socioculturais, visamos o

fortalecimento da língua como instrumento social e político, capaz de auxiliar o


96

indivíduo no trabalho de transformação [grifo nosso] pessoal e social

(Morita,1998,p.49). Nesse sentido, ao falarmos de líng ua voltada à comunicação, é

mister reavaliarmos o que se comunica.

Estamos certos de que as escolhas que antecedem, direcionam e alimentam

nossa prática educacional, nada têm de irrefletidas, randômicas ou mesmo

descompromissadas com a ordem social vigente . Na verdade, esse é um fato que

compõe o dilema básico dos sistemas educacionais, que devem ao mesmo tempo

socializar os aprendizes em comunhão com a ordem vigente e dar-lhes os meios

para modificar essa mesma ordem (Kramsch,1993, p.236).

Então, quando pensamos sobre as posições que vimos representando até a

presente etapa do desenvolvimento (que, embora não recente, ainda é inicial) da

produção de materiais para a área de PLE, é necessário, sem dúvidas, levarmos em

conta que estamos inseridos em um contexto acadêmico internacional de ensino de

idiomas e desejamos certamente nos valer dos avanços obtidos nas pesquisas,

independentemente de sua proveniência. Por outro lado, estaríamos também

importando certas práticas pedagógicas e aplicando-as sem maiores

questionamentos acerca de sua contextualização sociopolítica ?

Para ampliarmos essa reflexão, partimos da observação de Auerbach (1995,

p.22) de que ao invés de fomentar a ‘comunicação autêntica’, ao focar

exclusivamente em competências funcionais/estratégicas em relação a contextos

particulares, os livros-texto podem limitar os aprendizes, não permitindo que a língua

seja usada para propósitos criativos e críticos.

No que concerne ao trabalho com componentes culturais, o enfoque em

competências funcionais/estratégicas, direcionou o interesse dos pesquisadores e

produtores de materiais, mais marcadamente, para os elementos da little c culture, a


97

qual, relembramos aqui, nos termos de Hadley (apud Lima, 2000, p.30) trata de

registrar e explorar comportamentos cotidianos (formas de saudação, hábitos e

condutas nos horários das refeições, aniversários, casamentos, compras na

mercearia etc).

Relembramos também que as linhas divisórias entre os aspectos culturais

são meramente simbólicas, como afirmamos antes. Portanto, a definição dos

conjuntos de elementos culturais será adequada, na medida em que se ajuste ao

propósito de uma investigação específica.

É com base nessa mesma lógica que Schlatter (1997,p.16) ressalta que a

ênfase em objetivos comunicativos no ensino de línguas torna natural que os

objetivos de ensinar a cultura mudem de uma lista de aspectos formais de uma

civilização para preocupações antropológicas e sociológicas.

Porém, assim como não nos propomos neste trabalho, a abordar a chamada

Big C culture, segundo a definição tradicional de Schlatter – uma lista de aspectos

formais de uma civilização – também não cremos que uma análise antropológica e

sociológica, nos moldes em que até hoje essas análises têm sido utilizadas no

campo da Lingüística Aplicada, sejam um meio eficiente para buscar compreender

as dinâmicas da cultura contemporânea, conforme as definimos no capítulo anterior.

Nosso interesse estará em investigar em que medida as preocupações

antropológicas e sociológicas vêm se intercalando e, algumas vezes, sendo

substituídas por outras formas de pensar o cultural. E para essa investigação,

elegemos o recorte da cultura que inclui informações veiculadas em TV e Internet

(típicas da cultura de massas), na literatura nacional, museus ou eventos culturais

(englobando itens tanto da cultura erudita quanto da popular).


98

E além desses, quaisquer outros meios ou canais, que possamos vir a

identificar em utilização para a veiculação ou circulação de informações e conteúdos

culturais dos diversos segmentos da cultura acima referidos. É o processo de

seleção desses conteúdos para integrar materiais didáticos de PLE – os quais para

efeitos instrumentais, são agrupados sob o título Big C culture – que objetivamos

analisar.

Foram selecionados para essa fina lidade, segundo os critérios descritos na

metodologia, dois grupos de tópicos culturais que serão analisados no capítulo 5.

Eles integram dois livros didáticos de PLE, com publicações respectivas em 1999 e

2006 : Bem-Vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação e Panorama

Brasil – Ensino do Português do Mundo dos Negócios.


99

4 METODOLOGIA

A partir do estudo de diferentes linhas de teorização sobre a cultura,

interessou-nos investigar os modos de representação da cultura brasileira

contemporânea que podem ser aferidos na avaliação das escolhas e da

apresentação dos conteúdos culturais presentes em materiais didáticos de PLE

editados no Brasil.

Entendemos como modos contemporâneos de representação cultural aqueles

descritos na produção do teórico George Yúdice, cujos princípios gerais foram

definidos na fundamentação teórica deste trabalho. Eles começam a se estabelecer

na década de 90 e se consolidam na década presente.

Para desenvolvermos nossa pesquisa, realizamos a contraposição de LDs de

PLE de mesma autoria e destinados a públicos-alvo semelhantes, produzidos a

partir dos anos 90, com um intervalo de tempo que permitisse possíveis atualizações

ou reconfigurações de seus tópicos culturais, de modo a revelar sua inserção nos

paradigmas, então emergentes, de interpretação/representação característicos da

cultura contemporânea. Outro parâmetro para a seleção do corpus foi que os MDs

tivessem uma circulação significativa, ou seja, suficiente para ilustrar a influência das

formas de auto-representação cultural espelhada nas obras em diferentes

segmentos do ensino de PLE.

Embora o número de publicações de materiais didáticos da área de PLE

ainda seja bastante restrito – sobretudo, se comparado ao quantitativo de obras

produzidas para o ensino de línguas mais hegemônicas – foi possível identificarmos

dois LDs com as características supracitadas : Bem-Vindo! – A Língua Portuguesa

no Mundo da Comunicação (de 1999) e Panorama Brasil – Ensino do Português no


100

Mundo dos Negócios (de 2006). Além de serem da autoria de um mesmo grupo e de

se destinarem a uma clientela semelhante, ambos se constituem como

empreendimentos editoriais cujo êxito propiciou ampla circulação no Brasil e no

exterior.

No tocante ao público a que se destinam, tomando as obras como produtos

desvinculados dos respectivos momentos de suas publicações, se poderia

considerar que Panorama Brasil diferencia-se de Bem-Vindo! por enfocar

especificamente o ensino do português para o mundo dos negócios, conforme

indicado em seu subtítulo.

Todavia, dados já referidos, como a escassez de materiais produzidos na

área e o alto índice de comercialização dos LDs selecionados, tornam forçoso

concluirmos, com base inclusive em informações da contracapa do material, que no

intervalo entre as publicações (quando não havia MDs editados em escala para esse

propósito específico) Bem-Vindo! era igualmente utilizado por estudantes ligados ao

mundo dos negócios.

A seleção de tópicos culturais para análise nos LDs foi calcada na divisão de

aspectos da cultura em dois grandes campos denominados Big C culture e little c

culture. Esses dois campos foram redefinidos várias vezes na trajetória de sua

utilização como instrumentos de pesquisas em áreas como a Lingüística Aplicada.

Encontramos na definição de Hadley (apud Lima, 2000,p.30) a atualidade e

adequação que necessitávamos, levando em conta os objetivos de nossa pesquisa.

Como já foi exposto, de acordo com o modelo proposto pelo autor, a little c

culture se configura como uma espécie de registro e exploração de comportamentos

cotidianos (formas de saudação, hábitos e condutas nos horários das refeições,

aniversários, casamentos, compras na mercearia, etc.). Já a Big C culture procura


101

dar conta de um outro recorte da cultura que inclui informações veiculadas em TV e

Internet (típicas da cultura de massas), na literatura nacional, museus ou eventos

culturais (englobando itens tanto da cultura erudita quanto da popular).

São os componentes da Big C culture, em suas diferentes formas de

veiculação, que constituem os tópicos culturais selecionados em Bem-Vindo! e

Panorama Brasil.

No caso de Bem-Vindo!, integra essa categoria um conjunto de nove textos

distribuídos ao longo das quatro unidades (17,18,19 e 20) do Grupo 5 (Diversão-

Cultura) do LD. Na seção Gente e Cultura Brasileira, estão inseridos quatro textos:

Quem Somos Afinal ? (1) e (2) – unidades 17 e 18; Literatura Brasileira e Música

Popular – unidades 19 e 20. Os cinco textos restantes encontram-se na unidade 20.

Três deles abordam diferentes aspectos do tema folclore brasileiro : O Folclore

Brasileiro; Preferência Nacional; e um artigo (sem título) sobre eventos folclóricos

nacionais. O quarto texto (também sem título) descreve os principais festivais

brasileiros em que se premiam gêneros de arte; e o quinto é Carnaval e apresenta

um panorama da festa popular no Brasil.

Os textos selecionados foram resumidos. A apresentação de seus assuntos e

fontes antecede os resumos e, para facilitar a tarefa do leitor, reaparece no início de

cada análise. Esse recurso nos pareceu necessário, já que , em geral, os textos são

longos e apresentam uma gama variada de conteúdos de teor altamente informativo.

Para efeito de análise, os nove textos de Bem-Vindo! foram divididos em

cinco grupos distintos :

- Textos I e II : Quem Somos Afinal ? (1) e (2) – o título recebe as numerações (1) e

(2) por fazer referência a duas partes do mesmo texto;


102

- Textos III e IV : Literatura Brasileira e Música Popular – os textos apresentam

semelhanças no que concerne aos tipos e à forma de organização dos conteúdos

que ambos contemplam;

- Textos V, VI e VII : O Folclore Brasileiro; Preferência Nacional; e artigo sobre

eventos folclóricos nacionais – os textos foram agrupados por reunirem informações

acerca do mesmo tema, o folclore brasileiro;

- Texto VIII : sobre festivais de premiação dos gêneros de arte – analisado

isoladamente ;

- Texto IX : Carnaval – analisado isoladamente.

Em Panorama Brasil, os tópicos culturais selecionados, pertencentes à

categoria Big C culture, estão localizados na Unidade 3, cujo título é Arte e Cultura.

Essa unidade é composta por treze textos e, dentre eles, quatro aparecem na forma

de atividades elaboradas pelas autoras (textos II, IV, VII, e VIII). Esses quatro textos

tiveram seus conteúdos analisados de maneira desvinculada das propostas das

atividades.

Todos os textos da unidade foram também resumidos e tiveram seus

assuntos e fontes apresentados no início de cada resumo. Em seguida, foram

distribuídos em sete grupos para análise, seguindo critérios, estabelecidos com base

em seus conteúdos, que serão descritos abaixo :

- Textos I e II : Amazônia – Desenvolvimento Sustentável ; e texto (sem título) sobre

a criação de um espaço de cinema comunitário – relatam duas estórias bastante

distintas que levam, no entanto, a um resultado comum : a aproximação das


103

comunidades envolvidas com as formas de expressão artística disponíveis,

respectivamente, para cada uma delas ;

- Textos III, IV, V e VI : Iguaria Regional Vence Barreira Geográfica e Vira Destaque

em Restaurantes do Rio e SP ; Agricultura Familiar ; Nosso Cardápio em Cordel e

artigo (sem título) sobre a recente ampliação da marca Cachaça 51 – os conteúdos

dos textos exemplificam a expansão da cultura para a esfera econômica, pela

utilização do expediente da cultura como conveniência, sobretudo para gerar a

multiplicação de mercadorias ;

- Textos VII e VIII (ambos sem títulos) : entrevista com a artesã que idealizou a Flor

de Concha ; e texto sobre a criação de um pequeno negócio para a comercialização

de tecidos bordados artesanalmente – descrevem o desenvolvimento de dois

trabalhos de produção artística artesanal que se ampliaram e resultaram na

estruturação de pequenos negócios ;

- Texto IX (analisado isoladamente) : Angola – Onde o Brasil Aprendeu a Gingar –

ilustra uma intensificação recente da internacionalização da música brasileira, nesse

caso, como um bem cultural ;

- Textos X e XI : Daniella Zylbersztajn – Tataraneta e Neta de Fabricantes de Bolsas,

Cria Objetos de Desejo ; e O ‘Design’ com Ingrediente de Sucesso – descrevem o

trabalho de duas artistas, que a partir do contato travado com modelos de criação

artesanais tradicionalmente e culturalmente estabelecidos, os reconfiguram por meio

da inclusão de conceitos e técnicas mais acadêmicas no processo de criação ;

- Texto XII (analisado isoladamente) : A Dança Brasileira Conquistando Espaços –

aponta os “espaços” ocupados pela dança brasileira no cenário contemporâneo,

tanto no mercado nacional, como no internacional ;


104

- Texto XIII : texto (sem título) sobre a integração de uma imigrante alemã ao Brasil

por meio das artes plásticas – é analisado conjuntamente com as duas primeiras

perguntas da atividade que nele se baseia, pois, seus conteúdos somados aos

conteúdos desses dois itens compuseram o fechamento não só da unidade Arte e

Cultura, mas também de nossa avaliação do conjunto de textos da unidade.

Por fim, os conteúdos dos conjuntos de textos dos dois LDs foram analisados,

considerando-se os parâmetros estabelecidos pela teoria de Yúdice, e as diferentes

formas de representação da cultura brasileira que emergiram da análise foram

descritas e avaliadas em termos de sua adequação ao ensino de PLE no período

contemporâneo.
105

5 ANÁLISE DE DADOS

5.1 A ABORDAGEM DE TÓPIC OS CULTURAIS EM BEM-VINDO! – A LÍNGUA

PORTUGUESA NO MUNDO DA COMUNICAÇÃO

5.1.1 Descrição dos tópicos selecionados

Considerando os paradigmas e critérios descritos na metodologia, elegemos

um conjunto de textos para análise que encontra-se distribuído no Grupo 5 da obra

Bem-Vindo!, ao longo de quatro unidades :17,18,19 e 20. Esse conjunto de textos

abordará um to tal de seis temáticas culturais : identidade, literatura, música, folclore,

festivais e carnaval.

As três primeiras temáticas são apresentadas em quatro textos 12. Cada um

dos textos está inserido em uma das quatro unidades, respectivamente (17,18,19 e

20), em uma seção específica intitulada Gente e Cultura Brasileira. A primeira

temática se desenvolve em dois textos complementares, inseridos nas unidades 17

e 18, que recebem os títulos: Quem somos, afinal ? (1) e (2). A segunda e terceira

temáticas, Literatura Brasileira e Música Popular, são abordadas no terceiro e quarto

textos, nas unidades 19 e 20.

Os três temas restantes são abordados em cinco outros textos que integram

a unidade 20. Três textos enfocam diferentes aspectos do tema folclore brasileiro, o

primeiro : O Folclore Brasileiro; o segundo : Preferência Nacional; e o terceiro é um

artigo (sem título) sobre os eventos folclóricos nacionais. O quarto texto (sem título)

12
Vamos nos restringir à análise dos conteúdos culturais apresentados nos textos dos LDs selecionados, não
incluindo as atividades a eles relacionadas e o tipo de interação que elas buscariam promover entre os estudantes.
106

descreve os principais festivais brasileiros em que se premiam gêneros de arte. O

quinto é Carnaval e apresenta um panorama da festa popular no Brasil.

5.1.2 Resumos dos textos

5.1.2.1 Textos I e II : Quem Somos Afinal (1) e (2) ?

Assunto : os textos, como os títulos sugerem, tratam da identidade cultural

brasileira, representando uma tentativa de delinear suas características, destacando

a unidade territorial e populacional apesar da diversidade nas marcas regionais e

nos estratos básicos de cultura.

Fonte : Revista TERRA 06/1998 – resumo do texto de Vinícius Romanini.

Os dois textos se complementam, pois, na verdade, são constituídos por

duas partes distintas do resumo de um mesmo texto original. Ele descreve um povo

brasileiro resulta nte de uma fusão de raças e culturas, que ainda se encontra em

formação, e que, mesmo diante de tantos contrastes históricos e geográficos,

manteve -se unido, por uma alma comum proveniente sobretudo de sua matriz étnica

indígena.

Essa matriz étnica, somou-se à negra e à branca que chegou em parte com

os portugueses e mais tarde com os imigrantes que trabalharam nas lavouras de

café de São Paulo e povoaram o sul brasileiro. As três matrizes mesclaram-se,

originando variada mestiçagem que se espalhou por distintas regiões do país,

adaptando-se às condições de cada uma delas e formando tipos regionais como os

gaúchos, e caboclos, caiçaras e pantaneiros.


107

Contudo, o intenso processo de urbanização que modernizou o estilo de vida

dos habitantes das cidades até o final do século, parece estar tornando os

brasileiros cada vez mais parecidos, embora ainda seja possível encontrar gente que

leva consigo a alma de caipiras, sertanejos e tantos outros personagens que fizeram

a história de nosso povo.

Dentre esses personagens típicos que compõem o povo brasileiro estão :

- o gaúcho : diretamente ligada à região de pastagem dos pampas do Rio

Grande do Sul, essa figura surgiu em busca do gado que, trazido pelos jesuítas,

ficou abandonado depois da destruição das missões ;

- o caboclo : a palavra caboclo também é usada como sinônimo de

mameluco, a mistura entre brancos e índios. Como tipo cultural, no entanto, o

caboclo é o ribeirinho, ou seja, o morador das margens dos rios, principalmente os

da região Norte, da bacia amazônica ;

- o caipira : de um modo geral, é quem mora no interior de São Paulo e

Minas Gerais, vivendo de cultivar a roça. Seus modos rústicos provocavam o

desdém dos habitantes da cidade. Tem vários sinônimos pejorativos, como jeca,

capiau, matuto, e pé-duro ;

- o sertanejo : vive nas zonas secas do país, principalmente das chapadas e

da caatinga nordestina. Com vida simples, típica do sertão, cria umas poucas

cabeças de gado e planta para a subsistência.

- o mulato : é a mestiçagem mais comum no Brasil, fruto do cruzamento

entre brancos e negros. No período colonial, muitas vezes os mulatos foram frutos

do abuso sofrido pelas mulheres negras da senzala que despertavam o interesse

dos senhores de engenho. Hoje, o mulato é símbolo da beleza brasileira.


108

- o seringueiro : vive nas regiões da Floresta Amazônica onde as

seringueiras nascem espontaneamente, como no Acre. Seu trabalho é abrir vincos

nos troncos para extrair o látex e, em seguida, defumá-lo até que se transforme em

borracha.

- o jangadeiro : vive em comunidades do litoral nordestino. Sua atividade é a

pesca de rede a bordo de jangadas, pequenas embarcações de vela triangular feitas

de seis paus roliços retirados das matas da região.

- o pantaneiro : é um vaqueiro adaptado para as pastagens úmidas, nasceu

com a chegada da criação extensiva de gado ao Pantanal. Sua tarefa é o constante

deslocamento dos rebanhos das terras baixas, alagáveis pelas cheias do Rio

Paraguai, para as altas e secas.

- o caiçara : vive no litoral sudeste brasileiro, nas matas de restinga próximas

aos manguezais. Sua atividade é a pesca na foz dos rios e o cultivo de subsistência.

- o mestiço oriental : o termo mestiço serve para definir qualquer tipo de

mistura de raças, mas nos últimos anos tem sido mais usado para o caso dos

orientais. O fenômeno é recente, pois a raça amarela – prevalecendo no Brasil os

japoneses – viveu décadas em colônias fechadas.

