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Nome:
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Movimento:
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Núcleo de Base:
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Sumário
Sumário ........................................................................................................................................................ 1
Organicidade..............................................................................................................................................................5
ORGANICIDADE GERAL...........................................................................................................................................5
NÚCLEOS DE BASE (NB´s): ......................................................................................................................................6
COORDENAÇÃO POLÍTICO PEDAGÓGICA (CPP):......................................................................................................6
EQUIPES PERMANENTES DE TRABALHO .................................................................................................................6
TEMPO TRABALHO .................................................................................................................................................8
TEMPOS EDUCATIVOS ............................................................................................................................................9
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
A presença do sindicalismo na história política do Brasil, por Armando Boito Jr. .......................................................77
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Apresentação do CRB
Desde o primeiro Curso Realidade Brasileira - CRB, realizado em 2001, em Juiz de Fora – MG
(organizado por Movimentos Sociais Populares em parceria com a UFJF), já aconteceram mais de 50
turmas do CRB em todo Brasil. O curso nasceu da necessidade de se retomar a formação de
militantes de forma mais sistemática, se voltar a pensar o Brasil e o Projeto Popular, a viabilidade
da construção do Brasil como nação através das potencialidades, criatividades e da formação
histórica, social, cultural e econômica do seu povo.
Vivemos uma crise provocada pelo capitalismo. Mais do que nunca precisamos retomar a
prática do estudo, o despertar da consciência, pensar o Brasil e a organização popular. Mas não
partimos do zero. Muito ao contrário. São muitos os intelectuais brasileiros, hoje amordaçados,
renegados e boicotados pelas ideias do pensamento único, restritivo, economicista, opressor.
Neste sentido, queremos ocupar esse espaço na sociedade. Para nos ajudar nessa tarefa,
ninguém melhor que os clássicos brasileiros, pensadores (as), intelectuais e militantes que
interpretaram o Brasil com originalidade, criticidade e profundidade. Orientados pelos ideais de
mudança. Pensadores/militantes, renomados, reconhecidos e estudados muito mais fora do Brasil
que por nós brasileiros (as): Florestan Fernandes, Celso Furtado, Caio Prado Jr., Darcy Ribeiro, Paulo
Freire, Milton Santos e tantos outros e outras.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Dimensões Filosóficas
Os princípios filosóficos dizem respeito a nossa visão de mundo, nossas concepções mais gerais
em relação à pessoa humana, à sociedade e ao que entendemos que seja educação. São os
fundamentos dos objetivos estratégicos do trabalho educativo.
1) Educação para a transformação social.
2) Educação para o trabalho e a cooperação.
3) Educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana.
4) Educação com / para valores humanistas.
5) Educação como um processo permanente de formação e transformação humana.
Dimensões Pedagógicas
Os princípios pedagógicos se referem ao jeito de fazer e de pensar a educação, para
concretizar os próprios princípios filosóficos. Dizem dos elementos que são essenciais e gerais na
nossa proposta de educação, incluindo especialmente a reflexão metodológica dos processos
educativos.
Importância do estudo
Estudar é procurar compreender o que se lê, refletir sobre os assuntos abordados num texto,
reter o fundamental e estabelecer relações com outras ideias aprendidas, lidas e ouvidas. Não é
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
fácil estudar quando não se tem o hábito do estudo. Só com o tempo se começa a compreender
melhor os textos e assimilar seu conteúdo. Por isso, é necessário ter vontade de aprender, não
desistir na primeira dificuldade e encarar o estudo como uma tarefa com o mesmo rigor que as
outras.
Estudar é necessidade vital para a militância. Desde que estudo não seja armazenar e exibir
conhecimentos, nem estudo abstrato, nem estudo da teoria como fórmula acabada, solução para
todos os problemas ou como modelo único para a luta dos trabalhadores e suas organizações.
Às vezes, falar da importância do estudo, se pensa em fazer cursos. Cursos, palestras,
seminários, debates são indispensáveis porque ajudam a organizar as ideias, traçar linhas gerais e
temas básicos, na formação teórica, ideológica e política da militância. Mas, os cursos não
substituem o estudo individual.
Ele é necessário para a preparação e aprofundamento de temas, para aproveitamento dos
cursos e a participação em debates. O estudo, embora tenha uma orientação coletiva, mas precisa
ser um exercício individual. Pois, a formação política se sustenta em três pilares básicos:
participação na luta e organização popular, atividades sistemáticas de formação e estudo
individual.
Nosso curso se desenvolverá através de aulas expositivas; seminários; estudos individuais ou
em grupo; intercâmbios entre os participantes; vídeos etc. Todos e todas deverão aproveitar
intensamente esse tempo privilegiado de estudo.
Organicidade
ORGANICIDADE GERAL
Outro aspecto relevante do processo formativo é a organicidade. A formação é uma forma de
ação, de organização. Por isso a estrutura orgânica do curso terá como base os Núcleos de Base que
elegerão uma Coordenação Geral. Os núcleos também indicarão os integrantes que farão parte das
equipes de trabalho. Além disso, haverá uma Coordenação Político Pedagógica que terá a função
de garantir a linha política do curso. Nesse processo, todos os participantes passarão pela
experiência de dirigir seus dirigidos, implementando um método participativo e responsável que
possibilita o crescimento individual e coletivo.
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Cada NB deverá escolher seus membros para fazerem parte das Equipes Permanentes de
Trabalho:
- 2 coordenadores (de preferência um companheiro e uma companheira)
- Pelo menos 1 responsável pela Memória e Relatoria
- Pelo menos 1 responsável para a Comunicação
- Pelo menos 1 responsável pela Infraestrutura
- Pelo menos 1 responsável pela Saúde
COORDENAÇÃO
Tem como tarefas: Acompanhar o processo pedagógico de cada NB e da turma como um todo,
avaliando coletivamente o processo de aprendizagem e apreensão do conteúdo, da inserção
dos cursistas na organicidade de construção do curso, da integração da turma e de fazer a
relação entre a CPP e os cursistas e vice-versa.
COMUNICAÇÃO
Tem como tarefas: Construir a comunicação interna da turma de forma criativa e inovadora,
pensando o intercâmbio e integração entre as organizações; trazer notícias das ações dos
Movimentos Sociais que compõe a turma (em nível local, estadual e nacional), organizando
formas de comunicar isso a turma; trazer notícias da conjuntura atual durante o período do
curso através de Jornais, Murais, Rádios etc. Divulgar os meios de comunicação da classe
trabalhadora como o Portal Expressão Sergipana, Jornal Brasil de Fato, Rádio Agência Brasil de
Fato, Jornal Sem Terra, entre outros.
INFRA-ESTRUTURA
Tem como tarefas: Ajudar cada NB a garantir os Trabalhos necessários para o bom andamento
do curso; garantir a estrutura necessária para que o curso ocorra de forma tranquila e sem
atrasos; ajudar na organização do ônibus para transporte coletivo caso necessário; ajudar a
organizar o alojamento dos participantes; ajudar a pensar a organização dos espaços de
estudo/plenárias; resolver possíveis problemas estruturais que possam aparecer; dialogar com
as companheiras da cozinha para garantir que as refeições saiam do horário esperado; entre
outros.
SAÚDE
Tem como tarefas: Desenvolver trabalhos preventivos para a saúde dos cursistas além de
acompanhar possíveis casos de doença na turma.
MEMÓRIA E RELATORIA
Tem como tarefas: Organizar a memória de cada módulo (fotos, vídeos, textos e filmes
complementares utilizados e indicados pelos assessores, etc.); organizar a relatoria dos debates
coletivos (nos NB´s e também nas plenárias).
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
TEMPO TRABALHO
Na realização do curso partimos de dois princípios essenciais: a construção coletiva realizada
por todos os participantes do cursos, trabalhando a nossa co-responsabilidade por todos os feitos
positivos e negativos que venham a ocorrer; e um segundo princípio é o de que essa é uma
construção da classe trabalhadora com a classe trabalhadora, e assim sendo, é um espaço aonde
tentamos vivenciar valores e práticas da nova sociedade que queremos construir, aonde não
existam mais patrões e empregados e o trabalho seja organizado de forma coletiva.
Por estas duas razões, todo o trabalho necessário para um bom andamento do curso é
realizado por toda a turma, através da divisão destes por NB´s. – com apenas uma exceção, o
preparo das refeições é realizado por companheiros e/ou companheiras contratados.
Os trabalhos terão tempo garantido para que aconteçam no curso.
ESTES TRABALHOS SÃO:
- CAFÉ DA MANHÃ: Chegar dez minutos mais cedo no refeitório para organizar o espaço; servir a
comida; e quando o horário terminar limpar o refeitório e lavar as panelas.
- ALMOÇO: Chegar dez minutos mais cedo no refeitório para organizar o espaço; servir a comida; e
quando o horário terminar e limpar o refeitório.
- PANELAS DO ALMOÇO: Lavar as panelas do Almoço.
- JANTAR: Chegar dez minutos mais cedo no refeitório para organizar o espaço; servir a comida; e
quando o horário terminar e limpar o refeitório.
- PANELAS DO ALMOÇO: Lavar as panelas do Jantar.
- CAFEZINHOS DOS INTERVALOS: Chegar dez minutos mais cedo no refeitório para organizar o
espaço; e quando o horário terminar, limpar o refeitório e lavar as panelas.
- BANHEIROS COLETIVOS: Lavar os banheiros coletivos, tirar os lixos e repor papéis higiênicos.
- ANIMAÇÃO E MÍSTICA: Ajudar a organizar a animação da turma aliado a disciplina com os horários
acertados; Organizar as místicas diárias do curso e a parte cultural (quando necessário); Ornamentar
e organizar a Plenária com os símbolos da luta dos trabalhadores e bandeiras das organizações do
curso.
*Obs.1: Haverá um responsável da CPP para acompanhar os NB´s que estiverem com essa tarefa, e
que guardará os materiais necessários para animação e mística.
*Obs.2: Segue, logo abaixo, na pretensão de ajudar os NB´s nesta reflexão, dois textos sobre mística.
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TEMPOS EDUCATIVOS
SÁBADOS DOMINGOS
06:30 – Despertar! 06:30 – Despertar!
06:40 – Organização Pessoal 06:40 – Organização Pessoal
07:00 – Café da Manhã 07:00 – Café da Manhã
07:45 – Reunião dos NB’s (Planejamento) 08:00 – Início das Atividades do Curso
08:00 – Início das Atividades do Curso 10:00 – Intervalo e Cafezinho
10:00 – Intervalo e Cafezinho 10:15 – Retorno para as atividades do Curso
10:15 – Retorno para as atividades do Curso 12:00 – Almoço
12:00 – Almoço 13:00 – Tempo Trabalho (NB’s)
13:00 – Tempo Trabalho (NB’s) 13:30 – Reunião dos NB’s (Avaliação)
13:30 – Reunião das Equipes Permanentes 14:00 – Reunião das Equipes Permanentes
14:00 – Retorno para as atividades do Curso 14:15 – Retorno para as atividades do Curso
16:00 – Intervalo e cafezinho 16:00 – Encerramento e volta pra casa!
16:15 - Retorno para as atividades do Curso
18:30 – Jantar
19:30 – Organização Pessoal
20:00 – Início da Noite Cultural
23:00 – Encerramento da Noite Cultural
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a) Que é mística?
Mística deriva de mistério. Conhecer mais e mais, entrar em comunhão cada vez mais profunda com
a realidade que nos envolve, ir para além de qualquer horizonte, é fazer a experiência do mistério.
Todas as coisas têm seu outro lado. Captar o outro lado das coisas e dar-se conta de que o visível é
parte do invisível: eis a obra da mística.
Mística é a capacidade de se comover diante do mistério de todas as coisas. Não é pensar as coisas,
mas sentir as coisas tão profundamente que percebemos o mistério fascinante que as habita. O que
importa é sentir sua atuação e celebrar a presença desta realidade essencial. Viver esta dimensão
no cotidiano é cultivar a mística.
A mística é alma de um povo. A mística é a alma do sujeito coletivo, a identidade que se revela como
uma paixão, que nos ajuda a ‘sacudir a poeira e dar a volta por cima’.
“Suportarei tudo, sofrerei tudo, porque há em mim uma alegria, que nada nem ninguém conseguirá
jamais matar!” É nessa alegria que está a força dos militantes da causa social, é no sentimento da
certeza de que se luta por algo justo, é na energia interior que lhes impulsiona todo vigor e coragem,
que faz as pessoas suportarem tudo, mesmo a perda de companheiros; é aí que se materializa a
mística,
A mística é o momento de reafirmar o compromisso com os ideais de uma concepção, de difundi-la
socialmente, fortalecê-la politicamente, de consolidá-la e legitimá-la ideologicamente e uma forma
de concretizá-la, aqui e agora.
A mística irriga, pela paixão, a razão e nos ajuda a ser mais humanos, dispostos, e a desafiar
coletivamente nossos limites; nos impulsiona a ir além do esperado, alimenta os valores e nos faz
sentir parte de uma grande família.
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Desenvolver a mística não pode se confundir com um culto ao passado que relembre os momentos
trágicos da história e crie o sentimento da dor e morte sempre presentes, para estimular a cultura
de resistência entre sujeitos de semblantes pesados, sorrisos tristes e punhos cerrados.
É a vida que causa paixão, é pela vida que os seres humanos se movem, é ela que deve ser celebrada.
Que se celebre os lutadores em vida, que se declare o reconhecimento a cada pessoa pelo esforço
de sua luta. Celebrar a vida e a alegria não é esquecer os compromissos da luta por transformações,
é lembrar que, como seres humanos, temos o direito de sorrir e ser feliz.
Observa-se hoje uma conjuntura que vai de um extremo ao outro, da mística ao misticismo. Diante
da mercantilização total da vida cotidiana, a mística corre o perigo de se tornar mercadoria, chavão,
moda. Mística pode significar recitação de poesias, serenata, cantoria, reza; pode ser um olhar
contemplativo à beira de um rio, um ritual festivo na aldeia e êxtase de um monge tibetano.
A mística não é propriedade de nenhuma instituição. A palavra “mística” tem a mesma raiz que a
palavra “mistério”. O mistério não se explica, vive-se, na contemplação e na ação cotidianas. A
mística é como a utopia. Ambas não se deixam aprisionar em conceitos ou definições. Esotéricos e
góticos, santos e militantes, movimentos sociais e comunidades religiosas se apropriam da palavra
“mística”. Uns fazem mística, outros dizem que têm mística, outros, ainda, que são místicos.
Não podemos ter místicas como se tem uma propriedade ou um objeto. Somos místicos. A mística
não pode ser funcionalizada onde tudo é avaliado por sua função ou pela utilidade que tem. Rezar e
fazer poemas não tem utilidade, não tem preço, não pode ser vendido. A mística está no meio de
nós como dom, não como posse. Mas o que não tem preço, pode ter muita dignidade.
Temos mística ou somos místicos? Talvez, temos e fazemos mística e ainda não somos
suficientemente místicos. Ninguém é místico 24 horas por dia. A mística se revela no serviço
desinteressado à causa dos oprimidos e nos faz simples, despojados, leves. Na mística, se vive o fim
da dicotomia entre o campo espiritual e o material; não é luta e contemplação, mas luta na
contemplação ou contemplação na luta. A redução da utopia para um suposto realismo no “aqui e
agora” cria miopia, faz perder a esperança, compromete a fé e enfraquece a solidariedade.
A mística tem dois braços. É mística da terra, da realidade material, da luta e das marchas; e a mística
do transcendente, que se faz carne a cada dia; luta simbólica presente na transfiguração das estrelas,
do céu, da poesia, das canções, dos bonés e das palavras de ordem.
É o conjunto de convicções profundas, as visões grandiosas e as paixões fortes que mobilizam as
pessoas e movimentos na vontade de mudança, ou que inspiram práticas capazes de afrontar
quaisquer dificuldades ou sustentar a esperança face aos fracassos históricos.”
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Repetir no Nordeste um jeito que deu certo no Sul - fica manjado, fora do contexto e, por isso,
cansativo, formal e burocrático;
Evitar a improvisação, mas sem virar tormento para quem coordena.
O importante na expressão pública é a reafirmação dos objetivos e o fortalecimento da
militância. Não existe receita - mas tem que ser participada, curta, simples, atraente, bem feita,
conforme a hora e o grupo. Às vezes, tem o tom de alegria, outras de protesto e de dor; às
vezes, o tom da política; outras a linguagem cultural e a tradição religiosa. Nunca um show para
ser assistido - as pessoas devem sentir-se bem e participantes.
“Tarefeiro cumpre ordens, funcionário trabalha pelo salário, mercenário age para satisfazer seu
interesse individual. A militância se move por um amor indignado contra qualquer forma de
opressão e se entrega de forma apaixonada pelo resgate da vida fraterna, numa sociedade onde
as pessoas se realizem como gente e como povo”.
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É na fé da moçada Eu acredito
Que não foge da fera É na rapaziada!
E enfrenta o leão
Eu vou à luta
Opinião (Zé Keti)
É com essa juventude
Podem me prender, podem me bater
Que não corre da raia
Podem até deixar-me sem comer
À troco de nada
Que eu não mudo de opinião.
Eu vou no bloco
Daqui do morro eu não saio não, daqui do
Dessa mocidade
morro eu não saio não.
Que não tá na saudade
Se não tem àgua, eu furo um poço
E constrói
Se não tem carne, eu compro um osso e
A manhã desejada...
ponho na sopa
Aquele que sabe que é negro
E deixo andar, deixo andar
O coro da gente
Fale de mim quem quiser falar
E segura a batida da vida
Aqui eu não pago aluguel
O ano inteiro
Se eu morrer amanhã, seu doutor
Aquele que sabe o sufoco
Estou pertinho do céu
De um jogo tão duro
Podem me prender, podem me bater
E apesar dos pesares
Podem até deixar-me sem comer
Ainda se orgulha
Que eu não mudo de opinião
De ser brasileiro
Daqui do morro eu não saio não, daqui do
Aquele que sai da batalha
morro eu não saio não...
Entra no botequim
Podem me prender , podem me bater, que
Pede uma cerva gelada
eu não mudo de opinião, que eu não mudo
E agita na mesa logo
de opinião...
Uma batucada
Aquele que manda o pagode
E sacode a poeira Canto Das Três Raças (Clara Nunes)
Suada da luta Ninguém ouviu
E faz a brincadeira Um soluçar de dor
Pois o resto é besteira No canto do Brasil
E nós estamos pelaí Um lamento triste
Sempre ecoou
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Capítulo do Livro “Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados”, de Luiz Bernardo Pericás
e Lincoln Secco (orgs.), publicado pela Editora Boitempo.
Darcy Ribeiro foi um homem de mil faces. Brilhante, inquieto, engraçado, provocativo, polêmico,
ele era um vulcão em permanente ebulição. Dizia de si mesmo:
Eu sou atípico. O Partido Comunista não me quis porque me achava um militante muito agitado, e a
Força Expedicionária Brasileira não me aceitou porque os médicos achavam que eu era muito raquítico
para ser sargento. Eu me entendi com o marechal Rondon e passei dez anos com os índios. Dali fui ser
ministro da Educação, criei a Universidade de Brasília, fui chefe da Casa Civil do Jango, tentei fazer a
reforma de base e caí no exílio. E foi no exílio que escrevi uma larga obra. Nunca gostei de ser político.
No fundo, acho que sou político por razões éticas. Um poeta inglês pode ser só poeta. Mas num país com
o intestino à mostra, como o Brasil, o intelectual tem obrigação de tomar posição. Essa é uma briga séria
e eu estou nessa briga.
Darcy Ribeiro viveu num transe de criação e indignação. Revolucionário nas várias áreas nas
quais atuou, amava intensamente o Brasil. Criticado por muitos, chamado de “gênio da raça” pelo
amigo Glauber Rocha, ele teve a liberdade rara de inventar-se e reinventar-se em mil faces. Em seu
discurso dissonante e heterodoxo, incorporou livremente coisas como o culto popular do Espírito
Santo, o elogio da mestiçagem brasileira e uma profunda vontade de beleza. Por toda a sua vida,
defendeu um socialismo moreno que tivesse repercussões profundas na alma brasileira. A formação
e o futuro do Brasil eram sua obsessão.
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Darcy Ribeiro escreveu continuamente por grande parte dos seus 73 anos – muito bem
vividos. As poltronas de suas casas tinham de ter braços largos para apoiar papel e caneta. Nem a
doença freou seu impulso e sua urgência de dizer o que queria. Escreveu até o último dia de vida,
mesmo devorado por um câncer generalizado. Sua produção intelectual – estudos, ensaios, artigos,
romances – é enorme.
Aos acadêmicos e estudiosos, a tarefa de analisar a obra de Darcy Ribeiro em profundidade,
buscando nela fundamentações e incongruências, comparando, tecendo considerações críticas.
Minha abordagem é necessariamente outra: é a de quem viu, ouviu, conviveu, compartilhou
experiências profissionais e uma amizade profunda.
A liberdade com que certos pensadores cultos se propuseram a percorrer a formação
sociocultural de seus países e a refletir sobre as suas perspectivas pode produzir intuições
reveladoras. Esse é o caso de Darcy Ribeiro. Sem se filiar a nenhuma escola de pensamento, mas
bebendo em muitas fontes e conhecendo em profundidade o país no qual vivia, ele soube reler a
história do Brasil com originalidade e ousou tecer profecias sobre seu futuro.
Darcy investigou o Brasil e os brasileiros, assim como vivenciou e estudou o contexto latino-
americano – que, para ele, guardava uma unidade essencial com o processo civilizatório do Brasil,
apesar dos fatores de diversificação. Foi antropólogo, educador, criador de universidades,
romancista, político.
Fez parte de uma geração de intelectuais e artistas que acreditava firmemente ser possível
construir um projeto cultural abrangente para o Brasil e para a América Latina. Um projeto
destinado a revolucionar as estruturas do país e do continente, e não apenas reformá-las. Em um
discurso proferido no México em 1978, Darcy disse:
A meu ver, o que caracteriza a América Latina de hoje é o súbito descobrimento de que tudo é
questionável. As velhas explicações eram justificações. É necessário repensar tudo... Eu acredito que o
que caracteriza a nossa geração, a geração que começou a atuar depois de 1945, é esta consciência mais
lúcida e mais clara de que o nosso mundo tinha de ser desfeito para ser refeito.
Herdeiros das utopias socialistas e humanistas e do vazio deixado pela visão dos horrores das
duas grandes guerras que abalaram a ordem mundial no século XX, gente como Darcy, Celso
Furtado, Lina Bo Bardi, Mario Schemberg, Vilanova Artigas, Octavio Paz, Alejo Carpentier, Julio
Cortázar, entre muitos outros intelectuais em todo o continente, tinha uma perspectiva ao mesmo
tempo trágica e aguda da realidade e queria nada menos do que o todo. Gente temperada pelo
radicalismo das vanguardas europeias do começo do século, pelo existencialismo de Sartre e, mais
tarde, pelas revoluções sociais de maio de 68 e pelos movimentos beat e hippie. Pela Guerra do
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Vietnã e pela Revolução Cubana. E ávida por conhecer e fazer valorizar as raízes mais profundas da
híbrida formação latino-americana.
Como disse Eduardo Subirats em A penúltima visão do paraíso,
a vanguarda europeia exprimiu fundamentalmente uma angústia existencial com respeito a um passado
que, de um lado, a afogava e, de outro, temia perder... Ao contrário, os “antropófagos” brasileiros [e
latino-americanos] descobriram na própria realidade histórica americana, nas línguas indígenas e nas
expressões artísticas populares aquele princípio criador capaz de gerar o novo em termos formais e em
termos de uma utopia social de sinal emancipador... Mais além da reivindicação de uma realidade
cultural própria, a Antropofagia apontava para um projeto civilizador originalmente americano. [1]
Tratava-se de uma vanguarda local, sim, “mas perfeitamente globalizada e integralmente
civilizada”[2].
Dessa mistura complexa brotaram, no Brasil, coisas tão diversas como o cinema novo, a
poesia concreta, a bossa nova, uma MPB ativa, a Sudene, o Centro Popular de Cultura (CPC), um
teatro radicalmente novo e uma produção acadêmica comprometida com a realidade. Uma série de
caminhos se abriu também na arquitetura e nas artes plásticas. Formas livres e novas linguagens;
“uma visão radicalmente renovadora da modernidade”, como bem diria Subirats.
Darcy Ribeiro pertencia a essa linhagem. Para ele, fato e mito – contextos e estruturas
simbólicas – formam juntos a tessitura da vida, e qualquer análise que menospreze esse amálgama
será necessariamente incompleta e desinteressante.
Por um lado, seus escritos são o resultado de pesquisa e observação pacientes e aguçadas, e
de uma análise sistemática a respeito dessa experiência planetária única que é o Brasil, sendo,
portanto, fontes riquíssimas de estudo para quem quer conhecer o país. Seus livros de etnologia e
antropologia foram traduzidos e reeditados em inúmeras línguas, recebendo Darcy títulos de
doutor honoris causa em algumas das mais importantes universidades do mundo.
Ao mesmo tempo, sua obra nos faz refletir sobre a possibilidade de criar de forma livre e
descolonizada, sem complexo de inferioridade em relação aos pensadores da moda. Para Darcy,
nenhum modelo poderá jamais explicar o Brasil – país dotado e promissor “que deu e não deu
certo”. Por isso, é necessário conhecê-lo para poder reinventá-lo, sem perder de vista o que a
formação brasileira nos legou, com sua potência criadora.
A academia brasileira – principalmente a paulista – sempre olhou com reserva e ceticismo
para o pensamento independente e totalizante de Darcy Ribeiro. Muitas são também as críticas –
de várias naturezas – em relação à sua atuação política. Darcy foi um dos poucos intelectuais
brasileiros que se engajaram na luta política partidária: foi ministro da Educação e chefe da Casa
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Civil no governo de João Goulart nos anos 1960; candidato a governador no Rio de Janeiro nos anos
1980 pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) de Leonel Brizola; vice-governador e secretário de
Estado no governo Brizola; e morreu senador da República. Ele aceitou os riscos dessa exposição
pública como poucos intelectuais latino-americanos e foi, também por isso, bastante estigmatizado.
