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EDITORA
MILTON SCHWANTES
Meu intuito foi o de tornar acessível o assunto
deste livro. Mas, também não quis fugir de sua
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APROVOCAÇAO primeira vocação: a exegese! Portanto, ao ler,
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EstudoseinterpretaçõesemIsaías 6-9
nocontexto literário deIsaías1·12 você precisa de calma e paciência. Num
procedimento exegético, os resultados
aparecem pouco a pouco. Detalhes de
gramática, percepções da situação histórica,
significados exatos de cada termo hebraico,
isso e outros tantos pormenores vão dando
sentido. Leia, pois, este livro na pazdo exegeta.
Em todo caso, acho que vale a pena que você
sejapersistente na leitura.A profeciade Isaías é
de um encanto extraordinário. Vale a pena
dedicar-se a este poetaencantador do 8° século
a.C. Écomovedorcomo este nosso visionário -
conhecedor da história de Israel, portador das
tradições de Jerusalém e defensor de órfãos e
viúvas - encontra formular novos caminhos
para seu povo. Este há de ser o mistério da
exegese deste profeta: ele não admite que se
repitam teores proféticos já conhecidos. Quem
o estuda e lê precisa abrir-se a novos
horizontes, a novos conceitos, a novas
aventuras e significados.
Isaías não abandona à ruína nem o templo e
nem a monarquia. Quem vem da leitura de
seus dois grandes predecessores, Amós e
Oséias, e de seu contemporâneo Miquéias, se
surpreende. Afinal, nestes profetas, templo e
dinastias nada valem. Para Isaías, ambos têm
grande valor, se bem que para tal precisam ser
invertidos em seus sentidos. Bem, o que isso
quer dizer, é propriamente o sentidodeste meu
comentário. Quem ler, verá...
ISBN 978-85-7843-009-2

911!ll lllll~Illll~ li!1!1!ll111 Milton Schwantes


Da vocação à provocação
Estudos e interpretações em Isaías 6 ..9
no contexto literário de Isaías 1.. 12

Milton Schwantes

2ª edição
(com alterações e ampliações)

A
AOI~OS..
f 11111 1

2008
© Milton Schwantes
Rua Camilo José, 78
04125-140 São Paulo/SP
Tel.: (11) 5068.0170
milton. schwantes@metodista.br

Publicação parcial anterior


Isaías - textos selecionados, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia, vol.l-2,
la edição, 1979, 167p. [texto mimeografado]

Revisão: Carlos A. Dreher


Ilustração da capa: Rosileny Alves dos Santos Schwantes
Arte-finalização: Jair de O. Carlos
Impressão: Evangraf

EditoraOikos Ltda.
Rua Paraná, 240 - B. Scharlau
CaixaPostal1081
93121-970 São Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848/ Fax: (51) 3568.7965
contato@oikoseditora.com.br
www.oikoseditora.com.br

S398d Schwantes, Milton


Da vocação à provocação: Estudos e interpretações em Isaías
6-9 no contexto literário de Isaías 1-12 / por Milton Schwantes.
- 2. ed. alt. e ampl. - São Leopoldo: Oikos, 2008.
208 p. j 16 x 22 cm.
ISBN 978-85-7843-009-2
1. Bíblia - Antigo Testamento - Profeta - Isaías. 2. Teologia
Bíblica. 3. Bíblia - Crítica - Interpretação. L Título.
CDU 224.1

Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
Para
Carlos Arthur Dreher
e
Isolde Ruth Dreher

caminhos comuns nos conduziram na vida,


em amizade de muitas alegrias e conversas;
novas e inusitadas experiências bíblicas
tomaram forma na vida e
na dedicação de vocês;
o encanto da criatividade se assentou
em seus escritos e suas palavras;
que cada dia lhes seja
uma graça gratuita, criativa.
Sumário

a
Apresentação (da 2 edição) 7
Apresentação (da 1a edição) 9
O memorial e seu contexto - Introdução a Isaías 1-12 11
1 - N a vocação especial - Isaías 6 31
Tarefas proféticas especiais - 6, 1-13 31
2 - Da corte ao cortiço - Isaías 7-8........................................................ 83
A corte está em pânico! - Indicação da situação histórica (7,1-2) 83
Os inimigos estão destruídos - Crer e permanecer (7,3-9) 89
"Ouvi, casa de Davi!" - "Contra ti" (7,10-17) 100
"Naquele dia" - Uma releitura (7,18-25) 111
Armas não armam tendas de paz - (8,1-4) 115
Sinais e símbolos - (8,5-23) 122
Um "dilúvio" sobre Judá (8,5-8+9-10) 129
A torah-orientação para os discípulos (8,11-15) 133
Mas há esperança! (8,16-18) 138
Gente "acabrunhada e esfomeada" - Uma releitura (8,19-23) 140
3 - Na provocação - Isaías 9,1-6 145
Algumas indicações bibliográficas 204
Outras obras do autor 208 e
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Apresentação (da 2ª edição)

