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EZEQUIEL

INTRODUÇÃO
Pano de fundo histórico pela ênfase no templo (40-48). Ele era
O livro de Ezequiel está relacionado a um casado, mas sua mulher morreu duran-
dos períodos mais críticos da história de te o curso de seu ministério (24.15-18).
Israel. Os oráculos do livro cobrem um Diferentemente de Jeremias, seu contem-
período de 22 anos, de 593 a 571 a.C. (v. porâneo, Ezequiel exercitou sua carreira
quadro da página 949). Durante esse tem- profética na Babilônia. Muitos de seus pri-
po a cidade de Jerusalém foi sitiada e des- meiros oráculos lidam com acontecimen-
truída. O templo fora queimado e a monar- tos ocorridos em Jerusalém e Judá. Esses
quia chegara ao fim. A população de Judá fatos e os detalhes dos próprios oráculos
sofria as privações resultantes da guerra. levaram alguns comentaristas a sugerir
Muitos iriam para o exílio. que Ezequiel passou parte de sua carrei-
Do ponto de vista humano, boa parte ra profética na Palestina. Entretanto, não
da discórdia do período era motivada pela há afirmação alguma no livro que apoie
instabilidade política geral do Oriente Mé- diretamente essa perspectiva. Como um
dio naquele tempo. A Palestina, uma pe- exilado que profetizava para outros exi-
quena região, era constantemente afetada lados, Ezequiel se preocupava, sem dúvi-
pelas mudanças no equilíbrio do poder em da nenhuma, com as esperadas catástro-
toda aquela região. O Egito era uma antiga fes em sua terra. Sua plateia certamente
superpotência. A Assíria tinha começado a também estava ansiosa para ouvir sobre
ruir, mas a Babilônia estava ficando cada o destino de seu país. Mas é evidente que
vez mais forte. Israel, o Reino do Norte, devemos esperar que os acontecimentos
tinha sido destruído pelos assírios em em Israel/Judá ocupassem parte substan-
722/721 a.c. As alianças do reino de Judá cial de seu trabalho profético. Ser capaz
se alternavam entre o Egito e a Babilônia. de perceber o que estava acontecendo em
Quando o rei Jeoaquim tentou se rebelar terras distantes do lugar onde morava era
contra a Babilônia, por volta de 601-600 uma habilidade necessária para um profe-
a.c., Nabucodonosor respondeu com o ta exilado na Babilônia.
cerco de Jerusalém e sua consequente do- Como profeta, esperava-se que Ezequiel
minação, em 597 a.C. Cerca de dez mil de relatasse suas visões ao povo. Algumas ve-
seus habitantes (2Rs 24.14) foram levados zes ele usou muito mais do que simples
para o exílio. Um desses exilados era um palavras para isso. Em muitos casos ele
sacerdote de nome Ezequiel. representou parte da profecia. Recursos
visuais não são nenhuma novidade. A
o profeta Ezequiel representação da profecia incluía deitar-
Tudo que sabemos sobre Ezequiel vem do se amarrado por cordas (4.1-8), raspar a
seu livro de profecias. Mesmo nele a in- cabeça e cortar parte do cabelo com uma
formação é pouca. Ezequiel era sacerdote espada (5.1,2), cobrir o rosto e passar
(1.3) bem como profeta. Sua formação através de um buraco na parede (12.3-7),
sacerdotal é demonstrada em sua preo- tremer (12.18) e não lamentar a morte de
cupação pela pureza ceremonial (4.14) e sua esposa (24.16-24). Não é de admirar
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que sua sanidade tenha sido questionada. Essas duas expressões não são inter-
Contudo, a própria estranheza de suas cambiáveis. Elas dão uma indicação do
ações, assim como seus oráculos, serviram tipo de profecia que seguirá. A primeira
para atrair atenção para a sua mensagem. expressão é de longe a mais frequente. Ela
Parece que sofreu também uma perda par- indica o início de uma mensagem verbal
cial da fala em parte de sua carreira pro- de Deus a qual normalmente deverá ser
fética. Seu pleno poder de fala retomou retransmitida ao povo de Israel. A segun-
quando Jerusalém caiu (33.21,22). da expressão é utilizada para indicar uma
Apesar de suas ações incomuns, Eze- experiência mais intensa, onde o profeta
quiel era muito respeitado como profeta. é afetado fisicamente. Ela é usada em to-
Dezoito meses depois da sua primeira vi- dos os grandes oráculos visuais, em que
são, os anciãos do povo começaram a pro- Ezequiel se sente transportado para dentro
curá-lo regularmente para consultas (8.1; da própria visão.
também 14.1; 20.1; 33.30,31). Entretanto, Os oráculos são agrupados de acordo
parece que, embora fosse admirado, nem com o assunto e nem sempre seguem uma
sempre o levavam a sério (33.30-33). É ordem cronológica estrita. Cada oráculo é
muito fácil admirar um líder moral e espi- independente de seus oráculos vizinhos.
ritual, mas nem sempre é tão fácil colocar Em alguns casos, oráculos próximos são
em prática o que ele prega. O exemplo su- separados um do outro pelo período de
premo é o de Jesus Cristo (v. Mt 7.24-29). alguns anos. Em geral a construção do li-
Ezequiel não era escravo de conven- vro traz a marca de uma mente claramente
ções sociais. Vivia sem conforto em meio organizada. A impressão é reforçada pelo
a uma sociedade confortável. Ele pertencia uso repetido de um conjunto de frases e
a uma minoria que havia se mudado à for- da natureza quase rítmica de muitas par-
ça, em decorrência da guerra em seu país. tes do texto.
Sua religião era de fato uma religião de A natureza do tema significa que os
minoria, lutando para sobreviver em uma primeiros 32 capítulos consistem em ad-
sociedade pluralista e multicultural. A po- vertências sobre o desastre, e os últimos
derosa nação em que estava exilado tinha 16 consistem em promessas de esperan-
muitos deuses, mas ele tinha apenas um. ça. O ponto de virada no livro acontece
Contudo, com forte convicção, ele procla- com a queda de Jerusalém (33.21,22). Ele
mou a mensagem de que havia somente estabelece a fundação daquilo que virá
um Deus, que ao final salvaria seu povo, a a ser conhecido como literatura apoca-
despeito do que fizessem outras nações. líptica. Certamente sua influência mais
forte pode ser encontrada no livro do
o livro de Ezequiel Apocalipse, onde muito do simbolismo
Apesar da reputação de ser obscuro e conter é bem similar ao que encontramos no li-
dificuldades textuais, o livro de Ezequiel vro de Ezequiel. (V artigo: Apócrifos e
tem uma estrutura muito bem definida. É Literatura Apocalíptica).
uma coletânea de 52 oráculos, visões ou
mensagens divinas, descritas pelo profeta A mensagem do livro
Ezequiel. A narrativa é mínima, fornecida O livro de Ezequiel como um todo consis-
apenas para proporcionar um contexto a te em advertências iniciais de calamida-
cada um dos oráculos. Entretanto, o início des seguidas de promessas de restauração.
de cada oráculo é claramente indicado por Assim como as calamidades anunciadas
uma de duas frases - "veio a mim a pala- vieram a acontecer, também se cumpri-
vra do SENHOR" ou "A mão do SENHOR veio riam as promessas de restauração. O povo
sobre mim". de Deus, que tanto sofrera no passado,
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seria finalmente salvo de sua misena. ser instrumento de Deus, mesmo ao ponto
Israel retomaria a seu Deus e à sua terra de punir a Israel.
prometida. Eles seriam o seu povo, e ele As imagens no livro de Ezequiel podem
seria o Deus deles. ser perturbadoras. Os oráculos de Ezequiel
Vários outros temas podem ser encon- estão relacionados a um dos períodos mais
trados nos oráculos. A questão da res- negros da história de Israel. Durante sua
ponsabilidade humana aparece de várias carreira profética seu povo seria disper-
formas diferentes. A destruição pela qual sado, e a cidade de Jerusalém e o templo,
Israel passaria era resultado de sua própria destruídos. Todavia, o livro termina com
perversidade. Sua punição era consequên- uma mensagem de esperança. No final dos
cia de sua idolatria. Todavia, a culpa não tempos, o Pastor reuniria suas ovelhas.
era uma questão puramente comunitária.
As pessoas não foram punidas simples- Ezequiel para os dias de hoje
mente devido ao pecado de seus ancestrais O livro de Ezequiel tem passagens que são
(cp. 18). Eles eram culpados pelo que cada dificeis de interpretar e ainda mais dificeis
um deles, individualmente, tinha feito, de aplicar. Pode ser um consolo para o lei-
mas essa questão ainda será mais bem tra- tor moderno o fato de saber que mesmo os
balhada. Ser considerado justo não é ape- antigos rabinos tiveram de refletir longa-
nas uma questão de somar pontos positivos mente e com afinco sobre o conteúdo do
para compensar os negativos (uma posição livro. Há também a tendência infeliz en-
comumente defendida também nos dias de tre algumas pessoas de se sentir atraídas
hoje). Tinha de haver uma mudança funda- por passagens mais obscuras em vez das
mental e duradoura no coração do indiví- que são mais simples e diretas. Entretanto,
duo (18.30-32). muitos pontos são úteis no nosso empenho
Outro tema importante é o relacio- de estudar o livro. Primeiro, é importante
namento de Deus com o seu povo. Uma lembrar que o livro é uma coletânea de orá-
frase que aparace com frequência por todo culos independentes. Podemos facilmente
o livro é que os acontecimentos previstos identificá-los, pois todos começam com
ocorreriam de modo que eles "saberão que a expressão: "Veio a mim a palavra do
eu sou o SENHOR". As calamidades não SENHOR" ou: "A mão do SENHOR veio sobre
eram apenas uma forma de punição. Elas mim [Ezequiel]". Os oráculos são agru-
eram também um meio de levar o povo ao pados por temas, embora nem sempre em
conhecimento de seu Deus. Esse relacio- ordem cronológica estrita, e podem variar
namento especial é enfatizado ao longo em tamanho, indo de poucos versículos a
de todo o livro. Ele os ajuntaria e os guar- vários capítulos. Pelos oráculos datados
daria da mesma forma que um pastor faz sabemos haver, às vezes, lacunas de vários
com suas ovelhas. Um pastor viria para anos entre eles, de modo que é melhor es-
zelar por eles e também para governá-los colher um oráculo específico, lê-lo do co-
(34.1-31; 36.24-28). meço ao fim e considerá-lo em si mesmo.
Contudo, o íntimo relacionamento en- Em segundo lugar, Ezequiel tende a ser
tre o Senhor e o povo de Israel não signifi- uma prosa quase poética em seu estilo. Há
cava que outras terras e nações estivessem temas e expressões recorrentes em todo
fora da esfera de sua autoridade e controle. o livro. Uma expressão que pode parecer
Os oráculos de Ezequiel às nações estran- misteriosa em certa seção pode ficar mais
geiras tomam bem claro que Deus não é clara em outra. Algo que ajuda, portanto,
simplesmente um divindade local que go- é começar por aquelas passagens menos
verna Jerusalém e os montes ao redor. De "empolgantes" para se obter uma noção
alguma maneira uma nação pagã poderia da linguagem e do pensamento do livro.
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Por essa razão é melhor não começar pelos também têm seus ídolos, falsos profetas,
capítulos iniciais. Os oráculos mais lon- santuários corruptos, instituições decaden-
gos 1.1-3.15; 8.1-11.25; 38.1-39.29 tes e fanatismos nacionais. Quaisquer que
e 40.1-48.35 deveriam ser lidos por úl- sejam seus nomes, as palavras de Ezequiel
timo. O cp. 12 talvez seja um bom ponto podem muito bem ser aplicadas aí.
de partida. Há o perigo de se aplicar aos dias de
Em terceiro lugar, também ajuda muito hoje de forma rigorosa demais aquilo que
ter sempre em mente os temas gerais que aconteceu há quase dois milênios e meio,
marcam e ligam os oráculos. Os cp. 4-24 especialmente quando nomes semelhantes
contêm advertências sobre a iminente des- aparecem (particularmente Israel). Não
truição de Jerusalém por Nabucodonosor. obstante, o perfil geral dos problemas so-
Os cp. 25-32 contêm advertências às ciais contemporâneos é tão semelhante
nações vizinhas sobre sua atitude em re- que os princípios podem ser aplicados fa-
lação a Israel em tempos de aflição, e os cilmente. A sociedade, assim como Deus,
cp. 33-48 contêm mensagens de espe- não muda.
rança ao povo de Israel, depois da queda
de Jerusalém.
A situação política do povo de Israel Leitura adicional
naquele tempo era, obviamente, bem di- ELLIsoN, H. L. Ezekiel: the man and his
ferente da atual. Contudo, por trás dos message. Paternoster, 1956.
detalhes políticos podemos ver uma so- TAYLOR, J. B. Ezequiel: introdução e co-
ciedade sobrecarregada por desairosos mentário. SCB. Vida Nova, 1984.
problemas comuns: incerteza quanto ao DAVIDSON, A. B. The book of the prophet
futuro; sublevações internacionais; plura- Ezekiel. CBSC. Cambridge, 1906.
lismo religioso; corrupção institucional; WEVERS, 1. W. Ezekiel. NCB. Eerdmans,
fé desordenada. As sociedades modernas 1969.

ESBOÇO
1.1-3.21 Ezequiel é comissionado
1.1-3.15 O chamado de Ezequiel
3.16-21 A responsabilidade do atalaia

3.22-24.27 Advertências sobre a iminente destruição de Jerusalém


3.22-5.17 Mensagens encenadas: a previsão do cerco a Jerusalém
6.1-14 Profecias contra a idolatria em Israel
7.1-27 Advertência sobre o iminente desastre em Israel
8.1-11.25 A idolatria de Jerusalém e sua punição
12.1-16 Uma mensagem encenada: a previsão do exílio
12.17-20 Uma mensagem encenada: o tremor de Israel
12.21-25 A profecia será cumprida ...
12.26-28 ... e cumprida logo
13.1-23 A condenação dos falsos profetas e profetisas
14.1-11 A condenação da idolatria
14.12-23 O julgamento de Israel não será evitado pela retidão de
alguns
15.1-8 Jerusalém: a videira inútil
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16.1-63 Jerusalém: a esposa promíscua e infiel
17.1-24 Águias, cedros e uma videira - uma parábola política
18.1-32 A responsabilidade do indivíduo
19.1-14 Lamentos pelos príncipes de Israel
20.1-44 A persistente rebeldia de Israel
20.45-49 Julgamento pelo fogo
21.1-7 Julgamento pela espada
21.8-17 A espada é afiada
21.18-32 A espada do rei da Babilônia
22.1-16 Os pecados de Jerusalém
22.17-22 A fundição de Israel
22.23-31 Injustiça na terra: corrupção em todos os níveis
23.1-49 Oolá e Oolibá - irmãs adúlteras
24.1-14 A parábola da panela: Jerusalém cercada
24.15-27 A morte da esposa de Ezequiel e o significado do lamento

25.1-17 Profecias contra as nações vizinhas


26.1-28.19 Profecias contra Tiro
26.1-21 A autossatisfação denunciada
27.1-36 Um lamento
28.1-10 Contra a arrogância
28.11-19 Expulsão do "Éden"

28.20-26 Profecia contra Sidom: "Saberão que eu sou o Senhor"


29.1-32.32 Os oráculos egípcios
29.1-16 Egito: declínio e queda
29.17-21 A recompensa de Nabucodonosor
30.1-19 Um dia negro para o Egito
30.20-26 Os braços quebrados do faraó
31.1-18 A lição do cedro com muitos ramos para o Egito
32.1-16 Lamento pelo Faraó
32.17-32 A descida do Egito para o domínio da morte

33.1-20 O escopo da responsabilidade


33.21,22 Ezequiel recupera sua fala
33.23-33 A posse ilegal de Israel
34.1-48.35 Profecias de restauração
34.1-31 Os pastores de Israel são denunciados
35.1-36.15 Profecias e montes: advertências a Edom e encorajamento
a Israel
36.16-38 A restauração de Israel
37.1-14 O vale dos ossos secos
37.15-28 A reunião de Israel
38.1-39.29 Profecias contra aqueles que se opunham a Israel
40.1-48.35 Visões do novo templo e da nova terra
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COMENTÁRIO para o profeta ela seria doce como mel


(3.1-4). Toda essa experiência mudou sua
1.1-3.21 Ezequiel vida. A ele seria dado poder para levar a
é comissionado mensagem do Senhor ao povo, a despeito
da resistência deste em relação a ela. Ele
1.1-3.15 O chamado de Ezequiel precisaria de tal poder, pois sua tarefa não
O livro de Ezequiel começa da forma como seria nada fácil.
pretende continuar. Depois da mais breve Não foi pela razão, pela lógica fria
das narrativas introdutórias nos é apresen- ou ainda pela perspectiva de benefícios
tado o primeiro de uma série de oráculos de longo prazo que Ezequiel aceitou seu
que constituem o livro. Esse oráculo inicial chamado profético. Foi pelo fato de ele
pertence ao grupo de profecias altamente ter visto a grandeza e majestade de Deus.
visuais prefaciadas pela expressão "a mão Os mandamentos de Deus são mais fáceis
do SENHOR veio sobre mim". de obedecer quando contemplamos aquele
Embora o texto não o afirme de ma- que os ordenou.
neira explícita, esse oráculo representa o 1.1-3 Ezequiel, filho de Buzi, passa
chamado profético de Ezequiel. A visão foi pela experiência das visões enviadas por
intensa: a narrativa nos conta que o profeta Deus. 1.4-14 Ele vê uma nuvem grande
sentou-se, atônito, por vários dias (3.15). e radiante cujo centro brilha como me-
Nela ele vê um ser radiante sentado em tal reluzente. Quatro criaturas podem ser
um trono de safira, abaixo do qual estavam vistas em meio ao fogo do centro dessa
quatro criaturas de aspecto futurístico. Ele nuvem. Elas têm a forma humana, mas
ouve uma voz que dizia que ele seria en- cada uma tem quatro faces e dois pares de
viado a declarar aquilo que o Senhor tinha asas. As faces são como as do homem, do
a dizer ao povo de Israel no exílio. Ele é leão, do boi e da águia. As criaturas vão
avisado sobre a teimosia do povo; mesmo e vêm como relâmpagos. 1.15-21 Cada
assim ele deve falar, não importa se vão uma delas é acompanhada por um objeto
ouvi-lo ou não. brilhante e redondo como uma roda. As
Há muita coisa nessa visão que não é rodas vão para onde as criaturas vão. O
explicada, especialmente em relação aos som das asas das criaturas é como de um
querubins e às rodas que os acompanha- grande estrondo. 1.22-28 Acima dos que-
vam. O sentido geral do simbolismo é rubins está o que parece uma abóbada de
transmitir a grandiosa majestade de Deus. cristal brilhante. Em cima de tudo isso há
Os espantosos querubins exibiam faces o que parece um trono de safira, sobre o
que representam as principais formas de qual está assentada uma figura radiante. O
vida - o homem, o leão (rei das dos ani- brilho do trono é o de um arco-íris. Essa
mais selvagens), o boi (o mais notável dos é a aparência da glória do Senhor. 2.1-8
animais domésticos) e a águia (a rainha A voz diz a Ezequiel que ele será envia-
dos pássaros). Eles ziguezagueavam à se- do ao povo de Israel, um povo obstinado
melhança de relâmpagos acompanhados e teimoso e em constante rebeldia contra
pelas rodas. Contudo, essas criaturas mag- Deus. Ele profetizará para eles, quer ou-
níficas não eram nada mais que servos do çam, quer deixem de ouvir. Ele nada deve
trono. Ficavam abaixo do trono de Deus. temer e nem ser rebelde como aquela na-
Se os servos eram assombrosos, muito ção. 2.9-3.3 Ezequiel recebe um rolo
mais o era o próprio rei. contendo lamentações, suspiros e ais e
A Ezequiel foi dito que ele seria en- ouve a ordem de que deve comer o rolo.
viado ao povo de Israel, e sua mensagem Ao fazê-lo, ele descobre que seu sabor é
conteria lamentações, suspiros e ais, mas doce como o mel. 3.4-11 Ele é avisado de
que o povo de Israel poderá não lhe dar
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.
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ro ou qualquer outro tipo de elevação. O


ouvidos. Consequentemente ele receberá nome é idêntico ao da moderna Tel Aviv,
a força de vontade para o cumprimento embora os dois lugares sejam muito dis-
dessa tarefa. Ele também recebe a ordem tantes um do outro.
de ir imediatamente a seus compatriotas,
no exílio, para lhes transmitir a mensagem 3. 16-21 A responsabilidade
de Deus. 3.12-15 Transportado de volta, do atalaia
para junto dos exilados, ele permanece Após passar vários dias se recuperando do
sentado, atônito, por sete dias. trauma de sua visão inicial, Ezequiel recebe
Notas. 1.1 "No trigésimo ano"; o tex- uma segunda mensagem mais breve. Desta
to não diz a que essa data se refere. Uma vez suas responsabilidades são esboçadas
das possibilidades é que seja uma refe- juntamente com as penalidades relaciona-
rência à idade do profeta. O rio "Quebar" das a qualquer tentativa de ele se esquivar
era um braço do Eufrates a sudeste da de seus deveres (cf 33.1-9). O privilégio
Babilônia. 2 "Quinto ano" de cativeiro de ser chamado para ser servo de Deus traz
- 593 a.c. 5 Os "quatro seres viventes" consigo muitas responsabilidades. O cum-
eram servos do trono. Eles são chamados primento fiel dessas responsabilidades é
de "querubins" no cp. 10. 15-21 "Rodas"; mais importante do que o fato de elas pare-
os antigos intérpretes acreditavam que o cerem ter sido bem-sucedidas ou não.
texto está descrevendo um tipo de carrua- 17 Uma das responsabilidades de Eze-
gem. A natureza de suas rodas permite quiel é a de ser um atalaia para Israel, para
que ela se mova facilmente em qualquer transmitir-lhe as mensagens de Deus. 18,20
direção. 16 "Berilo": um tipo de rocha. Se ele não retransmitir as advertências de
22 "Firmamento"; a mesma palavra usada Deus para alguém, ele será considerado
em Gênesis 1.6-8. A ideia aqui é de uma responsável pelo destino dessa pessoa.
sólida plataforma que separava os queru- 19-21 Ao transmitir a mensagem ele terá
bins do trono. 28 "A aparência da glória"; cumprido sua tarefa, mesmo que o receptor
Ezequiel toma cuidado para não dizer que da mensagem a ignore.
viu a Deus. 2.1 "Filho do homem": essa Nota. 14 "Atalaia": a tarefa do atalaia
expressão ocorre mais de 90 vezes no li- era manter-se alerta em relação a qualquer
vro de Ezequiel. Nesse livro, ela é uma perigo de fora que ameaçasse a cidade.
referência ao fato de que Ezequiel é um
mero ser humano, um "mortal". 10 Nos 3.22-24.27 Advertências
rolos normalmente se escrevia em apenas sobre a iminente destruição
um de seus lados. O fato de esse rolo estar de Jerusalém
escrito "por dentro e por fora" pode indi-
car a plenitude e a abrangência da mensa- 3.22-5.17 Mensagens encenadas:
gem. 3.1 "Come este rolo": Ezequiel deve a previsão do cerco a Jerusalém
absorver a mensagem recebida. Ele não é O primeiro conjunto de atos proféticos de
apenas um transmissor dos sinais divinos. Ezequiel tem caráter tanto visual como ver-
As palavras de Deus também são para ele. bal. Ele prega uma mensagem bastante de-
11 "Vai aos do cativeiro": o público-alvo sagradável para o povo de Jerusalém: logo
de Ezequiel serão seus compatriotas exi- estarão sitiados. Além disso, o cerco será
lados na Babilônia. 14 "Eu fui amargura- tão longo que a comida se tornará escassa.
do na excitação do meu espírito": essas Um terço do povo morrerá de fome e en-
emoções intensas provavelmente foram fermidades. Outro terço morrerá defenden-
instigadas pela obstinação de Israel (cf do a cidade. Dos restantes, muitos serão
3.5-8). 15 "Tel-Abib": "tel" significa mor- dispersos e apenas poucos permanecerão.
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Para transrmtir essa terrível mensa- tado pela espada ao redor da cidade. O
gem, Ezequiel deveria se valer de um mé- terço remanescente, espalhado ao vento.
todo chamativo. Ele deve encenar o cerco. Alguns dos fios desse último terço de-
Nessa ocasião, parece que ele havia per- vem ser atados nas abas de suas vestes e
dido sua capacidade normal de fala, que alguns outros devem ser queimados.
somente lhe era devolvida quando tinha 5.5-17 Jerusalém se rebelou contra as
um oráculo para proclamar (3.26,27). Essa leis de Deus. Portanto, sua proclamação
perda parcial da fala continuaria até que as é: "Eis que estou contra ti, Jerusalém, e
notícias sobre a queda de Jerusalém che- executarei juízos no meio de ti. Devido
gassem a seus ouvidos (33.22; cf 24.27). à tua idolatria e práticas detestáveis, um
Ainda haveria outras mensagens que ele terço de teu povo morrerá de peste e será
encenaria (12.1-16; 17-20; 24.15-27), mas consumido pela fome no meio de ti. Uma
esta primeira deve ter estabelecido sua re- outra terça parte cairá à espada em redor
putação como um dos profetas mais excên- de ti. A última terça parte espalharei a to-
tricos de Israel. dos os ventos, e desembainharei a espada
Podemos achar o método de Ezequiel atrás dela. Assim se cumprirá a minha ira
para transmitir suas mensagens pouco or- e eles saberão que eu sou o Senhor. Tu
todoxo, talvez até divertido ou constrange- servirás de advertência a outras nações
dor. Entretanto, é muito mais importante quando teu castigo chegar".
comunicar a mensagem do que preservar a Notas. 3.23 "A glória do SENHOR": como
imagem popular do orador. Ezequiel tinha visto em 1.28. 25 "Eis que
3.22,23 Ezequiel recebe a ordem de porão cordas sobre ti": cf 4.8. Ezequiel fi-
que saia para o vale. Quando o faz, ele cou amarrado com cordas durante o tempo
vê a glória do Senhor e cai com o rosto que representou essa profecia. 4.1 "Tábuas
em terra. 3.24-27 Então, é instruído a se de argila" ou mais tarde "tijolo", eram ta-
trancar em sua própria casa. Ele também bletes de argila macia usados como papel
é informado de que ficará incapacitado para se escrever. 3 "Assadeira de ferro":
de falar - exceto para transmitir uma poderia representar o poderoso controle do
mensagem de Deus. 4.1-8 Recebe a or- cerco. 5 "390 dias": foram feitas tentativas
dem de fazer um pequeno modelo que para explicá-los em termos da duração dos
represente a Jerusalém sitiada. Ele deve exílios: o exílio de Judá por uma geração
se deitar sobre seu lado esquerdo por 390 (cerca de 40 anos) de 586-536 a.c.; o de
dias. Durante esse tempo ele carregará a Israel por 150 anos de 734-580 a.C. (na
iniquidade da nação de Israel. Então, terá LXX está registrado 190 anos, como o to-
de se deitar sobre seu lado direito por 40 tal de ambos os exílios). Essa não é uma
dias, carregando a iniquidade da nação de explicação satisfatória. Talvez seja melhor
Judá. Cada dia representará um ano. 4.9- interpretar os anos como símbolo de in-
17 Durante os 390 dias ele terá de subsis- tensidade e não de duração: a infidelidade
tir com escassa ração de alimento, como de Israel é dez vezes pior que a de Judá.
sinal da escassez que atingirá Jerusalém. 10,11 A ração diária de alimento de Eze-
Ele evita ter de profanar o alimento, mas quiel era de aproximadamente 200 gramas
profanação semelhante ocorreria quando de cereais e 0,6 litro de água. Era uma
o povo de Israel fosse exilado para nações quantidade muito pequena, simbolizando a
estrangeiras. 5.1-4 Ele recebe a ordem de escassez de alimentos (v. 17).5.1 Raspar a
raspar sua cabeça e barba. Quando tiver cabeça era um sinal de pesar. 17 Os quatro
terminado sua representação do cerco, flagelos mencionados aqui - peste, fome,
deve queimar um terço dos cabelos no bestas-feras e sangue (guerra) - aparecem
meio da cidade. Outro terço deve ser cor- várias vezes em todo o livro.
1087 EZEQUIEL 7
.
III
seus ídolos e santuários, e sua terra esti-
6. 1-14 Profecias contra
a idolatria em Israel
ver desolada, então eles saberão que eu
Embora essa profecia seja dirigida contra sou o SENHOR".
os montes de Israel, o alvo real da con- Notas. 11 "Ah!": muitos comentaristas
denação são os santuários ou "lugares al- sugerem haver aqui há nuanças de escár-
tos" que na época havia nos montes. Os nio. 14 "Desde o deserto até Ribla": isto é,
lugares altos eram locais abertos utiliza- por toda a terra.
dos para adoração, um costume cananeu.
Algumas pessoas usavam esses lugares 7.1-27 Advertência sobre o
para adorar ao Senhor, mas muitas das iminente desastre em Israel
práticas idólatras pagãs eram conservadas. O sentido de urgência nessa profecia é in-
A advertência é que a iminente destruição tenso. A calamidade que foi prevista está
da cidade também afetará as regiões ao prestes a acontecer. Não há mais tempo
redor. Assim, os praticantes da adoração de mudar a cabeça de ninguém. A guerra
nos lugares altos não podem ser salvos é iminente. Jerusalém será sitiada e sua
pelos seus ídolos. Contudo, os eventos terra devastada.
vindouros não serão apenas uma forma de 1-9 Proclame para a terra de Israel:
punição. A expressão "saberão que eu sou "Agora vem o fim sobre ti! Não terei pie-
o SENHOR" é repetida em todo o oráculo dade. Segundo os teus caminhos assim te
(v. 7,10,13,14). Os adoradores dos luga- castigarei e então saberás que eu sou o
res altos saberão quais deuses são falsos e SENHOR". 10-14 "Vem o tempo, é chega-
qual é o Deus verdadeiro. do o dia". 15-22 "A espada, a fome e a
A adoração de ídolos nos lugares altos peste esperam por vós. Os que sobrevi-
foi um problema perene para Israel (cf verem, o horror os cobrirá; em todo rosto
IRs 12.28-33; 2Rs 17. 9-11). Embora haverá vergonha. Suas riquezas não se-
Ezequiel, mais tarde, viesse a atacar os pe- rão de utilidade para eles - elas serão
cados mais "novos" que Israel adquirira de saqueadas". 23-27 "Farei vir os piores
seus vizinhos, alguns dos oráculos lidam de entre as nações, eles possuirão sua
com esses antigos problemas. Práticas iní- propriedades. Não haverá respeito. Até
quas, mesmo que institucionalizadas em o rei se lamentará. Segundo o seu cami-
uma sociedade por séculos de tradição, nho, lhes farei e, com os seus próprios
continuam sendo erradas. juízos, os julgarei; e saberão que eu sou
1-7 Proclame aos montes de Israel: o SENHOR".
"Eis que trarei a espada sobre vós e des- Notas. 10 "Já floresceu a vara, rever-
truirei os vossos altos e outros altares. deceu a soberba": violência e orgulho tra-
Abaterei o vosso povo na frente de vos- rão agora sua própria recompensa. 12 "O
sos ídolos. Então sabereis que eu sou o que compra não se alegre": a crise que se
SENHOR". 8-10 "Mas alguns serão poupa- aproxima mostrará ser tolice exercer uma
dos e espalhados entre as nações. Então se atividade comercial normal. 15 "Fora está
lembrarão de mim os que de vós escapa- a espada; dentro, a peste e a fome": aque-
rem entre as nações para onde forem le- les que forem deixados fora da cidade se-
vados em cativeiro; eles terão nojo do que rão destruídos pelas tropas inimigas. Os
fizeram em todas as suas abominações. que ficarem em seu interior sofrerão com
Saberão que eu sou o SENHOR". 11-14 o cerco. Fome e enfermidades seguirão.
"Chorai e lamentai por todas as terriveis 19 "Prata e ouro": com a intensificação do
abominações da casa de Israel! Pois cai- cerco, o dinheiro não terá utilidade para a
rão à espada e de fome e de peste. Quando compra de alimentos. 23 "Faze cadeia":
EZEQUIEL 8 1088

8.1-11.25 A idolatria de Jerusalém que não tiver tal marca. 9.6b,7 Eles co-
e sua punição meçam com os anciãos no templo. 9.8-10
Em sua grande visão, Ezequiel se vê trans- Os apelos de Ezequiel para que o Senhor
portado em transe ao templo de Jerusalém. abrande sua pena é rejeitado devido às
Ali ele tem uma visão do terrível estado grandes injustiças e violências praticadas
em que se encontra a religião de Israel. As em Israel e Judá. 9.11 O homem que rece-
áreas do templo estão sendo usadas para beu a ordem de fazer as marcas completa
práticas pagãs. Segue-se a retribuição, e sua tarefa. 10.1-6 Então, ele é instruído a
Ezequiel, então, fica ciente do majestoso encher as mãos de brasas acesas que estão
trono e das impressionantes criaturas que ao lado dos querubins e espalhá-las pela
observou em sua visão inicial - a glória cidade. 10.7,8 Um dos querubins lhe en-
de Deus. Haverá retribuição para aqueles trega as brasas em fogo. 10.9-22 Os quatro
que conspiraram para a injustiça social na querubins estão respectivamente acompa-
cidade. Contudo, a profecia termina com a nhados por objetos semelhantes a roôas.
promessa de que os exilados voltarão para Esses querubins e rodas são os mesmos
a sua terra. que Ezequiel vira anteriormente.
O sincretismo - amistura de elemen- 11.1-7 Então Ezequiel é levado à por-
tos de diversas religiões - é um dos cami- ta oriental do templo. O Senhor lhe mos-
nhos mais fáceis de se seguir. Os supostos tra um grupo de 25 homens, maquinando
religiosos podem apostar de todos os lados vilezas e aconselhando perversamente.
e assim agradar todos os deuses. Todavia, Ezequiel recebe ordem de profetizar a eles.
o Deus de Israel é um Deus ciumento. Ele 11.7-12 Deus conhece os pensamentos
não aceita que nenhum outro deus receba deles. Na cidade, eles mataram a muitos,
devoção e adoração. Em nossas sociedades mas serão retirados do meio dela e casti-
pluralistas, em que abundam todos os tipos gados, ao serem entregues nas mãos dos
de fé, há necessidade de se enfatizar esse estrangeiros. Eles não respeitaram as leis
aspecto, algo que muitas vezes é malcom- de Deus. 11.13-15 Enquanto Ezequiel pro-
preendido. Contudo, concessões de nossa fetiza, um dos homens do grupo, Pelarias,
parte não são menos repugnantes a Deus filho de Benaías, morre. Ezequiel, alarma-
do que as práticas pagãs descritas aqui. do, pergunta ao Senhor se ele dará fim ao
8.1-4 Ezequiel tem uma visão na qual é restante de Israel. Ele recebe a resposta de
transportado para o templo em Jerusalém. que os que residem agora em Jerusalém
Ali ele vê a glória de Deus - da mesma acham que os exilados já não servem para
maneira que a viu na planície. Então, a ele herdar a terra de Israel. Então, Ezequiel re-
são mostrados vários exemplos da idolatria cebe a ordem de dizer a eles: "Ainda que
ali praticada. Ele vê: a imagem de um ídolo estejais exilados, ainda assim estive con-
edificada em frente ao altar (8.5,6); 70 an- vosco. Hei de trazer-vos de volta à terra de
ciãos de Israel adorando figuras de animais Israel. Os que voltarem eliminarão todos
estampadas nas paredes (8.7-13); mulheres os seus ídolos. Receberão um novo cora-
sentadas chorando a Tamuz (8.14,15); 25 ção e seguirão as minhas leis. Eles serão o
homens adorando o sol (8.16-18). meu povo e eu serei o Deus deles. Aqueles
9.1-6a Certo homem vestido de linho que continuarem devotados a seus ídolos
recebe a ordem de fazer uma marca na tes- colherão a sua recompensa" (11.18-21).
ta daqueles em Jerusalém que abominam 11.22-25 A glória de Deus se move
profundamente tais práticas. O homem para um monte a leste de Jerusalém. Então,
começa a executar as ordens que recebeu. Ezequiel é transportado de volta de sua
Outros seis homens também recebem a or- visão aos exilados na Babilônia. Ele lhes
1089 EZEQUIEL 12 - : :

Notas. 8.1 "Sexto ano": 592 a.c. parecesse com um x. A marca servia para
"Anciãos": apenas 14 meses depois de sua diferenciar os que foram fiéis dos que não
visão, Ezequiel tinha alcançado o estágio foram. 10.1 "Trono de safira": corresponde
em que até os anciãos de Israel o visitavam à visão inicial de Ezequiel (cf 1.26). 10.2
regularmente para consultá-lo (cf 14.1; "Querubins": as majestosas criaturas do
20.1).2 "Figura como de fogo": "Como a cp. 1 são identificadas agora como queru-
de um homem" (NIV) - neste e nos versí- bins. Esses seres mitológicos são descritos
culos subsequentes Ezequiel é muito vago como estando sob, ou talvez mesmo sus-
em suas descrições da figura semelhante à tentando, o trono de Deus. Seu papel aqui
de um homem que ele viu. Ele tem muito como servos do Senhor está em harmonia
cuidado ao enfatizar que o que descreve é com o modo como são representados so-
como lhe pareceu, não que aqueles sejam bre a tampa da arca da aliança (Êx 25.18-
de fato os atributos fisicos do mensageiro 22) e com outras referências do AT que
divino. 3 "Porta do pátio de dentro, que descrevem o Senhor como "entronizado
olha para o norte": em sua visão, Ezequiel entre os querubins" (lSm 4.4; 2Sm 6.2;
é transportado para o templo em Jerusalém. 2Rs 19.15; lCr 13.6; SI 80.1; cf SI 18.10).
"Imagem dos ciúmes": possivelmente a Eles podem variar de alguma maneira em
imagem de Aserá, a deusa da fertilidade. sua aparência; em Ezequiel 41.18-20 é
Ao contrário dos ídolos mencionados pos- descrito um tipo de querubim com dois
teriormente neste capítulo, essa imagem rostos. 10.14 "Querubim": um dos quatro
está à vista do público. É uma provocação; rostos é descrito como o de um querubim e
está ali para levar os que por ali passam a não como o de um boi em 1.10. A diferen-
segui-la; ela incita ressentimentos entre os ça talvez se deva a um deslize do escriba
fiéis do povo de Israel; mas, acima de tudo, (cf 10.22). 11.3 "Não está próximo o tem-
ela provoca o ciúme de Deus. 4 "A glória po de construir casas": a tradução exata da
de Deus": ainda estava ali a despeito do que primeira metade desse versículo é incerta,
acontecia no templo. 7-12 Ezequiel vê ago- mas a impressão geral do versículo é que
ra uma idolatria de natureza mais secreta. os conspiradores estão tentando ler os si-
10 "Pintados"- isto é, gravados, esculpi- nais dos tempos e chegaram à conclusão
dos. 11 "Setenta homens dos anciãos": isto de que eles serão a elite da sociedade de
é, uma proporção substancial dos anciãos Jerusalém. Eles serão o corte de primeira,
de Israel. 14 "Tamuz" (também chamado e não os miúdos (cf v. 7,11). 11.13 "Ao
Dumuzi) era um deus da Babilônia cuja tempo em que eu profetizava": isto é, no
adoração incluía lamentações por sua des- decorrer da visão. 11.19 "Coração de pe-
cida ao mundo subterrâneo. 16 O insulto dra", "carne": um tema que será repetido
adicionado aqui é o da adoração ao sol em posteriormente (cf 36.26). 11.23 A glória
frente ao altar do templo. 17 "Ei-los a che- do Senhor finalmente deixa a cidade.
gar o ramo ao seu nariz": possivelmente
algum gesto cerimonial ligado à adoração 12.1-16 Uma mensagem encenada:
do sol. 9.1-11 Esse trecho é muito seme- a previsão do exilio
lhante a outros textos apocalípticos sobre o Nesse oráculo e no posterior, Ezequiel deve
juízo final. 9.3 A glória de Deus começa a encenar parte da mensagem que tem de
deixar o templo. A mensagem é bem clara. transmitir. Embora sua profecia seja sobre
A paciência de Deus é duradoura mas não a iminente queda de Jerusalém, ela é dirigi-
é eterna. Se persistirmos em nossa idola- da principalmente a seus companheiros de
tria ele terá de partir. 9.4 "Marca com um exílio na Babilônia. A mensagem tem dois
sinal": a marca da letra tau, a última letra elementos. O povo de Jerusalém sofrerá o
do alfabeto hebraico, cuja forma talvez se exílio. O rei (Zedequias) tentará fugir da
EZEQUIEL 12 1090


cidade, mas será capturado (cf 2Rs 25.4; de uma casa, e não o muro da cidade. Os
Jr 39.4). A passagem também alude ao des- tijolos de barro das paredes de uma casa
tino de Zedequias: Ezequiel deve cobrir o podiam ser escavados. Essa ação indica-
rosto (12.6,12,13). Zedequias será captura- ria a natureza desesperadora da fuga para
do e terá seus olhos vazados (2Rs 25.7). o exílio. 16 "Espada, fome e peste", um
Ezequiel teve de recorrer à representa- trio bastante comum no livro de Ezequiel.
ção da terrível mensagem tanto neste como A destruição causada pela guerra produzia
no oráculo seguinte. Era uma maneira de fome e enfermidades.
transmitir a informação àqueles que de ou-
tra maneira não a ouviriam. Muitas pessoas 12.17-20 Uma mensagem
ouvem somente aquilo de que gostam. encenada: o tremor de Israel
Algumas vezes elas têm de ser surpreen- Ezequiel deve encenar, com tremores, o
didas por algo novo. Nós cristãos deve- trauma do iminente ataque a Jerusalém e
mos ver isso como um desafio a examinar seus territórios vizinhos. Ele recebe or-
nossos meios de comunicar as boas novas. dens para que trema ao comer e beber.
Novas abordagens podem ser mais esclare- Ele terá de proclamar que os habitantes de
cedoras que as tradicionais. Jerusalém e Israel comerão com ansiedade
1-6 Deus diz a Ezequiel: "O teu povo e medo, devido à violência de todos os que
é rebelde. Eles apenas veem e ouvem nela habitam. A cidade e o campo serão de-
o que querem (2). Portanto, representa vastados. Então eles saberão que Deus é o
essas ações diante deles - pode ser que seu Senhor.
assim eles entendam: Prepara a bagagem Nota. 19 "Comerão com ansiedade":
de exílio, e de dia sai, à vista deles. Do cf 4.16, texto em que a ênfase da mensa-
lugar onde estás parte para outro lugar à gem encenada (cf 4.9-17) recai mais sobre
vista deles (3,4). À tarde abre um buraco a escassez de alimentos.
na parede à vista deles e sai por ali. Cobre
teu rosto para que não vejas nada, pois fiz 12.21-25 A profecia
de ti um sinal para Israel" (5,6). será cumprida ...
7-14 Ezequiel faz exatamente o que lhe Ezequiel não era o único que alegava pro-
foi ordenado. No dia seguinte, ele recebe clamar as mensagens de Deus (cf 13.1-23).
a segunda parte da mensagem, a qual ele O povo poderia, com alguma razão, chegar
deve transmitir a Israel quando eles lhe à conclusão de que todas estas profecias ja-
perguntarem o que ele está fazendo (7- mais aconteceriam. Muitas delasjátinham se
10). Ele deve lhes explicar que é um sinal mostrado falsas antes. Ezequiel adverte-os
para eles (11). Ao povo ele proclamará que de que desta vez será diferente.
essas ações dizem respeito ao príncipe de Há muitos "provérbios de consolo"
Jerusalém e a todo o Israel. Eles irão para que as pessoas usam quando confrontadas
o exílio, para o cativeiro. O príncipe arru- com verdades desagradáveis. Aqui encon-
mará suas coisas ao anoitecer e sairá por tramos um deles: "Prolongue-se o tempo,
um buraco na parede. Ele será capturado e e não se cumpra a profecia". Um segundo
levado para a Babilônia, onde morrerá (11- é encontrado no oráculo seguinte: "A vi-
13). Seus seguidores serão dispersos por são que tem este é para muitos dias, e ele
terras estrangeiras. Alguns irão sobreviver profetiza de tempos que estão mui longe".
para contar sobre as coisas abomináveis Ezequiel deve dizer a Israel: "Os dias es-
que ele fez. Então, saberão que eu sou o tão próximos bem como o cumprimento de
SENHOR (14-16). toda profecia. Porque já não haverá visão
Notas. 5 "Abre um buraco na parede": falsa nenhuma, nem adivinhação lisonjei-
a palavra "parede" aqui indica a parede ra, no meio da casa de Israel. Porque eu, o
1091 EZEQUIEL13

Senhor, falarei, e a palavra que eu falar se algumas práticas mágicas, possivelmente


cumprirá e não será retardada; porque, em manipulando as pessoas com algo seme-
vossos dias, ó casa rebelde, falarei a pala- lhante ao vodu (18,20,21). Suas ações le-
vra e a cumprirei." vam à injustiça e até mesmo à morte (19).
Nota. 22 "Provérbio": a falha aparen- Surpreendentemente, a condenação dessas
te de previsões proféticas tinha-se tomado bruxas é menos severa do que a do primei-
proverbial. ro tipo de profetas. Elas perderão seu poder
sobre as pessoas e já não farão suas falsas
12.26-28 ... e cumprida logo profecias. Sua profissão talvez tenha sido
Talvez em decorrência do oráculo antece- muito mais resultado de necessidade eco-
dente algumas pessoas mudaram sua opi- nômica do que de uma intenção maliciosa.
nião sobre as profecias de Ezequiel. Elas 1-15 Ezequiel deve proclamar aos fal-
aceitaram a possibilidade de as advertên- sos profetas: "Ai de vós! Não ajudastes
cias de Ezequiel estarem corretas, mas Israel em seu tempo de aflição. Vossas
acreditavam que somente se cumpririam visões são falsas e tolamente esperais que
num futuro distante. Como nos dias de elas se cumpram (1-7). Como falais falsi-
hoje, é muito mais fácil passar os proble- dades e tendes visões mentirosas, por isso
mas para a geração seguinte do que enfren- eu sou contra vós, diz o SENHOR Deus. (8).
tá-los. "Depois de nós, o dilúvio". Não estareis no conselho do meu povo,
26-28 Para Ezequiel a palavra do não estareis inscritos nos registros da casa
Senhor é: "Israel pensa que sua visão é de Israel, nem entrareis na terra de Israel
para muitos dias" (27). Mas ele precisa (9), visto que andais enganando meu povo
proclamar: "Não será retardada nenhuma com sentimentos falsos de segurança e paz
de minhas palavras. A palavra que profeti- (10-12). Essa segurança será destruída e
zei se cumprirá" (28). com ela virá o fim de todos vós. Então sa-
Nota. 27 "Visão": cf 7.26; 12.22. bereis que eu sou o SENHOR" 13-15).
16-21 Para as falsas profetisas Ezequiel
13.1-23 A condenação dos falsos deve proclamar: "Praticastes magia em
profetas e profetisas troca de ganho. Vossas mentiras fizeram
Este oráculo condena dois tipos de falsos com que atos de injustiça fossem cometi-
profetas. O primeiro grupo é composto de dos (18,19). Odeio os vossos instrumen-
supostos profetas que realmente pensam tos de magia (invólucros feiticeiros) e os
que podem predizer o futuro. Eles espe- arrancarei de vós e livrarei meu povo de
ram que suas predições se concretizem. vossas mãos. Então sabereis que eu sou o
Suas mensagens são do tipo que as pessoas Senhor" (20,21).
gostam de ouvir (10). Contudo, apesar da 22,23 "Entristecestes o coração do jus-
sinceridade e de suas mensagens recon- to e fortalecestes a mão do perverso. Por
fortantes, eles estão totalmente errados. isso já não tereis visões falsas nem fareis
A falsidade de seus pronunciamentos será adivinhações. Então sabereis que eu sou o
exposta. Não basta ser sincero. Você pode Senhor" (22,23).
estar sinceramente enganado. Notas. 4 "Raposas entre as ruínas": em
O segundo grupo de falsos profetas tem vez de tentar recolher os cacos e ajudar o
características mais sombrias. Para come- povo a reconstruir sua vida, esses profetas,
çar, as profetisas de que aqui se fala ope- como comedores de carniça, estavam se
ravam por lucro (19). Praticar a religião alimentando dos remanescentes da comu-
visando apenas a recompensa econômica nidade. 9 Seu castigo é triplo, tendo como
é prática condenada pela Bíblia. Além dis- resultado o ostracismo da sociedade de
so, elas apimentavam o seu número com Israel. Eles serão banidos do conselho, isto
l1li
11111 EZEQUIEL 14 1092
.111

é, perderão sua posição entre a liderança caminho para Deus (Jo 14.6,7), outros "ca-
da cidade; não serão inscritos nos registros minhos" não poderão ser contemplados.
da comunidade, isto é, perderão os direi- 1-11 Deus fala a Ezequiel com respeito
tos que, como homens israelitas, tinham aos anciãos: "Esses homens são adorado-
na sociedade; também serão impedidos de res de ídolos - deveria eu permitir que me
retomar a Israel. 10 "Caiam": a aparência consultassem?". Ezequiel deve proclamar
externa pode parecer boa, mas a realidade a eles: "Arrependei-vos e abandonai a ido-
por trás é fraca e desprovida de substân- latria. Se alguém do povo de Israel - ou
cia. 18 "Invólucros feiticeiros [...] véus": um estrangeiro que more em Israel - pra-
a maneira precisa como essas mulheres ticar a idolatria, e então vier me consultar
praticavam sua magia não fica muito cla- por meio de um profeta, receberá uma res-
ra. O propósito da magia era seduzir e posta direta: ele servirá de exemplo para o
controlar suas vítimas. 19 "Punhados de povo e será removido do meio dele. Então
cevada e [...] pedaços de pão": essa era sabereis que eu sou o Senhor (4-8). Se tal
sua mísera remuneração. profeta for enganado e falar alguma coisa,
eu o Senhor o enganei. Ele será eliminado
14.1-11 A condenação da idolatria do meio do povo de Israel. E será tão cul-
Como profeta, Ezequiel deve ter sido con- pado como aquele que o consultar. Então
sultado pelos exilados, ávidos por uma Israel não mais se desviará. Eles serão o
mensagem de Deus. Parece que sua posi- meu povo e eu serei o Deus deles" (9-11).
ção era tal que mesmo os anciãos de Israel Notas. 7 "Estrangeiros": a proibição
iam ter com ele para perguntar sobre Deus, é aplicada também àqueles que não per-
isto é, para ouvir um oráculo (cf 20.1-3). tencem ao povo de Israel. 9 "Enganado":
Nessa ocasião foi revelado a Ezequiel Se o profeta for digno de seu chamado,
que os anciãos estavam divididos na ques- receberá a revelação (como no caso de
tão da lealdade. Alguns adoravam não só Ezequiel) que ele não deve profetizar
ao Senhor, mas também a outros deuses. quando for consultado. Se o profeta não
A mensagem de Ezequiel foi direta: eles for digno de seu chamado, Deus permitirá
deveriam se arrepender e abandonar a que seja seduzido a profetizar, e tal profe-
idolatria. Qualquer um que tentasse ado- ta sofrerá as consequências,
rar aos ídolos e ao mesmo tempo consul-
tar um profeta de Deus seria punido. Caso 14.12-23 O julgamento de Israel não
o profeta atendesse suas petições, ele será evitado pela retidão de alguns
também seria punido (v. tópico similar Vários dos oráculos de Ezequiel tratam
em 20.1-44). da questão da culpa e da responsabilidade
Não há indicações de que os anciãos (3.16-21; 18.1-32; 33.1-20). Amoral deste
não criam no Deus de Israel. O problema é oráculo é que uma comunidade não pode
que eles também criam em outros deuses. esperar fugir à punição decorrente de sua
Ninguém pode servir a dois (ou mais) se- culpa ficando na dependência da retidão
nhores (Mt 6.24). Só pode haver um. Em de alguns poucos de seus membros. Uma
contraste com o contexto pluralista dos sociedade corrupta não pode esperar ser
dias de hoje, pode parecer atraente manter absolvida com base na presença de uns
em aberto nossas opções e aceitar vários poucos justos em seu meio. Nem o fato de
deuses. Essa verdade nos confronta quando se ter um ancestral piedoso pode expiar as
nos deixamos envolver profundamente por faltas de uma família corrupta (16,18,20).
uma determinada religião e percebemos Ezequiel exorta Jerusalém a não incorrer
que ela é incompatível com as demais. Por em tal erro. Seu castigo está chegando, ain-
exemplo, se Cristo é o único e verdadeiro da que alguns sejam salvos.
o oráculo descreve os "quatro maus
1093 EZEQUIEL 16

da videira. Quase nada de bom veio deles


.
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juízos" que afligirão a terra: fome (13,14), antes do cerco (em 597 a.C.), e não houve
as bestas-feras (15,16), a espada (17,18), melhora depois.
e a peste (19,20). Tais desastres estão in- O castigo não necessariamente traz pe-
terligados. Uma guerra desgastante trará nitência. A mudança de coração é o único
consigo fome, enfermidades e predado- e verdadeiro caminho para a mudança de
res. Tem havido muito debate acerca da comportamento.
hipótese de desastres modernos terem ou 1-8 Deus quer saber de Ezequiel: para
não alguma ligação direta com o juízo di- que serve o galho da videira? E quando é
vino. A terrível mensagem de Ezequiel é lançado ao fogo e queimado, para que ser-
que alguns dos desastres naturais são ju- vem seus tocos torrados (2-5)? A palavra
ízos divinos. Contudo, podemos observar do Senhor é que o povo de Israel será tra-
que a tarefa de Ezequiel não é exultar, tado como essa videira. Eles já passaram
mas avisar, para que o povo se arrependa pelo fogo, mas passarão por ele novamente
de seus caminhos. (6,7). E saberão que eu sou o Senhor que
12-23 O Senhor diz a Ezequiel: "Se desolará a terra por causa de sua infideli-
eu punir uma nação por sua infidelidade dade (8).
ao enviar a fome sobre ela, mesmo aque- Nota. 7 "O fogo os consumirá": um
les com caráter exemplar serão capazes de outro cerco acontecerá.
salvar apenas a si próprios" (13,14). "Se
bestas-feras forem enviadas para assolar a 16. 1-63 Jerusalém: a esposa
terra, ou se a guerra for declarada contra a promíscua e infiel
nação, ou se a peste se espalhar por toda Israel é descrito como uma esposa adúl-
a nação, aqueles com caráter exemplar se- tera, que se entrega à prostituição com os
rão capazes de salvar apenas a si mesmos. egípcios, assírios e babilônios. Seu castigo
Nem mesmo seus filhos e filhas serão sal- virá pelas mãos dos próprios amantes que
vos (15-20). Assim será para Jerusalém, procurou.
embora alguns sejam salvos" (21,22). A imagem pode parecer um tanto forte
Nota. 14 "Noé, Daniel e Jó": esses três para o gosto moderno, mas a escolha da
são destacados por sua extraordinária re- metáfora foi muito apropriada. Em seus re-
tidão. O nome "Daniel" é escrito de ma- lacionamentos internacionais, Israel tinha
neira diferente do usual (cf também 28.3) rapidamente absorvido outras religiões,
e pode se referir a um herói da literatura crenças e práticas. Seu relacionamento com
ugarítica. Muitos comentaristas acreditam outras sociedades o tinha exposto a mui-
que o Daniel do AT ainda não era conheci- tas ideias pagãs. Algumas dessas práticas
do nesse período. 21 "Quatro [...] juízos": incluíam o sacrifício de crianças e a ado-
os mesmos quatro que são citados em ração a ídolos (20,21); outra linha impor-
Apocalipse 6.8. tante incluía rituais de práticas sexuais. A
atividade sexual não era incluída nesses
15.1-8 Jerusalém: a videira inútil rituais meramente para a satisfação dos
A videira é geralmente vista como uma participantes, mas estava ligada à fertilida-
planta produtiva e valiosa nas imagens do de, e a fertilidade, quando aplicada à terra,
AT e como um símbolo de Israel, o povo significava alimento e sobrevivência. Não
escolhido de Deus (cf Is 5). Neste oráculo, obstante, luxúria e promiscuidade devem
destaca-se que o galho seco da videira não ter estado presentes nesses rituais.
tem valor. Tem menos valor ainda depois As práticas condenadas neste capítulo
de lançado ao fogo e queimado. O povo de incluem atos sexuais com ídolos (17) e pros-
Jerusalém tem sido como esse galho seco tituição como parte do culto (16,24,25,31).
EZEQUIEL 16 1094

Parece que a prostituição como parte do daquilo que fiz por ti (15-22). Ai de ti! Tua
culto, que tinha sido parte do ritual nos "lu- promiscuidade aumentou. Tu te entregaste
gares altos", isto é, nos santuários dos mon- publicamente a estrangeiros, de todos os
tes (16), veio a ser praticada abertamente lugares ao teu redor, e até mesmo os su-
nas próprias ruas de Jerusalém (24,25). bornaste para que viessem adulterar con-
Uma peculiaridade interessante sobre tigo (23-34).
o tema sexual no capítulo é o fato de que 35-42 "Por causa de tua promiscuida-
Sodoma e Samaria são citadas como ir- de e dos rituais pagãos eu te humilharei
mãs em pecado de Jerusalém (46,47). No e punirei diante dos teus amantes. Eles te
entanto, o pecado de Sodoma, aqui desta- despirão e apedrejarão. A tua prostituição
cado, é sua arrogância e falta de preocu- cessará e minha fúria se aquietará.
pação social pelos pobres e necessitados 44-58 "Teu comportamento é coisa de
(49,50). Jerusalém é citada como sendo família. Tuas irmãs, Samaria e Sodoma,
mais comprometida com a iniquidade do eram como tu, mas tu és ainda mais depra-
que suas irmãs. Além disso, tanto Sodoma vada do que elas. Eu restaurarei a sorte de
como Samaria serão restauradas, aumen- Sodoma e Samaria, aumentando assim a
tando a vergonha de Jerusalém (53-55). tua vergonha. Mesmo agora todos ao teu
Entretanto, há esperança. Depois da que- redor zombam de ti.
da e a punição de Jerusalém, o mesmo 59-63 "Embora tenhas quebrado a mi-
pretendente que a salvou no nascimento nha aliança, eu me lembrarei da aliança
(4-7), que a tomou em casamento (8), que que fiz contigo, e estabelecerei contigo
a vestiu com elegância, ainda lembrará de uma aliança eterna. Então te lembrarás,
sua promessa (59-62). com vergonha, do que fizeste".
O amor de Deus para com o seu povo é Notas. 3 "Amorreu [00'] heteia": Jeru-
frequentemente comparado ao amor de um salém existira muito antes se tomar uma ci-
marido por sua esposa; porém, enquanto dade de Israel. 4 "Esfregada com sal": uma
um marido, como ser humano mortal, pode prática que provavelmente tinha um efeito
rejeitar, desprezar e até mesmo odiar uma antisséptico. O ponto do versículo é que
esposa promíscua e infiel, Deus é paciente a recém-nascida fora ignorada ao nascer.
e justo e se lembrará de suas promessas a 5,6 O bebê fora abandonado a céu aberto,
seu povo, mesmo quando este se desviar. ainda esperneando no sangue do parto.
A demanda pela fertilidade aparece Essa prática não era incomum nas socieda-
nos dias de hoje nessa frenética busca do des antigas. 8 "Estendi sobre ti as abas do
mundo "desenvolvido" por prosperidade meu manto": Este ato representava pedir a
econômica como o principal objetivo da donzela em casamento (cf Rt 3.9). 9 "Te la-
vida. A adoração de bens materiais e das vei com água e te enxuguei do teu sangue":
forças de mercado tomou o lugar de Baal, esses versículos transmitem a total mudan-
mas não é menos idólatra. ça na condição de Jerusalém. Quando nas-
1-34 Ezequiel é instruído a confrontar ceu, fora abandonada suja de sangue, nua,
Jerusalém e proclamar: "Quando nasceste, envolta no sangue do próprio nascimento.
foste desprezada (2-5). Tive dó de ti e te Agora fora pedida em casamento, lavada e
salvei. Quando alcançaste a maturidade, vestida com as mais finas roupas. 15-19 As
tomei-te como esposa e te adornei com próprias roupas e ornamentos que a noiva
joias e roupas (6-14). Eras famosa por tua recebera como presentes são usados para
beleza. Contudo, usaste essa beleza para te sua prostituição. 27 "Diminuí a tua por-
entregares à prostituição. Tu te entregaste ção": "Reduzi o seu território" (NVI) - Um
aos ritos sexuais pagãos e a outros tipos exemplo em que a alegoria relata um fato:
de práticas de idolatria. E te esqueceste em 701 a.C., Senaqueribe deu uma parte
1095 EZEQUIEL 18 <
do território de Jerusalém aos filisteus. 9-21 "O Senhor Deus pergunta: 'A vi-
35-42 O castigo de Jerusalém será como o deira sobreviverá? Suas raízes não serão
de uma prostituta - humilhação e destrui- arrancadas e então ela não secará?' (9,10).
ção. 60-63 A promessa da aliança eterna Não sabeis o que significam essas coisas?
ainda subsiste, embora Jerusalém venha a O rei da Babilônia veio a Jerusalém e to-
se envergonhar de seu passado. mou o rei e seus príncipes e os levou consi-
go para a Babilônia (11,12). Tomou um da
17. 1-24 Águias, cedros e uma família real, e fez aliança com ele; também
videira - uma parábola política tomou dele um juramento, levou os pode-
O capítulo se divide em três seções: Os rosos da terra, para que o reino ficasse sub-
v. 3-10 trazem a alegoria das águias e da jugado e mantido sob seu controle (13,14).
videira; os v. 11-21 trazem a explicação Entretanto, o rei se rebelou e pediu ajuda
dessas alegorias; e os v. 22-24 trazem uma militar ao Egito. Será ele bem-sucedido?
futura promessa alegórica. Não, ele morrerá na Babilônia. O Egito
A alegoria se relaciona a acontecimen- não será de grande ajuda. E ele será punido
tos políticos da época. A primeira águia por quebrar seu juramento (15-21).
representa Nabucodonosor e a segunda 22-24 "Também eu tomarei a ponta de
representa o faraó. O cedro do Líbano re- um cedro e a plantarei sobre um monte alto
presenta a família real em Jerusalém, e e sublime. No monte alto de Israel, eu o
seu ramo mais alto, a nobreza. A "muda plantarei, e produzirá ramos, dará frutos e
da terra" era um membro da família real, a se fará cedro excelente. Saberão todos que
saber, Zedequias, que fora colocado como eu, o Senhor, o fiz" (22-24).
governante em Jerusalém. Ele já não era Notas. 11-14 A Babilônia tinha colo-
um cedro alto, mas uma "videira mui larga, cado em prática a clássica estratégia de
de pouca altura", isto é, seus poderes eram transformar Israel em um estado- fantoche.
limitados. No entanto, Zedequias plane- Deportaram a família real, mas deixaram
jou se rebelar contra Nabucodonosor, com um de seus membros, o mais fraco, no
a ajuda do Egito. Esse plano resultou em cargo. Esse indivíduo, isto é, Zedequias,
grande fracasso. foi forçado a assinar um tratado com a
Essa parábola ilustra o ponto de que Babilônia, assegurando a "sujeição" de
a arena política não está fora do alcan- Israel. Todo mundo que fosse considera-
ce da lei de Deus. Zedequias, em nome do significativo no governo do país foi
de Deus, tinha firmado um tratado com deportado. Essa ação assegurou que fos-
Nabucodonosor. Embora Nabucodonosor se dificultada a organização (e adminis-
possa ter sido um rei pagão bastante cruel, tração) de qualquer eventual resistência.
Zedequias ainda assim tinha a obrigação 16 "No meio da Babilônia será morto":
moral de honrar seu juramento. 2Reis 25.1-17 relata o cerco de Jerusalém
1-8 Ezequiel deve contar esta parábola e a consequente captura de Zedequias por
a Israel: "Uma linda águia veio do Líbano Nabucodonosor. Cegaram a Zedequias e
e arrancou a ponta mais alta do cedro e a o levaram acorrentado para a Babilônia.
plantou em uma cidade famosa por sua 22-24 Uma outra mensagem de esperan-
atividade comercial (2-4). Também tomou ça: um dia um novo rei aparecerá e come-
uma muda da terra e a plantou em solo fér- çará um reinado.
til. A muda cresceu e se tomou numa fron-
dosa videira. A princípio, a videira virava 18.1-32 A responsabilidade
seus ramos para a águia (5,6). Quando uma do indivíduo
segunda águia apareceu, a videira estendeu Este oráculo tem o objetivo direto de des-
seus ramos para ela" (7,8). truir a crença de que as pessoas carregam a
EZEQUIEL 19 1096

culpa ou o mérito de seus pais. Essa crença Notas. 2 (cf Jr 31.29) Jeremias também
toma expressão na forma de um provérbio havia profetizado que esse provérbio teria
já citado no v. 2. Essa visão podia funcio- fim. O provérbio pressupõe que as pessoas
nar nos dois sentidos. O oráculo prosse- possam sofrer devido aos pecados de seus
gue, expondo um exemplo de cada: (a) um ancestrais. 6-9 Uma lista seletiva de peca-
filho iníquo não escapará do castigo por dos é fornecida aqui. A lista tem correlação
causa da retidão de seu pai (5-13) e (b) um com aquela dos v. 11-13 e 15-17. 19 Parece
filho que age com retidão não será castiga- ter sido este o ponto em que o pronuncia-
do pelo mal praticado por seu pai (14-18). mento do profeta foi questionado. A grande
Este é um princípio declarado no v. 4: A importância que herança e comunidade ti-
alma que pecar, essa morrerá. Ezequiel nham nas culturas do Oriente Médio toma-
também se opõe à ideia de que a salvação va essa visão mais penosa do que pode pa-
consiste unicamente em acumular méritos recer às sociedades individualistas de hoje.
durante toda a vida de um indivíduo, e usar Hoje culpamos a "sociedade", em vez de
esse saldo positivo para contrabalançar nossos ancestrais, por nossas aflições. Em
suas iniquidades. Essa noção é rejeitada ambos os casos não aceitamos a culpa que
com firmeza. Caso um homem perverso se nos cabe e somos tentados a colocá-la em
converter de seus caminhos, ele viverá. Se outra pessoa.
um homem bom se voltar para o mal, ele
será castigado (21-28). Esse conjunto de 19.1-14 Lamentos pelos
pronunciamentos parece ter sido conside- príncipes de Israel
rado injusto (29). Esse capítulo é um lamento que retrata de
2-4 A palavra do Senhor é contrária ao forma alegórica a queda da dinastia daví-
ditado popular, pois a pessoa que comete dica. Uma leoa (Israel) dá à luz a vários fi-
o pecado será também a castigada por co- lhotes (reis) que crescem e se tomam fortes
metê-lo. 5-9 Se um homem justo fizer o leões. Entretanto, um dos reis é capturado
que é justo e direito, viverá. 10-13 Se tiver e levado para o Egito. Outro é apanhado,
um filho violento, impuro e opressor, esse preso e levado para a Babilônia (em 597
filho deverá morrer devido a seus próprios a.c. cf 2Rs 25.1-7).
pecados. 14-18 Por outro lado, se um ho- No v. 10, a imagem muda, e Israel é
mem tiver um filho que evita a iniquidade comparado a uma vinha que, embora forte
de seu pai e age com retidão, esse filho no passado, foi arrancada e transplantada
não será castigado pelos pecados de seu no deserto (isto é, na Babilônia). O fogo
pai. Ele viverá. 19,20 O filho não compar- se espalhou por um de seus ramos e con-
tilhará da culpa do pai, nem o pai da do sumiu seus frutos. Nenhum de seus fortes
filho. 21,22 Entretanto, se um homem per- ramos foi poupado. Essa é uma referência
verso se afastar de seus pecados e começar à deportação dos príncipes de Israel para
a fazer o que é justo e direito, ele deve vi- a Babilônia, por Nabucodonosor. A rebel-
ver. 24 Por outro lado, se um homem justo dia de Zedequias (o fogo de um dos ramos
e direito se voltar para a iniquidade, ele da videira) causou uma reação tão forte
deve morrer. na Babilônia que a dinastia davídica foi
25-29 Apesar do que diz Israel, esse exterminada.
ensinamento não é injusto. 30,31 Cada O lamento salienta o fato de que as
pessoa será julgada de acordo com o que glórias passadas não são garantia para o
fez. Assim, arrependam-se - e busquem futuro. A civilização ocidental tem vivido
um coração novo e um espírito novo. O em função de sua herança cristã, mas a fé
Senhor não tem prazer na morte de nin- verdadeira ficou para trás. A herança está
guém (23,32). desaparecendo rapidamente.
1097 EZEQUIEL 20 - : :

1-9 Ezequiel deve levar este lamento O oráculo de Ezequiel começa, muito
aos príncipes de Israel: "Sua linhagem real apropriadamente, com referências ao tem-
uma vez produziu um leão que se tomou po em que o povo de Israel foi forçado a
forte e devorador de homens. As nações viver nas terras de outra superpotência
ouviram falar dele, capturaram-no e o leva- - o Egito. O ciclo de advertência, rebel-
ram com ganchos para o Egito" (2-4) Um dia e restauração é repetido várias vezes.
segundo leão se tomou forte. Ele era um Mesmo ferido, o povo de Israel prefere se-
devorador de homens. Ameaçava as cida- guir as religiões das outras nações (24,32).
des e aterrorizava os habitantes da terra. As Enfim, as promessas e advertências são
nações vieram, capturaram-no numa arma- combinadas. O povo de Israel será reunido
dilha e o levaram para o rei da Babilônia, dos países pelos quais está espalhado, mas
onde o prenderam (5-9). detestará a si mesmo pelo que fez.
10-14 Sua linhagem real já fora como O oráculo ilustra a tolerante paciência
uma videira exuberante com muitos ramos. de Deus ao lidar com seu povo ao longo
Então, foi arrancada. O vento oriental se- dos séculos. Ele permanece fiel, apesar da
cou seus frutos, secou seus ramos, e o fogo teimosa rebeldia.
a consumiu. Agora ela está plantada no 1-17 Alguns dos anciãos de Israel visi-
deserto. O fogo consumiu os seus ramos tam Ezequiel para uma consulta. Ezequiel
e frutos. Nela não há mais nenhum ramo recebe a ordem de proclamar: "Tão certo
forte que sirva como cetro real. como eu vivo, vós não me consultareis
Nota. 12 "Vento oriental": isto é, a (2,3). No dia em que escolhi a Israel e me
Babilônia. revelei a eles no Egito, eu jurei tirá-los do
Egito para uma terra de fartura (5,6). Pedi a
20. 1-44 A persistente eles que abandonassem a idolatria egípcia,
rebeldia de Israel mas eles não o fizeram. Em vez de puni-
Como em 14.1-11, alguns anciaos de los, por amor do meu nome, eu os tirei da
Israel visitam Ezequiel para uma consul- terra do Egito (7-10). No deserto lhes re-
ta. Ezequiel é avisado novamente sobre a velei minha lei (11,12). Mesmo no deserto
duvidosa lealdade de seus visitantes. Ele eles se rebelaram, mas não foram destruí-
profere um longo oráculo, lembrando vá- dos - apesar das advertências (13-17).
rios exemplos da história de Israel em que 18-26 "A seus filhos pedi e adverti (18-
o povo havia praticado a idolatria. 20), mas não os destruí, a despeito de sua
O fato de que vieram consultar Ezequiel desobediência (21,22). Eu jurei a eles no
demonstra que os anciãos não trocaram in- deserto que seriam dispersos entre as na-
teiramente sua devoção a Deus por outros ções devido à sua desobediência (23,24).
deuses. Contudo, a pressão estava presen- Também os entreguei a decretos injustos e
te. Os exilados eram uma pequena minoria leis intoleráveis (25). Permiti que se conta-
em uma imensa sociedade multicultural. A minassem com práticas como o sacrificio
religião da Babilônia cultuava uma grande dos primogênitos. Eu o fiz para horrori-
quantidade de deuses. Sem dúvida a rique- zá-los e para que soubessem que eu sou o
za material e o poderio da Babilônia - até Senhor" (26).
mesmo suas magníficas edificações - pa- 27-38 "Vossos pais também me insul-
reciam provar a alguns dos exilados que taram ao usar todo o tipo de lugares altos
valia a pena seguir os deuses da Babilônia. e árvores frondosas como local de sacri-
Assimilar o modo de vida e seguir os ca- ficios (27,28). Ireis contaminar-vos como
minhos do povo da Babilônia seria fácil. vossos pais (30)? Eu não serei consultado
(Para um comentário sobre o assunto, v. por vós (31). Talvez desejais ser como as
cp. 1 do livro de Daniel). outras nações, servindo às arvores e às
EZEQUIEL 20 1098

pedras, mas isso de maneira alguma acon- 46-49 Ezequiel deve proclamar para o
tecerá (32). Eu hei de reinar sobre vós e sul e para o bosque do campo do sul (46):
julgar-vos. Sereis separados daqueles que "O Senhor diz que está a ponto de incen-
se rebelam contra mim. Então sabereis que diá-lo. A chama não se apagará. Todos os
eu sou o Senhor" (33-38). rostos serão queimados. E todos os homens
39-44 "Servi a vossos ídolos, Israel, verão que eu, o Senhor, o acendi" (47,48).
mas mais tarde me ouvireis. No meu san- Os ouvintes de Ezequiel diziam que ele es-
to monte toda a casa de Israel me pres- tava proferindo parábolas (49).
tará culto (39-41). Sabereis que eu sou o Notas. 46 "Sul" aqui se refere a
Senhor quando eu vos trouxer para a terra Jerusalém e aJudá. 47 "Desde o Sul até
de Israel (42). Tereis nojo de vós mesmos, ao Norte": A profecia na verdade adverte
quando lembrardes de vossa conduta pas- sobre uma calamidade que consumirá toda
sada. Sabereis que eu sou o SENHOR quan- a terra de Israel. 49 Parece que Ezequiel
do eu proceder para convosco por amor do algumas vezes enfrentava falta de credibi-
meu nome" (43,44). lidade. Suas profecias sobre o julgamento
Notas. 1 "Sétimo ano"; isto é, 591 a.C. eram consideradas "simbólicas".
"Consultar" cf 8.1; 14.1 9 "Por amor do
meu nome"; o nome do Senhor identifica 21.1-7 Julgamento pela espada
toda a personalidade de Deus, não apenas Nesta segunda profecia a imagem se tor-
sua reputação. 25 Lhes dei - Deus per- na mais precisa. A referência à espada
mitiu que escolhessem seus caminhos, - símbolo da guerra - dá uma clara
mesmo que estes os levassem a práticas indicação da natureza militar do desas-
injustas (como o sacrifício de crianças). tre. Ezequiel é conhecido por sua ênfase
29 "Lugar alto"; "Bama" (NIV) - um leve na responsabilidade e recompensa indivi-
trocadilho é usado aqui. A palavra bãmâ, duais (cf 3.16; 33.1-20); portanto, é digna
que significa lugares altos, começa como de nota a sua afirmação de que o iminente
a palavra bã 'im, que significa cantos. 37 desastre afligirá tanto o justo como o per-
"Debaixo do meu cajado": (cf Lv 27.32; verso. Ser correto não garante imunidade
Jr 33.13). A imagem é de um rebanho pas- contra a aflição. Aqueles que reivindicam
sando sob o olhar perspicaz do pastor. proteção exclusiva do Senhor podem estar
exercitando grande fé, mas também es-
20.45-49 Julgamento pelo fogo tão ignorando boa parte das advertências
Este oráculo é o primeiro de um grupo de das Escrituras.
quatro profecias que advertem sobre a imi- Ezequiel deve proclamar a Jerusalém:
nente calamidade que recairia sobre a terra "O Senhor está contra ti. Empunhará sua
de Israel. As profecias ficam progressiva- espada para eliminar tanto o justo quanto
mente mais específicas. o ímpio" (2-4).
Como alguns dos outros oráculos (e.g., Deus diz a Ezequiel: "Suspira de cora-
12.26-28), a mensagem de Ezequiel encon- ção quebrantado e com amargura! Quando
tra obstinação e incredulidade. Seus pro- o povo te perguntar por que estás fazendo
nunciamentos são vistos como parábolas isso, dize-lhes que é por causa das terríveis
- símbolos brutais para uma realidade que notícias que estão chegando (6,7). E eis
eles esperavam ser menos brutal. Estamos que elas vêm e se cumprirão".
sempre ávidos para saber o que o futuro Notas. 3 "Espada": a imagem da espa-
pode nos trazer, mas somente se estiver de da também é utilizada nos dois oráculos
acordo com aquilo que queremos. De outro seguintes. 6 "Suspira": A proclamação de
modo, temos a tendência de não levar em Ezequiel deve ser acompanhada por um
conta nem mesmo os sinais mais óbvios. outro ato simbólico (o sétimo).
l1li
1099 EZEQUIEL 22 l1li-
l1li.

21.8-17 A espada é afiada Nabucodonosor é quem merece a punição


No terceiro oráculo desse grupo a lingua- divina, e a condenação sobre Israel pudes-
gem se toma poética - quase como se fos- se ser retirada. Contudo, Ezequiel, sob ins-
se um cântico de preparação para guerra. piração, descreve Nabucodonosor como
O tema da espada afiada e pronta permeia instrumento de Deus para punir a iniqui-
a passagem. dade de Israel.
O tema da guerra como uma punição 19,20 Ezequiel é instruído a desenhar
enviada por Deus era provavelmente me- um mapa mostrando o caminho pelo qual
nos popular no tempo de Ezequiel do que o rei da Babilônia virá. Em um cruzamento
o é nos dias de hoje. O raio de esperança da estrada, ele deve colocar um marco indi-
estava no fato de que a ira de Deus final- cador que aponte de um lado a direção para
mente cessaria. Rabá e de outro a direção para Jerusalém.
9-11 A espada afiada está pronta. 12 A 21-23 O rei da Babilônia vai parar nesse
espada será contra o povo e todos os prín- cruzamento e consultará seus oráculos.
cipes de Israel. 14-16 Ela golpeará repeti- Eles indicarão o caminho de Jerusalém, a
das vezes. 17 Então, o furor de Deus dimi- qual ele cercará.
nuirá. Foi o Senhor que falou. 24-27 A palavra de Deus para o sobera-
Notas. 10,12,13 "Cetro [...] príncipes": no de Israel é: "Teu povo será levado cativo
um elemento não mencionado nos dois em virtude das tuas ostensivas iniquidades
oráculos anteriores é o objetivo de punir os (24). E tu, profano e perverso príncipe de
líderes de Jerusalém. O oráculo seguinte Israel, serás destituído do poder" (25-27).
explicará melhor esse tópico. 28-32 Ao povo de Amom Ezequiel
deve proclamar: "Vosso tempo é chega-
21.18-32 A espada do. A despeito das falsas profecias de paz,
do rei da Babilônia sereis entregues à destruição em vossa
No último dos quatro oráculos o texto se própria terra (28-31). E caireis no esqueci-
toma mais explícito sobre aquilo que vai mento. Eu, o Senhor, é que falei" (32).
acontecer. O rei da Babilônia (Nabuco- Notas. 20 Rabá (moderna Amã) - ca-
donosor) dará início a uma campanha mili- pital de Amom. Amom também foi tema
tar contra as terras a oeste da Babilônia. Em de uma profecia posterior (cf 25.1-7). 21
algum ponto de sua jornada ele irá parar à "Examina o fígado": O povo da Babilônia
procura de um sinal que aponte qual cidade praticava a "hepatoscopia" um método
atacar: Jerusalém ou Rabá. O sinal apontará para prever o futuro ao se examinar e ob-
para Jerusalém. Então Nabucodonosor em- servar a presença de quaisquer marcas sig-
preenderá um cerco a Jerusalém. O monar- nificativas no figado de um animal morto.
ca de Israel será deposto e levado cativo. 23 "Juramentos solenes": os líderes em
Os amonitas também não escaparão, Jerusalém já tinham sido forçados a fa-
pois o dia do seu castigo também chega- zer uma "aliança" com a Babilônia, mas
rá. As pessoas até esquecerão de que eles se rebelaram (cf 17.11-13).26 "Remove
existiram. a coroa": a queda da monarquia. 28,29 Os
A passagem se divide em três partes. amonitas pensaram que tinham escapado
V. 18-23: As ações de Nabucodonosor; v. da calamidade. Evidentemente tinham até
24-27: a mensagem para Israel; v. 28-32: a mesmo recebido falsas profecias para re-
mensagem para Amom. forçar essa ilusão de segurança.
Essa profecia deveria nos deixar pre-
cavidos contra julgamentos apressados 22. 1-16 Os pecados de Jerusalém
sobre quem deve ser punido, por quem Esse oráculo volta seu foco aos pecados
e por quê. Talvez pareça que o perverso de Jerusalém, defendendo a tese de que
II1II
II1II. EZEQUIEL 22 1100
II1II-

sua iniquidade acelerou seu fim. A lista de 17-22 Ezequiel recebe a palavra de que
maldades vai do social ao sagrado: derra- Israel se tomou como as impurezas encon-
mamento de sangue (3,9), idolatria (3,4), tradas na prata ainda não refinada. (18)
abuso de poder (6), tratamento cruel de Assim ele deve proclamar: "Eu vos ajunta-
vários grupos sociais (7), profanação rei no meio de Jerusalém do mesmo modo
dos sábados (8), paganismo (9), conduta que os homens ajuntam a prata com suas
sexual imprópria e incesto (10,11), su- impurezas em uma fornalha. O forte calor
borno e extorsão (12). A punição devida de minha ira fará com que sejais fundidos
significará a dispersão do povo por todas como os metais no processo de fundição.
as terras. Sabereis que derramei meu furor sobre
1-16 Ezequiel deve confrontar Jeru- vós" (19-22).
salém por todas as suas práticas abomi- Nota. 19 "Eis que vos ajuntarei no
náveis (2) e proclamar a ela: "Você é uma meio de Jerusalém": aqui e no v. 20 há a
cidade que se tomou culpada por derramar indicação do iminente cerco da cidade.
sangue em seu próprio meio e por fazer
ídolos para se contaminar. Você será obje- 22.23-31 Injustiça na terra:
to de zombaria das nações (3-5). Há todo o corrupção em todos os níveis
tipo de corrupção em seu meio, mas eu po- A corrupção na sociedade de Israel trans-
rei um fim nisto (6-13). Você será dispersa cendia posição e classe social. Ela também
entre as nações. Então saberá que eu sou o assumia as mais variadas formas.
SENHOR" (14-16). A corrupção de uma sociedade pode ir
Notas. 2 "Abominações": essa ex- além do nível individual. Pode se tomar
pressão ocorre muitas vezes em Ezequiel, parte das instituições - tanto civis quanto
frequentemente para denotar ações que religiosas - da sociedade. Pode ser fácil
tomavam o agente ritualmente impuro aceitar certas práticas só porque elas são
(cf v. la). 9 "Comem carne sacrificada "o que todo mundo faz", ou por serem
nos montes": isto é, comem a carne que apoiadas pelas hierarquias, mas isso não
tinha sido sacrificada aos ídolos nos "lu- as justifica. Algumas vezes o suborno tam-
gares altos" (cf 18.6; 6.3). 10 "No prazo bém pode se tomar parte do dia-a-dia na
de sua menstruação": como sacerdote, condução de negócios. O tratamento injus-
Ezequiel estava claramente preocupado to dos mais fracos na sociedade também
com a pureza cerimonial e a profanação. é largamente difundido. Normalmente os
Muitos dos pecados listados nesses versí- indivíduos se sentem impotentes em face
culos eram mencionados na lei (cf Lv 18; de tal corrupção.
20). 16 "Profanada": A própria punição de 23-31 Ezequiel deve dizer à terra: "Tu
Israel é chamada de profanação. és uma terra árida (24), teus governantes
oprimem o povo (25); teus sacerdotes
22.17-22 A fundição de Israel profanam a minha lei (26); teus oficiais
A punição de Israel é comparada ao fogo matam por dinheiro (27); teus profetas di-
de uma fornalha: a escória será removida. vulgam visões falsas (28), teu povo opri-
As ideias modernas de guerra ou puni- me, extorque e rouba (29). Eu procurei
ção normalmente incluem conceitos como nessa terra por alguém que permanecesse
retribuição e ou regeneração. Aqui encon- firme, mas não pude encontrá-lo. Por isso
tramos o conceito de purificação. A cor- derramei a minha indignação sobre teus
rupção estava arraigada demais para que habitantes" (30,31).
fossem feitas mudanças sociais menores. Nota. 30 "Tapasse o muro": não havia
Tudo teria de ser mudado para que fosse ninguém que fosse suficientemente reto para
possível um novo recomeço. interceder junto a Deus em favor do povo.
1101
...
EZEQUIEL 23 . . .

23.1-49 Oolá e Oolibá - irmãs ela passou a ter saudades dos tempos do
adúlteras Egito, com seus bem dotados garanhões
Este capítulo tem um tema bastante seme- egípcios" (11-21).
lhante ao do cp. 16: Jerusalém e sua irmã 22-35 Ezequiel deve proclamar a
Samaria se prostituíram com as práticas Oolibá: "Eu suscitarei contra ti os teus
pagãs das nações vizinhas, em particular amantes. Os assírios e os babilônios te cer-
o Egito, a Assíria e a Babilônia. Elas de- carão e punirão. Eu trarei minha ira con-
vem arcar com as consequências de seus tra ti e colocarei um fim em tua perversão
atos. As diferenças entre os dois capítu- (22-27). Eu te entregarei nas mãos de seus
los se encontram principalmente em suas ex-amantes, a quem agora detestas (28).
ênfases. A natureza militar e política da Eles te humilharão (29,30). Assim como
associação de Israel com a Assíria e com tua irmã Samaria, beberás do copo da de-
a Babilônia é destacada pela descrição solação (31-34). Uma vez que me viraste
de seus amantes assírios e babilônicos as costas, deves suportar o peso de tua ini-
como guerreiros em uniformes completos quidade" (35).
(5,14,15). Eles trarão sobre ela a retribui- 36-49 Ezequiel deve confrontar Oolá
ção por seus atos. Essa retribuição é tam- e Oolibá sobre suas más ações: adultério,
bém descrita em termos de ataque militar derramamento de sangue, rituais sexuais
e pilhagem (24-26; 46-47). pagãos, sacrifícios de crianças, e profana-
Aqui as alianças políticas de Israel ção tanto do santuário quanto do sábado
não são condenadas por si mesmas. Elas (36-39). A sedução de estrangeiros (40-42)
formaram a base para uma penetração so- acabou em prostituição, adultério e der-
cial e religiosa de crenças pagãs na cultu- ramamento de sangue (43-45). Ele deve
ra de Israel que os israelitas prontamente proclamar: "Deixai-as morrer e assim farei
acolheram. cessar a luxúria na terra (46-49). Então sa-
Os pecados do povo de Israel não são bereis que eu sou o Senhor".
vistos por Deus de maneira neutra e im- Notas. 4 Os nomes Oolá e Oolibá pa-
parcial. Antes, como um marido vê a infi- recem ter ligação com a palavra "tenda"
delidade de sua mulher tanto com tristeza no hebraico. Embora muitos comentaris-
quanto com ira, assim Deus enxerga o pe- tas sugiram que isso implica uma conexão
cado de seu povo (cf cp. 16). com o culto (e.g., com a tenda do santuá-
1-10 O Senhor diz a Ezequiel: "Havia rio), isso pode simplesmente indicar a ori-
uma vez duas irmãs, Oolá, isto é, Samaria, gem nômade do povo. "Minhas": embora o
e Oolibá, isto é, Jerusalém. Em sua juven- texto não diga explicitamente que as filhas
tude, no Egito, elas se perderam na pros- eram noivas do Senhor, este versículo e o
tituição (3,4). Elas eram minhas esposas, v. 5 sugerem implicações desse relaciona-
mas Oolá se encheu de cobiça pelos assí- mento (cf 16.8,9). Assim, a prostituição
rios, e se prostituiu com eles (5-8). No final de Israel também é adultério. 5-10 A ob-
eu a entreguei nas mãos dos assírios, eles a sessão de Samaria pela Assíria provoca
despiram e a mataram (9,10). sua destruição. Samaria caiu nas mãos da
11-21 "Oolibá era pior que sua irmã. Assíria em 722-721 a.C. 14 "Caldeus":
Ela também cobiçou os assírios, depois embora o termo mais tarde passasse a ser
desenvolveu desejo pelos babilônios. sinônimo de "babilônios", os caldeus eram
Depois que estes a violaram, ela se afas- uma raça distinta do sul da Babilônia (cf
tou desgostosa. Do mesmo modo, dela 23). 23 "Pecode": uma região no leste da
me afastei (como também tinha me afas- Babilônia. A identificação de Soa e Coa
tado de sua irmã) quando sua prostituição é duvidosa. 24 "Multidão de povos": em
se tomou exageradamente flagrante. Aí Ezequiel esse termo (cf 46-47 - "turba")
EZEQUIEL 24 1102

é frequentemente usado para descrever um (3-7,13). Aquece ainda mais a panela,


grande número de pessoas com a intenção queimando os ossos. Deixa que a panela
de destruir. 36-39 Algumas das práticas fique incandescente de modo que a man-
pagãs que Israel adotara são listadas aqui. cha seja queimada e desapareça (9-12). a
42 "Bêbados": "Sabeus" (NVI). a termo julgamento de Jerusalém não poderá ser
pode de fato ser traduzido por "bêbados". evitado agora" (13,14).
a sentido geral é o de uma multidão sem Notas. 6 "Ferrugem" ou "crosta" (NVI):
compromisso, vinda de qualquer canto e à medida que o líquido se reduzisse, ficaria
tirando vantagens das irmãs. uma mancha ou uma crosta no interior da
panela. "Sem escolha": se esta expressão
24.1-14 A parábola da panela: foi reproduzida de forma correta, o pensa-
Jerusalém cercada mento que está por trás dela pode ser que
Este oráculo representa um ponto de vi- o conteúdo da panela, isto é, o povo, seria
rada no livro. Até agora as profecias de espalhado aleatoriamente. 12 Como está, o
Ezequiel eram principalmente advertên- versículo pode sugerir que a ferrugem (ou
cias sobre o desastre vindouro. Mas agora a crosta) da panela não sairá mesmo depois
começou o cumprimento das profecias. do segundo aquecimento. Seria mais coe-
Já não há volta. a cerco de Jerusalém rente considerar o versículo uma síntese da
começou. A data do oráculo é bastante tentativa passada: "todos os esforços ante-
precisa: 15 de janeiro de 588 a.C. Eis o riores foram frustrados".
dia em que Nabucodonosor deu início ao
cerco da cidade. Depois de 18 meses, os 24.15-27 A morte da
babilônios tomariam Jerusalém e toca- esposa de Ezequiel e o
riam fogo em tudo. A cidade seria com- significado do lamento
pletamente destruída. Este era o segundo A revelação da morte de sua esposa
cerco a Jerusalém em 12 anos. a próprio deve ter sido algo muito doloroso para
Ezequiel tinha sido deportado depois do Ezequiel. Contudo, até mesmo esse fato
primeiro cerco. será usado como um meio de transmitir a
A mensagem do oráculo tem a forma terrível mensagem sobre o destino tanto
de uma parábola. Jerusalém é comparada de Jerusalém quanto do templo. Até nos
a uma panela, e o seu povo ao conteúdo momentos de luto, Ezequiel continua a
dessa panela. Depois que o fogo é aceso, ser um profeta de Deus.
uma mancha de fuligem permanece na pa- a modo de agir de um crente durante
nela, isto é, mesmo depois do primeiro cer- as crises pessoais muitas vezes pode falar
co as impurezas de Israel permaneceram. mais alto do que muitas palavras, embora
Um segundo fogo mais forte (o segundo a recusa em tomar as providências adequa-
cerco) será necessário para queimar as im- das ao luto possa ser muito prejudicial à
purezas, isto é, punir a iniquidade do povo. pessoa enlutada. Essa ordem foi especifi-
Novamente a punição é retratada como pu- camente dirigida a Ezequiel e não significa
rificação (cf 22.17-22). que deva ser aplicada de modo geral.
1-14 A Ezequiel é dito: "Registra 15-24 A Ezequiel é dito que sua espo-
esta data porque hoje Nabucodonosor si- sa vai morrer, porém ele não deve realizar
tiou Jerusalém" (2). Ele deve proclamar: os rituais fúnebres costumeiros (16,17).
"Enche uma panela com água e junta pe- Quando o povo lhe perguntar o que suas
daços de carne com ossos. Cozinha-a no ações significam, ele lhes responderá com
fogo. Da crosta [cf NIV] resultante na pa- a palavra do Senhor para Israel: "Eu es-
nela o resíduo não desaparecerá. As man- tou prestes a profanar meu santuário. as
chas são como as impurezas de Jerusalém parentes que deixastes para trás cairão
1103 EZEQUIEL 26 <
pela espada. Contudo, não seguireis os Judá, eles serão invadidos e saqueados pe-
costumes fúnebres de praxe, assim como los povos do Oriente (1-5). Por terem se
fez Ezequiel. Então sabereis que eu sou o alegrado maldosamente com a desgraça de
Senhor" (20-24). Israel, serão destruídos (6,7).
25-27 Além disso, Deus diz a Ezequiel: Moabe. Visto que Moabe olhava para
"Quando a cidade cair, alguém que esca- Israel com desprezo, será subjugado pelos
par virá te levar. Naquele dia recupera- povos do Oriente (8-11).
rás totalmente a tua fala. Serás um sinal Edom. Pelo fato de Edom ter se vinga-
para o povo, e eles saberão que eu sou do de Judá, sofrerá devastação pelas mãos
o Senhor". de Israel.
Notas. 17 Havia uma grande diver- Filístia. Por causa de sua vingança
sidade de rituais fúnebres (cf 27.30-32). contra Judá, os queretitas e os que restarem
27 "Falarás": A perda parcial da fala de no litoral serão destruídos.
Ezequiel seria revertida quando ele ouvis- Notas. 4 "Filhos do Oriente"; tribos
se a notícia da queda da cidade. Essa recu- nômades do deserto. 5 "Rabá": capital de
peração da fala é relatada em 33.21,22. Até Amom (cf 21.20). 8 "Seir": outro nome
esse acontecimento serviria de sinal para para Edom. 16 "Queretitas": um povo pro-
o povo. ximamente ligado aos filisteus.

25.1-17 Profecias contra 26.1- 28.19 Profecias


as nações vizinhas contra Tiro
Esta seção dá início a uma série de orácu- Em termos geográficos, Tiro era minúscu-
los contra as nações estrangeiras vizinhas la. Em termos econômicos, entretanto, era
a Israel (cp. 25-32). Tanto o Egito quan- muito importante e, portanto, uma significa-
to Tiro recebem maior atenção, mas este tiva força política do antigo Oriente Médio.
oráculo se concentra especificamente nos A antiga cidade de Tiro era um impor-
vizinhos mais próximos de Judá: Amom, tante porto para a área que hoje é conheci-
Moabe, Edom e Filístia. Essas nações ti- da como o sul do Líbano. (Localizava-se
nham assistido à desgraça do povo de Israel aproximadamente na metade do caminho
com prazer (Amom) e escárnio (Moabe). entre Beirute, ao norte, e Haifa, ao sul). A
Elas até mesmo aproveitaram a oportu- cidade tinha dois portos, um deles loca-
nidade para se vingar de Judá (Edom e lizado em uma ilha próxima à costa. No
Filístia). O oráculo de Ezequiel as adverte livro de Ezequiel há várias referências ao
de que o castigo virá. íntimo relacionamento de Tiro com o mar.
O oráculo começa com Amom, situado Tanto sua bravura quanto sua profetizada
a leste de Israel, e então se move em sen- destruição são descritas por meio de alu-
tido horário na direção de Moabe, Edom sões ao mar. Parte substancial do poder de
e Filístia. Tiro residia em suas habilidades de explo-
É fácil condenar essas nações vizinhas ração marítima.
por suas atitudes em relação a Israel. Mas A riqueza de Tiro provinha de seu co-
essas atitudes também podem ser as nossas mércio. Seus comerciantes frequentemente
quando problemas acometem um de nos- viajavam por todo o mundo antigo e nego-
sos próximos. Entretanto, Deus é o Deus ciavam uma imensa variedade de mercado-
de toda a terra e está, em última instância, rias. Seu povo era muito conhecido por suas
no controle do destino tanto das nações habilidades mercantis. Essas habilidades,
quanto dos indivíduos. por sua vez, levaram-na à prosperidade.
Amom. Pelo fato de os amonitas terem Tiro tem uma história longa e signifi-
se regozijado com a destruição de Israel e cativa. A cidade é mencionada nos textos
EZEQUIEL 26 1104

egípcios de execração, por volta de 1850 26.1-21 A autossatisfação


a.C. De acordo com Heródoto, o alfabeto denunciada
escrito foi introduzido na Grécia pelos fe- Neste oráculo, Tiro é repreendida por con-
nícios que vieram com Cadmo, rei de Tiro. siderar a queda de Jerusalém meramente
A cidade-estado também fundou a colônia como um acontecimento que aumentará
de Cartago, por volta de 825-815 a.C. sua própria prosperidade. A Babilônia,
Frequentemente as relações entre Tiro sob o comando de Nabucodonosor, sitiará
e Israel tiveram um elemento econômi- e destruirá a cidade. O prazer na desgraça
co. Hirão I, rei de Tiro, tinha fornecido alheia é uma emoção com a qual os cris-
a Davi os materiais necessários para a tãos, bem como os demais, devem saber
construção do palácio real em Jerusalém lidar apropriadamente, sendo uma emoção
(2Sm 5.11; 1Cr 14.1). Também havia for- que, embora bastante comum, não costuma
necido a Salomão os materiais necessários ser prontamente reconhecida.
para a construção do templo e fizera um 1-21 A palavra de Deus para Ezequiel
tratado com ele. Um século mais tarde, o é: "Tiro disse que a ruína de Jerusalém
rei Acabe fez um acordo para se casar com assegurará sua própria prosperidade"
Jezabel, filha do rei de Tiro (1Rs 16.31). (1,2). Portanto, Ezequiel deve proclamar:
Por meio de Jezabel a adoração ao deus "Muitas nações pilharão as tuas riquezas,
de Tiro - Baal Melqart - foi introduzida Tiro. Então saberão que eu sou o Senhor
em Israel. (3-6). Nabucodonosor irá sitiar-te e des-
Antes da época de Ezequiel, Tiro tinha truir-te. Nunca mais serás reconstruída (7-
vivido um período de grande prosperida- 14). As tribos do mar ficarão aterrorizadas
de. Entretanto, Ezequiel, Jeremias (25.22; com tua queda e lamentarão o teu colap-
27.1-11) e Zacarias (9.2-7) profetizaram so (15-18). Serás arrastada para a cova.
a queda de Tiro diante dos babilônios. O Jamais serás reconstruída" (19-21).
cerco de Tiro por Nabucodonosor (cerca Notas. 1 "No undécimo ano": isto é,
de 587-574 a.C.) foi evidentemente uma 587/6 a.c. 2 Tiro viu a queda de Jerusalém
campanha dificil (Ez 29.18). A cidade ao como mera oportunidade de negócios.
final rendeu-se ao domínio babilônico. Por sua localização geográfica, as terras
Os oráculos contra Tiro e Egito são da Palestina eram o centro de numerosas
orientações instrutivas a respeito da natu- rotas comerciais que ligavam a África à
reza do orgulho nacional. A maioria dos Eurásia. 3-5 Grande parte das imagens re-
povos cultiva certo orgulho pelo progres- lacionadas a Tiro se refere a seu contexto
so de sua nação e até mesmo apoia isso. marítimo. 6 "Suas filhas que estão no con-
No caso de Tiro, podemos ver a confiança tinente": Tiro havia expandido seu controle
arrogante pela construção de seu próprio para áreas bem além da ilha e do porto do
sucesso econômico. A riqueza que tinha continente. 7-14 Nabucodonosor é agora
adquirido era para ela um sinal de que era mencionado pelo nome pela primeira vez
superior às demais nações. A cidade esta- no livro de Ezequiel. Relatos afirmam que
va disposta a apoiar práticas comerciais seu cerco à cidade deTiro durou 13 anos.
corruptas para manter sua prosperidade. A Essa campanha evidentemente se mostrou
destruição de Israel era vista simplesmente muito difícil, mesmo para os babilônios
como uma oportunidade de negócio. (cf 29.18). A cidade-estado reconheceu e
Tiro foi condenada por tais atitudes, se sujeitou ao domínio babilônio. 15 "As
que prevalecem ainda nas sociedades de terras do mar": outras cidades-estado do
hoje. Não devemos deixar que o sucesso Mediterrâneo que provavelmente eram
material de nossa nação se tome seu único aliadas nos negócios de Tiro. 19 A imagem
critério de realização. aqui é de uma ilha afundando sob as ondas.
20 "Eu te farei descer com os que descem
1105 EZEQUIEL 28 _.

zada em sua construção era das melhores.


-.-
à cova". A "cova" e a terra abaixo dela são "Senir": nome amorreu para Hermom (cf
referências ao túmulo ou ao sheol, isto é, Dt 3.9). 7 "Elisá": provavelmente se refere
ao domínio da morte. a Chipre. 8 "Sidom e Arvade": essas duas
cidades situavam-se ao norte de Tiro. 9
27. 1-36 Um lamento "Gebal": o porto marítimo de Biblos, um
Esse oráculo é dado como um lamento. importante porto fenício. A grande procura
Aqui Tiro é comparada a um maravilhoso por trabalho na cidade de Tiro era mais um
navio mercante. Os fornecedores da ma- sinal de seu poderio econômico. 10 "Pute":
deira utilizada em sua construção e de suas Líbia. As três nações mencionadas aqui
mercadorias eram seus parceiros comer- eram distantes. Foram listadas para mos-
ciais. A extensa lista de países e produtos trar como Tiro podia atrair mercenários
nos dá um claro panorama do motivo de de toda a parte do mundo antigo - seja
Tiro ser famosa por suas atividades econô- da Líbia (Pute) no oeste, da Lídia no norte
micas. Suas ligações comerciais se espa- ou da Pérsia no leste. 11 Arvade também
lhavam pela maior parte do Mediterrâneo, fornecia mão-de-obra naval (8). "E o teu
norte da África, Ásia Menor e Oriente exército (00'] e os gamaditas": "Heleque
Médio. A cidade era capaz de empregar (00'] Gamade" (NIV). A localização geo-
estrangeiros tanto na indústria como nas gráfica de ambas é incerta. Heleque pode
suas forças armadas. Contudo, este navio- estar na região da Cilícia, e Gamade, na
estado estava prestes a afundar, isto é, Tiro Capadócia. (Ambas as áreas ficavam no
seria destruída. leste da Ásia Menor). 12 A lista dos parcei-
Quando uma grande empresa de tradi- ros comerciais de Tiro em ordem geográ-
ção vai à falência e fecha suas portas, não fica de proximidade se estendia de Társis,
apenas seus próprios empregados, mas no Mediterrâneo ocidental, até o deserto da
também muitos outros em indústrias-sa- Arábia e Mesopotâmia. 16 "Síria": "Arã
télites, fornecedores de mercadorias e (NIV)". A melhor leitura aqui seria "Edom",
de serviços passam a ser desnecessários. 23 "Éden": não é o jardim do Éden; em he-
A recessão e o colapso econômico são braico a palavra "Éden", nesses dois casos,
alguns dos castigos atuais que um país tem grafias diferentes. O Éden mencio-
pode enfrentar. nado aqui ficava na Mesopotâmia. 26 O
1-36 Ezequiel é intruído a proclamar a "vento oriental" pode se referir não apenas
Tiro: "Tu te vanglorias de tua beleza (3,4). a uma tempestade marítima (cf SI 48.7),
Foste edificada com os mais finos mate- mas também pode ser uma alusão ao local
riais (5-7). Empregaste mão-de-obra de de onde vinha a ameaça a Tiro: a Babilônia
muitas nações para construí-la, operará-la se encontrava a leste de Tiro. 30,31 Sete si-
e defendê-la (8-11). Tinhas muitos parcei- nais tradicionais de luto são listados aqui:
ros comerciais importantes, próximos e gritos de lamento, os costumes de lançar
distantes, e tuas mercadorias eram da mais pó da terra sobre a cabeça, de revolver-se
alta qualidade e variedade. (12-25). Mas nas cinzas, de raspar a cabeça, de vestir-se
perderás tudo isto no dia de teu naufrágio de pano de saco, de chorar com amargura
(26,27). Teus vizinhos e parceiros comer- e de lamentar.
ciais ficarão abismados (28-36). Jamais
subsistirás" (36). 28.1-10 Contra a arrogância
Notas. 3 "Eu sou perfeita em formo- A conquista da riqueza econômica tinha
sura": a grande riqueza de Tiro resultou trazido consigo um sentimento de arrogân-
em muitos adornos dos quais a cidade se cia. O processo é resumido no v. 5 - a
orgulhava (cf 28.12). 5,6 A madeira utili- grande habilidade nos negócios levara à
EZEQUIEL 28 1106

grande riqueza, e a grande riqueza leva- uma conduta acima de qualquer acusação
ra à arrogância. O rei de Tiro é descrito (15). Contudo, tua vasta atividade comer-
como aquele que acreditava ser tão sábio cial te levou à opressão. Teu esplendor te
quanto um deus. A profecia advertia que a deixou orgulhoso e corrompeu o teu pen-
pena para tal arrogância seria humilhante e samento. Tuas variadas práticas comer-
definitiva. Outros exemplos desse tipo de ciais desonestas levaram à profanação de
arrogância e da subsequente queda são fa- teus santuários. Assim, foste expulso de
cilmente encontrados na história e nos dias teu paraíso e lançado por terra (16-18). As
de hoje. nações que te conheciam espantaram-se
1-10 Ezequiel deve proclamar ao rei ao te ver" (19).
de Tiro: "Tu pensas ser um deus, mas não Notas. 13 As pedras preciosas aqui
és (1,2). Tua astúcia e perspicácia co- listadas foram usadas como uma alusão às
mercial te trouxeram grande recompensa vestes do sumo sacerdote (Êx 28.17-20),
econômica (3-5a), o que a seu turno te embora as divindades pagãs também fos-
tornou orgulhoso (5b). Devido a esse or- sem algumas vezes vestidas com trajes re-
gulho, terás morte humilhante nas mãos pletos de joias. A ênfase aqui é colocada na
de estrangeiros. Quando eles te confron- riqueza do rei (e também na opulência da
tarem, serás apenas um mortal, e não um cidade de Tiro). 14-16 O exato significado
deus" (7-10). da palavra "querubim" não é muito claro
Notas. 2 "No coração dos mares": par- e depende de qual versão bíblica esteja
te da cidade de Tiro consistia em uma ilha sendo seguida. Na NVI, e.g., o rei de Tiro
(v. comentários anteriores). 3 "Daniel": v. é elevado à posição de querubim, ou teve
nota em 14.14,20. 7 "Os mais terríveis es- um querubim designado como seu guar-
trangeiros dentre as nações": uma alusão à dião. Ambas as versões apontam para sua
Babilônia. 10 Os habitantes de Tiro prati- posição elevada. "brilhantes pedras": lite-
cavam a circuncisão, de modo que morrer ralmente "pedras de fogo"; possivelmente
"da morte dos incircuncisos" seria consi- uma referência às pedras preciosas mencio-
derado humilhação. nadas no v. 13. Uma alternativa é que seja
a descrição de algo radiante ou brilhante
28.11-19 Expulsão do "Éden" que se encontrava no monte de Deus. 15
Esse lamento descreve a ascensão e queda "Perfeito": novamente uma alusão ao re-
do rei de Tiro, e consequentemente a as- lato do Éden. 18,19 Aqui o assunto muda:
censão e queda da própria cidade-estado. A antes, o relato falava do rei; agora, passa a
imagem lembra bem a narrativa do jardim falar da cidade de Tiro.
do Éden. Entretanto, não há nenhuma ten-
tativa de fazer um paralelo com o relato do 28.20-26 Profecia contra Sidom:
livro de Gênesis, Como sempre ocorre no "Saberão que eu sou o SENHOR"
livro de Ezequiel, as metáforas são livre- Sidom, cidade vizinha de Tiro, também
mente combinadas, alteradas e adaptadas receberá o devido castigo. Uma caracte-
segundo a conveniência da linguagem da rística notável deste pequeno oráculo é a
profecia. A linguagem poética serve para frequente repetição da frase e saberão que
destacar a extensão da queda que a cidade eu sou o SENHOR. Além disso, a profecia
de Tiro experimentou; foi como uma ex- reafirma a promessa de restauração para o
pulsão do paraíso. povo de Deus (25,26), um tema que, mais
11-19 O lamento para o rei de Tiro é: tarde, receberá ênfase maior.
"Já foste um exemplo de sabedoria e be- 20-26 Ezequiel deve proclamar a
leza (12), morando no paraíso, adornado Sidom: "Estou contra ti, Sidom, e serei
com joias esplêndidas (13,14) e exibindo glorificado no meio de ti. Quando em ti
11
1107 EZEQUIEL 29 1111
1111

executar meus juízos e me santificar, eles 601 - As forças egípcias e babilônicas


saberão que eu sou o Senhor (22). Quando se encontram novamente. Ambos os lados
a ti eu afligir, eles saberão que eu sou o sofrem baixas pesadas.
Senhor (23). Quando Israel já não tiver vi- 597 - Nabucodonosor subjuga Jeru-
zinhos que o desprezem, eles saberão que salém. O Egito se mantém neutro. Zede-
eu sou o Senhor (24). Quando eu congre- quias é empossado no trono como vassalo
gar a casa de Israel dentre os povos eu me de Nabucodonosor.
santificarei entre eles. Israel habitará em 589 - Judá, sob a liderança de Ze-
segurança na terra que lhe dei, e então eles dequias, rebela-se abertamente contra os
saberão que eu sou o Senhor" (25,26). babilônios.
Notas. 25 "A meu servo, a Jacó": 588 (janeiro) - Os babilônios avan-
cf 37.25. çam para cercar Jerusalém.
588 - O cerco é suspenso temporaria-
29.1-32.32 Os oráculos mente, enquanto os babilônios reorgani-
egípcios zam suas forças para enfrentar o exército
O livro de Ezequiel contém um total de egípcio (Zedequias pedira ajuda aos egíp-
sete oráculos contra o Egito - mais do cios). Entretanto, os egípcios são repelidos
que qualquer outra nação. A pergunta que rapidamente, e os babilônios retomam o
se faz aqui é por que um profeta judeu, re- cerco a Jerusalém.
sidente na Babilônia, se incomodaria com 587 (julho) - Uma brecha se abre nos
um país localizado a centenas de quilô- muros de Jerusalém. A cidade e o templo
metros. A resposta se toma clara quando são queimados. O estado de Judá encontra
consideramos a história do período e a seu fim. A nação está em ruínas.
cronologia dos oráculos. Os oráculos egípcios em Ezequiel são
No tempo de Ezequiel, o Egito era uma incomuns, pelo fato de que todos eles, com
superpotência em lento declínio. No auge exceção de um, são datados. Quase a meta-
de seu poder, sua esfera de influência ti- de das 13 datas fornecidas no livro encon-
nha se estendido por todo o Mediterrâneao tram-se na seção egípcia. Quando coloca-
oriental, incluindo a Palestina e os territó- das em ordem cronológica, ficam assim as
rios que hoje pertencem ao Líbano e à Síria datas dos oráculos:
ocidental. Quando os babilônios tomaram 587Uaneiro) - 29.1-16; 587 (abril)-
o lugar da Assíria como superpotência 30.20-26; 587 (junho) - 31.1-18; 586/585
político-militar dominante no Oriente -32.17-32; 585 (março)-32.1-16; 571
Médio, o Egito se aliou à Assíria na ten- (abril) - 29.17-21. O oráculo em 30.1-19
tativa de impedir o avanço babilônico. O não é datado, mas seu conteúdo é seme-
resultado foi um complexo jogo de poder, lhante ao dos demais.
e os estados menores da região, tais como Assim como Tiro, o Egito tinha um
Jerusalém/Judá, tiveram de escolher seus grande orgulho nacional. Se Tiro era "di-
aliados com cuidado. nheiro novo" então o Egito era "dinheiro
A seguir apresentamos a cronologia das antigo". Seu orgulho baseava-se naquilo
relações entre o Egito e a Babilônia até a que tinha herdado e aparentemente seria
época das profecias de Ezequiel bem como mantido para sempre. Sua extensão ter-
ao longo desse período: ritorial era grande e dotada de considerá-
605 - Os babilônios derrotam as for- veis recursos naturais (especialmente o rio
ças egípcias em Carquemis (cf Jr 46.2) e Nilo). Possuía uma maravilhosa história
então fazem pressão sobre o sul (Carque- imperial, um numeroso exército e influên-
mis se localizava no noroeste da Síria). Se- cia política difundida por todo o Oriente
guem escaramuças. Médio. Contudo, sua confiança em seu
EZEQUIEL 29 1108

passado glorioso era equivocada. Seu des- O oráculo significa que o Egito sofrerá
tino era ser humilhado. Do mesmo modo, derrota e destruição. A nação se recupe-
em nossa época, não devemos deixar que rará, mas nunca mais será a potência que
um passado nacional de glórias (sejam elas foi (14,15).
atuais ou não) distorça nossa percepção 1-16 A palavra do Senhor para o faraó
das verdadeiras necessidades da nação. É é: "Devido à tua arrogância, faraó, serás
fácil sentir-se confiante de que os proble- destruído. Então, todo o Egito saberá que
mas e os desastres que acontecem a outros eu sou o Senhor (3-6). Por ter se mostrado
jamais nos atingirão. No entanto, este tipo uma ajuda inútil para Israel, o Egito será
de complacência nunca é realista. destruído pela guerra. Então saberão que
eu sou o Senhor (6-8). Devido à tua arro-
29. 1-16 Egito: declínio e queda gância, o Egito será arrasado e os egípcios
Quando comparamos as datas dos orácu- dispersos (9-l2).Todavia, após determi-
los aos acontecimentos da época, perce- nado tempo, eles serão trazidos de volta
bemos que os oráculos foram proferidos ao alto Egito, mas o seu reino permane-
em um contexto em que Judá oscila entre cerá humilde. O Egito será um lembrete
o domínio egípcio e o domínio babilôni- para Israel. Então, saberão que eu sou o
co. Durante os últimos 20 anos que ante- Senhor" (13-16).
cederam os acontecimentos cataclísmicos Notas. 1 A data era janeiro de 587 a.C.
de 588-587 a.C., o estado de Judá havia 3 "Crocodilo enorme": era um crocodilo ou
se aliado, voluntariamente ou não, ora a talvez uma criatura como o "leviatã" (cf
uma, ora a outra dessas duas grandes po- Is 27.1). 6,7 "Bordão de cana": cf Isaías
tências militares. 36.6. Assim como um bordão de cana que-
A série de oráculos de Ezequiel contra o bra e machuca qualquer um que nele bus-
Egito teve início durante a época mais ne- que apoio, assim o suposto apoio do Egito a
gra da história de Jerusalém. As manobras Jerusalém falhou, aumentando ainda mais
egípcias não tinham conseguido romper o desespero da cidade. 10 "Desde Migdol
o cerco babilônico imposto a Jerusalém. até Sevene": uma expressão que implicava
Ezequiel já havia previsto a queda da ci- uma referência a toda a terra do Egito: (de
dade. Ele agora tem terríveis notícias para norte a sul). "Etiópia": país localizado ao
seu suposto salvador. Seus oráculos adver- sul do Egito.
tem que o Egito cairá finalmente em mãos
babilônicas e que deixará de ser a grande 29.17-21 A recompensa
nação que foi outrora. de Nabucodonosor
Jerusalém já estivera sob cerco por A data deste oráculo (abril de 571 a.c.) faz
um ano. Tinha havido uma breve pausa, dele o último dos oráculos egípcios. Ele
quando os babilônios temporariamente se faz a ligação desses oráculos com os pro-
afastaram devido a um fracassado ataque clamados contra Tiro.
egípcio. O oráculo de Ezequiel reflete o 17-20 O Senhor diz a Ezequiel: "Nabu-
desespero que deve ter tomado conta de codonosor fez que seu exército me prestas-
Jerusalém quando se tomou claro que o se um grande serviço e não houve recom-
socorro egípcio não obteria resultado: o pensa para ele e nem para seu exército"
Egito se tomou um bordão de cana para a (18). Portanto, Ezequiel deve proclamar:
casa de Israel (6); e já não será uma fonte "Eis que darei a Nabucodonosor a terra do
de segurança para o povo de Israel (16). A Egito. Ele tomará o seu despojo e a rouba-
confiança depositada tanto no poderio mi- rá, e isso será a paga para o seu exército.
litar como no econômico sempre é, a longo Eu lhe dei a terra do Egito, visto que traba-
prazo, uma confiança indevida. lhou para mim".
1109 EZEQUIEL31 /
••
"Eu restaurarei a casa de Israel, e te é afastada por este oráculo. Os egípcios já
darei, Ezequiel, que fales livremente no tinham sido expulsos em 588 (quebrei o
meio deles. Então, saberão que eu sou o braço de Faraó, v. 21), e ainda sofreriam
Senhor" (21). mais derrotas (e quebrarei os seus braços
Notas. 18 "Toda cabeça se tornou cal- [do faraó], v. 22).
va": os uniformes dos soldados esfolavam 20-26 É dito a Ezequiel: "O poder do
a pele de quem os usava (um problema co- faraó já foi reduzido (21). Futuramente será
mum mesmo nos nossos dias). 21 "Farei reduzido ainda mais. Os egípcios sofrerão
brotar o poder!": o povo de Israel recobra- o exílio e a dispersão. Nabucodonosor e os
ria sua força. "E te concederei que abras babilônios se tornarão mais poderosos, en-
a boca": Ezequiel recuperaria a fala (cf quanto o Egito se desintegrará. Então, sa-
3.26; 33.32). berão que eu sou o Senhor (22-25). Quando
os egípcios forem espalhados, eles saberão
30.1-19 Um dia negro para o Egito que eu sou Javé" (26).
Este oráculo não é datado, mas seu tema Nota. 26 "Espalharei os egípcios en-
é similar aos outros oráculos de 587 a.C.: tre as nações": este versículo poderia ser
o Egito e seus aliados cairão nas mãos de visto como uma descrição da dispersão das
Nabucodonosor. forças expedicionárias do Egito, depois da
2-9 A guerra chegará ao Egito. Seus derrota, em vez da dispersão da nação.
vizinhos e aliados serão arrasados. 10-12
O poderio militar do Egito será destruído 31.1-18 A lição do cedro com
pelos babilônios, sob a liderança de muitos ramos para o Egito
Nabucodonosor. A terra será devastada. A glória do Egito e a extensão de sua que-
13-19 A nação ficará sem liderança. Seus da são ilustradas pela alegoria do majesto-
ídolos serão destruídos e sua cidades to- so cedro que foi cortado.
madas pela destruição avassaladora. 1-18 Ezequiel recebe a ordem de pro-
Notas. 5 As nações e povos aqui men- clamar ao Egito: "Tua grandeza pode ser
cionados eram todos aliados do Egito. comparada à de um frondoso cedro (2,3).
"Etiópia": uma região ao sul do Egito. Este cedro tinha uma fonte abundante de
"Pute": Líbia. "Os filhos da terra da alian- água (3,4). Por isso se elevou a sua es-
ça": provavelmente mercenários judeus tatura sobre todas as outras árvores, e se
que tinham se estabelecido no Egito. 6 multiplicaram os seus galhos, e se alonga-
"Migdol até Sevene": cf 29.10. 15-18 A ram seus ramos (5). Todos confiavam nele
lista das cidades do Egito e das regiões para proteção e abrigo (6). Era formoso na
mencionadas aqui enfatizam o quanto a sua grandeza e na extensão de seus ramos
destruição se alastrou. (7). Não tinha rivais (8). Todas as árvores
o invejavam (9). Porque sobremaneira se
30.20-26 Os braços elevou acima das outras, e seu coração se
quebrados do faraó orgulhou, eu o entreguei nas mãos da mais
Na época deste oráculo - (abril de 587 poderosa das nações que há de tratar dele
a.C.) - os habitantes de Jerusalém teriam (10,11). Ele foi cortado. Aqueles que nele
estado sob o cerco babilônico por mais confiavam o abandonaram (12). Nenhuma
de um ano. Qualquer esperança de que o outra nação terá a sua grandeza (14). O dia
Egito pudesse libertar a cidade, por meio da sua destruição foi um dia negro para
de um novo ataque contra Nabucodonosor, muitos (15,16). Os que procuraram sua
proteção terão um fim parecido (17). Tu
I Algumas versões trazem "brotar um chifre" (TB). O chifre
e teu poderio militar sereis destruídos da
era um simbolo de poder (N. do T.). mesma maneira" (18).
EZEQUIEL 32 1110

