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ALYSSON LEANDRO MASCARO

Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

UTOPIA E DIREITO
ERNST BLOCH E A ONTOLOGIA JURí DICA DA UTOPIA

Editora Quartier Latin do Brasil


São Paulo, verão de 2008
quartierlatin@quartierlatin.art. br
www.editoraquartierlatin.com. br
EDITORAQUARXIER LATIN DO BRASIL
RM San» Amaro, 316 - Gela Vista - São Paulo

Coordenação editorial: Vinícius Vieira

Capa: Miro Issamu Sawada

Diagramação: Paula Passarelli

Revisão gramatical: Silvana Moreli Vicente

MASCARO, Alysson Leandro

Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia


Jurídica da Utopia - São Paulo : Quartier Latin,
2008.

-
ISBN: 85 7674-298-5

.
1 Teoria geral do Direito. 2. Utopia e Direito
I. Título

índices para catálogo sistemático:


1. Brasil: Utopia e Direito
2. Brasil: Direito

í erlatin.art.br
Contato: editora@quart
www.editoraquartierlatin.com.br
SUMáRIO
Nota
9

Introdu ção 11
Utopia concreta, justi ça e dignidade 12
Sobre a obra 16

Capítulo 1 — Modernidade, tempo e revolu ção 17


A geometria do tempo e da história 18
Das esperanças da modernidade 24
A transformaçã o é moral 27
Da secularização à revoluçã o 30

Capítulo 2 - Marx, transformação e utopia 35


Uma divisa fundamental: a transformaçã o 36
Que marxismo para qual utopia ? 38
A teoria da revolu ção de Marx 42
A dialé tica do progresso 44
A utopia em Marx 48
Engels e o projeto utópico do marxismo 51

Capítulo 3 - Psican álise e utopia 55


Freud: desejo e repressão 56
Para alé m do freudismo 61
Wilhelm Reich 62
Erich Fromm 67

Capítulo 4 - A utopia em Marcuse 71


Teoria crí tica: Adorno e Horkheimer 72
Da Escola de Frankfurt a Marcuse 78
Psican álise e libertação 79
A Utopia em Marcuse 83
Pu

Capítulo 5 — Bloch e Lukács: o marxismo heterodoxo 93


A intelectualidade que se torna marxista 94
Messianismo, escatologia e romantismo 96
Uma divergê ncia nas concord â ncias: o expressionismo 99
O caminho ao marxismo nas primeiras obras: sobre a totalidade 103

Capítulo 6 - 0 Ser-Ainda- N ão 111


A utopia concreta 113
As características da utopia concreta: o sonho diurno 115
A ontologia do ser-ainda- não: a natureza 119
A ontologia do ser- ainda- não: a possibilidade 125
A ontologia do ser- ainda-não: S ainda não é P 128

Capítulo 7 - Utopia jurídica: história e dignidade humana 131


Direito Natural e Dignidade Humana 133
A utopia que é jurídica 134
A utopia jurídica construída na história: antigos e medievais 137
A utopia jurídica construída na história: os modernos 143
A utopia jur
ídica construída na história: os contemporâ neos 148


Capítulo 8 A ontologia jurídica da utopia
A utopia das três cores revolucioná rias
155
155
O direito em Marx 159
Crítica da teoria geral do direito: direito subjetivo e objetivo 164
Crítica da teoria geral do direito: direito e moral 168
Crítica da teoria geral do direito: direito penal 170
Crítica da teoria geral do direito: direito e Estado 171


Capítulo 9 Energias políticas da utopia
A n ão-contemporaneidade
177
178
A escatologia da liberta çã o 186
Conclusão 193
Bloch entre os marxistas 193
Bloch entre os juristas 195
Bloch entre os de hoje 196

Bibliografia 199
INTRODUçãO
Ao tempo em que trevas se anunciavam na Europa, as armas dos
liberais e dos socialistas foram ambas soterradas em favor de mistifica¬
dos argumentos de raça e da força de exércitos imperialistas. Tempos
de obscuridade e de guerra, como, de outro modo, parecem ser os
atuais novamente. Naquela altura, boa parte da política, da filosofia e
das religiões se lançou ou ao silêncio ou ao pacto de legitimação dos
poderes existentes. Ao pensamento cr ítico, restou a retaguarda.
No direito, o resultado de tal política de trevas foi a destruição de
qualquer respeito institucional aos direitos humanos, à dignidade existen ¬

cial, em troca dos argumentos da força do Estado ou de distinções como a


de amigo-inimigo. Em oposição a esse quadro, as velhas forças humanistas
- a maior parte delas vinculada às mesmas religiões que, em sua outra
faceta, silenciavam quanto ao Reich - proclamaram, sem maior crítica, a
volta do direito natural, eterno, metafísico e quase que revelado.
Nesse cen á rio de pesadas desesperanças e de frágeis oposições
apoiadas em direitos divinos, levanta-se em contraste uma filosofia dos
sonhos diurnos, da clareza, da esperan ça racional e concreta num novo
amanh ã de Ernst Bloch. O direito natural se transforma, na sua insó¬
lita reflexão jusfilosófica, ao mesmo tempo humanista e marxista, em
uma espécie de bandeira crítica de uma aspiração à dignidade huma¬
na. Filósofo da totalidade, apoiado numa leitura hegeliana de Marx e
ancorado nas longas experiências comuns de reflexão intelectual com
Lukács, Bloch apostará que a dignidade humana só se concretizará
quando for total e plena: o homem totalmente livre das amarras mer ¬

cantis, da exploração do trabalho, o homem socialista, pois, será o ho¬


mem digno. Os marcos de sua utopia jurídica, assim, ampliar-se-ão e
chegarão a limites muito mais vastos que as tradicionais expectativas
dos juristas sobre um mundo, de leis, mais justo.
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A estrutura filosófica da utopia concreta de Bloch revela-se um


sistema bastante insólito, porque se abre como urna espiral, crescente,
que amarra diversas perspectivas, experiencias, lutas histó ricas e dese ¬

jos pequenos e muito grandes em torno de uma ontologia do ser-ain-


da-não. Buscando fundar uma pioneira versão marxista de humanismo
calcada na natureza e na práxis como aberturas ao futuro, Bloch aponta
a filosofia e a existência como a possibilidade.

O resultado do pensamento blochiano é uma petição de luz em


trevas. De maneira insólita a um marxista, encontra energias liberadoras
e revolucioná rias até mesmo na religião, caso esta seja tomada a partir
de um prisma bastante progressista. Paradoxalmente, nos tempos atu¬
ais, em que o sentido reacioná rio da religião volta a ser, hipocritamen ¬
te, um fundamento aparente de legitima ção de guerras e de reputa ¬

das alianças dos governantes com Deus, o pensamento de Bloch é um


alento crítico, postulando urna nova moral racional, dotada de grande
sensibilidade para concretizar na terra uma comunidade fraternal.
Para o direito, que chegando ao auge da mecánica capitalista
sacralizou a condição dos juristas como técnicos sem objetivos últimos,
o reclame de Bloch a uma radicalidade da sociedade justa e da digni ¬

dade humana, que se alce para além do Estado e da dominação


institucional, é um contraste que pode forçar a existência jurídica a
dar-se um sentido político-histó rico transformador. Para Bloch, é che-
gado o tempo de concretizar o justo.

UTOPIA CONCRETA, JUSTIçA E DIGNIDADE

Os sonhos da utopia são uma velha tradição. Para n ão remontar


ao passado grego, nas idéias de Platão , ou então nos sonhos medievais
de Joaquim de Fiori do Terceiro Reino onde Cristo fosse Senhor, por
exemplo , basta dizer que o in ício da modernidade viu florescer o so-
UTOPIA E DIREITO

nho de sociedades e cidades imaginadas exemplarmente, sendo delas


mais famosa a Utopia de Thomas Morus, cujo termo, n ão-lugar, desde
então veio a identificar uma sé rie de projeções de uma existê ncia di ¬

versa da presente.
A histó ria dessas idealizações é bastante conhecida e, no geral,
tomada como literatura ficcional do amanhã melhor. Uma segunda
grande etapa de florescimento de utopias se deu com o movimento
socialista do século XIX, buscando criar fá bricas, cidades e hábitos
sociais diversos, carregados de uma inspiração de solidariedade e
fraternidade. Saint-Simon , Fourier, Owen e outros dedicaram-se à
transformação de grupos sociais, sendo denominados posteriormente,
por Marx e Engels, como socialistas ut ó picos. Neste momento, a uto ¬

pia passava a adquirir a carga pejorativa de ilusão, de quimera. O não-


lugar n ão seria apenas o lugar ao qual não se havia chegado: tratava-se
de um lugar para todo sempre inexistente.
' O descrédito em relação à utopia, nos séculos XIX e XX, torna-se
então bastante acentuado. As perversões totalitá rias, os grandes plane
¬

jamentos económicos, políticos e sociais, as máquinas de guerra que


buscavam novas humanidades, tudo isso foi responsável por conside ¬

rar a utopia até mesmo a pior das projeções humanas, como o atesta,
por exemplo, um Aldous Huxley. A filosofia, de modo geral, abando ¬

nava a utopia a uma espécie de metafísica das quimeras. -


É quadro que se levantou, em sentido contrário , o pensa¬
neste
mento de Ernst Bloch. Judeu alemão, nascido pobre, exilado ao tem ¬
po de Hitler, perseguido na Alemanha Oriental pelos staiinistas, viveu
92 anos de atividade intelectual e política com olhos voltados ao futu¬
ro. Quando faleceu, no final da década de 1970, havia conseguido
restituir para até então combalida idéia de utopia uma dignidade filo ¬

sófica ímpar: de braços dados com o humanismo, o messianismo, a


escatologia, de um lado, Bloch abraçava-se ao marxismo, de outro, na
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tarefa de empreender o lançamento de uma nova utopia, aquela que


denominou de utopia concreta.
O desenvolvimento de sua nova postulação ut ópica vai distante
dos idealismos filosóficos que acompanhavam até ent ão o tema. A uto ¬

pia concreta é uma pr á xis voltada ao amanh ã. Descobre as


potencialidades transformadoras e revolucion árias e insiste no fato de
que o novo amanhã só será diverso do presente por conta da carência
e da fome do hoje. Como o presente é incompleto, urge um novo
amanhã. Para isso, Bloch há de se valer de uma sé rie de ferramentas
filosóficas distintas das tradicionais: os sonhos diurnos, em contraposição
aos sonhos noturnos de Freud; a consciência antecipadora, que nada
lembra as velhas metafísicas dedutivas da sociedade ideal; a não-
contemporaneidade, que dá conta de uma pluralidade temporal que
permite a diversidade das ações e motivações revolucioná rias.

Como marxista desde sua juventude, Bloch estava convencido de


que utopia dos filósofos e dos velhos socialistas estava fadada a ser
a
apenas um discurso de legitimação do hoje pelo amanhã. Por isso le ¬

vantou n ão um sonho idealista, e sim a utopia concreta.


Como, de
outro lado, a ci ê ncia e a filosofia estavam reféns da realidade
tal qual
ela se apresentava no hoje, a utopia concreta é um passo al ém do j á
dado. Para Bloch, o hoje é sempre o potencial do amanhã.
Seu pensamento é, assim , na história da filosofia, aquele que mais
longe chegou no sentido de afirmar que a filosofia é a possibilidade.
Como os tempos presentes reiteram a impossibilidade, pode-se dizer
que até hoje, em todo o mundo e inclusive no Brasil, o pensamento de
Bloch é um novo e está ainda para ser desvendado. 1

1 No Brasil, as noticias filosóficas sobre Ernst Bloch vêm da década de 1960 ao mesmo
- tempo
da introdu çã o dos pensamentos de Luk ács e da Escola de Frankfurt - por meio dos pioneiros
estudos sistemáticos do francês Pierre Furter. Nas décadas seguintes, destacam-se os estudos
de Lu ía Bicca, do Rio de Janeiro, tratando da ontologia e da pol ítica de Bloch, e, no sul, de
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A absorção de Bloch pelo pensamento jur ídico tem se revelado


bastante esparsa. Enquanto na filosofia geral Bloch é respeitado tanto
por um viés radical quanto por um viés reformista da esquerda - o
humanismo o reclama, e os radicais até se fazem passar por seus discípu¬

los , a filosofia do direito somente sabe de Bloch por meio de alguns
poucos e rápidos esquemas a respeito da esperan ça e da utopia concreta .
Tal leitura por alto é responsável pelo grande desconhecimento
acerca do pensamento jurídico blochiano. Os motes principais da sua
filosofia do direito, direito natural e dignidade humana, quando lidos
rapidamente, permitem até identificá-los com algum passadismo
jusfilosófico. Trata-se justamente do contrá rio . Bloch rechaça o m éto¬
do jusnaturalista, e sua construção jur ídica é, na verdade, uma dialé tica
da dignidade. Daí que poucos tenham se atentado, até o presente,
para sua incursão profunda nos limites do discurso jur ídico tradicio ¬

nal e para sua postulação radical de uma sociedade sem domínio.


Bloch está na imbricação explosiva da filosofia do direito e da filo¬
sofia política. Sua filosofia interfere no centro nevrálgico da administra ¬

ção do já dado e existente. A concep ção política blochiana, por ser


transformadora e revolucioná ria, enfrenta a reação do conservadorismo,
que passar á a enxergar, també m na sua filosofia do direito, uma mera
escatologia, cujo an ú ncio não se fará nunca cumprir.

Suzana Albornoz, dedicando-se à ética e à pedagogia blochianas. C. E. Jord ã o Machado, na


Unesp, voltou -se à estética em Bloch. Michael Lõwy, sempre presente no debate filosófico
brasileiro, dedica reflexões a Bloch, dentre outras á reas, também no campo da filosofia da
religi ão. Deve-se ressaltar, ainda, que talvez o mais Importante estudioso de Bloch em todo o
mundo na atualidade, o franco-alem ã o Arno Munster, esteve presente em algumas ocasiões
no Brasil, lecionando em universidades brasileiras e publicando, em portugu ês, duas relevan ¬
tes obras sobre o pensamento blochiano. De todo o conjunto dos livros de Ernst Bloch,
somente no começo da d écada de 1970 se deu a publicaçã o da primeira tradu ção, em l íngua
portuguesa, de sua obra Thomas Miinzer, Teólogo da Revolução, pela Editora Tempo Brasilei ¬
ro, e, após um interregno de muitos anos, em 2005 começou a publicação da importante obra
O Princípio Esperança, em 3 volumes, pela Editora Contraponto. Direito Natural e Dignidade
Humana, a principal obra de filosofia do direito de Ernst Bloch, ser á traduzida e publicada
pela editora Quartier Latin do Brasil.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

SOBRE A OBRA
O ambiente intelectual de Ernst Bloch é claramente o do marxis ¬

mo, mas sua filosofía - que é bastante aberta e com uma envergadura
de an á lise ímpar - dialoga constantemente com uma tradi ção filosófi¬
ca, que vai desde o aristotelismo ao iluminismo, e com toda urna vasta
corrente do pensamento contempor âneo, que vai da Escola de Frank ¬

furt até a psican álise. A presente obra, por conta disso, pode ser dividi¬

da em duas grandes unidades. Uma primeira parte, compreendendo


os capí tulos um a quatro, pode ser tomada como uma espécie de cami¬
nho ao pensamento blochiano, tratando da reflexão sobre o tema da
utopia por autores que serão referenciais a Bloch. Posteriormente, dos
capítulos cinco a nove, trata-se de analisar, na filosofia do próprio Bloch,
seus pressupostos gerais de pensamento e sua filosofia jur ídica, des¬
vendando então sua específica ontologia jurídica da utopia.
Uma filosofia jurídica que trate da utopia se revela uma reflexão
incómoda, mas necessária, para o direito atual. Embora os tempos pre¬
sentes se anunciem categoricamente como impossibilidade, há multi ¬

dões de injustiçados, explorados, angustiados, indignados e mesmo li¬


vres esperançosos cujas energias acumuladas reclamam a possibilidade.
A dialética do amanhã novo saído das lutas de hoje ainda é um projeto
de muitos. Por estes, pensamentos como os de Bloch fazem sentido.
CAPíTULO 1

MODERNIDADE, TEMPO E REVOLUçãO

Quando, na Segunda Epístola de Pedro, anuncia o apóstolo “Mas


há uma coisa, caríssimos, de que não vos deveis esquecer: um dia dian¬

te do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”, já tinha


2

curso um trajeto de luta com o tempo e a história que seria causa dos
mais candentes desesperos e de grandes, ilusorios e concretos sonhos e
utopias. A luta pelo tempo entrava em causa para a humanidade. Que
um dia possa concretizar o que demoraria mil anos, ou que haja um
milenio de novos dias.
De fato, a historia e o tempo revelam-se como urna especie de
luta aparentemente escondida dos impulsos humanos, pois determi ¬

nam vontades, esperanças e sentidos que escapam, muitas vezes, dos


acontecimentos imediatos e das contradições objetivas e plausíveis. Por
exemplo, a escatologia judaico-cristã, ao anunciar a salvação, faz por
dar um sentido à história que um observador externo é incapaz de
dimensionar: o hoje é pelo amanhã.
Mas, na multiplicidade de sentidos do tempo, não se pode dizer
simplesmente que haja um tempo de salvação e um tempo dito “natu ¬

ral”, contraposto a este. Há uma pluralidade de perspectivas que re ¬

clama a história para sentidos muito distintos. O Iluminismo, que


rechaça veementemente a escatologia cristã, põe em seu lugar a salva ¬

ção do homem por si mesmo. O marxismo, herdeiro e crítico contun-

2 II Pedro (3, 8).


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dente da modernidade, ainda assim anuncia novos tempos, os da hu¬


manidade efetivamente socialista. A modernidade, de tal sorte, se apre¬
sentar á, entre tantas facetas, também como uma luta pelo tempo, pela
sua interpretação e suas esperan ças.

A GEOMETRIA DO TEMPO E DA HISTÓ RIA

O discurso da moral ifuminista pressupõe um sentido claro do


tempo, das trevas para a luz. Ironicamente, també m o arcabou ço cris ¬

tã o pressupõe um sentido do tempo, que també m sai da treva para a


luz , ainda que a luz crist ã possa ser a treva iluminista.
Pode-se perceber um sentido relativamente próximo do tempo
na tradição judaico-cristã e na tradi çã o iluminista. A salvação judaica,
a reden çã o pelo Messias, é a linha que estabelece o eixo de compreen ¬
são da histó ria. Para os cristãos, simbolicamente, o “ antes de Cristo” e o
“ depois de Cristo” , que dividem a contagem do tempo ocidental, são o
exemplo de uma forma de visão filosó fico- teológica da temporalidade
muito específica: o tempo como uma reta. Trata-se de uma linha que
tem passado e terá futuro. E, mais que isso , o futuro orienta o presente
e explica o passado.

A linearidade do tempo cristão e do tempo iluminista opõe-se à


circularidade do tempo antigo, o tempo do retorno ou o tempo pa ¬

gão, no contraste dos cristãos. A noção grega do tempo circular, esfé¬


rico, do “ começo e fim como um ponto comum na periferia do cí rcu ¬

lo” , conforme o verso de Heráclito, é a espinha dorsal a ser quebrada


pelo pensamento cristão .3 Se o tempo antigo era baseado na constatação
.
V G. íVA , ,

3 " Neste aspecto, o cristianismo incontestavelmente prova ser a religi ão do ' homem ca ído': e
isso até o ponto em que o homem moderno se vê irremediavelmente identificado com a
histó ria e o progresso, e para o qual a histó ria e o progresso representam uma queda, ambos
implicando o abandono final do para íso dos arqu étipos e da repetição". ELIAOE, Mircea. Mito
do Eterno Retorno. S ão Paulo, Mercuryo, 1992, p. 137.
UTOPIA E DIREITO

da geração e da corrupção da natureza, portanto numa perspectiva


calcada à physis mesma das coisas, o tempo cristão é um tempo basea¬
do numa construção interna, subjetiva, da fé no futuro como salva ¬

ção. O tempo cristão , assim, é o tempo trabalhado , internalizado, em


face do tempo antigo, objetivado, que se baseia no nascimento e no
perecimento constantes. Santo Agostinho, na Cidade de Deus e em
um capítulo todo das suas Confissões, outra coisa n ão faz do que cha¬
mar o crist ão ao tempo novo.
O seu [de Agostinho] argumento final contra o conceito clássi ¬

co de tempo é, por conseguinte, de ordem moral: a doutrina


pagã encontra-se perdida, pois a esperança e a fé estão basica¬
mente relacionadas com o futuro e n ão pode existir um futuro
real se tempos passados e futuros forem fases iguais num retor ¬

no cíclico sem princípio nem fim . Com base numa revolução


duradoura de ciclos definidos, só poderíamos esperar uma rota¬
ção cega de infelicidade e felicidade, isto é, de ilusó ria beatitude
e verdadeira misé ria, mas nenhuma bem-aventurança eterna
apenas uma repetição infinita do mesmo, sem nada de novo,

redentor e derradeiro. A fé cristã promete efetivamente a salva ¬

ção e a bem-aventurança àqueles que amam Deus, enquanto a


doutrina pagã de ciclos fúteis paralisa a esperança e o próprio
amor. Se tudo viesse a acontecer sempre de novo com intervalos
fixos, de nada serviria a esperança crist ã numa nova vida.4
A redenção e a salvação, fenômenos que foram intrínsecos à tra ¬

di ção crist ã medieval, por exemplo , revelam assim uma estrutura


escatológica de progresso do tempo. A vinda do Cristo representa o
final de uma etapa da histó ria e a anunciação de novos tempos. Da
mesma forma, o futuro também já anunciado dá razão de ser e estru ¬
tura o presente crist ã o. Para a escatologia crist ã, o futuro anunciado é
o tempo do eterno, do regozijo perene em Deus. Assim Agostinho:

LôWITH , Kart O sentido da história . Lisboa, Edi ções 70, 1991, p . 164.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Precedeis, porém , todo o passado , alteando-Vos sobre ele com a


Vossa eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro por¬
que est á ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. Vós,
pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo e os Vossos anos
náo morrem. Os Vossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos
vão e vê m, para que todos venham . Todos os Vossos anos estão
conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que che¬
gam expulsam os que vão, porque estes não passam . Quanto aos
nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos n ão existi¬
rem. Os Vossos anos são como um só dia, e o Vosso dia não se
repete de modo que possa chamar-se quotidiano , mas é um per ¬

pétuo hoje, porque este Vosso hoje não se afasta do amanhã, nem
sucede ao ontem. O vosso hoje é a eternidade. 5

O Iluminismo, de uma certa maneira, não se insurge contra essa


linearidade do tempo orientada pelo amanhã, ainda que n ão voltada
ao porvir eterno como nos crist ã os. Mas també m o movimento das
luzes aposta no presente melhor que o passado e no futuro melhor que
o presente. A linearidade do tempo faz pressupor ainda, no pensa¬
mento iluminista, a superaçã o do problema da religi ão, como forma
de cumprir o progresso natural da humanidade. Mas não é a negação
do sentido do tempo que está em causa no Iluminismo: ele mantém a
estrutura judaico -cristã , apenas elimina seu conte údo e seus mé todos .

A estrutura linear do tempo, assim, apresenta ao menos duas gran ¬

des variantes de uma mesma visão. Para a variante cristã, a esperan ça se


dará pela promessa, pelo an úncio, pela revelação. O futuro desnudo
pelo an ú ncio revela o sentido do presente. J á a variante iluminista olha o
passado como constatação do progresso do hoje e induz a esperança no
futuro como decorrência. A esperança iluminista, assim, é indutiva, ao
passo que a judaico-cristã é dedutiva, decorrente das promessas. Desta-

5 AGOSTINHO, Sto. Confissões. Petró polis, Vozes, 2001, p. 277.


r UTOPIA E DIREITO

ca-se disso, ¡mediatamente, o caráter voluntarista da esperan ça moder¬


na, ao contrário do caráter contemplativo da esperança judaico-cristã.
O voluntarismo da modernidade, que se revela crucial para as filosofias
política e jurídica do Iluminismo, também é o elemento estruturante do
arcabouço psicológico do tempo moderno. O amanhã virá pela vonta¬
de, porque por esse impulso o ontem se fez hoje.
A cada dia a razão penetra na França, tanto nas lojas dos co¬
merciantes como nas mansões dos senhores. Cumpre, pois,
cultivar os frutos dessa razão, tanto mais por ser impossível
impedi-los de nascer.6
Não se põe ainda claramente, no quadro do tempo iluminista, a
decadência dentro da civilização, como esta também n ão se punha no
pensamento teológico a partir do momento da vida expulsa do para í ¬

so. Todos os passos do tempo cristão, depois do pecado original, são


tempos felizes porque só fazem por se aproximar do tempo da reden ¬

ção. Não há possibilidade de regressão no tempo. O afastamento do


tempo e a sua decadência não são lógicos para a perspectiva cristã.

De algum modo, o Iluminismo adota por vontade - e talvez



n ão por decorrência lógica a linearidade impassível do tempo. O
sentido do futuro decorre do fato de ter sido o passado tamb ém
linear. Ora, sendo os mecanismos do universo mecânicos, a física
moderna impede o futuro de ser diverso do passado, devendo ser,
ent ão , sua repetição espl ê ndida. A imagem do relojoeiro perfeito ,
criador do perfeito relógio, o universo, faz ver, no movimento do
passado, a anunciação do infinito futuro. Se o mundo foi barbá rie
que se civilizou, a tendê ncia é a civilização total. O movimento do
tempo moderno é, para os iluministas, a inexorável saída de toda a
treva para a chegada a toda a luz.

6 VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância . São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 115.
AurssoN LEANDRO MASCARO

As esperanças medieval e moderna, sendo o resultado de um sentido


já dado, são a esperança no máximo reformista, mas não necessariamente
revolucionária. Não é necessária a revolução da história para a chegada do
amanhã. Ele virá pela promessa divina - e então a esperança judaico-cristã

cadenciada da humanidade, repetindo uma marcha inexorável do passa



não será nem sequer reformista, será só conservadora ou virá pela ação
¬

do ao futuro - e então a ação iluminista, moderna, será reformista, para


ser hoje melhor do que ontem, mas sem a necessidade de romper a mar ¬

cha. No direito, esta marcha linear - mas controlada - do reformismo


buscará o controle do próprio tempo jurídico, processualizando-o:
Vivia-se, assim, numa sociedade relativamente estável, com
valores estáveis capazes de controlar, no seu grau de abstração,
a pequena complexidade social . Ora, as crises que culmina ¬

ram na Revolução Francesa acabaram por inverter esta posi¬


ção. Numa sociedade tornada complexa, formas difusas de
controle são substituídas por instrumentos de atuação mais
r ápida e efetiva. [...] Com isto, também, há uma inversão na
relação mudança/ permanência. O Direito positivo institu¬
cionaliza a mudan ça, que passa a ser superior à permanê ncia,
e as penadas do legislador começam a produzir códigos e re¬
gulamentos que, posteriormente, serão revogados e de novo
restabelecidos, num processo sem fim.7
Os primeiros abalos na linearidade do tempo virão somente após a
filosofia do Iluminismo. Até então, as disputas entre conservadores cris ¬

tãos e progressistas iluministas eram de forma e conte údo, mas nunca de


fundo. Somente a inauguração do conceito filosófico da História, a par ¬

tir de Hegel, trará impasse estrutural ao jogo filosófico alicerçado por


séculos judaico-cristão-iluministas. O tempo hegeliano - e marxista -
impõe outras tarefas ao sentido do progresso e da história.

7 .
FCRRAZ JR , Tercio Sampaio. Função Social da Dogmática lurídica. Sao Paulo, Max Limonad,
1998, p . 193 .
UTOPIA E DIREITO

Lateralmente, é preciso ressaltar, o pró prio auge da modernidade


produziu , além daquela de Hegel e Marx, outra aguda tensão na
linearidade do tempo, que, de modo distinto, seria um reclame filosó ¬

fico muito próximo do tempo grego, da circularidade pagã. Nietzsche,


Spengler e Heidegger hão de acentuar - contra qualquer utopia do
amanh ã melhor lastreada no progresso - o presente como sendo a
esperan ça que irá se esgotar em si mesma, sem portas abertas ao hipo¬
t é tico futuro. Passado e presente se fundiriam, entã o , num futuro que
é sempre o retorno.8
Confrontados com tal destino, uma só concepção da vida é dig¬
na de nós, aquela que já foi designada por “ Escolha de Aquiles” :
mais vale uma vida breve, plena de ação e brilho, que uma vida
longa mas vazia. O perigo é tão grande, para cada indivíduo,
para cada classe, para cada povo, que tentar ocultá-lo é deplorá ¬

vel. O tempo não pode deter-se; não há retrocessos prudentes,


nem ren ú ncias cautelosas. Só os sonhadores poder ão acreditar
em tais saídas. O otimismo é cobardia . Nascidos nesta época,
temos de percorrer at é o final, mesmo que violentamente, o
caminho que nos está traçado. N ão existe alternativa. O nosso
dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto
já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi en ¬

contrado diante de uma porta em Pompéia, morto por se terem


esquecido, ao estalar a erupção vulcâ nica, de lhe ordenarem a
retirada. Isso é nobreza, isso é ter raça. Esse honroso final é a
ú nica coisa de que o homem nunca poderá ser privado.9

8 "A partir do sé culo XVII em diante, o linearismo e a concepçã o progressista da histó ria afirmam -
se cada vez mais, colocando a fé numa linha de progresso infinito, uma fé que já havia sido
proclamada por Leibniz, predominante no século do 'iluminismo', e popularizada no século
XIX pelo triunfo das ideias dos evolucionistas. Temos de esperar até o nosso próprio século para
vero começo de determinadas rea ções contra esse linearismo histórico, e um certo reavivamento
do interesse na teoria dos ciclos; é assim que, na economia pol í tica , estamos sendo testemunhas
da reabilitaçã o da id éia de ciclo, flutuaçã o, oscilação peri ódica; que, na filosofia , o mito do
eterno retorno é reavivado por Nietzsche; ou que, na filosofia da histó ria, um Spengler ou um
Toynbee manifestam preocupaçã o com o problema da periodicidade". EUADE, op. cit., p. 126.
9 SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica . Lisboa , Guimar ães Editores, 1993, p. 119.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

As pesadas palavras de Spengler são contundentes acerca desse


reverso do tempo da modernidade. H á uma sombra do ontem como
amanhã em Spengler que animará, potencialmente, até mesmo Cari
Schmitt — ambos muito próximos do nazismo , a quem posterior¬

mente Bloch, campeão da esperan ça e dos sonhos, dedicará a estes
palavras de embate político-filosófico duras e virulentas.

DAS ESPERANçAS DA MODERNIDADE

O Iluminismo é a esperan ça na luz do futuro com os olhos volta¬


dos à nega ção das trevas do passado. Seu efeito libertá rio é espetacu ¬

lar: o novo amanhã será, ao mesmo tempo, o escombro do ontem.


Libertar - destruir - e construir são as duas faces da moeda. Um gênio
da filosofia prá tica e popular, como Voltaire, talvez mais tenha se dedi¬
cado a dissecar as idiossincrasias da religião do que pregar a toler ância.
O não, em muitos momentos, ocupa mais espaço que o sim na filosofia
moderna. A luz resulta da ojeriza da sombra.
De qualquer modo, n ão e sim apontam para além, e, neste senti ¬

do, a filosofia moderna, assim como o Iluminismo de modo geral, são


progressistas. Misturam-se, nesta esperan ça no amanhã, ao mesmo tem¬
po, a novidade do nunca pensado - a afirmação da tolerância, dos
direitos - e a revolta contra o já dado - o absolutismo, as trevas do
saber. Neste ponto, o Iluminismo do século XVIII olha adiantè7 tãl
qual a filosofia que despontou no século XIX com Marx. Tal qual o
reformismo iluminista, o revolucionarismo também aponta ao novo,
ainda que, para a revolução, o novo pareça ser o inexistente até ent ão
e, para o reformismo, pareça ser a mudança do já existente. O que os
unifica é o futuro reinterpretando a história.
A modernidade, portanto, não est á separada da moderniza¬
ção, o que já era o caso na filosofia do Iluminismo, mas ela se
UTOPIA E DIREITO

reveste de muito mais importância num século em que o pro ¬

gresso não é mais unicamente o das idéias, mas torna-se o das


formas de produção e de trabalho, onde a industrialização, a
urbanização e a extensão da administração p ú blica transtor ¬
nam a vida da maioria. O historicismo afirma que o funciona¬
mento interno de uma sociedade se explica pelo movimento
que a conduz à modernidade. Todo problema social, em últi ¬
ma an álise, é uma luta entre o passado e o futuro. O sentido
da história é ao mesmo tempo sua direção e sua significação,
porque a história tende para o triunfo da modernidade.10
De certo modo, se tratássemos de uma geografia política da filo ¬

sofia, o oposto absoluto do Iluminismo quanto ao progresso n ão é a


filosofia baseada na história, revolucionária, que perpassa o pensamento
de Hegel e principalmente o de Marx, porque ambos apontam para o
futuro també m. Os opostos absolutos do Iluminismo quanto a essa
geografia política serão, sim , o reacionarismo e o conservadorismo,
que até esse tempo se exprimiam religiosamente e, posteriormente,
passaram a ser um corpo de pensamento filosófico estruturado, arro ¬

gando a si um lugar na história.


Em um certo momento da passagem da Idade Moderna para a
Contemporâ nea, o Iluminismo e sua perspectiva liberal passaram a
congregar o espaço do conservadorismo, deixando ao religiosismo o
estigma de reacioná rio, ao lado daqueles que postulavam uma revolu¬
ção como volta ao passado. Mas, ainda neste momento em que o
Iluminismo passa a ocupar o espaço do institucionalismo liberal con¬
servador, ele manterá sua outra faceta, libertadora, como arma na mão
a favor da transformação. Daí poder-se dizer que há uma constante
face libertadora do Iluminismo até a atualidade, em que pese sua apa ¬

rente maior face conservadora.

10 .
TOURAINE, Ala í n. Crítica da Modernidade Petrópolis, Vozes, 2002, p. 71.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

A característica do Iluminismo na historia é a de um frescor ainda


não esgotado. As suas promessas não-cumpridas não parecem ser a rejei ¬

ção total dos seus próprios ideais. O marxismo , na cr ítica às classes que
empunharam esses ideais e na crítica aos seus métodos, parece ainda
respeitar um corpo m í nimo comum de aspirações e objetivos - a liber¬
dade e a igualdade exprimem , ao mesmo tempo, os sonhos anti-absolu ¬

tistas iluministas e os desejos igualitários marxistas. Ao n ão negar todo o


passado, o Iluminismo incorpora os eventuais tesouros do ontem em
busca do melhor do futuro. O marxismo, por sua vez, anuncia o cum ¬

primento de todos os ideais que o Iluminismo é incapaz de oferecer.


A trajet ó ria das esperan ças iluministas é radiante, mas, de certo
modo, fracassada. O estigma desse frescor juvenil derrotado se arrasta
junto às esperanças das Luzes: as brisas do novo foram perpassadas pelos
furacões revolucioná rios. Por isso, desde a dialética de Hegel, a ruptura
passou a ser a marca da esperança, tendo em vista que as brisas reformis¬
tas do Iluminismo não lograram refrescar e balan çar a humanidade como
pretendiam. Daí constatar-se que, em termos de intensidade e talvez de
paixão, o marxismo tenha encampado a tarefa de modelar os tempos
novos, tal qual Sartre já advertia nas suas conhecidas palavras ao dizer
que o marxismo é a fronteira ú ltima da filosofia.11 A for ça utó pica do
marxismo confirmou-se como a mais ampla; seus sonhos socialistas, mai ¬

ores e mais hercúleos que os liberais iluministas.

Comum ao marxismo e ao iluminismo, no entanto, é a esperança


fundada na razão. No caso do Iluminismo , é o progresso da razão o
pr óprio motor do progresso da história, como se fossem engrenagens
mecanicamente ligadas.

11 " Uma pretensa 'superação' do marxismo limitar-se-á, na pior das hipóteses, a um retorno ao pré-
marxismo e, na melhor, à redescoberta de um pensamento já contido na filosofia que se acreditou
superar". SARTRE, Jean-Paul. Cr
ítica da razão dialética. Rio de Janeiro, DP&A, 2002, p. 21.
UTOPIA E DIREITO

Assim , a racionaliza ção , componente indispens á vel da


modernidade , se torna alé m disso um mecanismo espont âneo
e necess á rio de moderniza çã o . A id éia ocidental de
modernidade confunde-se com uma concepção puramente
endógena da modernização. Esta não é a obra de um d éspota
esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um
grupo dirigente; ela é a obra da pr ó pria razão e, portanto,
principalmente da ciência, da tecnologia e da educação, e as
pol íticas sociais de modernizaçã o n ã o devem ter outro objeti ¬
vo que o de desembara çar o caminho da razã o suprimindo as
regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al¬
fandegá rias, criando a segurança e a previsibilidade de que o
empresário necessita e formando administradores e operado¬
res competentes e conscienciosos. 12

Ao iluminismo , a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é


suficiente em si mesma para a consecu ção da libertação. No marxis¬
mo, trata-se da razão crítica, que reconhece seus pró prios limites mas
que, ainda assim , só conhece uma dial ética que seja um esclarecimen ¬
to racional para chegar à praxis da transforma çã o. Isso porque, para o
marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma ¬

ção é esperançosa.

A TRANSFORMAÇÃO É MORAL
O processo de dessacralização do mundo moderno representa a
utopia do céu na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em
relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen ¬
te moral e religioso embalando movimentos pol íticos, econ ó micos e so ¬

ciais. Enquanto a transformação contempor â nea apregoa um ideário


praticamente laico e t écnico, afastado em grande parte do humanismo,

12 TOURAINE, op. .
C/í , p . 19 .
UTOPIA E DIREITO

Assim , a racionaliza çã o , componente indispens á vel da


modernidade, se torna além disso um mecanismo espontâ neo
e necess á rio de moderniza çã o , A id é ia ocidental de
modernidade confunde-se com uma concepção puramente
endógena da modernização. Esta não é a obra de um déspota
esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um
grupo dirigente; ela é a obra da pr ó pria razão e, portanto,
principalmente da ciê ncia , da tecnologia e da educação, e as
pol íticas sociais de modernização não devem ter outro objeti¬

vo que o de desembaraçar o caminho da razã o suprimindo as


regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al
¬

fandegá rias, criando a segurança e a previsibilidade de que o


empresá rio necessita e formando administradores e operado¬
res competentes e conscienciosos.12

Ao iluminismo, a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é


suficiente em si mesma para a consecução da libertação. No marxis ¬

mo, trata-se da razão cr ítica, que reconhece seus pr ó prios limites mas
que, ainda assim , só conhece uma dialé tica que seja um esclarecimen ¬

to racional para chegar à praxis da transformação. Isso porque, para o


marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma¬
ção é esperan çosa.

A TRANSFORMAÇÃO É MORAL

O processo de dessacralizaçao do mundo moderno representa a


utopia do cé u na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em
relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen ¬

te moral e religioso embalando movimentos políticos, econó micos e so ¬

ciais. Enquanto a transformação contempor ânea apregoa um ideá rio


praticamente laico e técnico, afastado em grande parte do humanismo,

12 TOURAINE, op. cit . , p . 19 .


ALYSSON LEANDRO MASCARO

a modernidade guardará uma tensão entre o religioso e o moral, entre


a
eternidade da velha religião e a universalidade da nova moral.
A nova moral moderna é a esperança de um novo homem. O
caminho da transformação moderna é pelo indivíduo, daí seu cará ter
essencialmente moral. A pedagogia do homem novo, a ortopedia do
andar ereto, a libertação da moral opressora, tudo isso representa uma
alavanca ao novo a partir do indivíduo. É preciso localizar a transfor ¬

mação, então, no conhecimento, em sua forma e conte údo. É


preciso
situá-la no espa ço entre a iconoclastia e a contemplação. A venera ção
da verdade é a arma da libertação e, no fundo, é a pr ó pria libertação.
A constru ção da nova moral agrupa a mais vasta rede da
intelectualidade iluminista, desde homens que estão no limite entre a
teologia antiga e a ruptura total, como Espinosa, até espíritos já bas ¬

tante libertos do passado religioso, como Diderot. O Ilumin


ismo in ¬

glês, que passa por Locke, teve na filosofia moral um de seus mais
importantes momentos. Kant, na Alemanha, devia grande parte de
sua visão moral aos ingleses.
Na Fran ça, a nova moral iluminista revelou-se grandemente
contestadora, de tal modo que nem o século XIX logrou conseguir
repetir a radicalidade que anteriormente foi apregoada. Os radicais
que tratam da teologia no século XIX, a partir de Feuerbach, têm pela
religiã o uma postura filosófica mais compreensiva que refutadora. O
Iluminismo, no entanto, n ão se preocupa em enterrar o passado em
sua sepultura, mas sim em matá-lo.

A nova moral iluminista é de esperança, no entanto ela se sobre¬


põe a uma velha moral que também argüía a esperan ça. A razão cristã
medieval também era uma moral que apontava para a felicidade, ain ¬
da que submetida à divisão em dois reinos, dos quais o último e afasta¬
do da vida terrena era o limiar do regozijo. Para subverter a escatologia
UTOPIA E DIREITO

da felicidade futura, o Iluminismo anuncia ajglicidadc presente. No


fundo, há na passagem da filosofia medieval para a iluminista uma
atualização temporal: o tempo da esperan ça vai-se aproximando. O
cará ter messi â nico do passado judaico-cristão continuar á subjacente,
de certo modo , no arcabouço das esperan ças modernas.
Existe, pois, para o homem mortal , al é m da realiza çã o
messi â nica de seus ideais básicos, num tempo extremamente
afastado, uma outra forma de realização, à qual o “ Pregador ”
faz igualmente alusão com as palavras ( Ecl 3,13) : “ Tamb é m,
que todo homem coma e beba e reconheça o bem em todo o
seu trabalho, é um dom de Deus” . [...] Chegamos, dessa for ¬

ma , a uma realiza ção bem diferente que consiste na integra ção


da vida cotidiana nos ensinamentos do passado, numa “ Lei ”
válida em todos os tempos. [...] No entanto deve ser lembra ¬

do sempre que o tempo sagrado n ão é, propriamente, um


tempo fenom é nico, mas um tempo revivido, contendo um
conjunto de modelos do que aconteceu no passado, capazes
de orientar e dar sentido à nossa vida presente.13

O Iluminismo n ão rompe, em relação à velha teologia, com o que


diz respeito à questão de fundo da transformação individual como
premissa da transformação geral social. O Iluminismo substitui uma
moral velha por outra nova, mas, ainda assim, está trabalhando no
campo da moral: é preciso o homem novo para que então seja dado
um mundo novo. Neste sentido, o Iluminismo é herdeiro das estrutu ¬

ras gerais do humanismo teológico anterior. Sua ruptura se d á no tem ¬

po, ao trazer a esperan ça para mais próximo, e se dá no campo lógico ,


ao afastar a incompatibilidade racional dos dogmas e arcabouços teo¬
ló gicos da moral antiga. Essa linha reta de aproximação do futuro com
o presente se verifica, pois, desde os cristãos medievais, passando pelo

13 REHFELD, Walter. Tempo e Religião, S ão Paulo, Perspectiva , 1988, p. 123.


gj

ALYSSON LEANDRO MASCARO

Iluminismo , at é o marxismo . Tal escatologia será a marca de toda a


trajetória do progresso que constrói a modernidade e o ocidente. 1'*
A ruptura iluminista, assim, é um pedaço de uma total ruptura
com o passado , mas n ão toda a rupturac Em termos de esperança ,
rompe com o passado no local e no tempo: a felicidade será na terra e
poderá ser para o hoje. Mas, em termos de estrutura e de ação, o
Iluminismo está preso ao passado: a felicidade é individual e reformis¬
ta. A moral revolucionária, que se pode vislumbrar no século XIX no
marxismo, ser á neste sentido uma total ruptura: no tempo e no espaço
( na terra hoje), assim como na ação (a pr áxis social) .
^
DA SECULARIZAçãO à REVOLUçãO
Pode-se perceber, na evolução política da Idade Moderna, um
processo crescente de secularização que redunda, no campo do direi¬
to, na constru ção de um novo modelo de saber jurídico, afastado da
metafísica teológica e dos princípios da prudência antiga, que anima ¬

vam o direito romano e mesmo o pensamento jusfilosófico grego.

A separação iluminista entre metafísica moral e direito é a mais


acabada vitória da razão livre contra o dogma, mas não é, entretanto,
todo o processo. O Iluminismo fere de morte um monstro que estava
enjaulado , mas n ão foi o Iluminismo o responsável pela caça e pelo
confmamento. O movimento dos direitos subjetivos, que estão na base

14 Voegeiin, opondo-se em bloco ao que reputa gnose da modernidade, identifica os vastos


tra ços comuns dessa escatologia: "É essencial a n í tida compreensã o de que essas experiê ncias
constituem o n ú cleo ativo da escatologia imanentista , pois de outro modo se tolda a lógica
interna do desenvolvimento pol ítico ocidental a partir do imanentismo medieval até chegar
ao marxismo, passando pelo humanismo , iluminismo, progressivismo, liberalismo e positivismo.
Os s ímbolos intelectuais elaborados pelos vá rios tipos de imanentistas freqiientemente são
conflitantes, assim como os v á rios tipos de gn ósticos se opõem uns aos outros. É f á cil
imaginar a indigna çã o de um liberai humanista se lhe dissermos que seu particular de
imanentismo é um passo na estrada que leva ao marxismo". VOECELIN, Eric. A nova ciência da
política . Bras ília , UnB, 1982, p. 95 .
UTOPIA E DIREITO

da dinâmica capitalista e na base da Reforma Religiosa, é um compo¬


nente da segregação do teol ógico e do laico tão forte quanto o
Iluminismo. As luzes iluministas matam o teológico, porque lhe ne¬
gam espaço, mas a pura dinâmica capitalista e a Reforma, no entanto,
foram o passo inicial que culminou na morte da teologia.
A idéia da individualidade que se assume portadora de direitos,

que é a necessária mónada da ação burguesa o portador de direitos
e deveres, livre para contratar -, é també m a idéia da individualidade
que cr ê independente do espa ço pol í tico externo. A recusa da
heteronomia é a descoberta da autonomia jurídica. O movimento,
aqui, é o inverso do que tradicionalmente se calcula. Não são a Refor¬
ma e o capitalismo que criam o espaço estatal, a soberania, a ação laica.
Pelo contrário, a Reforma e o capitalismo criam o espaço individual,
reafirmam o teológico, demarcando-lhe ent ão um espaço legítimo: a
fronteira entre o pol ítico e o teológico não nega este último, antes o
consolida e o torna inatingível pelo primeiro. ' ' o v - v vi*

A secularização, assim, é a legitimação do espaço espiritual è, nes¬


te sentido , faz surgir a legitimação do espaço político por oposição. Os
Iluminismos francês e inglês, quando se insurgem contra a religião e a ,
teologia, têm uma raiz diversa dos primeiros movimentos que levaram
ao direito subjetivo. Enquanto a Reforma levou à independê ncia dos
EUA e à legitima ção do espaço do privado em face do político, a Re¬
volução Francesa e o Iluminismo radical levaram à morte da teologia
em face da Razão. Neste sentido é que se pode dizer que a Reforma
tem uma razão ainda conservadora, porque é a última tentativa de
salvaguardar a teologia, enquanto o Iluminismo radical tem uma ra ¬

zão reformista quase revolucioná ria, porque quer destruir a legitimi ¬

dade do teológico para fazer surgir em seu lugar a secularização total.