Aqui está a segunda edição que tem cara de primeira. É que aquilo que
chamo de primeira edição só chega à metade do texto que agora estou publi-
cando. Além disso, a assim chamada primeira edição passou por muitas ade-
quações para situar-se nos mesmos caminhos desta atual, segunda edição.
Agradeço por sua leitura e por sua crítica: Preciso dela, porque aqui,
nestes capítulos de Isaías, andei por muitos caminhos que ainda nem havia
testado. Aliás, é para isso que a gente escreve e se esforça em publicar: para
que o leitor e a leitora ajudem em sua leitura crítica. Afinal, a verdade é
concreta. Na medida em que aplicarmos este conceito à exegese, esta não
está aí para ensinar, mas a despertar para o que poderia vir a ser. Esta é a
função do insistente estudo de textos bíblicos. Com eles não se fecham hori-
zontes de compreensão e de interpretação, antes se abrem novos espaços.
Espero que tenha feito jus a esta possibilidade nas leituras de Isaías.
Esta publicação é exegética. Serve ao estudo. Quem a ela se dedicar,
precisa ter paciência para andar em meio às palavras e aos significados, para
ver que portas podem abrir. Aqui se bate a portas, escuta-se, procura-se sem
fáceis soluções. Quando começas a ler, precisas ter esta calma interior. Se
fores com pressa à tarefa, podes sucumbir, porque os detalhes são muitos, as
notas não quiseram cessar de se anunciar. Em especial dediquei tempo aos
caps.6 e 9. Nos capítulos do meio, os caps. 7-8, aprofundei-me a menos deta-
lhamentos. Suas cenas me pareciam elucidar o que a releitura do templo e do
davidismo - uma sensacional obra de Isaías! - estava a propor.
Faltaria circular pelo cap. I I. Terei que assumir esta meta em outra opor-
tunidade. Pois, para dedicar-se a ela, a este sensacional cap. I I, necessário se
faz parar, com tempo, no cap. lO. Afinal, o fim do império assírio e de outros
também (cap.l O) é o reverso das esperanças em favor do rebento (cap. l l ).
Aliás, Isaías é riacho de águas frescas; por onde as beberes não deixarás de te
saciar.
Dedico este livro a um casal amigo, com quem tenho tido a felicidade
de conviver muitas horas agradáveis e cheias de esperança, em relação aos

7
estudos da Bíblia e em trabalhos de pastoral bíblica em meio ao povo. Carlos
Arthur Dreher conheci como estudante de teologia, em busca de contínuas
renovações. Ele desvenda e descobre, não só na Bíblia, também na sala de
aula, nas leituras bíblicas em meio ao povo, em sua arte de escrever, no en-
canto que se tem ao escutá-lo contar histórias. Com ele compartilho o an-
seio de aprender a ler o messianismo. Sua dissertação magnífica sobre Juízes 5
é uma obra de arte, bem como sua tese sobre as políticas repressoras dos reis
israelitas. Isolde Ruth Dreher conheci em sua vida criativa e autônoma ao
lado de Carlos. Por assim dizer nasceu professora, e continua esta sua voca-
ção com fervor e tenacidade, aperfeiçoando-se a cada trajeto de sua vida. E
também se dedica à Bíblia, por exemplo com sábias leituras em Gênesis. Para
mim, uma alegria conviver com vocês! Aliás, não há como estar perto de
Isolde e de Carlos sem continuamente vivenciar seus belos encantos. Havê-
los encontrado na vida é de minhas profundas alegrias.
Que estas páginas dêem alegrias a vocês leitoras e leitores, ainda que
mediante uma boa dose de calma na leitura.
São Paulo, páscoa de 2008.
Milton Schwantes