Notas 3 "Considere a Assíria": Uma de outras nações derrotadas na batalha. As


leve emenda textual alteraria a referência imagens não devem ser vistas como uma
à Assíria para uma referência a um cipres- descrição da vida após a morte em termos
te, como em "considere um cipreste, um teológicos. Elas eram uma maneira conve-
cedro no Líbano". A alteração toma a ale- niente de transmitir a degradação em que
goria mais direta, embora o sentido geral se encontrava o Egito.
permaneça o mesmo. 10 Foi o orgulho que 17-32 Ezequiel recebe a orientação de
levou o cedro à queda - e, por implica- lamentar pelo Egito, enquanto este desce à
ção, à queda do Egito. 12 "Os mais terrí- cova, às profundezas da terra. O Egito se
veis [...] das nações": uma frase já utiliza- juntará aos incircuncisos. Outros já se en-
da anteriormente (30.11) para descrever os contram ali: Assíria (22,23), Elão (24,25);
babilônios. 18 "No meio dos incircuncisos, Meseque e Tubal (26,27); Edom (29), os
jazerás com os que foram traspassados à príncipes do norte (30); os sidônios (30).
espada". Como os egípcios praticavam a Faraó e todo o seu exército se juntarão a
circuncisão e atribuíam grande ênfase aos eles (28,32).
rituais fúnebres, essa predição deve ter Tudo isso tem uma surpreendente li-
sido duplamente repugnante para eles. gação com os dias de hoje; muitos gover-
nos, de nações grandes ou pequenas, su-
32.1-16 Lamento pelo faraó cumbiram no último século, por exemplo.
O Egito é avisado outra vez de sua destrui- Contudo, um estudo mais detalhado da his-
ção pelos babilônios. tória mostra que este é o fluxo normal de
1-16 O lamento para o faraó é: "Você ascensão e queda das nações. O "terreno
é como um crocodilo nos mares que será sem obstáculos" e a existência segura que
capturado em uma rede e deixado a apodre- consideramos normal é uma esperança que
cer na terra (2-4). Muitos se alimentarão de não se sustenta. A segurança eterna pode
seus restos (4-6). Haverá grande escuridão ser encontrada apenas no Senhor; o contrá-
sobre a terra quando isso acontecer (7,8). rio é pura ilusão.
Muitas nações se amendrontarão diante Notas. 24 "Elão": um país a leste da
desse acontecimento (9,10). O Senhor diz: Babilônia. 26 "Meseque e Tubal": países
"A espada do rei da Babilônia virá contra da Ásia Menor (cf 27.13). 27 "A espada
ti e te destruirá (Ll ,12). O Egito será deso- debaixo da cabeça": seriam enterrados sem
lado" (13-15). as devidas honras militares. Eles teriam
Nota. 2 "Um monstro nos mares" (NVI) apenas uma simples lápide de guerra.
- cf 29.3-5 em que uma imagem seme-
lhante é usada. 33.1-20 O escopo da
responsabilidade
32.17-32 A descida do Egito Este oráculo inicialmente prega um tema
para o domínio da morte semelhante ao do oráculo de 3.16-21.
Esse lamento desenvolve dois temas que Ezequiel deve agir como um atalaia para
já haviam sido mencionados nos oráculos: Israel. Junto com a tarefa vêm tanto res-
(l) O Egito se deitará em seu leito de mor- ponsabilidades como punições. (Podemos
te ao lado de outras nações "mortas" na observar que nenhuma recompensa é ex-
batalha, e (2) compartilhará do destino dos plicitamente mencionada). Ezequiel deve
incircuncisos (cf 31.18). confiar a natureza de sua tarefa a Israel.
Ezequiel usa imagens poéticas para O oráculo prossegue, atacando duas
descrever o Egito em seu estado de mor- noções sobre a natureza do pecado de
te. Descreve o Egito como que deitado na Israel. A primeira (lO, 11) é um tipo de fa-
terra e cercado pelas sepulturas de guerras talismo, por meio do qual o povo alega ter
sido pego em seus próprios delitos, e que
1111 EZEQUIEL 33 _-

na morte do perverso (10,11). Se um ho-


-.-
até mesmo Deus fica feliz em vê-los em memjusto, confiando na sua justiça, fizer o
tal situação (e então, se Deus assim o quis, mal, não me virão à memória todas as suas
não há por que tentar mudar). Essa ideia é justiças, e ele morrerá por seus pecados
refutada: Deus não se compraz mesmo na (12,13). Se um homem perverso se desviar
morte dos perversos. Cabia a eles mudar os de seu pecado e fizer o que é justo e reto,
seus caminhos. seus pecados anteriores serão esquecidos,
A segunda noção é a de que o povo e ele viverá (14-16). Embora vós, povo de
armazenou certa quantidade de méritos Israel, dizeis que meu caminho não é reto,
(cf 18.21-32). Assim, uma série de boas é o vosso caminho que é injusto. Mas eu
ações podem ser usadas para compensar vos julgarei, cada um segundo os seus ca-
outra série de más ações. Esse ponto de minhos" (17-20).
vista significa que não há esperança para a Nota. 2 "Atalaia": ver comentário em
pessoa que tenha levado uma vida repleta 3.16-21.
de maldades - esta pessoa não será capaz
de compensar jamais o mal que fez com 33.21,22 Ezequiel
quaisquer atos de bondade que fossem. recupera sua fala
Além disso, significa que aqueles que pen- Este incidente é único no livro de Ezequiel
sam já ter armazenado méritos suficientes pelo fato de que sua experiência profética
podem cometer os pecados que quiserem, ("A mão do SENHOR estivera sobre mim")
desde que não ultrapassem sua cota. Essa não resultou em uma visão ou em um orá-
ideia também é refutada. Um arrepen- culo. Em lugar disso, Ezequiel recuperou
dimento sincero pode superar qualquer sua fala, que lhe fora parcialmente tirada
histórico de más ações. As más ações no no início de seu ministério (3.26,27).
presente não podem ser compensadas por A escolha do tempo desse evento foi
boas ações praticadas no passado. significativa. No dia seguinte chegou a no-
1-6 Ezequiel deve proclamar para seus tícia de que Jerusalém tinha caído. As pre-
patricios: "Considerai que uma nação seja visões de Ezequiel se tomaram realidade.
ameaçada de guerra, e que a um determi- Nota. 21 "No duodécimo ano":
nado indivíduo seja dada a tarefa de dar Jerusalém caiu em 587 a.c. Um grande
o sinal para avisar o povo de um possível número de versões e manuscritos traz "un-
ataque (2). Se essa pessoa fizer soar o alar- décimo ano". Se esta leitura for correta, e
me quando o ataque estiver próximo, então o ano se referir ao reinado de Zedequias,
a responsabilidade por quaisquer baixas então o intervalo decorrido entre a queda
será dos próprios cidadãos (3-5). Mas se da cidade e a visita a Ezequiel de alguém
não for dado o alarme quando o ataque for que escapou de Jerusalém foi de seis me-
iminente, o atalaia será responsabilizado ses. Cf Esdras 7.9, em que uma jornada
pela morte de qualquer dos cidadãos" (6). direta da Babilônia a Jerusalém levou
7-9 Ezequiel recebeu essa tarefa. Ele quatro meses inteiros.
deve transmitir ao povo de Israel os avi-
sos que Deus lhes envia (7). Caso Ezequiel 33.23-33 A posse ilegal de Israel
não transmita esses avisos a todos, ele será O cerco a Jerusalém terminou. A cida-
responsabilizado pelo destino dessas pes- de caiu e a terra está devastada. Muitos
soas. Mas se o fizer, ele terá livrado a si morreram, outros foram deportados ou
mesmo (8,9). forçados a fugir. Contudo ainda há alguns
10-20 Ezequiel recebe a ordem de pro- sobreviventes.
clamar: "Dizeis que estais desfalecendo em A calamidade nem sempre traz à tona
vossos pecados. Não tenho prazer nenhum o melhor das pessoas. Depois do primeiro
11
11l1li EZEQUIEL 34 1112
ri'
cerco de 597 a.C., um grupo de sobrevi- Notas. 24 "Abraão era um só": Seu
ventes na cidade exultou malignamente raciocínio era que se Abraão, um único
com a perspectiva de tirar vantagem da indivíduo, tinha conseguido se apossar da
situação (11.2-12). Depois do segundo terra, então não haveria nenhum problema
cerco, a terra estava despovoada. Aqueles para eles, uma vez que eram muito mais
que ali foram deixados, longe de se vol- numerosos. 33 A marca de um verdadeiro
tarem para Deus, mantiveram suas práti- profeta era que o que ele havia predito vi-
cas idólatras. Além disso, começaram a nha a se cumprir.
se apossar dos bens e das terras de seus
vizinhos, chegando mesmo a abusar das 34.1-48.35 Profecias
esposas que foram deixadas na cidade de restauração
(24-26). O oráculo de Ezequiel adverte As profecias nos cp. 34-48 contêm temas
que mais desolação seguirá devido ao que muito diferentes dos capítulos anteriores.
estão praticando. Enquanto os oráculos dos cp. 1-33 con-
Ao final do oráculo Ezequiel é adverti- sistem principalmente em advertências
do de um problema que muitos pregadores sobre o desastre que recairá não somente
enfrentam. O povo gostava de escutar o sobre o povo de Israel, mas também sobre
que ele dizia, mas não colocava em prática seus vizinhos, a ênfase dos cp. 34-48 está
o que ouvia. Um pregador pode ser capaz tanto na restauração como na esperança.
de entreter as pessoas, mas isso não signi- Tanto Jerusalém quanto o templo estão
fica que ele esteja sendo ouvido. destruídos. O povo foi levado ao exílio.
A privação, assim como a calamida- Contudo, há esperança.
de, também não costuma trazer à tona o Para os leitores contemporâneos es-
melhor das pessoas. Circunstâncias de- ses capítulos são difíceis de interpretar,
sesperadoras às vezes provocam ações em parte pela estranheza das imagens e
desesperadas, e nesses casos devemos ser em parte pela tendência comum a pro-
compreensivos. Entretanto, há momentos, curar acontecimentos contemporâneos
como o deste oráculo, em que o caos e a específicos nas descrições proféticas. É
desgraça são tratados simplesmente como importante lembrar que a natureza desses
um momento de oportunidade por pessoas oráculos é essencialmente parecida com
gananciosas e sem escrúpulos. os oráculos das partes anteriores do livro.
23-29 A palavra do Senhor para Diversas características dos últimos ca-
Ezequiel é: "Os moradores que habitam as pítulos têm paralelos nos capítulos ante-
ruínas da terra de Israel pensam que agora riores, por exemplo, a promessa da nova
são seus proprietários (24,25). Proclame aliança (16.60), o retomo à terra (28.25), o
a eles: 'Vós executais práticas violentas uso simbólico dos números (4.5,6; 14.21;
e pagãs - deveria a terra ser dada como 29.13) e a identificação de uma nação por
posse a vós? (25,26). Por causa do que es- meio de seu regente (29.1-6; 31.2-18). Há
tais fazendo, a terra será desolada. Então referências que parecem deliberadamente
sabereis que eu sou o Senhor'" (27-29). vagas ou simbólicas, por exemplo, Davi
30-33 Novamente Ezequiel ouve: "Os e Gogue, ou que apontam para o final
filhos do teu povo falam de ti em todos os dos tempos, por exemplo: "e Davi, meu
lugares. Eles se ajuntam para te ouvir, mas servo, será seu príncipe eternamente"
não praticam aquilo que ouvem. Para eles, (37.25). Tais referências levaram alguns
és como um cantor que canta canções de comentaristas a classificar Ezequiel como
amor. Entretanto, quando o que proclamas "proto-apocalíptico".
vier a acontecer, eles saberão que houve no Para nós, as imagens podem ser dis-
meio deles um profeta". tantes e difíceis de retratar. Contudo, elas
1113 EZEQUIEL 34 ••

••
devem ter produzido associações doloro- repreendidos por se preocuparem apenas
sas para os exilados. A descrição detalha- com seus próprios interesses e pela falta de
da do templo (40---48) é, para nós, algo cuidado para com o seu rebanho. Além dis-
muito dificil de acompanhar, mas deve ter so, algumas ovelhas engordaram à custa de
trazido muitas lembranças àqueles que não outras, isto é, algumas pessoas adquiriram
somente conheceram o templo como tam- poder e fortuna por meio da opressão dos
bém ali adoraram ao Senhor. As imagens mais pobres e fracos. Ezequiel adverte que
do vale dos ossos secos (37), das ovelhas a justiça será restaurada.
desgarradas (34), dos edificios em ruínas e A advertência se toma uma promessa
abandonados (35,36), de uma terra coberta para o futuro (21-24). O Senhor não ape-
de armas (39) e de animais e aves de rapi- nas salvará suas ovelhas, mas também
na se alimentando de soldados mortos (39) nomeará Davi como seu pastor, e estabe-
são todas imagens de guerra. São imagens lecerá com elas uma aliança de paz. Como
de uma terra tão desolada que seus mortos em outros oráculos, o nome é simbólico. A
não são enterrados, seus corpos apodrecem referência a Davi não significa que o anti-
a céu aberto e suas armas se enferrujam. go rei Davi será literalmente ressuscitado e
Essas imagens devem ter sido bastante re- entronizado como rei. Sua força se encon-
ais e dolorosas para quem testemunhara a tra no fato de que o próximo governante
destruição do exército de Israel. terá os atributos exemplares de Davi - al-
Essas profecias são dirigidas em primei- guém em quem o Senhor se compraz e que
ro lugar ao povo da época de Ezequiel. Seu triunfou sobre os inimigos de Israel. Uma
conteúdo é expresso em termos que o povo referência a Davi também pode ser encon-
daquela época conhecia e conseguia enten- trada em 37.24-26, em que o seu governo é
der. A realização das profecias não deveria descrito como eterno. A mesma passagem
ser vista como um fato isolado, mas como também se refere à eterna aliança de paz
um processo. Sua finalidade é dar esperan- que o Senhor estabelecerá com o seu povo,
ça quando a esperança já não existe, e dar um tema quase idêntico ao de 34.25-30.
orientação quando viver já não faz sentido. As duas passagens não apontam so-
Seu cumprimento tem início no dia em que mente para o futuro imediato de Israel, mas
são proferidas. O povo de Deus jamais será também para um futuro de longo prazo.
abandonado, não importa o tipo de dificul- Deus estabelecerá a paz com o seu povo, e
dade que tenha de enfrentar. apontará um pastor para dirigi-los.
Não podemos concluir que tais profe- O oráculo traz uma promessa de es-
cias não tenham significado algum para nós perança. Mesmo que o povo de Deus seja
nos dias de hoje. Como já vimos, a queda espalhado e oprimido, um dia terá justiça.
das nações e a devastação provocada pelas Os leitores do NT testemunharão esse dia
guerras são coisas familiares nos noticiá- com a volta de Jesus Cristo, uma promes-
rios de televisão, bem como o eram para sa selada com a sua primeira vinda, morte
as profecias de Ezequiel. Contudo, esse e ressurreição.
mesmo Deus garante a todos nós a mesma 1-31 Ezequiel deve proclamar aos
esperança de uma restauração futura. pastores de Israel: "Ai de vós pastores de
Israel. Não cuidastes do rebanho. Ele se
34. 1-31 Os pastores de espalhou pelas terras. Vós vos preocupas-
Israel são denunciados tes somente convosco mesmos (2,5-8). Eis
A imagem do povo de Deus como um reba- que me levanto contra os pastores. Eles se-
nho de ovelhas ocorre inúmeras vezes em rão responsabilizados pelo rebanho, porei
toda a Bíblia. Neste oráculo, os então pas- fim ao seu pastoreio. Eles já não se alimen-
tores, isto é, os governantes de Israel, são tarão de meu rebanho (lO). Eu buscarei e
EZEQUIEL 35 1114

ajuntarei minhas ovelhas. Eu as ajuntarei de Israel (35.12,15; 36.5). Terceiro, o povo


de todas as nações e as trarei para uma ter- de Edom aproveitara a oportunidade para
ra de boa pastagem, a terra de Israel. Eu anexar algumas terras de Israel durante
mesmo cuidarei delas e serei para elas um esse tempo de conturbação (35.12; 36.2,5).
bom pastor (11-15). Eis que julgarei entre Inimizades e rixas antigas são dificeis de
ovelhas e ovelhas. Algumas engordaram à esquecer. É fácil se alegrar ou mesmo tirar
custa de outras. O rebanho já não servirá vantagem do infortúnio de um vizinho de
de rapina (17-22). Apontarei meu servo quem não se gosta. Contudo, nossas rela-
Davi como seu único pastor. Eu serei o seu ções devem ser justas, mesmo quando as
Deus e Davi o seu príncipe (23,24). Eu ce- consideramos dificeis.
lebrarei com elas uma aliança de paz. Elas Edom pode ser tomado como um sím-
habitarão em uma terra fértil e segura. Elas bolo da incessante hostilidade entre o povo
serão resgatadas da escravidão. Saberão, de Deus e o "mundo". Visto que Davi foi
porém, que eu, o seu Deus, estou com elas, o rei que conquistou e ocupou Edom (v.
e que elas são o meu povo" (25-31). comentário de 34.21-24 e 2Sm 8.12-14), e
Notas. 13 "Tirá-las-ei [...] e as congre- que ele era o símbolo do triunfo de Israel,
garei": a promessa da restauração recebe a queda de Edom simboliza o início da
ênfase especial nos cp. 34-48. Entretanto, nova ordem. O retomo de "Davi" nos faz
isso também acontece em oráculos an- lembrar da vinda do Messias e do estabe-
teriores: 11.17; 16.60; 20.34,42; 28.25. lecimento da nova ordem, o reino de Deus,
25 "Aliança de paz": a nova aliança pro- que Jesus Cristo veio proclamar.
metida (cf Jr 31.31-34). 35.1-15 Ezequiel deve proclamar con-
tra Edom: "Eis que estou contra ti, Edom.
35.1-36.15 Profecias e Farei desertas as tuas cidades e tu serás
montes: advertências a Edom desolada, e saberás que eu sou o Senhor
e encorajamento a Israel (3,4). Tua perpétua rivalidade te levou a
É importante observar que 35.1-15 e 36.1- abandonar Israel em sua hora final (5). O
15 formam um único oráculo. A imagem sangue te perseguirá, farei de ti extrema
descrita nos dois capítulos é a dos mon- desolação. Assim saberás que eu sou o
tes. Seir, o monte de Edom, será desolado Senhor (6-9). Pensaste que podias ane-
(35.7,14), enquanto os montes de Israel se xar territórios de Israel e de Judá, quando
tomarão frutíferos (36.8,9), e a população estes estivessem desolados. Tu te engran-
será multiplicada (36.10-12). deceste contra mim. Por teres te alegrado
Edom era uma nação vizinha e anti- quando Israel se transformou em deserto,
ga rival de Israel. Apesar de etnicamente tu serás transformado em deserto (10-
próximas, essas nações mantinham uma 15). Então saberás que eu sou o Senhor"
inimizade antiga. A terra de Edom fica- (4,9,15).
va na fronteira leste ou oriental de Israel, 36.1-15 Mas, para os montes de Israel,
ao sul do mar Morto. De Seir, o monte Ezequiel deve proclamar: "O inimigo pen-
de Edom, era possível observar o flanco sou que vos podia saquear e anexar (36.1-
oriental de Israel. Os edomitas podiam 4). Sofrestes o escárnio das nações, mas
monitorar facilmente a miséria que sobre- essas nações ao vosso redor também sofre-
veio aos israelitas. rão escárnio (36.5-7). Contudo, sereis fér-
Edom é condenada por várias acu- teis e prósperos, com muitas edificações.
sações. Primeiro, evidentemente traíra Então sabereis que eu sou o Senhor. Meu
Israel em sua hora de maior aflição (35:5). povo vos possuirá como sua herança (36.8-
Segundo, os edomitas se engrandeceram e 12). Os montes de Israel já não privarão a
até mesmo se regozijaram com a destruição nação do seu povo" (36.12-15).
Notas. 35.10 "Os dois povos": Israel e
1115

esta é a palavra de Deus para Israel: 'Pelo


.
EZEQUIEL 37 . . -

Judá. 36.2 "Eternos lugares altos": a maior meu santo nome, vindicarei a santidade do
parte do território de Israel e de Judá se lo- meu grande nome através de vós perante
calizava nas regiões montanhosas entre o as nações. Então elas saberão que eu sou o
mar Morto e o mar Mediterrâneo. 36.12,13 Senhor (22,23). Eu vos trarei de volta para
"Tu és terra que devora os homens e és ter- a vossa própria terra e vos purificarei. O
ra que desfilha o seu povo": aqui os mon- vosso coração de pedra será trocado por
tes são descritos como algo que contribuiu um coração de carne. Eu colocarei o meu
para a destruição do povo. A expressão espírito sobre vós e farei com que obede-
pode ser puramente poética; mas, sem dú- çais às minhas leis. A terra será abundan-
vida, muitos de fato morreram nas batalhas te [e] detestareis e vos envergonhareis de
das regiões montanhosas. vossa conduta passada. Não é por causa de
vós que faço isso (24-32). Quando eu vos
36. 16-38 A restauração de Israel purificar de todos os pecados, a cidade será
Este oráculo é o âmago do livro de Eze- reconstruída e os campos serão novamente
quiel. Sua mensagem é uma síntese do li- cultivados. Então, as nações vizinhas que
vro. Israel ofendeu o Senhor com derrama- ainda restarem saberão que eu reedifiquei
mento de sangue e práticas idólatras (18). as cidades destruídas e plantei o que es-
Seu castigo foi sua dispersão entre as na- tava desolado (33-36). O povo de Israel
ções, o exílio (19). Contudo, o Senhor não se tomará tão numeroso quanto um reba-
os deixará ali. Eles retomarão à sua terra nho. Então as nações saberão que eu sou o
(24). O Senhor os transformará, purificará, Senhor'" (37,38).
e assim eles o seguirão (25-28). A terra e Notas. 25 "Aspergirei água pura": um
seu povo florescerão novamente (29-38). ato cerimonial de purificação. 26 "Coração
As nações vizinhas saberão que o Senhor de carne": a utilização do termo "carne"
agiu (36). aqui não deve ser confundida com a sua
A razão de o Senhor libertar seu povo utilização em outras partes da Bíblia, em
do exílio é claramente expressa. Ela não que frequentemente denota uma inclinação
tem relação alguma com qualquer bonda- para o pecado ou corrupção. Nesse trecho
de inata ou mérito do povo. Antes, ela está há um contraste entre o "coração de carne"
relacionada ao desejo de Deus de que seu e o "coração de pedra" para dizer que a na-
nome não seja profanado. O próprio fato tureza fria, desumana e cruel do povo de
de Israel estar em exílio levava as outras Israel seria substituída por uma espiritua-
nações a pensar que o Deus de Israel não lidade viva e calorosa.
conseguia ou não queria cuidar do seu pró-
prio povo. Essa situação denegria o caráter 37.1-14 O vale dos ossos secos
de Deus, e por esta razão Deus restauraria Depois da queda de Jerusalém o povo foi
o seu povo (20-23). espalhado e ficou muito abatido. O oráculo
Este oráculo traz esperança para todos tem uma mensagem simples: A nação de
nós. Deus age para salvar, não com base Israel, que se encontrava morta, um dia
em nosso merecimento, mas pela riqueza será restaurada e trazida de volta à sua pró-
da sua misericórdia. pria terra. Os ossos secos se transformarão
16-380 SenhordizaEzequiel: "Quando em um exército de guerreiros vivos. Uma
Israel habitou sua própria terra, ele a pro- transformação igualmente poderosa se apli-
fanou com suas iniquidades. Assim, eu os cará um dia também a Israel.
espalhei por outras terras. Mesmo assim, A força desta visão deu esperança a
sua dispersão profanou o meu nome, as- muitos ao longo dos séculos. O poder de
sunto de meu interesse (16-21). Portanto, Deus pode mudar não somente as coisas
>
EZEQUIEL 37 1116

mais impossíveis da vida, mas também as terá todos os valorosos atributos do rei
mais terríveis situações. Davi, como também todos os privilégios
1-11 Ezequiel tem uma visão na qual de sua linhagem, o direito ao trono e de
ele é transportado para o meio de um vale estar diante de Deus à luz de suas promes-
repleto de ossos secos. O Senhor lhe diz sas. O futuro de Israel é descrito como uma
para profetizar aos ossos e lhes dizer que versão idealizada de seu passado. Até as
eles serão recobertos de carne e voltarão mais profundas feridas da história podem
à vida. Ezequiel assim o faz, e, enquanto ser curadas pelo poder de Deus.
profetiza, os esqueletos se reconstituem 15-23 Ezequiel é instruído a fazer o
com estrépito. São recobertos por carne, seguinte: "Toma dois pedaços de madei-
tendões e pele, mas ainda estão mortos ra. Escreve em um deles: Para Judá e seus
(1-8). Então o Senhor lhe disse para orde- companheiros, e no outro escreve: Para
nar ao vento que soprasse sobre os corpos. Israel e seus companheiros. Junta-os, fa-
Ele profetiza como fora ordenado, e os zendo deles um só pedaço de madeira, para
ossos revivem e põem-se de pé, forman- que se tomem apenas um em tua mão"
do um exército numeroso (9,10). O Senhor (16,17). Quando alguém te perguntar, ex-
então lhe explica: "Esses ossos represen- plica o significado deste ato, o qual é: 'Eu,
tam Israel, que anda dizendo que sua espe- o Senhor, ajuntarei os pedaços de madei-
rança pereceu e secou" (11). ra de Israel e de Judá, para que se tomem
12-14 Ezequiel deve proclamar a todo apenas um' (18,19). Mostra-lhes os peda-
o povo de Israel: "Eu vos tirarei das suas ços de madeira (20), e proclama: 'Tomarei
sepulturas e vos levarei à terra de Israel. os filhos de Israel dentre as nações e os
Então sabereis que eu sou o Senhor ajuntarei e os levarei para sua própria ter-
(12,13). Porei em vós o meu espírito e vos ra. Eles terão apenas um rei e nunca mais
estabelecerei em vossa própria terra. Então serão divididos em dois reinos. Eles jamais
sabereis que eu sou o Senhor; eu o disse e profanarão a si mesmos. Eu os purificarei.
o farei" (14). Eles serão o meu povo, e eu serei o Deus
Notas. 1 "A mão do SENHOR": esta ex- deles" (21-23).
pressão indica que Ezequiel estava pres- 24-28 "Meu servo Davi será o seu rei
tes a experimentar uma visão muito mais para sempre. Eles observarão os meus es-
intensa, em vez da costumeira mensagem tatutos. Eles e seus descendentes habita-
"verbal". 5,14 "espírito, Espírito": o ter- rão sua terra para sempre (24,25). Farei
mo hebraico pode ser traduzido também com eles uma aliança eterna. Eu os es-
por "sopro". tabelecerei e os multiplicarei (26). Meu
santuário estará eternamente no meio de-
37.15-28 A reunião de Israel les. Eu serei o seu Deus, e eles serão o
Quase três séculos antes, desde o final meu povo. Então as nações saberão que
do reinado de Salomão, o povo de Israel eu, o Senhor, santifico Israel, porque o
fora dividido em dois reinos, Israel e Judá. meu santuário estará para sempre no meio
Serão não somente restaurados, como pro- deles" (27,28).
metido no oráculo anterior, mas também Notas. 16 "O pedaço de madeira de
formarão novamente uma única nação. Efraim": o nome "Efraim" era menos ambí-
Eles terão um único soberano, que guo que "Israel". O nome Efraim designa-
aqui é descrito como "meu servo Davi". va claramente o Reino do Norte, enquanto
(Y. comentário de 34.1-31, em que o ter- o nome "Israel" podia ser aplicado ao povo
mo também é utilizado). Ao chamar o de ambos os reinos. 26 "Meu santuário":
novo soberano de "Davi", a profecia quer essa promessa a respeito do santuário é de-
dizer que o novo soberano não somente senvolvida nos cp. 40--48.
1117 EZEQUIEL 39 ••

••
38.1-39.29 Profecias contra (14-16). Eu falei sobre ti no passado por
aqueles que se opunham a Israel meio dos meus servos, os profetas (17).
Nada se sabe ao certo sobre algum gover- Quando atacares Israel, haverá um gran-
nante chamado Gogue. As terras que go- de terremoto acompanhado de violentas
vernava - Magogue, Meseque e Tubal - tempestades. Ao te afligir com tudo isso,
provavelmente se localizavam nas regiões eu me darei a conhecer aos olhos de mui-
da Ásia Menor e do mar Negro (v. comen- tas nações. Então, sabereis que eu sou o
tário do v. 1). Essas terras estavam locali- Senhor"(18-23).
zadas a uma grande distância do mundo do 39.1-16 "Nos montes de Israel, eu ar-
Oriente Médio. Pode ser que tanto Gogue rancarei as armas das tuas mãos. Ali, cai-
quanto suas nações representassem simbo- rás, não só tu, mas todos os que te acom-
licamente o povo da época que era contrá- panham, e servireis de alimento a todas as
rio ao povo de Deus, ou seja, seu inimigo. espécies de aves de rapina e animais do
(O livro do Apocalipse se refere a Gogue campo (39.1-5). Farei meu nome santo
e Magogue com esse mesmo sentido em no meio de meu povo, Israel, e as nações
Ap 20.8). Visto dessa maneira, o oráculo saberão que eu sou o Senhor, o Santo de
se toma uma advertência de que, mesmo Israel. Isso com certeza se cumprirá (6-8).
depois do seu retomo do exílio, o povo de Os habitantes de Israel utilizarão todo ar-
Israel enfrentaria enormes dificuldades. mamento ali deixado para fazer fogo pelo
Contudo, essas forças seriam derrotadas e período de sete anos (8-10). O lugar de
seria grande a sua destruição. sepultura de Gogue será chamado de vale
A intensidade da imagem no oráculo das Forças de Gogue. Durante sete meses
- os grandes exércitos e o enorme número Israel sepultará as forças de Gogue para
de baixas - levou alguns intérpretes a ver limpar a terra." (11-16).
esse oráculo como a predição de uma ba- 39.17-29 Ezequiel também deve pro-
talha final específica. Entretanto, se com- clamar a toda espécie de aves e animais
pararmos este oráculo, por exemplo, aos do campo: "Preparai-vos para o grande sa-
dirigidos ao Egito em 32.1-16 e a Tiro em crificio. Comereis carne e bebereis sangue
28.11-19, encontraremos simbolismo de se- desses exércitos até ficardes fartos (17-20).
melhante extravagância. Todas as nações verão o meu juízo. Desse
A implicação do oráculo é que em dias dia em diante Israel saberá que eu sou o
futuros o povo de Deus veria as forças do Senhor, seu Deus, e as nações saberão que
mal perfiladas em massa contra ele. A pro- Israel, por causa da sua iniquidade, foi le-
babilidade de vencê-las parece remota, mas vado para o exílio (21-24). Eu trarei Israel
o poder de Deus protegerá o seu povo. O de volta do cativeiro e vindicarei neles a
inimigo será derrotado. Para nós, a vitória minha santidade. Então eles saberão que
ainda se encontra no futuro, mas o golpe eu sou o Senhor, seu Deus, e derramarei
final foi dado na cruz do calvário. meu Espírito Santo sobre eles" (25-29).
38.1-23 Deus pede a Ezequiel para pro- Notas. 38.1 Meseque e Tubal provavel-
clamar a Gogue: "Estou contra ti, Gogue. mente se localizavam na Ásia Menor (cf v.
Tu e os teus aliados sofrereis a derrota 6). "Magogue" aparece como o nome de
(38.2-5). Prepara-te porque nos anos que um dos filhos de Jafé, em Gênesis 10.2 e
estão por vir, tu e tuas hordas invadireis a lCrônicas 1.5 e, portanto, é o nome de um
terra de Israel (38.7-9). No tempo devido, povo. O termo "Magogue" pode signifi-
planejarás pilhar e saquear uma terra rica e car simplesmente "terra de Gogue". 38.5
pacífica (10-13). Tu e teu grande número "Etiópia": o alto Egito. "Pute": Líbia. 38.6
de aliados avançareis vindos do norte. Eu "Gômer" localizado na Ásia Menor. "Bete-
vos trarei para que as nações me conheçam Togarma": Armênia. Podemos observar
EZEQUIEL 40 1118

que entre os filhos de Jafé, em Gênesis tas especiais e aos dias comemorativos.
10.2, encontram-se Gômer, Magogue, Ele observa um rio miraculoso jorrar de
Tubal e Meseque. 38.12 "No meio da ter- sob o templo, aumentando cada vez mais,
ra": em Jerusalém (cf 5. 5). 38.17 "Não refrescando a terra e revivendo perpetu-
és tu aquele de quem eu disse...7" - Essa amente o mar Morto. As fronteiras e as
pergunta pode ser tomada como mais uma divisões da terra são então especificadas.
indicação de que Gogue é apenas simbó- O oráculo termina com a nota triunfante
lico. A implicação aqui é que Israel já foi que o novo nome da cidade será "o SENHOR
avisado de tal acontecimento. 39.9 "Sete está ali" (48.35).
anos": o número sete (também em 39.12 É importante lembrar que esses capí-
- "sete meses") simboliza que o evento tulos representam uma visão. Esse orácu-
foi concluído. 39.12 "Sepultá-los, para lo não é puramente uma revelação de um
limpar a terra": qualquer um que tocasse novo ensinamento, nem uma predição dos
um cadáver era considerado cerimonial- acontecimentos que estão por vir (embora
mente impuro (Nm 19.11). 39.18 "Basã": alguns acreditem que este templo um dia
uma região a leste da Galileia, conheci- será construído). É também um lembrete
da pela qualidade de seu rebanho bovino de como é e de como deve ser a religião
e de seus carvalhos. 39.25-29 Esta seção de Israel.
não denota ainda outra reunião do povo de A visão em si se alterna gradualmente
Israel. Pode ser vista como um resumo das do descritivo para o prescritivo, do simbó-
intenções de Deus para o seu povo. lico para o apocalíptico. Entre os detalhes
sobre as dimensões do templo e os regula-
40.1-48.35 Visões do novo mentos relativos aos sacerdotes está o rela-
templo e da nova terra to do retomo da glória de Deus ao templo.
Este último oráculo é o maior de todo o As cláusulas a respeito das oferendas e as
livro. Pertence ao grupo de oráculos que normas que regulam a distribuição da terra
Ezequiel introduz com a expressão: "veio são separadas por uma passagem, que des-
sobre mim a mão do SENHOR" (40.1). creve um maravilhoso rio que corre de sob
Trata-se, portanto, de uma dessas visões o templo e renova até mesmo as águas do
que Ezequiel experiencia fisicamente; ele mar Morto.
é transportado, dentro da visão, para um Essa mistura de simbolismo e de de-
outro lugar. talhes práticos deve ter levado o povo de
A visão é datada por volta de abril de Israel a refletir sobre seu passado e a re-
573 a.C. (40.1). Tanto Jerusalém quanto novar sua determinação para mudar o pre-
o templo estão destruídos há 12 anos. O sente. Somente ao abandonar os deuses de
povo de Israel está espalhado pelas nações seus conquistadores e retomar à fé de seus
ou vivendo na miséria em sua própria terra, pais Israel poderá tomar posse da promes-
agora destruída. A família real desapare- sa de uma nova Jerusalém.
ceu. Não havia nenhuma grande indicação A descrição da área do novo templo.
de que seu antigo estilo de vida voltaria. 40.1-4 Ezequiel tem uma visão na qual é
É nesse ponto que Ezequiel tem sua transportado para um alto monte. Um ho-
visão. É uma mistura do real com o ideal. mem carregando instrumentos de medição
Ele é trazido e conduzido pelas instalações instrui Ezequiel a retransmitir a Israel tudo
de um novo templo. Vê a glória de Deus o que ele está prestes a ver.
inundar o templo e ouve o Senhor declarar 40.5-16 O homem mede a parede que
que estará ali para sempre. Ele vê o altar e cerca a área do templo. Então se diri-
é instruído sobre os regulamentos relacio- ge à porta que dá para o Oriente (isto é,
nados ao príncipe, aos sacerdotes, às ofer- a entrada dianteira) e mede todos os seus
1119 EZEQUIEL 47 fi"
II1II
l1li

aspectos. 40.17-27 Ele leva Ezequiel atra- acompanham. Registra tudo isso de modo
vés da entrada ao átrio exterior. Há outras que possam ser fiéis à planta e sigam suas
duas portas para o átrio, uma que dá para o especificações".
norte e outra que dá para o sul. Estas têm Prescrições para a adoração no tem-
as mesmas dimensões que a porta que dá plo: os papéis dos sacerdotes e do prín-
para o Oriente. cipe. 43.13-27 As medidas do altar são
40.28-37 No interior do átrio exter- dadas, e em seguida é prescrita a forma da
no há um átrio interno em que também sua consagração.
há portas para os lados sul, leste e norte. 44.1-4 A porta que olha para o Oriente
As dimensões são as mesmas das do átrio deve permanecer fechada. Ezequiel é
externo. 40.38-43 Próximos a essas portas conduzido à frente do templo. Lá, ele vê
internas ficam os cômodos onde os sacrifi- a glória de Deus encher o templo. 44.5-9
cios devem ser lavados. Há também mesas Nenhum estrangeiro deve entrar no san-
e instrumentos para o abate dos animais sa- tuário, ao contrário dos atos precedentes
crificados. 40.44-47 Dois outros cômodos de profanação. 44.10-16 Os levitas que
são designados aos sacerdotes responsá- anteriormente tinham cometido práticas
veis pelo templo e pelo altar. idólatras podem ainda servir no santuário,
40.48--41.4 No interior do átrio in- mas somente os filhos de Zadoque podem
terno se encontra o edificio do templo e o se aproximar do Senhor para a oferta de
altar (o altar fica na frente do templo). O sacrificios. 44.17-37 São dados os regula-
homem leva Ezequiel ao pórtico do tem- mentos a respeito da aparência e conduta
plo e mede suas dimensões. Então conduz dos sacerdotes.
Ezequiel ao santuário externo e mede sua 45.1-9 Os sacerdotes devem residir na
entrada. Vai além, entrando no santuário porção da terra que é destinada ao Senhor.
interno e o mede também. Este santuário Ao príncipe também deve ser destinada
é o Santo dos Santos. 41.5-26 Mede então uma porção de terra. Ele nunca mais opri-
a parede do templo e suas adjacências. O mirá Israel por meio da desapropriação
próprio templo fica em uma base elevada e da propriedade.
tem assoalho de madeira. Há esculturas de 45.10-46.15 Balanças precisas de-
querubins e de palmeiras nas paredes e nas vem ser utilizadas. As porções para os
portas. Um altar de madeira fica no Santo sacrificios são especificadas. Os proce-
dos Santos. 42.1-20 Em outro lado do tem- dimentos dos sacerdotes, príncipe e povo
plo, em frente ao pátio, ficam os quartos para os dias comemorativos e santificados
dos sacerdotes, onde os sacerdotes devem são estabelecidos.
comer e guardar as ofertas santificadas. 46.16-18 O príncipe pode apenas dei-
Esses aposentos são santificados. xar por herança a seus descendentes sua
43.1-11 O homem conduz Ezequiel à própria propriedade. 46.19-24 Aqui é feita
porta oriental. Ezequiel vê a glória de Deus a descrição dos lugares onde os sacerdotes
se aproximar pelo leste e encher o templo. devem cozer as ofertas.
E então Ezequiel ouve: "Este é o lugar do A terra além do templo 47.1-12 Eze-
meu trono. Eu habitarei aqui com Israel quiel vê então um grande rio que flui do
para sempre. Eles não profanarão meu san- templo em direção ao mar Morto. As águas
to nome outra vez. Deixa que eles se arre- do mar Morto são constantemente renova-
pendam de seu pecado, e viverei com eles das e refrescadas pelas águas desse rio, que
para sempre. Descreve o templo a Israel. também tem uma profusão de peixes. As
Se eles se sentirem envergonhados de árvores frutíferas crescem às margens do
seus pecados, descreve-lhes os detalhes da rio, mas as águas de seus pântanos e char-
planta do templo e os regulamentos que o cos permanecem salgadas.
>
EZEQUIEL 47 1120

rem de suas ações passadas, então devem


47.13-23 Então Ezequiel recebe uma
descrição dos limites da terra que será ser encorajados a respeitar as leis e regula-
dividida entre as tribos de Israel. 48.1-29 mentos que acompanhavam a planta. Não
Além disso, são separadas áreas da cidade está explícito se eles devem reconstruir o
e de seus arredores aos levitas e aos filhos templo de acordo com a planta dada aqui.
de Zadoque. 48.30-34 A cidade deve ter 12 43.19; 44.15 "Zadoque": ele era sacerdo-
portas, três em cada lado. As portas devem te da época de Davi (2Sm 15.24-29). Os
ser nomeadas de acordo com as tribos de sacerdotes que não são filhos de Zadoque
Israel. 48.35 O nome da cidade deve ser: devem ser punidos por sua desobediência
"O SENHOR está ali". no passado ao serem impedidos de exercer
Notas. 40 "Em visões, Deus me levou": as altas funções sacerdotais. 45.1-48.29
uma expressão também usada em outros Uma nova distribuição de terras é consi-
oráculos visuais (1.1; 8.3). 40.3 "Cordel de derada. 47.10 "En-Gedi": uma cidade na
linho": instrumento usado para fazer medi- costa oeste do mar Morto. "En-Englaim":
ções (cf 47.3). 40.6--43.17 Ezequiel é le- talvez estivesse localizada ao norte de En-
vado para conhecer o novo templo, embora Gedi. 48.35 "O SENHOR está ali": as últi-
permaneça do lado de fora do santuário in- mas palavras do livro representam tanto
terno. Somente os altos sacerdotes podem o nome da nova Jerusalém quanto a espe-
entrar ali (Lv 16; cf Hb 9.7). 43.2 A glória rança para o povo de Deus. O Senhor es-
de Deus volta ao templo nesta visão. Em tará não apenas no templo, não apenas em
uma visão anterior (11.22,23) a glória de Jerusalém, mas, em Espírito, no coração
Deus abandonara o templo. Aqui está im- de cada um dos verdadeiros adoradores em
plícita a ideia de que Deus está retomando todo o mundo, em todos os tempos e para
para seu povo. 43.10,11 O significado dos todo o sempre.
cp. 40-48 é explicado nesses dois versí-
culos. O povo de Israel deve contemplar a
planta do templo. Se eles se envergonha- L. John McGregor
' " DANIEL

INTRODUÇÃO
o livro de Daniel conta a história de um ticos (e.g., Ez 1), fica claro que aqui temos
jovem judeu levado de Jerusalém nos dias um tipo diferente de literatura. Em certo
de Nabucodonosor, rei da Babilônia (605- sentido, as impressões criadas no leitor
562 a.C.). Apesar de viver no exílio por são tão importantes quanto a compreen-
toda a vida e sofrer muita oposição, ele são dos detalhes. É teoricamente possível
permaneceu fiel a Deus. Como José, bem compreender os detalhes e, no entanto,
antes dele (Gn 37-50), Daniel tinha a não experimentar o impacto que o livro
capacidade de interpretar sonhos e visões pretende produzir.
(1.17). Alcançou lugar de destaque em Em vista disso, o livro de Daniel é
uma corte estrangeira e teve o privilégio geralmente classificado como literatura
de receber visões dos futuros propósitos apocalíptica, como o livro de Apocalipse
de Deus na história. (v. Apócrifos e Literatura Apocalíptica).
Embora predominantemente escrito na Entretanto, provavelmente seria sábio
terceira pessoa, toda a segunda metade do não definir de forma tão rígida o que isso
livro (7.2-12.13) contém uma série de vi- implica para o livro de Daniel. Assim
sões dramáticas e é apresentada em forma como a forma literária relativamente re-
de autobiografia. Embora na Bíblia o livro cente do romance moderno (que é nor-
seja incluído entre os Profetas, na Bíblia malmente datada por volta do início do
Hebraica ele se encontra entre os Escritos. século XVIII), esse tipo de literatura tam-
Nesse contexto, o livro ilustra a natureza e bém não apareceu da noite para o dia, de
bênçãos de uma vida de fidelidade à alian- forma acabada e com características bem
ça com Deus sob condições bastante des- definidas. O que é característico dos es-
favoráveis (cp. 1-6), e revela os conflitos critos apocalípticos, entretanto, é que sua
nos quais o povo da aliança se envolverá, mensagem envolve Uma "revelação" (do
mas será protegido por Deus (cp. 7-12). grego apokalypsis) de ordem transcen-
dente e a forma como isso se relaciona à
Tipo de literatura história, à medida que esta se move rumo
Fica logo evidente que o livro de Daniel é à consumação dos tempos. Na condição
um tipo de literatura completamente dife- de revelação, carrega o apelo "venha e
rente da maior parte da literatura histórica veja" bem como "ouça e entenda".
e profética do AT. Diferentemente dos li-
vros históricos, ele é dominado por visões; Estrutura
diferentemente dos livros proféticos, suas O livro de Daniel é dividido em duas se-
visões são frequentemente surreais, des- ções e escrito em duas línguas: hebrai-
crevendo um mundo no qual gigantescas co (1.1-2.4a; 8.1-13.13) e aramaico
estátuas são postas abaixo por misteriosas (2.4b-7.28). Os cp. 1-6 são biográficos,
pedras e onde estranhas bestas se levantam já os cp. 7-12 são apocalípticos. A textura
para lutar umas contras as outras. daobra, entretanto, é mais sutil do que isso,
Ainda que alguns desses elementos conforme indicado pelo uso do aramaico
possam ser encontrados nos livros profé- em 2.4-7.28 (isto é, em partes de ambas
DANIEL 1122

as seções). Tem-se sugerido que esses ca- uma percepção mais clara e mais completa
pítulos teriam significado especial para não das coisas. Por essa razão, o material trata
hebreus (daí o uso de uma língua interna- do mesmo assunto em mais de uma ocasião,
cional). Além disso, em vez de separar as embora o desenvolva a cada vez de maneira
duas seções de forma radical, tal uso tem mais completa. O mesmo padrão pode ser
o efeito de uni-las, enquanto indica que os detectado nos ensinos de Jesus em Marcos
cp. 2-7 contêm o âmago do livro. Se este 13, e no próprio livro de Apocalipse.
de fato for o caso, o cp. 1 serviria como
uma explicação introdutória, enquanto os Mensagem
cp. 8-12 desenvolveriam o padrão da his- O contexto em que a vida de Daniel é apre-
tória mundial já apresentado anteriormente sentada é sintetizado pela pergunta feita
no livro. A forma como o aramaico abarca pelos exilados na Babilônia, registrada em
tanto a seção biográfica quanto a visionária Salmos 137.4: "Como, porém, haveriamos
do livro é um forte argumento a favor de de entoar o canto do SENHOR em terra es-
sua coesão literária. tranha?". O livro inteiro, tanto a parte bio-
Na parte central (cp. 2-7), outro pa- gráfica quanto as visões, nos ensina que
drão mais comum à narrativa do AT pode ser este mundo sempre será uma "terra estra-
detectado. Os cp. 2 e 7 apresentam visões nha" para o povo de Deus (cf Jn 17.16;
de quatro reinos mundiais que se opõem ao Fp 3.20a). O povo de Deus é "forasteiro"
reino de Deus; os cp. 3 e 6 são narrativas no mundo (1Pe 1.1,17), cercado de inimi-
do milagroso livramento divino; os cp. 4 gos malignos e destrutivos (1Pe 5.8,9).
e 5 descrevem o juízo de Deus sobre os Contudo, é possível viver de uma manei-
governantes mundiais. Assim, os motivos ra que traga louvor e honra a Deus, assim
empregados nos cp. 2, 3 e 4 reaparecem na como fez Daniel. Ele é a personificação
ordem inversa nos cp. 5, 6 e 7. O efeito é dos ensinamentos do salmo 1.
de um espelhamento da narrativa, cuja in- Tal vida de fé (cf Hb 11.33,34) é alimen-
tenção é intensificar certas expectativas no tada pelo conhecimento de Deus (11.32b),
leitor que já conhece esse recurso, assim pela consagração a ele (1.8; 3.17,18; 6.6-
como aumentar seu prazer na leitura. 10) e pela comunhão com ele em oração
Os leitores contemporâneos estão geral- (2.17,18; 6.10; 9.3; 10.2,3,12). Ela extrai
mente acostumados com livros que seguem sua confiança do fato de que Deus é sobera-
uma ordem cronológica direta. Mesmo no sobre toda a obra humana (2.19,20; 3.17;
quando apresentados sob a forma de remi- 4.34,35) e está edificando seu próprio reino
niscências, relatadas muito tempo depois (2.44,45; 4.34; 6.26; 7.14). Nosso tempo
dos acontecimentos, os temas tendem a ser está em suas mãos (1.2; 5.26), uma vez que
desenvolvidos seguindo-se uma linha do as coisas da terra não estão desconectadas
tempo. O livro de Daniel não segue essa das coisas do céu (10.12-14,20). Ele é um
forma. As experiências dos cp. 1-6 de fato Deus que toma a si mesmo e seus propó-
se orientam por uma sequência cronológi- sitos conhecidos, de modo que seu povo
ca em sua apresentação; mas as revelações possa conhecê-lo e confiar em sua palavra
ao longo de todo o livro seguem a forma (1.17b; 2.19,28-30,47). Tal conhecimento
de um paralelismo progressivo, cobrindo permite ao povo de Deus resistir à pressão,
o mesmo período. A estrutura literária é sabendo que compartilhará da consumação
semelhante à de uma escada em espiral, de seu reino (7.22,26-27; 12.2,3).
que se move sempre ao redor do mesmo
ponto no tempo, mas nos conduz a uma Autoria e data
visão mais vantajosa de uma perspectiva Nenhuma declaração explícita sobre a au-
superior, a partir da qual podemos obter toria do livro é feita em Daniel, embora
11II
1123 DANIEL ..:
11II

metade dele seja escrita em forma autobio- cisão muito maior do que os demais livros
gráfica. Numerosos estudiosos contemporâ- do AT. O autor estava consciente da pro-
neos do AT (mas nem todos) defendem a tese fanação do templo (a qual pode ser preci-
(primeiramente defendida por Porflrio, um samente datada em dezembro de 167 a.C.,
neoplatonista do século III que se opunha à cf 11.31) e da heroica resistência liderada
fé cristã) de que o livro não foi composto por Judas Macabeu em 166 (11.33-35),
no século VI (seu contexto literário), mas mas ele evidentemente nada sabia sobre a
no século n, nos dias de Antíoco Epifânio morte de Antíoco em 164 (11.40-45 é lido
(cf 8.9-14,23-27; 11.4-35). como uma genuína tentativa de profecia,
De acordo com esse ponto de vista, embora equivocada). Os críticos sugerem
as histórias dos cp. 1-6 sem dúvida têm que, por mais que o livro possa ter passado
sua origem nas tradições do povo hebreu. por periodos anteriores de composição e
Daniel é apresentado na figura de um herói, de revisão, sua edição final pode ser data-
fiel às leis de Deus, mesmo nos momentos da com precisão por volta de 165/164 a.C.
em que enfrenta oposição. As visões são de Essa data, por sua vez, toma-se o principal
modo geral interpretações do passado, em argumento para se acreditar que o quarto
vez de revelações sobrenaturais do futuro. reino nos cp. 2 e 7 seja a Grécia.
Em lugar de fornecer um relato histórico, De acordo com os críticos, portanto,
a autobiografia e as visões de Daniel, de Daniel é um livro de histórias edificantes
várias maneiras, empregam, expõem e e visões dramáticas, uma incrível peça de
aplicam outras passagens das Escrituras literatura da resistência do segundo sécu-
para levar força e encorajamento aos ju- lo a.C. Por ter sido escrita de uma manei-
deus do segundo século. Assim, por exem- ra que nenhum de seus primeiros leitores
plo, a sua própria experiência é vista como a teria confundido com uma história do
algo que se espelha na experiência de José passado, ou profecia do futuro, eles a te-
(o exilado que chegou ao poder em uma riam aceitado pelo que ela era, teriam sido
nação estrangeira e, mesmo assim, per- desafiados por ela, e se fortalecido por
maneceu fiel a Deus); a sua oração no cp. meio de sua mensagem - assim como
9 é vista como dependente das orações qualquer leitor de hoje pode se comover
em Neemias; enquanto partes das visões ao ler Hamlet de Shakespeare ou Os ir-
são vistas como exposições sutis das mãos Karamazov de Dostoievski.
Escrituras (11.33; 12.3 são vistas como Ao buscar confirmação para esse pon-
uma exposição de Is 52.13-53.12). O to de vista, frequentemente se tem apela-
autor estava escrevendo seu livro nos anos do às evidências do próprio livro, e.g., a
160 a.c., quando o povo de Deus estava utilização de termos gregos para alguns
sofrendo feroz perseguição de Antíoco dos instrumentos musicais em 3.5; a fal-
Epifânio e precisava desesperadamente ta de evidências sólidas para a loucura de
saber que havia um sentido para a vida, Nabucodonosor ou de seus decretos no
que a fidelidade a Deus era importante, cp. 4; as referências duvidosas a Dario, o
que o sofrimento não era algo pennanen- medo, nos cp. 5 e 6, e a inadequada históri-
te, que Deus reinava e seu povo triunfaria. ca da descrição do fim de Antíoco Epifânio.
A questão levantada em 12.6 ("Quando Embora discutida apenas de forma breve
se cumprirão estas maravilhas?") ecoa o neste comentário, uma discussão mais de-
clamor do povo de Deus. As misteriosas talhada dessas questões poderá ser encon-
profecias contêm a resposta: isso não será trada nos comentários de J. G. Baldwin
para sempre. (Daniel: introdução e comentário. SCR
Esse ponto de vista também sugere que Vida Nova, 1983.) e de E. J. Young (Daniel
o livro de Daniel pode ser datado com pre- [Eerdmans, 1949]).
11
11l1li DANIEL 1124
1111

Esse ponto da vista, anteriormente de- fosse assim, o conhecimento e a autorida-


fendido somente por teólogos liberais, tem de de Cristo como o Senhor das Escrituras
sido mais recentemente compartilhado seriam colocados em dúvida por uma data-
por outros de tradição mais conservadora. ção posterior. Como também a habilidade
Argumenta-se que o próprio livro indica dos autores do NT em detectar a ficção dois
que as histórias não devem ser compreen- séculos após ter sido escrita - uma falha
didas como história literal e que as visões notável, comparável à de alguém que les-
são, obviamente, interpretações do passa- se hoje a obra de Emily Brontê, Wuthering
do (e não revelações sobre o futuro). Uma Heights, como história.
passagem como 11.4-12.3 é uma "quase 3. Há uma falha psicológica, bem como
profecia" e não teria sido lida efetivamen- teológica, na ideia de que uma obra sabida
te como profecia pelo público ao qual fora e obviamente ficcional seja apropriada a
originariamente destinado. Para defender inspirar os leitores à fidelidade até à mor-
teologicamente essa posição é dito que, te. De acordo com uma teoria que defende
embora Deus pudesse, se assim quisesse, a datação no segundo século, esse não é
salvar alguns homens em meio às chamas, meramente um efeito possível, mas a ver-
enquanto outros morreriam, bem como fa- dadeira função do livro. Isso é o mesmo
zer previsões detalhadas de acontecimentos que pedir ao povo que confie no poder, co-
futuros, esse, entretanto, não é o tipo de coi- nhecimento e sabedoria de Deus quando,
sa que o Deus das Escrituras de fato faz. na verdade, as evidências para esses atri-
Embora esse ponto de vista tenha, no butos eram uma invenção da imaginação
século passado, praticamente subjugado a do autor, e não revelação e ação genuínas
perspectiva conservadora, ele enfrenta di- de Deus. Apesar dos protestos de que Deus
ficuldades consideráveis, das quais apenas era capaz de fazer os milagres de Daniel e
algumas serão aqui mencionadas: revelar o futuro em detalhes, embora ele
1. Se o livro fosse de caráter tão eviden- não o tenha feito dessa maneira, não nos
temente ficcional, era de esperar que en- é dada razão alguma para acreditar que ele
contrássemos os primeiros indícios disso pode ou fará tais coisas. Aqui a lógica de
na tradição interpretativa, antes e inde- Paulo com relação a um outro milagre não
pendentemente do ataque de Porfirio ao é inapropriada (v. 1Co 15.15-17).
cristianismo; mas não se encontra nenhum 4. Algumas características acidentais
indício nesse sentido. Se o livro é tão "ob- encontradas no livro apontam para um
viamente" composto por lendas, é dificil autor de origem babilônica, com conheci-
compreender a tradição evidentemente mento sobre o tipo de vida desse povo que
contínua de interpretá-lo como história au- dificilmente se poderia esperar de um autor
tobiográfica, teológica e como visões. palestino do segundo século a.c. Dentre es-
2. Os autores do NT viam o livro de sas características está o conhecimento do
Daniel como histórico. Jesus considera- uso do sistema de datas babilônico (1.1);
va Daniel um profeta (Mt 24.15) e, con- familiaridade com a predileção deste povo
sequentemente, o conteúdo de seu livro para com o número seis e seus múltiplos
como uma genuína profecia do futuro. O (3.1; NVI mrg.); a ilação de que o título de
autor de Hebreus se refere a dois acon- "rei" de Belsazar implicava no fato de ele
tecimentos de Daniel num contexto de agir como regente (5.7); e a referência ao
outros eventos e personagens históricos costume persa de punir os parentes de al-
(Hb 11.33,34). É muito dificil resistir à guém considerado culpado (6.24). Mesmo
conclusão de que tanto Jesus como os au- a referência à "caiadura da parede" (5.5) é
tores do NT consideravam o livro de Daniel impressionante, uma vez que sabemos por
verdadeiramente histórico e profético. Não descobertas arqueológicas que as paredes
1125

DANIEL - : .

do palácio da Babilônia eram cobertas por sagem do livro de Daniel é a de que Deus
reboque da cor branca. pode e de fato faz aquilo que suas criaturas
5. A teoria de datação do segundo sé- não podem fazer (2.10,11). Nenhum intér-
culo supõe que o livro de Daniel foi escri- prete desse livro pode escapar do desafio
to em 165/164 a.c. e estava enganado em que ele traz, o desafio de se confiar em um
sua genuína tentativa de profetizar o fim Deus que pode deter o fogo e fechar a boca
de Antíoco Epífanes. Dada a autoridade do dos leões (Hb 11.33,34) ou em um Deus
cânon do AT, é inexplicável (por esse ponto que ressuscita os mortos, quando toca nes-
de vista) o fato de o livro não ter sido revi- se assunto (12.2; cf Me 12.18-27). (v. tam-
sado com cuidado e exatidão ou o fato de bém o quadro na página 949).
o livro ter sido aceito como canônico, uma
vez que já era sabido que continha erros. Leitura adicional
A abordagem adotada neste comentário FERGUSON, S. R Daniel. cc Word, 1988.
segue a posição há muito defendida pela WALLACE, R. S. A mensagem de Daniel.
igreja cristã de que o livro de Daniel foi es- BFH. ABU, 1985.
crito no século VI a.c., na Babilônia. Isso BALDWIN, 1. G. Daniel: introdução e co-
não quer dizer que não haja dificuldades mentário. SCR Vida Nova, 1983.
concernentes ao conteúdo histórico do li- ARCHER, G. L. Daniel em GAEBELEIN, Frank
vro ou em se acreditar em suas profecias e E., ed. Daniel and the minar prophets.
milagres. As dificuldades históricas conti- EBC. Zondervan, 1985.
nuam a requerer a pesquisa dos estudiosos; YOUNG, E. J. The prophecy of Daniel.
o segundo fator, entretanto, está relaciona- Eerdmans, 1949; Geneva Series,
do à nossa visão de Deus. Parte da men- Banner of Truth, 1972.

ESBOÇO
1.1-21 A soberania de Deus e seus servos fiéis
1.1,2 O homem propõe, Deus dispõe
1.3-7 Reeducação na Babilônia
1.8-21 Aprovado no primeiro teste

2.1-49 A soberania de Deus em subjugar reinos


2.1-13 Os sonhos perturbadores de Nabucodonosor
2.14-23 Daniel recebe iluminação
2.24-49 A explicação do sonho

3.1-30 A soberania de Deus em julgamentos flamejantes


3.1-18 Idolatria ou morte
3.19-30 "Não te queimarás, nem a chama arderá em ti"

4.1-37 A soberania de Deus humilha Nabucodonosor


4.1-18 O sonho da árvore cósmica
4.19-27 Uma advertência em relação ao juízo
4.28-37 Humilhado e curado
DANIEL 1 1126

5.1-30 A soberania de Deus na remoção de Belsazar


5.1-9 A inscrição na parede
5.10-17 Daniel é lembrado
5.18-31 O rei é pesado na balança de Deus

6.1-28 A soberania de Deus sobre os animais selvagens


6.1-9 Dario é derrotado
6.10-17 Obedecendo a Deus em vez de aos homens
6.18-28 Protegido pelo poder de Deus por meio da fé

7.1-28 A soberania de Deus sobre reinos cruéis


7.1-14 Quatro bestas, um homem
7.15-28 O chifre que guerreava

8.1-27 A soberania de Deus dura para sempre


8.1-4, 15-20 O carneiro com dois chifres
8.5-8, 21,22 O bode de um chifre
8.9-14,23-27 O pequeno chifre que cresceu

9.1-27 A soberania de Deus como base da fé e profecia


9.1-3 Daniel procura nas Escrituras
9.4-19 Oração, uma obra da aliança
9.20-27 Outras "setenta" semanas

10.1-12.4 A soberania de Deus sobre toda a história


10.1
10.4-9 Uma visão gloriosa
10.10-11.1 As forças do mal nas regiões celestiais
11.2-45 Os reis do norte e do sul
12.1-4 As últimas coisas

12.5-13 A soberania de Deus e o descanso do servo

COMENTÁRIO ocasiões. O cerco aqui mencionado ocor-


reu em 605 a.C., o terceiro ano do reina-
1.1-21 A soberania de do de Jeoaquim pelos cálculos dos babi-
Deus e seus servos fiéis lônios (Jr 25.1, que se refere ao mesmo
incidente usando os cálculos dos judeus,
1.1,2 O homem propõe, contava a partir do ano novo que antece-
Deus dispõe dia a ascensão de um rei). Observe que
A história de Daniel é introduzida por esta perspectiva horizontal da história é
duas declarações que fornecem o contexto combinada com uma perspectiva vertical
tanto histórico quanto teológico para toda ou teológica: O Senhor lhe entregou nas
a narrativa. Véio Nabucodonosor, rei da mãos a Jeoaquim, rei de Judá. São-nos
Babilônia, a Jerusalém e a sitiou. Nabu- apresentados imediatamente os temas que
codonosor invadiu a Palestina em diversas formam o livro todo:
1. Babilônia versus Jerusalém, a cida-
1127 DANIEL 1 _li

Esse tipo de educação sem dúvida in-


-.-
de deste mundo contra a cidade de Deus cluía a astrologia, adivinhação e outros
(Agostinho), um conflito que nas Escrituras tipos de "artes". Os jovens precisavam
atinge seu clímax no livro de Apocalipse depender da promessa de Isaías 31.1-3
(v. Ap 14.8; 17.5; 18.2-24). Esse conflito, por muito tempo antes dos acontecimen-
em última análise, tem raízes na declara- tos do cp. 3!
ção de Gênesis 3.15. A reeducação começou com o ato de se
2. O soberano reino de Deus, apesar dar novos nomes aos escolhidos. Cada um
de toda a aparência contrária. Na queda desses nomes tinha um significado religio-
de Jerusalém há o cumprimento de uma so, como os sufixos dos nomes em hebraico
profecia (e.g., Is 39.6,7; Jr 21.3-10; 25.1- podem indicar - Dani-el significa "Deus
11), e os juízos da aliança de Deus (sobre é meu juiz"; Hanan-ias significa "Javé
os quais os profetas tinham advertido) foi gracioso"; Misa-el significa "Quem é
tiveram seu início (i.e., Dt 28.36,37,47- como Deus?" e Azar-ias "Javé ajudou".
49,52,58). O exílio era um juízo sobre Enquanto as formas de seus nomes babilô-
o reino de Jeoaquim (2Cr 36.5-7), em- nicos talvez pareçam corrupçoes delibera-
bora a podridão tenha se estabelecido das (um sinal para o leitor da mentira neles
bem antes (2Rs 24.1-4). Aparentemente envolvida), os nomes de deuses pagãos
Nabucodonosor foi vitorioso e o nome (e.g., Bel, Nabu e possivelmente Aku)
de Deus envergonhado (a colocação dos eram neles conservados. Tinha-se em vis-
utensílios do templo na casa do tesouro ta uma mudança de identidade (não mais
do seu deus marcava o triunfo da divinda- filhos de Deus) e de destino (Babilônia e
de pagã Nabu sobre Javé). Na realidade, não Jerusalém), sendo que ambas seriam
entretanto, nada está fora do controle divi- reforçadas pelo uso constante.
no (cf Is 45.7; Ef 1.1lb), como o próprio
Nabucodonosor foi levado a reconhecer 1.8-21 Aprovado no primeiro teste
mais tarde (4.35). Em Daniel, a experiên- Tendo explicado cuidadosamente os empe-
cia de José é repetida (Gn 45.4-7; 50.20). cilhos à fidelidade, a narrativa agora con-
ta novamente como Deus levou adiante o
1.3-7 Reeducação na Babilônia seu plano soberano de sustentar seu povo
Na Babilônia alguns do povo de Israel fiel contra tudo e todos. Aquele que está
foram selecionados para receber educa- no controle das questões concernentes às
ção especializada. Entre os que foram nações (1,2) também trabalha na vida de
escolhidos estavam os mais prováveis cada indivíduo. Cf o Senhor lhe entregou
líderes naturais (da família real e da no- (2) com Deus concedeu a Daniel miseri-
breza), (3) que já tinham demonstrado córdia e compreensão da parte do chefe
certa intelectualidade. Eles deveriam dos eunucos (9) e Deus deu (17).
ser reeducados e tratados como nobres. Daniel acreditava que se comesse das
Vários objetivos estavam em vista, e.g., finas iguarias do rei ou bebesse do vinho
uma reprogramação religiosa (lingua- que ele bebia, ele se contaminaria (8; cf
gem, literatura e dieta todas continham Ez 4.9-14). A razão era provavelmente
conotações religiosas e culturais) - e bem mais sutil do que mera obediência
uma "lavagem cerebral" que, ao mesmo às leis levíticas acerca da proibição de se
tempo em que enfraqueceria a perspec- comer alimentos "impuros" (uma vez que
tiva de uma futura liderança capacitada não havia proibição alguma em relação ao
entre os israelitas, potencialmente forta- vinho), ou do que o fato de aquele alimen-
leceria a sociedade babilônica quando o to ter sido oferecido aos ídolos (a menos
processo fosse completado (5b). que os vegetais escapassem de tal consa-
111
DANIEL 2 1128

gração). Diante disso, sua resolução pode as ações de Nabucodonosor revertidas.


ter sido simplesmente a sua determinação Enquanto o rei da Babilônia se encontrava
em não se permitir assimilar (e espiritual- morto havia muito tempo, o servo de Deus
mente se condicionar) à cultura babilônica, continuava vivo, e o seu povo era restau-
quando lhe era possível resistir ativamen- rado. Assim, somos preparados para as
te a ela. A respeito de sua educação e de narrativas do conflito que vêm a seguir e
seu novo nome havia muito pouco a fazer. para as visões do livro sobre o triunfo final
Assim, a narrativa destaca a sabedoria de do reino de Deus.
Daniel em saber sobre qual ponto deveria
concentrar sua resistência. 2.1-49 A soberania de Deus
Daniel é apresentado aqui como um em subjugar reinos
modelo da testemunha fiel pelo poder de
atração de sua vida, pela graciosidade de 2. 1-13 Os sonhos perturbadores
sua resistência (então, pediu, 8; experi- de Nabucodonosor
menta, peço-te, 12) e pela maneira como Os eventos do segundo capítulo ocorre-
seu procedimento evocou o favor e a sim- ram durante o segundo ano do reinado de
patia do oficial (9) e a concordância do Nabucodonosor (604 a.C.; cf 1.1,2).
chefe da guarda (14). No antigo Oriente Próximo, acreditava-
Por meio de sua dieta vegetariana, se que os reis recebiam mensagens dos deu-
Daniel e seus companheiros se desenvol- ses. Portanto, os sonhos de Nabucodonosor
veram muito bem fisicamente. Por impli- eram especialmente interessantes, situa-
cação, isso também foi obra de Deus. As dos, como estavam, no contexto de sua
forças humanas fornecem alimentos, mas ambiciosa política externa. (Sua vitória
somente Deus fornece sustento fisico. O sobre o Egito, em Carquemis e Hamate,
teste de dez dias (14) se tomou um menu tinha lhe assegurado o controle da Síria;
permanente (15,16). novas campanhas seguiram em anos pos-
Adicionalmente, Daniel e seus com- teriores.) O conteúdo de seus sonhos fez
panheiros receberam talentos especiais dele um homem cansado e perturbado (1).
(17-19). Crescimento intelectual e suces- Então chamou vários de seus conselheiros,
so verdadeiro podem ser alcançados sem cujos títulos são indicativos da natureza da
comprometer o aspecto espiritual; o ho- ciência e religião babilônicas (e.g., para
mem de Deus pode dominar e empregar feiticeiros v. Dt 18.10-12; MI3.5).
com maestria o conhecimento do mundo. Não há muita certeza de quanto do so-
Deus faz da sabedoria do mundo loucura e nho Nabucodonosor conseguia se lembrar
aperfeiçoa seu poder nas fraquezas de seu (3; cf NVI mrg.). Algumas das declarações
povo (ICo 1.19-25; cf Is 44.24-26). A vida implicam que ele reteve pelo menos um
e o caráter de Daniel não apenas retratam, sentido geral dele (e.g., v. 9c). O sonho
com muitas semelhanças, a vida e caráter tinha deixado uma impressão tão pertur-
de José, mas são também um reflexo da badora que ele exigia a garantia de uma
vinda do Messias (Is 11.2,3). interpretação acurada sob ameaça de mor-
Os críticos consideram que o v. 1 do te (5). Assim, somente se seus conselhei-
cp. 10 contradiz o comentário final (21). ros pudessem lhe dizer o conteúdo de um
Mas o sentido aqui não é fornecer a data sonho, o qual eles ignoravam totalmente,
da morte de Daniel; a questão é teológica, ele confiaria em sua habilidade de inter-
não simplesmente cronológica. O primeiro pretá-lo. As respostas dos conselheiros
ano do reinado de Ciro (538 a.C.) marca o foram tanto razoáveis (4,7) quanto cres-
início da era da restauração (2Cr 36.22- centemente desesperadas (10,11) - um
24). O ponto é que Daniel viveu para ver sinal intencional por parte do narrador da
1129 DANIEL 2 ,.r1
1111

perversidade do rei e da falência da sabe- e com ousadia apropriada, colocando em


doria de sua corte. contraste a impotência dos conselheiros do
As palavras em aramaico (4) sinalizam rei e o conhecimento do conselheiro celes-
a mudança da linguagem do hebraico para tial de Daniel.
o aramaico, a qual é sustentada até 7.28 (v. Nabucodonosor tinha visto uma gran-
Introdução). de estátua com forma humana e construída
A ameaça de Nabucodonosor de uma em sua maior parte com metais cujo va-
punição excessiva e excêntrica (5) - (mas lor ia decrescendo (ouro, prata, bronze e
de forma alguma sem paralelos) - e sua ferro misturado com argila). Nesse sonho
suspeita quanto à existência de uma cons- apareceu uma pedra que feriu e destruiu
piração entre seus conselheiros (9) denun- a estátua (observe ecos de SI 2.9b nos v.
ciam um profundo sentimento de insegu- 34b,35a). A pedra tinha duas característi-
rança, apesar de suas realizações. O decre- cas dignas de nota: foi cortada, mas sem o
to que baixou (12) incluía a Daniel e seus auxílio de mãos humanas (34), isto é, sua
companheiros, cuja ausência (inexplicada) origem repousa na ação de Deus, e trans-
intensifica o drama da narrativa. formou-se em grande montanha, que en-
cheu toda a terra (35), isto é, sua atividade
2. 14-23 Daniel recebe iluminação era universal.
A força e a graça do caráter de Daniel são O sonho se referia ao que há de ser
manifestadas uma vez mais (cf 1.8,12) na (28). Uma vez que a cabeça de ouro fora
"sabedoria e bom senso" (NVI; avisada e identificada especificamente como o reino
prudentemente, ARA) com que ele fala ao de Nabucodonosor (38), podemos assu-
chefe dos eunucos, assim como em seu pe- mir que as outras partes da estátua repre-
dido cortês a Nabucodonosor (16). Há mo- sentavam também impérios ou dinastias
mentos que exigem não somente paciência específicas. Suas identidades não haviam
e educação como também uma honesta re- sido ainda reveladas a Daniel e a seus con-
provação (cf 5.17-28; Mc 6.18). temporâneos (mas cf 8.19-21). Se fossem
Nenhuma característica da vida de Da- identificadas em retrospecto (e à luz de
niel se destaca mais claramente do que 8.9-21), o peito e os braços, de prata (32)
sua devoção (18; cf 6.10; 9.3-23; 10.12). representam o Império Medo-Persa (que
Aqui, ele e seus companheiros pedem por o livro de Daniel vê como uma única en-
misericórdia (18), uma vez que o futuro tidade, personificada na ascensão de Ciro
do reino de Deus e de suas testemunhas na em 539 a.C.; cf 5.28; 8.20). O ventre e os
Babilônia parece depender da preservação quadris, de bronze (32) simbolizariam en-
de sua vida. Daniel acreditava ter acesso a tão o Império Grego, o qual terá domínio
domínios aos quais os astrólogos babilôni- sobre toda a terra (39), seguido, por sua
cos não tinham (11). O caráter de Deus, o vez, pelo Império Romano (embora alguns
Revelado e o Revelador (22,23a), consti- intérpretes conservadores acreditem que as
tuía a base de sua petição. Ele é o Senhor do pernas e os pés possam se referir aos su-
poder e da sabedoria (20), o Senhor da his- cessores de Alexandre, o Grande).
tória (21a), capaz de se comunicar com seu Essa interpretação conduzia frequen-
povo (22; cf At 4.24-30). De maneira não temente ao entendimento da pedra como
plenamente explicada,foi revelado o misté- Cristo e seu crescimento como uma refe-
rio a Daniel numa visão de noite (19). rência ao avanço do Reino de Deus. Pode
haver alusões a essa interpretação em Lucas
2.24-49 A explicação do sonho 1.33 e 20.18. Deve ser também observado,
Daniel retomou à presença do rei, agora entretanto, que a pedra destrói todos os rei-
em posição para falar mais detalhadamente nos representados pela estátua. Em sentido
DANIEL 3 1130

mais geral, portanto, a mensagem da visão tar a superficialidade de sua confissão em


é que, enquanto os reinos construídos pe- 2.47 agora se toma bastante clara.
los homens se sucedem um ao outro num As proporções incomuns da estátua
processo de sobrevivência do mais apto, é (vinte e sete metros e meio de altura e qua-
a mão de Deus que em última análise os se três metros de largura) sugerem que a
destrói, à medida que constrói seu próprio estátua deveria ter uma base substancial.
reino, aquele que persistirá. Duas características na narrativa salien-
Os críticos, vendo a ideia de um Im- tam a tensão que envolve sua mensagem.
pério Medo-Persa como algo que não cor- Primeiro, a repetição das listas do que se
responde à história, geralmente enxergam via e ouvia (v. 2,3 para vistas; v. 5,7,10
os reinos representados aqui como sendo a para os sons. Cítara, harpa e gaita de foles
Babilônia, a Média, a Pérsia e a Grécia, e a parecem instrumentos de origem grega e
interpretação de Daniel como uma "profe- podem ser uma indicação do quanto a cul-
cia posterior ao evento" (v. Introdução). tura grega estava difundida). O leitor está
O efeito dessa revelação é descrito "lá". Observe-se que uma aura religiosa
nos versículos seguintes (46-49). Nabu- envolvia a ocasião, cujo impacto estético
codonosor não somente honrou a Daniel foi sem dúvida magnífico. Em contraste,
como também reconheceu expressamente os três hebreus reconhecem que a adoração
a seu Deus. A nomeação dos companhei- bíblica aceitável envolve a submissão da
ros de Daniel (49) explica sua presença mente à verdade (cf 104.24; Rm 12.1,2).
no evento que segue no cp. 3, o qual, por Em segundo lugar, nota-se a natureza os-
sua vez, revela que a profissão de fé de tensiva do conflito entre a cidade deste
Nabucodonosor fora superficial. mundo e a cidade de Deus. A escolha era
a idolatria ou a morte (4-6). Em jogo está
3.1-30 A soberania de Deus não somente a obediência a Êxodo 20.4-6,
em julgamentos flamejantes mas também se aqueles destinados a se-
rem a imagem de Deus, e de fato recria-
3. 1-18 Idolatria ou morte dos a essa imagem (Gn 1.26,27; Ef 4.24;
O autor de Daniel pretende claramente C13.10; cf Mt 22.20,21), deveriam curvar-
que vejamos uma íntima ligação entre se ante a imagem de um homem. Nessas
o sonho de Nabucodonosor e a estátua circunstâncias a fé de Sadraque, Abede-
que erigiu no campo de Dura (l). A es- Nego e Mesaque é muito mais brilhante do
tátua pode ter sido uma representação do que as chamas da fornalha (Hb 11.34), pois
próprio rei (cf 2.38, "tu és a cabeça de ilustram de maneira grandiosa a fidelidade
ouro"). Nesse caso, o fato de que essa se- à palavra de Deus (2Co 4.11, 13b,18).
gunda estátua, diferentemente da estátua Nabucodonosor evidentemente acre-
do sonho (2.31-33), foi feita inteiramente ditava que cada pessoa tinha seu pre-
de ouro (isto é, provavelmente coberta e ço; ninguém desafiaria uma ordem sua.
folheada a ouro), sugere a reação insana Certamente este era um teste ainda mais
e egoísta de Nabucodonosor à interpreta- difícil para os judeus do que o que já ha-
ção de Daniel (2.44,45). Observe as sete viam passado nos cp. 1 e 2 (aquele ago-
vezes em que o texto dá ênfase ao fato ra pode ser visto como preparatório para
de que Nabucodonosor tinha erigido a este). Sua fidelidade e coragem receberam
estátua (cf os v. 1,2,3,5,7,12,14). O rei um verdadeiro testemunho por parte dos
Nabucodonosor, "a quem o Deus do céu astrólogos, ainda que maldosamente exa-
conferiu o reino, o poder, a força e a gló- gerado (não fizeram caso de ti) e intencio-
ria" (2.37), fez mau uso de tudo isso, em nal. Entretanto, eles entenderam a questão
proveito próprio. A chave para interpre- que estava emjogo: a teus deuses não ser-
1131 DANIEL 3 (
11

vem, nem adoram a imagem de ouro que Evidentemente, a fornalha tinha acesso
levantaste (12; cf Êx 20.3,4,23). tanto pelo nível superior quanto pelo nível
O rei, que tinha tido um contato prévio inferior, de modo que a execução por meio
com os três judeus (1.18-20; 2.49), já sa- da cremação pudesse ser assistida como
bia a resposta à sua pergunta (14) e agora um espetáculo público. Nabucodonosor
desafiava não somente a coragem dos três foi forçado a reverter seu dogmatismo an-
como também a seu Deus (15). O rei não terior (26; cf v. l5c) quando ele viu que
contava com as duas principais caracterís- estavam vivos os três que professavam
ticas dos três: o conhecimento que tinham a sua fé, e mais uma quarta figura com
do poder de Deus (17) e o compromisso aspecto semelhante a de um filho dos deu-
deles com sua palavra revelada (18). A fé ses (24,25). Agora, o rei reconhecia que
que tinham era carregada de expectativa era somente pela intervenção milagrosa
(17; cf 1.12,13; 2.16), mas não mostra- do Deus dos três judeus que eles estavam
va nenhuma presunção (18) e trazia ecos salvos. O evento é um cumprimento lite-
tanto do exemplo de Abraão (cf Rm 4.20) ral de Isaías 43.1-4: "Não temas [...] eu
como do testemunho de Jó (Jó l3.l5a). serei contigo; [...] quando passares pelo
fogo, não te queimarás, nem a chama
3.19-30 "Não te queimarás, arderá em ti". Os antigos comentaristas
nem a chama arderá em ti" cristãos enxergavam essa quarta figu-
A hostilidade do rei da Babilônia em rela- ra como uma aparição do Filho de Deus
ção aos cidadãos de Jerusalém chega a seu ou do Anjo do Senhor (cf v. 28), ponto
clímax. Anteriormente "irado e furioso" de vista em que foram frequentemente
(13; cf v. 19), agora se tinha transtornado seguidos. A ênfase, entretanto, está na
o aspecto do seu rosto contra Sadraque, integralidade da proteção de Deus, mos-
Mesaque e Abede-Nego (19), em face de trada pelo fato de que nem cheiro de fogo
sua calma determinação. Ordenou que a passara sobre eles (27). Salmos 34.19,20,
fornalha fosse aquecida ao máximo (o pro- que devia encontrar seu cumprimento em
vável significado de sete vezes mais do que Cristo (cf Jo 19.26), encontra aqui um
se costumava) e aos homens mais podero- primeiro cumprimento.
sos para amarrá-los (20) de modo que esti- O cp. 3 começa com um decreto de
vessem firmemente atados (23). Tão quen- Nabucodonosor que ameaçava destruir o
te estava a fornalha que as chamas do fogo Reino de Deus e termina com um decreto
mataram os soldados (22). Por meio desses adicional de que todos os demais reinos
detalhes o narrador destaca a impossibili- (povos de todas as nações ou línguas; 29)
dade humana de sobrevivência dos judeus, estariam ameaçados com a destruição se
mas a descrição de suas roupas serve como ofendessem o Reino de Deus. Ao mesmo
um sinal do triunfo inesperado que estava tempo em que esse fato registra um triun-
por acontecer. Enquanto o rei se enfurecia fo para o Reino de Deus e (em contraste
e os soldados morriam queimados, os três com 2.47) expressa a humilhação do rei
amigos apareciam em trajes de festa (ob- (28b), o narrador nos sugere que Nabuco-
serve o colorido do relato de seus mantos, donosor de maneira nenhuma foi um ho-
suas túnicas e chapéus e suas outras rou- mem de fé genuína. Ele se impressionou
pas; 21); em contraste com os reinos des- unicamente com o milagre (cf At 8.9-23);
te mundo, o reino de Deus é "justiça, paz sua resposta foi promover os judeus (30),
e alegria no Espírito Santo" (Rm 14.17). não compartilhar de sua fé (28). Ainda
Isto é destacado pela atividade dos judeus que alguns aspectos de sua humilhação
na fornalha (andam passeando dentro do tivessem mudado sua percepção, não ti-
fogo, sem nenhum dano; 25). nham suavizado seu coração (cf v. 29, e
11
1111II DANIEL4 1132
11II-

contraste isso com a confissão de Jonas animal, até que se passem sete tempos";
depois de sua humilhação; Jn 2.8). 15b,16, NVI); um indivíduo será humilha-
do, vivendo como um animal, "será mo-
lhado com o orvalho do céu" (15b). Foi
4.1-37 A soberania de Deus
humilha Nabucodonosor este elemento no sonho que supostamente
encheu Nabucodonosor de pressentimen-
4. 1-18 O sonho da árvore cósmica tos (5) e confundiu os magos do reino (7).
A narrativa do quarto capítulo é feita no Novamente foi o Deus de Daniel, "o es-
contexto de uma carta um tanto poética trangeiro", o único que pôde ajudar.
(1-18,34-37, possivelmente composta por Observe que Nabucodonosor interpre-
orientação do próprio Daniel). Seu pon- tou instintivamente a realidade da vida
to principal está na narrativa da queda de espiritual de Daniel nos termos de sua pró-
Nabucodonosor, contada na terceira pes- pria estrutura religiosa (há em ti o espírito
soa, enfatizando assim que, durante os dos deuses santos; 18b). Suas confissões
acontecimentos ali registrados, o rei estava de fé anteriores não o tinham libertado do
sem condições para avaliar suas próprias politeísmo. Ele é retratado como alguém
experiências. O relato da adoração e lou- que experimentou convicções religiosas,
vor (3) nos prepara para a obra de Deus a mas não uma conversão bíblica (cf v. 8).
ser descrita.
Nabucodonosor é descrito como al- 4.19-27 Uma advertência
guém que estava no auge de seu poder: em relação ao juízo
estava tranquilo em minha casa e feliz no A perplexidade e terror de Daniel (19) es-
meu palácio (4). Aqui, em contraste com tavam relacionados muito mais à interpre-
os v. 2,3, não há nenhuma sugestão da be- tação do sonho do que a qualquer inabili-
nevolência ou grandeza de Deus, elevando dade de compreendê-lo. Sua sensibilidade
assim a expectativa do leitor de que uma é notável (v., e.g., o uso que faz de um
grande mudança está prestes a acontecer cortês prólogo do Oriente Próximo para a
(cf Lc 12.16-19). interpretação; 19b). A revelada humilha-
Nabucodonosor teve um sonho terrí- ção do rei não lhe trazia nenhum prazer, e
vel. Apesar das lições dos cp. 1-3 e das nisto ele refletia o coração divino e o espí-
confissões de 2.47 e 3.28,29, foi a seus rito messiânico (Ez 18.23; Mt 23.37). Sem
mágicos que ele recorreu outra vez (Pv dúvida Nabucodonosor era um nome que
26.11; 2Pe 2.22), mas esses não puderam aparecia com frequência na vida regular de
interpretar os seus sonhos (7). A entrada oração de Daniel (cf 6.10).
de Daniel (8) leva luz a um lugar escuro Então Daniel deu sua interpretação
(cf Mt 5.14; Fp 2.14-16). (24-26). O decreto celeste foi um juízo.
O tema central no sonho era uma ár- Era um decreto contra Nabucodonosor
vore cósmica que claramente representa- (24), estabelecido no contexto da sobera-
va um império mundano, que alcançaria e nia absoluta de Deus (25,27). Mas era justo
dominaria os demais (10-12; cf 2.37,38). e repleto de misericórdia: o terrível juízo
Sobre este império um decreto celeste foi que transformaria Nabucodonosor em um
pronunciado: ele deveria ser reduzido a animal não era impróprio para alguém
um tronco de árvore (15a). Mas o império que havia se comportado como uma bes-
foi personificado ("fique ele no chão, em ta selvagem em relação ao povo de Deus
meio à relva do campo. Ele será molhado (além da atitude que tinha em relação aos
com o orvalho do céu e com os animais oprimidos, 27; sempre um sinal signifi-
comerá a grama da terra. A mente hu- cativo do coração no AT, Is 1.17; 58.6).
mana lhe será tirada, e ele será como um Além disso, tinha a função de humilhar
11
1133 DANIEL4 ti'
11II
11II

o rei, levando-o a um arrependimento in- sua mente (cf Jr 25.15,16). Depois de ter
centivado pela esperança de que o Deus se considerado um super-homem (3.1-6;
que humilha também enaltece. 4.30), tomou-se sub-humano; depois de ter
Os juízos de Deus nunca são arbitrários; erigido sua própria estátua para ser adora-
eles sempre são moralmente justos. Isso é da como a imagem de um deus, sua vida
sublinhado pelos conselhos de Daniel (ou- deixara de refletir a imagem de Deus (Gn
tra vez, bastante cortês) ao rei. Uma vez 1.26,27) e os últimos resquícios da verda-
que o juízo é resposta de Deus à violação deira glória (cf Rm 3.23). Depois de ter se
flagrante de sua lei moral, o arrependimen- comportado de forma bestial, agora colhia
to que se demonstra ao obedecer a essa lei aquilo que ele mesmo plantara (GI6.7,8).
pode levar à misericórdia (cf Pv 28.13; Um arrependimento anterior de Nabu-
Is 58.9b,1O; Jn 4.2). Mesmo alguém im- codonosor talvez tivesse encontrado mi-
piedoso pode encontrar misericórdia; mas sericórdia (27). Mesmo agora, a obra de
a evidência de que eles desejam essa mi- Deus para humilhá-lo não ia além do ne-
sericórdia de Deus está no fato de que eles cessário; o divino até que (32) traz em si
mesmos demonstrarão misericórdia para a possibilidade de restauração. Mas sua
com os outros (cf Mt 6.12; 18.21-35). remissão não era "espontânea". Ocorreu
no contexto da oração humilde (Eu,
4.28-37 Humilhado e curado Nabucodonosor, levantei os olhos ao céu;
O decreto de Deus foi cumprido. Depois 34) e levou à adoração e à confissão de que
de um ano de oportunidade para o arrepen- somente Deus tem poder ilimitado (35). As
dimento (29), Nabucodonosor foi visto palavras do rei, pela primeira vez, contêm
outra vez exaltando-se a si mesmo (30): um reconhecimento da ação de Deus na
Não é esta a grande Babilônia que eu aliança (de geração em geração, 34; cf
edifiquei para a casa real, com o meu Êx 20.5,6; SI 103.17,18), como também
grandioso poder e para glória da minha um reconhecimento de sua verdade e justi-
majestade? (cf Is 13.19). Seus feitos fo- ça (37). Ele resiste aos soberbos e concede
ram notáveis, incluindo um programa de sua graça aos humildes (37; cf lPe 5.5).
restauração e reconstrução. Ele construiu Em Nabucodonosor as palavras de Salmos
os Jardins Suspensos, uma das sete mara- 18.25-27 encontram rica ilustração.
vilhas do mundo antigo, para que sua es- Os comentaristas cristãos têm frequen-
posa, Amytis, originariamente dos medos, temente duvidado da verdadeira "conver-
pudesse se lembrar de sua terra natal. Mas são" de Nabucodonosor. Se essa conversão
ele seguira de maneira consciente uma po- teve vida curta, não é de se admirar que
lítica de expansão, reivindicando ter sido não existam registros seculares sobre ela.
apontado como monarca universal por Um documento intitulado The Prayer
Marduque; ele não tinha levado em consi- of Nabonidus [A Oração de Nabonido],
deração Salmos 127.1. descoberto recentemente nas cavernas de
O juízo divino (anunciado nos v. 31,32) Qumran, tem fortalecido o ponto de vista
envolvia a completa humilhação do rei; sua crítico de que esse capítulo se originou na
autoridade (31) e sua sanidade (34) foram história que era contada sobre a doença
removidas no mesmo instante (33). Sua do rei Nabonido (que reinou de 556 a 539
confissão no v. 33 de que seu entendimen- a.C.). A oração registra uma enfermidade
to lhe fora restaurado dá crédito à teoria com duração de sete anos, provocada por
de que a reação do rei ao juízo de Deus juízo divino. Na oração, Nabonido conta
evocara uma condição psicótica (agora como Deus lhe enviou um exilado judeu
conhecida como licantropia). Tal foi o sur- para explicar sua experiência, e que es-
preendente impacto da palavra de Deus em creveu também um decreto relacionado
DANIEL5 1134

à adoração do Deus altíssimo. Ainda que de ouro e de prata que Nabucodonosor,


haja diferenças significativas entre Daniel seu pai, tirara do templo (2). A blasfêmia
4 e esse documento, é possível (como E. J. logo fluiu com igual liberdade (4), mas
Young sustentou) que seu autor tenha con- os sinais do juízo divino logo puseram
fundido a tradição sobre Nabucodonosor fim à presunção de que tudo corria bem
com Nabonido. É estranho que muitos (cf Is 47.10,11). Todos os olhos estavam
críticos tenham a tendência de automati- voltados para Belsazar (bebeu vinho na
camente pressupor que outros documentos presença [diante?] dos mil, no v. 1, pode
tenham maior credibilidade histórica do transmitir a ideia de aparição em público),
que os do AT. preparando o leitor para uma ilustração do
provérbio: "Antes da ruína, gaba-se o co-
5.1-30 A soberania de Deus ração do homem" (Pv 18.12).
na remoção de Belsazar Para Belsazar, a intervenção divina foi
tanto dramática quanto apavorante. Já pre-
5.1-9 A inscrição na parede sumivelmente próximo do estado de em-
O livro de Daniel, mesmo as suas partes briaguez, a assombrosa aparição de uma
que podem ser consideradas históricas, não mão escrevendo na parede teve o efeito
deve ser interpretado como um mero relato de trazê-lo à sobriedade, transformado-o
harmonioso e ordenado dos acontecimen- de um fanfarrão orgulhoso em uma figu-
tos que tiveram lugar na Babilônia. Em ra petrificada e patética (6). Repetindo um
vez disso, retrata momentos escolhidos de padrão ao qual já nos acostumamos a essa
elevada tensão no avanço do conflito en- altura, ele buscou a sabedoria deste mun-
tre o reino da luz e o reino das trevas. A do, mas descobriu que ela é impotente (cf
partir do registro da intervenção divina em 2.2; 4.6). Nenhuma explicação é dada para
tais eventos dramáticos pretende-se que o a inabilidade do sábio em ler o que esta-
leitor receba encorajamento para as lutas va escrito na parede. Diversas explicações
espirituais contemporâneas. para esse fato são possíveis: o formato in-
Estritamente falando, o último rei da distinto das letras, o uso de um código ou
dinastia neobabilônica foi Nabonido (556- a incerteza sobre o verdadeiro significado.
539 a.C.), mas por uma década ele esta- Em sua sabedoria, o mundo não conhece
beleceu sua residência real em Teiman, a Deus nem compreende sua revelação
deixando seu filho Bel-sar-usur (Belsazar, (1Co 1.21; 2.14).
"Bel protege o rei") como regente. Obser-
ve que a oferta feita por Belsazar do ter- 5. 10-17 Daniel é lembrado
ceiro posto mais elevado no reino, nos v. De uma maneira que nos faz lembrar
7,16 e 29, presume isso. (Cf Gn 41.40, Gênesis 41.1-16, o nome de Daniel apare-
em que o segundo posto foi dado a José). ce uma vez mais na família real. A rainha
Belsazar era possivelmente o neto de (que aqui provavelmente deve ser entendi-
Nabucodonosor (os termos "pai" nos v. da como a rainha-mãe), em um tom que,
2,11,18 e "filho" no v. 22 teriam sido facil- dado o contraste que ela faz entre Belsazar
mente entendidos de modo mais elástico e Nabucodonosor (já falecido, agora, há uns
pelos leitores originários). vinte anos) beira a repreensão aberta, fala a
Novamente o autor nos prepara para es- Belsazar sobre a sabedoria já comprovada
perar uma ação de juízo divino nos v. 1-4. de Daniel. O respeito evidente que ela tem
No banquete o vinho fluiu livremente dos por ele é destacado pelo fato de usar tanto
copos dos convivas, amortecendo a cons- seu nome hebraico como seu nome babilô-
ciência do rei, bem como qualquer temor nico e na referência que faz a seus talentos
inato a Deus: mandou trazer os utensílios especiais (12; cf Is 11.2,3). Evidentemente
11II
1135 DANIEL6'-
11II
11II

Daniel já não desempenhava um papel de Belsazar podia manter sua promessa.


destaque na sociedade babilônica. Belsazar Se as palavras de Daniel viessem a se cum-
parece ter sido culpado pelo mesmo peca- prir, seu papel como terceiro homem mais
do de Roboão (1Rs 12.7,8). poderoso no reino (29) teria vida curta. Se
A melhor interpretação das palavras de não viessem, provavelmente sua própria
Belsazar (13-16) é entendê-las como pala- vida é que seria curta. De qualquer modo,
vras de um homem ainda sob a influência naquela mesma noite ocorreria o fim de
do álcool. As alusões à origem e idade de Be1sazar (30; cf Pv 29.1).
Daniel (que agora devia estar perto dos 80 Daniel não ofereceu nenhuma expli-
anos) como um dos cativos de Judá que o cação adicional (o próprio juízo divino,
rei [Nabucodonosor], meu pai, trouxe de não os detalhes, era o que lhe interessava
Judá (13), compõem o discurso presunço- aqui). Tanto Heródoto como Xenofonte
so e aviltante de um bêbado. registram que a Babilônia foi tomada du-
rante um festival noturno, por intermédio
5.18-31 O rei é pesado de um desvio temporário do rio Eufrates;
na balança de Deus os invasores entraram na cidade através
A resposta mordaz de Daniel (17-24) con- do leito do rio, que ficou seco. Xenofonte
trasta com o estilo de sua reação a Nabu- (que descreve a expedição de Ciro) tam-
codonosor (2.16; 4.19; v. também comentá- bém registra que os persas mataram o jo-
rios em 8.1-4 para explicações adicionais) vem e incrédulo rei da Babilônia.
e lembra as palavras de Pedro em Atos Uma grande dificuldade aparece aqui.
8.18-20. Seu discurso se assemelha a outros Os registros de Daniel contam que Dario,
exemplos de juízo do AT (cf Os 12.2-6; Mq o medo [...] se apoderou do reino (31).
6.1-8). Primeiramente, o contexto histórico Entretanto, em outros textos bíblicos,
do pecado de Belsazar é resumido (18-21). Ciro, o rei da Pérsia, é o responsável pela
Esses detalhes serviram como uma indica- libertação do povo de Deus da Babilônia
ção da revelação do caráter e modo de agir (2Cr 36.22,23; Ed 1.1-8). Os criticos es-
de Deus, que Belsazar deveria ter conheci- pecializados, portanto, consideram que o
do e segundo os quais procurado agir. Foi nome de Dario, o medo, pode ser ou uma
sobre essa base que seguiu a acusação (os ficção deliberada ou um erro histórico, no
pronomes "tu", "teu, teus", "tua, tuas", "te" qual Dario I (rei da Pérsia de 522-486 a.Ci)
e "ti" aparecem dez vezes nos v. 22,23). foi confundido com o Ciro que de fato ti-
Ele conhecia a Deus, mas não o glorificava nha na época cerca de sessenta e dois anos
nem lhe dava graças (Rm 1.21). (31). As propostas dos comentaristas con-
As três palavras na mensagem (25) se servadores incluem a sugestão atraente de
referem a peso e, consequentemente, a cus- que Dario, o medo, era o nome babilônico
to ou valor (Mene = mina; Tekel = siclo; para Ciro, o rei da Pérsia (para uma dis-
Parsin = partes). A interpretação de Daniel cussão mais aprofundada, v. 1. Baldwin,
combinou a ideia básica de ser pesado e Daniel, TOTC [IVP, 1978], p. 23-28).
avaliado com um sugestivo trocadilho lin-
guístico. Mene é derivado do verbo "nu- 6.1-28 A soberania de Deus
merar" ou "apontar"; a forma verbal de sobre os animais selvagens
tekel significa "pesar" ou "avaliar" e par-
sin (peres, no singular) significa "partes" 6.1-9 Dario é derrotado
ou "porções". O reino de Belsazar tinha O reino de Dario trouxe grandes mudanças
sido pesado e avaliado; ele seria dividido à forma de governo da Babilônia, introdu-
entre os medos e os persas (um trocadilho zindo um sistema de 120 governadores lo-
com a palavra parsin). cais (sátrapas; 1). Estes estavam sujeitos a
DANIEL6 1136

uma pequena administração central que se Daniel de maneira sutil: tudo que preci-
reportava diretamente ao rei (a existência savam era de um breve período em que
de outros níveis administrativos é sugerida fossem proibidas as orações (7). Além dis-
no v. 8). so, Daniel estava quase com oitenta anos,
A motivação para este novo arranjo muito longe da idade em que atos heroicos
(para que o rei não sofresse danos, 2) diz de sua parte pudessem ser esperados.
muito a respeito das tentações da vida po- Caracteristicamente, entretanto, Daniel
lítica e do fato de que um alto posto não reconhecia que qualquer ganho obtido
é garantia de moral elevada. Daniel (ago- ao preço da fidelidade à palavra de Deus
ra com quase oitenta anos) demonstrava, mais tarde se tomaria em grande perda
mais uma vez, a natureza extraordinária da (cf Fp 3.7,8).
sabedoria que recebera de Deus, embora Enquanto a questão crítica da narrativa
sua promoção tenha despertado inveja en- estava no simples fato de que Daniel ora-
tre seus colegas e subordinados (4). va, com o espírito marcado pela reverên-
O conluio que seguiu não foi o primei- cia, a narrativa também fornece diversos
ro nem o último em que o sacrifício de tra- detalhes sobre as suas orações, tomando-o
dicionais hostilidades, neste caso entre os assim como exemplo de uma vida de ora-
níveis mais elevados e os menos elevados ção (cf 2.17,18; 9.3-19; 10.2,3,12). Era seu
do governo, tem sido considerado o preço costume orar em um sótão (em cima, no
a se pagar por um acordo de oposição ao seu quarto; 10) onde havia janelas abertas
ungido do Senhor (cf SI 2.1,2; Mt 16.1; do lado de Jerusalém. Mesmo sabendo que
Lc 23.12; Em 4.25-27). Deus estava em toda parte e portanto po-
Os colegas de Daniel eram incapazes dia ouvir orações na Babilônia, ele orava
de encontrar um motivo para se queixar ao Senhor que tomara sua presença parti-
dele e, portanto, não tinham forças para re- cularmente conhecida em Jerusalém, para
movê-lo da administração (4; cf Jo 14.30). onde a arca da aliança fora levada (observe
Ao mesmo tempo em que seus colegas a caracterização da sua oração pela alian-
passaram a odiá-lo, não tinham como não ça no cp. 9). A regularidade das orações
reconhecer sua integridade. Eles sabiam de Daniel provocava comentários (lOb),
que sua única esperança era transformar a como também a nota de ação de graças
notória força espiritual de Daniel em uma que as permeavam, mesmo em um contex-
fraqueza política, sabendo que ele obede- to em que um grave perigo ameaçava sua
ceria a Deus e não aos homens (5; observe vida pessoal, e a postura que adotara (se
o contato posterior com At 4.19). E assim punha de joelhos, e orava, 10), indicando
eles fizeram, transformando a fraqueza es- a sinceridade de sua súplica (11).
piritual do rei em sua própria força política Em sua sutileza, os conspiradores pe-
(6,7). A irrevogabilidade das leis dos me- garam não só a Daniel como a Dario em
dos e dos persas (8; cf Et 1.19) não era sua trama (11,12). A característica que fez
exclusividade do Oriente Próximo, assim de Daniel o único membro completamen-
como a tentação ao totalitarismo não podia te confiável na administração real, a saber,
ser limitada a Dario (7). O significado na sua confiança no Deus da aliança, sofreu
lei persa de o decreto ter sido colocado por uma reinterpretação radical nas mãos de
escrito é explicado em Ester 8.8. seus inimigos. Sua confiabilidade era ago-
ra caracterizada como rebeldia (13). A
6.10-17 Obedecendo a Deus insensatez de Dario se tomava agora to-
em vez de aos homens talmente clara para ele, mas o próprio rei
A trama foi formulada de forma clara e estava totalmente impotente para revertê-
direta, mas continha a intenção de testar la (14), assim como também estava Daniel,
aparentemente (17). Observe, entretanto,
1137 DANIEL?

expressão "dos poderes da era vindoura",


<
o contraste brilhantemente traçado que quando todo o mal será vencido.
marca toda a narrativa: os conspiradores Um epílogo sombrio é registrado no
e o rei estavam ativamente envolvidos em v. 24. Provavelmente não é necessário su-
planejar e tramar (3-9,14). Em contraste, a por (tanto aqui como no v. 4) que todos os
vida de Daniel transparecia regularidade e administradores estavam envolvidos. De
integridade espiritual. Até o v. 21 ele é re- acordo com Heródoto, a punição da famí-
tratado como alguém que se dirige apenas lia inteira estava de acordo com a lei per-
a Deus. sa. A narrativa por si mesma não oferece
nenhum juízo moral (cf Et 8.1-10), mas a
6.18-28 Protegido pelo poder mensagem subjacente é bem clara: quem
de Deus por meio da fé obstrui o progresso do Reino de Deus põe-
Daniel não foi protegido do perigo, mas se a si mesmo no mais completo risco.
no perigo, pelo poder de Deus por meio Aqueles que se opõem a Deus serão, no fi-
da fé (Hb 11.33b; lPe 1.5). Para espanto nal, despedaçados. Aqui outra vez a narra-
e alívio do rei, a intervenção divina pre- tiva contrasta com os princípios do salmo
servou a vida de Daniel, a testemunha de 2 (cf SI 2.9-12).
Deus (cf v. 22; SI 91.9-16). Pela fé (23) O livramento de Daniel foi celebrado no
ele experimentara os poderes da era por vir decreto do rei (talvez sob a própria orienta-
(Hb 6.5), na qual leões são domesticados ção de Daniel), num contexto de doxologia
(Is 11.7). Como todos os milagres do AT, ao Deus vivo (26, isto é, envolvido ativa-
este é uma antecipação do grande milagre mente nas coisas do mundo), soberano e
da ressurreição de Cristo (cf v. 17 com salvador. O próprio Daniel é uma vívida
Mt 27.60-66), que aponta tanto para a ilustração dos princípios mais básicos de
ressurreição como para restauração final uma vida piedosa (cf SI 1, especialmente
(1Co 15.20-28; cf SI 2.4-8). Em um am- v. 2,3). Se Dario deve ser de fato identifi-
biente "aparentemente lacrado" (17), Deus cado com Ciro, então a conjunção e (28)
tinha demonstrado que não pode ser ex- deve ser traduzida (como é bem provável)
cluído; se os crentes fizerem sua cama no por "isto é" (cf NVI rnrg.).
mais profundo abismo, ele também estará
lá (Sl139.8)! Em consequência, a proteção 7.1-28 A soberania de Deus
e o livramento de Daniel, assim como a de sobre reinos cruéis
seus três amigos, foram completos (23b;
cf 3.27 e, mais tarde, Jo 19.31-36). 7.1-14 Quatro bestas, um homem
Contrariando a suposição comum, há O cp. 7 tanto introduz a segunda metade
muito poucos milagres dramáticos no AT. do livro como faz a ligação das suas duas
Aqui, como nos poucos outros períodos seções. Ao mesmo tempo em que introduz
onde podemos encontrar uma concentra- uma nova seção que contém as visões apo-
ção de milagres no AT (o da época do êxo- calípticas de Daniel, também nos conduz ao
do e da entrada em Canaã, e o da época passado, ao reino de Belsazar (cf cp. 5) e
de Elias e Eliseu e do estabelecimento de conclui a seção aramaica do livro. Ao leitor
seus ministérios proféticos), os milagres é recomendado, assim, observar as impor-
ocorrem em momentos de crise no Reino tantes conexões entre a história e o apoca-
de Deus. Os milagres em Daniel, como em lipse. Em conteúdo, a visão neste capítulo
qualquer outra parte, não são meramente lembra a do sonho de Nabucodonosor, no
"contrários à natureza" ou "sobrenaturais". cp. 2. Lá, entretanto, o foco estava nos su-
São primeiramente "contrários ao mal" e cessivos reinos poderosos que se posicio-
aos poderes das trevas. Os milagres são naram contra o Reino de Deus, mas que
DANIEL 7 1138

finalmente foram subjugados por este; aqui turas e o sonho de Nabucodonosor sugere
o foco está na degradação moral, ainda que que elas representam os mesmos impérios
de curta duração, do caráter daqueles rei- (o Império Babilônico, o Império Medo-
nos (representados por figuras bestiais), em Persa e o Império Grego, de acordo com
comparação com o eterno reino de Deus. a interpretação acima). Curiosamente,
Como em qualquer outra parte da li- Nabucodonosor é comparado em outras
teratura apocalíptica, o visual predomina partes tanto a um leão (Jr 4.7; cf 49.19;
(observar a ênfase no verbo "olhar", re- 50.44) quanto a uma águia (Ez 17.3,11,12).
gistrado nos versículos 2,4,6,7,9,11,13). Cf v. 4 com 4.33,34. Não se conseguiu en-
Embora seja importante tentar interpretar contrar descrição melhor para as conquis-
o significado histórico da visão, o fato de a tas de Alexandre, o Grande, do que a de
revelação ser dada em forma visual subli- um leopardo alado com quatro cabeças.
nha a importância de seu apelo tanto aos (E de fato, depois da sua morte, o Império
sentidos como também à razão; pretende- Grego foi dividido em quatro partes.)
se criar impressões, não apenas transmitir O temível caráter dessas criaturas se
proposições. toma insignificante diante da descrição da
A visão ocorreu durante o primeiro ano quarta criatura e de sua ferocidade. Ao pas-
do reinado de Belsazar (cf comentário em so que as criaturas descritas anteriormente
5.1). O conhecimento profundo que Daniel se assemelhem a um leão, a uma águia, a
tinha da família real certamente provo- um urso e a um leopardo, a quarta não se
cou nele pressentimentos sobre o futuro parece em nada com nenhuma outra criatu-
imediato (que ele tem pouco tempo para ra do reino animal. Enquanto Daniel ainda
Belsazar fica bastante claro em 5.17). está confuso com os dez chifres (7,8), um
Agora Deus enchera sua mente com novo chifre passa a chamar a sua atenção;
uma visão mais cósmica do mar Grande esse chifre aparentemente representa um
(possivelmente o Mediterrâneo, mas mais indivíduo, mas alguém cuja humanidade
provavelmente um retrato geral do mundo está voltada somente para si mesmo (8).
em sua assustadora falta de Deus e insta- Enquanto Daniel olha, três cenas apare-
bilidade). Entretanto, o mar não é agitado cem subitamente diante de seus olhos. Pode
pelas bestas que emergem dele, mas pelos ser mais sábio procurar entendê-las como
quatro ventos do céu (2), uma indicação partes de um quadro mais amplo que juntas
de que mesmo por trás dos mais temíveis podem passar uma grande impressão.
acontecimentos se encontra a mão de Deus. A primeira cena (9,10) é uma visão do
Isto é enfatizado pelo uso da voz passiva trono de Deus. Em contraste com as cenas
nas descrições das bestas, que evidente- anteriores, é marcada por ordem, tranqui-
mente representam impérios: a criatura lidade e soberania absoluta. Ainda que ne-
parecida com um leão cujas asas foram nhuma conexão entre esta e a segunda cena
arrancadas foi levantada da terra e lhe foi (l1,12) seja explicitamente indicada, há
dada mente de homem (4; possivelmente uma clara implicação de que o julgamento
um retrato de Nabucodonosor); à criatura de Deus está por trás da destruição da besta
semelhante a um urso diziam: Levanta-te, e da destruição do poder das outras bestas
devora muita carne (5); e a criatura pareci- (10; assentou-se o tribunal, e se abriram
da com um leopardo recebeu domínio (6). os livros sugere que um veredicto judicial
Pode até haver totalitarismo, mas nunca há estava prestes a ser pronunciado). Ante o
autonomia absoluta no governo humano. Ancião de Dias, os reinos deste mundo
Os crentes sempre conseguirão entrever, têm vida curta. Sua presença como um juiz
para além dos atos dos reis, o domínio de santo e justo é transmitida por uma im-
Deus. A íntima conexão entre essas cria- pressão de fogo ardente e candura perfeita
1139 DANIEL8{

(9; cf SI 50.3,4). A terceira cena retoma observação especial deve ser feita em rela-
à sala do trono de Deus onde um como o ção ao tríplice caráter do pequeno chifre no
Filho do Homem é apresentado ao Ancião v. 25. Ele é culpado de blasfêmia, de perse-
de Dias (13) e dele recebe a autoridade guição ao povo de Deus e de alguma forma
universal. Esta figura é a de um verdadei- de autodivinização (uma vez que a mudan-
ro homem em contraste com as bestas. Ele ça dos tempos estabelecidos, v. 25, é uma
é capaz de carregar a santidade de Deus e prerrogativa exclusiva de Deus, 2.21).
permanecer em sua presença. Nesta ima- Aqueles que localizam a plateia de
gem a pedra do sonho de Nabucodonosor Daniel no segundo século a.C. normal-
(2.35,44,45) se transforma em um homem, mente identificam o quarto reino como
em quem a verdadeira imagem de Deus a Grécia, e veem o pequeno chifre como
brilha (Gn 1.26-28), o Homem Messiânico Antíoco Epifânio. Não é possível, entre-
que será o verdadeiro regente de Deus (cf tanto, ler esta passagem da perspectiva do
SI 2.8; 8.4-8; 72.1-11 ,17; Hb 2.5-9; 12.28). NT sem reconhecer que a figura do "Filho
do Homem" (13) se cumpre em Cristo (cf
7.15-28 O chifre que guerreava Mc 13.26; At 7.56; Ap 1.13; 14.14).
Daniel recebeu uma série de indícios para Essa interpretação (retrospectiva) su-
explicar essas cenas. A interpretação das gere que a figura da quarta besta se cum-
bestas como impérios está de acordo com pre em Roma. É provavelmente melhor
isso. A visão pretendia assegurá-lo de que considerar os "chifres" (7,8,24) como uma
os santos do Altíssimo receberão o reino continuação do "espírito" da dominação
(18). Isso não deveria ser entendido como romana, em cujo contexto aparece o pe-
uma sugestão de que o "Filho do Homem" queno chifre, o homem sem lei, o anticristo
(13) e os santos do Altíssimo fossem idên- final (20,21,25; cf 2Ts 2.4-12; 1104.3b),
ticos, mas que de algum modo havia um que, por determinado tempo, oprimirá fe-
relacionamento entre eles, o qual se tor- rozmente os santos (25). Seu poder então
naria claro com a vinda de Cristo (e.g., será consolidado e intensificado (por um
Ap 1.7). Sua coroação é a garantia de que tempo, dois tempos), mas será subitamen-
seus santos compartilharão de seu triunfo te interrompido (metade de um tempo). O
(Ap 20.6). reino, o domínio universal e a majestade
Embora lhe tenha sido dada uma garan- serão entregues ao Filho do Homem e ao
tia do triunfo do reino de Deus, Daniel ficou seu povo, e o seu reino será para sempre
muito incomodado, especialmente com a (14,26,27).
identidade da apavorante quarta besta, com Daniel fora afetado tanto fisica como
todos os seus chifres e particularmente o mentalmente pela visão. Há uma lição im-
menor deles (19; cf v. 8). A interpretação portante para todos aqueles que têm expe-
que recebera elucidava a visão, mas defini- riências espirituais incomuns no fato de
tivamente não a tomava mais simples. Não Daniel ter guardado essas coisas somente
é de admirar que os comentaristas não con- para si mesmo (28).
cordem em suas interpretações sobre esse
trecho. Suas dificuldades de interpretação 8.1-27 A soberania de Deus
devem nos alertar para que não sejamos dura para sempre
dogmáticos ao tentar explicá-la. Em suas experiências visionárias, Daniel
O pequeno chifre aparece no contexto recebeu total compreensão do conflito em
do último império. A forma como o iden- que ele mesmo estava pessoalmente envol-
tificamos vai depender de nosso esquema vido. A visão não se limitava à sua própria
geral para interpretar toda a visão (e o experiência; ao contrário, sua experiência
sonho de Nabucodonosor no cp. 2). Uma nada mais era do que um determinado
11
: - DANIELa 1140
11

aspecto do conflito cósmico entre os rei- o caracterizavam: sua extraordinária ve-


nos deste mundo e o reino que Deus está locidade; sua ferocidade aparentemente
estabelecendo. onipotente em oprimir o carneiro (6,7); a
A segunda visão de Daniel fez com dramática quebra de seu grande chifre e a
que ele se lembrasse da que tivera a prin- emergência de quatro chifres em seu lugar
cípio (1), mas dessa vez ele se via junto (8), de um dos quais saiu um chifre adi-
ao rio Ulai, em Susã, a capital da Pérsia. cional (9).
Sua visão consistia em duas imagens vi- O bode representa o Império Grego
suais centrais (1-4; 5-12), seguidas por (21). A imagem do grande chifre se
duas revelações faladas (a primeira, nos cumpriu perfeitamente em Alexandre, o
v. 13,14, é dada por um santo; a segun- Grande, que se tomou um conquistador
da, nos v. 15-26, por Gabriel; cf 9.21 e mundial com a idade entre vinte e um e
Lc 1.19,26). Já que as partes visuais e au- vinte e seis anos, derrotando as forças per-
díveis estão relacionadas, é melhor exa- sas em uma série de batalhas decisivas en-
minar o capítulo considerando-se cada tre 334 e 331 a.C. Entretanto, ele morreria
segmento respectivo. de forma trágica, aos trinta e três anos de
idade (cf v. 8), sendo seu império dividi-
8.1-4, 15-20 O carneiro do em quatro regiões representadas pelos
com dois chifres quatro chifres (22). De um destes, nasce
O carneiro de dois chifres da sua primeira um chifre pequeno (9) que dará forma ao
visão (3) são os reis da Média e da Pérsia clímax de toda a visão.
(20), sendo que o chifre mais alto, sem dú-
vida, representa a Pérsia. Daniel viu que o 8.9-14,23-27 O pequeno
carneiro dava marradas para frente, expan- chifre que cresceu
dindo seu território em todas as direções. O descendente de um dos chifres é agora
De fato, o Império Persa se expandiu em retratado como alguém que se dedica a
direção ao oeste, para a Babilônia, Síria uma vigorosa política expansionista que
e Ásia Menor; em direção ao norte, para alcança a Palestina (a terra gloriosa, 9;
a Armênia e o mar Cáspio; e em direção cf Dt 8.7-9; Jr 3.19). Em sua autoexalta-
ao sul, para a África. O conhecimento que ção (cf Is 8.12-15), essa figura fará de si
Daniel tinha disso (no terceiro ano do rei- mesma um deus e proibirá com blasfêmia
no de Belsazar) é coerente com a ousadia a adoração bíblica (11,12). Daniel viu isso
de seu discurso posterior ao rei, no mes- continuar por duas mil e trezentas tardes
mo ano de sua queda (cf 5.18-31). Ele já e manhãs (14), que provavelmente devem
havia presenciado "a mensagem escrita na ser entendidas como dias (cf Gn 1.5,8,13
parede", dirigida ao Império Babilônico. etc.). O fato de essa informação ter sido
Como homem de fé, ele aprendeu pouco passada a Daniel pelos santos (13) é uma
a pouco que isso simplesmente apontava indicação de que, apesar do horror dos
para uma realidade muito maior - que já acontecimentos, todos são conhecidos
havia na parede uma mensagem escrita di- por Deus e misteriosamente se encontram
rigida a todos os impérios, exceto ao reino dentro de seus propósitos (cf 1.2). Assim
do Altíssimo (cf 2.44). também é o pequeno chifre, cuja ascen-
são não se dá por sua própria força (24)
8.5-8,21,22 O bode de um chifre e cuja queda se dará sem esforço de mãos
Enquanto Daniel ponderava sobre o sig- humanas (25).
nificado da primeira visão, antes de rece- A Síria, uma das quatro partes resultan-
ber sua interpretação, ele viu um bode que tes da divisão do império de Alexandre, o
tinha um chifre notável (5). Três coisas Grande, foi governada por Seleuco Nicator,
1141 DANIEL9(

chefe da dinastia selêucida da qual surgiu mui distantes (26). O "fim" em vista aqui
Antíoco IV, em 175 a.C. Ele se intitulou pode ser mais bem entendido como a últi-
Theos Antíoco Epifânio (Antíoco, o deus ma parte do período histórico em questão
ilustre). Outros se referem a ele como (isto é, não o final dos tempos).
Antíoco Epimanes ("o louco"). Em sua Como em 7.28, a reação de Daniel é
política expansionista invadiu a Palestina muito instrutiva. A seriedade do conflito
(a terra gloriosa; 9) e saqueou Jerusalém em que o povo de Deus está para se en-
em meio a um terrível banho de sangue. volver não somente o oprimiu como o ate-
Ele aboliu as ofertas sacrificais diárias da morizou, mas não o paralisou. Mesmo em
manhã e da tarde (11; cf Êx 29.38-43), co- meio a um ambiente incrédulo e pecami-
meteu a blasfêmia de sacrificar um porco noso, ele cumpriu com suas responsabili-
no altar das ofertas queimadas, mais tar- dades diárias (27; cf 2Pe 3.11).
de colocou uma estátua de Zeus no tem-
plo e fez sacrifícios humanos no altar. Ele
9.1-27 A soberania de Deus
proibiu a circuncisão e profanou o sábado como base da fé e profecia
(cfv.ll,12).
A ênfase dada à compreensão de Daniel 9.1-3 Daniel procura nas Escrituras
desta visão é digna de nota (5a,15,16). Gabriel trouxe então uma revelação adi-
Essa iluminação não é somente uma ques- cional (21; cf 8.16), a qual é situada por
tão da previsão de futuros acontecimentos uma cuidadosa e significativa cronologia
da história, mas também a clara compreen- no primeiro ano de Dario (1). Daniel es-
são da natureza e da obra do mal em sua tava envolvido em disciplinas espirituais.
destruição da vida, sua oposição à santida- Ele tinha meditado na profecia de Jeremias
de (24; com o foco na destruição da adora- de que o tempo de duração das assolações
ção do povo de Deus, 11; cf At 20.29-31), de Jerusalém (2) se estenderia por setenta
sua falsidade e seu orgulho (25). À luz anos (cf Jr 25.11,12; 29.10). A oração que
desse fato, Daniel aprende lições vitais: segue foi influenciada profundamente pelo
que ninguém deve se deixar enganar por espírito de Jeremias 25. Como em outras
uma falsa sensação de segurança (25, vi- partes das Escrituras, a motivação para a
vem despreocupadamente; cf 1Co 10.12; intercessão fervorosa de Daniel é dupla:
GI6.1) e que no final Deus destruirá toda a a necessidade do momento e a promes-
oposição a ele (25; cf SI 2.8-12; 46.8-10; sa de Deus na aliança. Enquanto a lógica
Ap 11.15-18). abstrata pode nos levar a perguntar por
O foco no pequeno chifre, diante do que Daniel precisava orar, se Deus já ti-
qual os papéis dos grandes impérios repre- nha feito sua promessa, o próprio Daniel
sentados pelo carneiro e pelo bode passam compreendeu que Deus emprega a oração
a ser secundários, é um lembrete da distin- como um meio pelo qual ele se agrada em
ta perspectiva bíblica, que não vê os gran- cumprir a sua palavra. O arrependimento
des impérios, mas sim o povo da aliança genuíno e a intercessão afetavam Daniel
como o elemento-chave para a história. O tanto exteriormente quanto interiormente
derradeiro significado dos impérios e de (3). Presumivelmente, essa era uma parte
seus regentes é determinado pelo tipo de das devoções privadas de Daniel, mas suas
tratamento que concedem ao povo de Deus ações não entravam em contradição com o
(9-12; cf Mt 25.31-46). espírito de Mateus 6.16-18, que diz respei-
Duas frases apontam para o cumpri- to à nossa aparência em público e de todo
mento da visão de Daniel: os eventos acon- modo tem em vista aqueles que procuram
tecerão no último tempo da ira [...] tempo aprovação no elogio de outros, em vez da
determinado do fim (19) e em dias ainda aprovação de Deus.
DANIEL 9 1142

9.4-19 Oração, uma obra da aliança desobediência; 5-11) e suas consequências


A oração de Daniel é dominada por um (vergonha e dispersão; v. 7). Tal juízo é a
toque do caráter de Deus, especialmente expressão da justiça de Deus em relação à
aquele revelado em sua justiça. A justiça aliança, em resposta ao pecado de seu povo.
de Deus é sua integridade absoluta, sua Ele manteve sua promessa (7,11-14).
conformidade à sua glória perfeita. No re- Enquanto ele orava sobre a condição
lacionamento com seu povo, ela assume a de seu povo, Daniel não pediu a Deus que
forma de sua fidelidade à aliança com esse abandonasse sua justiça. Paradoxalmente,
povo. Nessa relação da aliança ele pro- nela estava a única esperança do povo.
metera ser o seu Deus e fazer desse o seu Como no primeiro êxodo, para sua própria
povo; prometera que o povo seria abençoa- glória, Deus revelou a justiça de sua alian-
do enquanto respondesse a ele com amor ça na misericórdia para com os oprimidos
e fidelidade, mas haveria juízo, se eles lhe assim como no julgamento dos ímpios (cf
respondessem com descrença, ingratidão e Êx 3.7-10,20; 6.6). Incentivado pelas pro-
desobediência (cf Dt 27; 28). É significa- messas divinas a Jeremias, Daniel apela
tivo que o nome de Deus na aliança, Javé, a Deus em defesa de seu glorioso nome,
usado no livro somente neste capítulo, apa- o qual ele associa ao povo e à cidade de
reça impresso frequentemente em diversas Jerusalém (16). O objetivo de sua inter-
versões (ARA e NVI, e.g.) como SENHOR (v. cessão é a glória do nome de Deus; seu
2,4,10,13,14,20; cf Êx 3.13-15). alicerce é a promessa de Deus na aliança
Esses princípios salientam o modo a respeito da restauração; sua motivação
como Deus trata o seu povo no AT e vêm à é o conhecimento da justa misericórdia
tona na oração de Daniel. Em sua longani- revelada nas obras redentoras de Deus no
midade com seu povo desobediente, Deus passado (15-19).
tinha enviado profetas para trazê-los de
volta à fidelidade para com a aliança (5,6). 9.20-27 Outras "setenta" semanas
O exílio era resultado da indiferença do O tempo da revelação foi à hora do sacri-
povo em relação à advertência de Deus e o ficio da tarde (21; isto é, o meio da tarde)
cumprimento da maldição da aliança (7; cf - uma notável indicação da abordagem
Dt 28.58,63,64; Jr 18.15-17). Em verda- voltada para a cidade de Deus como Daniel
deiro espírito de arrependimento, Daniel, encarava a vida, uma vez que ele tinha es-
o mais fiel dentre todo o povo de Deus, tado ausente de Jerusalém por quase seten-
admitiu a culpa do povo como se fosse ta anos (cf 6.10). Gabriel apareceu com
sua (o uso da primeira pessoa do plural é dramática prontidão em resposta à sua ora-
bem marcante nos v. 5-10). Nesse aspec- ção, trazendo mais um comunicado divino,
to seu coração refletia o coração de Deus o qual expandia o horizonte de Daniel dos
(cf Is 63.8a,9a); esse é o seu povo (cf v. setenta anos da profecia de Jeremias para
20). A solução definitiva estava esperando setenta semanas (24). Agora há um novo
pelo tempo em que o Filho de Deus assu- pico na cordilheira dos propósitos divinos
miria a culpa de seu povo como se fosse no qual ele deve se concentrar.
sua (cf Is 53.4-6,10-12; 2Co 5.21). Mas a A revelação enigmática que segue pri-
esperança de perdão não minimiza a serie- meiramente esboça o plano divino, incluin-
dade de sua condição. Certamente Daniel do seis coisas que devem se alcançadas no
explorava o vocabulário do AT, enquan- período das setenta semanas ordenas por
to descrevia e confessava a falha de Judá Deus (24). As primeiras 69 semanas con-
(pecado, erro, maldade, rebeldia, o afastar- duzem à vinda do Ungido (25) e são dividi-
se dos mandamentos de Deus, recusa em das em dois períodos desiguais (7 semanas
ouvir os profetas, injustiça, transgressão, e 62 semanas = 69 semanas). Essa divisão
1143 DANIEL1 0 (