Todo este encadeamento parece demonstrar que a idéia dos
direitos fundamentais do indivíduo não é uma idéia de ori-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

gem política mas uma idéia de origem religiosa: “ o que se


acreditava ser urna obra da Revolução é, na realidade, um pro ¬

duto da Reforma” . Seu primeiro apóstolo n ão foi Lafayette ,


mas Roger Williams, cujo nome é ainda proferido pelos ame ¬
ricanos com a maior veneração; este apóstolo, levado pelo en ¬
tusiasmo religioso, emigrou na solidão para ali fundar “ um
impé rio baseado na liberdade religiosa” .15
No balanço entre a saída do mundo medieval e a chegada ao
mundo contemporâ neo, a modernidade se apresenta, à primeira vis¬
ta, como um só movimento de consolidaçã o do indivíduo e da sobera ¬
nia. Mas este movimento é d ú plice: trata-se de fazer surgir o Estado
por contraste com a religião, ou ent ão de fazer surgir a pol ítica por
negação total da teologia. A tolerância de Calvino e Lutero era pela
primeira dessas vias. A tolerâ ncia do Iluminismo de Voltaire era da
última cepa.
A partir do fim do século XVIII , a secularização transpôs os
confins juscan ô nicos e juspublicistas para transformar se em -
categoria geral indissoluvelmente coligada com o novo con ¬

ceito unit á rio de tempo histórico. Deste enlace (em meio ao


qual a secularização se encontra cercada por outras coordena ¬
das simbólicas da condição moderna: emancipação e progres¬
so , liberação e revolução ) produzem -se radicais redefini ções e
deslocamentos de significado do par espiritual / mundano.16
Baseada na inspiração das ciências naturais, a filosofia do direito
há de se encaminhar na construção de um modelo estável , repet ível
abrindo-se, assim , o caminho da técnica jur ídica - a fim de que o

direito n ão seja obra do acaso das cren ças pessoais ou das revelações

15 SOION, Ari Marcelo. "A Pol ê mica acerca da origem dos Direitos Fundamentais: do Contrato
Social à Declaração americana ". In Revista da Pós-Graduaçâo da Faculdade de Direito da USP,
vol . 4. Porto Alegre, S íntese, 2002 , p . 135.
16 MARKAMAO, Giacomo. Céu e Terra. Genealogia da Secularização. Sã o Paulo, Ed . Unesp,
1997, p . 23.
UTOPíA E DIREITO

sagradas, mas sim da razão. O jusnaturalismo moderno arroga para si


a razão como secularização de toda a metafísica jur ídica até então exis ¬

tente. Assim exprime Tercio Sampaio Ferraz Jr.:

O rompimento com a prudência antiga é claro . Enquanto esta


se voltava para a forma ção do car á ter, tendo, na teoria jur ídica,
um sentido mais pedagógico, a sistem á tica moderna terá um
sentido mais técnico, preocupando-se com a feitura de obras e
o domínio virtuoso (Maquiavel) de tarefas objetivadas (por exem ¬
V: .
y,C!
%

plo, como fundar e garantir, juridicamente, a paz entre os po¬


vos). A teoria jurídica jusnaturalista, assim, constró i uma rela¬
ção entre a teoria e a pr áxis, segundo o modelo da mecâ nica íi ; yP '
' '
[

cl ássica. A reconstrução racional do direito é uma espécie de


física geral da socialização. Assim, a teoria fornece, pelo conhe¬ í r ’’

cimento das essencial idades da natureza humana (no “ estado ' f f .


de natureza” ) , as implicações institucionais a partir das quais é 'T '

possível uma expectativa controlável das reações humanas e a


instauração de uma convivência ordenada.17
Pode-se dizer que tal processo de secularização jurídica revela a
atualização de uma utopia jur ídica: ao tomar nas mãos do indivíduo
em sociedade o poder de dizer suas pr ó prias leis e de se julgar, a huma ¬

nidade traz para o hoje a escatologia do amanhã justo. O caminho


para a revolução estava aberto pelo próprio Iluminismo: é preciso rom¬
per com as amarras antigas para instaurar o novo: “ E o direito, que
libera e institui, contribuir á para a realização deste programa, conju ¬

gando a emancipação dos homens com o estabelecimento da lei” .18

17 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduçã o ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação.
S ão Paulo, Atlas, 2003, p. 71 .
18 OST, Fran çois. O tempo do direito . Bauru , Edusc, 2005, p. 193: " Ê bem em direção a um para íso
terrestre que colocamos o pé na estrada , e a promessa da felicidade - uma id é ia nova ela também
- está no fim do caminho. Um caminho aclarado pelas luzes da razão e aberto pela energia
formidável de id é ias-forças como liberdade, igualdade e, talvez mesmo, fraternidade. Sem
d ú vida , ainda estamos longe do cômputo final, mas a humanidade é perfectível logo, a -
pedagogia estará inscrita no centro do projeto prometêico. Desde o in ício, uma certeza: a sorte
das gerações futuras será mais invejável do que a das gerações presentes".
AI.YSSON LEANDRO MASCARO

O marxismo, ao constatar as limita ções e os vícios da burguesia


no processo revolucion á rio iluminista, nada mais faz do que diminuir
ainda mais essa hipotética distância entre o cé u e a terra das esperan ¬
ças jurídicas. O justo estava na ordem do dia porque já era possível
transformar o hoje em amanh ã. Prossegue o imperativo da histó ria,
para frente e para o alto.
CAPíTULO 2

MARX, TRANSFORMAçãO E UTOPIA

Na historia do pensamento político e filosófico contemporáneo, a


obra de Marx representa uma referência ao mesmo tempo crucial mas
potencialmente plurívoca quando trata da utopia. Marx pode ser to¬
mado como o mais alto expoente da utopia da transformação humana
no mundo contemporâ neo e também como o maior negad
or da uto¬
pia, podendo ser ambas essas visões frutos de elogios à sua obra. Não
só os pensadores do marxismo divergem a respeito dos seus encam ¬
i
nhamentos da questão utópica, mas também divergem da leitura a
respeito do tema no próprio Marx.
É conhecida a tentativa de distanciamento de Marx em rela o
çã
ao socialismo utópico, o que o tornaria, por oposição, fundador
do
socialismo dito científico. No entanto, n ão é pela rotulação que se re¬
solve a questão da utopia em Marx. Pelo contrário, a obra de Marx é
permeada de referê ncias utó picas, e o devir da transformação históri¬
ca e social habilita que se o entenda ainda como um socialista utó
pico,
mas aviado numa ciência da transformação.
A evolu ção hist ó rica do pensamento de Marx permite essa
duplicidade de leituras em relação à utopia, ora a negando, ora sendo
seu artífice. A filosofia de Marx transparece ser um projeto contradi¬
-
tório e de possibilidades m ú ltiplas. Nela, pode se ver, ao mesmo tem ¬

po , a esperan ça nas leis econ ó micas que conduziriam o mundo


inexoravelmente ao socialismo ao lado de páginas convocando o pro ¬

letariado à luta revolucion á ria, sem a qual n ão se daria a superação do


AJLYSSON LEANDRO MASCARO

capitalismo. Esta duplicidade de Marx é constante, perpassando sua


obra de uma tensão muito fina. Por toda sua obra passa uma dificul¬
dade profunda , que é a de se divisar um cerne ú nico para o entendi ¬

mento da grande quest ão da transforma çã o do capitalismo.

Surgindo do imo de todas as ambig üidades de Marx, no entanto,


est á um horizonte profundo e singular, que talvez seja o unificador
maior de seu pensamento e tá bua comum de todos os marxismos, por
mais variados que sejam: o marxismo é uma filosofia da transformação,
do an ú ncio do amanh ã da libertação. Seja por causas econó micas ne¬

cessá rias - Engels, dentre tantos mais , seja por razão da luta - Rosa
Luxemburgo e outros tantos ainda -, o marxismo é uma filosofia que
se vale do passado e do presente para vislumbrar o futuro. Embora as
correntes de interpretação de Marx queiram inscrevê-lo ou afastá-lo
da questão da utopia, é inegável e comum a todas as vertentes do mar ¬
xismo o fato de que este aponta para o futuro , para a transformação
do presente em um amanhã de superação do capital.19 E, assim sen ¬
do, se ainda se quiser em algum momento imputar a Marx alguma
espécie de messianismo, ela é necessariamente de pés no chão e calca ¬

da na práxis ou, dizendo de outra forma, uma espécie de utopia sem


ser jamais idealista nem, ironicamente, utó pica. Nisto convergem to¬
das as interpretações sobre Marx.

UMA DIVISA FUNDAMENTAL: A TRANSFORMAçãO


Gramsci tratava, nos Cadernos do Cárcere , o marxismo como filo¬
sofia da pr áxis. O fundamento de sua interpretação de Marx residia,
justamente, na tentativa de escapar das cis ões hermen ê uticas dos

19 "O ímpeto utó pico que anima a teoria de Marx constitui, para o melhor e para o pior, uma
dimensão necessá ria de seu desenvolvimento". MALER, Henri. Congédier L' Utopie ? L' utopie
selon Karl Marx. Paris, L' Harmattan , 1994 , p. 12 .
UTOPíA E DíREITO

continuadores do marxismo, que já desde o final do século opunham


reformistas e revolucion ários, revolucionarios intemacionalistas e sovi ¬

éticos, democratas e centralistas, dentre outros mais. O conceito de


praxis valorizado por Gramsci é justamente a ruptura de Marx com
toda a filosofia alemã, idealista, que se bastava em interpretar o mun ¬

do. Tal novidade se exprime de modo explícito ñ as Teses Sobre Feuerbach,


em especial ñ as Teses I, II e VIII . Nesta última, diz Marx: “ Toda vida
social é essencialmente prática. Todos os misté rios que orientam a teo¬
ria para o misticismo encontram sua solução racional na prá tica hu ¬

mana e na compreensão desta prática” .20

No entanto, o ápice da diferenciação entre o velho idealismo como


imobilismo da interpreta ção e a pr áxis como atividade de interpreta ¬

ção revolucion ária ser á o encaminhamento da filosofia para a trans¬


formação. Por isso o conhecido fecho das Teses sobre Feuerbach é ex ¬

plícito: “ Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma dife ¬

rente; o que importa é mudá-b ” .21 De certo modo , Marx sela um


destino inarredável à atividade filosófica e a seu pensamento geral: a
filosofia deve servir à transformação.
A partir da divisa fundamental é que se dá in ício ao projeto mar ¬

xista de compreensão do capitalismo e das formas de sua superação. É


desta maneira que se poder á aceitar, posteriormente, que um pensa¬
mento extremamente calcado na leitura de O Capital, como o de
Pachukanis, seja tão marxista quanto a crítica da m úsica de Theodor
Adorno ou o onírico O Princípio Esperança de Ernst Bloch. Todos se
ocupam da sociedade dominada, capitalista, e das possibilidades de
sua transformação, e nisto reside o cerne do pensamento de Marx.

20 MARX. "Teses Sobre Feuerbach". In LABICA, Georges. As 'Teses sobre Feuerbach' de Karl Marx.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 34.
21 Ibid., p. 35.
AIYSSON LEANDRO MASCARO

QUE MARXISMO PARA QUAL UTOPIA?

A histó ria da interpretação da transformação por parte dos mar ¬

xistas revela compreensõ es distintas do processo revolucion á rio, dos


passos, tá ticas e alternativas do marxismo. Os intérpretes de Marx po ¬

dem ser divididos em vá rios r ó tulos, dicotomias, correntes. É possível,


por exemplo, opor a uma visão mecanicista de Marx uma visão mais
acurada, filosófica, essencialmente dialética. No que tange ao proble¬
ma da interpretação da utopia em Marx, bem como a outras questões
mais, podem ser vistas duas grandes correntes filosóficas cujas respos¬
tas encaminham posi ções específicas dentro do quadro do marxismo.
A primeira delas é a que enxerga em Marx um pensador que acumula
o pensamento aberto da juventude com o pensamento aprofundado
da maturidade, com uma continuidade de propósitos desde o começo
at é o final de sua obra. A segunda delas é a que compreende o pensa ¬

mento de Marx a partir de uma cisã o entre suas reflexões do in ício de


suas obras - o dito jovem Marx - e sua obra de maturidade, na qual,
ent ão, estaria o cerne do pr ó prio marxismo . Para esta última vis ão, o
jovem Marx ainda não é marxista.

Tais metodologias de compreensão do pensamento de Marx


resultam em dois modos distintos de interpretar a utopia marxista.
No caso dos que consideram o pensamento marxista um processo
continuado desde o in ício at é o final de sua obra , há uma abertura
para um grande humanismo que resultar á numa aceitação da uto ¬

pia como horizonte do futuro socialista apregoado por Marx j á nas


suas obras de juventude.
1
A obra de Marx n ão est á fundada sobre uma “ dualidade” de
que o autor, por falta de rigor ou por confusão inconsciente,
n ão teria percebido; pelo contr ário, ela tende para um monismo
rigoroso no qual fatos e valores não est ão “ misturados” , mas
organicamente ligados ao interior de um ú nico movimento
UTOPIA E DIREITO

de pensamento, de uma “ ci ê ncia crítica” , em que a explicação


e a crítica do real estão dialeticamente integradas. 22
j

Na segunda vertente, que cinde o jovem Marx do pensador da


maturidade, o tema da utopia será mais estrito. Abandonando qualquer
possibilidade de compreensão alargada do tema da transformação da
história, esta visão enxergará na utopia um produto derivado e tangencial
de um dado estrutural, que é a pró pria transformação das relações pro ¬

dutivas. Dado que a revolução que encaminha ao socialismo é resultante


da luta de classes, a utopia somente poderá ser entendida como um
espectro ideológico estruturalmente vinculado à própria luta.

No per íodo de A ideologia alemã Marx estabelece o princ í pio


de determinação imediata entre a base económica e a superes ¬

trutura, resultando disso que esta última aparece como uma


“ emanação direta” das relações econ ó micas. Ele estabelece tam ¬

bém o princí pio do primado das forças produtivas sobre as


relações de produ ção, segundo o qual são as for ças produtivas
que “ comandam” o desenvolvimento histó rico.
Pois bem , essas teses n ão encontram sustentação quando Marx
realiza a an álise científica do modo de produção capitalista.
Embora a antiga concepção subsista e continue a atravessar a
trama cient ífica que Marx tece, é justo considerar que uma
retificação em sua concepção do materialismo histó rico está se

operando particularmente em O Capital.10
Não se pode dizer, contudo , que haja uma mera oposi çã o entre
aqueles que, por serem humanistas, divisam uma utopia alargada ao
marxismo e aqueles que, por serem estruturalistas, rejeitam a aborda ¬

gem do tema da utopia. Isto porque Ernst Bloch , que é quem, dentre
os marxistas, mais se dedica ao aprofundamento do tema, n ão pode

22 LOWY, Michael . A teoria da revolução no ¡ovem Marx. Petró polis, Vozes, 2002, p. 38.
23 NAV éS, M á rcio Bilharinho. Marx . Ciência e Revoluçã o. S ã o Paulo, Moderna / Unicamp ,
2000 , p . 79 .
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ser encaixado facilmente em nenhuma dessas divisõ es estanques do


marxismo e, ao mesmo tempo em que alarga a compreensão da trans¬
formação social, buscando sujeitos revolucioná rios e inspirações até
mesmo na religião e nas heran ças dos ideais jurídicos, também é bas¬
tante estrito e cô nscio de que a concretude da utopia somente se d á
com o socialismo que rompa os vínculos estruturais da sociedade capi¬
talista. Há um possível humanismo dentro de uma visão estrutural,
bem como o humanismo marxista não é somente um vago comboio
de idéias m últiplas e incongruentes.

A divisã o de interpreta çõ es entre um marxismo “ aberto” ,


humanista, e um estrito , vinculado às estruturas econô mico- produti-
vas, embora de car á ter didático, revela os horizontes da utopia jurídi ¬

ca do marxismo. No humanismo que junta, na mesma trilha, o jovem


Marx e o pensador maduro,24 é possível que se compreenda o proces¬
so de transformação social como uma evolução que possa se valer até
mesmo das instituiçõ es político- jur ídicas burguesas para sua própria
destrui ção. A social-democracia estaria nesta vertente. Surpreenden ¬
temente, o stalinismo perfilha esta mesma perspectiva, na medida em
que há de considerar o uso do Estado e da ditadura do proletariado
um tema bastante marginal no pr ó prio Marx - como elementos de

consecução da luta socialista.

Na segunda estrutural , a revolu ção em Marx é vista


vertente,
como ruptura, isto é , como superação das condi çõ es econ ó micas,
políticas e sociais capitalistas. Representa dizer, a partir desta pers-

24 "Gramsci definiu , numa f ó rmula muito feliz, o marxismo como um historicismo absoluto e um
humanismo absoluto. A feitura de O Capital - com a condiçã o, bem entendido, de se ler o que
está escrito nele, e n ão um suposto 'discurso silencioso', ' reconstitu ído', 'apesar da letra de
Marx' - confirma inteiramente essa defini çã o. [...) Parece- nos que os principais momentos do
humanismo em O Capital são: a ) o desvendamento das relações entre os homens atrá s das
categorias reificadas da economia capitalista; b) a cr ítica da 'desumanidade' do capitalismo;
c ) o socialismo como possibilidade objetiva de uma sociedade onde a produ çã o é racional ¬
mente controlada pelos homens". L õwv, Michael . M étodo dialético e teoria política . Rio de
Janeiro, Paz e Terra , 1978, pp. 62 e 63.
UTOPIA E DIREITO

pectiva, que o socialismo não arrasta consigo as instituições que são


pr ó prias ao capitalismo e que, portanto, n ão se d á um processo con ¬
tinuado e indefinido de transformação do sistema capitalismo a par ¬

tir de si mesmo. Pelo contr á rio , tal visã o estrutural acentua a luta de
classes como elemento emancipador e revolucion á rio, que suprima
o Estado e suas instituições . 25

O marxismo jur ídico desde cedo se dividiu entre aqueles que


perfilhavam a alternativa institucional - os que concebiam um socia ¬

lismo de Estado, baseado no direito - e aqueles que lan çavam mão de


uma visão socialista como a negação do capitalismo e de todas suas
institui ções, inclusive as jur ídicas. Na União Soviética, este debate ocu ¬
pou o centro das reflexões jur ídicas nas d écadas de 1920 e 1930, opon ¬

do Stutchka e, principalmente, Vichinscki, de um lado , a Pachukanis,


de outro, tendo os dois primeiros o apoio do stalinismo, porque apre ¬

goavam uma fun ção jur ídica revolucion á ria, ao mesmo tempo em que
defendiam a existência de um Estado socialista e, portanto, davam
margem à ditadura de Stalin .
Logo se percebe, desta divisão, que o tema da utopia no marxis ¬

mo n ão comporta uma dicotomia clara. Pachukanis, que liderava uma


interpretação jurídica do marxismo muito próxima daquela exposta
por Marx em O Capital, apresentava um horizonte ut ó pico (e
“ humanista” ) bem mais largo que os stalinistas que defendiam o uso
do Estado e do direito. Bloch, o campeão do humanismo marxista,
que em Direito Natural e Dignidade Humana faz suas as visões jurídi-

25 ! "Isso significa que a ideologia prolet á ria n ão é o diretamente oposto, a inversão, o reverso da
’ ideologia burguesa, mas é uma ideologia totalmente diferente , que leva em si outros valores ,
que é crítica e revolucioná ria . Porque é , j á agora , apesar de todas as vicissitudes de sua hist ó ria ,
portadora desses valores, j á agora realizados nas organizações e nas pr á ticas de luta operá ria,
pelo que a ideologia proletá ria antecipa o que ser ão os aparelhos ideol ógicos do Estado da
transi ção socialista , adianta , pela mesma raz ão, a supressão do Estado e a supressão dos
aparelhos ideol ógicos de Estado no comunismo". AITHUSSER , Louis. Aparelhos ideológicos de
Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 128.
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cas de Pachukanis, é um defensor da utopia extrema do fim do Estado


e de qualquer forma de dominação institucional sem ser, no entanto,
urn estrito analista do Marx da maturidade contra o jovem Marx.

A TEORIA DA REVOLUÇÃO DE MARX


Há uma teoria da revolução em Marx que se gesta desde suas
primeiras obras e que se constitui no primeiro ponto para dentro e
depois da divisa fundamental da transformação - em que começam as

divisões e multiplicidades do marxismo.
Ñas obras finais da sua juventude, marcadamente na Ideologia Ale¬
mã, Marx já aponta para urna teoría revolucionaria de acento politico ¬

econ ó mico , fugindo de qualquer armadilha humanista de tipo


institucionalista-liberal. Marx, desde o inicio, afasta-se da compreensão da
revolução como mera alteração política e jurídica. No entanto, A Ideofogia
Alemã e as primeiras obras são fundadas numa expectativa de que as con ¬

tradições do capital levariam a oposição de classes a urna extrema tensão e


daí necessariamente à ruptura da dominação económica.
Nas obras de sua maturidade e, em especial, em O Capital, Marx
estabelece um outro nível de abordagem a respeito da relação entre
forças produtivas e relações de produção ( procedendo a uma retifica¬
ção, segundo as palavras de Naves). Ao invés de propor um procedi ¬

mento mecânico no qual a mudança dos meios de produ ção gera ne ¬

cessariamente a mudan ça do sistema econó mico, Marx propõe uma


dialética entre forças produtivas e relações de produção. As relações
de produção capitalistas geram forças produtivas específicas, e a tran ¬

sição ao socialismo é ao mesmo tempo a ruptura com as forças produ ¬

tivas capitalistas e sua relação de produção.26

26 Sobre as divergê ncias em rela ção à teoria da revolu ção no itinerá rio do pensamento de Marx,
UTOPIA E DIREITO

O papel das superestruturas, dentre as quais o direito, nesta pro¬


posta da an á lise marxista , é bastante importante. O direito não se presta
apenas como elemento que se reiteraria tanto no capitalismo quanto
em qualquer sociedade pós- revolucion á ria, de sorte que at é mesmo se
pudesse esbo çar algum socialismo jur ídico dentro do capitalismo. Pelo
contrá rio, o papel exercido pelo direito no capitalismo é vital, na me ¬

dida em que, por meio das categorias jur ídicas, do sujeito de direito e
do contrato, por exemplo, d á-se a própria estrutura ção do sistema.
Assim, as forças produtivas e a superestrutura, como o direito, hão de
se revelar necessá rias e dialéticas em face das relações de produ ção,
implicando-se mutuamente. A proposta de Pachukanis, de considerar
o fim do capitalismo o fim do direito, explica-se por essa vertente de
interpretação do marxismo , mais fiel a O Capital.
O resultado dessa visão dialé tica entre forças produtivas e rela¬
ções de produ ção é o extremo refinamento teórico da posi ção de Marx
na maturidade, em O Capital, tendo em vista que tal implica ção m ú ¬
tua abre campo à ação revolucion á ria, e n ã o ao mero mecanicismo da
evolução histórica. Numa visão mecanicista do pensamento de Marx,
poder-se-ia interpretar que o mero agravamento das contradi ções le ¬

vasse ao fim do capitalismo, por força de uma instabilidade inerente às


relações de exploração do capital. A perspectiva econ ó mica de Marx,
no entanto, se baseia em outros pressupostos e, nessa dialé tica, conduz
sua interpretação da revolução para os quadrantes da luta de classes.
Nesse ponto, revela -se um importante humanismo, de n ível profun ¬

do, na perspectiva pol ítica, econ ó mica e filosófica de Marx: n ão se

Carlos Nelson Coutinho enxerga duas poss íveis visões paradigm á ticas, uma mais apropriada
ao jovem Marx, outra ao Marx maduro, respectivamente: a revolu ção como ruptura imediata
ou como um processo cont ínuo, ligando-se ao problema da tomada do poder do Estado e de
seu perecimento. "A depender do modo ' restrito' ou 'amplo' de conceber o Estado, resulta -
na histó ria da teoria pol ítica marxista a elaboração de dois diferentes paradigmas de revolu ¬
-

ção socialista , que definiria esquematicamente como 'explosivo ' e ' processual'". COUTINHO,
Carlos Nelson . Marxismo c política . A dualidade de poderes e outros ensaios . São Paulo,
Cortez, 1996, p. 13.
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trata de considerar a revolução como escatologia mecânica e necessá¬


ria a partir de dados pré-estabelecidos, mas sim como luta e praxis
transformadora. A revolução, pois, se faz e n ão se espera.

A DIALÉTICA DO PROGRESSO

É possível identificar, permeando a obra de Marx, in úmeras re¬


flexões a respeito do sentido da histó ria. Revelam as possíveis diferen
¬

ças e ambigiiidades de interpretação em relação ao progresso. Tradici ¬


onalmente, é contra Engels que se volta a crítica do século XX, acu¬
sando-o de, na parte final do século XIX, ter convertido o marxismo
numa espécie de positivismo ou num tipo de determinismo similar ao
dos estudiosos da natureza. Engels seria a base do mecanicismo que
depois foi denominado por materialismo vulgar.
Há também, no entanto, uma dialé tica conflituosa do conceito
de progresso n ão só em Engels ou nos intérpretes do marxismo, mas
também dentro da própria reflexão de Marx. Porém, tal dialética não
se resolve facilmente pela oposição do jovem Marx ao pensador da
maturidade, porque, atravessando sua obra, está sempre presente o
problema da determinação do sentido histórico e da forma de apreci¬
ação da posição do capitalismo em face de outros modos de produção.

Em grande parte de sua obra, Marx se pronuncia por uma posi¬


ção aberta em relação ao sentido da histó ria e do progresso, o que
encaminha sua análise para a refutação da necessariedade da evolução
e do progresso. No Manifesto Comunista, exprime claramente a possi¬
bilidade de o conflito de classes e a evolução das forças produtivas
degenerarem. A alternativa da superação dos conflitos, portanto da
revolução, n ão é o ú nico passo da história, nem está garantida por leis
econ ó micas necessá rias, havendo a possibilidade do perecimento:
UTOPIA E DIREITO

Homem livre e escravo, patr ício e plebeu , barão e servo, mes¬


tre de corporação e companheiro , numa palavra, opressores e
oprimidos, em constante oposição , tê m vivido numa guerra
ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que ter ¬

minou sempre, ou por uma transformação revolucioná ria da


sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta.27
Expressa assim Marx a revolução como possibilidade, e n ão como
necessidade histórica. Ao mesmo tempo, não se trata apenas de dizer
que aquilo que revoluciona é, necessariamente, um progresso no sen ¬

tido de conquista à qual n ão se oponha crítica. Na análise da forma ção


econ ó mica capitalista, Marx há de verificar, ao mesmo tempo, o pro ¬

gresso e a decadência, a evolu çã o e o retrocesso. O fluir da histó ria e


da revolução, pois, n ão é necessariamente o galgar do melhor. O capi ¬

talismo , desse modo , como revolução das estruturas produtivas feu ¬

dais, é ao mesmo tempo a destruição da velha dominação e a ocorr ên ¬

cia de uma nova, expressando, historicamente, o melhor e o pior que a


histó ria já possa ter conhecido, ao mesmo tempo.
A burguesia desempenhou na história um papel eminente¬
mente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o
Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais , patriar ¬
cais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendi¬
am o homem feudal a seus “ superiores naturais” ela os despe¬
daçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para
homem , o laço do frio interesse, as duras exigê ncias do “ paga ¬
mento à vista” . [...] A burguesia só pode existir com a condi ¬
ção de revolucionar incessantemente os instrumentos de pro¬
du çã o, por conseguinte, as relações de produ çã o e, com isso ,
todas as relações sociais. [...] Dissolvem-se todas as relações
sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e
de id éias secularmente veneradas; as relaçõ es que as substitu -
27 -
MARX , Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. I . São Paulo, Alfa Ô mega, s/d, p. 22.
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em tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era


sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado,
e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenida¬
de suas condições de existê ncia e suas relaçõ es recíprocas.28
A possibilidade de entender o modo de produção capitalista como
sendo, ao mesmo tempo, o á pice do melhor e do pior na história, dá
margem a uma compreensão do progresso em Marx como evento aber ¬

to , n ão vinculado aos determinismos evolucionistas que foram t ípicos


no século XIX. Antecipando , de certa forma, a cr ítica ecológica ao
capitalismo, Marx aponta em O Capital. -
Al é m disso, todo progresso realizado na agricultura capitalis ¬

ta n ão é somente um progresso na arte de exaurir o trabalha ¬

dor, mas també m na arte de exaurira terra, e cada passo que se


dá na intensificação de sua fertilidade dentro de um período
de tempo determinado é, por sua vez, um passo dado no es ¬

gotamento das fontes perenes que alimentam tal fertilidade.


Este processo de aniquila ção é tão mais r á pido quanto mais se
apoia um país, como ocorre por exemplo com os Estados Uni ¬

dos da América, sobre a grande ind ústria , como base de seu


desenvolvimento. Portanto, a produção capitalista só sabe de ¬

senvolver a técnica e a combinação do processo social de pro¬


dução esgotando ao mesmo tempo as duas fontes originais de
toda riqueza: a terra e o homemP

Ao mesmo tempo em que se revela a abertura para o progresso e


a evolu ção histó rica como possibilidade, em vá rias passagens, desde as
obras da juventude até as da maturidade, Marx deixa entrever uma
espécie de valoração positiva do progresso , podendo-se perceber, ain ¬

da , um papel generoso ao capitalismo nesta evolução. Sempre há de se


ressaltar, neste sentido , a admiração de Marx por Darwin , o que daria

28 Ibid . , pp. 23 e 24.


29 MAKX, Carlos. £/ Capital . Vol. 1 . México, Fondo de Cultura Econ ó mica , 1982, p. 423.
UTOPIA E DIREITO

margem a uma inspiração do progresso histó rico, em Marx, bastante


similar a uma evolução da natureza. Isto n ão representa dizer, no en¬
tanto , que Marx seja um positivista no sentido próprio do termo, nem
tampouco um ensaísta apologético do futuro. A aposta no futuro soci¬
alista parece se revelar, muito mais acertadamente, num cântico de
louvor à luta pelo futuro, o que representa, ainda ao final, dizer que a
história é aberta e o progresso é possibilidade. A luta socialista é que
seria a responsável por sua concretiza ção.
Marx desautoriza, assim, a ideia de que as forças produtivas da
sociedade comunista constituam-se no interior do capitalismo,
que elas possam ser as mesmas forças produtivas do capitalis¬
mo, que, por força das contradições inerentes a esse modo de
produção, vão se tornando cada vez mais socializadas, cabendo
à sociedade comunista t ão-somente receber essas forças produ¬
tivas completamente adequadas a ela, e as quais, libertadas das
relações de propriedade (capitalistas) que as entravavam, po¬
dem agora expandir-se livremente. Ao contrário dessa concep¬
ção mecanicista e evolucionista do processo histórico, as análi¬
ses de Marx permitem apreender que as forças produtivas de¬
pendem sempre da luta de classes, que elas nunca se desenvol¬
vem independentemente das relações de produção.30

Um passo bastante favorável à inexorabilidade do progresso, situ¬


ando-o num âmbito similar ao da natureza, ocorrerá, um pouco mais
tarde, com o pensamento de Engels. A admiração de Marx por Darwin
é o pano de fundo para posi çõ es que sustentar ão um certo
evolucionismo da história - e, portanto, o determinismo da revolução
socialista - que não foram típicas apenas de Engels, mas também de
personagens dos primeiros tempos do marxismo como Kautsky e
Lafargue, genro de Marx.

30 NAVES, Má rcio Bilharinho. Marx. Ciência e Revolução, op. cit , p. 80.


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Essa aproximação entre a concepção da hist ória elaborada por


Marx e as ideias de Darwin (abusivamente deslocadas da bio¬
logia para as ciências sociais) tinha como conseqiiê ncia um
excessivo fortalecimento da continuidade na história (o novo
n ão irrompia subversivamente, era apenas um desdobramen¬
to “ natural ” do que j á existia, quer dizer, era uma decorr ência
do crescimento do “ embriã o” ) .31
É de se ressaltar, no entanto, que, se a posição dos marxistas sobre
o pensamento de Marx, logo nos tempos posteriores de seus escritos,
era a de uma inexorabilidade da revolu ção , posteriormente tal confi ¬
an ça ou se refina ou se transforma, mesmo, em uma espécie de cr í tica
ao progresso. Rosa Luxemburgo , ao se pronunciar a respeito das alter¬
nativas da revolução ou da barbárie,32 é o exemplo cristalino de que o
marxismo não- mecanicista não prosseguiu acompanhando a interpre¬
tação da inexorabilidade hist ó rica da revolu çã o, que, de resto, não se
revelou a ú nica nem a melhor leitura do pr ó prio Marx.

A UTOPIA EM MARX
A utopia em Marx é, mais que um tema, um resultado impl ícito
- e raras vezes por ele próprio explicitado - de seu pensamento e do
apontamento de sua praxis política.33 Por isso, não é um sistema fe-

31 KONOER, Leandro. O futuro da filosofí a da praxis. Rio de laneiro, Paz e Terra, 1992, p. 65.
32 "Mesmo em obras de forte car á ter economicista como Reforma social ou revoluçã o? , A acumu ¬

lação do capital e a Anticrítica, em que insiste na teoria do colapso, Luxemburg repete que o
socialismo n ão resulta automaticamente das contradi ções objetivas do capitalismo, que é
necessá rio o 'conhecimento subjetivo, por parte da classe operá ria , da inelutabilidade da
supressão da economia capitalista por meio de uma revolu ção (Umwá lzung) social'. Ou seja ,
ela compreendeu , desde o in ício de sua carreira pol ítica, que a economia por si só n ã o levar á
ao socialismo". LOUREIRO, Isabel Maria. Rosa Luxemburg. Os dilemas da ação revolucioná ria.
Sã o Paulo, Ed . Unesp, 1995, p . 33 .
33 " Retomando a expressã o de Marx no Dezoito Brumário, é ciara que os homens est ão limitados
pelas condi ções herdadas do passado, no entanto, eles fazem a histó ria , n ão fazem apenas
repetir o que se sabe, cada geração faz algo diverso. (. ..| Trata-se da ação em que os homens
são capazes de criar o novo, os projetos iluminadores da criação de uma nova sociedade. São
os sonhos de sonhar acordado que propiciam isto, são as utopias". LORES, losé Reinaldo de
Lima . Direito e transformação social. Belo Horizonte, Nova Alvorada , 1997, p. 62.
UTOPIA E DIREITO

chado, e sim uma abertura decorrente da tomada de posição em face


da sociedade e da história.
Pode-se perceber, no itinerá rio do pensamento de Marx, fases
bastante claras quanto à proposta da utopia. Em suas obras iniciais, o
socialismo utópico é-lhe uma referência fundamental, ainda que seja,
no mais das vezes, como nas suas obras da d écada de 1840 - o Mani ¬


festo Comunista., por exemplo , para negá-lo em face de uma suposta
cientificidade revolucionária. O pensamento de Marx, nesta fase, opon ¬

do um socialismo científico ao até então existente socialismo utópico, é


o que anima Engels até o final de sua vida a manter e a aprofundar a
cisão entre essas duas correntes do socialismo.

No entanto, na fase madura do pensamento marxista, há um salto


qualitativo que, se representa de um lado abandonar a temática explíci¬
ta da utopia, parece, pelo contrá rio, melhor delineá-la na medida em
que ela passa a ser a resultante necessária e óbvia do processo de crítica
do capital e de revolução social. Deixando de lado o binómio socialismo
utópico versus socialismo científico, Marx mergulha estruturalmente nas
entranhas do capital para analisar as formas de sua superação numa
economia que seja resultante da mudança das relações de produ ção e
do desenvolvimento das forças produtivas. É neste ponto que a utopia
em Marx, estando encoberta, mais se ressalta: as contradições do capita¬
lismo restam, em seu pensamento, insol úveis. Assim sendo, há um im¬
pulso dialético de superação que arrasta a ação político- revolucionária a
um patamar de expectativa e de delineamento de um futuro de solução
dos impasses e da insolubilidade do capitalismo.34
Demonstra-se, assim, que Marx rechaça o socialismo utópico n ão
pela fronteira final a ser estabelecida, mas sim pelo déficit de análise

34 Chavance nomeia o pensamento de Marx como "dial ética teleol ógica". CHAVANCE, Bernard.
" La dialectique utopique du capitalisme et du communisme chez Marx". In Marxenperspective.
Paris, Écoie des hautes études en sciences sociales, 1985, p. 130.
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do presente e dos meios e alternativas para a saída do capital em dire ¬

ção à sociedade socialista. Comungando de um mesmo fim, n ão co ¬


munga, no entanto , dos meios, nem tampouco da ingé nua esperan ça
no amanh ã. Por isso, no pensamento de Marx, o socialismo utó pico é
muito mais um esboço incompleto, que deve ser rechaçado apenas
pelas suas carências e suas fragilidades, do que propriamente um pro ¬

jeto singular que devesse ser tomado na conta de um opositor do soci ¬

alismo cientí fico. Marx entende que falta ao socialismo utópico n ão


bons ideais e horizontes, mas sim a cr ítica para que se chegue a estes.
Numa análise bastante peculiar a respeito da questão da utopia
em Marx, Miguel Abensour aponta para o fato de que o tema da
utopia n ão deve ser analisado , no pensamento marxista, a partir da
oposição entre socialismo utó pico e socialismo cient ífico, pois que, na
verdade, Marx perfilha-se junto dos utópicos contra a ciê ncia burgue¬
sa, que é do presente e contra a transformação futura, apenas diver¬
gindo dos utopistas na medida em que estes, faltando-lhes o entendi ¬

mento das contradições profundas do capitalismo, apontam respostas


parciais ou fantasiosas para a consecução do socialismo. Assim sendo,
melhor que a oposição entre socialismo utó pico e científico, é , para
Abensour, a diferença entre utopia parcial e utopia total, representan ¬
do o marxismo esta última vertente:
Marx coloca um ponto final à utopia da burguesia enquanto
classe revolucioná ria; em resumo, ao projeto do Estado mo¬
derno. Ao mesmo tempo enuncia a distin ção cardinal revolu ¬
ção pareial/revolução total. A utopia está do lado da utopia
parcial, a emancipação humana , do lado da revolução radical.
“ Não é a revolução radical, a emancipaçã o geral humana que é
um sonho utópico para a Alemanha, mas antes a revolução
parcial, a revolução somente política, que deixa em pé os ali¬
cerces da casa” . Por aí passa um eixo fundamental da cr ítica
das utopias. Essa distin ção se aplicar á a diferentes objetos, se
UTOPIA E DIREITO

enriquecerá de m últiplos conteúdos. Ela constitui uma das


invariantes da teoria radical. Está a í o lugar do corte original e
nã o no par utopia/ ciência.35

A oposição utopia parcial versus utopia total ao invés de socialis¬


mo utópico versus socialismo cient ífico dá conta de entender que o
marxismo n ão é tão distante de toda a herança utópica que os séculos
XVIII e XIX produziram. A busca por considerar o marxismo um
determinismo mecanicista que se oponha a qualquer utopia é uma
tentativa de aproximá-lo da esterilidade de propósitos futuros da bur¬
guesia, aponta Abensour.
Restam débeis, assim, as tentativas de furtar do pensamento de
Marx uma expressão utópica. Henri Maler ressalta o fato de que a
trajetó ria dos textos de Marx, desde a juventude até O Capital, aponta
para uma problematização crescente - e não simplesmente para uma

oposição bin á ria entre as questões da utopia, da cr ítica, da ciência e
da ideologia.36 A tarefa de desbastar a posição específica do marxismo
quanto à utopia do socialismo e do comunismo ser á, pois, muito maior
do que a de situá-lo no rótulo dado por Marx e Engels no Manifesto
Comunista e mantido por este no seu livreto clássico Do socialismo
utópico ao socialismo científico.

ENGELS E O PROJETO UTóPICO DO MARXISMO


De Engels partirá, então, a consolidação das divisas políticas que
vieram a orientar a escrita da história da utopia por parte do marxis¬
mo. Na sua obra Do socialismo utópico ao socialismo científico , uma das
mais populares e divulgadas de toda a literatura marxista, pontificou
Engels as diferenças entre sua visão do marxismo para aquela dos en-

35 ABENSOUR, Miguel. O Novo Espírito Utópico. Campinas, Editora da Unicamp, 1990, p. 20.
3 ft , . .
MALEK, Henri. Congéclier L'Ulopie? L' utopie selon Kari Marx op c/f., pp. 15 e seg
ALYSSON LEANDRO MASCARO

tão chamados socialistas utó picos. Tal qual apontar á mais tarde Ernst
Bloch , Engels enxerga um primeiro movimento popular de utopia -
diverso e mesmo anterior àquela utopia constituída meramente pelos
sonhos dos pensadores burgueses como Morus - em personagens do
povo como Thomas M ü nzer, desembocando todo esse processo nas
lutas socialistas do século XIX.
E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito
de representar, em suas lutas com a nobreza, alé m dos seus
interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da é poca, ao
lado de todo grande movimento burguês que se desatava,
eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o
precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado mo¬
derno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas
na Alemanha a tendência dos anabatistas e de Thomas M ü nzer;
na grande Revolu ção Inglesa , os “ levellers” , e na Revolu ção
Francesa, Babeuf. Essas sublevações revolucionárias de uma
classe incipiente são acompanhadas, por sua vez, pelas corres ¬

pondentes manifestações teó ricas: nos séculos XVI e XVII


aparecem as descrições utó picas de um regime ideal da socie ¬
dade; no século XVIII , teorias já abertamente comunistas,
como as de Morelly e Mably. A reivindicaçã o da igualdade
não se limitava aos direitos políticos, mas se estendia às con ¬
dições sociais de vida de cada indivíduo; já n ão se tratava de
abolir os privil égios de classe, mas de destruir as pr óprias dife
¬

ren ças de classe. Um comunismo ascético , ao modo espartano,


que renunciava a todos os gozos da vida: tal foi a primeira
forma de manifestação da nova teoria. Mais tarde vieram os
três grandes utopistas: Saint-Simon , em que a tendência con ¬
tinua ainda a se afirmar, até certo ponto, junto à tendência
proletá ria; Fourier e Owen , este último , num país onde a pro¬
du çã o capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressã o
engendrada por ela, expondo em forma sistem á tica uma sé rie
UTOPIA E DIREITO

de medidas orientadas no sentido de abolir as diferenças de


classe, em relaçã o direta com o materialismo francés.37
Ao fazer a reminiscê ncia da utopia voltar a M ü nzer, a Rousseau e
a Saint-Simon , por exemplo, Engels reitera uma historia que nao se
restringe apenas à linha dos que propugnam o n ão-lugar, a utopia
apenas ideal , como no caso de Thomas Morus ou Campanella. As
utopias socialistas apresentam outras facetas, ainda que seu juízo sobre
elas seja o de lhes considerar as insuficiencias para a verdadeira trans¬
formação histó rico-social . Neste sentido, a avaliação de Engels será
pr óxima, posteriormente, da de Bloch, valorizando a prática da uto ¬
pia - ainda que messiâ nica, no caso de M ü nzer - mais do que a mera
teorização dos filósofos da utopia . ' w ; .• . -A ... v .
ev,.- ,
A cr ítica engelsiana, no entanto, é implacável com todas essas uto ¬

pias que, mesmo sendo reclamadamente socialistas, como as de Saint-


Simon, Fourier e Owen, careciam de realidade e de cr ítica profunda
ao dom ínio capitalista.
Traço comum aos três é que n ão atuavam como representan ¬
tes dos interesses do proletariado, que entretanto surgira como
um produto hist ó rico. Da mesma maneira que os
enciclopedistas, n ão se propõ em emancipar primeiramente
uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade.
E assim como eles, pretendem instaurar o império da razão e
da justiça eterna.38

Por isso, para se furtar de uma espécie de utopia carente de reali ¬

dade e de constatação da exploração de classe - carente, pois, de


dialé tica e crente num tipo de universalidade salvadora de lembrança
iluminista -, Erigelsassiime para o marxismo n ão uma dissonância dos

37 ENGELS, Friedrich. "Do socialismo utópico ao socialismo cient ífico". In MARX, Karl e ENCELS,
Friedrich . Obras Escolhidas. Vol. 2. São Paulo, Alfa Ómega , s/d, p. 304.
-
38 Ibid., p. 305.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

propósitos, mas sim uma radical separação da constatação das causas


da exploração e dos meios de sua transformação.
Desde que existe historicamente o modo capitalista de pro ¬

du çã o, houve indivíduos e seitas inteiras diante dos quais se


projetou mais ou menos vagamente, como ideal futuro, a apro ¬

priação de todos os meios de produção pela sociedade. Mas,


para que isso fosse realizável , para que se convertesse numa
necessidade hist órica, fazia-se preciso que se dessem antes as
condiçõ es efetivas para a sua realização. A fim de que esse pro
¬

gresso, como todos os progressos sociais , seja viável, não basta


ser compreendido pela razão que a exist ência de classes é in ¬
compat ível com os ditames da justi ça, da igualdade etc; n ão
basta a simples vontade de abolir essas classes — mas sã o ne¬
cessá rias determinadas condições econ ómicas novas. 39

A. Pode-se dizer, assim , que Engels reclama , para si e para Marx, n ão


uma negação da utopia, mas o seu afastamento, enquanto ciência en ¬
cerrada em si mesma, de especulação do futura melhor. Para cum ¬
,

prir os propósitos da utopia, seria preciso destruir o m é todo utópico.

39 Ibid . , p . 332.
CAP íTULO 3

PSICANáLISE E UTOPIA

Freud representa a grande desconfian ça na razão, mas ao mesmo


tempo é uma esperan ça, das derradeiras, na pró pria razão . Esta
dicotomia freudiana é, diretamente, a responsável pela sutil peculiari ¬

dade do freudismo: negando ao homem pleno domínio racional so¬


bre si mesmo - negando racionalidade plena à civilização - aposta, no
entanto, na razão e na civilização como emancipadoras daquilo que o
homem ainda n ão logrou. O estatuto da utopia no freudismo, assim,
revela-se numa peculiar dialética que muito lembra a do marxismo: a
crítica da razão é ainda a aposta na razão; a crítica da utopia é ainda a
aposta na utopia.

O freudismo, sendo um movimento de volta às paragens do in ¬

consciente, representa um afastamento substancial da tradi ção do


pensamento moderno, iluminista, que enxerga nos limites da razão
os quadrantes da humanidade. O freudismo é a tentativa veemente
de explicar a humanidade mais fora que dentro da racionalidade,
sejam as ações humanas, sejam suas dores, seus ju ízos e seus valores.
Mas Freud n ão deixa de ser, ao mesmo tempo, um discípulo tardio
do Iluminismo, numa época em que a desconfian ça nas Luzes já ia
chegando aos extremos: apontar o inconsciente é caminhar, com os
passos da razão, pelo grande mundo do irracional, na tentativa de
racionalizá-lo. O supere aude dos iluministas ainda pode ser o lema
do freudismo.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

FREUD: DESEJO E REPRESSãO

Poderã o os estudiosos filiar Freud ao Iluminismo não só por con ¬

ta da sua tentativa de racionalização do inconsciente, mas, ainda mais


profundamente, em razão da sua pró pria postulação da estrutura des¬
te mesmo inconsciente: Id e superego , como as inst â ncias contrapos ¬

tas do prazer e da repressã o, são conceitos correlatos, no esquema


freudiano, a certas dicotomias do pensamento iluminista - que de al ¬

gum modo até o presente dão sustenta ção às perspectivas do liberalis¬


mo -, como as divisões entre ordem e natureza ou então entre liberda ¬

de total do indiv íduo versus liberdade social , contratual.