8
Apresentação (da 1 edição) ª
o material que aqui apresento pretende ser uma ajuda para a compre-
ensão de alguns textos do profeta Isaías. Preparei-o como subsídio para o
estudo em grupos, no curso de exegese em nossa Faculdade de Teologia.
Sobre o profeta Isaías há falta de bibliografia em português. Por isso o
presente material por vezes se tornou extenso. Pareceu-me útil favorecer a
possibilidade de ampla informação.
Esse material não está pronto. Está a caminho. Tenho a esperança de
que possa servir de informação para novas descobertas. Espero que seja um
convite para a contemplação do texto bíblico.
Restrinjo-me, no geral, a informações. Estou ciente de que, nesse pon-
to, a meditação do texto bíblico permanece especialmente fragmentária. Vejo
a necessidade de aprofundar as informações na procura pelos sinais atuais do
texto bíblico.
Confesso que nem de longe foi possível consultar a imensidão de biblio-
grafia existente. Aprendi muito com dois comentários: Bernhard Duhm (Das
Buch}esaja, 1968 - a 1" edição é de 18921) e Hans Wildberger Uesaja, em
publicação desde 1965). Preciosos também me pareceram três ensaios: de
Odil H. Steck, "Bemerkungen zu [esaja 6", em Biblische Zeitschrift, vol.16,
1972, p.188ss; "Rettung und Verstockung - Exegetische Bemerkungen zu
[esaja 7,3-9", em Evangelische Theologie, Munique, Christian Kaiser Verlag,
vo1.33, 1973, p.77ss; "Beitrãge zum Verstãndnis von [esaja 7,10-17 und
8,1-4", em Theologische Zeitschrift, Basiléia, vo1.29, 1973, p.161ss.
Fiz acompanhar as palavras hebraicas por uma transcrição. Ela tenta
fazer jus à pronúncia, contudo não abrange todos os aspectos de cada pala-
vra hebraica.
São Leopoldo, fevereiro de 1979.
Milton Schwantes

9
o memorial e seu contexto
- Introdução a Isaías 1.. 12 1

Definimos os caps.6-9 de Isaías para o presente ensaio exegético. A


publicação pretendida justamente visava o exercício exegético. Não era, pois,
possível ser demasiado abrangente no enfoque. Mas, de certo modo, até é
óbvio que tenhamos escolhido um texto típico para a visão de Deus e das
pessoas em Isaías. E, assim, viemos a concentrar-nos nos caps.6-9.
Estes capítulos encontram-se propriamente no coração dos caps.l-12
de Isaías. E estes doze primeiros capítulos compõem um 'primeiro' livro em
nosso profeta. No cap.12 temos uma conclusão formal, estabelecida por um
salmo. E no cap. 13 começa uma nova grande unidade de nosso Isaías. Esta
ampla unidade, aliás, se estende até o cap.2 7; seu foco principal são os povos
estrangeiros, a começar no cap. 13 pelo "oráculo sobre a Babilónia". A este
título de 13, I segue de imediato uma informação a mais que indica estarmos
no come~o de um novo conjunto literário isaiânico: "que viu Isaías, filho de
Amoz". E, pois, adequado que concluamos nossa unidade literária maior,
que circunda os caps.6-9, no cap. 12.
Vejamos com detalhes este ambiente literário de nossos caps.6-9.

1 Veja Erhard Blum, "[csajas prophctisches Testament - Beobachtungcn zu [esaja 1-11", em Zeitschrift fuer
diealttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruvter, vol.10S e 109, 1996 e 1997, p.547-56S + p.12-
29; William A. M. Beuken,Jesaja 1-12, Freiburg, Hcrdcr, 2003, 367p. (Hcrders Thcologischer Kommentar
zum Altcn Testarneur): Thomas Wagner, Ganes Herrschaft - Eine Analyse derDenkschrift Uesaja 6, 1-9,6),
Leídcn/Boston, E. J. Brill, 2006, XIIIp. + 340p. (Supplements to Vetus Testamcntum, lOS); Karl Buddc,
Jesaja's Erleben - Einegemeinverstiindliche Auslegungder Denkschrift desPropheten (Kapitel 6,1-9,6), Gotha,
Klotz, 1925, Vlp. + 123p. (Bücherei der christlichen Welt).

11
Um capítulo introdutório (Isaías 1)
Isaías 1 parece desempenhar um papel importante no livro. Nisso tal-
vez se assemelhe a Jeremias 12• O cap. 1 de Isaías seria uma "síntese" ou um
resumo de Isaías 1-39 3•
O título, no v.I, deve estar visando o livro do Primeiro Isaías (caps.l-
39)4. Por isso não haveria que incluí-lo na função especial do cap. L
Nos v.2-3, temos uma clara introdução do que lhes segue. A lingua-
gem tende a conteúdos mais gerais, a ponto de até se poder perguntar, se
estes v.2-3 são isaiânicos. Mas, aqui, na brevidade de nossas considerações
havemos de deixar o assunto restrito a essa interrogante.
Uma nova unidade está nos v.3-9. Havemos de datar esta unidade em
tomo de 701 a.C; quando da invasão assíria contra Judá e Jerusalém: "Sião
foi deixada como uma cabana na vinha" (1,8).
A unidade subseqüente, v.I 0-17, há de pertencer aos primeiros tem-
pos da atuação profética de Isaías. Literariamente há conexões entre os v.3-
9 e v.10-17 (veja, por exemplo, a menção de Sodoma e Gomorra no v.9 e no
v.lO). Em v.1O-1 7 a crítica profética se volta contra o culto sacrificial no
templo em Jerusalém, um tema do começo da profecia isaiânica.
Nos v.18-20, continua o assunto dos v.1O-17: o pecado. Mas este não
é devidamente enfrentado pelo sacrifício, mas em meio à obediência à pala-
vra. Entendo que este pode ser um tema da atuação no final do 8° século.
Novamente nos começos da atuação de Isaías estamos com os v.2I-285•