Com o golpe de 1964 e a ditadura militar que se instalou no Brasil, todo aquele universo de
renovação foi desmantelado com violência. As repercussões na universidade e na vida intelectual e
artística do país foram brutais, com a prisão, a morte e o exílio de muitos dos melhores quadros
dessa geração. Ao lado de vários outros, Darcy Ribeiro, então chefe da Casa Civil do governo
reformista de Jango, foi preso e exilado, sendo obrigado a peregrinar por muitos anos em diversos
países da América Latina. Os anos de chumbo que se seguiram deixaram marcas profundas na
cultura e na educação brasileiras. E as novas gerações que se formaram a partir de então – vítimas
de uma universidade cerceada e de uma mídia censurada – pouco sabem sobre as ambições e o
significado profundo do pensamento de tantas cabeças ilustres e brilhantes que, por décadas,
sonharam em reinventar o país.
Em Darcy Ribeiro, o pensamento e a ação engajada foram moldados por essa época confusa
e profícua. Mas também por sua trajetória pessoal de mineiro de Montes Claros – região marcada
por grandes desigualdades sociais e por um imaginário muito rico (poderosamente descrito por
Guimarães Rosa).
Darcy Ribeiro nasceu em 26 de outubro de 1922 em Montes Claros, no Vale do Rio São
Francisco, porta de entrada do sertão nordestino. Em 1946, licenciou-se em Ciências Sociais pela
Escola de Sociologia e Política de São Paulo, especializando-se em Antropologia sob a orientação de
Herbert Baldus. Nesse mesmo ano, Darcy casa-se com Berta Gleizer Ribeiro, com quem viveria e
trabalharia por muitos anos.
Como antropólogo/etnólogo, e fortemente inspirado pelas ideias do marechal Cândido
Rondon, com quem trabalhou por longo período, Darcy viveu por dez anos entre os índios
brasileiros, decifrando seu modo de existir e pensar; criou o Museu do Índio, primeira instituição
brasileira “projetada para lutar contra o preconceito contra o índio, que descrevia o índio como
canibal, preguiçoso, violento”; escreveu seus impressionantes Estudos de antropologia da
civilização (seis volumes, com quase 2 mil páginas); além de ter criado, com Eduardo Galvão e os
irmãos Villas-Boas, o revolucionário Parque Nacional do Xingu.
Em 1955, Darcy organizou o primeiro curso de pós-graduação em Antropolgia Cultural no
Brasil para a formação de pesquisadores. Sob sua orientação, o Museu do Índio produziu vasta
documentação fotográfica e cinematográfica sobre a vida dos índios Kaapor, dos Bororo e dos índios
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num país tão grande, tão cheio de verde, tenha tanta gente com fome?... O Brasil não tem nenhum bezerro
abandonado, não tem nenhum cabrito abandonado, nenhum frango. Todo frango tem um dono. Mas tem
milhões de crianças abandonadas. Quando uma sociedade perde seu nervo ético, perde seu amor, seu
apego por suas crianças, que são a sua reprodução, é uma enfermidade tremenda.
Quem hoje quer ouvir essa música que arde e segue incomodando? Como disse uma vez
Aílton Krenak, “Por que o Darcy causava tanto desconforto e raiva? Qual universidade dá chance
para alguma coisa do Darcy no Brasil? Parece que eles o exilaram mais de uma vez. Eles o exilaram
vivo e aproveitaram que ele morreu e o exilaram de novo”.
Uma geração que fracassou em sua “cruzada heroica e redentora da modernização”? Sim e
não. Darcy Ribeiro afirmou várias vezes, referindo-se a suas lutas pelos índios, pela educação, pela
democracia: “Fracassei na maioria das propostas que defendi. Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
O temperamento vulcânico de Darcy produziu intuições em ritmo e quantidade
avassaladores, e a urgência de dizer coisas, ao lado da angústia da proximidade da velhice e da
morte, fez com que ele, em certos momentos, desdenhasse de certo tratamento do texto e um rigor
maior. Darcy se permitia generalizações, brincadeiras e incongruências que deixam arrepiados
muitos pensadores. Era amigo das grandes imagens que o tornassem compreensível por todos.
Achava que pouca gente conhecia o Brasil e os brasileiros e, na sua ambição “meio iluminista”,
acreditava poder contribuir para “desasnar” jovens e velhos, como ele dizia.
Sua obra – em parte esgotada e desconhecida – é estimulante, e não apenas como uma das
notáveis expressões de uma época profícua da produção intelectual no país. É também horizonte
aberto para pensar o Brasil contemporâneo, que até agora não superou grande parte dos problemas
e das questões nela apontados.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Por estar convencido desse elemento idiossincrático do brasileiro, Darcy acreditava que uma
única abordagem teórica seria incapaz de captar o ethos dessa gente, daí sua clara opção pelo
ecletismo teórico-metodológico, que acabou lhe custando muito caro, especialmente entre a
comunidade acadêmica paulista, dividida entre a abordagem culturalista anglo-saxã e a forte
herança estruturalista deixada por Claude Lévy-Strauss na formação da Universidade de São Paulo
(USP), na primeira metade do século XX.
De acordo com José Maurício Arruti, a leitura dos cadernos conhecidos como Grundrisse de
Karl Marx (publicados na União Soviética em 1939-1941) impactou o antropólogo[3], que acatou a
sugestão contida nesses manuscritos, em especial aqueles referentes às formações econômicas pré-
capitalistas, de que era possível mais de uma via de desenvolvimento nos processos civilizacionais.
Assim, O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural, escrito no período de exílio
após o golpe de 1964, procurava apontar como aquela ruptura com os grupos humanos arcaicos,
indicada por Marx nos seus manuscritos anteriores a O capital – conduzindo à civilização escravista
greco-romana e ao modo de produção asiático –, poderia ser útil para compreender outras formas
de desenvolvimento social, tal qual achava que era a civilização formada entre os trópicos.
Mas essa simpatia pelas teses marxianas nunca indicou adesão incondicional ao marxismo,
principalmente na versão adotada pela seção nacional do Partido Comunista Brasileiro (PCB). No
Prefácio à quarta edição venezuelana de O processo civilizatório, diz Darcy Ribeiro:
[…] um conhecido intelectual marxista […] deu um parecer arrasador sobre O processo civilizatório.
Dizia ele que o autor, etnólogo de índios, brasileiro, que não era nem sequer marxista, pretendia nada
menos que reescrever a teoria da história, o que equivalia, pensava ele, a inventar o moto-contínuo. O
diabo é que eu pretendia mesmo![4]
Aqui podemos notar duas características já mencionadas de sua personalidade e de seu
projeto: inconformidade com rígidas estruturas analíticas e uma clara intenção de produzir uma
ciência social desde o terreno latino-americano, sem vassalagem aos paradigmas do Norte. Nesse
sentido, via-se próximo de autores como Gilberto Freyre, Câmara Cascudo e Sérgio Buarque de
Holanda, que percebiam na formação do Brasil traços que lhe eram muito particulares, mesmo
entre os vizinhos hispânicos. É desses autores da primeira metade do século XX, questionadores do
“carma ibérico” (a crença segundo a qual nosso subdesenvolvimento era fruto do atraso dos
portugueses, índios e africanos), que Darcy buscará inspiração para defender a cultura brasileira
como uma nova e original forma de humanidade, capaz de superar os modelos antigos herdados no
Velho Mundo.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Esse difícil diálogo com os pares talvez explique a energia orientada por décadas no campo das
políticas públicas de educação.
Mas além da questão da evolução outro motivo que o levou a certo isolamento na
comunidade dos etnólogos brasileiros foi o fato de se negar a ficar circunscrito ao exótico e ao local,
que a seu ver era o erro de muitos de seus colegas de ofício.
Esses meus colegas têm um irresistível pendor barbarológico e um apego a toda conduta desviante e
bizarra. Dedicam seu parco talento a quanto tema bizarro lhes caia em mãos, negando-se sempre,
aparvalhados, a usar suas forças para entender a nós mesmos, fazendo antropologias da civilização.[9]
Suas citadas passagens pelo Ministério da Educação e Cultura, pelo governo Leonel Brizola,
no Rio de Janeiro, na criação da UnB e nos Cieps estavam em consonância com essa perspectiva de
desenvolver uma nova práxis nacional – a formação de uma nova civilização exigia uma nova forma
de pensar, e o acesso à educação garantiria esse novo pensar, tão caboclo e eclético quanto o povo.
O livro que ele julgava ser a coroação de suas reflexões de décadas foi O povo brasileiro: a
formação e o sentido do Brasil, que seguia também a trilha da reconstrução histórico/evolutiva
daquilo que seria o Brasil. A leitura do Prefácio indica um pensador que sabia estar no crepúsculo
da vida, mas antes dever legar às novas gerações uma interpretação do país que tanto amou. Ali
não só faz uma retrospectiva dos livros que antecederam O povo brasileiro, como também anuncia
o conceito que atravessa toda a sua obra, o de “transfiguração étnica”, um processo pelo qual os
povos surgem, transformam-se e morrem.
Então, mesmo tributário de autores que procuraram atribuir um sentido positivo à
mestiçagem brasileira, como o citado Gilberto Freyre (aliás, num debate de titãs com outros pesos-
pesados do nosso pensamento social, como Euclides da Cunha e Oliveira Viana), nunca negou as
dores do parto da nação. Pelo contrário, destacou nessa e em outras obras a violência que guiou o
projeto civilizatório lusitano:
Os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis horrorizados com a bruteza e a
desumanidade dessa gente castigadora do gentio materno. Nenhuma designação podia ser mais
apropriada. O termo se referia a uma casta de escravos que os árabes tomavam de seus pais para criar e
adestrar em suas casas-criatórios; [...] podiam alcançar a alta condição de mamelucos se revelassem
talento para o mando e a suserania islâmica sobre a gente de que foram tirados. [10]
Desse modo, de forma perversa, os filhos das índias com os portugueses eram o principal
elemento na empresa da captura dos não brancos – primeiro os índios, depois os negros dos
quilombos. Como sabemos, muitos deles estiveram com Domingos Jorge Velho (sobrinho) no
extermínio de Palmares.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por
excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceraram a
história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. […] Assim, a luta dos Cabanos,
contendo, embora, tensões inter-raciais (brancos versus caboclos), ou classistas
(senhoresversus serviçais), era, em essência, um conflito interétnico, porque ali uma etnia disputava a
hegemonia, querendo dar sua imagem étnica à sociedade. O mesmo ocorre em Palmares, tida
frequentemente como uma luta classista (escravosversus senhores) que se fez, no entanto, no
enfrentamento racial, que por vezes se exibe como seu componente principal.[11]
Aqui vemos que, sem desprezar o componente econômico, o antropólogo olha para os
conflitos de base étnica que levaram à transfiguração das populações nativas e trazidas do outro
lado do Atlântico. E é nessa forma de combinação teórica que vemos aflorar seu explícito ecletismo:
usa Marx, mas não perdoa o serviçalismo do PCB ante Moscou; usa Freyre, mas não poupa sua
abordagem idílica na relação entre a casa-grande e a senzala:
Gilberto Freyre se enlanguece, descrevendo a atração que exercia a mulher morena sobre o português,
inspirado nas lendas da moira encantada e até nas reminiscências de uma admiração lusitana à
superioridade cultural e técnica dos seus antigos amos árabes. Essas observações podem até ser
verdadeiras e são, seguramente, atrativas como bizarrices. Ocorre, porém, que são totalmente
desnecessárias para explicar um intercurso sexual que sempre se deu no mundo inteiro, onde quer que o
europeu deparasse com gente de cor em ausência de mulheres brancas. [12]
Para Darcy Ribeiro, a marca da nacionalidade reside exatamente neste ponto: a violência do
europeu serviu para desenraizar, por meio da cultura e da miscigenação, os componentes indígenas
e africanos, tornando-os “ninguém” – já não serviam para ser índios, ou nem se viam mais como
africanos, e muito menos eram considerados brancos.
Mas, se esse havia sido o destino dos povos indígenas e africanos que foram triturados ao
longo da nossa história, também essas vicissitudes desencadearam um processo “criatório de
gente”, que conduziria o país à condição de uma nova Roma:
Uma Roma tardia e tropical. [...] Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais
humanidades. Mais generosa, porque aberta a convivência com todas as raças e todas as culturas e
porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra. [13]
Temos então a crença inabalável de um intelectual-militante que nunca duvidou das virtudes
de um povo gestado a ferro e sangue, que ao final poderia ser a antítese de todos os particularismos
e xenofobias que grassaram o século XX. As benesses da natureza, associadas a um povo em
permanente formação e capaz de incorporar e recriar o elemento exógeno, seriam as garantias
dessa nova civilização.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Fica evidente, nessa rápida aproximação à obra de Darcy Ribeiro, que existem flancos
descobertos passíveis de críticas. Não só os já citados evolucionismo e ecletismo, ou ainda o
otimismo ao nível do paroxismo quanto ao destino do país, além da forma como conduziu a
elaboração e promulgação das Leis de Diretrizes e Bases da Educação, criticado à época devido ao
pouco diálogo com os diversos setores envolvidos.
Por isso vale a pena sugerir a leitura do seu último livro, preparado no mesmo período de O
povo brasileiro, após sua fuga do tratamento hospitalar – trata-se de sua autobiografia Confissões,
título não por coincidência homônimo ao de Santo Agostinho, além do de Rousseau.
Ali, ele procura descrever sua infância e formação nas Minas Gerais, o que torna clara, por
exemplo, sua predileção pelos neologismos e termos usados pelo povo simples, no melhor estilo
Guimarães Rosa (“fazimento”, “ninguendade”). Descreve suas alegrias e desencontros na
universidade, no Executivo e no Legislativo, suas amizades, seu combate à doença, seu gosto pelas
letras e por “contação” de histórias, além da obsessão de toda vida, uma explicação sobre o Brasil
e o destino do país. Ele reconhece ali, enfim, a dificuldade de usar o arcabouço conceitual que nos
foi legado para essa empreitada, muito em função de berço eurocentrista, mas indica que é trabalho
do qual não se deve fugir. Nem mesmo quando o fim se aproxima:
A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: “Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do
que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida, bem vivida. Essa é, aqui e agora, a
nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes e gozos. Apagados, minerais.
Para sempre mortos”.[14]
Esse era Darcy Ribeiro: antropólogo, educador, político, mas acima de tudo um apaixonado.
[a] Para registro de autoria, a primeira parte foi escrita por Isa Grinspum Ferraz e a segunda por Agnaldo
dos Santos, ambos especialmente para esta coletânea e em diálogo a fim de abarcar com rigor a vida e as
múltiplas facetas da obra de Darcy Ribeiro. (N. E.)
[1] Trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Studio Nobel, 2001, p. 158.
[2] Ibidem, p. 156.
[3] Darcy Ribeiro, O processo civilizatório: estudos de antropologia da civilização (col. Grandes Nomes do
Pensamento Brasileiro, São Paulo, Companhia das Letras/Publifolha, 2000), p. 242.
[4] Ibidem, p. xvii.
[5] Ibidem, p. 3.
[6] Ibidem, p. 178.
[7] Ibidem, p. 242-3.
[8] Ibidem, p. xxiii.
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[9] Darcy Ribeiro, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (2. ed., São Paulo, Companhia das
Letras, 1995), p. 15.
[10] Ibidem, p. 107-8.
[11] Ibidem, p. 167.
[12] Ibidem, p. 237.
[13] Ibidem, p. 454-5.
[14] Darcy Ribeiro, Confissões (São Paulo, Companhia das Letras, 1997).
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Estudo o sistema da economia burguesa nesta ordem: capital, propriedade do solo, trabalho
assalariado, Estado, comércio exterior, mercado mundial. Sob os três primeiros títulos, investigo as
condições econômicas de vida de três grandes classes em que se divide a moderna sociedade
burguesa; a conexão entre os três títulos restante salta à vista. A primeira seção do livro primeiro
que trata do capital, contém os seguintes capítulos: 1) a mercadoria; 2) o dinheiro ou circulação
simples; 3) o capital, em geral. Os dois primeiros capítulos formam o conteúdo do presente fascículo.
Tenho diante de mim todos os materiais da obra na forma de monografias, redigidas a grandes
intervalos de tempo para o esclarecimento das minhas próprias idéias e não para publicação; a
elaboração sistemática de todos esses materiais, de acordo com o plano estabelecido, dependerá
de circunstâncias externas.
Embora tenha esboçado urna Introdução geral, prescindo dela, pois bem pensadas as coisas,
creio que adiantar resultados que vão ser demonstrados, seria antes um estorvo, e o leitor que
queria realmente acompanhar-me deverá estar disposto a seguir do particular para o geral. Por
outro lado, parecem-me oportunas aqui algumas referências à trajetória dos meus estudos de
economia política.
Os meus estudos profissionais eram os de jurisprudência, com que, todavia, só me preocupei
como disciplina secundária, ao lado da filosofia e da história. Em 1842-43, sendo redator da Gazeta
Renana1 vi-me pela primeira vez no difícil transe de ter que opinar sobre os chamados interesses
materiais. Os debates da Dieta renana sobre a destruição furtiva e o parcelamento da propriedade
do solo, a polêmica oficial mantida entre o sr. von Schaper, na ocasião governador da província
renana, e a Gazeta Renana sobre a situação dos camponeses do Mosela e, finalmente, os debates
sobre o livre câmbio e o protecionismo levaram-me a ocupar-me pela primeira vez de questões
econômicas. Por outro lado, naqueles tempos em que o bom desejo de 'marchar na vanguarda"
superava de muito o conhecimento da matéria, a Gazeta Renana deixava transparecer um eco do
socialismo e do comunismo, francês, tingido de um leve matiz filosófico. Declarei-me contra aqueles
embustes, m confessando ao mesmo tempo, de modo categórico, numa controvérsia com a Gazeta
Geral de Augsburgo2, que os meus estudos até então não me permitiam aventurar nenhum juízo
sobre o conteúdo propriamente dito das tendências francesas. Em vez disso, aproveitei avidamente
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
a ilusão dos gerentes da Gazeta Renana, que acreditavam que, suavizando a atitude do periódico,
conseguiriam a revogação da sentença de morte já decretada contra ele, para retirar-me da cena
pública para meu quarto de estudo.
O meu primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi uma
revisão crítica da filosofia hegeliana do direito, trabalho cuja introdução veio a lume em 1844, nos
Anais Franco-Alemães3, que se publicavam em Paris. A minha investigação desembocava no
resultado de, que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas se
baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, seguindo o
precedente dos ingleses ou franceses do século XVIII, sob o nome de "sociedade civil", e que a
anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia política. Em Bruxelas, para onde me
transferi, em virtude de uma ordem de expulsão imposta pelo sr. Guizot, tive ocasião de prosseguir
nos meus estudos de economia política, Iniciados em Paris. O resultado geral a que cheguei e que,
uma vez obtido, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode resumir-se assim: na produção social
da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua
vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das
suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à
qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida
material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do
homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua
consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais
da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a
elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se,
mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela. Quando se estudam
essas revoluções, é preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições
econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais,
e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas
ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo. E do
mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos
tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção. Nenhuma formação social desaparece antes que se
desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de pr6dução
novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições
materiais para a sua existência. Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que
pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre, que esses objetivos só brotam quando já
existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a rua realização. A grandes
traços podemos designar como outras tantas épocas de progresso, na formação econômica da
sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o moderno burguês. As relações
burguesas de produção são a última forma antagônica do processo social de produção, antagônica,
não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que provém das condições
sociais de vida dos indivíduos. As forças produtivas, porém, que se desenvolvem no selo da
sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a solução desse
antagonismo. Com esta formação social se encerra, portanto, a pré-história da sociedade humana.
Engels, com quem mantive constante intercâmbio escrito, de idéias, desde a publicação do seu
genial esboço sobre a crítica das categorias econômicas (nos Anais Franco-Alemães), havia chegado
por caminho diferente (veja-se o seu livro A Situação da Classe Operária na Inglaterra) ao mesmo
resultado que eu. E quando, na primavera de 1845, ele se estabeleceu também em Bruxelas,
resolvemos trabalhar em conjunto para opor o nosso ponto de vista ao ponto de vista Ideológico da
filosofia alemã; na realidade, liquidar com a nossa consciência filosófica anterior. 0 propósitos foi
realizado sob a forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito - dois grossos volumes
in octavo4 - já estava há muito tempo na Vestfália, no lugar em que deveria ser editado, quando nos
inteiramos de que novas circunstâncias imprevistas Impediam a sua publicação. Em vista disso,
entregamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, de muito bom grado, pois o nosso objetivo
principal- esclarecer as nossas próprias idéias, já estava alcançado. Entre os trabalhos dispersos em
que, por aquela época, expusemos ao público as nossas idéias, sob vários aspectos, só citarei o
Manifesto do Partido Comunista, redigido em colaboração por Engels e por mim, e um Discurso
Sobre o Livre Câmbio, que publiquei. Os pontos decisivos da nossa concepção foram expostos pela
primeira vez, cientificamente, embora só em forma polêmica, na obra Miséria da Filosofia, etc.,
publicada por mim em 1847 e dirigida contra Proudhon. A publicação de um estudo escrito em
alemão sobre o Trabalho Assalariado, que reunia as conferências pronunciadas por mim sobre este
tema, na Associação Operária Alemã de Bruxelas, foi interrompida pela Revolução de Fevereiro, que
trouxe como conseqüência o meu afastamento forçado da Bélgica.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Londres, Janeiro de 1859. Publicado no livro de K. Marx Contribuição à Crítica da Economia Política.
Editado em Berlim em 1859. Publica-se de acordo com a edição soviética de 1931, em espanhol,
cujo texto foi traduzido da edição de 1859. Traduzido do espanhol.
______________
1
Reich Zeitung - Diário radical publicado em Colônia em 1842-1843. Marx foi seu redator-chefe de 15 de outubro de
1842 a 18 de março de 1843 (N. da R.)
2
Marx se refere aqui ao seu artigo O Comunismo e a “Gazeta Geral de Augsburgo”. Veja-se K. Marx o F. Engels,
Cesamtausgabe, Erste Abt., Bd. I. Frankfurt ª M. 1927, S. 260-265 (N. da R.)
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
3
Deutsch-Franzoesische Jahrbucher - órgão da propaganda revolucionária e comunista, editado por Marx em Paris, no
ano de 1844 (N. da R)
4
Trata-se da obra de Marx e Engels A Ideologia Alem . (N. da R.)
5
New York Daily Tribune - Diário democrático que se publicou em Nova York entre 1841 e 1924. Marx colaborou nele de
1851 a 1862. (N. da R.)
6
“Deixe-se aqui tudo o que é suspeito - Mate-se aqui toda vileza” (Dante - A Divina Comédia) (N. da R.)
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Caráter Inicial e Geral da Formação Econômica Brasileira, por Caio Prado Jr.
Para se compreender o caráter da colonização brasileira é preciso recuar no tempo para antes
do seu início, e indagar das circunstâncias que a determinaram. A expansão marítima dos países da
Europa, depois do séc. XV, expansão de que a descoberta e colonização da América constituem o
capítulo que particularmente nos interessa aqui, se origina de simples empresas comerciais levadas
a efeito pelos navegadores daqueles países. Deriva do desenvolvimento do comércio continental
europeu que até o séc. XIV é quase unicamente terrestre e limitado, por via marítima, a uma
mesquinha navegação costeira e de cabotagem. Como se sabe, a grande rota comercial do mundo
europeu que sai do esfacelamento do Império do Ocidente, é a que liga por terra o Mediterrâneo
ao mar do Norte, desde as repúblicas italianas, através dos Alpes, dos cantões suíços, dos grandes
empórios do Reno, até o estuário do rio onde estão as cidades flamengas. No séc. XIV, mercê de
uma verdadeira revolução na arte de navegar e nos meios de transporte por mar, outra rota ligará
aqueles dois pólos do comércio europeu: será a marítima que contorna o continente pelo estreito
de Gibraltar. Rota que subsidiária a princípio, substituirá afinal a primitiva no grande lugar que ela
ocupava. O primeiro reflexo desta transformação, a princípio imperceptível, mas que se revelará
profunda e revolucionará todo o equilíbrio europeu, foi deslocar a primazia comercial dos territórios
centrais do continente, por onde passava a antiga rota, para aqueles que formam a sua fachada
oceânica, a Holanda, a Inglaterra, a Normandia, a Bretanha, a Península Ibérica.
Este novo equilíbrio firma-se desde princípios do séc. XV. Dele derivará, não só todo um novo
sistema de relações internas do continente como, nas suas consequências mais afastadas, a
expansão européia ultramarina. O primeiro passo estava dado, e a Europa deixará de viver recolhida
sobre si mesma para enfrentar o Oceano. O papel de pioneiro nesta nova etapa caberá aos
portugueses, os melhores situados, geograficamente, no extremo desta península que avança pelo
mar. Enquanto os holandeses, ingleses, normandos e bretões se ocupam na vida comercial recém-
aberta, e que bordeja e envolve pelo mar o ocidente europeu, os portugueses vão mais longe,
procurando empresas em que não encontrassem concorrentes mais antigos já instalados, e para o
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
que contavam com vantagens geográficas apreciáveis: buscarão a costa ocidental da África,
traficando aí com os mouros que dominavam as populações indígenas. Nesta avançada pelo Oceano
descobrirão as Ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açores), e continuarão perlongando o continente negro
para o sul. Tudo isso se passa ainda na primeira metade do séc. XV. Lá por meados dele, começa a
se desenhar um plano mais amplo: atingir o Oriente contornando a África. Seria abrir para seu
proveito uma rota que os poria em contacto direto com as opulentas Índias das preciosas
especiarias, cujo comércio fazia a riqueza das repúblicas italianas e dos mouros, por cujas mãos
transitavam até o Mediterrâneo. Não é preciso repetir aqui o que foi o périplo africano, realizado
afinal depois de tenazes e sistemáticos esforços de meio século.