A partir deste esquema potencialmente iluminista, poder-se-ia
identificar um fundamento teó rico ao freudismo na sua insist ência no
indivíduo como medida do gênero humano, olvidando, como tam ¬
bé m o faz o Iluminismo, partes do problema social subjacente à hu ¬
manidade. No entanto, não se trata o pensamento freudiano de um
acento ao indiv íduo como centro exclusivo da personalidade, porque
a estrutura que se desvenda ao pr óprio indivíduo é eminentemente
social. Prazer ligado à natureza e repressão ligada à sociedade dão a
dimensão de um recorte do pensamento freudiano que é só provisori ¬
amente individual, porque se trata, em verdade, de uma dialé tica en ¬

tre o indivíduo e os outros. Depois do momento da an á lise individual ,


o freudismo passa à análise da própria sociedade: a dicotomia entre
repressão e desejo, superego e Id, é uma dicotomia mais profunda e
problem á tica que aquela entre indivíduo e sociedade, que de resto é
resol ú vel por analogias n ão muito implausíveis.40

40 " Esse é o empreendimento que Freud retoma na virada da d é cada de 1920 para a de 1930 por
meio de três escritos que colocam a questã o do destino do homem por intermédio do das
comunidades humanas: O futuro de uma ilusão ( 1927 ), O mal-estar na cultura (1929 ), e Por
que a guerras’ (1933). (...) O futuro de uma ilusão, que inaugura a trilogia freudiana, coloca o
princ ípio fundador que é o vetor das elabora ções 'sociol ógicas' da psican á lise: o desenvol ¬
vimento da civiliza ção est á submetido ao mesmo processo que rege o da gé nese do eu . Como
UTOPIA E DIREITO

No campo de estruturas profundas da psique, que se revelam


cindidas entre prazer e repressão, é que reside o cerne de um grande
debate, cujas implicações políticas e filosóficas são vastas. Freud postu ¬

la o prazer - a grande regi ão da personalidade denominada Id — como


o arqu é tipo mais profundo da psique, cujas raízes talvez se encontrem
no n ível natural ou biológico do homem. Em contraposição à parte da
personalidade que busca o prazer, revelam-se, na evolução individual,
o surgimento e a formação de uma instâ ncia de repressã o que limita a
vontade do prazer e sua busca, o superego. Tal instâ ncia repressora,
externa ao indivíduo , introjeta-se nele de tal modo que a personalida
¬

de passa a ser um centro próprio de obstacularização, negando a bus¬


ca pelo prazer n ão mais pela heteronomia de origem, mas por uma
41
espécie de autonomia castradora.
Este esquema das contradições da personalidade, cujos funda ¬

mentos talvez estejam muito mais na conta da natureza e da sociedade


— prazer e realidade — , resolve-se em Freud pela fr ágil inst â ncia do
consciente, na tentativa de lograr compatibilizar certa dose de prazer
com certa dose de repressão, num jogo que é tormentoso ao ego. O
consciente, pois, é uma esfera de acordos, de concessões e de capitula¬
ções, de tal sorte que a racionalidade - que tem aí seu campo imediato

o eu , a civiliza çã o tem de fato dois objetivos: controlar as excita ções externas isso quer dizer
(
) à
dominar as forças da natureza) e regular as tensões internas (entre seus membros inerentes
sua pró pria organizaçã o. Este princ ípio preliminar estando reconhecido, Freud faz uma
viver sem
constata ção surpreendente: os homens n ã o podem nem suportar a civiliza ção nem
ela , eles devem estar juntos/ separadamen te . " REY - FLAUD , Henry . " Os fundamentos
-
metapsicol ó gicos de O mal-estar na cultura" . In Fm torno de O mal estar na cultura, de
Freud.
S ão Paulo, Escuta , 2002, p. 8.
; o id , ou seja,
41 "Freud adota uma triparti çã o da mente: o ego que é o nosso n ú cleo consciente
o 'depósito' inconsciente dos impulsos reprimidos; e o superego , representante
dos princ ípi¬
, qualquer ju ízo
os éticos ( essa triparti ção lembra de longe a plat ó nica , evitando, no entanto
ao contr á rio de
de valor). Através de todas as suas obras, Freud sempre destaca bem
,
dos instintos b á sicos ( libido , impulso da morte, cuja
McDougall , a extrema plasticidade
, psican á lise de Freud
projeção é a 'agress ã o'; no que se refere à doutrina dos impulsos a
, uma exposi çã o da
passou por vá rias modificações ) e toda teoria psicanal ítica é, em essê ncia
manifesta çõ es dos impulsos , em consequ ê ncia de condi çõ es vari á veis de
variedade das ROSQNFELD, Anatol . O
ambiente, aos quais os instintos tendem a adaptar -se de forma diversa ".
pensamento psicológico. São Paulo, Perspectiva , 2003, p. 118.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

- n ão seja
necessariamente a felicidade, o prazer e a satisfa ção, mas sim
o acordo de sua quantidade possível , sempre menor que aquilo que o
desejo mais instintivo e inconsciente desejaria.
Daí , para a postulação teó rica de Freud, a evolu ção do ego se dá
sempre a partir da tensão entre o prim á rio princípio de prazer e um
posterior princípio de realidade. Em torno desse embate se d á, para
Freud, a consolidação da personalidade:
Sabemos que o princípio do prazer é pró prio de um m é todo
primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas
que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre
as dificuldades do mundo externo, ele é , desde o in ício , inefi¬
caz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos ins¬
tintos de autopreservação do ego, o princípio do prazer é subs¬
titu ído pelo princípio de realidade. Este último princípio n ã o
abandona a inten ção de fundamentalmente obter prazer; n ã o
obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abando ¬

no de uma sé rie de possibilidades de obtê-la, e a tolerâ ncia


temporá ria do desprazer como uma etapa no longo e indireto
caminho para o prazer. Contudo, o princípio de prazer persis¬
te por longo tempo como o m étodo de funcionamento em ¬
pregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de “ educar” ,
e, partindo desses instintos, ou do pr ó prio ego, com freqiiê n-
cia consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento
do organismo como um todo . 42
Prazer e repressão , Id e superego , revelam-se assim num jogo
dialético do qual emerge a civilização. Freud encaminha sua visão da
civilização e da sociedade para uma perspectiva relativamente diversa
daquela do Iluminismo tradicional: a civilização, em Freud, não é a esfe ¬

ra da racionalidade feliz e universal, e sim o tenso momento em que

42 FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. Rio de Janeiro, Imago, 2003, p . 12 .


UTOPIA E DIREITO

desejos são reprimidos em troca de outros. A civilização, tal qual um


acordo para todos ao mesmo tempo desvantajoso e vantajoso em partes,
é a expressão tênue da conveniência, não da plena satisfação. Daí apon ¬
ta Freud a insistente recorrência dos indivíduos a enxergarem na civili ¬

zação, nos outros, na sociedade, a causa de suas infelicidades.


Se a civilização impõe sacrifícios tio grandes, n ão apenas à
sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, po¬
demos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa
civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em
situação melhor, sem conhecer restriçõ es de instinto. Em
contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade,
por qualquer per íodo de tempo, eram muito t ê nues. O ho¬
mem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de
felicidade por uma parcela de segurança.43

A civilização, para o Uuminismo, era o grande projeto da felicida ¬

de. Limitando as vontades sem fim de todos, a civilização garantiria al¬


guma felicidade para todos. Tratava de dizer o Iluminismo que a felici ¬

dade social, contratual, seria toda a felicidade possível e necessá ria, e por
isso o contrato social era um momento positivo da civilização. Freud
trabalha pela via contrá ria. O indivíduo não reconhece a castração de
sua â nsia de prazer ilimitado como construtora de sua felicidade possí ¬

vel. A repressão é dolorosa, e a civilização seria, talvez concordando com


a proposição do Iluminismo, a melhor racionalidade possível, mas não a
felicidade. A civilização é um acordo triste, embora racional.44

43 -
FKEUU, Sigmund . O Mal Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 72 .
44 "Quando j á ciente da impossibilidade de sustentar a crença em uma humanidade feliz e sem
sofrimento, o mal-estar n ã o é mais designado como algo contingente à civiliza ção, mas da
al çada do pró prio ato de civilizar. [...) Freud observou que os problemas cruciais da culpa
inconsciente insensata, da ren ú ncia à realiza çã o da libido, da resistê ncia à cura do sujeito e do
gozo que concerne à coletividade, de fato se mantê m sob o signo da pulsão de morte. Mais do
que nunca , perto do final de sua vida e obra Freud exercerá a tarefa de cr ítico implacável da
cultura de seu tempo". FUKS, Betty. Freud & a cultura. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 15.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Daí que se aponta necessariamente, no freudismo, o problema da


utopia da razão. Até que medida contribui a racionalidade para a feli ¬

cidade, para a satisfaçã o dos desejos? Ou seria a razão justamente o


limite do desejo, a concretização do possível e, portanto, daquilo que é
menos do que o desejado ?

A resposta do freudismo à quest ão ainda é uma resposta que se


pode dizer iluminista. Quando Freud relembra a questão da religião
como instâ ncia do superego responsável por castra ções a benefício da
civilização, trata de uma repressão civilizadora e de uma sobre-repres-
são , responsável por sofrimentos que se poderiam julgar desnecessá ri ¬

os às necessidades da civilização.45 Tal perspectiva freudiana revela a


sua solu çã o liberal- iluminista: haverá alguma ren ú ncia necessária, e
haverá ren ú ncias explorató rias, maléficas, ao final das contas, à civili ¬

zação. Tal qual o contrato social, n ão se põ e em causa que deva haver


ren ú ncias da liberdade, e sim saber quais. A utopia do freudismo é ,
assim , um contrato social com o m áximo de liberdades poss íveis e o
m ínimo de repressões necessá rias. A utopia do freudismo é, na verda ¬

de, a quantia certa de liberalismo.


Quando, com toda justi ça , consideramos falho o presente es¬
tado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequa ¬

da às nossas exigê ncias de um plano de vida que nos torne


felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que
provavelmente poderia ser evitado ; quando, com cr í tica
impiedosa, tentamos pô r à mostra as raízes de sua imperfei¬
ção , estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e
n ão nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar
efetuar gradativamente em nossa civilização alterações tais que

45 "A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto, é poss ível diminuir o ó nus dos
-
sacrif ícios instintuais impostos aos homens, reconcili á los com aqueles que necessariamente
devem permanecer e fornecer- lhes uma compensa ção". FREUD, Sigmund . O Futuro de uma
Ilusão. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 13.
UTOPIA E DIREITO

satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas cr í¬


ticas. Mas talvez possamos també m nos familiarizar com a
ideia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civiliza¬
ção, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma.46
O freudismo, assim, antes de um salto qualitativo do problema re¬
pressão versus desejo, é um acerto quantitativo da repressão. A razão aí é
a balan ça que medirá as contradições e que as julgará. Este pano de
fundo, que em Freud se revela um Iluminismo que se deu conta de que
a luz libertadora conviverá inexoravelmente com as trevas - a razão é a
irmã menor do inconsciente, mas irá libertá-lo -, encaminhar-se-á rapi¬
damente para sua cr ítica, que desejará enxergar, pelo ângulo duro do
conflito entre Id e superego, o germe de dialética e síntese que o
freudismo deixou esvair pelas mãos da sua resposta conciliadora.

PARA ALéM DO FREUDISMO


Das contestações e debates da filosofia em torno de Freud, é a Es ¬

cola de Frankfurt que se destaca e assume, desde cedo, o freudismo


como seu problema e, mais profundamente, como um de seus instru ¬

mentais de reflexão. Desde seu. início, a psicanálise pareceu-lhe um


mundo apto a desvendar problemas que o marxismo - tomado que era
no geral pela sua acepção vulgar - não conseguia desvendar. O que
levava o operariado europeu avançado a recusar a vanguarda socialista e
a se aliar ao nazismo? De outro lado, o que poderia levar o campesinato
atrasado da Rússia a se tornar a mola propulsora do socialismo mundial?
A indagação da Escola de Frankfurt revelava a inquietação com o
mecanicismo, que talvez tenha sido o repouso confortável da explicação
teó rica da luta socialista no começo do século XX.

46 FREUD, O Mal- Estar na Civilização, op. cit., pp. 72 e 73.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

O brilho das análises da Escola de Frankfurt sobre a correlação


marxismo e psicanálise, bem como sobre as questões da racionalidade e
da utopia, atingirá seu ponto alto com Adorno, Horkheimer e Marcuse.
Antes, no entanto, já havia todo um pano de fundo, de pensadores não
necessariamente da Escola, mas também não muito distantes dela, que
anteciparam algumas das recorrentes análises realizadas em meados do
século XX. Reich e Fromm, de modo geral, podem ser tomados na con ¬
ta de precursores da jun ção frankfurtiana de marxismo e psican álise,
levando-se em conta que seus pressupostos e conclusões n ão são, neces¬
sariamente, iguais aos de Horkheimer, Adorno e Marcuse.
Mas Reich e Fromm, ao mesmo tempo, são precursores de tal
movimento, sem que tenham recebido reconhecimento - ou quiçá

sem que tenham sido mesmo lidos por parte dos marxistas que
demonstraram preocupação por temas como a ideologia, a política e
as questões superestruturais (desde Gramsci a Althusser, passando por
grande parte do pensamento do século XX) . Grande parte do debate
de Reich e Fromm sobre marxismo e psican álise frutificou pelo â ngu ¬

lo dos psicanalistas, n ão necessariamente dos marxistas.


Além disso, ao contrá rio do que ocorreria com o n úcleo duro da
Escola de Frankfurt, mais voltado à constatação do fracasso da utopia,
Reich e Fromm entoam acordes que são evidentemente esperançosos.
Representam por isso, na opinião de alguns, a parte frágil da jun ção
entre psicanálise e marxismo, porque marxismo e freudismo seriam,
ambos, descrentes de qualquer ilusão ou de alguma fácil utopia. Reich
e Fromm apostam no contrá rio.

WILHELM REICH
Reich é dos primeiros, na psican álise, a preocupar-se com o ex¬
tremado individualismo do freudismo e com sua falta de aptid ão a
UTOPIA E DIREITO

uma explicação polí tico-social mais acurada. Neste sentido, trilha ca ¬


minhos altamente originais, que, ainda que venham a ser expurgados
mais tarde pela Escola de Frankfurt, por exemplo, lograrã o, no entan ¬
to , a consolidação de uma temática e de uma linha geral de aborda
¬

gem. Tanto quanto Fromm, logo em seguida, buscará Reich a com¬


preens ã o das intera çõ es , na forma çã o da personalidade , das
condicionantes sociais, históricas, políticas, económicas e culturais. Além
de tudo, tomará o problema da sexualidade també m a partir de um
47
ponto de vista social e cultural.

O pensamento de Reich caminha a partir de Freud, mas não ne ¬

cessariamente no sentido freudiano. Enquanto na técnica psicanal ítica


freudiana dá-se mais destaque aos conteúdos do que é revelado nos so ¬

nhos, nas manifestações, nas livres-associações, em Reich d á-se uma ên ¬


fase especial ao modo pelo qual tais conteúdos são expressos. A forma de
expressão revela o caráter. São manifestações reiteradas, que se repetem
em grande n ú mero de casos clínicos - estudados por Reich em um
grande conjunto de obras - e que possibilitaram a ele a sua classificação.
A teoria do caráter é o ponto alto da teoria de Reich. A partir do
modo pelo qual os conte údos ps íquicos são revelados , desnuda-se uma
hist ó ria da formação da personalidade, da libido do indivíduo e de
sua repressão , de tal sorte que aí começam a se misturar as razões pro¬
priamente da hist ó ria individual com aquelas estruturais, sociais, do
seu tempo e suas condi çõ es.

sua
47 " Reich vai focalizando quest ões bá sicas da vida e da exist ê ncia , das sociedades e de
esperança no Homem . Em oposi çã o ao seu antigo mestre Sigmund Freud , francamente pessi ¬

faz uma
mista em rela ção ao Homem (formulação da puls ã o de morte, por exemplo Reich
),
os
declaraçã o de f é na humanidade. Assim, afirma Reich: 'só tu podes libertar-te'. Combate
...
regimes totalit á rios e adiante revela o significado de Deus: ' é a energia cósmica
primordial
filosófico,
do Universo'. Desse modo, vai formando um painel com os enfoques religioso ,
psicol ógico e sociológico". CâMARA, Marcus Vin ícius. Reich - o descaminho necessá rio. Intro
¬

dução à clinica e à política reichianas . Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998, p.


77.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Postula Reich a existencia de dois grandes modelos do cará ter,


que denomina caráter neur ótico e caráter genital. O primeiro revela ¬

se como uma postura sistematicamente repressiva, que se haure dos


dísticos da autoridade, da normatização , portanto associada ao histó ri ¬

co da má-forinaçã o da figura paterna, o que o remete imediatamente


às formas do conflito edipiano. O superego é a esfera em torno da
qual se constr ó i o car á ter neuró tico. Por essa razão, o prazer e a vida
genital estã o reprimidas e afastadas do car á ter neuró tico. O cará ter
genital é aquele que se afirma positivamente, nã o como castração ao
sexo, mas sim como sua madura expressão. O caráter genita abre
ao Id de maneira natural. Enquanto no caráter neurótico o conflito
l -se
entre Id e superego é exponenciado , no cará ter genital,
postula Reich ,
essa tensão é reduzida, quiçá anulada.
Em termos de suas diferen ças qualitativas, os caracteres neu ¬

ró ticos e genitais devem ser entendidos como tipos b ásicos.


Os caracteres reais representam uma mistura, e se a economia
da libido é ou n ã o permitida depende apenas de em que me ¬
dida o car á ter se aproxima de um ou de outro tipo b ásico. Em
termos da quantidade da satisfação direta da libido poss ível,
os caracteres genitais e neur ó ticos são considerados como ti ¬

pos m édios: ou a satisfação da libido chega a um ponto em


que é capaz de dispor da libido contida ou isso n ão acontece.
No último caso, desenvolvem-se sintomas ou traços de car á ter
neuró tico que prejudicam a capacidade social e sexual .48

A teoria do car á ter neur ó tico fundamenta, assim , a essência do


car áter autoritá rio. O paradoxo vivido à época de Reich - o per íodo
entre as duas Grandes Guerras e a ascensã o do nazismo deman
— dava
uma resposta que o marxismo vulgar n ão fornecia. O proletariado e a
pequena burguesia voltavam-se ao nazismo e n ã o à liberta ção socialis-

48 REICH, Wilhelm. Aná lise do Caráter. S ã o Paulo, Martins Fontes, 2001 , p. 172.
ilk

ta por causa da personalidade autoritá ria de tais classes. Daí ser neces¬
s á rio desvendar, além das razõ es político-econ ó micas imediatas, uma
formação autoritá ria do cará ter.
Revela-se o car á ter autoritário como uma debilidade ligada à pró¬
pria formação sexual repressiva. A carência econ ó mica das classes oper á ¬

rias e a dubiedade da pequena burguesia — que é dominada pelo grande


capital e ao mesmo tempo receia a decadência à condição proletá ria -
encontra solo fé rtil para a sua conserva ção num quadro familiar,
institucional, religioso e cultural no qual a figura da autoridade paterna
represente a ren ú ncia aos desejos, tudo isso em nome do Pai. A extensão
posterior do Pai ao Estado - à Nação, à Pá tria - revela a facilidade com
a qual a ideologia nazista propagou nas classes baixas alemãs.

Família, Igreja, Estado, Patrão , Autoridade, todos são instâ ncias


de aparelhamento ideol ógico que conformam o car á ter autoritá rio das
massas. Embora oprimidas, não enxergam e nem querem outro hori ¬

zonte que nao seja o da opressão. Por isso preferem e enxergam com
melhores olhos o nazismo à libertação.
Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indiví¬
duo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do
sofrimento e da humilha ção. Assim , a fam ília é o Estado auto¬

ritá rio em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se


adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que
ser á exigido dela mais tarde. A estrutura autorit á ria do ho ¬

mem é basicamente produzida - é necessá rio ter isto presente


- através da fixação das inibi çõ es e dos medos sexuais na subs
¬

t â ncia viva dos impulsos sexuais. [.. .]

Tanto a moralidade sexual, que inibe o desejo de liberdade,


como aquelas forças que apoiam interesses autorit ários tiram a
sua energia da sexualidade reprimida. Agora, compreendemos
melhor um ponto fundamental do processo do ‘efeito da ide-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

ologia sobre a base econó mica’: a inibi ção sexual altera de tal
modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que
ele passa a agir, sentir e pensar contra os seus próprios interes¬
ses materiais. 49

Daí se explica, em Reich, o fracasso da luta socialista nos traba¬


lhadores, em razão do cará ter autorit á rio das massas. Para Reich , era
imprescind ível que, à luta pol í tico-econ ó mica, somasse-se a luta pela
libertação sexual, pela formação do cará ter genital, liberto das repres ¬

sões sexuais. N ã o haveria busca de libertaçã o prolet á ria sem tal trans ¬

formação do cará ter.


O postulado resultante da perspectiva de Reich é aquilo que de ¬

— —
nomina Sexpol pol ítica sexual que vem a ser a jun ção das duas
esferas, pol ítica e sexual, numa luta de libertação. A libertação pol ítica
deverá ser associada da liberta ção sexual , da construção de caracteres
genitais e n ão autoritários, mais próximos do Id que do superego . Apon ¬

ta Reich , assim , um paradigma de supera çã o do impasse freudiano, a


libertação genital, pelo prazer. No final das contas, esboça-se, em Reich,
a primeira utopia que soma os horizontes marxistas aos freudianos . Tal
utopia ainda representará em alguma medida os horizontes iluministas,
porque intenta dar à humanidade a possibilidade de sua felicidade
por si pró pria, removendo a heteronomia - o superego — que lhe
condiciona a uma personalidade autoritá ria. Utopia positiva, que acre¬
dita que a luta pela transformação social n ão é a ren ú ncia do hoje em
nome do amanhã, e sim o agir do prazer que constr ó i , hoje e no futu ¬

ro, a civilização do prazer.50

49 REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo, Martins Fontes, 2001 , pp. 28 e 30.
50 "O socialismo clássico enfatiza a luta e o sacrif ício, o trabalho e o hero ísmo, e adia para um
futuro nebuloso a realiza ção da felicidade individual , quando raiar, graças ao desenvolvi ¬
mento das forças produtivas, o reino da liberdade. A Sexpol, ao advogar o desenvolvimento
-
da genitalidade como pré condição da ação pol ítica, e mesmo como seu conteú do efetivo,
inverte a sequ ê ncia temporal , e contesta o determinismo da etapa. A felicidade n ã o é uma
recompensa futura, mas o pr ó prio conte ú do da pol ítica da vida ". ROUANET, Sé rgio Paulo.
Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de ¡aneiro, Tempo Brasileiro, 1998, p. 48 .
UTOPIA E DIREITO

ERICH FROMM
Ao lado de Reich, Fromm constitui a primeira grande linha de
frente da preocupação da psican álise em proceder ao diálogo com o
marxismo. Em grande parte aproxima-se de Fromm na tentativa de
estabelecer as bases de uma psican álise n ão apenas individualista na
cr ítica recorrente que fazem a Freud mas sim que busque a compre
— ¬

ensão dos liames sociais do car á ter e da personalidade .

Fromm se dedica a compreender o problema do cará ter a partir


das estruturas sociais das variadas épocas, buscando vislumbrar, nas soci ¬

edades capitalistas, os tipos comuns de personalidade e caráter que aí se


formam. O resultado de sua investigação, tal qual numa certa medida
apontava já Reich, é a constatação de um car á ter sadomasoquista, que se
espraia por vá rias classes sociais.51 Fromm identifica a sociedade capita ¬

lista como um obstáculo à plenitude do indivíduo:


FÕ princípio subjacente à sociedade capitalista e o princípio do
amor são incompatíveis. [...] As pessoas capazes de amar, no
presente sistema, sã o necessariamente exceções; o amor é, por
necessidade, um fen ômeno marginal na sociedade ocidental
de nossos dias. N ão tanto porque muitas ocupações não per¬
mitiriam uma atitude amante, mas porque o espírito de uma
sociedade centrada na produção, ávida por mercadorias, é tal

51 "H á diferen ças na forma de sadismo de acordo com a diferen ça , na realidade, entre ter poder
ou ser poderoso. O homem m édio é relativamente impotente : o escravo mais que o servo, mais
que o cidad ã o, o trabalhador do século XIX mats do que o trabalhador do século XX, o
.
membro de um estado polfcia -ditatorial mais do que o de uma democracia. [. .) De outro lado
da escala, é o indivíduo que, na realidade, tem tal grau de poder que é tentado a tornar se -
Deus, transcendendo o status humano. Um l íder pol ítico dotado de poder absoluto como
Stalin ou Hitler é quase fadado a cair na tentação de poder absoluto. [...] O sadismo existe n ão
somente na classe média mais alta e entre ditadores, mas também entre muitos outros grupos
sociais. [. .. ] As mesmas condi ções de impotê ncia efetiva podem ser produzidas pela atmosfera
da fam ília, onde a criança, ao crescer, é exposta ao tratamento sá dico dos pais, especialmente
nas formas menos óbvias, em que sua vontade e espontaneidade são sufocadas, quer direta ¬
mente pela falta de alguma resposta, quer por amea ças". FROMM, Erich . A Descoberta do
.
Inconsciente Social São Paulo, Man ó le, 1992, pp. 137 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

que somente os nao-conformistas podem se defender com su ¬


cesso contra ela. Os que se preocupam seriamente com o amor
como ú nica resposta racional ao problema da existencia hu ¬
mana devem , pois , chegar à conclusã o de que são necessá rias
mudanças radicais em nossa estrutura social, para o amor se
tornar um fen ô meno social , e n ão um fen ômeno altamente
individualista e marginal. 52
Ao mesmo tempo, Fromm aponta para a superação do car á ter
autoritá rio , que no capitalismo revelou-se sadomasoquista: trata-se de
compreender o caráter revolucionário . Neste sentido, começa-se a cons¬
truir a utopia que resulta das constata çõ es marxistas e freudianas da
irracionalidade humana ou, pelo menos, da inverdade do pleno do¬
m ínio da razã o em todas as esferas da açã o e do car á ter humanos.

A teoria do cará ter revolucioná rio de Fromm vai-se construindo


a partir das pesquisas por ele empreendidas, na década de 1930, em
torno da Escola de Frankfurt , a convite de Horkheimer, para a com ¬

preensão do fen ô meno nazista e sua ampla aceitação popular então.


Fromm destaca, de seus estudos, a princípio, o que não é o car á ter
revolucion á rio. N ão é apenas a participação em revoluções, daí dife ¬

renciando, tal qual Freud, entre car á ter e comportamento. O car áter
revolucioná rio tamb ém não se resume, na visão de Fromm , à postura
rebelde. A rebeldia, segundo Fromm, é o ressentimento contra a auto¬
ridade pela personalidade n ão ser amada por ela . O ato de rebeldia
n ã o é transformador; antes, é uma assunção ao poder para obtenção
do reconhecimento que até ent ão n ão era conseguido. Distingue
Fromm, ainda, o cará ter revolucion á rio do fan á tico. Este é o que esco¬
lheu uma causa e a endeusou, tornando-se submisso a ela. Fromm o
compara a um “ adorador de ídolo” . A

52 FROMM, Erich . A Arte de Amar. S ão Paulo, Martins Fontes, 2000, pp. 163 e 164.
UTOPIA E DIREITO

Definindo revolução, no sentido psicológico, como “ um movimento


político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pes¬
soas de caráter revolucionário” ,53 Fromm passa a se dedicar à definição
positiva do caráter revolucioná rio. Trata-se, em primeiro lugar, de ser
independente, ser livre, o que se revela quando o indivíduo pensa, sente
e decide por si, numa relação produtiva com o mundo exterior.

Além disso, o caráter revolucioná rio identifica-se com a humani¬


dade. Isto quer dizer que n ão se detém nas particularidades de sua
situa ção econ ô mico-social- hist ó rica, e sim que pode transcender ao
acidental em busca de uma visada maior. Revela-se ainda mais no amor
à vida que no apego à vida. Além disso, alimenta um esp í rito cr ítico,
que não se deixa conduzir pela opinião da maioria.
Mais ainda, segundo Fromm, para o car á ter revolucion á rio “ o
poder jamais se torna santificado, jamais toma o papel da verdade, da
moral e do bem” . 54 Quer com isso dizer que o car áter revolucioná rio
não se deixa impressionar moralmente pelo poder. Além disso, é capaz
de dizer “ não” e, por isso, é capaz de desobediência.
Entendo como cará ter revolucion á rio n ã o um conceito ético,
mas um conceito din â mico. blão se é “ revolucioná rio” nesse
sentido caracterol ógico porque se pronunciem frases revoluci ¬
on á rias ou se participe de uma revolu çã o. O revolucion á rio ,
nesse sentido, é o homem que se emancipou dos laços de san ¬
gue e solo, da m ãe e do pai , das lealdades para com o Estado,
classe , raça, partido, religi ão. O car á ter revolucion á rio é
humanista no sentido de que se sente parte de toda a huma¬
nidade , e nada que seja humano lhe é estranho. Ama e respei ¬
ta a vida. É um cético e um homem de fé.

53 FROMM, Erich. O Dogma de Cristo e Outros Ensaios sobre Religião, Psicologia e Cultura. Rio de
Janeiro, Guanabara, 1986, p. 119. ;

54 Ibid., p. 124 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

[ . . .] Esse sum á rio pode sugerir que descrevi a sa ú de mental e


o bem-estar, e n ão o conceito do caráter revolucion á rio. Na
realidade, a descri ção dada reproduz a pessoa sadia, viva, men ¬
talmente sã . Minha afirmação é a de que a pessoa sadia num
mundo insano, o ser humano plenamente desenvolvido num
mundo aleijado, a pessoa plenamente desperta num mundo
semi- adormecido — é precisamente o cará ter revolucion á rio.55

De tal sorte, Fromm delineia os primeiros grandes contornos da


utopia do amanhã a partir da jun ção do marxismo e do freudismo:
“ quando todos estiverem acordados, n ão haver á mais profetas ou
caracteres revolucion á rios - haver á apenas seres humanos plenamen ¬

te desenvolvidos” , 56

55 Ibid., pp. 127 e 128.


56 Ibid., p. 128.
CAPíTULO 4

A UTOPIA EM MARCUSE

Se os freudo-marxistas Reich e Fromm apontam definitivamen ¬

te para um momento de supera çã o da repressão e do autoritarismo,


almejando já um futuro utó pico de felicidade e de prazer, o mesmo
n ão se pode dizer do movimento que se segue, posteriormente a Reich
e Fromm, na Escola de Frankfurt. Horkheimer e Adorno h ão de se
distinguir do freudo-marxismo pela desconfiança na aliança da ra ¬

zão e da emancipa ção. A Escola Cr í tica é o desapontamento com a


razão e a utopia.
De in ício, a Escola de Frankfurt vale-se de grande parte das
considerações de Reich e Fromm no que tange à união de freudismo
e marxismo. De fato, o pró prio Fromm é quem lidera, para a Escola
de Frankfurt, a parte psicológica das pesquisas sobre a personalida
¬

de autoritá ria na d écada de 1930. Ocorre, no entanto, que as posi


¬

ções de Adorno e Horkheimer começam por estabelecer diferenças


substanciais de abordagem dos mesmos problemas que Fromm e
Reich constatavam em outras claves. Estes já procediam, na década
de 1930 , a um movimento filosófico de s í ntese, de identidade. O
homem reconciliado consigo pr ó prio, a humanidade enfim liberta
da opressão e apta ao prazer genital e pleno, estas eram divisas já
apontadas por Fromm e Reich. Adorno e Horkheimer desconfiarão
da síntese e da identidade.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

TEORIA CRíTICA: ADORNO E HORKHEIMER


Os postulados da recusa da síntese e da identidade em Adorno e
Horkheimer são a quebra da filosofia racionalista moderna, positivista,
associada em seu início a Descartes. Desde a emancipação da filosofia de
seus condicionantes medievais, ela resvala por caminhos positivistas, que

enxergam no princípio da identidade e portanto da n ão-contradição
- o seu fundamento. Buscará a Escola de Frankfurt, no entanto, a con ¬

tradição inerente ao próprio capitalismo, à sociedade contemporânea.


Assim , começa-se a se estabelecer uma fundamental diferen ça dos
frankfurtianos em relação a Reich e Fromm . Para estes, a aposta na
reconciliação da humanidade consigo mesma era uma aposta na ra ¬

zão. Talvez fosse um último suspiro de Iluminismo, melhor qualificado


que seus congé neres do século XVIII, porque reconhecedor das pulsões,
do inconsciente, dos limites da razão, mas ainda assim iluminista, por¬
que aponta o momento superior da reconciliação pela própria razão.
Adorno e Horkheimer encaminham-se em sentido contrário. Não é
só a falta da razão que é dominação: a própria razão é dominação.
Assim se pronuncia Horkheimer:
A própria teoria filosófica n ão pode determinar se deve predo ¬

minar no futuro a tend ê ncia barbarizante ou a visão


human ística. Contudo, ao fazer justiça à quelas imagens e ideias
que em determinadas épocas dominaram a realidade exercen ¬


do o papel de absolutos por exemplo a idéia de indivíduo

tal como predominou na época burguesa e que foram aban ¬

donadas no curso da História, a filosofia pode funcionar como


um corretivo da História, por assim dizer. Assim , os estágios
ideol ógicos do passado não seriam identificados simplesmen¬
te à estupidez e à fraude - tal como o veredicto estabelecido
contra o pensamento medieval pelo Iluminismo francês. As
explicações sociológica e psicológica das crenças antigas seri-
UTOPIA E DIREITO

am distintas da condenação e supressão filosófica das mesmas.


Despojadas do poder que tinham em sua situação na época,
serviriam para lançar alguma luz sobre o rumo atual da hu ¬
manidade. Assumindo esta função, a filosofia seria a memó ria
e a consci ê ncia da espécie humana , e deste modo ajudaria a
evitar que a marcha da humanidade se assemelhasse à circula¬
ção sem sentido da hora de recreio de um manicomio.57

Para Reich e Fromm, talvez pudesse se dizer que as mazelas do


homem fossem creditadas a um falso uso da razão. Daí, a den ú ncia da
ideologia é a arma a partir da qual se procede à liberação. Adorno e
Horkheimer verificam horizontes mais sombrios: nao é a falta de razão
que conduz ao totalitarismo, ao fascismo. Antes, é a própria razão, o
pr ó prio mundo construído a partir da razão técnica, que leva à domi¬
nação totalit á ria. Reich e Fromm , para a Escola de Frankfurt , teriam a
ilusão de que a dominação fosse a falta de razão. Adorno e Horkheimer
acreditam que a pr ópria razã o é totalitá ria.
O racionalismo moderno e sua exacerbação nazista, irracionalista,
são apontados, por Horkheimer, como uma utopia end ógena de do ¬

mina ção , que n ão permite a contradi ção, a dial ética, a superação:


Racionalismo e irracionalismo adquiriram , ambos, a função
de reconciliar-se com o existente: o racionalismo deu ao perí ¬

odo liberal a convicçã o de que o futuro est á antecipado na


razão do indiv íduo. A hist ó ria universal era , por assim dizer, o
desabrochar do ser racional que cada um possuía em seu â ma ¬

go; o indivíduo podia sentir-se imperecível na sua substâ ncia.


[...] No capitalismo tardio , que define a maioria dos indiví ¬

duos como simples elementos da massa, o irracionalismo for ¬

nece, então, a teoria de que a essê ncia desses indivíduos conti ¬


nua a existir na unidade hist órica abrangente à qual eles per-

57 HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razã o. Sã o Paulo, Centauro, 2002 , p. 185 .


>

i
ALYSSON LEANDRO MASCARO

tencem a cada vez e - se fossem apenas obedientes - n ão teri ¬

am com que se preocupar: seu Eu melhor seria acolhido na


comunidade após a morte. Desta forma, tanto o racionalismo
quanto o irracionalismo estão a serviço da transfiguração.58

Neste sentido, começa a se esboçar, na Escola de Frankfurt, uma


visão paradoxal da utopia: não se trata de indagar quais suas condi ções,
o mecanicismo do progresso, quando se darão seus eventos ou ent ão
quais as táticàs revolucionárias, mas, antes, constatar e compreender como
a humanidade pôde ter chegado à condição de dominação sem mais
esperanças, sem mais possibilidade de transformação. Para Adorno e
Horkheimer, a razão técnica contamina de tal modo a história e a socie ¬

dade contemporânea que é virtualmente impossível a quebra de tal pa ¬

drão de dominação. Por tal razão, invertem a premissa de Marx das Teses
sobre Feuerbach. Se nelas Marx dizia que a filosofia já havia interpretado
o mundo, e portanto era imperioso que se o transformasse, aqui Adorno
e Horkheimer partem do contrário. Dado que a busca de transforma¬
ção mostrou-se infrutífera, é preciso compreender o mundo. A filosofia
tem, pois, seu papel, como teoria crítica. A utopia é o entendimento
do
domínio da razão, e talvez não sua transformação.
Hoje, o progresso em relação à utopia é bloqueado antes de
tudo pela completa desproporção entre o peso do mecanismo
esmagador do poder social e o das massas atomizadas. [...] Se
a filosofia conseguir auxiliar as pessoas a reconhecer esses fato¬
res, prestar á um grande serviço à humanidade.59

Tal utopia negativa domina o horizonte intelectual da primeira


formação da Escola de Frankfurt. Marcuse é quem destoará em partes
de Adorno e Horkheimer a respeito do papel da utopia, mas ainda
assim começará sua filosofia do solo cru da constatação de que, no

58 HORKHEIMER, Max. Teor ítica I. São Paulo, Edusp/Perspectiva, 1990, p. 133.


í a Cr
59 .
HORKHEIMER, Eclipse da Razão, op. cit., p. 186
UTOPIA E DIREITO

mundo contemporâ neo, a razão é a dominação. H á uma certa afini ¬

dade entre toda a abordagem da Escola de Frankfurt e as cr íticas, de


certo modo conservadoras ou reacion á rias, de Heidegger. O pró prio
Marcuse, aluno de Heidegger, encarrega-se de apont á-la e ao mesmo
tempo de separ á-la. Em comum a Adorno, Horkheimer, Marcuse e
Heidegger está a recusa da técnica como elemento de emancipação. A
técnica e a razã o revelam-se opressivas na sociedade capitalista. O sen ¬
tido da utopia, porém , é inverso. Para Heidegger, a crítica da técnica e
do racionalismo é devida à sua condição de destrui ção dos vínculos
origin á rios, da sociedade comunal do passado. Para a Escola de Frank ¬

furt, a técnica e a razão são o obstáculo da transformação , Em relação


a isso , o sentido da cr ítica da Escola de Frankfurt é ainda o sentido do
marxismo: a utopia, ainda que n ão realizada, aponta para o futuro, o
novo, e não para o passado.

Adorno e Horkheimer insistem em enxergar no pensamento de


Freud um momento explosivo, pr óximo ao de Marx,60 que o freudo-
marxismo de Reich e Fromm descartou . A dialé tica entre o indivíduo
e a civilização não é superá vel , ao menos não no sentido proposto por
Reich e Fromm. Trata-se de uma dialética que recusa a síntese fácil, e
portanto se detém na contradição, nas dificuldades da concilia ção da
humanidade com seus impulsos, desejos e repressões. A Escola de Frank ¬

furt enxerga em Freud essa recusa à s íntese, tendo em vista que a an á¬


lise freudiana n ão é apenas da contradição do capitalismo, mas da
pró pria humanidade. Assim, aquilo que Reich e Fromm denuncia ¬

vam como limiar último da opressão - o capitalismo - deve ser, na

60 "Numa é poca em que a psican á lise era ainda bastante estigmatizada, Horkheimer foi um dos
primeiros a reconhecer sua importâ ncia, tendo se submetido, entre 1928 e 1929, a sessões
com Karl Landauer, um antigo aluno de Freud . [...] J á o interesse de Adorno pela obra de Freud
era mais teó rico do que prá tico. (...1 Em todos os seus trabalhos importantes da década de
1930 aparecem referê ncias à psican á lise, ou, antes, tentativas de se apropriar dela com
objetivos de empreender uma cr ítica da cultura contemporâ nea ". DUARTE, Rodrigo. Adorno/
Horkheimer & A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002, p. 20.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

verdade, entendido como uma dialética irresoluta da pró pria condi ¬

ção humana. A dial ética negativa de Adorno e Horkheimer aponta


para a dificuldade da síntese e da utopia .
A não -identidade , em Freud , assume sua forma mais inflexí ¬

vel: a tese da reconciliação impossível entre os interesses do


indivíduo e da civilização. Toda a construção metapsicológica
de Freud gira em torno do conflito, jamais superável à luz da
realidade pulsional do homem e das exigências da cultura,
entre desejo e realização. [...] Dial é tica que, como a de Ador ¬
no e em contraste com a de Hegel , recusa a facilidade de uma
sí ntese utó pica. É essa dialé tica sem síntese que impede, no
plano terap ê utico, a cura integral pois Freud sabe, —
secretamente, que a normalidade que a psican álise promete a
seus pacientes será sempre fict ícia enquanto o crité rio de sa ú ¬
de psíquica for uma realidade em si mesma enferma - e con ¬
dena, no plano sociol ógico, o indivíduo socializado à ren ú n ¬
cia e à repressão. Em estado de natureza, o indivíduo não
pode sobreviver; e no estado social , não pode ser feliz. O pathos
desse dilema, que a teoria pol ítica burguesa tentou camuflar
com a doutrina do contrato social ( Hobbes, Locke, Rousseau)
e que os freudo- marxistas banalizaram com sua pseudo-
historicização (o antagonismo indivíduo-sociedade, que Freud
supõe eterno, só é inevit ável no sistema capitalista) aparece
aqui sem nenhum disfarce. O processo çivilizató rio coincide
com o sacrifício pulsional.6'

De tal forma, a recusa da síntese leva a Escola de Frankfurt a


expandir a análise da dominação, no capitalismo , a estruturas até en ¬

t ã o desconhecidas do marxismo vulgar, mas sem cair na tentação de


Reich e Fromm de dar à superestrutura o condã o de iniciar o
procedimento da reconciliação. A superestrutura é também responsá-

61 ROUANET, Sé rgio Paulo. Teoria Critica e Psicanálise. Op. cit . , pp. 110 e 111 .
UTOPIA E DIREITO

vel pela divisão e pela opressão, mesmo se apresentando sob a forma


da razão, da técnica e do progresso. A Escola de Frankfurt h á de rom ¬

per com o paradigma do progresso infinito e linear, denunciando a


regressão e a barbá rie.
A quest ão é que o esclarecimento tem que tomar consci ê ncia
de si mesmo, se os homens n ão devem ser completamente
traídos. N ão é da conservação do passado, mas de resgatar a
esperança passada que se trata. Hoje, porém , o passado se pro¬
longa como destrui ção do passado . Se a cultura respeitável
constituiu at é o século dezenove um privilégio, cujo preço era
o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espa¬
ço higié nico da fá brica teve por preço a fusão de todos os ele ¬
mentos da cultura num cadinho gigantesco . [...] Nas condi ¬
ções atuais, os próprios bens da fortuna convertem-se em ele¬
mentos do infort ú nio. Enquanto no per íodo passado a massa
desses bens, na falta de um sujeito social, resultava na chama ¬
da superprodução, em meio às crises da economia interna,
hoje ela produz, com a entronização dos grupos que det ê m o
poder no lugar desse sujeito social , a ameaça internacional do
fascismo: o progresso converte-se em regressão.62
Assim, para Adorno e Horkheimer, buscando aliar a den ú ncia
marxista à relativa inflexibilidade do freudismo sem s í nteses, o pro¬
gresso é a regressão. A utopia só cabe, na verdade, como den ú ncia da
esperan ça do ontem que não se cumpriu.63

62 ADORNO e HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985 , p. 15.
63 " Diante das transforma ções por que passou o capitalismo no sé culo XX, Adorno n ã o vê outra
possibilidade para a filosofia sen ã o a de examinar o existente sob a luz da promessa de
reden çã o que, por um lado, foi perdida quando da passagem à 'sociedade administrada', e
que, por outro, ilumina tragicamente a pró pria história da filosofia". NOBRE, Marcos. A Dialética
Negativa de Theodor W. Adorno . São Paulo, Fapesp/lluminuras, 1998, p . 40.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

DA ESCOLA DE FRANKFURT A MARCUSE


O pensamento de Marcuse é tributário e ao mesmo tempo dissi ¬

dente do corpo principal de pensamento da Escola de Frankfurt. Ador¬


no e Horkheimer sao seus principais inspiradores, mas, ao mesmo tem¬
po, Marcuse rejeitará em grande parte a utopia negativa dos funda¬
dores da Escola de Frankfurt. Nos movimentos de revolta estudantil
da década de I 960, a diferença é bem clara. Enquanto Adorno che¬
gou a ser hostilizado pelos estudantes, por sua relativa apatia quanto às
insurgências, Marcuse foi tido como o principal inspirador teó rico
dos movimentos daquela década. A postura marcuseana foi , decidida ¬

mente, pela atuação polí tica, levada cada vez mais ao radicalismo.

Tal postura política ativa em face dos movimentos estudantis e soci


¬

ais de seu tempo encaminha Marcuse a uma abordagem distinta do


problema da utopia. Enquanto para Adorno e Horkheimer somente a
filosofia poderia iluminar a perda da utopia, porque a sociedade capita ¬

lista já internalizara a dominação a ponto de não haver volta, para


Marcuse trata-se do contrário. O papel da filosofia é o de desbastar a
dominação e as suas contradições, porque nessas contradições do capita¬
lismo contemporâneo estariam as possibilidades da utopia.
Mas, ao mesmo tempo, Marcuse não aceita a utopia fá cil do
freudo-marxismo de Reich e Fromm. Não se trata apenas de proceder
a uma exponencia ção do prazer liberto das amarras do superego e da
sociedade autoritá ria, sem que se encontre a dialética existente entre
tais. Marcuse aposta, tal qual Adorno e Horkheimer, que a sociedade
capitalista já internalizou de maneira profunda a dominação. Õ que
ocorre, então, para Marcuse, é a necessidade de transformar o capita¬
lismo, a fim de que se liberte a humanidade, e n ão o contrário, como o
freudo-marxismo previa.
PSICANáLISE E LIBERTAçãO
Em Eros e Civilização., sua principal obra, Marcuse dedica-se à jun¬
ção da psicanálise ao marxismo, embora seu escopo fundamental seja,
mesmo, debruçar-se sobre Freud e seus horizontes. Fromm é uma das
bases de contraste com o pensamento marcuseano. É preciso rejeitar a
facilidade da transformação no mundo contemporâneo, e, nessa petição
de princípio pela dificuldade, Marcuse é muito próximo de Adorno.
Reich e Fromm apostam que as condições para a libertação se
d ão tanto no plano sexual , da personalidade, quanto no plano social,
das estruturas polí ticas e económicas. Encaminham, assim , uma análi¬
se da utopia da libertação que comece por emancipar os indivíduos
dos constrangimentos da sociedade autoritária, por meio da liberta ¬

ção sexual. Segundo Reich e Fromm , o prazer é o caminho da trans¬


formação e da utopia.
Marcuse aponta a falta de dialética de tal visão, superficial na sua
perspectiva: a aposta na libertação como possibilidade do prazer pes ¬

soal é a falta de mobilização e de ação na transformação das estruturas


que condicionam o autoritarismo e a opressão. Assim, Reich e Fromm
poderiam ser vistos como pensadores ainda iluministas, numa certa
medida liberais, na medida em que erigem no indivíduo um papel
preponderante na transformação. Marcuse há de acreditar que tal
postura é insuficiente, não dando conta de toda a contradi ção da soci ¬

edade capitalista. Tratando de Fromm e Reich como revisionistas que


enfraqueceram o potencial revolucion á rio da teoria freudiana, assim
aponta Marcuse:
Acima e contra esse “ programa m ínimo” , Fromm e os outros
revisionistas proclamam uma finalidade superior da terapia: o
“ desenvolvimento ó timo das potencialidades de uma pessoa e
a realização de sua individualidade” . Ora , é precisamente essa
rr
\
ALYSSON LEANDRO MASCARO

finalidade que é essencialmente inatingível — n ão por causa


das limitações nas t écnicas psicanalí ticas, mas porque a pró ¬
pria civilização estabelecida a nega, em sua estrutura. Ou se
define “ personalidade” e “ individualidade” em termos de suas
possibilidades dentro da forma estabelecida de civilização, em
cujo caso a sua realizaçã o é sinó nimo, para a grande maioria,
de um ajustamento bem sucedido; ou se define nos termos de
seu conte ú do transcendente, incluindo suas potencialidades
socialmente negadas, para além (e subentendidas) de sua exis¬
tência concreta; neste caso , sua realização implicaria trans¬
gressão, alé m da forma estabelecida de civilização, para mo¬
dos radicalmente novos de “ personalidade” e “ individualida¬
de” incompat íveis com os prevalecentes . Hoje, isso significa ¬
ria “ curar” o paciente para converter-se num rebelde ou (o
que quer dizer a mesma coisa ) num m á rtir. O conceito
revisionista vacila entre as duas definições. Fromm revive to¬
dos os valores consagrados da ética idealista, como se nin¬
gué m tivesse jamais demonstrado suas caracter ísticas confor ¬
mistas e repressivas.64

Marcuse buscará, numa outra interpretação de Freud, sua dife ¬

rença em relação ao chamado revisionismo de Fromm e Reich. De


certa maneira, Marcuse iguala-se aos freudo-marxistas na cr í tica em
relação ao pessimismo de Freud quanto à possibilidade de felicidade
na civiliza çã o.65 A cr ítica de Reich a Freud encaminhava-se no sentido
de que a civilização n ão requereria, para seu estabelecimento, da re-

64 MARCUSE, Herbert. Eros e Civiliza ção. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan , s/d, p. 220.
65 " Em -
Eros e Civilização, sua tese é a de que Freud equivocou se quando viu na culpa e na
infelicidade o inevitá vel tributo pago pelos indiv íduos para se protegerem da destrui ção
..
m ú tua. [. ] Marcuse n ã o aceita essa dial ética . Em seu entender, ela mostra dois grandes
defeitos. Em primeiro lugar, Freud teria tomado 'a civiliza çã o' como sin ó nimo de interioriza ção
das necessidades alienadas do capitalismo industrial . Em segundo, Freud , malgrado ele
pró prio, confundiu eros com sexualidade. Se, de fato, uma sociedade afogada em sexualida ¬
de n ão pode ser feliz, há como pensar numa sociedade feliz e pacificada, sob o regime do
.
erotismo" COSTA, Jurandir Freire. " Utopia sexual, utopia amorosa". In Utopia e mal-estar na
cultura : perspectivas psicanalíticas. São Paulo, Hucitec, 1997, p. 117.
UTOPIA E DIREITO

n ú ncia aos prazeres genitais , no m áximo aos prazeres pré-genitais ou


ent ão das pulsões agressivas. Assim , seria possível distinguir quais seri ¬

am as repressões da civilização necessá rias e quais as excedentes.