2 Quanto a Jeremias 1, indico, agora, o comentário de Siegfried Herrmann, Jeremia, Ncukirchcn, Neukir-
chener Verlag, 1986 e 1990, p.l-92 (Bíblischer Kommentar Altes Testamcnt 12); Airton José da Silva,
''Arrancar e destruir, construir e plantar - A vocação de Jeremias", em EstudosBíblicos, Petrópolis, Vozes,
voU5, 1987, p.l1-22; Airton José da Silva, Nascido profeta-A vocação de]eremias, São Paulo, Paulinas,
1992, 141p.
3 Assim Georg Fohrer, "[csaja 1 als Zusammenfassung der Verkündigung [csajas", em Zeitschrift fiá die
alttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruyter, vol.74, 1962, p.251-268; também publicado em
Georg Fohrer, Studienzur alttestamenlichen Prophetie: 1949-1965, Berlin, Alfred Tópelmann, 1967 (Bcihcfte
zur Zeitschrift für dic altrcstamcntlichc Wissenschaft, 99). José Severino Croatto intitula o cap.1 de
Isaías da seguinte maneira: "Os oráculos geradores do livro de Isaías" (Isaías vol.l: 1-39 - O profeta dajustiça
e da fidelidade, Petrópolis, Editora Vozes, 1989, p.14.31 (247p.) (Comentário Bíblico).
4 Esta é a compreensão de Hans Wildberger, Jesaja 1-12, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1965, p.13
(494p.) (Biblischer Kommentar Alies Testament 10/1).
5 Veja meu estudo exegético "A cidade da justiça - Estudo exegético de Isaías 1,21-28", em Estudos
Teológicos, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, vo1.22, 1982, p.5A8.

12
Neste trecho, chama a atenção que o conteúdo do anúncio profético é o de
uma renovação de Jerusalém.
A última subunidade, v.29-31 , pode ser alocada em tempos mais tardios
de nosso profeta. Seu conteúdo prevê crise para o "forte".
No todo, temos cinco pequenas unidades proféticas neste cap. 1, com
uma breve introdução nos v.2-3.

"Contra Jerusalém e Judá" (Isaías 2A)


Em 2,1, há um novo título, similar mas também diferente de 1,1. En-
tendo que este v.l é o cabeçalho para uma nova unidade: 2,1 até 4,6. Neles,
encontra- se "a visão" "contra Jerusalém e Judá". Basicamente situo estas pa-
lavras proféticas nos anos anteriores à 'guerra siro-efraimita' de 733-732 a.c.
Pois, no mínimo, a partir desta data, a presença assíria é marcante na Palesti-
na. Ora, ainda não se mencionam os assíriosnestes caps.2 -4 e nem, no cap. 1,
naqueles textos que são mais antigos. Estamos, pois, com este nosso panfleto
dos caps.2-4, em tomo de 740 a.c., quando a situação social em Jerusalém e
Judá já era dramaticamente contra os socialmente mais fracos (veja Amós e
Oséias em Israel-norte), mas sem que em Isaías já prevalecesse uma ameaça a
ser realizada por Javé através dos assírios.
As pequenas subunidades deste livro "contra Jerusalém e Judá" são 1
+ 3 + 1: uma corresponde à introdução (2,2-5), e mais ou tras três perícopes
(isto é, unidades retóricas ampliadas): 2,6-22; 3,1-15 e 3,16-4,1, sendo 4,2-6
a conclusão.
Em 2,2-5, temos um começo programático! Ferramentas em lugar de
armas - este é o assunto e a crise, em que profecia isaiânica coloca a elite em
Jerusalém.
2,6-22 formam uma só subunidade, um panfleto. "O tema principal
(...) é claramente o orgulho humano'". Os assírios ainda não são referidos.
Penso que 3,1-15, a próxima unidade, igualmente é abrangente. Re-
presenta uma junção de várias subunidades retóricas menores (aliás, à seme-
lhança de 2,6-22). Seu título as reúne e as direciona a Jerusalém e Judá (3,1,
veja 2,1). No final do v.lS, temos uma fórmula de conclusão: "dito do Se-
nhor [avé Deus Zebaote".