é uma das mais enigmáticas características Por 70 anos Daniel ansiara pela restau-
de todo o livro. Possivelmente as primeiras ração da cidade e do templo de Deus (16-
sete semanas apontam para a conclusão do 19). Agora que isto está prestes a ocorrer,
templo. Os v. 26 e 27 podem conter uma sua atenção é dirigida a um ponto mais
miniatura de "paralelismo progressivo": distante e elevado na história da redenção.
o v. 26 descrevendo as semanas finais em Mesmo um templo novo em uma cidade
termos panorâmicos, enquanto o v. 27 as reconstruída pelas mãos humanas pode ser
descreve em detalhes específicos. destruído. Os olhos de Daniel consequen-
As interpretações dessa mensagem temente devem se fixar no templo final (cf
variam muito e dependem de uma visão Jo 2.19), aquele que estará além de qual-
mais ampla do intérprete quanto ao cum- quer tipo de profanação (Ap 21.22-27).
primento da profecia. A crítica, situando
os escritos de Daniel no contexto do se- 10.1-12.4 A soberania de Deus
gundo século a.C., vê o período em ques- sobre toda a história
tão como algo que deve se estender do
século VI até a época de Antíoco Epifânio 10.1-3 Em lamentação espiritual
(os 490 anos sendo entendidos ou como A narrativa da visão final de Daniel se
um ciclo ou literalmente e, talvez, equivo- estende do começo do cp. 10 ao final do
cadamente). Porém, da perspectiva do NT livro. O livro é precisamente datado no ter-
é muito difícil evitar a conclusão de que ceiro ano de Ciro (l), durante o período
o Ungido (25) tem seu cumprimento em da Páscoa e da Festa dos Pães Asmos, às
Jesus Cristo, cuja vinda traz expiação e o margens do rio Tigre (4). Na comemoração
fim da culpa (24). Alguns intérpretes mais do êxodo do Egito, um novo êxodo come-
conservadores têm, além disso, empre- çara, no primeiro ano de Ciro (Ed 1), mas
gado várias cronologias para demonstrar este êxodo encontrou desencorajamento
que o número 490 é uma previsão crono- prematuro (Ed 3.12-4.5). Posteriormente
lógica exata da morte de Cristo. Não há o trabalho de reconstrução do templo foi
consenso entre os estudiosos seja sobre paralisado (Ed 4.24). Insinuações desse
isso, seja sobre a interpretação detalhada primeiro desencorajamento parecem ter
das semanas finais. sido a principal razão para o prolongado
Se a análise cristológica estiver em período de disciplina espiritual de Daniel
geral correta, as 69 semanas podem repre- (2). O versículo de abertura resume o cará-
sentar o período além da restauração até a ter da visão que segue.
vinda de Cristo e do reino que ele inaugu-
ra. Embora dificil, o v. 26, será o Ungido 10.4-9 Uma visão gloriosa
morto e já não estará, lembra Isaías 53.8 A visão de Daniel (7) teve um grande efei-
e uma indicação da desolação absolu- to sobre ele (8). Embora somente ele tenha
ta (cf Mt 26.31; 27.46). O v. 27 poderia, tido a visão, parece que seus companheiros
então, referir-se ao príncipe que há de vir ouviram a voz que era como o estrondo de
(26), encontrando seu cumprimento em muita gente (6) e fugiram (7). Quanto ao
Tito Vespasiano, a profanação do templo homem vestido de linho sacerdotal (5; cf
e a destruição de Jerusalém em 70 d.C. Êx 28.42; Lv 6.10; 16.4), seu ser irradiava
(cf Mt 24.3-25). Alternativamente, o v. tamanha luz e beleza que Daniel exauriu
27a pode ser uma referência a Cristo con- o vocabulário das pedras e metais precio-
firmando a aliança de Deus por uma sema- sos, e mesmo dos elementos, para achar
na, isto é, para todas as épocas futuras (cf comparações adequadas ao descrevê-lo
lCo 11.25,26); e os v. 27b e 27c uma refe- (5-7). Nenhuma tentativa é feita no senti-
rência à profanação de Jerusalém. do de identificar tal homem. Sua descrição
íIIII
: . DANIEL 10 1144
íIIII

suplanta a de outros visitantes celestiais ambos os casos, encorajado e revitalizado


que são encontradas no livro de Daniel por seu toque, Daniel foi capaz de receber
(8.15,16; 9.20,21), mas claramente traçam a revelação (18,19). O mensageiro celestial
um paralelo com outras aparições de Deus logo retomaria à sua tarefa na (11.1) batalha
e de Cristo nas Escrituras (e.g., Ez 1.26-28; espiritual em andamento (20). Atualmente
Ap 1.12-15). Esta visão foi dada para enfa- era a Pérsia, logo seria a Grécia (20) que,
tizar a graça da aliança de Deus (vestimen- humanamente falando, dominava as expe-
ta sacerdotal) e o poder e glória divinos riências do povo de Deus.
(intenso brilho). Em um sentido especial, Parte da resposta à pergunta feita a
o próprio Deus é a fonte da mensagem e Daniel no v. 20 é que ele precisa saber
quem garante a sua verdade (cf v. 1). que há forças celestes defendendo o povo
de Deus (cf 2Rs 6.15-23). Mas primeira-
10.10-11.1 As forças do mente ele aprende o que está expresso na
mal nas regiões celestiais escritura da verdade (21), isto é, como os
A primeira parte da visão de Daniel foi des- propósitos de Deus serão revelados.
vanecendo, deixando-o sem sentidos. Então,
claramente, uma segunda figura se dirigiu a 11.2-45 Os reis do norte e do sul
ele (11), explicando que em resposta a suas Embora a revelação que segue pareça, aos
orações em busca da compreensão do que olhos dos leitores atuais, uma previsão de
acontecia (algo não citado, mas implícito acontecimentos futuros, ela é tão detalhada
no v. 2), ele fora enviado assim que Daniel que a maioria dos estudiosos admite que
começara a orar (12). Entretanto, o prínci- os leitores originários a reconheceriam
pe do reino da Pérsia (evidentemente uma imediatamente como um recurso literário
figura sobrenatural; 13) resistiu ao mensa- usado por um autor do segundo século.
geiro, até que Miguel viesse ao seu auxílio. Segundo esse ponto de vista, os mínimos
O arcanjo Miguel (cf Jd 9) é o principal detalhes no relato dos acontecimentos nos
defensor do povo de Deus (vosso príncipe, v. 21 a 35 indicam que o autor tinha conhe-
21; cf 12.1) contra os poderes das trevas cimento pessoal deles. Os v. 40 a 45, por
(cf Ap 12.7-9). outro lado, descrevem eventos que ainda
Está claro que por trás dos conflitos eram futuros para o próprio autor, e suas
históricos há um conflito "nas regiões profecias acerca deles se mostraram equi-
celestiais" (Ef 6.12), no qual Daniel ti- vocadas. Consequentemente, os estudiosos
nha se envolvido em sua intercessão. Os que defendem esse ponto de vista datam o
poderes espirituais tentaram impedir que final da composição de Daniel em 165 ou
ele recebesse as revelações sobre o futuro em 164 a.C. (sobre as implicações desta
(e, portanto, o perfeito entendimento dos corrente, v. Introdução).
propósitos de Deus). Implícito nisso está o Durante todo o capítulo fica evidente
reconhecimento de que a futura revelação que tudo que Daniel tinha aprendido pre-
fortaleceria a Daniel e, consequentemente, viamente, por meio de imagens, agora lhe
a todo o povo de Deus (14). é colocado no formato linear da história.
Não está claro se o ser como semelhan- Contudo, o ponto de vista a partir do qual
ça dosfilhos dos homens (16) é uma tercei- esses eventos são encarados é o da terra
ra figura ou deveria ser identificado com as gloriosa (16) que Deus prometera a seu
figuras dos v. 5 e 10 (os v. 20,21 parecem povo na aliança, e em relação à qual os
indicar a última hipótese). Essa incerteza reis do sul e do norte se levantam (e.g.,
é explicada tanto pela natureza da perso- v. 11,12). Contrariando outras leituras da
nagem visionária da revelação quanto pela história que marginalizam o povo de Deus
condição mental de Daniel (15-17). Em (e que veem a Palestina meramente como
1145

uma ponte entre o norte e o sul), a revelação


DANIEL 11

de Seleuco II (9) e seus filhos Seleuco III


<
bíblica vê o reino a que pertencem como o e Antíoco IlI, que atingiu um extremo tão
ponto central e a chave da história. meridional quanto Ráfia, localizada no sul
11.2-4 O futuro imediato. O mensa- da Palestina (10).
geiro esboça o desdobramento imediato da A luta pelo domínio continuou sob a li-
história. O poder do Império Persa é visto derança de Ptolomeu IV, um homem que le-
como crescente até a aparição de uma figu- vava uma vida dissoluta. A referência a ele
ra de imenso poder, que não teria dinastia como aquele cujo coração [...] se exaltará
alguma, seu império fragmentando-se de- (12; cf v. 18) prepara leitor bíblico atento
pois de sua morte (4). para a sua queda (2.21a). Embora tenha im-
O quarto rei persa (2) depois de Ciro posto uma derrota maciça à Síria, em Ráfia,
(cf 10.1) foi Xerxes (que reinou de 486 sua ascendência não se impôs e, posterior-
a 465 a.C.). Ele é conhecido por ter acu- mente, quando Ptolomeu v foi coroado aos
mulado fenomenais recursos por meio de quatro anos de idade, Antíoco III foi vitorio-
impostos e por tê-los esgotado em seus so (13-16). Este também se exaltou e fez jus
confrontos com a Grécia (2), por quem foi ao juízo divino (16; cf v. 19). O v. 14 pode
derrotado na batalha de Salamina, em 480 se referir à atividade sem sucesso dos ju-
a.C. A descrição de um rei poderoso, cujo deus zelotes, que apoiavam as forças sírias
império seria fragmentado (3,4), em vez contra o Egito, sob cujo domínio viviam.
de passado aos herdeiros, cumpriu-se com Com vistas a uma futura expansão, um
Alexandre, o Grande (Daniel já sabia que o casamento político foi planejado entre a
poder passaria para a Grécia; 10.20), cujos filha de Antíoco IlI, Cleópatra, e o jovem
dois filhos foram assassinados. Ele se tor- Ptolomeu v (17); mas este plano também
nou um chifre quebrado (8.22). falhou. Quando Antíoco se empenhou em
11.5-45 Norte versus Sul. Há um con- futuras conquistas a oeste (Grécia), foi
senso difundido quanto à interpretação des- derrotado pelos romanos e forçado a voltar
sa seção entre comentaristas de escolas de para casa. Com esse recuo, ele desaparece
pensamento um tanto distintas, pelo fato de do palco da história, morrendo dois anos
esta visão se coadunar tão intimamente com depois (19).
o panorama histórico descrito a seguir. Seleuco IV, que assumiu como o rei
Quando o império de Alexandre foi di- da Síria, herdou um império imenso, mas
vidido em quatro (4), Ptolomeu I se tomou falido por anos de longas ações militares.
regente do Egito (o rei do Sul; 5), estabe- Procurou restaurar o tesouro elevando os
lecendo a dinastia macedônica de 304 a.C. impostos (20), mas foi logo sucedido pela
(quando recebeu o título de rei) até 30 a.C. figura que domina agora o restante do capí-
Nesse ínterim, Seleuco I (o rei do Norte) tulo, um homem vil (21), seu irmão Antíoco
controlava a Síria, estabelecendo a dinastia IV (Epifânio).
selêucida por aproximadamente o mesmo Este subiu ao trono em 175 a.C., por
período. O que segue é a história da evo- meio de dois golpes. Por meios diversos,
lução das dinastias e a disputa de poder e incluindo intriga e engano (21,23), ele pro-
rivalidade entre esses dois reinos. moveu uma política de helenização que
A tentativa inicial de aliança entre os o levou ao conflito direto com os judeus
dois poderes é representada pela união comprometidos com uma religiosidade or-
(6) entre Antíoco II (neto de Seleuco I) e todoxa. Novamente o perigo de se sentir
Berenice (filha de Ptolomeu n), A paz foi seguro é destacado (v. 24; cf 8.25), assim
somente provisória e seguida pela inva- como o é o limite de tempo que Deus co-
são do norte por Ptolomeu III (7,8), com loca sobre atividades humanas hostis (por
o subsequente contra-ataque por parte certo tempo; 24).
DANIEL 11 1146

Antíoco impediu uma invasão da Pales- Não obstante, as identificações do rei (36)
tina pelos egípcios ao invadir ele mesmo o variam (e.g., o Império Romano [Calvino],
Egito, governado agora por Ptolomeu VI, o papado e o anticristo).
tendo sucesso, em parte, pela intriga (de A identificação precisa do significado
acordo com v. 24,25). Mas o sucesso o ilu- da profecia depende sempre de seu cum-
diu (27), e quando a desordem irrompeu na primento histórico. De todo modo, temos
Palestina, ele retomou à Síria. Outra vez os aqui pelo menos um perfil do espírito do
limites divinos se concretizam na história anticristo (110 2.18) na autonomia radical
(27), e a sinistra natureza da oposição ao do rei (cf 3.15; 4.30; 8.25; 11.3,12,16),
povo de Deus é enfatizada (28). que se exalta a si mesmo como um deus
Antíoco invadiu o Egito novamente, (36,37; cf 3.5) e no casamento entre ini-
em 168 a.c., quando os ptolomeus tinham quidade e injustiça. A referência ao "deus
chegado a um acordo sobre um reinado preferido das mulheres" (37, NVI) é difícil.
conjunto. Desta vez ele teve de enfrentar Às vezes tomadas como uma referência a
um ultimato humilhante por parte dos ro- Tamuz, o deus pagão pranteado pela deusa
manos ordenando-lhe que se retirasse (cf Astarote (cf o espanto de Ezequiel dian-
v. 30), depois do qual dirigiu toda a sua fú- te dessa abominação em Ez 8.13,14), es-
ria a Deus e a seu povo (30), recrutando en- sas palavras também podem significar "o
tre os judeus os simpatizantes do processo desejo das mulheres", denotando assim a
de helenização (30-32). Isso culminou no total desconsideração do rei com respeito
massacre dos habitantes de Jerusalém e na à afeição humana (cf 2Tm 3.2-4), ou até
desolação da cidade. O santuário foi profa- mesmo pelo que foi ordenado na criação
nado, o sacrifício diário abolido, um altar a quanto ao relacionamento homem-mulher.
Zeus foi erigido e rituais pagãos celebrados Os v. 40-45 retratam uma luta final.
sobre o altar das ofertas queimadas (a abo- Alguns intérpretes sugerem que isso se
minação desoladora, 31; cf Mt 24.15). cumprirá nos termos geográficos precisos
Em meio à apostasia dos judeus (des- em que é descrito, mas essas afirmações
crita nos v. 30,32), alguns foram fiéis até a são mais bem interpretadas como um re-
morte (33). Foi neste contexto que ocorreu trato de um conflito futuro descrito nos
a famosa resistência dos macabeus. Como termos do mapa político daquela época.
em todos os movimentos de resistência, Edom, Moabe, e Amom (41) representam
tanto espirituais quanto políticos, os fiéis inimigos ancestrais do povo de Deus. Os
receberam apoio que prefeririam ter dis- inimigos tradicionais do rei do norte e
pensado (34). seus aliados serão dominados por ele (43).
Possivelmente a seção mais difícil do Entretanto, seu fim virá, e não haverá quem
livro é a que segue nos v. 36-45. A descri- o socorra (44,45).
ção parece exceder tudo o que é conheci- Se tivermos aqui uma referência às
do até mesmo sobre o blasfemo Antíoco cenas finais da história, devemos recordar
(daí a conclusão de muitos comentaristas que estão descritas nos termos da antiga
de que essa seção é certamente uma pro- ordem mundial. A profecia realmente pre-
fecia preditiva por parte do autor que, por diz o futuro, mas fala também a seu mundo
ser equivocada, nos permite datar a edição contemporâneo nos termos extraídos de
final de todo o livro). O trecho 13.1-3, en- seu próprio tempo.
tretanto, sugere que o fim de toda a história Mesmo que o clímax da iniquidade es-
pode, agora, estar em vista. Neste caso, o teja retratado aqui, seria um erro antecipar
v. 35 pode estar apontando para a futura que o desenlace da história envolverá os
experiência do povo de Deus, não apenas carros e cavaleiros (40). Nem devemos
durante, mas além da época de Antíoco. nos esquecer de que a função de toda essa
1147 DANIEL 12

seção é enfatizar que não importa o quão divina (cf 10.5,6) levanta as mãos aos céus
radicalmente iníquo seja o regente de uma e jura, o que indica a solenidade e seguran-
nação, chegará a seu fim, e não haverá ça daquilo que dirá. Como resposta, depois
quem o socorra (45). de um tempo, dois tempos e metade de um
tempo (cf 7.25) as palavras expressam tanto
12.1-4 As últimas coisas um período geral e prolongado quanto um
O mensageiro angélico promete a Daniel sentido de que esses periodos são conheci-
que o povo de Deus será protegido con- dos e limitados por Deus. Apenas quando o
tra a desolação dos poderes da escuridão, povo de Deus não tiver mais nenhum tipo
como sempre, por Miguel (cf 10.13,21). de defesa o próprio Deus intervirá (7).
Mas, assim como o teste dele e de seus Daniel ficou compreensivelmente con-
companheiros, isso não significará que fuso e procurou uma explicação adicional
estarão protegidos do tempo de angústia sobre o fim destas coisas (8). Significa-
(1; cf 2Tm 3.1-9), mas serão, antes, res- tivamente (tanto para todos os intérpretes
gatados dele. Os propósitos de Deus (cf posteriores quanto para Daniel) ele foi
no livro, v. 1) não falharão; ele guarda seu informado de que a revelação do signifi-
povo "para a salvação preparada para re- cado da visão esperará seu cumprimento
velar-se no último tempo" (1Pe 1.5). O v. histórico; então a divisão entre os sábios
2 aponta para essa ressurreição como a re- e os perversos será feita claramente (10).
versão da maldição da morte (vida eterna, Os primeiros, com o livro de Daniel em
v. 2, contrasta com dormem no pó da terra, mãos, entenderão o verdadeiro significado
cf Gn 2.7,17; 3.19) ou é sua confirmação dos acontecimentos pelos quais estão pas-
(vergonha e horror eterno). Os sábios (cf sando. Os perversos conhecerão somente
11.25) que tiverem sido fieis à palavra de confusão e espanto.
Deus, apesar da vergonha e sofrimento, se- A figura fornece uma explicação final
rão glorificados (3). Essa é a mensagem de (que constrói sobre 11.31). No tempo da
esperança e conforto que fortalecerá os fu- abominação desoladora (11), o tempo de
turos crentes. Por essa razão, Daniel deve angústia (1) durará aproximadamente três
encerrar as palavras e selar o livro (4), não anos e meio, estendendo-se para um mês
no sentido de mantê-las em segredo, mas a e meio a mais (11,12). Isto pode ser enten-
fim preservá-las até que sejam necessárias, dido como um microcosmo de um tempo,
preservando-as para aqueles que buscam a dois tempos e metade de um tempo (7) e es-
palavra de Deus em contraste com os ou- tar relacionado ao sofrimento sob Antíoco
tros, os muitos [que] o esquadrinharão, e o Epifânio. Parece provável, entretanto, que
saber se multiplicará (4; cf Am 8.12). aponte também muito além, para os dias
finais, sendo que esses três anos e meio
12.5-13 A soberania de Deus trazem à conclusão as 70 "semanas", das
e o descanso do servo quais somente 69 e metade de uma semana
A peculiar conclusão volta seu foco outra tinham se cumprido em 9.24-27.
vez para o próprio Daniel (cf 10.2-18). Ele Adequadamente, as palavras finais são
vê outros dois, que possivelmente devem de promessas ao próprio Daniel, já idoso.
ser vistos como testemunhas confirmatórias Ele também deve perseverar até o fim.
(Dt 19.15), um de cada margem do rio. Um Então encontrará seu descanso. Suas obras
deles pergunta algo que por certo já passara continuarão a segui-lo até a sua ressurrei-
pela cabeça de Daniel, e que era uma per- ção (v. 13; cf Ap 14.13).
gunta frequentemente feita pelo angustiado
povo de Deus: Quando se cumprirão estas
maravilhas? (cf 8.13; Ap 6.10). A figura Sinclair B. Ferguson
• :- OSEIAS

INTRODUÇÃO
Oseias foi um dos quatro "profetas escrito- Oseias e sua esposa tiveram três fi-
res" (profetas cujas profecias foram escri- lhos, e a cada um deles foi dado um nome
tas e preservadas para nós na Bíblia) que profético: "Jezreel", "Desfavorecida" e
viveu no oitavo século a.C. Estes quatro "Não-Meu-Povo" (v. comentário de 1.4-
foram (em ordem cronológica aproxima- 9). Juntos, eles falam do juízo de Deus, um
da): Amós e Oseias, que profetizaram a juízo, entretanto, que também é revertido
Israel, o Reino do Norte; Isaías e Miqueias, (1.10-2.1,21-23).
que profetizaram a Judá, o Reino do Sul. O ministério profético de Oseias pa-
Viveram em épocas de relativa abun- rece ter durado mais de trinta anos, como
dância para os dois reinos. Essa riqueza, podemos ver pela lista de reis em 1.1, bem
entretanto, não era compartilhada. Os ricos como por alusões a fatos históricos fei-
e poderosos ficavam cada vez mais ricos tas no livro. Provavelmente recebeu seu
e poderosos à custa dos pobres e indefe- chamado profético por volta de 760 a.c.,
sos. Todos os profetas exortaram contra perto do final do reinado de Jeroboão 11
essa situação, mas com ênfases diferentes. (c. 793-753 a.C.) e nele perseverou por
Enquanto Amós se concentrou na questão cerca de trinta anos. Nesse ano ocorreu
da injustiça social, Oseias ressaltou a ques- a guerra Siro-Efraimita. Síria e Israel (o
tão da infidelidade do povo em relação a Reino do Norte, frequentemente chamado
Deus, por causa de sua idolatria. de Efraim) tentaram forçar Judá a se jun-
tar a eles em uma revolta contra a Assíria.
o profeta Oseias Judá, por sua vez, recusou-se e apelou à
Embora não saibamos muitos detalhes Assíria, que sem maiores dificuldades li-
da vida de Oseias (e.g., de onde veio, ou quidou tanto a Síria como Israel. Pode ser
quem foi seu pai, Beeri), suas circunstân- que Oseias tenha profetizado quase até a
cias foram de extrema importância para época da queda de Samaria, em 722 a.C.
levar a Israel o significado de sua men- Oseias proclamava sua mensagem ver-
sagem. Oseias se casou com Gômer, uma balmente nos locais tradicionalmente des-
mulher que acabou sendo como o povo tinados a reunir o povo. Entre eles estão os
de Israel - infiel. Ela o deixou por outra santuários (e.g., Betel e Gilgal; 4.15) onde
pessoa e, ao fazê-lo, forneceu um retrato o povo se reunia para adoração e oferta de
exato do povo de Israel, que abandonara sacrifícios, e também nas portas da cidade,
a Deus para "ir após outros deuses". A onde os anciãos se reuniam para julgar os
Oseias, entretanto, foi ordenado trazer de litígios. Oseias provavelmente passou al-
volta sua ex-esposa, fornecendo assim um gum tempo na capital, Samaria, retratada
recurso visual poderoso para a mensagem em diversas profecias (e.g., 7.1; 8.5,6).
que Deus tinha para o seu povo: "Você Em vista das referências feitas aJudá
pecou e deve ser punido, mas eu o trarei no livro (e.g., 1.1,7,11; 4.15; 5.10-14), é
de volta para mim e restaurarei nosso rela- possível que Oseias tenha se refugiado por
cionamento" (v. especialmente comentário ali em algum momento de seu ministério.
dos cp. 1 e 3). Isso também explicaria como suas profe-
1149 OSEIAS(

cias vieram a ser preservadas na época em natos. O filho de Jeroboão, Zacarias (não
que o Reino do Norte foi destruído (v. tam- o profeta de Judá), foi assassinado por
bém o quadro na página 949). Salum que, por sua vez, foi assassinado
por Menaém. O filho de Menaém, Pecaías,
o contexto histórico o sucedeu, mas depois de dois anos foi as-
Durante a primeira parte do oitavo século sassinado por Peca que, por seu turno, foi
a.c., as grandes potências do mundo então assassinado por Oseias. (Este nome hebrai-
conhecido exerciam uma influência me- co é escrito da mesma forma que o nome
nor do que já haviam exercido: Assíria e do profeta, mas são claramente pessoas
Babilônia tinham seus interesses voltados distintas.) A passagem de Oseias 1.1 não
para outras regiões, e o Egito estava relati- faz referência a esses reis, embora tenham
vamente fraco (v. quadro da linha do tempo sido contemporâneos dos reis de Judá ali
na página 44). Isso permitiu que os estados mencionados. Isso se deve à pouca impor-
menores da Palestina se expandissem e se tância de cada um deles.
engajassem livremente no comércio. De Os reis de Judá foram Azarias (também
acordo com 2Reis 14.23-29, Jeroboão conhecido como Uzias; c.791-740 a.Ci),
II foi um péssimo rei; conseguiu grandes Jotão (c.750-732 a.C}, Acaz (c.744-
êxitos militares, mas causou sofrimento ao 716 a.c.) e Ezequias (c.716-687 a.c.).
povo de Israel. Foi o quarto e último da di- Observe que as datas se sobrepõem umas
nastia de Jeú, que fora ungido rei por um às outras. Isso se deve ao fato de esses reis
representante do profeta Eliseu (2Rs 9.1- terem adotado um sistema de corregência:
10) com o propósito de destruir a linhagem o filho do rei era nomeado corre gente antes
de Acabe. Jeú, então, matou a Jorão (2Rs da morte do rei. Isso servia para tomar a
9.24), que estava se recuperando de feri- sucessão mais tranquila e menos vulnerá-
mentos em Jezreel, e foi adiante com as vel a levantes e tentativas de golpes.
mortes, massacrando o restante da família O contexto religioso em que Oseias
de Jorão (2Rs 10.1-8), também em Jezreel. profetizou está refletido em muitas partes
Depois que pegou gosto por sangue, evi- do livro. O povo de Israel, sob a liderança
dentemente foi muito além do que Deus de Josué, tinha conquistado a terra de Ca-
havia ordenado. Além de matar "os res- naã, mas havia falhado em destruir os po-
tantes da casa de Acabe", matou também vos já ali estabelecidos. Esses povos, seus
"todos os seus grandes", "os seus conhe- descendentes e sua religião continuaram
cidos" e "os seus sacerdotes" (2Rs 10.11) a existir. Os cananeus adoravam a mui-
e continuou, matando dessa vez adorado- tos deuses, sendo Baal o principal dentre
res que haviam lotado o templo de Baal todos. Baal era considerado o deus que
(2Rs 10.18-28). A aprovação que recebe trazia fertilidade à terra. De acordo com
em 2Reis 10.30 é modificada severamen- um mito muito difundido, ele foi assassi-
te pela referência de Oseias ao "sangue de nado por Mot, deus do verão e da seca,
Jezreel", bem como pela declaração de que mas ressuscitou dos mortos após a deusa
"não se apartou Jeú de seguir os pecados Anate vingar seu assassinato. Essa morte
de Jeroboão, filho de Nebate, que fez pecar e ressurreição refletia o ciclo anual das es-
a Israel" (2Rs 10.29). Jeú foi sucedido por tações. A religião dos cananeus se destina-
seu filho Jeoacaz e por seu neto Jeoás. O va a dar fertilidade à terra; não dava valor
terceiro rei depois de Jeú foi Jeroboão 11, elevado à moral. Nos templos, os homens
acima mencionado, filho de Jeoás. podiam "adorar" a Baal e estimulá-lo nos
A passagem de 2Reis 15 conta que, atos de fertilidade ao ter relação sexual
quando Jeroboão morreu (753 a.C}, houve com as prostitutas "cultuais"que residiam
uma sucessão de breves reinados e assassi- nesses templos.
OSElAS 1150

Esperava-se que Israel adorasse a um por um tempo de privação (2.3,6,9), mas


único Deus, "o SENHOR", que não tinha finalmente retomará a Deus e encontrará
nenhuma deusa como companheira. Ele restauração.
não podia ser manipulado por rituais, mas A aliança de Deus com Israel é a base
antes exigia rigorosa obediência. As duas da mensagem de Oseias. Deus escolheu
religiões eram claramente incompatíveis, Abraão e seus descendentes para ser o
mas o povo de Israel tentou misturá-las seu povo. Esse povo entrou em um rela-
(lRs 18.21). cionamento exclusivo com ele, algo que
é expresso por diversas vezes na Bíblia
o texto de Oseias pelas palavras: "Eles serão o meu povo
O texto do livro de Oseias é um dos e eu serei o seu Deus" (e.g., Gn 17.7,8;
mais difíceis do AT. Parece ter sofrido Ir 31.31-33; Zc 8.8). Em Oseias a palavra
muito durante o processo em que foi co- "aliança" ocorre somente em 2.18, 6.7 e
piado por várias gerações de escribas. 8.1, mas são feitas muitas alusões a ela.
Frequentemente, portanto, não podemos O nome do terceiro filho de Oseias, "Não-
ter certeza do significado detalhado de Meu-Povo", carrega em si o significado
uma determinada passagem. Não obstan- do juízo mais sério possível: a quebra da
te, o seu ensinamento geral raramente dei- aliança e a rejeição de Israel como povo
xa dúvidas; basta simplesmente que nos de Deus. Oseias se refere com frequên-
contentemos com uma precisão menor que cia a fatos recentes da história da nação,
a desejável. quando Deus libertou Israel do Egito e fez
deles o seu povo (e.g., 2.15; 9.10; 11.1-4).
A teologia de Oseias É interessante que ele não faz referência
A mensagem básica de Oseias é que Deus aos fatos elementares acerca da libertação
ama a Israel. Entretanto, o povo de Israel (o êxodo, a travessia do mar Vermelho
pecou tão gravemente que ele é forçado etc.), mas antes às implicações pessoais
a puni-lo. Todavia, Deus não desiste de desses fatos.
seu povo e o restaurará para si novamen- Isso leva a uma declaração necessá-
te. Oseias emprega um grande número de ria acerca da singularidade "do SENHOR".
imagens de grande impacto a fim de per- Somente ele é Deus, e ele tem o poder de
mitir que seus ouvintes percebam o que ele ferir ou restaurar. Somente ele entrou em
está dizendo. aliança com Israel. Portanto, seria sábio e
O profeta ressalta tanto quanto possí- correto que Israel se comprometesse so-
vel que há somente um Deus para Israel: mente com ele. As consequências de se
"O SENHOR". Não há de forma alguma lu- afastar de Deus são graves, mas há um
gar para outros deuses. O povo de Israel gracioso convite para que o povo retome
começara a crer que os cananeus estavam ao Deus amoroso que primeiro os esco-
certos a respeito de Baal e a fertilidade da lheu. Este é claramente o Deus do Novo
terra. "O SENHOR" pode ter feito algumas Testamento bem como do Antigo.
coisas por eles, como libertá-los do Egito, O profeta faz uso de muitas metáforas
mas o povo começava a achar que talvez e comparações a fim de levar sua mensa-
fosse uma boa ideia manter um bom rela- gem ao povo. Deus é retratado como um
cionamento com o deus da terra também marido (e Israel como sua esposa; 2.2-
(2.5). Oseias destaca a gravidade desse 20); como um pai (e Israel como seu filho;
erro (2.8): por causa dele, Deus remove- 11.1-11), como aquele que cura (que cura
rá a bênção que ele lhes dera, e fará com o enfermo Israel; 5.13; 6.1,2; 7.1; 14.4);
que Israel perceba quem é a verdadeira e como um passarinheiro (e Israel como
fonte daquelas bênçãos. Israel passará os pássaros capturados em sua rede; 7.12;
9.11). É comparado a um leão (5.14), a um
1151

Leituras adicionais
OSEIAS/
.
leopardo e a uma ursa (13.7,8); ao orva- KIONER, F. D. A mensagem de Oseias.
lho (14.5), à alva e à chuva serôdia (6.3), ABU,1993.
a um cipreste verde (14.8) e mesmo à tra- CRAIGIE, P. C. Twelve prophets. v. 1. DSR
ça e à podridão (5.l2)! Outras imagens Westminster/John Knox Press, 1984.
usadas para Israel são a de uma novilha BOICE, J. M. The minor prophets. 2 v.
(4.16; 10.11); a de uma videira e do vinho Zondervan, 1983, 1986.
(10.1; 14.7); a de uvas e figos (9.10); a HUBBARD, D. A. Oseias: introdução e co-
de um lírio, uma oliveira e um cedro do mentário. SCR Vida Nova, 1993.
Líbano (14.5,6); a de um insensato filho MAYS,J. L. Hosea. OTL. SCM/Westminster/
que não quer nascer (13.13); a de um pão John Knox Press, 1969.
que não foi virado (7.8); a de um arco en- MCCOMISKEY, T. Hosea em McCOMISKEY,
ganoso (7.16); a imagem de uma nuvem T., ed. The minor prophets. v. 1. Baker
de manhã, do orvalho que cedo passa, da Book House, 1992.
palha que se lança da eira e da fumaça que STUART, D. Hosea - Jonah. WBC. Word,
sai por uma janela (13.3). 1987.

ESBOÇO
O livro de Oseias está mais para uma antologia de suas profecias do que um livro de tema
contínuo do começo ao fim. Essas profecias foram agrupadas em duas partes principais.
Nos cp. 1-3, encontramos detalhes biográficos (e autobiográficos) a respeito do casa-
mento de Oseias, acompanhados de profecias relacionadas a seu significado para Israel,
como a noiva do Senhor.
Nos cp. 4--14, há um padrão alternado de juízo e de esperança. Oseias nos dá uma
imagem muito intensa do esforço despendido pelo próprio Deus para restaurar seu povo
infiel e trazê-lo de volta para si. O livro termina com um convite gracioso, uma promessa
a Israel, e uma nota ao leitor para que aprenda com tudo o que foi dito (cf as palavras de
Jesus em Mc 4.9,23; 7.16).

1.1 Título
1.2-3.5 O casamento de Oseias e sua mensagem
1.2,3 Oseias se casa em obediência às instruções de Deus.
1.4-9 Três filhos com nomes proféticos.
1.10-2.1 Promessa posterior ao juízo: um vislumbre de um futuro
mais brilhante
2.2-13 Profecia do juizo: o castigo de Israel, a esposa infiel
2.14-23 Promessa que seguirá o juízo: cortejando de volta a
esposa infiel
3.1-5 Oseias toma "uma mulher" para ser sua esposa
novamente

4.1-14.9 Profecias sobre o juízo e as promessas de restauração


4.1-3 A contenda do Senhor com Israel
4.4-9 A lei é rejeitada: os sacerdotes são especialmente
culpados
4.10-19 O espírito de prostituição na adoração
OSEIAS 1 1152

5.1-7 Os sacerdotes, o povo e a realeza condenados


5.8-12 Efraim/Israel serão assolados pelo inimigo
5.13-15 A Assíria não pode ajudar a Israel
6.1-6 O amor inconstante de Israel e o que Deus requer
6.7-11 a Israel e Judá foram infiéis à aliança
6.11b-7.2 Deus quer curar, mas o pecado de Israel não o permite
7.3-12 O pecado de Israel é descrito por meio de várias
metáforas
7.13-16 Eles se recusam a voltar para o Senhor
8.1-14 Semeando vento e colhendo tempestade
9.1-6 Juízo: as festas religiosas acabarão
9.7-9 Os servos de Deus são ridicularizados
9.10-17 Mais lições da história: a raiz do pecado de Israel
10.1-10 Agricultura, religião errada e reis: um juízo e uma escolha
10.11-15 Lavrando, semeando e lutando: metáforas sobre o juízo
11.1-11 Israel como filho amado de Deus
11.12-12.8 A falsidade de Israel ilustrada e condenada
12.9-14 Trazido do Egito para ser julgado
13.1-16 Mais imagens do juízo
14.1-8 Um apelo ao arrependimento e uma promessa de bênção
14.9 Um provérbio final de sabedoria

COMENTÁRIO sexual ilícita). A tradução na ARA é pra-


ticamente literal no v. 2: Vai, toma uma
1.1 Título mulher de prostituições, e terás filhos de
Ver Introdução (O profeta Oseias). Esse prostituição; porque a terra se prostituiu,
versículo situa-se como título ou cabeça- desviando-se do SENHOR". O significado di-
lho sobre todo o livro. Não deve ser enten- reto seria "case-se com uma prostituta/for-
dido de maneira muito literal, pois clara- nicadora...", mas é improvável que Oseias
mente inclui alguma narrativa que coloca fosse ordenado a fazer algo tão contrário
as presentes profecias no devido contexto à lei (v., e.g., Lv 21.13-15; Dt 22.13-21).
(cp. I; 3). Talvez, portanto, isso pudesse significar
"case-se com alguém que venha de um
1.2-3.5 O casamento de contexto onde a prostituição seja normal",
Oseias e sua mensagem ou (mais provável) "case-se com alguém
Este comentário adota o ponto de vista tra- que se tomará uma prostituta". Em outras
dicional: Oseias casou-se com uma mulher palavras, Oséias, olhando em retrospecto
que demonstrou ser infiel. Ela o abando- para seu casamento arruinado, vê como
nou, mas Oseias a trouxe de volta. Ver no vontade de Deus que ele tivesse casado
comentário de 3.1-5 a defesa deste ponto com tal pessoa.
de vista. Filhos de prostituição (fornicação)
pode descrever simplesmente a situação
1.2,3 Oseias se casa em obediência em que nasceram (isto é, filhos que cres-
às instruções de Deus ceriam entre prostitutas/fornicadoras etc.),
Há uma grande ênfase nesses versículos ou pode significar "nascido de uma mulher
em uma palavra que significa "prosti- que é prostituta/fornicadora". Alguns pen-
tuição" ou "fornicação" (isto é, relação sam que Oseias não era o pai, mas isso é
1153 OSEIAS1 - : :

improvável. Pelo menos podemos ter cer- isto é, esse significado pode ser negativo
teza de que o primeiro filho foi de Oseias ou positivo (1.11; 2.22,23); além disso, soa
(o v. 3 diz que Gômer lhe deu um filho). quase como "Israel" na língua hebraica, o
Como em muitos trechos incertos, que é consistente com o gosto dos autores
podemos estar certos dos fatos básicos: hebreus por trocadilhos.
Oseias casou com alguém que agiu de for- "Lo-Ruama" (ARe), Desfavorecida, é
ma imoral, pelo menos depois do casamen- o nome da filha de Gômer (que possivel-
to. Isso é importante para a analogia feita mente não é filha de Oseias, uma vez que
com o relacionamento entre Israel e Deus o texto não diz "deu-lhe uma filha", mas
(3b), embora a natureza exata da imorali- não podemos estar certos disso). Ruama é
dade não seja importante. A experiência de transliteração de um termo hebraico rela-
Oseias deveria lhe dar uma compreensão cionado à palavra "útero", e indica o tipo
mais profunda do amor de Deus por Israel, de compaixão afetuosa que uma mãe tem
e uma maneira mais eficaz de transmitir para com seu filho. O AT frequentemente
isso a seus conterrâneos do que quaisquer se refere a Deus dessa maneira (e.g., 14.3;
palavras em si mesmas poderiam ter feito. Pv 28.13), mas aqui é anunciado que Deus
já não tratará Israel assim.
1.4-9 Três filhos com O nome do terceiro filho, "Lo-Ami"
nomes proféticos (ARe), Não-Meu-Povo, significa a mais de-
Gômer, a esposa de Oseias, dera à luz três vastadora palavra de juízo. Israel já não é
filhos: um filho, uma filha e, então, outro o povo eleito de Deus. Os eventos da his-
filho. O primeiro foi chamado Jezreel, o tória de sua redenção - o êxodo do Egito
nome de um vale entre as montanhas de (12.9,13), a travessia do mar Vermelho, a
Samaria e da Galileia, um famoso campo jornada pelo deserto, a conquista de Canaã
de batalha em Israel. O nome é um lem- - tudo isso é negado (cf também os tex-
brete do sangue de Jezreel (v. Introdução), tos em que uma "volta para o Egito" é ci-
uma expressão que frequentemente signi- tada, e.g., 8.13; 9.3,6; 11.5). Naturalmente,
fica matança ou homicídio. Houve mais ainda está ao alcance das pessoas a possi-
de um massacre nesse lugar. Embora Jeú bilidade de voltarem a ser fiéis ao Senhor
tivesse recebido autorização para extermi- e encontrarem aceitação (como muitos
nar a casa de Acabe, ele foi muito além. estrangeiros fizeram durante toda a histó-
Seus motivos foram influenciados por in- ria de Israel, inclusive Rute e Raabe). E o
teresse próprio e ele, em última análise, caminho de volta a Deus ainda está aberto,
falhou na missão de controlar a adoração como veremos (11.8,9; 14.1-7).
a Baal. É salutar observar que a promessa
de 2Reis 10.30 não impediu Jeú de incor- 1.10-2.1 Promessa posterior
rer no castigo e juízo de Deus. Ser um ins- ao juízo: um vislumbre de um
trumento do juízo divino é algo que deve futuro mais brilhante
inspirar temor. À primeira vista pode parecer prematuro
O juízo sobre Israel foi que seu povo mencionar a esperança além do juízo a esta
seria derrotado no lugar onde o pecado fora altura da profecia. Oseias ainda tem muitos
cometido; o juízo é proporcional ao crime. juízos a anunciar (2.1-13 e a maior parte
O arco de Israel significa o poderio militar dos cp. 4-14!). Entretanto, o livro é orga-
da nação. Jezreel é um nome especialmente nizado de modo a fornecer um esboço de
útil, pois significa um exemplo particular todo o plano de Deus nos cp. 1-3 nos ter-
do pecado de Israel que representa o peca- mos da metáfora marido-esposa, antes de
do de toda a nação; o nome tem o significa- continuar com profecias mais detalhadas.
do de "Deus dispersa" ou "Deus semeia", Além disso, os três primeiros capítulos
>
OSElAS2

estão arranjados como um sanduíche com


1154

liderança (e.g., Me 15.2,26 e paralelos;


três fatias de pão e duas camadas de re- Jo 1.49; At 17.7).
cheio: narrativa (1.2-9); esperança (1.10- c. A igreja une os povos de todas as na-
12.1); juízo (2.2-13); esperança (2.14-23); ções, inclusive os povos de Israel e Judá
narrativa (3.1-5). (ver como o livro de Oseias é aplicado a
Essa estrutura ajuda a alcançar pelo Rm 9.25,26 e em 1Pe 2.10).
menos três coisas. Primeiro, mostra que o a dia de Jezreel (11) significa tanto
plano de Deus é unificado; ele não é um "o dia em que a punição pelo pecado em
oportunista que fica observando o que vai Jezreel é revertida" como "o dia da disper-
acontecer. Segundo, mostra o movimen- são de Deus" (isto é, o dia em que Deus
to da ação do começo ao fim, em ordem não mais espalhará seu povo entre as na-
cronológica, da harmonia à desarmonia e a ções, mas sim a semente para o futuro).
volta (por meio do ponto de virada em 2.7b) Oseias 2.1 reverte os outros dois no-
da harmonia entre "o SENHOR" e Israel. mes, e assim conclui a profecia. Favor: a
Terceiro, mostra como os eventos em tomo NVI traz: "Minhas amadas"; é a tradução
do casamento de Oseias estão ligados à sua de uma única palavra no hebraico, "favor
mensagem sobre Deus e seu povo. demonstrado". Os plurais irmãos e irmãs
a número dosfilhos de Israel será como deixam claro que isso se refere a todo o
a areia do mar... (lO) lembra a promessa povo de Israel, e não apenas ao filho e à
feita a Abraão (Gn 22.17; 32.12) e é, por- filha de Oseias.
tanto, uma maneira indireta de dizer que a
aliança será restaurada. No lugar onde tan- 2.2-13 Profecia do juízo: o castigo
to pode se referir a um local onde os nomes de Israel, a esposa infiel
eram citados publicamente, quanto sim- Os v. 2,3 são dirigidos aos filhos de Oseias.
plesmente significar "em lugar de". Os imperativos formam um abrupto novo
A promessa de que Israel e Judá vol- começo, e o conteúdo da primeira frase
tarão a se unir ocorre em diversos lu- pretende provocar um choque no leitor ou
gares no AT (e.g., Is 11.12,13; Jr 23.5-8; no ouvinte. Esta é a primeira vez que de-
Ez 37.15-28). É dificil ver como essa pro- paramos com uma referência à ruptura no
fecia se cumpriu historicamente, uma vez relacionamento entre Oseias e Gômer, Fica
que Israel, o Reino do Norte, deixou de ser claro, com a continuação do discurso, que
uma nação em 722 a.C., quando a capi- não é tanto Gômer que se tem em mente,
tal Samaria caiu nas mãos dos assírios. O mas o povo de Israel, rejeitado agora como
povo foi exilado, e a população foi espa- esposa de Deus. Essa imagem ousada im-
lhada por vastas áreas do Império Assírio. pressiona quando recordamos a religião
É possível, entretanto, ver o cumprimento dos povos vizinhos de Israel, pois se ima-
dessa profecia de várias maneiras: ginava que Baal tivesse uma deusa como
a. O povo do Reino do Norte manteve cônjuge, Anate. Na verdade, Oseias diz
sua identidade e continuou a adorar "[a]o que Deus tem uma companheira, Israel. O
SENHOR". Muitos vieram a se juntar aJudá, casamento é, naturalmente, metafórico.
e há referências em livros posteriores do A palavra traduzida por repreendei (2)
AT nos quais Judá e Israel aparecem lado é a mesma usada para "contender" nos pro-
a lado (e.g., 2Cr 34.21; 35.18; Jr 50.33; cessos judiciais. Boa parte das imagens de
Zc 8.13; 11.14). Oseias reflete as disputas legais que ocor-
b. Quando Jesus veio como Messias ele riam nos portões da cidade.
era o rei de Israel, uma só cabeça, como "Que ela retire do rosto o sinal de adúl-
aparece em 1.11b, e todo o verdadeiro tera [NVI; lit. prostituições, ARA] [00'] e [...]
povo de Deus deveria estar unido sob sua a infidelidade [lit. adultérios]" pode muito
1155 OSEIA52(
11

bem se referir aos ornamentos específicos Em outras palavras, os outros deuses não
associados às prostitutas (cf v. 13). O sen- podem sustentar Israel nem impedir que
tido, então, seria: "Que ela retire do rosto seja punida pelo Senhor.
o sinal de infidelidade, do contrário, eu a Os v. 11-13 voltam seu foco para as
deixarei nua" (2b,3a). festas e festivais religiosos de Israel que
O v. 3b implica que Israel voltará ao Deus irá interromper. Isso poderia ser feito
deserto, ao tempo antes de Deus ter cum- por uma interrupção devido à guerra, ou
prido sua promessa de fazer deles seu pró- pelo racionamento de alimento e bebida
prio povo, em sua própria terra. Seus filhos para o sacrificio e a celebração. Ambos
(4) são cada um dos membros do povo de são considerados aqui (12). O v. 13 encer-
Israel (v. também comentário de 1.2). ra essa seção do juízo com mais uma refe-
Israel se comportou como uma prostitu- rência à prostituição espiritual e fisica (cf
ta (5; sua mãe se prostituiu; "foi infiel", na v.2b,7,8).
NVI, não reflete a intensidade do termo). A
implicação é que Israel teve muitos aman- 2. 14-23 Promessa que
tes. Isto se refere tanto à prostituição de seguirá o juízo: cortejando
Gômer com outros homens, quanto às ten- de volta a esposa infiel
tativas de Israel de obter o favor de outros Nos versículos anteriores, Deus aplicou
deuses. Em ambos os casos eles imagina- seu juízo ao povo infiel, a fim de trazê-los
vam, de forma totalmente equivocada, que à razão para que se voltassem a ele. Aqui a
as coisas boas de que desfrutavam vinham figura é a de um amante que atrai de volta a
deles. A resposta de Deus para isso não sua amada, falando de maneira carinhosa,
foi destruir Israel imediatamente, mas dar presenteando-a (14,15,22) e protegendo-a
início a um programa de educação (6,7a). dos ataques de animais selvagens ou de
Uma série de imagens mostra que Israel seres humanos (18). É um novo começo:
experimentara barreiras de vários tipos Israel e seu marido no deserto outra vez,
(espinhos; muro contra ela); irá atrás de sem distrações, casados para sempre [...]
seus amantes e não os alcançará, procura- em justiça, e em juízo, e em benignidade,
rá, mas não os encontrará. Isso traz o povo e em misericórdias. E Israel conhecerá
ao ponto de virada nesse processo (7b): ao SENHOR. Essa palavra frequentemente
ela percebe que estava bem melhor com carrega um sentido de intimidade, e pode
seu primeiro marido, "o SENHOR", e volta incluir o "reconhecimento" (cf 6.3,6; v.
para ele. É claro, a tribulação alcança tan- também comentário de 4.6; 13.4,5).
to o justo quanto o ímpio (cf SI 44.17-22; "Eu responderei" (21, NVI e ARC; ARA
10 16.32,33), mas tanto uma nação quanto não é clara aqui: "serei obsequioso") deve
um indivíduo que estiverem passando por ser entendido à luz da resposta de Israel a
sofrimento e fracasso precisam perguntar Deus, no v. 15b, em que o mesmo verbo
se Deus não está tentando lhes dizer algu- é usado e deveria ser traduzido por: "Ali
ma coisa (cf Am 4.6-11). ela responderá..." (e não "cantará", ARC;
Deste ponto em diante, nós encontra- "será ela obsequiosa" [ARA] também soa
mos um sumário do material mencionado estranho). De fato, os v. 16-20 poderiam
anteriormente. Ela, pois, não soube que foi ser postos entre parênteses e considerados
Deus quem lhe deu o alimento e a bebida, e como um desenvolvimento da resposta de
até mesmo os metais preciosos que foram Israel a Deus. É dificil traduzi-los literal-
usados para fazer imagens para Baal (8). mente, mas significam a resposta graciosa
Portanto, Deus removerá esses presentes de Deus falando aos céus que haviam sido
(cf v. 5) e exporá sua nudez (cf v. 3), e fechados para que não enviassem chuva
ninguém livrará o povo de sua mão (10). sobre a terra. Isso estabelece uma cadeia:
11
li. OSEIAS 3 1156
.11

os céus mandam a chuva para a terra, que com outro. É possível que Gômer tenha se
então produz o trigo, o vinho e o óleo, que casado novamente, mas é mais provável
por sua vez satisfazem a Jezreel (Israel que seu marido legítimo (e que tinha di-
representado pelo nome "Deus semeia"). reito tanto ao divórcio quanto a repudiá-la)
O trocadilho continua no v. 23: semearei ainda fosse Oseias.
["plantarei", NVI] Israel. Todos os nomes Em 1.2 foi dito: "Vai, toma ... ", mas
dos filhos de Oseias são repetidos e agora aqui se diz Vai [...] ama... Isso enfatiza o
ganham um significado positivo. O mais amor de Deus para com o povo de Israel,
sério juízo, "Não-Meu-Povo", se toma Tu embora eles olhem para outros deuses e
és o meu povo, e a promessa da aliança é amem - mas o que eles amam? Bolos de
completada pela resposta de Israel: Tu és o passas! Esses bolos provavelmente eram
meu Deus! usados em rituais cananeus. Eles são uma
demonstração de quão carnal e indigna é a
3.1-5 Oseias toma "uma mulher" perspectiva de Israel.
para ser sua esposa novamente Oseias compra de volta sua "antiga"
No cp. 3 o próprio Oseias nos conta a (mas provavelmente ainda não legalmente
história de como comprou sua esposa de divorciada) esposa. Talvez ela tivesse se
volta. Alguns estudiosos consideram isso tomado uma prostituta do templo, e assim
um relato dos mesmos eventos narrados na tinha de ser comprada de volta. O preço é
terceira pessoa em 1.2,3. A palavra outra curioso, pois não era normal o pagamen-
vez no v. I exclui esse ponto de vista. Além to ser feito por meio de uma combinação
disso, os fatos são completamente diferen- de prata e de grãos. Isso pode indicar que
tes. Assim nós devemos considerar esta Oseias teve dificuldade em levantar o di-
última como uma ação posterior. Desde a nheiro, o que seria um retrato do custo da
narrativa no cp. I, Gômer havia abando- redenção para Israel. Nós não sabemos exa-
nado Oseias e de algum modo se tomara tamente o valor de um ômer e de uma peça,
escrava, pois Oseias teve de comprá-la de mas poderia ser aproximadamente quinze
volta (2). Esta é uma imagem de Deus e de siclos de prata, perfazendo um total equi-
Israel, seu povo (4,5). valente a trinta siclos, o preço pago como
O v. I é ambíguo. Literalmente ele diz compensação pela perda de um escravo
tanto: "Disse-me outra vez o Senhor: 'Vai, (Êx 21.32), ou o valor de redenção de uma
ama uma mulher' " quanto: "Disse-me o mulher consagrada ao Senhor (Lv 27.4).
Senhor: "Outra vez vai, ama uma mu- Por um tempo limitado (muitos dias,
lher..."'. Não há diferença real no signifi- v. 3; depois, v. 5), Gômer deve passar por
cado. Mas por que diz uma mulher em vez um período de disciplina, que corresponde
de "sua mulher" (como traz a NVI)? A res- ao período no qual o povo de Israel sofrerá
posta pode ser encontrada em 2.2; Gômer privação (4). O sentido do v. 3 é um tanto
não tem nenhum direito de ser sua esposa, obscuro, mas se considerarmos o signi-
e o povo de Israel não têm nenhum direi- ficado como um todo, devemos entender
to em relação a Deus. Eles "não são o seu que Gômer deve "viver para Oseias", isto
povo", o que significa, usando a imagem é, pertencer somente a ele; não deve agir
alternativa, que Israel não é sua esposa. como prostituta. Nem deve ter relaciona-
Amada de seu amigo pode significar sim- mento sexual com outro homem, como traz
plesmente outro homem, ou um "amante" a tradução literal: não serás de outro ho-
(cf NTLH), aquele que mantém um relacio- mem - incluindo o próprio Oseias. Oseias
namento ilícito com a esposa de alguém. agirá da mesma maneira em relação a ela:
Adúltera significa que era casada com um assim também eu esperarei por ti. Essa
homem, mas se relacionou sexualmente abstinência temporária representa uma
1157
..
OSEIAS4 - : .

época em que o povo de Israel será privado um debate com Israel. Talvez devamos
de várias coisas, boas e más. Eles ficarão pensar num processo legal, como os que se
sem um líder, rei ou príncipe, e impossi- passavam nas portas da cidade. Podemos
bilitados até mesmo de oferecer sacrificio. imaginar Oseias se aproximando dos an-
Tudo isso são coisas boas, e a privação ciãos que ali se assentavam para julgar, e
deve ser temporária com a finalidade de anunciando que o próprio Deus tem algo
castigar Israel. A pedra ou a coluna era as- para colocar em discussão. Os habitantes
sociada à adoração dos cananeus (embora da terra são acusados de duas coisas.
Jacó tenha, certa vez, erguido uma coluna Por um lado, faltam-lhes as qualidades
como recordação de sua visão; Gn 28.18). positivas necessárias que Deus requer de
Era um claro sinal de idolatria religiosa seu povo. A verdade (que inclui tanto dizer
e por isso seria removida. O mesmo vale a verdade quanto agir com fidelidade), o
para os ídolos do lar (lit. "terafins", ARe). amor constante (a qualidade que expressa
Evidentemente havia alguns destes na casa acima de tudo a maneira como Deus age
de Davi (lSm 19.13,16), mas geralmente em relação a seu povo na aliança, e o que
eram considerados pagãos (e.g., 2Rs 23.24). ele exige em troca; v. especialmente 6.6;
Isso deixa um item sem explicação: a estola Dt 5.10; Dt 7.9,12) e o conhecimento de
sacerdotal. A palavra se refere tanto a uma Deus (v. comentário de 13.4,5). Por outro
vestimenta sacerdotal de linho, o que é per- lado, o povo exibe características negati-
feitamente aceitável (Êx 28.6-14), quanto vas que Deus tanto odeia. "Maldição" (NVI;
a algum tipo de objeto de metal, que não perjurar, ARA) - no sentido de procurar
podemos aceitar (Jz 8.27; 17.5). prejudicar outros ao proferir alguma mal-
O significado geral do v. 4 é que o bem dição contra eles; cf Juízes 17.2 - ou per-
e o mal serão afastados quando Israel for júrio (cf 10.4, ''juramentos falsos"), men-
submetido a um tempo de purificação. Mas tir, matar,furtar e adulterar. O que os Dez
o resultado disso é dado pelo v. 5: Depois, Mandamentos requerem com respeito às
tornarão os filhos de Israel, e buscarão ao outras pessoas está sendo ostensivamente
SENHOR, seu Deus, e a Davi, seu rei e se- negligenciado (Êx 20.13-16).
rão abençoados. A referência a Davi, sig- O v. 3 fala do juízo de Deus, mas é
nificando a linha de seus descendentes, é também, em parte, um vívido retrato poé-
surpreendente, pois Oseias profetizava ao tico de uma terra sob a maldição de Deus.
Reino do Norte, Israel, que tinha deixado Quando Israel for restaurado, a terra e suas
de seguir os descendentes de Davi na épo- criaturas vivas também serão abençoadas
ca da morte de Salomão, quase duzentos (2.18,21).
anos antes (IRs 12). Esta é uma indicação
de uma profecia de longo alcance sobre a 4.4-9 A lei rejeitada: os sacerdotes
reunificação dos dois reinos, que só pode são especialmente culpados
ser vista como cumprida em Jesus Cristo, o O v. 4 é extremamente dificil de entender,
rei, o Filho de Davi (cf 1.10-2.1). mas a essência da seção é a condenação
dos sacerdotes, que deveriam ter observa-
do e ensinado a lei. Wolff assim traduz esse
4.1-14.9 Profecias sobre
o juízo e as promessas versículo: "Não, não somente qualquer um
de restauração (deve ser acusado), nem somente qualquer
um (reprovado). Minha acusação é contra
4. 1-3 A contenda do ti, ó Sacerdote"; e, embora essa tradução
Senhor com Israel seja incerta, ela aponta na direção correta.
A linguagem utilizada aqui sugere que Os sacerdotes ignoram a lei de Deus
Deus participou de uma discussão ou de confiada a eles, e consequentemente não
OSEIAS 4 1158


andam com firmeza por seus caminhos, mas em vez disso procuram as prostitutas
mas tropeçam (5), como fazem os demais - tanto as comuns como as cultuais. Na
líderes religiosos, os profetas. Eles rejeita- religião dos cananeus, pensava-se que a
ram a própria honra (7), a lei (6) que lhes prostituição cultuai era um meio de asse-
dizia como agradar a Deus, em troca de ri- gurar a fertilidade para a terra. É provável
tuais pagãos imorais e repugnantes. Agora que a noção de "magia imitativa" se en-
eles ganham a vida satisfazendo o dese- contre por trás da prática: a relação sexual
jo do povo de adorar outros deuses (8). com "uma prostituta cultuai" produzia um
Porque os sacerdotes não ensinam a lei, o tipo de ação semelhante entre os deuses da
povo não a conhece e está sendo destruí- natureza, e resultava na produção de frutos
do, porque lhe falta o conhecimento (6a; pela terra.
com cf v.I). O resultado é a punição para a Hoje não há nenhuma prostituta cultuai
nação (tua mãe, v. 5), para os sacerdotes e em qualquer dos lugares em que eu estive,
também para o povo (9). mas há muitos que praticam a religião de
modo a satisfazer aos próprios desejos, e
4.10-19 O espírito de não para glorificar a Deus. Seria uma boa
prostituição na adoração ideia nos perguntarmos, de tempo em tem-
O v. 10 dá continuidade à passagem ante- po, quais são as coisas em que realmente
rior, ao esboçar a punição de maneira mais nos deleitamos na fé cristã. Essas coisas
detalhada. O povo nunca terá o bastante incluem experiências emocionais, poder,
para comer, e sua prostituição não lhe tra- prazer em estar certo, segurança, respeito,
rá nenhum tipo de crescimento. Os filhos companhia de pessoas fisicamente atraen-
sempre foram considerados bênçãos, e uma tes? Salmos 139.23,24 se toma uma oração
das promessas a Abraão era fazer de seus bastante útil!
descendentes uma grande multidão (e.g., O v. 15 é um aparte para Judá; uma
Gn 15.5). As relações sexuais com muitas advertência para que não sigam o exem-
prostitutas não produziriam o resultado al- plo de Israel. Isso certamente foi relevan-
cançado por Deus por meio de um casal de te para os leitores das profecias de Oseias
idosos (Rm 4.18-21)! Deus continua com em Judá, nos períodos que seguiram o seu
a descrição de sua insensatez: eles abusam ministério.
da bebida (10) e perdem seus sentidos; Gilgal era um dos principais lugares sa-
buscam se aconselhar com objetos de ma- grados de Israel. Bete-Aven ("casa da ini-
deira (12). São levados por um entusiasmo quidade") é provavelmente uma corruptela
selvagem para a adoração pagã, e se envol- deliberada do nome do principal lugar sa-
vem nos sacrifícios e nas ofertas queimadas grado, Betel, que significa "casa de Deus".
[inteiras] nos altos montes, aqueles santuá- O profeta incita o povo a não frequentar
rios que não foram autorizados pela lei e esses lugares pervertidos de adoração, e a
nos quais acontece toda a sorte de práticas não fazer juramentos descuidados, usando
corrompidas. Eles oferecerão sacrifício em o nome de Deus (15b). Segue uma série de
qualquer lugar, sob qualquer árvore, desde sucessivas imagens diferentes. O povo de
que forneça boa sombra (13a)! Israel é descrito como muito rebelde, recu-
Consequentemente, as filhas daqueles sando-se a responder ao SENHOR que gos-
que se entregam a essas coisas irão pelo taria de restaurá-lo (16); são idólatras, isto
mesmo caminho. Aqui o foco está na pros- é, como prostitutas que se agarram a suas
tituição física ou na promiscuidade sexual, práticas vergonhosas, mesmo quando está
e no adultério. As mulheres são inocentes claro que estas não lhes trarão nenhum tipo
(14) quando comparadas aos homens, que de benefício (18). O resultado final é que
deveriam ser exemplo para suas filhas, um vento ("redemoinho", NVI) os envolverá
1159 OSEIASS(

em suas asas. Seus sacrifícios não lhes da- O resultado é que quando decidirem
rão as bênçãos que procuravam obter, mas oferecer sacrifícios ao Senhor (6), ele não
somente a vergonha. estará lá para recebê-los (cf também v.
15). Aleivosamente se houveram contra o
5.1-7 Os sacerdotes, o povo SENHOR: "Traíram o SENHOR" (NVI) e, por-
e a realeza condenados tanto, seus filhos, aqueles membros mais
A abertura dessa seção sugere que esse novos de Israel, nascidos em uma socie-
oráculo pode ter sido anunciado na capital dade já muito afastada de Deus, tampouco
de Israel, onde os líderes e o povo podiam lhe pertencem. A pervertida Festa da Lua
ouvi-lo. Os sacerdotes estão ainda em foco Nova sem nenhuma dúvida servia para as-
(como no cp. 4), bem como também o rei, segurar algum tipo de bênção tanto para
a família real e o povo de forma geral. Há eles quanto para suas plantações, mas, em
diversos lugares cujo nome é Mispa no vez disso, trariam destruição para ambos.
AT. Este era provavelmente o lugar aonde
Samuel fora em suas andanças resolver 5.8-12 Efraim/Israel serão
disputas legais (1Sm 7.16) e onde, no tem- assolados pelo inimigo
po de Oseias pelo menos, provavelmen- Deste ponto do livro até o final do cp. 7 há
te havia um lugar sagrado. Tabor é uma referências frequentes à política externa de
montanha localizada ao norte de Israel. Israel. Em vez de fazer aquilo que é direi-
Foi ali que Débora e Baraque obtiveram to e confiar em Deus, Israel tentou todos
uma grande vitória sobre Jabim e Sísera os tipos de manobras políticas, fazendo
(Jz 4.6,12-16). Não sabemos a natureza alianças com os grandes poderes da época,
dos pecados nesses lugares, mas deve ter Egito ou Assíria (13; 7.8-16), ou unindo-se
sido algo que prendia o povo a hábitos à Síria e a outras nações menores a fim de
pecaminosos, de modo que não pudessem ganhar certa independência aparente den-
voltar para o seu Deus (4). tro de uma coalizão.
O povo de Israel é descrito com uma Os chamados para que toquem a trom-
palavra bastante forte: "rebeldes [...] en- beta (8) significam o início de uma nova
volvidos em matança" (2, NVI). Essa pala- seção. É tocado um alarme, pois um ini-
vra é usada devido ao sacrifício de crianças migo está se aproximando e devastará o
em Isaías 57.5 e Ezequiel 16.21, mas tam- território. Os lugares mencionados eram
bém se refere ao derramamento de sangue os principais centros religiosos, e o juízo
que decorre do egoísmo e da ganância. é basicamente contra a falsa religião que
Entretanto, Deus sabe tudo sobre sua cor- é praticada nesses lugares. Todos eles têm
rupção e agirá. A mesma coisa acontece uma história significativa, frequentemente
nos dias de hoje (cf Ap 2-3, e especial- honrada e respeitada. Gibeá (Gibeom) era
mente em 2.2,9,13,19; 3.1,8,15). o lugar onde Salomão sacrificava e onde
Novamente, Oseias combina metáfo- recebera de Deus uma visão, por meio de
ras diferentes para descrever a situação do um sonho (1Rs 3.4,5); Ramá era um outro
povo: um espírito de prostituição (4, as- lugar onde frequentemente Samuel fazia
sim também NVI: cf 4.12) está entre eles; seus julgamentos (1Sm 7.17); Bete-Áven,
de modo que "não reconhecem o SENHOR" Betel (v. comentário de 4.15) era o lugar
(NVI); o orgulho ou a soberba de Israel onde Deus aparecera a Jacó em um so-
são como uma prova contra o povo na nho. Mas agora todos esses lugares estão
corte; enquanto continuam em seus cami- sofrendo ataques sob o comando de Deus.
nhos rotineiros, tropeçam. Nesse momen- Oseias nos fornece novamente algumas
to, é acrescentada uma nota sobre Judá metáforas muito vívidas do juízo. Mudar
(v. Introdução). os marcos ("marcos dos limites", NVI) era
111
: . OSElAS 5 1160
111

proibido pela lei, e representa a desconsi- cíficas no AT à ressurreição em três dias.


deração do povo para com as diretrizes de É evidente que esta não é primordialmente
Deus. Portanto, Deus derramará sobre eles uma profecia acerca de um único indiví-
a sua ira como água ("inundação", NVI), e duo, o Messias, mas uma metáfora da futu-
Efraim será "esmagado" (NVI) e corroído ra restauração da nação. Contudo, há uma
como pela traça e a podridão. semelhança real entre as duas situações:
Deus opera uma cura totalmente impossí-
5. 13-15 A Assíria não vel. O que foi feito metaforicamente com
pode ajudar a Israel a nação de Israel, "o meu filho [de Deus]"
Judá é incluído com Israel na condenação (cf 11.1), foi feito literalmente com Jesus
aqui registrada. Muito provavelmente os Cristo, o filho de Deus. Essa passagem,
eventos aqui referidos são descritos em bem como a referência a Jonas na barri-
2Reis 15.8-31; 17.1-6.Pelo menos Menaém ga do peixe, pode ter estado na mente de
(2Rs 15.19) e Oseias (2Rs 15.30; 17.3) Paulo quando ele se referiu a Jesus como o
submeteram-se à Assíria e pagaram tribu- que "ressuscitou no terceiro dia de acordo
to. O rei Acaz, de Judá, pediu a ajuda da com as Escrituras" (lCo 15.4).
Assíria contra a Síria e Israel (2Rs 16.7-9; Seria melhor que o v. 3a fosse tradu-
cf. Is 7). zido por: "deixe-nos conhecer [...] deixe
Assim Israel e Judá procuram uma res- que continuemos a conhecer...". Este é o
posta para seus males em uma aliança com principal significado da palavra traduzida
a Assíria. Mas o problema real é que Deus por "reconhecerão" na NVI (v. comentário
está contra eles, e os melhores médicos do de 13.4,5). O povo expressa um desejo
mundo não podem ajudá-los. O pior está sincero por um relacionamento pessoal
por vir, pois Deus irá atacá-los e despeda- com Deus. Essa é uma metáfora ousada,
çá-los e carregá-los, "como um leão [...] pois "conhecer" a esposa de alguém in-
e como um grande leão" (14, NVI) (as pa- dicaria normalmente uma relação sexual.
lavras são usadas para se reforçar mutua- Contudo, Oseias e outros autores bíblicos
mente, e não para especificar dois tipos de não evitam usar o casamento como uma
leão). Então eles com certeza saberão que imagem desse relacionamento íntimo e ex-
não há escapatória. clusivo (Is 62.5; Ap 21.2).
O v. 15 faz uma transição entre 5.13,14 Deus é tão confiável quanto o sol, e traz
e 6.1-6. Ele descreve o resultado das ten- tantas bênçãos como as chuvas sazonais de
tativas frustradas de Deus de levar o povo que Israel tanto depende para sobreviver.
a responder ao seu castigo: ele se afastará Na Palestina, a maioria das chuvas ocorre
deles. Se a presença de Deus é assustado- entre o começo de dezembro e o começo
ra, sua ausência é ainda pior. As palavras de março. As chuvas de inverno têm seu
de 6.1-3 expressam justamente aquilo que início no começo da estação do outono,
Deus está esperando: a determinação do preparando o solo para o plantio. As chu-
povo em conhecê-lo e confiar nele. vas da primavera (também conhecidas
como as "últimas chuvas"), que caem no
6. 1-6 O amor inconstante de período entre os meses de março e maio,
Israel e o que Deus requer fortalecem a produção. O verão é uma es-
Não há nenhuma palavra fazendo conexão tação quase totalmente seca, e nessa esta-
com o versículo precedente, mas isso é cla- ção, as chuvas são ansiosamente esperadas
ramente o que Deus quer ouvir. Israel reco- e apreciadas como uma grande bênção.
nhece que ele os despedaçou (como foi dito Nos v. 4-6 há uma mudança de tom. É
em 5.14), e que somente ele pode curá-los. como se Deus dissesse: "Mesmo se você
O v. 2 fornece as únicas referências espe- dissesse tais coisas, não continuaria fiel e
1161 OSEIAS7 - : :

comprometido comigo por muito tempo. Peca e 50 homens de Gileade (2Rs 15.25).
Pois o seu 'amor' é como a nuvem da ma- É muito provável que os sacerdotes estive-
nhã e como o orvalho da madrugada, que ram envolvidos nesta ou em ações seme-
bem cedo desaparece" (v. comentário de lhantes (9; cf 2Rs 11, em que o sacerdote
2.21; cf 4.1; 10.12; 12.7). É por esta ra- Joiada desempenhou o papel principal em
zão que os profetas foram muito rígidos, um golpe proveitoso). O v. 10 resume no-
utilizando-se de palavras fortes, para trazer vamente a situação em termos já emprega-
à luz o pecado do povo e o consequente dos anteriormente.
chamado ao arrependimento. Quando isso O profeta desfere mais um soco retórico
não acontecia, uma mensagem sobre o juí- em Judá (lIa). Quem ouve a condenação
zo tinha de ser pronunciada. Quando um de outrem de modo aprovador necessita
profeta fala em "nome do SENHOR", o ju- examinar-se a si mesmo.
ízo anunciado com certeza acontecerá (cf
Gn 1.3; SI 33.4-9; Is 55.10,11). 6. 11b-7.2 Deus quer curar, mas o
Misericórdia (6) é a mesma palavra pecado de Israel não o permite
traduzida por amor no v. 4. Ela signifi- Essa é uma imagem vívida do Deus que
ca o amor demonstrado por Deus em sua está apenas procurando uma maneira de
aliança com Israel. Ele não quer sacrifí- restaurar a sorte de Israel. Mas os peca-
cios em lugar de misericórdia; ele dese- dos do povo estão sempre ali diante de
ja que o amor de Israel seja real. Ele não sua face, "o mal de Efraim fica exposto e
quer ofertas queimadas, mas um relacio- os crimes de Samaria são revelados" (7.1,
namento pessoal genuíno e profundo. A NVI). OS seus próprios feitos os cercam:
importância desse versículo pode ser vista "estão rodeados por suas maldades" (NTLH)
por sua utilização em Mateus 9.13 e 12.7 e não há como Deus não vê-las - e não
(cf Mc 12.33). há como o povo escapar delas. Em meio
a essas descrições, Oseias se refere a dois
6.7-11a Israel e Judá pecados específicos que ele já havia men-
foram infiéis à aliança cionado anteriormente: a falsidade e o rou-
Esses versículos descrevem o comporta- bo (l b). O v. 2a chama a atenção para um
mento assustador do povo que tinha feito problema humano muito comum, o fato de
uma aliança com Deus. É possível que Adão pensar que somente o que vemos é o que
se refira ao primeiro homem e à sua deso- existe. Eles não sabem que estão rodeados
bediência ao mandamento direto de Deus, e envolvidos por seus pecados, e "pensam"
mas a palavra aliança não é encontrada em (dizem no seu coração) que Deus não se
nenhum outro lugar antes de Noé (Gn 6.18) lembra dos pecados do passado. É preciso
na história de Adão e Eva e de seus descen- lembrar aqui da terrível declaração de que
dentes. A maior parte dos comentaristas lê Sansão "não sabia ainda que já o SENHOR
"como em Adã", um lugar mencionado em se tinha retirado dele" (Jz 16.20b; cf
Josué 3.16 ("Adão", TB) onde as águas do 2Rs 6.17; SI50.21a).
Jordão foram separadas, permitindo que o
povo de Israel cruzasse o rio em direção à 7.3-12 O pecado de Israel
terra prometida. Se essa leitura for correta, é descrito por meio de
Adã, uma cidade em Gileade que ficava no várias metáforas
caminho de Siquém, tinha se transformado Os v. 3-7 formam um sanduíche duplo
em um lugar de assaltantes violentos (8,9). (aquele com duas camadas de recheio e
Nada sabemos de atos violentos específi- mais de duas fatias de pão) como já vimos
cos que ali possam ter acontecido, mas o antes. A sequência é: rei e príncipes (3)
atentado contra Pecaías foi realizado por -forno (4) - rei e príncipes (5) -forno
l1li
l1lil1li OSEIAS7 1162
.fI

(6,7a) - (governantes) reis (7b). Isso su- e devoção sincera a um único Deus (8a).
gere que esta é uma imagem que deve ser Israel é um pão que não foi virado ("mal
considerada como um todo. assado", NTLH), cru de um lado e queimado
Os príncipes ("líderes", NVI), o rei e do outro (como uma linguiça não virada
os governantes nada fazem para reparar o sobre o fogo!). Estrangeiros lhe comem a
clima de iniquidades e mentiras (3). Eles força, e ele não o sabe. Eles exigem altos
se alegram com isso, pois é uma forma de tributos (e não dão nada em troca), e Israel
satisfazer a luxúria pessoal dos poderosos, parece não perceber o que está acontecen-
e não se deixam deter pelo escrúpulo. Mas do. "Seu cabelo vai ficando grisalho, mas
precisamos ver no v. 7b o terrível choque ele nem repara nisso" (NVI); pensa que ain-
que os espera! da é jovem, um sinal do orgulho mencio-
Eles são como um forno (4) que pro- nado no v. 10. Apesar de todos os infortú-
duz seu próprio calor. Suas paixões, uma nios pelos quais passara, não voltam para
vez despertadas, continuam a todo vapor. o SENHOR, seu Deus, nem o buscam em
Parece que o padeiro é simplesmente parte tudo isto. Com certeza, Oseias tem toda
da imagem, e não representa uma pessoa razão em chamar a Efraim de pomba en-
em particular. O v. 5 é bastante obscu- ganada, que tenta, por sua vez, encontrar
ro, mas na NVI parece razoável: o rei e os uma solução apelando ora para o Egito
príncipes se juntam aos zombadores em ora para a Assíria (11). O que acontecerá
um tipo de celebração muito repugnante. a esse pássaro tolo? Deus o apanhará em
Alguns entendem que os escarnecedores uma rede, e ele será incapaz de voar para
são os que tramam contra o rei. O próprio qualquer lugar, e estará completamente à
rei, ignorando tal fato, dá as mãos a eles, sua mercê.
enquanto os líderes são incapazes de prote-
gê-lo, devido ao estado de embriaguez em 7.13-16 Eles se recusam
que se encontram. a voltar para o Senhor
A metáfora do fomo continua nos v. Não há ruptura marcante aqui, e a imagem
6,7. Parece que ela desenvolve um pou- de Israel afastando-se de Deus é muito
co mais o que já foi dito anteriormente: semelhante à dos v. 8 e 11. O motivo de
o fomo continua a esquentar. Na manhã Israel se recusar a voltar para Deus está
seguinte, ele não tinha se apagado, mas presente em todo o cp. 7 (v. 1,2,7b,1O). O
antes ardia em labaredas de fogo. O v. 7, Ai deles (13) é utilizado como uma espécie
entretanto, nos apresenta um resultado de lamento por si mesmo e pelos outros.
inesperado: há planos para a derrubada dos Neste caso, implica também um juízo, que
líderes. Houve diversos planos como esse aqui é representado na expressão paralela
ao final da história do Reino do Norte (e.g., destruição sobre eles (13).
2Rs 15; 17; e v. comentário de 5.13-15). Ao longo de todos esses versículos,
Os que tomam a lei em suas próprias mãos duas coisas ficam claramente evidentes: O
não devem se surpreender quando outros amor de Deus por Israel e o fato de que
fazem o mesmo, fazendo-o de maneira o povo tem outras prioridades. Ele os re-
ainda mais eficiente e implacável. Todos miria ("Eu queria salvá-los", NTLH), espera
os reis caem, mas a nenhum deles ocorre que eles se voltem a ele, mas eles falam
invocar a Deus (7b). mentiras contra Deus. Quando estão com
Nos v. 8-12, Oseias nos dá uma sequên- problemas, dão uivos nas suas camas
cia de metáforas, todas descrevendo algu- ("eles se jogam no chão, gritando como os
ma coisa terrível. Efraim (isto é, Israel) se pagãos" NTLH), ignorando a única fonte de
mistura com os povos ("faz acordos com ajuda eficaz. Quando se ajuntam, o foco de
outros povos", NTLH), perdendo sua pureza suas mentes está no alimento e na bebida,
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1163 OSEIAS 8l1li
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não em Deus. Ele os ensinou, mas em re- reivindicar ser o povo de Deus, e a lei, que
tomo eles maquinam contra ele (15). permitia que pudessem agradar a Deus e
A primeira parte do v. 16 é obscura permanecer sob sua bênção.
(lit. "Eles voltam, não para/em direção ai 8.4-6 Reis e ídolos serão julgados.
contra") e provavelmente temos aqui uma Nesses versículos, Oseias volta ao passa-
corruptela. O sentido da NVI deve estar do, ao começo de Israel como um reino
correto. Talvez devêssemos ler: "Ele vol- independente. Jeroboão I, filho de Nebate,
tam, mas não para mim" (Wolff), ou: "Eles rompeu com Roboão, filho de Salomão,
voltam ao não-Deus" (cf Dt 32.17,21). O edificou santuários rivais a Jerusalém em
arco enganoso é provavelmente um arco Betel e Dã. Em cada santuário colocou
fraco, pois as suas flechas não alcançam o um bezerro de ouro (1Rs 12.26-30) e es-
alvo. O final da seção mostra a morte dos tes, junto com os santuários "nos lugares
líderes na batalha, e o povo, antes arro- altos" (lRs 12.31-33), tomaram-se uma
gante, é forçado a fugir para o Egito (um fonte de idolatria e de práticas proibidas.
sinal da volta [afastamento] da salvação, Jeroboão foi ativamente encorajado a se
como um caminho inverso), onde será ob- tomar rei por um profeta chamado Aías
jeto de zombaria. (lRs 11.29-40), mas praticamente todos os
reis do Reino do Norte são condenados em
8. 1-14 Semeando vento 1 e 2Reis, e quase nunca sua escolha teve
e colhendo tempestade alguma relação com Deus. É possível que
Nesse capítulo há uma série de juízos con- um dos bezerros de ouro tenha sido trans-
tra Israel associados a diferentes pecados: ferido para Samaria, a cidade mais impor-
a sua escolha dos reis (4-6), suas alianças tante de Israel, mas é mais provável que
com estrangeiros (7-10) e suas práticas re- esse bezerro de ouro da cidade de Samaria
ligiosas corruptas (11-14). Em todo o capí- seja uma indicação de que esta profecia
tulo veremos uma autoconfiança doentia. é de um período posterior à queda de Dã
Eles continuam a caminhar como aqueles nas mãos dos assírios (2Rs 15.29), e que
que são conhecedores de tudo, mas não somente um bezerro de ouro restou em
param para pensar se suas ações são acei- Samaria e seus territórios. A opinião de
táveis a Deus. Deus em relação ao bezerro de ouro é bem
8.1-3 Julgamento por um inimigo. clara: ele despertou sua fúria; não é Deus;
Assim como em 5.8, aqui também há uma impede que o povo se tome puro; conduz
chamada repentina para tocar um alarme. somente à sua destruição. O início do v. 6
A ameaça é descrita como uma águia con- não é muito claro. Literalmente, ele apenas
tra a casa do SENHOR" (8). Não se sabe ao diz: Procede de Israel (6) e deve se referir
certo se a palavra significa "águia" (ARA; ao bezerro (cf NVI).
NVI) ou "abutre" (RSV). Será que significa 8.7-10 Políticos oportunistas: semean-
um abutre à espreita para devorar algo que do e colhendo. O v. 7 traz uma imagem
já está morto, ou uma águia prestes a arre- intensa e evocativa: semeiam tudo que não
meter contra algo pequeno e lento, inde- tem valor e substância, e colhem a mesma
feso ante suas grandes e afiadas garras? A coisa acrescida de juros, algo sem valor e
última hipótese parece mais provável, pois destrutivo (cf Gl 6.8). A referência prin-
concorda melhor com o v. 3 (cf Jó 9.26; cipal é à política externa de Israel, ten-
SI 103.5; Hc 1.8; em que as escolhas da xvr tando fazer, por sua vez, amigos em cada
e da RSV são contrárias!). nação, na esperança de receber amparo
No v. 1, Oseias chama atenção para a do vencedor. Mas Israel não tem muito a
infidelidade do povo em relação a Deus, ao oferecer, e as nações simplesmente devo-
rejeitar a aliança, a base em que podiam ram o que tem (7,8). Mesmo que Israel
11
111111 OSElAS 8 1164
.11

compre um lugar entre as nações e seja Assíria. Somente Jerusalém sobreviveu, e


dispersado, Deus o congregará novamen- isso se deveu à intervenção direta de Deus
te - mas não para salvá-los. O v. lOb é em resposta ao desafio da Assíria e às ora-
muito difícil, mas a ARA é tão adequada ções de seu povo (2Rs 19.5-7,20-36). O
aqui quanto qualquer outra versão. O ju- fogo descreve o juízo tanto de forma literal
mento montês é a descrição dada a Ismael, quanto metafórica.
o filho de Abraão e Hagar (Gn 16.12, "ju-
mento selvagem"), e definitivamente não 9. 1-6 Juízo: as festas
é a descrição do filho por meio do qual as religiosas acabarão
promessas serão cumpridas. Aqui o profeta volta o foco para o juízo
8.11-14 Substitutos religiosos de previamente ameaçado de que Israel re-
Israel. Aqui está a evidência do grande tomará ao Egito (7.16; 8.13), e seu conse-
entusiasmo religioso. Eles construíram quente efeito sobre os festivais de Israel.
muitos altares para o perdão de seus pe- Oseias diz ao povo:
cados. A palavra na verdade é "pecar", "Não te alegres, ó Israel, não exultes,
como no final do versículo, mas as mes- como os povos" (como tens feito). Mesmo
mas consoantes da língua hebraica darão que eles continuem a fazer isso por mais
a tradução da ARA. Se isto estiver correto, um tempo, tu não continuarás, pois aban-
como provavelmente parece, então temos donaste a Deus, o Deus que se revelou a
aqui um jogo de palavras: os altares des- ti, que te tirou da terra do Egito, que te
tinados a remover os resultados do pecado mostrou como viver etc. Tu foste atrás de
e restaurar a comunhão com Deus na ver- outros deuses, agindo como prostituta, es-
dade os fizeram pecar mais. O povo rejei- pecialmente nos terreiros, onde ocorriam
tava muitas coisas escritas na lei de Deus, determinadas celebrações religiosas.
como se fossem algo estranho e peculiar. O profeta comenta então que suas ei-
Eles oferecem seus próprios sacrificios e ras e seus lagares (que tinham uma função
gostam da carne e comem, isto é, tomam semelhante) não lhes dariam nenhum mo-
parte nas refeições sacrificiais destinadas a tivo para celebração. Elas nem mesmo os
expressar sua comunhão com Deus, mas o alimentariam; o vinho novo lhes faltará,
SENHOR não os aceita. Somente se atender dando-lhes a promessa de um ano magro e
estritamente àquilo que o próprio SENHOR sem alegria pela frente.
especificou pode um adorador encontrar É verdade que a aliança que o SENHOR ti-
aceitação (cf Lv 10.1-11). Os sacrificios nha com eles será quebrada. Ele os tirou do
não removem o pecado da memória de Egito e fez deles o seu povo, mas eles re-
Deus (Is 64.9; Jr 31.34); eles ainda estão tomarão à escravidão (no Egito). Deus não
lá, em sua memória, e esse fato implica somente tinha dado a eles a sua lei como
que Deus agirá contra eles. Eles voltarão lhes havia mostrado como deveriam se
para o Egito, isto é, eles retomarão à es- apresentar diante dele, com pureza (v. prin-
cravidão (v. também 2.15; 7.11,16; 9.3,6; cipalmente Lv 11.1-23; Dt 14.3-21), mas
11.1,5,11; 12.1,9,13; 13.4). eles seriam levados de volta para a Assíria,
O v. 14 retoma ao tema da autoconfian- onde seriam forçados a comer o que era
ça em questões políticas, e Judá reaparece considerado impuro. Esses dois juízos se-
aqui. Israel se esqueceu de seu Criador, rão um sinal de sua separação de Deus.
e em vez disso (e este é o cerne do pro- O suprimento de vinho seria tão peque-
blema: em vez disso) edificou palácios, e no que não derramarão libações de vinho
Judá multiplicou cidades fortes. O texto de ao SENHOR, isto é, derramar certa quantida-
2Reis 18.13 descreve o que aconteceu a es- de de vinho como oferta ao SENHOR junta-
sas cidades nas mãos de Tiglate-Pileser da mente com os demais sacrificios (também
1165 OSEIAS9(

são chamadas de ofertas de bebida). Nem isto é, durante sua jornada entre a traves-
os seus sacrificios lhe serão agradáveis, sia do mar Vermelho e sua entrada na terra
pois eles são impuros e, portanto, impró- prometida de Canaã. Deus estava muito
prios para ser oferecidos. Quando come- encantado com eles, assim como alguém
rem alguma coisa sacrificada, será como a ficaria encantado ao encontrar as primeiras
comida servida em um velório. O alimento uvas e os primeiro figos da estação. Mas,
não servirá a nenhuma finalidade religiosa: muito em breve eles murmurariam e se
satisfará simplesmente a fome (4b). queixariam dele. Um incidente apropriado,
Assim o profeta os desafia com uma o qual Oseias escolhe por ser particular-
pergunta retórica: O que farão vocês nos mente mau, ainda que um típico exemplo
dias das festas realizadas em honra do do comportamento do povo, é a imoralida-
Senhor? A resposta é óbvia: não há nada de deles em Baal-Peor, onde muitos se en-
de valor que possam fazer. Oseias comen- tregaram a comportamentos imorais com
ta, então, que mesmo que escapem da mulheres moabitas e ofereceram sacrifl-
destruição fugindo para o Egito (Mênfis cios a Baal (Nm 25.1-5). E se consagra-
está localizada no norte do Egito), eles ram à vergonhosa idolatria é literalmente
ali morrerão. "consagram-se à vergonha"; essa palavra
é usada frequentemente como substituta
9.7-9 Os servos de Deus para "Baal".
são ridicularizados Efraim, a sua glória significa primei-
Depois de uma breve repetição da adver- ramente os numerosos filhos prometidos
tência sobre o castigo que está por vir, por Deus a Abraão. Agora não mais have-
Oseias passa a um novo tema. Por serem rá nascimento algum, nem mesmo gravi-
tantos os pecados de Israel e tão grande dez nem tampouco concepção. E mesmo
sua hostilidade em relação ao Deus ver- que crianças nasçam, elas morrerão. Isso
dadeiro, os que proferem fielmente as não significa, é claro, que não haverá ab-
suas palavras serão considerados tolos e solutamente nenhum nascimento; é uma
loucos (cf 2Rs 9.11). Os profetas não so- maneira poética e marcante de dizer que a
mente são ridicularizados, mas o povo ati- nação não crescerá. A segunda menção à
vamente maquina planos contra eles (cf morte dos filhos de Israel é uma imagem
lRs 18.4; 19.10; Mt23.29-36). Como nos arrepiante: mostra o povo de Israel trazen-
dias de Gibeá (v. também 10.9) se refere do seus próprios filhos para serem mortos:
a um período negro da história de Israel, mas Efraim levará seus filhos ao matador.
e à história da concubina do levita e suas Entre essas duas referências se encontra a
consequências (Jz 10-21). O veredicto do causa real: Deus se afastou deles (v. co-
autor de Juízes foi: "Naqueles dias, não mentário de 5.15), e não pode haver bên-
havia rei em Israel; cada um fazia o que ção alguma quando ele não está presente.
achava mais reto (o que era direito aos O v. 14 é uma variação do mesmo tema,
seus próprios olhos)" (Jz 21.25). Isso sob a forma de uma maldição proferida
também se aplicaria muito bem ao tempo pelo profeta.
de Oseias. E muitos dos males do mundo O v. 15 volta-se para outro exemplo
moderno poderiam ser atribuídos a uma geográfico e histórico do pecado de Israel.
atitude semelhante. Gilgal era o lugar onde Israel cruzou o
Jordão para entrar na terra de Canaã e con-
9.10-17 Mais lições da história: sagrar-se novamente ao Senhor por meio
a raiz do pecado de Israel da circuncisão (Js 4.19-5.9). Como juiz,
Oseias descreve Israel em seu período Samuel visitava esse lugar regularmente
mais prímitivo como nação, no deserto, (1Sm 7.16), e ali Saul foi confirmado como
OSEIAS 10 1166

rei de Israel (lSm 11.14,15). Também em poderia ajudá-los. A monarquia foi sempre
Gilgal Davi foi bem recebido, depois de um assunto muito complicado em Israel.
sobreviver à rebelião de Absalão (2Sm No livro de Juízes parece que uma das ra-
19.15). Mas na época de Amós e Oseias, zões para o caos na terra foi a falta de um
Gilgal tinha se transformado em um centro rei (Jz 17.6; 18.1; 19.1; 21.25). Deus con-
da religião corrupta (4.15; Am 4.4; 5.5). siderou o pedido por um rei, a fim de que
Esta é provavelmente a razão por que Deus Israel fosse como as demais nações, como
começou a aborrecê-los (cf Is 1.10-17; uma rejeição dele, e o mesmo se deu com
Am 5.21-24). Nós sabemos também que Samuel (1 Sm 8.4-9). Contudo, Deus lhes
essa falsa religião estava ligada à injusti- deu um rei e transformou seu pedido in-
ça e à opressão. Vários temas típicos são justamente motivado em um meio de segu-
sugeridos em: já não os amarei (cf 1.6); rança, ensino, e esperança para o futuro.
não dará fruto porque secaram-se as suas Oseias menciona diversos pecados de
raízes (cf 2.3,9-12; 9.2); ainda que gere diversas maneiras diferentes. A desonesti-
filhos. eu matarei os mais queridos do seu dade (4) os conduz ao juízo como erva ve-
ventre (cf v. 12,13; 2.4; 4.6). O capítulo nenosa nos sulcos dos campos, impedindo
termina com mais um comentário do pro- e atrapalhando as colheitas esperadas. O
feta, tomando a enfatizar novamente o que povo em Samaria está atemorizado devi-
foi dito anteriormente. do ao bezerro de Betel (palavra outra vez
alterada para Bete-Áven; v. comentário de
10.1-10 Agricultura, religião errada 4.15). A palavra aqui é na verdade "bezer-
e reis: um juízo e uma escolha ros", embora estivesse no singular em 8.6.
Essa seção é completamente diferente, e o Pode ser um plural de majestade que sig-
texto é ainda mais difícil do que de costu- nifica "o grande bezerro da Casa da impie-
me. Trata de questões ligadas à agricultura dade", obviamente usando de ironia. Esse
(vide luxuriante; ["uma parreira cheia de ídolo será levado para o exílio, incapaz de
uvas" NTLH], v. 1; sulcos dos campos, ["um se salvar a si mesmo (como Isaías destaca
campo arado", NTLH], v. 4), a práticas reli- a respeito dos ídolos da Babilônia, 46.1,2).
giosas (altares, v. lb,2; bezerro, v. 5,6), e O povo e os sacerdotes idólatras, longe
eventos políticos (rei, v. 3; derrota para a de reconhecer a inutilidade do bezerro,
Assíria, v. 6,7,9b,1O). prantearão por ele, enquanto este é levado
Começa se referindo a Israel como à Assíria como presente ao rei principal.
vide luxuriante (cf SI 80.8-16; Is 5.1-7; Este é literalmente o "rei Yareb", que está
Jr 2.21; Ez 15.6; 17.1-6). À medida que relacionado provavelmente à palavra para
Israel prosperou (segundo a abundância "contenda" ou "disputa". George Adam
do seu fruto), assim multiplicou os altares; Smith o traduziu por algo equivalente a:
e quanto melhor a terra, tanto mais belas "Rei-Encrenqueiro"! Esta parece uma tra-
colunas fizeram (v. comentário de 3.4), isto dução correta, pois ela certamente se ajus-
é, praticava uma religião idólatra e não ta ao caráter agressivo dos reis assírios.
permitida. O povo se iludia a si mesmo A imagem muda então para a cidade de
(2a) ao pensar que isso era aceitável para Samaria, onde o rei é levado embora como
Deus; como resultado, o Senhor destruirá lasca de madeira na superficie da água,
todos esses objetos. impotente para se opor a isso.
Oseias volta-se agora para o assunto re- No v. 8, Oseias retoma ao assunto dos
ferente aos reis: virá o tempo em que Israel altares, e dos lugares altos onde eles foram
já não terá rei (isto é, depois da queda de erguidos. Eles cairão em desuso e ficarão
Samaria, em 722 a.C), e reconhecerá que cobertos de espinheiros e abrolhos. O cla-
seu estado é tão lastimável que nem um rei mor do povo para que as montanhas e os
montes os escondam da punição, ou os ti-
1167 OSEIASll

a.c. respectivamente; 2Rs 17.3; 18.9) ou


<
rem da miséria, pode ser encontrado tam- um rei moabita, Salamanu (cf Am 1.3,13).
bém em Lucas 23.30 e em Apocalipse 6.16 Não sabemos precisamente a que eventos
(cf Is 2.10,19-21). ele se refere, mas pelo texto podemos de-
O v. 9 retoma a Gibeá (cf 9.9). A per- duzir que foram terríveis. Provavelmente
versidade dos homens de Gibeá levou à Betel é mencionada porque era o principal
guerra civil, e a tribo de Benjamim foi qua- santuário de Israel, e também pelo fato de
se totalmente destruída. Desta vez serão as fazer um trocadilho com Bete-Arbel. Em
nações estrangeiras que realizarão o juízo 722 a.C., o rei de Israel foi destruído, e
de Deus na batalha. seus descendentes foram aniquilados.
A referência à dupla transgressão (10; Essa foi uma seção severa, mas o con-
"duplo pecado", NVI) pode muito bem se vite e a promessa do V. 12 permanecem.
referir aos pecados de idolatria e confiança
nas alianças externas em vez da confiança 11.1-11 Israel como
em Deus. filho amado de Deus
Não há em nenhum outro lugar na Bíblia
10.11-15 Lavrando, semeando e expressão mais apaixonada e comovente
lutando: metáforas sobre o juízo sobre o coração de Deus do que esta. Deus
Nos v. 11-15, temos uma imagem agrária fala como o pai amoroso de Israel, chaman-
ampliada que se move para a arena da ba- do-o da escravidão do Egito. Naquele tem-
talha no final do v. 13. Efraim era uma be- po Israel era como uma criança indefesa,
zerra domada, que gostava de trilhar ("de uma nova nação que enfrentava o poderio
pisar o trigo para tirar a casca", NTLH), isto do Império Egípcio, vagando pelo deser-
é, que gostava de puxar o arado sobre o to sem nenhuma perspectiva de encontrar
cereal. Era um trabalho relativamente alimento ou bebida. Deus os ensinou a an-
leve, e o animal não era amordaçado. A dar: tomei-os nos meus braços. Conduziu-
imagem seguinte é muito menos agradá- os delicadamente, guiou-os com laços de
vel: uma canga é colocada sobre eles para amor. Se a metáfora do pai e do filho con-
o trabalho mais pesado de lavrar a terra. tinua, então devemos traduzir o V. 4b por:
Isso pode ser entendido muito mais como "Eu me tomei para eles como aquele que
disciplina do que vingança. Em todo o levanta um filho até a altura de seu queixo.
caso, conduz a um convite urgente para E me inclinei para dar-lhes de comer". Isso
que se engajem em uma atividade útil (se- parece bem melhor do que supor, como na
meai [...] em justiça [...] arai acampo) e NVI, que há uma mudança para a metáfo-
assim obtenham uma colheita abundante ra animal em que Deus remove o jugo do
de misericórdia (como em 6.4,6). No pas- pescoço (lit., embora surpreendentemente,
sado eles haviam semeado e colhido per- "queixadas") de um animal e se inclina
versidade (l3a; cf 8.7). para alimentá-lo. De um modo ou outro, a
O profeta se move para a interpreta- imagem é a de um cuidado carinhoso para
ção da metáfora agrária. Israel tem sido com Israel, o qual, entretanto, não se dig-
autoconfiante, acreditando na força fisica. nou a responder. Na verdade, quanto mais
Por isso, sofrerá uma terrível derrota, se- eu os chamava, tanto mais se iam da mi-
melhante àquela que Bete-Arbel sofreu pe- nha presença (2,7). Não atinaram que era
las mãos de Salmão Acredita-se que Bete- Deus quem os curava (3).
Arbel possa ser tanto um local nas proxi- Diante dessa total ausência de resposta,
midades do lago da Galileia, quanto uma Deus não tem alternativa a não ser puni-
cidade a leste do rio Jordão. Salmã pode los. A descrição já foi utilizada uma vez:
ser Salmaneser III ou v (858-824 e 726-722 retornar à escravidão no Egito (7.16; 8.13),
lIIII
. : . OSEIAS 11 1168

ou a perda de sua independência como um A profecia é um testemunho mara-


escravo na Assíria (9.3; 10.6). Uma vez vilhoso da graça de Deus, talvez supera-
que eles não se voltarão para Deus, vol- da somente pelos eventos do evangelho:
tarão para o Egito. Os v. 6,7 descrevem o "Porque Deus amou ao mundo de tal
método do juízo - derrota pelas mãos de maneira que deu o seu Filho unigênito ..."
seus inimigos - e ressalta mais uma vez a (Jo 3.16).
teimosia de Israel.
Mateus (2.15) utiliza 11.1 para descre- 11.12-12.8 A falsidade de Israel
ver a maneira como Deus agiu, salvando ilustrada e condenada
Jesus das mãos de Herodes. Tendo escapa- É muito difícil decidir onde dividir o tex-
do da morte, ele pôde, no devido tempo, to em unidades, pois as várias pequenas
voltar do Egito para cumprir a sua obra. seções se fundem umas com as outras, e
A declaração de Oseias não é primeira- estão inter-relacionadas de diversas ma-
mente uma profecia sobre Jesus, mas uma neiras. Muitos dos pecados condenados
interpretação de um fato histórico. Mas os já foram mencionados anteriormente, e a
paralelos com Jesus são bem impressio- repetição serve para imprimir em nós as
nantes: Deus guardou Israel (Jacó e sua causas da condição de Israel. Em 11.12,
casa) da fome, dando-lhes um lugar no deparamos com a mentira e a falsidade
Egito. E de lá ele os trouxe para cumprir (cf 4.2; 7.1-3), e isso continua em 12.1a.
seus propósitos. Exemplos específicos de falsidade nos
Todos os sinais apontam para a total são apresentados. Um deles é o da pró-
destruição de Israel, mas Deus lamen- pria história contemporânea de Israel:
ta com o coração comovido e cheio de Israel tentou fazer uma aliança tanto com
compaixão. Como poderia tratá-los como o Egito quanto com a Assíria, que eram
tratou Admá e Zeboim, as cidades que inimigos entre si. Outro exemplo é de um
desapareceram para sempre, juntamen- passado mais distante de Israel: Jacó agar-
te com Sodoma e Gomorra (Dt 29.23; cf rou o calcanhar de seu irmão, antes mes-
Gn 14.2,8)? À razão humana parece que mo que tivessem nascido, suplantando-o
não resta alternativa, mas Deus é Deus, e e privando-o, assim, daquilo que natural-
não homem (cf Me 10.25-27). mente lhe pertencia. O nome Jacó está li-
A última parte do v. 9 significa tanto: gado a palavras que significam "agarra o
"não me voltarei contra uma cidade" (v. calcanhar", ou "suplanta" e figuradamen-
a NVI mrg.) como: não voltarei em ira ou te significa "enganar" (Gn 25.26; 27.36).
em "brasa". Embora Deus tenha dado uma mensagem
O final dessa seção é uma promessa de a Rebeca, antes do nascimento de Esaú e
salvação que retoma algumas metáforas e Jacó, dizendo que "o mais velho servirá
inverte o seu sentido. O SENHOR será como ao mais novo" (Gn 25.23), isto não dava
um leão, não para destruir (cf 5.14), mas a Jacó (ou a Rebeca) a permissão para
para dar um sinal para que seus filhos vol- enganar (cf ISm 16.6-13; 24.1-22). Não
tem para casa de todos os lugares onde esti- havia nenhum pecado associado ao fato
verem espalhados. Eles foram previamente de Jacó, ainda bebê, ter agarrado o calca-
descritos como uma "pomba enganada", nhar de seu irmão no interior do útero da
ansiosa para começar a receber a ajuda do mãe! Não obstante, Oseias utiliza a ima-
Egito ou da Assíria (7.11), e muito próxi- gem para ilustrar como Jacó/Israel tem se
ma de ser apanhada pelas redes de Deus. comportado de forma enganosa desde o
Aqui ela está amedrontada, mas não é tola, início de sua existência.
e voa ansiosamente de volta em direção ao Oseias, entretanto, agora se volta para
Senhor e para seu lar (lOa,l1b). a recordação de como Deus se utilizou
1169 OSElAS 12.·

••
desta situação. Jacó lutou com "um ho- Tabernáculos (Cabanas), uma das festas
mem" que na verdade era um representan- fixas (Lv 23.42-44; Ne 8.14-17).
te de Deus, e recebeu a bênção de Deus e Deus lembra como lhes falou por meio
um novo nome, "Israel" (Gn 32.24-29). dos profetas mediante visões e parábolas.
Deus também encontrou Jacó em Betel A parábola de Natã é uma das mais conhe-
(Gn 28.10-22) e lhe concedeu uma pro- cidas do AT (2Sm 12.1-10; cf Jz 9.7-15;
messa graciosa e totalmente imerecida. 2Rs 14.9,10; Is 5.1-7; Ez 15-19; 23), mas
Assim, diz Oseias, vocês devem seguir o a palavra aqui provavelmente cobre vários
exemplo de Jacó, abandonar sua falsa ma- tipos de comunicados de Deus por meio
neira de agir e voltar-se ao seu Deus (6). dos seus profetas.
O fato de ele dizer teu Deus significa uma O v. 11 é de difícil interpretação, mas
oferta para reverter a profecia do juízo, está claro tratar-se de uma profecia de juí-
implícita no nome do filho de Oseias, Lo- zo sobre Gileade (localizada a leste do
Ami, "Não-Meu-Povo" (1.9). Observe que Jordão, onde ficava a cidade de Adã, 6.7,8),
a expressão teu Deus também aparece no a qual é descrita como vaidosa ou fútil, e
final do versículo (12.6). Oseias os exor- Gilga!. O trocadilho originariamente uti-
ta: converte-te a teu Deus. guarda o amor lizado para nomear Gilgal "rolou/afastou
[isto é, o amor leal mencionado em 6.4,6] [nossa reprovação]" é substituído por outro
e o juízo e no teu Deus espera sempre. Em trocadilho montões de pedra (do hebraico
outras palavras, ele os exorta a continuar a gallin, da mesma raiz que Gilgal).
confiar em Deus, mesmo quando parecer O v. 12 se refere, novamente, e de for-
que sua ajuda está demorando. ma bastante abrupta, à história de Jacó.
Devemos perguntar qual é o papel de Depois de ter suplantado seu irmão Esaú
Judá em 11.12-12.2. No v. 2, eles estão e de ter se encontrado com Deus em Betel,
definitivamente ligados a Jacó em uma ele foi ter com Labão, irmão de sua mãe,
profecia sobre o juízo; assim a NVI pare- na Mesopotâmia. Lá ele serviu Labão por
ce estar correta em sua compreensão de um total de 14 anos, para se casar com
11.12, que é literalmente: "Judá é rebelde duas esposas, Lia e Raquel (Gn 27.41-
contra Deus". 29.30). Oseias chama a atenção para o tipo
Os v. 7,8 fornecem uma imagem rara de serviço que ali fazia, guardou o gado
do mundo dos negócios. Os israelitas são (NVI) (lit. "guardou", mas entendemos que
comparados a negociantes desonestos, se refere a ovelhas). O v. 13 parece não ter
que trapaceiam com uma balança falsa. ligação com o contexto - O SENHOR usou
Orgulham-se de sua riqueza e nela encon- a Moisés para trazer Israel para fora do
tram segurança. Não reconhecem pecado Egito e dele cuidar (lit. "guardar"). Pela
algum em si mesmos. A imagem deixada repetição, enfatiza-se que isso aconteceu
é bem real. Não é preciso nenhum tipo de por meio de um profeta. A relação entre os
explicação para mostrar quão equivocado versículos pode estar no fato de que, assim
e perigoso é esse comportamento. como Jacó fugiu para uma terra estranha e
foi reduzido ao oficio de cuidar de ovelhas
12.9-14 Trazido do Egito para conseguir uma esposa, o SENHOR trou-
para ser julgado xe Israel de uma terra estranha e providen-
Segue uma palavra de juízo (9). Embora o ciou seu próprio servo (o profeta Moisés)
SENHOR tenha sido seu Deus desde a terra para guardá-lo. Isso é mais um exemplo
do Egito, o povo será posto para fora de do cuidado de Deus para com Israel. Mas
sua "terra prometida" e novamente envia- o v. 14 descreve (outra vez) a resposta in-
do para habitar em tendas. Todos os anos grata de Israel, provocando a ira de Deus.
eles faziam isso por ocasião da Festa dos Portanto, Efraim não será aliviado da culpa
11II
11II. OSEIAS 13 1170
11II
11II

do sangue por ele derramado (embora, Ou seja, é uma declaração, e não um man-
como já vimos, Deus ansiasse por persua- damento. A palavra "conhecer" ("reconhe-
di-lo a se arrepender para que pudesse ser cerão", NVI) ocorre também no v. 5, em
perdoado). Ele será retribuído pelo "seu que a NVI o traduz por "cuidei de vocês".
desprezo" (NVI) a Deus e a seu gracioso É melhor manter o significado preliminar
convite (cf Hb 10.29; 12.25). "conhecer", reconhecendo haver várias
implicações no ato de "conhecer", que às
13.1-16 Mais imagens do juízo vezes incluem até mesmo "reconhecimen-
Efraim era a maior das 12 tribos (ou 13, to". Uma das principais preocupações de
uma vez que José gerou tanto a Efraim Oseias é o relacionamento entre Deus e
como a Manassés), e é usado frequente- Israel: um deve conhecer o outro intima-
mente como uma maneira de se referir a mente, como um marido conhece sua mu-
todo o Reino do Norte, como já vimos. lher e vice-versa.
Aqui deve significar a tribo, uma vez O v. 6 descreve os resultados trágicos
que está em Israel. Em épocas anteriores, de se desconsiderar as advertências de
Efraim tinha autoridade e respeito. Mas Deuteronômio 8.11-14, que infelizmente
perdeu tudo isso com sua idolatria e mor- são desconsideradas, ainda hoje, em todo
reu; poderia ser ignorado por completo. o mundo: a riqueza produz o orgulho e
Longe de aprender com seus erros, agora não o reconhecimento da graça de Deus,
pecava mais e mais, empregando dinheiro mesmo depois de terem sido ouvidas as
e talento em abundância na construção de advertências do próprio Jesus (Me 10.21-
imagens (2a). 25). O juízo para tal fato é externado ou-
O v. 2b é muito obscuro, mas pode mui- tra vez em termos de ataques de animais
to bem significar que, por um lado, essas selvagens, desta vez ao leão se juntam
pessoas sacrificavam seres humanos e, por um leopardo, uma ursa (imprevisível até
outro, beijavam bezerros feitos de metal mesmo nos bons tempos) roubada de seus
- um comportamento realmente ultrajan- filhos, e as feras do campo, animais não
te, que demonstra uma escala de valores especificados (7,8).
completamente equivocada e uma total fal- Os v. 9-12 destacam alguns temas já
ta de apreciação da obra de Deus em criar a antes mencionados. Israel é destruído por
humanidade à sua própria imagem. causa de sua rebeldia contra aquele que o
O resultado é que se tomarão inúteis ajudara, o único que poderia ajudá-lo em
como nuvem de manhã, como orvalho que sua condição atual (9). Onde está, agora,
cedo passa (assim como seu "amor" em o teu rei... ? Deus desafia a Israel. E os teus
6.4), como palha que se lança da eira, e juízes...? No tempo de Samuel, o povo ti-
como fumaça que sai por uma janela (3). nha pedido um rei como todas as nações
O SENHOR repete o fato de ser o seu Deus (l Sm 8). Isso significou também um pedi-
desde o tempo em que estavam no Egito. O do por príncipes, uma vez que os reis têm
v. 4 é semelhante em conteúdo ao primeiro filhos (alguns deles tiveram muitos filhos
mandamento e à sua introdução: "Eu sou para seu conforto: Jz 9.1,2; 2 Rs 10.1).
o SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra Deus atendeu a seu pedido, mas ficou ira-
do Egito, da casa da servidão. Não terás do com sua atitude, que expressava falta de
outros deuses diante de mim" (Êx 20.2,3). confiança nele e um desejo de ser como as
Por outro lado, a forma e o vocabulário são demais nações ao seu redor. Ele lhes con-
completamente diferentes. Provavelmente cedeu reis, sabendo que Israel sofreria nas
poderíamos traduzi-lo por: "Tu não conhe- mãos deles; e removeu seu rei devido à sua
ces nenhum outro Deus, somente a mim, ira pela rejeição ostensiva de Israel em re-
porque não há outro salvador, senão eu". lação a seu verdadeiro rei.
1171 OSEIAS 14.·•
••
Efraim não escapará do juízo, porque mento armazenado desaparecerá. O v. 16
sua culpa e seu pecado não desaparece- fornece uma imagem final dos horrores da
rão. Suas iniquidades estão atadas [...] o guerra: tudo aquilo que acontece quando
seu pecado está armazenado (12). O v. uma nação deliberadamente se afasta da
13 nos fornece uma imagem cômica de proteção de Deus e se recusa a retomar.
Efraim como o filho não nascido: é hora
de nascer, mas ele não sai à luz, ao abrir- 14.1-8 Um apelo ao arrependimento
se da madre! e uma promessa de bênção
O v. 14 é famoso por Paulo ter citado 14.1-3 Um apelo a Israel para que volte
sua segunda parte em lCoríntios 15.55, a reconhecer somente ao Senhor. Volta,
como uma pergunta retórica. Paulo usa ó Israel, para o SENHOR, teu Deus parece
uma tradução diferente, mas o mesmo sen- um apelo normal, mas observe que a pro-
tido pode ser obtido do texto que temos em messa já está ali, na palavra teu. A causa da
Oseias: Onde estão, ó morte, as tuas pra- ruína de Israel foi sua iniquidade. Assim,
gas? [Isto é, as pragas que trazem a morte, agora lhe é recomendado fazer uma oração
e enviam as pessoas para o sheol, o lugar específica e uma declaração de que con-
dos mortos]? Onde está, ó inferno, a tua fia somente em Deus. Esta é semelhante à
destruição? - em lugar algum, pois foram confissão de confiança que Deus procurou
eliminados pela vitória de Cristo na cruz. em 6.1-3, mas aqui há um reconhecimento
Mas o contexto aqui é diferente. O cp.13 mais explícito de seus verdadeiros peca-
inteiro consiste em uma profecia sobre o dos. Eles se atiram à misericórdia de Deus,
juízo, assim seria um tanto estranho encon- resolvem glorificá-lo (aceita [...] os sacri-
trar uma promessa tão abrupta de salvação, flcios dos nossos lábios). Renunciam à sua
especialmente uma seguida imediatamente antiga confiança em duas fontes falsas: a
pela expressão Meus olhos não veem em Assíria (com seu poderio militar) e os ído-
mim arrependimento algum. Seria adequa- los. E confessam que somente em Deus há
do, portanto, que traduzíssemos o v. 14a compaixão pelo fraco e pelo vulnerável.
por duas perguntas: "Deveria eu resgatá- 14.4-8 Israel restaurada: uma pro-
los... deveria eu remi-los?" seguidas de um messa graciosa do Senhor. Em 6.4-6,
chamado para que a morte viesse e punisse Deus expressou sua desconfiança na reso-
Israel com suas pragas. Um entendimen- lução de Israel em procurá-lo. Aqui ele res-
to alternativo seria que o v. 14a expressa ponde com uma ampla promessa. O vento
o desejo de Deus de salvar Israel, desejo do deserto de 13.15 se foi, e a imagem de
esse que o povo despreza, e, por isso, não Israel agora é algo como o jardim do Éden.
pode receber compaixão, mas sim pragas O alimento e a bebida estarão ali, lado a
e destruição. As palavras resgatarei e re- lado com alguns artigos de luxo: lindas
mirei são utilizadas para o resgate de dé- flores, algumas oliveiras (e portanto azeite
bitos ou da escravidão (e.g., Êx 13.13-15; de oliva), cedros (grandes árvores, como
Nm 18.15-17; Rt4.4-6). aquelas encontradas no Líbano) que for-
A parte final desse capítulo, a última necem sombra e proteção do sol quente e
palavra de juízo em Oseias, utiliza-se pri- uma perfumada fragrância. Israel será uma
meiramente da figura de um vento quente nação forte, segura e famosa.
do deserto que vem do leste, secando todas Esta é verdadeiramente uma promes-
as fontes de água, mesmo as das nascentes sa maravilhosa, e um clímax maravilhoso
e dos poços. Saqueará o tesouro de todas para o livro de Oseias. Israel falhara em se
as coisas preciosas. Uma metáfora militar apropriar dessas bênçãos no oitavo sécu-
é usada para descrever o vento: nenhum lo a.C., mas a promessa permaneceu e foi
alimento crescerá e, portanto, todo supri- cumprida para muitos do povo de Israel
.
11I
. . OSEIA514

que se juntaram a Judá em Jerusalém, e a


1172

É fácil imaginar um editor (inspirado) adi-


muitos que se juntaram a Deus por meio de cionando isso às profecias de Oseias, como
Jesus Cristo. um convite para ler e aprender. "Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça" (Mt 11.15). O li-
14.9 Um provérbio vro é tremendamente relevante para todos
final de sabedoria que o lerem, inclusive nós. A única manei-
Este provérbio independente é muito pa- ra de viver é a maneira do Senhor.
recido com os que temos em Provérbios
e em outras partes da literatura sapiencial. Mike Butterworth
-=-

JOEL

INTRODUÇÃO
Data os sabeus (3.8) foram substituídos pelos
O título em 1.1 não fornece informação meunitas como importantes comerciantes
alguma sobre o profeta a não ser o nome árabes. Em harmonia com essa linha de
de seu pai. O importante aqui é a mensa- tempo geral está a impressão de que Joel
gem divina, e não o mensageiro. Assim, cita vários trechos das Escrituras e tradi-
o conhecimento do contexto pode ser ex- ções como escritos evidentemente ante-
traído somente das evidências internas. É riores à própria época, e, portanto, bem
de grande valia tentar descobrir o máximo conhecidos por seus ouvintes.
possível sobre o contexto histórico e social
dos escritos proféticos. Assim fazendo, Ocasião
conseguimos acessar de modo mais inte- Sabemos, por outros livros posteriores ao
ligente a mensagem do profeta para sua exílio, que este foi um período muito difí-
própria época, o que nos ajuda a aplicá-la à cil tanto em termos políticos quanto eco-
nossa própria situação. nômicos para os judeus que regressavam.
Costumava-se pensar que a ordem dos Ageu menciona uma péssima colheita que
livros dos profetas menores era significa- devastou a comunidade no exato momento
tiva para datar o livro de Joel. Certamente em que dispunham de recursos insuficien-
há nela uma sequência histórica não exa- tes para se sustentar (Ag 1.6,10,11; 2.19).
ta, mas não devemos nos ater a uma data Essa crise na agricultura tomou-se um
anterior apenas por essa razão. O posicio- peso enorme para o ministério de Joel, pois
namento do livro de Joel é um tópico mui- chegou a ameaçar a sobrevivência do povo
to interessante, ao qual retomaremos um que lutava para se restabelecer na terra.
pouco mais adiante (ver também o quadro Eles sofreram com uma terrível praga de
na página 949). gafanhotos que afetou a colheita por mais
O indício mais claro para que possa- de um ano (l.4; 2.25). Os gafanhotos são
mos datar o livro de Joel provém das in- até hoje uma séria ameaça, principalmente
formações históricas fornecidas nas acusa- para os países africanos, embora a pulve-
ções de 3.2,3,5,6. Hoje se acredita que tais rização com pesticidas, especialmente por
informações se encaixem melhor nos ter- meio de aviões, tenha diminuído sua capa-
ríveis eventos da destruição de Jerusalém, cidade de destruição das lavouras, extermi-
em 586 a.C., e nos seus desdobramentos. nando-os antes que possam se desenvolver
O templo foi destruído nessa época, mas e se reproduzir. Com esta finalidade, em
tanto o templo como seus rituais estão uma única semana, em setembro de 1986,
claramente presentes na mensagem de quatro aeronaves do tipo DC-7 pulveriza-
Joel (1.9,13,14,16; 2.14,17; cf 3.18). ram quase um milhão de acres no Senegal
Consequentemente, uma data não apenas com o inseticida malathion. Um enxame
posterior ao retomo do povo de Israel do pode conter até dez bilhões de gafanhotos.
exílio babilônico, mas também posterior Cerca de três mil gafanhotos recém-nas-
à reconstrução do templo, em 515 a.C., cidos podem ocupar o espaço de um me-
é a mais indicada. Por volta de 400 a.C, tro quadrado. Um único gafanhoto pode
JüEL 1174

voar quase cinco mil quilômetros durante "converter" refere-se à aliança entre Javé
sua vida, destruindo a vegetação por onde e seu povo. Este conceito é o fundamento
ele e seu enxame passarem. Um enxame de todo o ministério profético de Joel. Isso
pode devorar em um só dia o que 40 mil fica evidente em expressões como "vos-
pessoas comem em um ano. Em um único so Deus" (2.13,26,27; 3.17), "meu povo"
ataque de gafanhotos à Etiópia, em 1958, (2.27; 3.2,3) e "seu povo" (2.18; 3.16).
o país perdeu 167 mil toneladas métricas Além disso, conquanto o nome político
de grãos, o suficiente para alimentar mais da comunidade fosse Judá (3.1 etc.), Joel
de milhão de pessoas por um ano. (Muitos também usa o nome que o povo recebera
desses dados foram extraídos dos relatórios na aliança, Israel (2.7; 3.2,16).
da Visão Mundial, de dezembro de 1986 a No AT, a aliança é um conceito trian-
janeiro de 1987.) gular que inclui a terra. Esse triângulo é
Tal infestação significou que a sobre- expresso claramente em 2.18: "Então, o
vivência da comunidade judaica foi co- SENHOR se mostrou zeloso da sua terra,
locada em cheque. O que eles poderiam compadeceu-se do seu povo". Tal fato tam-
fazer? A religião desempenhava um papel bém se revela na descrição do povo judeu
importante na sociedade antiga, e Judá não como "todos os moradores [habitantes] da
era exceção. Os profetas eram figuras bem terra" (1.2,14; 2.1; cf Os 4.3). A dádiva da
aceitas na religião judaica. Assim, era a terra por parte de Deus era um instrumento
função de Joel interpretar a praga dos ga- sensitivo registrando a condição espiritual
fanhotos em termos religiosos e orientar o do povo. A terra era fértil nas épocas de co-
povo a tomar as medidas religiosas apro- munhão e obediência, mas estéril e impro-
priadas para lidar com o problema. Joel pa- dutiva nas épocas de infidelidade do povo.
rece ter sido um profeta oficial do templo. De fato, as pragas dos gafanhotos figuram
O papel crucial desempenhado por esses como uma das maldições da aliança em
profetas nos períodos de crise nacional é Deuteronômio 28.38,42, enquanto a pros-
ilustrado pela narrativa de 2Crônicas 20.1- peridade agrícola era creditada à benção de
20. Ali, o profeta tem autoridade para res- Javé (Dt 28.4,8,11,12).
ponder a uma oração de lamento da nação Essa íntima dependência da prospe-
em nome de Javé, o Deus de Israel, e para ridade material da obediência à vontade
prometer a libertação da crise. Joel alega de Deus será a base de toda a mensagem de
ter esse mesmo poder. Os salmos também Joel. Outras partes do AT, particularmente o
fornecem evidências do ministério desses livro de Jó, qualificam-na, ao passo que
profetas em advertir o povo a corrigir seus o NT não faz apelo a ela com tanta frequên-
caminhos (SI 81.8-16; 95.7-11). Esse papel cia (v. Mt 6.33; 2Co 9.6-11; Fp 4.15-19).
fica evidente na primeira metade do livro Ainda assim, persiste no NT uma afinidade
de Joel. básica entre a humanidade e o restante da
criação que nós ignoramos por nossa pró-
Propósito pria conta e risco. O cuidado com o meio-
Qual significado religioso Joel encontrou ambiente é do interesse dos seres humanos
na praga? Ele a interpretou como uma e, portanto, do interesse dos cristãos.
advertência de Deus para que o povo se O sistema da aliança, com seu delica-
voltasse para ele, assim como Amós fizera do equilíbrio entre bênçãos e maldições,
numa época anterior: "a multidão das vos- era condicional (cf Jr 14.21). Na verdade,
sas hortas, e das vossas vinhas, e das vossas Deus tinha todo o direito de revogá-la, caso
figueiras, e das vossas oliveiras, devorou-a seu povo se recusasse a cumprir com a par-
o gafanhoto; contudo, não vos convertestes te que lhe cabia, embora ficasse somente
a mim, disse o SENHOR." (Am 4.9). O termo a critério de Deus a opção de exercitar ou
1175 JOEL • •

••
não esse direito. Havia uma gradação evi- via espelhar a restauração do favor divino
dente de maldições, cuja intenção era tan- e a vinda de uma era dourada, prometida
to punir quanto advertir o povo, como em por Jeremias, Ezequiel e em Isaías 40-55.
Amós 4.6-11. O juízo supremo é expresso A principal tarefa dos profetas pós-exilicos
em Amós 4.12, o "te encontrares com o era explicar por que essas esperanças ain-
teu Deus", em uma sinistra confrontação da não tinham se concretizado. O conceito
que transcenderia juízos anteriores da pro- do Dia do Senhor estava entrelaçado com
vidência (no entanto, veja comentário de essas esperanças, que incluíam a vingan-
Am4.12). ça e, portanto, o sucesso político de Judá
A confrontação é descrita posterior- à custa das nações vizinhas em cujas mãos
mente em Amós 5.18-20 como "o dia do Judá tinha sofrido. Lamentações 1.21 e
SENHOR" que, ironicamente, seria "dia de Obadias 15-21 são expressões desse des-
trevas e não de luz". Esse conceito, o qual dobramento que Joel herdou. Assim, o Dia
Amós relacionava historicamente à destrui- do Senhor compreendia tanto o juízo quan-
ção permanente de Israel, o Reino do Norte, to a salvação para o povo de Deus, sendo
em 721 a.c., teve forte influência sobre os que esta implicava o juízo para outras na-
profetas posteriores. Joel o utilizou com ções (cf Ez 30.2-4). Em sua forma mais
frequência; mas enquanto para Amós Deus complexa, incluía também a salvação para
usaria forças humanas para empreender outras nações (Sf3.9; cf Sf 1.14-18; 3.8);
a guerra contra seu povo, para Joel uma porém, como no caso de Joel, nem sempre
força natural seria seu instrumento. Numa era sábio, em termos pastorais, pensá-lo ou
interpretação notável, ele associou a pra- dizê-lo.
ga dos gafanhotos ao "Dia do SENHOR", Logicamente, uma vez que o tema do
como sendo um primeiro estágio na ani- Dia do Senhor tinha sido aplicado aos ga-
quilação do povo da aliança (1.15; 2.1,11). fanhotos, ele foi expandido em 2.28-3.21
Joel encontrou precedentes em Ezequiel e para incluir outros aspectos intimamente
Obadias, que entenderam a destruição do associados a ele.
estado de Judá, juntamente com seu tem-
plo e monarquia, em 586 a.c., em termos Posição no cânon
do "Dia do SENHOR" (Ez 7; 34.12; Ob 8-14; Em Salmos, algumas vezes encontramos
cf Lm 2.21,22). Entretanto, Joel apontou salmos paralelos tratando de assuntos rela-
a possibilidade de clemência para Judá, cionados, tais como os salmos 105 e 106 e
após o exílio, se os rituais de honra a Deus os salmos 111 e 112. Por razões literárias,
por meio de um culto público de lamento, Joel e Amós parecem ter sido colocados
arrependimento sincero e oração fossem juntos entre os profetas menores, que no
executados (1.14; 2.16,17). Evidentemente cânon judaico representam um único livro.
tudo isso foi executado e, por meio de Joel, O que liga os dois livros entre si são os te-
veio de Deus uma resposta favorável. Essa mas compartilhados por Joel 3.16 e Amós
resposta prometia o fim da praga dos gafa- 1.2, e por Joel 3.18 e Amós 9.13. Um ter-
nhotos e bênçãos em relação à agricultura remoto, mencionado em Joel 2.10 e 3.16,
(2.18-27). reaparece em Amós 1.1; 8.8; 9.5. Os ga-
O livro poderia terminar nesse ponto, fanhotos de Amós 4.9 evocam Joel 1-2,
mas não termina. No período posterior enquanto o tema do Dia do Senhor em
ao exílio houve uma intensa expectativa Amós 5.18-20 se conecta com todo o livro
da vinda de uma era de bênçãos. O exí- de Joel. Pô-los lado a lado ajudou a lançar
lio, como juízo divino, foi considerado luz sobre cada um deles individualmente,
um ponto de virada no relacionamento do ainda que mais de 300 anos de história os
povo com Deus. A restauração da terra de- separem entre si.
li
;l1li JOEL 1176

Significado o papel de pastor. Em nome de Deus, ele


Devemos tomar conhecimento da mensa- era sensível às frustrações e angústias de
gem que Joel trouxe aos seus contemporâ- uma minoria étnica. Substituiu o desespe-
neos antes que possamos ouvi-la para nós ro pela esperança, e uma autoimagem ruim
mesmos. Isso envolve apreciar a espiritua- pela confiança nos propósitos positivos de
lidade própria do livro. A Joel foi dada uma Deus. Deus reconheceria e reverteria o so-
compreensão clara da experiência humana, frimento de seu povo nas mãos das nações
o que permitiu que ele pudesse relacioná- (3.2,3,5,6,19), vingando-o e o abençoan-
la aos propósitos de Deus. O descontenta- do. Sempre que a igreja se sentir insegura
mento de Deus não se encontra sempre por e ameaçada por um mundo hostil, ela pode
trás do infortúnio humano, como mostra se voltar a Joel em busca de apoio.
claramente o livro de Jó no AT. Mas o NT O intérprete cristão de Joel deve se
algumas vezes vê Joel como um livro que perguntar se o NT fez uso direto do livro.
relaciona os infortúnios dos crentes ao juí- Como poderemos observar ao longo do co-
zo divino (lCo 11.30-32; Hb 12.5-11). Os mentário, houve uma dupla utilização do
trechos de advertência em Hebreus (e.g., material que aponta para o final dos tem-
Hb 10.26-31) e as cartas às igrejas em pos. Primeiro, de uma forma bem direta,
Apocalipse, especialmente para Laodiceia a vinda do Dia do Senhor foi associado à
(Ap 2.5; 3.3,14-22), soam como se fossem segunda vinda de Cristo, quando Deus em-
palavras de Joel, por utilizarem termos preenderá um ataque final contra forças do
muito fortes ao se referirem aos perigos mal. Segundo, a promessa do derramamen-
da traição espiritual. Ainda que Joel tives- to do Espírito em 2.28,29 e a linguagem do
se de falar asperamente com os pecadores Dia do Senhor em 2.30-32 receberam uma
de dura cerviz, ele também sabia quando sofisticada interpretação no discurso de
falar de maneira persuasiva do temo amor Pedro em Pentecostes, em Atos 2.16-21,33
de Deus (2.13), lembrando Hebreus 6.9-12 e 38-40. Essa dupla utilização reflete uma
(cf 2Pe 3.9). convicção de que, aos olhos da igreja, os
Joel desempenhou a função de mestre, últimos dias já começaram, mas ainda não
citando as Escrituras e tradições religiosas terminaram, ao passo que, aos olhos do
e aplicando-as à sua própria época. Por mundo, eles ainda se encontram no futuro.
exemplo, em 2.13 citou a bela descrição Alguns acreditam que as bênçãos de ca-
que Deus recebia na adoração de Israel ráter nacional e material para Judá, previs-
(cf Êx 34.6; SI 86.15) e a usou como um tas em 3.17-21, serão um dia desfrutadas
incentivo ao arrependimento. Também era pelo povo judeu. Entretanto, há pouquís-
muito cuidadoso ao preparar o caminho sima base no NT para essa alegação (v. Lc
para os oráculos divinos, como fez quan- 21.24). O sentido geral de seus ensinos está
do desafiou diferentes grupos de pessoas mais direcionado à igreja, composta de ju-
(1.2-18) e ofereceu um exemplo de oração deus e gentios, uma versão espiritualizada
(1.19,20) antes da convocação de Deus das promessas do AT. Contudo, há indícios
para que o povo se reunisse em adoração de que uma nova terra é parte dos propósi-
por arrependimento em Jerusalém (2.1). tos finais de Deus (Rm 8.21; 2Pe 3.13).
Além disso, ele explicava os oráculos logo
que proferidos: em 2.13 ("convertei-vos ao Leitura Adicional
SENHOR...") o chamado divino de 2.12 é re- GOLOSMITH, M. Habakkuk and Joel: God is
forçado para que seja obedecido, e em 2.32 sovereign in History. Marshall, Morgan
o significado da intenção de Deus para com and Scott, 1982.
o seu povo (v. 30,31) é esclarecido. BOICE, J. M. The minar prophets. 2 v.
O ministério profético de Joel incluía Zondervan, 1983, 1986.
1177 JOEL 1.:.•
CRAIGIE, P. C. The books of,'Joel, Obadiah, ALLEN, L. C. The books ofJoel, Obadiah,
Jonah e Micah. DSB. St Andrew Jonah and Micah. NICOT. Eerdmans,
Press, 1984. Também publicado nos 1976.
EUA, na obra Twelve Prophets. v. 1. DILLARD, R. Joel em MCCOMISKEY, T., ed.
DSB. Westminster/John Knox Press, The Minor Prophets. v. 1. Baker Book
1984. House, 1992.
HUBBARD, D. A. Joel e Amós: introdução e STUART, D. Hosea - Jonah. WBC. Word,
comentário. SCR Vida Nova, 1996. 1987.