5.1.2.2 Texto III : Literatura Brasileira

Assunto : Histórico do desenvolvimento da Literatura Brasileira desde as

primeiras obras literárias surgidas ainda no Brasil-colônia, que atravessa um período

aproximado de cinco séculos, concluindo-se no final do século XX.

Fonte : Almanaque 04/1998.


109

As primeiras obras ilterárias brasileiras foram textos informativos sobre a

conquista do território pelos portugueses, como a carta de Pero Vaz de Caminha, ou

ligados à expansão da fé católica, podendo ser exemplificados, nesse caso, pelos

sermões dos jesuítas e tendo entre seus principais autores o padre José de

Anchieta.

A partir do século XVII, prevalecem os estilos literários de modelo europeu,

como o barroco com a poesia lírica e satírica e o romantismo (início do século XIX),

que incorpora o regionalismo, retratando costumes e tradições do interior brasileiro.

Já no final do século XIX, difunde-se também o parnasianismo, que tem como

expoente o romancista e poeta Olavo Bilac e o simbolismo, cuja representatividade

extrapola a literatura e estende-se a outras manifestações artísticas, como a música.

Pouco antes do modernismo, que trará importantes inovações nos modos de

conceber e produzir a arte literária e também para outros setores da cultura, surge

uma literatura engajada, que reflete o afloramento de problemas socioeconômicos

decorrentes do complicado processo de consolidação da República. Essa literatura é

desenvolvida por alguns escritores considerados pré-modernos, e, dentre eles, estão

Lima Barreto, Monteiro Lobato e Euclides da Cunha, que deixou como legado dessa

época o memorável título Os Sertões.

Com o desenvolvimento das cidades, surgem também o realismo e o

naturalismo, sucedidos, na segunda década do século XX, pelo modernismo e junto

com ele uma revitalização do regionalismo. Esse é o período em que são produzidas

algumas obras centrais que registram estudos do sociólogo Gilberto Freyre. É ele

quem lança, como marco dessa fase, o Manifesto Regionalista. Já o modernismo

tem como marco a realização da Semana de Arte Moderna, em 1922, na qual se fez
110

uma exploração criativa não só da literatura, mas também do folclore, da tradição

oral e da linguagem coloquial.

Na década de 50, a poesia é inovada pelo concretismo e na prosa

destacam-se autores como Lígia Fagundes Telles e Rubem Fonseca. Nas décadas

seguintes, outros gêneros literários, como a crônica, os contos, biografias e

memórias, também apresentarão grande desenvolvimento, com a projeção nacional

de escritores importantes nos respectivos gêneros : Fernando Sabino e Luís

Fernando Veríssimo; Otto Lara Resende; Fernando Morais ; e Adélia Prado , dentre

outros.

5.1.2.3 Texto IV : Música Popular

Assunto : Apresentação dos gêneros, compositores, intérpretes e canções

considerados pelo(s) autor(es) como os mais representativos da música brasileira,

em sintonia com os períodos sociohistóricos em que se inscreveram desde a sua

origem no século XVIII até o final do século XX.

Fonte : Almanaque Abril, 1998.

Tem origem no século XVIII, misturando elementos de música folclórica e

erudita. A modinha, variação de um estilo português, espécie de canção lírica e

sentimental é uma das primeiras expressões musicais tipicamente brasileiras. Sua

fusão com o lundu, dança trazida por escravos angolanos, resulta no maxixe,

surgido no Rio de Janeiro entre 1870 e 1880.

Nessa época, surge o choro, caracterizado pela improvisação instrumental,

e, apenas ao final do século XIX, aparece o samba, influenciado pela marcha e pelo
111

batuque. No final dos anos 20, ganham força as modas de viola, com as primeiras

duplas sertanejas.

A partir da década de 30, a música brasileira faz sucesso no rádio e cria

ídolos populares como Francisco Alves (o ‘Rei da Voz’), Emilinha Borba e Marlene.

Estava-se em plena “Era Vargas” e, com a música sob censura, foi criada a Aquarela

do Brasil, de Ary Barroso.

Os anos 40 ficaram marcados pelos artistas prestigiados da Rádio Nacional,

alguns exemplos são Sílvio Caldas e Orlando Silva. Ao final daquela década e no

início da que se seguiu, acontece o primeiro sucesso nordestino a atingir âmbito

nacional, é a música Asa Branca de Luiz Gonzaga. Na esteira desse sucesso,

Mulher Rendeira, de Zé do Norte, também conquista o grande público.

A década de 50 é marcada pelo samba-canção. O gênero pode ser

simbolizado pela figura do cantor Lupicínio Rodrigues. Em 1958, nasce a bossa

nova, um movimento que partiu da reunião de compositores talentosos da zona sul

carioca e ganhou projeção internacional em 1962 com um festival no Carnegie Hall,

em Nova York, divulgando canções de João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de

Moraes.

Em oposição à suavidade e ao intimismo da bossa nova, o início dos anos

60 é o período do aparecimento das canções de protesto , que refletem o clima de

militância política. Um exemplo marcante é Caminhando de Geraldo Vandré.

A partir de 1965, a sigla MPB passa a identificar a música popular brasileira

que tem origem no período após a bossa nova e, na época, apresentava temática

política e era divulgada por meio de uma seqüência de festivais realizados em

grandes espaços públicos. Entre seus representantes, estão, dentre outros, Elis
112

Regina e Gilberto Gil; além de Chico Buarque com sua inesquecível canção A

Banda; e Caetano Veloso, compositor de Alegria, Alegria.

Porém, em 1968, com a decretação pela ditadura militar vigente de um Ato

Institucional, o AI-5, vários “astros” dos festivais partiram rumo ao exílio e outros se

consagraram como intérpretes e compositores ao longo dos anos 70. Entre eles

estão Gal Costa, Ney Matogrosso, Gonzaguinha, Elba Ramalho e muitos outros,

com destaque, sobretudo nos gêneros samba-canção e pop.

Paralelamente, na metade da década de 60, explode a jovem guarda, cujo

surgimento foi influenciado pelo rock internacional e trouxe o sucesso àquele que

viria a ser um dos maiores ícones da música nacional – o cantor e compositor

Roberto Carlos. Nos anos 70, o rock brasileiro se desenvolve com Rita Lee e Raul

Seixas.

Já nos anos 80, ele aparece em composições que, por vezes, também

agregam reggae e funk. Essas canções que resultam da fusão de gêneros, estão

presentes na produção de Luiz Melodia, Marina Lima, das bandas Barão Vermelho,

Titãs e Os Paralamas do Sucesso, e de muitos outros artistas que partilhavam essa

tendência musical característica da época.

Além disso, por volta de 1987, a ampliação e popularização da diversidade

de ritmos nascidos no Carna val em Salvador, resultou em novos gêneros, que

conquistaram sucesso em grande parte do país. Alguns exemplos são o fricote de

Luiz Caldas, a lambada, a batida do (Bloco de Carnaval) Olodum e a axé music

(mistura de samba e reggae) alavancada inicialmente pelas gravações de Daniela

Mercury.
113

Nesse mesmo período, teve ampla repercussão uma nova música sertaneja,

que incorpora o viés romântico do country norte-americano, ela ganha impulso nas

vozes das duplas Chitãozinho e Xororó e Leandro e Leonardo, entre o utras.

Nos anos 90, chega a vez do rap, do funk e do pagode. Na MPB, a mistura

de rock, reggae e funk ganha novas nuances com a geração de Chico Science,

Carlinhos Brown, Marisa Monte, etc. A axé music segue se renovando e

revitalizando, o que permite a esse gênero musical, juntamente com o pagode, obter

os maiores sucessos de venda na década.

5.1.2.4 Texto V : O Folclore Brasileiro

Assunto : Descrição e caracterização do folclore brasileiro sob o enfoque da

literatura oral, com a apresentação de mitos e lendas folclóricas selecionados pelos

autores por sua grande popularidade e agrupados segundo as regiões onde

surgiram ou são mais difundidos.

Fonte : Revista Kalunga Ano XXVI - 08/98 - n°92.

O caboclo, na beira da tuia ou ao pé do fogo conta histórias carregadas de

fantasia, beleza e medo. Um exemplo é a do cavalo de um compadre que apareceu

todo maltratado e com a crina trançada.“É coisa de saci-pererê”, explica. São figuras

como a do caboclo, que terão nomes e trajes diferentes nos vários cantos do país,

os responsáveis pela grandeza do folclore brasileiro. Eles encontram na tradição a

sua escola e maior riqueza.

Algumas obras-primas nasceram da observação e estudo do homem como

fonte de criação e divulgação do folclore. O Dicionário do Folclore de Câmara


114

Cascudo é uma delas. Ele ensina que qualquer objeto que projete interesse

humano, além de sua finalidade imediata, material e lógica, é folclórico. E que o

folclore estuda as manifestações tradicionais e soluções populares, como os

remédios caseiros, por exemplo, na vida da sociedade.

Porém, o lado mais conhecido do nosso folclore é o que trata de festa e

histórias assustadoras de animais estranhos. Esse viés é explorado na obra Sítio do

pica-pau amarelo do escritor Monteiro Lobato, na qual grande parte das estórias

envolve personagens folclóricos como o saci-pererê, a cuca e a mula-sem cabeça.

Esse aspecto do folclore utilizado na narrativa de Lobato é a chamada

literatura oral, que vem a ser toda manifestação cultural, de fundo literário,

transmitida por processos não gráficos. Graças à tradição oral, surgiram

personagens muito populares no Brasil, alguns nascidos aqui e outros trazidos por

colonizadores e imigrantes.

Um bom exemplo é o saci-pererê : negrinho de uma perna só, cachimbo de

barro na boca e capuz vermelho na cabeça. Muito difundido no interior da Região

Sul e conhecido em todo o país, ele é dado a fazer travessuras, como entrar nas

casas pelo buraco da fechadura para apagar o fogo de fogões e lamparinas.

Outro negrinho famoso, com grande popularidade no Rio Grande do Sul, é o

do Pastoreio : menino escravo, que depois de surrado por fazendeiro rico e jogado

em um formigueiro, reaparece montado em um cavalo com a proteção da Virgem

Maria. A tradição manda acender uma vela para o negrinho quando se quer

encontrar algo. Também gaúcha é a figura folclórica do generoso : duende que entra

nas casas, mistura sal com açúcar, toca instrumentos e surpreende pessoas na

cama.
115

No Estado de São Paulo, em Botucatu, é difundido o mito do cão-da-meia-

noite : um cachorro enorme, negro, com orelhas matraqueantes e corrida lenta e

pesada, que não molesta ninguém fisicamente, mas é um perigo para mulheres

adúlteras. Ele ladra na porta de suas casas, sempre que sai de sua touceira de

bambu.

A região amazônica é o berço da lenda da vitória-régia. Segundo ela, a

planta teria surgido no local onde uma linda moça, que decidiu viver com a Lua, teria

avistado a imagem de seu objeto de desejo refletida em um rio e nele se atirado sem

jamais retornar. E seria por isso que a vitória-régia sempre floresce conforme as

fases da Lua e só abre suas pétalas à noite.

Na mesma região, há a crendice popular de que o boto canta para seduzir

garotas ribeirinhas. Daí serem atribuídos a ele os filhos de pai incógnito. Papel

semelhante tem a sereia brasileira, a mãe d’água ou iara é um tipo irresistível, com

olhos verdes que brilham como esmeraldas. Para o fundo dos rios onde habita atrai

os rapazes nos finais de tarde.

O rio Amazonas é uma importante fonte de inspiração. Para a cultura

indígena local, o rio está ligado à criação do mundo. Ela se dá quando o casamento

do Sol com a Lua é desfeito por ordem de Tupã, fazendo com que as lágrimas

nascidas do pranto da Lua caiam sobre o mar e por serem doces não se misturem

às suas águas salgadas, originando, assim, o grande rio. Também são os índios os

narradores da lenda de Uribici, que pede a Tupã para ser transformada na ave

Uirapuru ao ser rejeitada pelo noivo, o cacique Ururau. Quando quer silêncio na

mata, Tupã manda Uirapuru cantar.


116

5.1.2.5 Texto VI : Preferência Nacional

Assunto : Descrição de um grupo de personagens folclóricos classificados

pelo(s) autor(es) dentre os mais populares no país.

Fonte : Revista Kalunga Ano XXVI - 08/98 - n°92.

Uma pesquisa sobre os personagens folclóricos mais populares no país

traria no topo da lista, ao lado do saci-pererê, a cuca. Sem características físicas

definidas, ela está associada ao ciclo da angústia infantil, pois a advertência de que

as crianças podem ser levadas pela cuca para um lugar misterioso é utilizada para

tentar convencer as mais agitadas a dormirem. Esse recurso foi registrado pela

cantiga Nana, nenê, que a cuca vem pegar.

Também seria um campeão das pesquisas o curupira : um duende com

cabeleira de fogo e calcanhares para a frente. Em 1560, o padre José de Anchieta já

registrava em seus escritos o terror que o mito causava aos índios. Ele é conhecido

como guardião das florestas e animais e, graças a sua fama, como tal foi instituído

por uma lei assinada em 11 de setembro de 1970 pelo então governador de São

Paulo, Abreu Sodré.

A mula-sem-cabeça é popular em toda a América Latina. Definida como a

forma que toma a concubina do sacerdote, se transforma em um animal que

assombra quem encontra. Seu galope é ouvido longe e seu encanto pode ser

quebrado se provocar um ferimento na vítima. Não tem cabeça, mas relincha e às

vezes soluça como gente.

Segundo a lenda, famosa em todo o mundo, o lobisomem tem de se valer do

mesmo estratagema da mula -sem-cabeça para quebrar o encanto sofrido, que, no


117

seu caso, é transfigurar-se, tornando-se meio lobo e meio homem nas noites

enluaradas de terças e sextas-feiras. Essa é a sina do oitavo filho de um casal com

sete filhas, segundo a tradição oral que vem da Grécia. Trazida pelos portugueses

para o Brasil, a lenda foi adaptada na região Nordeste, onde se diz que doentes de

amarelão também viram lobisomem.

5.1.2.6 Texto VII : (sem título) - artigo sobre eventos folclóricos nacionais

Assunto : Apresentação das festas regionais como um componente do

folclore brasileiro e descrição de alguns eventos representativos desse componente.

Fonte : Revista Kalunga Ano XXVI - 08/98 - n°92 e Adaptação de Brasil –

Histórias, Costumes e Lendas.

Além de histórias fantásticas, no folclore brasileiro incluem-se as festas

regionais, que atraem turistas de todo o mundo. Um bom exemplo é o Círio de

Nazaré : manifestação religiosa de origem portuguesa realizada no segundo

domingo de outubro em Belém do Pará, que remonta ao século XVIII. Na festa, há

comidas, bebidas, música e dança partilhadas pela multidão, que paga promessas à

Nossa Senhora de Nazaré e luta por um lugar na imensa corda que acompanha a

procissão. Na mesma região, de meados de novembro a 6 de janeiro (Dia de Reis)

temos o Bumba-meu-boi, folguedo brasileiro de maior significação estética e social.

Pertencente ao ciclo do Natal, tem registros de sua ocorrência desde 1840.

Em Porto Alegre, a Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes,

popularmente chamada de festa da melancia, se realiza no dia 2 de fevereiro. A

santa é colocada previamente em outra igreja e a procissão com centenas de barcos


118

e milhares de fiéis atravessa o rio Guaíba para levá -la de volta à sua igreja, onde

ficará até o ano seguinte. São ofertadas flores, fitas, grinaldas e vestidos de noiva,

lançados às águas em pagamento a promessas feitas para a realização de

casamentos. A festa conta com barracas de comidas, bebidas típicas e muitas

melancias.

Em Montes Claros, Minas Gerais, há A Cavalhada, manifestação de origem

portuguesa com a motivação religiosa de transmitir o triunfo do Bem. Ela consiste na

representação do confronto entre dois grupos de cavaleiros, com seus cavalos

ricamente vestidos : os cristãos, trajando azul, simbolizam o Bem; os mouros, em

trajes vermelhos, o Mal. No passado, A Cavalhada ocorria em várias regiões do

Brasil, tendo como cavaleiros os “senhores de terras”.

Também compõem a festa uma dramatização em que o rei cristão Carlos

Magno batiza os infiéis, e a brincadeira com jogos atléticos que demonstram a

perícia dos cavaleiros. Entre eles está O Jogo das Argolinhas, surgido no Brasil no

século XVI, como parte da Cavalhada. Nele, uma argolinha enfeitada com fitas é

pendurada numa trave ou poste ornamentado para que os cavaleiros a retirem com

a ponta da lança no momento em que o cavalo passa debaixo do poste e a

entreguem à armada ou a uma jovem da assistência.

5.1.2.7 Texto VIII : (sem título) - texto sobre festivais de premiação dos gêneros

de arte

Assunto : Descrição dos principais festivais brasileiros realizados para

premiar os gêneros de arte.

Fonte : Almanaque Abril, 1998.


119

Há vários festivais brasileiros onde se premiam gêneros de arte como

literatura, música, teatro e cinema. Entre os principais, estão :

- Festival de Brasília : ocorre desde 1965 e os vencedores recebem o troféu

Candango e um prêmio em dinheiro;

- Eldorado de Música : realizado a cada dois anos, desde 1985, dá nome ao

prêmio mais importante de música erudita no país.

- Festival de Gramado : ocorre desde 1969, integrando a Festa das

Hortênsias e torna-se independente em 1973, com a 1ª Mostra de Cinema

Competitivo, passando a receber filmes de outros países de língua latina a partir de

1992.

- Jabuti de Literatura : desde 1959, premia os destaques da literatura

brasileira, incluindo 15 categorias, como romance, conto, poesia, ensaio, etc.

- Molière : criado em 1963, é entregue aos profissionais do teatro brasileiro

no ano subseqüente à temporada teatral.

- MTV Awards : premia a produção de videoclips desde 1984, quando

acontece sua primeira edição nos EUA, e se inicia no Brasil em 1995.

- Sharp : distribui sua premiação a todos os gêneros da música brasileira

desde 1987 e institui sua premiação para teatro em 1995.

5.1.2.8 Texto IX : Carnaval

Assunto : Definição do Carnaval e descrição do seu surgimento no Brasil no

século XVII e de seu desenvolvimento através da formação de sociedades

carnavalescas desde o século XIX até os dias atuais.


120

Fonte : Almanaque Abril, 1998.

O Carnaval é uma das maiores manifestações de cultura popular do Brasil,

misturando festa, espetáculo, arte e folclore. É realizado em fevereiro ou março, 40

dias antes da Semana Santa, contados a partir do Domingo de Ramos. Sua duração

é de três dias – de domingo a terça-feira, encerrando-se na Quarta-feira de Cinzas –

mas pode variar bastante dependendo da localidade.

Chega ao Brasil no século XVII, introduzido pelos portugueses como uma

brincadeira na qual as pessoas atiravam umas nas outras bexigas com água e

farinha. Em 1899, a pianista Chiquinha Gonzaga compõe pela primeira vez

especialmente para o Carnaval. Nesse período, fim do século XIX, surgem

sociedades carnavalescas, como os cordões, blocos, ranchos e corsos.