6 José Severino Croatto, Isaías vai.1:1-39, pAIA3.

13
Nova introdução está no começo do v.16: "e disse [avé", Na unidade
que segue, de 3,16-4,1 o assunto é uma segunda pessoa singular feminina:
"tu". Este "tu" é designado em 3,16 de "as filhas de Sião".
Penso que estes três breves panfletos, destas subunidades ampliadas,
que, antes de serem inscritas neste trecho do Primeiro Isaías, já haviam pas-
sado por um processo de agrupamento oral e talvez escrito, constituem o
núcleo dos caps.2-4: 2,6-22 + 3,1-15 + 3,16-4,1. Estas três unidades, ou
estes três panfletos foram agrupados sob a luz maior de 2,2-5, e sob o título
"contra Jerusalém e Judá" (vej a 2,1 e 3,1). Este poderia ser o primeiro dos
escritos proféticos isaiânicos.
Em todo caso, 4,2-6 é, em relação a 2,1 até 4,1, um adendo posterior,
ainda que em termos de seqüência seja "contraponto a 2,2-5"7. Aqui, basta
que o atribuamos ao pós-exílio. Isso em nada desmerece a subunidade que
relê o trecho para dentro de novos ambientes, como irá suceder, por igual,
por exemplo com 7,18-25 e 8,19-23, trechos aos quais ainda haveremos de
recorrer, mais adiante. Até que ponto 4,2-6 tem vinculação com o que segue
a partir de 5,1, ainda permanece como tarefa a ser enfrentada.

Os entornos aos caps.ô-O


Entendo que a unidade literária que tem início em 6,1 pode ter seu
começo em 5,1. A parábola 5, 1-7 conforma o cabeçalho temático dos próxi-
mos capítulos.
Na verdade, em 2,1-4,6 deparamos com os marcos de um preâmbulo
para o que lhes segue. Isso vale de modo especial devido à introdução que
constitui 2,2-5. Ora, em 2,2-5, seu assunto, Sião, também é decisivo nos
caps.ô-P, como, por exemplo, se percebe no cap.6 e em 8,16-18 (v.18!).-
Outro argumento que permite relacionar 2,1-4,6 com os assuntos de caps.ó-P
é o distanciamento profético de Isaías das elites jerusalemitanas denunciadas
em suas variadas corrupções. Portanto, convém que se continue a observar a
correlação entre 2,1-4,6 e as novas unidades que, agora, passaremos a enfocar.

7 AssimJosé Severino Croatto, Isaías vaI. I: 1-39, pAS.

14
A parábola da vinha indica o tema (5,1-7 8)
Em 5, 1, falta uma introdução formal, similar a l ,1, a 2,1, e a 13,11 Ora,
pode ser que tal começo realmente faltasse no cabeçalho de nosso conjunto
literário ou que a adição de 4,2-6 o acabasse suprimindo. Em todo caso,
teremos um novo subtítulo em 6, 1 que valerá para nossos caps.6-9. Por con-
seguinte, o título, de sentimos falta, é aquele que se refere ao 'invólucro
literário' que deve ter seu início em 5, l.
5, 1-7 é um maxal hebraico, uma comparação sapiencial. Desde já indi-
ca quão profundamente sapiencial é nosso visionário.
Este maxal-parábola chega a seu objetivo nos v.5-6, introduzidos por
"e agora", o que indica que realmente estamos chegando a um ponto alto.
Nestes versículos, anuncia-se profeticamente a ruína da vinha: "arrancarei",
"deixá-la-ei arrasada". Este é o fim da vinha do Senhor.
O problema é que esta ruína da vinha não expressa claramente quem
afinal está no fim. Não é, pois, acaso, que o v.7 retoma o assunto. Retoma-o
sob a interjeição ki "eis". Ela equivale a nosso "então" ou "atenção". Portan-
to, após a conclusão nos v.5-6 ("e agora") há como que um segundo fecha-
mento ("entãO"), em que a parábola chega a seu clímax. - Na verdade, este
duplo fechamento do maxal também assinala que ele teve mais de uma ela-
boração, sendo certamente a que inclui o v.] a mais recente, a que a incor-
porou em nosso contexto literário maior dos caps.5 e subseqüentes.
Nele voltam a ser mencionados os referentes da profecia. Por um lado,
é "a casa de Israel". Ora, isso se há de referir ao norte, ao reino de Israel, pois
"casa" indica tal estrutura política em que Israel se estrutura e organiza (veja
também Oséias 1,4-5). De todo modo esta entidade até aqui não estivera em
foco no livro de Isaías. Aqui é a primeira vez que é mencionada. Entendo-a,
pois, no sentido da organização política e social que constitui o estado de
Israel na Samaria, na Planície de Jezreel e nas Montanhas da Galiléia. - Por
outro lado, a profecia está voltada contra "o homem de Judá". O referente
não deveria ser igualmente "a casa de Judá"? Por aí novamente se observa
que esta parte final da parábola foi retrabalhada. De todo modo fica a ques-
tão de quem seja este "o homem de Judá". Aliás, e isso não se há de esquecer