ESBOÇO
1.1 Título
1.2-2.17 Convocações para oração
1.2-4 A gravidade da situação
1.5-12 Desafios a diferentes grupos
1.13-20 Um chamado à oração pública
2.1-11 Pregando por um veredicto
2.12-17 A única chance

2.18-3.21 Respostas de oração


2.18-27 Vitória sobre os gafanhotos
2.28-32 Renovação e proteção para o povo de Deus
3.1-17 Tribulação para as nações e segurança para Israel
3.18-21 Bênçãos para o povo de Deus

COMENTÁRIO ridos por meio de Joel, da mesma forma


que Oseias 1.1.
1.1 Título
O título de um livro profético pode ser 1.2-2.17 Convocações
uma mina de informação histórica, como para oração
no caso do livro de Oseias (Os 1.1). Aqui A primeira metade do livro consiste em
as informações são mínimas, e estas se uma série de tentativas por parte do profeta
concentram no fato da revelação proféti- de encorajar o povo a se converter a Deus,
ca, apontando - além do agente humano em espírito de arrependimento, como res-
- para o próprio Deus. O nome Joel sig- posta ao terrível episódio da praga dos
nifica "Javé é Deus": representa a profis- gafanhotos. O modo de proceder em tal
são de fé dos seus pais no Deus de Israel. emergência é fornecido pela oração de
O fato de o livro fornecer o nome do seu Salomão em IReis 8.37,38: o povo deve
pai em vez do local de sua residência (cf ir ao templo como casa de oração, perma-
Mq 1.1) sugere que ele era natural de necendo em seus átrios com as mãos es-
Jerusalém, assim como Isaías (Is 1.1). A tendidas em súplica na direção desta casa
expressão Palavra da SENHOR [Javé] que dele e, assim, na direção do Deus ali san-
foi dirigida a é uma fórmula que introduz tificado. Essa era a resposta espiritual que
uma mensagem individual de Deus a um Joel se empenhou em despertar. O profeta
profeta, como em Jeremias 1.4. Aqui se preparou seus ouvintes em 1.2-2.11 para
refere a um conjunto de oráculos profe- o pequeno oráculo de Deus em 2.12. Em
JüEL 1 1178

seguida, ele reforçou o oráculo com um cendo à sua volta. Joel os adverte de forma
apelo adicional em 2.13-17. Como o tí- bastante irônica sobre uma consequência
tulo em 1.1 deixa implícito, não importa da praga que terá efeito até mesmo sobre
se o profeta fala ou se é Javé quem fala eles: sua fonte de vinho será eliminada.
por meio dele, o que importa é que o todo Nos v. 6,7 ele parece falar de modo pas-
consiste em uma palavra divina. O profeta sional sobre seu próprio sofrimento, a fim
estava expressando a mente de Deus. de estimular seus ouvintes a perceber que
eles também estão pessoalmente envolvi-
1.2-4 A gravidade da situação dos. Os gafanhotos eram virtualmente um
Joel começa com um chamado geral aos exército invasor: Joel desenvolverá teolo-
velhos (anciãos), os representantes políti- gicamente essa ideia em 2.1-11. O enorme
cos do povo e aos demais judeus. Ele os número de gafanhotos tinha lhes conferido
desafia a admitir a singularidade da expe- o mesmo poder dos grandes predadores.
riência deles. Era uma experiência distin- Tinham atacado as videiras e outras árvo-
tamente inédita; um marco histórico para res frutíferas, chegando mesmo a lhes tirar
as gerações futuras. Para aqueles com a casca, causando assim a morte dessas
ouvidos para ouvir, o profeta usa a lingua- plantas. Não é de admirar que aos beber-
gem da instrução religiosa: cf Êxodo 10.2; rões se diga chorai; uivai.
Salmos 48.13; 78.4,6. Era um indício de 1.8-10 Jerusalém. Os verbos em he-
que Deus estava de algum modo atuando braico, no feminino singular, a menção aos
na situação humana e que eles precisavam sacerdotes do templo e a alusão aos "filhos
relacioná-lo a ele. A situação é descrita no de Sião" em 2.23 na lista complementar de
v. 4 como uma terrível praga de gafanho- grupos invocados sugerem que o que se
tos, uma série de ataques até que a vege- tem em vista é Jerusalém, uma entidade fe-
tação ficasse totalmente destruída. Vários minina na língua hebraica. A exortação ao
termos diferentes são empregados para de- lamento é dirigida tanto aos seus cidadãos
signar os gafanhotos, em vez de retratar seu como aos ajuntamentos religiosos de pes-
desenvolvimento biológico; uma ordem soas na capital. A reprodução da catastró-
diferente é fornecida em 2.25. O segundo fica desolação transmite a forma altamente
termo (gafanhoto migrador) representa o emocional que o lamento deve assumir
termo geral em hebraico para gafanhotos, como um reflexo da crise. A tradução al-
e seria mais bem traduzido por "nuvem de ternativa "noivo" (NVI, 8) é mais provável.
gafanhotos". O primeiro e o quarto termos No antigo Israel, o noivado era um vínculo
têm relação com seu potencial destrutivo. legal, assim como é, nos dias de hoje, a as-
O terceiro termo (gafanhoto devorador) sinatura de um contrato antes da conclusão
significa "saltador". de um negócio. A morte inesperada de um
dos parceiros antes que a cerimônia de ca-
1.5-12 Desafios a diferentes grupos samento se concretizasse teria ocasionado
O apelo geral dos v. 2-4 agora se fragmen- tumultuoso amargor e desespero. Um cho-
ta em uma série de apelos a vários setores que dessa espécie deve ser sentido agora
da sociedade. Joel incita a cada um, por em Jerusalém. A razão dada para isso é o
sua vez, a interpretar a praga em termos fato de que o templo, que era o coração de
espirituais, voltando o foco à necessidade Jerusalém, tinha sido privado das ofertas
particular de cada um deles. Sua intenção é diárias de cereal e das libações diárias de
convocá-los a um culto de lamentação pú- vinho que acompanhavam os sacrificios
blica, como mostra claramente o v. 14. de animais (Cf Êx 29.38-40; Nm 28.3-8).
1.5-7 Ébrios. Normalmente os bêbados Subitamente, a engrenagem da adoração
são os últimos a saber o que está aconte- perene cessara de girar. O ciclo de bên-
1179

çãos divinas sobre as colheitas e as ofertas


JOEL 1

experiência humana tem um significado


<
de adoração (cf 2.14) fora interrompido. espiritual. Todo pregador pode aprender
Como nos v. 6,7 o profeta apontara para com seu esforço.
seu próprio sofrimento, agora ele busca
confirmação na angústia dos sacerdotes 1.13-20 Um chamado
que trabalham no templo. A consciência à oração pública
dos sacerdotes de que uma crise ocorreu 13,14 Em vez de um festival para come-
fez com que se engajassem nos rituais de morar a colheita o momento é de um cul-
lamentação. O motivo da crise era a des- to sombrio. Joel incentiva os sacerdotes a
truição do material utilizado na adoração. continuarem com seus rituais do v. 9, mas
As olivas que se murcharam eram a maté- ele defende que a tragédia da interrupção
ria-prima do óleo que era misturado à fari- das ofertas regulares necessita de medidas
nha para as ofertas de cereais. adicionais. Primeiro, o lamento deve ser
1.11,12 Agricultores. Após o v. 10, intensificado com vestimentas apropria-
era natural que os lavradores e vinhatei- das e com uma vigília que deve atraves-
ros fossem os próximos grupos a ser desa- sar a noite. O pano de saco era usado em
fiados. Eles, dentre todos do povo, tinham momentos de luto (cf Am 8.10). Há uma
razão para se lamentar. As colheitas de distinção cuidadosa entre as referências ao
cereais tinham sido totalmente destruídas; vosso Deus e ao meu Deus. Os sacerdotes
agora, as videiras e as árvores frutíferas tinham o papel de servir a Deus, um papel
estavam murchas e secas. O termo hebrai- cuja expressão usual estava sob ameaça.
co para o verbo secou guarda associações Joel reivindica seu próprio papel profético
com a ideia de lamentação, como observa como autorização para direcioná-los a um
a nota textual do v. lOna NVI. Era como aspecto diferente de sua função, para que
se as plantas em seu estado deplorável se engajem em ardente oração, expressan-
dessem um incentivo para a lamentação do assim seu sentido de perda.
humana. Mais uma vez o profeta está sus- Em segundo lugar, ele os incita para
tentando seu chamado com um exemplo que estendam seus esforços à organização
motivador. Assim como nos v. 6,7 o pro- de um culto de lamentação pela nação.
feta fala do seu sofrimento para encorajar Eles devem convocar um feriado público
os outros a considerarem os seus próprios, para essa finalidade (uma assembleia so-
aqui ele dá sustentação ao seu chamado à lene é literalmente "pausa no trabalho") e
lamentação apontando para o próprio "la- proclamar um ritual de jejum acompanha-
mento" das plantas, como exemplo. Nesse do de oração que prove ser sincero (cf Jz
ano não haveria festivais para comemorar 20.26; Jr 14.1,2,12). Com a autoridade que
a colheita, festivais que se destinavam à lhes fora investida como sacerdotes, eles
alegria e ao divertimento da comunidade são exortados a convocar tanto os anciãos
(cf SI 4.7; Is 16.10). quanto aqueles que eles representavam
Joel usou uma série de argumentos a clamar ao Senhor. A referência aos an-
para persuadir o povo, com seus diferentes ciãos e a todos os moradores desta terra
pontos de vista, para que se unissem em evoca o v. 2 e revela o propósito de Joel,
tomo de uma mesma religião. A função nos v. 2-13, de preparar o caminho para
de cada setor da sociedade tinha sido en- esta demanda por um período de oração da
fraquecida. Suas preocupações deveriam nação.
se transformar em orações: somente Deus 15-20 Como líder espiritual do povo,
poderia atender suas necessidades. Joel se Joel fornece um modelo de oração. Sua
empenhou para comunicar tais verdades preocupação constante é fazer com que o
a cada grupo e para lhes mostrar que a povo olhe para além de si mesmo, dan-
>JÜEL2 1180

do-lhe um exemplo a seguir. Nos v. 6,7 um significado incerto. A fome assolava


ele se referiu a seu próprio sentimento de o povo impotente. Agora que as colheitas
perda, no v. 9 ao lamento dos sacerdotes, do cereal fracassaram, eles já não são ca-
enquanto no v. 12 ele fez referência ao la- pazes de expressar sua confiança sagrada
mento das plantas. A oração corresponde à nas ofertas regulares apresentadas a Deus
lamentação da nação, encontrada nos sal- com alegre adoração. Os prédios miserá-
mos em que, entretanto, ela é geralmente veis, antes utilizados para armazenamen-
uma resposta à invasão militar (e.g., SI 44; to das colheitas, uma vez deixando de ter
74; 80). O v. 15 começa com uma citação utilidade acabaram sendo abandonados,
de Isaías 13.6, um clamor de aflição que tornando-se monumentos ostensivos ao
apresenta o dia do SENHOR. Esta é a primei- fracasso da colheita. Os rebanhos e as ma-
ra menção a uma expressão que domina nadas sem pastos são mais uma evidência
todo o livro. Ela se refere à intervenção dessa crise.
dinâmica de Javé nas questões humanas. 19,20 Há uma retomada da oração di-
A expressão tinha aparecido pela primeira reta, uma vez que ela agora passa a ser
vez em Amós 5.18-20, em que suas asso- dirigida ao próprio Deus. Era permitido
ciações populares com a ideia de salvação ao líder da oração, ao fazer um lamento
e bênção da nação foram substituídas pelo pela nação, inserir uma nota pessoal (cf
juízo em relação a Israel. Os profetas tam- SI 44.4,6,15,16; 74.12). Se Deus era a cau-
bém a usavam em associação com o juízo sa desse mal, era também a cura dele. O
de Deus sobre nações estrangeiras, e tem lamento tipicamente trabalhava com uma
esse mesmo sentido em Isaías 13.6. De dupla imagem de Deus, mostrando-o como
modo surpreendente, Joel a reaplicou ao juiz providencial e salvador em potencial
povo de Deus como vítima desse juízo. A (cf SI 22.11,15). O profeta colocou diante
citação era em si uma afirmação de grande de Deus a tragédia da terra destruída. Se
impacto em virtude do jogo de palavras en- isso era tão significativo para Joel (6,7), de-
tre shõd (ruína) e shadday (Todo-podero- veria certamente tocar o coração de Deus.
so). Os israelitas tinham um grande ouvido A referência ao fogo implica estado de
para trocadilhos; era um meio de suscitar seca. A praga dos gafanhotos e a seca não
emoções frequentemente usado pelos pro- coincidem: evidentemente a seca veio após
fetas. Joel já havia falado sobre essa ruína a destruição causada pelos gafanhotos e a
(lO, assolado, destruído: heb. shuddad). agravou. Clamo deveria provavelmente ser
Agora, de modo chocante, ele localiza sua "choro" (AV, NRSV). O clamor dos animais
origem no próprio Deus, interpretando a do campo é surpreendentemente interpre-
praga de gafanhotos como obra do próprio tado como uma oração a seu Criador (cf
Senhor. ("Aquele dia" [NVI] é literalmente Jó 38.41; SI 104.21; Rm 8.22). Certamente
"dia" [Que dia, ARA]; "[o dia do SENHOR] ele assim o ouviu e se compadeceria do seu
vem" [ARA], como aparece em 1.15 e tam- sofrimento (cf Jn 4.11).
bém em 2.1, é mais apropriado ao contexto
do que "virá" [NVI, ARe]). Fica implícito 2.1-11 Pregando por um veredicto
que a maldição da aliança está em curso Aumenta-se a pressão emocional em pre-
(cf Dt 28.38). A praga é o início do fim paração para o apelo divino do v. 12. Outra
para o povo da aliança. vez há um chamado à nação, como em 1.2
16-18 Em orações de lamento era co- e 14. A única esperança do povo é voltar-
mum dar uma descrição dos fatos da crise se para Deus em um culto de lamentação.
para motivar Deus a intervir a favor da ví- Para encorajá-los a fazer tanto, Joel faz
tima. Essa é a descrição que aparece ago- soar um alarme militar e descreve, então,
ra, embora a primeira frase do v. 17 tenha os gafanhotos como um inimigo da nação.
1181 JOEL2."
••
Sinistras alusões utilizadas na mensagem está na NRSV, GNB E REB ("nuvem escura",
anterior, em que se fez referência a "um NTLH), uma vez que a intenção evidente é
povo" que veio "contra a minha terra" e ao justificar a aplicação da linguagem profé-
"Dia do SENHOR", são desenvolvidas ago- tica tradicional aos gafanhotos. O uso da
ra, quando Joel se engajá em um tipo de palavra aurora na NVI presumivelmente se
pregação aterrorizante e infernal. Às vezes refere ao reflexo do sol nas asas dos gafa-
os apelos à razão não são suficientes e so- nhotos. Eis aqui o dia do juízo para o povo
mente o medo de consequências terriveis de Deus. Joel retoma de 1.6 a imagem de
pode dar a noção da realidade de Deus (cf um povo [...] poderoso e inumerável, an-
Hb 10.26-31). tes de desenvolvê-la mais tarde nesta pas-
Alguns comentaristas interpretam o sagem. Então, em uma intensificação de
trecho em termos de um exército literal, 1.2, retoma a linguagem de Êxodo 10.14,
mas isso é pouco natural. O uso de ana- que descrevia a praga dos gafanhotos no
logias militares nos v. 4,5 e 7 implica que Egito. Agora, entretanto, a vítima é o povo
as expressões belicosas têm sentido apenas de Deus.
metafórico. Além disso, as claras referên- 3-5 O v. 3 contém uma hábil alusão a
cias aos gafanhotos e ao dano causado por Salmos 97.3, que descreve uma teofania,
eles, nos v. 19-26, sugerem o desenvolvi- um aparecimento dramático do Deus pode-
mento de um tema consistente por todo roso na terra, envolto em flamejante glória.
o trecho de 2.1-27. O profeta interpreta a Os gafanhotos são representantes de Deus,
praga dos gafanhotos com uma linguagem e o fogo devorador é a aridez que eles cau-
religiosa bem conhecida de sua plateia: saram à paisagem. Com sua "política de
ele acrescenta a essa linguagem imagens terra seca" eles transformaram a beleza
terriveis associadas com o Dia do SENHOR. verde da paisagem (cf Ez 36.35) em um
Referências temáticas a ele nos v. 1 e 11 e deserto assolado. Joel explora a estranha
em citações relacionadas a Isaías 13.6 e 10, semelhança entre a cabeça do gafanhoto e
nos v. 1 e 10 fornecem a estrutura e ideia- a do cavalo. Os gafanhotos são a cavalaria
chave do trecho. de Deus pronta para atacar. O ruído que
1,2 O grito de alarme na primeira frase fazem quando comem, que observadores
do v. 1 evidentemente veio do próprio Deus modernos descrevem como "o som de um
(meu santo monte). O soar de um alarme arbusto em chamas", é descrito com ana-
notificava a invasão de uma força inimi- logias militares e de destruição. Os gafa-
ga (cf Ez 33.2-4). Na verdade, o toque da nhotos são um autêntico exército promo-
trombeta também anunciava os cultos no vendo uma campanha de terror. Metáforas
templo (cf Nm 10.1-10), e há um jogo de e símiles são usadas para abrir um novo
ideias aqui que o v. 15 irá esclarecer. Deus horizonte de compreensão, para revelar o
estava chamando ao aparelhamento do significado subjacente da praga como obra
templo, e não das trincheiras. Joel expli- de Deus.
ca o perigo em termos do Dia do SENHOR, 6-9 Agora é desenvolvida a imagem do
primeiro citando Isaías 13.6, mais uma ataque de um exército (v. 5). Mas primeiro
vez. Diferentes aspectos da intervenção é fornecida outra alusão a uma teofania do
de Deus são apresentados em relação aos juízo. A expressão hebraica para as expres-
gafanhotos. A nuvem negra de milhões de sões diante deles e tremem corresponde a
insetos que cobria os montes é descrita na "tremei diante dele" em Salmos 96.9. Os
amedrontadora linguagem de outro profeta gafanhotos representam o grande poder de
das Escrituras, Sofonias 1.15. Em vez de Deus em ação contra seu povo. O plural
alva seria melhor "negridão", revocalizan- povos intensifica seu terrível impacto. Os
do o hebraico shahar como shrhôr como profetas frequentemente descreviam os ini-
JüEL2 1182


migos de Israel como providenciais agen- ele traz dessa terrível figura um pedido de
tes de Deus, punindo com seus ataques o submissão de Judá a ela, parece ser seu an-
povo pecador (e.g., Is 10.5,6; Am 2.13-16). tigo aliado quem está falando. Como expli-
Joel aplica esse conceito aos gafanhotos. ca o profeta, quando o senhorio de Javé é
Marchavam invencíveis, infiltrando-se até reconhecido, ele pode revelar-se como um
mesmo em Jerusalém e em suas casas. Deus de amor. Mas, primeiramente, no v.
10,11 Este é o clímax. Se no v. 6 a pala- 12, o profeta transmite um oráculo divino
vra "povos" intensifica a descrição que Joel que é uma convocação ao arrependimento
faz dos gafanhotos, agora as referências (cf Jr 3.22; 7.3; 18.11; Am 5.4,5). É o clí-
cósmicas o fazem ainda mais. Outra vez o max a que levaram os próprios apelos de
profeta fala em termos de teofania. No AT Joel no cp. 1. Convertei-vos evoca o rela-
um terremoto é a reação-padrão do mundo cionamento da aliança, como Joe1comenta
a uma aparição de Deus (cf SI 18.7; 77.18). no v. 13 (vosso Deus; cf 2.26,27; 3.17).
As referências cósmicas eram característi- O povo de Deus são as filhas e os filhos
cas do Dia do SENHOR, como atestam Isaías pródigos que precisam voltar para casa,
13.10 e 13, trechos que os ouvintes de Joel para seu pai celestial. Devem fazê-lo ago-
sem dúvida tomaram como referência. ra mesmo: este é o momento psicológico
Enquanto ondas de gafanhotos rasteja- para a ação. A nota de urgência faz parte
vam por sobre o solo, este parecia tremer dos chamados ao arrependimento do AT
ao ritmo de seu movimento ondulatório. (Js 24.14; Jr 26.13; cf At 17.30; 2Co 6.2),
Enquanto incontáveis miríades voejavam e foi incorporada às pregações evangelís-
rumo a pastos viçosos, elas eclipsavam o ticas e aos hinos. Todo vendedor conhece
sol de dia e a lua e as estrelas à noite. essa urgência quando um negócio está para
Aos olhos de Joel, entretanto, esses ser fechado.
fenômenos naturais são ofuscados por seu A espiritualidade sempre tem suas fór-
significado sobrenatural. Com visão profé- mulas religiosas externas. Neste caso, o
tica, Joel apresenta o próprio Javé como o comprometimento total da vontade (co-
comandante dos gafanhotos, cujas legiões ração), uma qualidade que se destaca em
marcham em obediência às suas ordens. Deuteronômio (e.g., Dt 11.13), deve ser
Trata-se novamente de uma alusão a Isaías expressa pelo ritual-padrão de um cul-
13.4, porém agora os inimigos de Deus não to público de lamentação. Os desafios do
são estrangeiros, mas seu próprio povo. A profeta para que o povo chore, lamente e
pergunta final tem o objetivo de evocar o jejue em 1.5,13 e 14; são reunidos, aqui, no
desespero e o sentimento de impotência. chamado divino.
Com a crise, Israel tem de ficar frente a 13-17 Joel interpreta a mensagem de
frente com seu divino juiz. Deus. Há um paralelo em Salmos 85.8-13,
Joel está deliberadamente pressio- em que um oráculo de uma única palavra,
nando os sentimentos de seus ouvintes a "paz" (shãlôm), é interpretado detalhada-
um ponto crítico. Ele despertou neles um mente pelo profeta do templo, em respos-
senso absoluto de desastre iminente e uma ta a um lamento nacional. Primeiro, Joel
tensão intolerável. Em seu tom e intenção, destaca a necessidade de arrependimento
os v. 1-11 podem ser comparados às más sincero, clamando pela consistência entre
notícias de Romanos 1.18-3.20, que an- as formas internas e externas de espiritua-
tecedem as boas novas de 3.21-26. lidade. O antigo Israel tendia a demonstrar
mais abertamente seus sentimentos e, des-
2.12-17 A única chance se modo, sem dúvida alguma ganhava uma
Joel descreveu Javé trajando o uniforme de libertação psicológica mais difícil de se
um general inimigo. No entanto, quando alcançar em culturas menos extrovertidas.
Havia o perigo, entretanto, de que as emo-
1183 JOEL2 _. .

v. 14, arrependerá) é frequentemente usa-


-.
ções extemadas pudessem ser um disfarce do em relação ao arrependimento humano,
para desejos relativamente intocáveis. O mas, no caso de Deus, isso não implica la-
costume de rasgar as vestes era parte de mentar-se por ter feito algo de errado. O AT
uma reação cultural à crise (cf 2Rs 19.1), nega a possibilidade do arrependimento de
que ainda sobrevive na prática judaica de Deus quando há possibilidade de que suas
rasgar a lapela do paletó em um funeral. advertências não sejam levadas a sério
Os corações também têm de ser rasgados, (e.g., 1Sm 15.29). Mas, em outros casos,
ou quebrantados: a resposta de Israel tem isso pode significar que Deus será flexível
de ser bem mais profunda. Não é usado com o intuito de alcançar um propósito
idiomaticamente, com o sentido de "não mais elevado (cf Jr 18.5-11).
apenas", como em Oseias 6.6 e em lJoão Contudo, Joel se afasta de uma pro-
3.18. Joel não se detém em analisar o peca- messa declarada de que Javé é obrigado
do do povo. "No calor da emergência, sua a ser misericordioso. Ele não pode ofere-
preocupação é a cura e não o diagnóstico" cer nenhuma garantia disso. A resposta de
(Hubbard). O ônus de "examinar e testar" Deus não é automática (veja a expressão
seus caminhos cabe a eles, como parte do quem sabe?, no v. 14). Se ele demonstra-
processo de retomo a Javé (Lm 3.40). rá ou não sua natureza amorosa em um
Em segundo lugar, Joel comenta essa caso particular é algo que cabe somente
"conversão" e observa suas associações a ele decidir. Dessa maneira sua liberda-
com a aliança. Ele prossegue, citando a fi- de pessoal é resguardada: em seu sobera-
delidade de Deus para com esta (misericor- no mistério ele não pode ser manipulado
dioso, compassivo) como motivação para por seres humanos. A oração consiste em
o chamado ao arrependimento e incentivo submeter-se à vontade de Deus, e não
para que Judá responda. Ele utiliza a lin- em insistir na nossa própria vontade. Não
guagem muito conhecida dos credos ("é se trata de usar palavras mágicas, mas de
misericordioso [...] grande em benignida- pedir e esperar em humildade. As adver-
de" [13]: cf SI 86.15; 103.8; 145.8). Essa tências de Joel servem para destacar o
linguagem remete ao passado, de forma chamado de Deus a uma mudança de co-
inesquecível, evocando a graciosa renova- ração e de hábitos, como em outras partes
ção da aliança por Deus com a geração do dos livros proféticos (Am 5.15; Sf 2.3;
êxodo, após a quebra dessa aliança no de- cf At 8. 22; 2Tm 2.25).
serto (Êx 34.6). Assim, essa declaração de Uma resposta positiva de Deus signifi-
fé está associada a mais uma oportunidade caria sua mudança de opinião em relação
que Deus está disposto a conceder a seu a sua campanha de juízo. O profeta traça
povo pecador. uma ligação orgânica entre a mudança hu-
Algumas vezes, Deus tem de castigar mana e a divina: convertei-vos no v. 12 e
seu povo como parte de seu papel como voltará no v. 14 representam o mesmo ver-
pai (cf Hb 12.5-11), mas seu propósito fi- bo no hebraico. Tão crucial era o relacio-
nal é restaurar o relacionamento. Portanto, namento entre Deus e seu povo de modo
Joel sustenta que, embora o mal possa ser que a conversão deles era o sinal que ele
sua primeira e justa resposta aos pecados procurava; era ela que o levaria a também
do povo, seu desejo mais profundo é ser se voltar para eles (cf Zc 1.3; Ml 3.7).
misericordioso. É por essa razão que o Em termos práticos isso significava que
profeta pode passar da descrição de Javé ele deixaria após si um resto de vida nos
como inimigo de Israel para a proclamação vinhedos e nos campos de milho, como
do apelo de Javé ao arrependimento. O ter- símbolo de bênção (contraste com o v. 3).
mo traduzido por arrepende (também no Em uma resposta de gratidão, como Joel
11II
)JOEL2 1184

sugere, quando este remanescente chegar à O mesmo se dera com Javé, por ser seu pa-
maturidade, parte dele deve ser a base das trono divino. A honra de Javé estava em
ofertas, de modo que Israel possa cumprir jogo. O povo de Israel em oração não hesi-
novamente sua obrigação de dar graças. tava em persuadir a Deus com argumentos
Antes que isso aconteça, alguns atos para que o socorresse.
religiosos de natureza bem diferente de-
vem ser realizados. Joel faz alusão ao vo- 2.18-3.21 Respostas de oração
cabulário religioso do v. 12 - com jejuns, Deus dá uma dupla resposta. A primeira
com choro e com pranto - e os traduz por está em 2.18-27 e a segunda, mais longa,
um novo chamado para que os sacerdotes em 2.28-3.21. Ambas culminam em fór-
organizem um culto público de lamentação mulas que prometem a garantia da presen-
(15; cf 1.14). Tal culto figura na narrativa ça protetora de Javé, como seu Deus, em
de 2Crônicas 20.1-13. Assim como se deu meio a seu povo (Sabereis em 2.27; 3.17).
naquela passagem, busca-se uma resposta As fórmulas servem para aniquilar com
de todo o povo: tanto profundidade quanto certeza gloriosa o cauteloso "Quem sabe?"
amplitude são características necessárias de 2.14. A primeira resposta trata da situa-
a essa esperada reação. A licença normal ção imediata da praga dos gafanhotos. A
de compromissos públicos, concedida segunda se amplia no tempo (cf 2.28; 3.1)
ao homem recém-casado para permitir a e aponta para demonstrações adicionais de
concepção (16; cf Dt 24.5), teve de ser libertação e bênção da parte de Deus.
temporariamente suspensa, tão grave era a
situação. Todos tiveram de ser chamados 2.18-27 Vitória sobre os gafanhotos
ao templo para elevar sua voz em oração. Os verbos do v. 18 e o verbo introdutório
Mesmo o choro dos bebês poderia somar- do v. 19 estão corretamente no passado:
se ao volume das petições e súplicas. esta é uma pequena parte da introdução da
17 Os sacerdotes têm de assumir sua narrativa. Se os v. 15-17 encontraram um
posição tradicional, entre o pórtico e o paralelo na narrativa de 2Crônicas 20.1-
altar, no edificio do templo (cf Ez 8.16; 13, agora há uma correspondência com
Mt 23.35), e recitar a oração nacional de 2Crônicas 20.14-17. Um intervalo de tem-
lamento em nome do povo. Eles devem po ocorre entre os v. 17 e 18. Está implícito
apelar a Javé, como Deus da aliança, para que os sacerdotes e o povo levaram Joel a
que venha e salve seu povo por amor de sério, prestaram o devido culto de lamen-
seu próprio nome (cf SI 79.1-4,8-10). A tação e alcançaram de fato o estágio hipo-
expressão teu povo complementa a expres- tético do v. 17. Nesse ponto, Joel poderia
são "vosso Deus" nos v. 13 e 14. A combi- alterar seu papel, passando do diagnóstico
nação expressa os dois lados da natureza da do juízo para a proclamação da salvação.
aliança (cf Êx 6.7). Herança, significando No nome de Javé ele recebeu poder para
povo, refere-se àqueles que pertencem a proclamar um oráculo de salvação. Deus
Deus. O arrependimento significa restaura- poderia ter dito "não" em resposta à ora-
ção da harmonia da aliança: se o povo es- ção; mas, na verdade, ele responde com um
tiver consciente de suas responsabilidades glorioso "sim". O ciúme como um atributo
na aliança, pode pedir a suspensão da mal- divino denota uma profunda preocupação
dição da aliança, a praga dos gafanhotos. e um amor zeloso quando o objeto desse
O escárnio, que era agudamente sentido na amor é ameaçado (cf Ez 36.5,6). O verbo
cultura judaica, encontra aqui uma referên- compadeceu-se é o mesmo que "poupar"
cia dupla. Judá tinha sofrido o escárnio dos no v. 17. Ele ecoa a petição como uma res-
vizinhos estrangeiros em consequência da posta específica à oração. Assim, o v. 18
devastação provocada pelos gafanhotos. apresenta o oráculo que segue como um
1185 JOEL2.·

••
exemplo da fidelidade de Deus. O que o tisfaz as necessidades de seu povo. A ga-
arrependimento humano tomou possível, a rantia de que não há necessidade de receio
graça divina realizou. é típica da promessa divina que segue a
19,20 A mensagem inicial está repleta uma oração de lamento (cf 2Cr 20.15,17;
de preocupação pastoral. É sensível às ne- Lm 3.57). Tambémtípico de tal promessa é
cessidades físicas e psicológicas do povo o uso de seis tempos passados no hebraico,
do Deus. Javé promete restaurar o supri- dois dos quais a NVI traduziu literalmente
mento de alimentos destruído pelos gafa- ("tem feito", "como antes fazia"). O tempo
nhotos (cf 1.10) a um nível muito além da passado é empregado para a ação futura,
subsistência, e remover assim o escárnio como que para dizer que a promessa de
dos estrangeiros pagãos (19; cf v. 17). A Deus já pode ser considerada cumprida.
questão da humilhação é tão crucial que Os chamados funcionam como um hino
abre e fecha a primeira resposta de oração profético de louvor que convida o povo
(19,26,27). Javé se apresenta agora como de Deus a confiar naquilo que ele fará e
aliado de seu povo na guerra contra os a regozijar a partir de agora (cf Rm 5.2).
gafanhotos. Os gafanhotos serão conduzi- Como em Salmos 35.26,27, em que os que
dos imediatamente para fora do território (literalmente) "se engrandecem contra"
judeu e destruídos, sem dúvida por meio Deus encontram resposta no grande Deus,
de ventos fortes (cf Êx 10.19). Ecoando também aqui, nos v. 20,21, o poder nega-
a linguagem militar de 1.6 e de 2.1-11, tivo dos gafanhotos perde força diante do
os gafanhotos são descritos como o exér- poder positivo de Javé. O povo de Deus
cito que vem do Norte. O termo evoca pode contar (23) com a restauração das úl-
o tema de Jeremias quando este diz que timas chuvas do outono e da primavera e
"do Norte surge um grande mal", modo o verdejar da paisagem estéril. No futuro
como ele descreveu o exército inimigo eles se alegrarão com a colheita de figos
lançado contra Israel pela providência de e uvas, em franco contraste com 1.7,12.
Deus (e.g., Jr 6.1). O exército de gafa- Há grande satisfação ante a perspectiva de
nhotos agiu com demasiada selvageria, e chuva, algo que somente os que vivem em
esta é a garantia do seu juízo. Isso evoca climas quentes podem apreciar.
o oráculo de Isaías sobre o duplo papel Em algumas versões bíblicas (NIV, em
da Assíria, primeiro como instrumento do inglês) aparece a seguinte nota textual
juízo de Deus contra seu povo, e depois, referente à expressão "conforme a sua
como vítima do juízo divino, por ter ul- justiça" (v. 23): "mestre da justiça". Isso
trapassado os limites impostos por Deus remete a um antigo engano cometido pelo
(Is 10.5-12). A menção ao mau cheiro de judaísmo primitivo, a partir do qual a seita
seus restos em putrefação serve para selar de Qumran derivou o título de seu funda-
a promessa de destruição. dor, o "mestre da justiça", ou o "verdadeiro
21-24 Uma série de chamados retori- mestre", por associação com Oseias 10.12.
camente dirigidos à terra, aos animais do No século IV d.e., Jerônimo o aprendeu
campo e aos filhos de Sião é apresentada com os rabinos sob os quais estudava, in-
nos v. 21-23. Osfilhos de Sião formam a corporando-o à Vulgata Latina como uma
congregação de Israel reunida nos átrios promessa messiânica. Mas tanto o contex-
do templo em Jerusalém. Esses chamados to como o apelo subjacente às bênçãos da
são uma contrapartida apropriada à série aliança de Levítico 26.4 e Deuteronômio
de terríveis desafios no cp. 1. O vocabu- 11.14, com referência à chuva, favorecem
lário das duas passagens apresenta certa a interpretação usual. "Justiça" (NVI) aqui
semelhança. A correspondência expressa se refere à harmonia da aliança: a chuva
a reversão do juízo e ensina que Deus sa- significa um relacionamento correto entre
.
'JOEL2

Deus e seu povo. O v. 24 retoma o v. 19


1186

2.28-32 Renovação e proteção


e detalha as consequências dessa bênção, para o povo de Deus
um excedente bem-vindo de trigo, vinho Joel usou o tema do Dia do Senhor para
e óleo. interpretar a praga dos gafanhotos como
25-27 Deus profere, diretamente, um uma visitação do juízo de Deus. Tradi-
oráculo de bênção. Como uma graciosa cionalmente, esse dia estava associado
compensação pelos maus anos de colhei- a um juízo dramático e crucial sobre um
ta após a praga dos gafanhotos, Deus lhes mundo pecador, do qual o próprio povo
dará colheitas que compensarão as perdas. pecador não poderia escapar (Sf 1.2,3,18;
Há uma rápida retomada do vocabulário cf Is 2.6-21). Para Joel, a praga tinha co-
negativo de 1.4 e de 2.11, do início e fi- locado esse período em movimento, assim
nal dos apelos de Joel, mas somente como como para Obadias ele tinha tido início
uma garantia de que o pesadelo terminou. com a destruição de Jerusalém, em 586
As lamentações serão substituídas por ale- a.C. (Ob 10-21).
luias em resposta à escrita de um novo ca- O v. 32 aparentemente é o comentário
pítulo do poder de Deus em ação em Israel de Joel sobre outro oráculo divino, citado
(cf Êx 15.11; Mq 6.15). Ao encerrar, a nos v. 28-31, sobretudo no que conceme
cura da ferida psicológica introduzida no à sua metade final, v. 30,31. (No v. 31, o
v. 19 é repetida por duas vezes. Jamais ou Dia do SENHOR parece uma expressão es-
"nunca mais" é utilizado na literatura pro- tereotipada nos lábios de Javé: a expres-
fética como um termo pastoral para aliviar são "meu dia" nunca ocorre no AT com
as ansiedades profundas (cf Ez 34.28,29; esse sentido). Joel toma como exemplo
26.30). O conforto vem também do termo a promessa da sobrevivência de Sião em
protetor, meu povo, ao qual o profeta tam- Obadias 18 ("porque o SENHOR o falou") e
bém se referiu com orgulho no v. 18 (seu a liga à mensagem dos v. 28-31, proferida
povo). Deus provará ser uma ajuda muito ao povo reunido no templo de Jerusalém
presente, o defensor de seu povo da alian- (cf Sf2.1-3). Ele associa a mensagem ao
ça. Então o povo será capaz de dar uma desdobramento das demais fases do Dia do
resposta positiva à irônica pergunta do Senhor, nas mesmas linhas profetizadas
v. 17: "Onde está o seu Deus?". O povo por Obadias. O povo de Deus já havia ex-
também se convencerá das reivindicações perimentado sua versão desse dia e assim
que Deus faz quanto à lealdade exclusiva à estaria isento de seu juízo.
aliança, pois não há privilégio sem respon- 28,29 O oráculo fala de uma era nova
sabilidade. As referências ao fim da humi- de perfeito relacionamento entre Deus e
lhação refletem triunfantemente o mesmo seu povo. Jeremias tinha descrito essa era
verbo do hebraico usado repetidamente em em termos da lei escrita em seus corações
1.10-12 ("está seca", "murchou", e "de- (Jr 31.31-34; cf SI 40.8), e Ezequiel a des-
sesperem-se", NVI), desse modo levando o crevera em termos da doação de um cora-
problema dos gafanhotos a uma conclusão ção novo (Ez 36.26,27), com o intuito de
satisfatória. transmitir a noção de um povo perfeitamen-
A resposta de Deus está ligada à teolo- te obediente à vontade de Deus. A lingua-
gia baseada na terra, do AT, segundo a qual gem de inspiração profética é usada para
a terra é o barômetro do relacionamen- o mesmo fim: o Espírito é aqui um agente
to entre Israel e Javé. A lista de bênçãos de profecia (cf Nm 12.6; 2Cr 20.14). A
da aliança relacionadas à terra serve para promessa retoma o desejo de Moisés, em
realçar a lição de que a praga dos gafanho- Números 11.29: "Tomara todo o povo do
tos foi resultado de uma maldição da alian- SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes
ça sobre um povo rebelde. desse o seu Espírito!". Anteriormente, no
1187 JOEL2.- -
••
ministério de Joel, toda a nação esteve gundo lugar, a linguagem que Joel aplicou
em descompasso com Javé. Apenas uma metaforicamente aos gafanhotos, no v. 10,
pessoa, o profeta Joel, viu a situação por a respeito da experiência vivida por Israel
meio dos olhos de Deus; e com a voz de do grande [...] dia do SENHOR e mui terrível
Deus ele falou do juízo e da esperança. (cf v. 11)é agora utilizada novamente com
Agora vislumbra-se toda uma nação de relação às nações. Tem aqui seu sentido
Joéis. Cada setor dessa sociedade, jovens tradicional de distúrbios cósmicos anun-
e velhos, homens e mulheres, escravos e ciando uma teofania de juízo (cf Is 13.9-
cidadãos livres (cf GI3.28), compartilhará 13). Esses sinais celestiais serão reafirma-
dessa compreensão do profeta sobre Deus dos em 3.15.
(cf lCo 13.9-12). O NT tem grande interesse nessa pas-
Literalmente, "toda a carne" significa sagem, à luz dos propósitos revelados de
aqui "cada um em Israel", como mostra a Deus em Cristo. Em primeiro lugar, liga
explicação em termos de membros da co- a passagem à volta de Cristo (Me 13.24;
munidade (Cf 3.1; para o uso relativo de Lc 21.25; Ap 6.12,17; 9.2). Mas a escato-
"toda a carne", cf Jr 12.12 AV; compare o logia (o ensino sobre o final dos tempos)
uso relativo de "todo o mundo" em por- do NT é complexa. À parte do ponto de vis-
tuguês e "tout le monde" em francês). A ta padrão herdado do AT e do judaísmo, a
mensagem que Joel trouxe aos seus con- escatologia do NT assegura que os últimos
temporâneos é que, como Calvino disse, dias já começaram com a primeira vinda
"todo o povo profetizaria ou o dom da pro- de Cristo e o estabelecimento da igreja,
fecia seria comum e prevaleceria por toda a enquanto a antiga era ainda continua (cf
parte entre os judeus". No v. 29, o pronome 2Co 5.17). Em segundo lugar, Joel 2.28-
meu deveria ser omitido (cf NRSV): é uma 32 é interpretado à luz disso, especialmen-
tentativa de harmonizar com a citação em te no discurso de Pedro em Pentecostes
Atos 2.18, que cita a antiga versão grega (At 2.16-21,33,38-40). Pedro alegou que
em vez do texto hebraico. a obra final de Deus começou com o der-
30-32 Em contraste com a sorte de ramamento do Espírito Santo sobre os
Israel se apresenta, de forma dramática, o discípulos e com a oportunidade de salva-
destino das outras nações. Como o v. 32 ção para o penitente. Não se fornece uma
explicará, o povo de Deus estaria seguro explicação detalhada no texto abreviado
mesmo no olho de uma terrível tempesta- do discurso, mas os sinais e as maravilhas
de. Em resposta ao chamado de Javé por terrenas e celestiais estão associadas aos
meio de Joel, o povo invocou o nome do milagres feitos por Jesus e, evidentemen-
SENHOR em oração (cf 1.19; 2.17). Assim te, à escuridão na hora da crucificação (Lc
eles seriam salvos ou escapariam do perigo 23.44,45). A relação da expressão "toda a
da catástrofe por vir. Esta seria reservada carne" com Israel é mantida: dirige-se aos
para as outras nações, como 3.2 deixará "homens de Israel", incluindo os gentios
claro. Israel mal tinha sobrevivido à des- convertidos ao judaísmo (At 2.11,22).
truição do Dia do Senhor, mas essa destrui- Mais tarde, Paulo argumenta em Roma-
ção se materializaria no mundo à sua volta. nos 10.12,13 que, para propósitos cristãos,
Os sinais da sua vinda no céu e na terra são a expressão "toda a carne" deve ser inter-
explicados de modo invertido. Em primei- pretada de forma mais ampla e mais estrita
ro lugar, sangue,Jogo e colunas de fumaça do que a nação judaica (cf At 10.45). Com
são símbolos terríveis da guerra destrutiva esse fim, ele fez uma referência cruzada de
que Javé empreenderia contra seus inimi- Joel 2.32 com Isaías 28.16 e a associou à
gos. Os detalhes dessa demonstração do doutrina da justificação de todos os fiéis,
juízo serão fornecidos em 3.1-14. Em se- estabelecida em Romanos 4. Agora o povo
• l1lil1li JOEL 3 1188
.l1li

escolhido de Deus já não assume a forma Vale aqui denota uma ampla planície en-
de uma nação, mas de uma igreja interna- tre montanhas, um lugar apropriado para a
cional cujos limites são definidos pela fé, reunião de grandes multidões. Fica claro,
e não pela raça (cf Ef 2.11-22). "Toda a pelos v. 2,3 (cf v. 5,6,17), que todas as na-
carne" ainda é Israel, mas um Israel bem ções são aquelas que estiveram envolvidas
maior. Nem os judeus nem os gentios que na invasão e na destruição de Jerusalém,
não acreditam em Jesus fazem parte da em 586 a.C., especialmente contingentes
atual comunidade do povo de Deus. Não locais de súditos do exército babilônico
devemos pensar aqui num novo universa- e seus colaboradores. Uma versão divina
lismo imposto ao texto, mas no seu parti- do julgamento de Nuremberg é prometi-
cularismo definido de forma nova. da no julgamento daqueles que infligiram
sofrimento na guerra. A campanha mili-
3. 1-17 Tribulação para as nações tar resultou na deportação, no confisco da
e segurança para Israel terra e na escravidão da geração seguinte
Judá experimentou e sobreviveu à sua de judeus. Deus toma sobre seus próprios
versão do Dia do Senhor e experimentará ombros a sensação de sofrimento deles e
grande bênção, de fato uma mudança de promete, como Senhor da aliança, usar seu
sorte. Entretanto, como 2.31 sugere, o dia poder para lhes assegurar a justiça.
será uma catástrofe sofrida pelas outras 4-8 A forma muda para um oráculo
nações. O trecho seguinte revela seu cará- contra algumas nações estrangeiras em
ter: o hebraico começa com "Eis", e 2.30- particular, que tem como intenção ser uma
32 é praticamente o título dessa seção. garantia para o próprio povo de Deus. Os
O ensino sobre o final dos tempos na fenícios (Tiro e Sidom) e os filisteus, divi-
Bíblia não tem o propósito de dar informa- didos em cinco cidades-estado ou regiões,
ção aos curiosos, mas serve para dar segu- são apontados em um retórico discurso di-
rança pastoral ao povo sofredor de Deus. rigido aos ouvidos judeus (cf Ez 25.15-17;
Assim acontece aqui, como o v. 2 deixa 28.20-24). De modo semelhante, no livro
claro com sua referência ao cuidado de de Obadias, Edom era o alvo particular do
Javé para com a aliança. O trecho palpita ataque. O oráculo começa com um furio-
com um senso de mágoa e injustiça, espe- so desafio que os adverte de que terão de
lhando os sentimentos de Judá. Sua con- responder a Javé. Ele tomará providências
trapartida no NT é 2Tessalonicenses 1.5-10, para mudar o destino dessas nações em
que do mesmo modo combina a segurança virtude de seus crimes contra ele e contra
pastoral, a punição para os perseguidores Judá (cf Mt 25.41-45). Elas são acusadas
do povo de Deus e o Dia do Senhor. A apli- (5,6) de saquear os tesouros do templo e
cação do juízo é um ajuste da balança da usá-los como troféus devotados a seus pró-
justiça para vingar as vítimas da opressão prios deuses e, bem como de participar da
e da violência, como na parábola da viúva venda desumana de prisioneiros de guerra
perseverante em Lucas 18.1-8. Há a mes- corno escravos, algo mencionado em ter-
ma nota de defesa divina nos v. 2,3 (meu mos gerais no v. 3. Javé promete o retomo
povo, minha herança) como havia em de escravos judeus e a escravização, por
2.17,26,27. inversão, dos comerciantes de escravos.
1-3 Um oráculo de juízo é proferido Os judeus são ironicamente colocados no
para todas as nações. O vale de Josafá papel de intermediários. Enquanto seus
(2,12) não é identificado: dá-se apenas o próprios cidadãos são vendidos aos gre-
seu propósito, em seu nome que signifi- gos no distante Ocidente (cf Ez 27.13),
ca "Javé julga", bem corno em sua outra seus opressores desaparecem pela via
descrição no v. 14, "vale da Decisão". do comércio com o longínquo Oriente,
1189 JOEL3(

controlado pelos sabeus na Arábia. Assim Em primeiro lugar, nos v. 14-16a, Joelliga
a punição será proporcional ao crime. A o cenário da guerra e do juízo aos temas do
fórmula oracular, porque o Senhor o disse, Dia do Senhor, mencionados em 2.30,31.
funciona como uma assinatura ao final de O vale da Decisão ou do "veredicto" é um
um documento, endossando a autoridade e nome que explica o "vale de Josafá", men-
a segurança da mensagem. cionado no oráculo divino no v. 2. Em se-
9-13 Um oráculo divino nos v. 9-11 co- gundo lugar, nesse meio tempo, o povo de
meça com um convite retórico às nações Deus estaria seguro, como 2.32 tinha afir-
para que se reúnam no campo de batalha mado. A afirmação profética do v. 16b, que
onde a justiça será feita. No v. 10, parece é uma versão escatológica de Salmos 46.1,
haver uma inversão deliberada da promes- é sustentada por uma promessa divina no
sa de paz em Isaías 2.4 e Miqueias 4.3, em v. 17. Jerusalém desempenhará seu papel
que a paz para as nações evidentemente como assento da presença santa de Deus,
vem depois da guerra para pôr fim a todas seu santo monte (cf 2.1). Ela será coloca-
as guerras (cf SI 46.8-10; 76.3; Sf3.8-1O). da fora do alcance dos infiéis estrangeiros,
Joel retrocede a um estágio anterior no ca- que não tinham reivindicação política al-
lendário divino. Ainda havia débitos a ser guma, nem desejo espiritual de nela estar.
quitados, negócios sinistros inacabados a Essa promessa é estabelecida em uma fór-
ser finalizados por Deus. A chamada final, mula conclusiva que combina com aquela
no v. 11, apela a Javé para que ele traga em 2.27. O relacionamento da aliança era
suas hostes celestiais (cf Zc 14.5), prenun- sustentado pela presença de Javé no tem-
ciando o v. 13. Entretanto, isso interrompe plo de Jerusalém (cf Êx 29.45; Ap 21.3),
o oráculo divino, como reconhecem algu- o que lançava uma aura de santidade sobre
mas versões (NIV, em inglês) editando-os toda a cidade. Sua presença como o Senhor
separadamente. A antiga versão grega, da aliança será manifestada abertamente
refletindo em geral as mesmas consoantes na segurança da cidade santa. Seu povo o
hebraicas, traz: "Que o homem tímido se saberá por meio de evidência visível, e não
tome um herói (um valente)", o que está apenas pela fé. Apocalipse 21.1-8 transpõe
de acordo com o final do v. 10. O v. 12 re- a visão de Joel para uma nova Jerusalém,
capitula o convite de Javé para a reunião onde Deus habita, mas onde estranhos à
das nações e identifica o campo de batalha sua vontade não terão lugar.
como o local onde Javé se assenta para o
julgamento, numa explicação do seu nome 3.18-21 Bênçãos para
no v. 2 (cf Jr 1.15,16). No v. 13, Javé emi- o povo de Deus
te um comando a suas próprias tropas. As Este oráculo suplementar de bênção é tipi-
metáforas inspiradas na agricultura fazem camente introduzido pela expressão naque-
menção a um banho de sangue: elas ecoam le dia. Ele explica de forma detalhada as
na batalha de Apocalipse 14.14-20 e 19.15, implicações da presença de Deus em Sião
de modo que a presente passagem está (21b). Enquanto 2.28,29 prevê as bênçãos
apontando para adiante, para um tempo espirituais que Israel experimentará, agora
ainda futuro, quando Deus encerra a his- as bênçãos materiais que as acompanharão
tória do mundo. As vítimas do massacre também são prometidas. No AT, o espiritual
são descritas como maduras, prontas a ser e o material são a dupla evidência da bên-
julgadas. Javé não pode esperar mais para ção. A presença de Javé trará fertilidade à
punir sua malícia, um termo que resume as terra, por meio de uma fonte milagrosa de
acusações dos v. 2,3. água que fluirá do templo (cf Ez 47.1-12,
14-17 O profeta retrocede por intermé- Ap 22.1,2). Ela regará até mesmo os luga-
dio de um sumário aos temas de 2.30-32. res mais secos onde crescem as acácias.
JüEL3 1190

A promessa de que os montes destilarão tar com elas, Deus garante a plena vingan-
mosto recapitula com perfeição um elemen- ça de seu povo. A destruição dessas nações
to da resposta precedente de oração (2.24). serve como contraste negativo da bênção
As bênçãos voltadas para a agricultura de Judá nos v. 18 e 20,21. A união entre
pertencem à teologia veterotestamentária Deus e Judá é selada com uma promessa
baseada na terra, como símbolo do relacio- de ocupação perpétua. A primeira metade
namento de aliança entre Deus e seu povo. do v. 21 é difícil. Parece ecoar o sangue
A promessa prossegue, incluindo também inocente do v. 19. Uma tradução possível
a cura de suas feridas emocionais, ao de- seria: "Vou provar ser inocente o sangue
cretar desolação tanto para o Egito como que (até aqui) não provei ser inocente" (cf
para Edom, como punição pelos crimes co- REB). O versículo promete reparar o povo
metidos em solo judeu (cf 2Rs 23.29-34; sofrido em linhas paralelas a Apocalipse
Ob 10). Do mesmo modo que duas nações 6.10 (cf 819.11,12).
foram apontadas nos v. 1-8, outras duas o
são aqui. Essas duas nações representam
antigos inimigos do povo de Deus. Ao tra- Leslie C. Allen
AMÓS

INTRODUÇÃO
A época de Amós o ensino de Amós
A data do terremoto (1.1) não pode ser de-
finida nos dias de hoje e, portanto, não sa- Deus
bemos com exatidão a época em que Amós Ainda que Amós enfatize o privilégio
profetizou. Uzias, rei de Judá, reinou de singular de Israel (2.9-11; 3.2), ele nun-
767 a 740 a.C., e Jeroboão n, filho de Joás, ca se refere ao Senhor como o "Deus de
rei de Israel, reinou de 782 a 753 a.c., e, Israel"; aliás, ele tampouco usa a palavra
entre esses dois extremos, uma data ao re- "aliança". Amós parece evitar qualquer
dor de 760 a.c. para Amós é algo aceitá- coisa que possa incentivar a complacên-
vel. Ver quadro na página 949. cia do povo de Israel ou uma falsa segu-
Jeroboão foi um rei ativo, pronto a rança. Seus títulos divinos prediletos são
aproveitar qualquer oportunidade para a "SENHOR Deus" (e.g., 8.1,3,9,11; 9.8) e
expansão do seu país. Os tempos lhe eram "o SENHOR, Deus dos Exércitos", isto é,
favoráveis: em 805 a.C., o rei da Assíria, o Deus que é em si mesmo toda força e
Adad-Nirari, tinha conquistado a Síria, li- poder (4.13; 5.14-16,27; 6.8,14). Amós, é
vrando Israel de um antigo inimigo. A pró- claro, faz uso do nome "Javé" ("SENHOR")
pria Assíria atravessou então um período mais do que de qualquer outro nome, mas,
de declínio, e assim estava aberto o cami- ao longo de sua profecia, ele ressalta as
nho para Jeroboão restaurar seu reino até características do caráter de Deus que
as fronteiras estabelecidas por Salomão. formam a base do seu domínio e governo
Por sua vez, isso lhe deu o controle de ro- universais. Ele vê o Senhor como Criador
tas comerciais, o que resultou em próspe- (4.13; 5.8; 9.5,6), como agente em toda
ra atividade comercial, refletida em uma a história (3.6; 4.6-11; 9.7) e governante
classe dominante vivendo em grande luxo. ou juiz moral de todas as nações (1.3-
Como sempre acontece, tudo isso cami- 2.16). Ele reconhece um único Deus, mas
nhou lado a lado com a exploração dos admite que há outros objetos de adoração
pobres (5.11; 6.6). As profecias de Amós (5.26,27; cf lCo 8.5,6) com os quais as
contra esses excessos cometidos em Israel, pessoas podem se envolver.
o Reino do Norte, foram ainda mais mal
recebidas pelo fato de Amós ter vindo de Juízo
Judá, o Reino do Sul (7.10-17). O Deus único é o juiz de toda a terra. Por
Entretanto, embora a terra ainda tives- todo o mundo, os crimes contra a huma-
se seus problemas bem vivos na memória nidade, quaisquer que sejam os motivos,
(4.6-11), as perspectivas pareciam muito onde quer que aconteçam e quem quer
boas. Era possível relegar as preocupações que sejam os responsáveis por eles, quer
ao futuro distante (5.18; 6.3) e esquecer tenham sido registrados pelos homens ou
que, embora a Assíria estivesse adormeci- observados apenas por Deus, são repug-
da, ela não estava morta. nantes para Deus e receberão sua devida
AMÓS 1192

paga. Ser levado para perto de tal Deus, commodities ou mercadorias (1.6). Por to-
pelo privilégio de ter sido escolhido como das essas razões, o povo de Amós sofreu
seu povo, traz consigo como consequên- o juízo, assim como por extensão nosso
cia um julgamento mais severo e ainda mundo moderno, industrializado, pós-bí-
mais certo (3.2), pois os pecados do povo blico também sofre o juízo de Deus. Tais
de Deus não são apenas ofensas contra a aspectos da sociedade comercial e materia-
consciência (como no caso do pecado das lista, que faz da prosperidade o seu deus,
nações), mas rebeliões específicas contra a têm um funesto toque familiar.
luz da revelação (2.4,5). Tanto as afrontas
a Deus quanto as ofensas contra a huma- Esperança
nidade são ofensivas a ele e, consequente- Será que tanto para Israel quanto para o
mente, sofrerão o seu juízo. mundo o juízo significará o fim comple-
to? Amós é um profeta de Javé, e apenas
Sociedade essa credencial já teria sido suficiente para
O pressuposto de que crimes (ofensas so- preservá-lo das acusações de que lhe fal-
ciais) constituem pecado (ofensas contra tava uma mensagem de esperança (possi-
Deus) repousa no âmago da socilogia de velmente feita com maior firmeza 20 anos
Amós. Em cada aspecto da sociedade, é antes do que agora), e de que passagens
com Deus que temos de lidar, tanto no caso como 9.11-15 são contribuições posterio-
de condutas que lhe agradem e que estejam res de outros autores. "Javé" revelou o sig-
sob suas bênçãos como no caso daquelas nificado de seu nome (Êx 3.15; 6.6-8) no
que o ofendam e mereçam sua ira. A socie- Êxodo, um evento único através do qual
dade não se apoia em princípios mecânicos salvou seu povo e derrotou seus inimigos.
independentes - forças de mercado, re- Ao falar desse Deus não se pode excluir
cursos monetários, o produto interno bruto a esperança, pois ela é a essência de sua
- para sua prosperidade. A prosperidade própria natureza. Isso se toma claro em
vem com a bênção divina, pois indepen- 7.1-6, em que Amós é levado a encarar a
dentemente de quão eficiente seja a econo- plena consequência dos pecados de Israel
mia, ela não pode prosperar se estiver sob em grandes juízos, os quais não deixariam
a maldição dele. sobreviventes. Quando ele ora contra tais
O Senhor está preocupado com a ma- eventualidades, Deus lhe assegura que
neira como a guerra será empreendida "Não acontecerá". O comentário mostrará
(1.3,13), como está funcionando o comér- que as declarações negativas de 7.3,6, ne-
cio (1.6; 8.5-7), e se as obrigações assu- gando a destruição total, assumem a forma
midas estão sendo cumpridas (1.9). Ele é de uma esperança positiva em 9.11-15: um
ofendido quando a ganância permite que os Davi restaurado, uma criação restaurada e
finsjustifiquem os meios (4.1-3), quando as um povo restaurado.
classes governantes se tomam presunçosas
e insensíveis (4.1; 6.1) e quando a riqueza Profecia
não significa senão o luxo de alguns em O v. 14 do cp. 7 é um versículo fundamen-
detrimento dos menos favorecidos (3.12- tal. No hebraico, a omissão do verbo "ser"
15; 4.1; 6.4-6). A perversão da justiça nos (lit. "Eu não um profeta") normalmente
tribunais suscita sua animosidade (2.6,7; implica o tempo verbal presente (RSV, "Eu
5.7,10,12,15), assim como as práticas co- não sou um profeta"). Os adeptos dessa
merciais desonestas - a fraude mesquinha interpretação (e.g., Wolfe, Joel and Amos,
do comerciante que adultera sua balança Fortress Press [1977], p. 306, 312-3) su-
(8.5-7) - e a falta de humanidade, quando gerem que Amós esteja negando que um
os "grandes negócios" tratam o povo como cargo ou uma posição oficial tenha algo a
1193 AM6s.·

••
ver com o caso, pois o que importa é a cios espirituais (4.4,5), incapaz de proteger
proclamação da palavra de Deus. Wolfe seus devotos (3.14; 5.5,6) e desprovida de
precisa negar que 2.11 e 3.7, afirmações justiça moral e social (5.21-25). Não teria,
positivas em relação ao oficio profético, então, Amós se voltado para o extremo
sejam da mão do próprio Amós, e então oposto, procurando uma religião de com-
insistir em que Amós diz "Eu não sou pro- portamento ético, mas sem expressão cúlti-
feta" (7.14) imediatamente antes de dizer: ca, sacrificial? Sua pergunta em 5.25 parece
"Mas o SENHOR me tirou de cuidar do gado sugeri-lo e, na verdade, tem frequentemen-
e o SENHOR me disse: Vai e profetiza ao te sido entendida assim (C. F. Whitley, The
meu povo de Israel" (7.15). Prophetic Achievement, Blackwell [1963]
No que conceme à língua hebraica, p. 73). No entanto, ao fazer uma pergunta,
embora possivelmente na maioria dos ca- um pregador se toma dependente da res-
sos em que o verbo "ser" é oculto o tempo posta que seus ouvintes lhe darão, e não
verbal deva ser presente, cada caso tem de pode haver dúvida de que a congregação
ser decidido de acordo com suas próprias de Amós teria respondido com entusiasmo
exigências. Assim, no presente contexto, que, na verdade, eles estavam obedecen-
em resposta ao desafio do sacerdote, Amós do à lei divina que vinha desde os dias de
olha para o passado, para um tempo em Moisés. Independentemente do ponto de
que não era profeta nem tinha a intenção vista quanto à datação do Pentateuco, e em
de sê-lo na verdade, até que a comissão e especial à autoria mosaica do Pentateuco,
ordenação divina lhe conferiram a obra e a os sacrificios eram uma parte fundamental
posição de profeta, como sugerem várias da religião que o povo de Israel recebera de
versões (ARA, NVI e outras). Ele também Deus. Isso nos leva ao ponto de vista defen-
continua na tradição clássica das profe- dido no comentário (cf H. H. Rowley, The
cias do AT como alguém que recebeu a Unity ofthe Bible, Carcy Kingsgate [1953]
palavra de Deus. Como todos os demais p. 42) de que Amós não estava perguntan-
profetas que falam sobre isso (cf Jr 1.9; do se os sacrificios eram válidos, mas sim
Ez 2.7-3.4), Amós reivindica a identida- qual o lugar que deveriam ocupar. A prio-
de exata entre as suas palavras e as pala- ridade do Senhor era a obrigação do povo
vras de Deus (1.1-3). de obedecer a ele (Êx 19.4,5; 20.2,3ss.), e
Este é o fato singular da inspiração o código sacrificial era uma provisão por
verbal: o fato de que o Senhor não apenas suas falhas em fazê-lo. Assim como agora,
partilhou com os profetas o "sentido" da- o chamado divino era à santidade, mas, se
quilo que queria que eles dissessem, mas o povo pecasse, eles tinham um advoga-
que eles eram pessoas em cujas vidas Deus do e uma propiciação pelos seus pecados
trabalhara de tal forma que as palavras que (lJo 2.1,2). A religião voltada para ritos,
naturalmente proferiam, e que carrega- tanto naquela época quanto agora, é uma
vam a marca de suas respectivas épocas, inversão dessa prioridade. (Y. comentário
personalidades e grau de instrução, eram de 5.24ss.).
exatamente as palavras nas quais o Senhor
pretendia que sua verdade estivesse perfei- o livro de Amós
tamente contida. O livro de Amós chegou até nós como uma
composição literária cuidadosamente edi-
Religião tada e não há razão para se duvidar de que
Na época de Amós, Israel era uma nação o próprio Amós tenha sido o seu editor.
extremamente religiosa, embora seguisse De fato, se levarmos em conta a convic-
uma religião significativamente afastada ção de Amós de que suas palavras eram as
da lei de Deus (2.7,8), destituída de benefi- palavras de Deus, é pouco provável que
1194

ele as deixaria ao risco da tradição oral (iii) As palavras de 9.11-15 são bastan-
ou de imprevisíveis editores posteriores te controversas, porque trazem uma men-
(cf Is 8.16-20; Jr 36). Ainda assim, resta sagem da mais áurea esperança se com-
perguntar se seria mais razoável acreditar paradas à gravidade do restante do livro.
que existem partes do livro, como nós o Antigamente se defendia que, seja como
temos hoje, que podem ser consideradas for, tal doutrina da esperança exigiria uma
obra de outros autores. data posterior ao exílio. Entretanto, a lin-
(i) Os oráculos contra Tiro, Edom e guagem da passagem se ajusta muito bem
Judá (1.9-12; 2.4,5). Estes geralmente são ao restante do livro. Além disso, há um ab-
tratados como acréscimos pelo fato de se- surdo inerente ao fato de se pensar que foi
rem mais breves do que os oráculos con- outro editor posterior que acrescentou ao
tra Damasco (1.3-5), Gaza (1.6-8), Amom livro esse tom de esperança, presumivel-
(1.13-15) e Moabe (2.1-3). Mas quando a mente quando a mensagem de plena des-
evidência é avaliada, há, no final, três orá- truição não se cumprira e o povo de Israel
culos mais breves e quatro mais longos continuara a existir após o exílio. Pois se
e, como diz Hubbard (TOTC, p. 97), "a Amós for somente um profeta da destrui-
variedade pode ser um indício de auten- ção, que previa apenas o fim da aliança e
ticidade tão forte quanto a semelhança". do povo da aliança, a esperança só pode-
Além disso, sendo natural de Judá (1.1), ria ser acrescentada à custa de fazer dele
Amós não se atreveria a omitir a condena- um falso profeta! Por outro lado, se Amós
ção da cidade a não ser que desejasse que realmente acreditasse em sua própria men-
sua parcialidade lançasse sua mensagem sagem sobre o fogo em Judá e Jerusalém
em descrédito. (2.5), é razoável esperar que ele olhasse
(ii) Os fragmentos em forma de hinos para o Senhor em busca de alguma palavra
(4.13; 5.8,9; 9.5,6). Hyatt("Amos",Peake :s sobre o que viria depois do fogo, e então a
Commentary [1963], p. 617) insiste em expressasse por meio de símbolos e moti-
que a doutrina de Deus, o Criador, muito vos familiares à sua própria época.
evidente nessas passagens, exige uma data
posterior à da época de Amós. (Cf H. W.
Robinson, Inspiration and Revelation in Leitura adicional
the Old Testament, OUP [1946], p. 22). No MOTYER, J. A. A mensagem de Amós. BFH.
entanto, a arqueologia tem demonstrado ABU, 1991.
que o conceito dos deuses como criadores CRAIGIE, P. C. Twelve prophets. v. I. DSB.
é algo tão antigo quanto a própria religião. Westminster/John Knox Press, 1984.
Certamente seria notável se o AT demo- BorCE, J. M. The minor prophets. 2 v.
rasse mais do que os outros textos antigos Zondervan, 1983, 1986.
para atribuir essa glória ao Senhor! Além HUBBARD, D. A. Joel e Amós: introdução e
disso, como o comentário mostra, as pas- comentário. Vida Nova, 1996.
sagens encaixam-se perfeitamente em seus MCCOMISKEY, T Amos em GAEBELEIN,
respectivos contextos. Assim, talvez Amós Frank E., ed. Daniel and the minorpro-
estivesse citando hinos já conhecidos que phets. EBC. Zondervan, 1985.
falavam de Deus como Criador, mas o fa- NIEHAus, J. Amos em MCCOMISKEY, T, ed.
zia com os olhos voltados às necessidades The minor prophets. v. 1. Baker Book
de cada ponto de sua mensagem. House, 1992.
11
1195 AM6S1-:'

ESBOÇO
As três seções principais de Amós são marcadas por algo conhecido como inclusio, o que
significa que cada seção começa e termina na mesma nota: o leão que ruge (1.2; 3.8), o
inimigo ao redor (3.9-11; 6.14) e (por contraste) o juízo que não acontecerá (7.1-6) e a
esperança vindoura (9.11-15). Cada seção tem um padrão simétrico: a primeira (1.2-3.8)
assume a forma ABBA; a segunda (3.9-6.14) assume a forma ABCCBA e a terceira
(7.1-9.15) a formaABCDCBA.

1.1 Título
1. 2-3. 8 O rugido do Leão: O juízo universal e seus fundamentos
1.2 A O rugido do leão: A voz do Senhor
1.3-2.3 B Contra os povos pagãos
2.4-3.2 B Contra o povo escolhido
3.3-8 A O rugido do leão: A palavra profética

3.9-6.14 Um inimigo ao redor da terra: A ira do Senhor


3.9-15 A O reino despedaçado
4.1-3 B As mulheres dominadoras
4.4-13 C Religião sem arrependimento
5.1-27 C Religião sem transformação
6.1-7 B Os homens notáveis
6.8-14 A O reino despedaçado

7.1-9.15 O Senhor Deus: Juízo e esperança


7.1-6 A A devastação que não ocorrerá
7.7-9 B O juízo discriminador
7.10-17 C A palavra da qual não se pode escapar
8.1-14 D "Naquele dia"
9.1-6 C O juízo do qual não se pode escapar
9.7-10 B O juízo discriminador
9.11-15 A esperança vindoura

COMENTÁRIO propósitos. Somente a obra de Deus - e


não treinamento ou opção pessoal - po-
1.1 Título deria ter feito tal transformação na vida de
À medida que o livro prossegue, percebe- Amós. Tecoa, aproximadamente a 19 qui-
mos que as palavras de Amós realmente lômetros ao sul de Jerusalém. A palavra vi-
são as palavras de Deus (e.g., 1.3,6; 3.1,11; são é frequentemente utilizada, como aqui,
5.1,4; 9.11-15). Mas Amós não mudou sua para descrever a "percepção" espiritual
personalidade por ter se tomado um veícu- concedida aos profetas (Is 1.1; Hb 1.1),
lo das palavras de Deus. Esse é o milagre não necessariamente uma experiência com
da inspiração. A palavra pastores é usada visões, mas a habilidade de "enxergar a
no lugar de "criador de gado" (2Rs 3.4). verdade". Ela combina revelação e inspi-
O Senhor escolhe, mesmo entre as pessoas ração, pois implica tanto uma verdade ob-
mais simples, o agente para cumprir seus jetiva "vista" como a faculdade subjetiva
11
1111 AM6s 1 1196
1111

de "ver". Deus deu tanto a verdade como das, o santo Senhor em sua morada terre-
a habilidade de compreendê-la e expressá- na. O rugido é a expressão de ira do Santo,
la (NDB, "Profecia", "Profeta"). Uzias [...] mas, mesmo em sua ira, o seu nome - Javé
Jeroboão [...] terremoto: ver Introdução. - , e a escolha de sua morada em uma casa
onde sacrificios são oferecidos pelo pecado,
1.2-3.8 O rugido do Leão: induzem a perguntar se a ira resume toda a
O juízo universal e seus história. Nesse Deus sempre há um abenço-
fundamentos ado ingrediente de graça; em sua ira, ele se
lembra da misericórdia (Hb 3.2). O triunfo
1.2 O rugido do Leão: da graça começa a emergir na seção final
A voz do Senhor do livro de Amós (7.1,2; v. Esboço acima),
Como todo bom pregador a céu aber- mas, até lá, os rugidos predominam.
to, Amós atrai ouvintes ao lhes dizer o
que desperta o seu entusiasmo - o juízo 1.3-2. 3 Contra os povos pagãos
prestes a cair sobre os odiados inimigos. Os motivos do juízo. Tudo o que está es-
Imperceptivelmente, entretanto, ele passa a crito no AT é palavra contemporânea de
atenção dos ouvintes das nações pagãs (e.g., Deus (Rm 15.4). Devemos ouvir "rugido
Damasco em 1.3) para as nações "primas" após rugido" dessa seção e aprender o que
(e.g., Edom em 1.11; cf Gn 36.1), em se- pode provocar a ira do Senhor, enquanto,
guida para a nação "irmã", Judá (2.4), e, fi- primeiramente, ele acusa as nações pagãs
nalmente, a multidão descobre que está ou- vizinhas (1.3-10), passando em seguida a
vindo a própria condenação (2.6). Embora acusar os demais pagãos (1.11-2.3) e vin-
o juízo seja inteiramente pronunciado em do finalmente a acusar o próprio povo de
termos paralelos (enviando "fogo"), o mo- Deus (2.4-16). Em 1.3-2.3 aprendemos
tivo do juízo muda. As nações vizinhas são que, para Amós, a lei escrita na consciên-
levadas a julgamento por "crimes contra a cia humana (pois essas nações não conhe-
humanidade" (1.3,6,9,11,13; 2.1), coisas ciam nenhuma revelação especial de Deus;
que sua consciência deveria tê-las adver- v. Rm 2.14-16) é explicada em termos de
tido a não fazer; mas Judá (2.4) e Israel relacionamentos humanos. As duas primei-
(2.11,12) são julgados por terem abando- ras condenações (3-5; 6-8) estão ligadas
nado a verdade revelada. O principal pe- pelo pensamento da crueldade grave (3,6).
cado do povo de Deus é ter se afastado da O segundo par (9,10; 11,12), por ações in-
palavra do Senhor. Sua principal virtude é dignas de um irmão (9,11); e o terceiro par
a obediência à revelação. (1.13,14; 2.1.2), pelas ideias contrastantes
O rugido do grande leão anuncia o juízo da destruição do futuro (13), pela profa-
que segue (1.3-3.2) ao realçar três aspec- nação do passado (2.1) e pela condenação
tos gerais. (i) Ele é iminente. Rugirá signi- daquilo que instintivamente exige respeito,
fica um "rugido ofensivo", com a intenção a mãe grávida e o cadáver humano.
de aterrorizar a presa, levando-a a um esta- 3-5 Damasco. Hazael da Síria (842-806
do de submissão (Jz 14.5). Os dois verbos, a.C.) adotou uma política expansionista,
"rugir" e "trovejar" (NVI) expressam ações estendendo o seu reino para o território ju-
repetitivas; isto é, nas séries de condena- deu com grande crueldade (2Rs 8.12). Mas
ções a seguir ouvimos rugido após rugido. Damasco caiu nas mãos dos assírios em
(ii) Ele é bem compreensível. Toda a terra, 732 a.C. Deus não é objeto de escárnio. 3
desde os viçosos prados dos pastores até as A linguagem numérica por três transgres-
alturas do cume do Carmelo, está arruina- sões [...] e por quatro, utilizada aqui e em
da. (iii) Ele é divino. As palavras o SENHOR toda essa série de oráculos (cf SI 62.11;
[...] de Sião [...] de Jerusalém são enfatiza- Pv 30.15 etc.), basicamente sugere que três
1197

AM6s 1 - : .

transgressões teriam sido suficientes para dutos comerciais, tendo Edom agido como
que o juízo divino ocorresse, mas a quarta seu intermediário. Elas estavam tão obce-
transgressão coloca esse juízo como algo cadas por lucro que nenhuma outra consi-
inquestionável. Isso sugere a longani- deração importava - nenhuma concessão
midade de um Deus que espera além do era feita por razões de idade ou sexo, seja
ponto em que a ação se faz por merecer, dos filhos em relação aos pais ou dos pais
que anseia pelo arrependimento e deixa em relação aos filhos. Os que fossem co-
espaço para que ele possa acontecer (Gn mercialmente viáveis eram vendidos; só
15.16; 2Pe 3.8,9), que nunca age sem importavam as forças de mercado, em de-
evidência (Gn 18.21), mas a cujos olhos trimento de qualquer resquício de humani-
existem "quatro transgressões" verdadei- dade. Nenhuma palavra poderia ser mais
ramente intoleráveis para ele, de modo propícia do que essa de Amós para a nossa
que, quando forem cometidas, ele afirma: geração presente. O "Senhor JEOVÁ" (ARe)
não sustarei o castigo (lit. "recuarei", cf é um termo usado somente aqui na lista das
Nm 23.20; Is 14.27). condenações, como se sugerisse que nada
A "quarta transgressão", nesse caso, requer tanto a onipotência de Deus em
era a barbárie da guerra: os trilhos de ferro sua ação punitiva quanto o uso de pessoas
(pesadas plataformas de madeira, acresci- como simples mercadorias.
das de um peso adicional na parte superior 9,10 Tiro. Renomados comerciantes,
e guarnecidas na parte inferior com metal os habitantes de Tiro são mostrados como
afiado) eram construídos para picar o pro- administradores do aspecto comercial do
duto colhido antes de peneirá-lo, mas aqui tráfico de escravos, mas a acusação especí-
eram utilizados em pessoas, tratando-as fica, ou seja, a de quebra da aliança dos ir-
como objetos, como mera colheita para mãos, não é a mesma dos v. 6-8 - embora
lucro pessoal. 4 Ben-Hadade (2Rs 8.7ss.; sem dúvida alguma o pecado que diz res-
13.3), a dinastia de Hazael. A vingança peito a esse assunto fosse tão sério quanto
recairá sobre pessoas, sobre a família da- aquele. Os compromissos assumidos têm
quele que cometeu o crime. 4,5 A vingança de ser mantidos, pois o não cumprimento,
recairá sobre as coisas, tais como palácios neste caso a infidelidade, é uma "quarta
(símbolos de riqueza e ostentação), o fer- transgressão". Aliança de irmãos: ver em
rolho (isto é, a segurança que construí- IReis 5.1,12; 9.13 referências a amizade,
ram para si mesmos) e os seus territórios aliança e fraternidade. Amós está se refe-
(Biqueate-Àven [...] Bete-Éden, provavel- rindo a um fato ocorrido há 250 anos, mas
mente ficavam a nordeste de Damasco). o passar do tempo não exime ninguém do
A ira de Deus vai se espalhando do insti- cumprimento da sua palavra. Tiro se viu
gador do pecado até sua família e terras, obrigada a pagar tributos à Assíria, rendeu-
finalmente levando a ruína total para todos. se a Nabucodonosor (585-573 a.c.) e caiu
Da desconhecida Quir vieram os arameus diante de Alexandre (332 a.C.).
(9.7), que desaparecerem no desconhecido, 11,12 Edom. A "quarta transgressão"
tendo como agente de Deus Tiglate-Pileser de Edom foi a incessante animosidade
da Assíria (2Rs 16.9). com que perseguiu (isto é, com que bus-
6-8 Gaza. Representando o juízo do cou cada oportunidade de se expressar) por
Senhor sobre os filisteus, Gaza caiu em meio de ações hostis a seus vizinhos, em
mãos da Assíria em 734 a.C. (seguem ou- que estados fronteiriços podiam facilmen-
tras cidades dos filisteus: Asdode, 711 a.c.; te extravasar sua raiva sem jamais declarar
Asquelom e Ecrom em 701 a.Ci). Elas es- guerra. Historicamente, a mágoa existente
tavam envolvidas com o mesmo pecado de entre Esaú e Jacó vinha desde os primei-
Damasco, pois tratavam pessoas como pro- ros irmãos chamados por esses nomes
~IIIIIAM6S2 1198

(Gn 27.41). Em Números 20.14ss., a hosti- 2.1-3 Moabe. Um povo pagão e vio-
lidade se tomara pública, e um padrão para lência contra um cadáver - tudo isso se
o futuro ficara estabelecido. Saul achou encontra dentro das preocupações do Deus
necessário recorrer à guerra (lSm 14.47); santo. Onde quer que, em violação à cons-
Davi conquistou e anexou Edom - ten- ciência, sejam cometidos crimes contra a
do sido o único rei a fazê-lo (2Sm 8.14). humanidade, por qualquer que seja o moti-
Salomão enfrentou uma revolta em Edom vo, o Senhor é inimigo implacável do cri-
(1 Rs 11.14ss.,25), e o mesmo se deu com minoso. A passagem de 2Reis 3.26 sugere
Jeorão, um século mais tarde (2Rs 8.20). a animosidade particular entre Moabe e
Cinquenta anos depois, Amazias guerreou Edom. A mesma aversão nacionalista pro-
contra Edom (2Rs 14.7,10). A acusação de vavelmente alimentou o ultraje descrito
um ódio que se intensificava continuamente aqui, revelando um espírito vingativo. O
é comprovada, mas não justificada diante que não podia ser acertado enquanto as
de Deus. Esse ódio era contrário à nature- partes estivessem vivas seguia o rei até
za (irmão), uma negação do sentimento de sua sepultura. Poderia qualquer outra coisa
misericórdia (um fluir espontâneo de com- expor de maneira mais clara a absurda ir-
paixão ou amor; e.g., lRs 3.26), e estava racionalidade do ódio nutrido pelo inimigo
sempre a ponto de estourar (sua ira não do que a observação do corpo de alguém
cessou de despedaçar). Qualquer que seja respeitável ser desenterrado para sofrer
sua origem e suposta justificativa, tal ira é indignidades despropositadas? O ódio fun-
inadmissível. Ela se aloja no coração, mas ciona mais ou menos assim: envenena o
é vista do céu. 12 Temã era Edom (Ob 9); coração de quem o pratica, atrai a ira de
Bozra era sua principal cidade. Deus. 2 O fogo, que compensaria o fogo da
13-15 Amom. A guerra entre Amom e cremação descrito no v. 1, exemplifica a lei
Gileade não é conhecida, mas foi registra- da equivalência exata entre crime e castigo
da no céu. Seu principal motivo era expan- que está na base da lei divina e é utilizada
sionista (para dilatarem os seus próprios como um padrão pela justiça dos homens
limites) e, interessados nessa expansão, (Êx 21.23; Lv 24.19,20; Dt 19.21).
eles estavam prontos a acabar com o cres-
cimento populacional (grávidas). Uma vez 2.4-3.2 Contra o povo escolhido
mais, a parte material é mais valorizada do 4,5 Judá. A lista de condenação agora
que o ser humano: se há uma linha geral passa significativamente a um novo alvo.
caracterizando as "quatro transgressões" Judá, uma parte do povo do Senhor, é
listadas por Amós, é essa. Aqui eles prati- chamado ao juízo, e não está menos sob
caram uma selvageria desumana para com exame e sentença divina do que seus vizi-
aqueles que, mais do que quaisquer outros, nhos pagãos, como indica a fórmula: Por
mereciam ternura - as mulheres grávidas três transgressões de Judá e por quatro.
e seus filhos ainda não nascidos. Diante da Mas qual seria a quarta transgressão de
ira infalível de Deus, nenhuma aspiração Judá? Eles rejeitaram a lei do SENHOR. (i)
nacional (nem mesmo os apelos relativos Lei significa "ensinamento" (e.g., Pv 3.1),
à "segurança nacional") pode desculpar tal como o que um pai carinhoso ministra ao
comportamento. Compare os minuciosos filho querido. O povo de Judá rejeitou a
detalhes do v. 14 com os versículos parale- palavra paterna do Senhor. (ii) Estatutos
los 5,7,8,10 e 12. Fogo é o tema da santida- é algo gravado em pedra para a posterida-
de divina (Êx 3.2,5; 19.18). Com turbilhão de: eles alteraram o inalterável. (iii) Eles
no dia da tempestade indica como as "for- trocaram a verdade, não por falsos deuses,
ças da natureza" podem ser imagens da in- mas por fábulas (2Tm 4.4). (iv) Seus pais:
tervenção pessoal divina (SI 18.9-14). sua culpa está profundamente arraigada,
1199 AMÓS2-:


pois a Bíblia nunca usa o legado moral das aqueles que socialmente não têm meios
gerações passadas como uma desculpa. A para buscar reparação.
presente geração é responsável por uma 7 "Pisam" (NVI) origina-se de um texto
culpa acumulada (SI 51.3-5; Mt 23.31-36). levemente alterado no qual se lê literal-
"Deuses falsos, deuses..." (NVI, no lugar de: mente "suspiram pelo pó da terra" - eles
"mentiras, mentiras...") restringe demais tinham tamanha cobiça pela terra que ne-
a acusação. Tais deuses seriam incluídos gavam aos pobres (aqueles que não tinham
por implicação, mas as palavras de Amós influência nem dinheiro) até mesmo a terra
são muito mais fortes: " ...se deixou enga- com que eles sujavam as suas faces em si-
nar por deuses falsos, deuses que os seus nal de lamento (Js 7.6)! Mansos ("oprimi-
antepassados seguiram". Fora da verdade do", NVI), marginalizados, os que estavam
revelada há apenas erro humano. 5 Fogo na base da pirâmide social.
que consumirá: ver 2Reis 24-25. 7,8 Os pecados contra a revelação de
Nota. O oráculo registrado em 2.6- Deus começam aqui. O Senhor tinha reve-
3.2 tem uma forma simétrica comum aos lado a eles seu santo nome, desvendando-
livros proféticos: lhes o segredo de sua natureza interior, mas
eles desafiaram abertamente sua proibição
(ai) 2.6a,b A ameaça declarada em relação ao adultério (Êx 20.14) e à for-
(b') 2.6c-8 O pecado exposto nicação em nome da religião (Dt 23.17,18).
(c) 2.9-12 A bondade de Deus A religião dos cananeus utilizava atos de
(b2) 2.13-16 O juízo anunciado procriação humana como lembretes e es-
(a') 3.1,2 A ameaça renovada e justificada tímulos para que o deus Baal desempe-
nhasse sua função de tomar férteis os seres
No centro estão os bons atos de Deus, humanos, os animais e a terra. Na época de
os quais tomaram Israel especial e aos Amós, o santo Senhor estava sendo adora-
quais ele não correspondeu: em particular, do da mesma maneira que o deus Baal dos
a dádiva da terra (9), a redenção do Egito e cananeus, mas ele apenas será adorado do
o cuidado no deserto (10), a revelação das modo que ele mesmo determina (Mt 15.9),
exigências de Deus (nazireus) e de sua pa- e não pela nossa noção do que é empolgan-
lavra (profetas). te em termos de religião. A mesma jovem.
6-8 Os pecados de Israel. Amós exa- lit., simplesmente "a jovem". A condena-
mina os pecados de Israel de uma pers- ção não é pelo fato de pai e filho possuí-
pectiva tanto social (6,7) quanto religiosa rem a mesma jovem - como se isso fosse
(7,8). Sua corrupção em relação aos justos, uma acusação de imoralidade exacerbada
sua insensibilidade em relação aos mais - mas o fato de toda a comunidade mas-
pobres e sua voracidade em relação aos culina, "um homem e seu pai" igualmen-
oprimidos são os fatos primeiramente des- te, estar envolvida em orgias dedicadas a
critos. 6 O justo, ou seja, alguém inocente Baal. 8 A religião deles insultava a graça
perante a lei. Os juízes estavam abertos à divina. No local exato de expiação, ao pé
corrupção (por dinheiro), veredictos eram de qualquer altar (Lv 17.11), eles se en-
vendidos por algo tão insignificante quanto tregavam a suas luxúrias e faziam da casa
um par de sandálias ou os casos trazidos de Deus - um lugar que deveria ser usa-
à justiça eram tratados como se fossem do para desfrutar de sua comunhão - um
questões tão insignificantes quanto um par local de orgias. Coabitam, uma alusão ao
de sandálias - tal era a cobiça nessa épo- próprio ato da fornicação. Roupas empe-
ca. A palavra necessitado implica aqueles nhadas: ver Êxodo 22.26ss., em que se diz
que não podem resistir ou que são forçados que as vestimentas tomadas como garantia
a se curvar à vontade e ao poder superior, de empréstimos deveriam ser devolvidas
11
: - AMÓS2 1200
li

antes do pôr do sol. Dos que foram mul- os grãos), mas o panorama é o mesmo.
tados: o vinho usado em suas orgias era 3.1,2 Dirigidos contra toda a família que
conseguido pelos meios ilegais descritos ele fez subir, esses versículos formam,
nov.6. assim, a conclusão não apenas de 2.6-16,
9-12 Os privilégios de Israel. Em cada mas também de 2.4-16. Após o chamado
ponto em que pecaram, a graça divina ti- para ouvir, há referência aos atos de Deus
nha deixado em aberto um caminho bem e à redenção do êxodo que fez deles seu
diferente para eles. O Senhor lhes deu a povo. O v. 2 começa falando da posição
terra (9) na qual devem criar uma socieda- exclusiva que eles ocupam e termina com
de diferente baseada em sua lei (contrastar a inevitável consequência: o castigo pelo
com os v. 6,7); ao tirá-los do Egito (10), re- pecado faz parte da própria constituição
velou-lhes o seu nome (Êx 3.14,15; 6.6,7; do povo de Deus. Portanto, há uma conse-
20.2), o qual eles profanaram; e ainda, para quência automática: muito será pedido da-
salvá-los de um tipo de vida pecaminoso e queles a quem muito foi dado (Lc 12.48).
de uma adoração inaceitável (8), o Senhor Eis a essência da mensagem de Amós. O
lhes deu alguns agentes especiais de revela- privilégio é algo maravilhoso, mas não é
ção (11). Eles perverteram toda a sua obra algo atrás do que possamos nos esconder;
de graça. 9 Eu é enfático, significando: é uma responsabilidade e um tesouro do
"Quanto a mim, fui eu quem". Amorreu, qual deveremos prestar contas.
nome dado ao povo que habitava a terra de
Canaã antes do povo de Israel. Não obs- 3.3-8 O rugido do leão:
tante seu insuperável poderio humano (Nm A palavra profética
13.28), o poder divino os destruiu comple- 3-6 O leão ruge novamente: a mensagem
tamente (fruto [...] raízes). 10 Ver o esboço é autenticada. Amós fecha o primeiro ci-
acima: a verdade central de todo o oráculo clo de suas profecias (v. Introdução) com
como o ato central do Senhor no AT - o uma série de ditados sobre causa e efeito.
êxodo - é ao mesmo tempo libertação, Ele constrói um duplo clímax; primeiro, a
redenção e assentamento (Êx 6.6-8). 11 Os calamidade não vem senão pelas mãos de
profetas levaram adiante em Israel a reve- Deus (6); segundo, nenhum profeta de ver-
lação dos fundamentos passada a Moisés. dade fala senão por revelação divina (7,8).
Nazireus (Nm 6.1ss.) tipificavam a vida Em suma, nada menos do que a imposição
consagrada que o Senhor desejava para seu divina faria Amós pregar a seu povo tal
povo (Lv 19.2). 12 O povo não queria ver mensagem, mas o Senhor falou com ele e
o exemplo e nem ouvir a palavra. não lhe resta outra opção. 3 Andarão dois
2.13-3.2 O inevitável juízo divino. juntos expressa um companheirismo ha-
13-16 Amós anuncia a ação divina contra bitual tal que somente pode surgir de um
a qual nada irá ajudar, nem a habilidade acordo entre Deus e Israel. Eles estão jun-
natural, o preparo ou a coragem. 13 Israel, tos na aliança, mas pode sua amizade con-
sob a liderança de Jeroboão, estava flores- tinuar se estão em conflito? A lei de causa
cendo (v. Introdução), mas havia outros as- e efeito entraria em ação para separá-los.
pectos cujo tempo de colheita era chegado. 4 Duas ilustrações da perspectiva de um
A carroça carregada de feixes da colheita predador: o leão não rugirá para atacar
pressiona a terra, impotente sob seu peso. (1.2; Jz 14.5) a menos que tenha umapre-
Assim Israel estava colhendo o peso da ira sa em vista, nem levantará o leãozinho no
divina que a pressionaria para a destruição. covil sua voz (com ar presunçoso) se não
O hebraico pode ser traduzido por "como tiver apanhado uma presa para devorar.
a carroça deliberadamente carregada pres- 5 Duas ilustrações da perspectiva da presa:
siona os feixes" (um método para debulhar a ave não cairá no laço a menos que tenha
1201 AMÓS3(

uma armadilha, isto é, uma isca para fisgá- (4.4-5.27). Essas falhas são velhas co-
la, nem levantar-se-á o laço da terra a não nhecidas: a falha de não amar o próximo,
ser que a isca tenha sido mordida e haja oriunda da falha de não amar ao Senhor
algo para apanhar. 6 A aplicação: a presa nosso Deus.
ouve o aviso de que o predador vem e tre-
me. É o grande "predador divino" que está 3.9-15 O reino despedaçado
por trás de todo desastre. A intenção do Com um discurso dramático, Amós concla-
argumento de Amós é convidar o povo a ma as nações pagãs a ver o que está ocor-
explicar desastres passados e futuros. Eles rendo em Samaria (9) e então a anunciar,
aceitam a visão bíblica segundo a qual o elas mesmas, o julgamento divino (13). É
Senhor age na história e que, assim como como se mesmo os pagãos tivessem cons-
por trás de cada evento há uma causa, por ciência moral suficiente para julgar o povo
trás da história está o Senhor? Se é assim, do Senhor! A evidência é de grandes tu-
então a única atitude razoável que ele tem multos e opressões (9); falha de caráter e de
a tomar é se assegurar de que estão em per- conduta (10). Eis aqui uma religião (14) e
feita relação e harmonia com o Senhor. uma sociedade abastada (15) que merecem
7,8 Uma compreensão genuína da fun- o castigo divino. O agente da destruição é
ção de um profeta confirma a interpretação tanto o cerco inimigo (11) quanto o Senhor
de que Deus está no controle. Primeiro vingador (13-15). O esquema do trecho é:
(7),. ao profeta foi revelado o segredo dos
planos de Deus. Revelar o seu segredo ou (a') v. 9 As nações são conclamadas a
estar "no conselho do SENHOR" (Jr 23.18): observar
a essência da experiência do profeta era (b') v. 10 Relato sobre o caráter e a
ser levado para perto de Deus. Isso expli- conduta
ca como eles poderiam falar a palavra de (b') v. 11 Punição pela destruição
Deus e ao mesmo tempo ser plenamente (b') v. 12 Ilustração: nada sobreviverá
eles mesmos, pois quanto mais uma pes- (a-) v. 13-15 As nações chamadas a
soa se aproxima de Deus mais ela se toma testificar
uma pessoa no verdadeiro sentido da pa-
lavra. Porém, os profetas do AT também 9 Os pecados de Israel são tão osten-
esperavam saber antecipadamente o que o sivos que até mesmo os mais desprezíveis
Senhor faria (cf a surpresa de Eliseu quan- pagãos, os inimigos ancestrais de Asdode,
do isso não ocorreu, 2Re 4.17). Se é assim, os filisteus (Jz 14.3; lSm 17.36) e o Egito
então, na mensagem de Amós, rugiu o leão possuem superioridade moral suficiente
[...]falou o SENHOR Deus. para discernir que Samaria está debaixo
do julgamento divino. Castelos, o apelo é
3.9-6.14 Um inimigo ao redor para que as classes dominantes ajam como
da terra: A ira do Senhor juízes de sua própria classe (cfcastelos, v.
Os versículos-moldura de 3.11 (lit. "um 10; grandes casas, v. 15), um julgamento
inimigo cercará a tua terra") e 6.14 ("le- justo de seus iguais. Tumultos significa in-
vantarei sobre vós, ó casa de Israel, uma quietação, instabilidade social. Opressões
nação [...] desde a entrada de Hamate até significa extorsão e perseguição. 10 Não
ao ribeiro da Arabá") determinam o tema sabe fazer o que é reto ("agir com retidão"
dessa seção. No trecho entre esses versícu- é algo que está fora do alcance deles), a de-
los-limite, o ataque do inimigo é explicado dicação à prática da injustiça enfraquece a
pela autoindulgência e a indiferença social percepção moral e sua única preocupação
das classes dominantes (4.1-3; 6.1-7) e, passa a ser com o que conseguiram arma-
principalmente, pela decadência religiosa zenar em suas grandes casas ou castelos.
11
1111 AMÓS4 1202
11-

Eles não têm consciência de que o que é não apresenta nenhuma queixa contra a
ganho de forma desonesta é como um bar- riqueza em si. A questão é sempre a ma-
ril de pólvora pronto para explodir: na ver- neira como esta foi acumulada (Jr 17.11),
dade o que eles estão armazenando para si de que forma é utilizada e, especialmente
mesmos é lit. violência (roubo, pilhagem) para Amós, como as pessoas fazem uso do
e devastação (saque, despojo). O que no poder adquirido pela riqueza. Mas assim
momento é o tratamento que dispensam a como a falsa religião, a obtenção da rique-
outros será, no final, o que receberão. za pela opressão os deixará indefesos no
12 Cf Êxodo 22.10-13. Se um pastor dia da visitação.
conseguisse trazer de volta os restos de
uma ovelha dilacerada por algum animal, 4. 1-3 As mulheres dominadoras
ele seria absolvido da acusação de negli- De uma acusação geral (3.9-15), Amós
gência: tinha tentado salvar o animal, mas parte para questões particulares. 1 As mu-
falhara. Mas o que ele resgatou era apenas lheres indolentes de Samaria, que oprimem
uma evidência da perda total! Assim era o os pobres (os desprovidos de meios finan-
caso de Samaria: o que havia sobrado fa- ceiros e vulneráveis), que dominam o ma-
laria apenas da destruição total; mas assim rido com sua insistência em gratificação; o
como as duas pernas ou um pedacinho da que são elas senão vacas seletas da famosa
orelha eram evidências de um animal des- região do gado, Basã (Dt 32.14; Si 22.12),
troçado, os típicos restos de Samaria seriam vivendo uma existência puramente animal,
o canto da cama e parte do leito, evidências engordadas para o abate? 2 Em 3.9, lemos
de uma sociedade ociosa, amante da luxú- sobre ofensas sociais; em 3.14, sobre rebel-
ria e decadente. dia contra Deus, mas aqui são registradas
14 Falando acerca do agente histórico afrontas a sua santidade. Crime é crime e
da derrota de Samaria(II),Amós passa sem pecado é pecado, pois o santo Deus é san-
cerimônia a falar do Senhor como agente da to e sua santidade levanta-se contra todos
destruição. O Senhor está, dessa mesma ma- aqueles que o ofendem. Escravos da indul-
neira direta, por detrás de toda a História gência, os criminosos e pecadores de Israel
(cf 9.7). Transgressões ("rebeliões") repre- se tomam cativos de fato (2,3). Anzóis [.,,]
sentam o desprezo intencional pela lei do fisga de pesca, o par enfatiza a impossibi-
Senhor. Os crimes sociais descritos nos v. lidade de fuga. Os cativos eram, na verda-
9,10 são pecados contra o Senhor. Em sua de, levados por cordas atadas em ganchos
ação punitiva, o Senhor começa pela falsa presos aos seus próprios lábios. 3 Brechas,
religião e daí passa para a falsa sociedade causadas pelo inimigo descrito em 3.11.
(14,15). Do mesmo modo que a verdadeira "Harmom" (NVI) é um lugar desconhecido;
religião é a raiz da verdadeira sociedade, a não há uma identificação satisfatória ou
falsa religião é a raiz da corrupção. Pontas. emenda sugerida.
Na prática pagã, embora não da do povo
de Israel (1Rs 1.51), apegar-se às pontas 4.4-13 Religião sem arrependimento
do altar garantia imunidade por se estar Amós toca, agora, no coração do proble-
no santuário. No dia do juízo, a falsa re- ma. Afinal de contas, a coisa mais séria
ligião não terá santuários, e as pontas de não eram os crimes do povo (3.9,10), sua
seus altares serão cortadas! 15 O principal rebeldia (3.14) ou ofensas à santidade de
golpe cai sobre os mais abastados, aqueles Deus (4.2), mas o fato de que, quando lhes
elementos da sociedade que possuem duas fora dada a oportunidade para que se arre-
casas, com residências de inverno e de ve- pendessem, eles não o fizeram. O cerne da
rão e com a ostentação de luxo (marfim). passagem (6-11) nos ensina que o Senhor
Como em todo o restante da Bíblia, Amós é a causa das mais variadas circunstâncias
1203 AMÓ54/
....
da vida, e seu propósito, em cada ato de 6-11 Sete atos divinos: fome (6), seca
aflição, é trazer seu povo de volta para ele. (chuva seletiva) (7,8), ferrugem (9), gafa-
O irônico comando inicial Vinde (4), intro- nhotos (9), peste (10), derrota militar (10)
duzindo a exposição de uma religião que e desastres naturais (11). Coisas que nor-
fracassara (4,5), é contrabalançado por um malmente são atribuídas à sorte, às causas
chamado final a estarem prontos para se naturais ou à insensatez humana são todas
encontrar com o Senhor (uma religião que atos diretos de Deus, visando produzir
não fracassará), nos v. 12,13. Separando aquilo que ele deseja ver em seu povo. Ele
estes dois chamados, há sete atos de Deus quer uma proximidade consigo revestida
que visam trazer seu povo de volta para ele de quaisquer termos que sejam apropriados
(6-11). No caso de Israel, o objetivo especí- às circunstâncias; arrependimento, se hou-
fico dos atos divinos foi o arrependimento, ve pecado envolvido, a atitude de buscá-lo
mas o princípio é que, em cada experiência por conforto etc. Sem relacionamento não
de vida, o Senhor está trabalhando direta- há religião. Na época de Arnós, enquanto o
mente para nos trazer para perto dele. povo estava sendo religioso, o Senhor esta-
4,5 Betel (Gn 28.10-22) e Gilgal (Js va agindo e buscando o arrependimento.
4.19) comemoravam o novo começo com 12,13 Seria o v. 12 uma mensagem de
Deus, porém a utilização dos santuários esperança (ainda há tempo de se preparar
pelos adoradores não envolvia um novo para encontrá-lo em paz) ou uma terrível
começo, mas simplesmente confirmava advertência (o Senhor está se aproximando
suas transgressões. (i) Era simples reli- com um castigo não determinado e a última
gião. O ato religioso esgotava-se em si chance deles se foi)? O v. 13 pode sugerir
mesmo. Cada manhã e de três em três dias um "sim" para ambas as hipóteses, pois o
podem apontar simplesmente para meticu- Senhor está em pleno comando de todo o
losidade: o sacrifício tinha de ser ofereci- seu mundo - das coisas visíveis (montes),
do no primeiro dia, e o dízimo, no terceiro invisíveis (vento) e da mente humana (lit.
dia. Isto pode, entretanto, ser evidência "declara ao homem qual é o seu pensamen-
de atos repetitivos que iam além da lei de to"). Ele é o Senhor de toda a mudança, que
Deus: sacrificios não apenas uma vez por faz da manhã trevas (isto é, traz o juízo que
ano (1Sm 1.3), mas uma vez ao dia; dízi- está implícito no v. 12, obscurecendo qual-
mos não a cada três anos (Dt 14.28), mas quer esperança humana) ou, uma tradução
a cada terceiro dia - pois se o ato é o que ainda mais provável, que "faz das trevas
importa, quanto mais melhor! (ii) Suas ba- manhã" (isto é, traz esperança para onde
ses eram a satisfação e exaltação próprias: parece não haver nenhuma). Além disso,
porque disso gostais, mesmo que violem a ele domina a terra (pisa os altos da terra) e
lei de Deus (v. Lv 2.11, em que oferecei sa- pode, portanto, fazer aquilo que lhe agrada,
crificio de louvores do que é levedado traz pois ele é o SENHOR, Deus dos Exércitos.
consigo aquilo que Deus proibiu). Mesmo Assim como Moisés (Dt 30.19,20), Amós
os atos de devoção pessoal (ofertas volun- coloca diante de seu povo a vida e a mor-
tárias) tinham como interesse a exaltação te: a escolha é deles, eles chegaram a uma
própria (apregoai [00'] publicai-as). A ver- hora de decisão. A ideia de "te encontrares
dadeira religião, porém, "tem de estar de com o teu Deus" (12) volta-se ao passa-
acordo com a vontade de Deus como seu do, para Êxodo 19.17, quando tanto graça
padrão inerrante" (Calvino, Institutes of como lei foram combinadas em uma úni-
the Christian Religion, SCM, 1961, p. 49) ca revelação. A porção que coube ao povo
(Mc 7.6). Fora dessa vontade revelada, a de Arnós caberá sempre ao povo de Deus,
religião não passa de mais uma forma de a de conviver com a opção que fizeram
rebeldia (4). (Dt 27.4-6). Isto foi o que Amós colocou
AMÓS5 1204

diante deles no v. 12. É como se ele disses- 4-13 O Senhor poderia ter lhes dado
se que eles podem escolher a personalida- vida, mas eles escolheram o caminho da
de com que Deus se apresentará a eles: o morte. A melhor opção está em restaurar o
arrependimento levará o Senhor da graça original "Pois" do início do v. 4. O grande
soberana a transformar as trevas em ma- desastre tem uma causa-raiz (1-3). O povo
nhã; a religião sem arrependimento os de Israel fora convidado a buscar ao Senhor
deixará expostos ao Soberano Senhor com e ter vida (4,6), fora advertido sobre o ca-
todo o terror de sua lei e o esmaecer da luz minho da morte (5,11), fora relembrado de
que se transformará na escuridão do juízo. que Deus pode dar luz, mas também escu-
ridão (8). Tiveram a oportunidade de esco-
5.1-27 Religião sem transformação lha e fizeram a escolha errada.
Esta passagem é construída em tomo de 4,5 O Senhor é amoroso em seus apelos
três apelos: (i) por transformação espiritual: e fiel em suas advertências. Ele se oferece
Buscai-me [...] buscai ao SENHOR (4-6); (ii) a si mesmo como remédio para o que eles
por transformação social e pessoal: Buscai precisam: buscai-me é um convite à apro-
o bem [...] estabelecei na porta o juízo ximação, ao relacionamento e à novidade
(14,15); (iii) por transformação religiosa: de vida. Por outro lado, Betel e Gilgal são
Antes, corra o juízo [...] Apresentastes-me, respeitadas por questão de tempo e tradi-
vós, sacriflcios e ofertas... ? (24,25). Mas ção (cf 4.4). Gilgal, a porta de entrada para
os apelos são emoldurados por afirmações a terra prometida (Js 4.20), provará ser o
de desastres (1-3; 26,27) e intercalados lugar do exílio; enquanto Betel, "a casa
com o diagnóstico de como as coisas estão de Deus" (Gn 28.17,19) será desfeita em
(7; 10-13; 16-20). A palavra portanto, no nada ("Áven", NVI mrg.), tão inútil quanto
v. 16, nos dá uma pista de como o capítulo um ídolo.
deve ser entendido: como pode um apelo 6,7 Amoroso em seus apelos, Deus tam-
(14,15) ter como consequência (portanto, bém é fiel em suas denúncias. Mais uma
v. 16) uma previsão de inconsolável tris- vez, ele mesmo é tudo o que o povo precisa
teza? Apenas se Amós estiver recordando (Buscai ao SENHOR e vivei), mas fora dele
apelos feitos e recusados! O capítulo, por- não há vida alguma. Betel pode até inspirar
tanto, é um registro de uma oportunidade tradição e respeito, mas isso é inútil contra
perdida e das severas consequências disso, ofogo (o símbolo da santidade energizada)
agora inevitáveis. Mais uma vez, não se que irromperá contra ajustiça pervertida e o
pode zombar de Deus. juízo humilhado. Sempre que essas duas pa-
1-3 O lamento de um funeral: a mor- lavras são usadas juntas (v. Is 5.16), "juízo"
te e sua causa. Embora a morte descrita se é uma palavra que sintetiza os princí-
encontre ainda no futuro (3) ela é tão certa pios inerentes à santidade de Deus, e
que o lamento fúnebre já pode ser compos- "justiça" é a aplicação prática desses prin-
to e cantado (2). 2 Caiu na morte, a jovem cípios na vida pessoal e social.
morta não tem o poder inerente de se re- 8,9 Seria melhor remover os parênte-
cuperar (nunca mais tornará a levantar-se) ses que aparecem na NVI. OS versículos
nem auxílio externo (estendida está [...] têm mesmo a intenção de ser abruptos.
não há quem a levante). 3 A causa imedia- Muito irritado, Amós muda o foco da
ta dessa impotência e desesperança diante atenção do povo responsável pela amarga
da morte é a derrota das forças militares, na transformação na terra (7) para o grande
qual o exército sofreu baixas de até 90%. Transformador. Por um lado, a perversão
Mas qual é a sua causa principal? O restan- humana não pode prevalecer contra Deus:
te do capítulo declara que é a isso que se Ele tem poder para fazer com que por meio
assemelha a morte causada pelo pecado. do fogo ameaçador (6) venha súbita des-
1205 AM6SS(

truição (9). Por outro lado, se eles atende- (2.7; 4.1): financeiramente pobre e social-
rem a seu apelo, buscai-me, como foram mente indefeso. Dele exigis tributo de trigo.
convidados a fazer, trocarão a morte pela Amós não especifica que poderoso interes-
vida prometida (6), pois ele pode facilmen- se está fazendo tudo isto. O proprietário
te tomar a densa treva em manhã (8). da terra que pisa o pobre, ao cobrar uma
Sete-estrelo e Órion eram marcado- exorbitância pelo arrendamento da terra, e
res das estações; o surgimento e o ocaso ainda arruma maneiras de fazer "cobran-
do Sete-estrelo marcavam a estação de ças" adicionais? O agiota? O Senhor não
navegação para os marinheiros e as es- está preocupado com "quem" cobra, mas
tações do ano nos calendários nômades. com quem paga - a vítima. Portanto indi-
Densa treva [...] manhã [...] dia [...] noite, ca que um agente celestial está em ação. O
as transformações periódicas de cada 24 Senhor governa seu mundo com princípios
horas. Muda (8) é o mesmo verbo utiliza- morais, de forma que aqueles que ganham
do no v. 7 ("converteis"): mas acaso essa de maneira injusta não desfrutarão de seus
conversão causa transformações? Quão ganhos perpetuamente. Há um princípio de
indizivelmente maiores são as transforma- frustração embutido na natureza das coisas
ções de Deus em comparação! Chama as (Is 5.8-10,14-17). Como mostra o esboço
águas do mar e as derrama: o Senhor não acima, esta é a verdade central da passa-
é limitado por suas próprias regras gerais, gem. Humanamente falando, o povo cons-
como a de segurar as águas em seu devido truiu casas de pedra para que durassem,
lugar (SI 104.8,9). Ele também pode tra- plantou para produzir (vides desejáveis),
zer transformações ocasionais, como fazer mas não será do jeito que planejaram.
com que as águas inundem a terra. Os go- 12 Transgressões [...] pecados: "re-
vernantes da época de Amós tinham ope- beliões" (contra Deus) "que deixam de
rado transformações (7) e silenciado toda atender" (suas exigências). Contravenções
a oposição (13), mas aquele que controla sociais constituem pecados espirituais;
as transformações sazonais, diárias e oca- consequentemente, uma simples transfor-
sionais é perfeitamente capaz de destruir mação nada mudará: tem de haver uma
as resistentes fortificações que o homem conversão a Deus. Justo: aquele que está
construíra contra qualquer tipo de ataque "com a razão" em um tribunal. Suborno:
(9). Que visão para uma época como a de o uso da riqueza para ganhar uma ação
Amós, quando a incredulidade é desenfrea- judicial. Rejeitais ("não dais ouvidos"):
da, os valores estão invertidos (7) e todos atitude de um juiz que se recusa a ouvir o
os comprometidos com Deus estão plena- caso levado a dele - particularmente não
mente conscientes de sua impotência (13)! dando oportunidade de defesa a pessoas
10-13 Uma declaração bem equilibrada: "desimportantes", aos necessitados (não é
a mesma palavra que aparece no v. 11), a
(a') v. 10 Ódio para com aqueles que falam pessoas de pouca influência que podem ser
a verdade facilmente ignoradas. 13 O "ódio" men-
(b') v. 11 Opressão ao pobre cionado no v. 10 (NVI) facilmente introduz
(c) v. 11 Julgamento por expropriação o reinado do terror no qual as pessoas não
(b') v. 12 Opressão aos necessitados (pala- têm liberdade de expressão.
vra diferente) 14-20 Transformação moral: enten-
(a') v. 13 Oposição silenciada dendoo Dia do Senhor. A ameaça nega-
tiva da expropriação (11) agora se toma
10 O justo juiz (que vos repreende) e a uma ameaça positiva da vinda do "dia" do
testemunha honesta (que fala sinceramen- pranto que não pode ser aliviado (16,17) e
te) são igualmente detestados. 11 Pobre de trevas (18). O "Dia do SENHOR" era, evi-
AMÓS5 1206

dentemente, parte da expectativa popular observe como a mensagem de destruição


da época, mas se pressupunha que ele tra- é reforçada por um título ainda mais re-
ria "luz", isto é, todo o tipo de experiências forçado: Senhor (sem versalete) significa
agradáveis para o povo de Deus. Por essa "Soberano"; SENHOR (em versalete) signi-
razão, eles o aguardavam com confiante fica "Javé", o Deus do êxodo que salva seu
esperança. (i) Amós ironicamente utiliza a povo e destrói seus inimigos; o "Soberano"
linguagem da esperança para pregar a des- (NVI) significa "dos Exércitos", aquele que
truição (e.g., passarei pelo meio no v. 17 é é, em si mesmo, potencialidade e poder.
terminologia típica da Páscoa, Êx 12.12). Dá-se início à franca lamentação (em to-
O povo esqueceu o caráter de seu Deus. A das as praças [...] em todas as ruas), sem
noite da Páscoa foi uma noite de juízo para exceção, envolvendo não apenas os que
aqueles que estavam desprevenidos. (ii) As sabem prantear (os pranteadores profissio-
bênçãos espirituais estão fundamentadas nais) mas também os lavradores. Lugares
em condições morais (14,15). A presença tradicionais de júbilo, vinhas, serão lugar
encorajadora de Deus é uma realidade para de aflição; tudo em virtude do fato de que
aqueles cujos objetivos (buscai) e corações o Senhor "passará no meio de ti". Não é
(aborrecei o mal, e amai o bem) estão em preciso nenhum tipo de ação excepcional,
harmonia com Deus e que aplicam esses apenas sua santa presença é suficiente para
valores que pessoalmente prezam à socie- que tudo seja reduzido a pranto.
dade em que vivem (estabelecei na porta 18-20 O otimismo popular é contraria-
o juízo). (iii) Talvez (15) indica que Deus do pela ênfase acerca da escuridão do Dia
se opõe à arrogância. Não se trata de ques- do Senhor. Do mesmo modo que espera-
tionar se misericórdia é misericórdia, mas mos o retomo iminente de nosso Senhor
de reprovar a suposição de que tem de ser Jesus Cristo, assim a igreja do AT ansiava
aSSIm no meu caso. pelo Dia do Senhor: o dia da sua vinda
14,15 (i) Buscar o bem vem acompa- pessoal. Conforme lemos o AT, descobri-
nhado de afastar-se do mal. (ii) Santidade mos que o que é antecipadamente (como
de ação (buscai o bem) deve vir acompa- aqui) descrito como "o Dia do SENHOR"
nhada de santidade de sentimento (abor- acaba se mostrando (27) uma intervenção
recei o mal, e amai o bem). (iii) A ação divina momentânea, e não o derradeiro Dia
não deve esperar pelo sentimento: buscai do Senhor. A ilustração no v. 19 (em vez
o bem é colocado antes de amai o bem. Se do segundo como se, leia-se "e") conta a
esperarmos que o sentimento leve à ação, história de um destino do qual não se pode
será comum esperarmos em vão. Devemos escapar. Voltando aos v. 4-20, para quem
aprender a exaltar o dever acima da incli- seria o dia das "trevas"? Para aqueles que
nação e descobrir como um ato bondoso professam pertencer ao Senhor, mas que
poderá levar a um coração bondoso. (iv) A não "o buscam" (4), não o agradam pelo
repetição do sublime título SENHOR, o Deus modo como agem com relação aos neces-
dos Exércitos confere peso ao nosso empe- sitados e indefesos (7ss.), não fazem o bem
nho moral: é a Deus que buscamos satisfa- e não se afastam do mal (14) nem amam
zer. Nós nos colocamos à disposição dele; aquilo que ele ama (15). Pessoas que pro-
cabe a ele ordenar. 15 José é usado como fessam algo sem realidade, ou que vivem
um nome genérico para o Reino do Norte, uma religião destituída de evidências de
pois suas tribos eram em sua maioria des- transformação espiritual e moral, estão se
cendentes dos filhos de José (Gn 48). movendo precisamente na direção errada,
16,17 Para comentários sobre a expres- isto é, para bem longe de Deus.
são portanto, ver a introdução ao cp. 5. 21-27 Transformação religiosa, vol-
O Senhor, o SENHOR, Deus dos Exércitos: ta aos valores antigos. O Senhor rejeita
1207 AMÓS6<

as práticas religiosas correntes (21,22). À dados ao planeta Saturno, um deus-estre-


primeira vista, os v. 23,24 parecem apre- la que era adorado como rei e como deus
sentar ide ias contrárias - enfatizando (v. Hubbard, p. 185). O amor aos rituais
que Deus não deseja uma religião de "cul- costuma ser manifestado em procissões.
tos", mas de "serviço". O v. 25, entretan- 27 Essa procissão termina no exílio, cujo
to, restabelece o equilibrio, conclamando destino Amós tenta esconder na vaga ex-
a uma volta às prioridades originais (v. pressão para além de Damasco. E eles
Introdução, sobre Sociedade). A falta de irão, não como vítimas de um conquistador
reação à mensagem do v. 24 está suben- ou do destino, mas porque vos desterrarei,
tendida no v. 26, isto é, a persistência nas ou seja, o Senhor dos Exércitos trará sobre
próprias escolhas, na prática religiosa es- o seu povo as consequências de sua insen-
tabelecida pelos próprios homens, resul- satez e obstinação.
tará no exílio (27).
21-24 A religião sem moralidade atrai 6.1-7 Os homens notáveis
a ira divina (Is l.ll-l5ss.; Jr 7.9-11).24 As mulheres descritas em 4.1-3 são contra-
Juízo [...] justiça: prática e princípio (cf balançadas pelos homens descritos em 6.1-
v. 7). 25 Mas Amós não clama por mo- 7; isto é, todos sem exceção estão envolvi-
ralidade sem religião, nem por serviço dos. Eis aqui o orgulho arrogante que não
sem culto. A ênfase em sua pergunta é: vê falhas em si mesmo. As mulheres eram
"Foram sacrifícios (apenas) o que vós me como as "vacas", que cedem sem pensar
apresentastes no deserto?". A religião do a seus desejos; os homens são motivados
Sinai era antes de tudo uma resposta de por um orgulho consciente: Eles conside-
caráter moral e ético a um Deus redentor ram a si mesmos notáveis "da principal das
(Êx 19.4,5; 20.2ss.). Os sacrifícios foram nações" (l) que permitem a si mesmos se
introduzidos como uma consequência ló- deliciar com o mais excelente dos óleos
gica. Quando o povo se comprometeu a ("os mais finos óleos"; NIV, 6). Eles esta-
obedecer, Moisés aspergiu sobre eles "o rão entre os primeiros (forma diferente da
sangue da aliança" (Êx 24.7,8). Para eles, mesma palavra) (7) a ir para o cativeiro!
assim como para nós, essas coisas foram As prioridades serão observadas! Os com-
ditas para que eles não pecassem (110 placentes, os indulgentes e os socialmente
2.1), mas, na inevitável prática do peca- insensíveis serão exilados. É muito difícil,
do, eles tinham a propiciação (110 2.2). É para aqueles cuja posição os coloca em um
isso que Amós está relembrando com sua lugar central na mente de outras pessoas,
pergunta. Eles tinham isolado o ritual do evitar que sua própria mente os coloque
sacrifício e deixado de lado a obediência, no centro de tudo, até que o interesse por
quando é o compromisso com a obediên- si próprio elimine totalmente suas preocu-
cia o que toma os sacrifícios necessários, pações pelos outros. Essa é uma tentação
o que lhes dá sentido. Leia mais a esse muito peculiar àqueles que se encontram
respeito em 7.7,8. "no topo".
26 Sua religião voltada para a satis- 1 Sião: embora os profetas ministras-
fação própria (4.4,5) abriu as portas para sem em um dos reinos (Amós estava no
uma religião estabelecida por eles mes- Reino do Norte), sempre tinham em vista
mos. Fora do controle da palavra de Deus, ambos os reinos. Isaías (28.1-4) e Miqueias
não é que o povo passará a não acreditar (1.5), ambos profetas oriundos do Reino do
em mais nada; antes, ele passará a acredi- Sul, também se preocupavam com o Reino
tar em qualquer coisa. Sicute [...] Quium do Norte (v., também, Os 5.13; 6.11). O
(em hebraico sikkut e kiyyun) são palavras ministério de Amós, no Reino do Norte,
originárias da Mesopotâmia - nomes seria fortalecido se ele demonstrasse
11
-'AMÓS6 1208
.11

imparcialidade desta maneira: arrogância e compositor! 6 Taças (bacia, em Êx 38.3;