Atrás dos portugueses lançam-se os espanhóis. Escolheram outra rota: pelo Ocidente, ao invés
do Oriente. Descobrirão a América, seguidos de perto pelos portugueses que também toparão com
o novo continente. Virão depois dos países peninsulares, os franceses, ingleses, holandeses, até
dinamarqueses e suecos. A grande navegação oceânica estava aberta, e todos procuravam tirar
partido dela. Só ficarão atrás aqueles que dominavam o antigo sistema comercial terrestre ou
mediterrâneo, e cujas rotas iam passando para o segundo plano: mal situados geograficamente com
relação às novas rotas, e presos a um passado que ainda pesava sobre eles, serão os retardatários
da nova ordem. A Alemanha e a Itália passarão para um plano secundário a par dos novos astros
que se levantavam no horizonte: os países ibéricos, a Inglaterra, a França, a Holanda.
Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era a que se convencionou
com razão chamar de "descobrimentos", articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo
da história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a
que se dedicam os países da Europa a partir do séc. XV e que lhes alargará o horizonte pelo Oceano
afora. Não têm outro caráter a exploração da costa africana e o descobrimento e a colonização das
Ilhas pelos portugueses, o roteiro das índias, o descobrimento da América, a exploração e ocupação
de seus vários setores. É este último o capítulo que mais nos interessa aqui; mas não será, em sua
essência, diferente dos outros. É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão
cada uma daquelas empresas que lhes proporcionarão sua iniciativa, seus esforços, o acaso e as
circunstâncias do momento em que se achavam. Os portugueses traficarão na costa africana com
marfim, ouro, escravos; na Índia irão buscar especiarias. Para concorrer com eles, os espanhóis,
seguidos de perto pelos ingleses, franceses e demais, procurarão outro caminho para o Oriente; a
América, com que toparam nesta pesquisa, não foi para eles, a princípio, senão um obstáculo oposto
à realização de seus planos e que devia ser contornado. Todos os esforços se orientam então no
sentido de encontrar uma passagem cuja existência se admitiu a priori. Os espanhóis, situados nas
41
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
1
Também se tentou, a partir de meados do séc. XVI, a passagem para o Oriente pelas regiões árticas, a Europa e Ásia.
A iniciativa cabe ao mesmo Sebastião Cabôto, que já encontramos na América, e mais uma vez a serviço dos ingleses
(1553).
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2
Se excetuarmos, quase em nossos dias, o rush da Califórnia e do Alasca.
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ou menor sucesso daquelas atividades. Viria depois, em substituição, uma base econômica mais
estável, mais ampla: seria a agricultura.
Não é meu intuito entrar aqui nos pormenores e vicissitudes da colonização européia na
América. Mas podemos, e isto muito interessa nosso assunto, distinguir duas áreas diversas, além
daquela em que se verificou a ocorrência de metais preciosos, em que a colonização toma rumos
inteiramente diversos. São elas as que correspondem respectivamente às zonas temperada, de um
lado, tropical e subtropical, do outro. A primeira, que compreende grosseiramente o território
americano ao norte da Baía de Delaware (a outra extremidade temperada do continente, hoje
países platinos e Chile, esperará muito tempo antes de tomar forma e significar alguma coisa), não
ofereceu realmente nada de muito interessante, e permanecerá, ainda por muito tempo, adstrita à
exploração de produtos espontâneos: madeiras, peles, pesca. Na Nova Inglaterra, nos primeiros
anos da colonização, viam-se até com maus olhos quaisquer tentativas de agricultura que desviavam
das feitorias de peles e pesca as atividades dos poucos colonos presentes. Se esta área temperada
se povoou, o que aliás só ocorre depois do séc. XVII, foi por circunstâncias muito especiais. É a
situação interna da Europa, em particular da Inglaterra, as suas lutas político-religiosas que desviam
para a América as atenções de populações que não se sentem à vontade e vão procurar ali abrigo e
paz para suas convicções. Isto durará muito tempo; pode-se mesmo assimilar o fato, idêntico no
fundo, a um processo que se prolongará, embora com intensidade variável, até os tempos
modernos, o século passado. Virão para a América puritanos e quakers da Inglaterra, huguenotes
da França, mais tarde morávios, schwenkjelders, inspiracionalistas e menonitas da Alemanha
meridional e Suíça. Durante mais de dois séculos despejar-se-á na América todo o resíduo das lutas
político-religiosas da Europa. É certo que se espalhará por todas as colônias; até no Brasil, tanto
afastado e por isso tanto mais ignorado, procurarão refugiar-se huguenotes franceses (França
Antártica, no Rio de Janeiro). Mas concentrar-se-á quase inteiramente nas da zona temperada, de
condições naturais mais afins às da Europa, e por isso preferidas para quem não buscava "fazer a
América", mas unicamente abrigar-se dos vendavais políticos que varriam a Europa e reconstruir
um lar desfeito ou ameaçado. Há um fator econômico que também concorre na Europa para este
tipo de emigração. É a transformação econômica sofrida pela Inglaterra no correr do séc. XVI, e que
modifica profundamente o equilíbrio interno do país e a distribuição de sua população. Esta é
deslocada em massa dos campos, que de cultivados se transformam em pastagens para carneiros
cuja lã iria abastecer a nascente indústria têxtil inglesa. Constitui-se aí uma fonte de correntes
migratórias que abandonam o campo e vão encontrar na América, que começa a ser conhecida, um
largo centro de afluência. Também estes elementos escolherão, de preferência e por motivos
44
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
similares, as colônias temperadas. Os que se dirigem mais para o sul, para as colônias incluídas na
zona subtropical da América do Norte, porque nem sempre lhes foi dado escolher seu destino com
conhecimento de causa, fá-lo-ão apenas, no mais das vezes, provisoriamente; o maior número deles
refluirá mais tarde, e na medida do possível, para as colônias temperadas. São assim circunstâncias
especiais que não têm relação direta com ambições de traficantes ou aventureiros, que promoverão
a ocupação intensiva e o povoamento em larga escala da zona temperada da América.
Circunstâncias aliás que surgem posteriormente ao descobrimento do novo continente, e que não
se filiam à ordem geral e primitiva de acontecimentos que impelem os povos da Europa para o
ultramar. Daí derivará também um novo tipo de colonização que tomará um caráter inteiramente
apartado dos objetivos comerciais até então dominantes neste gênero de empresas. O que os
colonos desta categoria têm em vista é construir um novo mundo, uma sociedade que lhes ofereça
garantias que no continente de origem já não lhes são mais dadas. Seja por motivos religiosos ou
meramente econômicos (estes impulsos aliás se entrelaçam e sobrepõem), a sua subsistência se
tornara lá impossível ou muito difícil. Procuram, então, uma terra ao abrigo das agitações e
transformações da Europa, de que são vítimas, para refazerem nela sua existência comprometida.
O que resultará deste povoamento, realizado com tal espírito e num meio físico muito aproximado
do da Europa, será naturalmente uma sociedade que embora com caracteres próprios, terá
semelhança pronunciada com a do continente de onde se origina. Será pouco mais que um simples
prolongamento dele.
Muito diversa é a história da área tropical e subtropical da América. Aqui a ocupação e o
povoamento tomarão outro rumo. Em primeiro lugar, as condições naturais, tão diferentes do
habitat de origem dos povos colonizadores, repelem o colono que vem como simples povoador, da
categoria daquele que procura a zona temperada. Muito se tem exagerado a inadaptabilidade do
branco aos trópicos, meia verdade apenas que os fatos têm demonstrado e redemonstrado falha
em um sem-número de casos. O que há nela de acertado é uma falta de predisposição em raças
formadas em climas mais frios, e por isso afeiçoadas a eles, em suportarem os trópicos e se
comportarem similarmente neles. Mas falta de predisposição apenas, que não é absoluta e se
corrige, pelo menos em gerações subsequentes, por um novo processo de adaptação. Contudo, se
aquela afirmação, posta em termos absolutos, é falsa, não deixa de ser verdadeira no caso vertente,
isto é, nas circunstâncias em que os primeiros povoadores vieram encontrar a América. São trópicos
brutos indevassados que se apresentam, uma natureza hostil e amesquinhadora do homem,
semeada de obstáculos imprevisíveis, sem conta, para o que o colono europeu não estava
preparado e contra o que não contava com defesas suficientes. Aliás, a dificuldade do
45
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
estabelecimento de europeus civilizados nestas terras americanas entregues ainda ao livre jogo da
natureza, é comum também à zona temperada. Respondendo a teorias apressadas e muito em voga
(são as contidas no livro famoso de Turner, The frontier in American History) um recente escritor
norte-americano analisa este fato com grande atenção, e mostra que a colonização inglesa na
América, realizando-se embora numa zona temperada, só progrediu à custa de um processo de
seleção de que resultou um tipo de pioneiro, o característico ianque, que dotado de aptidão e
técnica particulares, foi marchando na vanguarda e abrindo caminho para as levas mais recentes de
colonos que afluíam da Europa3. Se assim foi numa zona que afora o fato de estar indevassada, se
aproxima tanto por suas condições naturais do meio europeu, que não seria dos trópicos?
Para estabelecer-se aí o colono tinha que encontrar estímulos diferentes e mais fortes que os
que o impelem para as zonas temperadas. De fato assim aconteceu, embora em circunstâncias
especiais que, por isso, também particularizarão o tipo de colono branco dos trópicos. A diversidade
de condições naturais, em comparação com a Europa, que acabamos de ver como um empecilho ao
povoamento, revelar-se-ia por outro lado um forte estímulo. É que tais condições proporcionarão
aos países da Europa a possibilidade da obtenção de gêneros que lá fazem falta. E gêneros de
particular atrativo. Coloquemo-nos naquela Europa anterior ao séc. XVI, isolada dos trópicos, só
indireta e longinquamente acessíveis, e imaginemo-la, como de fato estava, privada quase
inteiramente de produtos que se hoje pela sua banalidade, parecem secundários, eram tão
prezados como requintes de luxo. Tome-se o caso do açúcar, que embora se cultivasse em pequena
escala na Sicília, era artigo de grande raridade e muita procura; até nos enxovais de rainhas ele
chegou a figurar como dote precioso e altamente prezado. A pimenta, importada do Oriente,
constituiu durante séculos o principal ramo do comércio das repúblicas mercadoras italianas, e a
grande e árdua rota das índias não serviu muito tempo para outra coisa mais que para abastecer
dela a Europa. O tabaco, originário da América, e por isso ignorado antes do descobrimento, não
teria, depois de conhecido, menor importância. E não será este também, mais tarde, o caso do anil,
do arroz, do algodão e de tantos outros gêneros tropicais?
Isto nos dá a medida do que representariam os trópicos como atrativo para a fria Europa,
situada tão longe deles. A América por-lhe-ia à disposição, em tratos imensos, territórios que só
esperavam a iniciativa e o esforço do homem. É isto que estimulará a ocupação dos trópicos
americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu não traria com ele a disposição
de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como
3
Marcus Lee Hansen, The immigrant in American History — veja-se o capítulo Immi-gration and Expansión.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Nas demais colônias tropicais, inclusive no Brasil, não se chegou nem a ensaiar o trabalhador
branco. Isto porque nem na Espanha, nem em Portugal, a quem pertencia a maioria delas, havia,
como na Inglaterra, braços disponíveis e dispostos a emigrar a qualquer preço. Em Portugal, a
população era tão insuficiente que a maior parte do seu território se achava ainda, em meados do
séc. XVI, inculto e abandonado; faltavam braços por toda parte, e em-pregava-se em escala
crescente mão de obra escrava, primeiro dos mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga
dominação árabe, como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princípios do séc.
XV para seus domínios do norte da África; como depois, de negros africanos, que começam a afluir
para o reino desde meados daquele século. Lá por volta de 1550, cerca de 10% da população de
Lisboa era constituída de escravos negros. Nada havia, portanto, que provocasse no Reino um êxodo
da população; e é sabido como as expedições do Oriente depauperaram o país, datando de então,
e atribuível em grande parte a esta causa, a precoce decadência lusitana.
Além disso, portugueses e espanhóis, particularmente estes últimos, encontram nas suas
colônias indígenas que se puderam aproveitar como trabalhadores. Finalmente, os portugueses
tinham sido os precursores desta feição particular do mundo moderno: a escravidão de negros
africanos; e dominavam os territórios que os forneciam. Adotaram-na por isso, em sua colina, quase
de início — possivelmente de início mesmo —, precedendo os ingleses, sempre imitadores
retardatários, de quase um século.4
Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs
da zona temperada. Enquanto nestas se constituirão colônias propriamente de povoamento (o
nome ficou consagrado depois do trabalho clássico de Leroy Beaulieu, De la colonisation chez les
peuples modernes) escoadouro para excessos demográficos da Europa, que reconstituem no novo
mundo uma organização e uma sociedade à semelhança do seu modelo e origem europeus; nos
trópicos, pelo contrário, surgirá um tipo de sociedade inteiramente original. Não será a simples
feitoria comercial que já vimos irrealizável na América. Mas conservará, no entanto, um acentuado
caráter mercantil; será a empresa do colono branco que reúne à natureza pródiga em recursos
aproveitáveis para a produção de gêneros de grande valor comercial, o trabalho recrutado entre
raças inferiores que domina: indígenas ou negros africanos importados. Há um ajustamento entre
os tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início da expansão ultramarina da Europa, e que
são conservados, e as novas condições em que se realizará a empresa. Aqueles objetivos, que vemos
4
Não se sabe ao certo quando chegaram os primeiros negros ao Brasil; há grandes probabilidades de terem vindo já
na primeira expedição colonizadora em 1531. Na América do Norte, a primeira leva de escravos africanos foi
introduzida por tra-ficantes holandeses em Jamestown (Virgínia) em 1619.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
passar para o segundo plano nas colônias temperadas, manter-se-ão aqui, e marcarão
profundamente a feição das colônias do nosso tipo, ditando-lhes o destino. No seu conjunto, e vista
no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa
comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela,
destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu.
É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele
explicará os elementos fundamentais, tanto no social como no econômico, da formação e evolução
histórica dos trópicos americanos. Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na
realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e
diamante; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com
tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não
fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo
se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país. Virá o branco
europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão de obra de
que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização
puramente produtora, mercantil, constitu-ir-se-á a colônia brasileira.
Este início, cujo caráter manter-se-á dominante através dos séculos da formação brasileira,
gravar-se-á profunda e totalmente nas feições e na vida do país. Particularmente na sua estrutura
econômica. E prolongar-se-á até nossos dias, em que apenas começamos a livrar-nos deste longo
passado colonial. Tê-lo em vista é compreender o essencial da evolução econômica do Brasil, que
passo agora a analisar.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Introdução da Coleção "A Questão Agrária", publicado pela Editora Expressão Popular em
vários volumes, organizado por João Pedro Stedile
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A carência e a verdadeira ignorância sobre as questões agrárias em nosso país são frutos
dessa submissão colonial, que impediu o desenvolvimento das idéias, das pesquisas e do
pensamento nacional durante os 400 anos de colonialismo.
A história da bibliografia brasileira sobre a questão agrária é muito recente. A rigor, o
primeiro grande debate de idéias e teses que interpretavam, de maneira diferente, as origens e as
características da posse, da propriedade e do uso da terra no Brasil somente aconteceu na década
de 1960. E aconteceu não pelo desenvolvimento da ciência nas universidades, nas academias –
embora as universidades tenham também sido envolvidas por esse debate – mas, sim, pela
necessidade política e sociológica dos partidos políticos.
Antes da década de 1960, surgiram alguns estudos da realidade agrária, pelo viés da historia
econômica. Alguns pensadores realizaram importantes pesquisas sobre a historia econômica de
nosso país e, nesse contexto, trataram do processo de evolução da posse e da propriedade da terra
no Brasil. O primeiro estudo mais sistemático sobre esse tema foi realizado por Roberto Simonsen,
professor da Universidade de São Paulo – USP, um grande intelectual das elites industriais paulistas.
Ele realizou um brilhante estudo da história econômica.5 A obra é um verdadeiro compêndio de suas
aulas de História, ordenadas em uma espécie de guia de estudo, com quase 500 páginas. No seu
conteúdo, o livro nos mostra a interpretação de Simonsen sobre a evolução da questão agrária no
país,6 defendendo a tese de que sempre predominaram relações de produção capitalistas no
desenvolvimento da agricultura brasileira.
Mas foi apenas na década de 1970 que se publicaram diversos estudos sobre a evolução da
questão agrária no Brasil, construindo-se uma interpretação quase consensual do que havia sido a
evolução da posse, da propriedade e do uso da terra, desde o início da colonização aos dias atuais,
em especial a obra que se transformou em um clássico, O escravismo colonial, de Jacob Gorender
(Editora Ática).
5
Publicado pela primeira vez em julho de 1937, com o título de A história econômica do Brasil – 1500-
1820, pela Companhia Editora Nacional.
6
Outros estudos sobre a história econômica do Brasil surgiram na década de 1950, com interpretações mais
apuradas e críticas, como as obras de Celso Furtado, com diversos livros que trataram da formação
econômica do país, e de Caio Prado Júnior, com seu clássico Formação do Brasil Contemporâneo (Editora
Brasiliense).
51
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Tal modelo de produção, sob a égide das leis do capitalismo, produzindo apenas produtos
agrícolas e minerais para o abastecimento do mercado europeu, foi denominado pelos nossos
historiadores de modelo agroexportador. A amplitude desse modelo era tal que, segundo as
primeiras estatísticas macroeconômicas organizadas pelo Banco do Brasil em meados do século 19,
naquela época, a colônia Brasil exportava mais de 80% de tudo o que era produzido em nosso
território.
E, do ponto de vista da organização da produção, qual foi o modelo adotado pelos
colonizadores em nosso território? Durante muitos anos, houve grande polêmica sobre esse
aspecto. Mas, hoje, já há consenso de que o modelo adotado para organizar as unidades de
produção agrícola foi o da plantation, uma palavra de origem inglesa, utilizada por sociólogos e
historiadores para resumir o funcionamento do modelo empregado nas colônias. Jacob Gorender
tentou aportuguesar a expressão, traduzindo-a para “plantagem”. Mas a tradução não se firmou e,
na prática, a maioria dos estudiosos segue utilizando a expressão original em inglês. O que
caracteriza a plantation? É a forma de organizar a produção agrícola em grandes fazendas de área
contínua, praticando a monocultura, ou seja, especializando-se num único produto, destinando-o à
exportação, seja ele a cana-de-açúcar, o cacau, o algodão, gado etc., e utilizando mão-de-obra
escrava. Produzindo apenas para o mercado externo, sua localização deveria estar próxima dos
portos, para diminuir custos com transporte. Essas unidades de produção adotavam modernas
técnicas, ou seja, apesar de utilizarem a força de trabalho da mão-de-obra escrava, do ponto de
vista dos meios de produção, das técnicas de produção, os europeus adotaram o que havia de mais
avançado. Havia também, nessas unidades, a produção de bens para a subsistência dos
trabalhadores escravizados, visando reduzir o seu custo de reprodução, assim como oficinas para a
fabricação e reparo de instrumentos de trabalho.
Em relação à propriedade da terra, a forma adotada pelos europeus foi a do monopólio da
propriedade de todo o território pela Monarquia, pela Coroa. Assim, o fato de a propriedade de
todo o território ter sido exclusiva da Coroa, não havendo propriedade privada da terra, determina
que a propriedade da terra não era capitalista. Porém, para implantar o modelo agroexportador e
estimular os capitalistas a investirem seu capital na produção das mercadorias necessárias para a
exportação, a Coroa optou pela “concessão de uso” com direito à herança. Então, utilizando
diversos critérios políticos e sociológicos, a Coroa entrega, a capitalistas-colonizadores que
dispunham de capital, enormes extensões de terra – que eram medidas em léguas, em geral
delimitadas por grandes acidentes geográficos. Assim, os capitalistas-colonizadores eram
estimulados a investir seu capital no Brasil para a produção de alguma mercadoria para exportação,
54
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
com a Coroa garantindo a posse de imensas extensões de terra para tal finalidade. O critério
fundamental para a seleção dos eleitos pela “concessão de uso” das terras era – muito além do que
simples favores a fidalgos próximos – a disponibilidade de capital e o compromisso de produzir na
colônia mercadorias a serem exportadas para ao mercado europeu.
A “concessão de uso” era de direito hereditário, ou seja, os herdeiros do fazendeiro-
capitalista poderiam continuar com a posse das terras e com a sua exploração. Mas não lhes dava
direito de venderem as terras, ou mesmo de comprarem terras vizinhas. Na essência, não havia
propriedade privada das terras, ou seja, as terras ainda não eram mercadorias.
*
A Lei de Terras está publicada na íntegra nos anexos.
55
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
A Lei no 601, de 1850, foi então o batistério do latifúndio no Brasil. Ela regulamentou e
consolidou o modelo da grande propriedade rural, que é a base legal, até os dias atuais, para a
estrutura injusta da propriedade de terras no Brasil.
Por outro lado, a história das lutas sociais e das revoltas populares registra muitas
mobilizações nesse período. E um dos fatores de desestabilização do modelo agroexportador
baseado na utilização da mão-de-obra do trabalhador escravizado é a revolta deste em relação às
suas condições de vida e de trabalho.
Os trabalhadores escravizados continuaram fugindo, continuaram se rebelando.
Multiplicaram-se os quilombos. Multiplicaram-se, nas cidades, movimentos de apoio ao
abolicionismo. O tema era a grande questão entre os partidos e as elites. Chegou a surgir o
movimento dos Caifases, um movimento clandestino organizado entre os filhos brancos da classe
média urbana, que ajudavam os trabalhadores escravizados a fugiram das senzalas.
Finalmente, em 1888, com a promulgação da Lei Áurea, consolidou-se legalmente aquilo que
já vinha acontecendo na prática. A demora para a abolição legal do trabalho escravo (o Brasil foi o
último país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão) deveu-se aos debates que ocorreram
entre os partidos da elite, no Congresso monárquico, que se reunia no Rio de Janeiro, para
determinar se o Estado, se o governo deveria ou não indenizar os proprietários de escravos por sua
libertação!
Muitos argumentos registrados nos debates sobre a libertação dos escravos e o direito
absoluto que os fazendeiros tinham sobre eles nos fazem lembrar o atual debate que ocorre na
imprensa brasileira, quando os fazendeiros argumentam sobre o seu direito absoluto de
propriedade das terras.
Com a libertação dos trabalhadores escravizados – oficializada pela Lei Áurea, de 1888 – e,
ao mesmo tempo, com o impedimento de os mesmos se transformarem em camponeses, quase
dois milhões de adultos ex-escravos saem das fazendas, das senzalas, abandonando o trabalho
agrícola, e se dirigem para as cidades, em busca de alguma alternativa de sobrevivência, agora
vendendo “livremente” sua força de trabalho. Como ex-escravos, pobres, literalmente despossuídos
de qualquer bem, resta-lhes a única alternativa de buscar sua sobrevivência nas cidades portuárias,
onde pelo menos havia trabalho que exigia apenas força física: carregar e descarregar navios. E, pela
mesma lei de terras, eles foram impedidos de se apossarem de terrenos e, assim, de construírem
suas moradias: os melhores terrenos nas cidades já eram propriedade privada dos capitalistas, dos
comerciantes etc. Esses trabalhadores negros foram, então, à busca do resto, dos piores terrenos,
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
nas regiões íngremes, nos morros, ou nos manguezais, que não interessavam ao capitalista. Assim,
tiveram início as favelas. A lei de terras é também a “mãe” das favelas nas cidades brasileiras.
Aprofunda-se, então, a crise do modelo agroexportador. O modelo plantation chega ao fim
com a abolição do trabalho escravo. A última pá de cal sobre o modelo agroexportador foi a eclosão
da I Guerra Mundial, de 1914-1918, que interrompeu o comércio entre as Américas e a Europa.
A saída encontrada pelas elites para substituir a mão-de-obra escrava foi realizar uma
intensa propaganda na Europa, em especial na Itália, na Alemanha e na Espanha, para atrair os
camponeses pobres excluídos pelo avanço do capitalismo industrial no final do século 19 na Europa.
E, assim, com a promessa do “eldorado”, com terra fértil e barata, a Coroa atraiu para o Brasil, no
período de 1875-1914, mais de 1,6 milhão de camponeses pobres da Europa. Como se pode ver no
anexo, nas estatísticas organizadas por Darcy Ribeiro, há uma coincidência histórica: o número de
migrantes europeus praticamente coincide com o número da última estatística de trabalhadores
escravizados.
Parte dos migrantes foi para o Sul do país, pela maior disponibilidade de terras e pelo clima,
“recebendo” lotes de 25 a 50 hectares; parte foi para São Paulo e para o Rio de Janeiro, não
recebendo terras, mas sendo obrigados a trabalhar nas fazendas de café, sob um novo regime
denominado colonato.
Todos os camponeses colonos que “receberam” terras no Sul tiveram de pagar por elas e
isso os obrigou a se integrarem imediatamente na produção para o mercado. 7
O regime de produção sob a forma de colonato, assim rotulado por sociólogos, foi o
estabelecimento de relações sociais específicas na produção de café, entre os fazendeiros e os
colonos, não se tendo notícia de sua adoção em nenhum outro país. Por esse sistema, os colonos
recebiam a lavoura de café pronta, formada anteriormente pelo trabalho escravo, recebiam uma
casa para moradia e o direito de usar uma área de aproximadamente dois hectares por família, para
o cultivo de produtos de subsistência, e de criar pequenos animais logrando, assim, melhores
condições de sobrevivência. Cada família cuidava de determinado número de pés de café e recebia
por essa mão-de-obra, no final da colheita, o pagamento em produto, ou seja, em café, que poderia
7 Sobre o assunto, há uma vasta bibliografia sobre o tema organizada e/ou produzida pelo
historiador Mário Maestri.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
ser vendido junto, ou separado, com o do patrão. A esse regime de colonato sujeitaram-se milhares
de famílias migrantes, em especial da Itália e da Espanha. 8
A crise seguirá até 1930 e a migração de camponeses europeus é interrompida na I Guerra
Mundial (1914), quando também é interrompido o uso de navios para transporte dos migrantes.
Nesse período de crise, nasceu, então, no campo brasileiro, o campesinato.