8 Veja, sobre 5,1-7, José Luis Aguilera, "EI cántico de la viúa - Isaias 5,1-7 - Análísis histórico-crítico", em
Revista Teológica Limense, vo1.32, 1998, p.335-362.

15
-Ó,
de anotar, temos esta mesma expressão no v.3. Aí no v.3 se encontra em
paralelo a Jerusalém. Daí se poderá deduzir com muita nitidez que "Judá" há
de ser a tribo-território-tprovíncia', em que vive a população sulista. E quem
seria "o homem"? Haveria que traduzir "o homem de Judá" por "o judaíta"?
Esta sem dúvida é a tendência dos intérpretes", Penso que não é assim que
devemos proceder! Pois, no v.3, encontra-se em paralelo a "o homem de
Judá" a expressão "o governante de Jerusalém". Realmente há que traduzir o
conceito hebraico yoxeb ( < yxb "sentar", "governar") neste sentido de "go-
vernante", como também sucede em 6,1 e 8,14 10• No geral, as traduções
optam em verter yxb para "sentar" ou "habitar". Mas, em contextos como o
nosso v.3, não convém que assim se proceda, pois Isaías se refere ao "gover-
nante" e "rei". O que isso diz sobre o termo paralelo "o homem (de Judá)"?
Indica que não deveríamos querer entender esta expressão como referência
ao judaíta, ou, em geral, à população judaíta. Trata-se antes de "o homem"
que, em paralelo, com "o governante", constitui, em singular, as pessoas po-
liticamente importantes em Judá, ou até os militares judaítas. Enfim, a partir
de uma perspectiva social, a parábola-maxal de 5,1-7 é ameaça às elites jeru-
salemitanas e judaítas, as mesmas que serão assunto no próprio memorial de
Isaías, nos caps.6-9.
As autoridades de Jerusalém e Judá ainda gozam de simpatia de nosso
visionário, se bem que esta já não seja completa. O v.] indica estas duas
facetas de modo muito adequado. Ora, por um lado - no v.7a - há ainda
expressões de particular simpatia em relação aos que conformam "a casa de
Israel" -norte e a "o homem da casa de Judá", em especial em relação a este
último, designado de "sua planta preferível". Mas, por outro lado, a conclu-
são final- no v.7b - já se expressa deveras contrário a estas entidades, que se
acabara de mencionar em uma tonalidade tão positiva: afinal, o que prevale-
ce são "violência" e "gritos de aflição". A vinha deixou de ser maravilhosa
para tornar-se um salão de tortura! Eis, o problema!
Ora, "violência" e "gritos de aflição" serão o temário do que segue após
5,1- 7 e para o que esta parábola serve de iniciação.

9 Veja a respeito a bibliografia reelaborada cm Hans Wildberger,]esaja 1-12, p.163-174.


10 Veja a respeito Norman Karl Gottwald, As tribos deIahweh - Umasociologia dareligião deIsmelliberto 1250-
1050a.c., São Paulo, Paulinas, 1986, 932p. (Bíblia e Sociologia, 2).

