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Roberto Votta
Universidade de São Paulo – robertovotta@usp.br
Abstract: Analysis of the first movement of the String Quartet nº 3 (1916) of Villa-Lobos (1887-
1959), focusing aspects related to its harmony. Through musical analysis we realize that the pitch
class set from the passages where theme I, the variant I and the variant II appears corresponds to
the diatonic scale. The pitch collection of the theme II is variable and that’s why the theme II
works as a polarizing element to other scalar regions.
1. Considerações iniciais
Villa-Lobos compôs o Quarteto de Cordas nº 3 em 1916, embora sua estreia só
tenha ocorrido durante a Semana de Arte Moderna, em 1922. Trata-se de um quarteto da
chamada primeira fase do compositor, período em que Villa-Lobos estava sob grande
influência da escola francesa, sobretudo da música de Debussy (NEVES, 1981: 37; SALLES,
2009: 10; GUÉRIOS, 2003: 90).
Observando a literatura disponível sobre a obra do compositor, é possível verificar
apontamentos a respeito do Quarteto de Cordas nº 3 em diferentes publicações, entretanto,
notamos uma escassez de análises mais aprofundadas acerca do material composicional
trabalhado por Villa-Lobos. O presente artigo expõe uma análise de alguns aspectos
harmônicos e melódicos do primeiro movimento do Quarteto de Cordas nº 3, explorando o
desenvolvimento dos materiais trabalhados pelo compositor, a fim de investigar as questões
de ordem composicional envolvidas no processo de elaboração, desenvolvimento e
proposição da obra.
XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – São Paulo – 2014
Fig. 1: Villa-Lobos. Quarteto de Cordas nº 3, movimento I, violino II, tema inicial, c. 1-4.
Ao analisarmos o tema, que é anunciado pelo violino II, podemos observar que
nos três primeiros compassos, os subconjuntos apresentam a mesma forma primária (025)
com o mesmo número de conjunto de classes de alturas 3-71, e é por isso que Salles afirma
que esse conjunto é uma “célula temática” desse primeiro movimento (fig. 2) (SALLES,
2012a: 6).
Fig. 2: Villa-Lobos, Quarteto de Cordas nº 3, movimento I, análise da linha do violino II, c. 1-3.
XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – São Paulo – 2014
Por não apresentar funcionalidade tonal clara, Aoki conclui que “embora a
coleção de alturas resultante do trecho corresponda à uma escala tonal, não se pode dizer que
este é um movimento baseado no tonalismo, pois não temos uma progressão harmônica
característica” (AOKI, 2014).
Ao observarmos os compassos seguintes (c.4-5) (fig. 8), notamos que o mesmo
acontece com a coleção de alturas, ou seja, a variante I enunciada pelo violino I, cujo conjunto
é o 6-32 (0,2,4,5,7,9), também encontra-se sustentada por uma coleção de alturas que se
relaciona a uma escala diatônica de conjunto 7-35 (0,1,3,5,6,8,10) (fig. 9), porém, as funções
harmônicas dos acordes formados também não podem ser claramente definidas o que não
caracteriza, portanto, uma progressão harmônica tonal.
Fig. 11: Villa-Lobos, Quarteto de cordas nº 3, movimento I, escala correspondente à coleção de alturas
resultante do trecho, c. 6-10.
Diatonicidade
Trecho diatônico quebrada pelo
acréscimo de alturas
Fig. 12: Villa-Lobos, Quarteto de cordas nº 3, movimento I, análise da coleção de alturas, c. 11-16.
Fig. 13: Villa-Lobos, Quarteto de cordas nº 3, movimento I, escala correspondente à coleção de alturas
resultante do trecho, c. 11-14.