A denominação escola de samba nasce no Rio de Janeiro em 1928. O

compositor Ismael Silva é o primeiro a usar a expressão para se referir a seu grupo

carnavalesco, o rancho Deixa Falar. O primeiro desfile oficial é realizado em 1935.

Hoje, muitas escolas têm organização quase empresarial e mantêm funcionários

assalariados. São agremiações que desfilam durante o Carnaval com fantasias,

alegorias e coreografias relacionadas ao tema escolhido a cada ano.

Embora, atualmente haja desfiles de escolas de samba em todo o país, o do

Rio de Janeiro continua sendo o mais tradicional e o de maior projeção. Nele, cada

escola deve desfilar por um tempo mínimo de 65 minutos e máximo de 80 minutos,

com seus integrantes cantando o samba-enredo da escola.

Na Bahia, o ponto alto do Carnaval é o encontro dos trios elétricos na praça

Castro Alves. Os trios são caminhões equipados com palco e aparelhagem de som –

com até 100.000 watts de potência – que fazem shows ao vivo se deslocando pela
121

cidade. O primeiro deles surge em 1950. Com o tempo se multiplicam e passam a

animar milhões de pessoas que dançam atrás deles e a comandar o Carnaval de

Salvador (Bahia), ao lado dos blocos afros, bandas e afoxés.

No Carnaval do Recife e de Olinda, em Pernambuco, desfilam clubes e

blocos de frevo, que é um gênero musical de ritmo bastante acelerado e uma dança

com passos quase acrobáticos, na qual os dançarinos usam pequenos guarda-

chuvas em sua coreografia.

E ainda há as festas carnavalescas realizadas fora da época do Carnaval.

São as micaretas, que têm entre suas principais representantes as nordestinas,

como a Recifolia (do Recife) e o Carnatal (de Natal). Atualmente, mais de trinta

micaretas acontecem no Brasil durante todo o ano.

5.1.3 Análise dos textos

Para avaliarmos a natureza dos conteúdos culturais apresentados acima e

ponderarmos sobre as razões que nos levam a considerá-la como característica de

um determinado tipo de abordagem cultural, é preciso procedermos a um breve

resgate da história da conceituação da cultura nacional-popular no Brasil.

Segundo Yúdice (2004, p.104), tomando-se a história recente dos rumos da

cultura em vários países da América Latina, e mais especificamente do Brasil, a

partir dos anos 1930, torna-se clara a construção de uma disposição nacional-

popular definidora das sociedades.

O Brasil dos anos 1930 caracterizou-se por pactos corporativistas entre as

elites alinhadas com o Estado que promoviam a industrialização como substituto dos

importados (ISI), o desenvolvimentismo, além de um nacionalismo popular


122

igualmente estatizante em busca do Estado do bem -estar social. Nesse panorama,

estão as origens das extraordinárias burocracias que deram apoio a uma ‘cultura

nacional-popular’ (op.cit., p.105).

A ‘cultura do povo’ se disseminou a partir desses âmbitos, não fora do mercado, mas dentro

das indústrias culturais controladas e, algumas vezes, subsidiadas pelo Estado ... A

nacionalização do samba, por exemplo, envolveu a intervenção do regime de Vargas nas

indústrias da música e em várias instituições sociais como o carnaval e redes “populares”

(Raphael,1980; Vianna,1999, apud Yúdice, 2004, p.106). Isso produziu aquela cultura em

nome da qual essas artes supostamente eram empreendidas. No processo, o Estado se

tornou o árbitro do gosto.

Vários regimes populistas reconheceram que a cultura vernácula das classes trabalhadoras

oferecia o cimento simbólico da nação, imprescindível ao avanço para um novo estágio de

desenvolvimento econômico. Os anos 1930 a 1960 continuavam a distribuir imagens daquilo

que havia sido aceito no plano doméstico e no exterior como identidades nacionais latino-

americanas emblemáticas, até mesmo estereotípicas (op.cit.,p.106).

Houve durante o período, algumas manifestações de uma consciência cultural

comum entre os assim chamados segmentos populares e intelectuais de esquerda

... , por exemplo, surgiram, em meados dos anos 1950,

o reformismo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), os Centros Populares de

Cultura marxistas, o movimento de conscientização católica da ala esquerdista, e o

Movimento em prol da Cultura Popular do Nordeste . Como a Teologia da Libertação, esses

movimentos forneceram uma “opção para os pobres”, ou seja o popular, mas foram alvo do

Golpe Militar em 1964 ...(Ortiz,1988 :162, apud Yúdice, 2004, p.107).


123

Nos anos da ditadura vindouros, os militares formularam políticas claras para

modernizar a sociedade brasilleira, isto é, para resignificar e transformar a noção e a

realidade mesmas do popular, desde uma perspectiva enraizada na classe e nas

lutas culturais a uma noção de popularidade definida pelos mercados de consumo

(op.cit.,p.107).

Foi estabelecido, então, um rígido controle político, social e cultural da

população, desafiado pela atividade de guerrilha armada (op.cit,p.108) e

manifestações de contra-cultura esparsas, que eram sempre fortemente reprimidas

pelo aparato militar governamental, paralisando, desse modo, as formas de ação

coletiva.

O esvaziamento da emancipação não acarretou no abandono da cultura. Pelo contrário,

essas ditaduras fascistóides instalaram um Estado cultural forte, sobretudo fundamentado em

premissas da modernização da mídia, tarefa que era confiada a elites tecnocráticas

(Waisbord,2000:55;Fox,1997:193, apud Yúdice,2004,p.109).

Perdurou até a década de 1980 o fato de as tradições de estudos culturais no

Brasil se configurarem em paradigmas estabelecidos dentro de um quadro de

estrutura nacional. Nesse período, dadas as mudanças econômicas e sociopolíticas

nacionais – que, por sua vez, já estavam, em certa medida, em consonância com o

momento histórico internacional – tem início uma reconfiguração dos modelos de

conceituação da cultura, que impõe uma revisão nas bases de seus interesses

teóricos.

Os modelos anteriores a esse período remetem a cânones de excelência

artística, a padrões simbólicos que dão coerência e conferem valor humano a um

grupo de pessoas ou sociedade, ou à cultura como disciplina (op.cit., p.454). Neles,


124

ainda prevalece o objetivo de focalizar o conteúdo da cultura e a sua

antropologização mais recente como todo um meio de vida, segundo o qual se

reconhece que a cultura de qualquer um tem valor.

Conforme descrevemos anteriormente , os cânones de excelência artística

eram os itens elencados para compor a categoria Big C culture, porém, essa

definição inicial veio sofrendo reformulações e ampliações, o que resultou em

propostas mais satisfatórias no que tange à amplitude e adequação dos grupos de

elementos que devem integrar esse recorte da cultura.

Elegemos a proposta de categorização da Big C culture apresentada por

Hadley (apud Lima, 2000, p.30) pelo grau de operacionalidade que oferece para a

seleção dos tópicos culturais, que são o objeto de nossa pesquisa, em ambos os

LDs de PLE.

No entanto , os conteúdos culturais produzidos e divulgados no seio de uma

dada sociedade (ou, como veremos mais à frente de um conjunto de sociedades)

refletem os padrões simbólicos partilhados por essa(s) mesma(s) sociedade(s), e os

padrões simbólicos, por sua vez, influenciam a produção desses conteúdos.

Essa constatação deixa bastante claro que a divisão entre Big C culture e

little c culture é meramente instrumental, como já foi dito, e cientes disso abordamos

nesse trabalho os componentes da Big C culture, sobretudo os que podem ser

veiculados para públicos numericamente representativos, a fim de aferir justamente

a influência que podem exercer na geração de novos padrões simbólicos (alterando

mentalidades, comportamentos, hábitos, normas de conduta), etc.

É com esse objetivo que faremos a análise dos conteúdos culturais

elencados nesse trabalho. Esses conteúdos, em nosso entender, ao refletirem uma

mentalidade coletiva, ou, melhor dizendo, ao se inscreverem em uma forma de


125

conceituar e representar a cultura, nos possibilitam, por meio de sua análise,

associá-los às suas bases teóricas.

Essas bases teóricas, no caso do grupo de conteúdos que integram os

textos de Bem Vindo!, são fundamentadas em uma disposição nacional-popular e

trabalham no sentido de elaborar definições não só do caráter e da identidade do

brasileiro, como também da cultura brasileira. As definições, por sua vez, são

formuladas a partir de características, consideradas estanques e permanentes, que

foram extraídas do processo de observação e reflexão acerca de nosso passado

histórico.

Assim, a partir dos anos 30, como ressaltou Yúdice, passaram a compor

essa corrente principal de estudos sobre a cultura nacional, sociólogos, historiadores

e antropólogos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro e

Roberto da Matta. Esses culturalistas tiveram e ainda têm grande parte de suas

teorias sobre a formação e o desenvolvimento da sociedade brasileira adotada como

referência por vários campos disciplinares da Academia, incluindo a Lingüística.

E, como poderemos observar na análise dos textos de Bem Vindo!, suas

teorias também influenciam a seleção de conteúdos culturais para integrarem

materiais didáticos, ao menos na área de ensino/aprendizagem de PLE.

5.1.3.1 Textos I e II : Quem Somos Afinal (1) e (2) ?

Optamos por comentar esses textos conjuntamente , como um texto único,

pois conforme foi destacado na introdução de seu resumo, na verdade, o título

recebe as numerações (1) e (2) por fazer referência a duas partes do mesmo texto.

Dividiremos esta análise em duas etapas distintas, a primeira referindo-se ao texto


126

como um todo e a segunda à descrição dos dez personagens apresentados como

típicos entre o povo brasileiro. Antes de procedermos à análise, contudo,

reintroduziremos o assunto e a fonte referentes ao texto.

Assunto : os textos, como os títulos sugerem, tratam da identidade cultural

brasileira, representando uma tentativa de delinear suas características, destacando

a unidade territorial e populacional apesar da diversidade nas marcas regionais e

nos estratos básicos de cultura.

Fonte : Revista TERRA 06/1998 – resumo do texto de Vinícius Romanini.

Em primeiro lugar, ao longo da leitura, torna-se bastante claro que não existe

a pretensão de se alcançar a elaboração de definições. Sendo o questionamento

acerca de Quem Somos, Afinal ? demasiadamente complexo para esgotar-se em

um, ou mesmo em muitos textos. É o que diz o próprio autor, Vinícius Romanini, ao

afirmar que : Algumas das cabeças mais brilhantes do Brasil, de Gilberto Freire (sic)

a Darcy Ribeiro, gastaram décadas de trabalho tentando resolver a questão ‘o que é

ser brasileiro?’ e não chegaram a uma resposta definitiva.

O comentário transcrito acima explicita alguns dos teóricos, cujos estudos

fundamentaram a elaboração do texto selecionado pelas autoras de Bem Vindo! Da

mesma forma, o primeiro parágrafo do texto é um indicativo de que a representação

cultural apresentada pelo mesmo está, em linhas gerais, em sintonia com o tipo de

representação proposta por esses teóricos.

Nesse parágrafo, o autor aponta nosso passado histórico como fonte de

informações que nos auxiliem na tentativa de definir o que é ser brasileiro :


127

Uma fusão de raças e culturas que já dura meio milênio deu aos brasileiros traços e

personalidade próprios. Mas basta olhar mais de perto para perceber que, apesar de tudo,

não perdemos contato com as raízes de nossa formação.

Naturalmente, a fusão de raças e culturas se dá com a integração das

matrizes étnicas, há meio milênio, quando se inicia o período colonial, que está

dentre os mais explorados pelos teóricos referidos, onde se fincaram raízes que

explicam o que nos caracteriza e diferencia de modo intrínseco e essencial como um

povo.

No quarto parágrafo do texto é ressaltada a unidade, a despeito da grande

diversidade que caracteriza a nação, com a seguinte afirmativa : O brasileiro é isso :

o resultado de uma mistura que, mesmo submetida a tantos contrastes históricos e

geográficos, manteve-se unida.

Freyre (2002), na obra Casa Grande e Senzala, aponta como um grande

favorecedor do estabelecimento e manutenção da unificação no Brasil o caráter não

xenofóbico do colonizador português, calcado na complexa mestiçagem de seu

próprio povo ao longo da história13.

Essa característica do português, somada às condições gerais do processo

de colonização no Brasil, propiciou uma grande integração por meio da

miscigenação entre as três primeiras etnias a participarem da composição do povo

brasileiro.

Essa integração, evidentemente não ocorreu sempre de modo tranqüilo e

isento da violência típica das dinâmicas de apropriação territorial. Contudo, mostrou-

se eficaz do ponto de vista funcional, ou seja, o de conferir coesão ao grupo que ia

13
Para a descrição e fundamentação de Portugal como nação de natureza não xenofóbica, ver Freyre (2002,
p.266 à 270).
128

gradualmente se configurando em meio ao contexto caótico dos primeiros séculos

de exploração das novas terras.

Além dos portugueses estarem despreocupados em relação à pureza da

raça, contribui para a unidade que desejavam construir a rigidez com que impunham

a exigência de que todos os integrantes de suas terras professassem a religião

cristã. Esse objetivo tentou ser cumprido pelos padres jesuítas, por meio de um

modelo catequizador e educacional que foi disseminado ao longo dos séculos e

acabou por se tornar o amálgama que fixou a língua portuguesa em todo o território.

Mais tardiamente, o movimento imigratório, por sua vez, também não

ameaça a continuidade da unificação. Isso ocorre, porque no Brasil, as multidões de

imigrantes que acolhemos e até o grande número de orientais adventícios ... todos

eles, ou quase todos, foram assimilados e abrasileirados, graças ao fato de as

grandes massas desses novos habitantes já encontrarem uma população nacional

tão maciça numericamente e tão definida do ponto de vista étnico, que pôde

absorvê-los cultural e racialmente sem grandes alterações no conjunto

(Ribeiro,1995, pp.73,242).

No quinto, sexto e sétimo parágrafos é destacada a influência das matrizes

étnicas na formação cultural do brasileiro. No quinto parágrafo, Romanini, o autor do

texto, apresenta a teorização do sociólogo Roberto Gambini acerca da influência

indígena na constituição identitária de nosso povo : apesar da importante influência

portuguesa e negra na nossa constituição, os principais traços culturais que

distinguem o brasileiro dos outros povos foram herdados dos índios.

No sexto parágrafo, o sociólogo complementa essa mesma idéia, afirmando

que compõem o estrato básico de cultura indígena não só heranças como os nomes
129

das cidades, técnicas de cultivo, utensílios e o folclore de sacis e curupiras, mas

também algo mais profundo, que moldou nosso inteiro jeito de ser.

Já no sétimo parágrafo, Romanini busca equilibrar as afirmações anteriores,

reconhecendo que o Brasil não se esgota na herança indígena, como também não

está tão permeado pela cultura negra ...

Na opinião de Freyre (2002, p.170), a influência da matriz indígena de fato

subsiste no fundo primitivo da nossa organização social, moral e religiosa,

entretanto, a influência negra é muito significativa e ainda mais marcante, de modo

geral, que a indígena.

E uma vez mais Freyre atribui à grande propensão dos portugueses para a

miscibilidade como um fator crucial para que as influências da matriz negra fossem

tão relevantes na constituição da cultura brasileira. A mestiçagem foi enraizada já no

primeiro século de ocupação do litoral como meio de compensar o reduzido volume

humano de colonizadores em relação às áreas extensíssimas a serem desbravadas.

Nessa primeira fase do povoamento, a união se dá com as índias, só

inicialmente por escassez de mulher branca, porque já no século XVII, ela se apoiará

em decidida preferência sexual, quando entre as filhas das caboclas iam buscar

esposas legítimas muitos portugueses, mesmo dos mais ricos ... (Freyre, 2002,

p.163).

Paralelamente, no século XVI, teve início uma fusão, que para Freyre,

conforme foi dito, se configura como a mais marcante. É o entrelaçamento do

elemento branco com o negro, que se opera na dinâmica de interação senhor-

escravo.

Mesmo deparando-se com o elemento negro em sua condição de escravo,

o branco europeu não se furta a prosseguir no processo de mestiçagem, pois,


130

continua enxergando no componente feminino da nova raça um elemento

multiplicador. Ele acaba por travar com a matriz importada, relações de sexo e de

classe, imbuídas ambas as partes (matrizes) no espírito do sistema econômico que

as norteava.

Transitavam, então, senhor e escravo entre a aridez da Senzala e a

intimidade da Casa-Grande, em uma integração que era misto de sadismo,

sofrimento e doçura. E mais tarde, teria continuidade, em linhas gerais, no ambiente

das minas para o qual se tranferiria a massa de trabalhadores negros.

É nessa atmosfera que se registram as primeiras participações dos

integrantes africanos no que viria a se caracterizar como a culinária nacional e nos

ritmos formadores de nossa música popular brasileira (a influência sobre nossa

produção musical será comentada na análise do texto IV).

Na culinária, participam, não só com a pimenta, o leite de coco e o azeite de

dendê, característicos da cozinha baiana, mas também com a introdução do quiabo,

do maior uso da banana, e de grande variedade na maneira de preparar a galinha e

o peixe. Há também pratos caracteristicamente brasileiros que são de técnica

africana: a farofa e o quibebe, por exemplo (Freyre,2002, p.504).

No oitavo parágrafo, Romanini descreve a chegada dos milhares de

imigrantes convocados para trabalhar nas lavouras de café de São Paulo ou

colonizar as zonas desabitadas do sul brasileiro como um incremento populacional

importante, que, além da força de trabalho, introduziu novos elementos culturais.

Ribeiro (1995) descreve o primeiro fenômeno imigratório mencionado acima,

apontando suas causas no contexto nacional e internacional a partir do panorama

histórico que se segue.


131

O cultivo do café, que se praticava um pouco por todo o Brasil, como raridade e para

consumo local, ganha significação econômica com as primeiras grandes lavouras plantadas na

zona montanhosa próxima ao porto do Rio de Janeiro. O sucesso das exportações - que

crescem de 3.178 sacas, na década de 1820, a 51.631 sacas, na década de 1880 – promove

rapidamente o novo cultivo à liderança em que se manterá, daí em diante, como a atividade

econômica fundamental do Brasil ... Para implantar o empreendimento cafeeiro contava-se com

abundante disponibilidade de terras apropriadas e de mão-de-obra escrava subutilizada desde

a decadência da mineração ... (Ribeiro,1995, p.399)

Com a proibição do tráfico e depois com a abolição, em 1888, ocorre

acentuada falta de mão-de-obra nas fazendas de café, originando a introdução do

trabalhador europeu, cujo provimento para os cafeicultores em onda regular e

ponderável, atingiu a 803 mil trabalhadores, sendo 577 mil provenientes da Itália.

Já no segmento internacional, essa disponibilidade de mão de obra européia

corresponde à marcha do capitalismo-industrial que ia desenraizando dos campos e

lançando às cidades mais gente do que as fábricas podiam ocupar (Ribeiro,1995,

p.399).

Ribeiro (1995) também apresenta as implicações que ele considera

decorrerem da fase em que se desenvolveu essa atividade econômica no Brasil. De

acordo com o antropólogo, a oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores

poderes políticos no período imperial e republicano, é responsável por algumas das

deformações mais profundas da sociedade brasileira (op.cit,p.403).