16
Sete ais de ameaça (5,8-24 + 10,1-3)
Em 5,1-7, temos uma introdução ao que segue. Mas isto que segue já
obedece a novas conformações. Pois,o assunto dos "ais", que começa em 5,8
não se conclui antes de caps.6-9, mas após estes, em 10,1-3. Aliás, se incluir-
mos na perspectiva desde já o "ai" contra a Assíria (10,5-34), incorpora todo
o cap. lO. Portanto, a coleção dos "ais" se dispõe ao redor de nossos caps.6-9!
Há que acrescentar, desde já, uma peculiaridade sobre estes "ais" que
começam em 5,8, como concretização do final de 5,7: "violência" e "gritos
de aflição". Acontece que vários destes "ais" estão ampliados: além do "ai"
propriamente dito, ainda apresentam ameaças detalhadas. Foram, pois, emen-
dados e interpretados por editores de nosso livro? Esta é uma possibilidade de
explicação. Encontramo-la em Otto Kaiser!': ele identifica a autoria de nos-
so visionário nos conteúdos que seguem imediatamente a cada "ai", e atribui
a releituras posteriores o que vai adicionado a estes começos dos "ais". O
problema desta explicação de Otto Kaiser reside em que a linguagem que dá
seguimento à frase que mais imediatamente diz respeito ao "ai" flui dentro da
linguagem isaiãnica" e não na de posteriores intérpretes exílicos ou pós-exí-
licos. Penso, pois, ser mais recomendável que já tenha sido o próprio Isaías
que reinterpretou os "ais", alongando-os. Aliás, tínhamos o fenômeno simi-
lar na própria parábola precedente: em 5,1-7 poderíamos atribuir o v.] a uma
releitura, mas havemos de desistir de fazê-lo, porque este versículo não está
em tensão com conteúdos isaiânicos, antes pelo contrário, se bem que, em
termos literários, há sinais de que o v.] seja posterior aos v.5-6. Em tais casos
há que decidir-se a favor de Isaías, como autor, porque a escrita de nosso
visionário não é idêntica à fala e, sim, um crescimento dos conteúdos em
relação ao primeiro discurso. Enfim, prefiro seguir, neste caso, a Hans Wild-
berger e José Severino Croatto!' para quem o texto atual dos "ais" se encon-
tra bastante próximo da própria autoria de nosso visionário. Logo, os con-
teúdos que seguem imediatamente a cada "ai", e que se poderia atribuir a

11 Veja Otto Kaiser, Das Buch des Propheten]esaja Kapitell-12 (= ]esaja 1-12), Gotinga, Vandenhoeck &
Ruprecht, 5' edição, 1981, p.100-114 (257p.) (Das Altc Testament Dcutsch, 17); outro é o posicionamento
de José Severino Croatto, Isaías voU: 1-39, p.52.55.
12 Encontramos fenômeno similar aos "ais" de Isaías 5 em Habacuque 2,6.19, mas aí as emendas já têm,
diferente que em Isaías, contornos que designaria de apocalípticos. Quanto a Habacuque, veja Domin-
gos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres - Tradução critica do profeta Habacuc, Aparecida,
Santuário, 1999, 342p. (Série Bíblia, 5).
13 Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.182·183, e José Severino Croatto, Isaías voU: 1·39, p.52-55.

17
releituras posteriores (exílicas ou pós-exílicas) são do próprio visionário
Isaías.
Em 5,8-10, neste primeiro "ai" contra usurpadores de terras e casas,
poder-sé-ia querer atribuir, pois, a Isaías somente o v.S, e à releitura posterior
os v.9-10, considerando, por exemplo, também que o v.9 tem, em seu come-
ço, uma nova introdução: "em meus ouvidos [avé Zebaote". Mas, prefiro
atribuir o conjunto a Isaías, de acordo às considerações de acima.
O segundo "ai", sobre os administradores beberrões, engloba um trecho
amplo: 5,11-17. É muito provável que neles alguns elementos constituam
adendos, em especial a partir do v.14, em cujo início temos uma reduplicação
do "por isso"llaken que já ocorrera no v.13. Mas, a respeito, estudos mais
especializados deverão decidir. O que, em todo caso, chama a atenção é que
não temos, também nestes v.11-17, alusões ao linguajar apocalíptico. A
linguagem dos v.5,11-17 permanece nos espaços proféticos!
Em 5,18-19, no terceiro "ai" sobre culpa e erro, de novo temos um
trecho, em tamanho, similar ao de 5,S-10 e de 5,11-13. Chama a atenção
que no v.19 a linguagem se aproxima de ênfases de Isaías.
Os "ais" do v.20 e do v.21 são breves, em especial o segundo; faltam-
lhes as explicitações típicas dos demais. Em 5,20, o "ai", no caso o quarto,
está direcionado a quem inverte o "mal" em "bem" e o inverso. Tais inver-
sões da postura ética trazem consigo sintomas da própria morte, do "ai".
Em 5,21, a tônica do quinto "ai" recai sobre sábios.
Em 5,22-24, o sexto "ai" se dirige contra maus administradores e cor-
ruptos. Há, de novo, um texto mais amplo, similar ao de 5,S-10 e a outros
deste tipo. A segunda parte do "ai" é, como em casos anteriores, uma ameaça
profética.
Entendo, como a exegese usual de nosso trecho", que o sétimo "ai" se
encontra em 10, 1-4a, portanto depois da 'memória da guerra siro-efraimita'.
Isso tem a desvantagem de que se perde algo por ocasião da interpretação.
Por exemplo, deve-se levar em conta seis ou sete "ais"? Em todo caso, é
óbvio que a coleção dos "ais" já existia quando foi separada em seis "ais" que

14 Veja Bernhard Duhm, Das Buch}esaja, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 5ª edição, 1968, em seu
comentário sobre os "ais" nos caps.5 elO (490p.); Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.175-202; diferente José
Severino Croatto, Isaías val.l: 1-39, p.52-53.