Marcuse també m se encaminha pr óximo a essa perspectiva, mas


noutra abordagem . Constr ó i a noçã o de “ mais- repress ão” , aquela res ¬

pons á vel pela opress ã o na civiliza ção. Mas aposta Marcuse no


florescimento dos pr ó prios prazeres pr é-genitais como condi ção de
uma sublimação positiva . O Ego , como responsável pela sublima ¬

çã o , teria condi ções de proceder a uma orienta çã o dos prazeres


n ã o só genitais, mas fundamentalmente pr é-genitais - que não seja

para a manuten ção da ordem opressiva e castradora da felicidade,
mas que seja, sim , conscientemente liberadora de prazer. Afastando

a sexualidade meramente reprodutora genital, segundo Reich ,

Marcuse aponta uma sexualidade que invista em todo o corpo e , da í,
a novas modalidades ut ó picas de prazer, n ã o centradas nos mecanis¬
mos tradicionais da sociedade capitalista , que são orientados para a
reprodução e o controle.
A força plena da moralidade civilizada foi mobilizada contra o
uso do corpo como mero objeto, meio, instrumento de prazer;
tal coisificação era tabu e manteve-se como infeliz privilégio de
prostitutas, degenerados e pervertidos. Precisamente em sua
gratificação e, em especial , em sua gratificação sexual , o homem
tinha de comportar-se como um ser superior, vinculado a valo¬
res superiores; a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor.
Com o aparecimento de um princípio de realidade n ão- repres-
sivo, com a abolição da mais-repressão requerida pelo princípio
de desempenho , esse processo seria invertido. Nas relações soci¬
ais, a coisificação reduzir-se-ia à medida que a divisão do traba¬
lho se reorientasse para a gratificação de necessidades individu¬
ais, desenvolvendo-se livremente; ao passo que, na esfera das
relações libidinais, o tabu sobre a coisifica ção do corpo seria
AJLYSSON LEANDRO MASCARO

atenuado. Tendo deixado de ser usado como instrumento de


trabalho em tempo integral, o corpo seria ressexualizado. [...]
Essa mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria
a uma desintegração das instituições em que foram organizadas
as relações privadas interpessoais, particularmente a fam ília
monogâ mica e patriarcal .
[ ...] Falamos da auto-sublimação da sexualidade. O termo impli ¬
ca que a sexualidade pode, sob condições específicas, criar rela¬
ções humanas altamente civilizadas sem estar sujeita à organi ¬
zação repressiva que a civilização estabelecida impôs ao instin ¬
to. Tal auto-sublimação pressupõe o progresso histó rico
para
alé m das instituições do princípio de desempenho, as quais,
por sua vez, permitiriam a regressão instintiva. Para o desenvol ¬
vimento do instinto, isso significa regressão da sexualidade a
serviço da reprodução para a sexualidade na função de “ obter
prazer através das zonas do corpo” . Com essa restauração da
estrutura prim ária da sexualidade, a primazia da função genital

foi quebrada assim como a dessexualização do corpo que acom ¬
panhou essa primazia. O organismo , em sua totalidade, torna ¬

se o substratum da sexualidade, enquanto , ao mesmo tempo , o


objetivo do instinto deixa de ser absorvido por uma fun ção es¬
pecializada, ou seja, a de “ pôr os órgãos genitais do indivíduo
em contato com os de alguém do sexo oposto” . 66

Aponta Marcuse para um freudismo que supere sua origina! in ¬

capacidade de conciliação entre Eros e Civilização. Para além de Reich


e Fromm , que acreditavam no potencial genital libertá rio, Marcuse
inscrever á a mudan ça da civilizaçã o como libertadora dos prazeres
corporais, que chegariam aos n íveis pré-genitais.

66 MARCUSE, op. di , pp. 177 e 179.


UTOPIA E DIREITO

A UTOPIA EM MARCUSE
Ao contrário do pensamento freudo- marxismo, Marcuse inicia
sua visão da utopia de um ponto de partida negativo, tal qual Adorno
e Horkheimer: a sociedade capitalista não possibilita a satisfação das
necessidades nem a libertação dos prazeres. Só na an álise dos mecanis¬
mos pelos quais o capitalismo introjetou a dominação é que se revela o
passo possível da utopia para Marcuse.
Havia impl ícita, na teoria do freudo-marxismo, a possibilidade
da den ú ncia ideológica da opressão, na medida em que a razão - como
o contr á rio da ideologia - seria arma da libertação. A dominação se ¬

xual, a exploração extra- necessá ria imposta pela sociedade capitalista,


o bloqueio do prazer, tudo isso seria denunciável pela razão, de tal
sorte que o projeto utó pico da emancipação seria racional. Marcuse
desconfia de tal postura. Nas.sociedades capitalistas contemporâ neas,
desenvolvidas, h á de enxergar uma incorpora çã o da pr ó pria
racionalidade ao sistema opressivo: a razão, que antes era potencial
arma de.contestação e cr ítica, passa a ser, agora, um dos instrumentos
da própria lógica da dominação. A racionalidade administrativa, dos
negócios, a utilização da psicologia como forma de dom ínio — o pensa¬
mento positivo como arma de negócios e lucros - são instrumentais
que se valem da razão não para a emancipação, e sim para o domínio.
A sociedade que resulta de tal introjeção do domínio na pr ó pria
racionalidade das massas, das classes exploradoras e exploradas,
Marcuse a denomina sociedade unidimensional . Sua característica
fundamental é a de n ão lograr constituir um duplo crítico que esteja
do lado oposto do domínio. A racionalidade não funciona como con ¬

traste da opressão; antes, é arma da pró pria opressão.

Resulta de tal unidimensionalização social e individual que o pro ¬


jeto da utopia vai se esgotando nas sociedades capitalistas contempo-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

raneas. O espaço do diverso, do crítico, do contrastante - do mais


além - se esvai, e, em seu lugar, toma corpo a racionalidade adminis-
tradgra dos ganhos e preju ízos imediatos. A incorporação das classes
proletá rias a ganhos de consumo, nas sociedades capitalistas contem ¬

porâneas, esgota a capacidade utópica em troca da manutenção do


mesmo. Neste sentido, a unidimensionalização do homem é a impossi ¬
bilidade de sonhar e projetar, de maneira crítica, a emancipação.
A estrutura das sociedades capitalistas contemporâneas, ao incorpo ¬

rar a racionalidade como cálculo da produtividade, do desempenho no


trabalho, transforma o potencial revolucionário e libertador das classes
trabalhadoras em utopia tomada no sentido banal de impossibilidade.
A relegação de possibilidades reais para a “ terra de ningu ém”
da utopia constitui, só por si, um elemento essencial da ideo¬
logia do princípio de desempenho. Se a construção de um
desenvolvimento instintivo n ão-repressivo se orientar, n ão pelo
passado sub-histórico, mas pelo presente histórico e a civiliza ¬

ção madura, a própria noção de utopia perde o seu significa¬


do. A negação do princípio de desempenho emerge não con¬
tra, mas com o progresso da racionalidade consciente; pressu ¬

põe a mais alta maturação da civilização. As próprias realiza¬


ções do princípio de desempenho intensificaram a discrepâ n ¬

cia entre os processos do inconsciente arcaico e da consciência


do homem, por uma parte, e as suas potencialidades concre¬
tas, por outra.67

Marcuse encaminha, a partir daí, uma crí tica da cultura bastante


específica. Revela-se, quanto à cultura, um paradoxo no que diz res¬
peito à utopia: enquanto alienação da esfera produtiva, ou enquanto
máscara que embaralha a visada da realidade, a cultura representa um
elemento de alteridade, e, portanto, o desgarramento. da realidade

67 Ibid . , p. 139.
UTOPIA E DIREITO

opressiva representará, por si pró prio, um potencial emancipató rio.


No entanto, na medida em que a cultura se converta em representa-
ção efetiva do pró prio domíiiíõ, sem contraste, ou sem divergê ncia, a
cultura é a pr ópria realidade da unidimensionalização.
Tal se d á, segundo Marcuse, na pró pria filosofia, quando incor ¬
pora a racionalidade do domínio social em si própria, e não abre hori ¬

zontes de cr ítica . O positivismo é a face acabada de tal esgotamento


ut ó pico na filosofia, na medida em que se presta meramente aos ins ¬

trumentais analíticos que n ão logram encaminhar a crítica ao existen ¬


te. A unidimensionaliza ção, na filosofia, se revela no positivismo e na
filosofia analítica.68
O positivismo é o exato contr á rio, pois, de uma teoria cr ítica que
possa colocar sob suspei ção a pr ó pria razão e, por isso, possa apontar
necessariamente um sentido de utopia. Num texto intitulado “ Filoso ¬

fia e Teoria Cr ítica” , Marcuse aponta os laços necessá rios da Teoria


Cr ítica com a utopia:
Nesse estádio dado de desenvolvimento, mostra-se novamen¬
te o car á ter construtivo da teoria cr ítica. Desde o in ício, ela foi
mais do que um mero registro ou sistematizaçã o de fatos, seu
impulso vem exatamente de sua for ça, com a qual fala contra
os fatos, confrontando a m á facticidade com suas melhores
possibilidades . Como a filosofia, ela opõe-se à justiça da reaii-

68 -
"Assim como a sociedade unidimensional é a caricatura da dial ética fusão repressiva de
contr á rios - e realiza sua pró pria desalienação - cr ítica repressiva da aliena ção da cultura , ou

cr ítica da cr ítica o positivismo, reflexo teórico dessa sociedade, assume , também, a forma de
uma filosofia pol ê mica , voltada contra o pensamento metaf ísico e contra as formula ções
ling üísticas inexatas. Vá lidas são apenas as proposi ções da l ógica e da matem á tica verdadei ¬
-
ras mas tautol ógicas, pois assumem a forma de julgamentos anal íticos, em que o predicado já
est á contido no sujeito - e as proposi ções valid á veis pela verifica çã o emp írica , que dizem
algo sobre a realidade ( julgamentos sintéticos, em que o predicado n ão está contido no
sujeito ) mas que n ão sã o certas, e sim meramente prová veis. Sã o esses os limites absolutos do
horizonte cognitivo positivista . Ora , as proposi ções cr íticas, que transcendem o existente,
-
situam se, por defini ção, fora desses dois crité rios. [...] São, em sua essê ncia, irracionais, de
acordo com as regras do jogo estabelecidas, autoritariamente, pela epistemolog í a positivista".
ROUANET, op. dl ., p. 205.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

dade, opõ e-se ao positivismo satisfeito. Entretanto , diferente¬


mente da filosofia, sempre extrai seus objetivos a partir das
tendê ncias existentes do processo social . Portanto , ela não tem
medo da utopia, pela qual a nova ordem é denunciada . Na
medida em que a verdade n ã o for realizá vel dentro da ordem
social existente, mesmo assim ela tem para esta o cará ter de
uma mera utopia. Tal transcend ê ncia n ão fala contra, mas sim
pela verdade. O elemento ut ó pico foi , na filosofia, durante
muito tempo, o ú nico elemento progressivo: como as cons¬
truções dos melhores Estados, do prazer superior, da felicida ¬
de (Glückseligkeit) perfeita e da paz perp étua. A teimosia, que
vem de se apegar à verdade contra todas as aparê ncias , tem
dado lugar, na filosofia, hoje , à extravagâ ncia e ao oportunis¬
mo sem pudor. Na teoria cr ítica, a teimosia foi mantida como
a autêntica qualidade do pensamento filosó fico.69

O processo de unidimensionalização, para Marcuse, revelar-se-á


complementar ao domí nio da técnica na sociedade capitalista. A téc¬
nica passa a se revelar como forma da unidimensionalização, na medi ¬

da em que é forma ú nica da reprodução capitalista . A técnica repre¬


senta a banaliza çã o do sentido, numa crítica de Marcuse muito próxi ¬

ma, em certa medida, à de Heidegger, que lhe valeu , no que versa a


— —
respeito da técnica, uma pecha indevida de reacion á rio, na medi
da em que apostaria numa sociedade pré- tecnológica. No entanto, o
¬

encaminhamento da questão da técnica em Marcuse é justamente o


oposto de qualquer regressão origin á ria no sentido heideggeriano. Na
verdade, a cr ítica marcuseana à técnica revela-se muito mais próxima
de Marx que de Heidegger, na medida em que é a exacerbação da
t écnica que possibilita vislumbrar a utopia. Antes de se insurgir contra
a técnica, Marcuse a pressupõe.70

69 e Sociedade. Vol . 1. S ão Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 145.


MARCUSE, Herbert . Cultura
70 "Marcuse procurou demonstrar que o que diferenciava nossa é poca histó rica de qualquer
outra j á vivida pela humanidade era o fato de que nela viver íamos num outro estado
UTOPIA E DIREITO

O projeto ut ó pico de Marcuse passa , necessariamente, pela eman ¬


cipação do trabafiio ; tal qual Marx, há de situar no n ível produtivo, na
exploração da for ça de trabalho , o cerne da injustiça capitalista . Ao
contrario das críticas vulgares, mas, paradoxalmente, ainda nos passos
do pró prio Marx, Marcuse aponta o alto componente ut ó pico da exa¬
cerbação da t écnica capitalista para a questão do trabalho: chegando a
um n ível no qual a satisfação das necessidades esteja praticamente ga
¬

rantida por conta da tecnologia, haveria então a emancipaçã o da ne ¬

cessidade do trabalho — ao menos do trabalho explorado — e o traba ¬


lho converter-se-ia, então, em tempo livre, transformando a opressão
em gozo. Nas palavras de Marcuse, tratar -se- ia, no vislumbre da uto¬
pia, de transformar o trabalho em jogo. A utopia de Marcuse, no cerne
duro das relações produtivas, concerne em transformar a exploração
em atividade l ú dica.71

Marcuse se dá conta, no entanto , que a sociedade capitalista absor¬


ve e manipula o progresso técnico de tal modo que a exploração n ão se
faça só por conta da necessidade do trabalho para a produção, mas,
essencialmente, para a manuten ção do dom ínio social. A sociedade ca¬
pitalista se mobiliza contra o inimigo externo - a possibilidade de ruptu ¬

ra revolucion á ria — e se mantém mobilizada contra a emancipação in ¬


terna das classes proletá rias dominadas . Assim, aponta o paradoxo
da
potencial liberação do trabalho que n ão se realiza no capitalismo:

tecnológico, num outro estágio de civiliza çã o. O desenvolvimento acelerado das novas


que as
tecnologias - já perfeitamente delineadas em meados da d écada de 60, fazia antever
o homem".
mesmas poderiam abrir caminho para novas possibilidades de libera ção para
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse: uma trajetória. Londrina , Ed . UEL, 1999 p
, . 170.
mica , social e pol ítica, mas també m
71 " Logo, a revolu ção no século XX n ão será apenas econ ó
e a
cultural . É necessá rio reformular a teoria marxista , n ã o só porque mudaram estrutura
a
trabalhador a, mas tamb é m porque o capitalismo conseguiu estabilizar ¬

consciência da classe
. Da í o
se. Numa palavra, é preciso pensar a revolu ção no â mbito da sociedade de consumo
fasc ínio exercido pelas id é ias de Marcuse sobre as revoltas estudantis dos
anos 60, quando se
percebeu que o capitalismo podia ser posto em xeque n ão em virtude de car
ê ncias materiais,
.
mas espirituais" LOUREIRO , Isabel Maria. " Herbert Marcuse - A rela çã o entre teoria e pr ática". In
, . / Fapesp , 1998 , p , 117.
Cap ítulos do Marxismo Ocidental. Sã o Paulo Ed Unesp
ALYSSON LEANDRO MASCARO

A expressão mais óbvia da oposi ção enrre possibilidade e rea¬


lidade reside na automação. Com a progressiva automação, o
sistema tende de fato à supressão quase total do trabalho soci ¬
almente necessá rio, do trabalho alienado, ou seja, ele tende,
n ão só de maneira ut ó pica , mas de maneira bastante realista,
a ser uma sociedade em que o tempo de trabalho é um tempo
marginal e o tempo livre é tempo integral , a ser uma socieda¬
de em que o desemprego seria normal e progressivo. Esta pos¬
sibilidade é irrealizável nos quadros do sistema , ela é incom ¬

patível com as institui ções econ ó micas, pol íticas e culturais


por ele criadas, seria de fato a catástrofe do sistema capitalista,
donde a mobilização total n ão só contra o inimigo externo,
como també m contra essa possibilidade.72

Não apostando apenas no progresso ou no devir mecâ nico das


possibilidades, mas ressaltando o cará ter pol ítico da luta pela eman ¬

cipação, a utopia em Marcuse, ao contrá rio do freudo-marxismo , irá


problematizar a questão da felicidade, lembrando de seu car á ter po ¬

l ítico-estrutural, e n ão apenas do seu componente psíquico-indivi ¬


dual. No trabalho e na opressão estrutural do capitalismo, residem
grandes alicerces da sociedade neur ó tica. Marcuse vislumbrar á a uto ¬

pia só na ação de emancipação, no projeto de libertação total e es¬


trutural. Insiste na dial é tica, enquanto contradição e negação, como
fundamento da libertação e como horizonte atual para que se pense
a utopia futura. Somente após a grande travessia da libertação da
contradição é que a humanidade estaria então de frente consigo pró ¬

pria , emancipada. O projeto do Iluminismo, da reconciliação da hu¬


manidade consigo pró pria, n ão é o mé todo da libertação, é sim sua
meta. O m étodo é dialé tico, fincando Marcuse o p é de sua filosofia

72 MARCUSE, Herbert. "Perspectivas do socialismo na sociedade industrial avan çada" in A Gran¬


,

de Recusa Hoje. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 48.


UTOPIA E DIREITO

em Hegel e Marx: é preciso a radicalidade do negativo para que se


chegue ao positivo.73
Valendo-se de uma hermen ê utica simbólica para seu projeto de
utopia, Marcuse considera a sociedade emancipada como o Reino
de Orfeu e Narciso , em oposi ção ao Reino de Prometeu, sendo este
tomado por Marcuse, em Eros e Civilização , como “ her ó i- arqué tipo
do princípio de desempenho” . Orfeu pacifica e reconcilia o homem
com a natureza. Vale-se, portanto, de uma reerotização que não seja
apenas vinculada ao princípio do desempenho, da procriação, da
genitalidade: todo o corpo, a natureza , as á rvores e os animais tor-
nam-se potenciais er ó ticos. Com Narciso, revelam-se a pacificação
do homem consigo pr ó prio, com a beleza, e a insurgê ncia contra a
dominação e a ren ú ncia aos prazeres.
As imagens ó rfico-narcisistas são as da Grande Recusa: recusa
em aceitar a separação do objeto (ou sujeito) libidinal . A re ¬
cusa visa à libertação — a reunião do que ficou separado . Orfeu
é o arqu é tipo do poeta como liberator e creator, estabelece uma
ordem superior no mundo, uma ordem sem repress ão. [...]
Tal como Narciso, (Eros) protesta contra a ordem repressiva
da sexualidade procriadora. O Eros órfico e narcisista é, fun ¬
damentalmente, a negação dessa ordem a Grande Recusa.
No mundo simbolizado pelo herói-cultural Prometeu trata
— ¬

se da negação de toda a ordem; mas nessa negação Orfeu e


Narciso revelam' uma nova realidade, com uma ordem pró-

73 "Dissemos que para Marx, como para Hegel, a verdade está na totalidade negativa . [. ..] O
cará ter histó rico da dial ética marxista abarca a negatividade vigente e a sua nega ção. Um dado
estado de coisas é negativo e só pode ser tornado positivo pela libertação das possibilidades
a ele inerentes. Isto, a negação da nega çã o, se realiza pelo estabelecimento de uma nova
ordem de coisas. A negatividade e sua negação sã o duas fases diferentes do mesmo processo
histó rico, associadas pela a ção histó rica do homem. O " novo" estado é a verdade do velho,
mas esta verdade n ã o cresce firme e automaticamente a partir do estado mais antigo; ela só
pode ser libertada por uma a çã o autó noma dos homens, a ção que anulará a totalidade do
estado negativo existente". MARCUSE, Herbert . Razão e Revolução . Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1978, pp. 286 e 287.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

pria, governada por diferentes princípios. O Eros ó rfico trans¬


forma o ser; domina a crueldade e a morte através da liberta ¬
ção. A sua linguagem é a canção e a sua existência é a contem¬
-
plação. Essas imagens referem se à dimensão estética como sen ¬
do aquela em que o princípio de realidade das mesmas deve
ser procurado e validado.74

rA utopia em Marcuse, pois, começa negativa como em Adorno e


Horkheimer, negando o hoje, trabalhando politicamente por sua re¬
futação - sendo tal postura a chamada Grande Recusa marcuseana
— para que então se revele o amanh ã da reconciliação, a utopia que se
encerrar á positiva
^
A Grande Recusa é ao mesmo tempo o extremo da negatividade,
da esperan ça e da utopia, e o ponto sensível da filosofia marcuseana.75
A Grande Recusa é o descompromisso com o sistema da dominação,
sua den ú ncia, portanto uma ação política que comporta uma variante
filosófica fundamental, tomando a filosofia como den úncia da opres ¬

s ã o do seu rempo . O resultado da Grande Recusa é a utopia do


surgimento da sociedade sem repress ã o. No entanto, a Recusa e a ação
libertadora revelam , em Marcuse, o mesmo impasse de toda a Teoria
Crítica: a sociedade capitalista contempor ânea internalizou nas classes
exploradas a racionalidade opressora, não restando a alternativa dos
freudo- marxistas de uma libertação pela razão. A utopia, então, em

74 MARCUSE, Eros e Civilização, op cit . , pp. 1S4 e 155 .


75 A Grande Recusa de Marcuse chega a permitir a acusa çã o de falta de sentido da transforma
çã o
ou de descompromisso com uma perspectiva democrática: "Permanecendo preso a um ideal
utó pico, o pensamento negativo se transforma em revolucionarismo nost á lgico, repassado da
amargura da impotê ncia. [...] A supressão dos movimentos regressivos é para Marcuse um
requisito do refor ço das tend ê ncias progressistas . Na pr á tica , isso significa a adoçã o de
processos exlrademocráticos de ação pol ítica. [...] Entronizando a viol ê ncia revolucion á ria,
Marcuse n ã o consegue identificar o seu agente social [...] Desde que o proletariado se
adaptou à sociedade repressiva , as forças de emancipa çã o n ã o se confundem mais com
nenhuma classe social. ' Hoje, elas estão irremediavelmente dispersas através da sociedade', e
as minorias em luta entram freq ü entemente em conflito com as suas pró prias lideran ç as. O
agente da revolu ção n ão tem rosto definido". MERQUIOR, José Guilherme. Arte e Sociedade em
Marcuse , Adorno e Benjamin. Rio de laneiro, Tempo Brasileiro, 1969, pp. 290 e segs.
UTOPIA E DIREITO

Marcuse, há de se revelar, paradoxalmente, uma aposta última na filo¬


sofia: a democracia representativa burguesa não representa a. vontade
da maioria, porque a maioria dominada pensa já como a minoria que
a subjuga. Àpontar os sujeitos históricos da transformação é o grande
dilema marcuseano, porque, desgarrado da possibilidade da alavanca
da denuncia (o que faziam Reich e Fromm contra a Escola de Frank¬
furt ) , mas, ao mesmo tempo , distante da postura apolítica de
Horkheimer e Adorno, só resta a Marcuse apostar que a filosofia, tal
qual a Escola de Frankfurt, ilumine a negatividade da opressão, mas,
além déla, que os que ainda não tenham sido totalmente contamina ¬


dos pela racionalidade da dominação alguns proletários, os intelec¬
tuais, os jovens, hippies, ecologistas etc. - se levantem. A Grande Re ¬

cusa de Marcuse é difusa.

Num texto de 1969, na euforia dos acontecimentos das rebeliões


estudantis, nas quais Marcuse assume o papel de teó rico central, ele
aponta tal margem lata e difusa da possibilidade de transforma ção:
Na medida em que o processo pseudodemocrá tico, com a aju ¬

da de parte do monopólio da m ídia tradicional, produz e re ¬

produz a mesma sociedade e, assim, uma ampla maioria indi¬


ferente, na mesma medida a formação e a preparação políticas
precisam ultrapassar as formas liberais tradicionais. A ativida ¬

de e o esclarecimento políticos precisam ir além de ensinar e


escutar, discutir e escrever.

A esquerda precisa encontrar meios adequados para quebrar o


universo conformista da linguagem e do comportamento pol í¬
ticos. A esquerda tem que procurar despertar a consciência
(.Bewusstsein ) e a consciência moral ( Gewissein ) dos outros. Que¬
brar o modelo corrupto de linguagem e comportamento im¬
posto a toda atividade política é uma tarefa quase sobre-huma¬
na. Exige encontrar uma linguagem e novas formas de organi ¬
zação que n ão tenham mais nada em comum com o uso políti -
ALYSSON LEANDRO MASCARO

co conhecido. Perante o establishments a razão estabelecida esse


tipo de comportamento aparece e precisa aparecer como louco,
infantil, irracional. Contudo, poderia muito bem ser o prelu ¬

dio de uma tentativa, pelo menos temporariamente bem -suce ¬


dida, de explodir o universo repressivo das relações estabelecidas.
[...] É por faltar um partido revolucionário que, na minha
opini ão, esses supostos radicais infantis, embora fracos e des¬
norteados, são os verdadeiros herdeiros históricos da grande
tradição socialista. Todos sabemos que suas fileiras est ão
infiltradas por agentes provocadores, por loucos e irresponsá ¬
veis. Contudo, nas suas fileiras tamb é m se encontram seres
humanos suficientemente livres dos pecados desumanos da
sociedade exploradora, suficientemente livres portanto para
cooperar numa sociedade na qual n ã o deve mais existir explo¬
ração. É com eles que vou cooperar enquanto puder.76

A Grande Recusa se revela como a tentativa desesperada de fun ¬


dar a utopia na negaçã o, para cumprir o projeto de uma esperan ça
saída n ão da filosofia dos esperan çados, mas dos desesperados.

76 MARCUSE, Herbert. " N ã o basta destruir. Sobre a estratégia da esquerda". In A Grande


Recusa
Hoje , op. cít., pp. 84 e 86.
CAPíTULO 5

BLOCH E LUKáCS: O MARXISMO HETERODOXO

Ao tempo em que a Alemanha se preparava para sua revolução


socialista, em final da década de 1910, logo depois da vitoriosa Revo¬
lução dos russos, Bloch e Lukács já eram jovens filósofos insólitos. Em
1919, quando Rosa Luxemburgo marcaria pessoalmente a histó ria da
luta socialista mundial com a derrota de sua revolução, ambos os filó¬
sofos eram já marxistas. Também eram recém-hauridos de um conví¬
vio intenso com o cí rculo intelectual de Max Weber. Lukács fora, no
in ício da década de 1910, o escritor de sólidos estudos estéticos de
fundo idealista, A alma e as formas e Teoria do Romance, o mesmo que
insólitamente arremataria a década na preparação de um dos maiores
clássicos de toda a histó ria do marxismo, História e Consciência cie Classe.
Ao contrário deste grande movimento de virada lukacsiano, Bloch
já acentuava os traços de uma visão filosófica estabilizada. Marxista
mais velho que Lukács, também jovem e ainda na década de 1910,
escreveria O Espírito da Utopia, um dos marcos de uma visão insólita
do marxismo e uma das obras marcantes da filosofia do século XX. Ao
mesmo tempo, já prenunciava em sua obra de juventude a temática
que o perseguiu por toda a vida: a utopia, que se revelava numa
escatologia marxista aberta à religião e às tradições filosóficas mais
amplas, apontando para a esperança de um mundo justo.
A distâ ncia que se deu entre os Luk ács e Bloch maduros é tam¬
bém, de certa maneira, o volteio de um Lukács impregnado da faina
política concreta do mundo soviético, responsável por auto-revisões
ALYSSON LEANDRO MASCARO

de seu pensamento, enquanto para Bloch os problemas pol íticos n ão


loram capazes de fazê-lo alterar a rota de um pensamento cujos temas
eram especificamente mais buscados que os de Lukács. Terminaram
ambos sua trajet ó ria intelectual, na década de 1970, sem a aceitação
plena do marxismo ocidental , que era menos engajado que ambos, e
sem a aceitação do marxismo oficial sovié tico, que os enxergava como
her éticos. Al ém disso , foram proscritos pela maioria da filosofia bur ¬
guesa não-marxista . Embora coerente com suas paixões, Bloch fora
tragado pela ausê ncia de paixões dos novos tempos, o mesmo se dando
com Lukács. Foram heterodoxos tanto para a ortodoxia soviética quanto
para os câ nones do marxismo ocidental.

A INTELECTUALIDADE QUE SE TORNA MARXISTA

Bloch e Lukács introduziram-se no cí rculo de Weber, e ambos eram


tidos por esse grupo como m ísticos religiosos preocupados com questões
apocal ípticas, no dizer ir ó nico a seu respeito daqueles que conviviam
com Weber.77 Trata-se de uma clivagem peculiar: o weberianismo, ao
acentuar o desencanto com o mundo promovido pelo capitalismo, leva ¬
va Lukács e Bloch a um curioso movimento escatol ógico, que já anteci ¬

pava muito de suas futuras posições. A rejeição ao capitalismo de ambos


é uma certa forma de nega çã o da modernidade impessoal e
desumanizada. O romantismo é a possível localização do posicionamento
dos jovens pensadores na década de 1910. Desse diapasão , sairia a
ambivalência dos dois filósofos: o flerte com o romantismo é dado pelas
mesmas causas que os levaram , depois, ao marxismo.

77 " Luk á cs e Bloch Integravam o c í rculo de intelectuais que frequentavam os semin á rios privados
de Max Weber em Heidelberg, antes da 1 a Guerra Mundial e procuravam incutir nos demais
participantes seus ideais neo- rom â nticos. laspers, que també m fazia parte daquele grupo,
-
recorda se de ambos como 'gn ósticos que compartilhavam suas fantasias teosóficas em c írcu ¬
los sociais'". SotON, Ari Marcelo . Teoria da soberania como problema da norma jur ídica e da
decisão. Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1997, p. 177.
UTOPIA E DIREITO

Havia, no ambiente alemão de in ício do século XX, uma explosi¬


va reação ao liberalismo e ao dom ínio impessoal capitalista, que pode¬
ria ser representado, no plano filosófico, pela insurgê ncia contra o
neokantismo e suas variantes. Uma primeira grande corrente filosófi ¬

ca, cujo arco vai desde Spengler até Heidegger, passando antes disso
por Nietzsche , encaminhava a cr ítica da modernidade para os
quadrantes do conservadorismo e do reacionarismo. Uma segunda
corrente, progressista, valeu-se novamente de Hegel para trilhar os
caminhos que redundariam ao final em Marx.
O romantismo é um movimento amplo que comporta tanto as
vari áveis reacionárias quanto as de esquerda. O mote de Bloch, aliás,
em seus escritos de juventude, era justamente o de valer-se do passado
como fonte das utopias do futuro. Na d écada de 1910, quando Lukács
se abeirou do ambiente weberiano de Bloch, as sementes dos mais
opostos caminhos de negaçã o à modernidade ainda estavam sendo
germinadas, muito próximas umas das outras, no mesmo solo.
O trajeto inicial de Bloch revela-se uma espécie de anunciação de
toda sua obra posterior. Sua metodologia, desde o in ício, é um
amálgama de metafísica com marxismo, do qual nunca quis se desven ¬
cilhar no futuro. Suas imagens, suas recorr ências, seus temas e aborda¬
gens são insólitos. Pesquisando na história religiosa os discursos de
Thomas M ü nzer, por exemplo, Bloch dará mostras da amplitude do
seu panorama filosófico, que tinha no marxismo uma espécie de avalista
final, mas n ão necessariamente de condutor imediato.
Lukács, neste sentido, só se deixou levar por algum am álgama
filosófico não-marxista no seu início de reflexão. História e Consciên¬
cia de Classe, seu principal livro, é o último n ão totalmente marxista,
na opinião do pró prio autor, que fez uma série de revisões e negações
de sua obra. Lukács era autor de temas peculiarmente clássicos do
marxismo: suas abordagens da consciência de classe, da ideologia, es -
r
ALYSSON LEANDRO MASCARO

tavam na tangente entre o n úcleo essencial do marxismo e a sua here¬


sia . Bloch muito pouco preocupou-se por centrar sua obra nas ques ¬

t ões fundamentais do trabalho e da economia pol ítica: estava fora da


tangente, atingindo o n ú cleo dos temas marxistas como quem , de uma
margem do rio, atravessa à outra não a nado, mas por um cipó nas
á rvores. No sentido filosófico, no entanto, Bloch fazia o mesmo trajeto
de todos os outros marxistas, visando a crítica da sociedade capitalista;
apenas o fazia ao seu modo.

MESSIANISMO, ESCATOLOGIA E ROMANTISMO

Bloch e Lukács eram reputados, no círculo de Max Weber, como


jovens apocalí pticos e messiâ nicos. De fato, a formação de ambos esta¬
va ancorada numa espécie de escatologia religiosa e moral que aponta ¬

va para o amanhã como redenção. O marxismo seria, para ambos, a


ferramenta de concretização desse novo tempo aguardado. Num mes ¬

mo processo de entrelaçamento de messianismo e marxismo , aliás, está


também Walter Benjamin , que compartilhou de uma certa escatologia
judaica e cultivou uma profunda ligação com Gershom Scholem. Este
aponta para o fato de que todos beberam diretamente das fontes da
m ística judaica e, posteriormente, tendo um mesmo horizonte comum,
conviveram e compartilharam do marxismo escatológico como resul ¬

tado de suas inquietações anteriores. Tratando de Benjamin:


Entre as categorias judaicas que ele havia introduzido como
tais e defendido até o fim , est á a ideia messi â nica; nada é mais
falso que a noção de que ela tenha provindo, em Benjamin, da
obra de Ernst Bloch , embora os dois se encontrassem no ter¬

reno judaico principalmente, a idéia da recorda ção.78

78 SCHOLEM, Gershom . O Colem, Benjamin, Buber e outros justos : judaica I . São Paulo, Perspec ¬
tiva , 1994, p. 210.
UTOP íA E DIREITO

Em Bloch, a nitidez desse messianismo é explícita, muito maior que


em Lukács e Benjamin. Ainda mais que nunca rejeitou , ao contrário de
Lukács, durante toda sua vida , suas perspectivas escatológicas. A grande
influê ncia inicial de Bloch é, certamente, a m ística judaica. Junto dela, o
movimento gn óstico, além de uma espécie pró pria de consideração a
respeito do protestantismo e do catolicismo, formarão a base do explosi ¬
vo pensamento blochiano. A gnose, com suas perguntas a respeito das
origens e do futuro e de quem são os homens, oferece uma espécie de
linguagem básica dos textos de Bloch . Toda introdução de seus livros,
aliás, apresenta algumas páginas de abertura que convidam a essa refle ¬

xão profunda e tocada por sentimentos que parecem estar ligados por
uma oculta cumplicidade entre o escritor e o leitor.

A cabala, por sua vez, é outra das recorrê ncias freqiientes de Bloch .
No Espírito da Utopia, em sua parte final, Bloch acena para uma jun ¬
ção muito significativa. Bloch denomina o último cap í tulo de sua obra
“ Karl Marx, a morte e o apocalipse” . Nesta triangulação , expõe o fun ¬

damento de uma compreensão dialé tica da histó ria, vinculada à liber ¬

tação e apontando para uma espécie de Messias que será a revolu ção.

Lukács, por sua vez, tem duas fases distintas em seu pensamento
messiâ nico. O marxismo lhe representar á n ão uma superação que ain ¬
da carreia consigo a escatologia, como ocorreu com Bloch , e sim um
afastamento da tem á tica da utopia m ística. Mas nas primeiras obras,
como na Teoria do Romance, a inspira ção de Luká cs - no que era ple ¬

namente acompanhado por Bloch - é claramente a mística russa. Os


russos, segundo o entendimento de Lukács, por meio de Dostoievski,
Tolstoi e outros, haviam logrado um afastamento da vil mercantilização
alem ã e ocidental . 79 Nestes, a alma se esvaziava em troca da

79 Gabriel Cohn, tratando de Weber: "Al ém de suas repetidas referências a Tolstoi, h á ind ícios de que
Dostoievski exerceu considerável fasc ínio sobre ele, tanto assim que forneceu temas para boa
es
parcela de seus contatos com o jovem Lukács, que na é poca estava às voltas com preocupa çõ
semelhantes". COHN, Gabriel. Crítica e Resignação. São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 158.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

homogeneização do capital . Os russos ainda apontavam um caminho


de comunh ão que, no pensamento lukacsiano, era a trilha da supera¬
ção da crise capitalista do ocidente. Apontando em Dostoievski um
possível caminho para, através do romance, superar o tempo presente
em busca de um pleno futuro, Lukács anuncia a sua m ística da utopia,
denunciando o pecado do presente:
Ele [Dostoievski] pertence ao novo mundo. Se ele já é o Homero
ou o Dante desse mundo ou se apenas fornece as canções que
artistas posteriores, juntamente com outros precursores, ur ¬
dir ão numa grande unidade, se ele é apenas um começo ou j á
um cumprimento - isso apenas a análise formal de sua obra
pode mostrar. E só ent ão poderá ser tarefa de uma exegese
histó rico-filosófica proferir se estamos, de fato, prestes a dei ¬
xar o estado da absoluta pecaminosidade ou se meras esperan ¬

ças proclamam a chegada do novo indícios de um porvir
ainda t ão fraco que pode ser esmagado , com o m ínimo de
esfor ço, pelo poder est é ril do meramente existente.b0
O messianismo lukacsiano, que no início era o impulso do ama ¬

nh ã contra seu tempo , vai dar lugar a uma disputa pelo presente. O
marxismo apregoado por Lukács abandona Dostoievski para, em seu
lugar, fincar bandeiras de uma estética realista. Bloch prosseguirá, no
entanto , num marxismo m ístico, e sua est é tica há de se converter em
expressionismo.81 Começa a í a separação.

80 LUKáCS, Georg. A teoria do romance. S ão Paulo, Duas Cidades/34, 2000, p. 160.


81 " Nesse momento, entretanto, os caminhos dos dois amigos apocal ípticos dostoievskianos de
Heidelberg começ am a se separar: enquanto Bloch continua ainda a se referir à s fontes
religiosas m ísticas, messi â nicas e her é ticas - em seu Thomas M ünzer se diz seguidor da
' imensa tradi ção' da qual participam os cá taros, os valdenses e os albigenses, Eckhart, os
hussitas, M ü nzer, os anabatistas, Sé bastien Frank etc. Luk á cs, exilado em Viena, torna -se um
dos principá is dirigentes do Partido Comunista H ú ngaro, e a problem á tica religiosa desapa ¬

rece pouco a pouco de sua obra . E quando, dez anos mais tarde, publica em Moscou urna
violenta diatribe contra o ' reacion á rio' Dostoievski { que Bloch n ã o perdoar á jamais ), o
rompimento ideol ógico entre os dois homens se consuma". L õWY, Michael. Romantismo e
messianismo. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1990, p . 66.
UTOPIA E DIREITO

UMA DIVERG êNCIA NAS CONCORDâ NCIAS: O EXPRESSIONISMO

Nas palavras de Bloch , entre ele e Lukács, no início de seus traje¬


tos filosóficos, havia uma espécie de “ vaso comunicante” : seus pensa ¬

mentos coincidiam em todos os aspectos e, por conta disso, cultiva¬


vam, com especial aten ção, as sutis e potenciais diferen ças entre suas
filosofias. Assim se pronuncia Bloch em entrevista concedida na déca ¬

da de 1970 a Michael Lõwy:


Portanto , em Budapeste, conheci Luk á cs mais profunda ¬
mente que na casa de Simmel em Berlim , e rapidamente
descobrimos que t í nhamos a mesma opinião sobre todas as
coisas; uma identidade t ão grande sobre pontos de vista
que fundamos uma “ reserva nacional ” ( Naturschuptzpark)
de nossas diferen ças; para que n ão dissé ssemos sempre as
mesmas coisas.82

Lukács se debruçara, logo de in ício, nas questões estéticas, no que


resultaram suas obras A alma e as formas e Teoria do Romance. Bloch
também era um apaixonado da esté tica, mas, conhecedor de m úsica,
dedicava-se a uma an álise cultural de uma envergadura mais ampla,
detendo-se com mais atenção, então, no problema musical. Mais que
isso , ele se valia da estética de forma mais marcante que Lukács: Bloch
n ão só era um estudioso da estética, mas sim era ele pr ó prio um artista
expressionista no seu estilo de escrita filosófica.
Thomas Miinzer, Teólogo da Revolução é o exemplo da utilização
do expressionismo como forma de alcançar objetivos filosóficos mais
profundos. Sua imediata implicação é a utilização, por parte de Bloch,
do ensaio como forma de comunicação. Composto de pedaços sufici¬
entes e aut ó nomos, Bloch visa a forma ção de um painel , que alcance

82 LõWY, Michael. A Evolução Política de Luk ács . S ão Paulo, Cortez, 1998, p. 296.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

n ã o apenas o n ível do intelecto, mas també m o nível da sensibilidade e


da vontade do leitor.83
As imagens tipicamente expressionistas, de forte colora ção e
visualização, sempre foram os recursos utilizados pelo texto blochiano.
Tal qual as par á bolas evangélicas, essas imagens t êm um sentido de
arrebatamento, que impossibilitam qualquer indiferença em relação
às quest ões tratadas. A aparente fragmenta ção do ensaio é, na verda-
de, a possibilidade estilística de arrebatar, procedendo ao modo de
socos intelectuais, e não do modo de fluê ncia que, ao fazer de todos os
t ó picos uma seq íiê ncia anal ítica formalmente ligada , n ã o abra espaço
para o respiro que leva à transformação do pensamento.
De alguma forma , é de se dizer, Bloch associa o expressionismo ao
marxismo, no sentido de que este é uma filosofia que busca a transfor¬
ma çã o , conforme a Tese XI contra Feuerbach e que, portanto, n ão
pode se bastar apenas na fria confrontação de ideias. O expressionismo,
para Bloch, era uma possibilidade de fazer da filosofia uma educação
revolucionária e, portanto, um evangelho do futuro.

J á O Espírito da Utopia é amplamente tomado por tais referênci ¬

as expressionistas, cuja estrutura estilística foi depois ainda mais


exponenciada em Thomas Miinzer. Uma das mais recorrentes imagens

83 Theodor Adorno, nas Notas de Literatura, é um dos primeiros a apontar uma indissociável
caracter ística utó pica no ensaio, que pode ser observada no pensamento de Bloch: "O ensaio
n ão apenas negligencia a certeza indubit á vei, como també m renuncia ao ideal dessa certeza .
Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o leva para al ém de si mesmo, e n ã o
pela obsessão em buscar seus fundamentos como se fossem tesouros enterrados. O que
ilumina seus conceitos é um terminus ad quem, que permanece oculto ao pró prio ensaio, e
n ã o um evidente terminus a quo. Assim , o pr ó prio m étodo do ensaio expressa sua intenção
utó pica . Todos os seus conceitos devem ser expostos de modo a carregar os outros, cada
conceito deve ser articulado por suas configurações com os demais. No ensaio, elementos
discretamente separados entre si são reunidos em um todo leg ível; ele não constró i nenhum
andaime ou estrutura . Mas, enquanto configuraçã o, os elementos se cristalizam por seu
movimento. Essa configuraçã o é um campo de forças, assim como cada forma ção do esp írito,
sob o olhar do ensaio, deve se transformar em um campo de forç as". ADORNO, Theodor. Notas
sobre literatura I. São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34, 2003, p . 30.
UTOPIA E DIREITO

de Bloch é a do futuro como um tempo novo. Estabanunciação do


futuro como a superação ressalta, também, o presente como ambiente
dos pequeno- burgueses, preguiçosos, que conduzem ao t ú mulo do
espírito. De outro lado, Bloch identifica na imagem da juventude a
marca da marcha pelo futuro melhor.84

Luk ács poderia estar tentado a se comunicar com o mundo


expressionista de Bloch, porque também é um pensador cujos textos,
em linguagem fácil e direta, primam a princí pio pela simbologia que é
peculiar també m a Bloch. No entanto, cultivavam uma diferença esté¬
tica que poderia ser o germe da divergê ncia de suas futuras carreiras
filosó ficas. Lukács distanciou -se do expressionismo para bater nas por¬
tas de algum classicismo e, principalmente, do realismo.

No entanto, embora se aproprie cada vez mais do pensamen ¬

to de Marx , a filosofia de Bloch guardará sempre uma dimen ¬

são rom ântica (revolucion ária). É esta a razão de sua profunda


identidade com Lukács até 1918 e de sua progressiva separa ¬

ção depois dessa data. Da entrevista que nos deu, depreende-


se claramente que Bloch considerava as novas posições de
Lukács, depois da guerra, como uma espécie de traição das
suas ideias comuns, na juventude. A célebre pol ê mica entre
os dois amigos-rivais, sobre o expressionismo nos anos 30 ,
n ão é mais que o resultado desta divergência fundamental entre
um marxismo de cores neo-rom â nticas e um marxismo rigo ¬

rosamente “ neoclássico” . Ainda mais significativa é a diferença


de suas an álises e atitudes políticas em face do fascismo na
Alemanha: Lukács denuncia com veem ê ncia o pensamento
rom â ntico da passagem do século como raiz ideol ó gica do fas ¬

cismo e procura a salvação numa alian ça político-cultural com


a burguesia esclarecida e democr á tica (encarnada, a seus olhos,

84 Cf. M ü NSTER, Amo. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch . Sã o
Paulo, Ed . Unesp, 1997, pp. 165 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

por Thomas Mann ) . Bloch, ao contr á rio, vai analisar em


Erbschaft dieserZeit ( A herança de nossa época, 1933) o mundo
cultural contradit ório e despedaçado da pequena burguesia
alemã, tentando separar a esperança e a revolta autê nticas de
seu contexto reacioná rio.85

De outro lado, Lukács começou a se distanciar de Bloch ao acu ¬

sar o expressionismo de uma ambigü idade que pode se prestar à rea¬


ção. Embora Lukács reconhecesse em Bloch uma abordagem diversa
do expressionismo, eminentemente cr ítica, viu no seu amigo de juven ¬
tude a utilização de uma corrente esté tica que, na sua opinião, servia
mais ao reacionarismo nazista que propriamente à ruptura da trans¬
forma çã o . Bloch , no entanto , n ã o abandona sua perspectiva
expressionista e a reitera, para além das suas obras de juventude, em
outras posteriores como Herança desse tempo, da década de 1930.