Até então, havia apenas trabalhadores escravizados, originários da África ou seqüestrados
das comunidades nativas, indígenas. Podemos observar nos quadros estatísticos anexos,
organizados por Darcy Ribeiro, como, do ponto de vista da população, a adoção do modelo
agroexportador sob o império da plantation foi um verdadeiro genocídio para o povo brasileiro. A
população nativa que já habitava o território, em 1500, era de aproximadamente 5 milhões de
pessoas. Acrescente-se que foram trazidos milhões de trabalhadores escravizados da África e,
depois de 350 anos de exploração, no fim do século 19, havia pouco mais de 5 milhões de
habitantes. Ou seja, foi um grande massacre de nossa população, indígena e negra, pelo capitalista
colonizador europeu, que, sem sua presença, teria se multiplicado aos milhões no mesmo período.
Além do genocídio que representou a morte de milhões de pessoas escravizadas na África, durante
o transporte e na não adaptação ao território.
O surgimento do campesinato se deu em duas vertentes. A primeira, já mencionada, trouxe
quase dois milhões de camponeses pobres da Europa, para habitar e trabalhar na agricultura nas
regiões Sudeste e Sul, do Estado do Espírito Santo para o sul.
A segunda vertente de formação do campesinato brasileiro teve origem nas populações
mestiças que foram se formando ao longo dos 400 anos de colonização, com a miscigenação entre
brancos e negros, negros e índios, índios e brancos, e seus descendentes. Essa população, em geral,
não se submetia ao trabalho escravo e, ao mesmo tempo, não era capitalista, eram trabalhadores
pobres, nascidos aqui. Impedida pela Lei de Terras de 1850 de se transformar em pequenos
proprietários, essa população passou a migrar para o interior do país, pois, nas regiões litorâneas,
as melhores terras já estavam ocupadas pelas fazendas que se dedicavam à exportação. A longa
caminhada para o interior, para o sertão, provocou a ocupação de nosso território por milhares de
trabalhadores, que foram povoando o território e se dedicando a atividades de produção agrícola
de subsistência. Não tinham a propriedade privada da terra, mas a ocupavam, de forma individual
ou coletiva, provocando, assim, o surgimento do camponês brasileiro e de suas comunidades.
8
Também já há uma farta literatura acadêmica com estudos de caso sobre o colonato, que pode ser
pesquisada.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Produto do sertão, local ermo, despovoado, o camponês recebeu o apelido de “sertanejo” e ocupou
todo o interior do território do Nordeste brasileiro e nos Estados de Minas Gerais e de Goiás.
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exportações agrícolas, que geravam divisas para seu pagamento, fechando o ciclo da lógica da
necessidade do capitalismo dependente.
Surge, então, um setor da indústria vinculado à agricultura, as indústrias produtoras de
insumos para a agricultura, como ferramentas, máquinas, adubos químicos, venenos etc. E outro,
da chamada agroindústria, que foi a implantação da indústria de beneficiamento de produtos
agrícolas.
Com esse modelo, começa a surgir também uma burguesia agrária, de grandes proprietários,
que procura modernizar a sua exploração agrícola e destiná-la ao mercado interno. Nasce com o
cultivo do trigo, no Sul, e com a cana, o café, o algodão e outros produtos, também para o mercado
interno. Foi um processo de modernização capitalista da grande propriedade rural9 e, em relação
ao surgimento dos camponeses, é o período histórico em que eles são induzidos a se vincularem
totalmente às regras do mercado e a se integrarem à indústria.
Porém, além de seu caráter de integração no sistema capitalista da industrialização dependente,
o modelo reservou aos camponeses, agricultores familiares, pequenos produtores, ou qualquer
outro nome que a eles se dê, algumas funções claramente determinadas:
a) Os camponeses cumpriram o papel de fornecer mão-de-obra barata para a nascente
indústria na cidade. O êxodo rural era estimulado pela lógica do capitalismo, para que os
filhos dos camponeses – em vez de sonharem com sua reprodução como camponeses, em
vez de lutarem pela terra, pela reforma agrária – se iludissem com os novos empregos e
salários na indústria. Foi, assim, um período histórico em que praticamente todas as famílias
camponesas enviaram seus filhos para as cidades, no Sudeste e no Sul do país, para serem
operários nas fábricas.
b) O êxodo contínuo de mão-de-obra camponesa cumpria também o papel de pressionar para
baixo o salário médio na indústria. Ou seja, havia sempre um exército industrial de reserva
nas portas das fábricas, à espera de emprego. A baixos salários.
c) Os camponeses também cumpriram a função de produzirem, a preços baixos, alimentos
para a cidade, em especial para a nascente classe operária. O Estado brasileiro administrava
rigorosamente os preços dos produtos alimentícios, produzidos pelos camponeses, para que
os mesmos chegassem a preços baixos na cidade. E, com isso, viabilizava a reprodução da
força de trabalho operária, com baixos salários, garantindo que a industrialização brasileira
9
Este tema foi muito bem pesquisado e descrito na tese de doutorado de Jose Graziano da Silva, publicado
pela Editora Zahar, como A modernização dolorosa.
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obtivesse altas taxas de lucro e, assim, crescesse rapidamente. Por essa razão, existe até
hoje uma relação direta entre o preço da cesta básica dos produtos alimentícios de
sobrevivência da classe trabalhadora urbana e o preço da força de trabalho, que é fixado no
salário mínimo.
d) Os camponeses foram induzidos a produzirem matérias-primas agrícolas para o setor
industrial. Surgiu e se desenvolveu, então, o fornecimento de matéria-prima para energia,
carvão, celulose, lenha etc.
Dessa forma, a lógica do modelo de industrialização dependente atuava permanentemente de
forma contraditória e complementar, em que os camponeses, ao mesmo tempo em que se
reproduziam e se multiplicavam enquanto classe, tiveram parcelas crescentes de seus membros,
migrando para as cidades e se transformando em operários.
Na estrutura da propriedade da terra, a lógica contraditória se repetia. Por um lado, havia a
multiplicação de pequenas propriedades, pela compra e venda e reprodução das unidades
familiares. E, por outro lado, em vastas regiões, a grande propriedade capitalista avançava e
concentrava mais terra, mais recursos. E, no geral, havia uma tendência histórica, natural da lógica
de reprodução capitalista, de que a propriedade da terra, que já nasceu em bases latifundiárias,
continuava na média se concentrando ainda mais.
Assim, chegamos à década de 1960, num cenário que apresenta uma agricultura modernizada,
capitalista, e um setor camponês completamente subordinado aos interesses do capital industrial.
Hoje, com um maior distanciamento histórico daquela época e com acesso a muitos estudos e
pesquisas, podemos compreender melhor esse processo de evolução histórica da questão agrária
até 1964. Por outro lado, é nos anos de 1960-1964 que eclode também a primeira crise cíclica desse
modelo de industrialização dependente. E, a exemplo de qualquer crise, sempre surgem períodos
de mobilizações sociais, disputas entre as classes, disputas entre as elites, assim como a busca de
saídas, tanto para a cumulação de capital, quanto para a classe trabalhadora.
E é também nesse cenário de crise cíclica do modelo de industrialização dependente que se
situam a polêmica e os debates realizados sobre a interpretação da questão agrária.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Introdução
O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO brasileiro deu-se, praticamente, no século XX. No entanto,
ao contrário da expectativa de muitos, o universo urbano não superou algumas características dos
períodos colonial e imperial, marcados pela concentração de terra, renda e poder, pelo exercício do
coronelismo ou política do favor e pela aplicação arbitrária da lei.
Pretende-se fazer, aqui, uma leitura da metrópole brasileira do final do século XX,
destacando a relação entre desigualdade social, segregação territorial e meio ambiente, tendo
como pano de fundo alguns autores que refletiram sobre a “formação” da sociedade brasileira, em
especial sobre a marca da modernização com desenvolvimento do atraso.
Destaca-se o papel da aplicação da lei para manutenção de poder concentrado e privilégios,
nas cidades, refletindo e ao mesmo tempo promovendo, a desigualdade social no território urbano.
Nas décadas iniciais do século XX, as cidades brasileiras eram vistas como a possibilidade de
avanço e modernidade em relação ao campo que representava o Brasil arcaico. A proclamação da
República e a abolição da mão-de-obra escrava não superaram a hegemonia agrário-exportadora,
o que viria acontecer apenas após a revolução de 1930. Desde então, o processo de
urbanização/industrialização ganha, com as políticas oficiais, um novo ritmo.
Não é correto afirmar que as Cidades brasileiras não tinham importância no período imperial
ou colonial, como corrige Francisco de Oliveira (Oliveira, 1984). As metrópoles tinham uma
importância especial por seu papel como lugar de financiamento e comercialização dos bens
primários exigidos pelo mercado europeu. Salvador tinha, em 1780, mais de cinqüenta mil
habitantes, somando os moradores do centro e de 21 freguesias, que incluíam os subúrbios (Cedu,
1978). Era a maior metrópole das Américas segundo Milton Santos (Santos, 1993). Apesar dos
grandes e importantes pólos, que representavam o Brasil urbano, até o final do século XIX, a grande
maioria da população permaneceu no campo. A julgar pelas fontes disponíveis, a população urbana
totalizava entre 6,8 a 10% em 1890. A emergência da mão-de-obra livre, em 1888, contribui para
definir o início de um processo, no qual urbanização e industrialização caminhariam juntas sob o
lema positivista da ordem e do progresso. O rumo tomado parecia re- presentar um caminho certo
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pobre vai se instalar: beira de córregos, encostas dos morros, terrenos sujeitos a enchentes ou
outros tipos de riscos, regiões poluídas, ou... áreas de proteção ambiental (onde a vigência de
legislação de proteção e ausência de fiscalização definem a desvalorização).
Durante o regime militar, o Planasa – Plano Nacional de Saneamento Básico, abandonou os
critérios legais de uso e ocupação do solo para estender o fornecimento de água à população até
então não atendida em diversas áreas metropolitanas. A Sabesp, empresa pública responsável pelo
saneamento básico no Estado de São Paulo, ampliou a rede de águas até os loteamentos ilegais,
inclusive aqueles situados em área de proteção dos mananciais, desenvolvendo para isso instalação
de rede formada por elementos leves e de baixo custo. Essa atitude teve repercussão direta na
queda do índice de mortalidade e infantil, objetivo do plano.
Já entre 1989 e 1992, a mesma companhia se recusou a estender a rede de águas a
loteamentos ilegais situados na mesma região de proteção dos mananciais, e que apresentavam
inúmeros casos de hepatite (Jardim Marilda, na Capela do Socorro, município de São Paulo, por
exemplo) sob a argumentação de que o loteamento era ilegal. A mesma dificuldade, a Sabesp
manifestou ao resistir em ligar a rede de água em diversas obras de urbanização de favelas
executadas pela Sehab no período. A legislação pode servir para justificar tanto uma ação como
uma inação.
A ilegalidade em relação à posse da terra parece fornecer, freqüentemente,uma base para
que a exclusão se realize em sua globalidade. Em um estudo que trata da dimensão jurídico-social
de uma favela que o autor chama de Pasárgada, Boaventura de Souza Santos mostra que o medo
do despejo ou de chamar atenção para suas condições de ilegalidade na ocupação da terra, é motivo
(ou um dos motivos) para que os moradores nunca procurem a justiça. A mesma explicação foi dada
pelos moradores para o hábito de a polícia invadir suas casas “quando bem entende” (Souza Santos,
1993, p. 45). A legislação oficial não é seguida na favela e a polícia e os tribunais são vistos como
ameaça (Souza Santos, 1993).
A expressão “nós éramos e somos ilegais” (de um antigo morador da
favela), que, no seu contexto semântico, liga o status de ilegalidade com a própria
condição humana dos habitantes de Pasárgada, pode ser interpretada como
indicação de que nas atitudes destes para com o sistema jurídico nacional, tudo se
passa como se a legalidade da posse da terra repercutisse sobre todas as outras
relações sociais, mesmo sobre aquelas que nada têm com a terra ou com a habitação
(Souza Santos, 1993, p. 45).
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a ocupação do solo. A lógica concentradora da gestão pública urbana não admite a incorporação ao
orçamento público da imensa massa, moradora da cidade ilegal, demandatária de serviços públicos.
Seu desconhecimento se impõe, com exceção de ações pontuais definidas em barganhas políticas
ou períodos pré-eleitorais. Essa situação constitui, portanto, uma inesgotável fonte para o
clientelismo político.
Em 1987, o desmoronamento de diversas encostas ocupadas por loteamentos ilegais na
cidade de Petrópolis, após uma intensa chuva, resultou em tragédia sem precedentes devido ao
número de desabrigados e mortos, os quais passaram de cem em número. Nos anos seguintes, as
mortes por soterramento repetiram-se com freqüência. Lá, como em muitas cidades, a ocupação
ilegal de encostas que apresentam riscos geotécnicos se dá a olhos vistos. O caso mais
impressionante talvez esteja na Serra do Mar junto às rodovias Anchieta e Imigrantes, que ligam
São Paulo à Baixada Santista. A segurança da ocupação fica comprometida não apenas pela
precariedade das construções mas também pelo despejo de lixo nas encostas, pela ausência de
obras de drenagem e pelo encharcamento do terreno promovido pela infiltração de esgotos
provenientes das fossas individuais. Em vez de planejar a remoção da população (cujo custo é
bastante alto) os governos incentivam a ocupação executando um programa de obras pontuais de
iluminação pública e asfaltamento do acesso para a entrada do transporte coletivo.
O poder de polícia sobre o uso das terras públicas urbanas é exercido de forma
discriminatória nos diversos bairros da cidade. Áreas de proteção ambiental, não raramente, são
priorizadas para ocupação pela população pobre, seja nas favelas ou nos loteamentos irregulares,
abertos diante da condescendente (ou inexistente) fiscalização. Não é por ausência de legislação
que tal acontece.
A tolerância pelo Estado em relação à ocupação ilegal, pobre e predatória de áreas de
proteção ambiental ou demais áreas públicas, por parte das camadas populares, está longe de
significar uma política de respeito aos carentes de moradia ou aos direitos humanos. A população
que aí se instala não compromete apenas os recursos que são fundamentais a todos os moradores
da cidade, como é o caso dos mananciais de água. Mas ela se instala sem contar com qualquer
serviço público ou obras de infra-estrutura urbana. Em muitos casos, os problemas de drenagem,
risco de vida por desmoronamentos, obstáculos à instalação de rede de água e esgotos torna
inviável ou extremamente cara a urbanização futura.
Um cenário freqüente resultante dessa dinâmica de ocupação ilegal de áreas de proteção
ambiental é o conflito que opõe a população, que luta para permanecer no local, apoiada por um
parlamentar clientelista, insensível à questão social ou ambiental, ou por um parlamentar
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democrático, perplexo, sensível a ambos os problemas, e que tem, como adversários, o ministério
público e ONGs dedicadas à causa ambientalista.
O que sucede mais freqüentemente, entretanto, é a consolidação das ocupações ilegais em
áreas de proteção ambiental devido ao custo inviável de sua remoção. Os números da ilegalidade
no uso e ocupação do solo na Represa do Guarapiranga, em São Paulo (que serve a necessidade de
água de um terço da população do município) são uma prova definitiva dessa afirmação. Desde a
promulgação da lei de Proteção aos Mananciais (1975) a terra perdeu valor para o mercado
imobiliário legal e passou a ser cada vez mais ocupada por loteamentos ilegais e favelas. Os mapas
que apresentam o uso e a ocupação do solo na Bacia, evidenciam a maciça ilegalidade (UGP/Sema,
1999).
O outro manancial localizado na periferia da metrópole paulistana, a Represa Billings, tem
um diagnóstico de uso e ocupação do solo mais grave do que o da Guarapiranga.
A falta de alternativas habitacionais, seja via mercado privado, seja via políticas públicas
sociais é, evidentemente, o motor que faz o pano de fundo dessa dinâmica de ocupação ilegal e
predatória de terra urbana. A orientação de investimentos dos governos municipais revela um
histórico comprometimento com a captação da renda imobiliária gerada pelas obras (em geral,
viárias), beneficiando grupos vinculados ao prefeito de plantão. Há uma forte disputa pelos
investimentos públicos no contexto de uma sociedade profundamente desigual e historicamente
marcada pelo privilégio e pela privatização da esfera pública.
Para completar esse quadro, é preciso lembrar a intensidade do processo migratório campo
cidade que configura uma reversão demográfica: se aproximadamente 10% da população era
urbana no final do século XIX, no final do século XX aproximadamente 20% dela é rural. Essa grande
massa que se instalou nas cidades, o fez por sua própria conta e risco. Nessas condições podemos
dizer que a ocupação ilegal de terras é parte intrínseca desse processo. Ela é, de fato, institucional.
Se considerarmos que todos os moradores de favelas existentes no município de São Paulo
invadiram terra para morar (a definição da favela está exatamente na relação jurídica de não
propriedade) estamos nos referindo a aproximadamente dois milhões de pessoas. O número é
aproximado, pois o rigor nos obrigaria a descontar os moradores de aluguel, nas favelas. De
qualquer modo, a dimensão confirma a assertiva de que a exceção é a regra. Curitiba, tomada como
cidade modelo de planejamento urbano, está cercada por uma coroa formada de numerosos
núcleos de terras invadidas, muitos dos quais estão em áreas de proteção ambiental. Nenhuma
grande cidade brasileira foge ao destino aqui descrito. E cada vez mais as cidades de porte médio
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seguem o mesmo caminho. Basta ver o aumento do número de cidades com favelas a cada ano
(SNIU/Mincid).
A explicação na qual se apóia a ordem dominante faz peripécias para ocultar a realidade.
Esta não pode ser assumida formalmente pelo Estado (em especial pelo judiciário) sem colocar em
risco toda a ordem jurídica vigente, em especial a que diz respeito à propriedade privada de terras
e imóveis.
Muitos são os fatores que determinam quando a lei é aplicada ou não. Um nos parece
principal. Quando a localização de uma terra ocupada por favelas é valorizada pelo mercado
imobiliário, a lei se impõe. Lei de mercado, e não norma jurídica, determina o cumprimento da lei.
Não é por outra razão que as áreas ambientalmente frágeis, objeto de legislação preservacionista,
“sobram” para o assentamento residencial da população pobre. Nessas localizações, a lei impede a
ocupação imobiliária: margens dos córregos, áreas de mangues, áreas de proteção ambiental,
reservas. Mesmo quando se trata de áreas públicas, priorizadas nos assentamentos de favelas, sua
proteção contra a ocupação depende de sua localização em relação aos bairros onde atua o
mercado imobiliário, legal, privado. As áreas públicas ocupadas estão localizadas, geralmente, nas
periferias esquecidas.
Durante uma reunião do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (fevereiro de 1995, na
cidade de Goiânia), uma liderança de movimentos de moradia do Estado do Espírito Santo revelou
toda a sua angústia e perplexidade porque um prefeito de uma cidade litorânea daquele estado
incentivava a população pobre a ocupar as áreas de mangues, enquanto que as lideranças do
movimento buscavam evitar a ocupação daquela área ambientalmente frágil, exigindo outra
solução. Autoridades que detêm o poder de polícia e deveriam garantir a preservação do patrimônio
ambiental incentivam sua deterioração. As lideranças populares que supostamente deveriam
perfilar-se ao lado daqueles que desesperadamente lutam por um pedaço de terra para morar,
encontram-se atônitas, em conflito com seus iguais que vêem no prefeito mais “compreensão” para
seu desespero.
A ocupação pela população pobre e o progressivo aterramento de mangues nas cidades
litorâneas brasileiras é praticamente uma regra. Esse caminho combina a ausência de investimentos
em programas habitacionais (a precária e lenta urbanização do mangue alimentará a relação
clientelista durante muitos anos) e a preservação dos terrenos privados para o mercado formal. A
ação do Estado, no Brasil, fornece exemplos freqüentes nos quais o patrimônio fundiário privado
merece mais cuidados que o patrimônio público como convém a uma sociedade patrimonialista
como bem definiu Raymundo Faoro em sua obra Os donos do poder. A ocupação ilegal como as
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favelas são largamente toleradas quando não interferem nos circuitos centrais da realização do
lucro imobiliário privado. Se, de um lado, o crescimento urbano foi intenso durante décadas, e o
Estado teve dificuldades de responder às dimensões da demanda, de outro, a tolerância para com
essa ocupação anárquica do solo está coerente com a lógica do mercado fundiário capitalista,
restrito, especulativo, discriminatório e com o investimento público concentrado (Maricato, 1999).
Qualquer análise superficial das cidades brasileiras revela essa relação direta entre moradia
pobre e degradação ambiental. Isto não quer dizer que a produção imobiliária privada ou que o
Estado, através da produção do ambiente construído, não causem danos ao meio ambiente. São
abundantes os exemplos de aterramento de mangues em todo o litoral do país para a construção
de condomínios de lazer. Ou poderíamos citar as indefectíveis avenidas de fundo de vale com
canalizações de córregos tão ao gosto dos prefeitos municipais e de uma certa engenharia “das
empreiteiras” (para ficarmos em apenas dois exemplos relativos à ocupação urbana do solo). O que
interessa chamar atenção aqui é que grande parte das áreas urbanas de proteção ambiental estão
ameaçadas pela ocupação com uso habitacional pobre, por absoluta falta de alternativas. As
consequências de tal processo atinge toda a cidade, mas especialmente as camadas populares.
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moradias para aqueles que, sem outras saídas e recursos técnicos ou financeiros, invadem terras
para morar. Aparentemente, as ações governamentais começam a reconhecer o primeiro dos eixos
descritos. A própria legislação recentemente aprovada abre mais caminho nesse sentido e menos
no outro. A consolidação e melhoria da cidade ilegal e sem urbanização exige o contraponto da
produção de novas moradias, do contrário estaremos consolidando a dinâmica da “máquina de
produzir favelas” com as políticas públicas correndo sempre atrás do prejuízo. A urbanização de
favelas tem sido uma política crescentemente adotada nos municípios brasileiros a partir das
experiências pioneiras de Recife, Belo Horizonte e Diadema (Denaldi, 2003). A regularização jurídica
completa a melhoria das condições sociais já que confere mais estabilidade e segurança ao morador
que pode até passar a livrar-se de uma condição penosa de morador de favela, condição essa que
interfere nas chances de obtenção de emprego, crediário e até salários.
A democratização da produção de novas moradias e do acesso à moradia legal e à cidade
com todos seus serviços e infra-estrutura exige a superação de dois grandes obstáculos – terra
urbanizada e financiamento – que, durante toda a história da urbanização brasileira, foram insumos
proibidos para a maior parte da população. Estamos fazendo referência mais exatamente ao
contexto da relação entre terra (urbanizada), financiamento, subsídios, Estado e mercado. O
mercado privado não tem atingido nem mesmo a classe média (cinco a dez salários-mínimos)
quando a maior parte da população situada abaixo dos cinco salários mínimos necessita de
subsídios. Esse será o grande desafio da política urbana nas primeiras décadas do século XXI, ao lado
do saneamento e do transporte de massa. É para eles que a sociedade brasileira e suas instituições
devem se preparar.
Notas
1 Esse texto foi elaborado utilizando a parte II do livro de minha autoria, Metrópole na periferia do
capitalismo, São Paulo, Hucitec, 1996.
2 O conceito de revolução utilizado aqui foi tomado de Florestan Fernandes, 1976. 3 Ela (a ordem
social competitiva) reconhece a pluralização das estruturas econômicas, sociais e políticas como
fenômeno legal. Todavia, não a aceita como fenômeno social e, muito menos como fenômeno
político. Os que são excluídos do privilegiamento econômico, sociocultural e político também são
excluídos do valimento social e do valimento político. Os excluídos são necessários para a existência
do estilo de dominação burguesa, que se monta dessa maneira (Fernandes, 1977, p. 222).
4 A autora pode viver pessoalmente uma experiência que comprova o que foi dito aqui sobre
Petrópolis em 1987: após participar de uma reunião com uma comunidade de um loteamento ilegal,
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nosso retorno foi impedido devido a uma barreira de terra que havia fechado a única passagem de
veículo que dava acesso ao loteamento. O acesso tinha sido asfaltado há pouco tempo (pelo qual a
comunidade muito satisfeita agradeceu ao então prefeito) e não correspondia à boa técnica de
engenharia. Isso era evidente pela ausência de embasamento adequado e pela espessura da
pavimentação, além do temerário corte realizado na encosta do morro, para a execução do acesso
que permitia a passagem de um veículo apenas, em alguns trechos.
5 A Represa Billings foi objeto de um diagnóstico ambiental terminado em meados de 1999. Ambos
reservatórios estão em processo de mudança da legislação, sob a coordenação de Sema – Secretaria
Estadual de Meio Ambiente.
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A revista da Apropuc solicitou-me, para a série “Brasil 500 Anos”, um texto sobre o
sindicalismo na história do Brasil. O tema é vasto, e é claro que qualquer ambição de tratar um
conjunto muito grande de problemas contidos em tal tema seria inútil, dados os limites de espaço
da revista e de conhecimento deste autor. Há, contudo, um ponto interessante a ser considerado e
sobre o qual pretendo dizer algumas palavras. Refiro-me à intervenção da luta sindical na história
política do país. Farei isso, já que se trata de um balanço do “aniversário de 500 anos”, dando ao
leitor algumas indicações dos debates e dos autores que trataram do tema. O espaço, contudo, me
impede de dar muitas indicações e de apresentar as referências bibliográficas completas.
Existe uma concepção da história do Brasil que omite sistematicamente a intervenção dos
trabalhadores no processo histórico nacional. Essa concepção aparece em diferentes versões. Uma
primeira versão, de motivação conservadora e elitista, que consiste em abordar os acontecimentos
da história nacional, como a Independência, a Abolição, a República, a Revolução de 1930, o fim da
ditadura militar e outros, ocultando, pelo silêncio ou pela negação explícita, a importância da
interferência dos trabalhadores na definição dos rumos de tais processos políticos. Outra versão, de
motivação distinta, que subjetivamente pode, eventualmente, ser até simpática aos trabalhadores,
é aquela que analisa as condições de vida, as formas de organização e a luta dos trabalhadores ou,
mais recentemente, seus hábitos e suas práticas culturais, separadamente das transformações
políticas e sociais pelas quais o Brasil passou ao longo de sua história. Faz-se uma história dos
trabalhadores separada da história do Brasil. Esses dois modos de omitir a presença dos
trabalhadores na história nacional podem até se fundir, dando origem a uma terceira vertente. De
conteúdo aparentemente crítico e progressista, essa terceira vertente, marcada por um forte
pessimismo, não só silencia ou nega a intervenção dos trabalhadores nas transformações pelas
quais o Brasil passou, como tende a apresentar tais transformações como quimeras: a
Independência teria sido um mero acerto entre membros da família real, a República um golpe de
Estado, a Revolução de 1930 expressão de uma “dissidência oligárquica”, o fim da ditadura,
resultado da política de abertura do General Figueiredo etc. Numa história marcada por mudanças
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fictícias, seria mesmo melhor que os trabalhadores se mantivessem afastados dessa comédia. Esses
enfoques são, historicamente, incorretos e, politicamente, prejudiciais ao movimento operário e
popular.
