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O corpo do improvisador
Raquel Valente de Gouvêa1
Resumo
Abstract
1
Doutora em Educação, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação – LABORARTE, Faculdade de Educa-
ção, UNICAMP, Campinas, SP. Mestre em Arte e Bacharel em Filosofia pela mesma instituição. Docente na pós-graduação em “Arte-
Educação e Inclusão” das Faculdades de Atibaia, FAAT. Docente de Filosofia e Ética no ensino fundamental II
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minado fortemente pelas pulsões. Como Barba: “Eles são um meio de desnudar o
veremos adiante, este corpo em estado corpo de hábitos cotidianos, para evitar
de criação de dança aproxima-se da no- que ele seja apenas um corpo humano
ção de corpo intensivo ou corpo-sem- condenado a se parecer consigo mesmo,
órgãos (CsO) proposta por Gilles Deleu- para apresentar e representar somen-
ze e Felix Gattari, até encontrar melhor te a si mesmo” (1995, p.16). Desnudar
abrigo na noção de corpo paradoxal de o corpo comum para revelar corpos de
José Gil. Mas antes de lá chegarmos, al- expressão, nos quais o imperativo dado
gumas reflexões são necessárias. pelos gestos significados na experiência
O corpo comum, cotidiano, com e no vivida não mais condicionam uma ex-
qual experimentamos a vida, é um cor- pressividade naturalizada pelos hábitos
po útil, necessário; nele e por ele efetu- e pela repetição do mesmo. Desvelar um
amos todas as ações cotidianas, que não corpo muitas vezes desconhecido, por
necessitam da atenção contínua da auto- meio do qual o ator, dançarino e impro-
percepção. Este corpo mostra ao mundo visador possam manifestar a novidade,
a pessoa como ela é em suas atividades o imprevisível que se esquiva entre as
e necessidades triviais e, neste sentido, é ações conhecidas e vivenciadas. E para
diferente do estado corporal desejável e acessá-lo, ou melhor, para que aconteça
necessário ao artista tanto no momento a metamorfose que transforma um corpo
da criação como na preparação ou apre- comum em um corpo cenicamente mo-
sentação da obra, e por isto as técnicas dificado pela artificialidade do gesto, o
empregadas para a realização das ações
artista se vale de técnicas “extra-cotidia-
cotidianas diferem das técnicas corpo-
nas” (Barba, 1995) para obter os resulta-
rais em arte.
dos estéticos desejados em suas criações.
Eugenio Barba (1936-), mestre da
Entendo que em ambas as situações,
arte teatral e fundador da ISTA – Esco-
cotidiana e cênica, trata-se de desvelar
la Internacional de Antropologia Teatral
a diferença no plano da presença psico-
(1995), afirma que as técnicas cotidianas
física do artista (mesmo admitindo que
empregadas para as ações comuns resul-
esta noção não diga com clareza a expe-
tam de condicionamentos impostos pela
riência que tenho em mente); a diferença
educação em amplo sentido, processo
este que o autor chama “aculturação co- que surge do envolvimento e presença
letiva”. Barba (1995), assim como Rudolf total à experiência que o afeta e o toca.
Laban (1978), entende que para o corpo A eficiência do corpo comum está
realizar as ações cotidianas não é neces- ligada aos aprendizados assimilados ao
sário um grande investimento de ener- longo da vida, às muitas repetições que
gia psíquica e física, pois, nestas ativi- realiza nas atividades simples ou com-
dades há uma economia do esforço, isto plexas, as quais estão também direta-
é, um mínimo dispêndio de energia na mente relacionadas ao meio cultural e
execução das ações cotidianas. Por outro aos pressupostos e opiniões que orien-
lado, as ações cenicamente construídas tam a percepção neste e deste meio em
demandam, para Barba, uma qualidade que vive e que aprende a ocupar como
diferente de esforço psicofísico, que en- um corpo-objeto ou mesmo como um
tendo ser uma presença psicofísica mo- corpo-sujeito. Neste corpo, as ações que
dificada, que aumenta interna e externa- compõem o comportamento são predo-
mente as potências expressivas do corpo minantemente automatizadas, mostran-
do artista. do a força e a resistência de um corpo
A pesquisa proposta pela Antropo- continuamente estratificado pelas deter-
logia Teatral visava encontrar os princí- minações exteriores e pelas marcas do
pios básicos do trabalho de ator recorren- vivido. Um corpo treinado, adestrado e
tes em diferentes culturas, pois, segundo condicionado a refazer os caminhos co-
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nhecidos mesmo diante da diversidade mundo. Um corpo em arte nos leva a uma
de relações possíveis que a vida lhe ofe- mudança real no modo de ver, de perce-
rece tem uma utilidade prática impor- ber e de existir.