Deve-se, principalmente, à sua permanente disputa com o Estado pela

apropriação da renda nacional e à sua arraigada discriminação contra negros...,

núcleos caipiras... [e] massas pobres... nas cidades (op.cit.,p.403) a tardia abolição

da escravatura, o tardio direito à educação primária oferecida pelo Estado à


132

população e, na extensão, tardios direitos à sindicalização e greve assegurados aos

trabalhadores rurais.

O segundo fenômeno imigratório mencionado por Romanini no oitavo

parágrafo contempla os imigrantes absorvidos pela necessidade povoadora do sul

do Brasil. Eles abriram clareiras na mata selvagem e construíram suas casas e

estradas, fixando, assim, sua arquitetura e paisagismo. Esses núcleos gringo-

brasileiros de origem germânica, iataliana, polonesa, libanesa e várias outras se

ocuparam da produção do vinho, mel, trigo, batatas, cevada, lúpulo, legumes e

frutas européias.

Embora pareça ser um dos objetivos do autor, não nos pareceu possível

obter informações esclarecedoras a partir do texto sobre a influência das matrizes

étnicas enquanto fornecedoras de estratos básicos de cultura e a formação dos tipos

regionais brasileiros. E é disso que passamos a tratar.

Iniciamos, assim, a segunda etapa à qual havíamos nos referido no início da

análise : a descrição dos dez personagens apresentados como típicos entre o povo

brasileiro. Nessa etapa, interessa-nos destacar a confusão terminológica que

permeia os textos e que parece associar-se à imprecisão na escolha das categorias

que intitulam os parágrafos.

Tendo o texto se referido a tipos regionais brasileiros (sexto parágrafo ), tipo

cultural ( parágrafo sobre o caboclo ) e personagens típicos (parte II – parágrafo 1);

torna-se difícil identificar a linha que une os elementos : gaúcho, caboclo, caipira,

sertanejo, mulato, pantaneiro, seringueiro, caiçara, jangadeiro e mestiço oriental .

Deveriam, por exemplo, o mulato e o mestiço oriental (elementos nomeados

com base em características raciais) serem agrupados juntamente com o pantaneiro

e o seringueiro (elementos nomeados segundo sua origem regional e a atividade por


133

eles exercida) ? E ainda, deveriam o mulato e o mestiço oriental serem denominados

personagens típicos entre o povo brasileiro ?

A mistura de categorias raciais e regionais ou culturais (cujas definições não

são apresentadas no texto) evidencia-se no parágrafo sobre o caboclo (parte I).

A palavra caboclo também é usada como sinônimo de mameluco – a mistura

entre brancos e índios. Como tipo cultural, no entanto, o caboclo é o ribeirinho, ou

seja, o morador das margens dos rios, principalmente os da região Norte, da bacia

amazônica.

São evidentes, portanto, algumas deficiências reveladas pelo texto no que

tange à seleção e organização dos conteúdos culturais por ele apresentado. Além

disso, ele poderia ter sido calcado em fontes mais sólidas, apoiando-se, assim, em

um melhor suporte teórico.

Em linhas gerais, nos parece que para o leitor da adaptação do texto de

Romanini apresentada em Bem-Vindo! não é possível obter informações

esclarecedoras sobre a influência das matrizes étnicas enquanto fornecedoras de

estratos básicos de cultura, e a formação dos tipos regionais brasileiros. Todavia, a

seleção e o agrupamento dessas informações parecem ter sido o objetivo do autor.

5.1.3.2 Textos III e IV : Literatura Brasileira e Música Popular

Uma vez mais fizemos a opção por analisar os dois textos em um bloco

único, dadas as semelhanças dos mesmos no que concerne aos tipos e à forma de

organização dos conteúdos que ambos contemplam. Ilustraremos, inicialmente,

essas semelhanças entre os textos, por meio da reapresentação de seus respectivos

assuntos e fontes :
134

- Texto III : Literatura Brasileira

Assunto : Histórico do desenvolvimento da Literatura Brasileira desde as primeiras

obras literárias surgidas ainda no Brasil-colônia, que atravessa um período

aproximado de cinco séculos, concluindo-se no final do século XX.

Fonte : Almanaque 04/1998;

- Texto IV: Música Popular

Assunto : Apresentação dos gêneros, compositores, intérpretes e canções

considerados pelo(s) autor(es) como os mais representativos da música brasileira,

em sintonia com os períodos sociohistóricos em que se inscreveram desde a sua

origem no século XVIII até o final do século XX.

Fonte : Almanaque Abril, 1998.

Em um primeiro momento, faz-se essencial ressaltarmos a inadequação dos

textos em termos da utilização didática que deles poderia ser feita junto a aprendizes

de PLE. Essa inadequação deriva, sobretudo, do fato de os textos reunirem um

número excessivamente alto de informações, que são abordadas superficialmente.

Ainda que façam menção aos períodos sociohistóricos em que os principais

estilos (com as obras e artistas que melhor os simbolizam) surgiram e se

desenvolveram, não há a contextualização necessária para que se compreenda

cada um deles. Esse é um fato inevitável, na medida em que ambos os textos

abarcam conteúdos produzidos ao longo de séculos.

Ao selecionar te xtos com as características referidas, o LD acaba por

assumir a função de falar sobre os dois gêneros de arte ao invés de proporcionar


135

aos estudantes uma oportunidade de conhecê-los, travando um contato, ao menos

inicial, com alguns de seus estilos e de seus principais representantes.

O volume de conteúdos elencados pelos textos dá margem à elaboração de

um curso inteiro sobre cada um dos dois gêneros. Além disso, esse modelo de texto

se propõe a realizar um inventário das principais produções artísticas até o presente,

ou seja, o período de elaboração do LD, que, nesse caso, é a segunda metade dos

anos 90. E esse aspecto confere ao texto um grau de obsolescência.

Consideramos desejável, no entanto, ainda que nem sempre seja possível,

que a abordagem didática dos tópicos culturais leve em conta o potencial dos

conteúdos para preservar sua atualidade e capacidade para despertar o interesse

dos aprendizes. Os tópicos sendo mais relevantes e significativos geram constante

motivação para os participantes (Sternfeld,1997,p.56).

No que concerne às representações culturais que resultam da seleção e do

agrupamento dos conteúdos dos dois textos, abordaremos, com referência ao texto

III, o processo de diferenciação cultural que está na base da consolidação de uma

Literatura Brasileira. No texto IV, o ponto central a ser enfocado é a influência das

raízes históricas do país na constituição de seus gêneros musicais mais simbólicos.

Ao traçar um histórico da Literatura Brasileira desde o seu surgimento até o

final do século XX, o estabelecimento de um caráter nacional para as obras

produzidas no país constitui-se como um desafio, mediante à força da influência do

modelo europeu.

Chegando ao Brasil no século XVII, com o barroco, a influência européia

encontrará no perío do do modernismo, no início do século XVIII, o movimento mais

importante de afirmação da Literatura Brasileira, e, conseqüentemente de resistência

aos estilos literários importados. Com base nesses dados e nos estudos de Ribeiro
136

(1995), apresentaremos uma breve descrição das características dos períodos

históricos em que se inserem esses dois estilos literários. Eles representam,

respectivamente, um começo bastante incipiente, e o primeiro momento de grande

efervescência da produção consistente e organizada de obras literárias nacionais.

Para Ribeiro (1995, pp.75,76), dois elementos formadores, no plano

ideológico, da cultura neobrasileira são :

- um minúsculo estrato social de letrados que, através do domínio do saber erudito e técnico

europeu de então, orienta as atividades mais complexas e opera como centro difusor de

conhecimentos, crenças e valores;

- artistas que exercem suas atividades obedientes aos gêneros e estilos europeus,

principalmente o barroco, dentro de cujos cânones a nova sociedade começa a expressar-

se onde e quando exibe algum fausto.

No contraponto, na cidade de São Paulo, que se consolida como centro

difusor das tendências modernistas nas primeiras décadas do século XVIII, há um

movimento atípico do fenômeno imigratório brasileiro, que promoveu uma

assimilação cultural dos imigrantes sem maiores transtornos.

A cidade se viu avassalada pela massa desproporcional de gringos, eram mais numerosos

que os paulistas antigos. A própria Semana de Arte Moderna, que foi uma reação a esse

avassalamento, foi também por seu estilo a forma mais expressiva desse eurocentrismo

(op.cit,p.407)

No texto IV, está refletida uma forte influência das heranças de nossa matriz

negra no desenvolvimento de gêneros musicais bastante representativos da cultura

nacional. E dentre esses gêneros, um dos que está mais associado à identidade

cultural brasileira é, sem dúvida, o samba. Segundo o texto, o samba aparece no


137

final do século XIX, no Rio, influenciado pelo lundu (dança de origem angolana

trazida pelos escravos), pela marcha e pelo batuque. Também se faz notar na forma

de samba-canção fundido à música pop, nas composições da MPB dos anos 70. E

marca presença em ritmos nordestinos, como a axé music, na qual aparace

misturado ao reggae.

Como é possível notar, portanto, os ritmos de origem africana, sobretudo o

samba, atravessam o histórico traçado pelo texto , que se encerra no final do século

XX, em que se destacam como grandes sucessos de vendas, a própria axé music e

o pagode. E foi justamente nas rodas de samba que nasceu o pagode, como uma

derivação do samba de raiz, que foi ganhando diversificações e se consagrou como

grande sucesso popular.

Como havíamos mencionado anteriormente, grande parte dos estudos de

Freyre são dedicados à investigação detalhada das influências africanas nas raízes

de nossa cultura. E entre as principais contribuições da matriz negra estão a

culinária e a música.

Ribeiro (1995) encontra no período colonial as origens dessas influências,

segundo ele, no tipo de escravidão que aqui se instaurou, dado o período em que

ocorreu e as peculiaridades locais, a herança cultural africana não pôde expressar-

se em formas de adaptação – por diferir, consideravelmente, no plano ecológico e

tecnológico, dos modos de prover a subsistência na África (op cit.,p.116).

Se, tampouco essa cultura se exprimiria, nos modos de associação, estando

o negro em condição desfavorecida, na estrutura social rígida e estratificada a que

se incorporava, ela sobreviveria, então, no plano ideológico. Irá englobar-se neste

plano, o que o negro pôde reter dentro de si, crenças religiosas, práticas mágicas,

reminiscências rítmicas e musicais e saberes e gostos culinários (op.cit.,p.117).


138

E Freyre (2002) é quem descreve com minúcias etnográficas, a expressão

da musicalidade dos africanos que incorporamos desde o Brasil colonial :

Tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa, nas cozinhas, lavando

roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar,

pianos, sofás de jacarandá de ioiôs brancos – os negros trabalharam sempre cantando: seus

cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno,

encheram de alegria africana a vida brasileira. Às vezes de um pouco de banzo: mas

principalmente de alegria (Freyre,2002, p.513).

5.1.3.3 Textos V, VI e VII : O Folclore Brasileiro, Preferência Nacional e artigo sobre

eventos folclóricos

Assim como na análise anterior, reapresentaremos os assuntos e fontes dos

três textos, que foram agrupados nesta seção por reunirem informações acerca do

mesmo tema, o folclore nacional :

- Texto V : O Folclore Brasileiro

Assunto : Descrição e caracterização do folclore brasileiro sob o enfoque da

literatura oral, com a apresentação de mitos e lendas folclóricas selecionados pelos

autores por sua grande popularidade e agrupados segundo as regiões onde

surgiram ou são mais difundidos.

Fonte : Revista Kalunga Ano XXVI - 08/98 - n°92.

- Texto VI : Preferência Nacional

Assunto : Descrição de um grupo de personagens folclóricos classificados pelo(s)

autor(es) dentre os mais populares no país.


139

Fonte : Revista Kalunga Ano XXVI - 08/98 - n°92.

- Texto VII : (sem título) - artigo sobre eventos folclóricos nacionais

Assunto : Apresentação das festas regionais como um componente do folclore

brasileiro e descrição de alguns eventos representativos desse componente.

Fonte : Revista Kalunga Ano XXVI - 08/98 - n°92 e Adaptação de Brasil – Histórias,

Costumes e Lendas.

Após a apresentação de uma definição ampla de folclore, extraída do

Dicionário do Folclore de Câmara Cascudo, é destacado pelo texto V o lado mais

conhecido de nosso folclore: o que trata de festas e histórias assustadoras de

animais estranhos. A partir desse ponto, passam a ser descritos mitos e lendas

considerados populares na literatura oral brasileira.

O outro aspecto destacado, o das festas, será abordado apenas no texto VII,

o que nos leva a crer que os textos foram recortados e/ou adaptados a partir de um

bloco único de informações extraído da mesma fonte. No caso do texto VII, como

fica evidenciado, somou-se a esse processo a inclusão de mais informações obtidas

por meio da utilização de uma segunda fonte.

Além disso, o tema da literatura oral começa a ser enfocado com a

referência à obra do escritor Monteiro Lobato, O Sítio do Pica-pau Amarelo, mas dos

três personagens folclóricos – popularizados, sobretudo, pelo sucesso da adaptação

da obra em uma seriado de TV – apenas o saci-pererê é descrito no texto.

A cuca e a mula-sem-cabeça, embora sejam citados, têm sua descrição

apresentada somente no texto VI, no qual são listados dentre os personagens

folclóricos mais conhecidos no Brasil, ao lado, justamente, do saci pererê. Esse fato
140

também corrobora a idéia dos textos serem partes de um todo, cujo conjunto de

informações foi redistribuído.

O texto VI prossegue, portanto, com a descrição de personagens folclóricos

populares, dando continuidade à proposta introduzida no texto V, o que nos permite

fazer uma análise única dos dois textos.

No texto V (terceiro parágrafo) se afirma que alguns dos personagens

folclóricos disseminados no imaginário dos brasileiros foram nascidos aqui e outros

trazidos por colo nizadores e imigrantes. Segundo Freyre (2002, p.383), dentre os

que foram trazidos pelos portugueses estão a côca (cuca), o papão e o lobisomem .

Assim como o lobisomem, que remete a uma tradição muito antiga,

proveniente da Grécia, e cuja lenda é famosa em todo o mundo (texto VI, quarto

parágrafo), de acordo com Freyre (2002, pp.197,198), o papão é um personagem

generalizado entre todas as culturas históricas, sempre com um fim moralizador ou

pedagógico na formação das crianças.

Para os hebreus, Libith, monstro cabeludo e horrendo; entre os alemães é o

Papenz; e entre os ingleses Bogle Man. Nessas, e em muitas outras versões, a

criatura está sempre pronta a surgir, geralmente à noite, e roubar as crianças, por

vezes, em pleno sono.

Freyre também afirma que :

Novos medos trazidos da África, ou assimilados dos índios pelos colonos brancos e pelos

negros, juntaram-se aos portugueses ... E o menino brasileiro dos tempos coloniais viu-se rodeado de

maiores e mais terríveis mal-assombrados que todos os outros meninos do mundo ... No mato, o saci-

pererê, o caipora, o homem de pés às avessas, o boitatá. Por toda parte, a cabra-cabriola, a mula-

sem-cabeça ... Nos riachos e lagoas, a mãe-d’água. À beira dos rios, o sapo-cururu. De noite, as

almas penadas. Nunca faltavam : vinham lambuzar de ‘mingau das almas’ o rosto dos meninos. Por
141

isso menino nenhum devia deixar de lavar o rosto ou de tomar banho logo de manhã cedo ... (op.cit.,

p.383)

No que se refere às influências dos índios, Freyre (2002) ressalta que ficaria

no brasileiro, especialmente quando menino, uma atitude insensivelmente totêmica e

animista. A partir de suas pesquisas em arquivos nacionais e estrangeiros para a

publicação de Casa Grande e Senzala, ele pôde concluir que :

Do que não estava livre entre os selvagens a vida de menino nem de gente grande era de

horrorosos medos ... não era só mal-assombrado. Nem era apenas o diabo na figura de bichos que

vivia a aperrear a vida do selvagem. Eram monstros que hoje não se sabe bem o que seriam : os

‘quaiazis’, os ‘coruqueamas’, os ‘maiturus’ (homens de pé para trás) ... (op.cit., p.208)

Quanto às contribuições africanas para nossa tradição oral, segundo os

registros encontrados por Freyre (2002, p.386), as histórias portuguesas sofreram no

Brasil consideráveis modificações na boca das negras velhas ou amas de leite. Da

mesma forma, na boca da ama negra, se modificam as canções de berço

portuguesas, sofrendo adaptações às condições regionais, e sendo associadas às

crenças dos índios e dos africanos.

Assim a velha canção ‘escuta, escuta, menino’ aqui amoleceu-se em ‘durma, durma, meu

filhinho’ ... E em vez do papão ou da côca, começaram a rondar o telhado ou o copiar das casas-

grandes, atrás dos meninos malcriados que gritavam de noite nas redes ... – cabras-cabriolas, o

boitatá, negros de surrão, negros velhos, papa-figos (op.cit., p.382).

Não é que a côca ou cuca – que está entre os primeiros personagens

folclóricos na lista das preferências nacionais do texto VI – tenha desaparecido, seu

prestígio apenas empalidece um pouco diante de fantasmas mais terríveis.


142

Com relação ao texto VII, é importante observarmos que as festas

folclóricas, muitas das vezes, são manifestações religiosas, que misturam fé e

prazer, como se afirma no 1° parágrafo do texto, na descrição do Círio de Nazaré.

Algumas dessas festas, como o próprio Bumba-meu-boi, remontam ao século XIX,

em um período anterior à abolição da escravatura.

Ainda no primeiro parágrafo, se faz menção à mais antiga citação dessa

manifestação cultural popular, que foi feita pelo padre Miguel do Sacramento Lopes

Gama, no Recife, em 1840. E, de acordo com Freyre (2002, p.512), era bastante

significativa a participação do negro na realização desses eventos culturais : Ele que

deu alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos-

marinhos, os carnavais, as festas de Reis.

Também as tradições religiosas vindas de Portugal, que motivaram o

surgimento dos eventos presentes no texto, desabrocharam no Brasil, se

consolidando por meio de inúmeras crenças, como a das devotas que fazem

promessas a Nossa Senhora dos Navegantes para arranjar um bom casamento e,

em pagamento, lançam seus vestidos de noiva nas águas do rio. Da mesma forma,

a partir dessas tradições, se criaram costumes, como o de se levar oferendas aos

santos, exemplificado no texto (primeiro parágrafo) pelas flores, fitas e grinaldas que

chegam à Procissão.

É possível encontrar hábitos semelhantes, ligados às crenças religiosas

portuguesas, que ganham força ainda no período colonial. Freyre (2002) descreve,

dentre vários outros :

O das devotas que fazem promessas a Nossa Senhora do Parto, do Bom Sucesso, do Ó,

da Conceição, das Dores, no sentido de um parto menos doloroso ou de um filho são ou bonito.

Atendido o pedido por Nossa Senhora, pagava-se a promessa, consistindo muitas vezes em tomar a
143

criança o nome de Maria; donde as muitas Marias no Brasil : Maria das Dores, dos Anjos, da

Conceição, de Lurdes, das Graças ...

Deve-se ainda registrar o costume dos ex-votos de mulheres grávidas : ofertas de meninos

de cera ou madeira às santas e Nossas Senhoras conhecidas como protetoras da maternidade.

Algumas capelas de engenho guardam numerosas coleções de ex-votos de mulheres (op.cit., p.380).