é arrogância onde quer que levante a sua Nm 7.13), na verdade taças tão grandes
cabeça. 2 Não há verbo nas perguntas no que poderíamos até dizer "eles bebem
texto original. Provavelmente se preten- vinho em baldes". Mas não vos afligis:
dia usar o presente em cada uma delas. "vocês não se sentiram aflitos". A farra
Diferentes interpretações são sugeridas. (i) pode ter lhes causado uma crise de fígado
Amós convida seus ouvintes a observar, (Is 28.7,8), mas a ruína, o "estado deplo-
por meio de comparações, quão grande é rável" de José (v. comentário de 5.6) não
a prosperidade deles - e, portanto, quão "lhes causa aflição alguma".
certo será seu julgamento se não forem
gratos ao Senhor. Entretanto, toda a seção 6.8-14 O reino despedaçado
implica que eles não precisariam de tal A condenação final, combinando com 3.9-
prova, pois já estavam convencidos de sua 15, renova o ataque de Deus ao orgulho
superioridade. (ii) Gate etc. são exemplos (8), à indiferença moral (12) e à presunção
de prosperidade decadente e constituem (13), e insiste com veemência no fim ter-
uma advertência sobre o que aconteceria rível a que essas coisas levarão (9,10,11,
à Samaria. Entretanto, é muito duvidoso 14). A passagem é distribuída da seguinte
o fato de que essas cidades tenham estado maneira:
em ruínas na época de Amós. (iii) Ele está
se aproveitando da propaganda utilizada (a') v. 8 A aversão divina
pelos próprios governantes ao fazer com- (b') v. 8-10 Destruição do Estado: ilustra-
parações vantajosas com lugares distantes ção da destruição total
e inferiores. Essas comparações trazem (a/) v. 11 O julgamento divino
consigo uma "aura de verdade"; é o modo (b-) v. 12,13 Inversão de valores: ilustra-
como se comportam os governantes e ção do absurdo
combina com a arrogância descrita no v. 1. (a') v. 14 A administração divina da histó-
Também conduz ao v. 3, uma tentativa de- ria para fins morais
liberada de ocultar os perigos que os go-
vernantes sabiam estar no horizonte. 8 Por si mesmo, "por sua alma", isto
3 Samaria está experimentando uma é, um juramento que envolve "coração e
prosperidade "jamais vista". Os gover- alma" da pessoa de Deus. Abomino re-
nantes sabem que isto não pode durar quer uma pequena alteração do texto em
muito tempo, e, portanto, tentam imaginar hebraico (no qual se lê: "Eu desejo").
estar longe o dia mau assumindo a típica Outra pequena alteração permite que se
atitude de "aproveite enquanto puder". leia: "Realmente, sou inimigo de". 9,10
Depois de viver um grande crescimento Em situações de cerco, a fome e a praga
econômico nos dias de Jeroboão, a nação cobram seu preço, e a presença constante
entrou numa enorme crise. De todos os dos "carros da morte" se toma uma cena
seis reis restantes de Israel, apenas um familiar. O único sobrevivente de uma
passou o reinado para seu filho; os demais família reconhece que não há mais cadá-
foram todos assassinados (2Rs 15; 17). A veres, mas antes que tal notícia possa ser
descrição trono da violência sem dúvida expressada por algum tipo de reação (de
se tomou apropriada. 4 Mas mesmo que exasperação ou piedade) que envolvesse
eles morram amanhã, por que não apro- o nome de Deus, sua boca é calada: o sen-
veitar a boa vida hoje (v. Is 22.l2,13)? tido de alienação de Deus é demasiada-
5 Homens insignificantes tentam justi- mente grande; ele abandonou o seu povo.
ficar suas frivolidades comparando-se a 11 Foi por ordem divina que isso acon-
grandes homens. Afinal, Davi era músico teceu: o v. 11 diz o que Deus ordena; os
1209 AMÓS7(

v. 12,13 dizem por que ele ordena; e o v. 7. 1-6 A devastação que não ocorrerá
14 explica como ele cumprirá sua ordem. A intercessão era parte do oficio proféti-
Grande [...] pequena: expressa a extensão co (Gn 20.7; Jr 7.16). Amós não intercede
pelo uso dos opostos, significando "qual- contra o juízo, mas contra a forma parti-
quer que seja a casa". cular que vê que este está tomando. (i) V.
12 As ilustrações falam do que é con- 1-3, uma praga de gafanhotos de tal modo
trário à natureza das coisas. Isso sintetiza sem precedentes que a sobrevivência está
a vida da nação: a justiça deveria curar fora de questão. (ii) V. 4-6, um fogo ca-
(Dt 19.16-20), e não se transformar em ve- paz de devorar até mesmo a terra e o mar.
neno para a sociedade, e (como poderíamos Amós apela contra a destruição total de
dizer) o falar em público sobre o fruto da Jacó, e seu apelo é ouvido. A repetição
justiça tinha se tomado uma ironia amar- da questão realça sua certeza (Gn 41.32);
ga (alosna). O juízo de Deus é provocado o contraste entre uma praga natural (ga-
pelo estado em que a sociedade se encon- fanhotos) e um fenômeno sobrenatural
tra, não apenas pelos pecados individuais. (jogo) abrange todo o tipo de praga. A
O fato de não se observar o cumprimento totalidade é expressa por contraste (v. in-
dos verdadeiros princípios (a justiça) e de trodução de 6.1-7). Entretanto, a destrui-
práticas saudáveis (o juízo) equivale a pro- ção total do povo de Deus é descartada. A
mover a ruína social e nacional. O "SENHOR esperança se estabelece.
é justo, ele ama a justiça" (SI 11.7). 13 Lo- I Eis que ele formava: a mão de Deus
Debar e Carnaim, locais da Transjordânia estava diretamente por trás do aconteci-
(Gn 14.5; 2Sm 9.4), podem ter sido o ce- mento. Findas as ceifas do rei: presumi-
nário das vitórias de Jeroboão, quando velmente um imposto real. A ervaserô-
este restabeleceu o território de Israel às dia ("segunda safra", NVI) era aquela com
mesmas extensões do tempo de Salomão a qual o agricultor contaria. Sem ela, a
(2Rs 14.25). Entretanto, a glória de Israel escassez seria certa. 3 Se arrependeu pode
não durará, pois, segundo o v. 14, essas significar que Deus "tenha mudado de
mesmas fronteiras marcarão a extensão ideia", mas será que um "Deus soberano"
do sucesso do inimigo, desde a entrada de pode mudar de opinião? De acordo com
Hamate, no longínquo norte, até o vale do lSamuel 15.29, ele "não mente, nem se
ribeiro da Arabá, próximo ao mar Morto. arrepende [muda de opinião]", mas Segun-
O Senhor é inimigo das orgulhosas jactân- do lSamuel15.35 "o SENHOR se arrependeu
cias das proezas militares: ele tem o seu de haver constituído Saul rei sobre Israel".
próprio agente. O v. 29 declara a verdade "absoluta" sobre
Deus; o v. 35 indica que sua vontade inal-
7.1-9.15 O Senhor Deus: terável de fato tem levado em conta toda
Juízo e esperança a diversidade de experiências e reações
O juízo que não virá (7.1-6) e a esperança humanas. Consequentemente, nos parece
que há de vir (9.11-15) marcam o início e que Deus muda de ideia e seria isso que
o fim dessa seção final de Amós. Dentro a Bíblia chama de seu "arrependimento":
desse intervalo, sobrevirá um juízo de pro- a vontade de Deus, embora inflexível, não
porções temíveis (8.1-9.6), mas será um é insensível, mas leva em amorosa con-
juízo criterioso (7.8,9; 9.7-10), não uma sideração nossa fraqueza e insensatez na
destruição total. O título "SENHOR Deus", maneira perfeita e soberana como ordena o
que é usado 12 vezes nos cp. 1-6, ocorre mundo que criou. 4 Consumiu [...] devora-
11 vezes nos cp. 7-9. O Senhor nunca é va: o mesmo verbo é usado duas vezes (lit.
tão gloriosamente soberano como quando "devorou [...] começou a devorar"). Tal
cumpre suas graciosas promessas. fogo inevitavelmente aponta palia o aspecto
AMÓS7 1210


julgador da santidade divina. Somente o em meio a um povo professo, um grupo de
fogo de Deus poderia "devorar" toda a sua crentes no seio de uma sociedade formal,
criação (2Pe 3.10-12). uma Igreja dentro da igreja. A linha de
prumo os poupará (cf 9.8-10), mas devas-
7.7-9 O juízo discriminador tará os altos [...] os santuários, locais que
Em relação à terceira visão descrita nesse celebravam o engano, e destruirá também
capítulo, Amós não faz nenhum tipo de a casa de Jeroboão, que fazia "o que era
oração. O Senhor vem como um mestre de mau perante o SENHOR [...], que fez pecar a
obras para inspecionar o muro construído. Israel" (2Rs 14.24). Os altos eram centros
O hebraico não diz que o muro foi levanta- de uma falsa religião (Baal), construídos
do a prumo (7), mas simplesmente que ele pelas mãos dos homens, onde o Senhor era
foi levantado com "uma linha de prumo". adorado com os ritos a Baal, como se ele
Ou seja, os padrões aplicados no final fo- fosse um deus do povo cananeu. Isaque
ram os mesmos desde o princípio. O povo é usado somente aqui como um sinôni-
de Deus foi "construído" de acordo com a mo de Israel. Ele estava ligado a Berseba
dupla especificação da lei e da graça: como (Gn 26.33; 28.10). Talvez, na época de
seus redimidos, eles devem obedecer à sua Amós, tenham tentado tomar legítimos os
lei (Êx 20.2ss.), mas igualmente como rituais em Berseba (5.5), apelando à bên-
seus redimidos, eles estão sob "o sangue ção de Isaque.
da aliança" (Êx 24.8) e receberam todo o
código sacrificial para que, mesmo falhan- 7.10-17 A palavra da qual
do na tarefa da obediência, ainda assim não se pode escapar
possam viver na presença do Santíssimo. A essência desta seção é que Amazias, o
É a manutenção do equilíbrio entre a lei sacerdote pretendia livrar a terra da men-
e a graça (cf 5.25) que constitui a verda- sagem de Amós (12), mas nem ele nem
deira vida do povo de Deus e os distingue, a terra puderam escapar dela (17): Tu
por um lado, dos legalistas (aqueles para dizes: "Não profetizarás [...] Portanto, as-
quem a lei é tudo) e, por outro, dos ritua- sim diz o SENHOR" (16,17). Não há como
listas (aqueles para quem o sacrifício é escapar da palavra de Deus. A sequência
tudo). É por isso que aqui Amós não faz da passagem (10-12) sugere que Amazias
nenhum tipo de apelo: as linhas de prumo, não conseguiu persuadir Jeroboão a agir
os padrões gêmeos da lei e da graça, são a e portanto tomou a tarefa para si mesmo.
própria essência do povo redimido, e eles Como sacerdote de Betel ele era um ho-
só podem escapar desse teste se deixarem mem importante, e não deve ter sido fácil
de ser aquilo que são. para Amós desafiar sua autoridade, mas
8 "Poupá-lo" (NVI; passarei, na ARA): ele o fez, reiterando o seu chamado, isto
na noite de Páscoa eles se protegeram é, asseverando a autoridade do Senhor em
sob o sangue (Êx 12.7), comendo cordei- oposição à autoridade humana que o desa-
ro, vestidos com roupas de peregrinação fia (v. At 5.29). 10 Bete! tinha figurado de
(Êx 12.11) - vivos pela graça, vivos para maneira muito desfavorável na pregação
trilharem os caminhos do Senhor. Mas o de Amós (4.4; 5.5). Não é de admirar que
povo de Amós não está em conformidade Amazias estivesse furioso! Conspirado:
com o duplo padrão de sua constituição e as autoridades costumam usar a "ameaça
não pode receber as "bênçãos da Páscoa". à segurança nacional" para fazer as coisas
9 O Senhor continua a especificar o que do seu jeito! Amós teve de suportar o risco
será destruído em seu juízo, pois o juízo de ser mal-interpretado. A terra: aqui te-
que utiliza uma linha de prumo é discri- mos uma visão do tipo de influência que
minador. Há sempre um povo verdadeiro Amós estava enfrentando.
1211 AMÓSS'"
11
11

12 Vidente não é sarcástico ou pejora- Amazias era um caso de religião sem arre-
tivo (Is 29.10), mas o conselho para que pendimento diante da palavra de Deus.
fosse e ganhasse a vida em Judá sugere
que Amós estava no ofício pelo dinheiro 8.1-14 "Naquele dia"
- e que uma palavra contra Israel em Judá Essa é a seção central do terceiro ciclo de
seria muito bem paga. 14 (v. "Profecia", profecias (v. Esboço). A seção consiste em
Introdução). A ARe usa de maneira corre- uma visão simbólica inicial (1,2) desen-
ta o tempo verbal no pretérito imperfeito, volvida por quatro mensagens que come-
como uma perfeita refutação da acusação çam por: Naquele dia (3,9,13) e: Eis que
de que ele profetizava para ganhar a vida. vêm dias (11).
Quanto a isso, Amós possuía uma condi- 1,2 Fruto maduro: o fim. Assim como
ção confortável, resultante de boa renda chega o dia da colheita de uma plantação,
oriunda de seus rebanhos e plantações. em consequência de seu próprio cresci-
Para ele (i) essa não era uma questão de ca- mento, assim o juízo divino coincide com
pacidade ou inclinação pessoal (eu não era o momento propício para que o povo seja
profeta); (ii) nem de se deixar contaminar julgado. 2 Chegou o fim: Amós diz ter vis-
pela atratividade exercida pela figura pro- to frutos de verão (maduros, heb. qayits),
fética. Discípulo de profeta (cf 2Rs 2.3,5; e o Senhor lhe responde que "o fim" (heb.
6.1ss.; 9.1ss.): "escolas" de "discípulos de qets) chegou.
profetas" eram destinadas à preparação de 3-8 A primeira mensagem. O fim é
profetas, para o recebimento de instrução explicado. 3 A religião deles não os sal-
e para compartilhar seu ofício, mas não no vará: seus cânticos se tomarão parte dos
caso de Amós. (iii) Não fora uma escolha "uivos". Em poucas linhas incisivas, Amós
sua se tomar profeta: ele estava estabele- consegue descrever de forma nítida os
cido como pastor e agricultor. 15 (iv) Essa horrores do dia do fim: multiplicar-se-ão
foi uma escolha divina (O SENHOR me ti- os cadáveres; em todos os lugares, serão
rou), e isto (v) o levou a um relacionamen- lançados fora. Silêncio! Mas por que essas
to com Deus (e o SENHOR me disse), (vi) coisas horríveis acontecem? 4 A causa ge-
por meio do qual ele foi comissionado para ral é então declarada: a opressão dos neces-
profetizar a Israel. sitados e desamparados. Para necessitados,
Todos os profetas que deixaram um cf 2.6b; para miseráveis (pobres), cf 2.7c.
relato sobre seus próprios chamados con- Tendes gana ("tendes voracidade"): sugere
cordam com Amós quanto aos funda- intenção de cobiça. 5,6 Os detalhes do v. 4
mentos da iniciativa divina (Is 6.1; Jr 1.5; são explicados: o triunfo dos benefícios fi-
Ez 1): relacionamento (Is 6.6-8; Jr 1.6-16; nanceiros (i) sobre a devoção religiosa (5);
Ez 2.1,2) e comissão (Is 6.9; Jr 1.5b,10,17- seu apego a formalidades (4.4) faz com
19; Ez 2.3ss.). 16,17 Amós não era um que observem a Festa da Lua Nova, a festa
simples pregador, como sugeria Amazias. do começo do mês (Nm 28.11) e o Sábado,
Sua palavra era a palavra do Senhor (v. embora seu coração só esteja interessado
"Profecia", Introdução, e comentário de em acumular dinheiro; (ii) sobre práticas
1.1) e não poderia ser rejeitada. Quando comerciais honestas, (5) pois vendem me-
isso ocorre, a palavra que poderia ter resga- nos (diminuindo o efa), por um preço maior
tado se toma uma palavra de juízo (17). No (aumentando o sido), procedendo dolosa-
caso de Amazias, o juízo trouxe sofrimento mente com pesos e medidas; (iii) sobre a
e degradação (tua mulher se prostituirá), compaixão humana - talvez a expressão
perdas por mortes muito amargas (cairão por dinheiro (6) diga respeito a um em-
à espada) e perdas pessoais - um sacer- préstimo feito aos pobres (como em 2.7a)
dote (10) morrerá em uma terra imunda. e sandálias, a uma compra feita a crédito,
}AMÓS9 1212

enquanto o comerciante tinha em mente cá, de mar a mar, do mar Morto no sul ao
tomar o pobre como escravo, por falta de Mediterrâneo no Ocidente, do Norte até o
pagamento (2Rs 4.1). Refugo: a venda de Oriente, e depois voltando ao ponto de par-
mercadorias sem valor, que tinham sido tida. E não a acharão; primeiro, porque a
descartadas. 7,8 O efeito dessa reverência ignoraram por muito tempo; segundo, por-
às "forças de mercado" será corrupção e que os israelitas do norte irão a qualquer
desastre de âmbito nacional, simbolizados lugar, exceto de volta a Jerusalém, onde o
por um terrível terremoto, que trará uma Senhor ainda habita (1.2). A manifestação
destruição tão abrangente como aquelas do orgulho sobrevive às situações mais
sofridas pelas inundações provocadas pe- desesperadoras!
las cheias do rio Nilo (8). 7 Glória: usada 13,14 A quarta mensagem. A queda
de modo sarcástico. Um juramento requer final. A esperança de futuro, os jovens,
uma base imutável na qual se apoie. Nada é mantida refém dos pecados do passa-
é mais estável do que o orgulho nacional! do. Quando o povo não crê na palavra de
O Senhor não se esquecerá da terra que Deus, acreditará em qualquer coisa, e os
permite que as forças econômicas sejam a cultos atrairão os jovens, tomando-os pe-
última palavra. las mãos a fim de prendê-los pelo pescoço,
9,10 A segunda mensagem. Envol- até que cairão e não se levantarão jamais.
vente escuridão, amarga aflição. Em 14 Ídolo: 2Reis 17.30 registra a adoração
termos factuais, essa escuridão tem sido a Asima, cujo nome significa "culpa"; o
associada a um eclipse solar combinado duplo sentido não foi perdido em Amós:
com um terremoto, registrado no mês de os que juram pelo ídolo repleto de culpa
junho de 763 a.c., mas isso é secundá- de Samaria. Pois "culpa" é algo que os ri-
rio em relação ao significado pretendido: tuais não podem resolver: nada, exceto o
a escuridão já esteve presente no juízo derramamento do sangue propiciado por
sobre o Egito (Êx 1O.2Iss.), mas ago- Deus, pode fazê-lo, tanto no AT como no
ra é uma evidência da ira do Senhor em NT. Culto de Berseba ("o caminho de [ou
relação à rebeldia de seu próprio povo. para] Berseba", ARe): talvez se atribuísse
Certa vez foi o Egito quem lamentou por algum mérito espiritual a quem fizesse a
seus primogênitos (Êx 12.30), mas agora jornada até Berseba.
é Israel quem lamenta com semelhante
amargura (lO). Pano de saco implica um 9. 1-6 O juízo do qual não
lamento direcionado a Deus. Mas chega se pode escapar
um momento em que é tarde demais, mes- (V Esboço). O próprio Senhor supervisio-
mo para a penitência. nava a destruição dos lugares sagrados: de
11,12 A terceira mensagem. Fome cima a baixo, todos eles (l). Não haverá
espiritual. O dia da ira revela a nossa for- escapatória (l) nos domínios espirituais
ça (ou fraqueza) interior. Uma vida que se (2), no mundo fisico (3) e por toda a ter-
nutre exclusivamente das delícias deste ra (4). Esse controle cósmico pertence ao
mundo fica logo faminta quando estas se Senhor (5,6): ele é capaz de cumprir as
esgotam. Então vem a fome por uma pala- suas ameaças. 2 Ao mais profundo abismo
vra de autoridade. Mas a justa recompensa ("ao sheoT'): o nome do lugar onde ficam
do Senhor é severa: a palavra negligencia- os mortos. 3 A serpente era um mons-
da se toma a palavra ausente. Assim como tro marinho mitológico do paganismo da
não se pôde encontrar o lugar da penitên- época que aparece em grande oposição ao
cia (lO), o lugar da palavra (l2) tampouco Deus Criador e seu propósito de um mun-
pode ser encontrado. Sem a palavra revela- do estável. Amós faz uso disso de duas
da, a humanidade perambula para lá e para maneiras: (i) De modo imaginário: assim
1215 AMÓS9{

tabernáculo de Davi, como se isso já tives- haverá paz (Is 9.7), não guerra! Levando-
se acontecido. Ou, uma vez que caído pode se em conta que a metáfora utilizada para
ser traduzido por algo que "está caindo" ou o Messias é ligada à realeza, é natural que
"está prestes a cair", ele pode ter em men- ele faça coisas típicas de um rei e expan-
te a deterioração que prevê em Judá e seu da seu reino pela força de seus exércitos
completo colapso. De qualquer forma, é (Is 11; 14 etc.). Entretanto, isso é uma lin-
uma visão de cumprimento messiânico. guagem metafórica: são as verdades subli-
As glórias originariamente pretendidas se mes sobre seu Deus que constituem a es-
tomarão realidade (como fora nos dia da pada de dois gumes que o povo do Senhor
antiguidade; cf Is 1.26,27) e o prometido carrega e com a qual conquista as nações
império mundial de Davi (SI 2.7,8; 72.8- (81149.6-8).
11; 110.5-7; Is 9.7; 11.4-10) virá a existir. 13 Promessas relacionadas à criação.
12 Edom fora acusado (1.11) de ini- Amós imagina uma economia agrícola
mizade ininterrupta, e isso está de acordo tão próspera que enquanto a safra de um
com o registro bíblico do relacionamento ano ainda está sendo colhida, o lavrador já
entre Edom e o povo de Deus, de Gênesis lavra a terra para a plantação do ano se-
27.41 e Números 20.14 em diante. Isso, por guinte; enquanto os grãos de uma colhei-
sua vez, leva ao uso de "Edom" como um ta estão sendo separados, as sementes da
símbolo de inimizade mundial ao Senhor e plantação seguinte já estão à espera para
a seu povo no fim da história. Além disso, serem lançadas no solo. O segredo para se
Davi foi o único rei a conquistar e subju- entender essa descrição é o seguinte: quan-
gar Edom (2Sm 8.14) e, em função disso, do o homem pecou houve consequências
"Edom" veio a simbolizar a derrota de to- trágicas sobre a criação do mundo físico.
dos os inimigos com a vinda do messiâ- Em vez de um jardim do Éden que trans-
nico "Davi" e o seu domínio sobre todo o borda abundância sobre o homem e sua
mundo (Is 34; 63.1-6; Ez 35 etc.). Amós mulher, agora somente com muita dificul-
também destaca Edom para afirmar que a dade, sob pressão e por meio de trabalho
vinda do governo davídico porá fim a to- árduo o homem consegue extrair da terra a
dos os inimigos e dará início a uma nova sua sobrevivência (Gn 3.17-19). A recom-
unidade na terra. pensa pelo trabalho e a abundância natural
Que são chamadas pelo meu nome: do dia do Messias, portanto, indicam que
"sobre as quais meu nome é proclamado". a maldição terminou e se foi. Adão era um
As palavras sugerem tanto o domínio real rei no Éden (Gn 1.28), herdeiro e monarca
(2Sm 12.28) quanto a unidade no casa- da abundância implícita na permissão para
mento (Is 4.1). Certamente o Rei que virá comer os frutos de toda a árvore do jardim,
afirmará seu governo soberano e os outrora com exceção de uma (Gn 2.16,17). Mas
gentios o reconhecerão, mas depois disso quando o pecado veio, toda essa liberali-
a sua posição já não será a de cidadãos dade se transformou em uma porção min-
de segunda classe e seu papel não será de guada e suada. Entretanto, quando o legí-
subserviência: eles se tomarão parte da timo rei retomar ao Éden (Is 11.6-9), todas
"noiva" de Cristo. Acertadamente, Tiago as energias, represadas quando o pecado
(At 15.15) vê essa profecia como algo que abundava e a morte reinava, irromperão
se cumpriu em termos evangelísticos e em florescência sem fim, e a própria cria-
missionários, em que a expansão do evan- ção se apressará em depositar seu tributo
gelho do nosso Senhor Jesus Cristo traz aos pés daquele a quem pertence o direito
para o reino os gentios outrora afastados, de domínio.
uma vez que, no contexto do AT, o reina- 14,15 Promessas pessoais. "Trarei
do do Messias estenderá seu domínio e de volta Israel, meu povo exilado" (NVI):
AMÓS9 1216

uma tradução possível, mas que sugere que é um símbolo da frustração e da falta de
a profecia é de um retomo da Babilônia. realização que o pecado traz para a vida
Para evitar isso, deveríamos traduzir a fra- (Dt 28.30; Sf 1.13). (iii) Segurança eterna:
se por: "trarei de volta Israel, meu povo, as palavras finais de Amós colocam um
do cativeiro" (com o mesmo sentido do selo divino nas promessas: diz o SENHOR,
salmo 126, em que tudo aquilo que pren- teu Deus. O SENHOR: o Deus do exôdo cuja
de, limita e oprime o povo de Deus é re- natureza imutável (Êx 3.15) é a de salvar
movido). Entretanto, mudarei a sorte do o seu povo. Teu: singular, estendendo-se
meu povo de Israel é igualmente possível e ao povo do Senhor como um todo e a cada
mais adequado a essa passagem em Amós. um de seus membros individualmente.
O Senhor reunirá o seu povo (Me 13.27; Não significa o Deus que adotaram "por
Ap 14.14-16) e, assim como a metáfora sua escolha", mas sim "aquele que vos
real fora ampliada para retratar o reino escolheu" (Dt 7.7,8; Ez 20.5ss.; Jo 15.16;
expandido em termos militares, também Ef 1.4,11). Diz: lit. "disse" (no passado).
a reunião do povo é vista aqui em termos Todas as promessas messiânicas - do le-
territoriais de reocupação e de recons- gítimo rei, da nova criação e do povo redi-
trução em uma imagem de três faces: (i) mido - são colocadas sob o mesmo manto
Recuperação: tudo aquilo que foi perdido, de certezas: "Sobre essas coisas o Senhor,
aruinado no passado será recuperado e res- teu Deus, já tomou a sua decisão".
taurado - nenhum resquício dos danos
resultantes do pecado será deixado. (ii)
Prazer e realização: plantar mas não comer 1. A. Motyer
OBADIAS

INTRODUÇÃO
Lugares e pessoas durara mais de quarenta anos, até o final
A geografia e a história desempenham um daquele século (2Rs 8.20-22; 2Cr 21.8-
papel importante nessa profecia, com evi- 10). (Veja mapa na página 949).
dentes hostilidades muito aguçadas entre Logo no início do século seguinte,
Israel e Edom, seu vizinho a sudoeste. O Amazias, rei de Judá, reconquistou Edom
rancor entre essas nações tinha raízes pro- com um enorme derramamento de sangue
fundas. Esaú, filho mais velho de Isaque e (2Rs 14.7; 2Cr 25.11,12), invadindo seu
neto de Abraão, viu-se enganado por Jacó, território até chegar à capital, Sela. Uma
seu irmão mais novo, perdendo os privi- inversão de poderes ocorreu no final desse
légios decorrentes de sua primogenitura século, quando Edom atacou Judá duran-
(Gn 25.27-34; 27.1-29, cf v. 41), embo- te o reinado de Acaz (2Cr 28.17), fazendo
ra, de acordo com o autor de Hebreus, prisioneiros de guerra e libertando-se per-
o próprio Esaú é quem estava errado manentemente do domínio de Judá.
(Hb 12.16). Sem querer isentar Jacó, o Edom se tomou um vassalo da Assíria
episódio nos mostra que até mesmo um e, mais tarde, caiu sob o domínio babilôni-
pecador pode ainda receber as bênçãos de co, embora de tempos em tempos empreen-
Deus (cf Hb 11.9, 21). Durante a vida, desse levantes consideráveis (Jr 27). Fontes
os dois irmãos receberam outros nomes: bíblicas e extrabíblicas dizem pouco a res-
Esaú também ficou conhecido como peito das atividades de Edom na época da
"Edom" (Gn 36.1,9) e Jacó como "Israel" destruição de Jerusalém pela Babilônia,
(Gn 32.22-32). Esses nomes foram ado- em 587 a.c., mas 1Esdras 4.45' coloca so-
tados pelas nações das quais os dois ho- bre os ombros de Edom a culpa pelo incên-
mens eram ancestrais. A animosidade que dio que destruiu o templo. Esse fato não
principiara entre os dois irmãos continuou é confirmado em nenhum outro lugar (cf
vigendo entre as duas nações também. Lm 4.21,22).
Depois do êxodo do Egito, os edomitas No século VI a.C., o próprio Edom esta-
não permitiram que o povo de Israel pas- va em declínio, como é revelado por fontes
sasse por seu território na Transjordânia. arqueológicas. As cidades foram abando-
(Nm 20.14-21; Jz 11.17,18). Sua própria nadas, e a população havia se mudado (cf
subjugação fora profetizada por Balaão 1 Macabeus 5.65). Os árabes assumiram o
(Nm 24.18). O rei Saullutou contra Edom controle dessa área entre os séculos VI e IV
(1Sm 14.47), e Davi subjugou seu território a.C. (cf Ne 2.19; 4.7; 6.1). Os nabateus,
(2Sm 8.13,14, mas v. NRSV e NVI mg.; lRs em particular, desalojaram os edomitas,
11.15,16). Salomão teve controle sobre forçando alguns deles ao sul de Judá, re-
Edom (IRs 9.26-28), embora sem a apro- gião que ficou conhecida por seu nome
vação deste (11.14-22). Durante o reinado grego Idumeia (lMacabeus 4.29), baseado
de Josafá (século IX a.C.), Edom, em uma no nome hebraico "Edom".
aliança militar, atacou Judá (2Cr 20.1,2).
Os edomitas se rebelaram contra Jeorão,
libertando-se do jugo dos israelitas que I N.R.: Livro apócrifo.
üBADIAS 1218

Este antagonismo duradouro entre e destruição de Jerusalém, em 587 a.C.


Judá e Edom é evidenciado em Obadias, Esse é o evento mais distinto em que
servindo como estrutura de sustentação da Israel foi derrotado e saqueado (2Rs 25;
profecia. 2Cr 36.17-21) e no qual parece haver ao
A geografia também desempenha seu menos algumas evidências do envolvi-
papel na profecia. A localização de Edom, mento dos edomitas (1Esdras 4.45). Se
a leste do rio Jordão, ficava entre os pe- essa reconstrução estiver correta, a profe-
nhascos rochosos que se elevavam acima cia seria um lamento de juízo sobre Edom
do mar Morto. A famosa cidade de pe- por seus crimes contra Deus e seu povo,
dra, Petra, construída pelos nabateus, é e também uma mensagem de esperança
um exemplo das defesas naturais de que de Deus ao povo de que os inimigos não
Edom dispunha. Sua inacessibilidade aos escaparão impunes.
ataques inimigos levou-os à arrogância e à Embora seja o mais breve dos livros
autoconfiança presunçosa em sua própria proféticos, com apenas 21 versículos,
invulnerabilidade, o que acabou sendo a Obadias é dividido em duas seções inter-
sua ruína. relacionadas. O primeiro oráculo é dirigi-
do especificamente contra Edom, sendo,
Obadias e seu livro por sua vez, composto de três oráculos
Obadias não é somente o livro mais curto menores: os perigos da arrogância (2-4),
do AT, mas também tem a menor introdu- o comportamento enganoso (5-7), o juízo
ção, fornecendo informações escassas so- iminente (8,9) e uma lista de razões para o
bre seu autor. Nenhuma genealogia, lugar castigo de Edom (10-15). O segundo orá-
de nascimento ou moradia são indicados. culo do livro descreve a mudança de ce-
Lemos somente que se trata de uma "visão nário contra as nações que se opunham a
de Obadias". Mesmo o nome do profeta Judá (15-18), e a restauração final de seu
poderia ser simplesmente um título, uma reino (19-21).
vez que seu significado, "servo de Javé", Os dois oráculos são unificados ao
é frequentemente usado para descrever os compartilhar alguns termos-chave como
profetas do AT (e.g., lRs 14.18). Entretanto, "dia" (8,11-15), Javé como aquele que
o nome próprio "Obadias" não é raro no fala e age (1,4,8,15,18,21) e o concei-
hebraico, de modo que não há razão algu- to de monte, o monte de Deus ( "monte
ma para negar ser ele o autor dessa breve Sião", v. 17,21) alcançando ao final a su-
profecia. perioridade perante os outros nos quais os
Uma vez que não temos nenhuma in- edomitas depositavam grande confiança
formação adicional sobre a identidade do (8,9,19,21). O conceito teológico de "pa-
autor, é dificil fornecer uma data precisa gar com a mesma moeda" (olho por olho)
para essa profecia. Qualquer sugestão tem também ajuda a dar certa unidade ao li-
de ser baseada em evidência encontrada no vro, ocorrendo pelo menos cinco vezes:
próprio livro (v. quadro na página 949). os arrogantes serão humilhados (2,3); os
Parece que o contexto dessa profecia observadores que permaneceram passi-
é um ataque de Edom a Israel (10-14), vos diante da pilhagem sofrerão o mesmo
mas como mostra uma breve síntese da destino (5-9,11-14); assim como os sobre-
história das relações entre essas duas na- viventes do ataque foram molestados, a
ções, tal profecia poderia ter acontecido Edom não restarão sobreviventes (14,18);
em qualquer das muitas vezes em que aqueles que expropriaram os outros serão
isso ocorreu na vida nacional de Israel. expropriados (7,14,19). O conceito é ex-
Esses versículos de Obadias mais pro- plicado de modo inequívoco no versículo
vavelmente são uma referência à queda de transição, o v. 15.
Leitura adicional
1219 OBADIASl

DSB. Westminster/John Knox Press,


<
BOICE,J. M. The minor prophets. 2 v. 1984.
Zondervan, 1983, 1986. ALLEN, L. The books of Joel, Obadiah,
BAKER, D. W. Obadiah em BAKER, D.; Jonah and Micah. NICaT. Eerdmans,
ALEXANDER, D.; STURZ, R. J. Obadias, 1976.
Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque COGGINS, R. J. Israel among the Nations:
e Sofonias: introdução e comentário. Nahum, Obadiah, Esther. ITC. Handsel,
SCB. Vida Nova, 2001. 1985. Também publicado nos EUA com
CRAIGIE, P. C. The books ofJoel, Obadiah, o título Nahum, Obadiah, Esther: Israel
Jonah and Micah. DSB. St Andrew among the Nations. Eerdmans, 1985.
Press, 1984. Também publicado nos STUART, D. Hosea - Jonah. WBC. Word,
EUA, na obra Twelve prophets. V. 1. 1987.

ESBOÇO
1 a Introdução
1b-15 Edom - O protótipo dos inimigos de Deus
1b-9 A destruição iminente
10-15 Os crimes de Edom

15-21 Israel e as nações - Juízo e livramento


15-18 Israel subjuga os seus próprios opressores
19-21 A restauração de Israel

COMENTÁRIO abadias, e aquele que lhe dá autoridade,


é o SENHOR Deus, que é apresentado em
1a Introdução uma fórmula típica (cf Ez 2.4; este título
a tipo de literatura e sua autoria humana é usado 432 vezes para Deus). a Senhor
são identificados logo de início. Obadias é soberano não somente sobre Israel, mas
recebe uma revelação por meio de uma também sobre todas as nações, inclusive
visão. Isso mostra um uso mais amplo da Edom. SENHOR ("Javé"), o nome pessoal
palavra visão do que a simples e literal re- de Deus na aliança, fazia com que o povo
velação visual (v. Is 29.7; Ez 12.27), uma se lembrasse das promessas que Deus lhes
vez que aqui diz respeito à comunicação tinha feito na aliança, inclusive a promes-
falada (v. Is 1.1; Na 1.1). "Visão", aqui, sa da terra na qual iriam habitar (Gn 12.1;
não se refere ao mero ato de ver; antes, 15.7). Eles precisavam desse lembrete prin-
uma percepção fora do comum é aqui con- cipalmente na época do exílio, pois tinham
cedida àquele cujo nome significa "servo acabado de passar por uma grande perda de
de Javé", já aludindo, desse modo, à fonte proporção nacional (10-14; cf 19-21).
original da mensagem. a assunto desse oráculo específico é
o tradicional inimigo de Israel, Edom (v.
Introdução). Situado na região sudeste de
1b-15 Edom - O protótipo
dos inimigos de Deus Israel, Edom não era um elemento estranho
nas profecias de Israel (v. Is 34; 63.1-6;
1b- 9 A destruição iminente Jr 49.7-22; Ez 25.12-14; 35; Am 1.11,12;
1b Introdução. a autor da mensagem de MIl.2-5).
.-
11
li. OBADIAS 1 1220

Em vez do esperado oráculo de Javé do, pois foi enganado por seu coração da
seguir a fórmula usual, informações adi- mesma maneira como Eva fora enganada
cionais são acrescentadas. Estas dizem e julgada no jardim do Éden (Gn 3.13).
respeito ou a uma mensagem anterior Rochas pode ser lido como "Sela" (v. NVI
sobre Edom, a qual também é apropriada mg.), a capital de Edom (v. Introdução).
para a presente situação, ou a uma outra Orgulhoso, Edom jactava-se de sua
mensagem que está sendo dada paralela- própria segurança, considerando-se tão
mente ao oráculo de Obadias, com a dife- invulnerável quanto a águia planando nas
rença de que este se dirige às nações. A alturas, ou as estrelas no longínquo firma-
primeira sugestão é sustentada por nume- mento. Os edomitas tinham se esquecido
rosas semelhanças no conteúdo, senão na de que havia outras coisas a temer além
ordem estrutural entre esses versículos e dos ataques militares de forças terrestres.
uma outra mensagem a respeito de Edom, Eles seriam confrontados e finalmente der-
em Jeremias 49.7-16. Obadias poderia rotados pelo próprio Deus, o criador tanto
estar se referindo a essa mensagem de do céu quanto da terra, contra o qual ne-
Jeremias, da qual tinha conhecimento por nhuma fortaleza jamais prevaleceu. Ele os
tê-la ouvido pessoalmente em Jerusalém, derrubará de suas alturas, e os edomitas
quando fora pregada, ou por ter ouvido podem ter certeza disso, pois é o próprio
falar dela. Entretanto, isso não pode ser Javé que o está dizendo.
provado em virtude da grande dificuldade A arrogância era um pecado tanto do
de se datar de forma precisa o ministério povo de Deus como de Edom. Em sua al-
de Obadias, impossibilitando dessa forma tivez nascida de sua "segurança" nos mon-
o estabelecimento de datas relativas dos tes, os edomitas tinham se esquecido de
dois profetas. sua vulnerabilidade diante dos olhos pers-
A mensagem diz respeito a um mensa- crutadores de Deus. A igreja também deve
geiro que fora enviado por Javé para ins- estar sempre ciente não só de um mundo
truir todos os povos circundantes a se unir que a despreza e cujos olhos estão constan-
na batalha contra Edom. Como veremos, temente a espreitá-la, mas também de que
Israel, Javé e as nações vizinhas tomaram nem seus mais secretos vícios e desenten-
parte na derrota de Edom. dimentos podem ficar ocultos de Deus.
2-4 Os perigos da arrogância. Agora Edom aprendeu uma lição que todos
tem início o oráculo de Javé. Embora o nós precisamos ter sempre em mente, tan-
oráculo se dirija a Edom como tu, é pouco to como indivíduos quanto como nação.
provável que os edomitas tenham sido con- Tanto para nós quanto para o Reino de
frontados pelo profeta de Javé. Em muitas Deus é muito mais proveitoso ajudarmos
das profecias contra as nações, o profeta alguém que se encontra em dificuldade
estava falando para o povo de Deus, a fim do que o criticarmos ou zombarmos de
de encorajá-los, pois seus inimigos seriam sua fraqueza. Esse desdém é contrário ao
derrotados, ou de exortá-los, pois eles mes- desejo de Deus de que cuidemos dos opri-
mos poderiam esperar o mesmo destino se midos. Também é contrário ao bom senso,
não seguissem verdadeiramente o Senhor uma vez que aqueles que estão humilhados
da aliança. ainda podem vir a se levantar e ter a última
Edom, que nutre um orgulho especial palavra, como fez Judá, que triunfou sob a
por sua posição geográfica quase que inex- direção de seu Deus.
pugnável em meio às cadeias rochosas da 5-6 Comportamento enganoso. O
Transjordânia, será destruído. Ainda que o autor traz seus ouvintes de volta para sua
povo edomita se gabe com o seu coração experiência diária, depois da imagem es-
orgulhoso, ele será diminuído e despreza- boçada nos últimos versículos. Eles estão
1221

üBADIAS 1 - : .

cientes dos ladrões e roubadores que vêm 10-15 Os crimes de Edom


sorrateiramente para pilhar e destruir. Com uma forma estrutural relativamen-
Esses criminosos, capazes de roubar so- te regular, com violência cada vez maior
mente aquilo que podem levar, são equi- e com empenho brutal em causar danos
parados aos vindimadores que, por lei a Israel, Edom é condenado com grande
(Dt 24.21), eram obrigados a deixar uma veemência emocional.
parte da colheita para os pobres. O saque 10,11 A colocação inesperada da pala-
e a pilhagem a Edom serão ainda mais vra irmão junto à palavra violência desta-
devastadores em comparação. De Esaú, o ca a chocante traição de Edom para com
pai dos edomitas (Gn 36.1 ,9), cujo nome Israel, aqui chamado de Jacó (cf Nm20.14;
é algumas vezes usado para identificar o Dt 23.7; Am UI). Isso é um lembrete in-
povo, serão levados até mesmo os seus tencional do conflito anterior entre Esaú e
tesouros escondidos; nada será deixado. seu irmão (Gn 25.19-34; 27.1-28.9; 33),
7 Edom, enfaticamente tratado na se- um conflito que continuou com os seus
gunda pessoa oito vezes nesse versículo, descendentes. Essa vergonhosa violência é
ver-se-á traído até mesmo por seus aliados detalhada nos versículos seguintes.
e amigos, chamados no hebraico de "os Em um primeiro estágio, Edom obser-
que gozam da tua paz". Um outro grupo vara passivamente os inimigos saquearem
paralelo de amigos é identificado em he- e pilharem Israel. Mesmo que Edom pu-
braico apenas como "teu pão", e prova- desse dizer: "Não fomos nós que fizemos
velmente deve ser entendido como os que isso. Foram seus inimigos, estranhos [...]
comem o teu pão (como ARA; v. SI 41.9, em estrangeiros ", visto que os edomitas não
que "o meu amigo íntimo" [heb. "homem ajudaram, eles agiram como um dos inimi-
da minha paz"] e "que comia do meu pão" gos (tu mesmo eras um deles).
ocorrem paralelamente). Uma vez que 12-14 A oposição a Israel se tomou
compartilhar de uma refeição depois de ra- mais perniciosa e cada vez mais direta.
tificar uma aliança era costume em Israel De uma observação passiva, Edom passou
(Gn 31.54; Êx 24.11; cf 1Co 11.23-26), es- a sentir uma "satisfação maligna" (NRSV)
tes eram evidentemente parceiros de alian- ou a olhar com prazer para os problemas
ça que renegaram seu relacionamento. de Judá, chegando a entrar pela porta (cf
Essas armadilhas colocadas por seus Lm 4.12,13) da cidade para observar mais
amigos de outrora serão algo tão surpreen- de perto, e até mesmo pilhar os bens aban-
dente que "Esaú não percebe nada" (NVI)! donados. Finalmente, eles chegaram ao
8,9 O juízo se aproxima. Edom per- cúmulo de atacar os que escaparam de Judá
derá toda a sua base de sustentação huma- (2Rs 25.4,5), entregando os já sobrecarre-
na: seus sábios, que eram bem conhecidos gados sobreviventes aos seus opressores.
(o conselheiro de Jó, Elifaz, era de Temã, Assim como eles exterminaram pela ma-
Jó 2.11; Jr 49.7; cf lRs 4.30), assim tança os indefesos, eles também enfrenta-
como o seu exército (valentes). Esses va- rão o mesmo destino (9,10), só que desta
lentes supostamente intrépidos estarão vez não haverá sobreviventes (18).
atemorizados, e cada um será extermina- 15 Esse versículo liga as duas metades
do pela matança. Isto tudo acaba culmi- do livro, unindo o oráculo específico contra
nando numa progressão de perdas, a co- Edom (2-15) ao oráculo mais geral relativo
meçar pelos bens materiais (5,6), passan- a Israel e as nações (16-21; v. Introdução).
do pelo conselho e entendimento (7,8), O Dia do Senhor é o objetivo final para
até chegar ao seu poderio militar (9). o qual a história caminha. Nesse dia, Deus
Todas as estruturas da sociedade sofrerão punirá todos os que se opuseram a ele e dará
um terrível abalo. alívio ao seu povo. Israel se considerava
.. : - üBADIAS 1 1222
111

parte do segundo grupo, mas descobriu que 18 Edom, identificado como a casa
na verdade fazia parte do primeiro, em vir- de Esaú, tinha decidido destruir Israel ou,
tude da sua rebelião e da violação da alian- no mínimo, tirar proveito de sua desgraça
ça (111.15; 3.14; Am 5.18-24). Estará entre (10-14). Edom será destruído pelo fogo da
as nações que serão punidas (Dt 32.35,36; ira de Deus (cf SI 18.8; Am 5.6) por meio
Zc 14.1-3), aqui exemplificadas por Edom. de seu povo, identificado como a casa de
Edom será punido segundo seus próprios Jacó (quer seja toda a nação de Israel [cf SI
crimes, um exemplo da regra do "olho por 22.23] ou somente Judá, ao sul) e como a
olho" ou, mais tecnicamente, da lex talio- casa de José (a coalizão das dez tribos; cf
nis (cf Lv 24.19; Jr 50.15,29). Ajustiça de lRs 11.28; Am 5.6). Assim, toda a nação
Deus está sendo cumprida ao não deixar o das 12 tribos finalmente será restaurada,
culpado sem punição. em detrimento daqueles que a persegui-
ram (cf Ez 37.15-28). Da nação que traiu
os refugiados de Israel (14; cf v. 17) nin-
15-21 Israel e as nações -
Juízo e livramento guém mais restará (cf Lm 2.22). Enquanto
os poucos que restaram do povo de Israel
15-18 Israel subjuga os seus (o remanescente) ressurgirão como nação,
próprios opressores para Edom a destruição será total.
15-16 Edom, ainda tratado na segunda A certeza dessas palavras é mostrada
pessoa do singular (cf v. 7), é o principal pelo fato de ter sido o SENHOR que o falou.
exemplo de todas as nações que também
serão julgadas. Em vez de se alegrar pela 19-21 A restauração de Israel
queda de Israel com festas e bebedeiras Os três versículos seguintes foram escritos
em Jerusalém, o santo monte de Deus, eles em forma de prosa, e não de poesia, como
agora beberão inteiramente do cálice da os oráculos antecedentes. Com base nessa
ira de Deus (cf Is 51.17; Jr 25; Hb 2.15,16; mudança de estilo, alguns sugeriram que
Me 14.36). Sua completa ruína os deixará esses versículos foram acrescentados mais
como se nunca tivessem sido. tarde por outra pessoa. O argumento a fa-
17 Mas, em contraste não somente com vor dessa posição, entretanto, não é muito
Edom (1-15), mas também com as nações convincente, uma vez que todos os auto-
(16), no monte Sião, "o santo monte" de res, tanto os antigos quanto os contempo-
Deus (16), haverá livramento em vez de râneos, são capazes de escrever em mais
refugiados (14). (Temos aí um trocadilho, de um estilo. A alternância entre formas
uma vez que a raiz, no hebraico, é a mes- literárias não é prova de autoria múltipla.
ma para ambas as palavras.) A sublime O hebraico nesse trecho é obscuro em di-
graça de Deus para com seu povo é de- versos pontos, mas é possível discernir a
monstrada pela restauração final das her- mensagem geral.
dades da aliança, a terra prometida, uma 19 Esse versículo e o seguinte dizem
promessa que fora deixada em suspenso respeito à ocupação da terra. Agora, os
em virtude do seu pecado (cf Dt 30). Essa da casa de Jacó possuirão suas herdades
cláusula de livramento, a própria palavra (17). Neguebe, o deserto ao sul de Berseba,
de Deus, é citada em Joel 2.32, o que su- é o local do povo que parece estar desa-
gere que Obadias precedeu a Joel. Aqui, possando os edomitas. Isso pode ter feito
dois aspectos da aliança davídica - a com que alguns dos que lá residiam se
presença de Deus em seu monte sagrado mudassem para a terra dos edomitas, na
e a presença do povo na figura de um re- Transjordânia (o monte de Esaú), mas
manescente fiel na terra prometida - são temos pouquíssimas evidências disso. É
restabelecidos. muito mais provável que esse versículo se
1223 üBADIAS 1

refira a uma volta do povo de Israel para a de Sargão 11, rei da Assíria (final do século
área de Judá, usurpada por Edom quando VIII a.C.) ajusta-se bem à situação históri-
este perdeu seu território para os nabateus, ca do exílio. É provável que o outro grupo
entre os séculos VI e IV a.c. (V. Introdução). de cativos pertença a Israel, o Reino do
A planície ou as terras baixas (shefelá, Norte, que caiu em mãos assírias em 722
NRSV), localizadas entre a costa e as terras a.c. A NRSV sugere "Halah" em lugar de
altas, são identificadas por seus habitantes exército, uma mudança no hebraico que
mais famosos, os filisteus, que também envolve a mudança de posição de apenas
perderiam a sua terra. Israel, por meio uma letra. Esse local na Assíria era o lar de
dos macabeus, teve o controle dessa área alguns dos exilados do Reino do Norte (cf
(lMacabeus 10.84-89; 11.60-62), e tam- 2Rs17.6; 18.11; 1Cr 5.26). Eles voltarão
bém o controle de Samaria, a antiga capital a seu território originário e irão além, até
de Israel, o Reino do Norte (cf 1Rs 16.24; Sefarade, uma cidade litorânea ao norte de
21.1), sob liderança de João Hircano em Israel, entre Tiro e Sidom (cf 1Rs 17.9).
106 a.C. (Ant. 13.5.2-3). A área ao redor de No Dia do Senhor, toda a nação de Israel,
Samaria (conhecida pelo nome da princi- de norte a sul, será restaurada, até mesmo
pal das tribos do Norte, Efraim) foi contro- ultrapassando o território ocupado durante
lada por Judá já em 153 a.C. (lMacabeus a monarquia.
10.38). Mais obscura é a referência ao fato 21 Salvadores: aqueles que trazem
de Benjamim, uma pequena tribo do sul, a salvação (Ne 9.27), virão a Jerusalém
possuir Gileade, diretamente localizada ao (monte Sião), de onde eles julgarão o ou-
leste, na Transjordânia. Essa área também tro monte dessa profecia, o de Esaú (isto
caiu em mãos dos macabeus, em 164 a.C. é, Edom). Isso será uma indicação para
(lMacabeus 5.9-54). o mundo de quem é o verdadeiro rei uni-
20 É difícil entender esse versículo, versal: não há outro a não ser o SENHOR,
pois aqui o hebraico é de difícil compreen- Javé, que é o "Rei dos Reis e SENHOR dos
são. No entanto, o paralelismo entre as Senhores", aquele que reinou, reina, e "rei-
duas metades dos versículos pode nos aju- nará pelos séculos dos séculos" (Ap 11.15;
dar. Parece envolver dois grupos de exila- cf SI 22.28; 47.7-9).
dos ou cativos israelitas. O segundo grupo, A importância e autoridade de Deus
os cativos de Jerusalém, são aqueles que são demonstradas pelo fato de seu nome
foram levados para a Babilônia em 587 ser usado para abrir e fechar o livro (l ,21)
a.C. Na época do profeta, eles estão em e por ele ser, de fato, soberano não apenas
Sefarade, mas retomarão para retomar as sobre Edom e Israel, mas sobre todas as
cidades do sul. O local de seu exílio não é nações da terra.
claro, com sugestões que vão da Espanha
até a Ásia Menor. Um local da Média,
Saparda, mencionado em uma inscrição David W. Baker
JONAS

INTRODUÇÃO
o livro de Jonas é a história de um profeta Deus, a fim de incluir entre os fiéis tanto
a quem indignava o fato de que Deus ama gentios quanto israelitas. E, mais espe-
e se importa com pessoas más. O livro não cificamente, é uma versão incipiente do
ensina que Deus ama um povo mau somen- ensinamento radical de Jesus de que seus
te por este povo ser mau, mas sim por ele seguidores devem amar seus inimigos.
ser constituído de seres humanos que têm Não há no livro nenhuma sugestão de
valor intrínseco para ele, a despeito de seu que Jonas se considerasse alguém que es-
comportamento e de sua falta de conside- tava tentando apresentar ao povo de Nínive
ração pelo Deus verdadeiro. O livro relata o Deus único e verdadeiro com o qual eles,
a históría de como Jonas tentou resistir à em seu politeísmo equivocado e em sua
atribuição que Deus lhe dera, que consistia adoração pagã, já estivessem se relacio-
em exortar o povo de Nínive, uma grande nando por todo o tempo (assim como faz
cidade da antiga Assíria. Jonas sabia que Paulo com os atenienses, em At 17). O li-
essa exortação poderia levar o povo de vro também não dá nenhuma indicação de
Nínive a se arrepender e ser perdoado. que os habitantes de Nínive achassem que
E esse era precisamente o resultado ao estavam de algum modo se convertendo a
qual ele se opunha, uma vez que a Assíria, Javé pelo seu arrependimento, descrito no
uma antiga superpotência, era inimiga cp. 3. Assim, o livro não atribui ao povo de
cruel do povo de Israel e de muitas outras Nínive o que geralmente é conhecido como
nações, e Jonas, um nacionalista convicto, "graça especial", isto é, os beneficios de
queria que os assírios fossem prejudica- realmente se conhecer e obedecer ao Deus
dos, e não auxiliados. Entretanto, Jonas foi único e verdadeiro revelado na Bíblia.
forçado pelo Senhor a realizar sua tarefa
profética, e, ao longo desse processo, o A pessoa de Jonas e a
Senhor ensinou a Jonas - e aos leitores autoria do livro
do seu livro - que ele é um Deus que se Além das referências no seu próprio livro,
interessa por outros povos e nações além Jonas é mencionado uma única vez no AT
do seu povo que escolhera especialmente. (2Rs 14.25), em que ele é identificado como
O livro não sugere o universalismo, ou um profeta de Israel que, durante o reinado
seja, que todos os povos ou nações são es- de Jeroboão n, profetizou de maneira cor-
colhidos, mas ensina que mesmo os povos reta que Israel recuperaria da Síria o ter-
não crentes podem se beneficiar de alguma ritório que tradicionalmente fazia parte da
maneira da compaixão de Deus. Sob esse terra prometida. Tanto Jonas quanto Jesus
aspecto, o livro ensina a doutrina bíblica da eram profetas oriundos da Galileia. Jonas
graça comum (isto é, a doutrina de que al- era de Gate-Hefer (2Rs 14.25), uma cidade
gumas bênçãos de Deus nesta vida são con- no distrito de Zebulom, que ficava a cerca
cedidas para todas as pessoas, não apenas de cinco quilômetros a noroeste de Nazaré.
para os crentes). O livro representa também Portanto, não é de admirar que Jesus, que
uma das diversas prefigurações feitas no AT foi criado em Nazaré, tenha tomado a his-
da ampliação da nova aliança do Reino de tória desse conhecido profeta local para
1225

simbolizar sua própria ressurreição, e usar


JONAS

de Israel significava fugir para bem longe


<
a exortação de Jonas para que o povo de da atribuição que o Senhor lhe dera. Jonas,
Nínive se arrependesse como símbolo de é claro, logo aprendeu que não era assim,
seu próprio chamado ao arrependimento mas o livro o retrata honestamente como
(Mt 12.38-41; Lc 11.29-32). alguém a quem Deus poupou e usou apesar
O nome de Jonas significa "pomba" de suas tolices e falhas, como é o caso com
em hebraico, mas não há nenhum sim- todas as pessoas usadas por Deus. Jonas,
bolismo nele. Muitos israelitas tinham em outras palavras, não é um bom modelo
nomes semelhantes aos de animais (cf o a seguir. Alguns de seus comportamentos
pai de Pedro também era Jonas; "Simão e convicções eram totalmente censurá-
Barjonas", Mt 16.17). O nome de seu pai veis, mas, apesar disso, ele foi um profeta
era Amitai (1.1), mas fora isso nada mais genuíno e inspirado do povo de Israel.
se sabe de sua família ou de seu passado. O autor não é identificado. Toda a infor-
É comum que os livros proféticos forne- mação no livro pode ter chegado ao autor
çam alguns detalhes da família de seus por meio de duas fontes humanas: o próprio
autores ou temas. Como quase pratica- Jonas, que sabia detalhes da maior parte da
mente todos os antigos profetas, Jonas era história, e os marinheiros mencionados no
poeta, de modo que o fato de compor ou cp. 1, que sabiam ter oferecido sacrifícios
declamar um poema, mesmo de dentro da ao Senhor logo após seu repentino livra-
barriga de um grande peixe (cp. 2), não é mento da tempestade (1.16). O fato de que
nada surpreendente. Ele aparece no livro o livro é frequentemente crítico em relação
como um nacionalista fervoroso, a favor a Jonas não significa que este não possa
dos israelitas e contra os estrangeiros. É ter sido o seu autor. Comparativamente,
de se pressupor, assim, que tudo que au- os evangelhos frequentemente são críticos
xiliasse o desenvolvimento de Israel e em relação aos discípulos, dentre os quais
contribuísse para o declínio ou derrota de estão seus autores. O livro não mostra evi-
seus inimigos, ele aprovaria. Seu nacio- dência alguma de autoria compartilhada ou
nalismo exagerado o levou a pecar, ao se de acréscimos ou cortes do texto original
ressentir da compaixão de Deus pelo povo (v. quadro na página 949).
inimigo e resistir ao que Deus lhe ordena-
ra. Sua teologia a respeito da soberania de Local e data
Deus também era imperfeita. Sua tentativa Não há evidência que nos diga quando o
de fuga indica que Jonas pode ter pensado, livro em si foi composto. Não podemos
assim como o faziam muitos povos antigos, precisar a data com certeza, uma vez que
que um deus ou uma deusa tinha poder in- sua linguagem não revela quaisquer ca-
contestável no local onde ele ou ela fossem racterísticas conhecidas como tardias ou
conhecidos e adorados, e que a distância incipientes no desenvolvimento da língua
geográfica da terra de Javé significava ao hebraica. Tentativas de identificar supostos
menos certo grau de liberdade do controle "aramaísmos" (palavras da língua hebraica
de Javé. Uma outra opção é que ele tenha derivadas do aramaico após 600 a.C.) ou
acreditado que pudesse resistir melhor de estabelecer a dependência de declara-
ao chamado de Deus ao tomar a direção ções em Jonas com relação a outros pro-
oposta a Nínive (que ficava a leste), na- fetas, tais como Jeremias, não obtiveram
vegando o mais longe possível para oeste sucesso. O salmo no cp. 2 de fato emprega
(mar afora pelo Mediterrâneo), esperando uma terminologia primitiva (e.g., a palavra
que assim Deus escolhesse outro profeta hebraica nepesh, no sentido de "garganta";
para pregar a Nínive e o deixasse em paz. v. 5 é [lit.] "as águas me cercaram até a
Na visão de Jonas, fugir para bem longe alma"), mas esta é uma característica tão
JONAS 1226

comum da poesia hebraica que passa a ser os típicos rituais populares de arrependi-
insignificante. A Assíria era muito odiada mento descritos em 3.5-9. Provavelmente,
após 745 a.c., quando Tiglate-Pileser III havía uma boa razão para que um rei enfra-
resgatou e institucionalizou seu imperia- quecido se juntasse e apoiasse oficialmen-
lismo, começando a ameaçar a Síria e a te a comoção popular de arrependimento
Palestina, de modo que uma das ênfases diante da pregação de Jonas, por parte de
centrais do livro (a de que Deus ama até uma população faminta, cansada de guerras
mesmo os assírios) certamente teria sido e bastante atemorízada pelo eclipse solar.
muito necessária em Israel em qualquer O final de 760 a.c. para a missão de Jonas
época após essa data. O livro pode ter sido deve ser uma data bem próxima à real.
composto anteriormente a 745, prevendo
a necessidade apontada, ou depois dessa Propósito e mensagem
data, em resposta a essa mesma necessida- O livro de Jonas apresenta um contraste
de. De todo modo, a mensagem do livro é entre o ódio egoísta de Jonas pelos seus
eterna, e sua linguagem é simples e direta inimigos e a compaixão de Deus por eles.
- o hebraico, clássico e padrão. Pretende claramente ensinar aos leitores
Quanto aos acontecimentos descritos, do livro que eles não devem imitar as ati-
são facilmente identificáveis. A passagem tudes e práticas de Jonas. Por duas vezes,
de 2Reis 14.25 relaciona Jonas ao período no cp. 4, Deus pergunta a Jonas que direi-
do longo reinado de Jeroboão 11 em Israel to ele tem de estar indignado - primeiro,
(793-753 a.C.). A abertura em 1.2 se re- por Deus ter poupado Nínive (v. 4), e de-
fere à "malícia" de Nínive (ou aflição, ca- pois pela perda da planta frondosa que o
lamidade, miséria; "maldade" [NVI] é uma havia protegido do sol inclemente (v. 9).
tradução pouco provável, especialmente Deus faz do caso da planta uma lição para
pelo fato de a atitude de Deus em relação o profeta. Ora, se Jonas se importava com
a Nínive, ao longo de todo o livro, não ser uma planta, não querendo vê-la morrer,
de acusação, mas de misericórdia, em con- não deveria Deus se importar com a popu-
traste contundente com a atitude de Jonas). lação inteira de uma cidade, não querendo
Isso sugere uma época em décadas ante- também vê-los morrer (v. l l )? Não são as
riores a Tiglate-Pileser I1I, durante a qual a pessoas (ou mesmo animais, nesse ponto,
Assíria experimentou um período de desor- v. 11) muito mais valiosas do que as plan-
dem política e declínio econômico (ou seja, tas? Eles não teriam um valor intrínseco?
de "problema"), durante uma sucessão de Mesmo que elas sejam nossas inimigas,
reis muito fracos. Qualquer data ao redor isso não quer dizer que não mereçam a
de 800 a.c. e 750 a.c. serviria. Mas pode- compaixão de Deus.
ríamos ser mais precisos ainda. O período Entretanto, o contraste dos valores re-
de maior declínio da Assíria, durante aque- lativos das plantas e pessoas, no cp. 4, é
le meio século, ocorreu durante o reinado apenas uma das duas principais lições que
de Assur-Dan III (772-756 a.Ci), sob cuja são tema do livro. A outra consiste no con-
liderança a nação sofreu as maiores perdas traste entre a gratidão de Jonas pelo livra-
militares e reveses econômicos. Revoltas mento de um destino que ele bem merecia
contra seu governo forçaram Assur-Dan a e sua indignação pelo livramento dos ni-
abandonar, pelo menos uma vez, o palácio nivitas de um destino que estes, também,
real, e um eclipse solar total, no dia 15 de de fato mereciam. No cp. 1, ele confessa
junho de 763 a.C. (considerado pelos assí- aos marinheiros que a tempestade enviada
rios, profundamente supersticiosos, um por Deus e que ameaçava a vida de todos
sinal de grande descontentamento divino), a bordo era devida ao seu pecado, e lhes
pode bem ter providenciado a ocasião para diz que se eles o atirarem ao mar Deus os
1227

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.:_ JONAS 1228

poupará. Quando estava prestes a se afogar, simbolicamente alguma faceta da história,


ele é subitamente engolido e resgatado da da cultura ou de uma experiência pessoal
morte por um grande peixe ou uma baleia (e.g., Jz 9.7-15). O livro de Jonas é por de-
(1.17). O cp. 2 registra a eloquente oração mais longo, complexo e recheado de deta-
de ação de graças pelo seu próprio resgate, lhes históricos, bem como excessivamente
estabelecendo assim um contraste com seu biográfico e narrativo para ser classificado
descontentamento hipócrita diante da sal- como qualquer um desses gêneros.
vação do povo de Nínive, no cp. 4. O estilo do livro é simples e comum
para a narrativa hebraica. O original é de
Forma e estilo fácil leitura e não contém humor ou des-
O livro segue a forma de uma narrativa crições melodramáticas. Aqueles que, de
biográfica, uma subcategoria da narrativa alguma maneira, acham o livro humoris-
histórica hebraica, semelhante à encontra- tico ou melodramático estão interpretan-
da em porções biográficas dos livros profé- do partes da história de acordo com suas
ticos (mais notadamente em Jeremias), nas próprias expectativas, e não analisando o
histórias de Eliseu e Elias e em 1 e 2Reis. estilo do livro em si. A linguagem não é
As contruções das frases, transições, des- exagerada, os acontecimentos não são in-
crições do cenário e o uso destacado de fantis e o comportamento de Jonas é tudo
diálogos são padrões característicos da menos jocoso. Embora o livro contenha
narrativa histórica do hebraico do AT. um toque de ironia (e.g., o ressentimento
Assim, também, como a presença de um de Jonas por Nínive ter sido poupada, após
poema (cp. 2) em meio a uma linguagem sua própria disposição de ser poupado pes-
em forma de prosa. A inclusão ocasional soalmente, ou o fato de ele valorizar mais
de poesia no curso da narrativa histórica é a vida de uma simples planta do que mui-
norma, e não exceção, nos livros históricos tas vidas humanas), trata-se de uma ironia,
do AT. Em todo o Pentateuco, bem como como muitas na Bíblia, que não é engraça-
nos profetas anteriores, podemos encontrar da, mas trágica. Jonas não é um trapalhão
um grande número de exemplos. O fato de ou um desajeitado de quem (ou com quem)
o livro ser uma narrativa de ensino também deveriamos rir - mesmo que de forma pe-
não é uma exceção, já que até certo grau sarosa. Ele é muito sério no que diz respei-
todas as narrativas do AT o são. to ao ódio que sente pelos inimigos de seu
Aqueles inclinados a considerar o livro povo, e está desgostoso a ponto de morrer
como ficção também costumam classificá- pelo fato de Deus estar disposto a poupar
lo como uma alegoria, uma parábola ou em vez de destruir Nínive. Rir do livro de
uma fábula. Entretanto, o livro não segue Jonas seria deixar de levar a sério o pro-
nenhuma dessas formas. As alegorias do pósito solene do livro - que é evitar que
AT são caracterizadas por grupos de per- olhemos para nossos inimigos da mesma
sonagens obviamente estilizados que se maneira que Jonas. Todos os que falam no
encaixam em uma trama elaborada com livro - Deus, os marinheiros, Jonas e o rei
simplicidade, em que o conjunto simboliza - o fazem naturalmente, de acordo com os
acontecimentos históricos notórios (e.g., SI padrões do diálogo da narrativa hebraica. O
80.8-19; Ez 19). As parábolas são histórias poema no cp. 2 é um exemplo típico de um
bem curtas (normalmente com poucas fra- salmo de ação de graças, dos quais encon-
ses), contadas em um estilo enxuto como tramos enorme variedade no Saltério.
forma de ilustrar um único ponto ou prin-
cípio (e.g., Is 5.1-7; Ez 17.22-24). As fá- Unidade e integridade
bulas são histórias envolvendo plantas ou A história de Jonas é completa, indepen-
animais falantes com o intuito de destacar dente e não mostra nenhuma evidência de
1229 JONAS (


ter perdido partes de seu conteúdo por ra- sobre coisas sobrenaturais, deve ser fal-
zões de corrupção textual ou manipulação so. Uma recusa tão rígida de considerar
deliberada. O texto foi de fato muito bem o sobrenatural como parte da realidade
preservado. Alguns estudiosos têm argu- não é, obviamente, passível de prova, e a
mentado que o salmo no cp. 2 está fora de mera negação de que determinados tipos
lugar, e que teria sido acrescentado, mais de acontecimentos possam ocorrer dificil-
tarde, por outro editor, uma vez que a his- mente é um meio de argumentação digno
tória pode ser lida e compreendida com fa- de crédito. Poderia um Criador sobrenatu-
cilidade mesmo que o salmo e as palavras ral manipular a natureza de acordo com os
introdutórias sejam suprimidos. Entretanto, seus objetivos, às vezes de modo tão in-
quase todas as seções poéticas das narrati- tenso a ponto de ameaçar ou mesmo ceifar
vas históricas do AT são semelhantes a esse uma vida humana? E se tivesse o poder, ele
respeito. Além disso, um elemento impor- o teria feito? A Bíblia em geral e o livro de
tante da história originária estaria perdido Jonas em particular com toda certeza apre-
se o salmo fosse deixado de fora: a hipocri- sentam Deus exatamente dessa maneira.
sia da eloquente gratidão de Jonas em rela- Em todo caso, um exame cuidado-
ção a sua própria e imerecida salvação da so dos acontecimentos descritos no livro
morte (a qual o salmo claramente retrata) revela que nenhum deles é tão estranho
em contraste com seu ressentimento petu- assim para alguém que estiver disposto a
lante pela imerecida salvação de Nínive da aceitar a possibilidade de ocorrências de
morte (cp. 4). Sobre a íntima interconexão fatos sobrenaturais em um mundo ainda
do salmo com o restante do livro ver tam- controlado por seu divino Criador. Por
bém G. Landes, "The Kerygma ofthe Book exemplo, a tempestade no cp. I não é de
of Jonah", Interpretation 21 (1967): 3-31. maneira nenhuma incomum no leste do
Mediterrâneo; a interceptação de Jonas e
Historicidade do navio em que ele se encontrava por essa
Será que os acontecimentos descritos pelo tempestade é mais uma questão de tempo
livro realmente aconteceram? Não são al- do que de qualidade ou quantidade. Já foi
gumas partes da sua história tão extraor- bem documentado o fato de várias pessoas
dinárias que só podem ser ficção? Pôde (a maioria pescadores de baleias) terem
um homem de fato viver por três dias na sobrevivido por longos períodos no inte-
barriga de um grande peixe, e uma gran- rior de criaturas marinhas. A habilidade do
de cidade se arrepender em massa com a organismo humano de concentrar oxigênio
pregação de um obscuro profeta estran- em tecidos críticos, inclusive o cérebro, na
geiro? É possível que uma grande planta presença de água gelada é tão bem aceita
tenha crescido próxima a Jonas e morrido pela medicina a ponto de ser considerada
de repente para lhe ensinar uma lição? Terá bastante comum. As condições necessárias
Deus realmente manipulado a natureza para o que o povo assírio, profundamente
- desde uma terrível tempestade até uma supersticioso, respondesse à pregação de
pequena lagarta - por causa de um único Jonas com arrependimento em larga es-
profeta rebelde? cala, embora de maneira ritual, estavam,
O livro alega que todas estas coisas na verdade, presentes durante as décadas
realmente aconteceram. É claro que se al- iniciais do século VIII a.C., tanto em Nínive
guém não acredita que milagres possam quanto nos países vizinhos. Numerosos
acontecer, se acredita que Deus nunca in- exemplos de períodos curtos de arrepen-
terfere de maneira decisiva nos aconteci- dimento regionais e nacionais, tal como o
mentos humanos, então o livro de Jonas, descrito no livro, estão descritos nos regis-
como todos os demais relatos que falam tros históricos do povo assírio. Em relação
11II
) JONAS 1 1230

à planta que morreu rapidamente devido ao obra Twelve prophets. v. 1. DSB. West-
calor escaldante, quando suas raízes foram minster/John Knox Press, 1984.
consumidas, o tempo e o local são os prin- BOlCE, 1. M. The minor prophets. 2 v.
cipais requisitos. Não há nada de diferente Zondervan, 1983, 1986.
sobre seu crescimento ou morte que seja ALEXANDER, D. Jonah em BAKER, D.;
algo assim tão incomum. ALEXANDER, D.; STURZ, R. 1. Obadias,
As circunstâncias em tomo desses fatos Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque
sobrenaturais serão discutidas de maneira e Sofonias: introdução e comentário.
mais detalhada no comentário a seguir. SCB. Vida Nova, 2001.
ELlSSON, H. L. Jonah em GAEBELEIN, Frank
Leitura adicional E., ed. Daniel and the minor prophets.
CRAlGIE, P. C. The books ofJoel, Obadiah, EBC. Zondervan, 1985.
Jonah and Micah. DSB. StAndrew Press, STUART, D. Hosea - Jonah. WBC. Word,
1984. Também publicado nos EUA, na 1987.

ESBOÇO
1.1-3 A rebeldia de Jonas diante da atribuição de Deus para dar a Nínive uma opor-
tunidade de se arrepender
1.4-16 Uma tempestade enviada por Deus para impedir que Jonas fuja de sua
atribuição
1.17-2.10 A gratidão de Jonas pela graça de Deus de resgatá-lo da morte
3. 1-3a Um novo começo da atribuição de pregar a Nínive
3.3b-10 O arrependimento resultante da pregação de Jonas em Nínive
4.1-4 A ingratidão de Jonas pela graça de Deus em livrar Nínive da morte
4.5-11 Retrospecto: Uma lição objetiva quando Jonas ainda espera pela destruição
de Nínive

COMENTÁRIO "desastre". A LXX traz: "clame na cidade",


o que pode ser mais próximo do original
1.1-3 A rebeldia de Jonas diante do que: "clame contra ela". O que Jonas
da atribuição de Deus para dar recebeu foi uma atribuição nascida da
a Nínive uma oportunidade de compaixão de Deus por Nínive, não uma
se arrepender . atribuição que resultaria necessariamente
1 Jonas é identificado como um profeta do em juízo sobre a cidade.
Reino do Norte, Israel, do início do século 3 Társis, algumas vezes o nome de um
VIll a.c. (2Rs 14.25). lugar, significa "mar aberto". Jonas espe-
2 A tradução clama contra ela, porque rava fugir da presença do SENHOR toman-
a sua malicia subiu até mim é menos pro- do um navio no porto de Jope que fosse
vável do que "pregue para ela porque seu para um local distante no Mediterrâneo.
problema me preocupa". A palavra hebrai- Provavelmente ele não se importava para
ca rã 'ãh, que às vezes significa "maldade" onde seria. Os profetas do AT podiam ser
ou "perversidade", com frequência signifi- usados por Deus mesmo que sua visão teo-
ca também "problema", "calamidade" ou lógica não fosse perfeita em todas as áreas,
e aparentemente a teologia de Jonas incluía,
1231 JONAS 1

Senhor, como Criador de todas as coisas,


<
de forma equivocada, a antiga ideia de que não tinha sua influência limitada a nenhu-
um deus tinha poder somente nos lugares ma área geográfica.
onde ele fosse ativamente cultuado. Longe 10 Todas as narrativas do AT são de esti-
de Israel, Jonas esperava estar longe do lo breve e conciso, sendo que devemos nos
poder de Deus de obrigá-lo a fazer aquilo lembrar de que, ao longo do livro de Jonas,
que ele não queria fazer - pregar para o muitas palavras e ações não são menciona-
odiado inimigo de Israel, a Assíria. das, como na verdade já explicamos aqui.
O mesmo acontece com o conteúdo integral
1.4-16 Uma tempestade enviada da pregação de Jonas, sintetizado em 3.4
por Deus para impedir que por apenas algumas palavras-chave. Aqui
Jonas fuja de sua atribuição a pergunta: "Que é isto que fizeste?" é uma
4-6 O sono profundo de Jonas, que talvez pergunta retórica, e quer dizer algo como:
refletisse sua exaustão após a rápida via- "Veja só que coisa terrível você fez!". Isso
gem pelas planícies do território de Israel indica o reconhecimento dos marinheiros
até a costa, ou uma provável depressão de que o pecado merecia uma punição.
pela expectativa de um exílio autoimpos- 11-13 Jonas propôs sua própria morte,
to, chocou o capitão. Este, assim como um fim para a sua tristeza por ter deixado
sua tripulação de politeístas, presumiu a sua casa e seus bens para tentar uma fuga
que alguma divindade estivesse irada com que não dera resultado, e também uma
eles, e que esta divindade (ou alguma ou- solução para o perigo em que o navio se
tra) poderia fazer cessar a tempestade se encontrava. Os marinheiros, seguindo uma
orassem a ela. rota costeira como faziam todas as antigas
7-9 Lançando sortes (pequenas pe- embarcações, esperaram em vão alcançar
dras lançadas de um recepiente que, pela a praia, pois para eles a outra alternativa, a
maneira como se dispunham, indicavam de sacrificar Jonas, era repulsiva.
respostas negativas ou positivas) em um 14-16 Sem outra opção, eles obtive-
típico processo de eliminação, os mari- ram o resultado desejado ao atirar Jonas
nheiros puderam concluir que o relacio- à morte. Como sincretistas (aqueles que
namento de Jonas com o seu Deus era o acreditam na existência de fato dos deuses
problema. É evidente que o Deus verda- de todos os povos, e que cumpre temê-los
deiro estava por trás desses resultados (cf conforme necessário), eles não tiveram
At 1.26). Devemos observar que Provérbios problemas em suplicar ao deus de Israel, "o
16.33 ("A sorte se lança no regaço, mas SENHOR", e mais tarde, após terem chegado
do SENHOR procede toda decisão") é uma à costa, em se dirigir a um local de ado-
maneira de dizer que Deus - e não nos- ração israelita para oferecer a Javé ações
sas técnicas de adivinhação - controla de graças e sacrificios, embora fossem fi-
os acontecimentos da vida, e não é uma listeus e não israelitas. (Jope era na época
promessa de que o costume de lançar sorte uma cidade dos filisteus.) Infelizmente,
revele sempre a vontade de Deus. Não obs- nessa época, muitos sacerdotes israelitas
tante, se ele assim o quiser, Deus pode em teriam alegremente aceitado oferendas de
um dado momento usar sortes ou qualquer estrangeiros não ortodoxos. O fato de eles
meio de predição, para revelar suas verda- não pertencerem à etnia israelita não teria
des, mesmo que os dados estejam nas mãos sido um problema. Em IReis 8.41-43, a
de pagãos. Jonas se apresentou do mesmo prece de Salomão na dedicação do templo
modo que um hebreu faria diante de um de Jerusalém reflete a esperança de que
estrangeiro, e mostrou com suas palavras estrangeiros que "conheçam o teu nome,
que ele já estava aceitando o fato de que o para te temerem como o teu povo de Israel"
JONAS 1 1232

possam adorar ali. Entretanto, o texto não duração de sua morte antes da ressurreição
diz que eles se converteram, nem que eles (Mt 12.40), contém sentido similar: é uma
adoraram em Jerusalém. Pelo fato de Jope maneira de dizer que ele realmente morre-
fazer divisa (ao norte) com o território de ria, não que ele ficaria literalmente morto
Israel, e não com o território de Judá, é por exatamente setenta e duas horas.
muito provável que os marinheiros tenham 2.1 Não se pode afirmar se Jonas per-
adorado em algum dos locais de adoração maneceu ou não consciente por todo o
do Reino do Norte, que contrariavam a lei tempo, mas esteve consciente por algum
bíblica (Dt 12; cf 1Rs 12.25-33). A ado- tempo, durante o período em que perma-
ração por estrangeiros não convertidos era neceu no ventre do peixe ou da baleia, e
imprópria até mesmo em Jerusalém (Êx que foi suficiente para ele perceber que
12.43-49; Lv 22.25), embora a adoração não tinha se afogado, mas havia sido man-
por estrangeiros convertidos fosse bem- tido vivo, e também para articular o salmo
vinda nos mesmos termos que a adoração de ação de graças dos v. 2-9. A estrutura e
do povo de Israel (cf Nm 9.14; 15.14). a forma do salmo indicam que Jonas com-
preendeu muito bem que a vida lhe fora
1.17-2.10 A gratidão de concedida, em vez da morte que merecia.
Jonas pela graça de Deus Um salmo de ação de graças era um poe-
de resgatá-lo da morte ma musical declamado em gratidão após
17 Morrer afogado é o que Jonas esperava. o livramento de algum tipo de ameaça ou
As palavras Deparou o SENHOR um grande miséria. Dos salmos do Saltério, 12 são
peixe é uma indicação ao leitor de que Jonas exclusivamente ou parcialmente salmos
não morreria, mas seria resgatado. Há uma individuais de ação de graças (SI 18; 21;
série de relatos confiáveis acerca da sobre- 30;32;34;40;66;92; 103; 108; 116; 118).
vivência de pessoas que foram engolidas Seis são exclusivamente ou parcialmente
por baleias (v. D. K. Stuart, Hosea-i-Jonah salmos comunitários de ação de graças
[Word Books, 1987]). Essas pessoas foram (SI 65; 67; 75; 107; 124; 126). Tais sal-
sobreviventes naturais, devido à notável mos também podem ser encontrados fora
capacidade do corpo humano de sobre- do Saltério (e.g., lSm 2.1-10; Is 38.9-20).
viver na presença de quantidades muito Os salmos de ação de graças normalmen-
pequenas de oxigênio (embora normal- te são constituídos de cinco elementos:
mente inconscientes), em águas geladas, (i) uma declaração introdutória de apre-
fato já consolidado pela medicina. Outro ço pelo livramento; (ii) uma descrição da
fator significativo é o fato de baleias fre- miséria da qual alguém foi livrado; (iii)
quentemente virem à tona em busca de ar. uma descrição do apelo por livramento;
O resgate de Jonas aconteceu graças a um (iv) uma indicação do livramento em si;
arranjo divino e, portanto, considerado so- e (v) um testemunho ou uma promessa de
brenatural em grande medida. Grande pei- continuar a demonstrar gratidão por meio
xe na nomenclatura hebraica designa tanto de adoração futura. O salmo de Jonas
uma baleia quanto um tubarão de grande contém os cinco elementos, na ordem
porte. Três dias e três noites é uma expres- aqui apresentada. Não há como saber se
são especial utilizada no mundo antigo foi o próprio Jonas quem compôs esse sal-
para significar "tempo suficiente para se mo (como profeta ele fora treinado como
estar definitivamente morto". Isso surgiu músico) ou se ele utilizou um salmo que
da antiga noção pagã de que a viagem da já conhecia para expressar sua gratidão.
alma para o mundo do além tinha a dura- Seja como for, o salmo é uma declaração
ção de três dias e noites. A utilização dessa eloquente e pode muito bem ter sido lapi-
mesma expressão por Jesus, ao descrever a dado antes desse episódio.
1233 JONAS 3 . . .
••
2 Esse versículo é a introdução do sal- ácido estomacal etc. são todas puramente
mo que resume o livramento de Jonas. especulativas.
3-6a Esses versiculos falam novamente Esse tipo de salmo, nesse ponto do li-
da desgraça em que Jonas se encontrava. vro, emite uma mensagem clara. Os anti-
Vários salmos usam a metáfora do afo- gos israelitas que ouviam ou liam a história
gamento como declaração que serve para de Jonas não poderiam deixar de entender
vários tipos de desgraça, assim, o salmo de suas implicações. Um salmo de ação de
Jonas não deve ser visto como algo exclu- graças é uma canção de gratidão. Não é
sivo de sua situação particular. Os salmos uma oração que servia para qualquer tipo
tendem a descrever algumas tribulações de ocasião. O povo cantava um salmo de
severas (sobretudo inimizade, doenças, ação de graças por ter alcançado livramen-
ciladas, afogamentos e morte) como so- to de algum perigo ou aflição, como uma
frimentos típicos os quais o leitor pode maneira de agradecer a Deus o fato de ele
mentalmente substituir pela sua própria ter mostrado misericórdia para com eles.
desgraça. No v. 4, o trecho tornarei, por- Jonas estava exprimindo, segundo a mes-
ventura, a ver. .. seria mais bem traduzido ma forma comum de adoração dos israeli-
desta forma, segundo leituras dos antigos tas de sua época (isto é, por intermédio de
manuscritos gregos: "Como poderei olhar um salmo), sua gratidão pela misericórdia
novamente...". que Deus tinha mostrado para com ele. Ele
6b Esse versículo consiste em uma bre- estava vivo, ainda que não o merecesse.
ve descrição do livramento. Ele não tinha se afogado, ainda que a mor-
7 Aqui, Jonas inclui palavras de apelo te fosse o castigo merecido (1.12). Jonas
por livramento, típicas dos salmos desse havia experimentado a graça de Deus, e ele
tipo. o sabia e o exprimiu eloquente e demorada-
8,9 Esses versículos compõem a con- mente. Deus não o tinha tratado de acordo
clusão da seção de testemunho/promessa com os seus pecados. Essa é a mensagem
do salmo. Idolatria vã, no v. 8 é (lit) em do salmo cantado de dentro das entranhas
hebraico "nulidades vazias". A idolatria é do grande peixe.
perigosa por várias razões; uma das mais
importantes é o fato de que esses ídolos 3.1-3a Um novo começo da
não podem trazer salvação. A salvação atribuição de pregar a Nínive
vem apenas do SENHOR, o Deus de Israel. A palavra do Senhor veio a Jonas pela
As últimas palavras do salmo - Ao SENHOR segunda vez. Desde 1.2, Jonas vinha ex-
pertence a salvação (lit. "A salvação vem perimentando o controle de Deus sobre
do SENHOR") - pode ter também o sentido os acontecimentos de sua vida, mas Deus
de que Deus salva a quem quer; ele está à ainda não tinha falado diretamente com
frente de tudo aquilo que se refere à salva- ele. Agora ele ouvia novamente, de manei-
ção. Tais palavras, vindas da própria boca ra direta, uma atribuição divina proferida
de Jonas, apontavam para a possibilidade verbalmente. Essa segunda atribuição era
de que Deus optaria por livrar os habitan- essencialmente a mesma que a primeira. A
tes de Nínive de suas tribulações. frase no v. 2: proclama contra ela a men-
10 Novamente somos lembrados de que sagem que eu te digo, é um tipo comum
as ações do grande peixe ou da baleia eram de ordem divina, indicando que Deus ins-
controladas por Deus. Os marinheiros não piraria Jonas com as palavras apropriadas
conseguiram levar Jonas até a praia (1.13). quando este chegasse a Nínive. O v. 3 indi-
Deus o fez, entretanto, por meio do peixe, ca que Jonas obedecera e estava agora pre-
preservando Jonas da morte. As ideias de parado para dizer tudo aquilo que Deus lhe
que a pele de Jonas estaria manchada pelo pediria para dizer a Nínive. Ele não mais
• JONAS 3 1234

se negaria a proclamar uma mensagem po- hebraico (e.g., RSV traz: "uma cidade extre-
sitiva aos inimigos de seu povo. mamente grande, uma caminhada de três
Jonas ganhou uma segunda oportuni- dias de duração"; ou, segundo a NVI: "uma
dade. Do mesmo modo, pela misericórdia cidade muito grande; sendo necessários
de Deus, nós também podemos ganhá-la. três dias para percorrê-la"). O importante
Entretanto, isso não pode ser interpreta- não era o tamanho de Nínive, mas sim que
do como a moral da história. Não há aqui eram necessários três dias para uma visita
enunciado algum do princípio de que Deus apropriada de um estrangeiro. No primeiro
sempre age dessa maneira para com aque- dia, um representante de Estado (embai-
les que se rebelam contra a sua vontade. xador, membro da realeza etc.) chegaria,
Jonas não é de forma alguma uma figura tí- providenciaria acomodação, localizaria as
pica, e sua situação também não é de modo autoridades com quem precisava conver-
algum típica de todos os cristãos. Sua ati- sar e apresentaria a elas suas credenciais.
tude negativa em relação a seus inimigos No segundo dia, o visitante seria recebido
é definitivamente uma advertência para pelas devidas autoridades, e as pretendidas
todos os cristãos, e seus erros são expos- negociações seriam conduzidas. No tercei-
tos de maneira clara no cp. 4, para nosso ro dia, uma mensagem oficial seria provi-
beneficio. Entretanto, nem todas as partes denciada, sendo que as devidas respostas
de sua vida podem nos servir de exemplo. ao governo do Estado visitante seriam en-
Consequentemente, nós não devemos su- tregues aos emissários.
por que Deus chegaria a esse extremo para 4 Jonas fez parte somente do primeiro
corrigir nossa rebelião em relação a ele. E dia de visita - fazendo contatos à manei-
não devemos nos esquecer de que Jonas ra de um embaixador. No mundo antigo,
continuou a odiar a atribuição divina que o ofício dos profetas era visto como algo
recebera, embora ele agora se submetesse a semelhante ao de um embaixador, uma
ela e, mais tarde, sofreu ainda mais. Assim, vez que representavam a um deus. Assim,
essa história não nos ensina que Deus nun- eles gozavam de certo tipo de imunidade
ca nos excluirá de participar de sua obra, diplomática e status de membro da corte,
mesmo que, na primeira vez, tenhamos nos o que pode ser observado, por exemplo,
desviado do caminho (cf Lc 9.57-62). na história de I Reis 22 ou na íntima as-
sociação de Isaías com os reis de Judá. A
3.3b-10 O arrependimento mensagem que Deus o inspirou a transmi-
resultante da pregação tir proporcionava quarenta dias para que o
de Jonas em Nínive povo se arrependesse, implicando, assim,
3b Nesta época, Nínive não era tecnicamen- que o arrependimento poderia evitar o
te a capital da Assíria (embora "capital" seja castigo. Quarenta é uma palavra utilizada
uma noção bem mais contemporânea), mas algumas vezes no AT para significar uma
estava se tomando sua cidade mais impor- quantia indefinidamente grande, como a
tante, um lugar onde as visitas diplomáticas palavra "dezenas". O povo de Nínive re-
formais deveriam ser de três dias, de acor- conhecia essa maneira comum de se fazer
do com a convenção diplomática local. A uma advertência. Eles sabiam que se não
tradução sugerida pela NIV (em inglês) para houvesse possibilidade para o arrependi-
o v. 3b ("Ora, Nínive era cidade muito im- mento, nenhum período, definido ou in-
portante - era necessária uma visita de definido, teria sido especificado.
três dias") é correta em comparação com 5-9 O arrependimento ocorreu no pri-
algumas das principais versões em inglês, meiro dia - antes mesmo do segundo dia
as quais tomam obscuro, ou não inter- oficial da recepção. O rei (provavelmente
pretam de forma correta, o significado do Assur-Dan I1I, que tanto podia se encon-
trar na cidade como ser comunicado por
um mensageiro onde estivesse) aprovei-
1235 JONAS 4 . .

estrangeiro os estava advertindo por in-


termédio desses eventos e, agora, em seu
.
..

tou a onda de comoção pública e tomou meio, estava seu profeta fazendo a eles
tudo oficial, talvez até mesmo emitindo uma advertência verbal da necessidade de
um decreto oficial (7-9) no segundo ou no que se arrependessem! As palavras do de-
terceiro dia. Registros de proclamações se- creto previam a possibilidade, embora não
melhantes, conclamando o povo ao jejum, a certeza, de que o arrependimento viesse a
até mesmo dos animais, e o uso de panos trazer o livramento (9). Nem mesmo Jonas
de saco (vestimenta de tecido áspero e sabia qual seria o resultado. Será que Deus
desgastado como meio de expressar auto- veria o jejum e o lamento dos habitantes
negação), sobreviveram do antigo Império de Nínive como sinceros e suficientes para
Neoassírio. perdoá-los? Jonas, como veremos, espera-
O termo rei de Nínive (6) é uma ma- va que não. Os habitantes da cidade, por
neira comum de se referir a um rei que outro lado, esperavam que sim.
governava determinada cidade como parte 10 O arrependimento foi genuíno, mas
de seu império, e não significa necessaria- temporário. A linguagem desse versículo
mente que ele fosse rei somente dessa ci- não deixa subentender um arrependimen-
dade, ou seja, de Nínive (cf lRs 21.1, em to permanente, nem uma conversão que os
que Acabe, que em outras passagens fora levasse a adorar ao Deus de Israel. O povo
chamado "rei de Israel", é chamado "rei de agiu de acordo com suas próprias tradições
Samaria"). religiosas, com base no pouco que sabiam,
O que teria levado uma grande parte e suas ações foram aceitas graciosamente
da população da Assíria a reagir de modo por Deus. Mais tarde o próprio Deus de
tão favorável e penitente à pregação de um Israel causou a destruição de Nínive (em
obscuro profeta estrangeiro? Pelos textos 612 a.c., como cumprimento das profecias
proféticos assírios, sabemos de quatro cir- de Habacuque e outros). Agora, entretan-
cunstâncias que poderiam induzir o povo, to, ele os poupara, contrariando o desejo
e seu rei, à prática do jejum e do lamen- de Jonas.
to: a invasão por um inimigo, um eclipse
solar total, fome e uma grande epidemia; 4.1-4 A ingratidão de Jonas
e uma grande enchente. Também sabemos pela graça de Deus em livrar
que nações inimigas, tais como o reino de Nínive da morte
Urartu, tinham derrotado os assírios em O ódio de Jonas por seus inimigos era tão
numerosos confrontos militares na época grande que ele se ressentia até mesmo da
de Assur-Dan III e que um grande terremo- própria natureza de Deus! Ele protestou
to ocorreu no reinado de um rei de nome contra isso por meio das suas orações! Ele
Assur-Dan - mas não podemos ter certe- disse: "Foi exatamente isso que eu temia
za de que foi no reinado de Assur-Dan III. que acontecesse, pois é característico do
Além disso, em 15 de junho de 763 a.c., Senhor fazer esse tipo de coisa". Ao con-
no décimo ano de Assur-Dan I1I, ocorreu fessar o caráter de Deus (clemente e mi-
um eclipse solar total na Assíria! Acima sericordioso...), ele usou uma expressão,
e além de tudo isso estava o propósito do bastante comum, encontrada com muita
soberano Senhor de que eles deveriam se frequência no AT (Êx 34.6; SI 86.15). Seu
arrepender. Não é de se admirar, assim, pedido para morrer (3) era um apelo de-
que uma população ansiosa e supersticio- sesperado de alguém que vê as coisas que
sa tivesse respondido tão prontamente ao lhe são importantes tomarem justamente a
que lhe deve ter parecido como resposta direção oposta daquela que ele esperava.
para todos os seus problemas. Um deus Ele tinha perdido sua razão de viver, tão
.
II1II
... JüNA54

profundamente entremeada à expectativa


1236

para afetar Jonas, desta vez por meio de


da derrota dos inimigos de sua nação. A um ruinoso vento oriental e um sol escal-
pergunta de Deus em resposta a ele - É dante. Sob o inclemente sol do meio-dia,
razoável essa tua ira?- foi colocada tam- Jonas se sentia tão miserável que a mor-
bém para beneficio do leitor. Podemos nós te lhe parecia um alívio. Com a morte da
nos ressentir da compaixão de Deus por al- planta, ele estava sofrendo. Como sentia
guém, mesmo que esse alguém seja um de a sua falta!
nossos inimigos? 9-11 Jonas (e o leitor) devem apren-
der sobre o valor relativo da vida humana.
4.5-11 Retrospecto: Uma lição Quando estava prostrado pelo calor, Jonas
objetiva quando Jonas ainda ficou furioso com a morte de sua planta.
espera pela destruição de Nínive Não sendo tolo, com certeza Jonas sabia
Os eventos descritos em 4.5-11 ocorreram que Deus estava por trás daqueles aconte-
durante os 40 dias que se passaram entre o cimentos. Mesmo assim, em sua fúria, ele
primeiro dia da visita e o reconhecimento protestou, dizendo que preferia morrer. O
de Jonas, no final daquele período, de que mesmo profeta que recentemente agrade-
Nínive havia sido poupada (1-4). Assim, cera a Deus por salvá-lo da morte agora
seria melhor traduzir o v. 5 por: "Jonas foi preferia morrer! E isso por uma mera plan-
embora e...". Assim, o livro termina com tinha que não vivera senão brevemente.
uma parte da história que foi especialmen- Se Jonas era capaz de se importar tão
te escolhida visando mais ilustrar a defi- profundamente com uma planta a ponto de
ciênca da atitude de Jonas do que contar ao desejar tanto que esta não morresse, não
leitor se Nínive foi ou não destruída, o que poderia Deus se importar muito mais com
já é sabido. A atitude equivocada de Jonas, as pessoas - ou até mesmo com os ani-
e, por implicação, qualquer atitude equivo- mais? Uma vez que todas as culturas va-
cada semelhante constituem, na verdade, a lorizam seus animais acima das plantas e
lição mais importante do livro. as pessoas acima dos animais, o argumento
5-8 Provavelmente, Jonas saiu da cida- de Deus para Jonas é bastante claro. Jonas
de no terceiro dia de sua visita, como man- quis que uma planta fosse poupada, mas
dava o protocolo, e construiu um abrigo não as pessoas. Seus valores estavam com-
para si nas planícies abertas e desnudas a pletamente deturpados.
leste da cidade. Ele provavelmente espera- Implicitamente, está se perguntando aos
va assistir a um grande espetáculo de fogo leitores: Não somos como Jonas? Nossos
e enxofre. Pelo fato de a Mesopotânia ser valores não estão também distorcidos?
pouco arborizada, seu abrigo era provavel- Odiamos nossos inimigos e lhes deseja-
mente descoberto e feito de pedras. Aqui mos todo o mal- ou oramos por isso - ,
Deus usou novamente seu controle sobre enquanto aceitamos de bom grado perdão
a natureza para afetar a Jonas. Ele fez com e graça para nós mesmos? Jesus ensinou
que uma frondosa planta crescesse rente a seus seguidores que deveriam amar seus
e por sobre o abrigo de Jonas, de modo inimigos (Mt 5.44). Eis um ensinamento
que ele tivesse sombra - praticamente difícil de aceitar, mas que não pode ser
um telhado. Então Deus fez com que a desobedecido.
planta morresse por meio de um verme
ou lagarta, e novamente usou a natureza Douglas Stuart
•:- MIQUEIAS

INTRODUÇÃO
o homem Miqueias riamente independentes em um todo coeso.
Diferentemente de Isaías, Jeremias e Eze- Essas profecias, originariamente separadas,
quiel, Miqueias não descreve seu chama- variam em forma, mas geralmente podem
do inicial para o ministério (cf Is 6; Jr I; ser classificadas como oráculos de juízo e
Ez 2). Entretanto, o cabeçalho do livro de esperança. Miqueias as organizou em
(1.1) afirma que a "palavra do SENHOR" três séries (cp. 1-2; 3-5; 6-7), todas
veio a Miqueias "em visão" (isto é, por começando com o imperativo "Ouvi" (1.2;
meio de visão/audição sobrenatural), fa- 3.1; 6.1) e passando do juízo à esperança.
zendo dele um mensageiro do Senhor (cf Os oráculos de esperança, que se referem
Is 21.10). Em seu livro, o Deus invisível em parte ao remanescente fiel (cf 2.12,13;
se toma audível. 4.6,7; 5.6,7; 7.18), são proporcionais aos
Miqueias é oriundo de Moresete- tópicos de juízo e, assim, resolvem as cri-
Gate (1.1,14), a moderna cidade de Tell ses. As mensagens austeras de juízo repou-
el-Judeida, uma elevação bastante impo- sam nas leis altamente éticas da aliança
nente, cerca de 400 metros acima do nível de Deus, entregues no Sinai (6.1-8); suas
do mar, nas colinas no sudoeste de Judá. mensagens consoladoras de esperança re-
Dela se podia contemplar a planície cos- pousam na imutável aliança de Deus com
teira ondulada que ficava a oeste, crave- os antepassados de Israel (7.20).
jada de cidades fortificadas. Localizada a Na primeira das séries, Israel é envia-
cerca de trinta e cinco quilômetros a su- do ao exílio, e sua terra santa é desalojada
doeste de Jerusalém, a cidade era conec- devido aos seus pecados (1.2-2.11). O
tada a uma rede de fortalezas militares Senhor, entretanto, promete reunir o re-
distribuídas ao longo da extremidade leste manescente fiel de Israel em Jerusalém,
das colinas. Essas fortificações protegiam para que sobreviva ao cerco assírio, tam-
Jerusalém (localizada na espinha dorsal bém pretendendo, assim, tomar-se o seu
da cadeia central de montanhas de Judá) rei (2.12,13). Na segunda série, depois
de ataques de cavaleiros invasores vindos de arrasar Jerusalém devido às falhas de
da estrada costeira que ligava o Egito à sua liderança (3.1-12), o Senhor exaltará
Mesopotâmia. Jerusalém acima das nações (4.1-5) e ali
O nome dele significa "quem é como reunirá o afligido remanescente que res-
Javé". Com esse nome seus pais cele- taurará o domínio de Deus sobre a terra
braram a incomparabilidade do Deus de (4.6-8). Hoje essa profecia encontra cum-
Israel. Miqueias contribuiu para o esplen- primento em Jesus Cristo, que governa
dor de Deus ao associar esse nome à sua o coração dos homens da Sião celestial
incomparável benignidade e fidelidade (At 2.32-36; Hb 12.22). Além disso, na
(7.18-20), o tema do seu livro. época de Miqueias, Israel foi atacado por
nações invasoras e não pôde salvar-se a si
Sua mensagem mesma (4.9-5.1), mas Deus prometera o
O estilo irregular do livro deve-se ao fato de nascimento e o reinado do Messias, que
ele consistir na união de oráculos origina- iria reunir o remanescente purificado e o
MIQUEIAS 1238

conduziria à vitória (5.2-15). Isso também política de expansão imperial. Ele atacou a
se cumpre na Igreja de Cristo (cf 2Co 2.14- planície costeira de Israel em 734 e anexou
16). Na terceira série, do meio da deprava- a porção norte de Israel em 733 (2Rs 16;
ção espiritual (6.1-16) e de uma nação de- 2Cr 28; Is 7-8). Salmaneser v (726-722)
sintegrada (7.1-7), um remanescente eleito atacou a Samaria entre 725 e 722, e a cida-
do povo escolhido será perdoado e salvo de caiu nas mãos de Sargão " (721-705;
por Deus (7.8-20). Esse remanescente ago- 1.2-7; cf 2Rs 17). As rebeliões periódicas
ra constitui uma parte da igreja de Cristo das nações siro-palestinas contra a cobrança
(Rm 11). Não interessa quão maculado e de tributos do Império Assírio as mantinham
destroçado o mundo se tome, o propósito em constante receio de uma represália por
de Deus de triunfar sobre Satanás e seus parte dos assírios. Os invencíveis e cruéis
seguidores por meio de seu povo eleito assírios invadiram a região entre 721 e
prevalecerá (Rm 16.20). 720 e entre 714 e 701. A última invasão
Em seus oráculos sobre o juízo, Mi- se mostrou a mais devastadora para Judá.
queias não hesita em proclamar sua men- Senaqueribe (704-681) capturou todas as
sagem pouco popular de que o salário do cidades fortificadas das colinas de Judá.
pecado é a morte. Ele se compadecia imen- Somente Jerusalém, de forma milagrosa,
samente pela classe média de Judá, que conseguiu sobreviver (1.8-16; 2.12,13;
era oprimida pela classe alta de Jerusalém 2Rs18-20; 2Cr 32; Is 36-39), graças ao
(2.1-5,8,9). Os ricos donos de terras eram arrependimento de Ezequias em resposta à
defendidos por magistrados corruptos pregação de Miqueias (Jr 26.18).
(3.1-4) e encorajados por profetas e sacer- A linguagem de Miqueias, embora ex-
dotes que defendiam seu interesse próprio traída de seu contexto histórico, é poética
(2.6-11; 3.5-8; 3.11). Miqueias, entretanto, e abstrata, de maneira que o povo de Deus
cheio do Espírito de justiça, não podia ser em circunstâncias parecidas pode se iden-
comprado (3.8). Ele não era um poeta mo- tificar com suas mensagens.
ralizador, mas um reformador dinâmico,
clamando para que a nação resgatasse sua Leituras adicionais
herança espiritual (3.8; cf Jr 26.18). BOICE, 1. M. The minor prophets. 2 v.
Zondervan, 1983, 1986.
Contexto histórico CRAIGIE, P. C. Twelve prophets. v. 2. DSB.
Muitos comentaristas atribuem grande Westminster/John Knox Press, 1984.
parte dos cp. 1-3 a Miqueias e os demais WALTKE, B. K. Miqueias em BAKER, D.;
a sucessores anônimos dos períodos exí- ALEXANDER, D.; STURZ, R. J. Obadias,
lico e pós-exílico. O cabeçalho inspirado Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque
(1.1), entretanto, identifica Miqueias como e Sofonias: introdução e comentário.
o autor de todas as profecias do livro. O SCB. Vida Nova, 2001.
comentário editorial em 3.1 sugere que o _ _ _o Micah em MCCOMISKEY, T, ed.
próprio Miqueias tenha editado o livro. The minor prophets. V. 2. Baker Book
Nenhum dado linguístico ou histórico re- House, 1993.
futa a afirmação da própria Bíblia. MCCOMISKEY, T Micah em GAEBELEIN,
Miqueias profetizou desde o tempo Frank E., ed. Daniel and the minorpro-
de Jotão (740-732 a.C;) até a época de phets. EBC. Zondervan, 1985.
Ezequias (715-686), um periodo em que ALLEN, L. C. The books ofJoel, Obadiah,
o Império Neoassírio estava surgindo como Jonah and Micah. NICOT Eerdmans,
potência (v. quadro na página 949). Tiglate- 1976.
Pileser III (744-727), o determinado rei MAYS, 1.L. Micah. OTL. SCM/Westminster/
assírio, lançou a Assíria em uma ambiciosa John Knox Press, 1976.
11
1239 MIQUEIAS 1 1111
1111

ESBOÇO
1.1 Cabeçalho
1.2-2.13 Primeira série de profecias: Deus reúne o remanescente eleito em Jerusalém
1.2-16 Deus pune Samaria e Judá
2.1- 11 Ai dos opressores
2.12,13 Deus preserva um remanescente em Sião

3.1-5.15 Segunda série de profecias: Deus devolve o antigo domínio de Jerusalém


ao remanescente purificado
3.1-12 A velha Jerusalém e a queda de seus líderes corruptos
4.1-8 A Nova Jerusalém exaltada sobre as nações
4.9-13 As presentes dores de parto de Sião resultarão no nasci-
mento de uma nova época
5.1-6 O nascimento e a exaltação do Messias
5.7-9 O remanescente governa as nações
5.10-15 Deus protege seu reino purificado

6.1-7.20 Terceira série de profecias: Deus perdoa o remanescente


de seu povo pecador
6.1-8 Israel acusado de violar a aliança
6.9-16 As maldições da aliança cumpridas em Jerusalém
7.1-7 As estruturas sociais de Jerusalém se desintegram
7.8-20 Canção de vitória: Quem é semelhante a Deus, que
perdoa o remanescente?