Essa corrente tem algo em que se apoiar, mas apresenta um enfoque unilateral. O Brasil
transitou para o capitalismo fazendo economia de uma revolução burguesa à moda francesa. Isso
teve implicações que marcam, profundamente, a vida econômica, política e social do país. Tivemos
a formidável ruptura que significou a abolição da escravidão, mas não tivemos, aqui, a reforma
agrária - e a luta do MST está aí para comprovar a importância e a atualidade dessa questão. No
início do século XIX, a administração colonial portuguesa foi substituída por um Estado Nacional e,
já no século XX, a Revolução de 1930 permitiu que se desencadeasse um processo de
industrialização e de expansão dos direitos sociais, mas a economia brasileira permaneceu
dependente - e o agravamento recente dessa dependência realçou essa verdade - e a expansão dos
direitos sociais não chegou a moldar um Estado de bem-estar no Brasil. Alguns marxistas brasileiros,
como João Quartim de Moraes, J. Chasin e Carlos Nelson Coutinho, utilizaram conceitos como os de
“via prussiana”, “capitalismo hipertardio” e “revolução passiva”, para indicar essa transformação
(limitada) sem revolução. Mas o fato é que entre, de um lado, o Brasil de hoje, organizado por um
Estado nacional, industrializado, e regido por um regime político democrático-burguês, e o Brasil de
ontem, colonial, agrícola e escravista, a diferença é de qualidade.
Ora, o escravo não organiza sindicatos. Alguns historiadores utilizam, impropriamente, o termo
negociação para se referir a alguns tipos de luta entre escravos e senhores. É certo que os escravos
lutaram. Num patamar inferior, tínhamos, de fato, pressões difusas dos escravos sobre os
fazendeiros, e, num patamar superior, rebeliões e fugas. Mas, mesmo quando dessas pressões
difusas e dessas rebeliões resultaram concessões dos fazendeiros, não é correto falar em
negociação entre trabalhador e proprietário. O trabalhador só pode negociar as condições de sua
própria exploração com os proprietários dos meios de produção, negociação que é o que caracteriza
o sindicalismo, quando esse trabalhador é reconhecido como cidadão, dotado de direitos civis
plenos, o que não ocorre (por definição) na escravidão, e só ocorre de modo parcial no caso dos
camponeses dependentes
O sindicalismo no Brasil nasce, então, com o trabalhador livre e, principalmente, com o
trabalhador livre manual, empregado na indústria. Foi a abolição da escravidão que abriu caminho
para o sindicalismo. No período imediatamente posterior à Abolição e à Proclamação da República,
a ação de tipo sindical dos trabalhadores já está presente. Estudos de Francisco Foot Hardman,
Victor Leonardi e Marcus Vinicius Pansardi mostram o forte vínculo existente, na última década do
século passado, entre esse movimento sindical incipiente e os acontecimentos políticos de então.
Os primeiros anos da República são marcados por diversos conflitos entre as classes dominantes.
De um lado, conflitos entre as correntes republicanas que tinham assumido o poder e as correntes
monarquistas que chegaram a encetar ações restauradoras, e, de outro lado, conflitos no interior
das correntes republicanas, dividindo as partidos oligárquicos regionais, ligados aos fazendeiros e
ao grande comércio exportador, e a instituição militar, cuja base política era composta por parte
dos trabalhadores urbanos. Esses conflitos deram um grande impulso ao sindicalismo e ao
movimento popular urbano. Parte da oficialidade do Exército, principalmente na cidade do Rio de
Janeiro, procurou, como mostrou também o historiador José Murilo de Carvalho, estabelecer uma
aliança com os trabalhadores, para manter-se como força governante, contra
restauradores e oligarcas. Com a ascensão dos presidentes civis e o estabelecimento da chamada
política dos governadores, reunificou-se o campo das classes dominantes e os trabalhadores e o
sindicalismo perderam espaço no processo político nacional.
anarcosindicalismo predominava e era mais forte em São Paulo, no setor industrial. No Rio de
Janeiro, havia, como mostrou Lígya Osório, uma tendência sindical, menos representativa é
verdade, de tipo tradeunionista, ligada principalmente aos trabalhadores das ferrovias e do porto.
A Confederação Operária Brasileira era controlada pelos anarco-sindicalistas.
Há uma longa discussão entre os historiadores sobre as razões de ter dominado no Brasil a
orientação anarco-sindicalista. A explicação mais antiga, e de inspiração conservadora, atribuía tal
orientação à origem imigrante da classe operária. O “anarquismo” seria uma “planta exótica”,
contrabandeada pelos imigrantes, para um país pacífico como o Brasil. Essa explicação foi rejeitada
pela pesquisa historiográfica. Talvez a explicação mais consistente seja aquela lançada por Azis
Simão, retomada e desenvolvida por Sílvia Magnani. Tal explicação valoriza o fato de a classe
operária estar excluída do sistema político (o voto urbano pouco significava devido ao fato de o voto
de cabresto, o bico de pena e a Comissão de Verificação dos Poderes decidirem o resultado das
eleições) e isolada das demais classes populares (a massa camponesa encontrava-se dispersa e sob
controle dos fazendeiros, a classe média urbana estava embuída do duplo preconceito contra o
imigrante e contra o trabalhador manual, afinal mal saíramos da escravidão). Essa exclusão e esse
isolamento podem ter levado os operários fabris a desacreditarem da política e a, com seu
abstencionsimo, legitimarem, ainda que a contrapelo, o elitismo da democracia oligárquica.
O número de trabalhadores assalariados e o potencial do sindicalismo cresceram com a
industrialização que se acelerara durante a Primeira Guerra Mundial. A greve geral de 1917, em São
Paulo, está ligada a esse surto industrial. Na década de 1920, a vinculação entre a história política
do país e o movimento sindical voltaria a se evidenciar. Agora, não só uma nova conjuntura de crise
entre os de cima favoreceu o movimento operário e sindical, como também esse movimento teve
um papel importante, ainda que de modo particular, na solução dessa crise.
brasileiro provocada pela Abolição e pela República – surge, então, no Brasil, um Estado baseado
no direito (formalmente) igualitário burguês com instituições políticas (formalmente) universalistas.
Esse é o tipo de Estado necessário para a difusão das relações de produção baseadas na exploração
do trabalho livre, isto é, capitalistas. A Revolução de 1930 deve ser situada nesse processo porque,
ao encerrar a hegemonia da grande burguesia ligada ao comércio de exportação e importação, deu
novo impulso ao desenvolvimento do Estado e da economia capitalista no Brasil: ela ampliou a
cidadania, com o desenvolvimento dos direitos políticos e sociais, unificou o mercado nacional e
desencadeou o processo de industrialização, permitindo a constituição das forças produtivas
especificamente capitalistas no Brasil.
O sindicalismo foi parte integrante desse processo. A crise política de 1930 possibilitou um
rápido crescimento do movimento sindical. Ao lado do anarco-sindicalismo e do tradeunionismo
surgira, em 1922, o Partido Comunista do Brasil. O movimento tenentista buscou, nos mais variados
pontos do país, em São Paulo, nos Estados do Nordeste e no Sul, apoio nos trabalhadores, e
particularmente no sindicalismo, para vencer a resistência da velha burguesia mercantil ao avanço
da Revolução. Trabalhos já antigos, como os de Edgard Carone e Maria Hermínia Tavares de
Almeida, e principalmente alguns trabalhos recentes, como os de Cláudio Cavalcanti, Brasília Carlos
Ferreira, Ângela Carneiro de Araújo e outros, evidenciam essa frente entre tenentismo e
sindicalismo, seja no momento da deposição de Washington Luiz, seja no de consolidação do novo
poder. Como demonstrou de modo pioneiro Virgínio Santa Rosa, a pressão difusa das massas
urbanas na década de 1920 é o pano de fundo do movimento de 1930 e, acrescentamos nós,
justamente por ter se tratado de uma pressão difusa, isto é sem direção partidária e programa
político próprios, o governo Vargas pôde implantar direitos sociais e legislação de fábrica limitados,
de modo gradativo e segmentado, e, ademais, apresentar essa legislação como se fosse uma doação
do Estado aos trabalhadores.
A Revolução de 1930 não realizou a reforma agrária, proposta que era defendida pela ala
esquerda do movimento tenentista, não rompeu com o imperialismo, embora tivesse ampliado o
controle do Estado nacional sobre a economia do país e ampliado sua autonomia no cenário
internacional, e tampouco logrou implantar um Estado de bem-estar – os trabalhadores rurais, que
compunham a maioria da população economicamente ativa até os anos 50, ficaram excluídos dos
direitos sociais e trabalhistas. Porém, ela iniciou um processo de ampliação dos direitos sociais e
criou condições para ampliar a democracia burguesa no Brasil, como se viu no período 1945-1964.
É importante repetir que o sindicalismo dos trabalhadores urbanos e, em primeiro lugar, o
sindicalismo operário foi um dos agentes dessa transformação.
81
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
10
Na introdução desta coletânea faço uma crítica a essa tentativa, referindo-me às seguintes obras: Alexandre Fortes,
Antonio Luigi Negro, Fernando Teixeira da Silva, Hélio Costa e Paulo Fontes, Na luta por direitos – estudos recentes em
história social do trabalho. Campinas, Editora da Unicamp, 1999; Jorge Ferreira (org.), O populismo e sua história –
debate e crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1001.
82
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
11
No primeiro artigo desta coletânea, expliquei como se pode dar a compatibilidade entre a luta reivindicativa e o
populismo. Ver “O populismo no Brasil: natureza, formas de manifestação e raízes sociais”.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Partido Comunista do Brasil adotou abertamente essa política, como mostra a pesquisa do
historiador Augusto Buonicore. A organização por fora do sindicato oficial ocorreu fortemente no
operariado de São Paulo e do Rio de Janeiro, expandiu a organização nos locais de trabalho,
multiplicou-se a imprensa sindical desses novos sindicatos livres – os operários navais do Rio de
Janeiro tinham jornais de organizações sindicais livres, ditas “paralelas”, que tiravam mais de 8.000
exemplares, como mostra a pesquisa de Denis Linhares Barsted. Tudo isso significa que os operários
começavam a romper com o populismo sindical e não que o conceito de populismo sindical seja um
conceito improcedente, como tentei mostrar em pesquisa sobre a crise política de 1954. Após muita
luta e muito vai-vem, a crise do populismo sindical foi abortada com a iniciativa do Governo Vargas
de reabrir os sindicatos aos comunistas e após a ascensão de João Goulart ao Ministério do Trabalho.
Esse exemplo indica porque o populismo sindical não impediu que o sindicalismo brasileiro
interviesse nas crises e no processo político do período.
O golpe de Estado que depôs Getulio Vargas em 1954 teve, como já tentei demonstrar na
citada pesquisa sobre esse golpe de Estado, a luta sindical como seu componente básico.
Diferentemente do que sustentaram Francisco Weffort, Octavio Ianni, a esmagadora maioria dos
pesquisadores e a própria memória política herdada do varguismo, o aspecto fundamental do golpe
de 1954 não foi a vitória
de um “projeto de desenvolvimento associado ao capital estrangeiro”, defendido pela União
Democrática Nacional (UDN), sobre um “projeto de desenvolvimento autônomo”, que seria
defendido e implementado pelo Governo Vargas. A contradição burguesa entre nacional-
reformismo e entreguismo era real, mas o seu significado e o seu peso não correspondem àqueles
apresentados na análise dominante do Golpe de 1954.
O nacionalismo de Vargas era um nacionalismo industrialista “tout court”. A política
industrialista secretava um discurso nacionalista porque havia resistências do imperialismo
norteamericano à tentativa de Vargas de reformular a antiga divisão internacional do trabalho que
condenava o capitalismo brasileiro à condição de produtor de produtos primários e importador de
produtos industriais. Se dizemos, portanto, que o nacionalismo varguista não era antiimperialista,
não estamos obrigados a dizer, por causa disso, que ele seria “demagógico”, coisa que nossas
considerações explicam que ele não era – populismo e demagogia só são sinônimos para o senso
comum ou para quem deseja travar polêmicas fáceis. Já o entreguismo da UDN era um entreguismo
antiindustrialista, que representava os interesses comerciais e agrícolas das empresas brasileiras e
estrangeiras que exploravam os negócios de exportação e importação propiciados pela antiga
divisão internacional do trabalho, divisão que esses interesses queriam manter.
84
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
viam o movimento sindical e reivindicativo como um grande movimento que deveria organizar de
forma independente as massas, educá-las para a hegemonia, e articular-se com partidos políticos
que representassem seus interesses. Não só aceitaram a sindicalização oficial rural, isolando as Ligas
Camponesas - já que os sindicatos oficiais rurais também podiam organizar camponeses - como
lutaram para levar o sindicalismo oficial ao campo. Porém, essa exportação do populismo para o
campo foi fatal. Goulart fez a mesma opção conciliadora que Vargas fizera dez anos antes e os
proprietários de terra e a burguesia não o perdoaram, como não haviam perdoado seu predecessor
e inspirador. E tal como ocorrera em 1954, quando os quebra-quebras foram a única ação
(impotente) de protesto contra o golpe de Estado, a esquerda brasileira permaneceu, como os
trabalhadores desorganizados pelo populismo, passiva – esperavam uma reação do Governo
Goulart – que fugiu - ou do Estado, “na pessoa” da “ala progressista” (sic) das Forças Armadas.
São, portanto, muito complexas as relações dos trabalhadores com o populismo. O
sindicalismo, apesar de populista, pode criar instabilidades e interferir no processo político nacional,
seja porque o populismo não inviabiliza a reivindicação, seja porque nem todos os setores das
classes trabalhadoras estiveram, sequer no período áureo do populismo, sob o império absoluto
dessa ideologia. Porém, nos exemplos de 1954 e 1964, vemos que o sindicalismo, justamente por
não ter rompido com o populismo, embora tenha tido o poder de provocar crises, não foi capaz de
propiciar um desfecho que lhe fosse favorável. Quem estiver interessado num desfecho favorável
aos trabalhadores não poderá, portanto, ocultar o componente populista da ação sindical. Como
podemos notar, existem sim implicações políticas importantes na discussão teórica sobre o conceito
de populismo.
Algo diferente acontece na conjuntura de crise da ditadura militar e, dentre outras razões,
porque, naquele momento, o novo sindicalismo iniciou um processo mais conseqüente de ruptura
com o populismo sindical, procurando substituí-lo por um reformismo operário de tipo social-
democrata.. Esse reformismo, diferentemente do reformismo superficial e estatista do populismo,
organiza o movimento operário no plano sindical e partidário, tornando-o capaz de intervir na
política e nos parlamentos de modo mais eficaz e organizado.
O sindicalismo acuou a ditadura militar e contribuiu para o surgimento de uma nova esquerda no
Brasil
Passemos à discussão do papel desempenhado pelo sindicalismo na luta pelo fim da ditadura
militar.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
democracia burguesa restrita que não tocou no arcaísmo da estrutura econômica e social do Brasil.
As condições de vida dos trabalhadores na atualidade são uma prova eloqüente de que, mais uma
vez, as classes populares não lograram assumir o controle do processo de mudança. Diante dessa
limitação do processo de mudança, recorrente na história do Brasil como estamos vendo, talvez se
deva falar numa “história lenta”, mas não em algo paradoxal como uma “história parada”, na qual
as lutas políticas seriam meras encenações, e nem mesmo em algo como uma “história paralela”,
em que as transformações políticas, de um lado, e a vida e a luta dos trabalhadores, de outro, nunca
se tocariam.
Porém, como evidenciam os dados disponíveis para 97, esse acidente foi passageiro e não alterou a
tendência concentradora da década do neoliberalismo.
São inúmeros os fatores econômicos e sociais contribuíram para colocar o sindicalismo
brasileiro na defensiva. A maioria deles está ligada, de um modo ou de outro, à aplicação da política
neoliberal no Brasil. O desemprego intimida o trabalhador, e esse desemprego afetou, de modo
marcante, dois dos setores mais ativos do sindicalismo brasileiro nos anos 80 – os metalúrgicos do
ABC e os bancários. Hoje, no ABC, há pouco mais da metade do número de metalúrgicos que havia
nos anos 80, e no setor bancário já foram suprimidos, ao longo da década de 1990, cerca de 500.000
postos de trabalho. Outro setor muito ativo do sindicalismo na década de 1980, os funcionários
públicos, também entrou em declínio: o Estado, que os governos neoliberais querem reduzir ao
mínimo, não contrata mais, tendo passado, na verdade, a demitir. Ademais, no plano ideológico, o
funcionalismo público foi colocado na defensiva – os governos neoliberais lograram identificar o
funcionário público com uma casta privilegiada, os “marajás”. O pano de fundo das situações
apontadas acima é a desindustrialização provocada pela política neoliberal, fenômeno estudado por
autores como Lucinao Coutinho, e o declínio dos direitos sociais e dos serviços públicos. Um outro
setor poderoso do sindicalismo, os petroleiros, foi vencido com o recurso à repressão – na greve
nacional de 1995, o governo FHC determinou a ocupação das refinarias pelas Forças Armadas e o
Judiciário impôs multas impagáveis aos sindicatos em greve.
Mas a defensiva do movimento sindical decorre, também, dos remanejamentos políticos
ocorridos no interior da burguesia brasileira e das mudanças no cenário internacional. Durante os
anos 80, a burgueisa brasileira estava dividida politicamente: primeiro, dividiu-se na crise da
ditadura, depois, na querela sobre a estratégia de política econômica, pois que a burguesia industrial
relutou em abrir mão do desenvolvimentismo e aderir ao neoliberalismo. Havia um partido burguês
de oposição à ditadura militar e, nos trabalhos da Constituinte, os sindicalistas puderam contar com
os votos de partidos burgueses para constitucionalizar direitos trabalhistas e sociais, medidas de
proteção ao mercado interno e de preservação de monopólios do Estado. Hoje, os partidos de
esquerda e as centrais sindicais estão isolados no Congresso Nacional, e todos partidos burgueses
votam a favor das reformas neoliberais. No cenário internacional, as mudanças foram igualmente
desfavoráveis aos trabalhadores e ao sindicalismo. Os EUA aparecem sozinhos como superpotência
política e militar, recuperaram sua economia, e podem, graças também à desagregação da antiga
URSS, agir livremente no cenário internacional. Hoje, o imperialismo norte americano, agindo
diretamente ou através de agências como o FMI e o BID, tutelam a política econômica e social dos
países periféricos.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
terras e começam a ocupar edifícios vagos para utilizá-los como moradia. O governo FHC tem ficado
na defensiva política e ideológica diante dessas ações. O mesmo governo que está forte e é
arrogante diante a luta sindical, vê-se em situação embaraçosa diante dessas novas lutas sociais. Se
em períodos anteriores de nossa história, o sindicalismo pôde valer-se da expansão industrial e do
crescimento do setor público, no período atual, marcado pela desindustrialização e pela retração
do Estado, o sindicalismo deve aliar-se às novas lutas dos desempregados por moradia, por terra e
emprego, lutas que são frutos da política neoliberal.
Se o sindicalismo influenciou a história política do país, é de se esperar que possa influenciar
também o presente. Outra questão é saber se ele, agindo com os partidos de esquerda e com os
novos movimentos populares (MST, Movimento de Moradia, luta dos trabalhadores do setor
informal), será capaz de romper com o padrão que essa intervenção tem apresentado até aqui. De
fato, vimos que a presença do sindicalismo na história política do Brasil foi, sempre, uma presença
“indireta”. Ela foi eficaz para desestabilizar regimes e governos, mas incapaz de vincular-se a forças
políticas de esquerda, reformistas ou revolucionárias, que lograssem dirigir os processos de
transição. É certo que a mudança desse padrão não depende apenas, e talvez nem
fundamentalmente, do sindicalismo. Mas, no aniversário dos 500 anos, essa é outra questão que
nos desafia e interroga.
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94
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Esse texto é organizado pelo CEPIS (Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae, SP,
Brasil), com base no texto “O que é Revolução”, de Florestan Fernandes. Com as alterações de
termos; com os comentários, destaques e grifos o CEPIS nos auxilia no processo de leitura e
interpretação do texto. O CEPIS fez isso historicamente com diversos textos clássicos em seu
trabalho pedagógico e popular. Quem quiser ler a versão original encontrará no site do CRB ou
acha facilmente no Google.
1. O que é revolução?
A palavra revolução tem sido empregada para criar confusões. Fala-se de "revolução
institucional", referindo-se ao golpe de Estado de 1964, no Brasil, com a intenção de acobertar o
uso da violência militar que impediu a continuidade da revolução democrática. A palavra correta
seria contra-revolução. “Revolução" designa também alterações, contínuas ou súbitas, na natureza
ou na cultura. No essencial, porém, seu significado fala de mudanças drásticas e violentas da
estrutura da sociedade. O contraste entre "mudança gradual" e "mudança revolucionária" sublinha
o teor da revolução como mudança que "mexe nas estruturas", que subverte a ordem social
imperante na sociedade. O golpe de Estado foi descrito como "revolução" para esconder a
revolução democrática interrompida e intimidar, pois, uma revolução dita suas leis, seus limites, o
que ela extingue ou não tolera. Na realidade, o "império da lei" aboliu o direito e implantou a "força
das baionetas": não há mais aparências de anarquia. Uma parte precisava anular e submeter a
outra à sua vontade pela força bruta.
Quanto ao significado das palavras-chave, era fundamental para começar a inversão das
relações normais de dominação. Fica mais difícil para o dominado entender o que está acontecendo
e mais fácil para defender abusos e violações cometidas pelos donos do poder. O marco de 1964
ilustra a natureza da batalha que as classes trabalhadoras precisam travar: libertar-se da tutela
terminológica da burguesia, de relações de dominação que se definem, na área da cultura. Em uma
sociedade de classes da periferia do mundo capitalista não existem "simples palavras".
A revolução constitui uma realidade histórica; a contra-revolução é sempre o seu contrário:
é aquilo que impede ou adultera a revolução. Na luta pela transformação da sociedade, a palavra
"revolução" recebe um significado que não depende apenas do querer coletivo das classes
trabalhadoras. Toda sociedade de classes, possui certas exigências econômicas, sociais, culturais,
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Não se pode nem se deve subestimar as inflexões da realidade histórica: o socialismo sofreu
uma compressão que o sistema de poder feudal jamais poderia infligir ao capitalismo nascente. Essa
constatação não altera o essencial: a revolução anticapitalista e antiburguesa é uma revolução
proletária e socialista. Ela nega a ordem existente em todos os níveis e de modo global. A
revolução em processo não é só uma revolução anticapitalista e antiburguesa, é uma revolução
socialista que se negará quando o socialismo se converter em padrão de uma nova civilização,
culminando no comunismo. Ou seja, a revolução proletária não terá um eixo revolucionário curto
que se esgote na substituição de uma classe dominante por outra - o proletariado deverá ser ainda
mais revolucionário depois da conquista do poder e da derrota final da burguesia. Essa é a
condição histórica para que a transição para o socialismo e para o chamado "socialismo avançado"
possua uma dinâmica democrática própria - cada avanço socialista representa um
aprofundamento comunista na negação do período de transição e do "socialismo avançado". Essa
representação marxista já foi considerada como pura utopia.
A burguesia não levou sua revolução até o fim e até o fundo porque não teve a seu favor
uma substância de classe revolucionária que a animasse a superar-se, a negar-se e a transcender-
se de modo inexorável e incessante. O mesmo não ocorre com o proletariado: ele desintegrará a
sociedade civil e o elemento político que ela engendra e reproduz, cimentando a vida social na
igualdade, na liberdade e na fraternidade entre todos os seres humanos. Então, a Humanidade
contará com uma civilização na qual as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas, como
previu Marx.
2. "Quem faz" a revolução?
Há uma tendência em tornar a revolução um fato "mítico" e "heróico", individualizado e
romântico. Várias tradições tendem a anular o papel de suporte e instrumental das massas e
salientar as figuras centrais, as "figuras heróicas e decisivas". A burguesia cedeu a essas tradições e
fomentou-as; sua historiografia, mesmo quando busca os fatores externos, concentra-se no "culto
dos heróis" e dá relevo aos papéis criadores dos "grandes homens". A historiografia marxista não
anula a importância da personalidade nos processos históricos e evita uma redução mecanicista que
exclua o fator humano e psicológico. O que distingue o marxismo é sua tentativa de compreender
a revolução como um fenômeno sociológico de classe.
O marxismo parte de uma concepção objetiva do lugar que a luta de classes confere à
revolução em uma sociedade intrinsecamente antagônica. Isso exige que se evite cair no mal
oposto: um "obreirismo" rudimentar e o "redentorismo" do partido revolucionário. As dimensões
da luta de classes não são determinadas exclusivamente por uma das classes; elas constituem uma
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
operárias de caráter sindicalista e socialista definem o lado proletário dos direitos civis e políticos,
incorporados pela força da luta de classes à legalidade burguesa e ao funcionamento do sistema
político representativo. No terceiro estágio, o potencial revolucionário do proletariado emerge e
expande-se livremente, já que deve comandar a luta de classes e o processo global de
desintegração da "antiga sociedade" e de constituição incipiente da sociedade socialista.