tante na sustentação e estabilidade do
corpomente, entretanto, para a criação
Corpo luminoso, intensivo,
da dança estas marcas são obstáculos
corpo sem órgãos.
ao surgimento da novidade e mesmo de A prática em sala de trabalho com dan-
uma resignificação autêntica do vivido5. çarinos e atores associada a minha vivência
O corpo comum, em geral, é percebido pessoal da improvisação orientaram o meu
pelo homem comum como uma presença olhar para uma perspectiva ampliada do
de fundo da qual o sujeito é consciente de corpo do improvisador. Durante o mestra-
forma intermitente, ou seja, no dia a dia do (Gouvêa, 2004) a investigação deste cor-
o todo e as partes deste corpo aparecem po se deu de uma maneira rizomática, que
em primeiro plano para a consciência em me permitiu encontrar conexões imprová-
intervalos irregulares e descontínuos. A veis entre arte, ciência, psicologia, antro-
descontinuidade da auto-percepção per- pologia, terapias alternativas. Em todos
mite, por exemplo, que a consciência se estes territórios do conhecimento humano
distancie da realização das ações para se e também das sabedorias de diferentes cul-
concentrar na atividade reflexiva e racio- turas existem rastros de uma compreensão
nal, criando a falsa impressão de uma de- do corpo energético e sutil que entendo ser
sarticulação entre pensamentos e ações. o corpo criador do improvisador. Entretan-
Estas maneiras de existir que segregam to, foi na pesquisa de doutorado (Gouvêa,
um corpo comum nos afastam da presen- 2012) que encontrei uma maneira mais ins-
ça expressiva, da integridade corpomente, tigante para pensá-lo: a filosofia.
do acoplamento perfeito entre pensamen- Pensando este corpo outro, Deleuze
to e ação. Não encontro nestes corpos as dialoga com a ideia de corpo-sem-órgãos,
qualidades necessárias para pensarmos o o corpo do ator de Antonin Artaud: “Para
corpo do improvisador, o corpo que pode além do organismo, mas também como
intuir diretamente a dança na atmosfera limite do corpo vivido, existe aquilo que
da criação do improviso e que é sensível Artaud descobriu e nomeou: corpo sem
e atento às forças afetivas que se movem órgãos” (2007, p. 24). Em Mil Platôs en-
interna e externamente nos entrelugares contramos o seguinte texto: “O organis-
da dança. mo não é o corpo, o CsO, mas um estrato
Para além do corpo comum, parcial- sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de
mente consciente, e do corpo físico-mecâ- acumulação, de coagulação, de sedimen-
nico, biologicamente entendido por meio tação que lhe impõe formas, funções, li-
de órgãos integrados, o corpo do artista, gações, organizações dominantes e hie-
sobretudo nas artes corpóreas, transmuta- rarquizadas, transcendências organizadas
se em corpo sutil, vibrátil, fluido e nebu- para extrair um trabalho útil” (Deleuze &
loso. A metamorfose é já uma mudança Guattari. 1996, p.21).
intensiva na percepção, um excesso que O corpo-sem-órgãos (CsO) está “para
faz jorrar a profundidade deste corpo até além do organismo”, isto é, ele o ultrapas-
a superfície: uma passagem que permite sa ao se contrapor à organização dos órgãos
a atualização de forças expressivas que se definida pela noção de organismo, aqui en-
agitam e que reivindicam sua forma no tendido como um “conjunto regulado de
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O novo e a novidade são potencialidades co-presentes que podem ou não ser atua-
órgãos submetidos a um princípio de uni-
lizadas pelo improvisador, dependendo de muitos fatores, entre eles, a quebra dos dade orgânica, uma forma que aprisiona o
condicionamentos físico-motores e psíquicos auto-replicantes. Entende-se por novo
qualquer composição de forças que surge como diferença tanto do ponto de vista corpo numa organização corporal definida”
estético da dança quanto da experimentação dos improvisadores. O novo, para ser
potente e afirmativo, deve provocar encontros e desvios sem que os sentidos da obra
(Machado, 2009, p.233). Mas ele também é
se percam, sem que o improvisador rompa com a imanência do improviso. o limite do corpo fenomenológico, corpo
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REFERÊNCIAS
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tral. Tradução Luís Otávio Burnier. Campinas, SP: Hucitec, 1995. 271p.
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LABAN, Rudolf. O domínio do movimento. Tradução A.M. De Vecchia e M.S. Netto. São
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