Segundo Bloch , o expressionismo era um humanismo; ori ¬


entava para o humano , buscando quase exclusivamente o
humano e a forma adequada para expressar o seu incógni ¬

to , aquilo que no homem é misterioso, escondido, desco ¬

nhecido. N ão se trata de tom á -lo como exemplo , fazendo


dele um precursor do humanismo revolucion á rio , materia ¬
lista , que para Bloch era o verdadeiro humanismo. Contu ¬
do , deve ser considerado como alternativa ao “ realismo so ¬
cialista” , para expressar um mundo em declí nio reduzido a
um monte de fragmentos.ó t

Durante as décadas de 1920 e 1930 , no ajuste de Lukács com o


marxismo oficial sovi é tico, as possibilidades da filosofia esté tica foram
por ele reduzidas ao classicismo, cuja escolha se justificava pela maior
aderência com a realidade, o que redundaria, numa vertente pr óxi-

85 LOWY, A evolução política de Luk á cs , op. cit., p. 70.


86 ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança . Petró polis, Vozes, 1998, p. 44 .
UTOPIA E DIREITO

ma , no realismo soviético. Thomas Mann , na literatura , passa a ser o


modelo daquilo que se possa considerar objetivação da realidade.87
No conturbado ambiente h ú ngaro de 1919, após a derrota polí ¬

tica dos socialistas, Luk ács, que havia sido ministro da Educa ção , ter¬
minar á preso e no aguardo de severas penas . Thomas Mann , um dos
principais nomes da burguesia alemã e do ambiente cultural clássico,
é um dos intelectuais que se lançam em seu apoio, declarando que,
embora divergisse em idéias com Lukács, respeitava sua integridade
pessoal . Lukács, desde o in ício de suas reflexões estéticas, sempre man ¬

tivera uma relação de aproximação e de consideração com o estilo


clássico de Mann.
Alguns anos mais tarde, na Montanha Mágica , o personagem
Naphta levantaria uma curiosa indagação dos cr íticos, alguns dos quais
o identificavam com Lukács ou com Bloch . Mann nunca revelou, por
certo, a origem do personagem, que poderia ser, ainda, um compósito
de vá rias inspiraçõ es.88

O CAMINHO AO MARXISMO NAS PRIMEIRAS OBRAS: SOBRE A


TOTALIDADE

Lukács tem fases marcadas em suas obras, o que leva seus intérpre ¬

tes a separarem um jovem pensador do escritor da maturidade. Bloch,

87 "A novidade consiste em que, a partir da d é cada de 1930 (... ) Luk á cs n ã o é mais um
intelectual que, da cr ítica da cultura movida por um anticapitalismo radical ('anticapitafismo
rom â ntico'), extraia consecuencias ético- pol íticas exteriores à praxis pol ítica; ao contr á rio, na
década de 1930, é a pol ítica que d á novas formas e conte ú dos à problematizaçã o da cultura
moderna, em um contexto em que, ao mesmo tempo, se afasta da atividade pol ítica direta".
MACHADO, Carlos Eduardo Jord ã o. Um capítulo da hist ória da modernidade estética : debate
sobre o expressionismo. Sã o Paulo, Ed. Unesp, 1998 , p. 22.
88 "' Leo Naphta é Cari Schmitt . Ou , pelo menos, antes dele, todas essas idé ias já haviam sido
proclamadas por Schmitt. [.,.] Apesar desta conclusão, como apontamos elementos de conso ¬

n â ncia entre Bfoch, Luk á cs e Schmitt n ã o é de se estranhar que todos se identificassem com
esta personagem ". SOION, Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão ,
op. c/f ., p. 184.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

pelo contr á rio, é um autor persistente, que antecipa na obra de juventu¬


de os mesmos temas e abordagens da maturidade, talvez variando ape¬
nas no grau de profundidade e de estruturação de suas ideias.

O Espírito da Utopia, a principal obra juvenil de Bloch, é em


grandes aspectos familiar e complementar aos temas e perspectivas da
História e Consciência de Classe , de Lukács. Enquanto a primeira fase
da juventude de Lukács foi marcada por obras não-marxistas (como A
alma e as formas) , em Bloch se dá um processo menos pendular. O
Espírito da Utopia tem duas versões no espaço de alguns poucos anos
(1918-1923) , mas a diferen ça entre tais versões não é de passagem de
um não-marxismo para um marxismo, e sim de uma escatologia acen¬
tuada para uma mais contida, mas marxista em ambas as versões.
Bloch, logo na primeira versão do Espírito da Utopia, deixava explíci¬
ta a opção por um marxismo escatológico, cujas últimas razões buscará
nos movimentos heréticos do catolicismo medieval, na visão judaica e na
mística. O pêndulo lukacsiano foi maior. Lukács, vindo de um idealismo
mais presente que o de Bloch, converte-se ao marxismo com mais ênfase e
plenitude. Lukács era mais cristão-novo de marxismo que o próprio Bloch,
reforçado ainda pela origem familiar de ambos, este último em classes
proletárias, o primeiro no seio de uma família banqueira.
Dois conceitos revelam-se fundamentais na filosofia de juventu¬
de de Lukács: reificação e totalidade. Pelo primeiro, compreende-se a
situação humana no capitalismo, que coisifica o homem e converte o
mundo em mercadoria. A crítica da reificação é a ponte de ligação de
Lukács com o humanismo , ao mesmo tempo em que abre a possibili¬
dade de uma genealogia comum da filosofia româ ntica anticapitalista
mais ampla. Heidegger, deve-se lembrar, encaminharia uma crítica da
técnica de alguma forma paralela ao conceito de reificação lukacsiano.
À Escola de Frankfurt também haveria de abrir uma frente de refle¬
xões similar, em parte influenciada por Luká cs.
UTOPIA E DIREITO

Pelo conceito de totalidade, no entanto, a filosofia de Lukács al ¬


can ça um ponto de maturação que a distingue, no quadro de todo o
marxismo, pela renovação e florescimento de um pensamento filosó ¬

fico vigoroso. A dialética hegeliano-marxista, ao abrir olhos ao enten ¬


dimento dos conflitos da realidade, estendendo a compreensão da re ¬

alidade também à razão , deu margem a uma possibilidade de reflexão


filos ófica total . Tal interpretação lukacsiana de Hegel é responsável
pela genialidade de História e Consciência de Classe: ao romper com o
tradicional kantismo que separava sujeito e objeto, consci ência e reali ¬

dade, Luk ács agrupa , no conceito de totalidade, a possibilidade de


compreensão geral do movimento da contradição capitalista.89
Bloch é pioneiro em ressaltar, no Espírito da Utopia , a similitude
entre seu pensamento e o de Lukács. O grande fundamento de con ¬
vergência está, em Lukács, na possibilidade de tomada de consci ência
da classe proletária , o que equivale, em Bloch, à superação da domina¬
ção, por meio da completude do homem, que no momento presente
ainda nã o é a totalidade de si mesmo.
Desde o in ício, no entanto, Bloch explicita, no Espírito da Utopia e
depois na Herança desse tempo, sua discordâ ncia com pontos de História
e Consciência de Classe. Investe diretamente contra as possibilidades
interpretativas do conceito de totalidade, apontando o seu caráter de
homogeneização da realidade. Isto se daria, segundo Bloch, por conta
de um agarramento aos processos sociais objetivos - tomados em senti ¬

do sociológico - correndo o risco de se excluir aquilo que fosse particu¬


lar à formação mais íntima do homem, como a religião. O pano de

89 "Em Luk á cs, a essê ncia do m étodo dial é tico, a possibilidade de encontrar a totalidade em
cada momento particular, guardando de cada momento o seu car á ter de momento, encontra
expressã o rea ) , concreta, na atividade cotidiana do proletá rio, aquela porta estreita por onde,
em momentos privilegiados, pode se mostrar a realidade das rela ções capitalistas, j á que o
caráter ú nico da situaçã o social do proletariado est á em que 'o sair da imediatidade é dotado
de uma intençã o para a totalidade da sociedade"'. NOBRE, Marcos. Luk ács e os limites da
reificação. S ã o Paulo, Ed. 34, 2001 , p. 66.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

fundo para tal cr ítica de Bloch é um entendimento da historia que apre ¬

senta, além de suas grandes linhas dial é ticas sociais, uma formaçã o
polirrítmica ( polyrbythmisches) )ü , que não se enquadra nas grandes to
í
¬

talidades objetivas. Assim sendo, Bloch levanta d úvidas, ainda que par¬
ciais, a respeito do eixo central do hegelianismo marxista de Lukács.
Tal suspei ção conduz, da parte de Bloch , a uma proposi ção di ¬
versa da de totalidade. Logo nas suas obras de juventude propor á,
ent ão, a utiliza çã o do conceito de histó ria polirr
ítmica, tomando a to¬
talidade histó rico-social por esfera . No entendimento de Bloch, a esfe ¬

ra exprimiria os m ú ltiplos n íveis da relação sujeito-objeto , ou seja , não


daria conta apenas do momento objetivo da consciência de classe ou
da consci ência reificada, mas haveria de se valer também de dimen ¬

sões mais complexas e específicas dentro desse todo social.


Duas configuraçõ es contrapostas do conceito de “ heran ça
cultural ” saem , assim , à luz. Em Luk ács, a heran ça é conce¬
bida como uma linha cont ínua e homogé nea de progresso.
Em Bloch, ao contrá rio, a herança se concebe como uma
s í ntese de m ú ltiplas linhas , que avan ç am de forma
descont í nua e heterogé nea , e cujo espaço é com freqiiê ncia o
da fragmentaçã o. Ajpersgectiva de Bloch n ão consiste tanto
em voltar-se para a “ n ã o-simultaneidade” do passado , mas
sim em propugnar que, no terreno da cria çã o cultural , só a
apropriação (que exige sempre destrui çã o e reelaboração) dos
espaços assimultâ neos produtivos permite um avanço para o
futuro. Essa será a clave mais profunda, porque se nos liga¬
mos ao que aparece na superfície do presente , a crité rios como
a primazia da necessidade pol ítica imediata , impedimos do ¬
tar a açã o revolucion á ria de um autê ntico suporte cultural e
antropológico. Para Bloch , n ão h á nenhuma mat é ria de re-

90 BLOCH, Ernst . Erbschaft dieser Zeií . Frankfurt , Suhrkamp, 198S , p . 124 .


UTOPIA E DIREITO

n ú ncia nos produtos culturais do homem ; tudo é


dialeticamente utilizável num sentido positivo.91
A abertura para conceber a totalidade como polirritmia é muito
próxima de outro tema blochiano - também tratado com grandes

detalhes na Herança desse tempo , que é o da não-contemporaneidade.
Para Bloch, a histó ria não é._um evento de um tempo puramente line¬
ar, no qual os acontecimentos e as condicionantes sejam dados por
razões objetivadas uniformemente. O tempo histó rico soma deman ¬

das do presente com outras do passado, dominações novas com velhas,


aspirações as mais distintas, e por isso a história é polirrítmica. Daí
dizer que não há uma totalidade que, por meio de uma vanguarda
presente, ou ent ã o por meio da constatação das ú ltimas formas de
dominação, ilumine o todo social. O conceito de esferas representa,
em Bloch , justamente o fato de que há parcialidades no todo, e tais
especificidades são responsáveis por uma totalidade contraditó ria nas
suas próprias contradições. Tal histó ria n ão é total izável pelas suas últi ¬

mas fronteiras; ela arrasta consigo espaços variados ( vielrãumiges ) de


tempos e demandas distintos, que não podem ser olvidados ou ultra¬
passados sem mais pelo presente. Assim, na Herança desse tempo , a -
histó ria se apresenta:
Polirrítmica e pluriespacial, com locais ainda n áo muito con ¬

trolados e ainda de forma alguma ultrapassáveis.92


É pelo conceito de hist ó ria polirr ítmica que Bloch abre margem
para a antecipação, que é o fundamento de sua utopia revolucionária.
Sendo o tempo hist ó rico m ú ltiplo , o passado ainda vive no presente, e,
assim sendo, é possível também , pelos sonhos atuais, antecipar para
_
hqjej? futuro. Sua utopia concreta girará em torno dessa possibilidade
de antecipação. Lukács, no máximo, valia-se de um conceito menor

91 JIMéNEZ, (osé. La estética como utopia antropológica. Bloch y Marcuse. Madrid , Tecnos, 1983, p. 75.
92 BLOCH. Erbschaft dieser Zeit, op. cit., p. 69.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

quando tratava de apontar ao futuro: a categoria da “ possibilidade


objetiva” , ligada às condições sociais objetivamente dadas, que seria
para Lukács o m áximo de utopia suportável ao marxismo . Bloch, para
abrir margem à utopia, há de descartar a totalidade da relação sujeito-
objeto em Lukács.
De sua parte, Luká cs demonstrava profunda reticê ncia para com
O Espírito da UtopiaP Talvez desconsiderando a possibilidade efetiva
de diferenciação entre a utopia idealista e a utopia concreta, que é o
cerne da proposi çã o filosófica de Bloch , Lukács há de refor çar o car á¬
ter objetivo das possibilidades da totalidade contra as “ esferas” de di¬
versos níveis de Bloch:
Quando, portanto, Ernst Bloch acredita encontrar nesse vín ¬

culo dos religiosos com os revolucionários no sentido social e


econ ó mico um caminho para o aprofundamento do materia ¬

lismo histó rico e “ meramente económico” , ignora que seu


aprofundamento passa justamente ao largo da profundidade
efetiva do materialismo histó rico. Ao conceber o elemento
econ ó mico igualmente como coisa objetiva , à qual devem se
contrapor o an í mico , a interioridade etc. , esquece que justa ¬

mente a verdadeira revolução social só pode ser a remodelação


da vida concreta e real do homem e que aquilo que se costuma
chamar de economia não é outra coisa senão o sistema das
formas de objetiva ção dessa vida real.94
rr: x .
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93
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) ¡. t , Av.vvsQ . C' > / . < v.“ .
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.

Bicca , tratando da recusa de Luk á cs à utopia de Bloch: "O tema utopia d á ensejo para o

.
surgimento das primeiras discussões decisivas entre Bloch e Luk ács. [.. ] Sua recusa da utopia
apó ia -se essencialmente em quatro censuras, que resumem a sua cr ítica: 1 ) a utopia provoca
uma separa ção entre consci ê ncia e ser, isto é, uma mudança na consci ê ncia sem transforma ¬
ção do ser histó rico-social; 2 ) do ponto de vista epistemológico, ela é um empirismo camufla¬
do; 3) em suas formas modernas, ela era , no fundo, ideologia do futuro capitalismo liberal; 4 )
h á nela, realmente, uma cisã o entre conte ú do ideol ógico-utó pico e ação concreta . Da í se
conclui: a utopia é apenas a ' reprodu ção fantástica da insolubilidade do próprio problema '".
BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo, Loyola , 1987, p. 130.
94 LUKáCS, Ceorg. História e Consciência de Classe. São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp 382 e 383.
.
UTOPIA E DIREITO

Tais oposiçõ es serão responsáveis por encaminhamentos diferen ¬

tes de problemas polí ticos concretos e específicos. O fen ômeno do


stalinismo atinge Lukács e Bloch de modos distintos. O pensamento
cie Luk ács, ao considerar a totalidade como um dado objetivo, poderá
dar margem a compreender a ditadura do proletariado como o movi¬
mento que unifica o todo social, ainda que n ã o necessariamente de
modo democrático.95 A vanguarda de classe seria a expressão do todo.
Bloch, de outra sorte, ao compreender uma histó ria polirr ítmica, é
aberto a uma luta de classes que não se arrogue a lideran ça do todo.
Para Bloch, politicamente, é preciso deixar margem a uma democra¬
cia que carreie sonhos e necessidades variados.

É por isso que a possibilidade de compreensão da histó ria como


esfera , polirr ítmica, da parte de Bloch, leva-o a um partidarismo sem
partido. Por tal conceito, refere-se à independência da totalidade a que
se arroga a vanguarda partidá ria, ainda que mantendo os vínculos es¬
treitos com as lutas políticas objetivas. Lukács, por sua vez, há de se enca¬
minhar politicamente em sentidos contrários. Sua adesão ao leninismo e
sua ambival ência em face do stalinismo custaram-lhe caro no seu
posicionamento político, mas revelam muito das “ possibilidades objeti¬
vas” que desde a História e Consciência de Classe vinham se esboçando.

No entanto, dessa diferença de filosofia política concreta, pode-se


vislumbrar o cerne da discordâ ncia profunda entre tantas convergências
de ambos os jovens pensadores: embora ambos não fossem nem filósofos
do marxismo oficial nem do típico marxismo ocidental, sendo assim dois
pá rias em sua época, Lukács é o filósofo do marxismo das condições pre¬
sentes, Bloch é o filósofo do marxismo das possibilidades futuras.

95 "O proletariado como um todo, assim como as partes, est á livre das contradições que perpas ¬

sam cada proletá rio singular; Luk á cs d á um salto do prolet á rio isolado ao proletariado, que
ele nã o hesita em ¡mediatamente valorizar como subst â ncia . A dialética do geral e do particu¬

lar, cuja falta foi um motivo essencial da impossibilidade de solu çã o das antinomias do
pensamento burgu ês, é resolvida em favor da generalidade". NEGT, Oskar e KLUGE, Alexander.
O que há de político na política ? Sã o Paulo, Ed. Unesp, 1999, p. 124.
CAPíTULO 6

O SER-AINDA-NãO

A situação filosó fica de Bloch no quadro do marxismo revela urna


grande distancia do dogmatismo oficial do seu tempo, mas, no fundo,
não deixa de trilhar caminhos que também foram paralelos a grande
parte do pensamento marxista tradicional. Junto com Lukács, dedicou-
se a desvendar as trilhas que ligavam Marx a Hegel e, nesse procedimen ¬

to, perseguiu trajetos filosó ficos que eram similares a v ários outros pen ¬

sadores, desde Lênin, que considerava Hegel a condição necessária para


o entendimento de Marx, at é chegar a Althusser e outros, que quiseram
estudar a ambos para separá-los definitivamente.
Bloch destaca-se, no entanto, nesse grande painel da filosofia mar ¬

xista, por uma persistente e recorrente temática que movimentava suas


reflexõ es. O problema da utopia revela-se, desde o início, o grande tema
de Bloch. Todo o arco dos ramos da filosofia — filosofia da estética, polí ¬

tica, do direito, da religião - está orientado, para Bioch, de acordo com


o problema da utopia, e tem por ambiente de diálogo o marxismo.

Dentre tantas obras — todas muito peculiares e insólitas96 — de


uma longa carreira - Bloch faleceu em 1977, aos 92 anos a primei-

96 "Parece-me que a grande forç a de 8 loch n ão reside somente na sua sensibilidade e na sua
generosidade, mas na capacidade de falar com profundidade das coisas as mais simples. (...)
Bloch nos faia por meio de um tom distante e familiar. Ele evoca a paisagem espiritual,
filosófica, est ética de sua geração e nos impulsiona a interrogar sobre a nossa. Sua obra não
comporta nenhuma resposta, e sim indagações. Ele parece atravessar as épocas, as gerações,
como uma estranha música que ressoa em cada um de maneira diferente, com a mesma
emoção". PALMIER, Jean-Michel. "Em relisant ' L'esprit de 1'utopie' ou Prière pour un bom usage
d'Ernst Bloch". In Réificalion el Utopie: Ernst Bloch & Cyõrgy Luk á cs un siècle nprès Acles du
Colloque Goethe Institui . Paris, Actes Sud, 1986, p. 263.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

tradicionalismo utó pico são a Utopia de Morus, a Cidade do Sol de


Campanella, os franceses socialistas Fourier, Saint-Simon e outros ou,
então, se o arco se estendesse mais, chegar-se-ia, no in ício, até a Repú ¬

blica de Platão. Todas essas utopias t ê m em comum o car á ter imagina ¬

do , exemplar, que servisse como idealização, a contrastar com a reali ¬


dade. A Utopia de Morus é uma fantasia que se passa em condi ções
irreais numa ilha imagin á ria da América do Sul. Tomam a utopia no
sentido no não-lugar, do inexistente. São a utopia idealista, abstrata.98
A proposta de Bloch quanto à utopia é bastante diversa . Suajã re-
missa é uma reflexão partida da realidade e de suas contradi ções, bus ¬

cando perceber as latê ncias e as possibilidades efetivas. Assim sendo,


h á de separar aquela utopia abstrata , idealizada, da utopia concreta,
que está ligada à situa çã o real da hist ó ria e de suas contradi ções e que ,
por n ã o apostar na projeção ou na idealização, vincular-se-á à ativida ¬

de humana, à práxis orientada para o futuro.


' ' • '
• ' '
i.'
"
- . • •

Neste sentido, o projeto de Bloch está muito pr óximo do pensa ¬


mento de Marx, ao ligar-se às condições da realidade objetiva
e ao
acentuar o problema da atividade humana e da práxis, ainda
que com
vistas ao futuro. Entretanto, Bloch consegue dar um salto filosó fico
em rela çã o ao pró prio Marx: considerar á o problema filosó fico da uto ¬

pia n ão apenas no sentido negativo, da fantasia que projeta o inexistente,


como fora entendida por Marx e Engels, mas sim há de chegar a uma

98 "A impressionante pol ê mica de Marx e Engels fez com que, tanto dentro quanto fora do
marxismo, o termo ' utó pico' passasse a ser aplicado correntemente a um socialismo que apela
à razão, à justiça e à vontade do homem de ordenar uma sociedade desarticulada , ao inv és de
limitar -se a apresentar à consci ê ncia ativa o que as condi ções de produ ção já haviam prepa ¬
rado dialeticamente. Considera -se como utó pico todo socialismo voluntarista, o que, de
modo algum, significa que esteja Isento de utopia o socialismo que a ele se opõe, e que
poderia ser classificado de necessitarista , por declarar que sua ú nica exigê ncia é que se fa ça
o necessá rio para que sobrevenha a evolu çã o . Os elementos ut ó picos que este conté m s ã o,
evidentemente, de outro gê nero e afetam a outra ordem de id éias". BUBER, Martin. O socialismo
ut ó pico. Sã o Paulo, Perspectiva , 1986, p. 20.
UTOPIA E DIREITO

compreensão em positivo da utopia." O sonho, a imaginação , o dese¬


jo, s ão alavancas da atividade humana social e, portanto, inscrevem-se
no grande projeto geral de transformação proposto pela filosofia mar ¬
xista. Neste sentido, revolver a esperan ça no futuro melhor é valer-se
de armas revolucion á rias poderosas.

AS CARACTERÍSTICAS DA UTOPIA CONCRETA: O SONHO DIURNO

O caminho de Bloch para a construção de uma filosofia marxista


da utopia começa da constatação da incompletude humana: o ho ¬
mem deseja porque ainda não tem , tem esperanças porque ainda não
é. A causa de tais desejos, dirá Bloch no Princípio Esperança, reside na
necessidade ( Bedürfhis) , na carência { Mangel) . Bloch vale-se recorren ¬

temente, na maior parte de suas obras , dessa imagem da car ê ncia,


exemplificada pela fome. Ela é a fome do alimento físico, constituinte
da necessidade humana da busca, mas também é tomada, em muitas
ocasi õ es, como fome no sentido simbólico e amplo do termo , como as
car ê ncias ainda não satisfeitas da humanidade.

O conceito blochiano de fome leva ao impulso ( Triel?) .100 Quer¬


ré dizer, com isso, que a carência se direcionará ao buscar. A necessida¬
de conduz à mudãriçáTque impõe a Busca de uma nova situação, ten ¬

do em vista a superação da fome. Por conta desse impulso que parte da


fome, Bloch escalona os n íveis da busca humana, a começar por um
desejo vago, até chegar ao n ível profundo da vontade.

99 " Porque d ã o seu dinamismo à filosofia pol ítica , as utopias, como observou Ernst Bloch ,
propõem aos homens os meios para proverem seu destino à luz de uma visão global do
desenvolvimento histórico. Por isso, segundo observou Bloch, o Princ ípio da Esperan ça
anima o mundo. ( ...] Para que a utopia seja força progressista, é preciso transformar as
aspirações em militâ ncia , a esperan ça em decisão política". HERKENHOFF , Joã o Baptista . Direito
e Utopia . Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 14.
100 BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, ! . Frankfurt, Suhrkamp, 1985, p . 50 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Tais desejos, que levantam o homem de sua condição de fome e o


impulsionam para mais além, são cotejados, por Bloch, com a teoria
psicanalítica de Freud, buscando traçar possíveis paralelos. A teoria
freudiana constrói uma conhecida e divulgada visão a respeito dos
desejos, situando-os no n ível das frustrações e das necessidades passa ¬

das, que se localizam no inconsciente. O impulso, para Freud, se dá


pelo passado: as feridas do ontem inquietam o presente.
Bloch, neste ponto, dá margem a uma teoria dos desejos ampla ¬

mente diversa da freudiana: no Princípio Esperança, postula os desejo


s
futuros. Dirá BÍoch que Freud se engana na medida em que liga os
desejos simplesmente à histó ria passada do indivíduo, centrando-o nas
inquietações sexuais. O homem possui desejos futuros, motivações novas
que devem saciar suas necessidades e carências, e tais impulsos não se
devem a causas passadas, mas são amplamente orientadas pelo que
vir á. Neste sentido, Bloch avan ça sobre o freudismo identificando nes ¬

te uma teoria reducionista: as necessidades humanas são amplas,


e Freud
n ão se dá conta de que um dos fundamentos do impulso é a fome,
a
car ê ncia, que são dados sociais, das necessidades oriundas da sociabili¬

dade humana e n ão de sua individualidade apenas.


Prosseguindo em seu paralelo com Freud, Bloch chega a um dos
fundamentos do freudismo, a teoria dos sonhos. Tal qual lida com a
questão do desejo, também no sonho Bloch aponta o caráter reativo
da teoria freudiana, ligada ao passado e negadora do futuro. De fato,
toda a psicanálise freudiana se funda na tentativa de hermenêutica
dos sonhos como identificação dos traumas, recalques e vivências do
passado do paciente. Bloch chamará estes sonhos de “ sonhos notur¬
nos” , os sonhos que liberam o passado.

Por isso, em oposição aos sonhos noturnos, Bloch encaminha a


reflexão acerca dos “ sonhos diurnos” ( Tagtraume), os sonhos acorda ¬

dos. Propõe essa categoria de sonhos identificando-a com tudo aquilo


UTOPW E DIREITO

que se faz n ão mediante a utilização do inconsciente reprimido, mas


sim do consciente, que se vale de instrumentos imediatamente racio ¬

nais para sua consecução. O sonho diurno é uma deliberada tentativa


de transcend ência; o sonho noturno nasce da repress ão oculta dos
desejos, de sua castração que precisa inconscientemente ser rompida.
Enquanto no sonho noturno sua irrupção se dá como forma de
engano da autocensura, o sonho diurno se vale de toda a potencialidade
da vontade, da fantasia criadora, da deliberada intenção de se furtar ao
presente remetendo-se para o futuro. Assim sendo, o sonho noturno
revelar-se-á preso a circunstancias imóveis, girando em torno de situa¬
ções consolidadas, amargurado e reativo portanto, mas o sonho diurno
há de se revelar novidadeiro, liberto, propositivo e esperançoso.101
A utopia há de se valer de tais sonhos diurnos como forma de
antecipação de consciencia e realidade . O sonho diurno tem por ca¬
racter ística ainda n ã o se concretizar efetivamente, mas libera energias
volitivas e exercícios de consciência e de racionalidade que se encami ¬

nham para o sentido da concretização posterior.


Há muitas diferenças entre os dois tipos de sonhos no que
tange aos seus objetivos; o modo , bem como o conte údo da
realização do desejo, são inegavelmente distintos. Isso signifi¬
ca sempre o seguinte; enquanto o sonho noturno vive na re¬
gressão, é aleatoriamente tragado de suas próprias imagens, o
sonho diurno projeta suas imagens ao futuro (“ Kiinftiges” ) ,
de forma n ão aleató ria, mas, ao contrário, controlável por meio

101 Luiz Bicca aponta diferen ças entre o sonho diurno e o sonho noturno na perspectiva de
Bloch : "Tais traços diferenciadores são: a ) o fato de que as fantasias diurnas se processam sob
absoluto controle do sujeito, podendo, a qualquer momento, ser iniciadas ou interrompidas,
sempre que o Eu assim quiser. Sã o, por conseguinte, manifesta ções de consci ê ncia ou ,
quando muito, pré-conscientes; b) semelhante atividade do Eu pressupõe de forma necessá ria
a ausê ncia do fator interno de censura [...) Ademais, os sonhos diurnos sã o marcados ainda :
c) pela inten ção de ser de outro modo, de uma vida ou mundo melhor; d ) pela possibilidade,
na consci ê ncia, de se ir até o fim, de se alcan ç ar os objetivos almejados". BICCA, Luiz.
Racionalidade moderna e subjetividade. S ã o Paulo, Loyola, 1997, p. 234 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

da for ça da imaginação, intermediada pelo objetivamente pos ¬

s ível. O conteúdo do sonho noturno é escondido e ocidto, o conteú¬


do da fantasia diurna é aberto, criativo, antecipador, e sua latência
-
aponta para fi ente.102
Revela-se, assim , em Bloch, ao contrá rio de Freud , a construção
de uma categoria fundamental da interioridade humana, a anteci -
pa
s çao.103 Bloch h á de cuidar do que revela sinais do futuro, antecipan ¬
do-o e fornecendo elementos para o seu desejo e sua concretização,
contrastando-se com Freud, que em sua teoria lan ça olhos ao passado:
“ o inconsciente, na psican álise, de tal
modo, é por si mesmo tomado
nunca como um ainda-não-consciente, um elemento de progre
ssão;
ele consiste, muito mais, em regressão.” 104
Os desejos pré-conscientes de futuro e a consciência antecipadora
: são fun ções que se destinam a projetar, de um estado de n ão
- ter ou
n ão-ser, um futuro de ter e ser. A cessação da necessidade
aponta o
desejo para o futuro. Tal acontece pelo concurso da esperança. Ela h á
de se revelar, ao mesmo tempo, como um afeto - ou sentimento
;

impulsiona para frente , mas tamb é m como uma racionalidade


que —
antecipadora. No primeiro n ível, do afeto, ela é o sentimento positivo
que atua no mecanismo psíquico. No segundo nível, é a docta spes,
que
circunda a realidade de maneira amadurecida, conhecendo suas
potencialidades e sabendo manejar as possibilidades.

102 BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hofínung, I, op. cit., p. 111.


1 03 "A utopia, portanto, é uma dialética antecipadora, isto é, uma superaçã o do
ser pelo devir isto
,
a distingue de quaisquer formas anal ógicas com as quais ela é geralmen
te confundida .
Seguindo-se Ernst Bloch pode-se perceber claramente que ela não é apenas uma
projeçã o de
nossos pró prios interesses, pois ela visa o interesse coletivo. Ela se distingue
da ideologia
porque ela constr ói um mundo e vive da esperan ça de um futuro, e n ã o de ilusões
pode ser incorporada ou explicada pelos arquétipos, pois é fundamentalmente
. Ela não
progressiva e
se volta para o futuro. Ainda que possa ser confundida à primeira vista com
os ideais, ela
distingue-se deles por suas dimensões concretas e por seu dinamismo dialético. Enfim
, eia
n ã o tem nada a ver nem com as alegorias nem com os símbolos, pois estes induzem
a uma
repeti çã o dos exemplos do passado, enquanto a utopia inova . FURTé H, Pierre.
marxismo segundo Ernst 8loch". In Tempo Brasileiro n’J 7. Rio de
" " Utopia e
Janeiro, 1965, p. 21.
1 04 BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hofínung, I, op. cit ., p. 61 .
UTOPIA E DIREITO

Tal docta spes é base de uma esperan ça fundada, que se situa na


plenitude do dimensionamento das potencialidades. O seu contrá
105 ¬

rio, o desejo acrítico, revela-se uma esperan ça infundada. Bloch volta


a fechar, neste sentido, sua dicotomia entre a utopia abstrata e a uto ¬

pia concreta, traçando a esta última os mecanismos psíquicos reais de


sua consecu çã o.106
N ão se quer dizer, no entanto , que Bloch avalie de maneira total ¬

mente negativa as esperan ças infundadas, aquelas sem a maturidade


da sua concretiza ção. O n ível do desejo, ao menos, h á de abrir portas
para o vir-a-ser, razão pela qual as motivações geram energias liberadoras
que podem se revelar aproveitadas para os grandes desejos utópicos
concretos. Neste sentido, Bloch remete ao tema, que lhe é caro , da
n ão-contemporaneidade. Os excedentes culturais não-cumpridos, ar¬
rastados para outras épocas posteriores, continuam a gerar esperan ças
que, mesmo n ão satisfeitas, gerar ão outros desejos e um estado de luta
pela transformação, não deixando esmorecer o sentido futuro dos im ¬
pulsos humano.

A -
ONTOLOGIA DO SER AINDA N ÃO: A NATUREZA -
Os sonhos diurnos e a consci ê ncia antecipadora ligam-se necessa ¬

riamente, em Bloch, à quest ão da ontologia do ser-ainda-não (nicht-


noch-sein ) . Tal qual Lukács, Bloch esteve num contexto filosó fico que
admitiu se valer de toda a filosofia que n ão fosse marxista mas que,
ainda assim, fosse imanentista, calcada na realidade, afastando a

1 05 "A Docta Spes é a esperança esclarecida e cognoscente ". MISKAHI, Robert. Qu'esí-ce que
1' éthique ? Paris, Armand Colin, 1997, p . 101.
106 "A esperan ç a n ão é uma qualidade íntima dependente da personalidade, n ão é um estado
an ímico da psicologia individual , é uma dimensão humanamente ontol ógica do Ser, mas n ã
o
exclusivamente do ser do homem, e sim também do ser da realidade". LAVALLE, Adri á n Gurza.
"Incitació n para recuperar el futuro. Una lectura de la Raz ó n Esperanzada de Ernst Bloch ". In
Cadernos de Filosofía Alemã, vol. 3. Sã o Paulo, FFLCH-USP, 1997, p. 32.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

metafísica e o idealismo. Nesse bojo de uma ampla filosofia cr ítica, a


constru ção de uma ontologia filosó fica e a tomada do problema social
a partir do ser e n ão do dever-ser configuravam-se como horizontes
muito naturais do marxismo filosófico.

Assim sendo, ao voltar-se à ontologia, o marxismo tangenciava o


pensamento de Heidegger.107 O existencialismo deste paira, na filoso ¬

fia marxista do século XX, como uma das fronteiras mais hostis, mas,
ao mesmo tempo, como uma das mais pr óximas de uma mesma radio ¬

grafia do mundo presente. Deve-se lembrar que o projeto final de


Lukács foi o de propugnar uma ontologia do ser social . Marcuse, ori¬
entando de Heidegger, sempre viu no existencialismo heideggeriano
um possível pr ó ximo do marxismo. 108 Bloch, por sua vez, levar á o pro¬
jeto marxista de uma utopia concreta aos quadrantes de uma ontologia
existencial, aquela por ele chamada de ser-ainda- não.
O ambiente cultural do existencialismo era també m, como o do
marxismo, de recusa à tecnicidade do homem burguês. A divisão entre
sujeito e objeto, a cisão da razão e da realidade, a postulação neokantiana
do dever-ser, todo esse grande corpo, que foi da metafísica medieval e,
com adaptação , servia ainda à filosofia burguesa, é rejeitado pelo

1 07 " O parentesco é rigoroso entre Heidegger e Luk á cs na an á lise daquilo que Heidegger
denomina por 'ontologia tradicional ', daquilo que Luk á cs chama filosofia tradicional ou o
pensamento e a ciê ncia positivistas, que consiste precisamente na separaçã o dos ju ízos de
fato e dos ju ízos de valor, na afirmação que o conhecimento conhece os objetos indepen -
dentemente do sujeito, da í precisamente afirmando que h á um sujeito e um objeto. Sobre
esse ponto de vista , Luká cs e Heidegger est ã o rigorosamente de acordo: o mundo n ão est á
a í, dado ¡mediatamente em face de uma consciê ncia cognoscente que o conhece tal qual
ele o é e que o julga logo em seguida". GOLOMANN, Lucien. Luk ács et Heidegger. Paris,
i. Den õel, 1973, p. 95.
1 08 " Mais do que declarar em crise a cultura moderna, mais que realizar a cr ítica da civiliza ção
» contemporâ nea , Heidegger fez o processo de toda a histó ria do ocidente desde os seus
começos gregos. (...) N ão propõe uma reforma nem revisã o, mas uma nova partida. [...) A
filosofia heideggeriana teve, contudo, influxo profundo em mais de uma teoria revolucion á¬
ria, entre as quais, por mais atual , pode-se citar a de Herbert Marcuse". PEREIRA, Aloysio Ferraz .
Estado e direito na perspectiva da libertação. Uma crítica segundo Martin Heidegger. São Paulo,
RT, 1980, pp. 215 e 217.
UTOPIA E DIREITO

existencialismo, buscando o retorno ao problema do ser, e, neste ponto,


comunga de um espaço filosófico comum com o marxismo:
O homem ontológico apó ia-se no homem económico , mas per ¬
manecem unidos e insepar á veis , embora distintos ou
distinguíveis porque são somente modos do mesmo homem
existente. Entre ambos , por é m , medeia o fen ô meno da
transcendê ncia, que estende um espaço de car á ter psicológi ¬
co, imagin ário, ideal, mas de limites m óveis, ocupado por
deuses, poemas e ideias da razão. Mas precisamente essa me ¬


dia ção vivencial ora sensível , ora racional a que chama
mos transcend ê ncia, é que promove o hom ínida , o homem-
— ¬

utensílio e homem-objeto de conhecimento à sua condição de


homem existente.10í)
De algum modo - Marcuse já apontava essa ligação o Dasein
de Heidegger é também uma insistência na sociabilidade, numa liga ¬

ção mais estreita com a natureza, rompendo com o individualismo e


com uma filosofia meramente racionalista. Bloch também se situava
no campo de uma utopia não meramente idealista, abominando a sua
centraliza ção no indivíduo ou na metafísica: sua intenção é investigar,
na pr ó pria existência, as possibilidades utópicas, e para isso se debru ¬

çará numa grande dialética existencial da esperan ça .

Tal qual Marcuse, Bloch partilhará uma grande rejeição da ori¬


enta çã o do sentido existencial heideggeriano: a filosofia como
radicalidade da compreensão da origem existencial é posta de lado e,
em seu lugar, constr ói-se uma filosofia da existência revolucion á ria fu ¬

tura. Tal rejeição do sentido não é, no entanto , uma total rejeiçã o de


qualquer busca ontológica, porque Bloch afirmará o ser utó pico.

109 MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenología Existencial do Direito. S ão Paulo, Quartier Latin ,
2003, p. 134 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Dado que o problema do ser n ão é o problema do individuo, mas


de toda a totalidade das circunstancias, da situação existencial e da
própria sociabilidade, Bloch propugna um in ício ontológico bastante
profundo: se o ser se revela para o futuro, isso quer dizer que toda a
natureza está aberta para o vir-a-ser; portanto, ela é incompleta.

A naturezaincompleta é um dos fundamentos da profunda li ¬


gação entre o homem e a situação existencial. A humanidade faz
parte dessa incompletude existencial, da í que está lan çada para o seu
próprio aperfeiçoamento, para se completar, buscando extinguir a
fome e, portanto, tornar-se plena. A imanê ncia aí se revela: a esfera
da atividade ou da cultura humanas n ão é um projeto alheio à natu ¬
reza, pois o todo da natureza está lançado na mesma circunstâ ncia
de incompletude.
Nessa visão se percebe totalmente a peculiar ligação de temas de
Bloch com Engels. Dentre os pensadores do marxismo, Engels foi adi ¬

ante na polê mica tentativa de compreender uma dialética da nature ¬

za, transplantando a contradição social para o plano natural. Todo o


marxismo ocidental, em geral, rejeita a posição engelsiana, porque foi
ela o fundamento do Diamat, a teoria do materialismo dialético oficial
e dogm á tico da União Soviética.

Bloch n ão se furta a essa polêmica e, mesmo sendo um persegui¬


do do mundo soviético, estando muito mais próximo nesse ponto do
marxismo ocidental, n ão tem preconceitos em se filiar a Engels num
projeto de dialé tica da natureza. Para Bloch, está intimamente ligado
à utopia concreta o fato de que a natureza é incompleta e, portanto, o
homem deve lançar-se à busca do melhor. Na década de 1930, Bloch
dedica todo um volume de sua escrita filosófica à questão da matéria e
da natureza, O problema do materialismo, sua história e substância.
Assim Luiz Bicca se pronuncia quanto à natureza em Bloch:
UTOPIA E DIREITO

A filosofia da utopia concreta não se restringe ao discurso da


dial ética da história, mas estende-se ainda em direção a uma
filosofia dialética da natureza . Bloch toma, decerto, empres¬
tado de Engels esta id éia; sua vinculação, todavia, com a li ¬
nhagem marxista diretamente apoiada nas obras deste ú ltimo
autor n ão vai alé m desse primeiro n ível de generalidade. Fora
um pequeno n ú mero de hipó teses em comum , o que se en ¬
tende por dialética da matéria em uma e noutra perspectiva é
algo radicalmente distinto. [...] Como, aliás, os pr ó prios
ideólogos stalinistas não se cansaram de denunciar. É impor¬
tante deixar claro que, para Bloch, o marxismo da tradição
russa, de Plekhanov à ideologia Diamat, é o maior responsável
pela esterilização do pensamento dialético. 110
A transformação da humanidade ser á também a transformação
das relaçõ es humanas com a natureza - no que Bloch também se
torna um dos antecipadores da quest ã o ecológica para o marxismo.
Tal transformação compreender á, então, uma mudan ça nao apenas
de manejo da natureza, no que poderia se revelar um projeto de
tecnicismo socialista, mas sim há de se constituir numa transforma¬
çã o qualitativa da natureza.
A filosofia metafísica e a contempor â nea filosofia racionalista bur ¬

guesa n ã o enxergam na natureza um patamar qualitativo nas relações



com o homem a natureza é tratada, antes, como quantidade, como
instrumentalidade. Bloch há de se valer da tradição filosófica herética
quanto à natureza, e nisso chegar á a Aristó teles e aos aristotélicos me ¬

dievais de esquerda , na sua expressão. Aponta o pensamento blochiano


que Aristó teles não considera a matéria mera forma para a atuação do
homem . O maior fil ósofo dos gregos considera a maté ria como a pos ¬

sibilidade da transformação, do vir-a-ser: “A matéria ( “ Stoff ” ) aristotélica

110 BICCA, Racionalidade moderna e subjetividade , op. cit., p. 242.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

não é somente paciente, mas, pelo contrário, o que propicia a ascensão


das formas nos fen ô menos” .111
Bloch vislumbra, a partir de Arist óteles, uma esteira de pensado¬
res que nã o renegam a mat é ria a mero deposit á rio da atividade huma-
; na e que enxergam inscrita també m na natureza a possibilidade do
novo, daquilo que ainda não há. Essa compreensão da matéria como
natura naturans, como natureza que se desdobra e cria o novo, h á de
ser vista nos judeus e á rabes medievais - Averr ó is, Avicena - e, às por ¬
tas do mundo moderno, em Espinosa.

H á de se considerar ainda, nessa compreens ã o de uma natureza


que se abre como possibilidade, uma idéia incidental de panteísmo - a
natureza aponta seus fins, seus objetivos, sua teleología. Este todo, no
qual a humanidade interage, n ão está à espera de uma transcendê ncia,
mas sim busca a completude imanente, cujas possibilidades est ão da¬
das existencialmente.
No quadro blochiano de um certo “ panteísmo” filosófico que vê
na mat é ria a sede da possibilidade, est ã o tamb é m , ao lado do
aristotelismo de esquerda e de Espinosa, correntes insólitas da filosofia
contempor â nea, como a de Schelling, que, no in ício do século XIX,
encaminhou uma filosofia da totalidade bastante diversa da de Hegel.
Tal esfumaçado e exótico panteísmo filosófico da natureza é que dá
ensejo para Habermas nomear Bloch como sendo o “ Schelling mar¬
xista” , 112 identificando també m no jovem Marx uma inspiraçã o simi ¬
lar à de Bloch no que tange a uma interpreta ção muito peculiar sobre
tal pensamento de Schelling acerca da natureza.

111 BLOCH, Ernst. Das Materialismusprobiem, seine Ceschichte und Substanz . Frankfurt, Suhrkamp,
1985, p. 143.
112 "Bloch n ão recua diante da utiliza çã o da faculdade do julgamento, segundo Kant, ampliada
por meio da Filosofia da Natureza , de Schelling. Ao mesmo tempo que o homem socializado
se alienou, também a natureza 'se perdeu', e exige, na perspectiva do projeto malogrado do
seu 'sujeito' oculto, ser interpretada como natura naturans e ser levada a seu termo por
UTOPIA E DIREITO

A ONTOLOGIA DO SER-AINDA- N ÃO: A POSSIBILIDADE

A orientação ontológica em Bloch está voltada para o futuro e,


neste sentido, ao invés de categorias como necessidade ou realidade, o
fundamento do pensamento blochiano está baseado no conceito de
_
possibilidade (.Môglicbkeit). O ainda- nao-ser é a possibilidade de ser.
A possibilidade da plenitude está no horizonte de todo o pensamento
de Bloch.