"Todos os movimentos históricos precedentes foram movimentos minoritários ou em
proveito de minorias. O movimento proletário é o movimento consciente e independente, da
imensa maioria, em proveito da imensa maioria. O proletariado não pode erguer-se sem fazer
saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial." Ao realizar sua missão que
"é a de destruir todas as garantias e seguranças da propriedade individual", o proletariado
inaugura uma época de grandes transformações históricas. Iss mostra que o desenvolvimento do
capitalismo se enlaça ao desenvolvimento concomitante das duas classes fundamentais da
sociedade capitalista e ao agravamento da luta de classe. Por causa dele, o antagonismo entre o
capital e o trabalho se manifesta como fermento histórico. As fases do desenvolvimento do
proletariado descrevem a guerra civil mais ou menos oculta, na sociedade, até a hora em que essa
guerra explode, numa revolução aberta, e a derrubada violenta da burguesia estabelece a
dominação do proletariado". Há uma guerra civil latente e uma eclosão revolucionária aberta. As
transformações seguem as linhas dos equilíbrios e desequilíbrios de forças nas relações antagônicas
da burguesia com o proletariado.
Quem faz a revolução é a grande massa proletária e quem lhe dá sentido é a grande massa
proletária. Não se trata de uma categoria social como "Povo", mas da parte proletária do Povo e
daqueles que, não sendo proletários, identificam-se politicamente com o proletariado na
destruição das formas burguesas de propriedade e de apropriação social. Quer dizer, a maioria
descobre que a ordem burguesa não é a única possível e tenta, por seus próprios meios, a conquista
do poder e nova forma de democracia, a democracia proletária. A nova época inicia-se mediante
uma revolução pela qual o proletariado, convertido em classe dominante, "destrói
violentamente" as antigas relações de produção e "as condições dos antagonismos de classes e
as próprias classes", abrindo caminho para extinguir "sua própria dominação como classe".
Utopia e ideologia caminham juntas já que ambas extraem sua realidade histórica de uma
condição de classe revolucionária instrumental para a revolução, mas condenada ao
desaparecimento pela concretização da própria revolução. Isso permite a Marx e Engels afirmar:
"Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, haverá uma
associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de
100
Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
todos". Esta descrição propõe a revolução do proletariado que não se esgota no âmbito do
capitalismo e da sociedade burguesa. Enquanto a guerra civil é latente, a transformação
revolucionária se equaciona dentro da ordem como um processo de alargamento e
aperfeiçoamento da sociedade burguesa, pela ação coletiva do proletariado. Quando a guerra civil
se torna aberta, a transformação revolucionária se equaciona contra a ordem envolvendo,
primeiro a conquista do poder e, depois, a desagregação da antiga sociedade e a formação de
uma sociedade sem classes, destituída de dominação do homem pelo homem e de elemento
político (ordem sem sociedade civil e o Estado).
No plano prático, o reconhecimento, pelos revolucionários que situações revolucionárias não
se criam ao sabor da vontade, não se produzem por encomenda. Situações revolucionárias
encobertas e explícitas formam uma seqüência, em cadeia. O talento inventivo dos revolucionários
se mostra na sua capacidade de atinar com as exigências e possibilidades revolucionárias de cada
situação. Um diagnóstico errado conduz a sacrifícios inúteis; uma oportunidade real desperdiçada
reflete-se numa perda do movimento revolucionário em cadeia, afeta o presente e o futuro. O teor
revolucionário do movimento de classe se determina pelas potencialidades favoráveis e
desfavoráveis da situação concreta e pode-se prescindir de fórmulas dogmáticas e de líderes
messiânicos.
A firmeza da ação revolucionária de classe dependerá: a) de formas de solidariedade de
classe; b) de consciência revolucionária de classe; c) e de comportamento revolucionário de
classe. Se o proletariado não estiver preparado para enfrentar suas tarefas revolucionárias
concretas, não poderá levar a revolução até o fim e até o fundo, no contexto social imediato e, a
longo prazo. A classe que não souber aproveitar as oportunidades terá de pagar um alto preço, pois,
se a burguesia conseguir vergar o "arco histórico" do proletariado, este oscilará para uma
prolongada penumbra histórica (como aconteceu com o proletariado europeu). Se o proletariado
conseguir se antecipar ao curso da história, ele poderá deslocar a burguesia de suas posições e
precipitar a sua própria revolução social (como ocorreu na Rússia).
Quer dizer que descrever as condições da revolução não equivale a "ignorar" o elemento
humano na história. Significa buscar as linhas de determinações que fluem, através das classes e
antagonismos de classes, na objetivação das condições nas quais os seres humanos constroem
coletivamente a sua história. "A história não faz nada, 'não possui uma riqueza imensa', ‘não dá
combates'! Acima de tudo, é o homem, real e vivo, que faz tudo isso e realiza combates; não é a
história que se serve do homem como de um meio para realizar seus próprios fins; ela não é mais
que a atividade do homem que persegue seus objetivos". O homem real e vivo está nos dois pólos
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
da luta de classes, nos dois lados da "guerra civil mais ou menos oculta", da guerra civil que "explode
numa revolução aberta" sob a forma concreta que os antagonismos entre capital e trabalho
assumem nos conflitos da burguesia com o proletariado.
Revolução e contra-revolução constituem, por conseqüência, duas faces de uma mesma
realidade. Sob a guerra civil latente, a pressão autodefensiva da burguesia pode ser contida nos
limites da "legalidade"; por sua vez, o contra-ataque proletário fica circunscrito à defesa de sua
autonomia de classe e de sua participação coletiva no sistema de poder burguês. Quer dizer, a
burguesia afasta-se das tarefas históricas impostas por sua revolução de classe, mas o proletariado
não. Ele força e violenta os dinamismos da sociedade capitalista, obrigando os setores
estratégicos das classes burguesas a retomar pé na transformação revolucionária da ordem social
competitiva. Onde isso não ocorreu ou ocorreu de modo fraco e descontínuo, a democracia
burguesa se revelou débil e propensa às contrações contra- revolucionárias dos regimes ditatoriais.
Sob a guerra civil aberta, a pressão autodefensiva da burguesia torna-se virulenta e se coloca
acima de qualquer "legalidade". Por sua vez, o proletariado bate-se pela conquista do poder ou
pela instauração da dualidade de poder que exprima claro a legalidade que a revolução opõe à
ilegalidade da contra- revolução. O campo da luta de classes adquire uma transparência completa
e converte-se em um campo de luta armada, pela qual a revolução e a contra-revolução
metamorfoseiam a guerra civil a frio ou/e a quente, em um prolongamento da política por outros
meios. A vitória de uma ou de outra classe depende da relação da revolução e da contra-revolução
com as forças sociais que outras classes podem colocar à disposição da transformação
revolucionária ou da defesa contra-revolucionária da ordem. Isso torna decisivo o
equacionamento de estratégias revolucionárias compatibilizadas com as exigências e possibilidades
das situações concretas.
Lênin trata dos indícios de uma situação revolucionária e das probabilidades da eclosão
revolucionária: "está fora de dúvida que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária,
mas nem toda situação revolucionária leva à revolução. Os três indícios principais de uma situação
revolucionária são: 1) impossibilidade para as classes dominantes de manter sua dominação sob
uma forma inalterada; crise do 'vértice', crise da política da classe dominante, o que cria uma fissura
onde os descontentes e a indignação das classes oprimidas abrem um caminho. Para que a
revolução estoure não é suficiente que 'a base não deseje mais' viver como antes, mas é necessário
que 'o cume não o possa mais'; 2) agravamento, mais do que é comum, da miséria e do desespero
das classes oprimidas; 3) intensificação acentuada da atividade das massas que se deixam pilhar
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
nos períodos 'pacíficos' mas que, no período tempestuoso, são empurradas pela crise no seu
conjunto ou pelo próprio vértice para uma ação histórica independente".
Sem essas transformações objetivas, a revolução é impossível. É o conjunto dessas
transformações objetivas que constitui uma situação revolucionária. Conheceu-se essa situação em
todas as épocas de revoluções no Ocidente, embora não tenham ocorrido revoluções em tais
momentos. Porque a revolução não surge de toda situação revolucionária, mas só quando às
transformações objetivas enumeradas, se acrescenta uma transformação subjetiva, a saber: a
capacidade da classe revolucionária de conduzir ações revolucionárias de massa vigorosas para
destruir completamente (ou parcialmente) o antigo governo que não cairá jamais, mesmo em
épocas de crises, se não for 'compelido a cair"'. "A lei fundamental da revolução, confirmada por
todas as revoluções é: para que a revolução tenha lugar não é suficiente que as massas exploradas
e oprimidas tomem consciência da impossibilidade de viver como antes e reclamem
transformações. Para que a revolução tenha lugar é necessário que os exploradores não possam
viver e governar como antes. É só quando (os de baixo) não querem mais e (os de cima) não podem
mais continuar a viver da antiga maneira, é então que a revolução pode triunfar. Essa verdade se
exprime em outras palavras: a revolução é impossível sem uma crise nacional (afetando explorados
e exploradores). Assim, para que haja uma revolução, é preciso: a) conseguir que a maioria dos
operários (pelo menos a maioria dos operários conscientes, politicamente ativos) tenha
compreendido a necessidade da revolução e esteja disposta a morrer por ela; b) que as classes
dirigentes atravessem uma crise governamental que envolva na vida política até as massas mais
retardatárias que enfraqueça o governo e torne possível aos revolucionários a sua pronta
substituição (o indício da revolução verdadeira é a rápida elevação do número de homens aptos
para a luta política, entre a massa laboriosa, oprimida e até a apática)” (Lênin).
Como parte do cerco capitalista contra o movimento socialista revolucionário, suscitou-se a
polêmica sobre o aparecimento de um partido proletário revolucionário que substituiu a classe por
uma vanguarda política e confere todo o poder de decisão ou de direção a pequenas elites de
revolucionários profissionais. Depois das experiências históricas da Comuna de Paris e em função
da dura repressão que a burguesia desencadeou sobre o proletariado na Europa, ficara claro que as
tarefas revolucionárias impunham ao proletariado uma centralização mais eficiente e produtiva de
seu potencial revolucionário. Isso não quer dizer que a constituição do partido proletário
revolucionário equivalia à formação de uma elite "exterior" à massa, em típica relação de
dominação com ela (como se o partido socialista revolucionário reproduzisse a estrutura do Estado
capitalista e, em particular, de suas Forças Armadas). Já no Manifesto Marx e Engels assinalaram o
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
papel dos comunistas, diante dos proletários, como "a fração mais resoluta e avançada dos
partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais", com a vantagem da
"compreensão nítida das condições, da marcha e fins gerais do movimento proletário". "O fim
imediato dos comunistas é o mesmo que o dos outros partidos operários: constituição do
proletariado em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo
proletariado."
A existência de uma classe revolucionária não constituía uma "invenção" deles. Sem um
proletariado consciente e organizado a revolução proletária nunca passaria de uma miragem.
Qualquer partido revolucionário do proletariado não pode, pois, prescindir do proletariado como
classe e nem poderia pretender mais do que ser instrumental para os três objetivos centrais
mencionados no Manifesto. Lênin ressalta: "A vanguarda do proletariado é conquistada
ideologicamente. De outro modo, mesmo dar um primeiro passo na direção da vitória, será
impossível. Porém, daí à vitória ainda há uma grande distância. Não se pode vencer somente com a
vanguarda. Lançar somente a vanguarda na batalha decisiva, enquanto toda a classe e as grandes
massas não tenham tomado uma atitude de apoio direto à vanguarda, ou pelo menos uma
neutralidade benévola, seria tolice e mesmo um crime. Para que toda a classe, as massas de
trabalhadores e oprimidos do Capital cheguem a tal posição, a propaganda, só a agitação não é
suficiente. É preciso que essas massas façam sua própria experiência política. Tal é a lei
fundamental de todas as grandes revoluções".
3. É possível "impedir" ou "atrasar" a revolução?
A revolução social do proletariado não constitui uma fatalidade do desenvolvimento
capitalista. Se fosse assim, o movimento revolucionário seria dispensável e o sindicalismo, o
socialismo, o anarquismo e o comunismo não teriam razão de ser. O Manifesto diz: “o elemento
"exterior" na ação dos comunistas provém da necessidade de levar ao proletariado "uma
compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário". Em
uma dada situação, pode ser necessário fortalecer e acelerar a "constituição do proletariado em
classe"; em outra pode ser necessário solapar e abalar "a supremacia burguesa", e, onde os
proletários contem com as condições indispensáveis de organização como classe independente e
possam compelir a burguesia a aceitar sua atividade política e a tolerar sua presença revolucionária,
a necessidade central poderá ser a "conquista do poder político". Esses fins podem mesclar-se, a
partir de condições históricas típicas de uma situação revolucionária. O central é a luta de classes.
A luta de classes se manifesta desde o início, desde o "ponto zero" desse movimento histórico, no
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
qual o proletariado não reúne as condições materiais e sociais de uma classe e o objetivo
revolucionário larvar vem a ser a constituição da classe.
Constituir-se e expandir-se como classe independente é uma façanha, tão difícil quanto lutar
contra a supremacia burguesa, para conquistar espaço histórico e político, mais ou menos dentro
da ordem, e travar a luta direta pelo poder, o controle da sociedade e o comando do Estado.
Segundo Lênin, é depois de derrubar a burguesia e de construir uma democracia proletária que se
torna ainda mais difícil defender a revolução social e conduzi-Ia para diante. Aí é que os
proletários, com seus aliados, precisam evidenciar mais firmeza, tenacidade e capacidade coletiva
de sacrifício. Para os que acham que a revolução é uma aventura, que acreditam que se consegue
a revolução "por encomenda", tudo é simples, basta provocar a burguesia e tomar-lhe o poder.
Quanto mais desenvolvido for o sistema de produção capitalista, maior será a facilidade que
as classes possuidoras e dominantes encontrarão em se fortalecer através da luta de classes. Essa
regra se evidenciou e de maneira clara com a derrota da Comuna. Ao contrastar o poder da
burguesia ao poder da nobreza feudal, Marx e Engels assinalam a natureza das dificuldades que os
proletários teriam de enfrentar e de vencer. Só depois de conquistar o poder teria o proletariado
probabilidades de alterar sua relação com a sociedade capitalista e de usar o poder político para
levar até o fim a destruição da ordem existente ou de encetar, a fundo, a construção de uma nova
ordem social. Enquanto combate dentro da ordem capitalista e através de meios legais, qualquer
que fosse sua capacidade de recorrer à violência, o proletariado poderia, no máximo, redefinir sua
relação com a revolução burguesa, reacendendo os seus estopins, para ampliar sua autonomia e
organização, como e enquanto classe, e serrar os dentes ou amarrar os braços das classes dirigentes.
Continuando com sua hegemonia social e política, estas classes poderiam enfrentar a maré
montante, fazendo concessões e ampliando os direitos civis, sociais e políticos do proletariado,
dentro da ordem, ou aproveitar as condições favoráveis para reduzir o ímpeto da pressão operária
e, se possível, neutralizá-Ia. Em outras palavras, a luta de classes impõe ziguezagues aos dois lados
e, em termos estratégicos, a burguesia sempre dispõe de vantagens que não podem ser
subestimadas. A Comuna permitiu uma demonstração conclusiva. A burguesia pode aproveitar
todas as vantagens de uma guerra civil a quente, inclusive um forte apoio externo de outros países
capitalistas, fácil de mobilizar em virtude do caráter mundial do mercado capitalista e do interesse
mundial que liga as várias burguesias, no patrocínio à mão armada de seus interesses vitais.
Os antecedentes da I Grande Guerra mostraram um painel ainda mais sombrio. A rapidez com
que o rico movimento socialista foi convertido ao social-patriotismo revela o poder de corrupção
que o controle da economia, da sociedade e do Estado coloca nas mãos das burguesias dominantes
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
nos países capitalistas mais adiantados. Elas não precisam recorrer à violência para autodefender-
se, autoproteger-se e contra-atacar. Basta incorporar um setor mais amplo da vanguarda operária
e das burocracias sindicais ou partidárias do proletariado às classes médias, para convertê-Ios em
burgueses e em cavaleiros andantes da democracia burguesa. A violência é algo a que se recorre
quando a contra-revolução vitoriosa concede todos os trunfos às classes dominantes. Em
contraposição, o que os operários e camponeses são capazes de fazer, se chegam a dispor de
recursos estratégicos análogos, é demonstrado pela revolução bolchevique. Todas as forças
lançadas contra o Estado bolchevique, a partir de dentro e a partir de fora, foram batidas e
destroçadas.
Uma análise que leve em conta as evoluções ocorridas nas sociedades capitalistas centrais,
descobre que a burguesia não só aprendeu a conviver com a luta de classes, mas vergou o próprio
movimento socialista e comunista. Forçou-os a definir como seu eixo político a forma burguesa de
democracia - forçou-os a renegar a luta de classes e os meios violentos, "não democráticos", de
conquista do poder. Isso não implica que a revolução proletária tenha sido proscrita, que "o perigo
passou". Mas, implica em um avanço considerável da burguesia, em escala nacional e mundial, na
utilização da luta de classes em proveito da defesa do capitalismo. É uma aprendizagem que
proporcionou vantagens na "luta ideológica" de algo substancial: a burguesia aprendeu a usar
globalmente as técnicas que lhe são apropriadas de luta de classes e ousou incorporar essas
técnicas a uma gigantesca rede institucional, da empresa ao sindicato patronal, do Estado às
organizações capitalistas continentais e de âmbito mundial. Enquanto o movimento socialista e
comunista optaram por opções "táticas" e "defensivas", a burguesia avançou estrategicamente, ao
nível financeiro, estatal e militar, e procedeu a uma revolução das técnicas da contra-revolução.
Inclusive, abriu novos espaços para si própria, explorando as funções de legitimação do Estado, para
amarrar as classes trabalhadoras à segurança da ordem e soldar os sindicatos ou os partidos
operários aos destinos da democracia.
Não cabe, aqui, ir ao fundo do assunto, nem perguntar quais foram os erros que sindicalistas,
socialistas, anarquistas e comunistas cometeram para serem relegados à condição de massa de
manobra da burguesia, em um momento histórico, onde o proletariado possui todas as condições
de classe em si e para si. O que conta, tão-somente, são concessões traidoras e suicidas. Do
abandono do internacionalismo proletário passou-se ao social patriotismo e, deste, à renegação do
aprofundamento da luta de classes e da revolução proletária, como se a ordem social competitiva
pudesse chegar a um estágio de confraternização de classes sociais antagônicas. Isso é uma vitória
não apenas circunstancial, mas prolongada e histórica da burguesia! O movimento histórico do
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
proletariado vergou exatamente nos países onde ele tinha as melhores condições para dinamizar a
luta de classes de forma revolucionária. Fica claro que a marcha da luta de classes pode oscilar e
que tais oscilações se traduziram no declínio prolongado do potencial da classe operária de bater-
se pela "conquista do poder". Se ela sucumbe no plano prévio de enfrentamento com a "supremacia
burguesa", inclusive incorporando a ideologia de classe da burguesia e sua forma de democracia,
ela tem de abater-se e sucumbir ao poder do Estado. É fácil dizer: isso não quer dizer nada, o
proletariado poderá perder todas as batalhas, mas não perderá a guerra. Como ganhar a guerra
sem aceitar "todas as batalhas"?
O que tem prevalecido é a contra- revolução, macia e a frio, que drena as forças proletárias
mais estuantes para o "exército da ordem"; que perfilha os proletariados mais fortes, organizados
e promissores às palavras-chave da democracia burguesa, convertida no alfa e ômega do
sindicalismo e do socialismo militantes. Por fim, numa época de crise de civilização, que é crise da
civilização burguesa, descobre-se que o "mundo livre" é o mundo da civilização burguesa! As
"promessas do proletariado" não se concretizaram porque as classes trabalhadoras foram
batidas. Culpar o consumo de massas, as guerras, à corrupção parcial ou global de vanguardas
operárias e da aristocracia operária, à omissão da União Soviética... não muda a realidade das coisas.
As classes burguesas, ameaçadas de extinção fizeram o que estava na lógica da situação
revolucionária para que fizessem. Revitalizaram, até onde foi possível, o pólo burguês da luta de
classes e, mergulharam a fundo na contra-revolução, beneficiando-se das novas revoluções
tecnológicas e dos recursos que trouxeram ao fortalecimento do capitalismo, à renovação da
opressão e aperfeiçoamento da repressão. Comprovaram que o poder burguês não pode ser
derrotado de modo tão fácil quanto o poder feudal e que o movimento socialista revolucionário
precisa recalibrar-se e reaparelhar-se para revolucionar suas técnicas de revolução. O pólo
proletário da luta de classes entrou em declínio e sofreu um colapso prolongado. Houve
enfrentamentos e sacrifícios imensos, mas sem conseqüência à vitória da causa revolucionária do
proletariado. Nem a ótica socialista nem a comunista responderam às exigências da situação. De
concessão em concessão, de miséria em miséria, suas forças militantes perderam a oportunidade
histórica e viram-se condenadas, para salvar o "espaço histórico do proletariado", a renegar os
valores fundamentais do socialismo revolucionário e toda a estratégia revolucionária do
proletariado na luta de classes.
É hora de ler e reler o Manifesto. Não é um catecismo, nem o mundo histórico para o qual foi
calibrado existe mais. No entanto, é preciso lê-Io e relê-Io, a fundo, por outra razão: trata-se de
recuperar a verdadeira ótica do socialismo revolucionário e do comunismo. A luta de classes não
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
constitui um artigo de fé. Ela é uma realidade e só poderá desaparecer se o capitalismo for
destruído. Por maior que seja a parcela do "bolo" reservada à satisfação da aristocracia operária, ou
das classes trabalhadoras, a ordem capitalista nunca poderá alterar-se de modo a subverter a
relação básica entre capital e trabalho. O próprio capitalista só tem interesse no "amortecimento"
e no "solapamento" da luta de classes, enquanto puder manter integralmente a forma capitalista
de propriedade privada e de exploração do trabalho. O capitalismo reformado é uma baleIa e os
que acreditam nele como "uma forma de revolução democrática", capaz inclusive de superar o
socialismo proletário, nunca tiveram quaisquer elos efetivos com as posições proletárias na luta
de classes. A volta ao Manifesto será, pois, uma maneira de ressoldar os liames do movimento
socialista com o proletariado e com a revolução anticapitalista.
Não faltam análises mostrando o "caráter utópico" do renascimento de uma autêntica
consciência proletária da transformação do mundo porque desapareceram as condições para a
manifestação e o florescimento fermentativo dos conflitos de classes! Insiste-se no crescimento das
classes médias, no estreitamente do setor proletário ou na predominância do trabalho intelectual
para ressaltar que, sob a grande indústria ultra-moderna, a sociedade de massas despolitiza a
consciência e o comportamento ativo das classes oprimidas. Até parece que as classes possuidoras
e dominantes descobriram seu paraíso, graças à civilização industrial recente! Esse pessimismo
radical mostra até onde foi a pressão burguesa, depois de um século de subversão contra-
revolucionária do movimento e do pensamento socialista. Mostra até onde foi depois das versões
de revisionismo, do social patriotismo e do socialismo reformista, para a defesa da ordem, calcada
na idéia de que a revolução proletária tornou-se impraticável ou improvável e um contra-senso
político.
Os que não gostam do capitalismo precisam aprender a conviver com ele, a torná-Io "mais
humano", através da dissidência inteligente e dos movimentos dotados de centros múltiplos de
defesa comunitária da "qualidade da vida"! Ora, o capitalismo é o maior coveiro da qualidade da
vida. Por onde ele passou com vitalidade, nos países do centro e da periferia, superdesenvolvidos,
subdesenvolvidos ou não desenvolvidos, o efeito foi sempre o mesmo. A qualidade da vida não
passa de uma miragem e os múltiplos movimentos que propagam as suas bandeiras apenas
demonstram a impotência dos seres humanos que pretendem conciliar capitalismo e razão. Nem
é preciso a guerra, aberta ou mascarada, para deixar patente que a única defesa correta da
qualidade da vida constitui uma função do desmantelamento da civilização industrial capitalista -
ou qualidade da vida se processa através do socialismo revolucionário, ou o movimento histórico
em sua defesa nunca irá além de uma quimera.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Claro que a revitalização dos ideais revolucionários não pode ocorrer "como se estivéssemos"
no século XIX. A luta de classes é suscetível a várias adaptações. O essencial é que não seja extinta
ou paralisada, em nome de mistificações, como a que a encerra no universo legal e pacifico de
defesa da forma burguesa de democracia. A via democrática compatível com a luta de classes é a
que se cria, graças ao enfrentamento das classes subalternas e oprimidas com as classes dirigentes
e opressoras. Seria ilusório supor que as classes subalternas e oprimidas possam organizar-se para
levar a luta de classes a um patamar revolucionário seguindo à risca o modelo burguês de
democracia ou prescindindo da forma concreta de democracia real interna em seu movimento
histórico. A democracia é um valor supremo, um fim maior e um meio essencial. No caso das
rebeliões dos oprimidos sob o capitalismo, um meio essencial sine qua non: a ordem capitalista
não é negada senão depois da conquista do poder. O deslocamento da supremacia burguesa e a
necessidade da conquista do poder exigem uma democratização prévia, de natureza proletária, das
organizações operárias de autodefesa e ataque. O que entra em jogo não é ou democracia ou
revolução proletária. Desde que o proletariado tenha condições de lançar-se à dinamização da luta
de classes, põe em equação histórica uma forma política de democracia que as classes burguesas
não podem endossar e realizar.
Não são os proletários que têm interesse em despojar-se das condições vantajosas de travar
a luta de classes sob o capitalismo monopolista e imperialista da era atual. Isso é imposto por meios
coercitivos ou suasórios pela violência burguesa. O Estado democrático tem de destruir o
movimento operário ou impedir que ele lute por seus objetivos históricos centrais, porque a
democracia burguesa não é forte para conter os antagonismos gerados pela produção capitalista
e pelo desenvolvimento do capitalismo. Essa forma política de democracia não comporta a
contraviolência dos proletários e oprimidos porque esta extinguiria as bases econômicas, sociais e
políticas da dominação burguesa. Ela não pode conferir liberdade igual a todas as classes sem
desintegrar-se. É impossível reformar o capitalismo de uma forma proletária. Para reformar o
capitalismo de uma forma proletária seria preciso eliminar todas as causas da desigualdade
econômica, social e política que existem e se reproduzem, sob o capitalismo. Quer dizer, engendrar
na sociedade e na civilização capitalistas existentes, a forma histórica que a sociedade e a civilização
tenderão a assumir graças e através do socialismo.