COMENTÁRIO em quatro partes: (1) Deus faz um discur-


so para que as nações ouçam o testemunho
1.1 Cabeçalho dele contra elas; (2) o Senhor desce de seu
Para mais detalhes sobre Miqueias, suas lugar sagrado; (3) para transtornar a terra;
mensagens e seu contexto histórico, ver (4) Samaria e Judá são acusadas de violar
Introdução. a aliança de Deus; (5) e Deus sentencia
Samaria à aniquilação (6,7).
2 Miqueias proferiu esse oráculo con-
1.2-2.13 Primeira série
de profecias: Deus reúne tra Samaria e Jerusalém antes de 722 a.c.,
o remanescente eleito quando aquela caiu. Ele convocou todos os
em Jerusalém povos para um julgamento como acusados
(o Senhor testemunha contra vós).
1.2-16 Deus pune Samaria e Judá 3,4 Miqueias enxerga, por trás das tro-
Dois oráculos de juízo, contra Samaria pas assírias, que Deus vem vindo do seu
(2-7) e Judá (8-16), foram reunidos aqui. lugar. Sob o calor de sua ira ardente e de
Observe a expressão Por isso, no v. 8 - a seus passos fortes os montes debaixo dele
queda daquela aponta para a queda deste. O se derretem e escorrem como a cera diante
salário do pecado é a morte, e a recompen- do fogo. As montanhas de Israel eram uma
sa da justiça é a vida (Rm 6.23; GI6.7-1O). região crítica para a defesa da terra. Quem
1.2-7 Deus desce do céu para a terra tivesse controle sobre elas, controlava a re-
para julgar Samaria. O oráculo consiste gião. Seus férteis vales fendem-se como as
II1II
l1li. MIQUEIAS 1 1240
.fI

águas que se precipitam num abismo das quilômetros da cidade natal de Miqueias e
ravinas da montanha. A descida de Deus eram visíveis dali, mas muitas delas hoje já
para julgar (4) está ligada ao julgamento não podem ser identificadas. Miqueias faz
de Samaria (6,7) pela mesma palavra do um uso elaborado de trocadilhos com cada
hebraico que é traduzida por precipitam um dos nomes mencionados. O significado
no v. 4, farei rebolar no v. 6 e fogo/quei- de cada um é explicado nas notas textuais
mados (4,7). 5 Essa visita de Deus acon- da NVI. Por exemplo, Bete-Leafra (10),
teceu por causa da transgressão de Jacó que significa "casa do pó", é conclama-
(isto é, do Reino do Norte) e dos pecados da a se revolver no pó, simbolizando sua
da casa de Israel (isto é, do Reino do Sul). humilhante e abjeta derrota (cf Gn 3.14;
O Reino do Sul é chamado "casa de Israel" SI 44.25; Jr 6.26; Ez 27.30). Os trocadilhos
porque Jerusalém, não Samaria, personifi- e a simetria literária do capítulo correspon-
cava a nação. Os líderes das duas capitais, dem à ordem moral de Deus para todas as
Samaria e Jerusalém, são os principais épocas. Dentro dessa ordem o pecado traz
responsáveis pela quebra da aliança. o juízo, do mesmo modo que a negligência
6,7 Por isso mostra que essa sentença, leva à perda. A nação que vive de prazer
proferida pelo próprio Deus, ajusta-se à morrerá de doenças venéreas e drogas, e a
acusação. Ele fará de Samaria um montão nação que adora o dinheiro acabará falida.
de pedras; fará rebolar suas pedras para o
vale (4). As imagens de escultura nas quais 2. 1-11 Ai dos opressores
tanto confiava na verdade trarão a sua des- Os oráculos de repreensão contra os ganan-
truição. A prata e ouro dessas imagens, co- ciosos proprietários de terra de Jerusalém,
letados dos salários de sua impureza (no que veneravam o dinheiro (1-5), e seus
templo), ao preço da prostituição volverão, profetas igualmente gananciosos (6-11),
pois tomarão a ser usados pelos assírios são ligados pela acusação de ganância e
para contratar as prostitutas do templo em opressão da classe média (2,8,9).
sua própria capital, Nínive. Esse compor- 2.1-5 Ai dos gananciosos proprietá-
tamento deplorável de um povo depravado rios de terras. Os ricos tinham tomado os
exige o fogo purificador de Deus. campos das pessoas comuns de Judá (1,2),
1.8-16 Miqueias lamenta o exílio de portanto, o SENHOR enviará um exército
Judá. 8,9 A conjunção Por isso liga o hostil para tomar deles a terra prometi-
juízo de Samaria com o de Judá; ambas da (3-5). Os acusados, que maquinam o
pecaram (5); portanto, ambas devem ser mal, estão ligados ao acusador que diz:
punidas. Miqueias introduz seu oráculo do projeto mal, e pela repetição da palavra
juízo contra Judá ao representar de forma campos (2,4).
dramática e pesarosa um exilado: lamento 1 Miqueias introduz esse oráculo de
e uivo; ando despojado e nu para o cativei- juízo com um clamor profético: Ai daque-
ro (cf Is 20.2-4). Por trás das feridas incu- les que nos seus leitos à noite maquinam o
ráveis, causadas pelos assírios, Miqueias mal, à luz da alva (no horário das seções
novamente vê a mão de Deus. O mal che- da corte), esses trapaceiros legalizados o
gou até Judá; estendeu-se até à porta de praticam provavelmente corrompendo os
meu povo, até Jerusalém, mas a capital em juízes (cf 7.3) e forçando suas vítimas a
si foi poupada. deixar suas terras. Ironicamente, no ins-
10-16 Miqueias profetiza a queda das tante em que a classe média oprimida (cf
cidades de Judá fazendo um trocadilho 2.8,9) esperava por justiça, encontrava a
com seus nomes, o qual se toma um pre- fraude e era privada de seus direitos pela
núncio de sua destruição. Todas as cidades elite de juízes e militares que detinham
identificadas ficavam em um raio de 14 o poder, pois este estava em suas mãos.
1241 MIQUEIAS2.·

••
2 Esses homens poderosos cobiçam cam- do SENHOR, quem, pela sorte, lançando o
pos. "Não cobiçarás" é o único manda- cordel, meça possessões, ou seja, não terão
mento repetido duas vezes no Decálogo ninguém que os represente quando a terra
(Êx 20.7) e é a raiz de outros males come- for novamente repartida por sortes, como
tidos contra o próximo. A lei resguardava já se fizera no princípio, por meio dos sa-
cuidadosamente os campos de um homem, cerdotes (Nm 26.55).
sua herança perpétua, pois em uma socie- 2.6-11 Os falsos profetas dão apoio
dade agrícola a vida e a liberdade de um aos gananciosos donos das terras. 6 Não
homem dependiam deles. babujeis está no plural. Os falsos profetas,
3,4 Enquanto a elite poderosa planeja- os teólogos liberais da época de Miqueias,
va o mal contra os campos (2a) e as ca- dirigiam-se a ele e a outros verdadeiros
sas (2b) de suas vítimas, o SENHOR estava profetas, dizendo-lhes para que não profe-
projetando o mal contra esta família (3) e tizassem tais coisas, isto é, o juízo anun-
seus campos (4). 3 Assim como um senhor ciado nos v. 3-5.
domina um animal com um jugo, assim 7 O SENHOR repreende a casa de Jacó
também Deus, por meio dos assírios, sub- ao citar a sua teologia duplamente falsa, se-
jugaria a gananciosa classe dominante, de gundo a qual o Senhor nunca fica irritado e
tal modo que eles não poderiam salvar-se não faria estas [...] obras (i.e., trazer juízo).
a si mesmos. 4 A sua punição é expressa Pelo contrário, as palavras do Senhorfazem
como um provérbio satírico colocado na o bem apenas ao que anda retamente.
boca de seus inimigos: Estamos [os per- 8,9 Deus desenvolve a acusação de
versos donos dos campos] inteiramente Miqueias no v. 2. Os agricultores livres de
desolados. Enquanto eles saqueavam os Israel deveriam se sentir como aqueles que
outros, tomando os seus campos, assim passam seguros, sem pensar em guerra.
estes outros, usando da mesma ética, to- Em vez disso, esses agricultores indefesos,
mavam suas terras (cf Mt 26.52). Eles, de diz o Senhor, descobrem que o meu povo
maneira hipócrita, se referiam à terra como (uma referência irônica aos poderosos,
a porção do meu povo (isto é, de Deus). Da como mostrará o restante do versículo) se
mesma forma que repartiam entre si as ter- levantou [...] como inimigo. "Vocês" (NVI)
ras tomadas, agora suas terras são reparti- provavelmente uma referência aos ricos
das entre os rebeldes (cf Am 7.17). O v. 4b agricultores que têm o apoio dos falsos
seria mais bem traduzido por: "Como eles profetas, destroem as famílias, homens,
[os inimigos] me despojam [daquilo] que mulheres e crianças de Israel, antes prós-
pertence a mim [ao rico dono das terra]. peros. Vocês, além da roupa, [roubam]
Repartem os nossos campos aos rebeldes a capa dos homens desprevenidos (8),
[assírios]". Deus dera aos israelitas a terra tiram as mulheres de meu povo do seu
em confiança (Lv 25.23), para ser desfru- lar querido, dos filhinhos delas [tiram] a
tada enquanto eles a usassem de acordo minha glória, para sempre (9). A riqueza
com os desígnios da aliança, mas reteve o do Senhor, que uma vez se espalhara por
direito de tomá-la e entregá-la a seus ini- toda a nação, está concentrada agora nas
migos se eles não cumprissem a aliança mãos de ricos predadores.
(Lv 26.33; Dt 28.49-68). 10 Deus profere a sentença contra os
5 Portanto associa a perda imediata ricos proprietários de terras, provavelmen-
dos donos de terras à perda futura e eterna te usando as mesmas palavras que eles
das terras, o mais severo de todos os juí- usavam para tomar as terras dos inocen-
zos. Quando Deus trouxer de volta para a tes: Levantai-vos e ide-vos embora! Eles
terra o remanescente (4.7), esses ganancio- devem deixar seu lugar de descanso, o
sos traidores não terão, na congregação lugar de seu bem-estar fisico e espiritual.
MIQUEIAS2 1242

A razão é dada a seguir. Por sua idolatria e seu "Rei") irá adiante deles, assumindo a
imoralidade a terra está cheia de imundícia posição legítima à suafrente. Os primeiros
e, assim, ela os lança fora (cf Lv 18.25); dois estágios se cumpriram no livramento
o lugar se tomou uma ruína repugnan- milagroso de Jerusalém das mãos dos inva-
te "sem que haja remédio" (NVI). 11 Em sores assírios pelo Senhor (v. Introdução).
resposta à sentença do Senhor, Miqueias, O terceiro estágio, como ficará mais claro
mordaz e sarcastícamente, zomba dos pro- tanto pelo contexto do livro (v., e.g., 5.1-6)
prietários de terras. Eles estão dispostos a quanto pelo desenrolar da revelação do NT
aceitar como profeta qualquer um que se (v., e.g., CI1.18-20), encontra seu cumpri-
una a eles em sua ambição. Um profeta as- mento em Cristo e em sua Igreja.
sim tão falso não era apenas alguém que
se enganara, mas sim um "mentiroso e en- 3.1-5.15 Segunda série de
ganador" (NVI). Vinho e bebida forte são o profecias: Deus devolve o
assunto favorito desses líderes carnais, que antigo domínio de Jerusalém
saciam seu imenso apetite com uma ambi- ao remanescente purificado
ção condenada pelos verdadeiros profetas
(Is 5.11,12; 28.7,8; cf Am 4.1) e advertida 3. 1-12 A velha Jerusalém e a queda
pelos sábios (Pv 20.1; 23.20,21; 31.4-7). de seus líderes corruptos
Um falso profeta, alguém que prega um Os três oráculos de juízo compartilham um
evangelho de "riqueza e prosperidade", e tópico comum (justiça; cf v. 1,8,9), a mesma
não de santidade, será este talo profeta extensão (quatro versículos) e uma estrutu-
deste povo. O profeta que eles merecem! ra comum que consiste em nomear aqueles
a quem são dirigidos (1,5,9,10). Cada um
2.12,13 Deus preserva um deles é seguido por uma acusação que é
remanescente em Sião introduzida pela palavra que (2,3,5,9,11) e
A primeira seção do livro termina com um uma sentença introduzida por então (4) ou
oráculo de esperança constituído de duas portanto (6,7,12). Os primeiros dois orá-
partes: A promessa de Deus (12) e a profe- culos movem-se em direção ao clímax do
cia de Miqueias (13). 12 O Rei-Pastor de terceiro. Aqueles a quem os oráculos são
Israel ajuntará [...] congregará o restante dirigidos vão desde os magistrados injus-
de Israel que sobrevivera à invasão dos as- tos (1) aos profetas injustos (5), aos quais
sírios (cf 1.8-16) no aprisco (uma imagem se somam os sacerdotes injustos (11). As
que representa a segurança de Sião). A rea- sentenças evoluem do silêncio de Deus (4),
lidade por trás dessa imagem é o cerco de passando para o seu silêncio somado a tre-
Jerusalém, em 701 a.c., por Senaqueribe. vas (6,7) e daí para a sua ausência, quando
O dificil texto hebraico por trás da segunda da destruição do templo (12). Jerusalém cai
metade do versículo deveria ser traduzido devido às falhas de seus líderes.
assim: "Como um rebanho em sua pasta- 3.1-4 Os pastores se transformam
gem, eles [o remanescente] serão lançados em canibais. 1 Com um enfático Ouvi,
em grande tumulto sem um homem [isto é, Miqueias primeiramente traz ao banco dos
um rei] para protegê-los". réus os cabeças e chefes (ambos os termos
13 Miqueias explica os três estágios significando juízes) de Jacó e de Israel
subsequentes da salvação do remanescente. (significando a nação). Esses juízes tinham
Primeiro, o que abre o caminho (um título a responsabilidade de saber o juízo tan-
para o Rei-Pastor de Israel) subirá diante to em sua mente quanto em seu coração.
deles. Segundo, romperão o bloqueio, en- Isto foi baseado nos casos reunidos na Lei
trarão e sairão pela porta de Jerusalém (cf Mosaica (Êx 21.1-23.19; cf Dt 17.8-11),
1.9,12). Terceiro, o seu rei (ou melhor, o sob cuja luz os juízes deveriam formular
1243 MIQUEIAS3(

novas leis e decidir as questões com jus- quer que não fizesse o que eles exigiam),
tiça (cf 1Rs 3.28; 7.7). 2 Sem coração re- eles apregoam (lit. "eles ordenam") guer-
generado, no entanto, os juízes corruptos ra santa. Os governantes procuravam pela
de fato adotam o comportamento repre- orientação de Deus, por meio dos profetas,
sentado na seguinte acusação: aborreceis tanto para a manutenção da paz como para
o bem e amais o mal (cf Is 1.17,21-23,26; a declaração de guerra (lRs 22.1-29). O
5.7; e v. SI 1.2; 19.7-11). Em uma imagem dinheiro falava mais alto do que Deus para
grotesca, Miqueias retrata os magistrados esses profetas.
como canibais. Ao reduzir seus súditos 6 Portanto Deus removerá sua capaci-
(meu [de Miqueias] povo) à miséria opres- dade de adivinhação, a fonte de seu ganho
siva e viver à custa das terras e do trabalho ilícito. Eles experimentarão noite e treva
do povo (cf 2.1,2,8,9), esses magistrados em vez de visão (revelação) e adivinha-
os estavam enviando para uma morte pre- ção (predições proibidas do oculto; cf
coce. 3 Ao repetir essa imagem repulsiva, Dt 18.10; Ez 21.21,22). Pôr-se-á o sol
o Senhor salienta sua veracidade. sobre os profetas, e sobre eles se ene-
4 Assim como os cruéis governantes grecerá o dia retrata a imagem da perda,
negavam compaixão às vítimas que supli- por parte dos profetas, do dom de visão.
cavam por misericórida, também no dia do 7 Destituídos de revelações divinas eles se
juízo (cf 2.3-5) eles chamarão ao SENHOR, envergonharão e se confundirão e serão
mas não os ouvirá; antes, esconderá deles considerados impuros (cf Lm 4.13-15).
a sua face, em sinal de falta de misericór- Como os leprosos, impuros, eles cobrirão
dia. A pior forma de juízo não é a aflição, o seu bigode (lit. "bigode" = boca) (cf
mas a ausência de Deus na aflição (cf Lv 13.45; Ez 24.17-22), o próprio local em
Hb 12.15-17). que seu dom é mal utilizado. Miqueias fala
3.5-S Os profetas gananciosos. Em aqui de Deus, não do "SENHOR", de modo a
vez de "espantar" os líderes gananciosos não associar a atividade profana dos profe-
e ávidos, os profetas (que deveriam ser os tas com o nome sagrado.
guardiões morais do povo de Deus), por S Em contraste com seus oponentes de-
assim dizer, "abanavam os seus rabos" cadentes, Miqueias diz de si mesmo: Estou
e se juntavam aos canibais para satisfa- cheio (isto é, dotado) do poder (isto é, do
zer o seu próprio apetite desmedido (cf dinamismo do Espírito do SENHOR; cf Ez
Ir 2.26; Ez 22.25-29; Sf3.3,4). "Mastigar" 2.2; 3.12,14,24), cheio de juízo e de for-
indica o amor ao dinheiro por parte desses ça (isto é, de triunfante bravura), o que o
dois grupos. coloca em pé de igualdade com seus ad-
5 Assim diz o SENHOR: A autoridade de versários que também lutam contra ele (cf
Miqueias se encontra no SENHOR e não nele 2.6), à medida que ele se envolve na causa
mesmo (cf v. 8). Os integrantes do cle- da justiça.
ro fazem errar o meu povo, afastando-os 3.9-12 Jerusalém será destruída. 9
da aliança ao recompensar o mal e punir Miqueias novamente convoca os corrup-
o bem (cf Dt 13.1-5), virando a moral de tos cabeças de Jacó e chefes da casa de
cabeça para baixo. Quando têm o que mas- Israel (cf 3.1) e os acusa de abominar
tigar representa no hebraico: "aqueles que (isto é, menosprezar) o juízo e perverter
com os seus dentes picam como uma co- tudo o que é direito em matéria de justiça.
bra". Como pérfidas serpentes, eles matam 10 Eles edificam os monumentais edifi-
suas vítimas para se alimentar. Aos que cios de Sião com sangue (isto é, por meio
satisfazem seus apetites, eles solenemen- de suas cortes corruptas que tiram a vida a
te clamam: Paz (cf 2.11). Contra aqueles suas vítimas indefesas). 11 Em um aparte,
que nada lhes metem na boca (lit. quem Miqueias elabora sua acusação. Os cabeças
MIQUEIAS4 1244

(magistrados civis que deveriam cumprir "líderes" em 3.1,9) dos montes (os centros
a lei), os sacerdotes (que deveriam en- pagãos, políticos e religiosos). Restrito à
siná-la; Dt 17.8-10; 33.10; Os 4.6) e os linguagem e à sociedade de sua própria
profetas (que deveriam aplicá-la por meio época, Miqueias exagera as imagens do
de revelações) devem formar uma rede de AT para anunciar o futuro glorioso, quan-
proteção contra a injustiça em Israel, mas do todas as nações irão adorar o Deus de
essa rede se rompeu sob o peso do amor Israel na Jerusalém celestial, por meio de
que esses líderes têm pelo dinheiro (cf Jesus Cristo (cf Hb 12.22). Visto que os
lTm 6.3-10) e também em função da fal- povos costumavam afluir ao longo do rio
sa teologia que professam com blasfêmia, Eufrates para adorar a Bel na Babilônia (Cf
ou seja, o fato de que dizem estar seguros Jr 51.44), agora eles afluirão à Jerusalém
porque se encostam ao Senhor (cf 2.7). A celestial. 2 Considerando que antiga-
aliança de Deus, entretanto, baseia-se na mente somente os israelitas se dirigiam a
ética e na verdade. Jerusalém para adorar, nesse glorioso reino
12 Portanto: A sentença de Deus será messiânico muitas (ou "grandes") nações
de acordo com o crime (cf Jr 26.18). Por subirão à Jerusalém celestial para adorar
causa de vós (os magistrados; cf v. 9,10), em espírito e em verdade (Jo 4.21-24).
seus edifícios imponentes e profanos se Eles virão para que Deus, por meio de ver-
tornarão em montões de ruínas e o monte dadeiros "sacerdotes", possa lhes ensinar
do templo (não mais o monte do Senhor) os seus caminhos (cf Mt 5.17; 28.18-20;
numa colina coberta de mato, por onde va- lPe 2.9). Quando a lei e a palavra profé-
gueiam animais impuros. tica do SENHOR vierem da Jerusalém celes-
tial, os benefícios dos v. 3,4 seguirão.
4.1-8 A Nova Jerusalém 3 Deus julgará (cf 3.11) por meio de
exaltada sobre as nações indivíduos talentosos que ministrarão sua
Os quatro oráculos seguintes se referem à palavra, e assim se resolverão as contendas
Sião renovada (cf v. 2,7,8.1 O, 11).Enquanto entre muitas (melhor seria "grandes") na-
a antiga Jerusalém caiu em função de seus ções poderosas. Sem necessidade de armas
líderes corruptos, a nova Jerusalém triun- de guerra, os povos pacificados converte-
fará, pois o remanescente de seu povo será rão as suas espadas em relhas de arados
governado pelo Messias. (melhor seria: "em enxadas"). 4 Não mais
4.1-5 Jerusalém exaltada sobre as dominada pela ganância (cf 2.2), nem ten-
nações convertidas. (Cf Is 2.2-4). 1 As do mais que viver da espada (cf Mt 26.52),
promessas dos cp. 4-5 se cumprirão a pessoa convertida (cf Jr 31.31-34) vive-
nos últimos dias (melhor seria: "nos dias rá sem medo de represálias e se contentará
vindouros"), começando com a restaura- em assentar-se debaixo da sua videira. A
ção do remanescente da Babilônia (6,7), fórmula final - porque a boca do Senhor
cumprida na igreja de hoje (At 2.17; dos Exércitos o disse - é a garantia de
Hb 1.2), e consumada no novo céu e na que a visão será cumprida. Hoje a igreja
nova terra no final dos tempos (2Pe 3.12; é constituída de fiéis autênticos, de todas
Ap 21-22). Em uma empolgante revi- as nações, que sabem que mais bem-aven-
ravolta, Miqueias passa da destruição turado é dar que receber (At 20.35), têm a
do "monte do templo" (do hebraico hãr) lei escrita em seu coração e experimentam
(3.12) para a exaltação do monte (do he- a graça e a paz prometidas por Deus Pai e
braico hãr) da Casa do SENHOR, a répli- por nosso Senhor Jesus Cristo.
ca terrena do próprio céu (cf Êx 25.9; 5 Esperando em Deus pelo cumpri-
Hb 9.23,24) que será estabelecido no mento dessa promessa, o remanescente
cimo (a mesma palavra em hebraico para fiel se empenhará em andar em o nome do
11
1245 MIQUEIAS 4 .11
••
SENHOR (isto é, em conformidade com a sua a grandeza de Davi, dá ao remanescente
aliança) para todo o sempre (cf Is 40.31). uma visão de sua glória futura, quando
Eles são os arautos da paz futura. virá o primeiro domínio, o reino da filha
4.6,7 O fraco remanescente se tor- de Jerusalém.
na forte. 6 A expressão Naquele dia faz
referência "aos últimos dias" do v. 1. Diz 4.9-13 As atuais dores de parto
o Senhor garante a divina inspiração des- de Sião resultarão no nascimento
sa profecia, como também sua autorida- de uma nova época
de e veracidade. O Rei-Pastor novamente O profeta continua na trilha da restauração
congregará os que coxeiam e recolherá os de Sião. O oráculo se desenvolve em dois
que foram expulsos (melhor seria: "disper- estágios (9,10; 11-13) com um formato
sos"), ansiando por restaurar a sorte dos semelhante apontando para um significa-
judeus aflitos na Babilônia. do coerente. Ambos movem-se do agora
7 Após devolvê-los a Jerusalém, Deus (isto é, da presente situação angustiante
fará (melhor seria: "transformará") deles de Miqueias; 9,11) para a glória futura por
a parte restante (um remanescente), que meio de um vocativo: ó filha de Sião (isto
agora se toma o alvo da história sagrada. é, Jerusalém e seus habitantes); com im-
Outras nações da época de Miqueias não perativos: sofre dores e esforça-te (lO) e
sobreviveram às reviravoltas da história levanta-te e debulha (13); seguidos de por-
pelo fato de Deus não preservar um rema- que e de uma descrição do futuro.
nescente delas (cf Am 1.8; Rm 11). Dos 9 A pergunta retórica - Agora, por
que foram arrojados devido a seus peca- que tamanho grito? - censura Sião por
dos, e que são agora restaurados e puri- sua descrença à medida que o remanes-
ficados, Deus fará uma poderosa nação cente (em quem Deus deposita o futuro
(lPe 2.9). Então Miqueias passa a refle- da história) vai para o exílio babilônico.
tir sobre esse oráculo figurado. Quando o A segunda pergunta - Não há rei em ti?
SENHOR, por meio do Messias, reinar sobre (melhor seria: "Rei") - explica a primei-
o remanescente, de seu trono celestial no ra. O "Rei" é Deus, como sugerem os pa-
monte Sião, (cf 5.2-4; At 2.32-36), seu ralelos no v. 12 e em Jeremias 8.19. Seu
reino durará desde agora e para sempre conselheiro (melhor seria: "Conselheiro")
(cf Is 9.6,7). que os está enviando para o exílio tem uma
4.8 O domínio de Jerusalém é res- estratégia secreta por trás de sua agonia de
taurado. Deus dirige sua terceira profecia parto: pela dor eles darão à luz uma nova
sobre Sião diretamente a Sião. Ele chama época. 10 Para que se cumpra a história
a capital restaurada de torre (isto é, uma de Sião, ordena-se ao remanescente que
torre fortificada em meio a uma vinha, de sobreviveu à queda de Jerusalém: Sofre
onde os pastores vigiavam para evitar a dores e esforça-te [...] como a que está
aproximação de animais selvagens ou para dar à luz. A agonia do parto agora
de ladrões) do ("por amor ao") rebanho indica que o remanescente será obrigado
(os indivíduos que fazem parte do seu a sair da cidade (cf 2Rs 25.2-7; Jr 52.7),
reino, cf v. 6,7). Os antigos governantes para habitar no campo (Jr 6.25; 14.18), e
os saquearam (cp. 3), mas na nova épo- ir para a Babilônia, o supremo exemplo
ca Deus os protegerá por intermédio do da escuridão espiritual. Mas ali (repeti-
Messias (cf 5.1-6). Ele também se refere do duas vezes para dar ênfase) te remirá
a ela como monte (2Rs 5.24), a fortemen- o SENHOR das mãos de teus inimigos, num
te defendida encosta leste de Jerusalém primeiro vislumbre do alvorecer de uma
(originariamente chamada "Ofel"). Esse nova época (cf 4.1). Em 705 a.c., Isaías
título antigo, que guarda associações com predisse o cativeiro babilônico na época
1246
.11
- - . MIQUEIAS 5

da visita do embaixador, representante 5.1-6 O nascimento e a


do rei da Babilônia, Merodaque-Baladã, exaltação do Messias
(2Rs 20.12-19 = Is 39.1-8). A profecia de O foco muda agora da restaurada Sião para
que o remanescente preservado retomaria a restaurada casa de Davi. O oráculo é es-
a Jerusalém foi cumprida sob Zorobabel e truturado por uma referência a Miqueias e
Josué, em 583 a.C. ao remanescente que está junto com ele, na
U Enquanto o agora dos v. 9,10 se re- primeira pessoa do plural ("nós"), enquan-
fere ao exílio babilônico, o agora do v. 11 to enfrentam as invasões assírias.
se refere ao cerco de Jerusalém pelos assí- 1 Agora (infelizmente omitido pela NVI)
rios (v. Introdução). O exército do Império liga este oráculo ao anterior (9,11); todos
Assírio era composto de mercenários de eles começam com a presente aflição (1)
muitas nações (Is 29.7), que eram pagos e movem-se rumo à salvação (2-6). Para
com os odiosos tributos coletados dos fortalecer espiritualmente a cidade sitiada,
povos subjugados. Com arrogância, os Miqueias ordena: Ajunta-te em tropas, Ó
exércitos hostis (cada um sob sua própria filha de tropas. O sítio contra nós se refere
bandeira) se unem contra Sião; como re- ao cerco de Senaqueribe, em 701 a.C. (cf
sultado, a cidade sagrada é profanada por 1.9,12; 2.12,13; 4.11). Eles (as hordas as-
eles, que derrubam os muros que prote- sírias)ferirão com vara ("cetro") aface do
gem seus recintos sagrados, especialmen- juiz de Israel (Ezequias), mostrando que
te o Santo dos Santos. Eles também olham ele não pode defender-se a si próprio, nem
com satisfação maligna para a cidade que mesmo quando os inimigos de Deus mais
alegava ser a verdadeira representação do tarde feríram o Filho de Davi para humi-
céu na terra, desse modo os condenan- lhá-lo (Mt 26.67; 27.26,30).
do. 12 Mas eles não entendem o plano 2 A expressão E tu muda a cena da
de guerra de Deus, isto é, ele os ajuntou Jerusalém sitiada para Belém, a esperan-
em tomo dos muros de Sião corno fei- ça futura de Israel. Como a personifica-
xes na eira (uma figura comum do juízo; ção em 4.8, Deus se dirige diretamente a
Is 21.10; Jr 51.33; Os 13.3). Eles, incons- Belém. Os nomes, Belém-Efrata e Judá,
cientemente, são instrumentos de sua pró- relembram os dias de Jessé, pai de Davi
pria derrota, do mesmo modo que, na cruz (cf 1Sm 17.12). Deus está para começar
de Jesus Cristo, Deus derrotou Satanás tudo novamente. A linhagem decadente de
(1Co 2.7,8). 13 Então, Miqueias ordena Davi será cortada como uma árvore morta,
que o remanescente reunido com ele no mas, como Isaías se expressou em relação
interior da Jerusalém sitiada saia com ele a isto: "do tronco de Jessé sairá um rebento
(cf 2.13): Levanta-te e debulha, pois Deus [o Messias], e das suas raízes um renovo"
lhes dera chifres de ferro invencíveis para (ls 11.1). Embora a antiga Belém fosse pe-
espetar seus inimigos e unhas de bronze quenademais (a "menor"; cf Jz 6.15; lSm
(como espetos e debulhadores) para esmiu- 9.21) das tribos de Judá (até mesmo omi-
çar muitos povos. O remanescente tomará tida na extensa lista das cidades de Judá
os ganhos ilícitos dos assírios (aquilo que em Js 15.33-60), hoje alcançou aclama-
fora pilhado de Judá e que ainda não tinha ção universal pelo nascimento de Cristo,
sido enviado para a Assíria) e isso será de- que por sua vez era tão pouco promissor
dicado ao SENHOR em seu templo protegi- quanto Belém antes de seu nascimento (cf
do (cf o destino de Samaria em 1.6,7). A 1Sm 16.1-13). Mateus (2.6) interpreta o
estratégia secreta, que começou a ser cum- versículo de forma a enfatizar Jesus como
prida em 701 a.c. (2Rs 19), continua a ser líder e não como um dos descendentes de
cumprida na história sagrada (Jr 51.33; Jessé. Mateus omite a palavra "Efrata",
lCo 2.7,8). troca "grupos de milhares de Judá" por "as
principais de Judá", formando assim um
1247 MIQUEIAS 5 1111

significa conversão) de seu cativeiro de pe-


.
11

contraste melhor com "o que há de reinar cado e juízo aos filhos de Israel (um termo
em Israel", e explica corretamente a inten- de conotação religiosa). Tendo reunido o
ção do texto ao adicionar a expressão "não remanescente eleito, Cristo inaugurou seu
és de modo algum" e substituir o final do reino da Sião celestial quando ele enviou o
versículo pelo texto de 2SamueI5.2. Espírito Santo sobre os irmãos reunidos no
Em contraste com os líderes de Israel, cenáculo, e eles viraram o mundo de cabe-
que só pensavam em si mesmos (cf 3.1- ça para baixo (Lc 3.16; At 2).
4), acerca do Messias o texto afirma: de ti 4 O Messias que reina se manterá fir-
me sairá, isto é, dali sairá para proveito me (isto é, permanecerá para sempre; cf
de Deus (não para proveito próprio). A SI 33.11; Is 14.24) e apascentará o povo,
referência velada às raízes históricas do suprindo todas as suas necessidades, in-
Messias, por meio das alusões a Jessé clusive de alimento espiritual e proteção
pelos nomes no início do versículo, é (Jo 10; Hb 13.20; lPe 5.4). Pela fé ele
desvendada no final do versículo: cujas reinará na força do SENHOR, não por meio
origens são desde os tempos antigos, de maquinações e manipulações humanas
desde os dias da eternidade, numa refe- (cf 5.10-15). Seus súditos habitarão se-
rência à época de Jessé. O significado do guros, pois, depois de derrotar a Satanás
hebraico por trás da expressão desde os (Mt 12.22-29; Rm 16.20), ele estenderá
tempos antigos é: "desde os tempos mais seu reino até aos confins da terra (4.3,4;
remotos", "desde tempos imemoráveis" Mt 28.18-20; Jo 17.2). Cristo dá vida eter-
("antigamente", em Js 24.2; "há muito", na para o seu povo eleito, e ninguém pode
em Jr 2.20), quando usado em relação a arrebatá-lo de suas mãos (Jo 10.28).
algum acontecimento histórico; quando 5,6 O tema de que o reinado univer-
usado em relação a Deus, que existia an- sal de Cristo assegura a paz de seu reino
tes da criação, "eternamente" é uma tra- é agora elaborado. Miqueias usa nós, nos-
dução apropriada (e.g., "de eternidade a sa e nos para falar de si mesmo e dos fiéis
eternidade", SI 90.2). A adição da palavra como parte desse reino triunfante (cf 5.1).
tempos (lit."dias") mostra ser esta uma re- Ele cerca essa conclusão com as promessas
ferência histórica. A expressão completa de que o Messias será a nossa paz (5a) e
é traduzida por "nos dias de outrora" em nos livrará (6b). O Messias tanto defende-
7.14 e "desde os dias antigos" em 7.20. rá seu reino do ataque inimigo (5b) quanto
3 Da promessa que a nova época de reinará sobre seus inimigos (6a).
Sião será inaugurada com o nascimento 5 Miqueias se refere a futuros ataques
do Messias em Belém, Miqueias conclui contra o reino do Messias como sendo
que o SENHOR os entregará, ou seja, deixa- executados pela Assíria, que fora des-
rá Israel sem um rei até ao tempo em que truída séculos antes do advento de Cristo,
a que está em dores tiver dado à luz (cf em 612 a.C. Os profetas não conseguiam
4.9,10) o Messias. A profecia se cumpriu enxergar os séculos que os separavam do
cerce de 700 anos mais tarde, por meio cumprimento de suas profecias, mas viam
dos fiéis servos Zacarias e Isabel, Simeão os acontecimentos futuros como eventos
e Ana, José e, acima de tudo, Maria iminentes numa superficie plana. Além
(Lc 1.5-2.40; cf Is 7.14). O núcleo do disso, eles descreviam o futuro em termos
novo reino de Sião, centrado no Messias, extraídos de sua própria experiência (cf
é formado pelo restante de seus irmãos, 4.1; Is 25.10; Am 9.12). Sob a liderança
que estão associados a ele não apenas por do Messias, a comunidade fiel levantará
sangue e pela história, mas também pelo sete (o número perfeito) pastores (uma
espírito. O restante voltará (palavra que metáfora para protetores) e até mesmo oito
-=-
11
MIQUEIAS 5 1248

(isto é, um número mais do que suficien- haja quem as livre). Essa profecia é cum-
te) príncipes (uma palavra rara encontrada prida na igreja. Entre aqueles que serão
nos anais de Sargão para seus comandan- salvos, o povo de Deus é como o aroma
tes). 6 Estes, os pastores do Messias (cf de vida, mas entre aqueles que perecerão,
lPe 5.1-4), consumirão a terra da Assíria ele é o cheiro da morte (2Co 2.14-16).
à espada, que aqui representa todos os ini- 9 Miqueias e/ou o remanescente respon-
migos do Reino de Deus, especialmente dem a essa visão como uma oração: A tua
as forças espirituais reunidas contra ele mão se exaltará [...] todos os teus inimigos
por seu arqui-inimigo Satanás (Ef 4.7-12; serão eliminados (cf Is 26.11). Nenhum
6.10-18). A terra de Ninrode é a Babilônia deles escapará quando seu reino for esta-
(Gn 10.8-12), a Roma e a Meca do mundo belecido sobre todas as nações (cf 5.4).
pagão do tempo de Miqueias. A menção à
Babilônia depois da Assíria dá sustentação 5. 10-15 Deus protege
à data no cabeçalho do livro (1.1). Na épo- seu reino purificado
ca de Miqueias, a Babilônia era dominada A sétima grande profecia de esperança nos
pela Assíria. O Império Neobabilônico que cp. 4-5 também traz a expressão naquele
veio depois destruiu a Assíria em 612 a.C. dia (cf 4.1,6), uma referência ao dia em
e foi destruído em 539. À luz do NT, a espa- que o remanescente, liderado pelo Messias,
da simboliza a palavra de Deus ministrada conquistará as nações. O acréscimo da ex-
no Espírito Santo. pressão diz o SENHOR (cf 4.6) garante o seu
cumprimento. Isso se refere à proteção de
5.7-9 O remanescente Israel de duas maneiras: a purificação in-
governa as nações terna de Israel (10-14) e a punição externa
7,8 Estará (lit. "e o restante estará") intro- das nações desobedientes (15).
duz outra profecia na sequência de profecias 10-14 A profecia - destruirei (10-13)
sobre os últimos dias (cf 4.1) e indica seu - é a resposta de Deus à oração do v. 9.
tempo de cumprimento como sendo após O verbo hebraico por trás da palavra tra-
a vinda do Messias. O restante (cf 4.7) de duzida por "destruir" frequentemente se
Jacó, o termo utilizado por Miqueias para refere à remoção das pessoas que violaram
todo o Israel (cf 1.5), tomou-se agora uma a santidade de Israel (e.g., "eliminar" em
nação forte no meio de muitos (melhor se- Lv 17.10; 20.3-6), uma medida para pre-
ria "poderosos"; cf 4.2,3) povos, trazendo servar Israel em face da ira de Deus em
vida para os fiéis e morte para os infiéis. relação aos ímpios. Os objetos, as obras
A construção semelhante dos v. 7 e 8 con- de suas mãos, destinadas a serem elimina-
trasta com o efeito entre as nações. 7 Por das do meio deles (10,13,14), ameaçam a
um lado, o remanescente é como orvalho fé que Israel tem em Deus: poderio militar
e chuvisco penetrantes (sempre sinais de (10,11; cf Dt 17.16,17), feitiçaria (12; cf
vida e bênção) que nascem misteriosamen- Dt 18.9-13) e idolatria (13,14; cf Dt 7.5).
te da iniciativa do SENHOR no céu, que não Isaías (2.6-8) acusa Israel de colocar sua
espera pelo homem, nem depende dos fi- confiança nessas mesmas coisas. O equi-
lhos de homens para trazer alívio à terra. pamento bélico inclui elementos de ata-
8 Por outro lado, o remanescente entre as que, como cavalos e carros de guerra (10)
nações é como um leão entre os animais e de defesa, as cidades com todas as tuas
das selvas (isto é, alguém que supera a fortalezas (11). 12 A NVI omite, depois da
todos em orgulho, coragem e bravura). É palavra feitiçarias, a expressão "das tuas
como um leãozinho à procura de caça entre mãos", que ressalta o fato de as feitiçarias
os rebanhos de ovelhas (isto é, o qual, se serem obra de mãos humanas. 13 O mes-
passar, as pisará e despedaçará, sem que mo acontece às imagens de escultura e
1249 MIQUEIAS6.·

••
colunas. Elas eram representações estiliza- como testemunha de sua aliança com Deus
das de Baal, uma divindade masculina. (Js 22.21-28), assim Deus conclamou
15 Vingança, na Bíblia, é um termo "céus e terra" como um fórum cósmico
legal que designa o princípio segundo o de testemunhas de sua aliança com Israel
qual um soberano protege seu domínio (cf Dt 4.26). Agora, aproximadamente
protegendo os seus súditos e punindo os 700 anos mais tarde, ele convoca os mon-
opressores destes. O desrespeito das na- tes (1,2) e os duráveis fundamentos da ter-
ções pagãs por seu santo reinado atrai so- ra (2) como um fórum de testemunhas da
bre elas a ira e furor de Deus. Por toda a veracidade de sua causa e da controvérsia
história, Deus protegeu seu governo con- com o seu povo, Israel. Consequentemente,
tra as nações que não lhe obedeceram, o apelo a essas testemunhas silenciosas po-
mas ele finalmente colocará em ação seu deria ter levado à condenação somente se
poder protetor na segunda vinda de Cristo as partes assumissem que a aliança tivesse
(Lc 18.7,8; 21.22; 2Ts 1.8; Ap 6.10). sido transmitida de geração em geração,
sem nenhuma modificação.
6.1-7.20 Terceira série 3-5 A acusação toma a iniciativa. 3
de profecias: Deus perdoa Ele não "aborreceu" o seu povo, como
o remanescente de seu eles implicitamente se queixam, mas an-
povo pecador tes os tinha tratado de maneira tão gra-
O imperativo plural Ouvi, dirigido à pla- ciosa desde a época de sua fundação, que
teia do livro, introduz a terceira seção de a única resposta razoável da parte deles
Miqueias. O que diz o SENHOR investe a deveria ter sido um sincero compromisso
seção de autoridade celestial. Para a coe- com Deus. Depois de seu silêncio diante
rência dessa seção à luz do livro como um do convite para que respondessem a ele
todo, ver Introdução. (cf Rm 3.19), o Senhor elabora sua pró-
pria acusação em duas partes; cada qual
6. 1-8 Israel é acusado é introduzida com apelo pela expressão
de violar a aliança povo meu (3-5). 4 A primeira parte apre-
Esse oráculo contra Israel se desenvolve senta seus atos de salvação no começo
como um complexo processo judicial. Deus, da história de Israel: Pois te fiz sair da
o autor da ação, convoca Miqueias, seu terra do Egito e da casa da servidão te
mensageiro, a chamar os montes para que remi ("libertei"). Também lhes deu a li-
testemunhem o julgamento (1), e Miqueias derança de servos de Deus nas pessoas
lhe obedece (2a). O restante do processo de Moisés, o fundador, de Arão, o sumo
desenrola-se sob a forma de um diálogo, o sacerdote, e de Miriã, profetisa e poetisa
uso repetido da palavra-chave que conferin- (Êx 15.20,21). Posteriormente, a falta de
do-lhe dramaticidade (cf v. 3,6,8). liderança em Israel não se deu pela falta
1,2 O imperativo levanta-te (singular) de graça e poder de Deus, mas pelo cora-
confere autoridade a Miqueias e ressalta ção obstinado de Israel. 5 A segunda par-
a urgência da mensagem. O hebraico por te apresenta os atos poderosos de Deus
trás da expressão defende a tua causa sig- ao final do período de formação do povo
nifica "fazer acusação". Uma vez que a de Israel, isto é, sua proteção contra os
causa é de Deus, e não de Miqueias (cf v. demoníacos líderes religiosos e políticos,
2b), deveríamos ler "minha causa" no v. Balaque, rei de Moabe e Balaão, filho de
1, e não tua. Como Jacó e Labão erigiram Beor, respectivamente, e sua milagrosa
uma coluna para servir como testemunha jornada de Sitim, na Transjordânia, atra-
de sua aliança (Gn 31.43-47), e as tribos vessando o transbordante rio Jordão até
do Oriente edificaram um altar de pedras Gilgal, seu primeiro acampamento na
.
- - . MIQUEIAS6

terra prometida. Esses opostos significam


1250

6.9-16 As maldições da aliança


todos os primeiros atos de justiça ("salva- cumpridas em Jerusalém
ção") do SENHOR. Se Deus milagrosamen- Esse oráculo de juízo é composto por um
te salvou Israel das aflições do Egito e de discurso (9), uma acusação (10-12) e uma
Moabe, não pode ele libertar seus descen- sentença (13-15). O v. 16 repete a acusação
dentes da tirania de Satanás, seja qual for (16a) e a sentença (16b).
a forma que ela assuma? Não pode ele fa- 9 O discurso tem duas partes. Primeiro,
zer proezas similares para seus servos ao Miqueias ordena: A voz do SENHOR clama
longo dos séculos? à cidade (Jerusalém): Ouvi [ou "prestem
6,7 Talvez tenha sido um dos reis de muita atenção"]. Em um comentário à
Israel, a julgar pela grandiosidade das parte sobre Deus, Miqueias acrescenta: e
ofertas, quem respondeu de maneira a é a verdadeira sabedoria ("boa decisão")
condenar-se a si mesmo. Em vez de se temer-lhe o nome. Segundo, Deus se diri-
arrepender por sua ingratidão e infideli- ge ao povo. O v. 9b pode perfeitamente ser
dade, ele tentou obter acesso à excelsa formulado assim: "Ouvi, ó tribos e cida-
presença de Deus por meio de suas pró- dãos reunidos em assembleia".
prias boas obras e rituais, transformando, 10-12 A acusação de práticas comer-
assim, a aliança espiritual (cf Dt 6.4,5) ciais desonestas também se desdobra em
em um contrato comercial. 6 Ele espera- dois estágios: Deus, usando a primeira
va se apresentar ao SENHOR com presen- pessoa, acusa diretamente seus cidadãos de
tes valiosos. Essa tentativa inacreditável usar medidas (10) e balanças (11) incorre-
de se aproximar da graça de Deus jamais tas; a seguir, fala sobre a elite da cidade na
consegue satisfazer a consciência; por terceira pessoa e a acusa de proferir menti-
isso, ele aumentou cada vez mais a qua- ras nas cortes (12). 10 A primeira parte do
lidade e/ou a quantidade dos presentes: versículo na verdade diz: "Deveria eu per-
holocaustos, bezerros de um ano (simbo- doar o bato injusto". O bato era uma me-
lizando o que havia de melhor), milhares dida de capacidade para líquidos, colocada
de carneiros (cf lRs 3.4; 8.63), dez mil em paralelo aqui com o efa (uma medida
ribeiros de azeite, ingrediente que cos- de capacidade para secos), equivalendo
tuma ser medido de outra maneira, em cada uma à décima parte de um ômer, ou
frações de litro. Ele chegou a oferecer o 22 litros. Se Deus absolvesse os mentiro-
sacrifício de seu primogênito, um obsce- sos e enganadores, ele seria cúmplice deles.
no costume pagão (Lv 18.21). 8 O que Mas ele defende pesos e medidas corretos
Deus realmente quer é fidelidade à alian- (Lv 19.35,36; Dt 25.13-16; Ez 45.10) e
ça, a qual se baseia na fé em Deus e se considera detestável (isto é, algo que trará
expressa fundamentalmente em uma vida o juízo de Deus, e não a sua bênção) o efa
de justiça e somente secundariamente minguado (ou seja, o efa escasso, mesqui-
em rituais (v. Êx 20-24; lSm 15.22; nho). 11 Da mesma forma não inocentará
Mt 5.24). A ignorância do rei sobre aqui- balanças falsas e bolsas de pesos engano-
lo que agrada a Deus é indesculpável, sos. Os corruptos da elite de Israel (2.1,2;
pois na aliança Deus declarou à humani- 3.1-4) tinham se espalhado por toda a na-
dade o que é bom, um termo que sinteti- ção, de forma que Deus teve de lidar com
za as exigências da lei: praticar ajustiça toda a comunidade. 12 Os ricos da cidade
(v. cp. 3), amar a misericórdia (isto é, estão cheios de violência, e os seus habi-
proteger, de coração, os fracos), e andar tantes falam mentiras (isso é, eles abusam
humildemente (ou "andar zelosamente" dos indefesos nas cortes, promovendo fal-
segundo as exigências da aliança) com o sas acusações e julgamentos injustos; cf
teu Deus. 2.1,2; cf SI 27.12; 55.11; 58.1,2).
1251 MIQUEIAS 7.·•••
13-15 Assim: Deus profere uma sen- que seja reto", ambas traduzindo a mesma
tença que se ajusta ao crime. 13 Segundo palavra do hebraico. Miqueias especifi-
a formulação do próprio texto - passa- ca os crimes de todos os homens (isto é,
rei eu a ferir-te - a palavra é dirigida a os decadentes juízes do v. 3 que oprimem
alguém no singular (heb. singular mascu- suas vítimas inocentes). Ele os associa a
lino). Desolada: a ARe traz: "assolando- caçadores que espreitam (lançam mão de
te", que significa "devastar fisicamente". práticas traiçoeiras) e cada um caça a seu
14 Deus agora especifica em que consiste irmão com rede (são efetivamente mortais;
essa doença: Comerás e não te fartarás; cf 2.1,2; 3.1-3,9-11). 3 Ele elabora mais o
"você será acometido de disenteria. Você tema da caça. As suas mãos (dos juízes e
entrará em trabalho de parto, mas não con- do rei) estão sobre o mal e o fazem diligen-
ceberá, e mesmo que dê à luz um filho, eu temente (isto é, são mãos hábeis em tecer
o entregarei à espada". Os desastres amea- essas redes mortais). O príncipe e o juiz
çados pelas maldições da aliança são ago- provavelmente significam os magistrados
ra executados (cf Lv 26.26; Dt 28.15,18). e o grande ("os poderosos", NVI), ou seja, o
15 Além disso, eles não colherão aquilo rei corrupto que está acima deles. Eles não
que plantaram, também segundo as mal- só falham por fechar os olhos para o su-
dições da aliança (Lv 26.16; Dt 28.40,51). borno (Êx 23.8; Dt 10.17), mas todos eles
As repetidas maldições funcionam como juntamente urdem a trama para extorquir
um código que capacita Israel a interpre- seus irmãos. 4a O melhor deles é como um
tar esses horrores como vindos de Deus, espinheiro [...] é pior do que uma sebe de
que os tinha advertido de antemão sobre espinhos. Ao obstruir a justiça, esses com-
as consequências da quebra da aliança. placentes e indiferentes magistrados frus-
16 Em resumo, Deus acusa Jerusalém tram e ferem àqueles que a buscam. Que
de seguir os pecados do infame Onri (lRs ironia dizer que há entre eles alguém que
16.25) e de seu filho Acabe que se tomou seja o mais reto!
proverbial por suas trapaças e extorsões 4b O lamento passa abruptamente da
(lRs 21). Por isso Deus os entregou à ru- acusação ao juízo. Tuas sentinelas (isto
ina e ao escárnio (cf Dt 28.25). é, os vigias postados nos muros da cida-
de para avisar da aproximação do peri-
7.1-7 As estruturas sociais de go; Is 21.6) são os verdadeiros profetas
Jerusalém se desintegram que anunciavam o dia do juízo (2.6; 3.8;
1 Miqueias inicia seu lamento com o sinal Am 5.18-20). Porque a cidade não deu
indicador de aflição: Ai de mim! A razão ouvidos a essas sentinelas fiéis (2.6-11;
dessa aflição é como uma acusação: Não 3.5,6; Is 30.10; Os 9.7,8; Am 2.12), o dia
há um só líder honesto (Ib-t). Em uma do teu castigo (Is 10.3; Os 9.7) é chegado.
alegoria, o profeta que representa a Deus A invasão da Assíria trará pânico e confu-
entra em sua vinha no verão (isto é, junho) são (cf Is 22.5) à nação. 5,6 São forneci-
em busca do primeiro cacho de uvas ma- das ilustrações específicas da confusão, do
duras e dos figos temporãos das figueiras caos social na cidade sitiada (cf Is 3.4-7).
que crescem entre as videiras, mas não 5 Os mais fortes laços de solidariedade so-
encontra um sequer, pois os vândalos já cial - o amigo e o companheiro (5a), a
levaram tudo. 2 A vinha é a casa de Israel mulher amada que reclina sobre o teu peito
(cf Is 5.1-7; SI 80.8-16), e seu fruto é o ho- (5b) - serão rompidos sob a pressão do
mem de Deus (isto é, aquele que guarda a cerco. Uma pessoa não deve confiar nem
aliança). A alegoria (1) e sua interpretação a seu amigo mais íntimo como espera lidar
(2) são ligadas por não há "cacho de uvas" com a crise, pois o companheiro tirará pro-
e não há "entre os homens um [sequer] veito disso para sua própria sobrevivência.
1111
MIQUEIAS 7 1252

6 Certamente, os membros mais próximos poder do inimigo, ela está pronta a sofrer
da sua própria casa virão a se levantar a ira do SENHOR, pois esta será apenas por
desdenhosamente como inimigos uns dos um período limitado. Após pagar comple-
outros, para salvarem sua própria pele. A tamente por sua iniquidade (cf Is 40.2),
vinda de Jesus Cristo trouxe essas mesmas Deus julgará sua causa e executará seu
divisões (Mt 10.35-39; Lc 12.53). direito como um advogado, não como um
7 O profeta alterna sua canção de um promotor (6.1), pois ela não fizera mal ne-
sombrio lamento para uma clara confian- nhum a seus inimigos. Então, Sião verá
ça por meio da expressão: Eu, porém, .... (contemplará) a sua justiça em cumprir
Enquanto antes ele olhava para o castigo com as obrigações assumidas na aliança
(4), agora ele diz: olharei para o SENHOR, que fizera com ela. 10 Sião ora: A minha
esperando que o Senhor salve não somen- inimiga verá isso, e ela cobrirá a vergo-
te a ele mas também ao remanescente fiel. nha. Os olhos de Sião contemplarão (a
Baseando-se firmemente nas promessas da palavra em hebraico é a mesma do v. 9) a
aliança feitas a Abraão (20; Gn 17.7,19; cf queda de sua inimiga (Nínive).
Dt 30.1-10), Miqueias diz confiante: espe- 11-13 A palavra dia, repetida três vezes
rarei no Deus da minha salvação; o meu para deixar claro que se trata do mesmo
Deus me ouvirá. período, diz respeito tanto a uma circuns-
tância quanto a um tempo escolhido por
7.8-20 Canção de vitória: Quem é Deus no futuro próximo. É um dia para
semelhante a Deus, que perdoa o Sião reedificar os seus muros (os muros
remanescente? que cercam o rebanho, e não muralhas de
O hino que conclui a terceira série de pro- defesa, cf 5.11). É também o dia para que
fecias, bem como o livro, divide-se em os limites sejam removidos para mais lon-
quatro estrofes reativamente iguais: a con- ge, de modo que haja bastante espaço para
fissão de fé de Sião (8-10); a promessa de receber todas as nações que virão (13) se
Miqueias de que todos os povos encontra- colocar sob a proteção de seu Rei-Pastor.
rão salvação na Sião restaurada (11,12), 12 Nesse dia, virão a ti povos de toda a ter-
que é seguida pela desolação de toda a terra ra, até mesmo das antigas nações inimigas
(13); seu pedido para que Deus apascente de Sião, da Assíria, ao norte, e do Egito,
novamente o seu povo (14), acompanhado ao sul (cf SI 87; Hb 12.22). 13 Todavia, a
pela resposta de Deus (15) e a reflexão de terra será posta em desolação. Depois de
Miqueias sobre a salvação universal resul- os eleitos (compostos de judeus e gentios)
tante (16,17); e o hino do povo celebrando terem encontrado salvação em Sião, então
a incomparável graça e fidelidade de Deus virá a desolação sobre a terra por causa
para com eles (18-20). de seus moradores, por causa do fruto de
8 A Jerusalém personificada ordena à suas obras. A profecia encontra sua consu-
sua inimiga (provavelmente Nínive; cf v. mação no juízo final (2Ts 1.6-9; 2Pe 3.12;
12): não te alegres a meu respeito (isto é, Ap 20.11-15).
não se regozije por sua vitória). Ela lhe 14 Então, Miqueias pede a Deus:
explica que ainda que more nas trevas (no Apascenta o teu povo, tanto judeus quan-
cativeiro mais sombrio, Is 42.6,7; 49.9), to gentios (At 15.16-18; Ef 1.3,4). Essa
o SENHOR, que havia se comprometido imagem se estende ao restante do versí-
para sempre com Israel (cf v. 7,20), será culo: proteção (bordão) e ampla provisão
a minha luz (isto é, a livrará do calabou- (apascentem-se). Herança se refere à ter-
ço de seu cativeiro). 9 Porque sua queda ra, fonte ancestral e permanente de subsis-
fora ocasionada por seu próprio pecado, tência da família (cf 2.2; cf Nm 26.56).
e não pela impotência de Deus ou pelo Hoje, em Cristo, Deus dá a seus eleitos
uma fonte permanente de vida (10 10.28).
1253

Yah"): Quem, ó Deus, é semelhante a ti


.
MIQUEIAS 7 1111
11

O povo eleito mora para sempre a sós, em - no início de um hino do povo: Quem
liberdade. O complemento no bosque, no é Deus semelhante a ti...? Ninguém se
meio da terra fértil significa se tratar de compara àquele de quem o texto diz: que
"uma floresta que se parece com um jar- perdoas a iniquidade [a culpa], e que
dim". Basã e Gileade foram as primeiras te esqueces da transgressão (cf 1.5).
terras conquistadas por Moisés, com mila- Tamanha fora a quebra da aliança por
gres poderosos (Nm 21.33). Basã era céle- parte de Israel que ninguém, a não ser
bre por suas árvores majestosas (Is 2.13; Deus, teria perdoado (cf lTm 1.15-17).
Zc 11.2) e por seus animais gordos e bem No entanto, sem tal perdão o ministério
tratados (Dt 32.14). Gileade era famosa de Miqueias não teria propósito. Ele te-
por suas boas pastagens (Nm 32.1,26). ria tido a satisfação de dar vazão à sua
Miqueias está pedindo a Deus que renove amargura, mas o povo ficaria insensível
e repita as primeiras bênçãos de Israel. 15 ao seu pecado (cf SI 130.3,4). Ele agora
Deus promete responder a essa oração de lista as qualidades benevolentes de Deus:
acordo com sua vontade. não retém para sempre a sua ira; se de-
16,17 Enquanto reflete sobre as pro- leita na misericórdia; terá compaixão; e
messas precedentes, Miqueias se dá conta mostrarás a Jacó a tua fidelidade. Deus
de que todas as nações verão as maravi- deu mostras dessas mesmas qualidades
lhas de Deus (15) e se envergonharão por quando Israel pecou ao fazer o bezerro
ter apostado sua honra em deuses falsos de ouro, e Moisés pediu a ele que mos-
e impotentes. Porão a mão sobre a boca trasse sua glória (Êx 34.6). 19 Por causa
significa que "se calarão", e os seus ouvi- de sua misericórdia, Deus lançará todos
dos ficarão surdos significa que "não da- os [seus] pecados no fundo do mar, de
rão ouvidos". Quando Deus realizar essas modo que não possam mais ameaçar a
maravilhas, as nações deixarão de insultar existência de Israel, assim como fizera
e escarnecer de Israel e não darão ouvidos com o exército do faraó. 20 Essas quali-
aos boatos sem fundamentos e aos argu- dades também garantem que ele mostrará
mentos vazios de outras nações. 17 As na- a sua fidelidade ao manter a aliança que
ções também renunciarão a seu poder. Os tem jurado a nossos pais desde os dias
reis conquistados lamberão o pó enquanto antigos. Tudo isso é possível por causa de
rastejarem diante do SENHOR. Confrontados Jesus Cristo, que pagou a punição pelos
com o seu poder, elas, tremendo, sairão pecados do povo, e é o "Amém" de Deus
dos seus esconderijos e, tremendo, virão a suas promessas da aliança.
ao SENHOR, nosso Deus, para adorá-lo.
18 Miqueias entrelaça aqui habilmen-
te o seu próprio nome ("quem é como Bruce Waltke
NAUM

INTRODUÇÃO
o profeta Naum àqueles homens, que tinham falado coisas
Tudo que sabemos sobre Naum vem do aviltantes a respeito de meu deus Assur, e
próprio livro. Ele veio de Elcos, embo- que tramaram contra mim, o príncipe que
ra não saibamos onde fica esse lugar. Ao adora a Assur, eu arranquei a língua deles e
menos quatro localizações diferentes já também os humilhei. Como oferenda pós-
foram sugeridas, desde Judá até a Assíria! tuma, destrocei o resto das pessoas vivas
A maioria dos comentaristas toma por cer- com as próprias estátuas das divindades
to que Naum proferiu suas profecias em protetoras, em meio às quais eles destro-
Jerusalém (ou pelo menos em Judá), mas çaram Senaqueribe, meu avô. Com a sua
ele pode ter sido uma das pessoas previa- carne despedaçada eu alimentei cachorros,
mente deportadas de Israel para a Assíria, porcos, chacais, aves, abutres, as aves do
ou espalhadas entre as nações (Jr 23.1-3; céu e peixes das profundezas dos lagos".
Ez 11.16; Jl3.2). Os assírios foram responsáveis pela
O nome Naum significa "consolo", destruição de Samaria, e de todo o Reino
"conforto". A raiz tem o significado de "ser do Norte junto com ela. Em 2Reis 17.5,
aliviado pela vingança" (Is 1.24; 57.6), lemos: "Porque o rei da Assíria passou
algo que seria especialmente apropriado por toda a terra, subiu a Samaria e a si-
no caso de Naum. Conforto e alívio são tiou por três anos". Dá até para imaginar o
trazidos ao povo de Deus quando o Senhor povo cada vez mais faminto, desesperado
se vinga de seus inimigos! e totalmente sem esperança, ao contemplar
Provavelmente Naum viveu pouco an- aquele imenso e invencível exército assí-
tes da destruição do Império Assírio, ga- rio. Eles também sabiam que os soldados
rantida pela queda de Nínive em 612 a.C., desse exército eram cruéis e implacáveis.
episódio sobre o qual ele coloca o seu foco. Eles esfolavam as pessoas vivas - ar-
Ele provavelmente profetizou após a de- rancavam-lhes a pele e arrastavam-nas
vastação de Tebas, situada às margens do com ganchos cravados em sua carne. E se
Nilo, em 663, como parece estar indicado as pessoas ainda não soubessem do que
em 3.8 (v. quadro na página 949). seus inimigos eram capazes, os assírios as
lembrariam cotidianamente (cf o discur-
o contexto histórico so do comandante assírio a Ezequias, em
Nínive era a capital da Assíria, a mais cruel Is 36.4-10). No Museu Britânico há gravu-
e implacável nação do mundo antigo. Os ras entalhadas em pedra, encontradas em
assírios amedrontavam suas vítimas, pois Nínive, que mostram bem o modo como os
não somente destruíam e queimavam as ci- assírios lidavam com as cidades conquis-
dades que derrotavam, como também sub- tadas. Uma delas mostra um amontoado
metiam seus habitantes a diferentes sortes de cabeças humanas. A gravura do cerco
de sofrimento e humilhação. de Laquis mostra três homens empalados
Um de seus reis, Assurbanipal, gabava- em estacas de madeira nos arredores da
se nos seguintes termos sobre alguns cons- cidade, um lembrete terrível aos que ain-
piradores que tinha derrotado: "Quanto da se encontravam presos dentro dela. Os
1255 NAUM • •

11.
cativos eram frequentemente mutilados e minável. A maneira como Naum expressa
tinham as mãos, pés, nariz, orelhas e lín- sua mensagem tem causado certo incômo-
gua cortados. Uma gravura em alto-rele- do a alguns comentaristas mais sensíveis.
vo de Khorsabad mostra carros de batalha O tom é estabelecido logo de início (1.2),
passando por cima de corpos mutilados. quando diz literalmente: "O SENHOR é Deus
Era comum os soldados inimigos serem zeloso e vingador, o SENHOR é vingador e
esquartejados (Na 3.1; cf SI 137.9). As cheio de ira; o SENHOR toma vingança con-
mulheres eram tomadas como espólio, e tra os seus adversários, e reserva indigna-
as que estivessem grávidas tinham seus ção para os seus inimigos".
fetos extirpados. A palavra traduzida por "zeloso" vem
Tendo conquistado uma cidade, os assí- de uma raiz que significa "ardor", "fer-
rios tomavam as medidas que fossem ne- vor", "zelo". Pode indicar ciúme num
cessárias para que não tivessem nenhum mau sentido ou inveja (Gn 26.14; 30.1;
tipo de problema no futuro. Assim, quando 37.11; SI 73.3), mas com maior frequên-
Samaria caiu em 721 a.C., 27 mil de seus cia significa sentir ciúme justificado (e.g.,
habitantes foram exilados, e um número Nm 5.14,30) ou ter o zelo correto (e.g.,
equivalente de deportados de outras nações Nm 11.29; 25.11). As palavras traduzidas
foi trazido para ali. Com isso destruía-se a por "vingador" e "toma vingança" vêm de
unidade bem como a identidade da nação, uma raiz que pode ser usada no sentido
o que dificultava a organização de algum negativo, ou seja, nutrir sentimentos de
tipo de resistência no futuro. vingança em relação ao próximo. Isso é
Podemos ver por que as pessoas fica- proibido por Levítico 19.18 e vai contra
vam (e ainda ficam) preocupadas com a o amor: "Não te vingarás, nem guarda-
ideia de Deus permitir que os assírios exe- rás ira contra os filhos de teu povo; mas
cutassem o juízo em seu nome. Todavia, amarás o teu próximo como a ti mesmo".
a Bíblia diz em várias passagens que os Geralmente, entretanto, como aqui, tais
assírios foram utilizados como instrumen- palavras são usadas com o sentido de
tos do juízo divino. vingança justa (Nm 31.2,3; Dt 32.43).
Naum entra em cena bem depois da "Cheio de ira" indica alguém que está
queda de Samaria. A cidade de Nínive indignado, furioso, fumegando de raiva
caiu em 612 a.C., Naum devendo ser data- (Gn 27.44,45; Dn 8.6).
do um pouco antes disso. Noventa anos é Assim, o livro de Naum é passional. O
um longo tempo para se esperar pelo juízo Deus da Bíblia não é um Deus frio, distan-
de uma nação perversa. Incidentalmente, te e imperturbável como o ideal filosófico
Jonas exerceu seu ministério em Nínive grego. Ele olha para nós, seres humanos,
pouco antes de 721. Ele é mencionado em vê nossa maldade e diz: "Como vocês
2Reis 14.25 (que faz referência ao reinado ousam se comportar dessa maneira em
de Jeroboão 11, 782-753) como tendo pro- meu mundo? Eu os criei, e vocês não têm
fetizado anteriormente. vida nem direito algum de existir longe
Embora o juízo de Deus possa demorar, de mim, absolutamente nenhum futuro, a
ele nunca é esquecido; Deus se importa ar- não ser que estejam em harmonia comigo.
dentemente com o certo e o errado. O livro O que quer que esteja errado no mundo
de Naum mostra isso de modo muito claro. deve ser corrigido - e eu farei com que
isso aconteça".
A mensagem de Naum Ideias desse tipo não são muito ao gos-
Naum é um pequeno livro apaixonante to da pessoa instruída de hoje. O livro de
com esta mensagem central: O Senhor traz Naum nos é um forte lembrete de que Deus
o castigo aos assírios por seu pecado abo- se importa com o seu mundo, e julgará o
.
li
li. NAUM1

pecado. É claro, precisamos nos lembrar


1256

COGGINS, R. J. Israel among the nations:


de que a paixão e a ira de Deus não são Nahum, Obadiah, Esther. ITC. Handsel,
como as nossas. Elas são justas e puras; 1985. Também publicado nos EUA com
em 1.3 temos o corretivo de que precisa- o título Nahum, Obadiah, Esther: Israel
mos: "Javé é tardio em irar-se, mas grande among the nations. Eerdmans, 1985.
em poder". No entanto, o profeta retoma, CRAIGIE, P. C. Twelve prophets. v. 2. DSB.
então, à sua ênfase original: "e jamais ino- Westminster/John Knox Press, 1985.
centa o culpado". ACHTEMEIER, E. Nahum - Malachi.
Westminster/ John Knox Press, 1985.
Leitura adicional AMERDING, C. E. Nahum, Habakkuk em
BOICE,J. M. The minor prophets. 2 v. GAEBELEIN, Frank E., ed. Daniel and
Zondervan, 1983, 1986. the Minor Prophets. EBC. Zondervan,
BAKER, D. W. Naum em BAKER, D.; 1985.
ALEXANDER, D.; STURZ, R. J. Obadias, ROBERTSON,O. P. The books of Nahum,
Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque Habakkuk and Zephaniah. NICOT.
e Sofonias: introdução e comentário. Eerdmans, 1990.
SCB. Vida Nova, 2001.

ESBOÇO
1.1 o título
1.2-8 Um hino ao Senhor
1.9-15 Anúncio de juízo para a Assíria e de salvação para Judá
1.9-11 Juízo para os conspiradores
1.12-14 Futuros contrastantes para Judá e Assíria
1.15 O mensageiro traz boas-novas

2.1-3.19 A queda de Nínive: Descrição e interpretação


2.1-13 Gemidos de morte de Nínive
3.1-4 Ai de Nínive
3.5-19 "Eis que eu estou contra ti," diz o Senhor dos Exércitos

COMENTÁRIO é paciente e pune com muita relutância,


mas não deixará a iniquidade sem a devida
1.1 O título punição. Ela tem de ser tratada (v. acima,
O v. 1 descreve todo o livro como um "orá- na mensagem do livro). Deus é zeloso com
culo" (TB) ou "peso" (ARC). Ver a nota em seu nome. A verdade dessas coisas é con-
Zacarias 9.1. O Livro da visão implica, no firmada também no NT (e.g., Mt 7.21-27;
mínimo, que o profeta viu coisas que não Mc 11.15-17; Rm 1.18-32; Ap 2-3).
eram evidentes aos olhos humanos. Sobre 3b-6 Esses versículos mostram o poder
Nínive e Elcos, ver Introdução acima. de Deus sobre toda a terra. Eles poderiam
facilmente ser incluídos no saltério como
1.2-8 Um hino ao Senhor um salmo de louvor ao Senhor. A grande
2,3a Esses versículos nos dizem que Deus preocupação de Naum é com o que está
é um Deus que toma vingança, mas somen- por vir. Nós sabemos por meio de Isaías
te de acordo com aquilo que é correto. Ele que os assírios atribuíam suas vitórias so-
1257 NAUM1 (


bre as nações a seu próprio poder, força e Basã e Carmelo (4), juntamente com
deuses (Is 10.12-18; cf Sf2.13-15). Naum o Líbano, eram as áreas arborizadas mais
descreve Deus em relação a vários fenôme- exuberantes da Palestina. O Líbano era
nos naturais impressionantes e amedronta- famoso por suas grandiosas árvores. Mas
dores. Comparado a isso, os assírios e seus diante do Senhor, sua exuberância se mur-
deuses são completamente insignificantes. cha. Os sólidos e resistentes montes tre-
O v. 6 contém quatro palavras para ira mem perante ele (5). Isso sugere a ideia de
(juror da sua ira é literalmente "a ira [ar- tremor tanto por medo quanto por arreba-
dente] de sua ira"!). Assim, essa repetição tamento (cf Ez 12.18). A terra fica devas-
indica uma forte ênfase, como nos v. 2,3a. tada diante dele, o mundo e todos os que
As pessoas da época de Naum (com nele habitam. Naum provavelmente estava
exceção das que eram muito ricas e im- pensando nas consequências de algumas
portantes) construíam suas casas com ti- tempestades ou talvez inundações que ele
jolos de barro secados ao sol; os telhados já tinha visto ou sobre as quais tinha ouvi-
eram feitos de vigas de madeira e galhos, do falar.
cobertos com uma camada de argila e cal. 7,8 Aqui temos algo parecido com o v.
Durante as tempestades eles tomavam 3a: uma declaração da bondade de Deus,
consciência de sua pequenez frente ao po- fazendo um contrapeso ao tema principal,
der da natureza. No entanto, diz Naum: o e um rápido retomo a este. O SENHOR é bom,
SENHOR tem o seu caminho na tormenta e éfortaleza no dia da angústia e conhece os
na tempestade; ali ele se sente totalmen- que nele se refugiam. Com frequência, a
te à vontade, é por ali que ele passeia. As palavra "conhece" no AT significa não ape-
nuvens, que nos parecem tão grandes, são nas conhecimento intelectual, mas preocu-
o pó dos seus pés. Os israelitas não eram pação em cuidar de algo (e.g., Êx 33.12;
um povo acostumado com à vida marítima, SI 103.13,14). A NVI introduz "Nínive"
e o mar lhes era algo assombroso. Mesmo nesse versículo (como também em 1.11,14;
hoje, com todo o nosso conhecimento e 2.1). O próprio profeta não menciona esse
tecnologia, alguns navios ainda se perdem nome até 2.8, possivelmente para gerar
em meio aos oceanos. Mas Deus repreende questionamento e tensão em seus ouvintes,
o mar e o faz secar. e um impacto maior quando o nome for fi-
Pelo menos duas alusões merecem nalmente revelado.
ser mencionadas aqui. Há uma referência
ao passado, à travessia do mar Vermelho,
1.9-15 Anúncio de juízo para a
que permitiu que os israelitas escapassem Assíria e de salvação para Judá
(e afogou o exército egípcio que tentava
impedi-los), bem como uma referência à 1.9-11 Juízo para os conspiradores
travessia do rio Jordão, quando Josué lide- 9 Aqui temos um novo começo. Tendo de-
rou o povo de Israel para entrar na terra de fendido em detalhes a tese de que é mui-
Canaã. Em ambos os casos, Deus conteve to melhor estar ao lado do Senhor do que
as águas para permitir que o povo passasse. contra ele, Naum agora volta a se dirigir
Quando Jesus acalmou as ondas no mar da aos inimigos (como na NVI mg): Que pen-
Galileia (que era e ainda é célebre por suas sais vós contra o SENHOR? Ele mesmo vos
tempestades imprevisíveis e violentas), ele consumirá de todo; não se levantará por
estava indiretamente mostrando sua divin- duas vezes a angústia. Observe que não
dade (Me 4.35-41). Os discípulos se per- deve ter sido muito fácil para os ouvintes,
guntavam: "Quem é este que até o vento e que ouviam Naum pela primeira vez, sa-
o mar lhe obedecem?". Quem poderia ser, ber a quem ele estava se referindo. Nínive
senão o Senhor, o próprio Javé? não tinha ainda sido mencionada (isso só
NAUM 1 1258

ocorre em 2.8), e Judá não é mencionado assino, e eles saberão que seus deuses
diretamente antes do v. 15. nada são. Vil, aqui, significa "insignifican-
10 Esse versículo é difícil de ser tra- te", "sem valor algum."
duzido. Se a NVI estiver correta, temos Vale a pena nos perguntarmos o que
três imagens diferentes de infortúnio: seria, nos dias de hoje, o equivalente aos
"entrelaçados como espinhos" e incapa- deuses assírios, que forneceriam coisas
zes de se mover; cambaleantes por esta- desejáveis como poder, segurança, riqueza
rem "encharcados de bebida", incapazes e luxo. Para alguns, talvez seja a empre-
de se controlar ou de defender a si mes- sa para a qual trabalham, que recompensa
mos e com uma ressaca ainda por vir (cf grandemente quem lhe presta obediência
SI 107.27; Pv 23.29-35; Is 29.9); e "con- cega e permanece útil, mas arruína os que
sumidos" ["queimados"] rapidamente. se recusam a se enquadrar. Por poderosos
Uma alternativa possível seria: Pois em- que possam parecer esses falsos deuses
bora sejam como espinhos entrelaçados, e com que deparamos, é bom termos cons-
estejam ensopados como se tivessem mer- ciência de que seu poder é ilusório e pas-
gulhado em sua própria bebida, eles serão sageiro, e que somente o Senhor é Deus
completamente devorados como restolho sobre tudo.
seco. Em outras palavras, embora eles pa-
reçam encharcados e imunes ao fogo, o 1.15 O mensageiro traz boas-novas
fogo do Senhor certamente os consumirá. Esse é um versículo de transição entre o
11 Acredita-se que isso seja uma referência anúncio geral dos propósitos de Deus e a
a Senaqueribe, o rei assírio que se colocou descrição do destino de Nínive. É seme-
contra Deus quando destruiu 46 cidades de lhante ao célebre versículo de Isaías 52.7
Judá e sitiou Jerusalém em 701 a.c. (Is 40.9 também apresenta algumas seme-
lhanças). O NT faz referência a ele em Atos
1.12-14 Futuros contrastantes 10.36 e Romanos 10.15. Ele expressa de
para Judá e Assíria forma poética o fato de que a vitória foi
12,13 Aqui encontramos o primeiro discur- alcançada. Os pés do que traz boas-novas
so direto dirigido aJudá (a NVI acrescenta pertencem ao mensageiro: a batalha está
"mas, você, Judá" para deixar isso bem ganha, a opressão terminou e a paz pode
claro). Na profecia hebraica, há frequentes ser restabelecida. Celebra as tuas festas, ó
mudanças da pessoa a quem a profecia se Judá, ou seja, desfrute das celebrações da
dirige. Assim diz o SENHOR, por poderosos vitória nas quais as ofertas de ação de gra-
que os assírios sejam, eles serão extermi- ças serão sacrificadas e os adoradores co-
nados e passarão; eu te afligi [Judá] mas merão sua carne. Cumpre os teus votos se
não te afligirei mais. O jugo de Judá (a refere aos votos que costumavam preceder
marca da servidão) e os laços (o sinal do as batalhas. Provavelmente o mais conhe-
cativeiro) serão quebrados. 14 O profeta cido, e certamente o mais estúpido, tenha
novamente se volta para Nínive/ Assíria, sido o voto de Jefté (Jz 11.30-31).
dizendo: O SENHOR deu ordem. Isso res-
salta a firmeza da decisão. Que não haja 2.1-3.19 A queda de Nínive:
posteridade que leve o teu nome signifi- Descrição e interpretação
ca literalmente: "seu nome não será mais O primeiro trecho, 2.1-12, nos dá uma des-
propagado". O fato de uma linhagem ser crição vívida, embora caótica, dos ninivi-
exterminada era considerado uma grande tas lutando desesperadamente para sobre-
maldição (cf SI 37.22,28-38; Is 48.19). O viver a um ataque, mas sem sucesso. Eles
Senhor exterminará tanto as imagens de passam por grande aflição, e seus corações
escultura quanto as de fundição do templo começam a pesar, enquanto o inimigo sa-
1259

NAUM 2 - : '

queia sua cidade. O v. 13 retoma dois dos ros ficavam maiores, o povo no interior da
itens mencionados nos versículos anterio- cidade construía rampas internas. É claro
res: os "carros" de guerra que se chocavam que o invasor no final venceria, pois não
entre si na tentativa de evitar que os muros somente tinha acesso a uma maior quanti-
da cidade fossem queimados (4) e os "leõe- dade de material, como também dispunha
zinhos", que antes recebiam as presas em de mais espaço para construir rampas mais
suas tocas, mas que delas serão removidos altas. Em todo caso, essa é uma maneira de
à espada, e cujo suprimento de comida será descrever a intensa atividade de ambos os
cortado (11,12). lados. Os invasores, do lado de fora, cons-
A razão dessas consequências é decla- truindo rampas cada vez mais altas, vigian-
rada no início do v. 13: "Eis que eu estou do para que ninguém escapasse por elas e
contra ti". O mesmo padrão de descrição- se preparando para o ataque final, sentindo
acrescida-de-oráculo ocorre novamente que a vitória estava próxima. E os que se
nos versículos seguintes. O trecho de 3.1- defendiam da invasão, enfraquecidos pela
4 descreve a cidade sanguinária, e em 3.5 falta de alimentação e água, tentando de-
o Senhor diz, novamente: "Eis que eu es- sesperadamente reunir suas últimas forças
tou contra ti". O discurso direto dirigido a para retardar a derrota final, a humilhação
Nínive continua até o final do capítulo (e e a tortura.
do livro). Esse tipo de padrão repetitivo 2 Esse versículo está entre parênteses.
é frequentemente encontrado na literatura Ele apresenta as razões de tudo isto estar
hebraica. Muitos estudiosos o consideram acontecendo: Porque o SENHOR restaura a
uma forma eficaz de trazer à atenção al- glória de Jacó, como a glória de Israel e,
gumas ênfases. portanto, seus opressores devem ser jul-
gados. A seguinte tradução também seria
2. 1-13 Os últimos possível: "O Senhor está restaurando a
suspiros de Nínive dignidade de Israel", o que poderia sig-
Nesse ponto não encontramos uma sequên- nificar que não havia mais necessidade
cia cronológica dos acontecimentos, mas de punição e, por isso, Nínive podia ser
uma série de pequenas descrições que pro- dispensada.
curam retratar o cenário dos últimos dias 3-5 O profeta retoma agora a descrição
de Nínive. do cerco. Há duas maneiras de se enten-
Nínive é tratada diretamente (a NVI der isso. A primeira é tomar os v. 3,4 como
apresenta o nome como parte do contex- uma referência aos babilônios, que cons-
to; cf v. 8). O destruidor (lit. "aquele que tituem uma visão terrivel. Eles já se en-
dispersa") sobe contra ti é uma referência contram dentro da cidade, ou então correm
à Babilônia, que havia sido conquistada pelas ruas e praças dos subúrbios fora dos
pela Assíria. A Assíria, que havia disper- seus muros. No v. 5, eles se aproximam do
sado muitas outras nações, está prestes a muro sob a proteção de seu escudo (testu-
ser dispersada ela mesma. Guarda a for- do inimigo), para minar seus alicerces. O
taleza significa lit. "Guarda as rampas ou v. 5a pode também ser uma referência um
o forte". Rampas eram enormes montes tanto abrupta à ação do comando assírio no
de terra colocados fora dos muros da ci- interior de Nínive, ou então tropeçam em
dade para ajudar as tropas inimigas a pas- seu caminho pode simplesmente significar
sar pelos muros. Assim, é de esperar que a pressa dos invasores em alcançar as mu-
fossem construídas pelas tropas que esta- ralhas e terminar sua tarefa. Uma outra al-
vam sitiando a cidade. É possível, entre- ternativa seria pensar que os v. 3-5 podem
tanto, que isso se refira a rampas internas. ser uma descrição do tumulto dos ninivitas
À medida que as rampas de fora dos mu- no interior da cidade, correndo do lugar de
11
. : . NAUM 3 1260

maior perigo. Os carros de guerra descritos por muito derramamento de sangue. As


nos v. 3,4 parecem impressionantes, mas referências a roubo e presa, que também
se encontram em grande confusão. têm conexão com batalha e matança, são
6 As comportas dos rios é uma refe- compreensíveis. Mas por que são mencio-
rência natural aos pontos de entrada dos nadas mentiras? Provavelmente porque o
vários canais ao redor de Nínive. Talvez ato de mentir caracteriza os que se opõem
isso possa se referir de alguma maneira ao ao Senhor, o Deus da verdade. Os ídolos
papel desempenhado pelo rio na queda da são considerados enganadores, mentirosos
cidade. O rio, que se constituía em uma e falsos. Isso é um lembrete e uma adver-
poderosa proteção para a cidade, toma- tência ao leitor de que o ato de mentir é
ra-se um inimigo. Destruído significa lit. muito mais sério do que nossa sociedade
"derretido" e poderia significar também moderna jamais admitiria.
"abatido". 7 O hebraico é obscuro, mas o 2-4 O profeta continua com uma des-
sentido geral dos v. 7-12 é muito claro: crição vívida, embora ambígua, de uma
o povo da cidade é levado para o exílio; e batalha (2,3). Poderia ser uma descrição
até mesmo as jovens escravas lamentam de um ataque assírio a outras nações mo-
seu destino; as riquezas de Nínive são tivado por sua grande prostituição (4).
saqueadas, e as pessoas ficam aterroriza- Outra alternativa seria considerá-la a des-
das diante do que pode lhes acontecer nas crição de um ataque à Assíria causado por
mãos dos babilônios. sua grande prostituição. De todo modo, o
11-13 Nínive é apresentada como um v. 5 continua a falar do juízo em virtude
covil de leões para onde o leão (Assíria) de tal procedimento. O termo prostituição
leva o resultado de sua violência em meio ou "maus desejos" é usado muitas vezes
às nações. A família do leão tem um lar para Israel, indicando infidelidade a Javé.
seguro e uma farta alimentação em seu Quando aplicado ao contexto de alianças
covil, mas e agora? A razão da queda de políticas, significa crer em outros poderes e
Nínive pode ser explicada de forma muito (consequentemente) não confiar em Deus.
simples: Eis que eu estou contra ti, diz o Tal política externa levou à corrupção da
SENHOR dos Exércitos. O versículo, então, adoração ao Senhor, pela influência des-
faz uma recapitulação das duas principais sas outras nações, que aos olhos do povo
imagens da descrição anterior: a derro- pareciam ter deuses poderosos e costumes
ta na batalha e a destruição dos leões. Os atraentes. A referência a feitiçarias talvez
embaixadores seriam aqueles enviados signifique bruxaria no sentido literal, ou
para exigir a rendição e/ou tributos das talvez se refira às artes da política e da di-
nações (cf 2Rs 18.19-35; 19.8-14). Esse plomacia, que agem sobre as nações como
versículo com certeza nos faria tremer. "Se um encanto.
Deus é por nós, quem será contra nós?"
(Rm 8.31). Mas e se Deus estiver contra 3.5-19 "Eis que eu estou contra ti, 11

nós, qual seria a utilidade de ter aliados? diz o SENHOR dos Exércitos
Pudemos notar essa declaração aterradora
3. 1-4 Ai de Nínive em 2.13. Aqui, ela introduz um discurso
1 Ai era um lamento que os profetas ge- mais extenso a Nínive, que combina a des-
ralmente proclamavam contra aqueles que crição do juízo com as suas razões.
Deus estava para julgar. Era usado sobre- 6,7 Levantarei as abas de tua saia so-
tudo como um lamento pelos mortos, e bre o teu rosto, e mostrarei às nações a tua
sempre indicava algum tipo de calamida- nudez indica desgraça e um juízo apropriado
de muito séria. A cidade sanguinária ob- pelo orgulho. Como a prostituta "descobre
viamente é Nínive, que fora responsável sua nudez" (uma expressão que significa
1261 NAUM3/
••
relação sexual em passagens como Lv 18.6- mem embriagado cambaleia pela cidade
23) ao exercer a prostituição, assim tam- totalmente desorientado, impotente e in-
bém o juízo envolve descobrir a "nudez" defeso. Incapaz de lutar, o povo de Nínive
de Nínive. Pode ser uma referência à práti- tentará encontrar um lugar para se escon-
ca de expor publicamente a nudez de uma der e procurará se refugiar.
prostituta ou de uma adúltera (Ez 16.37-41; 12-18 Seguem várias imagens nes-
cf Is 20.2-4; Jr 13.22,26). Lançarei sobre ses versículos. Todas as tuas fortalezas
ti imundícias, tratar-te-ei com desprezo e são como figueiras carregadas de frutos
te porei por espetáculo (6), tudo isso para maduros (12). Uma sacudida na árvore
ressaltar que do mesmo modo que Nínive fará com que os figos caiam diretamente
não mostrou piedade, ninguém terá pieda- na boca do que os há de comer. O povo
de dela. A pergunta retórica no v. 7 implica de Nínive é tão vulnerável quanto esses
que não haverá ninguém para confortá-la frutos. As tropas de soldados são como
ou pranteá-la. mulheres (13). Não como mulheres das
8,9 Esses versículos descrevem a glória modernas forças armadas, fisicamente
de Tebas (lit. "Nô-Amom"), uma cidade fortes e treinadas, mas como as mulheres
que no passado fora grande, mas veio a su- daquela época, as quais nunca se espe-
cumbir. Amom era o nome do deus adorado rava que se envolvessem em batalhas e
em Tebas, a quem a cidade supostamente que, por isso, não recebiam treinamento
pertencia. És tu melhor do que Nó-Amam e eram indefesas. As portas do teu país
significa: "Há algum motivo para que seja estão abertas - elas não mais oferece-
diferente com você?". Tebas foi a mais fa- riam proteção contra os inimigos.
mosa cidade do Egito, de 1580-1205 a.C. Nínive é comparada a uma cidade bem
Era adornada por magníficos monumentos, defendida sob cerco (14,15a). Eles têm
e até hoje suas ruínas são admiráveis. Na água, defesa sólida e repararam suas bre-
parte oriental do Nilo ficava a cidade dos chas. Mas o fogo os consumirá e a espa-
vivos; na parte ocidental ficava a enorme da os exterminará. Os príncipes e os che-
necrópole ou cidade dos túmulos e mo- fes assírios são comparados a gafanhotos
numentos aos mortos. Também contava (15b-17). Eles parecem estar por toda par-
com um grande porto artificial. O rio Nilo te, mas, de repente, desaparecem. Há uma
aparentemente se dividia em quatro canais semelhança com a promessa feita a Abraão
de pouca profundidade nesse ponto, o que (Gn 15.5; 22.17). Embora os assírios pare-
explicaria o significado literal da parte se- çam ser tão bem-sucedidos quanto os des-
guinte do versículo: que estava situada en- cendentes de Abraão, somente a aliança
tre o Nilo e seus canais, cercada de águas. com Deus garante o sucesso contínuo. O
Tebas tinha sido o centro de um grande v. 18 diz que os pastores estão dormindo
império que se estendia do norte da Síria (isto é, os líderes estão mortos) e, portan-
até a Núbia, mas havia sucumbido (10); o to, eles são incapazes de reunir as ovelhas
mesmo acontecerá com Nínive (11). desgarradas dos assírios.
10,11 Seus filhos foram despedaçados. 19 A palavra final é que não haverá ne-
Há referências a essa prática brutal em nhuma amenização do sofrimento, nenhu-
2Reis 8.12; Isaías 13.16 e Oseias 13.16. ma compaixão pela Assíria. Ao contrário,
Tomavam as crianças e arremetiam suas haverá muita alegria e comemoração por
cabeças contra um muro ou pedras. O ob- parte de todos aqueles que ouvirem a res-
jetivo era exterminar toda a população, e peito da queda de Nínive, por terem todos
essa era a razão para extirpar os fetos das já experimentado sua maldade incessante
mulheres grávidas (cf Am 1.13). Também (v. Ez 25.6 para a expressão "baterão pal-
tu, Ninive, serás embriagada (11). Um ho- mas" como um gesto maldoso associado
llII
1lII. NAUM 3 1262
IlIIIl11

à alegria pelo sofrimento). Não haverá castigo. Também nos adverte em relação
tristeza quando o mal for finalmente des- ao nosso próprio pecado e nos encoraja,
truído. a juízo de Deus será visto como quando nos encontrarmos oprimidos por
absolutamente correto. Não haverá um só grandes males, a lembrar que Deus sem-
traço de remorso ou falha. Isso, para nós, pre terá a última palavra. Precisamos nos
é algo dificil de aceitar. Como poderia não lembrar dessa mensagem nos momentos
haver tristeza, se muitas pessoas acabariam em que aqueles que nos perseguem pare-
no inferno? É claro que haverá tristeza - cem "aumentar como gafanhotos" ou, por
como é retratado pela imagem do pranto outro lado, naqueles momentos em que
pela Babilônia em Apocalipse 18 (a qual é pensamos estar alcançando sucesso com
substituída por uma imagem de alegria em um comportamento que não honra a Deus.
Ap 19). Todos os efeitos do mal desapare- a livro de Naum pode ter um escopo limi-
cerão no final. tado, mas sua mensagem é vital.
Assim, o livro de Naum nos diz de
forma bem direta que o mal receberá seu Mike Butterworth
HABACUQUE

INTRODUÇÃO
Quem foi Habacuque? dos, embora estejam tratando os justos com
Habacuque é uma figura obscura. Seu livro injustiça? Habacuque não ora pelo alívio
nada diz a respeito de sua genealogia ou de do sofrimento (cf SIlO; 12 etc.), ele per-
quando profetizou. Fala apenas de seu pa- gunta por que o juízo não vem.
pel como profeta, um intermediário entre O questionamento de Habacuque não
Javé e Israel. Seu nome é evidentemente diminui sua fé em Deus, com quem ele
hebreu, mas reflete a influência dos meso- desfruta de uma ligação pessoal (1.12).
potâmios, que dominaram Israel do século Ele tem consciência do poder sublime
IX ao VI a.c. Na língua acadiana, seu nome do Rei e Criador do universo (3.16), mas
significa uma planta ou árvore frutífera. também sabe que Deus se importa com ele
Na tradição judaica mais tardia do li- (3.17,18). Habacuque nos ensina que ques-
vro apócrifo "Bel e o Dragão", Habacuque tionar a Deus é algo aceitável; é a recusa
aparece na história como aquele que levou de confiar em Deus que causa nossa ruína.
comida a Daniel na cova dos leões. Devido
à notação musical (3.1 e 3.19) e à forma do o contexto histórico
salmo em Habacuque 3, alguns estudiosos Não nos é fornecida nenhuma data para es-
têm sugerido que ele era levita, tribo liga- sas profecias, embora seja possível atribuir
da à música (Ed 3.10; Ne 12.27). Esse fato uma data aos eventos referidos. Alguns
também encontra apoio em um manuscrito estudiosos têm sugerido uma composi-
que identifica seu pai como Jesus, um levi- ção tão tardia quanto o século II a.c., mas
ta. Outros sugerem que ele era um oficial a necessidade de se reescrever o text; de
da corte ou um profeta do templo. Todas 1.6 para sustentar essa hipótese é um lor-
essas sugestões são especulativas e não te argumento contra ela. Como' o temos
apresentam nenhuma evidência concreta. agora, 1.6 prenuncia a iminente invasão
Enquanto a identidade de Habacuque da Babilônia. A nação que anteriormente
não é certa, sua personalidade é clara. Um dominava Israel era a Assíria, cuja capital,
sincero e devotado seguidor de Javé, que Nínive, caiu nas mãos dos babilônios em
não somente se submetia à vontade de 612 a.C. Estes consolidaram seu domínio,
seu Senhor, mas também o confrontava estabelecendo o Império Neobabilônico
quando achava que Deus estava ignoran- ao derrotar uma aliança encabeçada pelo
do suas próprias promessas. Assim como Egito, em Carquemis, na Síria, em 605
Jó, Habacuque não hesita em questionar a a.c. (Jr 46.2). Por fim, os babilônicos ata-
Deus, em uma forma de literatura conhecida caram Jerusalém, saqueando-a e destruin-
como "teodiceia", Ele, entretanto, questio- do o templo em 587 a.c. Uma vez que o
na a Deus por razões diferentes. Enquanto profeta prevê esse acontecimento no texto,
Jó defende sua inocência, perguntando por ele evidentemente foi escrito, ou sua men-
que, mesmo sendo inocente, ele é punido, sagem transmitida, antes disso. A própria
Habacuque pergunta justamente o oposto: queda da Babilônia nas mãos de Cim.rei
uma vez que os perversos claramente não da Pérsia, em 539 a.C., também é prenun- ,
são inocentes, por que eles não são puni- ciada (v. quadro na página 949).
HABACUQUE 1264

o livro e sua mensagem (3.1,19), uma possível indicação de que,


A profecia se divide em duas seções: um em determinada época, ele teve existência
diálogo com Deus (cp. 1 e 2) e um hino de independente. O comentário de Habacuque
louvor (cp. 3). O diálogo compreende duas nos manuscritos de Qumran discute os dois
perguntas de Habacuque a Deus, cada qual primeiros capítulos, mas não o terceiro, su-
com sua respectiva resposta. A primeira gerindo sua inclusão posterior. No entanto,
se refere à lentidão de Deus em punir os o argumento não é forte o bastante, uma
perversos em meio ao povo escolhido (1.2- vez que o capítulo está incluído tanto na
4). Permitiria ele o pecado? A resposta de LXX como em outros textos antigos. Quer o
Deus é que os babilônios em breve trarão o próprio profeta tenha composto o hino quer
juízo aos transgressores (1.5-11), uma pos- o tenha adaptado de uma fonte anterior, ele
sível referência à destruição de Jerusalém se encaixa com perfeição em seu contexto
e do templo em 587 a.c. Entretanto, essa canônico para expressar o relacionamento
resposta não diminui a perplexidade de que Habacuque tinha com seu Deus, e o
Habacuque, uma vez que a cura parece ser livro só pode ser lido e plenamente apre-
excessiva para a doença. Embora os per- ciado se o hino for mantido intacto.
versos de Israel fossem maus, os cruéis, De certo modo, a função e a mensagem
ferozes e desumanos babilônios eram mui- de Habacuque são o oposto daquilo que
to piores. Certamente há uma despropor- normalmente encontramos nos profetas.
ção entre os pecados de Israel e o juízo de Em vez de censurar ou repreender Israel
Deus (1.12-17). Entretanto, Deus mostra em nome de Deus, ele confronta o próprio
que esse não será o fim. Seu povo merece o Deus, pedindo uma prestação de contas de
juízo, mas os babilônios não estão isentos seus atos, ou da ausência deles. A aliança no
de culpa, uma vez que suas barbaridades monte Sinai foi feita por duas partes, Deus
também receberão o juízo de Deus (2.2- e Israel, e nenhuma delas pode ignorar suas
20), numa alusão à conquista da região pe- obrigações. Habacuque lembra a Deus das
los persas, em 539 a.c. maldições prometidas caso Israel não cum-
Faz-se um contraste agudo entre os ar- prisse suas obrigações (Dt 28.15-68), mal-
rogantes e pervertidos babilônios e os israe- dições que parecem estar por vir há muito
litas de conduta reta (2.4). Esse versículo, tempo. Ele confia plenamente que Deus
especialmente sua segunda metade, é sem ouvirá suas orações e agirá com poder em
dúvida o mais conhecido do livro. Não pelo relação a Israel e à Babilônia. Está tão cien-
fato de as pessoas estarem familiarizadas te da justiça de Deus que, mesmo sem uma
com Habacuque, mas por ele ser citado resposta, e ainda que Deus não abençoe o
várias vezes no NT, no livro de Hebreus povo em geral ou Habacuque em particular,
(10.38) e pelo apóstolo Paulo (Rm 1.17; ainda assim ele é digno de louvor.
G13.11). Foi debatendo-se na interpretação
desse versículo que Martinho Lutero veio Habacuque para os dias de hoje
a questionar a doutrina da justificação que Muitos encaram essa atitude de questionar
então predominava, o que veio, ao final, a a Deus como pecado, mas Habacuque e Jó
precipitar a Reforma Protestante. mostram não ser esse o caso. Momentos di-
Por considerar Deus justo, ao contrário fíceis na vida podem gerar dúvidas e perple-
do que à primeira vista parece o caso, no xidades legítimas, e Deus não condenou a Jó
cp. 3 Habacuque o louva por sua provisão, nem a Habacuque por expressar essas dúvi-
sabendo que podia confiar nele (3.17,18). das. Somente por meio de um diálogo aberto
A localização do terceiro capítulo no livro é que os mal-entendidos e as diferenças são
levantou um problema. Esse capítulo tem o resolvidas. Mesmo hoje, é preferível que
título e a conclusão próprias de um salmo expressemos nossas irritações a permitir
que envenenem o nosso espírito, even-
1265 HABACUQUE 1 <
meio de atos de entidades nacionais, como
tualmente convertendo-se em amargura. no caso de Habacuque, quer por meio de
Ainda que uma resposta possa não vir de delitos individuais, Deus estará presente.
imediato (2.1), ou possa ela mesma causar
alguma consternação (1.12-17), Deus não Leitura adicional
proíbe o questionamento legítimo. GOLDSMITH, M. Habakkuk and Joel: God is
Deus sabe o fim desde o começo (Is Sovereign in History. Marshalls, 1982.
46.10). Ele não age secretamente, mas reve- CRAIGIE, P. C. Twelve prophets. v. 2. DSB.
la a si mesmo a seus servos (Am 3.7). É im- Westminster/John Knox Press, 1985.
portante se dirigir ao grande e maravilhoso BOICE, 1. M. The minor prophets. 2 v.
Deus com todo o respeito que lhe é devido Zondervan, 1983, 1986.
(Hb 3.16), mas ainda assim podemos nos BAKER, D. W. Habacuque em BAKER, D.;
dirigir a ele. O consolo aguarda o cético, ALExANDER, D.; STURZ, R. 1. Obadias,
o questionador ou o sofredor, pois uma Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque
parte do que Deus é envolve salvação e au- e Sofonias: introdução e comentário.
xílio para os seus (3.19). Nós, assim como SCR Vida Nova, 2001.
Habacuque, esperamos sua resposta para ROBERTSON, O. P. The books of Nahum,
nossas dúvidas e necessidades, não apenas Habakkuk and Zephaniah. NICOr.
porque Deus se encontrou com Habacuque Eerdmans, 1990.
no primeiro milênio antes de Cristo (3.13- BRUCE, F. F. Habakkuk em MCCOMISKEY,
15), mas também porque ele já encontrou T., ed. The minor prophets. v. 2. Baker
a nós, em nosso passado que se aproxima Book House, 1993.
do terceiro milênio depois de Cristo, e o ACHTEMEIER, E. Nahum - Malachi. John
fará novamente. Quer o problema surja por Knox, 1986.

ESBOÇO
1.1 Título
1.2-2.20 Diálogo com Deus
1.2-4 Problema: Por que os perversos não são punidos?
1 .5-11 Resposta: Aproxima-se o juízo do perverso
1.12-17 Problema: O remédio não é pior do que a doença?
2.1 Esperando uma resposta
2.2-20 Resposta: Aproxima-se o juízo do perverso

3.1-19 Salmo de petição e louvor


3.1,2 Solicitação pela contínua presença ativa de Deus
3.3-15 A mão de Deus na história
3.16-19 Tremendo, porém confiante

COMENTÁRIO ta-voz de Deus. Deus não é especificamen-


te mencionado na introdução (cf Jn 1.1;
1.1 Título Mq 1.1; Sf 1.1; Mll.l), mas uma sentença
Em uma das mais curtas introduções dos nesse contexto indica ser esta uma mensa-
livros proféticos, Habacuque, citado na gem profética de Deus (cf e.g., Ez 12.10;
Bíblia somente aqui, é um profeta, um por- Na 1.1). Não necessariamente uma men-
II1II
II1IIl1li HABACUQUE 1 1266
.II1II

sagem verbal, esta é antes uma revelação clama por castigo, como exige a própria
mais geral, recebida pelo profeta em uma aliança de Deus. Ainda que a perversidade
visão (cf Mq 1.1). dos vizinhos pagãos precise ser confron-
tada, o povo de Deus hoje, bem como na
1.2-2.20 Diálogo com Deus época de Habacuque, é muito tolerante
Ao contrário de outros profetas que leva- com coisas que ocorrem em seu meio e
vam as mensagens de Deus ao povo, Haba- que são claramente contrárias à vontade de
cuque se dirige a Deus diretamente com Deus revelada nas Escrituras e na criação.
duas perguntas, às quais Deus responde. Enquanto procuramos restaurar o pecador,
frequentemente toleramos o pecado, ou
1.2-4 Problema: Por que 05 pelo menos tentamos reduzir a gravidade
perversos não são punidos? de suas consequências negativas. A falta
Em forma de um lamento tradicional, o de confrontação, em vez da restaurar o pe-
profeta pergunta a Deus até quando ele cador, tacitamente lhe dá permissão para
tem de pleitear sua causa antes que ele continuar em pecado (cf 1Co 5). Um filho
responda (cf SI 13.1,2). Será que Deus de Deus é alguém chamado para enfrentar
seria capaz ou estaria disposto a salvá-lo a injustiça publicamente, seja ela corpora-
da violência opressora? Habacuque, assim tiva, social ou política, mas essa confron-
como Jó, não hesita em questionar a Deus tação será vazia se o mal não for reprimido
quando sua compreensão teológica dele dentro da comunidade dos fiéis. Existe,
e de seu modo de agir não corresponde à mesmo hoje, uma grande necessidade de
realidade que ele testemunha. profetas que não comunguem com o "pe-
O infortúnio sobrevém de modo severo cado seguro", mas insistam em que esse
ao servo de Deus, numa sucessão de de- pecado seja erradicado.
sagradáveis sinônimos. O que realmente
aborrece o autor não é o infortúnio em si, 1.5-11 Resposta: Aproxima-se o
mas sua causa. Normalmente a fonte dos juízo do perverso
infortúnios são os inimigos externos, pes- O pedido de Habacuque por justiça será
soais ou nacionais, mas aqui essa fonte é logo respondido, ainda no seu tempo (em
interna, é o perverso, elemento impenitente vossos dias), e a resposta será assustado-
que se encontra em meio ao povo de Israel. ra. Ela ocorrerá entre as nações. A LXX,
Enquanto alguns propõem os assírios para ao alterar uma letra do hebraico, traz aqui
o papel do perverso, o que se adapta mui- o termo "escarnecedores" ou "traidores".
to bem ao contexto da profecia, uma outra A incredulidade do autor surge diante da
alternativa explica o afrouxamento da lei, identidade do instrumento de Deus para
que é generalizado. Essa influência re- o juízo, os caldeus. Conhecidos por sua
guladora fora concedida ao próprio povo impulsiva ferocidade, eles expropriarão
de Deus para a orientação da sociedade a todos.
(Êx 18.16,20; Is 2.3), e a Assíria, claro, não O problema de Habacuque em relação
estava sujeita a essa orientação. Agora, a aos caldeus é dúplice. Eles são um povo
justiça em Israel, em vez de ser um símbo- arrogante, que não aceita orientação alheia
lo da justiça divina (Am 5.24), é notavel- nem teme oposição militar. Promovem sua
mente omissa ou, ainda pior, torcida. própria dignidade, seguem seu próprio
Na época de Habacuque, como nos dias direito. No comando de poderosas forças
de hoje, grandes problemas de injustiça ofensivas, seus cavalos são comparáveis
podem ser encontrados em meio ao povo a feras e pássaros notórios por sua feroci-
de Deus. Em vez de condenar o pecado, dade, voracidade e velocidade. Esses dois
ou pedir que este seja ignorado, o profeta elementos, orgulho e ferocidade, fazem
parte da identificação que esse povo faz de
1267 HABACUQUE 2 <
tantes dos padrões exigidos por Deus, que
si mesmo, uma vez que adoram seu pró- o profeta só pode exprimir surpresa ante o
prio poder. fato de Deus até mesmo olhar para eles.
Habacuque é audacioso o suficiente não
1.12-17 Problema: O remédio apenas para confrontar a Deus a respeito
não é pior do que a doença? de suas ações, mas também para culpá-lo
Em vez de se alegrar com a resposta de de desumanizar a humanidade (14-17).
Deus ao seu salmo de lamento, Habacuque No princípio, Deus criou o homem à sua
entoa outro salmo do gênero. Ele pergunta própria imagem (Gn 1.26; 5.1) e ele é o
como, diante de seu caráter de santidade e ponto mais sublime da sua criação. Agora,
justiça, Deus pode tolerar um juízo que em metaforicamente, ele o degrada, transfor-
si mesmo parece injusto. mando-o em criaturas inferiores, como os
Habacuque parte da crença fundamen- peixes do mar e os répteis (cf Gn 1.26-28).
tal de que Deus não é apenas Santo e eter- Se Deus despojar Israel de sua humanida-
no, mas também está comprometido com de, os caldeus não podem ser condenados
seu povo, Israel, por meio da aliança. Isso por tratá-lo como objeto de diversão, como
se toma claro pelo uso de seu nome pessoal peixes para o anzol e para a rede. Eles até
na aliança, Javé (Êx 6.2-8), ó SENHOR. O mesmo oferecem sacrifício aos seus arte-
vocativo meu Deus demonstra não só que fatos destrutivos, uma vez que lhe trazem
se trata de alguém com quem o autor tem suculento repasto - a carne de suas pre-
intimidade pessoal, mas também de uma sas. Podem tanta blasfêmia e crueldade
divindade objetiva, que existe indepen- continuar impunes?
dentemente de seu povo. Isso permanece Ainda se trata de uma perversão quan-
em franco contraste com os caldeus, cujo do pessoas são desumanizadas em prol de
objeto de veneração não tem existência sua autogratificação ou vantagem econô-
fora deles mesmos, pois é antes seu pró- mica. A adoração dos resultados e lucros,
prio poderio militar (11). Para Habacuque, que só visa ao aumento de receita sem se
Deus é a Rocha inabalável (cf Dt 32.18). importar com o custo em termos de digni-
Embora questione a escolha dessa perver- dade humana, pode ser ainda mais odiosa
sa nação como instrumento para executar nos dias de hoje do que a manifesta barbá-
juízo e julgar o próprio povo de Deus, ele rie dos caldeus.
não questiona o fato de que Deus tem ra-
zão. Ele está pronto para discutir a questão, 2. 1 Esperando uma resposta
confiante que Deus, no final, procura pre- Preocupado em que Javé responda rapida-
servar para si o povo da sua aliança. mente a seus questionamentos, Habacuque
O problema teológico enfrentado por se colocará na torre de vigia, como um
Habacuque é a questão de como um Deus soldado que está de guarda (cf Is 21.8;
santo, alguém que é puro em todas as coi- Ez 33.7). Essa espera vigilante, uma das
sas e completamente separado do pecado, atribuições de um profeta, dá-se em duas
pode tolerar os que procedem perfidamen- direções: em relação a Deus (cf 1.2) e em
te e a injustiça praticada pelos caldeus, direção a si mesmo. Sua preocupação ime-
instrumento de seu juízo (13). Ainda que diata é com a resposta de Deus, mas ele
o pecador em Israel seja perverso (4), na também precisa saber como ele mesmo re-
comparação ele é superado pela perversi- agirá a essa nova revelação do Senhor. Em
dade ainda maior dos caldeus. Perto destes, vez de temer a ira de Deus para com um
o pecador de Israel pode ser chamado jus- questionador insolente, Habacuque espera
to, termo tomado aqui em sentido relativo, pacientemente pela resposta que ele sabe
e não absoluto. Os caldeus estão tão dis- que virá.
li
; - HABACUQUE 2 1268

2.2-20 Resposta: Aproxima-se o das ao fomo se tomavam como pedras),


juízo do perverso mármore ou madeira. Essas tábuas seriam
Deus não deixa seu profeta em desespero; lembretes permanentes de que a palavra de
em sua justiça, considera os caldeus cul- Deus no fim se concretizaria.
pados por seus excessos. Ele os revela A parte da profecia de Habacuque que
em cinco cânticos provocativos contra contém a mensagem de esperança não é
os caldeus. indicada, mas possivelmente consiste,
2.2-5 Uma visão escrita. A fé que sob alguma forma, nesse livro todo. Ou
Habacuque tem em Deus é justificada ainda, poderia simplesmente se referir a
quando Deus responde à sua perplexida- mensagem dos dois próximos versículos,
de. Esse fato mostra que Deus considera para os quais o profeta enfaticamente cha-
os questionamentos sinceros. No entanto, ma a atenção.
a revelação não é apenas para o consolo Na passagem mais conhecida do livro,
de Habacuque, mas de todos aqueles que o profeta traça um contraste multifacetado
sofrem nas mãos dos caldeus. As boas-no- entre o justo e o perverso (4,5). Habacuque
vas da libertação final devem ser anuncia- não nomeia este último, a quem se refere
das de tal maneira que qualquer pessoa que como soberbo e arrogante. A referência
estiver passando possa vê-las. A tradução à conquista de outras nações e a outros
"mensageiro" (2.2, NIV, em inglês) é obs- males sugere que o profeta esteja falando
cura, e tanto pode se referir à possibilidade da Babilônia. O contraste realça as ações
de qualquer pessoa que estiver passando, e o fim do justo e do perverso. Os "arro-
ainda que correndo, ler as boas-novas gantes" caldeus estão inflados de orgulho.
(NRSV) e então transmiti-las boca a boca, Embriagados com o espólio de suas con-
como pode ser uma alusão a um corredor quistas (cf ISm 30.16), são vorazes, de
profissional ou "mensageiro", cujo papel uma ganância insaciável, tendo abandona-
seria transmitir tal informação. Em ambos do as normas comuns da decência e inte-
os casos, as boas-novas se disseminariam, gridade moral. A natureza habitual dessa
ainda que o juízo anunciado não aconte- intoxicação é mostrada pela forma do ver-
cesse de forma imediata. Na verdade, Deus bo no hebraico utilizada no v. 5.
agiria no tempo determinado. Toda a histó- Em franco contraste com o perverso e
ria se encontra nas mãos de Deus, rumando arrogante está o justo (cf 1.4,13), aquele
inexoravelmente em direção ao clímax, ao que é reto. Suas ações estão em conformi-
Dia do Senhor. A fé em Deus nos compele dade com a vontade revelada de Deus, sen-
a não nos aborrecermos com demoras ou do motivo de orgulho para ele e um modelo
atrasos aparentes, pois esses são ilusórios. para o mundo. A palavra no hebraico tem
As promessas de Deus certamente serão um significado amplo, incluindo a posição
cumpridas (2Pe 3.3-9) a seu próprio tem- de ser justificado, absolvido diante do pró-
po. No final, Deus libertará seu povo por prio Deus (cf Is 53.11). Os justos em Judá
meio de um salvador pessoal, a quem uma não apenas agirão corretamente, mas sua
possível leitura do texto poderia se referir retidão será reconhecida por Deus.
(cf NVI mg., v. 3), embora uma libertação A vida dojusto é dirigida pela suafé, um
mais generalizada, não específica, com o rigoroso contraste com a ganância que con-
cumprimento da revelação, seja a interpre- trola a vida dos ímpios. Essa palavra tam-
tação mais comum dessa passagem. bém significa, de forma abrangente, desde
Deus ordena que Habacuque escreva a confiança nos seres humanos (Êx 19.9)
e grave a mensagem sobre tábuas, o meio ou em Deus e suas promessas (Gn 15.6)
mais comum de se escrever na Babilônia. até a convicção que motiva alguém à obe-
Elas eram feitas de argila (e quando leva- diência, a ser digno de confiança ou fiel
em sua conduta (2Rs 12.15), mostrando
1269 HABACUQUE 2 <
a leitura de Habacuque. O povo de Deus
perseverança mesmo em tempos dificeis. é incitado a resistir fielmente à opressão
Estes dois últimos significados, mais co- imposta pelos babilônios, pois a vida está
muns em nosso tempo, são mais bem tra- por vir, e o próprio Deus será fiel em tra-
duzidos por: "fidelidade" (NVI; v. também zer à fruição a sua mensagem de esperança
NVI mg.) ou mesmo "integridade". Ambos e salvação (2.2,3). Alguns sugerem que o
mostram uma íntima correlação entre o próprio profeta fornece um comentário so-
compromisso e a colocação desse com- bre confiança e fé no cp. 3, especialmente
promisso em ação. nos v. 16-19.
O fim do perverso e do justo também 2.6-20 Cinco provocações contra a
são contrastados. A fé trará vida para o Babilônia. 6-8 Os ditos iniciados por um
justo, não somente a existência fisica, em "ai" frequentemente caracterizavam can-
contraste com os caldeus, que logo cairão. tos fúnebres (cf lRs 13.30), mas aqui a
Uma bênção especial é associada à palavra forma é usada com ironia, uma vez que um
em Deuteronômio 30.19, onde a vida pro- profeta de Israel não ficaria terrivelmente
metida a Israel é associada à terra, agora preocupado com a iminente queda de um
ameaçada pelos caldeus. A vida e a terra de inimigo que oprimia seu povo. Habacuque
Israel resistirão, enquanto as de seus pode- expressa sua fé pela sua convicção de que
rosos inimigos sucumbirão. Deus prevalecerá. O alvo exato dos orácu-
Esse texto se tomou bem conhecido em los não é claro. Os babilônios se encaixa-
virtude de citações em passagens teológi- riam no contexto literário imediato, e os as-
cas relevantes do NT (Rm 1.17; Gl 3.11; sírios se encaixariam no contexto histórico
Hb 10.38). O conceito que aqui se encontra da época em que as profecias foram escri-
com relação à fé como meio de justifica- tas. Cada um deles foi, em seu apogeu, um
ção chamou a atenção de Martinho Lutero poder mundial aparentemente invencível.
de tal maneira que acabou dando início à A Assíria foi derrotada pela Babilônia em
Reforma Protestante. 605 a.c., enquanto a Babilônia chegou a
As nuanças de significado do NT têm seu fim em 539 a.c., derrotada pelos per-
sido influenciadas muito mais por sua uti- sas. O profeta não está sozinho em suas
lização da LXX do que pelo texto hebraico. ironias, mas a ele se juntam todos aqueles
Em Romanos 1.17, Paulo expressa o re- que os agressores tinham explorado no
sultado da fé, com a ênfase do grego no passado (cf v. 5).
compromisso intelectual, que leva à reti- Em uma paródia de um canto fúnebre
dão. Esse é o primeiro passo para o Reino (cf Jr 22.18), Habacuque zomba dos me-
de Deus - justificação aos olhos de Deus sopotâmios por seus ganhos desonestos.
por meio da fé no evangelho de seu Filho Quanto a um indivíduo que adquire bens
(cf Rm 3.22; 5.1). Gálatas 3.11 contrasta pelo roubo, ou que se apropria indevida-
a obediência a Deus, como exigência le- mente de penhores ou arranca o sangue
galista que não pode justificar ninguém, (tanto literal quanto metaforicamente por
com um compromisso fiel para com ele, meio da exploração alheia), o sofrimento
resultando na dádiva imerecida da vida. se voltará contra o próprio opressor. Numa
Hebreus 10.38 expõe a força do chamado reação do tipo olho por olho, aquele que
à perseverança, a uma vida de fiel obediên- despojou agora será despojado por sua
cia à vontade de Deus em tempos de pro- antiga vítima. A apropriação indevida de
vação pessoal. A passagem adota uma fundos ainda é comum entre aqueles que
possível leitura messiânica da LXX ("o meu ocupam posições de confiança. A exposi-
justo"). Uma outra leitura da LXX, que fala ção e condenação destes pelos tribunais e
da fidelidade de Deus, também poderia ser pela imprensa mostram que esse tipo de

. : . HABACUQUE 2 1270

comportamento não é inaceitável somen- confiar em suas próprias aquisições per-


te para o Deus Santo, mas também para a versas. No lugar de uma profecia presa
sensibilidade da humanidade caída. ao tempo, uma profecia de ruína de uma
9-11 Esse "ai" é dirigido para os lucros nação histórica, essa livre adaptação de
nacionais obtidos por meio da injustiça e Isaías 11.9 coloca a esperança futura no
da perversidade. Os bens são moralmente contexto do final dos tempos. O conhe-
neutros em si mesmos, logo, não são con- cimento de Deus, a experiência de um
denáveis. Entretanto, passam a sê-lo quan- relacionamento íntimo com ele, encherá
do os perversos os adquirem por meio de toda a terra. A manifestação visível do
práticas desleais, na procura de segurança poder maravilhoso de Deus, sua glória
contra a ganância alheia ao se colocar no (Êx 40.34; Is 6.3), será perceptível não
alto, acima de quaisquer ameaças. Esses apenas para os opressores assírios e babi-
sofrerão uma morte vergonhosa. Mesmo lônicos, mas para toda a criação.
os materiais inanimados com que foram 15-17 O ímpio não apenas se envolverá
construídos os prédios das cidades captu- em perversidades, mas influenciará outros
radas "clamarão" (a pedra clamará) contra a fazerem o mesmo, dando de beber a seu
os maléficos exploradores. Tanto a política companheiro para tirar proveito de sua ine-
nacional quanto o comportamento indivi- briada falta de decência. Nos dias de hoje,
dual devem ser constantemente submeti- poderíamos pensar nos traficantes de dro-
dos às exigências da palavra de Deus. ga, nos que promovem pornografia e jogos.
12-14 A crueldade habitual, o sangue e Estes não buscam a gratificação pessoal,
a iniquidade cuja intenção era assegurar a mas sim explorar as fraquezas alheias por
posse definitiva das terras, não alcançaria meio de suas ciladas. O poder penetrante
o objetivo pretendido. Não restará um só da perversão continua a cruzar fronteiras
beneficio permanente, pois desvanecerão nacionais e internacionais, ameaçando não
como a fumaça. Aqueles que ainda se com- apenas indivíduos mas também governos
prometem com a expansão nacionalista e a por meio de sua corrupção. Parece que o
"limpeza étnica" devem ser lembrados da juízo divino é o único meio de romper esse
repugnância invariável de Deus por esse círculo cada vez mais vicioso.
comportamento (cf Am 1.13). A busca O castigo aplicado corresponde ao mal
por ampliação territorial ou recursos natu- cometido. Nesse caso, aquele que leva o
rais, tais como petróleo ou outros minerais seu próximo a se embriagar também ficará
estratégicos, sem preocupação pela vida embriagado e terá um comportamento li-
humana e os direitos territoriais, ao final cencioso. Desta vez o cálice é uma metá-
se mostrará inútil, quando a justiça divina fora da ira do juízo de Deus (cf SI 75.8;
corrigir os erros nacionalistas. Ez 23.33; Lc 22.42). A violência do per-
Contemporâneo de Habacuque, Jere- verso é vista como algo que ultrapassa as
mias utiliza as mesmas palavras de juízo fronteiras de Israel, atingindo o país vizi-
profético (Ir 51.58), embora não esteja nho, o Líbano, uma possível referência à
muito claro qual dos dois profetas se uti- batalha de Carquemis, em 605 a.c. Esse
lizou delas originariamente. Seu autor, tumulto não machuca apenas as pessoas,
assim como o autor do juízo vingador, é o mas também resulta na matança de ani-
próprio Javé, o SENHOR dos Exércitos que, mais ferozes, o que também é condenado.
como guerreiro divino, assume a causa de Esse equívoco de se pensar que o único in-
seu povo (3.8-15). teresse do Criador é pelos seres humanos
Em meio à escuridão de tantos "ais" precisa ser corrigido. Antes, toda a criação
vem um versículo de luz e esperança para sofre em virtude do pecado, e aguarda res-
aqueles que confiam em Deus, em vez de tauração (Rm 8.20-22; cf Gn 6.5-7).
1271 HABACUQUE 3 - : :

18-20 As práticas de adoração pagãs da peito à sua possível adição posterior (v.
Babilônia, descritas anteriormente (1.16), Introdução), embora na posição em que
são agora explicadas em detalhes nesses atualmente está no cânon ele forneça uma
versículos. O despropósito de buscar con- conclusão adequada à discussão das cri-
selho em alguma coisa criada por mãos ses de fé desse profeta piedoso com seu
humanas, algo que sequer pode falar, é de- Deus fiel.
clarado nessa passagem, na qual o típico
"ai" se encontra em posição diferente dos 3.1,2 Solicitação pela contínua
exemplos anteriores. Alguns estudiosos presença ativa de Deus
têm sugerido que esse "ai" foi deslocado As notas técnicas que abrem e concluem
do início de 2.18, mas não há evidência o salmo têm sua contrapartida no livro de
nos manuscritos para isso, assim como não Salmos. O tipo de salmo, uma oração, en-
há evidência de que algum autor bíblico cabeça outros salmos de petição ou lamen-
tenha se atido submissamente aos padrões to (e.g., SI 17.1; 86.1). Algumas versões
das formas literárias de sua escolha. dizem que está "à moda de Sigionote" (TB),
Em contraste com o ídolo mudo, a um termo obscuro (cf SI 7.1) que aparente-
verdadeira revelação pode vir somente do mente fornece alguma informação musical
próprio Javé, em cuja presença todos de- (daí a ARA: sob a forma de canto). A peça é
vem se curvar em silêncio. Esse silêncio tocada por "instrumentos de corda" (3.19;
não é aquele dos objetos inanimados, mas cf SI 4.1; 6.1), sob a direção de algum
sim o silêncio dos adoradores, em profun- tipo de músico profissional que aparece
do respeito, frente ao Deus vivo e verda- em outros 55 cabeçalhos de salmos. Outra
deiro (cf SI. 46.10; Is 41.1), e não frente a indicação musical não muito clara, "Selá",
ídolos falsos, inanimados, que só trazem a também aparece espalhada pelo salmo em
morte. Não apenas Israel, mas toda a cria- algumas versões (3,9,13; ARe).
ção se prostrará em profundo silêncio em O conhecimento da obra de Deus no
sua presença. passado de Israel leva o profeta a respon-
Esse versículo serve como transição der em duas direções. Pessoalmente, ele
das ações pecaminosas dos opressores de possui um profundo respeito pelo poder
Israel para os atos poderosos de Deus. de Deus, aquele que sustenta e provê a sua
criação. Ele também usa esse conhecimen-
3.1-19 Salmo de to dos feitos de Deus no passado para pedir
petição e louvor que sejam repetidos no presente de Israel.
O capítulo final é uma oração de conclu- Na própria ira que Habacuque em sua ora-
são. Ela assume a forma de um salmo no ção pede que recaia sobre os pecadores de
qual o salmista dá glória a Deus por quem seu tempo, ele pede que Deus se lembre
ele é (2,3b,4) e por suas ações (3a,5-15). de sua misericórdia (cf Êx 34.6; Lc 1.54).
Ele lembra os poderosos atos de Deus no Tanto a ira como a misericórdia são
êxodo, na promulgação da lei no Sinai e partes da multifacetada natureza de Deus.
na conquista da terra. Seu poder impres- Mesmo quando ele é intencionalmente ig-
sionante diante de poderosos exércitos norado ou ostensivamente desobedecido, o
inimigos inspira temor e tremor no sal- amor de Deus por seu povo o atrai inexora-
mista, embora ele saiba que esse Deus velmente a ele, apesar do comportamento
poderoso é um Deus de amor e o protege- deste para com ele (cf Os l1.8-H). Não
rá. Seu terror pode assim dar lugar a uma se supõe com isso o universalismo, a ideia
calma jubilosa. de que no final Deus perdoará a todos os
Questionamentos têm sido levantados pecados e restaurará o seu relacionamento
a respeito da inclusão do salmo, com res- com todas as pessoas. Antes, é uma oração
lIIIl
: - HABACUQUE 3 1272
11II

que diz que se os pecadores se voltarem que é verdadeiramente eterno. A vinda


para seu Criador em arrependimento ver- de Deus é ampliada muito além da expe-
dadeiro, e quando isso acontecer, ele os riência que Israel teve no Sinai, para a sua
perdoará e os trará de volta para si. Essa vinda no final dos tempos, que terá um sig-
oração por graça não é única no AT, uma nificado universal, e não apenas nacional
vez que seu fundamento é o documento (cf SI 97.4,5; JI3.16; Ap 16.18).
que constituiu a aliança para o povo de A seção termina com uma referência
Israel (Dt 30.1-10). Aqui o perdão é pro- a duas tribos nômades do sul que também
videnciado antecipando a necessidade por ficarão aflitas e aterrorizadas com o poder
parte do pecaminoso Israel. Esse versículo do Deus que está por vir.
em Habacuque, portanto, compreende não 8-15 Com base em algumas das mes-
apenas a mensagem de todo o livro, mas a mas referências da última passagem, Deus
mensagem do próprio evangelho. é descrito como o poderoso guerreiro di-
vino que enfrenta aqueles que oprimem
3.3-15 A mão de Deus na história os seus escolhidos (cf Êx 15.1-18). Ele
A chegada e a presença de Deus são descri- enfrenta os ribeiros e o mar (8), como na
tas. Ocorrem fatos naturais extraordinários separação das águas do mar Vermelho e
(cf Êx 3.1-5; lRs 19.11,12). do rio Jordão (Êx 13.17-14.31; Js 3.13-
3-7 A descrição da vinda de Deus 17) e também na criação (Jó 26.12,13;
usa termos que evocam sua aparição no SI 29). A imagem também se projeta para
monte Sinai. Santo, antiga forma poética o futuro, mostrando a soberania contí-
para Deus, é um termo relacionado em nua de Deus sobre a criação (cf Is 11.15;
outras passagens à tradição do êxodo (Lv Mt 14.22,33; Ap 21.1).
11.44,45). Ele vem de Temã e do monte O arsenal de Deus inclui arco eflechas
Parã. Esses dois locais ficavam em Edom, (9), embora a referência à aljava não es-
na Transjordânia e são associados à apari- teja muito clara. Provavelmente se refere
ção de Deus no monte Sinai. Ele vem em aos sete disparos de que se lê nos textos
esplendor de luz, com raios (ou "chifres" cananeus. Aqui eles são usados por Javé
simbolizando poder) que brilham da sua como instrumentos de juízo (cf v. 11;
mão. Isso é possivelmente um trocadilho Dt 32.23; SI 7.13).
com os dois significados de uma única A presença do poderoso guerreiro tam-
palavra em hebraico. Peste e pestilência, bém afeta a natureza, com a água dividindo
palavras também associadas ao êxodo e a superfície da terra (9; cf SI 74.15), como
ao monte Sinai (Êx 5.3; 9.3,15), o acom- ela mesma foi dividida no mar Vermelho
panham. Elas são apresentadas em termos (Êx 14.16,21). Os majestosos montes e
semelhantes aos enviados pessoais de an- até mesmo o sol e a lua são afetados, mo-
tigos dignitários do Oriente Próximo (cf vendo-se ou parando em contraste com
ISm 17.7; 2Sm 15.1). Esses temíveis fe- seu padrão costumeiro (cf Js 10.12-14;
nômenos estão sob a jurisdição de Deus, 2Rs 20.9-11).
servindo-o e demonstrando seu impressio- A presença de Deus é relativa em seu
nante poder. impacto, dependendo do tipo de relacio-
O poder também é evidente nas con- namento que tiverem com ele aqueles para
vulsões da natureza, como o foi no monte quem veio. Aqueles que se opuserem a
Sinai (Êx 19.16-19). As nações mais dis- ele e a seu povo experimentarão a ira do
tantes sentirão a presença de Deus, como guerreiro (12) enquanto ele marcha pela
também os montes primitivos e os outeiros terra. Ficarão surpreendidos com sua der-
eternos. Sua aparente eternidade e estabi- rota, quando esperavam a vitória. Aqueles
lidade são ilusórias na presença de Deus, que estão na vontade de Deus conhecerão
1273 HABACUQUE3

esse mesmo guerreiro como o gracioso de tudo, ser depositada no Deus que cum-
Salvador e Libertador. Esse conhecimen- pre a sua aliança para sempre. Grande par-
to é a verdadeira resposta às perguntas de cela dos meios de subsistência de Israel
Habacuque (1.12-17). vinha da agricultura, mas o salmista per-
A metáfora de abertura (8) é retoma- cebe agora que sua única fonte de auxílio
da no v. 15, marchando com os cava- é Javé, e que ele ainda é Deus, quer ele
los pelo mar como aconteceu no êxodo continue ou não a fornecer essas coisas a
(Êx 14.21-29). seu povo. A segurança de Habacuque não
repousa em bênçãos visíveis e temporais,
3.16-19 Tremendo, porém confiante mas em um relacionamento inabalável
Agora o narrador é o profeta, refletindo com o seu Deus da aliança (cf Js 1.5;
sobre suas próprias experiências e reações Rm 8.38,39). Em meio a todos esses
diante da revelação que recebeu. À luz das questionamentos e diálogos, o autor ainda
respostas de Deus para ele, Habacuque é pode chamá-lo de seu Deus. Tudo isso ex-
capacitado a expressar de forma poderosa plica em termos práticos o significado da
a sua fé nele. fé apresentado em 2.4.
As reações físicas de Habacuque (16) Em consequência dessa fé, o poderoso
refletem o terrível temor que experimen- Senhor fortalecerá o salmista para que este
tou ao perceber o poder do Deus Criador- possa resistir, mas também saltar de júbilo
Guerreiro. Entretanto, ele não se acovarda, como uma corça, em celebração da vida
mas espera com serena certeza, sabendo (cf 2Sm 22.34; SI 18.33[34]). Essa mesma
que Deus o encontrará, como já acontecera força ainda está à disposição daqueles que
antes (2.1). E desta vez trará o juízo pro- descobrem que também podem ter essa
metido aos inimigos de Israel. O dia e o mesma fé no Deus de Israel e da igreja.
tempo tão esperados (2.3) virão.
Nos versículos finais, o autor com-
preende que sua fé pode finalmente, acima David W. Baker
SOfONIAS

INTRODUÇÃO
o autor e sua época planos. Foi somente sob a liderança de
Sofonias, o autor da profecia, era de linha- Josias que a visão do javeísmo foi retoma-
gem piedosa, como mostra o seu nome, da (2Rs 22.1-23.30; 2Cr 34.1-35.27).
que significa "Javé escondeu ou prote- Uma data anterior a Josias é sugerida, já
geu". Embora seu nome não seja inédito que práticas pagãs ainda existiam (1.4-9).
no AT (cf Jr 21.1; Zc 6.10), ele demonstra Isso situa o livro antes de 621 a.C., o iní-
a confiança de seus pais na providência do cio de suas reformas. Entretanto, o argu-
Deus de Israel, até mesmo no nascimento mento não é convincente, já que a reforma
do seu filho. Aparentemente, ele descendia religiosa nacional instituída pelo rei não
do décimo quarto rei de Judá, Ezequias era universalmente seguida pelo povo, ou
(716-687 a.C.), como está descrito em mesmo por regentes posteriores.
sua genealogia (1.1), a mais longa encon- Embora oficialmente proibidas por
trada nos livros proféticos. Esse mesmo Josias, as práticas pagãs indubitavel-
versículo data a profecia na época do rei- mente continuaram a existir em meio ao
nado de Josias, 16º rei de Judá (640-609 povo, o que não elimina, assim, uma data
a.Ci), sendo este também um descendente durante seu reinado. Jeremias, contem-
de Ezequias (v. quadro na página 949). porâneo de Sofonias, condenou algumas
O período entre os reinados de Ezequias dessas mesmas práticas (1.4,5; cf. Jr 2.8;
e Josias foi marcado pela decadência reli- 8.2; 19.5,13; 32.35), e a dificuldade que
giosa. A verdadeira adoração fora corrom- surgiu, quase no mesmo período, para os
pida pelo perverso Manassés (2Rs 21.1-18) profetas Naum e Habacuque, também su-
e por seu filho Amom (2Rs 21.19-26), res- gere que as reformas de Josias não foram
pectivamente avô e pai de Josias. Talvez completas e permanentes.
a preservação por parte de Deus de uma Os paralelos impressionantes entre
família justa e íntegra e de seu filho, duran- Sofonias e Deuteronômio (v. em 1.5,13,18;
te um período tão turbulento, tenha levado 3.5) sustentam uma data posterior ao iní-
seus pais a dar a Sofonias este nome. cio da reforma de Josias, provocada pela
Em que período do reinado de Josias descoberta do "Livro da Lei" no templo
as profecias de Sofonias aconteceram é ob- (2Rs 22.8). Há consenso em tomo da
jeto de debate. Alguns estudiosos sugerem ideia de que o documento encontrado era
uma data anterior à restauração do jave- uma espécie de Deuteronômio, que serviu
ísmo por Josias, ou seja, de uma resposta como base para o estabelecimento do ja-
correta de Israel a Javé, o Deus a quem veísmo. Alguns estudiosos sugerem, base-
Israel havia jurado lealdade e obediência ados nas aparentes referências de Sofonias
no monte Sinai (Êx 19-24). Toda a vida a Deuteronômio, que ele tenha profetizado
política, social e religiosa do povo deveria depois da redescoberta desse livro.
ser dirigida pela vontade de Deus, revelada Várias nações são mencionadas nos
na lei no Sinai e registrada no Pentateuco, cp. 2-3, e a referência à Assíria (2.13-15)
mas eles repetidamente optaram por igno- em particular nos ajuda a determinar a data
rá-la, vivendo de acordo com seus próprios do livro. Sofonias profetizou a destruição
1275 SOFONIAS . -

••
de Nínive, capital da Assíria (2.13). Esta, o Egito (v. Is 20.4 e Ez 30.4-9). O juízo de
desde quando subjugou e deportou Israel Deus recairia, assim, não apenas sobre as
em 722 a.C. (2Rs 17.4-41; 18.9-12), era a menores nações vizinhas de Judá, mas tam-
principal ameaça a Judá. Embora pareces- bém sobre as grandes forças da época, Egito
se invencível aos olhos deste, sob a mão de e Assíria, que ficavam mais distantes.
Deus conduzindo os poderosos babilônios,
os dias da Assíria estavam contados. Ao o livro e sua mensagem
final do século VI a Assíria já estava qua- Alguns estudiosos têm questionado se al-
se desaparecendo. Em 612 a.C., Nínive e, gumas partes do livro são de fato originais,
por volta de 605, todo o Império Assírio, especialmente o trecho de 3.14-20. Isso se
caíram nas mãos da Babilônia. Com isso, baseia no argumento bastante questioná-
é possível concluir que a profecia de vel de que uma nação transgressora, que
Sofonias deve ser anterior a 612 a.c. enfrentava o juízo e estava sendo adver-
Entre outras nações mencionadas estão tida a se arrepender, não receberia uma
Filístia (2.4-7), Moabe, Amom (2.8-11) e mensagem de esperança como a que se
Cuxe (também chamada Etiópia, 2.12). Os encontra nesses versículos. Alega-se que
filisteus tinham sido hostis a Israel desde o juízo era a regra antes do exílio, sendo
a saída do Egito, após o êxodo, e foram que a esperança só aparecia na mensagem
posteriormente dominados por Davi, em- dos profetas após o juízo. Essa recons-
bora não erradicados. A sua liga, com- trução aparentemente lógica contraria o
posta de cinco cidades-estado, Asdode, AT como um todo, o qual frequentemen-
Ascalom, Ecrom, Gaza e Gate, ficava à te coloca lado a lado os dois aspectos do
margem do Mediterrâneo, a oeste do mar caráter de Deus, justiça divina e amor
Morto. Gate já devia estar em decadência compassivo, aspectos que não são mu-
na época da profecia de Sofonias, uma vez tuamente excludentes (v. a combinação
que ela não é incluída em seu oráculo de em Is 1-2; Os 2; Am 9). Essa combina-
juízo, que não foi o único a fazer advertên- ção de esperança e juízo não deveria nos
cias a esses povos (cf Is 14.28-32; Jr 47; surpreender se considerarmos a natureza
Am 1.6-8; Zc 9.5-7). da aliança entre Deus e seu povo. Como
As duas nações da Transjordânia, Amom parte integrante da aliança estavam tanto
e Moabe, tinham laços de parentesco por a bênção pela obediência (e.g., Dt 28.1-
meio de seus ancestrais, os filhos que Ló 14) quanto a maldição pela desobediência
teve com suas filhas (Gn 19.36-38) e, por- (Dt 28.15-68). Mesmo o episódio do êxo-
tanto (por meio do parentesco de Ló com do, tão central para a fé do povo de Deus,
Abraão; Gn 12.5), tinham também laços é uma combinação desses dois aspectos:
de parentesco com Israel. Esse grau de pa- esperança para aqueles que obedeceram a
rentesco não os aproximava, uma vez que Deus (Êx 12.21-28) e juízo para seus opo-
eram frequentes os conflitos entre Israel e nentes (12. 29,30; 14.26-28).
seus "primos" do outro lado do Jordão (cf O juízo é o tema teológico que dá uni-
Jz 3.12-30; lSm 1.1-11; 2Rs 3.4-27). dade ao livro. A pregação sobre esse tema
Cuxe, ou a Etiópia, tinha sido derrotada (1.2-6) leva o profeta ao juízo final, o Dia
pela Babilônia em 663 a.c., quando esta do Senhor (1.7-3.20), ocasionado nos
invadiu o Egito, sobre o qual Cuxe tinha "últimos dias" por ações humanas.
exercido controle durante a 25" dinastia Embora Sofonias não seja o único a
(716-663 a.C). O trecho em 2.12 pode discutir o Dia do SENHOR (cf Is 2; Jr 46-
ser uma recordação dessa derrota ou, o que 51; Ez 7; JI2), em nenhum outro livro esse
é mais provável, Cuxe está sendo usado tema serve como base da unidade como
como uma designação alternativa para todo ocorre em Sofonias.
>
SOFONIAS 1 1276

Sofonias mostra a dupla natureza desse Leitura adicional


dia tanto como um tempo de juízo puniti- BOICE, J. M. The minor prophets. 2 v.
vo quanto de esperança abençoada. O juí- Zondervan, 1983, 1986.
zo recairá sobre Judá porque não cumpriu CRAIGIE, P. C. Twelve prophets. v. 2. DSB.
a aliança. Práticas pagãs específicas são Westminster/John Knox Press, 1985.
listadas para a condenação (1.4-6), bem EAToN, J. H. Obadiah, Nahum, Habakkuk,
como o são os líderes de Judá (3.3,4). Sua Zephaniah. TBC. SCM, 1961.
indiferença (1.12,13) e orgulho (2.3) são BAKER, D. W. Sofonias em BAKER, D.;
particularmente condenados. ALEXANDER, D.; STURZ, R. J. Obadias,
As nações tampouco estão livres do Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque
juízo (cp. 2); sua corrupção é como aquela e Sofonias: introdução e comentário.
citada em Gênesis 6.5-7. O orgulho preci- SCB. Vida Nova, 2001.
pitará sua ruína (2.10,15). ROBERTSON, O. P. The books of Nahum,
A esperança é oferecida caso Israel se Habakkuk and Zephaniah, NICOT.
humilhe, deixando de lado seu orgulho tolo Eerdmans,1990.
(3.12). Há uma esperança imediata para MOTYER, J A. Zephaniah em MCCOMISKEY,
Israel (2.3) bem como promessas de bênção T., ed. The minor prophets. v. 3. Baker
futura para ele (3.13-17) e para as nações Book House, 1944.
(3.9). Tanto a esperança nacional quanto a HOUSE, P. R. Zephaniah: a prophetic dra-
social e a individual somente podem flores- ma. Sheffield Academic Press, 1988.
cer no contexto da humildade. O orgulho e
a esperança não podem coexistir.