Em todo seu percurso filosófico, mas principalmente nas suas obras



de maior envergadura filosófica a começar do Princípio Esperança ,
Bloch retoma a filosofia aristotélica e sua tá bua de categorias, valendo-

se, principalmente, do conceito de dynamis. Aristó teles diferencia entre
a mera potencialidade - uma abertura passiva para o vir-a-ser - e a
possibilidade de maneira estrita, tomada numa perspectiva ativa.113
A partir de tal inspiração aristotélica, Bloch se propõ e a construir
uma t á bua de categorias da possibilidade, empreendendo a distin ção
entre quatro n íveis: o possível puramente formal; o possível subjetivo;
o possível objetivo; o possível dialé tico. Tais diferenças são elencadas

interm édio da intervençã o humana. A atitude ' mec â nica ', que desemboca no controle
técnico sobre as for ças naturais, é incapaz de perceber que a natureza precisa voltar à pátria .
É somente quando a atitude 'teleológica' apreende as coisas sob a forma de abstra ções de
si mesmas, que as sequ ê ncias dos fins subjetivos das a ções humanas deixam de flutuar no
vazio, vinculando-se, ao contr á rio, a uma finalidade objetivamente inscrita na natureza.
Bloch retoma a pol ê mica de Goethe contra Newton e, recorrendo à heran ça mais profunda
do simbolismo pitagó rico dos n ú meros, da doutrina cabal ística dos signos, da fision ómica
hermé tica , da alquimia e da astrologia, opõe à s ciê ncias da natureza uma teoria expressiva
da natureza , enquanto configura ção simp ática . Mas o fato de que Bloch alude, novamente
a partir de Schelling, ao conhecimento da beleza natural , tal como ela nos é transmitida
pela experiê ncia, a uma espécie de conhecimento da natureza , radicado nas pró prias obras
de arte, dissimula com dificuldade o embaraço decorrente da circunst â ncia de que n ã o
dispomos, justamente, de uma introdu çã o metódica à 'doutrina da natureza como expres¬
s ã o’; todas as tentativas anteriores se apoiam numa extrapolaçã o inutiliz á vel, na analogia
entre microcosmo e macrocosmo, entre homem e universo. HABERMAS, Jíirgen . "Ernst Bloch -
um Schelling marxista ". In Habermas (org. B á rbara Freitag e S é rgio Paulo Rouanet ). S ão
Paulo, Ática, 2001 , p. 161 .
113 Cf. PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. Ciência e Dia /ética em Aristóteles. Sã o Paulo, Ed. Unesp, 2001,
pp. 182 e seg.
r
AIVSSON LEANDRO MASCARO

por Bloch no Princípio Esperança e estão na base do conceito do


ontológico do ser-ainda-nao.114
O possível puramente formal { Das formal Moglicbe) é aquele que
se encontra num nível de possibilidade apenas no pensamento, tendo
em vista que em realidade deverá ocorrer um não-possível. Quando se
diz que o planeta Marte pode encontrar a Terra amanhã, esta é uma
possibilidade formal, ao contrário da afirmação de que “ o quadrado
era redondo” 115 , impossível formalmente. O possível que é puramen ¬
te formal é a categoria mais rasa e fr ágil da possibilidade.116 Na reali ¬

dade, ela acaba sendo uma não-possibilidade. Bloch associar á tal pos¬
sibilidade, no plano pol ítico, a um otimismo irreal que ignora as con ¬

di ções concretas da ação social.


O possível subjetivo é também tomado na acepção de possível
objetivo-factual ou objetivo ao nível dos fatos { Das sachlich-objektiv
Moglicbe) . Pierre Furter, na Dialética da Esperança, o traduz como
provável.117 Tal possível subjetivo é aquele que se baseia em fatos que
se apresentam ao sujeito, embora este n ão tenha grande rigor no co ¬

nhecimento das estruturas que ensejam esse mesmo fato. Olhar as


nuvens é ind ício, a quem olha, de que é possível que chova. No entan ¬

to, esse algué m que olha ao cé u desconhece as principais estruturas da


meteorologia, e o objeto nuvem não informa a totalidade da possibi-

114 " Die 5chichten der Kategorie M õglichkeit". BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, I, op. cit ., pp.
258 e seg.
115 ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia . Ensaio sobre Ernst Bloch. Porto Alegre, Movimento, 1985,
p. 31 . Do trecho deste livro se valem alguns exemplos.
116 -
"Poré m, é preciso frisar, o fato de um pensamento apresentar se com sentido, com significa¬
ção , n ão quer dizer que necessariamente seja verdadeiro ou que deva sê-lo, isto é, que
corresponda ou deva corresponder a alguma coisa na realidade. Ele deve 'poder' corresponder,
mas n ão que efetivamente corresponda ou deva corresponder à realidade. O pensamento
pode ter sentido, e por isso n ã o carecer de objeto, mas pode n ã o ter uma correspond ê ncia no
mundo real . Entretanto, porque n ã o tenha essa correspond ência efetivamente comprovada ,
n ã o quer dizer que perca seu sentido ou a sua significa çã o". ALVES, Ala ô r Caff é. Lógica .
Pensamento Formal e Argumentação. São Paulo, Edipro, 2000, p . 193.
117 EURTER, Pierre. A dialética da esperança . Uma interpretação do pensamento ut ópico de Ernst
Bloch. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, pp . 112 e seg.
UTOPIA E DIREITO

lidade. Transportando tal categoria para o plano político, tem-se um


esforço pessoal e social que não corresponde à real situação dos fatos.
O terceiro n ível do possível em Bloch é o do possível objetivo. Tal
n ível é també m chamado por possível objetivo-coisal ou possível confor ¬

me à estrutura do objeto real { Das sachhafi-objetkgemàf Môglicbe). Ao


í
contrário do possível subjetivo, que não se funda na pró pria virtual
idade
do objeto, neste caso se abre claramente a mirada ontológica da possib ¬
i
lidade. A incompletude, nesse caso, estará não no pólo objetivo, e sim
no pólo subjetivo, daquele que engendra o conhecimento da possibili ¬

dade. Num paralelo político blochiano, a realidade se abre como possí¬


vel, sem encontrar eco na dimensão subjetiva.
O quarto n ível do possível é o possível dialético, ou , tomado em
outra terminologia, o possível objetivamente real ou possível real
- ob ¬

-
jetivo { Das objektiv realMõgliche ) . Neste n ível de possibilidades, abre
-
se a clareira para uma plena compreensão do objeto por parte do
su ¬

jeito, revelando-se, assim, uma antecipação do futuro que está


engen ¬
drada no conhecimento da pr ópria realidade e da maturaçã o de con ¬

dições e de práxis do agente. Este n ível de possível, dial é tico, d á conta


das contradições da pr ópria ação que dever á engendrar o futuro e
concretizar as possibilidades. Neste sentido , exige uma. mirada
amadurecida tanto no n ível das possibilidades objetivas, das circuns ¬

tâncias, quanto no n ível das possibilidades subjetivas, dos


agentes cria ¬

dores, transformadores ou revolucionários.


Blochconsiderará a utopia concreta çomo aquela que chega ao
n íveF do possível dialético, dando conta de uma compreensão dos
movimentos da contradição da realidade e da ação revolucioná ria, es ¬

capando da utopia fácil e abstrata do idealismo e negando també m o


possível apenas como possível formal .
Assim sendo, nesta original tábua de categorias do possível, Bloch
toma a dianteira de uma perspectiva filosófica do marxismo que, ao
ALYSSON LEANDRO MASCARO

mesmo tempo, avan ça para além do materialismo dialético dogmático


e economicista, de um lado, e do voluntarismo revolucioná rio, de ou ¬
tro lado, negando a ambos como suficientes para um projeto de uto¬
pia concreta. O possível dialético de Bloch vai se tornar a mais avança¬
da postulação filosófica da possibilidade revolucionária no marxismo.
O marxismo economicista, aos moldes soviéticos, seria a esperan ¬
ça em que as circunstâncias objetivas, sem a práxis transformadora,
levariam o capitalismo ao socialismo. É este, apontado por Bloch, o
possível objetivo. O voluntarismo marxista ou utópico-idealista, que se
exprime num desejo revolucion ário apenas pela força da vontade, des¬
conhecendo as circunstâ ncias e as estruturas do real, é aquele identifi¬
cado por Bloch como o possível subjetivo.
Bloch escapa tanto do economicismo quanto do voluntarismo ao
propor, como instâ ncia superior do possível, o possível dialé tico. Só
nele poder-se-á verificar a utopia concreta. Foge, assim, tanto da força
inexorável das leis econó micas, de uma certa força do destino aos mol ¬
des marxistas, quanto de um idealismo voluntarista ingénuo e desape ¬

gado do movimento contraditó rio do real e do concreto.

A ONTOLOGIA DO SER-AINDA-NÃO: S AINDA NÁO É P


Toda a tentativa de Bloch de fundar uma ontologia marxista do
ser é voltada ao futuro, mostrando o presente como incompletude.
Daí se revela o ser-ainda-nao: não está ainda constru ída a completude
humana. O socialismo é a visão da completude econ ómica, política e
social do homem. Bloch aponta a busca como elemento necessário da
existência humana.

É célebre a definição dada por Bloch de sua ontologia do ainda-


não-ser. Fundamentalmente no Princípio Esperança, insiste que há uma
UTOPIA E DIREITO

fórmula ontol ógica que aponta para o fato de que o homem ainda não é
todo . Suzana Albornoz assim revela tal formula ção, num poético relato:
Adolph Lowe publica uma carta ao amigo Ernst Bloch ,
carta esta que é vá rias vezes referida em ensaios posteriores
sobre a obra de Ernst Bloch . Naquela carta , Lowe lembra uma
situa çã o em que os amigos fil ósofos trocavam ideias ( ao
entardecer...) , quando o dono da casa faz um desafio a Bloch :
“ Sempre foi sinal dos grandes filósofos poderem resumir o
n ú cleo de seu ensinamento em uma ú nica frase. Qual é , pois,
a sua frase fundamental ? ”

Bloch cachimbou por alguns momentos e então revidou ;


to-me como
“ Desta armadilha não saio ileso . Se respondo, compor-
grande filósofo. Se silencio, parecer á como se eu
tivesse talvez muitas coisas a dizer, mas não muito. Prefiro
fazer o papel de pretensioso do que de bobo, e dizer : S ainda
não é P.” U 8

Esta referência à fórmula S ainda não é P é a tentativa blochiana de


encerrar uma conceituação profunda a respeito do ser-ainda-não. Nome ¬

ando a S e P de sujeito e predicado, dir-se-ia que sujeito ainda não é


predicado ou , como Bloch afirma em todo início de seus livros, o homem
ainda não o é plenamente, não se tem a si mesmo. O dado da incompletude
aqui se revela de maneira cabal: o hoje ainda não é o todo.
Tal fó rmula blochiana é aberta e n ão comporta um ju ízo deduti¬
vo , de tipo idealista ou metafísico, que venha a estabelecer o que é P
para então descobrir-se o que de S lhe é de menos. Pelo contrá rio ,
Bloch nunca incorre no risco de estabelecer uma filosofia a partir de P ,
que olhe para a realidade humana como algo degenerado , incomple¬
to no sentido de ter um caminho ló gico e j á estabelecido a ser seguido

118 ALBORNOZ, Ética e Utopia , op. c/ í., p. 70.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

para a completude. Assim procedem a metafísica , a religião dogmá tica


e os cientificismos mecanicistas. Bloch parte de S , da situação existen ¬

cial, e aponta para P, que é uma meta aberta, construída a partir das
possibilidades concretas do hoje.
S AINDA NÃO É P deve poder resumir de forma concisa o

pensamento de Bloch , poré m, para isso como já se disse mais

vezes na literatura referente ao assunto esta fórmula primeiro
pressupõe uma representa ção normativa de E Se eu afirmo que
— —
o que aparece o fen ômeno ainda nao é a essê ncia ou a subs¬
tâ ncia, devo saber e poder dizer o que é o essencial ou substan ¬
cial ante o qual meço o fenômeno, o que aparece. Mas Bloch se
nega a fazê-lo. O que é essencial , o que é verdade, só se pode
determinar negativamente: Não é em absoluto necess á rio saber
o que poder á ser o Humanum em todo o seu conte údo positivo
para reconhecer Ñero como desumano.119
Com isso, h á de se evitar a concepção utópica de um mundo
criado artificialmente no pensamento e que venha a estabelecer, ape ¬

nas no n ível cognitivo, os caminhos que ligariam uma atual situação S


a uma idealizada etapa P. Bloch se furta à utopia abstrata, tratando da
utopia concreta apenas no solo das possibilidades dial éticas.

119 Ibid ., p . 78.


T

CAPíTULO 7

UTOPIA JURíDICA: HISTóRIA E DIGNIDADE HUMANA

Ernst Bloch é um pensador que se aproxima do direito na princi¬


pal fase de sua maturidade intelectual e, por isso, seguiu um caminho
diverso da maior parte dos grandes filósofos. Os juristas percorrem o
itinerario contrario do de Bloch quando se tornam filósofos: saem do
particular jur ídico para os temas filosóficos universais. Os próprios
filósofos n ão-juristas em geral tratam do direito incidentalmente den ¬
tro do problema pol ítico. Raro é quem, como Bloch , escreve ao tempo
de sua principal obra de maturidade intelectual outra grande obra de
filosofia do direito.
Mas Bloch persegue a filosofia do direito desde sua juventude,
pois já se vislumbra, no Espírito da Utopia e em Thomas Münzer,
Teólogo da Revolução , uma abordagem do problema do direito e da
justiça , ainda que incidental . Direito Natural e Dignidade Humana
ser á o resultado de uma inquietação jurídica recorrente no pensa ¬

mento blochiano, mas, ao mesmo tempo, é també m uma obra pro ¬


fundamente política, com grandes mostras de sensibilidade para com
sua época e a interferência em seus problemas. A Segunda Guerra
Mundial e o nazismo avivam em Bloch a sua particular tendê ncia ao
pacifismo, o que lhe confere uma posição muito peculiar no quadro
da filosofia política e do pensamento ocidental. Os horrores nazistas,
sentidos també m por Bloch, a começar pelo seu exílio e pelo sofri ¬

mento do povo judeu , são o pano de fundo para uma nova peti ção
por dignidade humana, justamente no momento mais indigno de
sua histó ria contemporâ nea.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Ao emergir da 2a Guerra Mundial, após tr ês lustros de massa¬


cres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimen ¬
to do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade com ¬
preendeu, mais do que em qualquer outra época da Histó ria,
o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como
matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a
lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirma¬
ção histó rica dos direitos humanos.120

Entretanto, ao contrário da reação dos juristas que prosseguiram


cinicamente positivistas mesmo após o nazismo ou de outros que opuse ¬

ram ao positivismo do direito nazista uma apressada retomada do direi ¬

to natural , sem crítica ou melhores qualifica ções dos termos do debate,


Bloch pretende refazer toda a trajetó ria do direito natural, para, ao fi ¬

nal, rechaçar com veem ência tanto a filosofia juspositivista quanto a


jusnaturalista, esta tomada no seu sentido metafísico individualista, quan¬
do não no seu sentido religioso conservador. De toda a florada ética
surgida no direito do pós-nazismo, Bloch pretende o caminho mais difí ¬

cil, que é o de colocar em xeque os pressupostos de tais direitos éticos e


tamb é m dos meramente técnicos, 121 para ao final resultar numa

1
120 COMRARATO, F á bio Konder. A afirmação hist órica dos direitos humanos. S ão Paulo, Saraiva,
i 1999, p. 44.
121 José Eduardo Faria exprime a dificuldade do pensamento jur ídico em superar a dicotomia
¡ entre o jusnaturalismo tradicional e o positivismo: "Tal ceticismo, todavia , n ã o deve ser
entendido como uma desistê ncia da luta pelo reconhecimento e pela efetiva çã o dos direitos
; humanos, por se considerá - la invi á vel a priori . Ao contrá rio do otimismo idealista e das
| antinomias muitas vezes presentes nas tradicionais declara ções de direitos, o pessimismo da
raz ã o permite superar visões a meu ver algo simpl ó rias, limitadas e banalizadas dos direitos
humanos, abrindo desta maneira caminho para novas formas de luta em sua defesa . Deixan ¬
-
do se de lado as concepções jusnaturalistas tradicionais (que, ao operar por categorias trans¬
histó ricas e essencialistas, visam converter diferentes formas de poder, e hierarquia na 'ordem
natural das coisas') e as conhecidas concepções jurisdicistas (que sofrem de contradi ções
| cró nicas a serem examinadas mais à frente), os direitos humanos encarados numa perspectiva
| -
mais pol ítica ou substantiva do que jusnaturalista cl á ssica ou l ógico formal possibilitam
ações sempre incertas quanto à obten ção de resultados concretos no curto prazo, tendo em
vista sua formaliza çã o legislativa , mas potencialmente desafiadoras e efetivamente
transformadoras a m édio e longo prazo". FARIA, José Eduardo. "Democracia e Governabilidade:
os direitos humanos à luz da globaliza çã o económica". In Direito e globalização económica :
implicações e perspectivas . S ã o Paulo, Malhelros, 1998, p. 150.
UTOPIA E DIREITO

postulação de filosofia do direito bastante original. De fato, Direito Na ¬

tural e Dignidade Humana exprimirá a marca de uma profunda origi¬


nalidade jusfilosófica, o que implica, mais uma vez, numa coerência com
a própria postura política de difícil enquadramento de Bloch.

DIREITO NATURAL E DIGNIDADE HUMANA


O pensamento jusfilosófico de Bloch está consolidado em Direi¬
to Natural eDignidade Humana ( Naturrecht und menschliche Wiirde) ,
escrito em um dos per íodos mais profícuos do pensamento blochiano,
o exílio norte-americano, mesma época na qual també m escreveu sua
mais importante obra, o Princípio Esperança.

Direito Natural e Dignidade Humana é obra de filosofia do direi¬


to escrita por um nao- jurista, o que resulta numa visão peculiar do
fen ô meno jur ídico e de suas tradicionais abordagens. Bloch interpre¬
ta a filosofia do direito por um â ngulo pró prio, o que implica em en ¬
tendimentos filosóficos específicos, em cruzamentos de idéias muito
invulgares, em comparações e paralelismos bastante originais.
Dividida em dois grandes blocos, a obra de Bloch é peculiar em
ambas partes. Para tratar do tema do direito e das utopias jur ídicas,
Bloch há de fazer um grande inventá rio jusfilosófico das esperan ças
jurídicas e, neste sentido, recontar á a história da filosofia do direito.
No entanto, não refaz o percurso canónico e os paralelismos tradicio¬
nais das obras comuns sobre o tema. Bloch dá grande importância a
autores que, pela tradi ção jur ídica, têm menor peso na hist ó ria do
pensamento jurídico, ao mesmo tempo em que julga determinadas
idéias por um modo bastante insólito. Em relação a alguns pensado ¬

res, tem uma dose de cr í tica virulenta, como no caso de Carl Schmitt,
o que se explica pelo fato de Bloch estar se valendo de Direito Natural
e Dignidade Humana também como uma obra política, como um
ALYSSON LEANDRO MASCARO

modo de histó ria ao tempo das lembran ças imediatas do


recontar a
nazismo. Bloch não só reescreve a história da filosofia do direito como
marca posição em torno da implica ção dos pensamentos jurídicos.

Na segunda parte de Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch


procede à construção de uma nova ontologia jurídica, voltada à espe¬
ran ça. A parte final de seu livro, a mais ambiciosa e original, é a possi¬
bilidade de compreensão ontológica libertadora do direito. A emprei¬
tada blochiana, neste ponto, se revela ainda mais peculiar e mais incó¬
moda que a mera reinterpretação da história da filosofia do direito.
Neste último ponto, Bloch estará adentrando ao imo de uma postulação
nova do direito e da sociedade.

A UTOPIA QUE É JURÍDICA


Na tradição do pensamento marxista, ao direito é reservado um
papel de dominação muito claro. Nas engrenagens do Estado, ao direito
cumpre a função de chancela da propriedade privada, de segurança da
vida e do patrimó nio da burguesia, e há muito a cr ítica marxista identi¬

fica nos ideais jur ídicos máscaras de uma estrutura social reificada.
Pachukanis, que dentre os juristas marxistas talvez tenha ido mais
longe na identificação do direito ao capital, percebe até mesmo na
fundamentação ideológica do direito um fundo estrutural de ligação
à forma mercantil. A Escola de Frankfurt, em outra vertente, também
enxergou no papel do direito uma das formas do exercício da domina ¬

ção contemporânea do capitalismo. Ernst Bloch, no entanto , na tarefa


de reinterpretar a historia do pensamento jurídico , salvar á alguns sen ¬
tidos utópicos do direito, que só se cumpririam numa nova dialética
das relações sociais.
Bem percebe Bloch que at é os mais mecanicistas pensadores do
marxismo carregam um sentido utó pico em suas apostas revolucio-
UTOPIA E DIREITO

n á rias. O capitalismo é valorado negativamente, como um reino do


ter, da aliena ção , da explora çã o , e , em oposi çã o , o sentido da trans ¬

formação é a plenifica çã o humana, a felicidade e a boa vida, sem


cisões estruturais de classe. Desvendando o que revelam tais vagos
ideais, Bloch ir á encontrar, ao lado de utopias revolucion á rias t ípicas
do campo pol í tico, outras eminentemente jurídicas, que se comple¬
tam umas às outras.

A sua principal obra jusfilos ófica se estrutura a partir de uma


diferenciação de utopias. As utopias jurídicas n ão s ão as mesmas uto ¬

pias da sociedade e da pol í tica. Pelo contr á rio , h á especificidades que


tornam o direito um campo estrito no conjunto das utopias revolucio ¬

n á rias. A base da distinçã o blochiana entre utopias sociais e jur ídicas


está em situar as primeiras como sendo buscas pela felicidade huma ¬

na , enquanto o que distingue as utopias jurídicas é, especí ficamente, o


seu car á ter de busca da dignidade humana.
As utopias sociais est ão dirigidas principalmente à sorte ( Gliick) ,
ou , peio menos, à eliminação da necessidade e das circunstân ¬
cias que mant ê m ou produzem aquela . As teorias
jusnaturalistas, pelo contrá rio, como se viu claramente , est ão
dirigidas predominantemente à dignidade, aos direitos do
homem , a garantias jur ídicas de seguran ça ou liberdade hu ¬
manas, como categorias de orgulho humano. E de acordo com
isso, a utopia social est á dirigida , sobretudo, à eliminação da
miséria ( Elends) humana, enquanto que o direito natural está
dirigido , acima de tudo , à elimina ção da humilhação
( .Erniedrigung) humana . A utopia social quer afastar tudo o
que se opõe à endemonia (felicidade) de todos, enquanto que o
direito natural quer acabar com tudo o que se opõe à autono ¬

mia e a sua eunomia ( boa lei) . É que a resson â ncia nas utopias
sociais e nas teorias do direito natural é muito diferente. Se se
quiser resumir de maneira pl ástica o essencial desta diferença,
ALYSSON LEANDRO MASCARO

poder-se-ia dizer que uma o modelo é o dos feácios; no outro,


por sua vez, Brutus.' 22
Daí se entende o insólito de um marxista, no auge de sua campa ¬

nha pela transformação social, valer-se dos temas do direito natural e


da dignidade humana como bandeiras políticas. Bloch entende que o
campo da felicidade do homem, no qual se situa sua emancipação
econó mica, o fim da exploração do trabalho, o fim das classes e da
mais-valia, não esgota necessariamente o campo da dignidade do ho ¬

mem, cujo estatuto, embora resultante de um mesmo movimento his¬


tórico-social de emancipaçã o, é distinto e específico.

Bloch escreve sua obra jurídica no pós-guerra, e a própria histó ria


do título de seu livro dá mostras do quanto busca refinar a especificidade
do problema jurídico dentro do marxismo. No trajeto de regresso do
exílio, dos EUA para a Alemanha Oriental, o primeiro título proposto à
obra seria Direito natural e filosofia do direito. Posteriormente, Bloch o
altera para Direito natural e socialismo. Finalmente, dá à publicação sua
obra com o título Direito natural e dignidade humana. Neste processo
de mudança do nome está também o sucessivo refinamento do aspecto
específicamente jurídico da ontologia da utopia. No quadro geral do ser
utó pico, o ser-ainda- não jur ídico é o ser digno. O ser feliz é o ser-ainda-
não geral da sociedade e da histó ria. A ontologia blochiana, mais uma
vez, revela-se um conjunto dialético e plural, rico na diversidade de fato¬
res, manifestações e objetivos.

O percurso dos vá rios t ítulos da obra é também valioso para se


perceber que a âncora da utopia jur ídica blochiana sempre foi o pro ¬

blema do direito natural. Neste sentido, poder-se-ia argumentar al ¬

gum anacronismo da parte de Bloch, ao resgatar para o século XX


uma tem ática que foi importante apenas at é o século XVIII. Entretan-

122 BLOCH, Ernst. Naturrecht und menschliche W ürde. Frankfurt, Suhrkamp Vcrlag, 1985, p. 234.
UTOPIA E DIREITO

m, o direito natural, para Bloch, é um problema antes que uma assertiva


c é tim mote gené rico de temas vastos constru ídos historicamente an ¬

tis que uma metafísica dedutiva.

Assim sendo, os dois temas da ontologia jurídica da utopia em Bloch


Bem um uso comum e vulgarizado que é profundamente distinto do
uso
específicamente histórico, revolucionário e marxista por ele postulado.
Daí que a leitura superficial ou a mera evocação do título de sua obra de
filosofia do direito não dão conta minimamente de entender o jogo
dialético profundo de seu pensamento utó pico- jurídico.

A UTOPIA JURÍDICA CONSTRU ÍDA NA HISTÓ RIA: ANTIGOS E


MEDIEVAIS

Abominando o caráter conservador da filosofia do direito, que


de modo geral oscila pendularmente entre o normativismo tecnicista
to moralismo metafísico, Bloch h á de buscar na histó ria as razões das
lucas e das construções utó picas do direito. Seu pano de fundo é sem¬
pre a práxis, o agir social, as classes despossuídas que erigem referenciais
utópicos, a histó ria indigna que aspira à utopia da dignidade. Por isso ,
em certos momentos de seu recontar histórico, Bloch dá margem de
destaque mais ampla aos movimentos sociais e religiosos, que carreiam
os sonhos populares muito mais que o puro delinear dos filósofos e
seus pensamentos jurídicos, cujos debates são geralmente herméticos
ao povo. O religioso Thomaz Miinzer merece mais empatia, na
ontologia jurídica de Bloch, que vários dos eminentes tratadistas mo¬
dernos que inauguram a teoria do jusracionalismo.
Bloch abre Direito Natural e Dignidade Humana com uma peti¬
ção pelo sentimento jurídico. Seus livros, em geral, têm intróitos que
são verdadeiras exclama ções poéticas que preparam o discurso filosófi¬
co subseqiiente. Na sua obra jusfilosófica, Bloch també m se vale de tal
if »»” '

ALYSSON LEANDRO MASCARO

expediente. Conclama a uma reflexão do sentimento jurídico, aquele


que se manifesta no homem que está abaixo, em oposição aos podero¬
sos e ao Estado. Isto porque, para Bloch, é o homem de baixo que
sofre e sente o poder do direito, tendo em vista que a senten ça, quan ¬

do pronunciada, em geral é suportada pelos de baixo.


A narrativa da histó ria da utopia jurídica é, em Bloch, bastante
calcada nesta distin ção entre os de baixo e os de cima. Construindo
um m étodo de reflexão sobre as esperan ças jur ídicas que distingue
aquelas erigidas a partir do povo e aquelas determinadas a partir do
poder, Bloch separa os pensadores que muito mais estiveram ligados à
imposição que propriamente à libertação. Assim sendo, ao invés de
investigar, na histó ria do pensamento grego, o estofo clássico do pen¬
samento sobre o justo, Bloch busca, nos movimentos teó rico- pol íticos
gregos, expressões melhores das utopias jurídicas.
Separando, de um lado , a busca do direito natural como um fun ¬
damento da igualdade e da liberdade entre os homens e, de outro
lado, a legitimação do poder econ ó mico e político, nos capítulos inici¬
ais de Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch inscreve, em um
mesmo eixo de legitimação do poder e da dominação, os pensamentos
jur ídicos de Platão, Aristó teles e S. Tomás de Aquino.
E n ão sem fundamento vemos que a justiça só se encontra no
centro do pensamento daqueles filósofos que, ainda que os
maiores da Antiguidade, não tenham tratado do direito natu¬
ral, e sim só do direito patriarcal-senhorial. Platão e Aristó teles
fizeram da justiça o que o estoicismo nunca faria da natureza:
o gê nio bom do poder. Platão contrapõe expressamente seu
Estado justo da virtude ao Estado da natureza cínico, e a Politeia
de Aristóteles não conhece outros Estados que os existentes
segundo a lei positiva.123

123 Ibid , p. S3.


UTOPIA E DIREITO

Ao contr ário dos pensadores can ó nicos do poder, Bloch dar á mais
ênfase na investigação daqueles que logo cedo se insurgiram contra o
poder e a ordem estabelecida. Remontando ao passado histórico, Bloch
utiliza-se do mito de Adão para mostrar o quanto se busca mais o peca ¬

do e suas implica çõ es que propriamente a idade de ouro na qual havia


liberdade e não autoridade. É nesta idade de ouro que Bloch situa o
direito natural grego que carreia consigo sonhos de utopia jurídica.
A idade de ouro, contudo, na que se encastelou o direito natu-
ral grego, é louvada expressamente pelo estoicismo como urna
época sem autoridade estatal . Naquela idade n ão dominavam
nem Themis nem Dike nem Némesis; todavia em Homero e
em Hesíodo é Themis uma simples deusa do costume, també m
da deliberação, do direito consuetudinario que se afirma a si
mesmo. A representação da justiça como balan ça e espada, tal
como nos aparece no quadro de Raffael, é, desde logo , uma
ideia astrológica posterior, que n ão existe na Aitigüidade. 124
No decorrer dessa histó ria pelas utopias do direito natural , Bloch
percebe que, antes de existir um movimento social e de classes , houve,
pioneiramente, um movimento individual contra o poder. Os pri¬
meiros adversá rios das normas estabelecidas são os indivíduos. “ Só in ¬

divíduos sozinhos se lan çam , de in ício, contra os usos; mais vindos da


classe dos senhores, em defesa dos seus privilégios ou de seus direitos
especiais, que da classe dos submetidos. Assim que se fale mais facil¬
mente de um Caim que todo o grupo de Corá; os servos enfurecidos
só mais tarde se agruparam para a revolta” 125 .

Tal movimento, que se verificou nos gregos como sendo a reação


da Ilustração ateniense contra os costumes e o estabelecido no seu tem¬
po , destampado, segundo Bloch, dentre outros, nos hedonistas . O indi-

124 Ibid., p. 53.


1 25 Ibid., p. 20.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

vidualismo ali se expõe como adversário das normas jurídicas. Os cíni¬


cos, por sua vez, também se insurgem contra a ordem, ainda que seja
pelo objetivo oposto, da ren úncia ao prazer, da busca da vida simples.
Em Epicuro se esboça com mais clareza, para Bloch, a dignidade
humana, na medida em que tal pensador reconhece o Estado como um
contrato, originado de uma razão muito singela que é a vontade de não
dominar-se reciprocamente. Assim sendo, mesmo que para uma finali¬
dade altamente individualista, o que resulta dessa concepção inicial do
direito natural não é uma “ natureza eterna” , e sim um produto histó ri
¬

co, que tem de ser reafirmado socialmente de maneira constante.

Em oposição ao epicurismo, o estoicismo carreava outra concep¬


çã de direito natural, que se vê tanto no escravo Epicteto quanto no
o
imperador Marco Aurélio e em Cícero. Baseada no orgulho da exis¬
t ê ncia humana, a aposta estoica estava centrada na dignidade. Dela

__
adviria, posteriormente, a felicidade. Para Bloch, tal direito natural
digno dos estóicos se apresentava como igualdade inata de todos os
homens e como unidade de todos os homens, numa comunidade in ¬

ternacional, numa irmandade.

A A avaliação blochiana a respeito dos primeiros movimentos histó ¬

ricos do direito natural na Grécia é bastante crítica. Embora tenha


sido o ambiente de surgimento da petição por dignidade humana,
este ainda é um processo comandado por indivíduos, em geral das
elites gregas, apartados dos movimentos sociais. A absor ção de tais
postulações gregas por dignidade humana entre os romanos terá, se¬
gundo Bloch, uma inesperada reação. Numa estrutura político-social
altamente refratária a qualquer humanismo , calcada numa estrita de¬
fesa da propriedade privada, o direito natural estoico grego represen ¬

tará, ao tempo de Cícero, um aspecto progressista, ainda que haurido


de razões elitistas: “ O ponto pelo qual o estoicismo penetra no Direito
Romano n ão foi indubitavelmente nem o interesse filantrópico nem
UTOPIA E DIREITO

tampouco o interesse especulativo. As causas disso devem ser busca¬


das, fundamentalmente, no esnobismo das classes altas romanas e tam ¬
bém, de modo principal, na necessidade de dotar o direito pretoriano
de uma formulação l ógica e reduzi-lo a um sistema de conjunto que
garanta sua unidade” .126 Para Bloch , o efeito da introdu çã o do
estoicismo em Roma, ao tempo de Cicero, era o de unificar um impé¬
rio que, ao ter se estendido por povos os mais variados, necessitava de
um eixo universal de domina çã o. O direito natural estoico, assim, ser¬
vindo para a dignidade humana universal, serve também para o do ¬
minio imperial universal.
Ao final da Idade Antiga, a consolida ção do cristianismo como
religião oficial fez também da Igreja refém da mesma lógica de utiliza ¬

ção da universalização da dignidade a benefício do domínio, e, pois,


da indignidade. Bloch aponta em Lactando, nos anos 300 d.C., a
tarefa de conversão do direito natural em domínio terreno e divino.
Com a equação lex naturae = lex divinae, Lactancio abre as portas
para o estoicismo penetrar na Igreja, a fim de prosseguir na dominação.
São Tomás de Aquino procede do mesmo modo, aponta Bloch , na
equação estoicismo = Decálogo. O resultado de tal procedimento é o
abandono das utopias jur ídicas da idade de ouro, aquelas desprovidas

de autoridade a época de ouro do paraíso, aquilo que Bloch chama
por “ direito natural absoluto” , totalmente livre e pleno -, erigindo-se,
em seu lugar, um “ direito natural relativo” , do tempo do pecado origi ¬

nal e dos dez mandamentos. Por este caminho, diz Bloch, andarão
Tom ás de Aquino, Lutero e Calvino.
Ao contrário de urna historia can ónica dos filósofos, que enxerga¬
ria os monumentos fundamentais do pensamento cristão justamente
em tal trinca Tomás de Aquino, Lutero e Calvino, Bloch abre cami -

126 Ibid., p. 32.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

nho para situar as melhores utopias crist ãs em Thomas M ü nzer. Des¬


de seu livro de juventude, quando apontava, tal qual o fizera antes
Engels , que M ü nzer era um dos precursores da revolu ção socialista ,
na sua obra jur ídica també m Bloch identifica em M ü nzer um dos
avatares de uma utopia libertadora e igualit á ria.

Tomás de Aquino, pela perspectiva blochiana, ainda insiste no


caminho que foi também dos estoicos, n ão incorporando uma idéia
plena de direito natural, igualitá ria e justa socialmente, e sim uma
id é ia retalhada, porque dependente da autoridade, dominadora e in ¬

justa em suas últimas implicações. Aplica Bloch, para Tomás de Aquino,


a sua distin ção entre o direito natural absoluto e o relativo, com ima ¬

gens bí blicas bastante claras:


No Decálogo se revela de modo novo o direito natural, mas se
revela, sem dúvida, a uma humanidade caída, e, portanto,
trata-se de um direito natural modificado . É um direito natu ¬

ral que pressupõe um Adão, n ão justo, e sim pecador, e, por


conseguinte, um direito natural do estado do pecado, o que é
o mesmo que dizer, relativizado. Na idade de ouro, que aqui
se denomina estado originá rio ou estado paradisíaco , reinava
a liberdade e a falta de violê ncia (ainda que n ão uma igualda ¬
de indiscriminada ) , e existia, sobretudo, a communispossessio.
No direito natural debilitado ou relativo, que é o que o peca ¬

do original deixou daquele direito natural absoluto, perde-


ram-se todos estes direitos origin á rios. Quer dizer, o pecado
de Ad ão devia servir para justificar o pecado original da Igreja,
seu afastamento do comunismo crist ão primitivo e sua orien ¬

ta ção às ordens do mundo. O direito natural relativo retroce ¬

deu, inclusive em grande medida, em comparação com o di ¬

reito natural estoico, sancionando a escravid ão e, sobretudo , a


autoridade e sua espada. Porque a ca ída de Ad ão teve como
conseqtiê ncia que o direito natural adotara a nova forma de
UTOPIA E DIREITO

pena e dos meios espirituais contra o pecado: tudo isso se


justificava pelo pecado original. ' 27
A perspectiva de Bloch sobre utopias jur ídicas em Lutero e em
Calvino n ão difere no essencial do posicionamento que vê em Tomás
de Aquino. Com as diferen ças de visão teológica que lhe são peculia¬
res (e enxergando até mesmo mais democracia em Calvino que em
Lutero, apesar de uma fundamentação altamente capitalista naquele),
Bloch encontra um nexo de ligação entre o pensamento oficial cristão,
seja católico ou protestante - que raramente, como Miinzer, se rom¬
peu -, e as origens do próprio pensamento clássico grego: tratam-se
todos de justiças a partir do alto ( Gerechtigkeit von oberi)12* , e n ão ,
para uma plena utopia justa, da justiça a partir de baixo, do povo.

A UTOPIA JURÍDICA CONSTRUÍDA NA HISTÓ RIA: OS MODERNOS


Na tentativa de buscar, na histó ria do pensamento jurídico, um
direito natural que se aproxime da utopia da dignidade humana, Bloch
separa os jusfilósofos modernos - tal qual o fizera com os antigos e
medievais - entre os adoradores da ordem estatal e os potenciais
libert ários. Neste sentido, sua apreciação por Hobbes, logo no in ício
da modernidade, é das piores.
Reconhecendo que o jusnaturalismo moderno é um passo fun ¬
damental à dominação de classe burguesa e que o discurso dos direitos
humanos em muito se prestou à consolidação da burguesia na Euro¬
pa, Bloch identifica alguns pensadores que conseguem , mesmo saídos
da classe burguesa, transcender os interesses da dominação econ ó mi¬
ca. Dentre estes, Thomasius e Rousseau sã o campeões.

127 Ibid., p. 38.


1 28 Ibid., pp. 50 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Bloch se vale de urna peculiar nomenclatura em relação ao tipo


de direito natural constru ído na modernidade. Dirá se tratar de um
direito natural clássico, mas não porque remonte necessariamente aos
clássicos gregos e romanos, e sim porque representa o jusnaturalismo
moderno o modelo acabado do interesse burguês e sua utilização mais
pr á tica e recorrente. Tal direito natural moderno, clássico nas palavras
de Bloch, ainda é uma manifestação tortuosa de um â nimo que impe ¬

ra desde os estoicos, mas bastante distinto em sua finalidade.


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1 Que “ natureza humana” tenha outro sentido no direito natu-


i ral cl ássico que no estoicismo é evidente; trata-se, ali, no fun ¬
do, da natureza do empresá rio incipiente, n ão da do sábio. É
uma natureza burguesa-revolucioná ria em luta contra a arbi ¬
trariedade feudal, contra a opressão e a desordem. O direito
natural clássico é a ideologia da economia individual e da cir ¬

culação mercantil capitalista, o qual, assim sendo, necessita


de calculabilidade, e, portanto, igualdade formal e generali ¬
dade das leis, em lugar do matizado direito dos privilégios
próprio da Idade Média.129 J
Hobbes, nesta análise de Bloch, representa a face mais pesada do
caráter capitalista do direito natural moderno, tendo em vista que o
pensamento hobbesiano aposta num “ tortuoso” jusnaturalismo, n ão-
democrático por essência. Falta a Hobbes, segundo Bloch, a pureza
das origens, do estado de natureza, e daí a carência de uma utopia que
seja plena na dignidade do homem. Tendo associado Bloch a utopia
jur ídica à dignidade, o direito natural hobbesiano não se assemelha a
tal projeto utó pico.
Bloch, no entanto, n ão está neste ponto apenas desenvolvendo
uma história do pensamento jurídico em busca da utopia, mas está
também se valendo de suas páginas para o explícito combate político.

129 Ibid , p- 69.


UTOPIA E DIREITO

Polemizando, a ausência de um fundamento primeiro da dignidade


em Hobbes n ão é suficiente, segundo Bloch, para afast á-lo totalmente
de toda ideia de direito natural e torná-lo caudatário de qualquer teo ¬

ria do decisionismo, como pretendeu Carl Schmitt, seu estudioso do


século XX. Bloch não economiza palavras para tanto, tratando Schmitt
por “ prostituta do absolutismo completamente letal, do absolutismo
nacional-socialista” .130 A razão da virulência é ainda uma aposta políti ¬
ca, que estava candente ao tempo nazista: Bloch consegue ver uma
réstia de dialética no jusnaturalismo moderno, que há de se aproveitar
a benefício da dignidade pelo menos no momento em que rompeu
com a fundamentação teológica e abraçou a razão. Carl Schmitt e o
nazismo, para Bloch, nem à razão lograram adentrar.

É tal rompimento com a teologia, com a divinização do direito


natural, com seu uso até então a benefício da dominação, que Bloch
vê com melhores olhos em Grócio. Thomasius, por sua vez, que é cha¬
mado por Bloch como “ intelectual alemão sem miséria” 131 (e que me¬
receu um apêndice de Direito Natural e Dignidade Humana para seu
estudo e louvor), também é um dos que, na modernidade, represen¬
tou um passo decisivo pela utopia da dignidade humana, na medida
em que empunha a bandeira de um jusnaturalismo de tolerâ ncia.

Em uma boa projeção utópica da dignidade humana também


est á , segundo Bloch, Rousseau, que na historia do seu direito natural
clássico ocupa um lugar central. Ainda que reconhecendo a incon ¬
gru ência rousseauniana e o fato de que definitivamente era ambiguo
quanto à propriedade, a ponto de ser erróneo tom á-lo por comunista,
como já o eram ao seu tempo Morelly ou Mably, Bloch n ão deixa de
admirar o peso que Rousseau investe, mais que à figura do capitalista,
à do cidadão. Tomando partido da conhecida polêmica de Jellinek a

130 Ibid., p. 62.


131 Ibid., pp. 315 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

respeito da proximidade da Revolução Francesa e da Declaração de


Direitos com o Bill of Rights americano ou com o Contrato Social de
Rousseau,132 Bloch dirá que a questão é mais profunda, uma vez que
as afinidades da Revolução Francesa se deram por ambas as partes e
que Rousseau, mais profundamente, estava, em outro diapasão , bem
distinto, o de resgatar a perspectiva do cidadão da Antiguidade.
No hist ó rico da formação da utopia da dignidade jur ídica mo ¬

derna , Bloch vislumbra um papel contradit ó rio a Kant. É menos


libertá rio que Rousseau, na medida em que “ Kant sustenta o car á ter
retributivo da pena (olho por olho, dente por dente) , nega o direito
de resistência, e o nega até mesmo no caso de uma autoridade satâ ni ¬
ca” .133 Tudo isso n ão afasta o lado progressista de Kant, pois este ex ¬

pressa sua admiração incondicional pela Revolução Francesa. Kant


afasta o estoicismo da “ natureza como critério” , investindo sua cons ¬

tru ção teó rica na razã o , mas ainda assim logrando tamb é m tocar na
questão da dignidade. E tal caminho tortuoso de uma constru ção
racionalista do direito natural, apartada de qualquer referência à na ¬
tureza , Bloch o enxerga també m em Fichte, o que neste caso conduz a
uma aventura de afastamento da moralidade e da realidade em troca,

muitas vezes, do pró prio direito positivo. Tal paradoxo, para Bloch ,
também está atravessado na Luta pelo Direito de Jhering e no J’accuse
de Zola, como um fanatismo pelo direito positivo que substituiu o
fanatismo do direito natural.
Toda a evolução do pensamento jusnaturalista moderno, que Bloch
compreende sob uma abordagem bastante cr ítica, se transformar á

1 32 "Neste sentido, o filósofo Ernst Bloch chama a aten çã o, no brilhante estudo Direito Natural e
Dignidade Humana , a poss íveis conexões e influ ê ncias rec íprocas entre o direito de liberdade
de consci ê ncia religiosa e o direito natural tal qual desenvolvido por Rousseau ". SOLON, "A
Pol êmica acerca da origem dos Direitos Fundamentais: do Contrato Social à Declaraçã o
americana' , op. cit ., p. 135.
1

133 BLOCH, Ernst. Naturrecht und menschliche Wiirde , op. cit ., p. 82 .


UTOPIA E DIREITO

quando, na passagem de Rousseau para os contemporá neos, se depara


com um projeto muito peculiar, que aponta claramente ás utopias
jurídicas da dignidade humana: trata-se do romantismo e, em especí ¬

fico, da questão do direito matriarcal, levantada por Bachofen .


De um certo modo, na an álise da Escola Hist órica, que é urna
reação ao Iluminismo e ao liberalismo burgués racionalista, Bloch per¬
cebe os ecos de uma inspiração profunda, que é a do romantismo. Tal
qual Lukács, Bloch também pode ser filiado a urna ampia corrente
rom á ntica, que é artística e filosófica, e que encontra, na historia do
pensamento jurídico, peculiarmente, um paralelo claro com o movi¬
mento de Savigny. E, dentro do movimento jur ídico romá ntico, Bloch
considera Bachofen um de seus mais importantes expoentes: “ sua prin ¬
cipal obra, 0 Direito Matriarcal (1861), é o produto legítimo do ro ¬

mantismo alem ão” .134 Bloch vê em Bachofen uma continuidade do


lado romântico rousseauniano, trazendo à tona a natureza noturna e
feminina do direito natural. Segundo Bloch, tal car áter feminino,
matriarcal , fica ressaltado em Bachofen na dicotomia por ele aponta ¬
da, em Antígona, entre a dignidade utó pica haurida femininamente
da terra e o domínio patriarcal estatal.
A rebeli ão do direito da terra em que se apóia Antígona contra
a lei patriarcal de Creonte é aqui, precisamente, o exemplo
mais característico. É o exemplo oferecido por uma das mais
grandiosas obras literá rias, por um conflito no qual Sófocles
faz chocar tragicamente o antiqiiíssimo direito matriarcal com
o novo direito estatal e do soberano.135

Há um caráter claro neste apoio de Bloch em Bachofen, um dos


autores que não fazem parte do cânone mais restrito da história da filo¬
sofia do direito: trata-se de vasculhar, como direito natural a benefício

134 Ibid., p. 116.


135 Ibid., p. 132.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

da utopia jurídica, não o estabelecido e velho conhecido direito de do ¬

minação, mas a imagem contundente do feminino, da mãe , como aco ¬

lhedora da dignidade humana.136 Neste sentido, vão se afastando os


direitos naturais antigo e burguês moderno, que, vindos do alto, eram
ordens de dominação e de mera contabilidade individual. O acolhi ¬
mento maternal , que está em Rousseau e em Bachofen , é
a melhor ima ¬

gem hist ó rica, produzida pelo pensamento dos juristas modernos, a ser
guardada e utilizada por Bloch para apontar a uma utopia jur ídica.

A UTOPIA JURÍDICA CONSTRUÍDA NA HISTÓ RIA:


OS CONTEMPORÂ NEOS

Hegel ocupa no pensamento jur ídico de Bloch uma posição de


muito relevo , que no conjunto da obra só será menor que o de Marx,
a quem dedica os problemas da parte final de Direito Natural e
Digni ¬

dade Humana. Tanto quanto a Lukács, para Bloch também Hegel é o


caminho de passagem a Marx. Não só na sua grande obra jur ídica
Bloch tratou da filosofia hegeliana, mas dedicou a Hegel um monu ¬

mento liter ário que fez publicar, pela primeira vez em


lí ngua espanho ¬

la e só depois em alem ã o, Sujeito-Objeto.

Em Direito Natural e Dignidade Humana , Bloch começa por in ¬

sistir na ambigiiidade hegeliana. É assim que o mesmo Hegeí que res¬


peita e admira o Iluminismo também se encaminha, na maturidade,
para o elogio do Estado prussiano. Bloch liga de uma certa maneira o
pensamento jur ídico hegeliano ao tema do direito matriarcal, apon ¬

tando que a interpreta çã o de Antígona por Hegeí busca uma sí ntese

136 "Com imagina çã o e fantasia , o direito natural é reinterpretado à luz da obra bachofeniana,
das
seitas cristãs gnósticas e do romantismo de Schilling e não se surpreenda o
leitor se a mistura
de todos esses ingredientes resultar numa nova teologia pol ítica - revolucion á ria ". SOLON,
Teoria da soberania como problema da norma jur í dica e da decisão, op . c/t., p. 172 .
UTOPIA E DIREITO

entre o matriarcado e o patriarcado, a familia e o Estado. “ A posterior


Estética exige, ao tratar de Ant ígona, a unidade do direito do amor
( “ Liebesrechts” ) com o direito do Estado em uma totalidade da qual
ambos sao partes” .137
Bloch retoma , na frase central de Elegel , “ o que é racional é real,
o que é real é racional ” 138 , aquilo que já se aponta desde os primeiros
cr í ticos hegelianos, que é o fato de conter uma primeira parte revolu ¬

cion á ria e uma segunda parte reacion á ria . Assim se demonstra o fra ¬

casso do período de entrada do positivismo contempor á neo em levan ¬

tar a utopia jur ídica da dignidade humana. Isto, no entanto, nã o afas ¬

ta da contradi ção do pensamento hegeliano o seu valor maior. Em


suas po éticas palavras, em Sujeito- Objeto, no capí tulo concernente à
filosofía do direito, Bloch a Hegel se refere:
É, precisamente, em Hegel, o solo em que pode florescer uma
rosa muito mais bela, muito mais misteriosa, muito mais lu ¬
minosa que aquela que floresce na cruz do Estado; seja com
ou sem ramos de carvalho e espadas. 139

Este algo que pode resultar de Hegel muito melhor que a cruz do
Estado é o marxismo, cujo m é todo é haurido das fontes hegelianas .
Bloch faz em Hegel a inflexão para a superação do próprio estatalismo
hegeliano por meio do m é todo hegeliano- marxista. A rosa contra a
cruz e a espada é a utopia jurídica contra o Estado e a dominação. No
pensamento de Bloch, é Hegel a chave com a qual Marx supera, en ¬

fim , ao pr ó prio Hegel.