As mistificações dos "socialistas democráticos" são evidentes. A democracia burguesa de
nossos dias é uma democracia armada e, armada contra isso. A "democracia forte" possui as
mesmas causas que o fascismo e busca os mesmos fins. Nasce do temor da burguesia diante da
revolução proletária e pretende paralisar a história. Se tudo isso fosse compatível com a forma
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política que a democracia tende a assumir com a erupção e ascensão das classes subalternas e
oprimidas na história, o mundo moderno nascido da revolução industrial e das revoluções técnicas
sucessivas, que enriqueceram o capitalismo sem modificá-Io em sua substância, seria muito
diferente do que ele é. A Humanidade poderia alcançar uma nova época de civilização sem passar
pelo socialismo e pelo comunismo! O sindicalismo, o anarquismo, o socialismo e o comunismo já
estariam mofando nos porões da história, pois os proletários e seus aliados poderiam construir o
mundo da igualdade, da liberdade e da fraternidade sem ter de recorrer à luta de classes e sem
lançar mão da contraviolência para assegurar certos mínimos que a democracia liberal não confere
a todos de modo universal!
4. Como "fortalecer a revolução" e "levá-Ia até o fim"?
Os proletários relacionam-se com duas revoluções distintas: a) com a revolução burguesa,
como força tutelada e cauda política da burguesia; b) com a revolução proletária, criando as
condições que a tornam possível, dentro da ordem burguesa e, mais tarde, na luta pela conquista
da hegemonia social e do poder político. A literatura socialista fala pouco da relação do
proletariado com a primeira revolução. No plano prático, nos países capitalistas
"subdesenvolvidos", vários partidos de esquerda e os partidos comunistas conferiram à revolução
burguesa o caráter de objetivo central. A falta de rigor teórico levou a erros políticos estratégicos.
É tão verdadeiro que, nos países onde a revolução proletária venceu, os partidos comunistas ou as
forças revolucionárias modificaram, em tempo, a estratégia. Deixaram de separar a burguesia
nacional do imperialismo; reconheceram que as classes burguesas internas não fariam frente às
suas tarefas revolucionárias; entenderam que as crises de poder comportavam a coexistência de
dois padrões de revolução social; e deram prioridade à revolução proletária, percebendo que as
massas a apoiariam com entusiasmo. Esses avanços foram lentos e complicados, pois era preciso
pôr à prova as classes burguesas e ver o que, dentro delas, constituía força revolucionária real. Onde
esta evolução não se concretizou, manteve-se a "ilusão constitucional e democrática", nas piores
condições possíveis. Os proletários e as massas camponesas ficaram à mercê dos apetites de
burguesias débeis e desinteressadas em aprofundar sua própria revolução. Isso abriria espaço
político para as massas destituídas e subalternas e acarretaria transformações históricas
incontroláveis relativas ao proletariado com sua revolução.
As "forças da ordem" se voltam contra as condições de organização e de desenvolvimento
independente dos proletários enquanto classe; contra os sindicatos e partidos proletários ou
identificados com o proletariado, que desenrolem uma propaganda política revolucionária. O
movimento repressivo ataca nos dois níveis centrais a posição proletária na luta de classes.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Qualquer ganho no primeiro nível, oferece à burguesia a vantagem de uma debilitação estrutural e
prolongada das classes destituídas e subalternas. Estas são confinadas à "apatia", não encontram
na ordem capitalista condições para a própria constituição e fortalecimento como classe
independente. A "apatia das massas" é um produto político secretado pela sociedade capitalista
e manipulado pelas classes dirigentes. Qualquer ganho no segundo nível, permite à burguesia
reduzir o alcance e os ritmos históricos da luta de classes, porque se quebra a espinha dorsal do
movimento proletário - a sua vanguarda de classe e política. A intervenção, nesta área, visa impedir
ou solapar os riscos que a atividade revolucionária do proletariado possa acarretar para a
"supremacia burguesa" e sua dominação de classe e eliminar ou reduzir os conflitos de classes
que possam engendrar crises profundas e aproximar as classes destituídas e oprimidas da
conquista do poder.
Não estamos mais no "ambiente pioneiro" dos primeiros processos de industrialização. Nem
a via inglesa nem a via francesa podem mais ser tomadas como modelos: a mudança social
espontânea não produz mais os mesmos efeitos. Porque a burguesia já aprendeu a receita e pode
impedir, no nascedouro, transformações importantes para as classes trabalhadoras. Mas,
principalmente, porque existe um forte componente universal de pressão contra-revolucionária nas
reações burguesas autodefensivas: esmagar enquanto é tempo tem sido a receita primária e eficaz
posta em prática nos tempos atuais. Esse esmagamento sistemático produz um proletariado
anêmico e com fraca base estrutural para movimentar a luta de classes. Torna-se um "inimigo débil",
fácil de ser encurralado ou "fácil de contentar".
Esse esmagamento se faz a partir de muitas tenazes que visam fragmentar as classes
trabalhadoras, no campo e nas cidades. As tenazes vão da manipulação das leis, da polícia militar e
dos tribunais de trabalho até os quadros de dirigentes sindicais e partidários ideologicamente
perfilhados à burguesia e politicamente presos às compensações da ordem. Mas, também vai do
controle ideológico e político dos sindicatos e partidos operários até à atuação do aparelho estatal.
É "natural" para a burguesia ser e afirmar-se como uma classe: ela dispõe da ordem legal e nega a
condição de classe como um "fator de distúrbio", de "insegurança" ou de "desunidade". Com isso,
a condição de sua existência como classe tende a converter-se na condição de eliminação,
alinhamento e capitulação passiva das outras classes.
As alterações históricas mostram que os sindicalistas, socialistas, anarquistas e comunistas
precisam devotar uma atenção mais séria e concentrada às novas formas de mudança social
deliberada que precisam ser postas em prática no presente, se se pretender galvanizar a
constituição do proletariado como classe independente e intensificar o seu desenvolvimento como
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
tal. A burguesia tomou a dianteira, em muitas esferas, através dos movimentos em que se envolvem
o trabalho social e o serviço social como "fator de equilíbrio da ordem" e de consolidação da
"autonomia comunitária". PropaIam-se os objetivos da cultura cívica, da mobilização popular e da
participação ativa dos carentes na solução de seus problemas. Mas, deixa-se na penumbra o fato de
que os "carentes" não têm como equacionar seus problemas e resolvê-Ios, na sociedade capitalista.
A saída seria de deixar de ser "carente" através da proletarização e da luta de classes, forçando-
se o revolucionamento da ordem democrático-burguesa até seus limites e a destruição
revolucionária dessa ordem. Para isso, o movimento sindical e os partidos proletários têm de
libertar-se de certas vias tradicionais que privilegiam a mudança social espontânea, o crescimento
gradual e o aburguesamento da luta de classes.
A burguesia põe em prática uma estratégia de luta global e os proletários devem fazer o
mesmo. Pelo menos a fábrica, o sindicato, o local de existência da família, com alguma forma de
organização partidária e de pressão direta sobre o Estado, podem ser mobilizados de forma
permanente. A constituição do proletariado como classe independente abrange, essa irradiação
estrutural e dinâmica. Ao contrário do que ocorria quando os proletários europeus não constituíam
uma classe e estavam no vir-a-ser da classe, hoje impõe-se um mínimo de poder real, como ponto
de partida. Não o poder do sindicato ou o poder do partido poder mediado, mas o poder intrínseco
à classe, análogo ao que serve à burguesia para armar, manter e reproduzir sua dominação de classe
e seu controle direto e indireto sobre o Estado. A violência da repressão, inerente à contra-
revolução burguesa prolongada, exige essa forma elementar de contrapoder sobre a qual terá de se
sustentar o crescimento orgânico do proletariado como classe independente, em escala nacional.
Esse movimento básico tem de encontrar apoio nos sindicatos e nos partidos operários que não
podem fomentá-lo e dirigi-lo porque dependem da sua existência para ganhar autonomia, crescer
e incorporar-se a dinâmica mais avançada e madura de luta de classes. Só depois que essa atividade
direta produzir certos frutos e um patamar de amadurecimento médio, a classe pode deslanchar
sem que seja permanentemente pulverizada e esmagada pela pressão burguesa "espontânea",
"legal" e "organizada". O contrapoder operário se diferenciará e crescerá quando a classe assumir
os contornos morfológicos e dinâmicos da classe em si, como poder real suscetível de operar como
contrapeso ao poder burguês e de conferir aos proletários e suas organizações a base social e
política para movimentar a luta de classes, em todas as direções estratégicas, contra a supremacia
burguesa às pugnas pela conquista do poder.
Trata-se de estabelecer um patamar histórico a partir do qual eles possam funcionar para os
trabalhadores, não para a ordem existente. Sem a existência de um proletariado constituído como
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clássicos" e "versões atípicas". O objetivo central era criar para a burguesia interna e externas, um
modo de aprofundar a transformação capitalista na esfera econômica, transferindo para um futuro
incerto o atendimento de outras transformações que não poderiam ser realizadas de modo
concomitante.
São alguns fatos crus, essenciais para um debate atual da orientação que deve ser imprimida
à estratégia da luta de classes na periferia, em países que contam com desenvolvimento industrial
de certo porte. Em nome do "combate ao imperialismo" ou da "democratização interna" devem as
classes oprimidas dar apoio aos "setores nacionalistas da burguesia", batendo-se ao lado das "forças
mais avançadas" das classes dominantes pelo aprofundamento da revolução burguesa? Tal debate
não é novo e em quase todos os países da América Latina ele empolgou a vida política através do
chamado desenvolvimentismo. O ponto central do debate está na escolha entre revolução nacional
ou revolução proletária. Socialistas e comunistas não entram nessa escolha já que ambos estão
comprometidos com a revolução proletária. A única saída racionalizadora seria saber se
"taticamente" seria vantajoso apoiar a revolução nacional, como um expediente para forçar a
burguesia a certas concessões, e um fortalecimento indireto do "Estado de direito". Ou para
"aumentar as contradições" do desenvolvimento capitalista, abrindo cunha entre o setor
progressista e o mais retrógrado da burguesia interna, e entre ambos e o imperialismo.
Essa saída constitui um expediente para as "forças da esquerda", quando deixam de cumprir
suas tarefas políticas específicas e, em vez de enfrentarem sua debilidade, buscam no biombo da
revolução nacional uma forma equívoca e evasiva de ilusão constitucional. O que se pôs em prática
foi um típico comportamento de cauda da burguesia, porém destituído de lógica política
proletária. Se se pusesse, em primeiro plano, a luta pela consolidação do proletariado como e
enquanto classe, a área de conflito com a burguesia seria pequena e a força da causa proletária
muito maior. Haveria uma acumulação de forças através do desenvolvimento da classe e, como
conseqüência, a formação concomitante de um espaço histórico, que tenderia a crescer através do
próprio uso pela manifestação dos conflitos de classe.
Assim, seria possível formular o apoio à burguesia em termos proletários: não dos interesses
de facções da burguesia, mas de defesa combativa do aprofundamento de certos níveis da
revolução burguesa. A reforma agrária, a reforma do sistema de saúde e do sistema de educação,
o caráter da revolução nacional e a democratização dos direitos civis e políticos estavam entre tais
níveis. A linha tática teria de definir-se mediante exigências socialistas: é muito difícil para um
proletariado em formação, entender alianças táticas se as reivindicações não forem feitas numa
linguagem proletária e sem qualquer subterfúgio. Não obstante, o que as classes dominantes
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
deixam crescer como problemas e dilemas sociais e não resolvem pelos dinamismos da ordem, é
suscetível de receber uma atenção combativa das classes trabalhadoras e constituir reivindicações
de conteúdo socialista e atendimento imediato.
Essa tática, além de não lançar confusão nos grupos de vanguarda e nas massas populares,
favoreceria um isolamento político crescente das facções mais antidemocráticas e reacionárias da
burguesia e ajudaria a quebrar o monolitismo das classes dirigentes. O próprio imperialismo teria
uma base menor de manobra, pois teria de se defrontar com uma burguesia que levaria em conta
a sua relação com parte das classes trabalhadoras. O que exige reflexão são os custos políticos de
uma manobra desse gênero. Para que ela pudesse concretizar-se seria necessário investir muito
tempo em produção intelectual, em propaganda, em difusão da palavra de ordem e em mobilização
de aderentes e simpatizantes. Seria essa uma escolha prudente, não seria melhor investir tanto
talento e esforços no aprofundamento em duas frentes da luta de classes? Isso não levaria a ignorar
a revolução burguesa e implicaria na análise das debilidades orgânicas e históricas das classes
dominantes e do que se ocultava por trás de seu pro-imperialismo crônico.
Tomando-se casos similares de países de origem colonial e de economia capitalista
dependente, tal análise mostra o que se exigia das classes possuidoras: que só aprofundem a
revolução burguesa em função de seus interesses de classe, do egoísmo e da cegueira que as levou
a congelar a descolonização; que mantenham a democracia como fórmula ritual de concentração
do poder político estatal nas mãos dos setores dirigentes da burguesia; que procrastinem a
revolução nacional; que procurem no imperialismo os recursos e os meios que permitam compensar
suas debilidades estruturais e históricas. Se um painel desses se traduzisse em medidas práticas de
sentido proletário, a mobilização não se faria para fomentar slogans, mas para levar as pequenas
forças organizadas das classes trabalhadoras a uma luta política coerente do pouco que restava à
revolução dentro da ordem.
Um partido proletário não pode situar-se diante da revolução nacional como se ela fosse a
antecâmara da revolução proletária como se pudesse passar de uma a outra, e que a consumação
da revolução nacional, dentro do capitalismo, seria uma etapa necessária e prévia da revolução
proletária. O que fortalece a burguesia e consolida o capitalismo torna mais remota e difícil a
revolução proletária. Por essa razão, a revolução dentro da ordem não é um objetivo intrínseco ao
movimento proletário. O proletariado não pode pretender desempenhar as tarefas revolucionárias
da burguesia e funcionar como fator de compensação histórica. A revolução dentro da ordem é
instrumental e conjuntural para o proletariado, ligado à necessidade histórica de proteger e
acelerar a constituição da classe como classe em si, capaz de tomar em suas mãos o seu
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
As condições históricas para caminhar nessa direção não são tão simples. No contexto latino-
americano o melhor exemplo é Cuba. Para que o nacionalismo possa assumir a forma revolucionária
e libertária é preciso a) que a descolonização não tenha desaparecido na memória viva das classes;
b) que nas classes destituídas e oprimidas, exista uma forte propensão coletiva de buscar, pela
revolução nacional, a instauração da democracia, a redenção dos humildes e o desenvolvimento
equilibrado e independente. A derrota do centro imperial opressor constitui um objetivo central,
mas externo. O essencial é liberar a Nação e eliminar todas as seqüelas da sociedade colonial que
foram reconstituídas e fortalecidas sob a "sociedade nacional", pelo capitalismo neocolonial. O
programa do Movimento 26 de Julho respondia a essa lógica política revolucionária, sem
vassalagem a padrões burgueses europeus obsoletos. No poder, os guerrilheiros congraçaram
todas as classes à concretização desse nacionalismo revolucionário e libertário.
A burguesia imperialista dos EUA repudiou; a burguesia nacional cindiu-se e o grosso sabotou
e combateu como pôde o governo revolucionário, até ser expulsa da coligação governamental e
converter-se em vítima necessária. Os proletários das cidades e do campo apoiaram em massa e
entusiasticamente a revolução desde el poder, servindo de pião à rápida sucessão do estágio
capitalista ao estágio socialista do governo revolucionário. É um exemplo de uma situação
revolucionária que gera uma revolução. O importante é que ela atingiu o seu primeiro apogeu sob
palavras de ordem revolucionárias que serviam à burguesia e aos proletários e no âmbito de uma
transformação revolucionária que se fundava na Nação e não na classe. A classe se mobilizou e se
dinamizou revolucionariamente graças à comoção provocada pela guerrilha, às vitórias sucessivas
dos guerrilheiros e à conquista do poder pelos revolucionários.
Quantos países da América Latina contariam com uma situação revolucionária análoga? Em
quantos surgiria um grupo de revolucionários com o mesmo talento político, a mesma ousadia e a
mesma prudência? Em quantos seria possível casar a situação revolucionária com a revolução nas
condições atuais? Este questionamento não visa afirmar que "Cuba não se repetirá". A resposta é
parte do temor dos Estados Unidos e de burguesias nacionais reacionárias diante de um processo
que terá de repetir-se, embora sem seguir obrigatoriamente "a via cubana". É isso que tem de ser
enfrentado e resolvido pelos que pensam com a lógica da revolução. O próprio êxito da Revolução
Cubana impõe que seja redefinido o caminho da revolução proletária. A contra-insurgência está
organizada, a partir dos EUA, para impedir que a revolução se reproduza da forma como ocorreu
em Cuba. As burguesias nacionais latino- americanas prepararam-se para enfrentar militar e
politicamente a repetição de tal eventualidade.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Manifesto ainda está em dia com as correntes históricas, embora fosse preferível dizer, atualmente:
PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, O MUNDO VOS PERTENCE. IDE À REVOLUÇÃO MUNDIAL!
6. Como "lutar pela revolução proletária" no Brasil?
O Brasil contou com várias situações revolucionárias. Todas foram resolvidas dentro dos
quadros da ordem e com a vitória das forças sociais conservadoras que sabem avançar nos
momentos de maior risco. Em seguida, travam o processo de fermentação social e converter a
transformação revolucionária em uma composição política. Esse padrão histórico de controle
calculado da mudança social revolucionária não é fortuito nem um traço de inteligência das elites:
é um produto do congelamento do processo de descolonização no qual a imensa parte do país
ficou excluída, permanentemente, das formas sociais organizadas e institucionalizadas dos direitos
civis e políticos.
A proletarização, vinculada à lenta generalização do trabalho livre, foi condenada a ter
repercussões maiores apenas em âmbito local ou regional, cabendo a algumas cidades de grande
porte a função de servir como amaciadores e câmaras de compensação. Isso conteve os conflitos
de classes dentro de seus muros e segregou o proletariado em formação e expansão física do resto
da "população pobre". Ficou fácil concentrar socialmente o poder de controle político, jurídico e
policial-militar sobre a sociedade, e afunilar os ganhos produzidos pelos surtos sucessivos do
desenvolvimento capitalista. A composição das classes possuidoras e dominantes alterou-se,
mantendo-se a mentalidade de elite dirigente organicamente senhorial e colonial. O Estado de
direito tornava-se uma presa fácil de setores dirigentes das classes dominantes, empenhados em
"impedir a anarquia da sociedade", em tratar os problemas sociais "como casos de polícia" e em
refazer as técnicas pelas quais a apatia provocada e o "fatalismo" conformista podiam ser
produzidos conforme as exigências da situação.
No passado, a norma era: o escravo é o inimigo público da ordem. Hoje, a norma tornou-se: o
camponês e o operário são o inimigo público da ordem. Portanto, uma forma ultra-violenta de
despotismo superpôs-se à constituição do regime de classes e preservou um padrão neocolonial
de sociedade civil, pelo qual a democracia é uma necessidade e regalia dos que são gente. Quando
veio a chance de enterrar essa herança senhorial, os estratos civis e militares dirigentes das classes
dominantes recorreram a uma contra-revolução prolongada, reconstruindo pela força bruta o
mundo de seus sonhos. Esse era o mundo dos sonhos das "nações capitalistas amigas", numa fase
em que o capitalismo financeiro leva suas formas de produção, de mercado e de consumo para as
"nações estratégicas" da periferia.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
Nos últimos vinte e cinco anos, houve ampla transferência de capitais, tecnologia avançada e
quadros empresariais técnicos e dirigentes e a economia e a sociedade brasileiras foram
multinacionalizadas, com a cooperação organizada entre capitalistas, militares e burocratas
brasileiros com a burguesia mundial e seus centros de poder. O Estado burguês converteu-se na
ditadura civil-militar e promoveu a centralização de poder garantiria a base econômica, a
estabilidade política e a segurança dos investimentos, na escala requerida pelo imenso "negócio
da China" em que se tornou a internacionalização dos recursos materiais e humanos do Brasil.
O que interessa ressaltar nesse quadro global é: a) a relação siamesa entre burguesia nacional
e burguesia externa. Elas não são mais divididas e opostas quando o capitalismo atinge o seu
apogeu imperialista e a divisão mundial do trabalho deixa de operar como um fator de
especialização econômica; b) a universalidade de processos de autodefesa agressiva do
capitalismo que vai do centro para a periferia e exacerba-se nesta, onde o regime de classes não
pode funcionar para preservar certos fluxos democráticos da República burguesa; c) a drenagem de
recursos materiais e de riqueza da periferia por meio de mecanismos mais complexos,
implantados nas estruturas mais dinâmicas e produtivas das economias periféricas estratégicas, e a
institucionalização de uma taxa de exploração da mais-valia muito mais alta, criando para o
proletariado um dilema econômico; d) um agravamento súbito e persistente de tendências
crônicas do desenvolvimento desigual e combinado; a modernização e a industrialização são
"internacionalizadas o que faz com que o impacto sobre o crescimento do mercado interno, a
ampliação da oferta de trabalho e o aprofundamento da revolução burguesa seja amortecido,
conferindo à situação de dependência em uma relação neocolonial; e) graças à diferenciação do
sistema de produção, à industrialização maciça e ao crescimento das forças produtivas, o regime
de classes passa por três transformações concomitantes. Primeiro, aumenta em números e em
diferenciação mais pronunciada das classes; depois, entra na fase na qual os proletários se
constituem como classe em si e começam a lutar por seu desenvolvimento independente como
classe; em terceiro, deixa de operar como parte do universo urbano-industrial, atingindo com
fluidez os que estão proletarizados e os que aguardam a proletarização. Isso representa o início da
quebra do isolamento entre os operários e o resto da população pobre, e maior fluidez, em escala
nacional, dos conflitos de classe movidos pelo proletariado.
Esse quadro global ressalta que a vitalização da revolução burguesa em atraso trouxe muitas
vantagens econômicas para a burguesia interna e acarretou um aumento de sua força como
classe. Ela pode dispor de um sistema de produção mais avançado e conta com um potencial de
defesa e agressão que precisa ser medido na órbita imperial. Os proletários e a massa da população
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
pobre também tiveram algumas vantagens relativas. As mais importantes relacionam-se com a
diferenciação do regime de classes, com o aparecimento de uma vanguarda operária e sindical mais
organizada e mais disposta a dinamizar a luta de classes em termos proletários e à incapacidade das
classes dominantes internas e externas de ultrapassar a crise do poder burguês. As classes
burguesas lutam para remover a exacerbação ditatorial da situação contra- revolucionária. O mais
que conseguem é disfarçar o complexo institucional introduzido na República burguesa pela
ditadura de classe e tentar diluí-lo em um sistema "constitucional" e "representativo" adaptado à
defesa do Estado, pronto para conter e reprimir os de baixo. Isso significa que a crise do poder
burguês está presente e oscilante. As classes burguesas não podem fixar livremente suas
vantagens econômicas, não podem estabelecer os limites sociais e políticos ou graduar os ritmos
da revolução nacional e da revolução democrática. Estas oscilaram para baixo e, se não estão sob
controle dos proletários e da população pobre, não podem ser determinadas independente do que
estes setores da sociedade estejam mal dispostos a tolerar. A ditadura gerada pela crise do poder
burguês não pôde sanar seus males de origem e criou algo extraordinário: uma situação histórica
que possui uma vertente contra- revolucionária e outra revolucionária.
As forças burguesas oscilaram para a primeira vertente e não lograram quebrar o impasse do
poder burguês. Contudo, não se arriscam a fazer uma marcha a ré, por temerem os riscos inerentes
a tal recomposição e por conhecerem que são débeis demais para desencadear as transformações
sociais e políticas da revolução burguesa que foram sufocadas ou restringidas. As forças proletárias
não dispõem de meios para soltar as amarras da vertente revolucionária e os grupos organizados
que lutam a seu lado temem, por interesses de classe ou inibição política, ir além do
aprofundamento da revolução burguesa. Por isso, se batem menos contra a ditadura que pela volta
ao Estado de direito que traga uma Assembléia Constituinte. Para uns, isso traria a revolução
nacional e a democrática de volta à cena histórica e para outros seria o embrião da presença
crescente dos de baixo no controle popular do Estado burguês, abrindo perspectivas para um
socialismo a partir do poder.
Nos dois extremos, prevalece uma interpretação cataclísmica diante dessa situação histórica.
A "direita" se imobiliza porque não confia na massa do povo e se predispõe a defender soluções
rígidas que levariam a contra-revolução ao fascismo. A "esquerda" não avança na defesa ativa das
próprias posições porque dá ao advento do fascismo o caráter de fato inexorável. Teme, "provocar
o leão com vara curta" e prefere colaborar com certos setores da burguesia em plena ditadura,
sustentada no poder civil e militar e no que estas podem fazer para bloquear o desgaste de uma
situação contra-revolucionária que criaram com as próprias mãos.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
realizar sua aprendizagem, acumular forças e ganhar base social, produzir conhecimentos teóricos
de agitação, propaganda e de luta (inclusive armada), para estar pronto e com probabilidades de
aproveitar a situação revolucionária, se aparecer, ou de ajudar a criá-la, a partir de uma fase mais
avançada da "guerra civil oculta", se a história exigir empurrões decisivos e o proletariado, um
parteiro. Tal cálculo político é feito com base na "experiência anterior", levando em conta evoluções
transcorridas e na dinâmica da sociedade de classes, na América Latina. É impossível antecipar qual
vai ser o poder de desagregação dos países em transição para o socialismo depois que encontrarem
as bases para uma coexistência internacional homogênea e cooperativa - e depois que atravessarem
a fase dura da transição que assustou os setores não revolucionários do proletariado, no Ocidente,
e as classes médias, em particular. Hoje, o "cerco capitalista" tem força relativa suficiente para
desgastar os regimes socialistas em formação e em expansão, para criar tensões entre esses regimes
e, inclusive, para deformar o desenvolvimento socialista, aumentando desproporcionalmente os
investimentos não produtivos e diminuindo sensivelmente os ritmos da construção do socialismo.