ESBOÇO
1.1 Título
1.2-6 Juízo
1.7-3.8 O dia como
1.7-13
1.14-2.3 o Dia do Senhor
2.4-3.8 Nações individuais

3.9-20 O dia como esperança

COMENTÁRIO logia de extensão incomum talvez tenha


sido incluída para evitar a preocupação
1.1 Título com o fato de que o pai de Sofonias fosse
O SENHOR, Javé, o Deus da aliança com um etíope (um cushi em hebraico), povo
Israel (Êx 6.2-6), é a fonte suprema dessa que é o tema de um dos oráculos (2.12).
profecia genericamente descrita como sua Aos egípcios e etíopes não era permitido
palavra. A pessoa que proclama a mensa- participar na comunidade israelita a não
gem de Deus é Sofonias. Sua genealogia, ser a partir da terceira geração (Dt 23.7,8).
a mais longa dentre todas as genealogias Uma explicação mais provável, entre-
proféticas (cf Jr 36.14), remonta aos dias tanto, seria o desejo de ligar o profeta a seu
de Ezequias, o décimo quarto rei de Judá justo antepassado real. Isso era algo espe-
(716-687 a.C.; v. Introdução). Essa genea- cialmente importante tendo em vista os
1277 SOFONIAS 1 - :


antecessores corruptos do então rei Josias princípio universal: "Mas àquele a quem
que, assim como Ezequias, era um javista muito foi dado, muito lhe será exigido;
comprometido (v. Introdução). e àquele a quem muito se confia, muito
mais lhe pedirão" (Lc 12.48). Deus es-
1.2-6 Juízo tenderá sua mão, não para ajudar Israel,
Imediatamente, sem nenhuma introdução como já fizera uma vez (e.g., Dt 4.34),
adicional, Javé envia uma mensagem de mas para punir, do mesmo modo que Arão
terrivel juízo não somente para o mundo em deu início às pragas do Egito ao estender
geral (2,3), mas também de forma mais es- seu bordão (Êx 7.19).
pecífica para Judá e sua capital, Jerusalém Aqueles que serão exterminados deste
(4-6). Javé não age à distância, mas tem lugar (seja a própria Jerusalém ou o tem-
participação pessoal nessa devastação. plo, que é certamente "o Lugar", Dt 12.5),
2,3 Javé adverte que exterminará toda são identificados por seus pecados. Alguns
a sua criação originária sobre a face da continuam a adorar a Baal, um título que
terra. A lista de seres que enfrentarão a significa "senhor", "mestre", "dono", o
destruição, homens, animais, aves do céu qual era usado não somente para divin-
e peixes do mar demonstra que ele propõe dades pagãs, mas também para o próprio
um ato de "não criação". Os seres listados Javé (o nome Bealias significa "Javé é
seguem exatamente a ordem inversa de sua Baal"; lCr 12.5). Nessa passagem, Deus
criação no relato inicial (Gn 1.20-28). Essa está denunciando a adoração do deus ca-
destruição excederá até mesmo aquela do naneu da fertilidade, Hadade (cf Jz 6.25;
dilúvio (Gn 6-9), uma vez que aqui até lRs 16.31,32; 18) ou de Bel (Baal), deus
os peixes sentirão a força da ira de Deus. da Assíria. Embora alguns estudiosos su-
Toda a criação sofrerá como consequência giram que a reforma religiosa de Josias,
do pecado da humanidade (cf Rm 8.20,21). iniciada em 621 a.C., tenha posto fim às
A humanidade é especialmente enfatizada práticas pagãs, o fato de que um resto con-
por uma dupla menção, sendo os perversos tinuava a adorar a Baal poderia indicar que
pecadores responsáveis por apressarem a a reforma religiosa ainda incipiente estava
resposta de Deus. Eles serão extermina- surtindo efeito, embora ainda não completa-
dos (exterminarei) ou aniquilados (4; cf mente (v. Introdução). Os ministrantes dos
lRs 9.7), um termo que indica a aplicação ídolos e seus sacerdotes (2Rs 23.5) também
da pena de morte aos infratores (Êx 31.14), serão exterminados, a ponto de seus nomes
algo muito apropriado nesse contexto. caírem no esquecimento. O objeto de sua
O ouvinte pode ter certeza de que essas adoração, o exército do céu, são as deusas-
palavras severas são verdadeiras, uma vez estrelas (cf Dt 4.19; 2Rs 21.3-5; Jr 8.2)
que são uma declaração do próprio Javé, que Israel sabia terem sido criadas pelo
o SENHOR (v. também 1.10; 2.9; 3.8,20). próprio Javé (Gn 1.14-17).
Ele não apenas fala; ele agirá, como se vê O sincretismo - mistura de sistemas
pelos seis verbos conjugados na primeira religiosos - era outro problema. O he-
pessoa do singular nos v. 2-4. braico do v. 5, que diz que o povo jura
4-6 Embora toda a criação tenha de também por Milcom [Rei], pode indicar
sofrer, Judá e sua capital, Jerusalém, são que eles não apenas adoravam a Javé (e
especialmente apontadas. Eles, o povo da usavam seu nome nos juramentos), mas
aliança, por terem se comprometido es- faziam o mesmo com seu representan-
pontaneamente com Deus, têm uma res- te humano. Embora não haja evidências
ponsabilidade maior. Semelhantemente, o dessa prática em Israel, ela era muito co-
povo de Deus é o principal entre muitos mum em todo o antigo Oriente Próximo.
em Amós 1.3-2.16. Jesus fez deste um Esse versículo também poderia se referir a

: - SOFONIAS 1 1278


Milcom (Moloque; NRSV; LXX e outras ver- Na expectativa desse dia, Javé já fez
sões), um deus pagão dos amonitas (lRs pessoalmente os preparativos, como de-
11.5,33). Pode até mesmo haver uma com- monstram os seus atos nesse versículo e
binação das duas interpretações possíveis, também pelo uso dos verbos na primei-
ou seja, embora se fizessem de leais a Javé ra pessoa do singular nos v. 8,9,12,17.
como Rei, eles estavam, na verdade, vi- Como um sacerdote, já deixou pronto um
vendo sob a autoridade de um usurpador, sacrificio ou um banquete sacrificial (cf
Milcom. Em todo caso, o povo mesclava a Jr 46. 10). Ele também santificou ou sepa-
adoração do Deus único e verdadeiro com rou os seus convidados para uma função
a daquele que não era digno da adoração especial (cf Lv 21.8; 2Sm 8.11). Em um
(Êx 20.3). Como em Jeremias (2.12,13), jogo de palavras macabro, alguém pode
Javé fica chocado por Judá abandonar a entender que os convidados ou tomarão
verdade para seguir a mentira. parte do banquete sacrificial ou serão eles
mesmos os sacrificados. Os que se opõem
1.7-3.8 O dia como juízo a Javé serão oferecidos a seu juízo.
Os oráculos de condenação levam ao dia S No mesmo dia do sacrificio a pri-
do juízo final, o Dia do SENHOR, que é o meira punição é dirigida tanto aos líderes
tema do restante do livro (v. Introdução). da nação, à casa real, quanto aos que estão
Esse dia aparece em sua dupla natureza, seguindo influências estrangeiras, uma
não apenas como o dia de um juízo do- possível indicação de práticas religiosas
loroso (1.7-3.8), mas também como um pagãs (cf 2Rs 10.22). O próprio Josias
dia de esperança abençoada (3.9-20). Ele não é mencionado, talvez pelo fato de
afetará as nações (1.14-18; 2.14,15) e Judá isso se referir a um período anterior em
(1.8-13; 2.1-3; 3.1-7), tanto por eventos seu reinado, quando o poder era exercido
históricos indistintos (2.4-15) quanto por por outros oficiais (2Rs 22.1), isto é, por
grandes acontecimentos do final dos tem- aqueles aqui referidos.
pos (1.14-18; 3.8-13). É o Dia do SENHOR 9 Contudo, outra perversão aparente-
porque nesse dia somente o SENHOR agirá, mente religiosa envolve aqueles que "so-
não apenas em justiça e poder divinos, mas bem" o pedestal dos ídolos ("saltam por
também em graça amorosa. cima do limiar" [TB], um termo usado no
AT somente em associação com o templo;
1.7-13 Judá 1Sm 5.4,5). É mais provável que isso seja
7 O texto nos orienta a ficarmos em si- uma referência à prática pagã dos filisteus
lêncio (Cala-te) diante do SENHOR Deus de não pisar o limiar do templo de Dagom
(lit. "Senhor Javé"; cf Hc 2.20). Há uma (ISm 5.4,5), outra intromissão no javeís-
quietude que se encontra, por exemplo, mo israelita. Outra possibilidade é que a
nos braços ternos de uma mãe (SI 131.2), segunda parte desse versículo seja uma ex-
mas este silêncio tem uma qualidade di- plicação da primeira parte, que é obscura.
ferente, tratando-se antes do silêncio de O que está envolvido não é a transgressão
quem depara com a presença assombro- religiosa, mas a social e econômica. Os lí-
sa do Criador, Sustentador e Juiz do uni- deres que deveriam exercer suas funções
verso. É como a reverência exigida pelo com uma conduta justa e reta estão, em vez
oficial em uma audiência, quando ordena: disso, enchendo suas residências reais de
"Todos de pé", anunciando a chegada do violência (cf Hc 1.2,3) e dolo. Qualquer
juiz. Aqui, é o SENHOR quem está se apro- que seja a interpretação adotada, a frase
ximando porque seu dia, o Dia do SENHOR, final do versículo indica que Javé não vê
está perto (cf v. 14; Is 13.6; Ez 30.3; as transgressões que são cometidas como
J11.15; Ob. 15). erros de menor importância, mas, antes,
1279 SOFONIAS 1 <
como transgressões da mesma magnitude pecado não está na comissão (participa-
daquelas que levaram à primeira destrui- ção) clara e pública do mal (4-11), mas
ção na época do dilúvio (cf 1.3; Gn 6.11). na sua omissão secreta e privada de qual-
10,11 O autor apresenta a evolução quer bem, em completa complacência.
geográfica do juízo de Deus no dia [do Eles são comparados à parte do processo
SENHOR]. O norte fornece acesso mais fácil de fermentação do vinho que, quando em
para Jerusalém, visto que nas outras dire- absoluto repouso, decanta as partículas
ções há muitas montanhas. Portanto, esta mais pesadas no fundo do barril. Esse re-
é a rota mais natural não apenas para "co- síduo, a borra, pode causar a coagulação,
merciantes" (NVI) e negociantes, mas tam- tomando o vinho impróprio para consumo.
bém para os exércitos inimigos. A locali- Essas pessoas negam a atividade de Deus
zação das duas áreas primeiramente men- e são condenadas por sua apatia, como fez
cionadas é conhecida, a Porta do Peixe Martin Luther King ao repreender nossa
provavelmente sendo a principal entrada geração, dizendo: "Nossa geração deve se
da cidade pelo norte (2Cr 33.14; Ne 3.3). arrepender não só pelas más ações das pes-
A cidade baixa ("segundo quarteirão", TB) soas perversas, mas muito mais pelo terrí-
ficava ao norte do templo e era uma cons- vel silêncio das pessoas boas".
trução mais recente (2Rs 22.14; Ne 11.9). 13 Deus mostrará aos ricos indiferen-
Os outeiros são uma referência mais ge- tes o quanto seus caminhos estão errados.
nérica, mas poderiam muito bem apontar Eles perverteram o próprio fundamento
para uma característica específica ao norte teológico da visão que Israel tem da his-
de Jerusalém. O distrito comercial ou local tória, ou seja, o fato de que Deus intervém
de negócios, chamado Mactés ("pilão"; NVI ativamente no mundo, trazendo bênção
mg.), ao que parece estava localizado em ou juízo. Uma teologia inapropriada tem
uma depressão, possivelmente uma pedrei- consequências tão sérias quanto ações ina-
ra ou mina escavada com a forma de um propriadas. Como punição, os meios de
pilão (cf Jz 15.19; Pv 27.22). poder e posição pelos quais os pecadores
Uma séria calamidade atinge os habi- alcançaram seu status serão removidos (cf
tantes desses lugares, e eles respondem Dt 28.30-42; Am 5.11; Mi 6.13-15).
com grito e uivo angustiados. A destruição Da perspectiva neotestamentária do
esmagadora é traduzida também por gri- amor de Deus, revelado em Cristo, é bas-
tos de desespero ou gritos angustiados de tante fácil se esquecer de que o caráter de
ruína em outras partes (e.g., em Is 15.5; Deus também inclui santidade e justiça.
Jr 48.5 respectivamente), encaixando-se Assim como no AT a graça de Deus trans-
bem no contexto aqui. Parte da calamidade bordou sobre seu povo e sobre aqueles que
envolverá colapso econômico. Essa é uma seguiram sua vontade revelada, também no
referência adicional à indesejada influên- NT sua ira santa não será desviada daque-
cia estrangeira, uma vez que "comercian- les que voltam suas costas à sua revelação,
tes" (NVI) significa lit. "povo de Canaã", como fizera o apático povo de Judá. Nem
cuja habilidade nos negócios ficou notória o fato de alguém se identificar com o seu
quando posteriormente passaram a ser co- povo é garantia contra a sua ira, se não hou-
nhecidos como "fenícios". ver a aplicação correspondente da vontade
12 Agindo como a polícia numa batida de Deus na sua vida e relacionamentos.
em busca de contrabando, Javé esquadri-
nhará Jerusalém com lanternas. Seu obje- 1.14-2.3 O Dia do Senhor
tivo não é procurar por uma pessoa honesta Sofonias agora descreve, em forma de hino,
(cf Jr 5,1), mas sim capturar aqueles que o cataclísmico Dia do SENHOR. Esse dia não
o desagradaram, a fim de castigá-los. Seu afetará somente o seu povo, mas a todo o
.
. . . SOFONIAS 1

mundo. Uma interpretação muito ingênua


1280

sua criação (cf Êx 20.18; Dt 4.11). Nem


desse dia era que Deus abençoaria a Israel, mesmo as fortalezas se constituem em lo-
seu povo, enquanto julgaria e condenaria cal seguro contra o ataque de Deus.
aqueles que se opunham a ele e a seu povo 17,18 Utilizando-se de termos fortes
(v. Am 5.18-20). Israel se esquecera de que para chocar seus ouvintes, o próprio Javé
a eleição traz consigo responsabilidades descreve os resultados de seu julgamento
(Am 3.2) e que um bom relacionamento sobre a humanidade. O povo que recebera
com Deus não é baseado no nascimento, a aliança para sua própria orientação an-
mas na obediência. Se Deus não for hon- dará como se fossem cegos, uma maldição
rado, Israel sofre, assim como todas as prometida pela própria aliança que eles ig-
nações, mas as bênçãos também estão dis- noraram (Dt 28.28,29). O sangue da vida
poníveis para todos aqueles que são justos, da humanidade (Lv 17.11) será considera-
qualquer que seja sua etnia. As duas faces do tão desprezível como o pó (cf 2Rs 13.7;
da natureza do Dia do SENHOR, assim como Zc 9.3). A humanidade não pode comprar
sua universalidade, culminarão na segun- seu livramento do juízo de Deus com sua
da vinda de Cristo. Esse Dia do SENHOR prata nem o seu ouro, algo que se refere
(2Ts 2.2) será também universal e e dúpli- à sua riqueza acumulada e mal utilizada
ce (Mt 24.3-33; Ap 19-22). (11,13) ou, o que é mais provável, a seus
1.14-18 Ameaças gerais. 14-16 O Dia ídolos impotentes que frequentemente
do SENHOR é iminente, está perto e muito se eram banhados nesses metais. (cf Is 30.22;
apressa, um tema importante para o profe- Ez 7.19,20). O zelo de Deus, seu profundo
ta (cf v. 7). Sua advertência não fala de um desejo de proteger sua posição exclusiva
dia distante, mas de agora; não é algo cuja como criador de Israel, como seu reden-
expectativa cause alegria. O clamor amar- tor e soberano da aliança, é instigado pelo
go do homem poderoso (seja por sede de interesse de seu povo por coisas pagãs.
sangue ou terror) aumentará o tumulto. Como consequência, o fogo do seu zelo
Esse dia terrível é descrito em uma (cf Dt 4.24) consumirá não apenas Israel,
sinfonia de horror organizada em seis par- mas "toda esta terra" (ARC) (cf v. 2,3; 3.8;
tes, de modo a se contrapor aos seis dias 2Pe 3.10-12). Nenhuma advertência adi-
da criação original. Do ponto de vista de cional deveria ser esperada, uma vez que o
Javé, o dia está repleto de sua indignação fim virá repentina e rapidamente. Essa ter-
(cf Ez 7.19; Os 5.10; Hb 3.8), enquanto rível promessa cumpriu-se em Judá muito
seu impacto sobre a humanidade é descri- rapidamente, com a destruição devastadora
to em cinco pares de sinônimos (citados de Jerusalém e de seu templo, em 587 a.C.,
aqui na ARC). As emoções são tomadas de durante a vida do próprio profeta.
"angústia e ânsia", acompanhadas de so- 2.1-3 O que fazer? Após descrever o
frimento fisico com "alvoroço e desola- Dia do SENHOR como algo que afeta toda
ção". Somados ao trauma emocional estão a terra, Sofonias novamente se volta para
"trevas" e "escuridão", e ainda "nuvens" e Judá (cf 1.4-13). A ira de Deus, enquanto
"densas trevas". Para Amós, isso caracte- ainda se aproxima (2), poderia ser ameni-
rizava o juízo de Deus (Am 5.18-20; cf Is zada se o povo atendesse às exigências de
8.22; Jl 2.2) e também traz à mente o caos Javé para sua vida (3). Em meio ao terrível
anterior à criação (Gn 1.2), no qual a luz e merecido juízo, ainda há a possibilidade
do poder de Deus ainda não tinha brilhado. real da graça.
Esses horrores, acompanhados pelo toque 1,2 O dia da ira do SENHOR ainda virá;
da "trombeta" e "alarido", são típicos das assim, esse oráculo dá continuidade ao
"teofanias", quando Deus, o todo-podero- anterior. Deus expressa seu descontenta-
so Criador e Juiz do universo, confronta mento não apenas em sua ira, mas também
pelos títulos que utiliza para se dirigir a
1281 SOFONIAS 2

A palavra porventura resguarda a sobera-


<
seu povo. O povo é chamado de uma na- nia de Deus, e não nossa licença para pe-
ção (heb. gôy), um termo geralmente uti- car. Não podemos presumir o perdão de
lizado para os povos pagãos. A utilização Deus como uma espécie de "graça barata",
desse termo aqui poderia ter a intenção de que permite o pecado com impunidade
equiparar os eleitos de Deus com os pa- (Rm 6.1). Deus, por outro lado, nada tem
gãos, em virtude de seu comportamento e a fazer senão perdoar diante do verdadei-
atitudes inaceitáveis para com Deus. Esta é ro arrependimento. À luz de sua natureza
uma nação sem pudor para com Deus, ou pecaminosa, a humanidade é chamada a
"não desejada" (AV) por ele. Eles devem se fazer sua parte, a se arrepender e obede-
congregar (Concentra-te) como se ajunta cer. À luz da graciosa natureza de Deus,
a palha sem valor (Êx 5.7,12), esperando a resposta apropriada de sua parte pode,
pela ira de Deus que originariamente os com segurança, ser deixada a ele.
congregara para si mesmo, como seu povo
amado no monte Sinai. 2.4-3.8 Nações individuais
3 Os mansos entre o povo de Deus, os O profeta usa oráculos de juízo contra Judá
pobres de espírito (cf 3.12; Mt 5.3) que e as nações vizinhas como um incentivo
são conhecidos por sua obediência, têm para que Judá responda ao chamado de
outra oportunidade de cumprir as exi- Deus por obediência (1-3). No hebraico, a
gências da aliança. Em vez de confiarem palavra traduzida por Porque no início do
no sincretismo religioso ou na riqueza e v. 4 faz a ligação desses versículos com os
poder, eles devem buscar (buscai... ) três v. 1-3, mas o impacto é perdido na versão
coisas. A primeira é o próprio Javé (o NVI, que omite essa palavra. Os oráculos
SENHOR), o Deus da aliança que muitos ti- são estruturados em um padrão em que
nham abandonado (1.6). Eles também de- Judá é colocado ora de um lado, ora de
vem buscar a justiça, uma vida de retidão outro (2.4-15), até que, finalmente, os orá-
como Deus requer e, por fim, a mansidão culos são dirigidos à sua própria capital,
(cf Nm 12.3; Pv 15.33). Jerusalém (3.1-8; cf Am 1.3-2.16 para o
Apenas essa total entrega de si mesmos mesmo padrão).
e de suas próprias motivações à vontade 2.4-7 Filístia. A Filístia compreendia
de Deus pode conduzir à salvação, o abri- cinco cidades-estado: Gaza, Asquelom,
go contra a sua ira destruidora. Contudo, Asdode, Ecrom e Gate. As primeiras qua-
isso não é algo que possa ser presumido tro, geograficamente apresentadas de norte
sem maiores considerações pelo povo a sul, são advertidas da destruição e de-
de Deus, como o demonstra a palavra solação. A exclusão de Gate pode indicar
porventura, que está repleta de signifi- que a essa altura ela já fora destruída (v.
cado teológico (cf Êx 32.30; Am 5.15). Introdução). O despovoamento virá depois
Sofonias não parecia estar convencido de de um violento ataque, ao meio-dia, indi-
que o povo fosse responder em massa a cando um ataque surpresa durante o calor
seu chamado ao arrependimento (3.7), de sufocante (cf 2Sm 4.5; Jr 6.4), ou um ata-
forma que o resultado não parece repousar que tão fulminante que a batalha será deci-
no povo, mas, antes, em Deus. Sua justiça dida na metade de um dia.
e santidade exigem o reconhecimento e a 5 Os filisteus eram parte dos "povos do
punição do pecado, mas ele também tem mar" que migraram do Egeu com um sub-
outras características, inclusive misericór- grupo de Creta (daí a expressão quereítas,
dia, graça e amor, que permitem o perdão que em 1Sm 30.14 e Ez 25.16 aparece
dos pecados quando o arrependimento for como queretitas). Incapazes de se esta-
verdadeiro (cf Êx 34.6,7; Dt 30.1-10). belecer no Egito, eles se deslocaram em
SOfONIAS 2 1282

direção ao norte, ao longo da costa do mar Ló, sobrinho de Abraão (Gn 19.36-38) e
Mediterrâneo, no século XIII a.C., e foram estavam em constante conflito com Israel.
por muitos anos um tormento para Israel. Por exemplo, elas tentaram impedir a en-
Em uma designação singular no AT, eles trada do povo de Israel na terra prometida
são chamados aqui de Canaã, por residi- (Nm 22-25). Cada uma delas é assunto
rem em um território em outras partes re- de oráculos separados em outras passa-
conhecido como dos cananeus (Js 13.3). gens (e.g., Is 15-16; Jr 48.1-49. 6;
Deus se dirige a eles diretamente nesse Am 1.13-2.3) e esta é a única vez que um
oráculo (cf Am 5.18; 6.1). Tendo contra único oráculo é dirigido a ambas.
si a palavra do Criador do universo, eles 8 Essas duas nações atacaram Judá de
têm razões para temer, especialmente por forma verbal, insultando-o com escárnio
ele ter prometido sua destruição. e injuriosas palavras (cf Ez 5.15; 16.57).
6,7 Os centros populacionais da Filístia Elas também engrandeceram a si mesmas,
serão esvaziados; poucos pastores [...] um termo usado em outras passagens como
apascentarão os seus rebanhos. Estes esta- arrogância (cf Ez 35.13). Tudo isso para
rão entre os restantes da casa de Judá, ou desmoralizar Judá (v. a utilização dessa es-
seja, o remanescente de Judá. Esse impor- tratégia em Ne 4.1-3).
tante conceito teológico de remanescente 9 A certeza e a gravidade da punição
tem mais de um significado. Às vezes, dessas nações são realçadas pela solene
faz alusão ao juízo destruidor de Deus, o promessa de Deus que utiliza seus títulos
qual é tão abrangente que restarão apenas poderosos, que inspiram respeito. Ele é
alguns poucos sobreviventes (cf Gn 7.23; o Senhor todo-poderoso ou SENHOR dos
Is 17.6). Por outro lado, a esperança tam- Exércitos, o guerreiro divino, comandan-
bém está implícita no conceito, uma vez te em chefe dos exércitos celestiais (cf
que a destruição, ainda que devastadora, Hc 3.8-15). Ele não é apenas poderoso,
não será completa. Restarão ainda ao me- mas pessoal, tem um relacionamento di-
nos alguns poucos sobreviventes. Esse con- reto e íntimo com Judá, uma vez que ele
ceito não é raro entre os profetas (Jr 23.3; é o seu Deus. Esse fato por si só deveria
Mi 5.7,8) e indica tanto a justiça de Deus fazer com que Moabe e Amom cessassem
quanto sua graça amorosa. seus ataques, pois, ao insultar o povo de
Essa profecia mostra a relatividade da Deus, estavam na verdade insultando o
obra de Deus em abençoar e punir. Aqui, próprio Deus.
a punição dos oponentes de Judá resulta A punição será como a das proverbiais
no bem de Judá, que receberá de volta o Sodoma e Gomorra, as duas cidades que
que lhe fora tirado (cf 3.20). Essa restau- ficavam perto do mar Morto e que foram
ração da sorte, referindo-se às vezes ao destruídas por causa dos seus pecados (cf
retomo do exílio (Ir 29.14), aponta, nes- Gn 19.24-26; Dt 29.23; Is 1.9). A destrui-
se contexto, para a restauração no Dia do ção será tão completa que até mesmo a ve-
SENHOR, a inauguração definitiva do reino getação perecerá, o sal, presente no solo,
de Deus para o qual apontam todas as res- permitindo que floresçam apenas as urti-
taurações anteriores. gas. Eles não somente perderão o produto
Nota. 6 Pastagens: uma simples mu- da terra, mas perderão a própria terra para
dança de vogal resultaria em quereítas (cf aqueles de quem escarneceram, o restante,
v. 5); assim, a NIV traz: "onde habitam os o pequeno remanescente do povo de Deus,
queretitas". cuja bênção será aquelajá mencionada no v.
2.8-11 Moabe e Amom. Situadas na 7. A bênção suprema para o povo de Deus,
Transjordânia, essas nações eram etnica- para Israel e, de forma mais abrangen-
mente relacionadas a Israel por meio de te, para a igreja, ainda repousa no futuro,
quando toda a cnaçao desfrutará nova-
1283 SOFONIAS 3

ruínas desta que outrora fora uma cidade


<
mente da felicidade experimentada antes imponente (cf Jr 19.8).
da queda (Rm 8.18-23). 3.1-7 Jerusalém. Quase como um arti-
10,11 Em um resumo dos dois versí- lheiro fazendo disparos para melhor deli-
culos anteriores, Deus mostra o pecado da near o seu alvo, o profeta finalmente encon-
soberba (cf v. 15; Is 13.11). Como uma trou o ângulo certo para abrir fogo contra
justa resposta às nações que zombaram do Jerusalém. Este é um poderoso recurso re-
Deus verdadeiro e poderoso, ele vingará tórico por meio do qual a plateia foi atraída
seu povo. Demonstrará seu verdadeiro pela mensagem, pois acreditava de todo o
poder ao destruir seus deuses inúteis e coração que seus vizinhos pagãos, e inimi-
impotentes. Como consequência, o reco- gos de longa data, deveriam ser punidos.
nhecimento do Deus verdadeiro e a sua Somente depois, estando a plateia bem acli-
adoração se espalharão por todas as na- matizada ao espírito de condenação, é que
ções pagãs. Javé se revelará um Deus não Deus apresenta os piores malfeitores, isto é,
limitado geograficamente, mas de poder e a própria plateia, a seus pecados (1-4), à sua
atuação universais. falta de vergonha (5) e à sua recusa em se
2.12 Etiópia. No flanco sudoeste de arrepender (6,7).
Judá, o Egito foi governado, por um perío- O poder da retórica é intensificado por
do que abrange do final do século VIII ao não se identificar a cidade que está sendo
início do século VII a.C., pela 2Y dinastia condenada. Vindo imediatamente após um
etíope (ou cuxita). Esse título do poderoso oráculo contra a cidade de Nínive, os ou-
Egito, no qual está implícita sua própria e vintes irão supor que esta é ainda a cidade
infame dominação no passado, pode muito em questão. Somente quando os pecados
bem ressaltar o destino semelhante que os específicos contra Javé, o Deus de Israel,
espera nas mãos de um Deus ainda mais são mencionados no v. 2, é que eles perce-
poderoso, o Deus de Israel. Ele pessoal- bem ser os acusados.
mente, como SENHOR dos Exércitos (9,10), A espada de dois gumes do castigo di-
empunhará sua própria espada, trazendo a vino fica evidente aqui. Enquanto aqueles
destruição e morte deles. que injustamente se opõem ao povo de
2.13-15 Assíria. Voltando-se para o Deus irão sofrer, sua própria punição tra-
norte, Javé confronta o inimigo mais in- rá libertação e cura para aqueles a quem
domável de Judá, a Assíria, com sua cida- oprimiram. É importante manter um bom
de mais importante, Nínive (v. o livro de relacionamento com Deus em vez de pres-
Naum). Essa nação poderosa e cruel, que supor que esse relacionamento já existe,
dominara o Oriente Médio com mãos de como o próprio Judá é relembrado nos ver-
ferro por décadas, será destruída pela mão sículos seguintes.
ou poder (cf 1.4) do Deus de Israel. Sua 1 Jerusalém, a capital da nação com
capital cheia de vida se tomará um deserto quem Deus fizera sua aliança, que havia
desolado e vazio. sido escolhida como um modelo de san-
14,15 A totalidade da destruição é re- tidade e fidelidade no mundo pagão, está
tratada pela indicação dos animais e pás- na verdade se comportando de um modo
saros que habitarão nos capitéis, em con- muito pior que seus vizinhos. A cidade se
traste com a multidão de pessoas que ali rebela contra a aliança (cf Jr 4.17; 5.23),
tinha vivido. Essa metrópole reivindicara oprimindo outras em vez de nutri-las. Em
ser única, uma característica do próprio vez de ser um povo puro e santo, tornou-
Deus (cf Is 45.5,6,18,21). Sua segurança se cidade manchada, como alguém cujas
é ilusória, uma vez que agora os viajantes mãos estão maculadas por violento derra-
olharão com assombro e desdém para as mamento de sangue (cf Is 59.3; Lm 4.14).
SOFONIAS3 1284

2 A rebelião (1) de Jerusalém é contra suas instruções na aliança. Seu apelo é no


seu próprio Deus. O povo não ouve quan- sentido de que seu povo seja poupado dos
do o profeta fala (Is 30.8-12; Am 2.12). horríveis "castigos" (NVI) que atingiram
O povo não aprende quando é corrigido seus vizinhos e que lhe sobrevirão; mas
ou disciplinado por seus poderosos atos isso é em vão. Eles não apenas continuam
na história da nação (Is 1.5-9; Jr 5.3). Em com sua corrupção, mas a perseguem avi-
vez de procurar a ajuda oferecida pelo damente. Eles rejeitam a graça de Deus.
concessor da aliança, dão-lhe as costas, 8 "Por isso" (NVI), isto é, à luz de to-
recusando-se a confiar no Deus que cum- dos os pecados das nações e da própria
pre suas promessas. Jerusalém (1.14-3.7), Deus dará início a
3,4 A opressão e o aviltamento de um julgamento da aliança contra toda a ter-
Jerusalém são trazidos por seus líderes, ra. Como promotor, ele ajuntará todos os
tanto civis (3) como religiosos (4). Aqueles povos e nações. Ele servirá como testemu-
devoram os que estão sob seus cuidados, nha, testificando (cf Jr 29.23; Mq 1.2) dos
como bestas ávidas por suas presas. Estes pecados deles. Como juiz, ele decidirá o
pervertem completamente seu chamado. caso, e como executor ele executará a sen-
Em vez de proclamarem as verdades de tença, e toda a terra será consumida pelo
Deus em seu nome, os profetas buscam furor da sua ira e pelo fogo do seu zelo.
glória para si mesmos, por suas próprias
mentiras e estratagemas. Em vez de manter 3.9-20 O dia como esperança
a santidade do templo e ensinar obediência Deus é compelido por sua justiça e santi-
à lei, os sacerdotes profanam o santuário e dade a punir o pecado em seu povo e em
pervertem a obediência (cf Ez 22.26). toda a terra (8). Entretanto, ele é um Deus
5 Há um contraste entre Jerusalém e amoroso e compassivo, de modo que a terra
seus líderes, por um lado, e o Deus justo não será totalmente destruída. O juízo fun-
que não está envolvido de maneira ne- cionará como um agente purificador para
nhuma em qualquer iniquidade (cf v. 13), todas as nações (9,10), embora de forma
por outro. Isso deveria inspirar o arrepen- mais específica para seu próprio povo (11-
dimento, mas não é o que acontece. Em 13). Essa graça totalmente imerecida é um
contraste com o juízo infalível, a contínua dom gratuito do próprio Deus (18-20); é
justiça equitativa de Deus, o iníquo não algo por que se alegrar e regozijar (14-17).
conhece a vergonha, nem mesmo reconhe- Essa mudança de tom e de ponto de
ce o erro de suas ações. vista não resulta do acréscimo, feito por
6,7 Deus sofre quando tem de punir, algum outro autor de um período poste-
e fornece para seu povo exemplos de na- rior, de seu piedoso otimismo a um livro
ções que enfrentaram sua ira, e como re- de outro modo deprimente. Antes, é um
sultado foram destruídas (cf 1.3,4,13; retrato de Deus em muitos dos multifor-
2.4,9,13,15; 3.7) e completamente despo- mes aspectos de seu caráter. Ele não é
voadas. Jerusalém, entretanto, não ouve. apenas o juiz antes do exílio nem é ape-
Deus não é caprichoso, punindo sem avi- nas o salvador após o exílio, mas, como
so ou razão. Na verdade, ele é longânimo, um pai (cf Os 11.1-4), é capaz de amar
disposto a reter sua ira se o arrependimento mesmo durante o ato em que disciplina. A
estiver por vir (Êx 34.6,7; Nm 14.18,19; dor causada pelo juízo não é um fim em si
Am 4.6-11; Rm 9.22-24). Ele quer que as mesmo, mas o meio para restaurar o bom
pessoas vivam sob sua aliança, temendo-o relacionamento.
e aceitando suas instruções. Isso envolve 3.9,10 As nações. Então, no "Dia do
não apenas atitudes corretas em relação a SENHOR", Deus restaurará aqueles que caí-
ele, mas também ações corretas à luz de ram ao purificar o que estava impuro. Seus
11
1285 SOFONIAS 3-:'

lábios são escolhidos para a renovação (cf 3.14-17 Regozija-te. Visualizando as


Is 6.5-7) para serem usados agora para in- bênçãos das mãos de Deus como algo já
vocar o nome do SENHOR em adoração e ser- alcançado, o profeta convida seu povo a se
viço. Esse serviço será caracterizado pela alegrar. Esse pequeno salmo de salvação
unidade (de comum acordo, cf Jr 32.39) e (cf S198; Is 12.1-6; 52.7-10) pode ter sido
universalidade, uma vez que todos podem proferido por Sofonias ou ter sido tomado
invocá-lo. A unidade de fala inicial perdida da liturgia existente. Ele continua a louvar a
em Babel (Gn 11.1-19) será enfim restau- Deus por sua presença em Sião, como pro-
rada, de modo que toda a criação poderá metido em sua aliança com Davi (2Sm 7;
adorar a Deus. cf S12; 89).
Um dos povos distantes a responder 14,15 O chamado para que o remanes-
será aquele dalém da Etiópia (Cuxe), no cente de Judá cante de alegria é repetido
alto Nilo. Existe alguma dificuldade textual três vezes. O júbilo não tem origem em
na última metade do versículo, mas quer suas próprias ações, mas na presença de
signifique alguns dentre o povo exilado de seu Deus. Suas sentenças (cf v. 8) foram
Deus (como na NVI), quer recém-converti- afastadas, e o inimigo, o instrumento da ira
dos a Javé (cf 2.11), os recipientes da graça de Deus, foi removido. Agora, na presen-
de Deus irão adorá-lo, trazendo-lhe sacrifi- ça benevolente de seu amoroso SENHOR e
cios (cf SI 72.10). Não importa quem se- Rei, Javé, eles já não têm razão para temer
jam, esse povo agora é reconhecido pelo (cf 1104.18).
próprio Deus como sendo seu povo. 16,17 Naquele dia, o "Dia do SENHOR",
3.11-13 Jerusalém. Falando diretamen- antes visto em seu aspecto mais sombrio
te à cidade de Jerusalém, com seu templo si- (cf 2.7,14), é agora apresentado em seu
tuado no seu santo monte, Deus oferece es- aspecto positivo. O temor (Não temas), e
perança. Tanto o castigo como a vergonha sua manifestação fisica, a impotência (não
serão afastados da cidade pela intervenção se afrouxem os teus braços; cf Is 13.7;
direta de Deus. A soberba, a arrogância Jr 6.24), são coisas do passado em virtude
da autodeterminação sem Deus, será er- da presença do Deus de Israel, que tam-
radicada. Em contraste com os que foram bém é seu Rei (15). Em seu poder como o
banidos estarão os modestos e humildes, "SENHOR dos Exércitos" (2.9) ele é pode-
os que permanecerão na cidade e que são roso o suficiente para salvá-los (poderoso
os restantes de 2.7. São os que confiam na para salvar-te). Assim como agiu em favor
provisão de Deus em vez de confiar em do seu povo no passado (Dt 4.34), ele o
seus próprios recursos. Aqueles oprimidos fará novamente naquela época e hoje (SI
pelas circunstâncias (2.3; cf Mt 5.3) e os 24.8; 2Co 10.4). Poder e bondade são com-
empobrecidos encontrarão seu refúgio em binados na mesma figura (cf Is 40.10,11).
Javé e em seu poderoso nome (9). O "SENHOR dos Exércitos" também é como
Esses sobreviventes são descritos ne- um pai que se alegra com o retomo do filho
gativamente, em contraste com os malfei- perdido e aquieta seus temores. O grito de
tores dos versículos anteriores. Eles são guerra (1.14) será substituído pelo canto
os que não praticam a iniquidade (5), não doce de uma mãe para seu filho.
proferem mentira e não têm língua enga- 3.18-20 Promessas adicionais. Embora
nosa. Suas próprias bocas serão purificadas o povo já tenha motivos para se alegrar, a
por Deus (9). Enquanto os iníquos buscam profundidade das bênçãos de Deus ainda
segurança em sua própria malícia e não a não foi explorada. Mesmo que o texto do
encontram, os pobres a encontrarão, assim v. 18 seja obscuro, aparentemente trata-se
como o descanso (cf 2.7,14; SI 23.2) e a de uma bênção concedida por Deus, per-
libertação do medo. mitindo que os que estavam entristecidos,
SOFONIAS 3 1286

possivelmente pela falta anterior da adora- Deus e ele ainda é o seu Deus (Êx 6.7). Eles
ção a Deus (festas solenes), se aproximem ainda se tratam com intimidade.
dele com alegria, por vontade própria e Deus faz uma síntese, ao reiterar seu
não por obrigação religiosa. plano para restaurar o povo. Isso não so-
A opressão anterior, causada por amea- mente os beneficia, mas também motiva
ças externas e corrupção interna (3.3-4), todos os povos da terra, aqueles que so-
será eliminada, e aqueles fisicamente de- freram a punição de suas mãos (1.2; 3.7,8),
ficientes (cf Mq 4.6,7) e geográfica ou so- a reconhecer seu cuidado em relação a seu
cialmente exilados (expulsos; cf Dt 30.4) povo, que passou de objeto de escárnio a
serão congregados (18) e recolhidos (8,20). objeto de louvor.
Até o louvor será restaurado para aqueles Toda a profecia por certo termina como
que sofreram ignomínia (cf 2.1; 3.5). começou, em nome do SENHOR, Javé. O
Javé está envolvido pessoal e ativamen- maior desejo de Deus não é o de impor o
te em abençoar, assim como estivera em juízo, mesmo sobre aqueles que lhe deso-
julgar (cf 1.3). Ele fala diretamente (por bedecem. Antes, seu desejo é restaurar a
meio do pronome pessoal eu ou por verbos todos, para que possam ter um bom rela-
conjugados na primeira pessoa do singular) cionamento com ele. Tanto nacionalmente,
oito vezes nesses últimos três versículos. como fez com seu povo Israel, quanto indi-
Ele também se dirige a Israel na segunda vidualmente, na vida de cada um de nós,
pessoa do plural, tratando-o por vós. Apesar seu anseio é poder restaurar nossa sorte.
da tensão provocada pelo pecado em seu
relacionamento, Israel é ainda o povo de David W. Baker
AGEU

INTRODUÇÃO
o texto a.C.), eles recomeçaram o trabalho da re-
Há um ditado segundo o qual o melhor construção do templo, impelidos pela pala-
comentário bíblico é a própria Bíblia. No vra do Senhor por meio de Ageu (1.14,15).
caso de Ageu isso é particularmente ver- A reconstrução terminou em 516 (Ed
dadeiro. Os acontecimentos do livro ocor- 6.15), por volta de 70 anos depois de o
reram durante o segundo ano do reinado templo anterior ter sido destruído na queda
de Dario (1.1), que é também a época dos de Jerusalém, em 587 (v. Jr 25.11; 29.10;
primeiros capítulos do livro de Zacarias Dn 9.2). (V. também quadro na página 949
e parte do livro de Esdras (Zc 1.1,7; e mapa na página 661).
Ed 4.24--6.15). Para termos um quadro O futuro também está em mente. Deus
mais completo, portanto, podemos ler es- promete que distúrbios ambientais e políti-
sas três passagens lado a lado. Além disso, cos farão com que seu templo fique cheio,
será de grande auxílío ler sobre a atitude e que seu líder será mantido em segurança
de Deus em relação à desobediência de seu no distúrbio vindouro (2.6,7,22,23).
povo em Deuteronômio 28 e Amós 4.
Não se sabe quem registrou por escrito As pessoas mencionadas
o livro de Ageu. Pode ter sido o próprio no livro
Ageu. O interesse pela autoria é uma preo- O livro se refere a Ageu simplesmente
cupação moderna; os livros do AT raramen- como "o profeta". Nada se comenta sobre
te mencionam quem escreveu o seu texto. sua família, e seu nome não pode ser encon-
Em contraste, o nome de qualquer pessoa trado em nenhuma das listas dos exilados
que tenha profetizado é quase sempre re- que retomaram. Dado esse silêncio, parece
gistrado. Todas as profecias desse livro são vã qualquer tentativa de especular sobre
atribuídas a Ageu (1.1,13; 2.1,10,20). suas origens. A ideia de que ele ignorava
O texto do livro se encontra em boas as obrigações sacerdotais, por causa de
condições. Alguns estudiosos têm propos- suas perguntas aos sacerdotes em 2.11-13,
to que a repetida expressão "ao vigésimo não é muito convincente. Pelo fato de suas
quarto dia" (1.15; 2.10) é um sinal de que o profecias terem sido aceitas prontamente,
texto foi corrompido, mas não há necessi- podemos deduzir que ele já tinha sido re-
dade de se criar dificuldades aqui. O texto conhecido como um verdadeiro profeta.
faz perfeito sentido como está. Dario (1.1) é conhecido como Dario I,
filho de Histaspes, que governou a Ba-
Os acontecimentos bilônia de 522 a 486 a.c. Ele sucedeu a
O pano de fundo do livro de Ageu pode Cambises (530-522), que tinha sucedido
ser encontrado em Esdras 1--4. Os exi- a Ciro, seu pai (539-530; v. Ed I).
lados que retomaram tinham começado a Zorobabel, governador de Judá, era um
reconstruir o templo em 536 a.C. (Ed 3.8), membro da família real. Era descendente
mas tiveram de interromper o trabalho em de Joaquim, que fora levado ao exílio em
virtude da oposição local (Ed 4.1-5,24). 597 a.c. (2Rs 24.15; cf Mt 1.11-13). De
No segundo ano do reinado de Dario (520 acordo com 1.1, ele era filho de SalatieI.
AGEU 1288

Não é nada fácil relacionar esse fato com cessem, e prometendo que isso resultaria
1Crônicas 3.18,19, onde é dito que ele é em bênçãos.
filho de Pedaías. Talvez tenha havido uma Uma das características da palavra de
adoção, ou mesmo um casamento levi- Deus é a sua relevância recorrente para
rato, que não foi registrado (Dt 25.5,6). sucessivas gerações. O cumprimento da
Talvez a coroa não passasse ao descen- profecia não é necessariamente limitado a
dente direto, como acontecia na Inglaterra uma simples aplicação. Ela pode ser com-
no século XVIII. parada à arte de atirar uma pedra achatada
Josué, o sumo sacerdote (também cha- de modo que deslize sobre a superficie de
mado de "J esua" em Esdras e Neemias) era um lago. Em vez de afundar assim que atin-
o filho de Jozadaque que tinha sido levado ge a água (como presumiríamos com base
ao exílio em 587 (lCr 6.15). Ele foi um sa- na lei da gravidade), a pedra ricocheteia,
cerdote importante, se não o próprio sumo tocando o lago em uma série de pontos, de-
sacerdote, de 537 em diante (Ed 2.2,36,40; vido à energia adquirida no arremesso (cf
3.2). Deus lhe dirigiu palavras especiais 1Sm 3.19,20).
em Zacarias 3 e 6.11-13. Seu nome signi- Um exemplo disso nas Escrituras é o
fica "Deus salva", e é a forma hebraica por tema recorrente da libertação por meio da
trás da forma grega "Jesus". água. Noé foi salvo em uma arca (Gn 7.1);
Aqueles descritos no livro como "povo" mais tarde, Moisés foi preservado em um
eram o remanescente dos que tinham ido cesto (a mesma palavra para "arca" no
para o exílio na Babilônia e agora retor- hebraico; Êx 2.3); tempos depois, o povo
navam aJudá (1.14; Ez 4.1). Sua primeira foi salvo no mar Vermelho (Êx 14.21-29).
tentativa de reconstruir o templo encon- Esse tema é retomado em várias passa-
trou oposição do povo local que vivia em gens posteriores, e se torna parte do sim-
Samaria na época (Ed 4.17-24). bolismo do batismo cristão (e.g., Jz 5.21;
Embora não haja nenhuma referência Is 43.2; 51.10; 1Co 10.1,2).
explícita à vinda do Messias, há muito se Assim, no livro de Ageu podemos es-
sentia que as promessas feitas a Zorobabel perar que a palavra de Deus tenha mais de
(2.23) e a Josué (Zc 6.11-13) eram de tal um nível de aplicação. Assim como ante-
monta que encontrariam seu cumprimento cipam o cumprimento das profecias em al-
definitivo no Messias prometido. Ver tam- guns meses ou anos, também é pertinente
bém o comentário em 2.7. olharmos adiante para períodos posterio-
Podemos observar que à parte os bre- res, especialmente para a vida de Jesus e
ves "sim" e "não" dos sacerdotes, nin- para sua igreja, e aliás para os nossos pró-
guém, a não ser Ageu, fala no livro. Eles prios dias também.
simplesmente agem em resposta à palavra Isso nos leva à expressão "dentro em
de Deus por meio de Ageu. Isso destaca o pouco" (2.6). Embora ela possa nos dar a
fato de que a palavra de Deus atinge seus impressão de um curto período, do ponto de
propósitos (cf Is 55.1O, 11). vista humano, pode, em vez disso, ser um
período curto do ponto de vista de Deus, para
As profecias quem mil anos são como um dia (2Pe 3.8).
Houve cinco profecias em três dias, du- Se este for o caso, não seria dificil discernir
rante o período de quatro meses, em 520 os cumprimentos posteriores das palavras
a.c. Todas elas vieram de Ageu, e em cada de Ageu centenas de anos depois.
caso foram endereçadas a pessoas especí- Isso finalmente nos leva à possível
ficas. Nas palavras dessas profecias, Deus aplicação das palavras de Ageu à nossa
queria abrir os olhos do povo, encorajan- época. Alguns encontram nas palavras de
do-os para que se arrependessem e obede- Ageu (2.9,21-23) esperança para a paz no
1289 AGEU(
monte do templo em Jerusalém, e proteção por meio do completo e verdadeiro arre-
para o Israel de hoje. Outros enxergam pendimento de qualquer motivo que per-
uma aplicação espiritual dessas promes- mita que a maldição opere, rogando a Deus
sas à igreja, argumentando que o reino que aplique os efeitos da cruz à nossa vida
de Jesus não é deste mundo (Jo 18.36; v. (Pv 26.2; GI3.12-14).
lCo 3.26; 6.19; Ap 21.22). Outros, nova-
mente, preveem o cumprimento em ambas Repetição
as arenas. Entretanto, devemos ser cautelo- O uso da repetição nos textos do AT via de
sos; poucas pessoas esperavam que Jesus regra é digno de nota. No livro de Ageu, as
cumprisse a profecia da maneira como ele palavras proferidas por Deus tendem a ser
o fez. Evidentemente, é muito mais fácil repetidas. Quatro vezes se diz ao povo para
reconhecer o cumprimento da profecia que considere seu passado (1.5,7; 2.15,18);
após seu acontecimento do que antes. duas vezes é feita uma comparação entre o
estado em que se encontra a casa de Deus e
A maldição as casas do povo (1.4,9); duas vezes Deus
Embora a palavra "maldição" não apareça diz a eles: "Eu sou convosco" (1.13; 2.4); e
no livro de Ageu, a descrição do que esta- a instrução "sê forte" aparece por três vezes
va acontecendo ao povo corresponde bem (2.4). As listas dos desastres que atingiram
de perto às "maldições" do Pentateuco, as o país são repetidas (1.6,10,11; 2.16,17,19).
quais Deus tinha prometido ao seu povo A profecia de que as nações serão abaladas
se este não lhe obedecesse nem desse também é repetida (2.6,21,22).
atenção às suas palavras (Dt 28). O povo Em vista da grande quantidade de re-
tinha estado sob a maldição de Deus no petições em tão poucos versículos, podería-
exílio (Zc 8.13) e evidentemente ainda es- mos perguntar qual seria a sua finalidade.
tava, a despeito do fato de ter voltado para Talvez tenha sido a de dar ênfase mais
casa (1.6,11). acentuada a determinados pontos, uma
Esse tipo de linguagem pode parecer vez que as pessoas precisam ouvir as coi-
estranha para nós, mas devemos ter em sas mais de uma vez para que a mensagem
mente que nas Escrituras Deus não apenas possa ser compreendida (2Pe 1.12,13).
abençoa, mas também amaldiçoa. Isso não Outra possibilidade é sugerida pela inter-
deixou de acontecer na vinda de Cristo, pretação que José deu aos sonhos do faraó.
que amaldiçoou a figueira. Essa história re- O sonho veio duas vezes para mostrar que
presenta um dos lados da visita de Jesus ao Deus estava firmemente decidido, e iria se
templo (Me 11.12-21), e a ação de Jesus "apressar" em fazer aquilo que pretendia
pode ser vista como uma explicação do (Gn 41.32). Sobre quanto tempo demora-
que aconteceria mais tarde à comunida- ria esse "apressar", ver o tópico "As profe-
de do templo do povo de Deus. O tem- cias", tratado anteriormente.
plo, que tinha sido reconstruído desde os
dias de Ageu (Jo 2.20), foi destruído em Estrutura e tema
70 d.C., e o povo foi espalhado entre as O conteúdo da primeira metade do livro é
nações (Mc 13.1,2; Lc 21.24). repetido em detalhe na segunda, como é
A maldição de Deus continua a operar mostrado no diagrama a seguir.
nos dias de hoje, e será removida apenas Um tema suscitado por isso é que sem-
no final, na era dos novos céus e nova pre que o povo de Deus se arrepende e se
terra (Ap 22.3). Os fiéis precisam enten- volta a ele, e segue suas condições, em res-
der os danos e os efeitos contínuos que o posta Deus não apenas os abençoará, mas
pecado tem em nossa vida. Nós podemos haverá tremendas repercussões na socieda-
nos libertar de qualquer maldição, agora, de e além.

. : _ AGEU 1 1290

Deus traz aflição Deus mostra favor Deus fará abalar

Profanação Angústia Abalo Segurança


Bênção (2.18,19)
(2.10-14) ( 2.15-17) (2.20-22) (2.23)

ESBOÇO
1.1-11 A mensagem de Deus para os líderes de Judá: "A minha casa e a vida de vocês
estão em ruínas"
1.12-15 A reação do povo: Começa a reconstrução
2.1-9 A mensagem de Deus sobre o novo templo: "Eu transformarei a vida de vocês"
2.10-19 A palavra de Deus sobre a maldição: "Eu substituirei a maldição por bênção"
2.20-23 A promessa de Deus a Zorobabel: "Eu manterei meu líder em segurança"

COMENTÁRIO o SENHOR responde com palavras tira-


das da boca do próprio povo: tempo e casa.
1.1-11 A mensagem de Deus Por que é tempo de trabalhar em suas casas
para os líderes de Judá: e não na casa de Deus? Ao construir para si
..A minha casa e a vida de próprio e não para Deus, o povo aparente-
vocês estão em ruínas" mente não se importava se o Senhor vivia
1.1-4 De quem é a casa mais importan- ou não entre eles. As prioridades do povo
te? O livro começa estabelecendo a data eram reveladas por suas próprias atitudes.
(520 a.C.), o povo para quem veio a pa- As palavras ruína e seca (11) são muito
lavra de Deus e o agente por intermédio semelhantes no hebraico. A chuva era tida
de quem ela veio. (Para mais detalhes, v. como bênção para Israel (v. SI 65.9,10) e a
Introdução). Embora afetasse toda a comu- sua falta era proporcional à falta de aten-
nidade, nesse estágio a palavra foi dirigida ção à casa de Deus.
somente aos dois líderes. 1.5-11 Abram os seus olhos. O povo
O povo era contra a construção do estava sob maldição (Dt 28.15-68). Um dos
templo. Anteriormente, seus vizinhos efeitos de estar sob maldição é ficar confuso
tentaram desencorajá-los e amedrontá- e, consequentemente, deixar de compre-
los (Ed 4.4,5). Entretanto, não há sinal de ender o que está acontecendo (Dt 28.28).
que isso ainda fosse assim. Nessa época, Esse era o caso aqui. A maldição afetava
o povo estava vivendo em casas apaine- os alimentos, a bebida, as vestimentas e o
ladas. Essa expressão implica prosperida- dinheiro do povo. A situação de deixar de
de e conforto, e que a construção de suas reconhecer a mão de Deus em nossas pro-
casas estava terminada. vações é bastante comum entre os crentes
11
11
1291 AGEU 211
1111

de hoje; nós não percebemos os efeitos Deus tivesse Josué e Zorobabel em tão alta
do pecado que toleramos em nossa vida conta (2.23; Zc 6.11-13).
(Am 4). Isso não quer dizer que todo de- Uma vez que eles obedeceram, Deus
sastre se deva ao pecado, mas que o peca- enviou uma curta mensagem ao povo por
do tem suas consequências (Os 8.7). meio de Ageu. Em vista da maldição, eles
O problema do povo não era a falta de poderiam esperar uma mensagem do tipo:
dinheiro, uma vez que tinham casas com "Eu estou contra vós"; em vez disso, ouvi-
fino acabamento e bons salários (4,6). A ram Deus dizer: Eu sou convosco. A mal-
questão era que seu dinheiro rapidamente dição de Deus não é um sinal de que ele te-
perdia valor. O efeito danoso da inflação nha rejeitado o seu povo; antes, ela mostra
é visto aqui como algo de origem espiri- o amor de Deus por ele. Ele quer trazê-los
tual, um fato que hoje é frequentemen- de volta, usando desastres para despertá-
te ignorado, quando se fazem tentativas los (Am 4.6-11; cf Am 3.2; Is 7.13-25,
de debelar a inflação sem investigar as onde Emanuel significa "Deus conosco").
suas causas. À medida que o povo humildemente
A seca atingia até mesmo o orvalho obedecesse à palavra de Deus e começas-
(Dt 11.10-17; 28.23). Os efeitos mar- se a trabalhar, ele os ajudaria. Nós temos
cantes da maldição são mais enfatizados um papel em trazer a bênção de Deus, ao
(cf Dt 28.18,38-40). A desobediência do escolhermos agir em submissão à sua von-
povo fizera com que o tipo de vida des- tade (2Tm 1.6,7). No hebraico, as palavras
crito em Salmos 104.10-23 parecesse um "enviado" e "trabalho" são semelhantes.
sonho distante. O uso em conjunto dessas palavras aqui
As palavras de Deus sugerem que sua nos lembra de que uma profecia não é uma
casa deveria ser construída no mesmo lugar "bênção" para ser admirada, mas uma ins-
e com a mesma planta anterior (cf 2.20- trução que deveria nos levar à ação.
23). O propósito era que, no templo, Deus Alguns estudiosos costumam entender
pudesse se alegrar, e nele receber toda a a repetição "ao vigésimo quarto dia" (15)
honra. Esse ainda é o seu desejo para o em 2.10 como uma indicação de que o tex-
seu povo hoje, que atua como um edificio to foi corrompido, mas não há razão para
espiritual (1Co 3.9-17). duvidar de sua autenticidade.

1.12-15 A reação do povo: 2.1-9 A mensagem de Deus


Começa a reconstrução sobre o novo templo: "Eu
Os líderes e o povo não só aceitaram a pa- transformarei a vida de vocês"
lavra de Ageu como agiram de acordo com 2.1-5 Os presentes propósitos de Deus.
ela. O texto deixa claro que o povo se opu- Mais uma vez Deus fala por intermédio
nha à construção do templo, mas não sa- de Ageu; dessa vez, a palavra foi dirigida
bemos se isso também se aplicava a Josué tanto aos líderes quanto ao povo. Deus res-
e Zorobabel. Se eles compartilhavam do pondeu aos pensamentos dos mais velhos
ponto de vista do povo, então sua mudança entre o povo, que se lembravam do primei-
de coração é digna de nota, uma vez que ro templo e estavam desapontados com sua
seus antepassados sempre se opuseram aos reconstrução. Esses sentimentos podem ter
profetas, desde os tempos de Moisés. Ageu sido oralmente verbalizados, como tinham
devia saber como falar com o povo e tam- sido anteriormente (cf Ed 3.12). Mas tam-
bém com Deus. Parece muito mais fácil ver bém podem ter sido pensamentos secretos.
os líderes como homens santos, capazes de Se foi assim, então Deus falou diretamen-
aceitar as palavras de Deus e de conduzir te à mente das pessoas, de um modo que
o povo a segui-las. Não é de admirar que ultrapassou o conhecimento dos profetas

. : . AGEU 2 1292

(cf Lc 7.39,40). Isso certamente atraiu a 2.6-9 Os propósitos futuros de Deus.


atenção do povo. Esses versículos são citados em Hebreus
A instrução sê forte foi dada a Josué, 12.26,27. Isso sugere que é melhor con-
o sucessor de Moisés, por ocasião da en- siderar qualquer cumprimento durante
trada na terra prometida (Js 1.6,7,9,18). a época de Zorobabel (cf 2.22,23) algo
Podemos observar que tanto na primei- parcial, e não completo (v. Introdução). O
ra vez que entraram na terra prometida autor da Epístola aos Hebreus vê a descri-
quanto na segunda, na época de Ageu, o ção de Deus abalando a terra como uma re-
líder se chamava Josué. Isso pode ter sido ferência ao Sinai (Êx 19.18). Isso implica
mera coincidência, ou podemos escolher que a voz de Deus será ouvida no evento
comparar a segunda época com a primei- que está por vir, e é por isso que as coisas
ra. Os dois Josués agiram de acordo com a preciosas de todas as nações virão à casa
instrução de Deus para que fossem fortes, de Deus.
e assim herdaram as promessas de Deus. Quando Deus entra em cena, sua cria-
Em ambas as situações, embora Deus ti- ção estremece (cf Jz 5.4,5). No Sinai, o
vesse fortalecido o povo (1.14), cabia a tremor foi limitado a um monte, mas ago-
eles cumprir as suas ordens. O mesmo ra ele envolverá todo o ambiente. A ideia
trabalho conjunto é necessário no serviço pode ser figurada, algo parecido com a
de Deus hoje. expressão que usamos "isso faz a terra tre-
A expressão que se repete Eu sou con- mer". Entretanto, isso pode sugerir condi-
vosco (4; v. comentário de 1.13 e Intro- ções turbulentas de clima e poluição (acer-
dução) pode estar ligada à próxima frase, ca da ideia de Deus ser o autor de aconteci-
que diz que a aliança permanece sólida. mentos cósmicos violentos, v. Ap 6.12-14;
Alguns dentre o povo podem ter pensado acerca de Deus como causador da poluição
que o exílio fosse um sinal de que a alian- em um mundo desobediente, v. Ap 8.3-12).
ça tinha chegado ao fim, ou que a contínua Tais coisas acontecerão antes do grande e
maldição indicasse a rejeição de Deus, mas glorioso "Dia do SENHOR" (cf At 2.19,20,
não era bem assim. Os dons e o chamado citando Joel 2.30,31). Isso sugere que se
de Deus são irrevogáveis (cf Rm 11.29). uma referência messiânica deve ser vista
Do mesmo modo, o Espírito de Deus nesse trecho e em 2.23, então a segunda
não se afasta por causa do pecado de seu vinda de Jesus pode ser o que o autor tem
povo, ou, pelo menos, não por muito tempo em mente, e não a primeira.
(v. 1Sm 4.22; 6). Nas visões de Ezequiel, a A frase as coisas preciosas de todas as
glória de Deus acabou deixando Jerusalém nações virão, no hebraico, tem o sujeito
por causa da maldade no templo, mas ape- no singular e o verbo no plural. Esta fra-
nas para ir até os exilados na Babilônia se poderia ser traduzida literalmente por:
(cf Ez 10.18-22; 11.22,23 com Ez 1.1; "O desejado de todas as nações virão ...".
11.16). Agora, o povo recebe a certeza de A frase pode ser entendida de várias ma-
que o Espírito de Deus voltou com eles neiras. Podemos tentar entender o texto da
da Babilônia, e para ficar. Essa certeza é forma como se apresenta ou mudar o he-
para todos aqueles que buscam a presença braico, colocando toda a frase no singular
de Deus com sinceridade e obedecem aos ou no plural.
seus mandamentos (Tg 4.8). Antes de nos apressarmos em alterar o
Ao povo foi dito para que não temes- texto, podemos observar que no livro de
se, mas que fosse em frente, com coragem. Daniel há um uso semelhante de singular
Essa instrução mostra que o povo de Deus e plural em uma profecia sobre a liderança
não deve deixar que o medo o impeça de escolhida por Deus. O Filho do Homem
obedecer a ele (110 4.4,18). recebe o reino (Dn 7.13,14), então, os
1293 AGEU2{

santos também recebem o reino, e o texto (Êx 33.18-20; 34.8). Quando a construção
muda abruptamente de "eles" para "ele" do primeiro templo e anteriormente a do
(7.26,27, NVI). Portanto, podemos tentar tabernáculo foram concluídas, ambos fi-
manter a natureza singular e plural de caram tão cheios da glória de Deus (sob a
nossa frase. forma de uma nuvem), que ninguém podia
Alguns tradutores (incluindo Lutero e entrar (Êx 40.34,35; lRs 8.10,11).
a AV) seguiram a Vulgata do século V d.C., A prata e o ouro de Deus não perdem
colocando toda a frase no singular: "e o seu valor com a inflação, em contraste com
desejado de todas as nações virá". Isso no os salários do povo sob maldição (1.6; cf
permite enxergar aqui uma referência ao Mt 6.19,20). Deus prometeu que apaz che-
Messias, o que harmoniza com o contexto gará, substituindo seus temores (5). Essa
(2.23 parece ter um certo quê messiânico). profecia teria seu primeiro cumprimento
Há problemas, porém, em colocar a frase logo depois (Ed 6.14-16).
em hebraico no singular.
É mais fácil alterar a frase inteira em 2.10-19 A palavra de Deus sobre
hebraico, passando-a toda para o plural a maldição: "Eu substituirei a
(como faz a Septuaginta): "os tesouros maldição por bênção"
de todas as nações virão" (semelhante 2.10-14 A lei e os sacerdotes. A palavra
na NVI). Isso pode ser uma referência à seguinte que veio aAgeu envolvia pergun-
intenção de Deus de incluir todas as na- tar aos sacerdotes a respeito da lei. Eles
ções do mundo em seu plano de redenção explicaram que a santidade não era trans-
(Is 49.6,7; 60.10; Zc 6.15). Também pode mitida pelo toque, mas que a impureza
significar que chegará o dia em que aquilo era. Por exemplo, qualquer um que tocas-
que o mundo considera o melhor e mais se em um corpo morto se tomaria impuro
fino fará parte do templo, em vez daquilo por uma semana e qualquer coisa que essa
que é pobre e desprezado (cf Zc 8.20-23; pessoa tocasse também se tomaria impura
ICo 1.26-29; Ap 21.24). Pode até mesmo (Nm 19.11,22). Deus disse que esse en-
significar que não haverá escassez de ri- sinamento poderia ser aplicado ao povo.
quezas e finanças deste mundo, olhando- Sua indiferença em relação à presença de
se para o v. 8. Deus deteriorava não apenas suas ofertas,
Enquanto a primeira opção possa ser mas tudo que eles faziam. Também hoje
mais atraente, se fosse necessário escolher os cristãos precisam ser implacáveis para
entre as outras duas, a segunda destas pare- com atitudes desleixadas, as quais não
ce preferível. Isso enfatiza que a amplitude são meramente neutras mas decididamen-
do plano de Deus para o mundo se reali- te impuras, e pedir a Deus que os purifi-
zará, sugerindo que os líderes mundiais que (Mt 5.29,30; 2Tm 2.20,21; cf Sf 1.7).
um dia se voltarão para Deus em busca de As falhas nessa área arruinarão a igreja e
direção e visão de uma maneira que jamais a sociedade.
fizeram (v. Is 2.1-5). 2.15-19 Da maldição para a bênção.
Duas vezes o texto diz que a casa de Parece que Ageu agora está se dirigindo ao
Deus se encherá de glória. A palavra aqui povo. Embora o povo tivesse começado a
pode simplesmente sugerir riqueza, devi- trabalhar, o progresso não era muito gran-
do à referência à prata e ao ouro entre as de. Foram necessários pelo menos três me-
duas afirmações. Entretanto, a palavra para ses para a preparação do terreno. Durante
glória, que também sugere "peso" em ou- esse tempo os efeitos da maldição estive-
tros contextos, tem um uso muito rico no ram presentes. Destruição, ferrugem e falta
AT, incluindo a descrição da presença im- de frutos são aspectos da maldição de Deus
pressionante de Deus que leva à adoração (Dt 28.22,38-42; Am 4.9).
l1li
)AGEU2 1294

Deus estava ansioso para mostrar que na derrota dos exércitos poderosos e na de-
fora a construção da fundação do templo sordem civil. A história de Israel ensinara
que trouxera uma mudança súbita e mar- ao povo que até mesmo os inimigos mais
cante. Isso pede uma explicação. Parece poderosos são abalados quando Deus age
provável que o povo tenha se reunido para (e.g., Jz 4.15; 7.22; lSm 14.20). Esse tema
essa cerimônia. Na época do primeiro tem- emerge de forma marcante nas profecias
plo, os maiores avanços espirituais foram sobre a guerra contra Israel, em Ezequiel
alcançados quando o povo estava reunido 38~39 (especialmente 38.19-22). Embora
(lRs 8.14; 65,66; 2Rs 23.1,2,21-23). Essa uma guerra envolvendo Israel não seja
reunião provocada por Ageu contrastava mencionada aqui, a promessa a Zorobabel
com as ações anteriores do povo, quando de que ficaria em segurança faz sentido em
trabalharam cada um por si na construção um contexto de perigo de ataque.
de suas próprias casas (1.4,9). Podemos di- A semelhança entre as passagens em
zer que uma das principais conquistas em Ezequiel e Ageu é tamanha que vale a pena
nosso texto foi o fato de o povo começar a perguntar por que o modelo do novo tem-
trabalhar em equipe, tomando-se unido. plo em Ezequiel 40-46 foi ignorado na
O significado de um ato de obediência época de Ageu. Não há uma resposta ób-
de âmbito nacional em um dia específico via para isso. Talvez eles não interpretas-
também pôde ser observado durante a pri- sem a visão como um esquema detalhado
meira vez que entraram na terra prometida que devesse ser posto em prática, vendo
(Js 5.9). Aí, também, poderíamos esperar seu propósito primário mais como um en-
que o "opróbrio do Egito" fosse removi- corajamento de que Deus estava com eles,
do muito tempo antes. No entanto, parece a despeito do exílio (v. comentário de 2.1-
ter havido uma demora que só terminou 5). Talvez as palavras do Senhor em 1.8,9
depois que toda a nação obedeceu à ins- tenham sido tomadas como uma instru-
trução sobre a circuncisão. Isso se deve ção para que o templo fosse reconstruído
ao fato de que a circuncisão e a posse da no mesmo local e com a mesma planta
terra estavam ligadas na aliança feita com com que Salomão construíra o primeiro.
Abraão (Gn 17.1-14). De todo modo, o templo de Ezequiel ja-
Se entendermos a construção da funda- mais foi construído e, com o fim dos sa-
ção do templo como uma ocasião signifi- crifícios de animais no Calvário, é difícil
cativa nesse sentido, então esse dia deve imaginar qual função exata ele teria agora
ter sido um ponto de virada ("o fim do co- (v. Ez 43.13-27).
meço", para citar a expressão de Winston Zorobabel e Josué obedeceram com
Churchill). Deus parecia estar observando prontidão e precisão à palavra do Senhor.
o compromisso do povo e o recompensan- Josué foi recompensado com a coroa em
do. Com isso podemos aprender que Deus Zacarias 6.11. Deus fala da aprovação de
recompensa ações decisivas tomadas em Zorobabel aqui, ao chamá-lo de anel de
conjunto por seu povo. Acerca da forma selar. Isso parece ser o inverso do julga-
que a bênção do Senhor assumiria, ver mento de Jeoaquim, rei na época do exílio
Zacarias 8.9-13. (Jr 22.44). Jeoaquim tinha sido rejeitado;
seu descendente é agora confirmado.
2.20-23 A promessa de Deus a Um anel como esse era um artigo mui-
Zorobabel: "Eu manterei meu to caro e podia ser usado no dedo ou ao
líder em segurança". redor do pescoço, preso a uma corrente;
Mais uma vez Deus diz que fará abalar o de todo modo, devia estar sempre ligado a
céu e a terra (v. comentário de 2.6,7). A seu proprietário, e nunca podia ser perdido
ênfase dessa vez está nas revoltas políticas, ou abandonado. Isso exprime o valor de
11II
1295 AGEU 2.-
11I
11II

Zorobabel para Deus. Parece que esse tipo apontam para o Messias, o líder escolhi-
de anel era usado para carimbar o selo real do por Deus para receber sua autoridade
em um documento, sugerindo que Deus (Dn 7.13,14). Deus se deleita naqueles
confiara a Zorobabel a autoridade para que lhe obedecem, e gosta de estar per-
executar sua vontade. to deles, mas retira sua bênção daqueles
Além de qualquer cumprimento da que lhe desobedecem (lSm 15.22,23;
promessa de Deus a Zorobabel que possa Mc 1.11; 104.34).
ter ocorrido durante a sua vida, podemos
entender que Zorobabel e Josué, juntos, David F. Pennant
ZACARIAS

INTRODUÇÃO
o livro [Javé], traduzida por "o SENHOR" em muitas
O livro de Zacarias divide-se naturalmen- de nossas versões bíblicas). Era um nome
te em duas partes: cp. 1-8 e 9-14. Os bastante comum; provavelmente por vol-
primeiros oito capítulos são claramente do ta de trinta diferentes indivíduos tiveram
próprio Zacarias, filho de Baraquias, neto esse nome no AT. Entretanto, era um nome
de Ido, e podem ser datados entre o oitavo apropriado para o profeta, por ele ter con-
mês do segundo ano do reinado de Dario clamado o povo a se lembrar do passado
(520 a.C") e o quarto dia do nono mês do e assim mudar seu comportamento (1.2-6;
quarto ano de seu reinado (518 a.C.). 7.5-14; 8.14-17).
Os cp. 9-14 são muito diferentes em É provável que Zacarias tenha retor-
estilo da primeira parte do livro. Esses ca- nado da Babilônia para Jerusalém em 538
pítulos, por sua vez, também podem ser a.C. Ele profetizou por volta de 520, junto
divididos em duas partes, 9-11 e 12-14, com Ageu, incentivando o povo a recons-
cada uma introduzidapelo título: "Sentença truir o templo, pois assim eles demonstra-
pronunciada pelo SENHOR" (ou: "orácu- riam ter colocado Deus em primeiro lugar
lo da palavra de Jeová", TB; ou: "Peso da em seus pensamentos (cf Ag 1.9). Deixar
palavra do SENHOR", ARe; v. Comentário). o templo em ruínas era o mesmo que mos-
O livro de Malaquias começa com essas trar que não se importavam realmente se
mesmas palavras. Deus habitava ou não em seu meio.
Não há nada de biográfico em relação
o profeta ao autor do livro nos cp. 9-14. Adiante
O avô de Zacarias foi provavelmente Ido, (A compilação) será abordada a questão da
que aparece entre os líderes dos sacerdo- autoria desses capítulos.
tes e levitas que retomaram do exílio para
Jerusalém, listados em Neemias 12.4. o contexto histórico
Parece que ele foi um homem importante Em 538 a.c., o rei Ciro conquistou a
pelo modo como Esdras 5.1 e 6.14 se refe- Babilônia e publicou um decreto permi-
re a ele: "Zacarias, filho de Ido". O próprio tindo que os exilados de muitos países,
pai de Zacarias é omitido nessa lista, mas inclusive Judá, voltassem para casa. Os
seu avô é incluído. Se essa conexão estiver judeus tiveram permissão para reconstruir
correta, então o próprio Zacarias era tanto o templo em Jerusalém (Ed 1.1-4) e vol-
sacerdote quanto profeta. taram para casa cheios de alegria e espe-
Mateus se refere a "Zacarias, filho rança, sob a liderança de Zorobabel (que
de Baraquias, a quem matastes entre o também pode ter se chamado Sesbazar,
santuário e o altar" (23.35). Se esse for cf Ed 3.8; 5.14-16). Eles construíram
o profeta de quem falamos, isso pode es- os alicerces do templo, mas os povos vi-
clarecer o significado de Zacarias 12.10 e zinhos, durante todo o reinado de Ciro,
13. 7 (v. Comentário). fizeram de tudo para impedir a conti-
O nome Zacarias significa "Yah lembra" nuação de seu trabalho (538-522 a.c.;
(Yah é uma forma abreviada de Yahweh Ed 4.4,5).
11
1297 ZACARIAS 1111
1111

Zacarias e Ageu incentivaram o povo sistiu quando o Império Grego foi estabe-
a levar a sério novamente a reconstrução lecido por Felipe da Macedônia e por seu
do templo; Tatenai, governador da provín- filho, Alexandre, o Grande.
cia além do Eufrates, Setar-Bozenai e seus Soma-se a essa incerteza o fato de que
companheiros se opuseram a esse traba- não podemos ter certeza da data dos cp.
lho e exigiram saber com que autoridade 9-14, e com isso fica claro que não po-
eles o desempenhavam (Ed 5.3). As auto- demos especificar com muita precisão o
ridades procuraram nos arquivos reais na contexto histórico desses últimos capítulos.
Babilônia e descobriram o decreto de Ciro Devemos nos satisfazer com o conhecimen-
(Ed 6.1-5), o qual não apenas permitia o to geral de todo o período e nos lembrar
retomo dos judeus a Jerusalém, mas espe- sempre de que pode ter havido muitas alte-
cificava que um auxílio financeiro deveria rações da situação e muitos acontecimen-
ser prestado a esse povo pelo tesouro real tos dos quais não temos registros.
(v. 4), e que todo o ouro e toda a prata do O esboço dos acontecimentos pode ser
templo deveriam ser devolvidos aos judeus estabelecido assim:
(v. 5). Foi assim que o próprio Dario en-
corajou os judeus, obedecendo ao decreto, o decreto de Ciro
pagando pela reconstrução, fornecendo Muitos exilados retornam a
animais para os sacrificios (8-10) e desen- Jerusalém
corajando quem quisesse atrapalhar esse Eles começam a reconstrução
trabalho (lI). do templo, mas são forçados
Zacarias deu grande ênfase à conclusão a interrompê-Ia e ficam
da construção do templo sob a direção de desencorajados

Zorobabel (4.9,10; 6.12). O templo total- Dario sobe ao trono


mente reconstruído seria um sinal de que Ageu e Zacarias incentivam o
Deus voltara a habitar em meio a seu povo povo a reconstruir o templo
(2.10; 8.8; cf 1.17; 2.12). Portanto, hou- Termina a reconstrução do
ve grande alegria quando, em 516 a.c., a templo
construção do templo foi concluída (Ed Reinado de Xerxes
6.14-16). O povo renovou seus votos de Oposição mencionada em
dedicação a Deus e esperava ansiosamente Esdras 4.6
por um tempo de bênçãos. Infelizmente, Reinado de Artaxerxes
suas expectativas não foram satisfeitas. Oposição mencionada em
Eles tinham por certo que a vida seria ma- Esdras4.7-23
ravilhosa, mas ela acabou por se mostrar Neemias vem a Jerusalém para
bastante dura. Nenhuma era dourada alvo- reconstruir os muros da
receu, e muitos começaram a se perguntar cidade
se Deus realmente estava com eles.
Início do Império Grego
Nosso conhecimento da história do
Ver também quadro na página 949.
período pós-exílico é cheio de lacunas.
Algumas das poucas fontes de informação
a que temos acesso não podem ser data- o texto e o cânon
das com precisão. Todavia, podemos ter O texto dos cp. 1-8 é em geral claro e li-
certeza de que durante o período em que vre dos erros que frequentemente resultam
Judá fez parte do Império Medo-Persa eles do processo de cópias de manuscritos ao
permaneceram um povo insignificante e longo de vários séculos. O sentido grama-
impotente, enfrentando a oposição de seus tical é evidente na maior parte das vezes,
vizinhos (e.g., Ed 4.6-24). A situação per- embora o significado exato do que o pro-
ZACARIAS 1298

feta diz algumas vezes seja obscuro (e.g., visões seja a de que estas vieram do pró-
2.8,9; 3.8,9; 4.lOb; 5.6). Os cp. 9-14 são prio profeta em um período posterior.
muito mais obscuros (e.g., 11.13; 12.10) Os seis últimos capítulos têm causado
e muitos estudiosos sugeriram "correções mais polêmica. Os estudiosos conservado-
no texto". Alguns deles também propuse- res geralmente sustentam que eles vieram
ram uma completa reordenação das seções do mesmo autor dos cp. 1-8, isto é, do
do livro, para tomá-lo mais lógico. Por profeta Zacarias. Os estudiosos liberais
exemplo, alguns removeriam a seção do têm universalmente negado essa posição e
cp. 4 que começa com "Esta é a palavra do com frequência argumentam que essa se-
SENHOR..." (6) e termina com " ...na mão de ção do livro é uma miscelânea de profecias
Zorobabel" (lO). Isso teria o efeito de res- normalmente não relacionadas entre si, e
taurar a conexão entre "e ele me disse ..." tendo vindo de um extenso período históri-
(6) com a segunda parte do v. 10. Em vista co bem posterior a 520 a.c.
do arranjo cuidadoso do texto pelo autor Uma mudança nesse panorama ocor-
e/ou editor, isso não pareceria um pro- reu com o trabalho de P. Lamarche, que
cedimento muito sábio (v. Comentário). argumentou que o todo de Zacarias 9-14
Alterações adicionais são sugeridas nos forma uma complexa estrutura na qual as
cp. 9-14, e algumas vezes transfere-se o passagens "messiânicas" ocorrem em pon-
trecho de 13.7-9 para o final do cp. 11, de tos em que há correspondência entre uma
modo a se manter os "trechos dos pasto- e outra, devendo ser tomadas em conjunto
res" em um mesmo bloco. para fornecer um retrato do Messias. Esse
O livro apócrifo de Eclesiástico (c. 180 estudo teve em geral uma recepção bastan-
a.C,) em 49.10 se refere aos "doze pro- te calorosa, e foi particularmente aprecia-
fetas", o que poderia sugerir que o cânon do pelos estudiosos conservadores.
profético já estava fixado no começo do Embora haja razões para não se acei-
século II a.c. A ordem dos chamados "pro- tar esse ponto de vista em detalhes (v.
fetas menores" varia entre os diferentes Introdução), há, entretanto, uma unidade
manuscritos, mas os cp. 1-14 de Zacarias nesses capítulos. Eles tratam de temas re-
são sempre encontrados juntos. correntes, notadamente juízo e bênção por
meio de ações militares, e da liderança do
A compilação povo de Deus (sob as figuras do "rei humil-
A maior parte dos cp. 1-6 consiste em de", "do pastor e do rebanho" e do "pastor
uma série de oito visões (1.7-6.8) às ferido"). Várias dessas passagens são cita-
quais foram acrescentados outros oráculos das por Jesus no NT (v. também Conteúdo e
(2.6-13; 6.9-15; cf 4.6-lOa). Estrutura e Comentário).
Os cp. 7-8 tratam de uma pergunta
sobre o jejum feita a Zacarias por alguns A teologia de Zacarias
homens vindos de Betel. Zacarias faz uma Em todo o livro de Zacarias a ênfase está
longa exortação, dando-lhes em seguida no poder de Deus sobre todo o mundo. Ele
uma ordem e uma promessa, antes de fi- permitiu que as nações punissem seu povo,
nalmente responder a pergunta. Judá, mas havia limites rigorosos para
Não há nenhuma dúvida de que o ma- aquilo que podiam fazer. Judá tem sido e
terial básico dos cp. 1-8 venha do próprio continua a ser o povo eleito de Deus, e seu
Zacarias. Pode muito bem haver passagens castigo tem o propósito de restaurá-lo, para
que sejam de algum editor ou editores que possa ter um relacionamento puro com
(e.g., 1.1; 1.6b; 2.6-13; 4.6-10 [v. acima]; ele. Aquelas nações que excederam os li-
6.9-15; e partes de Zc 7), embora a expli- mites agora serão julgadas. Nesse plano, há
cação mais provável para os acréscimos às um importante papel a ser desempenhado
1299 ZACARIAS .rI
11II

rl
lIIII

por certos indivíduos. As personagens his- embora estas, a princípio, fossem bem-su-
tóricas de Zorobabel (o governador) e de cedidas (9.1-8; 12.1-9; 14.1-4,12-15).
Josué (o sumo sacerdote) são mencionadas c. Sua promessa de ser seu Deus (13.9;
como os responsáveis pela restauração do cf 10.6; 12.5), adorado em Jerusalém
templo e da adoração. Mas elas possuem (14.16,20,21).
um significado muito maior do que esse. d. A preocupação implícita de que o
Representam "os ungidos" que se colocam povo reconheça a palavra de Deus (11.11;
diante do "Senhor de toda a terra" (4.14), cf as varas e as moedas de prata? 12.5;
e Zorobabel é em certo sentido identifica- cf 10.1,2).
do como "o Renovo" (3.8; 6.12), uma pa- e. A provisão de um rei/pastor humilde
lavra usada para descrever o Messias em e justo (9.9,10; 10.2-4; 11.4-17; 13.7-9).
Jeremias 23.5 e 33.15 (cf Is 4.2). f. A purificação do povo de toda a impu-
Os cp. 1-8 formam uma unidade bas- reza, de certa maneira relacionada à mal-
tante clara com certos temas recorrentes dição/ ao sofrimento de um indivíduo, que
importantes: pertence a Deus, mas é tratado com hostili-
a. A ira de Deus com "os pais" e o juízo dade por ele (12.10-13.9; 14.21).
que seguiu (1.2-6; 7.7-14). g. A bênção futura (somente cp. 14) das
b. A ira de Deus é transferida para as na- nações (incluindo o Egito) fora de Judá,
ções (embora no início tenham participado que virão adorar a Deus em Jerusalém
de acordo com suas intenções); e sua com- (14.16-21).
paixão por Judá e Jerusalém (1.12-17,21; As conexões não são fortes o suficiente
8.1,2,15; cf 3.2). para que a unificação do livro por um úni-
c. A intenção de Deus, portanto, de ha- co editor seja incontestável.
bitar novamente no meio de seu povo em
Jerusalém, e de ser o seu Deus (2.10-12; Estrutura
8.3,8). Como mencionado anteriormente, nosso
d. A preocupação para que o povo sai- entendimento do livro de Zacarias tem
ba que Deus lhes enviou um mensageiro sido aperfeiçoado pela apreciação da estru-
(2.8,9,11; 4.9; 6.15). tura às vezes um tanto complexa em que o
e. A provisão de uma liderança civil e autor/editor organizou o seu material.
religiosa harmoniosa ordenada por Deus Com frequência, podemos notar aquilo
(3.7-9; 4.6-10; 6.11-14). que os estudiosos chamam de "quiasmo"
f. A purificação do povo de Deus e sua (ou "estrutura quiásmica"). A palavra é
obediência futura (3.3-5; 5.3,4,5-11; 6.15b; derivada da letra grega chi (X, que tem a
8.16,17). forma de uma cruz). Isso implica que a pri-
g. A futura bênção dos outros povos meira parte da passagem seja invertida (ou
fora de Judá, que se reunirão e suplicarão o cruzada) na segunda parte. Assim ABCD
favor de Deus (8.20-23). se toma DCBA. No centro de um quias-
Nos cp. 9-14, vemos preocupações mo nós geralmente encontramos a ênfase
semelhantes, embora sejam expressas de ou o ponto mais importante da passagem
uma maneira diferente: - às vezes um ponto de virada em uma
a. A "impaciência" de Deus com o narrativa. Frequentemente a parte final
"rebanho" e seu juízo que se expressa em é semelhante à primeira, embora a situa-
parte no ataque pelas nações e em parte re- ção também tenha sofrido transformação.
lacionado, de certo modo, à sua provisão Houve uma melhoria, e a estrutura do todo
de maus líderes (11.4-14; 14.2). faz com que o leitor ou ouvinte o perceba.
b. A vitória concedida por Deus aJudá Uma análise de cada uma das seções
e Jerusalém (e a Davi) sobre as nações, principais do livro é desenvolvida no
ZACARIAS 1 1300

momento apropriado no corpo do Comen- SCB. Vida Nova, 1982.


tário. (Para maiores detalhes acerca disso, v. JONES,D. R. Haggai, Zechariah, Malachi.
M. Butterworth, Structure ofthe Book ofZe- IBC. SCM, 1962.
chariah [Sheffield Academic Press, 1992]). PETERSEN, D. L. Haggai and Zechariah }-
8. OIL. SCM/Westminster/John Knox
Leitura adicional Press, 1984.
BorCE,1. M. The minar prophets. 2 v. BARKER, K. L. Zechariah em GAEBELEIN,
Zondervan, 1983, 1986. Frank E., ed. Daniel and the minar pro-
BALDWIN, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias. phets. EBC. Zondervan, 1985.

ESBOÇO
1.1-6 O prólogo dos cp. 1-8
1.7-6.15 Série de visões noturnas acompanhadas de seus oráculos
1.7-17 A primeira visão: Cavalos percorrem a terra
1.18-21 A segunda visão: Quatro chifres e quatro ferreiros
2.1-13 A terceira visão: Jerusalém habitada e sem muros
3.1-10 A quarta visão: O sumo sacerdote Josué
4.1-14 A quinta visão: Os dois ungidos
5.1-4 A sexta visão
5.5-11 A sétima visão
6.1-8 A oitava e última visão
6.9-15 Um oráculo

7.1-8.23 Uma pergunta sobre o jejum


7.1-3 Uma delegação
7.4-14 Um desafio para o presente
8.1-8 A promessa a Jerusalém é renovada
8.9-13 A promessa renovada
8.14-17 Um desafio do passado
8.18-23 Jejum e festividades

9.1-14.21 Batalhas, líderes e o objetivo da história


9.1-8 O Senhor age
9.9,10 A vinda de um rei humilde
9.11-11.3 Profecias de juízo e esperança
11.4-17 Pastores e ovelhas
12.1-13.9 Batalha, vitória e purificação
14.1-21 Juízo e salvação das nações

COMENTÁRIO descendentes de um povo que desobede-


cera às advertências expressas de Deus e,
1.1-6 O prólogo dos cp. 1-8 portanto, fora julgado.
Essa pequena seção nos fornece impor- Os acontecimentos ocorreram no se-
tantes características da situação em que gundo ano do rei Dario I (isto é, outubro-
Zacarias profetizava: seus ouvintes eram novembro de 520 a.C.), dezoito anos de-
1301 ZACARIASl (
111

pois do retomo dos exilados da Babilônia. 1.7-6.15 Série de visões


Essa profecia se encontra entre as de Ageu noturnas acompanhadas
2.1-9 e 2.10-23. de seus oráculos
O v. 2 tem somente cinco palavras em Três meses depois da sua profecia inicial
hebraico, mas tem um efeito muito pode- (519 a.C.), Zacarias recebeu uma série de
roso. Literalmente está escrito: "O SENHOR oito visões, aparentemente em uma úni-
se irou contra vossos pais com muita ira". ca noite. Muitos estudiosos observaram a
A ênfase na ira é óbvia. Isso é retomado diferença entre a quarta visão e as outras,
no v. 15, em que podemos encontrar uma e negaram que ela tenha vindo do próprio
ênfase semelhante na ira (lit. "E [com] profeta. Ela é diferente, mas não vemos
grande indignação estou irado"), mas nenhuma razão para acreditar que Zacarias
dessa vez a ira é desviada de Judá para não a tenha recebido. De todo modo, ela
as nações. A Bíblia frequentemente faz faz parte da série de oito visões em nosso
referência à ira de Deus; não se trata de texto canônico. Essas visões são diferentes
mau humor, mas de uma ira justa diante das visões anteriores, pois nelas o profeta
do pecado. Lembre-se de Jesus no templo "participa da visão", podendo questionar o
(Mc 11.15-17; cf Mc 3.5). anjo diante de si.
As palavras de Deus proferidas no pas- Antes de examinarmos cada uma das
sado não serão contestadas; elas sobrevive- oito visões individualmente seria útil vê-
ram aos pais (antepassados) desobedientes las como um todo, para podermos apreciar
e até mesmo aos profetas que as proferiram seu arranjo e significado. Como menciona-
(5). O juízo profetizado veio sobre o povo mos na introdução, a estrutura era muito
de Deus (6a). O v. 6b pode ser a continuação importante para o autor/editor do livro de
da descrição do que aconteceu no passado Zacarias e é o segredo para entendermos a
(daí a NIV em inglês), ou poderiamos fechar mensagem do livro.
as aspas (encerrar o discurso direto) depois As oito visões formam a seguinte
do v. 6a. Assim, deveríamos entender que estrutura quiásmica (ABCD/DCBA) (v.
os ouvintes de Zacarias se arrependeram Introdução):
e reconheceram que o juízo de Deus tinha 1 Cavalos percorrem a terra, as
sido justo (como dá a entender aqui a ARA). nações estão tranquilas (1.7-17) A
Observe como o profeta faz uso da re- 2 Os chifres que dispersaram
petição para enfatizar vários aspectos da Jerusalém serão punidos B
mensagem: O SENHOR dos Exércitos ("das 3 Jerusalém sem muros é habitada C
hostes"; isto é, o Senhor que derrota todos 4 Josué, o sumo sacerdote,
os oponentes) aparece três vezes somente é vestido novamente
no v. 3; o verbo "tomar" aparece duas ve- (o Renovo é mencionado) D
zes nos v. 2,3 e se arrependeram no v. 6 5 Os dois ungidos: (Josué)
representa a mesma palavra no hebraico. e Zorobabel D'
Zacarias é um grande artista, cuja lingua- 6 O rolo/a maldição contra
gem requer estudo cuidadoso. o que furta etc. CI
Nota. A maioria das versões em portu- 7 A mulher e o cesto: a maldade
guês usa a expressão SENHOR dos Exércitos é levada para longe BI
para traduzir o hebraico "Javé das hostes. 8 Carros e cavalos percorrem
É especialmente apropriada ao livro de a terra: O espírito de Deus
Zacarias, em que exércitos desempenham repousa (6.1-8) AI
um papel importante nas profecias. O títu-
lo significa que Deus possui recursos ilimi- As visões 1 e 8 são obviamente seme-
tados ao seu dispor. lhantes, mas a situação se altera da ira de
ZACARIAS 1 1302

Deus para a satisfação de Deus para com as A visão 8 fecha o círculo, acrescentan-
nações. Nós pressupomos, a partir do con- do seu próprio clímax à série ao descrever
traste e do conteúdo do material interve- a realização dos propósitos de Deus: "o
niente, que as nações foram punidas e Judá Senhor de toda a terra".
e Jerusalém são purificadas e protegidas. O trecho de 6.9-15 é o relato de uma
Os dois pares de visões, 2-3 e 6-7, palavra profética e de uma ação, a qual
são correspondentes. Observem que cada retoma alguns dos mais importantes te-
uma delas (bem como a visão 8) é intro- mas mencionados anteriormente: os dois
duzida pela expressão levantei/tornei a líderes, o templo e a reunião do povo para
levantar os olhos. As visões 2 e 3 estão construí-lo, e sabereis vós que o SENHOR
relacionadas, pois sua forma é semelhan- dos Exércitos é quem me enviou. O v. l5b
te e ambas têm seu foco em Jerusalém. se refere a 1.2-6 (especialmente o v. 4).
O oráculo 2.6-13 ressalta ainda mais a
unidade delas e as relaciona à visão 1 1.7-17 A primeira visão:
com a expressão: de novo, escolherá a Cavalos percorrem a terra
Jerusalém. Ele também introduz novos Há a descrição de três indivíduos na vi-
elementos que se tornam importantes so- são: um homem montado num cavalo
bre o conjunto dos cp. 1-8: Sabereis vós vermelho (8,10), o anjo que falava comi-
que o SENHOR dos Exércitos é quem me en- go (9,13,14) e o anjo do SENHOR (11,12).
viou (cf 4.9; 6.15); muitas nações se jun- Provavelmente o primeiro e o terceiro se-
tarão a Deus (8.20-23; cf 6.15); e Deus jam o mesmo indivíduo (cf v. 11). A ex-
habitará no meio de seu povo e será o seu pressão o anjo que falava comigo aparece
Deus (8.3,8). na maioria das visões.
Há base para fazermos a conexão en- Zacarias relata que teve uma visão (lit.
tre as visões 2 e 7. Sua estrutura interna é "viu") de um homem em um cavalo ver-
semelhante, pois ambas se constituem em melho que estava parado entre as murtei-
duas partes: chifres e ferreiros/mulher em ras (cujo significado e importância exatos
um cesto e mulheres aladas. Elas também são incertos). Atrás dele havia mais três ca-
têm um vocabulário comum. Essa era uma valos de cores diferentes: vermelho, baio
ligação bastante evidente no hebraico, mas e branco. Foram feitas tentativas de en-
foi obscurecida na tradução para a nossa contrar significados para essas cores (e.g.,
língua. Essas duas contêm também um sangue, confusão e paz), mas parece mais
oráculo profético direto (2.4,5; 5.3,4). As provável que esses detalhes são apenas
visões 3 e 7 também compartilham algu- parte do pano de fundo. Os quatro cavalos
mas palavras. em 6.2 têm uma combinação diferente de
As visões 4 e 5 ocupam a posição cen- cores (cf também Ap 6.2,4,5,8).
tral e, pelo menos em sua forma atual, Os cavalos tinham percorrido a terra e
apresentam uma dupla liderança divina- a encontraram em repouso e tranquila. O
mente autorizada: a de Josué, o sumo sa- significado dessa passagem é que parece
cerdote, e a de Zorobabel (o renovo), que que as nações que tinham oprimido aJudá
reconstrói o templo e que, segundo 6.13, tinham escapado ilesas. O anjo do SENHOR
será revestido de glória. Eles estão diante pede a Deus que aja (12) e recebe a garan-
do "Senhor de toda a terra". tia de que: sua ira está agora dirigida para
As visões 6 e 7 também estão ligadas: as nações; ele estava indignado com o seu
ambas falam de "sair" e tratam da elimina- povo, mas as nações foram longe demais;
ção do mal de sobre a terra. Essa mesma e ele já retomou a Jerusalém. Esse último
ideia de "sair" forma também uma ligação ponto será visível na construção do templo
com a última visão. (concluída quatro anos depois) e da cidade
11
1303 ZACARIAS 2 1111
11.

(o cordel [linha usada para medir] significa uma ênfase grande nos chifres. Observe a
delimitar o local para a reconstrução das repetição "desnecessária" da palavra chi-
casas). fres (19,21) e do verbo "dispersar" (21). O
Observe a ênfase colocada no zelo (no profeta não perguntou quem eram os fer-
sentido de "veemência na dedicação") por reiros, mas o que eles iriam fazer. É im-
Jerusalém e na ira contra as nações nos v. provável que os quatro chifres representem
14b, 15a. A ênfase é conseguida pela repe- quatro nações específicas. Antes, "quatro"
tição e pelo arranjo das palavras (cf v. 2), é um número que expressa completude,
lit., "Estou zelando por Jerusalém e por como quando os quatro cavalos percorrem
Sião - com grande zelo. E com grande a terra em todas as direções (1.1 O; 6.5-7;
ira - estou irado contra as nações que vi- cf as referências aos "quatro ventos" em
vem confiantes ('que se sentem seguras' 2.6; 6.5).
[NVI])". A descrição "confiantes" tanto Fica claro, então, que o profeta preten-
pode significar escapar do juízo quanto de que seus leitores formem uma imagem
demonstrar um autocontentamento arro- vívida da força das nações, e que se lem-
gante, como em 2Reis 19.28 e Salmos brem da devastação que elas causaram a
123.4 (sendo "desprezo", neste último Judá. Deus não quer que o povo se esqueça
caso, paralelo a "arrogante"). ou subestime a grandeza de seu livramen-
O v. 17 leva a primeira visão a uma con- to. Essas nações levantaram o seu poder
clusão contundente. A repetição da palavra contra Judá, e o povo de Deus ficou com-
ainda reforça a continuidade com o pas- pletamente amedrontado, ninguém pode
sado histórico do povo escolhido, o povo levantar a cabeça (21). No entanto, de for-
descendente de Abraão com quem Deus ma ameaçadora, as nações agora receberão
fizera uma aliança. Ele os havia discipli- sua paga.
nado, mas nunca os rejeitara. A expressão
ainda escolherá a Jerusalém também é 2.1-13 A terceira visão: Jerusalém
encontrada em formulação semelhante em habitada e sem muros
2.12 e 3.2 e serve como preparação para Os v. 1-5 descrevem a terceira visão de
as profecias destinadas aos líderes escolhi- Zacarias. Esta vem acompanhada de um
dos por Deus mencionados nas duas visões oráculo intimamente relacionado a ela. O
centrais (cp. 3-4). último versículo do cp. 2 é dirigido direta-
mente a todo o mundo, e é uma declaração
1.18-21 A segunda visão: Quatro poderosa por si só.
chifres e quatro ferreiros 2.1-5 A visão. Zacarias vê um homem
O profeta passa da primeira profecia para a com um cordel de medir (uma expressão
segunda como se não houvesse um interva- um pouco diferente de 1.16, mas com fim-
lo de tempo entre elas: Levantei os olhos. ção semelhante) para medir a largura e o
Ele viu quatro chifres. Os chifres eram um comprimento de Jerusalém. Podemos de-
símbolo de força (Dt 33.17), frequentemen- duzir da mensagem de Deus para ele, nos
te significando agressividade e/ou orgulho v. 4,5, que o seu propósito é (pelo menos
(SI 75.4,5,10; Dn 8.3-9). Os quatro chifres em parte) preparar o terreno para a recons-
representam as nações que dispersaram trução dos muros da cidade.
a Judá, a Israel e a Jerusalém. Então, os É muito difícil acompanhar os anjos
ferreiros, pois, vieram para os amedrontar nessa visão! A melhor maneira de traduzir
[ou derrotar], para derribar os chifres das o hebraico é falar de três anjos ao todo.
nações. O processo exato não é especifica- O primeiro anjo (AI) é o homem com o
do. Na verdade, é surpreendente que haja cordel de medir que foi medir Jerusalém;
uma ênfase muito pequena nos ferreiros e o segundo (A") é o anjo que falava com
ZACARIAS2 1304

Zacarias e que saiu (lit. "partiu"); o ter- Babilônia e retomem para o lugar em que
ceiro (N) é o outro anjo que saiu (partiu) Deus está restabelecendo sua morada.
ao encontro de A 2para entregar uma men- Na primeira parte (6-9), o profeta insta
sagem para AI. A3 pode muito bem ser o os exilados a abandonar a Babilônia ime-
"anjo do SENHOR", como em 1.11,12. Em diatamente, pois a nação está para ser pu-
outras palavras, A3 pede a A2 que entregue nida (os espoliadores se tomarão espólio).
a mensagem para AI. Por que isso tem de Quando isso acontecer, sabereis vós que o
ser tão complicado? Talvez para ressaltar SENHOR dos Exércitos é quem me enviou.
a importância dessa mensagem inespera- Na segunda parte (10,11), é dito ao povo
da. Seria natural reconstruir os muros da que o Senhor está vindo e viverá entre
cidade e reforçar suas fortificações e isso eles em Jerusalém, onde muitas nações se
podia muito bem ser parte da vontade de ajuntarão ao SENHOR. Isso também será um
Deus para Jerusalém. Mas a mensagem sinal de que a mensagem que o profeta re-
aqui é que isso não é necessário, por duas cebeu era da parte de Deus (e saberás que
razões: a cidade será muito grande, e o o SENHOR dos Exércitos é quem me enviou a
próprio SENHOR será o seu muro, um muro ti). Há uma promessa final no v. 12 de que
de fogo. então, o SENHOR herdará aJudá [...] e, de
Até que ponto devemos entender isso novo, escolherá a Jerusalém.
de forma literal? O muro de Jerusalém de A promessa do v. 11 é emoldurada pelo
fato teve de ser reconstruído em 445 a.c. repetido habitarei no meio de ti formando
sob a liderança de Neemias. Por outro uma estrutura quiásmica. O refrão dos v.
lado, a cidade se espalhou para além de 9b e 11b (e sabereis/saberás) ressalta a
seus muros. O importante a se observar é preocupação de que Deus seja glorificado
que "enquanto Deus se encontrar na cida- como resultado de suas ações. Isso ocorre
de, ela não cairá" - não importa se com também em 4.9 e 6.15. A expressão e, de
ou sem muros (SI 46.4; cf 48.1-3,8; 32.7; novo, escolherá a Jerusalém mostra a li-
Jó 1.10). gação entre este oráculo e a primeira visão
O fato de Deus estar no meio de seu (cf 1.17) e também prepara uma conexão
povo é fortemente enfatizado de inúmeras com a quarta visão (cf 3.2).
maneiras nos cp. 1-8: por declaração di- Eh! Eh! (6,7) é simplesmente uma in-
reta (2.10-12; 8.3,8; 13.9; 14.4); pela con- terjeição para chamar a atenção de ouvin-
clusão da reconstrução do templo como tes em potencial. Para obter ele a glória,
parte do plano de Deus (4.8,9; cf 9.8); pela enviou-me às nações...(8) é uma tentativa
purificação e nova consagração do sumo de dar sentido a uma frase bastante difi-
sacerdote, o representante do povo (3.1-7); cil: "depois que a glória me enviou [ou ele
e pela promessa de que muitos povos virão me enviou] às nações ...". Outras suges-
para "buscar ao [o favor do] Senhor" em tões são que "glória" seja um nome para
Jerusalém (8.20-23; cf 2.11; 14.16-19). o próprio Deus (cf v. 5b) ou então uma
2.6-12 O oráculo. Esse oráculo profé- maneira de se referir à própria visão. O
tico decorre espontaneamente das três pri- pronome "me" tem sido entendido como
meiras visões. Todas estavam preocupadas se referindo a Zacarias (que, na verdade,
em reverter o destino de Judá e das nações. não foi enviado às nações, exceto de uma
Agora nos é fornecido um quadro do pri- maneira indireta) ou a um dos anjos. Seja
meiro passo na restauração do povo - sua qual for a interpretação correta, a principal
libertação do exílio da Babilônia. Em 520 preocupação é estabelecer que aquilo que
a.c., é claro, muitos já haviam retoma- Deus disse sobre essa situação (por meio
do. Mas muitos ficaram para trás. E esse do anjo ou de Zacarias) é verdadeiramente
oráculo os incita a que também deixem a de Deus.
11
1305 ZACARIAS 3 .11
••
2.13 Um apelo para o mundo todo. Elas simbolizavam a pureza necessana
Esse apelo é totalmente apropriado aqui. para se apresentar diante do Deus santo.
Depois de esperar por um longo tempo, o Quando nos é dito que Josué se apresentou
Senhor irá agir contra as nações que opri- diante do Senhor vestindo roupas sujas,
miram o seu povo. Que toda a terra se cale isso simboliza sua iniquidade (4b) e tam-
em respeito diante dele (cf Hc 2.20), mal bém a iniquidade do povo, uma vez que ele
ousando respirar. é seu representante diante de Deus.
A acusação do "adversário" é verdadei-
3.1-10 A quarta visão: ra. O resultado, entretanto, não é a conde-
O sumo sacerdote Josué nação, mas a purificação. Esse aspecto da
Os cp. 3 e 4 contêm as duas visões cen- restauração do povo por Deus é enfatizado
trais de toda a série de oito visões. As duas na sexta e na sétima visões: o que furtar e o
dizem respeito a dois líderes. O sumo que jurar falsamente serão expulsos (5.3),
sacerdote e o líder civil (o governador). e a própria iniquidade será removida para
Juntas, essas figuras representam o gover- longe da terra (5.7,10,11).
no de Deus sobre seu povo. O cp. 3 coloca O sumo sacerdote também era obrigado
o foco em Josué, o sumo sacerdote, mas a usar um turbante ("mitra"; Êx 28.4,37-
menciona, também, meu servo, o Renovo 39). Não nos é dito se no início Josué estava
(8; cf 6.12, em que diz que ele construirá o usando algum tipo de turbante, mas agora
templo do Senhor). ele recebe um turbante limpo. A palavra é
O cp. 4 traz a imagem de duas oliveiras diferente da usada em Êxodo 28, mas tem
que representam os "dois ungidos que fo- a mesma raiz (tsanip/mitsnepeth).
ram ungidos para servir [lit. 'assistir'] jun- Parece estranho para o próprio Senhor
to ao [diante do] Senhor de toda a terra". dizer o SENHOR te repreende (2), mas isso
A tradução da NVI - "ungidos para servir" significa "Eu, o SENHOR, te repreendo",
- não é exata e perde a conexão com o e assegura ao leitor que as acusações de
resto do capítulo estabelecida pelo signi- Satanás são totalmente colocadas de lado
ficado da expressão "estar diante de" (cf (cf SI9.5; Is 17.13). Não é este um tição ti-
3.1,3,4). (Observe que a expressão toda a rado dofogo (2) evoca Amós 4.11, e impli-
terra ocorre em 4.14; 5.3,6; 6.5. Isso ajuda ca que Josué (e, portanto, o povo de Judá)
a dar unidade às últimas quatro visões.) Os escaparam do justo castigo. E o anjo do
versículos 3.1 e 4.14 juntos demonstram SENHOR estava ali (5) provavelmente signi-
que Josué é um desses dois ungidos. fica que essa ação é aprovada por Deus.
3.1-5 Lidando com as acusações de 3.6,7 Josué recebe uma incumbência.
Satanás. Esta seção descreve como Josué, Tendo sido purificado, Josué é capaz de
o sumo sacerdote, é acusado por "Satanás". estar na presença de Deus. Ele recebe a in-
A palavra "Satanás" em hebraico significa cumbência de andar nos caminhos de Deus
"adversário" e ocorre como nome próprio, e de obedecer às suas exigências. As duas
por exemplo, em 1Crônicas 21.1. Também expressões significam viver e agir da ma-
é usada com o significado de um adversá- neira que Deus quer. A segunda é especial-
rio sobre-humano no livro de Jó (cp. 1- mente utilizada nos serviços sacerdotais
2). Fora isso, indica adversários humanos, ou nos cuidados com o santuário (e.g., Nm
tanto pessoais como nacionais. A função 3.7,8,25-38). Estes que aqui se encontram
do adversário, tanto aqui como em Jó, é são os seres celestiais que estão diante de
acusar um dos servos de Deus. Deus, como no v. 4.
Josué, como sumo sacerdote, deveria 3.8,9 Josué recebe uma mensagem
se apresentar diante de Deus somente com adicional. Esses versículos parecem um
as vestimentas especificadas em Êxodo 28. acréscimo à visão inicial (têm um impera-
ZACARIA54 1306

tivo tal como o que é frequentemente uti- no caso se ajustaria ao final do versículo:
lizado para dar início a um novo discurso, purificariam a terra do pecado.
e introduzem características não sugeri- 3.10 Uma promessa final. A vide e a
das na descrição precedente: o Renovo, figueira, plantas que precisam de um longo
a pedra, os sete olhos). Entretanto, seu tempo para produzir frutos, são símbolos de
clímax: e tirarei a iniquidade desta ter- paz e prosperidade. Essa mesma imagem é
ra, num só dia (isto é, de modo rápido e utilizada em IReis 4.25 para descrever as
completo) é totalmente apropriado a essa condições de paz do reinado de Salomão.
visão, pois o sumo sacerdote representa Em 2Reis 18.31, essa imagem representou
todo o povo. uma promessa tentadora (embora não dig-
as companheiros de Josué provavel- na de confiança) feita pelo rei da Assíria, e
mente eram os demais sacerdotes. Eles em Miqueias 4.4 descreve as condições da
são homens de presságio (lit., "homens bênção "nos últimos dias" (Mq 4.1).
portentosos"). Isso provavelmente signifi-
ca que a vinda do Renovo tem significado 4.1-14 A quinta visão:
sacerdotal. Os dois ungidos
a Renovo é um título messiânico (Jr A estrutura desse capítulo é um tanto es-
23.5,6; cf Is 4.2; 11.1; v. também a Intro- tranha, pois nele uma pergunta feita no v.
dução). Essa expressão também guarda 5 é respondida apenas no v. 10b, e as liga-
certa conexão com Zorobabel, cujo nome ções entre as partes externas e o oráculo
não se encontra em nenhuma das partes que está no meio são truncadas. Isso tem
principais das próprias visões. A razão levado muitos comentaristas a considerar
disso não é muito clara. É possível que os v. 6-l0a uma inserção posterior, ou a
Zorobabel tenha caído em desgraça diante deslocar a seção para outro lugar. a pa-
das autoridades persas e, assim, evitava-se drão, entretanto, pode ser visto como algo
tocar em seu nome. É mais provável que deliberado. a capítulo se desenvolve da
tenha sido deixado para o leitor fazer a li- seguinte forma:
gação entre a presente liderança de Judá e 1-3 Uma descrição da visão, em par-
Jerusalém e a promessa do Messias, conhe- ticular sobre as sete lâmpadas e as duas
cida por meio de Isaías 9.1-7 e 11.1-9. Não oliveiras. 4 Então segue a pergunta: Que
se pensava que Zorobabel fosse o Messias, é isto?, supostamente relacionada às sete
mas um tipo de Messias. Ele dá uma ideia lâmpadas. a anjo responde com outra
da natureza do governo do Messias. Isso pergunta (5): Não sabes tu que é isto?, a
será visto mais detalhadamente no capítulo qual não é respondida até depois do orá-
4 e em 6.9-15. culo sobre Zorobabel (6-l0a). Finalmente,
Não é muito claro o significado da pe- o profeta recebe a resposta à sua pergun-
dra colocada diante de Josué. a contexto ta relativa às "sete lâmpadas" no v. 10b.
deve nos ajudar a formar uma imagem dela. 11-14 Seguem perguntas sobre as duas oli-
a fato de ter sido lavrada sugere algum veiras e sobre os dois tubos de ouro, e o
tipo de comemoração, talvez a comemo- anjo responde como no v. 5: Não sabes que
ração da comissão de Josué pelo Senhor. é isto? No v. 14, o profeta recebe a resposta
Olhos pode ter ligação com 4.10, em que o à pergunta relativa aos dois pontos.
significado das sete lâmpadas é explicado Aparentemente, um dos meios utiliza-
como "os olhos do SENHOR, que percorrem dos por Zacarias para aumentar o impacto
toda a terra", simbolizando o seu conheci- de sua mensagem é uma espécie de tática
mento de tudo aquilo que acontece na ter- de demora. Nos cp. 7-8, uma pergunta
ra. A palavra poderia possivelmente signi- é feita em 7.3, a qual não é respondida
ficar apenas "fontes", "olhos d'água", que até 8.l8,19! Desse modo, há uma breve
demora suscitada pela réplica, e uma de-
1307 ZACARIAS4 <
unção para seus ungidos. Por outro lado,
mora maior ocasionada pelo oráculo dos isso não está de acordo com o que acontece
v.6-10a. na vida: o azeite vem das oliveiras, e daí
Uma função adicional do oráculo na vai para a lâmpada ou lamparina.
posição em que se encontra é mostrar a co- O v. 12 é muito obscuro, especialmen-
nexão entre Zorobabel e os dois ungidos. te por que nem os raminhos nem os tubos
Zorobabel não é mencionado pelo nome foram mencionados antes. Uma solução
em nenhuma das visões. proposta é a de pressupor que o vaso cen-
4.1-S,lOb-14 A quinta visão. Zacarias tral simboliza o Senhor e abastece tanto a
vê um candelabro central com sete lâm- lâmpada quanto a oliveira.
padas. De cada lado há uma oliveira. 4.6-10a Um oráculo sobre ZorobabeI.
Normalmente se pressupõe, a partir do que Essa seção adia a resposta à pergunta do
segue nos v. 11,12, que as oliveiras abaste- profeta (4) e ajuda a identificar Zorobabel
cem as lâmpadas com óleo. como uma das duas oliveiras ou um dos
O texto hebraico diz que cada uma dois ungidos. Ela tem duas partes.
das sete lâmpadas tem sete bocais (como Uma palavra assegura Zorobabe1 de
na RSV). O texto grego sugere que havia que ele não precisa de força nem de poder,
sete condutos ligando o vaso central às mas do Espírito de Deus (6,7). Se fosse
lâmpadas (como na NVI). De todo modo, a uma questão de força, então não poderia
imagem é a de uma lâmpada que irradiava haver nenhuma disputa entre Zorobabel e
um brilho intenso. A interpretação das sete o grande monte, mas, nessa circunstância, o
lâmpadas (lOb) é que elas representam os grande monte será uma campina diante
olhos do SENHOR, que percorrem toda a ter- dele. A oposição à obra de Zorobabel desa-
ra. (Observe que essa é a mesma expressão parecerá. As aclamações são literalmente
utilizada no v. 14; v. também em 3.1-10.) Graça e graça para ela!, e significam tanto
A imagem sugere a iluminação de lugares a beleza do edifício como a graça de Deus
escuros de modo que nada possa ser es- em capacitá-los para a reconstrução. A pe-
condido dos olhos do Senhor. É imprová- dra de remate, uma expressão que não apa-
vel que aqueles sete olhos se refiram a 3.9, rece em nenhum outro lugar, é literalmente
uma vez que se encontra muito distante da a "pedra fundamental". Evidentemente é
resposta e obscurecido por uma pergunta uma pedra importante no templo e sina-
sobre outro "sete". liza a conclusão do edifício (cf v. 9), e é
As duas oliveiras representam os dois provável que signifique "a pedra angular"
ungidos, que assistem junto ao Senhor de (SI 118.22), a pedra colocada no canto supe-
toda a terra. Em certo nível, esses são o rior de duas paredes para mantê-las unidas.
sacerdote e o governador da época: Josué A segunda metade (8-10) possui sua
e Zorobabel. Há uma dificuldade em se própria introdução. É uma promessa de
supor que eles pudessem fornecer óleo ao que Zorobabel será capaz de terminar a
Senhor para manter suas lâmpadas fun- reconstrução do templo. Isso não aconte-
cionando! Pode ser que não se espere que cerá do mesmo modo que ocorreu quando
levemos até o fim as implicações do sim- os exilados voltaram da Babilônia: eles co-
bolismo, uma vez que todos os símbolos meçaram a reconstrução, mas foram persua-
têm suas limitações. Entretanto, talvez os didos a desistir (Ed 4.4,5,24). Pois quem
tubos não fossem das oliveiras para o can- despreza o dia dos humildes começos (10)
delabro, pois o texto não o declara explici- se aplicaria àqueles que foram desencora-
tamente. Alguns sugerem que o vaso supre jados em face da oposição e da impotência
as oliveiras com óleo. Essa corrente tem do povo que havia retomado a Jerusalém.
a vantagem de fazer do Senhor a fonte da Eles pensaram que não poderiam ser bem-
ZACARIASS 1308

sucedidos, mas se alegrarão quando assis- Lv 19.11,12). Será expulso vem de uma
tirem ao sucesso de Zorobabel. O profeta raiz que significa "ser limpo, purificado".
os repreende de forma branda, querendo Isso significa ser removido do meio do
também encorajá-los (do mesmo modo povo da aliança e, portanto, estar fora da
que uma enfermeira pode repreender um salvação de Deus. Numa época em que o
paciente). A palavra traduzida por prumo ato de "mentir" é considerado uma coisa
é (lit.) "o estanho" ou possivelmente "a sem muita importância, é salutar lembrar
pedra separada". É improvável que o es- essa profecia e comparar passagens como
tanho fosse usado como prumo e, assim, Jeremias 28.15-17 e Atos 5.1-11.
pode ser que o significado seja que a pedra A maldição, que é uma palavra do
de remate do templo (7) indique que Judá Senhor, é personificada no v. 4. E a farei
é separado de outros povos, escolhido para entrar na casa [...] nela, pernoitará e con-
ser o povo de Deus. A conclusão do tem- sumirá [completamente] a sua madeira e
plo significará que a mensagem de Deus as suas pedras.
por intermédio de Zacarias é verdadeira (v.
acima v. 9,12). 5.5-11 A sétima visão
Tanto a sexta como a sétima visões têm
5. 1-4 A sexta visão algo a dizer sobre o modo como Deus trata
A sexta e a sétima visões formam um con- com o pecado. Enquanto a sexta visão se
junto, assim como a segunda e a terceira. concentra no juízo, a sétima visão se preo-
Ambas tratam da purificação do povo de cupa com a purificação da terra pela remo-
Deus. O rolo voante representa a maldi- ção do pecado.
ção que sai pela face de toda a terra (cf Zacarias vê um efa, que era um cesto
4.10b,14; 5.3,6; 6.5) como um juízo contra usado como unidade de medida. Não pode-
os malfeitores. Na sétima visão (5.5-11), mos ter certeza de quão grande era um efa,
uma mulher representando a "impiedade" mas provavelmente não ultrapassava 22 li-
é levada para longe, para a Babilônia (no tros. Talvez tenha sido ampliado na visão,
heb. Sinar é a Suméria na Mesopotâmia). como foi o rolo (5.2). Isto é a iniquidade
O rolo é descrito como voante, o que faz mais sentido do que o texto hebraico:
provavelmente significa que ele não es- "Isto é seu olho", e é sustentado pelas anti-
tava enrolado, mas aberto, de modo que gas versões grega e siríaca. É possível que
qualquer um pudesse lê-lo. Isso tomaria o efa seja escolhido devido a passagens
possível ver o seu tamanho: 20 côvados de como Amós 8.5: "diminuindo a medida,
comprimento e 10 de largura. Seu tamanho aumentando o preço", (lit) "diminuindo o
é enorme, dando ênfase à mensagem. Esta efa, aumentando o siclo". Era um sinal de
supostamente seria uma maldição contra desonestidade e falta de preocupação para
os malfeitores. com os outros.
Maldição também significa "juramen- A tampa (pesada) foi levantada e uma
to" e é especialmente associada ao não mulher estava sentada dentro do efa: ini-
cumprimento de uma obrigação, como em quidade. Isso não quer dizer que a mu-
Deuteronômio 29.20,21. lher represente a iniquidade mais do que
Os dois tipos de pecadores mencio- o homem. Talvez deva-se simplesmente
nados representam os malfeitores, e não ao fato de a palavra ser feminina. Observe
os únicos que serão julgados. Qualquer que quem remove a iniquidade da terra
que furtar representaria todos os que fi- também são mulheres (9-11). O vento em
zeram mal a seu próximo; o ato de jurar suas asas (9) poderia ser traduzido por:
falsamente, que envolve o uso do nome de "o espírito" (cf 6.5). Isso indicaria que a
Deus, é um insulto ao próprio Senhor (cf purificação era obra do Espírito de Deus.
1309 ZACARIAS6.·
..
••
o vocábulo hebraico para cegonha vem da da para "espírito" é a mesma usada para
mesma raiz que "amor leal", e essa pode "vento" (cf João 3.8).
ser a explicação do motivo de esses pás- Quando o relato é feito (8) ele men-
saros em particular serem citados aqui: a ciona simplesmente o norte. Muito pro-
purificação é um sinal de graça. vavelmente porque o norte tinha várias
A terra de Sinar (lI) ficava na associações: era a região em que se dizia
Mesopotâmia. Foi o lugar que Abraão dei- que os deuses rivais tinham seus quartéis
xou quando Deus fez uma aliança com ele generais (cf SI 48.2), era onde se localiza-
e onde a torre de Babel foi construída - e va a saída para a terra de Sinar ou Babilônia
destruída por Deus (Gn 11.2,9; observem- (2.7; 5.11; cf Jr 23.8); e era a direção de
se também as demais conexões com essa onde vinham todos os principais ataques a
história por meio da expressão "de toda a Israel e Judá Os 41.25; Jr 1.13-15; 16.15),
terra", Gn 11.4,9; cf Zc 5.3). Uma casa incluindo os inimigos dos últimos tempos
pode significar algum tipo de templo (cf (Ez 38.6,15). Pretende-se, sem dúvida, que
a expressão "casa do Senhor"). De todo tomemos por certa a satisfação de Deus
modo, isso implica que a iniquidade não com o mundo todo.
tem lugar entre o povo de Deus. Dois montes (1) parece representar o
portão do céu (cf 5); de bronze pode indi-
6.1-8 A oitava e última visão car tanto o sol nascente (o alvorecer de um
A última visão é semelhante de várias ma- novo dia; lembre-se de que a primeira vi-
neiras à primeira visão. Juntas têm o efeito são foi à noite [1.8] e isso pode ser signifi-
de unificar toda a série: elas formam um cativo) quanto os dois pilares da entrada do
"envelope" para as outras visões. Podemos templo. O bronze é usado para indicar for-
observar ainda que essa visão forma um clí- ça (e.g., Jr 1.18) contra os ataques: o tem-
max para toda a série: No cp. 1, as nações plo sagrado do Senhor é inexpugnável.
estavam sossegadas, e o Senhor estava ira- É pouco provável que as cores dos
do com elas e zeloso para com Jerusalém cavalos (2,3,6,7) tenham algum significa-
e Judá. No cp. 6, o Espírito do Senhor está do particular (cf 1.8). Cavalos baios é a
em paz (e as nações foram julgadas). tradução de duas palavras obscuras. A ex-
Também há algumas diferenças sur- pressão pode significar "cavalos pintados,
preendentes entre as duas visões; por fortes": o segundo adjetivo é usado no v. 7
exemplo, tanto carros como cavalos são para se referir a todos os cavalos.
mencionados no cp. 6. As cores dos cava- Quatro ventos (ou "espíritos") (5) é in-
los são diferentes. No cp. 1, há dois cavalos tencionalmente ambíguo. O vento é invi-
vermelhos, um baio e um branco. No cp. 6, sível e está em todo o lugar, assim como a
as cores dos quatro cavalos são: vermelho, presença de Deus. "Ventos" provavelmen-
preto, branco e baio. A razão para essa va- te é o significado primário em vista no v. 8.
riação não é conhecida, mas um tipo seme- Mas não há necessidade de se buscar con-
lhante de variação ocorre em 6.10 e 14. sistência em imagens poéticas (cf "sete
Os cavalos saem para os quatro cantos espíritos" emAp 1.4; 3.1; 4.5; 5.6).
da terra (os quatro pontos cardeais), em-
bora tenhamos de inferir que o vermelho 6.9-15 Um oráculo
vai para o leste, uma vez que isso não está Esse oráculo serve como o clímax mais
explicitamente declarado. Isso expressa importante para as visões, e reúne algumas
o fato de que a influência de Deus cobre das ideias centrais dos capítulos anteriores.
toda a terra (cf O Senhor de toda a terra, Sua estrutura é basicamente quiásmica. O
6.5; 4.14). Há um trocadilho no original envelope externo é indicado de forma mar-
que não pode ser traduzido: a palavra usa- cante pelo nome dos exilados que chega-
ZACARIAS 7 1310

ram da Babilônia (cf também cp. 7-8). O gere que o oráculo esteja ligado a eventos
oráculo pode ser dividido assim: posteriores à sua morte.
9 Introdução ao oráculo. Quando lembramos que "Renovo" é um
10 Recebe [...] de Heldai, de Tobias e termo usado para o Messias, e aplicamos a
de Jedaías [...] e entra na casa de profecia a Jesus, muitas coisas começam
Josias, filho de Sofonias... a fazer sentido: Ele é ao mesmo tempo rei
II Recebe, digo, prata e ouro, e faze e sacerdote; ele é a realidade para a qual
coroas, e põe-nas na cabeça de Josué e Zorobabel, de modo imperfeito,
Josué... apontavam; ele é o construtor do templo
12 E dize-lhe [...] Eis aqui o homem de Deus, a igreja.
cujo nome é Renovo; ele brotará do O versículo final é semelhante ao clí-
seu lugar e edificará o templo do max dos cp. 7-8. Muitos virão de longe,
SENHOR. não apenas os poucos mencionados no iní-
13 ... assentar-se-á no seu trono, e do- cio da seção. Isso será um sinal de que o
minará, e será sacerdote no seu tro- Senhor realmente falou por meio de seus
no; e reinará perfeita união entre mensageiros (15, v. comentário de 2.9-11).
ambos os oficios. Notas. 11 "Coroas", a forma plural
14 As coroas serão para Helém [heb. tem sido explicada de diferentes maneiras:
Heldai], para Tobias, para Jedaías como um tipo de coroa formada por um
e para Hem, filho de Sofonias, como pequeno círculo que tanto poderia ser usa-
memorial no templo do SENHOR. da sozinha como combinada com outras,
As características peculiares dessa se- formando um conjunto (cf Ap 9.12); como
ção são listadas abaixo: um "plural de majestade", isto é, havia
(i) Dois dos nomes de pessoas men- uma coroa magnífica; ou o texto está erra-
cionadas no v. 10 são mudados no v. 14. do ou a palavra é uma forma singular não
Heldai (que significa "duração de vida"!) muito comum. Parece provável que haja
toma-se Helém (NVI, mg. ; significa "for- aqui uma ambiguidade intencional.
ça"), e Josias se toma Hem (que significa 14 Esse versículo é bastante difícil de
"graça", a mesma palavra usada duas ve- traduzir e de entender. 1. A. Motyer sugere
zes em 4.7 em conexão com a reconstrução o seguinte: "e a coroa será para memorial
do templo). de Helém etc.", significando que "quando o
(ii) A palavra traduzida por coroas no Messias se assentar como Sacerdote e Rei,
original de fato está no plural, mas é usada os povos de lugares longínquos virão se
com um verbo no singular (14). Talvez pre- submeter a ele". Talvez haja um trocadilho:
tenda se referir às duas personagens envol- a coroa será um lembrete da força, da bon-
vidas na liderança de Judá. (Y. adiante). dade (Tobias significa "O Senhor é o meu
(iii) Não fica muito claro somente pela bem"), do conhecimento (Jedaías significa
gramática se há uma ou duas figuras. No "O Senhor é sábio") e da graça - um elo-
cp. 4, foi Zorobabel quem reconstruiu o gio à ação dos exilados (10) que fizeram
templo; e no cp. 3 "o Renovo" era dife- uma longa jornada ao templo, trazendo a
rente de Josué. Perfeita união entre ambos prata e o ouro com os quais a coroa foi fei-
(13) parece mais naturalmente significar ta, e uma promessa de bênção para eles.
união entre o sacerdote e o líder civil, mas
também pode significar "aspectos políticos 7.1-8.23 Uma pergunta
e sacerdotais de governo". sobre o jejum
(iv) Zorobabel não é mencionado pelo Zacarias 7-8 é estruturado como um
nome, e o fato de a(s) coroa(s) sereem) grande quiasmo com uma promessa men-
colocada(s) no templo como memorial su- cionada no centro (8.8). Ele se refere aos
temas introduzidos em 1.1-6, dando uma
1311 ZACARIAS 7 1111