137 BLOCH , Naturrecht unci menschliche Wiirde, op. cit ., p . 142 .


138 "A partir da equa çã o ' real = racional' é que se pode compreender por que n ão ti á para Hegel
uma ¡d é ia de justi ça separada da realidade em que ela se revela . A idé ia, por ser a expressão
maior da racionalidade, é também a m á xima expressã o da realidade". SALCAOO, Joaquim
Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo, Loyola , 1996, p. 498.
139 BLOCH, Ernst. Sujeto-Objeto ( el pensamiento de Hegel ) . México, Fondo de Cultura Económica,
1982 , p. 254.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Para Bloch, no entanto, o caminho da filosofia do direito con ¬


temporânea segue, de Hegel, a cruz do Estado, e não a rosa. Assim,
volta suas armas contra o positivismo, que é a ideologia jurídica dos
séculos XIX e XX. Mais uma vez, sua obra jur ídica nlo é só uma aná ¬

lise histó rica e filosófica fria e intelectiva, e sim um libelo transforma¬


dor, que interfere em seu próprio tempo.
Na crítica que empreende contra o positivismo nos séculos XIX e
XX, Bloch mira alguns alvos certeiros. Começa sua trajetó ria por mo ¬

vimentos jur ídicos já ultrapassados a seu tempo para se concentrar,


ao final , nos dois grandes monumentos do domínio jur ídico: os pensa ¬

mentos de Hans Kelsen e, principalmente, de Carl Schmitt.

A escalada pelo positivismo de antanho passa por Jhering, cujos


A Finalidade no Direito e A Luta pelo Direito representam, para Bloch,
um movimento de alguma aproximação à dignidade humana, por
conta da finalidade e da luta, mas que, ao final, se situam no mesmo
quadro geral de busca do lucro e do interesse do capital privado e do
Estado liberal .
Nesta mesma contradição Bloch também situa a Escola do Di ¬
reito Livre, que, podendo alçar vôos em busca de uma utopia além
do positivismo , resiste numa liberdade que é o atendimento de uma
burguesia que mudava a sua estrutura econó mica, antes apenas for¬
mal e agora necessitada de uma sociologia que abrisse respiros ao
casual e ao específico.
Com mais dureza, Bloch se referir á ao movimento que, tentando
esmaecer o positivismo, relan ça o direito natural, sob matizes profun ¬

damente mais reacion á rios. Neste ponto , Bloch distingue o seu direito
natural, da utopia da dignidade humana, daqueles que, até mesmo no
pós-guerra, retornaram a um jusnaturalismo de caráter ético e religio ¬

so como forma de se contrapor ao rescaldo do totalitarismo.


UTOPIA E DIREITO

Aponta Bloch que um dos que postulam um fundamento ético


jusnaturalista e passadista no capitalismo tardio é Stammler. A carac ¬

ter ística comum a todos os movimentos que postulam, a partir do di¬


reito, . uma libertação do positivismo é o fato de nao se desgrudarem,
_
ao cabo*_d.Q próprio jpositivismo, do Estado e da dominação. No final
das contas, para Bloch, trata-se de uma defesa do direito positivo em
meros cen á rios (Kulissen) de preocupação social.

Assim também a retomada do tomismo, que Bloch classifica como


uma falsificação, tendo em vista o seu cará ter fugidio às questões estru ¬

turais da injustiça no capitalismo. Bloch considera o neo-tomismo uma


constru ção decorativa no conjunto do direito positivo capitalista con ¬

temporâneo. Suas investidas de direito natural são daquele tipo que Bloch
denominou de relativo, isto é, preservando a autoridade divina, de um
lado, e a do Estado , do outro . O resultado é apenas um vago
tangenciamento dos problemas sociais contemporâneos, em troca de
um caráter pastoral que teme o potencial da liberdade. O direito natu¬
ral do neo-tomismo, no século XX, se apresentará então, para Bloch,
como “ duplamente decorativo por razão da quimera de um direito na ¬

tural pré-capitalista, anterior a todas as contradições capitalistas” . 140 Tra¬


ta-se, para Bioch, de uma volta ao passado que tem por resultado passar
ao largo das questões centrais da exploração económica. Se a encíclica
papal Qtiadragessimo Anno, segundo Bloch, conclama, em nome do di¬
reito natural, que os salários dos trabalhadores não sejam muito rebaixa ¬

dos, também nada faz nem aponta para que sejam aumentados.
A investida de Bloch contra aquilo que denomina de “ direito na ¬

tural tardio-burgu ês” se estende até mesmo à análise do pensamento


de Adolfo Reinach, cujo Fundamentos aprior ísticos do Direito Civil,
de 1913, marcou um passo importante para o estabelecimento de

140 BLOCH, Naturrecht und menschliche W ürde, op. oí., p. 161 .


ALYSSON LEANDRO MASCARO

uma reflexão fenomenológica a respeito do direito, nos passos de


Husserl. A fenomenología , pretendendo uma ess ência para alé m das
contingê ncias, do acaso, das peculiaridades incidentais do direito , acaba
por construir uma teoria jurídica vazia, desprovida de relações sociais,
e, daí, quaisquer que sejam seus conte ú dos, advir ão de um procedi ¬

mento de formas esvaziadas. Bloch aponta para a fenomenologí a


implicada ao direito natural como se fosse um pan óptico, um conjun ¬

to total de imagens falsificadas.

No entanto, toda a excursão de Bloch pela histó ria cio pensamen ¬

to jur ídico terá seu ponto culminante na cr ítica a Hans Kelsen e a Cari
Schmitt. Nestes dois, enxerga Bloch o cume contemporâ neo das duas
formas de dominação do capitalismo, nas suas faces liberal ou nazista.
Para Kelsen , Bloch reserva uma crítica bastante peculiar, que co ¬
meça primeiro por apontar, classicamente , para os limites do
formalismo kelseniano, mas que, de forma surpreendente, posterior ¬
mente identifica em seu pensamento uma mistura de geometria n ã o-
euclidiana, que Bloch qualifica como axiomá tica e dedutiva, com um
scotismo medieval , partindo do primado da vontade sobre o entendi ¬

mento. 141 Estes dois mé todos (a dedu çã o formalista e a vontade) , se¬


parados e muito diferentes entre si historicamente, h ão de se encon ¬

trar no pensamento jur ídico de Kelsen .

~
Com a teoria de Kelsen do puro cará ter prescritivo da norma
fundamental ( e, como conseq íiê ncia, da variabilidade da

5 41 Ari Solon , tratando da confronta ção de Bloch a Kelsen, afirma : "Inicia o ataque a Kelsen com
os chavões usuais que julgamos ter refutado ao longo de nossa an á lise: a 'l ógica do dever'
n ão admite nenhuma determinaçã o emp írica; a oposi çã o abstrata entre ser e dever-ser suscita
um desinteresse pelo ser e a doutrina pura despreza a sociologia e a an á lise econó mica . H á
um ú nico ponto de sua cr ítica que, com alguma retifica çã o se concilia perfeitamente em nossa
an á lise . Após mostrar como a doutrina kelsenlana poderia ter seu ponto de surgimento no
scotismo medieval ( a afirma ção do primado da vontade sobre o entendimento fazendo derivar
todas as determinações intelectuais da vontade divina , que n ã o se prende a nenhuma l ógica
do entendimento), Bloch afirma ter o irracionalismo campo livre". SOLON, Teoria da soberania
como problema da norma jurídica e da decisão, p. 1 f >8.
UTOPIA E DIREITO

normalização) , abrem -se as portas para o irracionalismo; ul-


trapassando-se a si mesmo em nome da “ pureza” , o formalismo
estava maduro para isso desde o principio.142|

Aponta Bloch que Kelsen é um destino necessário a que chegaria


a teoria jurídica positivista e formalista, que, por conta do seu desinte ¬

resse cient ífico pela origem de sua validade, torna-se um antípoda do


direito natural como utopia da dignidade humana.
No entanto, dirá Bloch, a mais aberrante evolução a que chega a
filosofia jurídica desprovida das utopias da dignidade humana vai se
dar no pensamento de Carl Schmitt. Pior que Kelsen, porque neste
ainda h á uma máscara de estado de direito em Schmitt só se vislumbra
o estado de exceção como norma.

Confirma-se mais uma vez, quando da análise específica de Cari


Schmitt (e, em tom menor, da de Kelsen ), que Bloch abandona um
possível neutralismo de curiosidade histórica para tomar partido em
face de feridas que, no tempo de escrita de sua obra jusfilosófica, esta¬
vam abertas e poderiam, até mesmo, reaparecer. Na condição de ju¬
deu marxista, perseguido duplamente, Bloch não poderia se furtar a
vaticinar criticamente contra o pensamento schmittiano.

Embora nas décadas de 1980 e 1990 tenha havido no seio do pen ¬

samento marxista uma revalorização de Carl Schmitt, por conta de sua


suposta fidelidade a uma perspectiva realista do poder, que trata da ex¬
ceção e n ão da norma, Bloch rechaça qualquer hipotética interpretação
benéfica em torno daquilo que denomina “ antijusnaturalismo” . Bloch
percebe, desde logo , que Schmitt faz um movimento de afastamento do
formalismo, que até poderia lograr êxito, mas que procede a uma
hecatombe ainda maior: o formalismo jurídico positivista (Kelsen) é ex¬
pressão do capitalismo burguês legalista, concorrencial e mercantilista,

142 BLOCH, Ernst . NalurrectU und menschliche Wiirde , op. cit., p. 171.
,, i , «

I
ALYSSON LEANDRO MASCARO
s
mas o decisionismo de Schmitt é a negação do direito dos burgueses
li
mercantis em nome do capitalismo monopolista. Para isso, até mesmo o
uso schmittiano de Hobbes é amplamente distorcido,143 porque, se este
aponta para o contrato social como resolu ção da natureza, Schmitt apon¬
ta para a exceção. “A falsificaçã o desemboca em assassinato. Como dita¬
dura do crime consumado” .144
Neste sentido também aponta Celso Lafer, tratando a respeito
das razões da conexão hobbesiana de Schmitt:
Schmitt inspirou-se em Hobbes e na preocupação hobbesiana
da guerra de todos contra todos, mas as suas idéias serviram a
Hitler, que deu um sentido preciso ao que Schmitt denomi ¬

nou de hostilidade absoluta.145

Bloch n ã o se furta a construir um m é todo de distin çã o


jusfilosófica que é , no fundo , uma arma de luta pelo presente e pelo
futuro. Toda a trajetó ria da utopia da dignidade humana é social,
histó rica, condicionada às circunstâncias do domínio político-eco¬
n ó mico. E, enfim, de classe. Mas, ainda assim , Bloch considera boa
parte de tal pensamento jur ídico uma heran ça necessá ria à utopia
jur ídica de uma sociedade justa e digna.

1 43 "A aprecia ção da obra de Schmitt é ainda mais desfavorável , inclusive com insultos desneces ¬
sá rios. No capitulo de seu livro 'O decisionismo de Carl Schmitt ou o anti-direito natural ',
Bloch acusa Schmitt de ter falsificado Hobbes, um autor liberal preocupado com a segurança
pessoal e a manutenção da paz para fins fascistas. N ã o seria Bloch que falsifica 5chmitt, pois
ao reivindicar para o decisionismo a construçã o liberal de Hobbes, como poderia ela culmi ¬
nar no fascismo em que pese a m á scara usada pelo seu autor durante certo tempo para
protegé- lo ? Bloch , poré m , estava convencido, ao contrá rio de n ós, que, h á muito, j á se
ocultava sob aquela m á scara um rosto fascista . (...) Pelo menos, Bloch entendeu , melhor do
que Kelsen , que Schmitt n ão era nenhum jusnaturalista ". SOLON, Teoria da soberania como
problema da norma jurídica e da decisão, p. 169.
1 44 BLOCH, Naturrechl und menschliche Wijrde, op . cit ., p . 175.
1 45 LAfER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendl. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 287.
CAPíTULO 8

A ONTOLOGIA JURÍDICA DA UTOPIA

O caminho da filosofia do direito de Bloch, após o grande excurso


histó rico da parte inicial de Direito Natural e Dignidade Humana,
passa a ser o de se aproximar, na segunda e derradeira parte da obra,
da construção de urna específica ontologia utó pica, aquela que versará
sobre o direito. O ser-ainda-nao das utopias jur ídicas revelar-se-á urna
das mais importantes peças da arquitetô nica do pensamento blochiano,
pois que aponta para a sociedade digna e justa.
Em torno do marxismo e da reconstrução das categorias jurídi¬
cas, sob a ótica da filosofia da praxis, será construído o eixo da teoria
especificamente jurídica de Bloch. Para tal procedimento, Bloch car¬
rega consigo, logo de in ício, a bandeira e as cores da Revolução Fran ¬

cesa. Aponta Bloch seu conte údo como o passo referencial da utopia
que ainda n ão se cumpriu e que, pois, n ão se venceu.

A UTOPIA DAS TRÊS CORES REVOLUCIONÁRIAS

Ao contrário do marxismo mais estrito, que não enxerga na revo¬


lução burguesa da Fran ça um passo da revolução socialista, Bloch apon¬
ta em sentido contrá rio: o grande legado da revolução francesa é seu
horizonte utó pico socialista. Assim sendo, suas três cores, seus lemas -
igualdade, liberdade e fraternidade - perseveram no imagin á rio utó¬
pico como as fronteiras a serem concretizadas quando do estabeleci ¬

mento de uma sociedade socialista, definitivamente não- burguesa.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

Bloch instaura uma dialética entre o impulso tricolor da Revolu ¬

ção Francesa e a sua possibilidade de concretização apenas com o soci¬


alismo. Ao invés de separar cada um dos três lemas, problematizando-
os individualmente, Bloch ressalta a sua íntima interliga ção recíproca.
-A O que ocorre, apontará Bloch, é que os três horizontes da utopia da
Revolução Francesa só se concretizam na transcendência da sociedade
burguesa. Assim, ser á a classe trabalhadora aquela que dar á cumpri¬
mento aos ideais que, em tempos passados, foram postulados pela bur¬
guesia. A burguesia, por se plantar na exploração, na divisão de clas¬
ses, na cisão, não tem condições de levar adiante tal processo de eman ¬
cipação proposto pelos lemas da Revolução. Por isso tais lemas são até
o presente contraditó rios e não se cumpriram. “ N ão chegaram ainda
os homens de que trata o apelo tricolor ” .146

De tal forma, Bloch deposita nas mãos da classe proletá ria a


utopia da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A bandeira da
Revolução Francesa persiste, empunhada agora por outra classe. A
utopia mais uma vez se levanta, trazendo do passado os seus sonhos
mais profundos, mas sendo concretizada pela concretude da ação
social revolucion á ria. %
No caminho para a liberdade, Bloch não diferencia tipos ou mo¬
dalidades excludentes e insiste, sim, que a liberdade, ao mesmo tempo
em que é individual, nas escolhas e eleições, é liberação, libertação da
coação e da opressão. Por isso, somente o socialismo, emancipando o
homem do aguilh ão da exploração econó mica e do trabalho, lograr á
empreender uma sociedade livre. Bloch aponta que a liberdade n ão é
o afastamento do indivíduo do mundo, a fim de que pense e delibere
sozinho, de modo próprio. É a liberdade no próprio mundo, ocasião
em que os homens se tornarão, todos, senhores.

146 BLOCH, Naturrecht und menschliche Würde, op. cit ., p. 176.


UTOPIA E DIREITO

A liberdade aponta para um caminho ético, o que faz com que o


homem não se assemelhe a um cão ( Hund), e, ainda por conseqiiên-
cia, a liberdade religiosa daí advinda n ão será aquela proposta pelas
igrejas e por Lutero, a mera liberdade da consciê ncia, interior, ou en¬
tão aquela que só aponta aos céus. A liberdade, refere se Bloch ,
- guar ¬

da o conceito hegeliano de não ser determinada. É aberta, é a possibi¬


lidade, inconclusa.
í A igualdade, em igual diapasão, n ão é um conceito estrito, ao
mesmo tempo em que só pode ser pensada no contexto de sua conju ¬

gação com a liberdade. Uma só há com a outra. Ainda que a liberdade


tenha sido mascarada, tornada parcial - a chamada liberdade indivi¬
dual, de negócio a igualdade, no entanto, só existe caso seja plena.
Por isso, só há igualdade superando-se o capitalismo. •

Não só a partir de um ângulo formal, mas também parcial ¬

mente, a partir do ângulo de seu conte údo, a liberdade se


prestou a ser transformada e definida como liberdade do su
¬

jeito económico individual, ou, pelo menos, pôde ser contida


nestes limites; no entanto, a igualdade e a fraternidade, se n ão
permanecem no âmbito do formal e pretendem receber um
conteúdo, ou bem são socialistas ou nada são em absoluto. 147

O mesmo vínculo de reciprocidade com os outros lemas aponta


Bloch no que tange à fraternidade. Esta se dirige à paz, e a paz só logra
ser obtida por meio da superação da exploração de classes. O sentido
da fraternidade é um afeto profundo que diferencia um mero abraço
de feras do abraço humano. Esta fraternidade constru ída dos oprimi ¬
dos é uma ação libertadora e igualitária, que lembra a frase revolucio¬
n ária, tida por Bloch como um cristianismo verdadeiramente prático:
“ guerra aos palácios, paz aos casebres” /* Assim, em busca da paz, a
fraternidade é a concretização da liberdade e da igualdade.

147 Ibid. , p. 187.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

Bloch aponta ao fato de que os lemas tricolores são, de in ício, lemas


burgueses, feitos, portanto, para a parcialidade, para o seu nao-cumpri-
mento. Kp entanto, geram excedentes utópicos extraordinários. Por isso
devem ser apropriados como herança para a luta socialista, tendo em
'

vista a limitação e o caráter contido e parcial da utopia burguesa.


Liberdade, igualdade, fraternidade, a intentada ortopedia do
andar ereto, do orgulho viril, da dignidade humana, apontam
muito mais adiante do horizonte burguês. 148
Tais esperanças que eram tipicamente burguesas apresentaram-
se, ao tempo de Marx, como uma utopia do homem e do cidadão, que
não poderia ser cumprida, pela limitação estrutural da burguesia, mas
que ao mesmo tempo era muito difícil de ser rechaçada. As interpreta¬
ções dos marxistas quanto ao próprio Marx são muito plurais no que
diz respeito à incorporação, pelo pensamento marxiano, da bandeira
dos direitos humanos e da cidadania. Certamente, aponta Bloch, Marx
vislumbra os claros limites das utopias burguesas, porque estas n ão
podem se cumprir pela própria burguesia ou numa sociedade bur ¬

guesa. Isto não quer dizer, no entanto, que n ão haja utopias quanto
aos direitos do homem e do cidadão em Marx:
A partir daqui, Marx faz cair sobre os direitos do homem uma luz
muito mais quente. Com rigor insuperável ele mostrou o seu
conte údo de classe, mas também o seu conteúdo futuro, um
conteúdo que, naquele tempo, não encontrava solo propício.149

- f Tal utopia dos direitos humanos, em Marx, é a libertação da ex ¬

ploração da propriedade, expressa por Bloch pelo seguinte trocadi¬


lho: n ão liberdade de propriedade, mas liberdade da propriedade ( nich
Freiheit des Eigentums, sondem vom Eigenturn) , como a dizer que não é

148 Ibid., p. 199.


149 Ibid. , p. 203.
UTOPIA E DIREITO

a liberdade de chancelar a posse de alguns, mas a liberdade de ultra¬


passar os condicionamentos da propriedade. &
Diz entáo Bloch que a utopia jur ídica de Marx carregará, como
parte da luta proletaria, a herança tricolor da dignidade humana.

O DIREITO EM MARX
A posição de Bloch dentro do marxismo jur ídico é surpreenden ¬
te. Bloch empunha a bandeira de um largo projeto de humanismo,
que vê no marxismo a heran ça dos mais profundos sonhos de justiça já
vislumbrados na histó ria. Isto, no entanto, não faz de Bloch um vago
humanista jurídico marxista, do tipo reformista que ainda considere e
dê relevo ao direito e às instituições burguesas.

>Dentro do entendimento dos marxistas quanto ao direito, ao


menos duas grandes vertentes, historicamente, mostraram-se n ítidas:
aquela que considera o direito um instrumento a princípio neutro,
necessário também à sociedade socialista e forma responsável pela trans¬
formação do capitalismo, e outra, mais radical, que considera o direito
estruturalmente vinculado ao capitalismo, devendo sucumbir junto
com este quando da transformaçã o socialista. *

A primeira corrente, ainda institucionalista, que dá margem tan ¬

to ao reformismo quanto à social-democracia e até ao Estado stalinista,


planificador e desenvolvimentista, é a corrente majoritá ria da histó ria
do marxismo jur ídico, tendo agrupado em suas correntes aqueles que
apostaram numa transforma ção gradual das condições pol í ticas e eco¬
n ómicas, por meio de eleições e reformas parlamentares, por exemplo.
A Escola de Frankfurt e os juristas oficiais soviéticos, tirante as opiniões
opostas sobre o conte údo do direito, estão ambos nesta mesma verten-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

te,de aposta jurídica. 550 A outra vertente, que se poderia argumentar


mais radical, é a que condena de modo virulento o direito, por t ó ma¬
lo o modo de estruturação institucional do próprio capitalismo. Tal
vertente, minoritaria dentro do marxismo, teve como seu principal
expoente Pachukanis, mas justamente ele, o jurista de maior repercus ¬

são dentro do marxismo, cuja Teoria Geral do Direito e Marxismo tai-


vez tenha sido a obra mais original e pr óxima de O Capital que o
pensamento jurídico de esquerda tenha produzido.

É surpreendente à primeira vista que Bloch , o campeão do


humanismo marxista, se inscreva na construção de uma ontologia ju¬
r ídica da utopia que , em linhas gerais, compartilhará da mesma visão
do direito de Pachukanis. Tal surpresa, no entanto, é aparente, na
medida em que Bloch comunga com Pachukanis o que passa desper ¬

cebido à primeira vista neste, que é o caráter utó pico da sociedade sem
Estado e sem direito e, portanto, sem dominação institucional. O pro ¬

jeto de utopia jurídica de Bloch, assim, se confirma radical e pleno e,


nesta plenitude, revela-se similar ao mais radical projeto de entendi¬
mento do direito dentro do marxismo.

N ão pode surpreender que nesse “ diálogo” desempenhe um


papel essencial a figura de Pachukanis, pois ao fim e ao cabo
este foi o autor da obra ( Teoria Geral do Direito e Marxismo) da
qual se levanta toda a investigação marxista sobre o Estado no
sentido mais próprio do termo. Também o próprio caráter da
obra de Pachukanis, abertamente libert á rio e utó pico, facili¬
tava-lhe que fosse utilizado em certa medida como “ guia” , ainda

1 50 De outro modo, Luk á cs situa-se de maneira crítica - qui çá , neste ponto, contraditória - no painel
das duas vertentes marxistas acerca do direito e da pol ítica estatal : "N ão h á, portanto, justificativa
plaus ível para que Luk ács, tendo definido como 'temporal' o Direito, afirme a ' universalidade' da
pol ítica nos termos em que o fez . [...] Conceber a pol ítica como pr ática ideol ógica universal e
n ã o enquanto dimensã o alienada da exist ê ncia humana - e o sil êncio acerca do Estado na
-
reprodução social parecem indicar á reas em que a tragédia soviética se fez mais diretamente
presente nas investiga ções ontol ógicas de Lukács". LESSA, Sérgio. "Luk ács: Direito e Pol ítica". In
Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo, Boitempo, 2002, pp. 120 e 121 .
UTOPIA E DIREITO

que os problemas que postulava sejam muito similares aos


que se decorrem da investigação de Bloch.151
No Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch inicia seu capítu¬
lo de análise do direito a partir de Marx compartilhando com Pachukanis
a den úncia ao caráter de classe do direito: além de relembrar ironica¬
mente um velho ditado de que juristas são iguais a maus cristãos, apon ¬
ta, nas pegadas da leitura do primeiro livro do Capital, a indissol úvel
ligação entre a forma económica e a forma jurídica.
Marx, e mais ainda Engels, apontam a atividade coisificada
{ verdinglichende ) dos juristas de profissão, a relativa indepen ¬
dência que adquire a esfera jurídica, especialmente nos Estados
que experimentaram a recepção do direito romano. No aparato
calculador do Estado moderno, o direito não só tem que ex¬
pressar o interesse da classe dominante, e sim tem que expressá-
lo em um sistema todo conexo e não-contraditório possível.152
Tal ligação entre direito e capital leva Bloch a anunciar que, com
o fim da propriedade privada, a jurisprud ê ncia perderá sua fun ção,
perecendo também: Isto porque Bloch denuncia o direito, com gran ¬
de força imagética , como sendo um “ museu das antiguidades jurídi ¬

cas” . No entanto, Bloch traça uma distinção entre, de um lado, o di ¬


reito e, de outro, os seus princípios, pelo que denomina a estes de
“ museu bem distinto dos postulados jurídicos” . Nesta distin ção entre
direito e postulados reside a dialética das heran ças aproveitáveis e n ão-
aproveitáveis da histó ria jurídica para a utopia socialista. '
Por postulados aproveitáveis, Bloch apontará o conte údo, que es¬
tava presente no direito natural burgu ês, da utopia da dignidade hu¬
mana, do andar ereto. Dirá Bloch que pertence ao marxismo a luta

151 . .
SERRA, Francisco. Historia, política y derecho em Ernst Bloch. Madrid , Trotta, 1998, p 219
152 BLOCH, Naturrecht und menschliche Wiirde, op. cit ., p. 209.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

pelos direitos do homem, entendidos não a partir da metafísica que


lhe deu formação, e sim por meio da luta pela dignidade humana.
Pelo contrário, a burguesia, que encampa o discurso dos direitos hu¬
manos, é que está estruturalmente vinculada à sua negação.

Este desmonte das instituições jur ídicas e o acolhimento dos pos¬


tulados jur ídicos não quer dizer que se adota, pela parte de Bloch,
uma teoria jusnaturalista tradicional . De forma adversa, o sentido da
herança dos postulados jur ídicos é o da dignidade, afastando, portan ¬

to, outros princí pios jurídicos que, durante a história, com este con ¬

trastaram e, mais que isso, procedendo a um método de reflexão sobre


o direito natural que n ão é jusnaturalista, vale dizer, não é idealista,
metafísico ou burguês, e sim marxista.

^ Nigual
ão é sustentável que o homem seja, por nascimento , livre e
. N ão há direitos inatos, e sim que todos são adquiridos
ou t êm todavia que ser adquiridos em luta. O passo erguido
aponta apenas para algo que tem que ser adquirido; também a
avestruz caminha erguidamente para colocar, enfim , a cabeça
no buraco. N ão é sustentável, desde logo, que a propriedade
esteja entre os direitos inalienáveis.153
^
O direito natural de Bloch toma a inspiração utópica que se de¬
correu na histó ria da luta pela dignidade humana, mas rejeita vee¬
mentemente o seu conte údo capitalista - a defesa da propriedade
privada como se fosse “ natural” ao homem - e rejeita o mé todo
jusnaturalista. Apoiado em algumas distinções teó ricas,154 Bloch en ¬
xerga conceitos gnoseológicos e ontológicos que fundamentam o di¬
reito natural e se separa de todos estes.
O direito natural se legitima, tomado pelo prisma do conheci¬
mento de seus princípios, por meio ou de um conhecimento reputado

153 Ibid., p. 215.


1 54 Ibid., pp. 220 e seg.
Oram * DUETO

Ü pn» «WL de uma razão umversalmente constru ída ou da revelação.


^ l» nejeita estas três metodologias. Pelo prisma da ontologia, haveria
i

á veisões. A primeira delas é a de que o direito natural é o


Mgs punir
rifccmi cscávd , em face das instabilidades do direito criado. A segunda
«Se que o direito natural remonta a um estado de natureza, real ou
fictirio» de origem. A terceira se apresenta como o direito da natureza
«EOBtia: o dos homens ou o de Deus (a natureza como legisladora). A
tjaam nata de uma lei que se encontra válida na pró pria natureza (a
natureza como legislada) . A quinta versão trata de um direito natural
que, não sendo de origem natural nem se voltando a ela, no entanto se
inspira nela como um modelo objetivo e busca refleti-lo. Numa sexta
wssão, a natureza se apresentaria apenas como o adequado, como uma
meta de mensuração que é humana, sem ser dedutível e metaf ísica, e
Sam baseada na eqiiidade. Bloch aproxima desta última versão o mo ¬
delo jusnaturalista estóicoj

Demonstrando algum apreço apenas por este último modelo,


- Bloch rechaçar á o m é todo jusnaturalista justamente porque, ao de¬
monstrar a sua pluralidade de origens e implicações, quase sempre
presumidas eternas e metafísicas, resta claro o desacordo em torno do
conceito de “ natureza” . Bloch foge de tais discordâncias, e lança mão
do m é todo marxista , que, baseando-se na hist ó ria e na pr á xis,
considerar á o direito natural uma construção social. *
Assim sendo, a grande discordâ ncia do marxismo para com o
jusnaturalismo - com a qual Bloch comunga, levando-a adiante -,
dever-se-á ao car áter n ão-histórico das correntes do direito natural.
Trata-se, em Bloch, de historicizar o jusnaturalismo , porque o marxis ¬

mo insiste que até mesmo os ideais utó picos são expressões de classe,
das condições histó ricas e econ ó micas, não devendo ser tomados como
utopia abstrata, revelada, apriorística ou metafísica*
ALYSSON LEANDRO MASCARO

O que resta, assim , ao marxismo , da doutrina do direito natural,


é justamente aquilo a que os jusnaturalistas pouco se aferram nas suas
lutas por metafísicas e absolutos: a inspiração pela dignidade humana
e o andar ereto. Na â nsia pela
defesa
da propriedade privada, inscre¬
veram -ma num rol fundamental . Este rol fundamental, no entanto, h á
de ser aproveitado para a dignidade, e sua marca maior é ser uma
justiça a partir de baixo, n ão patriarcal nem metafísica. Constrói-se
na hist ó ria, por meio dos explorados.
É assim que a heran ça pró pria do direito natural, um dia re- \
volucion á rio, se expresse de tal forma: elimina ção de todas as
relações nas quais o homem seja alienado com as coisas em
mercadorias, e n ã o só em mercadoria, senão na nulidade de
seu próprio valor. Nenhuma democracia sem socialismo , ne¬
nhum socialismo sem democracia, esta é a fó rmula de uma
influência recíproca que decide sobre o futuro . 155
Com tais frases, o ideal blochiano do marxismo jur ídico carrega
consigo explicitamente, pois, o sonho de Rosa Luxemburgo de socia ¬
lismo com democracia, ao mesmo tempo que absorve, de Marx e
Pachukanis, a certeza crí tica estrutural de que o direito se equivale à
forma mercantil, sendo que a utopia é a transformação do capitalismo
e da dominação institucional e, tal qual Lukács, sabendo que é preciso
romper com a reificação. ¿

CRíTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO SUBJETIVO E


OBJETIVO
Bloch persevera, na sua obra jusfilosófica, na construção de uma
ontologia jur ídica da utopia e, para isso, faz um inventá rio dos concei-

155 Ibid. , p. 232.


UTOPIA E DIREITO

tos tradicionais da teoria geral do direito em busca da clarificação de


seus termos e de seus rompimenros e apontamentos utó picos.

A primeira categoria, central na teoria geral do direito , a que se


dedica Bloch, é a dicotomia entre direito objetivo e direito subjetivo.
Para esta análise, Bloch aponta a insufici ência do pensamento jur ídico
tradicional, que enxerga o direito como reflexo do dever e vice-versa.
A identificaçã o do direito subjetivo, dir á Bloch, est á imbricada com a
pró pria mecâ nica da economia capitalista, do indivíduo burguês. J á o
direito objetivo , por sua vez , respalda-se no pró prio domí nio
institucional do Estado, e tanto é tal a origem dos institutos que o
civilista tem dificuldade com o campo dos direitos subjetivos p úblicos
e o publicista com os direitos humanos.

Bloch não trabalha com ambos os conceitos igualando-os. Apon ¬


ta o fato de que o direito subjetivo revela-se, logo de início, como
institucionaliza ção da burguesia e que o Estado totalit á rio, o pleno
dom ínio do direito objetivo, é també m o ocultamento do sujeito de
direito. Assim sendo, a evolução do direito capitalista, até chegar à sua
fase de monopó lios e grandes dom í nios econ ó micos, é també m a
banalização do sujeito de direito.156
A diferença utó pica existente entre o direito subjetivo e o objeti ¬
vo, segundo Bloch, reside no fato de que o primeiro, sendo a expres ¬

são do direito de propriedade privada, não exclui seu aproveitamento


como direito da dignidade humana ( os direitos humanos, por exem ¬
plo). J á o direito objetivo revela-se o direito do dom ínio, cuja face se

1 56 "Os direitos humanos constituem, assim , um prius , em referê ncia a qualquer deriva çã o normativa
( Bloch ) na medida em que estabelecem os marcos do processo de liberta ção. Entretanto o
,
positivismo acaba por desvirtu á- los, vendo o direito subjetivo como faculdade atribu ída pela
norma a um sujeito por ela mesma estabelecido. Esta aberra ção, após reduzir o Direito à
norma (como o biscoito à lata ), reduz o Direito Subjetivo e o Sujeito de Direito à mesma
norma ( de tal sorte que, n ã o só confunde a lata e o biscoito, mas ainda atribui à lata o poder
de criar a boca e o apetite de quem possa com ê- lo)". LYRA FILHO, Roberto. Desordem e
Processo. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1986, p. 309.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

apresenta no direito penal, por exemplo, mas este pode minimamente


restar sendo o direito do interesse pú blico e social. No final das contas,
a evolução teórica dos conceitos jurídicos revela a pr ópria evolução da
propriedade privada e, por isso, numa sociedade que se liberte da do ¬

minação do capital, direito e dever se transformam radicalmente.


Em uma sociedade sem classes, sem circulação mercantil, n ão
há nenhum proprietário de mercadorias, ainda que o produ ¬
tor de bens seja sujeito jur ídico (personalidade jur ídica), e
seu direito consiste em não estar nem sequer forçado à produ ¬
ção de bens. O último direito subjetivo seria, assim, a faculdade
de produzir segundo suas capacidades e consumir segundo suas
necessidades, uma faculdade garantida pela última norma do
direito objetivo-, a solidariedade.157
Assim, Bloch revela o fundamento utópico de sua estrutura jurí¬
dica socialista para direitos e deveres. Resgatando o espírito da frase de
Marx na Crítica do Programa de Gotha, trata-se de estar obrigado à
capacidade e de ter direitos à necessidade. O vínculo jur ídico objetivo
de tal apontamento utópico, dirá Bloch, é a solidariedade. Assim o é
porque Bloch rejeita a revolução por cima, estatal e dominadora, e
insiste em dizer que a utopia jurídica e feita por baixo . Daí o gosto
pela coordenação e n ão pela subordinação.
Por tal razão Bloch se volta ao problema jurídico da União Sovié ¬

tica e da Revolução Russa para lá analisar as utopias jurídicas e as aber¬


rações da dominação stalinista.^Apontando para o cará ter de liberta ¬

ção da utopia jurídica, feita pelos dominados, pelos trabalhadores e


pelos explorados, Bloch rejeita o domínio estatal e institucional do
stalinismo e, juntando-se a Pachukanis, denuncia, por sua vez, os juris¬
tas oficiais soviéticos, como Wyschinskij.158

157 BLOCH, Naturrecht und menschliche Würde, op. cit ., p. 252.


158 "Todo o esforço de critica de Vychinski se encaminha, então, no sentido de negar as teses
UTOPIA E DIREITO

*. O eixo da argumentação de Bloch é afirmar que a utopia jurídica


aponta para a extinção do Estado e do direito, tal qual o previra Pachukanis,
e que toda tentativa de manutenção do dominio estatal, ainda que em
nome da classe trabalhadora, é injustificada e não se referenda em nenhu¬
ma perspectiva humanista. Não é possível, pela caminhada da libertação e
da emancipação, aceitar que o modelo de Wyschinskij possa se comparar
àquilo que Engels e Lênin apontavam como perecimento do Estado. Estes
diziam tratar-se não da eliminação do Estado, e sim de seu processo de
tornar-se supérfluo. “A formulação de Wyschinskij não se encontra, desde
logo, nesta linha, pois que mais se aproxima, novamente, a uma espécie de
Estado fetichizado e só muito a contrapelo suavizado” .15'’ <v

^ Postulando, para o campo do direito, o “ reino da liberdade” , Bloch


insiste que a ênfase deve ser acentuada na liberdade, e n ão no reino ,
como ocorreu com o stalinismo e como ocorre com todas as formas de
dominação estatal capitalistas.
De acordo com a chocante proposi ção de Lênin de que não há
nenhum Estado livre (porque onde há liberdade não h á Esta ¬

do, e onde h á Estado n ão h á liberdade) , poderia se dizer tam ¬


bé m que um “ Estado verdadeiro” é uma contradictio in adjectivo ,

no sentido axioló gico-entelequial do verdadeiro.150 4

Por isso, dir á Bloch , o reino da liberdade simbolicamente será polis,


mas sem politeia, isto é, sociedade solidária e livre, sem direito e Estado.

sobre a impossibilidade teó rica de se conceber um ‘direito socialista’, sendo esse, mesmo, o
principal defeito da obra 'sacrilega' de Pacbukanis, A teoria geral do direito e o marxismo. Uma
de suas teses, diz Vychinski, é que, alcan çando o direito o seu maior desenvolvimento na
sociedade burguesa, a forma jur ídica começa a desaparecer no socialismo. Ora, diz Vychinski ,
essa an á lise n ã o é correta , pois na fase do Imperialismo a sociedade burguesa tende a
desconsiderar o direito e a violar o princ ípio da sua pró pria legalidade, de tal sorte que 'a
História mostra , ao contr á rio, que é no socialismo que o direito alcan ç a o mais elevado grau
de se desenvolvimento. Somente na sociedade socialista o direito adquire uma base só lida
para o seu desenvolvimento'". NAVES, M á rcio Bilharinho. Marxismo e direito. Um estudo sobre
Pachukanis. S ã o Paulo, Boitempo, 2000, p . 162 ,
159 BLOCH, Naturrecht und menschliche W ürde , op. cit . , p. 259.
160 Ibid ., p. 259 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

CRíTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO E MORAL

O tema da relação entre direito e moral, que é can ó nico para as


reflexões filosóficas dos juristas, por Bloch é enfrentado, logo de iní ¬

cio , como um louvor ao fato de que o mundo burguês tenha fechado


as pontes entre os dois campos. Dirá Bloch que o processo de “ divisão
do trabalho” entre o direito e a moral torna aquele menos patético e
menos risível em face das contradi çõ es e insignificâ ncias das
moralidades. Assim sendo, perseguir a prostituição investido de legiti¬
midade jurídica, e apenas dela, é menos pior do que somar a ela tam ¬

bém um mando sagrado. O domínio burguês, para Bloch, deve ser


tornado explícito, como sendo o interesse de classe; n ão se deve con ¬
fundi-lo com outros preceitos, de legitimação moral, que n ão deixam
claro o ataque aos fundamentos do domí nio capitalista.
Por tal razão, aponta Bloch, todas as investidas que filósofos con ¬
temporâ neos empreenderam, no sentido de estabelecerem pontes en ¬

tre direito e moral, estão fadadas ao fracasso, porque mantêm a estru¬


tura cindida da sociedade de classes e, nela, acrescentam as apar ê ncias
da moralidade como se fosse um dado essencial. Hermann Cohen e
Max Scheler, empreendendo construções de tal tipo, não dão conta
de denunciar, na realidade jurídica e social, a indignidade humana,
na medida em que estabelecem fundamentos fenomenológicos ou
apriorísticos que acabam por identificar o poder e o domínio jurídico
à ética, perdendo, assim, o potencial de crí tica que a ética poderia
representar em face do pró prio direito.
E tudo isso é na tentativa de respaldar, de novo, moralmente,
o direito positivo. No entanto, por que haveria tanto interesse
neste laço de uniã o, e justamente com o direito vigente? Tal
laço de união se buscou principalmente a fim de fazer apare¬
cer como completamente ordenado o direito vigente por sua
relação com uma moral do dever igualmente vigente e utilizá-
vel. E, desta maneira, para evitar o direito natural crítico, com o
postulado de uma dignidade humana real }6'
O encaminhamento de Bloch para a questão da relação entre
moral e direito é justamente o de apontar o caráter potencialmente
crítico e transformador da moral contra o direito. Tal moral é entendi¬
da por Bloch, na sua interface jurídica, como sendo a pró pria utopia
da dignidade humana. N ã o h á diferen ça , para o pensamento
blochiano, da moralidade plena para o pleno socialismo. Assim sendo,
o que quer que seja tratado por moral, será çempre crídco e transfor¬
mador das rela ções impessoais de dominação capitalistas. V
Só na consecução exitosa de uma sociedade já n ão antagó nica
pode ser real a proposição de que socialismo, e, mais ainda,
comunismo, é o que, durante muito tempo, se buscou em vão
em nome da moral.162 ' u ' &
,
rá up** v i •A *
>

N ão há de se esperar, pois, de Ernst Bloch , que a moral seja toma¬


da num sentido n ão-histó ricof Ela é um produto social, uma bandeira
de luta, e sua concretização só é possível numa sociedade socialista.
Para Bloch, somente numa sociedade sem classes será verdadeiro o
imperativo categó rico kantiano, que, afastado de seu vício de origem
da circulação mercantil, estará aberto à universalidade entre iguais. * .
Assim sendo, não há de se descartar, no processo político de trans¬
formação social, o papel de relevo da moral. Neste tema, Bloch repro ¬

va Pachukanis por n ão ter compreendido a import â ncia da questão


moral para a questão jur ídica. Q apontamento para a utopia jur ídica
será, de fato, a extinção do direito positivo, do Estado, da dominação
de classe, e, no que versa a tal respeito, “ a moral autê ntica diz a isso sim
e chancela seu Amém” . 163

161 Ibid , p. 268.


162 Ibid. , p. 269.
1 63 Ibid., p. 276.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

CRíTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO PENAL


Um dos pontos cruciais da den úncia de Bioch do caráter de do¬
minação do direito se refere ao direito penal. Neste, Bloch enxerga a
nítida evolução social do capitalismo, o reflexo de suas imperiosidades,
estabelecendo um nexo claro entre o mercado de trabalho e a execu¬
ção da pena, de tal sorte que o capitalismo, com mais ganhos para a
exploração do trabalho, lidera um processo histórico de substituição
da forca pela penitenciária.

A ferida do problema ut ópico do direito penal reside, segundo


Bloch, na fascinação do superego pela culpa e pela condenação. Reto¬
mando Freud, Bloch aponta para um superego em forma de Estado,
encarnado na figura do juiz, instrumentado pela pena. Dá-se uma
dicotomia entre os impulsos de prazer, de satisfação e de utopia, de
um lado, e a heran ça da culpa, que remonta, por sua vez, ao tabu da
culpa originária. Lucifer dá a imagem desta condenação.
Bloch não enxerga no crime uma nobreza que se contraponha à
vilania capitalista. Insiste em apontar no crime fundamentalmente o
fracasso do capitalismo, e, por isso, há de considerar que o problema
penal é, ainda, um problema económico-social, mais que propriamente
jurídico. Em torno da questão penal forma-se um círculo vicioso que,
ao ser tratado apenas pela sua esfera jurídica, n ão deixa chegar às cau ¬

sas nem à plena solução. A revolução, para Bloch o único instrumento


concreto desta resolução do problema penal, é virulentamente ataca ¬

da pelo capitalismo. O dom ínio de classe dos meios de produção im¬


pede a revolução e a criminaliza.
K Assim , a ú nica teoria penal radical, que combate o delito, n ão
só de modo consciente, mas, sobretudo, em suas causas, o
socialismo real sem o monopólio de uma casta, é declarada ela
mesma uni delito pelo fascismo. [...] Em sua teoria retributiva
UTOPIA E DIREITO

reacion á ria , Hegel via a justificação da pena de modo que só


por ela, a negação da negação, se eliminava a exist ê ncia do
delito. De nenhum modo, no entanto, d á-se mais concreta ¬
mente a eliminação da existê ncia do delito que pela elimina ¬
ção das condi ções que o fazem nascer e que o farão sempre
nascer. Um marxismo em sentido pró prio seria, por isso , tan ¬
to uma teoria penal radical, que, mais ainda, a mais radical, e,
por sua vez, a mais cordial: porque o marxismo mata a matriz
social da injustiça. I 64 ú
j

A utopia jurídica penal blochiana, assim, n ão é a de promover uma


ciência do crime, de teor próximo ao de Lombroso, nem de propor
melhores condições de execução penal nem de propor o aumento do
poder estatal contra o crime: trata-se da definitiva superação do direito
penal, o que só se dará, pois, numa sociedade n ão-cindida, socialista.

CRíTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO E ESTADO


A culmin â ncia da an álise dos institutos tradicionais do direito,
para Bloch, localiza-se na relação entre direito e Estado.
O tipo de argumentação de Bloch em sua reflexão sobre o Estado
em muito beira e antecipa uma espécie de microfísica do poder, que
depois, de outro modo e em outro contexto, seria desenvolvida por
Michel Foucault. Isto porque Bloch insiste no fato de uma existência
concreta do dom í nio do Estado e do poder, que se verifica nos n íveis
mais singelos das relações sociais. Isto, no entanto, sempre levando em
vista a mirada dialética, que situa o movimento da face personalizável
do Estado com sua face polí tico-econ ómica oculta.
As forças visíveis são muito menos temidas que as invisíveis.
Desde que desapareceram os fantasmas, o Estado conta entre

1 64 Ibid., p. 299.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

as últimas. O Estado se nos mostra mais claramente na polí¬


cia, nos cá rceres, nos soldados, mas todas estas coisas não são
o Estado mesmo, apenas meramente o representam. O que
fazem é dar-lhe força; por trás se encontra um comité da clas¬
se dominante que se apresenta, contudo, como representante
da generalidade.165 -
No entanto, a grande referência política de Blocli é Engels. É a
partir do pensamento engelsiano sobre o Estado, notadamente em A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, que Bloch desen¬
volve sua teoria marxista sobre o Estado. Para isso, logo de início, Bloch
desbasta duas possíveis interpretações a respeito da origem do Estado e,
dentre estas, filiar-se-á nitidamente à interpretação de Marx e Engels.
Aponta Bloch para uma divergência entre a concepção da teoria
pura da força e a concepção econ ómica quanto ao surgimento do Es¬
tado. A primeira, esposada, dentre outros, por Kautsky e D ü ring, nega
que o Estado se origine da divisão do trabalho, das relações de classe,
e, portanto, situa seu surgimento em gen é ricas rela ções de força, como,
por exemplo, as agressões externas, o que levaria necessariamente a
um arranjo interno estatal. Esta teoria, diz Bloch , é a que, no final,
afasta o caráter capitalista do Estado, legitimando-o, bem como à de ¬

mocracia burguesa, de tal sorte que seu apontamento utópico seria,


ainda por fim, estatal. Isto quer dizer, sendo o Estado um ente alheio à
luta de classes, persistiria ainda que soçobrassem as classes.
Em ângulo contrá rio, o marxismo denuncia o caráter de classe do
Estado. É a progressiva divisão do trabalho que alça as classes detento¬
ras do poder econó mico à estruturação de um mando político- jurídi¬
co, institucional, que reflete diretamente o domí nio dos meios de pro¬
dução e o controle das classes trabalhadoras.