5.1.3.4 Texto VIII : (sem título) - texto sobre festivais de premiação dos gêneros

de arte

Assunto : Descrição dos principais festivais brasileiros realizados para premiar os

gêneros de arte.

Fonte : Almanaque Abril, 1998.

O texto VIII aparece na seção Você Sabia? da unidade 20 de Bem Vindo! O

nome da seção remete a informações curiosas, dados estatísticos, e acontecimentos

históricos que eram veiculados na Rádio-relógio, uma estação de rádio que se

tornou bastante popular no Brasil. Esses pequenos textos orais de conteúdo

informativo eram periodicamente apresentados por um locutor da rádio, ao som do

tic-tac de um relógio, após a introdução da pergunta Você Sabia?

Com base nessa breve descrição, é possível aferir a função dos textos

selecionados para a seção Você Sabia? das unidades do LD : a de oferecer

informações sobre o tema de cada unidade que possam ser apresentadas de modo

sintético e topicalizado. O texto VIII agrupa festivais realizados para a premiação de

produções artísticas, que são considerados pelas autoras como os mais importantes

do país.
144

Pelo conjunto de itens listados no texto , é possível classificá-lo na categoria

Big C culture, já que ele descreve eventos associados à cultura, ou melhor dizendo,

eventos destinados ao incentivo da produção cultural nas áreas da literatura,

música, teatro e cinema. E foi sob esse critério que selecionamos o texto VIII.

A leitura atenta do texto, entretanto, revela que a seleção e abordagem

desse tópico cultural, feita pelas autoras de Bem Vindo!, vincula-se à uma linha

teórica diferente daquela que pode ser identificada pela análise dos outros tópicos

dessa primeira parte do corpus.

O texto, mesmo tendo seus conteúdos apresentados de forma superficial, se

caracteriza como um exemplo do tipo de abordagem que as autoras passam a

adotar em sua publicação seguinte destinada ao público adulto – a obra Panorama

Brasil.

Portanto, não faremos uma análise detalhada, em termos teóricos, dos

conteúdos do texto. Não só porque sua própria apresentação, bastante compacta,

não dá margens para uma análise minuciosa, mas também porque a natureza do

tipo de abordagem relacionada ao texto será explicitada, mais à frente, na análise da

segunda parte do corpus.

Contudo, é válido destacarmos que, ao reconhecer a importância dos

festivais como eventos que conferem visibilidade e prestígio à produção cultural,

estimulando a competitividade e atraindo patrocínios, as autoras fazem uma primeira

aproximação com o tema da economia cultural.

Além disso, embora a maior parte dos sete festivais citados no texto se

restrinja ao âmbito nacional, a inserção no Festival de Gramado de filmes de outros

países de língua latina (a partir de 1992) e a realização do MTV Awards no Brasil (a


145

partir de 1995) são representativos de uma intensificação recente no processo de

internacionalização dos produtos culturais brasileiros.

5.1.3.5 Texto IX : Carnaval

Assunto : Definição do Carnaval e descrição do seu surgimento no Brasil no século

XVII e de seu desenvolvimento através da fo rmação de sociedades carnavalescas

desde o século XIX até os dias atuais.

Fonte : Almanaque Abril, 1998.

No texto IX (segundo parágrafo), é apresentada a definição do Carnaval na

versão original introduzida pelos portugueses no Brasil, no século XVIII – uma

brincadeira na qual as pessoas atiravam umas nas outras bexigas com água e

farinha. E está nessa manifestação cultural, de caráter lúdico e pueril – que foi sendo

modificada e multiplicada de forma gradual – a origem das grandes festas

carnavalescas brasileiras dos dias atuais, consideradas as festas populares mais

representativas de nossa cultura.

Dentre os fatores que contribuíram significativamente para o

desenvolvimento do Carnaval, deve ser incluído o surgimento das sociedades

carnavalescas, como os cordões, blocos, ranchos e corsos. Além disso, as festas de

Carnaval começam a se diversificar e assumir dimensões mais amplas, graças às

contribuições que recebem da cultura negra em diversas regiões do país,

especialmente no Rio de Janeiro e no nordeste do Brasil.

Freyre (2002) registra a observação que pôde fazer da participação dos

negros nas sociedades carnavalescas com as seguintes palavras :


146

Ainda no carnaval de 1933, na Praça Onze, no Rio de Janeiro, tivemos ocasião de admirar

esses ranchos totêmicos de negros; e nos carnavais de Pernambuco estamos cansados de

vê-los quando se exibem, felizes, contentes, dançando atrás dos seus estandartes, alguns

riquíssimos, bordados a ouro, com emblemas de vaga reminiscência sindicalista

misturando-se aos totêmicos : a pá dourada do clube das ‘Pás’, a vassoura dos

‘Vassourinhas’, o espanador dos ‘Vasculhadores’, o cachorro do ‘Cachorro do Homem do

Miúdo’, etc. (op.cit.,513).

Freyre faz menção aos ranchos, mas não às escolas de samba, que ainda

estavam em fase de estruturação como sociedades carnavalescas. De acordo com

as informações do texto IX (quinto parágrafo), a denominação escola de samba

surge em 1928, no Rio de Janeiro, utilizada pelo compositor Ismael Silva para se

referir a seu rancho, o Deixa Falar. E o primeiro desfile oficial é realizado apenas em

1935, portanto, dois carnavais após o de 1933, que é referido na citação anterior.

O sociólogo também descreve o simbolismo presente nos rituais e nos

ornamentos que provém de tradições agregadas pelos ex-escravos à festa

carnavalesca :

O negro à sombra da Igreja inundou das reminiscências alegres de seus cultos totêmicos e

fálicos as festas populares do Brasil; na véspera de Reis e depois, pelo carnaval, coroando

os seus reis e as suas rainhas; fazendo sair debaixo de umbelas e de estandartes místicos,

entre luzes quase de procissão seus ranchos protegidos por animais – águias, pavões,

elefantes, peixes, cachorros, carneiros, avestruzes, canários – cada rancho com o seu bicho

feito de folha-de-flandres conduzido à cabeça, triunfalmente; os negros cantando e

dançando, exuberantes, expansivos ... (Freyre, 2002, p.513).


147

Na opinião de Roberto DaMatta (1997), o Carnaval é definitivamente uma

festa dos grupos populares, que são os principais responsáveis pelo seu

desenvolvimento no Brasil. Esses grupos, segundo o pesquisador, revelam, por trás

de um surpreendente poder de arregimentação e ordem, uma fantástica vitalidade e

amor à vida. Tudo isso que se traduz por generosidade e que é típico daquelas

camadas sistematicamente exploradas (op.cit, p.128).

Nesse sentido, as linhas de pensamento de DaMatta e do geógrafo Milton

Santos (a cujas idéias fizemos referência na fundamentação teórica) encontram-se

em clara sintonia. Para Santos (2001), há uma força nas culturas populares que

deriva da integração entre o território dos pobres e o seu conteúdo humano. Daí a

expressividade dos seus símbolos, manifestados na fala, na música e na riqueza das

formas de intercurso e solidariedade entre as pessoas (op.cit, p.145).

Da Matta (1997) define o Carnaval como uma espécie de relacionamento

social, pela brincadeira e pela música,

que segundo a nossa mitologia nasceu nas áreas fronteiriças da sociedade brasileira – nos

seus porões e senzalas, nas favelas, em meio à pobreza dos seus negros e miseráveis

habitantes ... Pois, ao contrário das classes médias, com suas propostas típicas das idéias

igualitárias , para quem é preciso dizer as coisas ... no samba, as coisas são dançadas, de

um modo corporal e visceral mais ligado ao mundo dos trabalhadores e dos marginais do

mercado de trabalho, dos ex-escravos (op.cit., pp.143,145).

Reforçando uma antiga idéia popular de que nos dias de Carnaval, a voz do

povo vem dizer que um dia súdito vira rei, Da Matta (1997) aponta a mesma

reversão hierárquica no termo escola (em escolas de samba).


148

Para o autor, o nome escola foi fixado pelo tempo para grupos sabidamente ignorantes,

sistematicamente perseguidos pela polícia e residentes nas favelas dos morros do Rio de

Janeiro. Eles que, no mundo diário, vivem aprendendo nossas regras e ocupam nossas

cozinhas e oficinas, surgem agora como professores, ensinando o prazer de viver atualizado no
14
canto, na dança, no samba (op.cit., p.127)

Somada à manifestação verbal e corporal (com a música), essa mesma

reversão hierárquica é expressa nas fantasias, alegorias, na representação teatral e

na própria nomenclatura associada à festa carnavalesca (rei momo, rainha da

bateria, etc.).

A análise dos conteúdos culturais presentes na primeira parte do corpus nos

permitiu associá-los às suas bases teóricas, as quais, como já foi explicitado, são

fundamentadas em uma disposição nacional-popular. O enfoque socioantropológico

de grande parte das pesquisas sobre a cultura brasileira, que se desenvolveu e

consolidou a partir dos anos 30, pôde ser identificado na abordagem dos tópicos

analisados. Nessa abordagem, está refletido um padrão de representação cultural

alicerçado em características extraídas da observação e de reflexões sobre a

história da constituição da nação e de seu povo desde os tempos do Brasil colônia.

14
Além do significado compensatório do termo escola vale conferir a identificação de um sentido persuasivo nos
verbos cantar e brincar (pp.144,145), também associados ao rito carnavalesco.Assim como o verbo cantar é
usado no sentido de propor um relacionamento amoroso a uma mulher ... Pela mesma lógica, na dialética de
classes da festa popular, pessoas de posição social elevada ou que tenham algo que o outro pretende são
cantadas para que possam ceder. No caso de brincar, há também a significação de relacionar-se, procurando
romper as fronteiras entre posições sociais, criar um clima não verdadeiro, superimposto à realidade.
149

5.2 A ABORDAGEM DE TÓPIC OS CULTURAIS EM PANORAMA BRASIL –

ENSINO DO PORTUGUÊS DO MUNDO DOS NEGÓCIOS

5.2.1 Descrição dos tópicos selecionados

Os tópicos culturais pertencentes à categoria Big C culture na obra Panorama

Brasil encontram-se agrupados na unidade 3, cujo título é Arte e Cultura. Essa

unidade é composta por 13 textos e, dentre eles, quatro aparecem na forma de

atividades propostas pelas autoras.

O conjunto dos 13 textos constitui a segunda parte de nosso corpus e está

apresentado na listagem abaixo :

- Texto I : Amazônia – Desenvolvimento Sustentável

- Texto II : (sem título) – texto sobre a criação de um espaço de cinema

comunitário

- Texto III : Iguaria Regional Vence Barreira Geográfica e Vira Destaque em

Restaurantes do Rio e SP

- Texto IV : Agricultura Familiar

- Texto V : Nosso Cardápio em Cordel

- Texto VI : (sem título) – artigo sobre a recente ampliação comercial da

marca Cachaça 51

- Texto VII : (sem título) – entrevista com a artesã que idealizou a Flor de

Concha

- Texto VIII : (sem título) – texto sobre a criação de um pequeno negócio para

a comercialização de tecidos bordados artesanalmente

- Texto IX : Angola – Onde o Brasil Aprendeu a Gingar


150

- Texto X : Daniella Zylbersztajn – Tataraneta e Neta de Fabricantes de

Bolsas, Cria Objetos de Desejo

- Texto XI : O ‘Design’ com Ingrediente de Sucesso

- Texto XII : A Dança Brasileira Conquistando Espaços

- Texto XIII : (sem título) – texto sobre a integração de uma imigrante alemã

ao Brasil por meio das artes plásticas

5.2.2 Resumos dos Textos

5.2.2.1 Texto I : Amazônia – Desenvolvimento Sustentável

Assunto : Gestão empresarial de um projeto de incentivo ao desenvolvimento

de artefatos artesanais com matéria-prima da região amazônica.

Fonte : www.nativeoriginal.com.br – 2005

A Fucapi – Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica –

promoveu a implementação do projeto Design Tropical da Amazônia, que financia a

criação e produção de peças artesanais de alta qualidade, a partir de resíduos

florestais, preservando a essência amazônica e gerando renda para as comunidades

do interior do Amazonas.

O projeto é gerenciado pela empresa Native e teve seu início com mais de

150 peças, sob a criação e coordenação do arquiteto e designer Luiz Galvão. Hoje,

trabalha-se com mais de 30 espécies florestais, de cujos resíduos se obtem madeira,

fibras, palha, folhas e frutos, entre outros materiais extraídos da floresta.


151

5.2.2.2 Texto II : (sem título) – texto sobre a criação de um espaço de cinema

comunitário

Assunto : Empreendedorismo de um cidadão comum (José Luiz Zagati) que

criou um espaço de cinema comunitário e exibiu seu primeiro filme completo a

partir de uma doação da Associação de Colecionadores de Filmes de 16 mm.

Fonte : Não foi citada.

José Luiz Zagati aos 10 anos de idade pôde pagar suas primeiras entradas de

cinema com o dinheiro arrecadado em biscates como engraxar sapatos e encher

caixas d’água. A paixão pelo cinema nutrida pelo menino o acompanhou ao longo

de toda a vida, que transcorreu de forma pacata em Taboão da Serra, periferia de

São Paulo, para onde sua família havia se mudado em busca de trabalho.

Após ficar desempregado, aos 40 anos, com nove filhos, José Luiz passou a

buscar o sustento, recolhendo papelão, sucata e ferro. Em suas andanças,

encontrou uma carcaça de projetor na qual fez algumas adaptações, conseguindo

recuperá-la, mas apenas parcialmente. Ele não desanimou e passou a vasculhar

as lojas de São Paulo à procura de um projetor. Acabou encontrando um por R$

80,00 reais que funcionava perfeitamente.

A partir de então, se aproximou da Associação de Colecionadores de Filmes

em 16 mm e conseguiu a doação de um filme. Depois, com a ajuda de um lençol,

pendurado em um muro – para fazer as vezes de tela de projeção – atraiu público

nas redondezas e fez sua primeira sessão de cinema, em preto e branco, no ano

de 1998. Por fim, como as sessões eram ao ar livre e, quando chovia, o filme não
152

era exibido, assim que pôde, ele se mudou para seu próprio terreno e construiu

uma casa com um espaço em cima para a sala de cinema.

5.2.2.3 Texto III : Iguaria Regional Vence Barreira Geográfica e Vira Destaque em

Restaurantes do Rio e SP

Assunto : Alta Culinária – agregação de valor ao produto da agricultura

regional : a mandioca.

Fonte : Extraído do artigo de Vandeck Santiago, para o jornal Diário de

Pernambuco, dezembro/2004.

A mandioca ganhou as mesas dos restaurantes da alta gastronomia do Rio e

São Paulo, como sobremesa ou acompanhamento de pratos principais. Desprezado

como farinha, o produto conquistou chefs de cozinha, como Teresa Corção, na

forma de tapioca. Tereza é proprietária do restaurante O Navegador, um dos pontos

obrigatórios da gastronomia do Rio, onde um dos pratos principais é Tapioca com

Creme de Camarão.

A presença da tapioca no cardápio dos restaurantes chiques, segundo a chef,

é uma tendência que veio para ficar. É o reconhecimento de um produto que faz

parte da história de todos nós. Em sua versão popular, o alimento é vendido ao

preço médio de R$ 1,00 em cada esquina das capitais do Nordeste, e seu recheio

limita-se a (pouco ou muito) queijo, coco e manteiga.


153

5.2.2.4 Texto IV : Agricultura Familiar

Assunto : O modelo de agricultura familiar no qual se gera a matéria-prima

que será utilizada na arte culinária.

Fonte : Extraído de artigo no jornal Diário de Pernambuco, dezembro/2004.

A agricultura familiar é a principal responsável pela produção de alimentos no

Brasil, respondendo por 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e por cerca

de 40% da produção agropecuária. Aproximadamente 85% dos imóveis rurais são

desse setor. A cultura da mandioca é a que mais utiliza a mão-de-obra familiar e a

que tem a maior participação de mulheres. Ela gera um emprego direto para cada 2

hectares de produto plantado.

5.2.2.5 Texto V : Nosso Cardápio em Cordel

Assunto : Utilização da literatura popular como recurso de marketing.

Fonte : O texto é a versão do cartão de visitas do restaurante potiguar

Brocoió.

Na forma de poesia, típica da literatura de cordel, o restaurante Brocoió, em

Natal, apresenta a sua gastronomia apurada como representante da melhor comida

da região. No texto são ressaltadas as experiências que a culinária do restaurante

proporciona a seus clientes : sentir o cheiro e o sabor da terra, e voltar à raiz através

do contato com tradições das cozinhas do tempo de nossa avó.


154

O cardápio inclui iguarias como : galinha no Xerém, farofa d’água e pirão,

paçoca, feijão verde, buchada, carne -de-sol, sarapatel e panelada. Todas essas

delícias podem ser acompanhadas por mais de cem tipos de cachaça. E as

sobremesas variam de doces caseiros e licores a sorvete de capim santo, de

cocada, de pamonha, de caipirinha e de jerimum.

5.2.2.6 Texto VI : (sem título) – artigo sobre a recente ampliação comercial da

marca Cachaça 51

Assunto : Processos de agregação de valor à bebida alcoólica característica

da cultura popular brasileira – descrição do recente crescimento comercial da

marca Cachaça 51.

Fonte : Adaptado do artigo de Carlos Franco para o jornal O Estado de São

Paulo, janeiro/2005.

A Cachaça 51 lançou este ano, na São Paulo Fashion Week, o frozen de

caipirinha. É uma versão cremosa da bebida, preparada com gelo picado, cachaça

e limão por cerca de 800 máquinas que a Cia.Müller pretende, depois, espalhar por

lugares da moda.

A empresa, sediada em Pirassununga, no interior paulistano, espera que o

produto abra novas portas para a cachaça no mercado interno, conforme ocorreu

com a 51 Ice. Quanto ao mercado externo, a Cachaça 51 é a quinta marca de

destilados mais consumida no mundo.


155

5.2.2.7 Texto VII : (sem título) – entrevista com a artesã responsável pela Flor de

Concha

Assunto : Introdução de um modelo de gestão empresarial no

desenvolvimento das criações artesanais de flores artificiais confeccionadas a partir

da utilização de conchas e escamas como matérias-primas (realizada pela artesã

Cristina Maria Ribeiro Lauteman).

Fonte : Não foi citada.

Em entrevista sobre o nascimento e o processo de estruturação do trabalho

realizado pela Flor de Concha – pequena empresa que emprega sete funcionários

– a artesã Cristina Maria Ribeiro Lauteman se declara feliz com o sucesso obtido

por suas criações.

Cristina é moradora da cidade litorânea de Anchieta, no Espírito Santo, desde

1987. Ao chegar lá, sua atenção foi atraída pela grande variedade de conchas da

costa capixaba e ela, então, começou a utilizá-las na criação de flores artificiais.

Mais tarde, tomou conhecimento da confecção de flores de escamas de

peixe realizada por freiras portuguesas em Guarapari e resolveu adotar também as

escamas como matéria-prima. Hoje, seus trabalhos já chegaram a vários países,

dentre eles, os Estados Unidos, a Itália, a Suíça e a França.