Assim como nos exemplos acima, em todo o primeiro movimento as regiões onde
encontramos a coleção de alturas resultante correspondente à escala diatônica coincidem com
a região onde o tema, as variantes ou o segundo tema aparecem. A tabela a seguir (tab. 1)
mostra de modo resumido as coleções de alturas resultantes dos trechos onde essas linhas
melódicas aparecem:
Conjunto
Material Coleção de Conjunto resultante Coleção de alturas
Trecho resultante
melódico alturas (material melódico) (trecho)
(trecho)
c. 1-3 tema I 2,4,7,9,11 5-35 0,2,4,5,7,9,11 7-35
c. 4-6 variante I 1,2,4,6,9,11 6-32 1,2,4,6,7,9,11 7-35
c. 11-14 variante I 1,4,6,8,911 6-32 1,3,4,6,8,9,11 7-35
c. 17-19 tema I 2,4,6,9,11 5-35 0,2,4,6,7,9,11 7-35
c. 20-21 variante I 1,4,6,8,9,11 6-32 1,3,4,6,8,9,11 7-35
c. 30-32 tema I 1,3,5,6,8,9,11 7-27 1,3,5,6,8,10,11 7-35
c. 33-40 variante I 2,4,7,9,11 5-35 0,2,4,5,7,9,11 7-35
c. 40- 45 variante II 1,2,4,6,8,9,11 7-35 1,2,4,6,8,9,11 7-35
variante II 1,2,4,6,8,9,11 7-35
c. 49-54 tema I 1,4,6,8,11 5-35
1,2,4,6,8,9,11 7-35
tema II 0,1,4,6 4-z15
c. 61-63 tema II 4,6,9,11 4-23 0,2,3,4,5,6,7,9,11 9-7
XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – São Paulo – 2014
Conjunto
Material Coleção de Conjunto resultante Coleção de alturas
Trecho resultante
melódico alturas (material melódico) (trecho)
(trecho)
0,2,4,5,9,11 6-z25
c. 77-81 tema II 4,5,9,11 4-16
0,2,4,5,7,9,11
7-35
c. 82-85 tema I 1,2,4,6,7,9,11 7-35 0,1,2,3,4,6,7,9,10,11 10-3
c. 87-88 variante I 2,4,6,9,11 5-35 1,2,4,6,9,11 6-32
c. 89-91 tema II 0,1,4,6 4-z15 0,1,4,6,9,11 6-z47
c. 92-98 variante II 1,2,4,6,7,9,11 7-35 1,2,4,6,7,8,9,11 8-23
c.101-106 variante II 0,2,4,5,7,9,11 7-35 0,2,4,5,6,7,9,11 8-23
c. 109-114 variante II 0,2,4,5,7,9,11 7-35 0,2,4,5,7,9,10,11 8-23
c. 117-121 variante II 0,2,4,5,7,9,11 7-35 0,2,3,4,5,7,9,11 8-23
tema II 0,7,10 3-7
c. 125-129 (fragmento e 0,3,5,6,7,8,9,10 8-10
inteiro) 0,3,5,10 4-23
tema I 0,2,5,7,9 5-35
c. 133-135 0,2,4,5,7,9,11 7-35
tema II 2,3,5,7 4-11
tema II
c. 136-140 3,7,9 3-8 1,3,4,5,7,9,11 7-33
(fragmento)
tema II 4,7,9 3-7
c. 141-145 1,2,4,6,7,9,11 7-35
tema I 1,2,6,8,9 5-20
c. 146-148 1,2,4,6,8,9,11 7-35
tema II 4,6,9,11 4-20
c. 152-159 tema I 0,2,4,7,9 5-35 0,2,4,5,7,9,11 7-35
c. 172-175 tema I 1,4,6,9,11 5-35 1,2,4,6,8,9,11 7-35
c. 182-190 tema II 0,4,6,9 4-27 0,2,4,6,7,9,11 7-35
Trecho diatônico
Legenda
tema II variante II tema I
Fig. 14: Villa-Lobos, Quarteto de cordas nº 3, movimento I, análise da coleção de aturas, c. 49-56.
Fig. 15: Villa-Lobos, Quarteto de cordas nº 3, movimento I, análise da coleção de alturas, c. 49-54.
O trecho acima ilustra dois aspectos fundamentais abordados em nossa análise até
aqui:
A presença de regiões onde a coleção de alturas que forma uma escala diatônica
coincide com a aparição do tema I, da variante II e do tema II;
A desestruturação da escala diatônica pelo acréscimo de notas que não pertencem à
escala anteriormente estipulada.
Outros dois aspectos que também podemos destacar ao analisar a tabela são o
desenvolvimento da construção harmônica ao longo do movimento e o comportamento do
tema II, como veremos a seguir. A composição pode ser dividida em três partes, referentes à
XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – São Paulo – 2014
construção harmônica: Na primeira parte (c. 1-76), notamos que as escalas correspondentes às
regiões diatônicas são formadas pelo conjunto 7-35. Aproximando-se da segunda parte, surge
o tema II (c. 125-129) que é sustentado por um conjunto diferenciado, o 9-20, revelando,
portanto, uma coleção de alturas resultante não-diatônica. Na segunda parte (c. 72-132), a
coleção de alturas correspondentes às regiões diatônicas são formadas pelo conjunto 8-23 em
sua maioria. Nota-se novamente que o tema II (c.125-129) surge como um prenúncio de uma
mudança de estruturação com um conjunto diferenciado, o 8-10. Na terceira parte (c. 133-
190), a coleção de alturas volta a ser o padrão 7-35.
Ao observarmos os conjuntos de classes de alturas referentes às alturas do tema II,
notamos que diferentemente do tema I, da variante I e variante II, o mesmo apresenta
conjuntos de classes de alturas diferentes entre si, entre os que foram mapeados encontra-se o
4-z15, 4-23, 4-16, 4-11 e o 4-27, (além dos subconjuntos 3-7 e 3-8 quando há a aparição do
fragmento do mesmo), nos levando a concluir que estruturalmente o tema II é instável quanto
ao conjunto de classes de alturas que o compõe, e é devido à essa instabilidade que o tema II
pode estar presente em regiões diatônicas e não- diatônicas, o que faz com que o mesmo
funcione como elemento polarizador para outras regiões escalares.