165 Ibid. , p. 301.


UTOPIA E DIREITO

-
:r A desigualdade da propriedade nos meios de produção, e não ou ¬
tra coisa, leva, por isso, de maneira econ ómico-imanente à
destruição da solidariedade tribal, à constituição de um po¬
der pol ítico de classe. Em sua conseqiiência, o Estado é em
tã o escassa medida um corpo estranho ao capitalismo, que se
pode dizer, inclusive, que culmina nele. E de igual maneira se
cumpre também aqui uma de suas mais importantes funções
ideol ógicas : n ão ser simplesmente instrumento, e sim
mascaramento (“ Verhiillung” ) da dominação classista. O Es¬
tado se nos apresenta como poder geral, situado aparente¬
mente sobre a sociedade e cuidando de seu equil íbrio. 166

Expõe Bloch, assim também, uma perspectiva que é bastante si¬


milar à de Pachukanis, que aponta igualmente para o fato de que o
Estado e o direito, além de sua fun ção estruturante da dominação
econ ó mica , tamb é m se prestam a um papel suplementar de
mascaramento ideológico.

A evolução do pensamento político, na Idade Moderna, vai, se¬


gundo Bloch, no sentido de minorar o caráter utópico, libertário e trans¬
formador que se poderia ha ü rir no direito natural de busca de justiça e
dignidade humana, para, em seu lugar, se prestar a uma legitimação
cada vez maior do poder de classe sob a forma institucional. Neste pro ¬

cesso, Bloch identifica raízes em Bodin e Maquiavel para dizer que sua
expressão maior é o fascismo, culminando, novamente, em Carl Schmitt,
a faceta acabada do domínio estatal sem utopia de dignidade.

Em tal trajetó ria da construção de um modelo jur ídico de afir ¬


mação do poder estatal, Bloch chama atenção para um jurista que, na
entrada do século XVII, expressa com detalhamento a figura jur ídica
do dom ínio estatal . Arnold Clapmar, tido por Bloch como um discí¬
pulo sem grandeza de Maquiavel, é responsável por uma distin ção

1 66 Ibid., p. 304.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

entre “
arcana dominationis , que é a teoria de como há de se tratar o
povo rebelde, e arcana imperii, quer dizer, a doutrina de como, em
tempos normais, se manté m o povo pacífico, protege-se a soberania,
procuram-se alian ças, soldados e dinheiro” .167 Este conhecimento da
dominação se presta a atemorizar o povo, a colocá-lo na submissão.
Contra este saber detalhado das arcanas do poder, Bloch levanta como
horizonte utópico a n ão-dominação.
A divisa dessa utopia não-estatal, Bloch a empresta de Engels,
quando aponta que o governo sobre as pessoas será convertido em
administra çã o das coisas. “ O teor fundamental do direito natural ra ¬

dical contra o Estado é sociedade sem classes, reino da liberdade” .168


Bloch conclui seu excurso sobre a ontologia jurídica da utopia
apontando para uma escatologia das instituições e do justo. Trazendo
à comparação a Igreja e o papel da religião, Bloch conduz sua reflexão
ao futuro da solidariedade socialista. Tal qual no Estado e no direito,
Bloch enxerga um papel transformador a ser realizado na ação religi ¬
osa e moral, responsável por extinguir a Igreja oficial, que está ao lado
do poder, e estabelecer uma ecumene fraterna.
Desde logo é ridiculamente simplista e uma frase de periódi ¬

co designar a Igreja como uma filial de Wallstreet situada em


Roma, mas, sim , houve sempre uma formação de compro ¬

misso, e sua elasticidade tem limites bem definidos frente ao


socialismo. É por isso difícil lançar uma linha separatoria en
¬

tre o cristianismo eclesi ástico e o capitalismo, se bem que o


novo clero n ão é já como o antigo, e se bem que o socialismo
n ão tem já por que falar da religiosidade como lavagem cere¬

bral. [...] A nova ecumene pertence a uma sociedade que já


n ão é essencialmente antagónica, a uma comunidade que pode

167 / bid . , p. 307.


168 Ibid . , p. 310.
UTOPIA E DIREITO

crescer sem travas. [...] No socialismo se encontra o caminho


que conduz a esse objetivo, a heran ça finalmente realizável do
que se perseguia como emancipação interior e paz exterior. A
ft vermelha (“ rote Glaube” ) foi sempre mais que uma questão
particular, foi um direito fundamental à comunidade, ao
humanismo.169
A fé vermelha de Bloch, tal qual a lembran ça que em dado mo¬
mento ele próprio o fez da rosa de Hegel, é o humanismo que se le ¬

vanta estruturalmente da revoluçã o e da liberta çã o da sociedade


cindida. A utopia jur ídica de Bloch se dirige à solidariedade, ao direi ¬

to à comunidade, à dignidade como postulado da ação e da coordena¬


ção social. A ontologia desta utopia jurídica é o próprio fim do direito
e do Estado e, pois, do poder dominador de classe.

169 Ibid ., p. 313.


CAPíTULO 9

ENERG í AS POLíTICAS DA UTOPIA

O ser-ainda-n ão jurídico é o reino da liberdade, da justiça e da


dignidade humana. Bloch insiste em apontar as divisas de urna utopia
jurídica que n ão se conforma, de modo algum, nos limites do Estado
de direito e da cidadania já dados, de tal sorte que o positivismo, as
variações de seu conteúdo e o institucionalismo não darão conta de
revelar o âmago ontológico de seu projeto utópico para o direito.
No entanto, a cr ítica apressada a Bloch denunciaría o caráter
fantasioso ou desprovido de concretude prática de seus sonhos jurídi ¬

cos. Mas o pensamento de Bloch, desde o início, aponta para reflexões


políticas que constituem o cerne de seu empreendimento de ação re ¬

volucion ária. Pode-se dizer, folgadamente, que Bloch é um dos inte¬


lectuais alemães que mais cedo, e com maior acuidade de visão políti ¬

ca, empreendeu uma crítica e uma batalha intelectual profunda em


relação aos pressupostos filosóficos e ideológicos do nazismo. Seu juve¬
nil brilhantismo de an álise política é responsável por ter seu pensa ¬

mento sido resgatado, várias décadas depois de seu embate com a as¬
censão do nazismo, pelos estudantes europeus e de todo o mundo nas
revoltas do final da década de 1960 e da década de 1970.
De suas reflexões políticas, mais se destaca em Bloch o conceito
de n ão-contemporaneidade, que é central para entender o surgimento
do nazismo na Alemanha e o fracasso da luta socialista. Ao lado disso ,
Bloch é o pioneiro, sem que ele próprio tenha dado dimensão à ampli ¬

tude posterior de sua abertura temática, à união de moral, religião,


ética e marxismo. A n ão-contemporaneidade, que se expressa nas pe-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

quenas coisas da vida cotidiana, na cultura popular, na arte, na ideolo ¬

gia e nas vontades represadas, e o impulso moral, que está difuso na


religião e no humanismo, sao duas das energias mais extraordin á rias
apontadas teoricamente e liberadas politicamente por Bloch a benefi ¬

cio da constru ção de urna utopia do justo .


Na utopia concreta marxista, a energia utó pica exerce uma
função crítica. A determina çã o de objetivos ideais (e necessari¬
amente abstratos) para o impulso se conjuga com o conheci ¬
mento das tend ê ncias objetivas; sem utopia, o marxismo per ¬
deria ele mesmo sua aten ção às tendências. A função da uto ¬

pia vai mesmo mais longe: a conjun ção do que há de “ futuro


no passado” com o conhecimento do presente transfigura e
ultrapassa dialeticamente às próprias tend ências . A utopia
concreta , o marxismo, se define por três momentos: análise,
cr ítica , projeto.170

As energias utó picas do pensamento blochiano revelar-se-ão, nas


palavras de Gerard Raulet, como função cr ítica capaz de haurir do
concreto da domina çã o presente o projeto futuro . A n ã o -
contemporaneidade, como histó ria aberta e sobreposta, e o impulso
moral crítico, como desejo humanista, serão para Bloch alguns dos
meios de liberação de tais energias que apontam ao utó pico e ao justo.

A NÂO-CONTEMPORANEIDADE

O conceito de não-contemporaneidade, assincronia ou não-si¬


multaneidade (“ Ungleichzeitigkeiten” ) pode ser encontrado de modo
esparso e não sistematizado dentro da tradição anterior do marxismo ,
mas é Bloch quem lhe dará tratamento e ser á seu principal art ífice

1 70 -
RAULET, Gerard. "Encerclement technocratique et d é passement pratique L'utopie concréte
comme th éorie critique". In Utopie Marxisme selon Ernst Bloch . Payot, Paris, 1976, p. 302.
-
UTOPIA E DIREITO
L Í
ill
teórico-filosófico.O conceito é apresentado muito cedo em seu pen¬
samento. Em Thomas Münzer já está explícito, bem como no Espírito
da Utopia. No entanto, na segunda parte de uma obra de coletânea
escrita à época do in ício da ascensão de Hitler, Herança desse tempo,171
do in í cio da d é cada de 1930 , é que o conceito de n ã o -
f? contemporaneidade ganha relevo e importância prática para a ação
política do marxismo.
Bloch constrói tal an álise política constatando o espanto que em
muitos ocorreu em relação à capacidade nazista de domínio e controle
das massas trabalhadoras. Ao contrário dos que n ão enxergaram, de
início, o potencial maléfico do nazismo, Bloch se lan ça politicamente à
den ú ncia filosófica de suas implicações, porque estas prosperariam. E,
mais ainda, aponta que o nazismo ganhava, do marxismo, o coração
da classe explorada.
Desvencilhado de uma confiança cega na inexorabilidade da re ¬

volução proletária - desmentindo, assim, com um exemplo concreto,


um possível otimismo idealista que poderia ser imputado pejorativa ¬

mente à sua visão filosófica - Bloch passa a perceber que o proletaria¬


do e as classes exploradas alemãs n ão se identificavam com o discurso
marxista revolucioná rio, e, muito pelo contrário, se empolgavam com
os sonhos apresentados pelo nazismo e pelo reacionarismo. Isto, para
Bloch, não se devia apenas a um problema de falta de meios de propa ¬

ganda por parte dos revolucion á rios: o marxismo n ão falava à alma


trabalhadora, cujas expectativas haviam sido detectadas peculiarmen¬
te pelo nazismo.

Tratava-se, segundo Bloch, de sonhos do povo que n ão se expri ¬

miam, necessariamente, na forma de uma compreensão exata e cientí ¬

fica dos problemas do hoje. Eram problemas de ontem trazidos para

171 BLOCH, trbschaft dieser Zeit , op. cit ., pp. 45 a 204.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

hoje, na expectativa de sua reden ção amanhã. Aí reside o tema da


n ão-contemporaneidade: o tempo da histó ria é não-linear. H á muitas
demandas-diversas, de tempos históricos distintos, que se cruzam numa
mesma é poca, e saber desbastá-los e trabalhá-los a benefício da trans¬
formação socialista deveria ser a ação do marxismo.
Assim sendo, o tema da totalidade - caro ao hegelianismo marxis¬

ta e, em especial, a Lukács volta a ser superado em Bloch por um
refinamento da histó ria, que é pluritemporal. Muitas demandas, ca¬
r ências e desejos de épocas e circunstâncias distintas se sobrepõem
no mesmo tempo histórico. Assim sendo, não basta apontar a falsa
consciência do capitalismo, que não logra chegar à totalidade, porque
até mesmo a totalidade, se n ão for tomada de modo crítico, pode pas¬
sar a ser uma miragem idealista invertida:
A totalidade deve ser então critica, a fim de não se converter,

tendo em vista a sua justificada oposição ao capitalismo que
dilacera todos os vínculos vitais (“ Lebenszusammenhã nge” ) -
em uma falsa semelhança com a “ totalidade” idealista, que é
tã o somente uma totalidade sistem ática.172

O refinamento da compreensão da totalidade, assim, abrirá mar ¬

gem à n ão-contemporaneidade. Esta é a expressão de uma disfun ção


temporal entre as expectativas utó picas e as realidades histó rico-soci ¬

ais. Mas n ão é só uma disfunção ideológica, é também estrutural. As¬


sim sendo, somam-se etapas de produção económica distintas, evolu¬
ções políticas variadas, consolidações institucionais diversas, domina¬
ções de muitos tipos, e tudo isso resulta num cruzamento, ao mesmo
tempo , de expectativas divergentes. O caso emblemático, para Bloch,
era a Alemanha de seu tempo, ela um dos exemplos melhor acabados
da n ão-contemporaneidade do capitalismo.

172 .
BLOCH, Erbschaft dieser Zeit , op cit ., p. 125.
UTOPIA E DIREITO

Ao tempo da República de Weimar, a Alemanha carregava consi ¬

go o atraso de um capitalismo periférico e tardio.173 Ao contr ário da


fkmça e da Inglaterra, a Alemanha encarava urna rápida transforma-
1 çãkTBurguesa que, no entanto, alijava grande parte da popula ção tradi-
dooal de sua vida cotidiana e de seu ambiente de aleros, sonhos e espe¬
ranças pré-capitalistas. De imediato, o camponês tornava-se proletá rio
das fabricas, dos serviços, ou então estava no desemprego ou nos serviços
vis, quinao lhe correspondiam à mínima plenitude existencial.
Neste ambiente, dirá Bloch, o dinheiro se torna o denominador
comum da explora ção. A falta dele é responsável pelo aniquilamento
das personalidades. O mundo capitalista procede a uma reificação com ¬

pleta das massas, e, nesse quadro, a cultura tradicional, seu encantamen-


_
ro e seu tempo de vida se esvaem . O que surge em seu lugar é pior.
A “ n ão-contemporaneidade” [...] alcança pari passu uma ca¬
racterização-constru ção mais precisa (sistemática) : “ A n ão -
contemporaneidade e o dever de torn á-la dial ética” . Na situa¬
çã o inicial, Bloch toma ¡mediatamente o fato de que os indi ¬
víduos est ã o no mesmo presente na sua aparência exterior.
Qualquer indivíduo mal formado, aqu ém das exigê ncias de
seu posto, no caso de um empregado , fica a “ reboque” , deslo¬
cado de seu tempo, sobretudo se este é o de um presente
intoler ável, de crise e transiçã o, isto é, justamente quando es¬
tes cursos temporais mostram a sua for ça.174

173 "A experi ê ncia histó rica da Repú blica de Weimar ( 1918-1933) é marcada por um sistema
pol ítico que perde sua legitimidade e capacidade de funcionamento à medida em que é
confrontado com crises profundas no tocante à moderniza çã o econ ó mica, social e cultural.
A situaçã o sócio-econ ó mica de estagna çã o do per íodo de Weimar, marcada por estas in ú me¬
ras crises, impossibilitou a exist ê ncia de uma conjuntura que permitisse a realiza ção dos
compromissos constitucionais sociais com crescimento econ ó mico. O quest íonamento da
legitimidade pol ítica da Constitui ção foi agravado, portanto, com a crise econ ómica". BERCOVICI,
Gilberto. Constituição e Estado c/e Exceção Permanente. Atualidade de Weimar . Rio de Janeiro,
Azougue, 2004, p. 21 .
174 MACHADO, Um capítulo da história da modernidade estética : debate sobre o expressionismo, op.
Cit., p. 57.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

J Bloch aponta a falência da pol ítica marxista justamente na falta


de compreensão desta n ão-contemporaneidade dos explorados ale¬
mães. Eles eram explorados pelos argumentos do dinheiro, e o marxis¬
mo lhes apresentava, nos comícios, explicações econ ómicas a respeito
do capital! O nazismo, em seus com ícios, falava dos sonhos de uma
vida comunitá ria - nacional - liberta dos judeus mercen á rios, dos
marxistas contabilistas, dos avarentos burgueses. O nazismo falsifica¬
va, mas ganhava corações. O marxismo apostava na ci ência e no escla¬
recimento, mas n ão falava às almas dos proletários ,

Isto porque, embora a grande dialética dos tempos de Weimar


fosse a contradição capital versus trabalho - e nisto o marxismo era
verdadeiro e plenamente racional em sua análise -, a grande contradi¬
ção utópica e ideológica era entre a dignidade de uma vida que em
algum momento poderia ter sido camponesa , comunitá ria e igualitá ¬

ria , e a indignidade da transformação desse momento on í rico em uma


sociedade de expressão contá bil, técnica, reificada. Os sonhos não es¬
tavam dirigidos para uma racionalização econó mica que se levantasse
contra outra do mesmo estilo; estavam na emoção româ ntica que bus¬
cava reagir contra o mundo desencantado.

Tal n ão-contemporaneidade foi percebida pelo nazismo, que dela


se aproveirau para construir um discurso artificial de uma comunida ¬
de genética , da raça ariana, e dos vínculos familiares nacionais, opon
¬

do a figura do judeu contra tal utopia de prazer. Tratava-se de uma


utopia pelo passado, que gostaria de superar o hoje para voltar a uma
pureza (que nunca havia existido) do ontem: “ Hitler delineia para
cada um boas coisas velhas” .175
O marxismo, exprimia Bloch, era a ú nica solução que não falseava
as contradições do seu tempo, porque percebia o fato de que a dialética

1 75 BLOCH, Erhschaft dieser Zeit, op. dl , p. 104 .


UTOPIA E DIREITO

não era entre exterior e interior, entre outros povos e os alemães, mas
era, sim, na maior parte, intr ínseca ao próprio povo alemão, pois se tra¬
tava de uma luta de classes que desmobilizava o seu conflito pela retórica
da salvação nacional. O marxismo sim, ao contrá rio do nazismo, aponta¬
va para uma concreta utopia, porque sabia que os problemas do ontem
e do hoje só se resolveriam com um novo amanhã, e não com a volta a
um ontem falsificado. No entanto, o marxismo fracassava ao apostar no
sujeito revolucionário da vanguarda de seu tempo, sendo que a grande
massa dos oprimidos não se encontrava no tempo revolucionário de van¬
guarda. O povo ainda relutava pelo misticismo da plenitude do espírito
que se transformara em miséria do ter e consumir.
Havia por isso, segundo Bloch, uma herança pequeno- burguesa,
camponesa, que não era necessariamente apenas aquela dos trabalha¬
dores das fá bricas e que poderia, e deveria, ser herdada para a revolu¬
ção. Não saber aproveitá-la foi o pecado marxista, e o nazismo, que na

prática era a exponenciação da sociedade tecnificada porque é a
plenitude do capitalismo monopolista -, conseguia mascarar-se e até
mesmo travestir-se com algum humanismo que não tinha.
No caso da nao-contemporaneidade, encontram-se n ítidos os ecos
dos debates sobre o expressionismo, que opuseram Bloch e Lukács.
Lukács acusava o expressionismo de decadentismo pequeno-burguês.
Bloch rechaçava a estreiteza do pensamento lukacsiano, insistindo no
fato de que a cr ítica virulenta do expressionismo auxiliava a desmontar
as estruturas da dominação capitalista de seu tempo. Não por um aca ¬

so, o nazismo era contra o expressionismo.

Á posição de Bloch sobre a herança e o aproveitamento das expec ¬

tativas da pequena burguesia é mais generosa e mais há bil politicamente


que a pureza do pensamento de Lukács. Por conta disso sua posição
política foi tomada com desconfian ça no seio do stalinismo, em razão de
sua insistência numa visão pluralista dos tempos histó ricos.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Tal postura de Bloch é fundamental para dar conta, filosoficamen-


te, do ser-ainda-não em suas m ú ltiplas manifestações, que somaram, à
miséria capitalista, as misérias anteriores ainda não resolvidas. Nos casos
dos países do capitalismo periférico - e Bloch tomava, ao tempo, a Ale ¬

manha nessa categoria -, a miséria se exprimia na economia marginal,


do campo, da pequena cidade, do pequeno comerciante que pouco
vendia, da demora da informação, da vida modorrenta, da falta da pu¬
jança e do desenvolvimento econ ómico. Não dar conta de todas essas
falhas estruturais é não conhecer a realidade da dominação.
Por isso , Bioch não considera o processo revolucionário um me¬
canismo de vanguarda restrito e apenas vinculado fundamentalmente
aos trabalhadores da ind ústria. Para o proveito revolucionário, é pre ¬

ciso agrupar, nos setores explorados e alijados do capital, uma gama


variada de agentes políticos. - -*• . Aí JV -S , • • •

É a “ dialética pluridimensional e pluriespacial” . Capaz de dar


uma outra função aos elementos da contradição não-contem-
porânea e que, em contrapartida, se apropria dos elementos
utó picos e subversivos da “ matéria desprezada” . O proletaria ¬

do, para Bloch , pode ser a força hegemó nica na “ tríplice alian ¬

ça” entre o campesinato e a pequena burguesia, se for capaz de


dominar o material da n ão-contemporaneidade “ autêntica” e
suas contradições heterogéneas. Mas, naquele momento, quem
fazia uso dessas contradições era o movimento hitleriano.176
A radiografia do pensamento, das ideologias, da cultura e das
utopias dos explorados, em Bloch, é muito similar à constatação clássi ¬

ca de Luk ács em História e Consciência de Classe. Ao tratar da consci¬


ência de classe do proletário, Lukács também percebe o descompasso
de uma falsa consciência que n ão logra empreender a percepção exata

176 MACHADO, Um capitulo da história da modernidade estética : debate sobre o expressionismo, op.
cit., p. 62.
UTOPIA E DIREITO

do fenômeno de dominação. Essa leitura, por sua vez, remonta a Marx,


uma vez que é possível uma leitura da dialética entre infra-estrutura e
superestrutura que não as enxergue como peças automaticamente
conexas, e sim como esferas da praxis e da vida social que se inter-
relacionam , com diferenças de etapas.
O debate sobre a não-contemporaneidade já havia sido esboçado
décadas antes, com Lê nin, a respeito da Revolução Russa. As tarefas
de revolu ção socialista numa sociedade que ainda era mantida no
czarismo, no jugo campesino, em relações que se abeiravam do modo
de produção feudal, demandavam uma teoria que levasse em conta o
desenvolvimento desigual e combinado da R ússia em face do capita¬
lismo central europeu. Bloch sublinha com muita ênfase a ligação que
h á entre a nã o-contemporaneidade das dialéticas passadas no tempo
presente, ressaltando que se tratam, então, de duas dialéticas a serem
resolvidas, não se contentando com um programa de superação do
atraso que venha apenas a lançar o passado no presente. Sua busca é o
passado e o presente, ambos, no futuro.
A genialidade de Bloch é a de lançar mão, para a concretização
da a çã o política revolucion ária, de heran ças culturais, ideol ógicas, es
¬

pirituais e morais que não são a linha de frente da dialética contempo¬


râ nea, isto porque a história, para Bloch, é um somatório contraditó¬
rio de demandas e necessidades não-resolvidas, cujas energias se acu ¬

mulam e não se canalizam em apenas uma frente de transforma ção.


Assim sendo, até mesmo para o direito, as demandas sociais são
acúmulos de desejos, inspirações e energias, tanto aquelas pré-capita-
listas, de uma sociedade sem instituições e arbitrá rias, quanto as capi ¬

talistas, de uma sociedade arbitrá ria na contabilidade das próprias ins ¬

tituições. Tais energias represadas por in úmeros grupos das classes ex¬
ploradas são o combust ível para a utopia concreta, inclusive para uma
utopia concreta jur ídica.
r
ALYSSON LEANDRO MASCARO

A ESCATOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
Em outra surpreendente vertente, Bloch haure energias para a
concretização do ser-ainda-n ão: a religião. Aparentemente considera¬
da ultrapassada e alijada da tá tica revolucioná ria desde o Iluminismo
no século XVIII e o socialismo no século XIX, a religião é considerada
por Bloch um dos mananciais ainda relevantes para a concretização
da utopia libertadora.
O temada religi ão é caro a Bloch desde a juventude, tendo em
vista que o seu Thomas Münzer é todo ele dedicado a uma exaltação da
moral transformadora, em oposição ao ímpeto conservador da maio¬
ria dos religiosos. Mas tal tema o acompanha até as últimas obras da
maturidade. O Ateísmo no Cristianismo , seu livro do final da década
de 1960 , é urna das expressões do quanto ainda considerava candente
a energia religiosa e moral para a revolução.

Bloch estabelece uma distinção , que é muito cara ao Iluminismo


e pouco aproveitada no marxismo, entre moral e religi ão institucional.
Ele é um entusiasta da primeira e um eminente opositor da segunda.
Sua formação moral, religiosa e escatológica é peculiar: judeu alemão,
é influenciado tanto pela m ística judaica quanto pelo protestantismo
de Miinzer e pelo catolicismo e suas dimensões espirituais.177
Por conta de sua visão a respeito da religi ão e da moral , Bloch
foi tomado por herético pelo marxismo sovi ético, que considerava
tais temas a partir de uma leitura rasa e estrita das palavras de Marx,

I 1 77 "Os descendentes gê meos do Iluminismo, o socialismo utó pico e o materialismo histó rico,
acreditavam que podiam discernir os contornos de uma sociedade de liberdade, solidariedade
e abund â ncia . Contudo, teó ricos como Bloch e Benjamin ( bem como Luk á cs, à sua maneira)
depressa se convenceram de que só uma infusão de pensamento messi â nico poderia resgatar a
idé ia socialista da crise do marxismo que era evidente no car á ter reformista dos partidos socia ¬
listas contempor â neos. Como Bloch observa, no marxismo, 'a economia foi negada, mas a alma
e a fé a que ela devia dar lugar, desapareceram'." WOLIN, Richard. "Reflexões sobre o messianismo
secular judaico". In Labirintos. Lisboa , Instituto Piaget, 1998, p. 85 .
UTOPIA E DIREITO

que solenizavam o ópio do povo. Ou então, de outro modo, que se


prendiam, no que dizia respeito à crítica da religião, às ideias de
Feuerbach, as quais o pró prio Marx considerava definitivas em ter ¬

mos de filosofia da religião.

No seu ineditismo no campo da conjugação do marxismo com a


moral, desde a década de 1920 e 1930, Bloch foi o pioneiro em um
caminho que, tempos mais tarde, veio a florescer em movimentos tão
distintos quanto o diálogo entre cristãos e marxistas promovido a par¬
tir da Fran ça por Roger Garaudy e também , surpreendentemente,
nos povos periféricos, em especial na América Latina, por meio da
Teologia da Libertação.
Bloch n ão só se contenta em estabelecer pontes entre as visões
marxistas e religiosas como, no final das contas, considera o marxismo
o herdeiro legítimo das utopias religiosas. Tudo isso, ao contrá rio da
cr ítica apressada, tomado num sentido altamente positivo: o marxis ¬

mo era herdeiro das lutas e das vontades de libertação e fraternidade


e, portanto, assumia o encargo de uma bandeira relevante à consecu ¬

ção da lustó ria da humanidade livre e justa.


Ainda inaudita, a história subterrânea da revolução aguarda sua
obra, já iniciada no curso correto; mas os irmãos do vale, os cataros,
os vaudois, os albigeois, o abade Joachim de Calabrese, os irmãos
da boa vontade, da vida comunitária, do total discernimento, do
livre espírito, Eckhart, os hussitas, Miinzer e os batistas, Sebastian
Franck, os iluminados, Rousseau e a mística humanista de Kant,

Weitling, Baader, Tolstoi todos eles se unem e o consciente
dessa fant ástica tradição troveja de novo contra o medo, o estado,
a descren ça e contra os altos poderes desumanos. Já agora brilha
a centelha que não mais há de demorar-se em parte alguma e será
conforme a mais definida exigência da Bíblia: não teremos aqui
poucos permanentes, procuramos o pouco futuro; uma mentali-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

dade messiânica prepara-se de novo para surgir finalmente fami ¬

liarizada com a noção de passageiro e fortuito, os milagres daque ¬

les, que irrompiam em meio a choros e desesperos, revelavam-se


meros paliativos. Por meio das ruínas e das esferas culturais arra ¬

sadas deste mundo, brilha altaneiro o espírito da indesca -


racterizável utopia, somente agora segura de seu próprio pólo, na
casa da absoluta comunidade, nas mais íntimas Ofirs, Atlântidas
e Orplids. Desse modo portanto unem-se finalmente marxismo
e sonho do incondicional no mesmo passo e na mesma cruzada;
como força para a trajetória e fim de todas as redondezas em que
o homem fora um ser pressionado, menosprezível, esquecido;
como reconstrução do planeta terra e vocação, criação, conquista
do Reino. 178

A dialé tica da religião, para Bloch , consiste justamente no seu


car á ter de transcendê ncia. E preciso, na sua opinião, transcender sem
transcendência. Quer se exprimir Bloch no sentido de apontar a im ¬

portância da religião para o ainda- não, pois que, vivendo num mundo
ainda n ão fraterno, deve-se, portanto, transcender à realidade imedi ¬

ata, tal como esta se apresenta. No entanto, é preciso também n ão


transcender, isto é, saber que o reino se concretiza na Terra, na existên ¬

cia social, e n ão no cé u ou depois da morte. Nesta dialética, a religião


é responsá vel pelos dois movimentos transcendentes e contradit ó rios,
e Bloch aproveita a um e rechaça a outro.179

178 BLOCH, Ernst. Thomas M ünzer, Teólogo da Revolução. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1973 , p . 206 .
179 "O primeiro autor marxista a mudar radicalmente o arcabou ç o teó rico, sem, no entanto,
abandonar a perspectiva marxista revolucioná ria foi Ernst Bloch . Como Engeis, Bloch distin ¬
guiu duas correntes socialmente opostas: de um lado a religi ã o teocrá tica das igrejas oficiais,
o ópio do povo, um aparato mistificador a serviço dos poderosos; do outro, o submundo, a
religi ã o subversiva e herética dos Albigenses, dos Hussitas, de Joaquim de Fiori, Tom á s
M ü nzer, Franz Von Baader, Wilhelm Weitling e Leon Tolstoy. Poré m , ao contr á rio de Engels,
Bloch recusou -se a ver a religi ão unicamente como uma 'roupagem' acobertando interesses de
-
classe; na verdade, criticou essa concepção expl í citamente, atribuindo a unicamente a Kautsky.
Em suas formas de protesto e rebeldes, a religi ão é uma das formas mais significativas de
consci ê ncia utó pica , uma das expressões mais ricas do princípio esperança" . LOWY, Michael . A
guerra dos deuses. Religião e política na América latina. Petró polis, Vozes, 2000, p. 29 .
UTOPIA E DIREITO

Toda a moralidade levantada dialeticamente por Bloch encami¬


nha-se para um tipo de cristianismo que é a luta pela justiça e pela
solidariedade. No seu Thomas Münzer, tal cristianismo de luta resta
claro num capítulo dedicado a discutir sobre o direito dos bons de
usarem a força. Resulta dessa an álise um cristianismo que n ão se apega
à passividade nem à conformação, e sim a uma inspiração que, no
Antigo Testamento, se baseia no direito e na força e, no Novo Testa ¬

mento, se baseia no exemplo do Cristo, que disse n ão ter vindo trazer


a paz, e sim a espada.

Neste sentido, o cristianismo de Bloch é revolucion ário. Opõe-se


frontalmente a Lutero, na medida em que este defende o príncipe
soberano contra o povo, e também contra a interpretação do Cristo
de Paulo de Tarso, tendo em vista a adulteração promovida no sentido
de confundir o domínio terreno com a autoridade divina. Não se tra ¬
ta, nas palavras de Bloch, de incondicional . não- resistência, pois isso
representaria complacência com os sofrimentos dos irm ãos, e Cristo
não era complacente.
Não se trata de tolerar, porém de doar-se, portanto bem exa ¬

ta, condicionada, determinada n ã o-resistência diante da mor ¬

te em sacrificio, e n ão incondicional não- resistência ao mal;


pois na incondicional não-resistência não se trata mais de puro
Evangelho de Cristo, e sim j á misturado com o Evangelho
paulino sobre Cristo, com o dogma da justificação, do resga ¬

te, da beneficê ncia representativa, e, enquanto tal , n ão


vinculante necessariamente à vida de Cristo. 180
Roger Garaudy, um dos líderes do marxismo francês, décadas de¬
pois, também encaminha uma crítica marxista do cristianismo que sepa¬
ra os postulados cristãos de sua interpretação paulina. Tanto para Bloch

180 BLOCH, Thomas Münzer, Teólogo da Revolução, op. cit , p. 112


- .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

quanto para Garaudy, Paulo de Tarso, por meio da Epístola aos Roma ¬

nos-, está vinculado ao poder, ao Estado, ao direito da dominação. E, de


modo contrário, o direito à libertação é uma oposição genuinamente
cristã em oposição à interpretação paulina favorável ao poder.
Nessa perspectiva de dominação moná rquica e hierárquica
sobre as pessoas e o universo, a mensagem central de Jesus não
apenas é oculta, como também invertida: o Reino e a esperan ¬

ça dos pobres é substituído pelo seu oposto, o Reino de Davi,


que seria sua prefiguração. A esperança dos pobres, de acordo
com o firme apelo de Paulo ( retomado pelo Catecismo ) à obe ¬

diência a todas as autoridades, recua em benefício da aliança


com os poderosos.181

A perspectiva de Bloch da religião contra o poder também é bas¬


tante próxima do movimento da Teologia da Libertação. Ambos têm
por similitude um entendimento da história a partir dos de baixo, o que
se efetiva, no caso da Teologia da Libertação, por meio de uma teologia
construída a partir dos povos periféricos, do chamado terceiro mundo.
Para ambos, a utopia cristã se concretiza na vida social e nos tempos
históricos presentes, sem a transcendência conformadora que desmobiliza
o hoje em troca de um prometido amanhã de redenção.

A Teologia da Libertação, desde a década de I 960 , com Gustavo


Gutierrez e com Leonardo Boff, dentre outros, recebe de Bloch uma
referência direta no sentido de construir um cristianismo libertador e
preocupado com os injustiçados. Assim, apontando diretamente ao
princípio esperança de Bloch, refere-se Boff:
O elemento determinante do homem sul-americano n ão é o
passado (nosso passado é um passado europeu, de coloniza¬
ção) mas o futuro. Daí a função ativadora do elemento utópi-

1 81 GARAUDY, Roger. Deus é necessário? Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995, p. 92.
UTOPIA E DIREITO

co. A utopia nao deve ser entendida como sin ó nimo de ilusão
e fuga da realidade presente; como os estudos recentes da filo¬
sofí a e da teologia o têm relevado a utopia nasce do princípio-
esperan ça, responsável pelos modelos de aperfeiçoamento de
nossa realidade que n ão deixam o processo social se estagnar
ou se absolutizar ideologicamente mas o mant ê m em perma ¬
nente abertura para uma transforma ção cada vez mais cres¬
cente. A fé promete e mostra realizada em Cristo urna utopia
de um mundo totalmente reconciliado, como potencialização
daquilo que aqui criarmos com sentido e amor. Nosso traba ¬

lho na construção de um mundo mais fraterno e hominizado


é teologicamente relevante: constró i e antecipa lentamente o
mundo definitivo prometido e mostrado como possível por
Jesus Cristo. 182
A utopia cristã reivindicada pela Teologia da Libertação tem uma
matriz bastante pr óxima da utopia jurídica blochiana, da dignidade
humana e da justiça. O homem explorado e injustiçado é aquele ao
qual a utopia direciona a libertação.183 A utopia cristã se reafirma,
assim , como sendo uma utopia do justo. Tratando da praxis de Jesus,
assim se pronuncia Boff:
A justiça ocupa lugar central em seu an ú ncio. Declara bem-
aventurados os pobres não por olhar a pobreza como virtude
mas porque, sendo ela fruto de relações injustas entre os ho ¬
mens, provoca a interven ção do Rei messi â nico cuja primeira
fun ção é fazer justiça ao pobre e defender o fraco em seu direi¬
to . Rechaça também a riqueza que vê dialeticamente como
conseqtiê ncia da explora ção dos pobres. Por isso, a qualifica

182 BOFF, Leonardo, lesus Cristo Libertador. Petr ópolis, Vozes, 2001, p. 232.
183 "Para L. Boff e E. Bloch , o sujeito da escatologia utó pica e da esperan ç a histó rica é, em
primeiro lugar, o homem oprimido e humilhado, o pobre para quem a esperança utópica é a
esperança da libertaçã o dos sofrimentos e das injustiças sofridas no tempo presente, através
da ação libertadora dos homens". M ü NSTER, Arno. Ernst Bloch. Filosofia da Praxis e Utopia
Concreta. S ão Paulo, Ed . Unesp, 1993, p. 116.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

simplesmente de desonesta (Lc 16,9). O ideal de Jesus n ão é


nem uma sociedade de opulência nem uma sociedade de po ¬

breza, mas de justi ça e fraternidade.184


O impulso moral no pensamento de Bloch aponta necessaria¬
mente para a justiça social, a fraternidade como distribuição das ri ¬
quezas e das felicidades. É assim que, em Bloch, completa-se o círculo
ut ó pico da moral. No explorado, injustiçado, está a finalidade da
escatologia cristã libertadora, e é este o sujeito motor da transforma¬
ção social e da revolução, do fazer justiça.
Nesta perspectiva crítica, de Bloch e das teologias de libertação, a
energia política revolucionária da moral e da ética religiosa revela-se
no mundo, situacionada nas questões presentes que demandam uma
transformação em vista da justiça.
-
[...] Abre se a última grande encruzilhada da evolução hist ó¬
rica: ou a humanidade cederá à pressão conjugada da força
militar e do poderio económico-financeiro, fazendo prevale¬
cer uma coesão puramente técnica entre os diferentes povos e
Estados, ou construiremos enfim a civilização da cidadania
mundial, com o respeito integral aos direitos humanos, se¬
gundo o princípio da solidariedade ética.185
Para Bloch, a partir dos explorados que têm fé na justiça, é tam ¬
bém possível e bastante necessá rio haurir a energia utópica da liberta ¬

ção que, por via moral, impulsiona a concretização do ser-ainda-n ão.

184 BOFF, op. dl., p. 30.


185 COMHA ííATO, A afirmação histórica dos direitos humanos, op. cit., p. 45.
CONCLUSãO

Ao reescrever a histó ria filosófica da possibilidade, Ernst Bloch


deu à utopia uma posição de liderança na política de transformação
dos tempos. Para além da vergonha e da proibição da imaginação do
futuro, correntes até então na filosofia por conta da desconfiança no
progresso ou das idealizações totalitaristas, Bloch aponta ao fato
ontológico de que o ser, sempre, ainda não é. A natureza está aberta ao
novo. A histó ria, pela fome e pela incompletude, aponta para sua trans¬
formação. A praxis urge a efetivação da possibilidade. Assim, ultrapas-
sa-se o velho utopismo do não-lugar ou dos sonhos vãos: trata-se, em
Bloch, da utopia concreta.
Ao tempo de Bloch, a afirmação da possibilidade transformadora
já era dada como perdida por setores tão amplos quanto os conservado¬
res ou mesmo o marxismo ocidental da Escola de Frankfurt: na maior
parte dos tempos, o futuro transformado é tomado por impossível. Bloch,
numa consideração filosófica do tempo aberto, em espiral, acumulando
várias camadas, aponta para o fato de que a dominação nao é inexorável.
Em qualquer tempo, e inclusive no hoje, a possibilidade é possível.

BLOCH ENTRE OS MARXISTAS

Bloch, por humanista, poderia fincar posições conciliadoras e


conservadoras, de generosos descontos à realidade. Tomado na velha
dicotomia - até hoje vulgarmente utilizada - entre economicistas e
humanistas, Bloch seria campeão destes últimos, contra aqueles. Pos¬
tula-se aqui, no entanto, uma outra dicotomia do marxismo, que, mais
apurada, possa servir a propósitos mais claros e a uma compreensão
filosófica mais acertada.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Bloch foi um humanista carregando consigo as mais altas


radicalidades daqueles que, de outro lado, foram chamados
economicistas no marxismo. Pachukanis, o jurista marxista da forma
mercantil, era o companheiro, no tema do direito , da mirada de hori ¬

zontes de Bloch. Isto porque o humanismo blochiano não afasta a


economia nem tampouco esta está alheia daquela. Daí porque é preci¬
so, a partir de Bloch, estabelecer um novo eixo de compreensão do
marxismo. O seu refinamento está no fato de que abarca os sonhos do
amanhã melhor com o propósito firme e humanista da dignidade
humana, ao mesmo tempo em que reafirma que só a revolução socia ¬

lista, liberando a práxis do capital, será capaz de tal projeto de plenitu¬

de humana e social. Esta postura de Bloch é, na verdade, a proposta


de uma filosofia da totalidade, que, por caminhos estranhos mas ocul ¬

tamente paralelos, ele e Lukács trilharam dentro do marxismo. O oposto


de Bloch não são os economicistas; seu contrário são os pensadores da
parcialidade. E, como para Bloch a plenitude da justiça é o pereci¬
mento final do direito, a totalidade lhe representa, pois, a radicalidade.

É preciso, então, escrever outra história dos alinhamentos da filo ¬

sofia marxista, que separe a totalidade radical de um lado e a parciali¬


dade político-económica de outro. Bloch será, dos primeiros, um dos
mais plenos radicais dessa visão que não concede aos tempos, às fra ¬

quezas humanas ou às injustiças uma sobrevida tática. Se Bloch n ão foi


um economista do marxismo, n ão se deve ao fato de ser um teólogo da
revolução, porque um n ão se opõe ao outro. O cuidado especial com
a filosofia, em Bloch, n ão quer deixar de representar, sempre, a mira ¬

da do todo. A categoria da totalidade fazia o compromisso com a ple ¬

nitude revolucioná ria. Da totalidade filosófica Bloch também hauriu


sua ligação estrutural à radicalidade política e jur ídica. Toda a justiça,
toda a democracia, toda a dignidade. Rosa Luxemburgo, Lukács,
Pachukanis, Engels, Marx: as linhas do marxismo são reescritas imper-
ceptivelmente por Bloch.
Ihoni Dmí -
io

Garaudy e Althusser duelaram irredutivelmente entre o


humanismo e o estruturalismo. Bloch, antes deles, foi ao mesmo tem¬
po os dois. Num manual de poucas linhas da histó ria do marxismo,
Bloch e Lukács, por falta de rótulo, entrariam ao lado de Adorno e
Horkheimer, pela semelhança de mesma geração germânica de filóso¬
fos do marxismo. Mas Bloch n ão foi dos que apregoaram a resignação.
A filosofia não lhe era outra coisa, ainda, que n ão uma portentosa
arma de transformação, e o futuro dever-lhe-ia ser radical. Por isso,
tão perto, tão longe, Bloch n ão foi a Escola de Frankfurt, que n ão era
da revolução total. E tendo sido os frankfurtianos o cânone universitá ¬

rio e oficial do marxismo conservador e resignado , Bloch passou além


do quantum de marxismo aceitável pelos tempos presentes.

BLOCH ENTRE OS JURISTAS


Numa é poca em que o rescaldo da Segunda Guerra Mundial
produziu juristas crentes no direito natural, recém-fugidos de um
formalismo que levou ao nazismo, Bloch disputou-lhes o espaço, para
negar a todos. O discurso do jusnaturalismo por ele foi tomado às
mãos, para utilizá-lo ainda como uma arma política, mas de transfor¬
mação. O retrocesso dos juristas à metafísica, logo após terem chegado
ao olimpo do positivismo e do formalismo, mereceu de Bloch uma
oposta investida filosófica profunda.

A dignidade humana n ão é o reino formal e dedut ível dos inte ¬

resses do indivíduo burguês: é a sociedade plena, fraterna, socialista,


que compartilha as necessidades e os prazeres. Trata-se da praxis da
dignidade e da justiça. Bloch chama ao seu lado a religião, mas n ão
aquela dos conservadores. Tem ao seu lado o espírito m ístico, herético,
messiâ nico, escatológico e radicalmente singelo dos que, sendo cris¬
tãos ou não, n ão levantaram paredes de templos de segregação. Pelo
ângulo jurídico, quem tomar Bloch por filósofo de um direito com-

1 CK
ALYSSON LEANDRO MASCARO

plácente e de vagos ímpetos cristãos de amor esqueceu-se da lembran ¬

ça blochiana do Cristo radical, que expulsou os vendilhões do templo.


O radicalismo jur ídico de Bloch é explícito. Quando estende o
ser-ainda- nã o ao direito, anunciará a parte da sua ontologia da utopia
que é específicamente jur ídica: o ser-ainda- não jur ídico é a extinção
do direito, a sua superação numa sociedade socialista, então definiti¬
vamente reconciliada, que tenha por teto não os institutos jur ídicos,
mas sim os princípios jurídicos da dignidade e da solidariedade.

O tema de Bloch não é o da maior parte dos juristas. O tema de


Bloch é o fim da dominação dos juristas ou , pelo menos, o renascer
dos juristas, como políticos dos tempos da solidariedade. A dignidade
é a tocha que lhe acendeu a queima do velho para a chegada do novo.

BLOCH ENTRE OS DE HOJE

Falemos do direito do Brasil. Ernst Bloch postulou a existência de


heranças do ontem não realizadas no hoje, mas que ainda geram exce¬
dentes utó picos e energias para a transformação. Há 20 anos o Brasil
sonhava com a libertação da ditadura, a construção da democracia.
Há pouco menos que isso, sonhava com os horizontes da Constituição
e com a possibilidade da dignidade do homem, da libertação da po¬
breza e da justiça social . Há menos ainda, com a eleição de um traba¬
lhador como presidente da República, esperou findar o neoliberalismo
e vingar a hist ória dos explorados, apostando na esperan ça. Tudo isso
os tempos de hoje dizem soterrado por conta de uma nova agenda. A
política virou, mas os sonhos restaram. O tempo de hoje carregou,
inconcluso, a não-contemporaneidade da utopia jurídica do ontem.
Desse ontem, hoje, pode-se fazer o amanhã.
Falemos do direito no mundo. Depois de décadas de armas e de
bombas atómicas revestidas por racionalidade e progresso da tecnologia,
UTOPIA E DIREITO

depois de um fr ágil equil í brio de dominadores e dominados


embandeirado por nações unidas, depois do discurso das migalhas do
desenvolvimentismo para mascarar a exploração, depois da paz como
argumento da guerra, tudo isso no campo da razão , chegaram de novo
os tempos da legitimação pela desrazão, e até mesmo pela religião.
Recrudescendo no conservadorismo, volta a se dizer que o bem per ¬

tence a uns contra os outros. Volta o discurso religioso reacioná rio


embasando a política dominadora. Volta quem se arrogue o poder
divino da for ça exclusiva e preventiva contra os não-democratas, os
n ão-americanos, os diferentes, o outro. Ernst Bloch n ão falava de reli¬
gião como forma de salvação ou de cren ça para dominar os infiéis.
Postulava, contra isso , uma teologia da libertação. Sua fala sobre a po¬
l ítica da religião é mais do que atual nos dias de Bush . Em Bloch a
dignidade n ão se constrói jamais pelo direito da indignidade.
Mas n ão se busque em Bloch a sociologia jur ídica dos passos da
libertação. Não se procure em suas páginas a tática política da revolu ¬

ção. E em tempos obscuros, como são também os de hoje, porque a


justiça e a dignidade estejam longe, n ão se acuse filosoficamente Bloch
de ingénuo ou sonhador. A filosofia do direito de Bloch n ão é uma
prova de que o amanhã é possível. Bem menos e muito mais que isso, é
só o chamado à possibilidade.

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