156

5.2.2.8 Texto VIII : (sem título) – texto sobre a criação de um pequeno negócio

para a comercialização de tecidos bordados artesanalmente

Assunto : Descrição da trajetória de uma empreendedora (Maria Torres de

Araújo) que promoveu a criação e expansão de um pequeno negócio de confecção

artesanal de bordados em tecidos.

Fonte : Não foi citada.

Segundo o relato de Maria Torres de Araújo, seu interesse pelos bordados

começou na infância em Caicó, no Rio Grande do Norte. Na escola, ela era a melhor

desenhista da turma, o que a auxiliou muito, quando, anos mais tarde, decidiu

bordar profissionalmente, após o término de seu casamento.

Maria extrai suas idéias a partir de desenhos obtidos em revistas, algumas até

importadas. Ela não os copia, mas os toma como base para realizar suas próprias

criações. Atualmente, a artista tem doze bordadeiras, todas treinadas por ela, e o

trabalho da equipe, que dispensa o uso de máquina industrial, foi sendo divulgado

boca a boca para todo o Brasil e para o exterior.

5.2.2.9 Texto IX : Angola – Onde o Brasil Aprendeu a Gingar

Assunto : Receptividade do mercado angolano à comercialização da

produção musical de vários artistas brasileiros.

Fonte : Os Lusófonos de Martinho da Vila, Editora Ciência Moderna.


157

Angola tem como língua oficial o português, e apesar de adotar a ortografia

de Portugal, tem o sotaque mais parecido com o brasileiro. Além da língua, os dois

países têm em comum uma grande riqueza musical. Os angolanos são donos de um

ritmo e uma ginga admiráveis, mas também sabem apreciar o talento de nossos

artistas.

Eles amam a música brasileira, que é a mais escutada nas rádios de lá. E

quase toda semana pelo menos um cantor voa do Brasil para se apresentar em uma

das casas de shows de Luanda e de outras capitais. Martinho da Vila, Milton

Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gabriel o Pensador, Daniela Mercury,

Roberto Carlos e uma centena deles já cantaram em Angola. Mas Martinho da Vila é

o mais popular de todos. E para reforçar essa admiração e demonstrar muita

intimidade, os angolanos costumam dizer : “Martinho da Vila tem casa aqui”.

5.2.2.10 Texto X : Daniella Zylbersztajn – Tataraneta e Neta de Fabricantes de

Bolsas, Cria Objetos de Desejo

Assunto : Aplicação da arte do design na criação de bolsas em couro,

convertendo-as em produtos de consumo nacional e de exportação no mercado da

moda.

Fonte : Adaptado do artigo de Suzane Frutuoso para a revista Época,

novembro/2005.

O talento da designer de bolsas Daniella Zylbersztajn, de 30 anos, foi herdado

dos tataravôs da moça, que já fabricavam bolsas em Frankfurt, na Alemanha; e


158

também da avó materna, que fazia o acessório para ajudar no orçamento da casa,

quando se instalou no Brasil, há mais de 50 anos.

Daniella largou a carreira em marketing de moda – chegou a cursar pós-

graduação na Itália – e se dedicou ao ateliê. Em apenas três anos, ela se tornou

conhecida entre os fashionistas e suas peças foram exportadas para Londres, Milão,

Tóquio, Atenas, Cingapura e Hong Kong.

5.2.2.11 Texto XI : O ‘Design’ com Ingrediente de Sucesso

Assunto : Aplicação de técnicas do design adquiridas nas artes plásticas

(pela artista Lívia Canuto) no processo de criação de jóias, adicionando um valor

diferencial ao produto final.

Fonte : Revista O Q Design, www.oqdesign.com.br, n°8.

O trabalho de Lívia Canuto, designer de jóias, traz uma forte influência da

escultura, técnica que ela utilizou por muito tempo antes de ingressar na carreira

atual. Na opinião de Lívia, o grande público não vê a joalheria com um caráter

artístico, o consumidor associa uma jóia a seu valor monetário. Mas, em suas peças,

há formas orgânicas e muito sensuais, onde o design é o principal ingrediente de

sucesso.
159

5.2.2.12 Texto XII : A Dança Brasileira Conquistando Espaços

Assunto : A profissionalização da dança, sua inserção nas políticas culturais

brasileiras e as perspectivas do desenvolvimento de sua internacionalização, na

análise da bailarina Suzana Mafra, do Balé da Cidade de São Paulo.

Fonte : A entrevista foi realizada pelas autoras do LD.

De acordo com a bailarina Suzana Mafra, do Balé da Cidade de São Paulo,

no Brasil faltam incentivos, patrocínios e uma política adequada para uma maior

expansão da dança. Há apenas seis companhias oficiais, um número muito pequeno

para um país tão grande. E os grupos pequenos também padecem de falta de

política cultural. Para obter sucesso em um mercado de trabalho restrito como o

brasileiro, o artista da dança deve buscar se integrar a uma equipe administrativa e

executiva.

A melhor perspectiva para um bailarino, tanto no Brasil como em outros

países, é fazer parte do elenco de uma boa companhia, onde terá melhores

oportunidades não só artísticas, mas também financeiras. Isso ocorre porque as

companhias de dança viraram grandes empresas. As parcerias, com a iniciativa

privada e com o governo, passaram a exigir de todos mais profissionalismo e

competência para gerir seus negócios.

Mas , apesar de não termos em nosso país uma escola específica nem uma

tradição no balé, somos artistas muito bem recebidos lá fora. O nosso diferencial é a

versatilidade, a musicalidade, a criatividade, a alegria e, principalmente o swing

natural.
160

5.2.2.13 Texto XIII : (sem título) – texto sobre a integração da imigrante alemã

Gunhild Kruck ao Brasil por meio das artes plásticas

Assunto : Interação artística, envolvendo materiais e técnicas das artes

plásticas, como fator de integração cultural de Gunhild Kruck, uma imigrante alemã

no Brasil.

Fonte : Não foi citada.

Gunhild Kruck, nascida na Alemanha, chegou a São Paulo há 32 anos, vinda

do Peru com o marido, que na época trabalhava para uma empresa alemã, e a filha

mais velha, então com um ano e oito meses. Guna é artista plástica, e especializou-

se em artes gráficas, em seu país de origem, que é um centro de excelência na

área.

À espera de sua mudança que seria transferida do Peru para o Brasil, ela

hospedou-se no hotel Cambridge por bons nove meses. Depois de adequadamente

instalada, pôde voltar às suas atividades de pintura. Enquanto na Alemanha sua arte

se refletia mais em aquarelas, aqui encantou-se com as cores de nossas terras e

areias.

Freqüentou o Centro de Artes ligado à Antroposofia, com outros artistas

alemães e canadenses, e lá encontrou idéias novas e começou a utilizar pigmentos

naturais em suas criações. Trabalha em casa, com vista alta de parte da cidade e

com o privilégio de ter muito verde ao seu redor. Se precisasse sair do Brasil,

sentiria falta do verde, além das praias e terras, que são sua principal fonte de

inspiração.
161

Participou de várias exposições em grupo e algumas solo, e em 2005 se

deparou com o desafio de pintar um quadro especial para a Igreja da Comunidade

Antroposófica em Botucatu, Estado de São Paulo. Guna sente-se mudada graças às

experiências vividas no país.

5.2.3 Análise dos textos

Conforme havíamos mencionado nos parágrafos que introduziram a análise

da primeira parte do corpus (os textos selecionados em Bem-Vindo!), perdurou até a

década de 1980 o fato de os estudos culturais no Brasil serem desenvolvidos a partir

de um quadro teórico de estrutura nacional. Esse fato, motivado por diferentes

contextos, ocorreu não só no Brasil, mas também nas Américas e em parte da

Europa.

O próprio surgimento do campo dos estudos culturais britânicos, descritos na

fundamentação teórica do trabalho, que se dá em 1950, com posterior

institucionalização no começo dos anos 1960 no Birmingham Centre for

Contemporary Cultural Studies (CCCS), configura-se em um contexto nacional

inglês.

Os quatro fundadores do campo de estudos, à época,

estavam basicamente interessados em deslocar de seu lugar central na cultura nacional uma

tradição de ‘o melhor do que foi pensado e dito’ ... e dirigi-lo a uma valorização e estudo das

práticas da classe operária britânica. Esse deslocamento cultural foi descrito como uma luta

complexa pela hegemonia ... uma reconfiguração do sentido num todo articulado

compreensível para diversos setores da nação (Yúdice, 2004, pp.125, 126).


162

Assim como os estudos culturais britânicos foram se reconfigurando, e

revendo a base de seus interesses teóricos, em consonância com as mudanças

econômicas e sociopolíticas nacionais, também no Brasil se operaram

reconfigurações nos modelos de conceituação da cultura, guardadas,

evidentemente, as diferenças derivadas dos distintos cenários históricos que se

projetaram para as duas nações.

No caso do Brasil, de acordo com Yúdice (2004,p.111), poderíamos dizer que

a ditadura e os processos de democratização [ nos anos 1980 ] produziram uma mudança

tão significativa na constituição política ... quanto as lutas pelos direitos civis nos Estados

Unidos. A mobilização de um grande número de organizações dos direitos humanos ‘projetou

suas demandas para o cenário público e obtiveram importantes vitórias que deixaram suas

marcas na Constituição Brasileira de 1988’ (Paoli; Telles, 1998:64, apud Yúdice, 2004, p.111).

A derrota do regime militar estava inserida no contexto de uma severa crise

econômica e de uma grande desigualdade social. No decorrer dos dois governos

que sucedem o regime, houve de fato importantes conquistas, sobretudo, no que se

refere à liberdade eleitoral. Os principais exemplos são a legalização dos partidos

comunistas e de esquerda e a realização das primeiras eleições diretas para a

presidência da República em 29 anos. É também nesse período que se origina a

pluralidade de partidos que caracteriza nosso presente sistema eleitoral.

De toda forma, o clientelismo não desapareceu nas últimas duas décadas,

como foi evidenciado pelo escândalo de corrupção que levou ao impeachment, em

1993, do primeiro presidente eleito por voto direto, Fernando Collor de Mello. A partir

desses acontecimentos, o país vivenciou o fortalecimento de suas organizações de

base.
163

Além disso, a exacerbação da violência urbana também é responsável por

reações importantes, como a ampliação do número de ONGs (Organizações não

Governamentais). A Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida, liderada pelo

sociólogo Herbert de Souza, por exemplo, esteve entre os primeiros movimentos

dessa natureza que obtiveram grande suporte midiático e receptividade junto às

classes empresarial e artística.

Yúdice afirma que

as mobilizações dos anos 1980 e 1990 demonstram que as as agendas relativas à justiça

social podem ser promovidas mesmo através das redes que caracterizam o personalismo,

porque a prática mesma de estabelecer redes foi rearticulada com o auxílio das ONGs

(Fernandes,1994, apud Yúdice, 2004, p.112)

Em reportagem realizada para o caderno Época Debate sobre o poder das

ONGs (na edição de 11/08/2008), Lester Salamon – um dos principais

pesquisadores do Terceiro Setor em todo o mundo, da Universidade Johns Hopkins,

nos Estados Unidos – descreve o panorama internacional que determinou o

crescimento das organizações sem fins lucrativos a partir dos anos 90.

Salamon partilha da opinião de Hall (2004), que apresentamos na

fundamentação teórica do trabalho. Para ele, a reconfiguração que se opera na

sociedade civil em inúmeras nações, no período contemporâneo, teve entre suas

principais causas a ascensão das políticas liberais, praticadas pelos governos de

Ronald Reagan e de Margaret Thatcher ; e a crise do socialismo, com o fim da União

Soviética.

A descrença crescente no poder do Estado para promover o desenvolvimento

econômico e a crise nos partidos de esquerda geraram um espaço vago no espectro


164

ideológico. Por defender causas próximas dos interesses do cidadão comum e por

apresentar-se a uma distância profilática de governos e empresas, as ONGs

conseguiram ocupar esse espaço.

Segundo Salamon, a explosão do Terceiro Setor pode representar para nosso

tempo o que o crescimento dos Estados nacionais representaram no fim do século

XIX e início do XX. Ele afirma que : “Este é um momento especial da História.

Estamos no meio de uma revolução associativa global”.

Dos anos 90 até agosto de 2008 (período em que se realizou a reportagem),

o que o pesquisador pôde constatar por meio de um estudo que englobou 40 países,

foi a multiplicação do número de ONGs no mundo todo : elas já movimentam cerca

de US$ 1,9 trilhão por ano, o que é mais que o PIB do Brasil de US$ 1,3 trilhão. Se

fosse um país independente, o Terceiro Setor teria sido a oitava economia do

planeta no ano passado.

O Brasil segue essa tendência global. Na semana anterior à publicação de O

Poder das ONGs em Época Debate, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) havia divulgado que entre 2002 e 2005, o número de ONGs criadas no país

aumentou 22,6%, passando de 287 mil para 338,2 mil, e hoje estima-se que já

ultrapassem 400 mil. Com um contingente avaliado hoje em 1,8 milhão de

funcionários com carteira assinada – mais que o triplo dos funcionários públicos

federais.

Como se poderia esperar, a quantidade de dinheiro disponível no Terceiro

Setor atrai não apenas gente bem-intencionada. Os esquemas de corrupção e

desvio de dinheiro público que surgiram ao redor das ONGs devem ser combatidos e

investigados. A legislação que as regula também deve ser aperfeiçoada para evitar

as brechas que permitem esses desvios.


165

Mas, surpreendentemente, a maior parte do dinheiro das ONGs não vem do

governo. De acordo com a pesquisa da Johns Hopkins, apenas 14% dos recursos

das ONGs brasileiras se originam de convênios e subvenções governamentais. A

maior fatia – 69%, vem da venda de produtos e serviços. E 17% se originam de

doações do setor privado.

No Brasil, talvez em função da própria trajetória histórica e política do país, a

percepção que sempre se teve em relação ao setor de negócios, é a de que esse

setor fosse pouco preocupado com os interesses dos mais pobres. O fato de o Brasil

ter tanta riqueza nas mãos de um número pequeno de pessoas faz com que muita

gente ligada ao setor social sinta certa frustração com relação à comunidade de

negócios.

Por isso, não deixa de ser uma ironia que o espírito empreendedor,

fundamental para o sucesso do capitalismo, seja valorizado agora também na área

social. A grande diferença é que, em vez de atender a uma necessidade do

mercado, os empreendedores sociais procuram resolver os problemas sociais e

ambientais. “Eles trazem para os problemas sociais a mesma imaginação que os

empreendedores usam para criar riqueza no mundo dos negócios”, é o que afirma

Tony Blair, ex-primeiro ministro da Inglaterra, na reportagem de Época.

Blair é cultuado no setor por ter defendido uma terceira via entre o capitalismo

e o socialismo para promover o desenvolvimento econômico, nos tempos em que

estava no poder. A Terceira Via é o título de uma das obras do sociólogo inglês

Anthony Giddens, cujas teorias causaram um forte impacto na evolução do Novo

Trabalhismo que foi estruturado nos anos do governo de Blair.

Nos dias atuais, nos Estados Unidos, um trabalhador que atue no Terceiro

Setor – que há muito tempo vem se consolidando como a terceira via blairista –
166

recebe em média US$ 627 por semana em comparação a US$ 669 na iniciativa

privada. No Brasil , as ONGs movimentam cerca de R$ 35 bilhões por mês só com o

pagamento de salários ; e os trabalhdores da área social ganham, em média, 3,8

salários mínimos por mês (ou R$ 1,577), que correspondem a 3,2% a mais que a

média nacional.

Isso se tornou possível porque, em vez de se concentrar na ação

assitencialista de um número limitado de entidades beneficentes, as fundações,

institutos e empresas que financiam ações filantrópicas estão apoiando milhões de

pequenas ONGs que desenvolvem projetos inovadores pelo mundo. A Fundação

Rockefeller, por exemplo, sediada nos Estados Unidos, oferece apoio a ações

sociais e ambientais de todo o mundo e até ajuda os empreendedores sociais a

fazerem a captação inicial e a identificar investidores para seus projetos.

Na opinião de Drayton, representante da Ashoka, uma das principais

instituições de apoio na área, “a filantropia é uma daquelas palavras que vamos

parar de usar em dez ou 15 anos”. Ele declarou, à Época, que “as fronteiras entre o

setor privado e o setor social estão entrando em colapso”. E corrobora esse

fenômeno o crescente número de profissionais que se interessam pelas

oportunidades abertas pelo Terceiro Setor.

Segundo o IBGE, dentre as múltiplas atividades desenvolvidas pelas 57

ONGs que são criadas diariamente no Brasil, as que estão relacionadas à Cultura e

Recreação ocupam o quarto lugar na lista das nove áreas sociais em que as

organizações mais concentram o seu trabalho. A Cultura, portanto, recebe um

volume de recursos menor que as Congregações Religiosas, As Associações

Patronais e Profissionais e a Defesa de Direitos.


167

Em contrapartida, vem superando em recursos captados e projetos

desenvolvidos, áreas como a Assistência Social, a Educação e Pesquisa, a Saúde, o

Meio Ambiente, a Habitação, e várias outras. Os salários médios mensais dos

empregados das organizações voltadas ao desenvolvimento de atividades culturais

equivalem exatamente à média, supracitada, de R$ 1,577, sendo inferiores apenas

aos da área de Educação e Pesquisa, com média de R$ 2,117 ; e do Meio

Ambiente, cuja média é R$ 1,785.

É esse quadro que Yúdice (2004, p.122) busca retratar, quando afirma que

os atores mais inovadores em determinar estratégias para ações políticas e sociais passam a

ser os movimentos sociais e as ONGs, nacionais e internacionais, que os sustentam. Esses

atores estimularam a cultura – definida de várias formas – na qualidade de um recurso para a

exploração capitalista (por exemplo, na mídia, consumismo e turismo), e como uma fonte de

resistência contra as investidas desse mesmo sistema econômico.

Essa conexão internacional em volta de certos movimentos sociais, bem como a crescente

circulação transnacional de comunicações, informação, imagens de novos estilos de vida,

igualdade dos sexos e sua relação com o colapso da política formal, criou um novo imaginário

que poderia não ser fielmente captado pela estrutura antiimperialista [vigente nos quadros

anteriores]. Isto não quer dizer, é claro, que desigualdades enormes pararam de existir entre

o Norte e o Sul.

No entanto, se na década de 60, os idealistas foram para as ruas e flertaram

com políticos de esquerda tradicionais. Agora, acreditam que podem mudar, eles

mesmos, o mundo. Trabalham para dimunuir a fome, curar doenças, reformar a

educação, preservar o meio ambiente, apoiar artistas populares ou promover a

inclusão digital. E têm um discurso próprio, permeado de palavras como “cidadania”,


168

“sustentabilidade”, “conscientização”, “solidariedade” e expressões como “sociedade

civil organizada”.

A partir do entrosamento do transnacional com os movimentos de base (tão

evidente na ação das ONGs), se produziram situações em que

a cultura não poderia mais ser vista predominantemente como a reprodução do ‘estilo de vida’

da nação enquanto uma discreta entidade, separada das tendências globais ... Nas últimas décadas,

portanto, as novas abordagens do estudo da cultura na América Latina começaram a considerar a

globalização (Yúdice, 2004, pp.129,130).