É provável que, a médio prazo, essa relação será invertida a favor dos regimes socialistas. O desgaste
caminhará, então, no sentido inverso. Pode-se pensar que à atual rigidez autodefensiva do
capitalismo se seguirá uma curta fase de exacerbação da contra-revolução e, por falta de base social
para converter a defesa em ataque e em capacidade de auto-sustentação, a pulverização.
O modo pelo qual os Estados Unidos reagiram à derrota no Vietnã fornece pistas psicosociais
e políticas conclusivas. O desmoronamento, lento no início e rápido depois, será inevitável. Se esse
for o caso, a revolução proletária se beneficiará de fatores externos das correntes da história
mundial do presente. Contudo, é preciso responder às exigências da situação histórica atual,
fornecer ao proletariado, no momento em que ergue coletivamente a sua cabeça, novas
possibilidades de travar suas pequenas e grandes batalhas. Por isso, deve-se seguir a rota batida,
ainda que as esperanças possam ser maiores que as nossas realidades. Um partido desse porte terá
de perder a obsessão pela legalidade. O essencial não é a legalidade, mas o produto da atividade
de tal partido na realização das tarefas revolucionárias do proletariado. Ele deve bater-se pela
legalidade, mas essa nunca poderia nem deveria ser sua preocupação primordial e principal. Os
seus quadros terão de entender que a opção pelo partido constitui uma ruptura com a ordem. Esta
não deve consumar-se só com a vitória da revolução, mas muito antes: todo militante tem de saber
que, ao inscrever-se em um partido desses, rompe praticamente com a ordem e perde todas as
suas garantias ou compensações.
Isso não quer dizer que se deva forjar um clima de pré-revolução neurótico. Ao contrário,
devem estar prontos para defender o direito à revolução, usado pela burguesia e, mais tarde,
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
revolucionário preparado para os mais duros combates? Isto não é questão de opinião, é uma
questão de fato. Em países mais desenvolvidos da América Latina, essa burguesia mostrou-se capaz
de praticar bem sua autodefesa e de procurar uma sólida proteção no imperialismo. Uma classe
dominante, com posições de interesse internacionalizadas, não pode ser medida nacionalmente,
mas na escala mundial para a qual ela avançou historicamente através da incorporação e da contra-
revolução prolongada. Portanto, deve-se levar em conta a via cubana a via chilena e a via
nicaragüense, pois, através delas pode-se aprender muitas coisas. Inclusive porque um país das
proporções, desenvolvimento relativo e com uma burguesia tão hábil em defender seu monopólio
do poder, como o Brasil, necessita de um partido proletário de porte para ir à revolução
anticapitalista e antiimperialista.
O mais importante, na via cubana não está na guerrilha, mas no modo pelo qual os
guerrilheiros conquistaram o apoio dos camponeses e proletários agrícolas para a revolução. Um
partido revolucionário de grande porte terá de chegar ao Exército do Povo e à guerrilha, quando a
guerra civil tornar-se uma guerra civil a quente, de escala nacional. Dar prioridade à guerrilha seria
infantil - as revoluções proletárias não se repetem enquanto história, mas em suas estruturas, no
que possuem em comum, graças à luta de classes. Ignorou-se esse lado, porque não se pensou a
sério na revolução. A conquista e o apoio dos camponeses e semi-camponeses, espalhados por
todo o país, é crucial. Sem eles, uma revolução proletária não teria viabilidade porque as forças
nacionais e externas da contra-revolução fragmentariam o país e isolariam os focos revolucionários
vitoriosos, não dando tempo para que a revolução chegasse à conquista do poder e ao
escalonamento das batalhas decisivas.
Quanto à via chilena é preciso reconhecer que ela não era má em si mesma. Ela foi prematura.
Ela exigia um avanço e um peso maior dos regimes socialistas no equilíbrio mundial do poder. Só
isto poderia impedir que os capitalistas não ousassem e, se ousassem, ousariam para ser batidos
militar e politicamente. Como essa condição histórica não se realizava, a burguesia nacional e as
nações capitalistas centrais, com a superpotência à frente, aproveitaram os erros cometidos como
se apenas colhessem frutos maduros. A via nicaragüense, por sua vez, comprovou a sua eficácia.
Mas, ela cai na categoria da experiência anterior, só que sem possuir as vantagens que favoreceram
os guerrilheiros cubanos. A sua importância está na demonstração de que hoje há um espaço
comum a ser explorado por todas as forças sociais que combatem as iniqüidades das ditaduras de
classe e do imperialismo na América Latina. E que esse espaço conduz a uma redefinição histórica
da relação da burguesia radicalizada e da esquerda unificada com a transformação da ordem. Não
é axiomático que se possa montar no Brasil tal saída e que ela seria o ponto de referência obrigatório
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1. O que não é formação. Certa visão de formação reduzido a formação à realização de cursos,
seminários, palestras...; ou seja, transforma a formação em um evento. É verdade que na
formação se usa aulas, cursos, palestras, seminários.... Mas, se um evento não faz parte de um
processo ou não se torna um fato político é como um incêndio, por maior que seja, só deixa
cinzas. O pior de tudo é achar que a formação é panaceia, o remédio para resolver todos os
males e fracassos de uma organização.
2. O que é a formação – A formação faz parte de um tripé – Organização, Ação/luta e Formação.
Assim, a formação tem uma intencionalidade: qualificar pessoas que já lutam ou se dispõem a
lutar. Por isso, a formação se define como: a) instrumento/ ferramenta de uma organização
para tornar comum uma causa, uma visão de mundo, uma proposta, uma estratégia; b) ajuda a
elaborar ou implantar uma intencionalidade, implícita ou explícita; c) faz com que as ações se
tornem uma prática, uma ação pensada, a serviço de determinada proposta.
3. Tripla tarefa da formação política – A formação, por si só, não transforma a realidade, mas sem
ela não se faz mudanças. Seu papel é contribuir na: a). Elaboração ou implantação de uma
estratégia de poder; b). Qualificação de militantes para a disputa de hegemonia; numa
sociedade dividida em classes, a qualificação (técnica, política e cultural) prepara a militância
para a luta de classes; c). Elevação da consciência e incorporação da massa como sujeito
político e não massa de manobra.
4. A formação é um ato político, como o ato político é educativo. Não existe formação
politicamente neutra. Numa sociedade de classes, não pode haver educação que seja a favor de
todos – será sempre a favor de alguém e contra alguém. A formação serve para que a pessoa se
acomode ao mundo ou se envolva em sua transformação. Ao ser transformadora fica contra
quem se beneficia com a atual situação e a favor de quem é prejudicado por ela. Ao ser
conservadora, se coloca a serviço dos grupos beneficiados com a manutenção da dominação.
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5. A formação acontece na escola. Escola, na origem, significa ócio, espaço do pensar criativo -
uma oficina diabólica ou simbólica. A elite tinha comida e podia filosofar. Veio a separação
entre quem pensa e quem trabalha. Hoje, a escola pode educar ou escolarizar. A simples
escolarização é a nega o ócio (nec+ócio) serve para capacitar e alienar passivos sujeitos que
vendem sua força de trabalho, no mercado, em troca de um salário para garantir sua
sobrevivência e sua continuidade.
6. A Escola trata do saber. Só o conhecimento liberta quando esse conhecimento não se reduz a
enletramento, a assimilação e repetição de conceitos. Escolarização pode levar a erudição, mas
não à formação. “Desde pequeno, tive que interromper minha educação para entrar na escola”.
A informação é conhecimento quando passa a fazer parte da ação das pessoas. É preciso
conhecer o mundo conhecer para transformá-lo.... Assim, quem sabe como fazer, mas não ainda
não fez, ainda não sabe.
7. Os ensinos da dominação viram verdades que são repassadas por instituições, como a família,
ou por lições repetidas pelo senso comum em forma de repressão física, moral e psicológica. A
dominação também usa a religião para legitimar a exploração e conformar a classe oprimida. O
sistema escolar oficial imprime o tom de científico à versão dos fatos, conforme o interesse da
classe no poder. A mídia controlada, empacota e impõe o padrão cultural, em favor dos novos
e velhos colonizadores.
8. Isso, porém, não significa desconhecer ou negar dimensões importantes na educação
"tradicional", como as sadias tradições, o espaço familiar educador, a espiritualidade
libertadora, a escola formadora do espírito crítico, e meios de comunicação que revelam a
opressão e incentivam a participação. Famílias, igrejas, escolas e meios de comunicação foram
e podem ser postos importantes no despertar da consciência e no compromisso de luta pela
transformação da sociedade.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
9. A formação transforma a ação em prática, quer dizer, em ação pensada, intencionalizada. Por
isso, o conhecimento pressupõe a apreensão e a assimilação da realidade e a aplicação do saber
na vida concreta. Entre as fontes que produzem conhecimento estão: a) o trabalho humano, a
luta pela sobrevivência, a experiencia vivida de pessoas e povos; b) a luta permanente contra
toda forma de exploração e dominação – a luta de classes; c) a pesquisa científica feita dentro e
fora da academia.
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Curso Realidade Brasileira – Grande Aracaju
1. A Educação Popular adota a concepção dialética do conhecimento. Afirma que as ideias não
caem do céu, não vêm de berço e que as afirmações idealistas e fatalistas justificam o privilégio
de pessoas e classes. As ideias nascem da prática social – a luta pela produção, luta de classe,
experiências científicas – e tornam-se força material, capaz de transformar as pessoas e o
mundo e, num movimento sem fim, renovar e revolucionar o conhecimento e a realidade.
2. A Educação Popular parte da afirmação que toda história tem dois lados. Por isso, segue o
método dialético que olha a realidade em permanente tensão e intenso processo de luta. O
conflito está na essência da vida dos minerais, vegetais, animais e dos humanos. O conflito gera
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a. É uma pedagogia que tem lado, que serve à classe que trabalha na sua trajetória de construir
uma nova ordem social, alternativa à exploração e a dominação. Esta concepção opta por um
dos polos da luta de classe – a classe oprimida – está a serviço da classe que tem as condições
de entrar em um processo de transformar, pela raiz, a estrutura da sociedade capitalista.
b. A EP tem intencionalidade explícita, pois, o conhecimento tem objetivo, direção e finalidade - é
conhecimento de algo ou alguém, a partir de uma perspectiva. A intencionalidade dá a direção
do conhecimento e a direção da ação deste conhecer. A intencionalidade política da educação
popular é direcionar a ação a partir de uma ideologia, de valores e do direcionamento que dá às
forças sociais e políticas, presentes no meio dos pobres.
c. A EP é uma ferramenta da estratégia de poder da organização popular. Não se forma a pessoa
e depois se vê o que vai fazer. Aposta em quem já luta, pois, o conteúdo, método e ritmo da
formação obedecem a uma concepção de mundo, visão de sociedade e opção por princípios e
valores. A educação está à serviço de uma ideologia e proposta, como instrumento para
formular e realizar sua estratégia. O processo educativo contribui para a formulação,
aperfeiçoamento e implantação da estratégia.
d. O que une pessoas e grupos é a busca de realizar um anseio, de defender um interesse
ameaçado ou buscar uma Causa comum. Na luta, as pessoas não formam um clube de amigos,
embora possam tornar-se amigas. Para dar coesão à sua proposta, uma organização da classe
constrói processos de convencimento para fortalecer o grupo que, por sua vez, luta para tornar
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a) A Educação Popular entende que educar é extrair do povo o que o povo já sabe, mesmo não
sistematizado – o povo sabe o que quer, mas às vezes quer o que não conhece. E também não
sabe que sabe, não tem consciência. A educação popular acolhe o saber comum e problematiza
as “certezas”, além de partilhar o saber acumulado da prática social. Tudo isso contribui na
recriação permanente de novos conhecimentos, para responder às perguntas da vida e aos
anseios da existência.
b) Orientada pela concepção materialista dialética, a EP utiliza o método indutivo e dedutivo. O
método indutivo quando olha as partes e, por um processo de construção e síntese, supera a
ingenuidade e alienação e consegue a apreensão do todo. O método dedutivo quando parte da
visão global para entender as particularidades. Nos dois métodos, é indispensável considerar a
realidade concreta, as pessoas envolvidas como sujeitos e com sujeitos se apropriando do
conteúdo e do método.
c) A tarefa educativa é: a) recolher as ideias dispersas do povo; b) transformá-las em ideias
sistematizadas; c) voltar e divulgar essas ideias ao povo para que as assuma e as traduza em
ação; d) verificar a justeza dessas ideias na vida concreta; e) ir para o meio do povo, aprender
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com ele, tirar das experiências princípios e métodos; f) ajudar o povo a pô-las em prática para
resolver seus problemas e alcançar a libertação e felicidade.
d) A pedagogia popular considera: a) o querer do educador/a, sua mundivisão e acúmulo; b) o
desejo da classe que trabalha expresso em demandas e potenciais; c) o contexto das pessoas
metidas numa teia de relações econômicas, históricas, culturais, políticas, sociais...; d) a postura
de intercâmbio de educadores e educandos em papéis complementares de parturiente e
parteira. Em processos de luta e organização, a formação aposta sobre um grupo que, em
ondas, irradie práticas exemplares.
e) Alguns princípios metodológicos norteiam a pedagogia da formação política: a) toda pessoa é
capaz; b) só a classe oprimida pode ter interesse no processo de libertação; c) quem está no
processo produtivo tem potencial e condições objetivas de fazer a transformação; d) só pessoas
que se dispõem a um processo de mudança devem ser incluídas no programa de formação.
Pedagogias
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pode ser reforço da mesmice, a satisfação com o status quo, a justificativa para o basismo, a
aceitação do contraditório senso comum, a ocasião para oportunismo e demagogia
A populista, uma terceiro modelo, utiliza o discurso da metodologia libertadora e tem a prática
da metodologia autoritária. A intenção é manter as pessoas dominadas; pela manipulação, cria
a sensação/ ilusão de que elas são partes. Com a postura de "boazinhas", algumas pessoas
tomam iniciativa pelas outras e perpetuam nelas a dependência, o sentimento de inferioridade
e a subserviência. Mas, fazer "para" é sempre manipulação, assistencialismo, paternalismo?
Onde ficariam os gestos de gratuidade de quem faz sem exigir correspondência? E por que ficar
"contra" só pode significar ser menos amoroso, mais arrogante e chato(a)?
b. As três posturas pedagógicas: autoritária ("sobre"), libertadora ("com") e populista ("para")
existem em contínua tensão e conflito, em um jogo permanente para superar uma às outras.
Para ser coerente com a visão dialética, não se pode temer a visão crítica sobre as palavras e
conceitos de outras posturas e não se escandalizar com a "briga" das preposições. Às vezes, na
Educação Libertadora, parece haver um império da preposição "com" pela simpatia que o "com"
traz no processo educativo.
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Introdução
1. A pessoa entra na política, se entrega a uma Causa, quando se sente sujeitos político que
reconhece seu potencial de edificar a nova ordem social humana, livre e feliz. Por isso, o
Trabalho Popular é ajudar a massa a soltar sua voz, assumir-se como sujeito político. É mostrar
que a massa não é coadjuvante, mas decisiva, na conquista e manutenção do poder. Quando o
Trabalho Popular tem objetivo, estratégia, planejamento, disciplina, método, continuidade, grau
de organização, ligado à luta concreta... vai contagiar, sustentado pela massa reunida numa
infinidade de pequenos grupos.
2. O Trabalho de Base, então, não pode ser reduzido a atividade de agitação e propaganda,
mobilização, panfletagem, reuniões, visita de casa em casa, ... embora realize todas essas ações.
Da mesma forma, o Trabalho de Base se reduz a apropriação da metodologia de fazer o trabalho
na base. Seria um erro contrapor o conteúdo estratégico do trabalho de base e a metodologia
do trabalho na base, pois, há unidade entre conteúdo e forma - a estratégia justa exige boa
metodologia e vice-versa.
3. O desafio do trabalho popular é responder para que e com quem se quer fazer trabalho de base.
Quando a organização popular tem claro seus objetivos e o caminho para alcançá-lo, deve usar
a melhor metodologia para o trabalho na base. Se o campo popular está em crise de rumo seu
“trabalho de base” vira pedagogismo: uso de metodologias e dinâmicas “participativas”,
insuficientes para implantar na base, um projeto de mudança.
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Concepção estratégica
1. O capitalismo não pode e não se propõe a resolver os problemas do povo; sua preocupação é a
reprodução e a acumulação do capital. Só o sistema socialista se propõe a encarar e solucionar
as contradições da luta de classes. Por causa disso, não pode ser um discurso, tem que ser algo
que possa ser vivido e sentido, no plano econômico, político, cultural, espiritual...
2. Como instrumento da nova ordem social, o trabalho de base tem uma causa justa, um método
de ler a realidade e um projeto de País traduzido num programa popular. Isso requer uma
estratégia de poder, um caminho para alcançá-lo, uma organização que o dirija e dê coesão
política e ideológica e militantes que se disponham a um processo de transformar da sociedade
capitalista.
3. O Trabalho de base é, então, a implantação de uma estratégia de poder, feita por militantes
de uma organização, numa base social. A intenção do trabalho de base é fincar sua bandeira
em um território. Sua tarefa, nessa base social, é: a) resolver, com o povo, os problemas do
cotidiano; b) relacionar a luta imediata, econômica e local, com a luta geral e política; c)
incorporar a massa como sujeito político; d) e preparar novos militantes.
4. Ou seja, o trabalho de base é o enraizamento e a ação política de militantes de uma
organização para concretizar um projeto de transformação social. Para isso, constrói sua força
própria (seu exército) que, ao ser referência, se torna força social que atrai e envolve outros
atores, na sustentação do projeto de transformação. O Trabalho de base transforma a força
potencial da classe trabalhadora em força real capaz de fazer as mudanças. Por isso, há
profunda relação entre Trabalho de Base e Trabalho de Massa no combate ao projeto do capital
- sem hegemonia não é possível derrotar o capitalismo.
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apropriação social. Fazer Trabalho de Base é ser operário da utopia que fundamenta a
esperança coerente, criativa e subversivamente transformadora.
2. O trabalho de base tem ideologia, tem aspirações políticas: fazer o País avançar para a
sociedade sem exploração. Para isso, o trabalho de base resolve problemas concretos da
população, de uma categoria profissional, de um setor da sociedade e produz quadros
militantes capazes de dirigir a luta econômica e de transformar, pela raiz, as estruturas da
sociedade capitalista.
3. O trabalho de base se orienta por uma ética – essa atitude diante da vida leva à luta por um
mundo feliz, fraterno e livre; por causa dessa herança que vem de longe, se vive, se marcha, se
canta. A ética, é a mistura de sonho, ciência e arte que ao concretizar-se supera o discurso, o
romantismo e o idealismo.
4. O trabalho de base é a inserção do Projeto Popular, em cada formação social e cultural. A análise
concreta da realidade concreta faz o projeto se expressar em um programa capaz de mobilizar
um povo e um País. Não pode ser a repetição da formulação teórica de outras experiências
históricas.
5. O trabalho de base traduz a estratégia em táticas adequadas, em bandeiras de luta e em
planejamento com metas, prazos e responsabilidades. A estratégia traduzida é o caminho que
deve envolver todos os atores interessados, desde o conhecimento da realidade até à solução
dos desafios, individuais e coletivos.
6. O trabalho de base requer uma organização com força própria que se enraíza e se torna
referência pela capacidade de reunir, organizar e articular alianças, de conquistar direitos
econômicos e sociais e de educar a classe trabalhadora para um novo modo no exercício do
poder rumo à emancipação da classe.
7. O trabalho de base usa o método dialético que vê a realidade em permanente tensão e intenso
processo de luta. Pois, o conflito gera o movimento, a vida social, a história, a possibilidade de
solução. Por isso, a militância perde o medo do conflito e da luta dos contrários. Em vez de
desconhecer, esconder ou conciliar, vê a contradição como possibilidade de transformação.
8. O trabalho de base aplica a matriz orgânica que une, movimento de massa e direção militante.
Esse modelo de organicidade aposta na qualidade para atingir a massividade organizada, única
força capaz de transformar a realidade social. A massividade fermentada se torna a sementeira
permanente, na multiplicação de lutas e renovação de sementes.
9. O trabalho de base requer direção coletiva que sistematiza o saber que o povo traz
desorganizado. Sua missão é educar e elevar seu nível de consciência, organização e de luta. A
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direção é escolhida pela confiança e reconhecida por méritos: inserção na massa, iniciativa,
vontade, coragem, disposição, clareza do rumo, leitura da realidade e propostas justas na
conjuntura.
10. Só militante faz trabalho de base porque carrega a proposta e a estratégia da organização
popular. A militância desperta a classe para assumir-se como sujeito político e transformá-la no
exército popular que enraizado no “território”, dá sustentação ao sonho, projeto, plano,
ideologia... O militante mergulha numa base social concreta e, com ela, formula o plano de
trabalho.
“Como seria a condição humana se não houvesse militantes? Não porque militantes sejam
perfeitos, sempre tenham a razão, sejam super-homens e supermulheres ou porque não
errem. Não é isso. É que militantes não vêm para buscar o seu. Vêm entregar sua alma por um
punhado de sonhos.
Afinal, o progresso da condição humana, fundamentalmente, depende de que exista gente
que se sinta feliz em gastar sua vida a serviço do progresso humano. Ser militante não é
carregar uma cruz de sacrifício. É viver a glória interior de lutar pela liberdade em seu sentido
transcendente” Pepe Mujica
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Antes de tudo, o trabalho de base é fazer fazer. É aproximar-se, é meter o corpo na realidade,
é mergulhar numa base social, é formular e acompanhar um plano de trabalho que cria as tarefas
permanentes para realizar. Não existe receita para fazer o trabalho de base; depende do contexto
e da conjuntura. Às vezes, é o inimigo quem determina o caminho a seguir. A militância deve
conhecer e trocar experiências, mas é por seu amor pela causa que ela tenta, cria, inventa. Porém,
ao comparar a prática de vários lugares, é possível descobrir pontos em comum que podem inspirar
novas práticas.
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Sugestão de passos
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f. Descobrir sementes de militantes - Mais importante que fazer grandes reuniões é descobrir
pessoas insatisfeitas e com disposição para as mudanças, que pensem além de sua família, que
sejam coerentes entre o que prometem e o que fazem, e que sejam discretas. Pessoas que se
destacam nesses critérios podem tornar-se referências, mais adiante.
g. Fazer ações concretas - Os dados da realidade ou a conjuntura podem sugerir propostas de ação.
A militância deve sentir o que o povo quer fazer. A ação a ser feita é aquela onde povo participa
porque está no seu nível de compreensão e no ritmo que o grupo suporta: um jogo, uma festa,
celebração, protesto, mutirão, disputa política... A experiência do confronto ensina mais – o
povo se mexe quando sente que vai perder ou pensa que vai ganhar.
A militância pode e deve apresentar propostas, sem impor; as ações impostas não são
assumidas ou acomodam. É decisivo acertar nas primeiras ações - é essencial analisar a
possibilidade de vitória. Na luta, se ganha ou se perde. Mas, é a vitória que anima a vontade de
continuar. A derrota, no começo, aumenta no povo o sentimento de fraqueza e impotência.
h. Organizar a base - A Organização Popular é uma ferramenta para juntar, ampliar, animar o
processo, fazer a formação, repartir o poder e conquistar vitórias. O Grupo de Base é essencial
no Movimento; é seu alicerce, sua força, seu exército organizado. É a porta de entrada que
acolhe, escolhe e prepara as pessoas que servem para a organização popular. O Grupo de Base
deve ser formado por quem já vestiu a camisa do Movimento. Nunca é um clube de amigos, um
comitê eleitoral, uma associação ou comunidade de igreja. O Grupo de Base é a afirmação do
poder popular.
i. Formação política - Uma ação para ter continuidade exige preparação e avaliação constante.
Fazer ações e refletir sobre elas é a primeira “escola” onde a militância e povo se qualificam. A
formação é uma necessidade de quem luta pela vida. Só o entusiasmo e a força são insuficientes
para vencer a opressão.
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A classe oprimida precisa descobrir as raízes da exploração e criar respostas para os desafios
cotidianos; precisa juntar a força e o pensamento para vencer o inimigo. Sem formação, a luta
mais feroz se reduz a luta contra os efeitos da exploração. O trabalho de base deve formular um
programa de formação que eleve o nível de consciência de sua base, militância e direção.
j. “Sair” do território - O Trabalho de Base se fortalece quando une a luta imediata de um território
com a luta geral da classe, no nível regional, nacional e internacional. Na “saída” para ver outras
lutas a militância ganha experiência e habilidade; alarga seu horizonte e conhecimentos; observa
outras pessoas e práticas. Eleva seu nível de consciência e o ardor de sua fé socialista.
k. Fazer a propaganda - Quem acredita no que faz, quer espalhar essa proposta. Propaganda não
é inventar emoções para impressionar ou iludir. Fazer propaganda é repartir as lições que o povo
aprendeu, na sua luta. É denunciar as injustiças e falar dos sonhos para atrair gente para a
mesma esperança. No início, a propaganda se faz de pessoa a pessoa. Quando a experiência cria
raízes e já encara o sol, a propaganda se faz de forma aberta: faixas, imagens, boletins.... Muita
gente é atraída para a luta popular, atingidos pela propaganda.
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e. Espírito de sacrifício - Quem diz luta, diz sacrifício, mas se deve evitar os sacrifícios inúteis.
Não é martírio onde as pessoas estão mais preparadas para sofrer e morrer. O sacrifício
nasce do enfrentamento da opressão. Ninguém luta porque gosta; sabe que toda luta
envolve risco, porém, não impõe pré-condições de conforto e facilidade, nem tratamento e
mordomias.
f. Pedagogia é o exemplo - “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é preciso que a
pureza e a justiça existam dentro de nós”. O exemplo que é a coerência entre o que se diz e
o que se faz convence. A convicção das pessoas se manifestam na postura e palavra da
militância são força e alimento na vida, no trabalho produtivo, no estudo, nas atitudes
(dedicação, entusiasmo, uso do recurso coletivo), na participação num posto concreto da
luta e na simplicidade de vida.
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