3. Considerações finais
A partir das observações apontadas nessa análise, é possível sugerir que, com
relação à questão harmônica, os elementos temáticos encontram-se em torno de uma escala de
sete ou oito alturas, porém sem funcionalidade tonal clara, ou seja, as coleções de alturas
mapeadas, que se relacionam com escalas diatônicas, coincidem com as regiões onde há a
aparição do tema e variantes a partir dele, assim como as regiões onde as coleções de alturas
não se relacionam com escalas diatônicas coincidem com regiões onde nem o tema I e nem
suas variantes aparecem .
O tema II do movimento apresenta uma coleção de alturas instável, aspecto de sua
construção que permite que o mesmo apareça tanto em regiões escalares diatônicas quanto em
regiões escalares não diatônicas, o que faz com que o mesmo funcione como elemento
polarizador para outras regiões escalares.
A partir do estudo das coleções de alturas resultantes nos trechos em que
aparecem o tema I, variante I, variante II e tema II, é possível dividir o primeiro movimento
em três grandes partes, sendo que na primeira e terceira partes notamos que as escalas
correspondentes às regiões diatônicas são formadas pelo conjunto 7-35, enquanto que na
XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – São Paulo – 2014
segunda parte notamos que as escalas correspondentes às regiões diatônicas são formadas, em
sua maioria, pelo conjunto 8-23.
Como continuidade dessa análise, é possível mapear as regiões harmônicas de
trechos onde a coleção de alturas resultantes não corresponde à escala diatônica, verificando a
interação entre regiões diatônicas e não-diatônicas, assim como as características e
desdobramentos do tema II.
Referências:
AOKI, Denise. O primeiro movimento do Quarteto de Cordas nº 3 de Heitor Villa-Lobos:
aproximações estilísticas com o período clássico. In: CONGRESSO INTERNACIONAL: A
MÚSICA NO ESPAÇO LUSO-BRASILEIRO: UM PANORAMA HISTÓRICO, 2013,
Lisboa. Anais... Lisboa: Universidade de Nova Lisboa, 2013. 225-260.
AOKI, Denise. A influência da música francesa no primeiro movimento do Quarteto de
Cordas nº 3 de Heitor Villa-Lobos. In: ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE JOVENS
MUSICÓLOGOS, II, 2014, Porto. Anais... 2014.
CHEDIAK, Almir. Dicionário de acordes cifrados: harmonia aplicada à música popular. Rio
de Janeiro: Irmãos Vitale. 1984
ESTRELLA, Arnaldo. Os quartetos de cordas de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC/DAC –
Museu Villa-Lobos, 1970.
FORTE, Allen. The structure of atonal music. New Haven: Yale UP. 1973.
GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos e o ambiente artístico parisiense, convertendo-
se em um músico brasileiro. Mana, n.9, abril, p.81- 108, 2003.
KOSTKA, Stefan. Materials and techniques of twentieth-century music. Upper Sadle River,
New Jersey: Pearson Prentice Hall. 2006.
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981.
SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos composicionais. Campinas: UNICAMP,
IA/UNICAMP, 2009.
________. Villa-Lobos: desafiando a Teoria e Análise Musical. In: ENCONTRO DE
MUSICOLOGIA DE RIBEIRÃO PRETO, IV, 2012, Ribeirão Preto. Anais... Ribeirão Preto:
EDUSP, 2012b. v. 1, 81-95.
______ . A música de Villa-Lobos e a Semana de Arte Moderna de 1922. In: LADEIRA, M.;
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Seincman, Eduardo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008.
VILLA-LOBOS, Heitor. 3eme quatuor – pour 2 violons, alto et violoncelle. Paris : Max
Esching . 1929.
1
Na música tonal, a menor unidade de uma peça, aquilo que garante a sua coerência era denominada motivo. A
partir do século XX, e da descoberta de novas ferramentas de análise, como a teoria dos conjuntos, surgiu o
termo ‘conjunto de classe de alturas’. Entende-se por ‘conjunto de classe de alturas’ um novo tipo de unidade
estruturadora, que garante a unidade da peça através de sua repetição, inversão, transposição, aumentação e
diminuição (SHOENBERG, 2008; KOSTKA, 2006: 178).
2
Segundo Chediak (1984), o símbolo (+) indica que a sétima imediatamente anterior à ele é maior e o símbolo
(m) indica que o acorde imediatamente anterior à ele é menor.
3
Dentro de um contexto tonal, o cromatismo presente no tema II poderia ser observado como recurso para
modulação.