Foi a partir dessa constatação, que nos interessou investigar em que medida

os elementos que caracterizam essa transição poderiam ser identificados nas

seleções e abordagens de tópicos culturais eleitos para integrar os currículos de

nossa área de atuação. E por considerarmos que os materiais são ferramentas de

documentação e legitimação dos currículos, optamos por fazer essa identificação por

meio da análise dos dois LDs de PLE já referidos.

Após a avaliação dos tópicos culturais que selecionamos em Bem Vindo!,

publicação de 1999, concluímos que os paradigmas nos quais se enquadram

condizem com uma abordagem de estudos culturais baseada em um modelo de

estrutura nacional, do modo como o define Yúdice com base no histórico que

descrevemos previamente. (Os aspectos que nos levaram a essa conclusão serão

comentados na próxima seção do trabalho).

Diferencia-se em variados aspectos desse modelo, aquele que poderá ser

observado por meio da análise dos tópicos culturais por nós selecionados em

Panorama Brasil, publicação de 2006. A avaliação da primeira parte de nosso corpus

remeteu-nos a noções convencionais de cultura que se esvaziaram muito (Yúdice,


169

2004, p.25), já a segunda parte irá abordar uma cultura cujo papel expandiu-se

como nunca para as esferas política e econômica e para compreendê-la é preciso

considerar que , nos nossos tempos, representações e reivindicações de diferença

cultural são convenientes na condição de que elas multipliquem as mercadorias e

confiram direitos à comunidade (op.cit.,p.46).

Com isso, o conteúdo da cultura foi perdendo importância com a crescente

conveniência da diferença como garantia de legitimidade, cedendo, assim, lugar à

conveniência da cultura. É esse processo de instrumentalização da cultura

(op.cit.,p.63), que convidamos os leitores a identificarem nos temas dos treze textos

selecionados na terceira unidade de Panorama Brasil.

5.2.3.1 Texto I : Amazônia – Desenvolvimento Sustentável ; e Texto II : (sem

título) - texto sobre o empreendedorismo de José Luiz Zagati na criação de

um espaço de cinema comunitário

Em entrevista concedida à Época Debate (op.cit.,p.71), o jornalista e escritor

canadense David Bornstein, explica que a diferença entre um empreendedor social e

um empreendedor de negócios está na motivação de cada um. Em geral, o

empreendedor de negócios deseja maximizar o lucro, sem necessariamente

melhorar a sociedade. Já os empreendedores sociais têm como principal

preocupação resolver problemas sociais.

Em linhas gerais, se pode afirmar que tanto as iniciativas da Fucapi, em

associação com a Native (no texto I), como as de José Luiz Zagati (no texto II),

resultaram em benefícios para as comunidades do Amazonas e de Taboão da Serra,

respectivamente. E esses resultados foram obtidos por meio da aproximação que


170

essas iniciativas promoveram de cada uma das comunidades com as formas de

expressão artística que se apresentavam disponíveis para elas.

No caso do texto I, esse processo é conduzido de forma planejada, objetiva

e profissional. A Fucapi, que é a fundação de pesquisa tecnológica responsável pela

idealização e financiamento do projeto, em parceria com a Native, que o executa e

gerencia, utilizam o recurso subjetivo da cultura local (a manifestação artística dos

povos da Amazônia).

E também empregam os recursos objetivos – que nesse caso, são, em parte,

providos pela própria natureza – os resíduos florestais, para gerar renda para as

comunidades do interior do Amazonas, promovendo uma forma de desenvolvimento

sustentável para a região, ou seja, que não traga danos para as áreas ambientais

que devem ser preservadas.

O processo de criação e coordenação da produção das mais de 150 peças

iniciais, realizado pelo arquiteto e designer Luiz Galvão, ilustrou o mecanismo que é

adotado para assegurar um alto padrão de qualidade, contribuindo para agregar

valor aos produtos. Mas, aliada à inventividade dos designers, está o talento dos

artesãos locais, que será explicitado e aprimorado pela atividade contínua de

produção.

No texto II, um processo semelhante entrou em andamento a partir do

empreendedorismo de um cidadão comum, José Luiz Zagati, que à despeito de sua

origem humilde e uma trajetória de vida pontuada por dificuldades finaceiras,

consegue criar um pequeno espaço de cinema comunitário, o Míni Cine Tupy.

José Luiz é motivado por uma paixão pessoal, mas seu projeto envolve

partilhar com a comunidade local a oportunidade de ter o acesso à arte e à cultura


171

cinematográfica, que para muitos, assim como para ele próprio, era impedido pelas

restrições de sua condição econômica.

Em nome do objetivo de viabilizar o acesso do público local à forma de

expressão artística que se apresenta mais próxima e disponível dentro da realidade

social daquela região de periferia, ele parte em busca de recursos por meio de seus

esforços individuais.

E também procura apoio na Associação de Colecionadores de Filmes em

16mm, onde obtém, por meio de uma doação, o primeiro filme que projetou. De

maneira mais intuitiva, do que os agentes do texto I, portanto, ele também

vislumbrou na cultura um recurso, uma contribuição para melhorar a qualidade de

vida da comunidade, promovendo acesso à arte e ao entretenimento.

5.2.3.2 Textos III e IV : Iguaria Regional Vence Barreira Geográfica ... e

Agricultura Familiar ; Texto V : Nosso Cardápio em Cordel ; e Texto

VI: artigo sobre a recente ampliação da marca Cachaça 51

Os quatro textos que foram agrupados nesse item têm em comum valerem-se

do expediente da cultura como conveniência, sobretudo para gerar a multiplicação

de mercadorias, exemplificando, desse modo, a expansão da cultura para a esfera

econômica.

Os textos III e IV apresentam conteúdos, que são, de certa forma,

complementares. No texto III, um produto típico da agricultura brasileira, a mandioca,

e mais especificamente, uma receita popular elaborada a partir do produto, a

tapioca, passa a integrar o cardápio de restaurantes sofisticados do Rio e São

Paulo, adicionando sabor e simbolismo regional, às criações da arte culinária.


172

A tapioca serve de matéria-prima, sendo utilizada não só como recurso

material mais também pelo apelo cultural que adiciona aos pratos elaborados pelos

restaurantes. Assim fazendo, ela propicia ao produto final uma ampliação em termos

de valor e de potencial para ser bem comercializado.

É por isso que a chef Tereza Corção, que é proprietária do restaurante

carioca O Navegador, e faz uso da matéria-prima em suas criações, afirma

estrategicamente, que o processo reflete uma forma de reconhecimento de um

produto que faz parte da história de todos nós.

Realmente, é fato de conhecimento popular de grande parte dos brasileiros

que a tapioca, é vendida em quase todas as esquinas do nordeste do país, como um

alimento de baixo custo, e sua receita acabou se tornando representativa da cultura

nordestina e brasileira, em sua versão mais conhecida em que recebe recheio de

queijo, coco e manteiga.

O texto IV, sobre o modo de produção da mandioca, a agricultura familiar,

aparece na unidade, dando seqüência ao tema abordado no texto anterior. Assim

apresentados, os textos levam o leitor atento, naturalmente, a concluir que uma

utilização mais ampla ou mais nobre do produto e sua conseqüente valorização no

mercado poderiam contribuir para o fortalecimento, ou aprimoramento de sua

produção, gerando benefícios para seus produtores.

Afinal, como é mencionado no texto IV, a cultura da mandioca é uma grande

geradora de empregos : para cada 2 hectares de mandioca plantada, gera-se um

emprego direto. Além disso, sendo a gestão de seu cultivo típica do modelo familiar,

acaba por propiciar oportunidades de trabalho para as mulheres, cuja participação

contribuindo para a geração de renda, costuma otimizar as condições de vida da

família.
173

No texto V, Nosso Cardápio em Cordel, conteúdo e forma têm igual relevância

na divulgação do restaurante potiguar Brocoió, como um estabelecimento onde se

encontra representada a tradição culinária típica da região. Por meio do texto, o

restaurante busca estimular nos clientes uma “identificação cultural” com sua

gastronomia apurada, convidando-os a sentir o cheiro e o sabor da terra e voltar à

raiz, revisitando a cozinha do tempo de suas avós.

Seus pratos, bebidas e sobremesas são típicos da cultura nordestina. E além

dos produtos, a utilização de um cardápio redigido em forma de Literatura de Cordel

– que é a versão do cartão de visitas do Brocoió – completa a caracterização do

local como uma referência da arte culinária potiguar.

Desse modo, a cultura é utilizada discursivamente para valorizar a imagem

dos produtos comercializados pelo Brocoió ; e sob um viés mais amplo, valorizam a

própria atividade comercial da região.

No texto VI, é descrito o processo de renovação da marca Cachaça 51, com o

lançamento na São Paulo Fashion Week do frozen de caipirinha , a versão cremosa

e moderna do drinque mais representativo da cultura nacional. Elaborada a partir da

cana-de-açúcar, a cachaça – bebida utilizada na preparação da caipirinha – é

conhecida e comercializada no mercado internacional como o destilado

caracteristicamente brasileiro.

A marca 51, com a criação do frozen de caipirinha, e anteriormente da 51 Ice,

vem buscando adaptar sua imagem às demandas atuais do mercado interno e

externo. A vinculação de imagem do frozen à semana de moda de São Paulo, visa

sugerir ao consumidor que cachaça é fashion, está na moda e tem aceitação

também no exterior.
174

A marca, portanto, mantém a vitalidade do simbolismo cultural e tradicional

implicados no consumo da cachaça, promovendo a atualização e diversificação nas

formas de apresentação comercial da bebida e de seus derivados, de modo a

assegurar a sua participação competitiva no mercado global.

Em síntese, uma vez mais, se promove a sobrevivência da tradição cultural,

na medida em que nela se imprime uma roupagem contemporânea por meio de

estratégias de marketing.

5.2.3.3 Texto VII : (sem título) - entrevista com a artesã que idealizou a Flor de

Concha ; Texto VIII : (sem título) – texto sobre a criação de um pequeno

negócio para a comercialização de tecidos bordados artesanalmente.

Os textos VII e VIII descrevem o desenvolvimento de dois trabalhos distintos de

produção artística artesanal – a confecção de flores artificiais e a criação de

bordados em tecidos – desenvolvidos, respectivamente, pelas artesãs Cristina Maria

Lauteman e Maria Torres de Araújo.

Em ambos os casos, o trabalho iniciado pelas artesãs se ampliou e resultou na

estruturação de pequenos negócios. Nessa trajetória, representaram fatores

importantes, não só o talento das artistas, mas também o incentivo e o intercâmbio

de idéias sobre a criação e produção do artesanato obtidos junto a outros

integrantes da comunidade ou da região. Os dois negócios já obtiveram alguma

expansão, com a comercialização dos produtos em outros locais do Brasil e no

exterior, consolidando o seu potencial na geração de empregos.

A criação de produtos artesanais, inclusive a partir de recursos naturais, é uma

forma de expressão artística e cultural da região litorânea do Espírito Santo,


175

exemplificada no trabalho de Cristina Lauteman na Flor de Concha, em Anchieta; e

das freiras portuguesas, em Guarapari. Da mesma forma, a arte de bordar em

tecidos é uma tradição cultural transmitida pelas Escolas de Bordados de Caicó, Rio

Grande do Norte, onde se estruturou o negócio de Maria Torres de Araújo.

Logo, é possível concluir que, nos dois casos, o artesanato, como

expressão da cultura de cada uma das regiões, foi mobilizado pela iniciativa das

duas empreendedoras, e gerou dois pequenos núcleos de desenvolvimento

econômico local, que possivelmente virão a inspirar o surgimento de outros.

5.2.3.4 Texto IX : Angola – Onde o Brasil Aprendeu a Gingar

O texto IX se insere na abordagem da cultura contemporânea apresentada

nos estudos de Yúdice, na medida em que ilustra uma intensificação recente no

processo de internacionalização da música brasileira, nesse caso, como um bem

cultural.

Se, por um lado, sentimo-nos, por vezes, invadidos pela entrada e circulação

de um número massivo de produtos culturais americanos no mercado brasileiro,

incluídas nesse grupo as produções musicais; por outro, o fato de a música brasileira

ser a mais escutada nas rádios de Angola, é uma amostra da reprodução desse

mesmo desequilíbrio no intercâmbio de bens culturais entre países que ocupam

posições muito distintas na escala global de desenvolvimento econômico.

Os artistas, por sua vez, procuram se adequar às constantes reconfigurações

do mercado em que suas produções se inserem. Na medida em que as políticas

governamentais de incentivo à produção artística e cultural nacional escassearam,


176

eles procuram articular novas parcerias a fim de continuar viabilizando o patrocínio

para suas produções musicais.

E, além disso encontram no aumento da internacionalização dos eventos

musicais (como os shows dos músicos brasileiros em Luanda e outras capitais), uma

forma de suprir, ao menos parcialmente, as perdas nos rendimentos com direitos

autorais que sofrem hoje, devido à regulamentação ainda muito incipiente dos novos

canais de distribuição de conteúdos culturais (intermediados pela Internet).

5.2.3.5 Texto X : Daniella Zylbersztajn – Tataraneta e Neta de Fabricantes de

Bolsas, Cria Objetos de Desejo ; Texto XI : O ‘Design’ com Ingrediente de

Sucesso

Nos textos X e XI, Daniela Zylbersztajn e Lívia Canuto, respectivamente,

partem de um contato travado com modelos de criação artesanais tradicionalmente e

culturalmente estabelecidos e os reconfiguram por meio da inclusão de conceitos e

técnicas mais acadêmicas no processo de criação. Com isso, o produto final recebe

agregação de valor, ajustando-se às novas demandas do mercado e assegurando

uma posição no nicho específico desejado.

No caso de Daniela, o talento para confeccionar bolsas foi herdado da família

que já tinha um histórico de participação nesse tipo de atividade. Nos cursos formais

que realizou, conheceu a produção voltada ao mercado de moda, e teve a

aproximação necessária com esse tipo de criação artesanal.

Daniela adicionou à técnica artística, alguns conhecimentos conceituais que

adquiriu sobre o marketing da moda e sobre o diferencial que os produtos devem

apresentar para conquistar espaço no mundo fashion. O resultado se revelou no


177

sucesso obtido por suas peças, exportadas para vários países, como Londres, Milão

e Tóquio.

Já Lívia Canuto, ao ingressar no universo da joalheria, percebe que as

técnicas clássicas visavam a elaboração de jóias que seriam apreciadas por seu

valor monetário, e esse tipo de apreciação ficou cristalizada na percepção do grande

público consumidor.

Lívia conseguiu promover a inovação no seu processo de criação das jóias,

aproveitando as técnicas da escultura, que ela desenvolveu por meio de suas

atividades artísticas anteriores. Valorizando o design na elaboração de suas peças,

Lívia chegou a um produto final moderno e sofisticado.

Nos exemplos descritos nos textos, a arte na confecção de bolsas e a arte da

joalheria, em um processo semelhante ao que se deu com o fabrico da cachaça

(texto VI), conservam seu espaço, na medida da sua capacidade de se adequar ao

dinamismo do mercado de consumo global.

Por vezes, essa adequação se dá em um nível discursivo e imagético, com

alterações nas estratégias de marketing dos produtos finais. Em outras, implicam em

revisões conceituais e técnicas ligadas ao próprio processo de criação dos produtos.

5.2.3.6 Texto XII : A Dança Brasileira Conquistando Espaços

No texto XII, a bailarina Suzana Mafra aponta dificuldades enfrentadas pelos

profissionais da dança para encontrar oportunidades de trabalho em um mercado

restrito : há apenas seis companhias oficiais no Brasil. Na opinião da bailarina, a

expansão desse mercado depende de incentivos, patrocínios e de uma política

cultural mais adequada ao desenvolvimento desse campo artístico no país.


178

Diante desse panorama, Suzana afirma que, a melhor perspectiva para um

bailarino, tanto no Brasil como em outros países, é fazer parte do elenco de uma boa

companhia, onde terá melhores oportunidades tanto artísticas quanto financeiras, já

que as companhias de dança viraram grandes empresas, graças às parcerias com a

iniciativa privada e com o governo.

A avaliação do mercado da dança no Brasil feita pela artista reflete as

tendências das políticas culturais contemporâneas, conforme são descritas por

Yúdice (2004, p.31). O autor explica que o velho modelo de apoio público às artes

por parte do Estado está morto. Os novos modelos consistem de parcerias com o

setor público e com instituições privadas, inclusive as financeiras, como os bancos

nacionais e internacionais.

Para os profissionais ligados à arte da dança no Brasil, a adaptação às

exigências desse novo mercado é bastante desafiadora, pois diferentemente do que

ocorreu em outros países, aqui não se constituiu uma escola específica, nem uma

tradição no balé, segundo se afirma no texto.

Esse dado histórico, derivado das políticas e investimentos inconsistentes das

últimas décadas, contribuiu para um desenvolvimento técnico, de modo geral,

deficitário, na formação dos profissionais da dança. Mas as deficiências técnicas

buscam ser compensadas, ao menos discursivamente, por traços da identidade

cultural dos artistas brasileiros.

No texto, Suzana afirma que a despeito de não se ter desenvolvido uma

escola, com tradição, que caracterize o balé brasileiro, nós somos artistas muito bem

recebidos lá fora por apresentarmos como marcas diferenciais : a versatilidade, a

musicalidade, a criatividade, a alegria e, principalmente, o swing natural. O apelo

identificatório, nesse caso, a características culturais inatas (ou herdadas, do ponto


179

de vista sociológico), as configura como um recurso ou um capital cultural dos

brasileiros.

De acordo com Yúdice (2004,p.31),

o recurso do capital cultural é parte da história do reconhecimento da insuficiência do

investimento no capital físico durante os anos 1960, no capital humano dos anos 1980, e no

capital social dos anos 1990. Cada nova noção de capital foi projetada como um meio de

melhorar algumas falhas de desenvolvimento na estrutura precedente.

5.2.3.7 Texto XIII : (sem título) – texto sobre a integração de uma imigrante alemã

ao Brasil por meio das artes plásticas

Nessa última análise, fizemos a opção, excepcionalmente, por incluir as duas

primeiras perguntas da atividade elaborada a partir do texto. Assim fizemos, por

entendermos que os conteúdos desses dois itens associados aos conteúdos do

texto compuseram o fechamento não só da unidade Arte e Cultura, mas também de

nossa avaliação do conjunto de textos da unidade.

O fechamento ocorre quando as autoras levam para o campo da interação,

com (ou entre) os estudantes, uma proposta de reflexão sobre a representação

cultural que se faz do Brasil no período contemporâneo, em contraposição à que se

fazia no período contemplado pelo texto, os anos 1970.

A seguir apresentamos os itens das atividades por nós selecionados :


180

Atividade : Discuta com algum outro aluno do seu grupo ou com o professor :

17. Guna chegou ao Brasil em 1973 e, obviamente, já tinha em seu imaginário uma

idéia do que encontraria por aqui. Na sua opinião, qual era a imagem mais divulgada

do Brasil naquela época? Que personagens eram internacionalmente famosos?

18. Trinta e dois anos depois muita coisa mudou no mundo das comunicações.

Imagens e informações são divulgadas a passos céleres. Como você acha que

alguém pode se preparar para a vinda ao Brasil? Que tipos de informação o Brasil

divulga de si mesmo?