A estruturadesses capítulosé a seguinte:


.
11

exortação à obediência, uma promessa 7.1*


para Jerusalém e Judá, e uma promessa A (v. 2) Homens de Betel vêm suplicar o
mais ampla (baseada na visita do povo de favor do Senhor.
Betel para "suplicar o favor do Senhor") B (v. 3) Perguntas sobre o jejum.
para muitos povos. Esse todo coerente é C (v. 9,10) Antigos profetas di-
destacado para o leitor ou ouvinte pelo uso ziam: "Não tramem o mal em
de palavras-chave e expressões que ligam seu coração".
seções correspondentes. Apesar do fato de D (v. 12b-14) Grande ira so-
haver passagens em que é impossível ter breveio enquanto a terra se
certeza do significado pretendido em deta- tomava desolada.
lhes, o resultado é uma unidade agradável 8.! * E (v. 3-8a) Promessa de
e eficaz. bênçãos para o restante
Esses dois capítulos dão início a uma do povo.
nova seção do livro de Zacarias. A men- F (v. 8b) Eles serão o
sagem reforça e completa o que foi dito meu povo, e eu serei
anteriormente: O Senhor puniu o seu povo o seu Deus.
devido à sua desobediência e retirou sua E I (v. 9-13) Promessa de
proteção e o sinal de sua presença, o tem- bênção para o restante
plo. Mas agora ele "habitará em seu meio" deste povo.
novamente em uma Jerusalém restaurada. DI (v. 14,15) Mas agora Deus
Ele exorta seu povo a cumprir os manda- determina o bem para Jeru-
mentos que anteriormente ignoraram. salém.
A seção começa com uma pergunta so- C1 (v. 16,17) Não intentem o mal
bre o jejum: O povo de Betel enviou uma em seus corações.
delegação para perguntar aos sacerdotes e 8.18*
profetas (entre os quais Zacarias estava su- B 1 (v. 19) Os jejuns se tomarão ban-
postamente incluído) se deveriam observar quetes.
o jejum que tinham mantido tradicional- AI (v. 20-23) Muitos suplicarão o favor do
mente no quinto mês do ano. O profeta os Senhor.
desafia a questionar os seus motivos para o
jejum, e relembra a desobediência anterior Essa forma "quiásmica" é descrita na
do povo que redundou no exílio. Ele pros- Introdução, na página 1299. O ponto mais
segue, fazendo uma promessa tremenda importante está no centro (F).
para o futuro de Jerusalém. Isso forma o Um asterisco (*) indica um versículo
centro da seção. Ele reitera os mandamen- introdutório enfatizando a importância do
tos que o Senhor esperava que seus ante- que vem a seguir. Observe a correspondên-
passados cumprissem e, por fim, responde cia entre as passagens com a mesma letra.
à pergunta sobre ojejum. A resposta não era Todas as seções paralelas têm palavras ou
a que eles esperavam: o jejum não apenas expressões significativas que chamam a
do quinto mês, mas do quarto, do sétimo e atenção para a correspondência. Delinear
também do décimo se tomarão épocas de o plano dessa maneira nos permite enxer-
regozijo. A graça de Deus, seu prazer em gar as características mais importantes da
dar de forma muito mais abundante do que seção inteira.
eles poderiam imaginar, aparece nesses Isso conduz de uma pergunta compa-
versículos. E isso não é tudo: sua graça se rativamente sem importância, feita por
estende às nações ao redor, e elas virão a um grupo insignificante de homens pro-
Jerusalém suplicar o favor do Senhor. venientes de uma cidade em Israel, a uma
ZACARIAS 7 1312

tremenda confirmação da eleição por 7.4-14 Um desafio para o presente


Deus de seu povo e de seus propósitos 7.4-7 Uma contrapergunta sobre o je-
inabaláveis (8.8, a NIV [em inglês] obscu- jum. Zacarias não tem de justificar a res-
rece a continuidade entre este versículo posta com base na Lei, mas recebe uma
e a sequência de promessas relacionadas palavra direta do Senhor. Ele pergunta a
a Êx 6.7; e.g., Gn 17.8; Jr 31.33 etc. lit. eles sobre seus motivos: eles jejuavam
em cada caso: "Eu serei para eles/vo- para o Senhor ou em beneficio próprio?
cês o seu Deus"; cf 2.11 " ...eles serão Ele destaca que os profetas que nos pre-
o meu povo"). Isso ocorre no centro de cederam tinham proferido mensagens
toda a unidade em que frequentemente semelhantes.
se encontra o ponto central e crítico de 7.8-10 Palavras proferidas anterior-
uma passagem quiásmica como essa. A mente. A NVI é enganosa aqui, pois não há
posição importante da primeira metade a palavra "novamente" no hebraico, e os
da promessa em 2.11 foi observada. E v. 8-14 se referem à mensagem e à (falta
isso ocorre novamente em 13.9 em um de) resposta (cf v. 14) anteriores. Seria
clímax importante. melhor traduzir assim os v. 8,9: "A pala-
vra do SENHOR veio a Zacarias, dizendo:
7.1-3 Uma delegação Assim falou o SENHOR dos Exércitos...". O
O quarto ano do rei Dario (I) é 518, v. 8 implica (como frequentemente é ver-
dois anos depois do primeiro oráculo de dade no caso dessa fórmula) que Zacarias
Zacarias, e dois anos antes da conclusão continuou a falar segundo a palavra do
do templo (Ed 6.15). Betel, localizada em Senhor. Executai juízo verdadeiro é ligei-
Israel, o Reino do Norte, foi o local onde ramente expandido em 8.16: executai jui-
um dos bezerros de ouro de Jeroboão I foi zo nas vossas portas, segundo a verdade,
erigido. Uma promessa ao povo de Betel em favor da paz. Nem intente cada um,
mostra graça! A ênfase em Jerusalém em seu coração, o mal contra o seu pró-
como centro oficial de adoração ao Senhor ximo é a mesma expressão básica de 8.17,
é compreensível. Não sabemos quem a qual é traduzida de forma mais precisa
eram Sarezer e Regém-Meleque. Isso po- ali: nenhum de vós pense mal no seu co-
deria ser traduzido: "E Betel-Sarezer en- ração contra o seu próximo (cf Gn 50.20;
viou Regém-Meleque [possivelmente um Jr 48.2 etc.). Essas semelhanças chamam
título que significava 'porta-voz real'] e a atenção para o fato de que as exigên-
seus homens". cias do Senhor para a nova situação são as
A expressão para suplicarem a favor mesmas que foram feitas anteriormente.
do SENHOR no livro de Zacarias é encon- 7.11-14 A resposta dos antepassados
trada somente aqui e em 8.21 e 22. O en- e suas consequências. Essa seção se refe-
velope que se forma em volta dos cp. 7- re à resposta dos antepassados aos antigos
8, por essa expressão e pela questão do profetas (como em IA). Fizeram o seu co-
jejum é, portanto, muito forte. Acredita- ração duro como diamante, impenetrável
se que o jejum mencionado em 7.3,5 e à palavra do Senhor. Como consequência
8.19 comemorava os seguintes eventos: veio a grande ira do SENHOR dos Exércitos
quinto mês, a destruição do templo (2Rs (12). Essa é a tradução literal, e descreve
25.8,9); quarto mês, a brecha no muro de uma ação relacionada à ira em vez de um
Jerusalém (Jr 39.2); sétimo mês, o assas- sentimento. Já que se recusaram a ouvir o
sinato de Gedalias, governante de Judá Senhor, ele também se recusou a ouvi-los:
(2Rs 25.25; Jr 41.1,2); décimo mês, o iní- eles foram espalhados entre as nações, e a
cio do cerco à cidade por Nabucodonosor terra ficou desolada. A lição a ser transmi-
(2Rs 25.1,2; Jr 39.1). tida com esse relato é a de que eles recebe-
l1li
1313 ZACARIAS 8 l1li-
11
11

ram exatamente aquilo que mereceram. No único lugar onde os sacrificios podiam ser
entanto, disso Deus passa para algo inteira- oferecidos, o único templo com autoriza-
mente imerecido. ção para ser construído como a casa de
Deus, um sinal de que o Senhor estava no
8. 1-8 A promessa a meio de seu povo. Assim, aqui, a restau-
Jerusalém é renovada ração do templo em Jerusalém significa
8.1-3 Zelo por Jerusalém. O zelo em re- a confirmação das promessas de Deus na
lação a Jerusalém/Sião e o retomo de Deus aliança (cf 2.10-12).
para habitar ali foram temas destacados
anteriormente (1.14,16; 2.10-12). E quan- 8.9-13 A promessa renovada
do Deus habita em uma cidade, esta tem Essa seção começa e termina com a mes-
de ser um lugar de verdade e santidade. O ma palavra: Sejam fortes as mãos de todos
monte do SENHOR dos Exércitos [das hos- vós (sejam fortes as vossas mãos, 13), e
tes] era a parte alta de Jerusalém na qual o isso estabelece o tom: um desafio anima-
templo fora construído. dor. Antes que a fundação do templo fos-
8.4-6 Paz na cidade. A cidade estará se construída, o povo não experimentaria
em paz e segura contra ataques. Não have- a bênção. O interesse do povo estava em
rá pessoas correndo para cima e para baixo si mesmo e por isso não havia prosperado.
reparando e reconstruindo o muro (v. Na Agora, eles devem se empenhar no traba-
2.4,5); não há perigo algum de um projé- lho de reconstrução do templo e irão pros-
til ultrapassá-lo. Até mesmo os membros perar (cf lCo 15.58).
mais vulneráveis da cidade podem sentar
ou se divertir nas ruas. Para os ouvintes de 8.14-17 Um desafio do passado
Zacarias isso ainda parecia um sonho, pois Esse trecho repete a mensagem de Zacarias
eles sofriam constante assédio dos povos de que o Senhor não está mais irado com
ao redor. Maravilhoso é usado no sentido o seu povo, mas pretende lhe fazer o bem.
de "extraordinário" ou "difícil": isso não Ele os exorta a cumprir os mandamentos
é algo muito difícil para o Senhor (v. espe- que seus antepassados deixaram de cum-
cialmente Gn 18.14; Jr 32.17,27, em que prir (cf 7.9,10).
a mesma raiz é utilizada, e cf Me 10.27).
A palavra restante aparece também nos 8.18-23 Jejum e festividades
v. 11 e 12. É uma palavra significativa que A "resposta" à pergunta sobre o jejum (7.3)
implica tanto o juízo de Deus (apenas um é que os dias de jejum se transformarão em
restante é deixado) quanto a sua miseri- dias de festa. Os acontecimentos ligados à
córdia (um restante será salvo). queda de Jerusalém serão totalmente trans-
8.7,8 A promessa da aliança é reno- formados; serão ocasiões para inspirar
vada. Quando Judá foi para o exílio na admiração diante do perdão e da graça de
Babilônia, muitos fugiram para países Deus. O profeta continua e, de forma total-
vizinhos. Esses também serão capazes de mente inesperada, faz uma promessa ain-
voltar para Jerusalém. É dificil perceber- da maior; todas as nações (23) buscarão a
mos quão importante era Jerusalém para Deus em Jerusalém, reconhecendo que ele
o povo de Israel e de Judá, pois partimos tem abençoado seu povo, os judeus (isto
do pressuposto de que podemos ado- é, o povo de Judá). Haverá dez vezes mais
rar a Deus em qualquer lugar do mundo. do que os que agora pertencem ao povo de
Mesmo aqueles que dão muita importân- Deus (23). Aqui a seção alcança um clímax
cia a Roma, Cantuária ou Genebra não tremendo, quando percebemos o contras-
as consideram da mesma maneira que os te entre a pequena delegação de 7.2 e esta
judeus encaram Jerusalém. Aquele era o visão final.
ZACARIAS9 1314

9.1-14.21 Batalhas, líderes e o O espírito de compaixão do Senhor traz


objetivo da história pranto.
Os últimos seis capítulos de Zacarias têm 13.1 Purificação "naquele dia".
sido objeto de discussão intensa. Alguns 13.2-6 Os ídolos e os falsos profetas
argumentam que o título Sentença pronun- são eliminados.
ciadapelo SENHOR (9.1; 12.1; cf Mll.l) si- 13.7-9 O juízo do "meu pastor" traz pu-
naliza esta seção como um livro separado rificação e cumprimento da promessa: "O
que talvez devesse ser tratado juntamente SENHOR é meu Deus" etc.
com Malaquias, e não com Zacarias. Eles 14.1-15 Juízo para os inimigos de Judá/
de fato parecem refletir uma situação pos- Jerusalém: destruídos na batalha pela inter-
terior, embora a pergunta de quão poste- venção de Deus. Fenômenos dos últimos
rior eles são não seja fácil de responder. dias; pragas para os inimigos do Senhor.
Eles são tão diferentes de Zacarias 1-8 14.16-21 Bênção para as nações:
em termos de linguagem e imagens, mas Elas vêm a Jerusalém para a Festa dos
tão parecidos quanto às preocupações bá- Tabernáculos (caso contrário, sofrerão
sicas, que é bem provável que tenham sido pragas). Jerusalém é purificada ("Santo
escritos por um discípulo de Zacarias. A ao SENHOR").
maioria dos comentaristas conservado- Não é possível reduzir isso a um sim-
res defende que o próprio Zacarias fez os ples diagrama sem distorcer o cenário. Está
acréscimos e editou sua própria obra ori- claro que há uma unidade no todo, apesar
ginal. Essa hipótese não pode ser descar- da grande variedade de materiais de que
tada. Ver também Introdução. esse todo é composto.
Os mesmos temas básicos são encontra- A estrutura que vem à tona pode ser
dos ao longo dos cp. 9-14 em um padrão descrita em termos simplificados como
alternado. De um lado, há frequentes refe- uma espécie de sanduíche com várias ca-
rências a Judá e Jerusalém e a suas nações madas, em que o "pão" consiste em pas-
inimigas; do outro, a questão de liderança. sagens que dizem respeito aos inimigos de
O conteúdo pode ser dividido assim: Judá e Jerusalém: contém porções variadas
9.1-8 Juízo para os inimigos de Judá de juízo e/ou salvação para os inimigos e
(com indícios de salvação vindoura). para Judá e Jerusalém. O clímax está no
9.9,10 Vem o rei justo, salvo e humilde fato de que é dada às nações a mesma
de Judá; a paz é estabelecida. oportunidade que foi dada a Judá de adorar
9.11-17 Juízo para os inimigos e salva- ao Senhor. O "recheio" do sanduíche trata
ção para Judá/Efraim. da questão da liderança. Aqui também há
10.1-5 Preocupação adicional sobre a variação em conteúdo: o líder certo deve
liderança: juízo dos líderes corruptos, pro- ser empossado e os maus líderes elimina-
visão de verdadeira liderança. dos. A purificação deve ser alcançada de
10.6-12 Fortalecimento de Judá/José/ algum modo em conexão com o represen-
Efraim (com a menção do juízo para os tante de Deus. Ver também Compilação,
inimigos). na Introdução, e Comentário.
11.1-3 Juízo sobre o orgulho/os pasto-
res/as nações? 9.1-8 O Senhor age
11.4-14 Juízo contra os maus líderes e Há muitas palavras e expressões obscuras
contra o povo obstinado. nessa seção, assim como nos cp. 9-14
11.15-17 Juízo de um líder. como um todo, e é necessário examinar o
12.1-9 Juízo contra os inimigos de sentido geral do contexto. Mesmo quando
Judá/Jerusalém: vitória na batalha. a precisão não é possível, o significado
12.10-14 Aquele a quem traspassaram. central é claro.
li
1315 ZACARIAS 9 rl1'11
11

Sentença aqui equivale à profecia, sinô- novamente, como ele fez quando o povo
nimo de oráculo, palavra que vem da raiz fora levado para a Babilônia.
"levar" e pode ser traduzida por "fardo",
isto é, algo colocado sobre alguém com- 9.9,10 A vinda de um rei humilde
pulsoriamente. (Observe o trocadilho em O v. 9 é provavelmente o mais conhecido
Jr 23.33). Essa é uma maneira apropriada do livro de Zacarias. Todos os evangelhos
de se descrever uma mensagem profética nos contam como Jesus cumpriu essa pro-
(Jr 20.9). É um título que se refere aos cp. fecia quando entrou em Jerusalém monta-
9-11 ou parte da frase de abertura des- do em um jumento. Deveríamos supor que
ta seção: A sentença pronunciada pelo essa é uma profecia a respeito do Messias
SENHOR é.... sem nenhuma relação com a própria época
O tom de quase todo o trecho dos v. 1-8 do profeta? Depois do exílio não havia rei
é de julgamento. Somente no v. 7 encontra- em Judá. Os imperadores das principais
remos uma promessa a Ecrom, uma das ci- potências - Medo-Pérsia, Grécia e por
dades da Filístia. Ela será incorporada pelo fim Roma - eram sensíveis em relação
povo de Judá, como foram os jebuseus, ha- a esse assunto (Jo 19.12-15) e, embora te-
bitantes de Jerusalém antes de Davi tomar nha havido um breve período de indepen-
a cidade (2Sm 5.6-10). Isso vem depois dência dos judeus, depois da revolta dos
do juízo (5) e da purificação (7). Quatro macabeus em 167 a.C., ninguém sequer
das cinco principais cidades da Filístia parecido com esse rei jamais apareceu em
são mencionadas (5,6) (Gate pode ter sido cena. A profecia ainda era relevante para o
omitida por ter sido destruída por volta povo que viveu 500 anos antes de Cristo,
dessa época). Os filisteus eram, eviden- pois falava das intenções de Deus e, por-
temente, inimigos tradicionais de Israel, tanto, de seu relacionamento com eles.
uma pedra em seu sapato desde os dias dos Eles continuavam a ser o seu povo, e o seu
juízes (e.g., Jz 13-16;ISm 13-14; 31). rei certamente viria.
Eles por si só não tiveram grande impor- O rei que vem é justo e salvador (lit.
tância depois do exílio, e o aparecimento "salvo"). A RSV dá uma impressão errô-
da "Filístia" aqui não retrata simplesmente nea com "triunfante e vitorioso". Esse rei
uma nação concreta, mas um símbolo dos foi declarado justo e salvo por Deus. Isso
inimigos de Deus e do seu povo (cf o uso sugere uma situação na qual o rei - não
de "Edom" em Is 11 e 34). apenas acusado, mas atacado por seus ini-
O tom dos v. 1-8 indica que os v. 1-3 migos - é defendido e salvo pelo Senhor.
são também uma mensagem de juízo con- Isso claramente se ajusta muito bem a
tra Hadraque (algum lugar no extremo Jesus! (Cf SI 118, especialmente v. 22,23,
norte da Palestina), Damasco (capital da também aplicados ao Senhor Jesus).
Síria ou Arã), Hamate (190 quilômetros ao Nos tempos antigos, o asno ou jumen-
norte) e os portos fenícios de Tiro e Sidom. to não era considerado um animal infe-
Tiro era muito rica devido a seu comércio e rior, e homens importantes os montavam
particularmente dificil de ser conquistada, (Jz 10.4; 12.14). Mesmo o rei de Israel
uma vez que só podia ser alcançada por um montava somente em mulas (1Rs 1.33; cf
istmo. Mas mesmo Tiro será destruída, e 2Sm 13.29; 18.9). Um cavalo ou uma car-
seu orgulho por sua riqueza e força provará ruagem seriam o meio de transporte mais
ser sem valor. comum para um rei numa passeata de vi-
O v. 8 também é de dificil tradução, mas tória. A ênfase aqui está na humildade e no
a NIV captou o sentido correto. O Senhor aspecto pacífico. Ele reinará de mar a mar
não permitirá que sua casa (isto é, seja o (isto é, o Mediterrâneo a leste e o mar co-
templo, seja a terra de Judá) seja destruída nhecido apenas vagamente a oeste [o mar
ZACARIAS9 1316

Morto - NVI mg.] como em 14.8), e do rio voltar à sua fortaleza com a promessa de
Eufrates na Mesopotâmia até os confins da que o Senhor os restituirá em dobro aqui-
terra. Em outras palavras, ele reinará sobre lo que perderam.
o mundo todo. 9.13-17 Vitória para Judá e Efraim.
Essas qualidades são surpreendentes, Depois dessa promessa de paz (9-12), o
tão surpreendentes que essa profecia foi texto nos diz como tudo isso acontecerá;
negligenciada por aqueles que esperavam uma vitória militar sobre a "Grécia", o ini-
ansiosamente pelo Messias. (Y. comentá- migo de Judá e Israel (Efraim). A Grécia
rio de SI 22; 69; 110). não era uma potência importante até c. 333
Nota. As expressões jumento e jumen- a.C., e muitos acreditam que esse versículo
tinho, cria de jumenta são paralelas; são ou foi inserido na profecia em um período
duas descrições de um mesmo animal. posterior, ou indica que os cp. 9-14 são
Mateus (21.1-7) menciona dois animais, e uma profecia tardia. A palavra Javã ocor-
"sobre elas Jesus montou" é mais bem en- re em Gênesis 10.2,4 e Isaías 66.19, refe-
tendido como "sobre suas vestes"! Efraim rindo-se a povos distantes, nos confins do
era a maior das tribos do norte de Israel, e, mundo então conhecido. Isso se encaixaria
assim como aqui, é frequentemente utiliza- muito bem no sentido (cf 1Ob).
da para significar todo o Israel. As imagens ressaltam o fato de que é
o Senhor quem dá a vitória, ao capacitar
9.11-11.3 Profecias seu povo a ser bem-sucedido na batalha.
de juízo e esperança As trombetas eram usadas nas batalhas
À primeira vista, esses capítulos parecem para transmitir sinais claros, inspirar con-
uma miscelânea de profecias sem relação fiança nos soldados e amedrontar os ini-
entre si, relativas a um período bem poste- migos. Isso também traz à memória as
rior a Zacarias (a Grécia é mencionada em vitórias de Josué em Jericó e de Gideão
9.13, e o Império Grego só foi estabelecido sobre os midianitas (Js 6.3-5; Jz 7.16-22),
depois de 333 a.C.). Há, entretanto, muitos onde a participação de Deus foi evidente.
pontos de contato entre as várias seções e As tempestades (ou redemoinhos) do sul
também com 9.1-8 (e.g., metade das pala- eram particularmente destrutivas (14). O
vras em 10.11 já tinha aparecido nessa se- v. 15 descreve o quanto era ruidosa a ce-
ção de abertura). Os temas abordados em lebração da vitória! A expressão bacias do
geral são a derrota dos inimigos de Judá e sacrifício sugere que sua comemoração é
Israel e a provisão de uma liderança puri- centrada no Senhor.
ficada (10.3,4). Os v. 16,17 sintetizam o resultado da
9.11,12 Uma promessa aos cativos. vitória: o povo é salvo pelo Senhor, que
O Senhor faz promessas com base na os considera seu rebanho, preciosos como
aliança firmada com eles, selada pelo san- joias. Eles têm cereais e vinho novo (os
gue do sacrifício (Êx 24.5-8). Tirei os teus jovens e as donzelas são mencionados
cativos da cova em que não havia água como exemplos, e não pelo fato de que as
evoca Gênesis 37.24 e Jeremias 38.6, pois donzelas ficam com todo o vinho novo!),
a expressão é quase idêntica no hebraico, sinais de prosperidade frequentemente
"cova/cisterna (00'] em que não havia encontrados como parte da descrição de
água/sem água". Isso traria à lembrança Canaã como terra prometida (Dt 7.13;
o drama de José e de Jeremias, ambos 11.14; Os 2.8,22).
libertos de situações desesperadoras por- 10.1-5 Bênção, líderes e batalha. A
que o Senhor estava com eles. Assim, es- transição de uma seção para outra não está
ses contemporâneos do profeta são agora de modo algum clara. Aqui encontramos os
prisioneiros da esperança, autorizados a três assuntos principais que apareceram na
1317 ZACARIAS 11 <
seção anterior: um convite a pedir chuva A ênfase em Efraim tanto quanto em
para que as plantações etc. possam crescer Judá representa a unidade do povo de
(l; cf 9.17); a provisão de um bom líder Deus. O Reino do Norte fora destruído
(4; cf 9.9) para substituir os líderes cor- em 721 a.C., pelo menos duzentos anos
ruptos (3); e a continuação das imagens de antes. Naquele tempo, os assírios promo-
batalha (3b-5; cf 9.10,13-15). A profecia veram uma miscigenação deliberada entre
parece desarticulada, mas uma progressão o povo israelita e outras nações, buscando
lógica pode ser detectada. desse modo destruir a sua identidade, mas
1 Pedi ao SENHOR chuva e não ídolos e o Senhor não se esqueceu do seu povo.
aqueles que os servem. Ainda há aqueles que se lembram que eles
2 Porque os ídolos do lar falam coisas são parte de Israel, e o Senhor lhes dará
vãs (ou maldades), e o resultado de se con- o sinal para que voltem para casa. Ainda
fiar em outras fontes que não o Senhor é hoje a noção de olhar para Jerusalém é
que anda o povo como ovelhas, aflito, por- algo bastante forte entre os judeus por todo
que não há pastor. o mundo.
3 Portanto, o Senhor agirá: Contra os Alguns judeus fugiram das tropas da
pastores se acendeu a minha ira, e casti- Babilônia para o Egito (Jr 43-44) e nem
garei os bodes-guias. todos retomaram da Assíria. Na verdade,
3b Comentário e expansão do narrador, havia judeus espalhados por todo o mundo
ou então o Senhor continua a falar de si conhecido. Mas o Egito e a Assíria também
mesmo na terceira pessoa. Deus se impor- eram símbolos da opressão e da servidão
ta com o seu povo e, portanto, fará com nas suas mais variadas formas. As referên-
que tenha sucesso na batalha e lhes dará cias à travessia do mar e ao rio Nilo evo-
um bom líder. cam a lembrança do êxodo do Egito pelo
4 O líder é descrito como (a) a pedra mar Vermelho (Êx 14.21-28) e do juízo de
angular: uma palavra diferente de pedra de Deus ao transformar as águas do Nilo em
remate em 4.7, e que significa aquela que sangue (Êx 7.17-21). A Assíria e o Egito ti-
sustenta o edificio; (b) a estaca da tenda: nham sido governos orgulhosos e temidos,
que mantém a tenda de pé. mas isso mudaria.
4b Essa parte do versículo significa ou É bom ser cauteloso ao falar hoje
que Judá produzirá armas e chefes (efica- do Egito e de Israel como se as nações
zes), ou então que o arco de guerra e to- atualmente conhecidas por esses nomes
dos os chefes [opressores] juntos sairão de fossem aquelas às quais as promessas se
Judá, deixando a terra em paz. aplicam (ver, e.g., Is 19.19-25!). Nós pre-
5 A descrição da batalha continua. Isso cisamos enxergar a preocupação implícita
nos leva naturalmente à seção seguinte. do profeta e perceber que o Senhor é o
10.6-12 Eu os fortalecerei. Essa seção Deus que salva seu povo (arrependido) de
assume a forma de uma promessa profe- situações em que eles por si mesmos são
rida pelo próprio Deus. Seu conteúdo bá- impotentes.
sico é indicado pela moldura formada por 11.1-3 Um chamado ao lamento. O
Fortalecerei/Eu osfortalecerei... (no início Líbano foi mencionado em 10.10 como
dos v. 6 e 12). um destino para o retomo dos exilados,
Ao longo de todos esses versículos, o de modo que podemos pensar que Abre,
juízo passado é reconhecido: eles foram ó Líbano, as tuas portas signifique sim-
espalhados entre as nações pelo Senhor plesmente deixá-los entrar. Mas não se
(6b,IO,1l), mas em sua compaixão ele os trata disso. É uma ordem para que o fogo
trará de volta para casa, e lhes dará tanto entre e queime os impressionantes cedros
quanto tinham antigamente (6,8). do Líbano, frequentemente usados como
ZACARIAS 11 1318

símbolo de orgulho. O mesmo aconte- com todos os povos (10) e dei cabo dos
ce com os carvalhos de Basã, no remoto três pastores num mês (8) (cf outras ocor-
norte das terras a leste do Jordão. Ambos rências do mesmo verbo: morrer no v. 9;
são citados em Isaías 2.13 (cf Ez 27.5,6). Êx 23.23: "eu os destruirei"; lRs 13.34:
É possível que as regiões do Líbano e de "para destruí-la"). A alegoria é uma manei-
Basã fossem culpadas de transgressões ra de descrever graficamente o modo como
específicas contra os israelitas, mas o o Senhor lida com o rebanho.
principal propósito de sua menção aqui é 11.4-6 Um pastor do rebanho conde-
simbolizar toda a oposição arrogante aos nado. O profeta relata uma comissão pro-
propósitos de Deus. ferida pelo Senhor ("disse" seria melhor
Esse tipo de "chamado ao lamento" é que diz) para que ele se tome o pastor das
frequentemente utilizado em passagens ovelhas destinadas para a matança. Elas
proféticas de juízo, como forma de des- estavam à mercê de mercadores inescrupu-
crever vividamente um desastre iminente losos e pastores que só as mantinham pelo
(Is 13.6; 14.31; Jr 25.34; Sf 1.11). Os pas- lucro (5). O v. 6 acrescenta uma interpre-
tores e os leões indicam os líderes a ser jul- tação: a compaixão de Deus será suspensa,
gados: o mundo em que vivem é destruído pois o povo tem de ser julgado. As pessoas
e eles não podem mais liderar. serão oprimidas pelo seu próximo (um si-
A passagem tem diversas ligações com nal de inquietação interna) e por seus líde-
os versículos anteriores (especialmente res. Não houve rei em Judá até o século 11
9.4 consumida pelo fogo; 10.2,3, pastores; a.C., assim a palavra tem de ser tomada de
10.10, Líbano; 10.11, soberba (da Assíria), modo figurado. Mostra o contraste com o
traduzida aqui por sua glória (11.3). Assim, "Rei humilde" de 9.9 e o Senhor que será
funciona como uma passagem de transi- "Rei sobre toda a terra" (14.9). Por um
ção, preparando o caminho para a alegoria tempo, o Senhor não resgatará o povo de
dos pastores que vem a seguir. sua sma.
11.7-14 O destino das duas varas.
11.4-17 Pastores e ovelhas O profeta pastoreia o rebanho condenado
Essa seção descreve o profeta como um com varas, indicando que ele fará bem o
pastor que apascenta as ovelhas destina- seu trabalho. Graça é uma característi-
das para a matança, que age em seu in- ca de Deus mencionada em Salmos 27.4
teresse por determinado tempo e depois ("beleza") e 90.17 ("graça"). Representa
as abandona, quebrando sua vara (4.14). uma espécie de proteção para o povo de
Então ele representa um pastor insensato Deus dos ataques das nações (10). União
que não cuida do rebanho e é amaldiçoado é lit. "laços", isto é, aquilo que une (Israel
(15-17). e Judá, 14).
A passagem está entre as mais difíceis Dei cabo dos três pastores num mês.
de interpretar. O v. 13 é bastante conhecido Muitos tentaram identificar três líderes
devido à sua utilização em Mateus 27.9,10, históricos, normalmente reis ou sacerdo-
onde ele representa o preço pago por Judas tes, que foram destruídos em um mês, isto
por trair Jesus. Nesta passagem também é, em um período curto, mas não é possí-
representa o valor atribuído ao pastor es- vel chegar a uma conclusão segura. Em
colhido por Deus, embora seja pago pelo todo caso, isso significa a ação do Senhor
próprio pastor, e não por um traidor. contra os maus líderes, mas a favor de um
A passagem não é um relato de eventos povo indiferente (9). Portanto, o pastor os
reais, pois várias referências não podem abandona à sua própria sorte, quebrando a
ser tomadas literalmente; por exemplo, vara chamada Graça e permitindo que as
para anular a minha aliança, que eufizera nações oprimam o povo novamente.
1319 ZACARIAS 12 .'"

"'11
As pobres do rebanho ou os "mercado- discurso de Miqueias (1Rs 22.19-28; cf
res dentre as ovelhas" (como está na ver- Ez 20.25,26).
são grega da Bíblia) observaram e reco- Isso indica que Deus punirá o povo
nheceram que isto era palavra do SENHOR, por meio de um líder opressor (16). Pelo
isto é, reconheceram que Deus tinha falado fato de o pastor abandonar seu rebanho,
com eles por meio das ações do pastor (cf uma maldição é pronunciada contra ele
também 2.9,11; 4 9; 6.15). (17): Ai do (ou "do meu") pastor inútil.
Nos v. 12,13, o profeta pergunta por É dificil saber como os ouvintes do pro-
seu salário, se eles pretendem pagá-lo. feta teriam entendido suas palavras. Elas
Pesaram, pois, por meu salário trinta moe- fornecem uma imagem paradoxal de um
das de prata (lit. pesaram trinta siclos), às pastor que age mal, em obediência a uma
quais ele ironicamente se refere como esse ordem expressa de Deus, e é punido por
magnifico preço em que fui avaliado por isso. Os cristãos podem ver um paradoxo
eles! A mesma quantia era exigida como semelhante na cruz: Deus fez aquele que
compensação pela morte de um escravo não conheceu o pecado se fazer pecado
(Êx 21.32). O valor do siclo era de apro- por nós ... (2Co 5.21).
ximadamente 12 gramas. Mas a prata era Aimagem do pastor continua em 13.7-9,
muito valiosa (Ne 5.15). E as arrojei ao mas antes disso há outra passagem parado-
oleiro, na Casa do SENHOR. É possível que xal a ser tratada.
houvesse ali um oleiro para fazer os vasos Notas. 7,11 As pobres do rebanho é
utilizados para o serviço no templo. A pa- uma tentativa de dar sentido a uma expres-
lavra pode também significar "artífice em são dificil do hebraico. Se isso for permi-
metal". Uma ínfima mudança no hebraico tido, então a passagem faz sentido. Muitos
nos daria "tesouro adentro", conforme se acham que não, e nós temos de aceitar a
lê em uma versão antiga, a Siríaca. É pos- tradução das antigas versões gregas "para
sível que isso esteja correto. os mercadores dentre as ovelhas", a qual
A segunda vara, União, é quebrada requer apenas uma pequena alteração. A
(14), representando a desunião entre Israel palavra "mercador" ocorre em 14.21: é
e Judá, que deveriam estar unidos como equivalente a "cananeu".
povo de Deus.
11.15-17 Um pastor insensato e inú- 12.1-13.9 Batalha,
til. Toma ainda [...] de um pastor insensato vitória e purificação
soa estranho, pois o profeta começou como Dada a variedade do material nela contido,
um bom pastor. Há dois significados pos- é dificil ter certeza de que esta seção deva
síveis: que ele tenha se tomado um pas- constituir uma unidade. Contudo, há nela
tor insensato quando quebrou as varas, uma unidade implícita, e podemos obser-
ou, o que é mais provável: 'Toma ainda var como uma parte conduz a outra. O todo
os petrechos de um pastor, desta vez de é elaborado da seguinte forma:
um insensato". A palavra insensato no AT 12.1-9 As nações atacam Jerusalém (e
normalmente significa "intencionalmente Judá [?] cf v. 2 adiante), mas são derro-
mau", e não simplesmente alguém a quem tadas. A tensão entre Jerusalém e Judá é
falta inteligência. resolvida.
É estranho encontrar um dos servos 12.10-14 O povo que traspassara o re-
de Deus recebendo uma ordem para que presentante do Senhor (a casa de Davi e
faça algo verdadeiramente mau. O Senhor os habitantes de Jerusalém) irá prantear e
utiliza instrumentos maus, de tempos em chorar por ele.
tempos (Is 10.5-11; Hc 1.5,6), mas isso 13.1 Naquele dia esse mesmo povo
é diferente. Compare-se a isso o irônico será purificado.
ZACARIAS 12 1320

13.2-6 Naquele dia serão eliminados lação a Jerusalém e, ao mesmo tempo, os


da terra os nomes dos ídolos e as (falsas) sentimentos de superioridade de Jerusalém
profecias. em relação a Judá, restaurando a harmonia
13.7-9 O pastor do Senhor é atacado, entre eles. Até mesmo o mais fraco será tão
as ovelhas ficam dispersas, há uma puri- poderoso como Davi e a casa de Davi será
ficação bastante severa, e a promessa da como Deus, como o anjo do SENHOR (isto
aliança é reafirmada. é, como o Senhor, quando vem visitar seu
12.1-9 Vitória sobre as nações. Há povo). Ver expressão metafórica semelhan-
algumas características bastante inco- te em Êxodo 7.1, em que Moisés é "como
muns nessa passagem: (a) Davi é mencio- Deus para o faraó" e Arão é seu profeta.
nado seis vezes aqui, apesar de não haver Seriam esses eventos uma descrição
nenhuma outra menção a ele no livro de literal de algo que aconteceu ou que acon-
Zacarias, e há uma distinção entre a casa tecerá? Ou seriam uma descrição figurada
de Davi e os habitantes de Jerusalém; da proteção de Deus a seu povo em cir-
(b) parece não haver união entre Judá e cunstâncias extremamente desfavoráveis?
Jerusalém (7); também no v. 5 os chefes É impossível demonstrar um cumprimento
de Judá se referem ao povo de Jerusalém histórico detalhado, embora seja possível
como alguém diferente (seu Deus), e é conceber que tenha acontecido em algum
possível que o v. 2 signifique que ele (isto período obscuro da história. Parece mais
é, o cálice de tontear) será lançado contra provável que isso nos dê um padrão para
Judá (assim como contra as nações), du- o agir de Deus, o qual pode ser visto de
rante o cerco de Jerusalém. forma mais ou menos detalhada em várias
O profeta começa com um lembrete épocas da históría. O mesmo é verdadeiro
sobre a grandeza do Senhor: ele criou o para o cp. 14, em que há eventos mais sur-
universo, dá vida a cada pessoa, pois é o preendentes ligados aos propósitos finais
espírito dentro da pessoa que faz dela um de Deus na história.
ser vivo. Isso imediatamente coloca as na- 12.10-14 O representante de Deus tras-
ções em seus devidos lugares: elas nada passado: arrependimento. Segue uma des-
são comparadas a esse Deus. O Senhor crição do que acontece à casa de Davi [...]
decreta que Jerusalém será como uma e aos habitantes de Jerusalém (7,10). Fica
taça contendo vinho ou algo semelhante. evidente que eles traspassaram alguém
As nações beberão e ficarão tontas! O sobre o qual nada nos foi dito. O texto na
Senhor fará de Jerusalém uma pedra pe- verdade diz: olharão para mim a quem
sada, e quem tentar movê-la se ferirá a si traspassaram; pranteá-lo-ão... A mudança
mesmo, como em Levítico 21.5. O pânico de "mim" para "aquele" é abrupta e pode
e a cegueira mencionados trazem à memó- ser um engano. Porém, entre as versões an-
ria outras histórias de juízo (Gn 19.10,11; tigas do AT, apenas na de Teodócio se lê:
Jz 7.19-22; 2Rs 6.18-22). (Y. também "olharão para aquele ...". Outra coisa que
14.12,13 e cf At 9.3-9.) chama a atenção é que o Senhor está dizen-
O povo de Judá percebe que é o do que eles o traspassaram. Isso poderia
Senhor quem dá a força e a vitória (5). ser usado metaforicamente, uma vez que
No v. 6, a metáfora muda: as nações ata- Deus é descrito com frequência como ten-
cando Jerusalém são como tocha entre a do sentimentos humanos (e.g., Os 11.8,9;
palha, serão consumidas. Jerusalém será cf também a expressão metafórica "por-
habitada outra vez no seu próprio lugar, que estes se esgotam como traspassados"
em Jerusalém. em Lm 4.9, ARe). A palavra "traspassar"
Judá alcançará a vitória primeiro (7-9), é rara e normalmente se refere a matar.
eliminando assim a inveja de Judá em re- Em duas ocasiões ela é usada como golpe
..
1321 ZACARIAS 14.
fI

...
de misericórdia (Jz 9.54; 1Sm 31.4; cf do todo. Depois de um arrependimento
Jo 19.34-37). sincero, o mesmo povo será purificado no-
Talvez a melhor maneira de entendê-lo vamente (cf 12.7,10) das impurezas e do
seja imaginar que o povo tinha matado uma pecado e então estará pronto para estar na
figura histórica, que era um representante presença de Deus.
do Senhor e, ao fazê-lo, tinha traspassado Os v. 2-6 elaboram o tema da purifica-
o próprio Senhor. Isso foi, é claro, literal- ção: os ídolos e os profetas que confiam no
mente verdade quando o soldado traspas- espírito imundo serão removidos da terra.
sou Jesus, o Deus Filho, que também era Se um falso profeta proferir uma profecia,
um primogênito. Pode ter havido também nem mesmo seus pais o tolerarão: eles o
uma figura histórica anterior a quem essas traspassarão (a mesma palavra que ocorre
palavras se refiram. em 12.10). Os próprios profetas se enver-
Depois de tê-lo traspassado, perce- gonharão de suas falsas profecias: nem
bendo o que havia feito, o povo pranteia e mais vestirão seu "uniforme" de mantos
chora por ele. As palavras implicam arre- de pelos (uma pele animal; cf Elias em
pendimento pelo que haviam feito, o que 2Rs 1.8; e João Batista em Me 1.6); eles
é confirmado por 13.1. Hadade-Rimom é o negarão qualquer relação com a profecia
nome de um deus pagão, sendo que Rimom (5) e, se tiverem marcas em seus corpos re-
também é o nome de um lugar (14.10; sultantes de sua iniciação como profetas ou
Js 15.32; 19.7). Hadade-Rimom pode, por- do autoflagelo enquanto profetizavam (cf
tanto, ser um lugar ou uma divindade. Na 1Rs 18.28), eles alegarão: São as feridas
mitologia dos cananeus, o filho de Hadade com que fui ferido na casa de meus ami-
foi assassinado pelo deus da morte (Mot) e gos. Talvez haja aqui um traço de ironia
havia, provavelmente, um ritual anual re- na verdade, pois "amigos" pode ser usado
lembrando esse acontecimento. Nosso tex- para "amantes", isto é, companheiros em
to, portanto, refere-se a alguma forma de adorações idólatras (Os 2.7-13; Ez 23.5,9).
festival (pagão) feito em Hadade- Rimom Ele não menciona os nomes dos ídolos,
ou para ele. O profeta não está com isso como no v. 2.
aprovando esse tipo de ritual, mas descre- 13.7-9 O pastor do Senhor é ferido e
vendo a intensidade do lamento. as ovelhas dispersadas: refino e purifica-
Toda a terra pranteará. Cada família à ção. Essa pode ser uma forma alternativa
parte, e suas mulheres à parte. Isso prova- de descrever o traspasse de 12.10. Aquele
velmente significa arrependimento genuí- que é ferido é descrito como meu pastor e
no: seu pranto não advém meramente de como o homem que é meu companheiro,
os outros estarem pranteando. Até mesmo e, contudo, é por uma ordem expressa de
os maridos e as esposas pranteavam sepa- Deus que ele é ferido. Como resultado, seus
radamente. "Natã" e "Simei" (NVI) eram os seguidores são dispersos e submetidos a
nomes dos filhos de Davi e de Levi respec- um severo período de depuração: primeiro,
tivamente, que podem ter sido destacados seu número é reduzido a um terço, e mes-
por sua participação no crime como líderes mo esse restante será testado. O propósito
políticos e religiosos. é que aqueles que são puros e genuínos se-
13.1-6 A purificação continua: ídolos jam salvos. O clímax dessa seção é o v. 9b,
e falsos profetas são removidos. A ex- uma reafirmação da promessa da aliança
pressão naquele dia ocorre nos v. 1,2 e 4, (cf 2.10-12: 8.8; cf também Os 2.23).
e serve para ligar esses versículos. Alguns
consideram a fórmula uma evidência de 14.1-21 Juízo e salvação das nações
uma inserção posterior ao texto, mas esses O cp. 14 é semelhante ao cp. 12, que des-
versículos muito acrescentam ao sentido creve uma das batalhas das nações contra
ZACARIAS 14 1322

Jerusalém. Aqui, entretanto, há uma grande de; metade do monte se apartará para o
ênfase no cumprimento final dos propósi- norte, e a outra metade, para o sul.
tos de Deus (especialmente no v. 9). A pri- 5 Fugireis pelo vale dos meus montes,
meira seção (1-15) é organizada de forma porque o vale dos montes chegará até
quiásmica em um grande padrão ABCBA: Azal; sim, fugireis como fugistes do
terremoto nos dias de Uzias, rei de
A (v. 1-3) O juízo e a intervenção de Deus Judá; então, virá o SENHOR, meu Deus,
B (v. 4,5) Convulsões geográficas e todos os santos, com ele.
C (v. 6-9) As condições ideais: o 6 Acontecerá, naquele dia, que não
Senhor é rei haverá luz, mas frio [coisas precio-
B I (v. 10,11) Convulsões geográficas sas?] e gelo.
AI (v. 12-15) O juízo e a intervenção de 7 Mas será um dia singular conhe-
Deus cido do SENHOR; não será nem dia
nem noite, mas haverá luz à tarde.
Isso nos leva aos v. 16-19, os quais S Naquele dia, também sucederá
profetizam que as nações irão a Jerusalém que correrão de Jerusalém águas
para adorar ao Senhor na Festa dos vivas, metade delas para o mar
Tabernáculos. Isso representa uma gran- oriental, e a outra metade, até ao
de transformação para as nações, de juízo mar ocidental; no verão e no inver-
para bênção. no, sucederá isto.
A seção final (20,21) fala da santida- 9 O SENHOR será Rei sobre toda a
de de Jerusalém nessa época: até as cam- terra; naquele dia, um só será o
painhas dos cavalos e as panelas servirão SENHOR, e um só será o seu nome.
como bacias diante do altar. Isto é, tudo 10 Toda a terra se tomará como a
será santo ao SENHOR, e não haverá cana- planície de Geba a Rimam, ao sul de
neu ou "mercador" na Casa do SENHOR Jerusalém; esta será exaltada e habi-
dos Exércitos. tada no seu lugar, desde a Porta de
14.1-15 Batalha em Jerusalém: O Benjamim até ao lugar da primeira
Senhor se torna Rei sobre todas as na- porta, até à Porta da Esquina e des-
ções. Nós podemos organizar o conteúdo de a Torre de Hananel até aos lagares
de modo a mostrar o fluxo lógico da se- do rei.
ção, como no resumo abaixo. Algumas 11 Habitarão nela, e já não haverá mal-
palavras foram destacadas para mostrar dição, e Jerusalém habitará segura.
como elas ressaltam as ideias predomi- 12 Esta será a praga [00'] a todos os po-
nantes em cada parte. vos ['00] contra Jerusalém: a sua carne se
1 Eis que vem o Dia do SENHOR [00'] apodrecerá, estando eles de pé, apodre-
teus despojos se repartirão no meio de ti. cer-se-lhes-ão os olhos nas suas órbitas, e
2 Eu ajuntarei todas as nações para a lhes apodrecerá a língua na boca.
peleja contra Jerusalém [00'] metade da ci- 13 Naquele dia [00'] da parte do SENHOR
dade sairá para o cativeiro... grande confusão entre eles; cada um agar-
3 Então, sairá o SENHOR e pelejará con- rará a mão do seu próximo, cada um levan-
tra essas nações, como pelejou no dia da tará a mão contra o seu próximo.
batalha. 14 Também Judá pelejará em Jerusa-
4 Naquele dia, estarão os seus pés so- lém; e se ajuntarão as riquezas de todas as
bre o monte das Oliveiras, [00'] para o nações circunvizinhas, ouro, prata e ves-
oriente; o monte das Oliveiras será fen- tes em grande abundância.
dido pelo meio, para o oriente e para o 15 Como esta praga, assim será a praga
ocidente, e haverá um vale muito gran- dos cavalos, dos mulas, dos camelos, dos
1323 ZACARIAS 14 " ,
111111

jumentos e de todos os animais que estive- Os v. 12-15 se equiparam aos v. 1-3 ao


rem naqueles arraiais. descrever o ataque das nações a Jerusalém.
Aparentemente, opróprio Senhor instiga Eles detalham como o Senhor as derrota.
esse ataque a Jerusalém (1-3), mas o propó- Pode parecer pouco satisfatório voltar ao
sito não é destruir o seu povo. Ele permite juízo e às pragas depois de se ver a ma-
que as nações lhe inflijam sofrimento, mas ravilhosa imagem dos v. 6-9, mas é assim
não que o destruam: um remanescente da que urna estrutura quiásmica geralmente
metade do povo é deixado em Jerusalém. funciona. O clímax vem no meio.
Então, o próprio Senhor intervirá. 14.16-19 As nações virão para a
Nos v. 4,5, temos o quadro do Senhor Festa dos Tabernáculos. O Egito é men-
com os pés sobre o monte das Oliveiras, cionado aqui como o povo de quem Israel
cujo cume possui a extensão de aproxima- devia ser libertado no início de sua exis-
damente 4 quilômetros, de norte a sul, na tência enquanto povo. O Egito em geral é
porção leste de Jerusalém. O monte será apresentado como um exemplo daqueles
fendido ao meio por um vale que se for- que se opõem a Deus. A ênfase aqui está
mará do leste para o oeste, à medida que no fato de que se espera que essa nação
o monte se apartar para o norte e para o venha e adore ao Senhor. Nações que ante-
sul. Isso ainda não aconteceu: alguns es- riormente foram excluídas da adoração ao
tudiosos acreditam que isso acontecerá Senhor agora fazem parte do povo da alian-
literalmente; outros que é uma expressão ça (cf Is 19.18-25). A estrutura da seção
figurada da intervenção divina (v. nota na é a seguinte:
interpretação dos cp. 9-14). Amós 1.1 16 Todos os que restarem de todas as
se refere a um terremoto na época do rei nações que vieram contra Jerusalém subi-
Uzias, e isso pode ter reflexos em Isaías 6 rão de ano em ano para adorar o Rei, o
(1-5; observe o contraste entre o rei Uzias SENHOR dos Exércitos, e para celebrar a
e o SENHOR, o grande Rei, tanto em Amós Festa dos Tabernáculos.
como em Zacarias). 17 Se alguma das famílias da terra não
Os v. 6-9 formam a seção central e o subir a Jerusalém, para adorar o Rei, o
ponto de virada dos v. 1-15. O texto é di- SENHOR dos Exércitos, não virá sobre ela
fícil, mas o quadro geral é claro: há cons- a chuva.
tante luz (um sinal da expulsão de toda a 18 Se a famllia dos egípcios não subir,
escuridão do mal) e de Jerusalém (onde o nem vier, não cairá sobre eles a chuva;
SENHOR habita) correrão águas vivas para virá a praga com que o SENHOR ferirá as
o mar oriental e para o mar ocidental (le- nações que não subirem a celebrar a Festa
vando vida a toda a extensão da terra). dos Tabernáculos.
O SENHOR será Rei: isso forma um con- 19 Este será o castigo dos egípcios e o
traste com a divisão anteriormente men- castigo de todas as nações que não subi-
cionada com o uso da palavra "metade". rem a celebrar a Festa dos Tabernáculos.
Haverá um só SENHOR e o povo reconhece- Essa é claramente uma profecia posi-
rá apenas um único SENHOR (e um só será tiva (16) seguida por cláusulas de exceção
o seu nome). (17-19). A repetição serve para enfatizar:
Referências geográficas adicionais (10) subir a Jerusalém para adorar o Rei, o
enquadram os v. 6-9. Dessa vez o pro- SENHOR dos Exércitos, e para "celebrar a
pósito é exaltar Jerusalém, agora salva e Festa dos Tabernáculos". Há um castigo ri-
habitada pelo SENHOR. Jerusalém é exalta- goroso para aqueles que recusarem a opor-
da em relação ao restante da terra, que se tunidade de se juntar ao povo de Javé em
tomou uma planície. Jerusalém será habi- adoração e celebração. O Egito é uma na-
tada e segura. ção-símbolo. Se permanecer hostil, como
ZACARIAS 14 1324

nos tempos da escravidão de Israel, então dote. Não há distinção entre o secular e
merecerá e sofrerá a praga (como anterior- o sagrado, mesmo no caso de utensílios
mente, cf Hb 2.3). de barro descartáveis: tudo é sagrado na
14.20,21 Jerusalém purificada e san- presença do Senhor. A palavra "cananeu"
tificada. No hebraico, a seção final come- (ARe, TB) também significa mercador. Pro-
ça e termina com as palavras naquele dia, vavelmente o termo seja especialmente
que forma uma espécie de moldura para o escolhido para significar tanto o comércio
material interposto. As palavras Santo ao (o qual normalmente não tem um motivo
SENHOR foram gravadas em uma lâmina de santo) quanto a religião impura, da qual os
ouro puro no turbante do sumo sacerdote israelitas deveriam ter se livrado quando
(Êx 28.36). Aqui, até mesmo as campai- herdaram a terra de Canaã (Dt 7.I-6 etc).
nhas dos cavalos recebem essa inscrição:
elas são tão santas quanto o sumo sacer- Mike Butterworth
MALAQUIAS

INTRODUÇÃO
Autoria tanto, é o paralelo substancial que existe
O nome hebraico Malaquias significa entre os pecados relatados por Malaquias
"meu mensageiro" ou, se Malaquias for e aqueles indicados por Esdras e Neemias.
uma forma reduzida de "Malachiah", tal- Há preocupações compartilhadas com
vez "mensageiro do Senhor". Tomando a corrupção do sacerdócio (1.6-2.9;
como base a LXX, alguns estudiosos têm ar- Ne 13.4-9,29,30); com o casamento com
gumentado que Malaquias 1.1 deve ser en- estrangeiros ou pessoas que acreditavam
tendido como um título, "meu mensagei- em outros deuses (2.10-12; Ed 9-10;
ro", e não como um nome próprio. Parece Ne 10.30; 13.1-3,23-27); com o abuso em
mais provável, no entanto, que esse seja o relação aos desamparados (3.5; Ne 5.1-13);
nome de um homem, como o interpretam e a falha em pagar os dízimos (3.8-10;
outras fontes antigas. Se for assim, o livro Ne 10.32-39; 13.10-13).
de Malaquias segue o padrão de cada um
dos 14 escritos proféticos, em que o autor, Contexto
logo de início, é apresentado pelo nome, O ministério de Malaquias se deu quase
usando uma linguagem semelhante à em- cem anos após o fim do cativeiro babilô-
pregada em 1.1 (cf especialmente Ag 1.1). nico e do decreto inspirado de Ciro, em
Em 3.1, temos um importante trocadilho 538 a.c., que permitiu que os judeus re-
com o nome do profeta: "Eis que envio o tornassem à sua terra natal e reconstruís-
meu mensageiro, que preparará o caminho sem o templo (2Cr 36.23). Isso aconteceu
diante de mim" (grifo do autor). A impli- quase oitenta anos após os profetas Ageu
cação desse trocadilho é o que o ministério e Zacarias terem encorajado a reconstru-
de Malaquias deveria prenunciar o minis- ção do templo com gloriosas promessas
tério do mensageiro que estava por vir, e de bênçãos de Deus, união das nações,
que é identificado no NT como João Batista prosperidade, expansão, paz e o retorno da
(cf 3.1 e 4.5,6). Ver também o quadro na presença gloriosa de Deus (cf e.g. Ag 2;
página 949. Zc 1.16,17; 2; 8; 9). Para os contemporâ-
neos desiludidos de Malaquias, entretanto,
Data essas predições malcompreendidas podem
Em contraste com a maior parte dos ou- ter parecido uma brincadeira cruel. Em
tros livros proféticos do AT, não é possível contraste com as promessas entusiasmadas,
fixar a data de sua composição. Todavia, a dura realidade era de privação econômi-
a maioria dos estudiosos concorda que, ca, colheitas fracassadas, seca prolongada
provavelmente, Malaquias tenha sido um e pestilência (3.10,11).
contemporâneo de Neemias em meados Após o retorno do exílio, Judá contava
do século v a.C. A existência implícita do com um território insignificante 30 x 40
templo em 1.10; 3.1,8, que requer uma quilômetros, e com uma população de qua-
data após sua reconstrução em 515 a.C, se 150 mil habitantes. Embora gozassem
fornece apoio a essa tese. A evidência dos beneficios da iluminada política persa
mais forte para se datar Malaquias, entre- de tolerância religiosa e limitada política
MALAQUIAS 1326

de autodeterminação, o povo sentia aguda- chamado para despertá-los para uma fide-
mente a submissão a um poder estrangeiro lidade renovada à aliança.
(Ne 1.3; 9.36,37) e sofria constante opo- Em 1.2-5, o primeiro dos seis "deba-
sição e perseguição por parte das nações tes" do livro, Malaquias começa defenden-
vizinhas (Ed 4.23; Dn 9.25). Judá não era do a realidade do amor eletivo de Deus por
mais uma nação independente e, o que é Israel, um amor que clama por obediência
mais importante, também deixara de ser rigorosa e adoração sincera como resposta
governado por um rei ungido da linhagem apropriada. Longe dessa esperada respos-
de Davi. ta, entretanto, o povo desonrava a Deus por
Talvez o pior de tudo seja o fato de meio de suas ofertas inaceitáveis e do for-
que, a despeito das promessas da vinda do malismo hipócrita de sua adoração.
Messias e da gloriosa presença de Deus Em 1.6-2.9, o segundo debate, Mala-
(e.g., Zc 1.16,17; 2.4,5,10-13; 8.3-17,23; quias expõe essas ofensas e censura os
9.9-13), Israel experimentou apenas o de- sacerdotes por fecharem os olhos a elas
samparo espiritual. Ao contrário dos re- e, com isso, violarem a aliança do Senhor
gistros históricos de períodos anteriores, com Levi.
Ester, Esdras e Neemias são honestos em Em 2.10-16, o terceiro debate, Mala-
suas descrições da ausência de evidências quias condena o casamento com pessoas
milagrosas da presença de Deus no Judá de outra religião como infidelidade contra
pós-exílico. Em contraste tanto com o tem- a aliança de Israel com o Senhor, e o di-
plo de Salomão quanto com a promessa vórcio não autorizado como infidelidade
profética da restauração do templo (como contra a aliança do casamento, estabeleci-
em Ez 40---43), o templo pós-exílico era da entre marido e mulher, da qual Deus é
fisica e espiritualmente inferior. Como 3.1 testemunha. Malaquias adverte que essas
revela, o Santo dos Santos nesse segundo ofensas não apenas tomam as ofertas ina-
templo não tinha a manifestação visível ceitáveis, mas também colocam em risco a
da glória de Deus. Embora Deus estives- vida do pecador diante do Deus Santo.
se bem vivo, como revelado, por exemplo, Em2.17-3.5, no quarto debate, Mala-
por suas providências extraordinárias no quias estende o foco de sua acusação
livro de Ester, esse foi claramente um pe- enquanto promete que o Senhor vindi-
ríodo "posterior aos grandes milagres" (cf cará sua justiça. Isso acontecerá quando
também Mq 5.3). Em outras palavras, era "o mensageiro da aliança" vier julgar os
uma época muito parecida com a nossa, perversos (quando o Senhor for teste-
na qual o povo de Deus tem de viver mais munha não somente contra os adúlteros,
pela fé do que por aquilo que vê (10 20.29; como em 2.10-16, mas também contra
2Co 5.7; 1Pe 1.8; 2Pe 3.3-13). outros transgressores) e purificar o seu
povo, de modo que suas ofertas venham
A mensagem de Malaquias a ser, enfim, aceitáveis.
Os contemporâneos de Malaquias podem Em 3.6-12, no quinto debate, Malaquias
ter sido relativamente ortodoxos em suas retoma ao assunto das ofertas dadas a con-
crenças e livres de qualquer idolatria ma- tragosto por Israel. O povo tinha experi-
nifesta (cf 2.11), mas a ortodoxia deles mentado adversidade material e estava sob
se tomara morta. Eles não hesitavam em uma maldição em virtude do seu compor-
fazer concessões éticas e a atenuar as de- tamento. Malaquias os desafia a entrega-
mandas exigentes da adoração adequada. rem o dízimo de forma consciente, o que
Em resposta ao cinismo e à enfermidade será recompensado com a bênção divina.
religiosa de seus companheiros israelitas, Em 3.13---4.3, o sexto debate, Mala-
a profecia de Malaquias aparece como um quias assegura aos seus queixosos con-
111
1327 MALAQUIAS 1 fIfI
II1IIII1II

temporâneos que os malfeitores, embora Leitura adicional


aparentem escapar da justiça divina devido BENTON, J. Losing touch with the living
à sua prosperidade, ainda serão julgados, God. Evangelical PressIPresbyterian
ao passo que o Senhor salvará aqueles que and Reformed, 1985.
o temem. BOICE, J. M. The minor prophets. 2 v.
Finalmente, em 4.4-6, Malaquias resu- Zondervan, 1983,1986.
me os principais pontos de sua profecia: CRAIGIE, P. C. Twelve prophets. v. 2. DSB.
Lembrem-se da lei de Moisés (o foco dos Westminster/John Knox Press, 1985.
primeiros três debates), da promessa de BALDWIN, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias.
Elias e do vindouro dia do Senhor (o foco SCB. Vida Nova, 1982.
dos últimos três debates). VERHOEF, P. A. The Books of Haggai and
A estrutura da mensagem de Malaquias Malachi. NICOT. Eerdmans, 1987.
é como a de um objeto e sua imagem
espelhada - ABCCBA - o que se toma
evidente nas seções em que o comentário
foi dividido.

ESBOÇO
1.1 Título
1.2-5 A O justo e o perverso arrogante: O amor de Deus vindicado no juízo

1.6-2.9 B As ofertas feitas a contragosto por Israel são condenadas

2.10-16 C O testemunho de Deus contra casamentos com estrangeiros e divórcios


2.17 3.5 C O testemunho de Deus contra o adultério e outros

3.6-12 B As ofertas feitas a contragosto por Israel são condenadas

3.13-4.3 A O justo e o perverso arrogante: O amor de Deus vindicado no juízo


4.4-6 Conclusão

COMENTÁRIO De maneira semelhante aos títulos


encontrados em Zacarias 9.1 e 12.1 (cf
1.1 Título Hc 1.1), 1.1 descreve essa obra como uma
Malaquias, como os demais profetas, en- sentença pronunciada pelo SENHOR, ou
fatiza a autoridade da "palavra do SENHOR" (mais provavelmente) "um peso" ("peso
(ARC). Nesse título resumido, Malaquias da palavra do SENHOR" [ARC]) com impli-
reconhece seu próprio papel como um in- cações de responsabilidade urgente e mes-
termediário e de forma explícita identifica mo de pavor (cf Jr 23.33-40). Conquanto
sua obra com a "palavra do SENHOR". Em Malaquias dirija sua mensagem ao que
consonância com essa identificação, quase sobrou do pequeno estado de Judá após
a metade dos 54 versículos restantes des- o exílio, ele ousadamente confere a esse
se livro conciso e profundo é marcada por povo a designação antiga e abrangente de
expressões como: "diz o SENHOR", "diz o Israel, desse modo identificando-os como
SENHOR dos Exércitos" etc. responsáveis por todas as obrigações da
MALAQUIAS 1 1328

aliança e herdeiros de todas as promessas Israel em vez de Esaú/Edom, então por


da mesma. que ele permitira que o seu povo sofresse
a devastação total de seu país em 587 a.C.
1.2-5 O justo e o perverso por Nabucodonosor, e 70 anos de cativei-
arrogante: O amor de Deus ro babilônico, enquanto Edom permanecia
vindicado no juízo intacto e parecia até mesmo se beneficiar
Quando os justos sofrem e os perversos das perdas de Israel? Os edomitas não
parecem prosperar, somos inclinados a apenas se alegraram com a ruína de seus
questionar o amor de Deus. No primeiro irmãos israelitas como também ajudaram
debate, Malaquias expõe dúvidas de seus ativamente os invasores babilônicos, ao
contemporâneos e responde a elas. Em vir- agirem como informantes e ao cortarem
tude da sua pobreza econômica, política e as rotas de fuga de seus irmãos (SI 137.7;
especialmente religiosa, eles questionavam Ez 25.12-14; 35.15; Ob 8-16).
o amor de Deus. Em um texto clássico, o Malaquias, entretanto, defendeu sua
qual Paulo mais tarde cita em Romanos tese ao citar Jeremias 9.11. Duzentos anos
9.13, Malaquias responde com um apelo antes de Malaquias, Jeremias tinha anun-
ao amor eletivo e incondicional de Deus ciado o que era naquela época o iminen-
por Jacó e à rejeição correspondente de te juízo de Deus contra Judá: "Farei de
Esaú. Aqui "amei" é usado para expressar Jerusalém montões de ruínas, morada de
escolha e "aborreci" para expressar rejei- chacais; e das cidades de Judá farei uma
ção, e não animosidade pessoal (que foi assolação, de sorte que fiquem desabita-
explicitamente proibida contra os edomi- das". Ao aplicar essa mesma ameaça a
tas, os descendentes de Esaú, em Dt 23.7). Edom, Malaquias deixa claro que, como
Para uma utilização semelhante ver Lucas Judá, Edom não escaparia do justo juízo de
14.26; 16.13. Deus. Parece que Edom experimentou esse
Jacó e Esaú são personagens da his- juízo por meio da intervenção dos árabes
tória patriarcal de Israel. Embora fossem nabateus que gradualmente forçaram os
irmãos, Jacó experimentou o favor sobe- edomitas a abandonar sua terra natal, entre
rano de Deus, o que lhe permitiu gozar de 550 e 400 a.C., fazendo com que se fixas-
um papel privilegiado na história da re- sem em uma área ao sul da Palestina cha-
denção como portador da promessa mes- mada Idumeia. Sendo seminômades, os na-
siânica, enquanto Esaú experimentou a bateus permitiram que as cidades de Edom
rejeição de Deus em termos desse mesmo ficassem arruinadas, enquanto permitiam
papel. A preocupação de Malaquias, en- que seus rebanhos comessem a maior par-
tretanto, era voltada principalmente às na- te das plantações, destruindo assim toda a
ções de Israel e de Edom, das quais Jacó terra arada anteriormente. Enquanto Judá
e Esaú eram representantes e fundadores seria graciosamente restaurado, refletindo
(cf Gn 25.21-23). Em conformidade com o amor de Deus por seu povo, o juízo so-
isso, não se pode concluir que todo edo- bre Edom seria permanente e irreversível.
mita fosse rejeitado ou condenado, bem Os edomitas continuariam a existir como
como não se pode concluir que todo isra- indivíduos (como está implícito em 1.4; cf
elita fosse salvo. os edomitas que mais tarde foram ter com
Para os contemporâneos de Malaquias Jesus, Me 3.8), mas perderam de forma
deve ter parecido que o profeta tinha co- permanente sua identidade nacional.
metido um engano terrível ao apelar aos O primeiro debate termina com uma
destinos contrastantes de Israel e Edom confissão da soberania universal do Senhor.
como prova da posição favorecida de Essa perspectiva universal, frequentemen-
Israel. Ora, se Deus tinha escolhido Jacó/ te malcompreendida, como se implicasse
1329 MALAQUIAS 1 (


em um universalismo onde as religiões de coisa era melhor do que nada, o momo era
outras nações são consideradas aceitáveis melhor do que o frio. Na verdade, o que
a Deus, é um subtema de Malaquias, ao o Senhor realmente gostaria era que esse
qual o profeta retoma em 1.11,14 e 3.12. tipo de adoração impura, irreverente, hipó-
crita cessasse completamente (v. 10; cf.
1.6-2.9 As ofertas feitas Is 1.11-15;29.13; eAp 3.15,16).
a contragosto por Israel Uma vez que os sacerdotes tinham
são condenadas deixado de guardar a pureza do templo, o
Será que realmente amamos a Deus so- Senhor ameaçava puni-los de uma manei-
bre todas as coisas? Pode esse amor ser ra adequada aos seus crimes. Pelo fato de
demonstrado na qualidade de nossa ado- eles terem mostrado "desprezo" (despre-
ração e serviço? Nesse segundo deba- zais; 1.6) e deixado de honrar o nome do
te, Malaquias inverte a questão quanto Senhor (2.2), seriam desprezados e humi-
à queixa de que trata o anterior. Não é o lhados diante de todo o povo (2.9). Por te-
amor de Deus por Israel que deve ser ques- rem desonrado a Deus (1.7), ele figurada-
tionado, mas o amor de Israel por Deus. mente os desonrará e os desqua1ificará do
Ainda que reconheça que todo o povo era serviço do altar, ao espalhar em seus rostos
culpado por desonrar a Deus, como é reve- os excrementos dos sacrifícios rejeitados.
lado por suas ofertas feitas a contragosto Uma vez que esses excrementos deveriam
(1.14), Ma1aquias centraliza o seu ataque ser removidos do santuário e queimados
nos sacerdotes de Israel. Isso porque era (Lv 4.11,12), assim seriam eles, agora, ex-
responsabilidade dos sacerdotes guardar pulsos (2.3). Por terem suposto abençoar
o santuário da profanação e inspecionar o povo de Deus como se os sacrifícios de
todos os sacrifícios, para impedir a ofer- Israel tivessem sido aceitos e tivessem
ta de animais cegos, coxos ou doentes feito sua expiação, Deus agora amaldiçoa-
(Lv 22.17-25; Dt 15.21; 17.1). ria suas bênçãos (2.2). Como escreveu
Como um tipo de terapia de choque Matthew Henry: "Nada profana mais o
para trazer os sacerdotes novamente à ra- nome de Deus do que a conduta inadequa-
zão, Malaquias contrasta o modo como da daqueles que deveriam honrá-lo".
eles honravam prontamente as pessoas a O v. 11 do cp. 1 demonstrou-se o mais
quem respeitavam com o modo abominá- polêmico desse livro. Especialmente per-
vel como desonravam a Deus. Malaquias turbador é o fato de Malaquias se referir
desafia seus conterrâneos a entregar seus à apresentação do incenso e das ofertas
sacrifícios a seu governador persa, para puras em muitos lugares, em vez de exclu-
que testasse a qualidade das ofertas. A lógi- sivamente no templo em Jerusalém, como
ca de Malaquias é indiscutível. Até mesmo seria requerido por Deuteronômio 12 nos
um mero governador humano, um senhor tempos de Malaquias (cf 3.3,4; 4.4). A cha-
ou um pai merece e recebe uma honra mui- ve para a interpretação de 1.11 é entender
to maior do que a que estava sendo ofere- a expressão desde o nascente do sol até ao
cida por Israel a seu Deus, que era seu pai, poente como uma linguagem escatológica
senhor, e grande Rei (1.6,14; em seu uso (cf SI 50.1; 113.3; Is 45.6; 59.19). Os dois
secular, o título "grande rei" é tipicamente textos de Isaías incluem uma referência a
reservado para o imperador ou suserano, uma união final das nações, sugerindo uma
como em 2Rs 18.19,28). referência semelhante em Ma1aquias. Essa
Quando desafiados por Malaquias, os esperança encontra definição adicional em
sacerdotes ficaram confusos. Aparente- textos como Isaías 19.19-25 e 66.19-21,
mente, eles tinham se persuadido de que em que as nações se tomarão "levitas" e
no tocante à adoração ou às ofertas, alguma oferecerão ofertas aceitáveis ao verdadeiro
11
l1li. MALAQUIAS 2 1330
."l1li

Deus em altares aprovados (cf também No v. 10, Malaquias introduz seu ter-
SI 47; Jr 4.1,2; Sf2.11; Zc 2.11; 8.23). ceiro debate com uma descrição geral
Malaquias pode ter pensado que es- da infidelidade mútua e generalizada em
sas profecias viriam a se cumprir em sua Israel, o que profana a aliança deles com
própria época com a conversão dos gen- Deus, o Pai e Criador de Israel (Dt 32.6;
tios ao judaísmo. Entretanto, a lingua- cf Is 27.11; 43.15; Jr 31.19). Malaquias
gem ousada de 1.11, em contraste com o condena duas ofensas maritais paralelas,
modesto número de convertidos que pro- embora não necessariamente relacionadas.
vavelmente havia naquela época, parece A primeira ofensa é a do casamento com
sugerir que a referência de Malaquias uma parceira pagã (11,12; cf Ne 13.29, em
apontava para um cumprimento ainda fu- que a celebração pelos sacerdotes de casa-
turo e mais abrangente. mentos entre pessoas de crenças diferentes
Esse lembrete do propósito do Senhor profana a aliança sacerdotal), e a segunda
para a conversão das nações, um plano que ofensa diz respeito ao divórcio baseado
envolve o chamado para que Israel fosse simplesmente em aversão ou incompatibi-
uma bênção para elas (cf 3.12 e Gn 12.2,3), lidade (13-16).
apresenta o templo como seu foco (e.g., Malaquias, assim, expressa uma visão
Is 2.1-5). Isso é típico do interesse desta- do casamento que é radical em sua pró-
cado de Malaquias pelo final dos tempos pria concepção (identificando o casamento
(cf, e.g., 3.1-5,17; 4.1-6) e dá mais força à como uma aliança entre marido e mulher).
sua condenação ao apático culto sacrificial As exigências colocadas sobre o marido
de seus contemporâneos. Tendo exposto são as mesmas feitas por nosso Salvador e
a hipocrisia dos sacerdotes, ao contrastar pelos apóstolos do NT. De fato, essa pers-
a maneira como honravam as autoridades pectiva exaltada sobre o casamento fez
humanas com a maneira como desonravam com que muitos intérpretes duvidassem
a Deus, Malaquias, mais adiante, censura que Malaquias estivesse se referindo lite-
essa hipocrisia em 1.11, ao contrastar a ralmente ao casamento. Alguns sugerem
desonra dos sacerdotes com a honra e as que Malaquias pretendia usar o casamen-
ofertas aceitáveis, que um dia chegarão a to meramente como uma metáfora para
Deus pelas mãos daqueles que verdadeira- o relacionamento entre Israel e o Senhor.
mente são redimidos (Cf Mt 8.10-12, em Contra esse argumento, entretanto, está
que Jesus utiliza um argumento semelhan- a observação de que em todas as demais
te para censurar seus contemporâneos). partes das Escrituras em que a metáfora do
casamento aparece Deus sempre é retrata-
2.10-16 O testemunho de do como o marido, e não como a esposa,
Deus contra casamentos com como seria o caso aqui. Outros sugerem
estrangeiros e divórcios que a expressão: e a mulher da tua alian-
Por que é que Deus exige que um casa- ça (14) significa simplesmente uma esposa
mento esteja em bom estado antes de ou- judia, isto é, uma esposa que compartilhe
vir a oração de um marido (v. 1Pe 3.7; cf da mesma aliança religiosa do seu marido
Mt 5.23,24)? Malaquias dá a resposta: O com o Senhor. O ponto de vista tradicional,
casamento não é apenas um contrato, um refletido pela NVI, de que Malaquias pre-
relacionamento de duas vias entre marido tende um casamento na aliança, entretanto,
e mulher, mas uma aliança, um relaciona- ainda deve ser preferido.
mento de três vias, com responsabilidades Os contemporâneos de Malaquias esta-
e privilégios, o qual tem como testemunha vam aflitos porque Deus estava recusando
Deus, perante quem o casal é permanente- suas ofertas (13), um fato que percebiam,
mente responsável. supostamente, ser decorrente da recusa do
Senhor em abençoá-los. Malaquias explica
1331 MALAQUIAS 2

intencional com a oração do v. 11: "adora-


<
que Deus estava agindo como uma teste- dora de deus estranho".
munha contra aqueles maridos que esta- É somente com muita dificuldade e
vam sendo infiéis à sua esposa. Pelo fato algumas alterações no texto que o hebrai-
de o casamento ser uma aliança, a fideli- co do v. 16 pode significar: Eu odeio o
dade ao cônjuge é parte do relacionamento divórcio... Essa aparente condenação do
com Deus. divórcio parece contradizer a visão mais
a v. 15a pode ser uma referência a tolerante em relação ao divórcio, apre-
Gênesis 2.24, como é sugerido pela NVI. sentada em Deuteronômio 24.1-4. De
Se assim for, é possível que Malaquias te- modo semelhante, um direito mais ge-
nha baseado sua visão do casamento como nérico ao divórcio pode ser sugerido por
uma aliança e sua consequente ênfase na Deuteronômio 22.19,29, o divórcio figura-
primazia do dever do marido no modelo do entre o Senhor e Israel em Jeremias 3
de casamento de Adão e Eva. Tanto a tra- e em certos textos do NT (Mt 1.19; 5.32;
dução quanto o significado desse versícu- 19.8,9; 1Co 7.15). É preferível, portanto,
lo são obscuros, mas a abordagem geral entender esse versículo desta maneira:
adotada pela ARA (como também pela NVI) "Se um homem odeia e divorcia-se (isto
leva em conta as terríveis advertências é, divorcia-se simplesmente com base na
dos v. 15b e 16b. Essas advertências mos- aversão ou na incompatibilidade, e não
tram para um marido infiel que o divór- por algum motivo como a conduta sexu-
cio é uma ofensa contra sua própria vida. al inadequada), diz o SENHOR, Deus de
(Portanto, cuidai de vós mesmos poderia Israel, ele cobre de violência suas vestes
ser traduzido por: "Portanto, cuidem de (isto é, ele desonra a si mesmo com violên-
sua própria vida"). Em outras palavras, a cia; para esse uso metafórico de vestes cf
preocupação com a própria vida e a fideli- SI 73.6; 109.18; Jr 2.34), diz o SENHOR dos
dade para com a esposa legítima são prati- Exércitos. Portanto, cuidai de vós mes-
camente a mesma coisa (cf Ef 5.28). Isso mos, e ninguém seja infiel [para com sua
sugere a profunda comunhão de vida que esposa]". Além de não requerer nenhuma
Deus promove entre um homem e uma alteração do texto hebraico, essa tradução
mulher dentro do casamento, como esta- tem a vantagem de ver a pessoa que sente
belecido em Gênesis 2.24. Interpretado "ódio" como o marido que se divorcia, e
dessa maneira, poderemos observar que não Deus. Em apoio a essa interpretação
há uma semelhança notável entre a lógi- pode ser observado que o verbo "odiar"
ca de 2.15 e o ensinamento de Jesus em aparece com frequência em contextos de
Mateus 19.5-9. casamento, em que invariavelmente se re-
Além disso, esse versículo afirma que fere à atitude do marido em relação à espo-
a intenção do Senhor é que o casamento sa (Gn 29.31; Dt 22.13,16; Jz 15.2).
produza uma "descendência consagrada"
(NVI) ("semente de piedosos", ARe). Na vi- 2.17-3.5 O testemunho
são de Malaquias, o divórcio poderia frus- de Deus contra o adultério
trar esse propósito de modo semelhante e outros pecados
ao casamento entre pessoas de crenças di- a profeta começa acusando o povo de fati-
ferentes (cf Ne 13.23-27; Ed 10.3,44). A gar o Senhor com suas queixas cínicas (cf
expressão "semente de Deus" (lit.) reflete 3.13-15). Agora que o povo tinha voltado
a imagem estabelecida no v. 10 (e 1.6) de à terra prometida e o templo tinha sido re-
Deus como Pai, isto é, Deus como um pai construído, o que tinha acontecido com a
para o seu povo em virtude de seus atos re- promessa de restauração da prosperidade,
dentores e da aliança, e forma um contraste de fama internacional e riqueza (cf, e.g.,
MALAQUIAS2 1332

Ag 2; Zc 1.16,17; 2; 8; 9)? Na verdade, peravam, mas também para o juízo - ele


o que Israel estava experimentando era virá para ser "testemunha" (o termo em
opressão espiritual e política continuada 3.5, traduzido pela NVI como "testemunha-
e privação econômica (Ne 1.3; 9.36,37). rei" é o mesmo de 2.14) contra todos os
Ainda pior, tinha sido prometido que malfeitores, incluindo esses blasfemadores
Deus voltaria novamente a Jerusalém e cínicos! Em preparação a essa temível vi-
ao templo, no qual habitaria com sua pre- sita, o Senhor promete: Eis que eu envio o
sença gloriosa (Zc 1.16,17; 2.4,5,10-13; meu mensageiro, que preparará o caminho
8.3-13). Assim como o tabernáculo de diante de mim (3.1).
Moisés e o templo de Salomão, que tão O nome Malaquias em 1.1 significa
logo ficaram concluídos encheram-se da "meu mensageiro/anjo". O fato de esse ter-
glória visível de Deus, era natural esperar mo reaparecer em 3.1, em que geralmente é
(embora cf Mq 5.3) que o mesmo acon- traduzido por meu mensageiro, e o fato de
tecesse com o templo reconstruído (cf o "mensageiro da aliança" (NVI) aparecer
Êx 40.34,35; lRs 8.10,11; Ez 43.1-12). no mesmo versículo, levanta algumas difi-
De fato, Ageu 2.9 tinha prometido que culdades. Seriam esses três mensageiros a
esse segundo templo ficaria cheio com mesma pessoa, duas pessoas diferentes ou
uma glória ainda maior que a do templo três pessoas diferentes?
de Salomão. Que glória poderia ser maior O paralelismo poético em 3.1 mostra
que a descrita em detalhes vívidos em que o "mensageiro da aliança" (NVI), que
Ezequiel 1 e lO? Como revelado na ple- é desejado e que virá, não é outro senão
nitude dos tempos, somente a glória de a pessoa divina do Senhor, que também é
Deus na pessoa de Jesus Cristo poderia desejado e virá. O ministério descrito nos
ser maior (101.14). Longe de usufruir de v. 2 e 3 confirma a natureza divina desse
tal glória, entretanto, o templo da época Senhor, que é o mensageiro da aliança.
de Malaquias fora destituído de toda a Por outro lado, o v. 1 distingue meu
manifestação visível de Deus. Entretanto, mensageiro do divino SENHOR dos Exércitos,
isso nem sempre seria assim: Eis que eu que é o orador e a quem os pronomes eu,
envio o meu mensageiro, que preparará o meu e mim se referem. O contexto esca-
caminho diante de mim; de repente, virá tológico e o paralelo entre esse versículo
ao seu templo o Senhor, a quem vós bus- e 4.5,6 implicam que meu mensageiro não
cais, o Anjo da Aliança a quem vós de- pode ser Malaquias (v. em 4.4-6).
sejais; eis que ele vem, diz o SENHOR dos O NT vê João Batista como o mensa-
Exércitos (3.1). Podemos assistir a parte geiro que prepara o caminho do Senhor
do cumprimento dessa profecia quan- (Mt 11.10-14; Mc 1.2; Lc 1.76; 7.27;
do Simeão encontra o menino Jesus no cf também Is 40.3). Todavia, fica claro,
templo e fala sobre ele como aquele que por meio do trocadilho com o nome de
veio para ser "luz [...] para a glória de seu Malaquias, que seu próprio ministério de
povo Israel" (Lc 2.32). preparação foi planejado para prenunciar
Pelo "desejo" mencionado em 3.1, pa- a obra do mensageiro que estava por vir.
rece que Israel tinha repetido o erro de seus Quando o Senhor vier, ele realizará
ancestrais na época de Amós (Am 5.18), duas obras complementares: ele purificará
ao supor que o aparecimento do Senhor alguns pecadores (2-4) e castigará a outros
seria a consumação das boas novas. A res- (5). As imagens utilizadas para essa obra
posta às suas queixas - Onde está o Deus de purificação, o fogo do ourives e a po-
do juízo? - é que o Deus da justiça está a tassa dos lavandeiros, ressaltam tanto sua
caminho. Quando ele vier, entretanto, não severidade quanto sua eficácia. O calor do
será apenas para abençoar, como eles es- fogo do ourives era intenso, para poder
1333 MALAQUIAS 3 - (


separar o refugo do metal puro (Is 48.10; Abraão segundo a qual todas as nações vos
Ez22.18-22; lPe 1.7; cf tambémMt3.11). chamarão felizes (12; Gn 12.2,3; cf tam-
De modo semelhante, os lavandeiros an- bém SI 72.17; Is 61.9; Zc 8.13) se cum-
tigos lavavam as roupas com um sabão prirá. Em resumo, Deus promete atender
muito forte, e depois da lavagem as roupas a todas as necessidades do povo, mas não
eram colocadas sobre pedras e batidas com necessariamente satisfazer a toda a sua ga-
varas. Se os pecadores modernos preferi- nância. A NVI interpreta o v. 10: " ... se não
rem a obra purificadora do Senhor a seuju- vou abrir as comportas dos céus e derramar
ízo, aqui está o preço que tem de ser pago sobre vocês tantas bênçãos que nem terão
(cf Hb 12.7-11). onde guardá-las ". Uma tradução mais lite-
ral seria: " ... e derramar bênçãos sobre vós
3.6-12 As ofertas feitas até que não haja mais necessidade".
a contragosto por Israel
são condenadas 3.13-4.3 O justo e o perverso
O profeta volta às ofertas feitas a contra- arrogante: O amor de Deus
gosto por Israel (cf 1.6-2.9). Antes, en- vindicado no juízo
tretanto, a ênfase estava na falha dos sa- O sexto debate começa com a reclamação
cerdotes em relação a esse assunto; aqui a audaciosa e blasfema de Israel de que é
inquietação de Malaquias estende-se para inútil servir a Deus. Que nos aprovei-
incluir a nação toda (9). tou termos cuidado em guardar os seus
Embora a tradução do v. 6 seja incerta, preceitos e em andar de luto diante do
Malaquias pode ter citado o exemplo de SENHOR dos Exércitos? (14). Após a lista
Jacó para destacar o pecado do povo. Após de pecados já exposta por Malaquias, al-
o exílio de Jacó em Padã-Arã, quando ele guém poderia perguntar a quais preceitos
"retomou" tanto para a terra prometida eles estariam se referindo. O paralelismo
como para o Senhor, ele construiu um altar entre em guardar os seus preceitos e em
em Betel, e ofereceu o dízimo ao Senhor, andar de luto sugere uma simples alusão
de acordo com sua promessa em Gênesis às exigências do culto, provavelmente ao
28.20-22 (cf também Gn 35.1-7). Quando mesmo ritual de lamentação sobre o qual
os descendentes de Jacó, de modo seme- Israel se vangloriava em Zacarias 7.1-6, e
lhante, retomaram do exílio, eles recons- que era um exemplo da conduta pública
truíram o altar em Jerusalém, mas foram hipócrita (cf 2.13; Is 58.3-9).
negligentes quanto à oferta de seus dízi- Nem todos os contemporâneos de Mala-
mos (cf também Ne 13.10-13). Essa ne- quias eram tão arrogantes e prontos a acu-
gligência pode ter parecido justificável em sar a Deus de injustiça. Um segundo grupo
virtude do fracasso da colheita, da seca e é mencionado no v. 16 e descrito como
da peste (10,11), o que teria sido suficiente aqueles que temem ao SENHOR e para os
para dissuadir tais adoradores negligen- que se lembram do seu nome. Ao mesmo
tes. O Senhor revela, entretanto, que esses tempo em que o Senhor descreve as blas-
desastres naturais eram o resultado e não fêmias do primeiro grupo, ele ouve a con-
a causa da desobediência da nação (8; cf versa respeitosa do segundo. Semelhante
Ag 1.6,9-11; 2.16-19). ao "Livro dos Feitos Memoráveis" man-
Sem omitir a necessidade da santidade tido pelo rei Xerxes, que recordava a an-
(cf 2.13; 3.3,4), Deus promete, nos v. 10- tiga fidelidade de Mordecai que não fora
12, que tão logo o povo volte a ser fiel na recompensada (Et 6.1-3), um memorial é
entrega de seus dízimos, a tão necessária escrito na presença de Deus concernente a
chuva virá (10), a peste e o fracasso da co- esses fiéis do segundo grupo (cf também
lheita cessarão (11), e a promessa feita a SI 139.16; Dn 12.1).
MALAQUIAS4 1334

Os queixosos insolentes tinham recla- 19.2). Sem dúvida alguma, Malaquias


mado que aqueles que cometem impieda- aceitaria de bom grado um desafio como
de prosperam, sim, eles tentam ao SENHOR o de Elias para as concessões e a compla-
e escapam. O SENHOR dos Exércitos pro- cência religiosas de sua época. Entretanto,
mete que vem o dia em que eles verão parece mais provável que Malaquias tenha
o quanto estavam equivocados (cf v. 2). reconhecido o fato de que, dentre todos
Para aqueles listados no memorial será os profetas do AT, nenhum se encaixava
um dia em que eles passarão a ser um te- tão bem na imagem de profeta messiâni-
souro particular para Deus (17; Êx 19.5). co "semelhante a mim [Moisés]", como
Será um dia em que o Senhor poupará está escrito em Deuteronômio 18.15, mais
esses fiéis que o servem e mostrará "com- exatamente que Elias (cf Dt 34.10-12).
paixão" (NVI) para com eles. Será um dia Assim, Elias é alçado ao mesmo nível de
em que nascerá o sol da justiça, trazen- Moisés em 4.4-6, como representante
do salvação nas suas asas para aqueles de toda a linhagem de profetas do AT, com
que reverenciam o nome de Deus (4.2; cf a mesma função que ocupa no monte da
Is 60.1-3, embora a imagem em Malaquias Transfiguração (Mt 17.3; Mc 9.4; Lc 9.30;
possa ser extraída dos raios do disco so- cf também Ap 11.3, em que as duas tes-
lar encontrado por todo o antigo Oriente temunhas são delineadas de acordo com
Próximo; cf Lc 1.78), e eles esmagarão Elias e Moisés).
os perversos (4.3). Por fim será um dia em A promessa de enviar Elias antes da
que os soberbos e todos os que cometem vinda do dia do SENHOR confirma a inter-
perversidade serão queimados como res- pretação de 3.1, de que o mensageiro pro-
tolho (4.1). metido não é o próprio Malaquias, mas
um profeta futuro (a figura em ambos os
4. 4-6 Conclusão textos é enviada pelo Senhor e antecede
Os apelos finais de Malaquias (4.4-6) re- a vinda do dia do Senhor). É provável
sumem os pontos principais de sua pro- que esse futuro profeta fosse identificado
fecia: lembrem-se da lei de Moisés e da como Elias não apenas porque Elias foi
promessa de Elias e do dia da vinda do poupado da morte, como se isso pudesse
Senhor. A própria dependência absoluta permitir um retomo literal a esta vida, mas
de Malaquias para com a lei de Moisés e porque o futuro mensageiro seria chama-
as muitas alusões a textos do Pentateuco, do a exercer um ministério profético se-
espalhados por todo o livro, preparam o melhante àquele do Elias histórico. Aqui
leitor para a primeira acusação crucial. são comparáveis as muitas predições
A razão para a identificação do profeta da vinda de um futuro "Davi", que não
que virá como Elias, na segunda acusa- necessariamente implicam um retomo
ção, é menos óbvia. Talvez a necessi- literal do segundo rei de Israel (Jr 30.9;
dade de um ministério como o de Elias Ez 34.23-25; 37.24).
foi sugerida pelo problema do longo O NT identifica João Batista como o
período de seca em 3.10 (IRs 17.1; cf cumprimento dessa promessa (Mt 11.10-
Tg 5.17). Alternativamente, a preocupa- 14; 17.10-13; Mc 9.11-13; Lc 1.17; mas
ção de Malaquias com os efeitos corrosi- cf Jo 1.21,25). Embora separados por um
vos do casamento com pessoas de diferen- período de quase quatrocentos anos, João
tes crenças (2.10-12) pode ter feito com Batista foi o profeta canônico que seguiu
que ele recordasse o notório casamento Malaquias no curso da história da reden-
de Acabe com Jezabel, que se provou não ção. Vestindo os mesmos trajes caracte-
apenas problemático para Elias como de- rísticos de Elias, isto é, roupas de pelo
sastroso para Israel (1Rs 16.31; 18.4,19; de camelo e um cinto de couro (2Rs 1.8;
1335 MALAQUIAS4

Mt 3.4; Me 1.6), João Batista agiu como e poder de Elias, para converter o coração
Elias em sua denúncia corajosa e firme dos pais aos filhos, [...] e habilitar para o
contra o pecado. Em um ministério que o Senhor um povo preparado" (Lc LI7).
colocava em conflito com o rei e sua pér-
fida esposa (lRs 19; Mc 6.17,18), João
Batista foi "adiante do Senhor no espírito Gordon P. Hugenberger
••
..- APÓCRIFOS E LITERATURA
APOCALípTICA

Este artigo se ocupa em parte de livros bíbli- encontram no cânon do AT, e é usado com
cos (particularmente Daniel e Apocalipse), esse sentido neste artigo, embora a ex-
mas também dá atenção a uma série de pressão "Apócrifos do Novo Testamento"
livros não bíblicos (tecnicamente conheci- tenha sido cunhada para denotar obras
dos como "apócrifos" e "pseudepígrafes"), posteriores que imitam a literatura do NT.
alguns dos quais reaparecerão, juntamente Alguns dos livros apócrifos, embora de
com outras obras análogas, entre os ma- maneira alguma todos eles, foram escritos
nuscritos do mar Morto. sob pseudônimos, mas isso é mais carac-
A conexão é fornecida pela literatu- terístico das pseudepígrafes (escritos sob
ra apocalíptica, um gênero literário que nomes falsos), que constituem um corpo
ocorre tanto na Bíblia quanto fora dela. Os literário maior, muitos deles sendo de ca-
apócrifos e as pseudepígrafes datam prin- ráter apocalíptico.
cipalmente do período intertestamentário e Uma vez que a maioria dos livros ju-
nos contam algo a respeito da história e do daicos está fora do cânon das Escrituras
pensamento judaico daquele período. Sagradas, é preciso explicar por que alguns
deles são chamados de "apócrifos". Estes
Os termos "apócrifo" eram os mais valorizados pela igreja pri-
e "apocalíptico" mitiva como leituras edificantes. Eles co-
Embora os dois termos técnicos "apócri- meçaram, por esse motivo, a ser incluídos
fo" e "apocalíptico" pareçam semelhantes, nos manuscritos bíblicos gregos e latinos,
eles são muito diferentes em significado e posteriormente em manuscritos bíblicos
e aplicação. "Apócrifo", da palavra gre- em outras línguas. Esse foi um proces-
ga apokryphos, que significa "oculto", é so gradual, que se estendeu no início do
o nome dado a certos livros e partes de século IV a apenas três livros (Sabedoria
livros que têm sido reconhecidos como de Salomão, Tobias e Eclesiástico), e os
não pertencentes ao cânon das Escrituras mais instruídos, pelo menos, continuaram
Sagradas. "Apocalíptico", da palavra gre- a distinguir tais livros dos livros canôni-
ga apokalypsis, que significa "revelação", cos. (É equivocada a ideia de que tais li-
é um termo usado para denotar um tipo vros estavam nos manuscritos bíblicos
particular de literatura que traz, ou se pro- em grego desde o início, como parte da
põe a trazer, uma revelação de segredos. Septuaginta). Lá pela época de Jerônimo,
Alguns dos livros apócrifos são literatu- no final do século IV, o processo tinha avan-
ra apocalíptica, mas nem todos eles. As çado o suficiente para provocar sério risco
principais obras apocalípticas na Bíblia de confusão, e portanto ele julgou neces-
são: o livro de Daniel, no AT, e o livro de sário separar tais livros por um nome espe-
Apocalipse. (apokalypsis) de João, no NT, cial, escolhendo o termo "apócrifo". Essa
embora partes de outros livros tenham ca- é uma expressão que Orígenes, um século
ráter semelhante. e meio antes, declarou ser aplicada pelos
O nome "apócrifo" é normalmente apli- judeus aos mais estimados de seus livros
cado a livros de origem judaica que não se não canônicos; e uma vez que Orígenes e
1337 APÓCRIFOS E LITERATURA APOCALípTICA <
Jerônimo eram dois dos mais ilustres estu- concentrada na revelação de segredos. Ela
diosos do judaísmo entre os Pais da igreja, anuncia grandes segredos, revelados por
provavelmente usavam a palavra com o Deus a um estimado profeta ou santo, so-
mesmo sentido usado pelos judeus. Se for bre seus propósitos para o futuro ou acerca
assim, isso explicaria porque "oculto" era da constituição da natureza ou das coisas
um termo apropriado a se usar com esse que não se podem ver. A forma como se
propósito. Pois quando os rabinos eram faz a revelação é muitas vezes altamente
confrontados com algum objeto que não ti- simbólica, embora outras vezes seja literal
nham permissão para utilizar, mas que, por e extraordinariamente detalhada.
causa de suas associações com a religião, Fora da Bíblia, a literatura apocalíp-
também não lhes era permitido destruir, tica era frequentemente escrita sob pseu-
eles "o ocultavam" e o deixavam deterio- dônimo, em geral algum nome famoso da
rar naturalmente. Entre os objetos que eles, Antiguidade. Nesses casos, aquele que pa-
por vezes, tratavam dessa maneira estavam recia ser o autor frequentemente era repre-
os livros que corriam o perigo de ser con- sentado como alguém que previa aconte-
fundidos como pertencentes às Sagradas cimentos que já tinham vindo a acontecer,
Escrituras. Paradoxalmente, eram os mais como evidência de seu acesso aos segredos
estimados dentre seus livros não canônicos divinos. Um artificio como este é, na me-
que estavam sujeitos a serem "ocultados", lhor das hipóteses, uma fraude piedosa. O
uma vez que quanto mais estimados fos- Apocalipse de João é uma prova clara de
sem, maior era o perigo de serem erronea- que isso não é uma característica neces-
mente tratados como parte das Escrituras. sária dos escritos apocalípticos, uma vez
Apesar das advertências de Jerônimo, que o autor de Apocalipse escreveu sob
a confusão entre os apócrifos e os livros seu próprio nome e não precisou fazer uso
canônicos continuou, especialmente no de "profecias de acontecimentos passa-
Ocidente. Na Reforma do século XVI foi dos". Hoje em dia, por outro lado, muitos
necessário que os reformadores reafir- supõem que o livro de Daniel tenha sido
massem sua distinção com grande ênfase. escrito sob autoria fictícia e datado do sé-
Nesse meio tempo, a igreja de Roma ten- culo " a.c., isto é, bem depois de os acon-
tou eliminar essa distinção, e o Concílio de tecimentos nele preditos terem ocorrido.
Trento colocou os livros apócrifos na mais A evidência para essa suposição nunca foi
completa paridade com os livros canônicos muito forte, e muitas das evidências indi-
(embora omitindo 1 e 2Esdras e a Oração retas contrárias a ela vieram à luz recente-
de Manassés). Na Igreja Católica Romana, mente, especialmente depois da descober-
consequentemente, os livros apócrifos são ta dos manuscritos do mar Morto. Em sua
conhecidos como livros deuterocanônicos. qualidade tanto literária quanto espiritual,
Nas bíblias traduzidas para suas respectivas o livro de Daniel está muito à frente dos
línguas pátrias, os reformadores reuniram livros apocalípticos apócrifos, e deles dife-
os livros apócrifos como uma seção total- re também em outros aspectos marcantes.
mente separada, mas nas bíblias católico- O livro de Daniel não toma como autor,
romanas (tais como a Bíblia de Jerusalém assim como fazem os apócrifos, uma figu-
e a de Douai) eles continuam intercalados ra proeminente de outras partes do AT, já
com os livros canônicos do AT. conhecida por ter recebido alguma revela-
ção. Também não possui as características
Literaturas apocalíptica. sectárias essênias que caracterizam os li-
bíblica e apócrifa vros apocalípticos apócrifos mais antigos
A literatura apocalíptica é uma forma de (v. adiante). O livro de Daniel também está
literatura semelhante às profecias, mas incluído entre as Escrituras Judaicas, um
COMENTÁRIO BíBLICOVIDA NOVA 1338

tipo de reconhecimento que não foi con- 2Esdras é um livro apocalíptico escrito
ferido a nenhum outro livro apocalíptico. por volta de 100 d.C. e preservado em la-
Essas diferenças de caráter e de tratamento tim, não em grego. É complementado por
são mais facilmente explicadas sob a hi- material cristão posterior, isto é, dois capí-
pótese de que Daniel é mais antigo que os tulos iniciais e dois finais.
outros livros apocalípticos judaicos, tendo Tobias é uma narrativa de cunho moral
incitado imitações tanto por sua qualidade sobre a caridade, o sepultamento dos mor-
quanto porque, quando estas começaram a tos e o casamento. Tem como pano de fun-
ser escritas, ele já era um candidato a um do a Pérsia e é um dos mais antigos livros
lugar no cânon. apócrifos.
Os mais antigos autores judeus de Judite é uma narrativa fascinante, em-
apocalipses pseudonímicos parecem ter bora sem base histórica alguma, sobre uma
sido precursores ou representantes da es- heroína piedosa que salva seu povo.
cola de pensamento essênia. Quatro dos Acréscimos a Ester é uma coletânea de
cinco livros que compõem o Livro de itens acrescentados à tradução de Ester da
Enoque, a versão em aramaico (e possi- LXX, sobretudo com o propósito de desta-
velmente em grego) dos Testamentos dos car seu caráter religioso. Ester era mais um
Doze Patriarcas, bem como vários frag- livro livremente traduzido para o grego,
mentos de outros apocalipses encontra- com esses vários acréscimos, embora, nes-
dos entre os manuscritos do mar Morto, se caso, o livro fosse um dos que eram de
apresentam essa perspectiva. Mais tarde fato lidos na sinagoga.
os apocalipses judaicos, tais como as Sabedoria de Salomão é uma obra
"Parábolas de Enoque", A Ascensão de pertencente à tradição da Literatura de
Moisés e 2Esdras (mencionados adiante) Sabedoria do AT, embora tenha provavel-
possuem uma forte dose de pensamento mente sido escrita em grego, por um judeu
farisaico. de Alexandria influenciado, até certo pon-
to, pela filosofia grega. Ao final do século
o conteúdo dos apócrifos n d.e., encontramos a descrição da obra
como "escrita pelos amigos de Salomão
Os apócrifos propriamente ditos em sua honra" (Fragmento Muratoriano),
O apócrifo 1Esdras é uma versão grega de modo que sua pseudonímia provavel-
da história de Esdras, nela inclusos um mente não tinha intenção alguma de ser
pouco de Crônicas e Neemias, e com uma enganosa.
narrativa adicional nos cp. 3 e 4 tratando Eclesiástico é mais uma obra que
de um debate na corte persa sobre "a coisa faz parte da Literatura de Sabedoria, só
mais forte do mundo". Esses livros do AT que, nesse caso, segue mais o modelo de
que não eram lidos nas sinagogas tendiam Provérbios, terminando com a notória eu-
a ser traduzidos para o grego e o aramaico logia de homens famosos. Foi originaria-
com uma liberdade bem maior que os de- mente composto em hebraico, como o pró-
mais. Esdras era um dos nove livros nessa logo explica. É um dos mais antigos livros
categoria, de modo que 1 Esdras pode ser apócrifos, datado aproximadamente de 180
apenas uma antiga versão grega de Esdras, a.C., e identifica Josué ben-Sira (Jesus, fi-
ao passo que a outra versão grega incluída lho de Siraque) como seu autor.
na LXX é uma tradução muito mais lite- Baruque, terminando com A Carta de
ral. O material extra é característico da Jeremias (originariamente uma obra sepa-
hagadá judaica, escritos homiléticos, tais rada), é acrescentado ao livro de Jeremias
como histórias de ficção contadas somen- na LXX, como um duplo apêndice ao livro
te para edificação. bíblico. Retrata Baruque, companheiro de
li
1339 APÓCRIFOS E LITERATURA APOCALípTICA • •
••
Jeremias, como alguém que profetiza no A História de Ahiqar, uma antiga his-
mesmo estilo do profeta e mostra Jeremias tória que sobreviveu nas mais variadas
como tendo escrito outra carta aos exila- formas e línguas e inclui material de ca-
dos, dessa vez acerca do perigo da idolatria ráter proverbial, ainda que pouco desse
(cf Jr 29). material seja claramente religioso. O Livro
O Cântico dos Três Jovens, Susana e de Tobias faz referência a essa obra, e um
Bel e o Dragão são três adições à versão manuscrito aramaico, de parte dela (datado
do livro de Daniel na LXX. O primeiro é do século v a.C.), foi encontrado nas esca-
uma expansão de Daniel 3, consistindo vações do povoado judeu em Elefantine.
em uma oração e um hino atribuídos aos A Carta de Aristeias e Os Oráculos
três companheiros de Daniel, quando es- Sibilinos são exemplos de uma série de
tes estavam na fornalha ardente. O hino é obras ostensivamente compostas por au-
frequentemente chamado de Benedicite e é tores pagãos, mas de fato escritas para ju-
utilizado na adoração cristã tradicional. As deus. A primeira fornece um relato parcial-
outras duas são histórias sagradas acres- mente lendário da tradução do Pentateuco
centadas ao início ou ao final do livro, do da LXX, escrito no século 11 a.c., um século
mesmo modo que Baruque e a A Carta de depois do acontecimento.
Jeremias. O Livro de Enoque (JEnoque) é uma
A Oração de Manassés é uma expan- compilação de cinco livros apocalípticos
são de 2Crônicas 33.11-19, que coloca em de épocas variadas, quatro dos quais foram
palavras o arrependimento de Manassés. encontrados entre os pergaminhos do mar
Não se sabe, entretanto, se teve origem Morto e possuem perspectiva essênia, esta-
em uma tradução da Bíblia, e pode ter sido belecendo o calendário e as crenças sobre
composta independentemente. o final dos tempos característicos dos essê-
JMacabeus é a principal fonte histó- nios. O mais antigo deles provavelmente
rica sobre as façanhas dos macabeus em remonta ao século III a.C. O segundo livro,
sua revolta contra o monarca siro-helêni- "As Parábolas de Enoque", tem perspecti-
co, Antíoco Epifânio, e a sua campanha de va um pouco diferente e contém o célebre
perseguição na metade do século 11 a.C. É ensinamento sobre o Filho do Homem, um
um belo registro de fé heroica. desenvolvimento de Daniel 7. Tem sido
2Macabeus cobre parte do mesmo as- sugerido, embora com bases insuficientes,
sunto. É um livro escrito em grego que que esse livro foi escrito por um cristão.
combina valioso material histórico com JEnoque 1.9 é citado em Judas 14,15.
lendas. Alguns manuscritos da LXX tam- O Livro dos Jubileus foi escrito na pes-
bém incluem 3 e 4Macabeus, obras que soa de Moisés, assim como JEnoque foi
não têm tanta importância. escrito na pessoa de Enoque. Esse livro
também dá amparo ao mesmo calendário
As pseudepígrafes dos essênios. Ele divide a cronologia em
Coleção de livros bem maior que a dos 49 jubileus, a partir da criação, e reconta
apócrifos e, assim como estes, compostos a história dos patriarcas, estendendo a ob-
em sua maior parte por judeus e preserva- servância da lei mosaica à criação. Assim
dos por cristãos, embora não tão estimados como JEnoque, seu propósito parece ter
pela igreja quanto os apócrifos. Nem todos sido provar que a interpretação essênia das
foram escritos sob pseudônimos, a despei- Escrituras existia na época do AT. A pseu-
to do título que lhes é comumente atribuí- donímia em casos desse tipo parece ter a
do, embora muitos de fato o tenham sido. intenção de enganar.
Entre os mais antigos e mais importantes Os Testamentos dos Doze Patriarcas
deles estão: provavelmente também tenham a mesma
>
COMENTÁRIO BíBLICO VIDA NOVA 1340

perspectiva, pelo menos em sua forma ara- te). Três livros das pseudepígrafes também
maica. Neles, cada um dos filhos de Jacó, foram encontrados ali (1Enoque, o Livro
antes de morrer, deixa uma última men- dos Jubileus e Os Testamentos dos Doze
sagem para seus descendentes, com pre- Patriarcas), mais uma vez em suas línguas
visões do futuro de cada um e instruções originais (aramaico, hebraico e aramaico,
sobre como se comportar. respectivamente), e os Testamentos em
A Ascensão de Moisés e 2Baruque são uma versão completamente diferente do
livros apocalípticos de caráter mais farisai- texto. No caso de três dessas seis obras,
co. O primeiro está incompleto e na ver- foi a primeira vez que um fragmento foi
dade não inclui (como outrora incluíra) a encontrado em sua língua original, embo-
suposta ascensão de Moisés aos céus ou ra porções de Eclesiástico em hebraico e
o episódio citado em Judas 9. O segundo dos Testamentos em aramaico tenham sido
está estreitamente relacionado a 2Esdras. encontradas no final do século passado em
O Martírio de Isaías é a versão su- uma genizah do Cairo (local da sinagoga
postamente hebraica da versão cristã da que servia de depósito onde eram "oculta-
Ascensão de Isaías e conta a história do dos" os manuscritos descartados).
martírio do profeta, que foi serrado ao Outra obra descoberta na genizah
meio, uma história que provavelmente in- do Cairo foi a princípio chamada de
fluenciou a redação de Hebreus 11.37. Fragmentos Zadoquitas, porém, uma vez
Os Salmos de Salomão são hinos reli- que uma porção maior do texto foi encon-
giosos atribuídos a Salomão, talvez para trada entre os achados do mar Morto, a
tomar suas alusões contemporâneas mais obra recebeu um novo nome, Documento
prontamente aceitáveis. de Damasco. Trata-se de um conjunto de
Embora não haja referência direta no regras para a vida da comunidade essênia
NT a nenhum dos livros apócrifos, duas e é equiparado a um outro conjunto de es-
das pseudepígrafes, como observado aci- tatutos, o Manual de Disciplina, também
ma, possuem referências na carta de Judas. encontrado entre os manuscritos do mar
Pode ser que aqueles a quem essa obra foi Morto. Outras obras que refletem essa
dirigida fossem especialmente devotos mesma perspectiva, as primeiras encon-
dessa literatura, ou que os hereges que os tradas entre os manuscritos do mar Morto,
incomodavam o fossem. Assim, tendo em são o Rolo da Guerra e o Rolo do Templo.
mente sua plateia, Judas se utilizou de duas O primeiro contém instruções e previsões
passagens dessa literatura, embora não lhes a respeito da esperada batalha final entre os
tenha atribuído autoridade alguma. judeus e os romanos, e o segundo contém
uma harmonizada reiteração das leis sobre
Os manuscritos do mar Morto o santuário e o cerimonial, supostamente
Os manuscritos do mar Morto são fragmen- escrita por Moisés.
tos datados entre o século III a.c. e o século O restante dos manuscritos do mar
[ d.C., que foram descobertos em ruínas no Morto inclui muitos manuscritos bíblicos
deserto da Judeia, entre 1947 e 1965, nota- relacionados a cada livro do AT, exceto o
damente na fortaleza essênia de Qumran. de Ester, um livro de hinos e vários textos
Muitos deles, é claro, não têm nenhuma expositivos e litúrgicos.
relação com os apócrifos ou as pseudepí-
grafes, mas alguns têm. Manuscritos de o ensinamento da
três livros apócrifos (Tobias, Eclesiástico literatura apócrifa
e A Carta de Jeremias) foram encontrados Os livros que vimos até agora ainda não
ali, os dois primeiros em sua língua origi- constituem a totalidade da literatura que
nal (aramaico e hebraico, respectivamen- fornece o pano de fundo judaico não biblico
1341 APÓCRIFOS E LITERATURA APOCALípTICA " , "
"'.
ao NT, embora sejam em geral a parte mais tes sobre outros quatro temas teológicos
antiga dessa literatura. Esta também inclui além da correta interpretação da Lei. Estes
os escritos de Filo (um judeu de Alexandria, eram: a tradição oral, a soberania divina,
do início do século I d.C., que falava o gre- os anjos e escatologia (teorias sobre o fim
go), que escreveu comentários filosóficos dos tempos). Os saduceus adotavam uma
sobre o Pentateuco, bem como os escritos atitude negativa em relação a cada um des-
de Josefo (um judeu da Palestina do final ses assuntos, enquanto os fariseus tinham
do século I d.C.), um historiador. Além do uma atitude positiva. Os fariseus enfatiza-
mais, o pano de fundo literário não está vam a importância da tradição oral para a
completo a menos que se inclua uma parte interpretação e aplicação das Escrituras, a
dos escritos rabínicos nos quais as tradi- soberania de Deus, os anjos, e um futuro
ções orais dos fariseus foram registradas. juízo pessoal, temas esses completamen-
A mais antiga compilação rabínica em ter- te negados pelos saduceus. Os essênios
mos de relevância é a Mishná, escrita por concordavam com os fariseus em termos
volta de 200 d.C., mas que contém ditos de gerais, exceto sobre a tradição oral, ponto
renomados rabinos que viveram no perío- em que enfatizavam seus próprios escritos
do que se estende até o século I a.c. Um sectários.
dos tratados da Mishná tem sido frequente- Naturalmente, a literatura produzida
mente incluído na coletânea das pseudepí- nesse período reflete a influência das dife-
grafes sob o título Pirqe Aboth ("Os Ditos rentes perspectivas então vigentes e exibe
dos Pais"), embora esse não seja o lugar as simpatias do autor em questão. Grande
apropriado para sua inclusão. parte da literatura intertestamentária é am-
Depois do juízo do exílio, quando os plamente farisaica, exceto pelos escritos da
judeus por fim encararam seu pecado per- seita dos essênios encontrados em Qumran
sistente de incluir características de outras e aqueles outros escritos ali encontrados
religiões em sua própria e, liderados por que apresentam características semelhan-
Esdras e Neemias, deliberadamente adota- tes. Pairam dúvidas quanto à sobrevivência
ram o Pentateuco como regra de vida, era de algum escrito genuíno dos saduceus.
quase inevitável que surgissem diferentes A religião no período intertestamentá-
escolas sobre a interpretação da Lei. Por rio retratada na literatura da época é, na
volta do século" a.C., três diferentes es- melhor das hipóteses, a verdadeira fé do
colas de pensamento tinham surgido, os AT. Houve, entretanto, consideráveis de-
fariseus, os saduceus e os essênios, cada senvolvimentos do pensamento religioso
qual com sua própria interpretação da lei nesse período, em parte devido às influên-
mosaica. Os fariseus, a princípio, deti- cias persa e grega (durante os períodos de
nham a primazia, mas, por volta de 110 domínio persa e grego), mas especialmen-
a.c., os saduceus conseguiram chegar ao te devido à maneira como os ensinamentos
sumo sacerdócio e ali manter o seu domí- do AT eram interpretados. Esses desenvol-
nio. Entretanto, devido à enorme influên- vimentos do pensamento religioso, geral-
cia dos fariseus junto ao povo, na prática mente atribuídos à influência grega e persa,
os sumos sacerdotes geralmente tinham em especial aqueles relacionados a anjos e
de adotar o ponto de vista dos fariseus. demônios e à vida após a morte, provavel-
Os essênios desempenhavam um papel de mente pertencem a uma outra perspectiva
menor destaque na vida pública e viviam interpretativa do AT. A influência estrangei-
em comunidades à parte, no deserto e nos ra é, por vezes, bastante aparente, como
arredores das cidades. quando Tobias 3.8,17 utiliza um nome per-
As três escolas de pensamentos tam- sa para um demônio, ou quando Sabedoria
bém desenvolveram perspectivas diferen- 2-5 (seguido por Filo e Josefo) ensina
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: . COMENTÁRIO BfBLlCO VIDA NOVA 1342
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sobre a imortalidade da alma. Não obstan- transcendência de Deus explica por que se-
te, tais desenvolvimentos provavelmente se res intermediários, como anjos e demônios,
justificavam na visão daqueles que fizeram eram objeto de tanta atenção. Em Tobias,
deles interpretações do AT. O AT, de fato, um papel de destaque nos afazeres humanos
fala de anjos e demônios, porém pouco nos é desempenhado por um anjo e, por analo-
diz a respeito deles, bem como de fato as- gia com os nomes dos anjos do AT, Gabriel
segura (principalmente nos Profetas e nos e Miguel, ele recebe o nome Rafael. No li-
Salmos) uma vida futura mais relevante vro de Enoque, um grande número de anjos
para os fiéis do que a sombria existência é nomeado, incluindo sete arcanjos cujos
do sheol. Os desenvolvimentos do período nomes terminam em "<el", e cada um deles
intertestamentário são, de certo modo, de- é responsável perante Deus (El) por classes
senvolvimentos especulativos daquilo que diferentes de pessoas ou por partes distintas
o AT tem a dizer, e uma consideração im- da criação (JEnoque 20). Nos Testamentos
portante para os cristãos é questionar se o dos Doze Patriarcas, anjos intercedem
NT os endossa. Estes desenvolvimentos são pelos homens no céu (Testamento de Levi
ora rejeitados, ora meramente ignorados 3.5,6; Testamento de Dã 6.2). O NT endos-
pelo NT, mas às vezes são endossados. sa muito pouco dessa especulação sobre os
anjos, mas seu papel como intercessores
Deus e seus anjos pode estar implícito em Mateus 18.10. Os
Embora o cuidado paternal de Deus para anjos aparecem, entretanto, principalmente
com o seu povo Israel seja frequentemente na anunciação (Lc 1.26-38) e na ressurrei-
mencionado nessa literatura, sua santidade ção (e.g., Mt 28.2-7).
transcendente é destacada. O nome de Deus,
Javé, era considerado sagrado demais para Escrituras
ser pronunciado e, assim, a palavra Adonai A influência com que a lei escrita, como
("Senhor") era usada para substituí-lo. forma permanente da lei de Deus, já era
Consequentemente, na tradução que a LXX exercida na época do AT, foi mantida e
faz do AT, o nome de Deus é traduzido por expandida no período intertestamentá-
ho kurios, "o Senhor". Passagens contendo rio. A Carta de Aristeias 177 se refere ao
essa tradução são frequentemente citadas Pentateuco como os "oráculos" de Deus.
no NT, e este também é o título divino mais Por duas vezes nos apócrifos o livro da lei
frequentemente aplicado a Jesus. de Moisés é efetivamente identificado com
A soberania de Deus, como já vimos, a personificação da Sabedoria de Deus
era um tema que despertava grande preocu- (Eclesiástico 24.23; Baruque 4.1). Dos li-
pação nesse período. Os autores apocalíp- vros que se encontram fora do Pentateuco,
ticos, com sua expectativa de uma grande Tobias 2.6 e 14.4 cita predições de dois dos
intervenção de Deus na história humana profetas, e 1Macabeus 7.16,17 cita os sal-
para julgar e libertar, colocavam muita ên- mos como proféticos. Nos manuscritos do
fase nessa questão. Também se acreditava, mar Morto, os livros do AT são citados por
exceto pelos saduceus, na soberania de meio de fórmulas que se tomaram padrões
Deus na vida dos indivíduos, mas isso não para a citação da Escritura oficial, prática
excluía, pelo menos de acordo com os fa- que se manteve em Filo, no NT, bem como
riseus, a responsabilidade humana (Salmos na Mishná.
de Salomão 9.7; 2 Baruque 54.15,19). A
crença dos essênios na predestinação pare- Pecado e salvação
ce ter sido bem mais radical. Uma vez que a lei era o caminho da reti-
Em geral se acredita que a ênfase atri- dão, os judeus do período intertestamen-
buída durante esse período à questão da tário estavam muito preocupados com o
1343 APÓCRIFOS E LITERATURA APOCALfpTICA - : :

problema da inclinação da humanidade à o Messias e as últimas coisas


desobediência. Um ponto de vista bastante A partir do NT, sabemos que os judeus
influente era de que os justos eram marca- aguardavam várias personagens do final
dos com a dádiva de uma boa alma des- dos tempos, o Messias, o Profeta do final
de o ventre matemo (Sabedoria 8.19,20; dos tempos de Deuteronômio 18.18,19 e o
Eclesiástico 1.14), e que suas boas ações retomo de Elias de Malaquias 4.5,6. O AT
expiavam suas más ações (Tobias 12.9; também faz alusão a um sacerdote do final
Eclesiástico 3.3). Isso estava em harmonia dos tempos (Ed 2.63; Ne 7.65; 8l110.4; Jr
com a doutrina rabínica de que a salvação 33.14-21; Zc 6.9-15). Uma peculiaridade
se dá pelas obras e que, quando julgar o dos manuscritos do mar Morto é que eles
povo, Deus comparará suas boas e más unem o Messias e a vinda do sacerdote
ações, para ver quais delas são maiores, à ideia de dois Messias, embora também
em vez de exigir retidão absoluta, como haja claros sinais disso nos Testamentos
ensina o NT (daí a doutrina do NT ensinar dos Doze Patriarcas, em que se espera o
que a justificação, na visão de Deus, só é Messias tanto da tribo de Levi como da tri-
possível pela fé). bo de Judá.
No pensamento farisaico, entretanto, a
A vida por vir ênfase estava no Messias da tribo de Judá,
Uma doutrina da salvação tal como essa o filho de Davi ou o rebento do tronco de
implica a sobrevivência do espírito hu- Jessé (28m 7.11-29; Is 11.1-10). Ele seria
mano (se não, também, a ressurreição do um grande guerreiro, assim como Davi, e
corpo humano) e um futuro julgamento libertaria seu povo. Todavia, não fica mui-
pessoal para cada indivíduo. Encontramos to claro na maior parte da literatura inter-
essas crenças sendo ensinadas de forma testamentária e no AT em que medida ele
distinta na literatura intertestamentária. realizaria os demais propósitos futuros
Nós já havíamos mencionado os ensina- de Deus de julgar o mundo e inaugurar a
mentos sobre a imortalidade da alma em nova criação. Uma exceção, entretanto,
Sabedoria 2-5, onde os ímpios aparen- deve ser feita no caso das "Parábolas de
temente sobrevivem para passar pelo jul- Enoque" (lEnoque 37-71), a parte do li-
gamento, assim como os justos para ser vro de Enoque que não foi encontrada em
abençoados. Nos textos dos essênios, a Qumran. Aqui, o Messias é identificado
sobrevivência dos espíritos dos ímpios e como o Filho do Homem de Daniel 7 e é
dos justos é ensinada de forma bastante um ser preexistente, que estabelecerá por
distinta em JEnoque 22 e no Livro dos si mesmo o Reino de Deus.
Jubileus 23.31. Depois da morte, eles ex- A centralidade do Messias davídico nos
perimentam uma antecipação do gozo da propósitos de Deus é um tema levantado e
porção final que lhes caberá no grande dia desenvolvido no NT. Ali, ele é identificado
do juízo. A ressurreição do corpo recebia como Jesus, o eterno Filho de Deus, que
mais destaque no pensamento dos fariseus veio para salvar seu povo de seus pecados,
do que no dos essênios. Os ensinamentos e não da dominação estrangeira, e é, ele
sobre a ressurreição do corpo são nitida- mesmo, o tão esperado sumo sacerdote.
mente encontrados em 2Macabeus 7.11;
14.46 e outras passagens, e a punição do Roger Beckwith
corpo dos ímpios é discutida em Judite
16.17. Em geral, os ensinos do NT harmo-
nizam com estes, embora a imortalidade Leitura Adicional
da alma não seja ensinada explicitamente 8PARKS, H. F. D. The Apocryphal Old
no NT. Testament. OUP, 1984.
lIIIl
) - COMENTÁRIO BíBLICO VIDA NOVA 1344

CHARLESWORTH, 1. H. The Old Testament COLLINS, 1. J. The Apocalyptic Imagination.


Pseudepigrapha. 2 vo1s. Doub1eday, Crossroad, 1984.
1983, 1985. ROWLAND, C. The Open Heaven. Crossroad,
VERMES, G. The Dead Sea Scrolls in 1982.
English. Penguin, 1987. VERMES, G. The Dead Sea Scrolls: Qumran
NICKLESBURG, G. W. E. Jewish Literature in Perspective. Collins/Fortress, 1977.
Between the Bible and the Mishnah.
Fortress, 1981.

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