O texto XIII descreve a integração da imigrante Gunhild Kruck (Guna) ao novo

país, por meio das artes plásticas, que atuam nesse processo como uma espécie de

canal de afetividade. O período inicial de adaptação da alemã se dá no contexto

sociohistórico dos anos 1970. E a leitura do texto, naturalmente, remete os

estudantes a esse período, funcionando didaticamente como um warm up

(“aquecimento”) para a atividade que o sucede.

A primeira pergunta da atividade tem como objetivo estimular os estudantes a

tentarem inferir o Brasil que poderia existir no imaginário de Guna antes dela imigrar

para o país. Na segunda pergunta, se propõe que os estudantes considerem o

mundo atual das comunicações – em que imagens e informações são divulgadas a

passos céleres. E em seguida, é sugerido que eles identifiquem conteúdos que

compõem a auto-representação cultural do Brasil e os meios pelos quais eles

poderiam ser acessados por um visitante ou imigrante em potencial.


181

Seguindo essas etapas, os estudantes terão a oportunidade de perceber que

diferentes representações culturais do Brasil (e não só auto-representações)

deverão emergir quando os diferentes sujeitos /aprendizes, envolvidos no debate, se

deslocarem de um contexto sociohistórico a outro.

A análise da segunda parte do corpus possibilitou a vinculação da abordagem

dos conteúdos culturais presentes nos 13 textos selecionados ao padrão de

representação cultural cujos princípios são estabelecidos no contexto da fase mais

recente da globalização. Nessa nova forma de abordar a cultura, definida na teoria

de Yúdice e exemplificada nos tópicos culturais analisados em Panorama Brasil, o

teor dos conteúdos culturais propriamente ditos perdem importância, na medida em

que começam a prevalecer as estratégias para convertê-los em bens culturais.

5.3 DA ABORDAGEM CULTURAL DE ESTRUTURA NACIONAL À

REPRESENTAÇÃO CULTURAL CONTEMPORÂNEA

No artigo Você tem cultura?, publicado na revista Explorações – Ensaios de

Sociologia Interpretativa, em 1986, Roberto DaMatta descreve a relevância e

operacionalidade do conceito de cultura nos seguintes termos :

o conceito de cultura, ou ‘a cultura como conceito’... permite uma perspectiva mais

consciente de nós mesmos ... permite traduzir melhor a diferença entre nós e os outros e , assim,

fazendo, resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos.

Sob essa perspectiva, uma concepção adequada de cultura deve reconhecer que não há

homens sem cultura e permitir comparar culturas e configurações culturais como entidades iguais,
182

deixando de estabelecer hierarquias em que inevitavelmente existiriam sociedades superiores e

inferiores (DaMatta,1986,p.127).

A avaliação de DaMatta sobre os princípios que precisam ser considerados

na elaboração do conceito de cultura situa a reflexão do autor em um momento dos

estudos antropológicos, em que ainda se faz necessário, em alguma medida,

consolidar o posicionamento teórico anti-etnocêntrico e o caráter essencial do

relativismo cultural. Além disso, ele também aponta o papel preponderante da

alteridade na interpretação dos fenômenos culturais.

O estabelecimento e a consolidação de novas linhas de pensamento, em

oposição às que prevaleciam anteriormente é um movimento natural da atividade

acadêmica. Mas, devemos levar em conta o dinamismo que esse movimento requer

no contexto das mudanças econômicas, políticas e sociais que têm ocorrido em um

ritmo bastante acelerado nas últimas décadas.

Nosso questionamento central neste estudo é justamente acerca da

adequação em se adotar paradigmas teóricos – que alicerçam a interpretação e a

representação dos fenômenos culturais brasileiros – elaborados em sintonia com

momentos sociohistóricos bastante distintos do que vivemos na contemporaneidade.

No texto I (segundo parágrafo) do livro didático Bem-Vindo!, por exemplo, se

afirma que : algumas das cabeças mais brilhantes do Brasil, de Gilberto Freire (sic) a

Darcy Ribeiro gastaram décadas de trabalho tentando resolver a questão ‘o que é

ser brasileiro?’ e não chegaram a uma resposta definitiva.

A partir dessa afirmativa, temos de avaliar, em primeiro lugar, a pertinência de

buscar delimitar, por meio de definições, uma identidade cultural para o brasileiro, no

âmbito de paradigmas de estudo que procurem dar conta da representação cultural

do Brasil do século XXI.


183

O clássico Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, que chegou a ser

aluno do antropólogo Franz Boas na universidade de Colúmbia, foi publicado em

1933, e de acordo com Ricardo Benzaquen de Araújo, sociólogo da Puc-Rio e

responsável pelo prefácio da 46° edição do livro, foi saudado à época, entre outras

razões, porque oferecia uma interpretação totalmente inovadora do nosso passado

colonial : descartando uma explicação baseada na noção de hierarquia racial e

substituindo-a pelo privilégio da idéia de cultura ...

Araújo afirma que através dessa obra, Freyre redefiniu a própria identidade da

sociedade brasileira, valorizando em pé de igualdade as contribuições indígenas,

africanas e européias à sua formação e, por esse mesmo caminho, dotando-a de

uma dignidade até então insuspeitada.

Darcy Ribeiro, em uma introdução com a qual agraciou a mesma 46° edição

de Casa Grande e Senzala, com a intimidade que só ele poderia demonstrar,

ressalta que : Gilberto gosta de dizer que, apesar de descortinar o passado e o

futuro e vagar pela terra inteira, é um escritor situado no tempo e no espaço.

E é desse modo que fazemos referência às obras de Freyre, de Sérgio

Buarque de Holanda, do próprio Darcy Ribeiro e de Roberto da Matta. Cada uma de

suas obras é por nós tomada como uma grande contribuição, cada qual situada em

seu tempo e espaço.

Assim, se a seleção e abordagem de conteúdos culturais como os mitos,

lendas e festas folclóricas brasileiras, encontram respaldo teórico na produção de

Freyre, é preciso que dele se faça uso em perspectiva histórica. O pesquisador

afirma, por exemplo, que o brasileiro é por excelência o povo da crença no

sobrenatural ... É o folclore, são os contos populares, as superstições, as tradições

que o indicam (Freyre, 2002, pp.208,209).


184

Nesse caso, é essencial localizarmos o brasileiro referido como aquele que

pôde ser observado pelas vivências e estudos do autor, iniciados em outubro de

1930, os quais resultaram na publicação do livro aproximadamente três anos depois.

Com base em dados colhidos em inúmeros registros no Brasil e no exterior

(sobretudo em Portugal), Freyre escrevia de sua casa no bairro de Apipucos no

Recife, com as ferramentas que a teoria socioantropológica da época podiam

fornecer.

Não é possível, no entanto, reconhecermos nos modelos de abordagem

teórica atuais, esse brasileiro de identidade tão unificada, fixa e delineável, embora

complexa – que Freyre, sob variados aspectos, empenhou-se em definir. Do mesmo

modo, Ribeiro (1995) identifica, no período colonial, traços que, por vezes, o autor

apresenta como deterministas da cultura e da mentalidade política do brasileiro, que

se encontram, sob sua ótica, operantes, ainda no final do século XX. Segundo o

antropólogo,

Dois estilos de colonização se inauguram no norte e no sul do Novo Mundo. Lá, o gótico altivo

de frias gentes nórdicas, trasladado em famílias inteiras para compor a paisagem de que

vinham sendo excluídos pela nova agricultura, como excedentes de mão-de-obra. Para eles, o

índio era um detalhe, sujando a paisagem que, para se europeizar, devia ser livrada deles. Que

fossem viver onde quisessem, livres de ser diferentes, mas longe, se possível para outro além-

mar, Pacífico adentro.

Cá, o barroco das gentes ibéricas, mestiçadas, que se mesclavam com os índios, não lhes

reconhecendo direitos que não fosse o de se multiplicarem em mais braços, postos a seu

serviço. Ao ‘apartheid’ dos nórdicos, opunham o assimilacionismo dos caldeadores...


185

A evolução de uma e outra dessas formações dá lugar, nas mesmas linhas, de um lado, ao

amadurecimento de uma sociedade democrática, fundada nos direitos de seus cidadãos, que

acaba por englobar também os negros. Do lado oposto, uma feitoria latifundiária, hostil a seu

povo condenado ao arbítrio, à ignorância e à pobreza (op.cit., pp.69,72).

Para o autor, não restam dúvidas de que essa etapa da história marcou

nosso modo de pensar, agir e viver em todos os tempos até os dias atuais. Tal é a

força dessa ideologia que ainda hoje ela impera, sobranceira (Ribeiro,1995,p.72).

Holanda (apud Ribeiro, 1995, p.451) segue a mesma linha de pensamento quando

propõe que tenhamos incorporado traços do colonizador que se imprimiram em

nossa identidade cultural e na política nacional de forma definitiva : ele faz menção

ao pendor para o mandonismo, para o autoritarismo e para a tirania, que seriam

características nossas, herdadas dos iberos.

O jornalista Roberto Pompeu de Toledo no artigo Negros, Coronéis e

Sócrates, pulicado por Veja, em maio de 2003, desperta a atenção de seus leitores

para o obsoletismo desse padrão de interpretação da política e da cultura brasileira :

... não vale mais invocar o imperialismo, a colonização e fatores que tais como

desculpas para nossos atrasos, ele afirma.

Quando passamos a considerar a representação da cultura brasileira nos

estudos que a abordam sob o prisma das transformações sociais ocorridas nas

décadas recentes – de intensificação do processo de globalização – buscamos,

assim como foi feito em relação às teorias anteriores, adotar uma avaliação

minuciosa para identificar possíveis inconsistências.

Percebemos como um ponto de vulnerabilidade que os argumentos

presentes nessa nova forma de estruturação do pensamento sofressem uma

compreensão ou instrumentalização equivocada. E ao longo da leitura da teorização


186

feita por Yúdice e da identificação nos textos de Panorama Brasil dos mecanismos

que ele descreve, procuramos estar atentos à possibilidade de que a mobilização da

cultura como recurso, capital, ou conveniência fosse interpretada como sinônimo de

uma estratégia elaborada de forma calculada e consciente pelos sujeitos.

Mas, na verdade, essa instrumentalização da cultura é fruto do binômio

indissociável sociedade-sujeito ou sujeito-sociedade. Ela é utilizada pelos sujeitos

para sobreviverem ou adaptarem-se às novas características – estabelecidas pelas

dinâmicas econômicas globais – dos microcosmos sociais que eles (sujeitos) ou

seus grupos integram. Por outro lado, a própria instrumentalização é forjada no

interior dessas mesmas dinâmicas.

Nesse aspecto, Yúdice (2004, p.454) vem em nosso auxílio e esclarece que

não é seu propósito ao descrever essa estratégia, desqualificá-la como sendo uma

perversão da cultura, ou como uma redução cínica dos modelos simbólicos ou dos

estilos de vida à ‘mera política’.

O autor enfatiza que a economia cultural ... não é a única a valer-se da cultura como

expediente, como recurso para outros fins. Podemos encontrar essa estratégia em muitos e

diferentes setores da vida contemporânea: o uso da alta cultura (por exemplo, os museus, as

zonas de desenvolvimento cultural, as cidades convertidas em parques temáticos, etc.) para o

desenvolvimento urbano; para a promoção de culturas nativas e patrimônios nacionais

destinados ao consumo turístico; para a criação de indústrias culturais transnacionais que

complementem a integração supranacional, seja com a União Européia ou com a América

Latina; para a redefinição da propriedade como forma de cultura a fim de estimular o acúmulo

de capital em informática, comunicações, produtos farmacêuticos e entretenimento

(op.cit.,p.454).
187

Na opinião do autor, é impossível não lançar mão da cultura como recurso.

Conseqüentemente, a análise cultural necessariamente pressupõe uma tomada de posição,

mesmo nos casos em que o escritor procura objetividade ou transcendência. Mas essa

posição não precisa ser normativa, baseada no que é certo ou errado (p.63,64).

Para fundamentar seu ponto de vista, Yúdice nos remete à noção foucaultiana

de cuidado de si mesmo (souci de soi), a qual enfatiza o papel ativo do sujeito em

seu próprio processo de constituição. Quem pratica o cuidado de si mesmo precisa

também forjar sua liberdade trabalhando os modelos que encontra em sua cultura e

que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu

grupo social (Foucault, 1997 a: 291, apud Yúdice, 2004, p.64).

Mattelart e Neveu (2004) compartilham as reflexões de Yúdice acerca dos

recentes debates que se estabeleceram sobre a cultura e a legitimidade das

políticas culturais. E, de acordo com os autores, as reconfigurações no cenário

sóciopolítico e cultural contemporâneo afetaram as condições de trabalho dos

pesquisadores, apresentando-lhes novos questionamentos, reabrindo possibilidades

de articulação entre trabalho intelectual e compromisso social que eram tidas como

extintas (op.cit.,p.198).

Entendemos, assim como Mattelart e Neveu, que as linhas de pensamento

que estruturarão as novas pesquisas sobre a cultura irão, forçosamente, derivar do

entrelaçamento de paradigmas culturais, informacionais e lingüísticos. E, assim

sendo, como pesquisadores no campo da Educação, e mais especificamente da

Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas é preciso que estejamos atentos às

mudanças nos modos de representação da cultura que acabamos por metabolizar e

reproduzir no momento da seleção/utilização dos conteúdos que integram nossos

currículos e materiais didáticos.


188

Partimos da convicção, compartilhada com os autores cujas teorias

mobilizamos nessa pesquisa, de que o ato de escolher/selecionar pressupõe uma

ruptura com a neutralidade, podendo envolver diferentes níveis de reflexão e

consciência. Portanto, a ampliação dessa consciência poderá nos proporcionar uma

atuação mais crítica como utilizadores/elaboradores de componentes culturais para

os currículos e materiais voltados ao ensino de PLE.


189

6 CONCLUSÃO

A análise dos conteúdos culturais presentes nos conjuntos de textos por nós

selecionados em Bem-Vindo! e Panorama Brasil revelou o início de um processo de

vinculação da seleção e abordagem desses conteúdos aos paradigmas de

interpretação e representação da cultura contemporânea que começaram a emergir

a partir da década de 90.

Os tópicos culturais que integram o primeiro conjunto – os nove textos de

Bem-Vindo! – estão associados a bases teóricas historicamente fundamentadas em

uma disposição nacional-popular. E por meio da descrição de diferentes

componentes da cultura brasileira, como a literatura, a música, o folclore e o

carnaval, trabalham no sentido de divulgar imagens do caráter e da identidade do

brasileiro, que, muitas das vezes, assumem uma forma de auto-exaltação que é bem

característica desse padrão de representação cultural.

Os 13 textos de Panorama Brasil abordam componentes culturais da mesma

categoria dos textos referidos acima, a Big C Culture , incluindo: artefatos derivados

de resíduos de madeira florestal; cinema; alta culinária e culinária regional,

agricultura familiar; a cachaça de cana tipicamente brasileira; a arte na confecção de

flores artificiais, tecidos bordados e bolsas em couro; música e dança brasileiras,

joalheria e artes plásticas. Porém, a avaliação dessa segunda parte do corpus,

permitiu identificar uma perda de importância em se abordar o teor dos conteúdos

culturais propriamente ditos e sua substituição pelo enfoque nos diferentes caminhos

e estratégias para convertê-los em bens culturais.

A abordagem da cultura de estrutura nacional apresentada em Bem-Vindo!

também estava atrelada a propósitos políticos e econômicos, conforme ficou claro.


190

Mas, nesse caso eram fomentados pelo Estado, como Estado-nação, o qual pôde

promover o valor dos conteúdos culturais pelo potencial que eles apresentavam em

possibiltar aos sujeitos a idéia confortável de pertecimento à uma identidade

nacional.

Essa identidade era projetada em inúmeras frentes – sobretudo na música,

nas rádios estatais, fossem elas de controle político ou financeiro, e na indústria do

carnaval e do samba – para gerar um sentimento coletivo ora de grandiosidade, ora

de originalidade, mas sempre de orgulho e positivismo.

Mas, não é esse tipo de valor que está em jogo na dinâmica atual de

converter conteúdos em bens culturais, e sim a conquista de um espaço e de direitos

no novo cenário do mercado transnacional – ou seja, a manutenção ou melhoria das

condições de vida de comunidades ou sociedades inteiras.

A apropriação pela sociedade civil de estratégias de negociação para a

cultura, geradas no processo de estruturação desse mesmo mercado, conforme dito

antes, acabou por desencadear um acelerado processo de estreitamento de

fronteiras entre o setor pri vado e o social. E sob esse viés, fará cada vez menos

sentido a separação entre educar os estudantes, em qualquer segmento de ensino,

para uma atuação eficiente no mercado de trabalho ou para o exercício da

cidadania, pois esses dois segmentos sociais estão gradativamente se entrelaçando.

Por um lado, já está comprovado por todas as guinadas surpreendentes na

história das nações e de suas inter-relações econômicas, além das reconfigurações

de seus discursos políticos e de suas mentalidades coletivas, que não é razoável

sermos demasiadamente assertivos no que se refere a projeções.

Por outro lado, parece menos razoável ainda que ignoremos a necessidade

de ampliar o número de pesquisas e de suas respectivas aplicações nos campos


191

educacionais, que sirvam de ponto de partida para reflexões e debates sobre esse

período de transição que vivemos. Este momento tem promovido mudanças tão

significativas nos mercados mundiais que acabam por alterar estilos de vida, valores

e padrões simbólicos, dentre outros elementos, compartilhados pelos sujeitos. Esses

elementos compõem aquilo que chamamos de concepção de cultura.

E, parafraseando Penna (1998), como profissionais atuantes no campo de

ensino de línguas, é preciso levarmos em conta que antes de ser para a

comunicação, a linguagem é para a elaboração, a construção do pensamento, é um

processo criador em que informamos (“damos forma”) as nossas experiências.

Portanto, acreditamos que nossa pesquisa pode contribuir para a área da

Lingüística Aplicada ao Ensino de PLE no sentido de explicitar a necessidade de que

aprendizes estrangeiros de nossa língua sejam estimulados a refletirem a respeito e

comunicarem experiências que se inserem na realidade contemporânea.

É preciso que essa realidade, tomada em seus múltiplos aspectos, ou mesmo

nos diferentes discursos que se contrapõem nas tentativas de representá -la, esteja

espelhada nos tópicos culturais de nossos materiais didáticos.

Assim, deve ser considerado como um objetivo pelos utilizadores (críticos) e

produtores de materiais de PLE estarem atentos a informações, modos de

representação e debates sobre as concepções de cultura em voga em nossa

sociedade. Recorrendo às idéias de Yúdice (2004), para se entender o que cultura

significa é preciso focalizar naquilo que está sendo cumprido socialmente,

politicamente, discursivamente.

E, como foi argumentado por Mattelart e Neveu (2004), a análise do cultural

permanece uma prioridade no mundo, e nossa participação como lingüistas nesse

desafio enriquece nossos projetos de pesquisa e, ao mesmo tempo, representa


192

nossa contribuição para a dinâmica interdisciplinar que caracteriza os estudos

culturais desde suas origens.

Dado o crescente interesse pela investigação dos fenômenos relativos à

cultura, com vistas a aprimorar a integração entre as nações, é preciso que haja uma

constante reavaliação dos limites estabelecidos pelas linhas e fronteiras disciplinares

que, conforme dizem os autores (op.cit, p.198), tanto a evolução do mundo como a

dos territórios universitários requerem.


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