18
precedem o 'memorial' e um que lhe dá seguimento. Este sétimo "ai" é con-
tra os administradores das causas públicas, que emitem leis a seu bel prazer.
Em especial estas leis do senhorio são leis contra os pobres!
Os sete "ais" expressam as péssimas condições económicas, políticas e
administrativas, mediante as quais a elite administrativa do estado judaíta
conduz o cotidiano da vida de cidadãs e cidadãos. Poder-se-ia chegar a pen-
sar que os sacerdotes não estivessem mencionados, mas é possível que 5,18-
19 os estejam referindo. Quem realmente não está citado é o rei. E isso cha-
ma a atenção. Afinal, os sete descasos mencionados só são possíveis caso o
rei esteja colaborando nesta confusão, como, aliás, o diz claramente Oséias
7,3-7, em um texto aproximadamente da mesma época deste nosso de Isaías.
Ora, a questão damonarquia é o assunto dos caps.6-9! Até então, até o contex-
to da guerra siro-efraimita de 733 e 732 a.C. a monarquia ainda não fora,
propriamente, tema da profecia isaiânica. Esta questão entra em pauta com
Acaz e sua política de guerra contra a Síria e, em especial, contra Israel, e seu
pedido de ajuda a Assíria. Neste ponto, Isaías irá discordar por inteiro, não só
com um rei, mas com os reis, com os davididas. O resultado deste 'avanço' da
profecia isaiânica, seguindo os passos de seus quase contemporâneos Amós e
Oséias (diferente de Miquéias, veja 5,1-5), leva-o ao distanciamento da casa
davídica. Seu messianismo retoma este 'davídísmo', mas formata-o claramente
em outros contornos, como veremos nos caps.6-9.
Podemos, pois, alocar também os "ais" de Isaías no âmbito de sua pro-
fecia anterior à assim chamada 'vocação' no cap.6. Entenderemos esta 'vo-
cação', como mais adiante veremos em detalhes, como vocação especial,
como comissionamento específico justamente para os novos conteúdos por
ocasião da guerra siro-efraimita.

''Ainda está estendida a suamão"- palavras contra Israel e outros que confiam em
armas (5,25-30 + 9,7-11 + 9,12-16 + 9,17 -20)
Os "ais" conformam um quadro externo em tomo de 6,1 até 9,6; este
arco externo tem sua maior quantia de texto antes das 'memórias de Isaías
por ocasião da guerra siro-efraimita'. No caso, antes do cap.6 encontram-se
seis" ais", depois somente um."

15 Contudo, há que perceber também que em 10,5.34 temos mais um 'oitavo' "ai". Mas este difere em muito
dos anteriores, da coleção dos sete "ais" contra setores da elite governante em Jerusalém.

19
Outra é a disposição do que agora iremos conhecer brevemente, a
profecia contra "o povo" (Israel?). Esta começa em 5,25, mas apresenta sua
maior parte após as 'memórias', após 9,7. São, pois, duas as unidades que se
conformam ao redor de 6,1 a 9,6. A primeira que ameaça com "ais" as elites
governantes de Jerusalém, porque estão devastando a vinha, enchendo-a e
entulhando-a de "violência" e "gritos de aflição" (5,7). A segunda que, como
veremos em alguns detalhes, ameaça de ruína a Israel, o que passa a ser espe-
lho e antecipação para o que sucederá a judá (7,17!).
Mas, sem querer antecipar-nos em demasia, atentemos para a canção
contra Israel. A rigor ela também é contra Judá. Afinal, desde o cântico da
vinha (5,1-7), que faz as vezes de uma introdução, Judá e Israel estão no
mesmo barco da denúncia e das ameaças divinas. Neste sentido, não se pode
reservar uma palavra somente para Judá e outra somente para Israel. Ambos
seguem, em especial conquanto organizações políticas, o mesmo trilho em
direção à ruína (8,14-15!).
Penso que em 5,25-30 já deveríamos aplicar esta consciência de que
Israel e Judá não andam tão longe um do outro. E é o que o 'memorial isaiâ-
nico' irá evidenciar: "a cólera de [avé" se voltará "em/contra seu povo" e
"contra ele", havendo inclusive "cadáveres" (v.25a). O anúncio é, pois, de
destruição. Segue-se a esta ameaça inicial e contundente um refrão que se
repetirá em várias passagens (5,25; 9,11.16.20 e 10,4):
E, com tudo isto,
não se amainou 16 a sua ira,
e ainda a sua mão [está] estendida." (5,25b, veja 9,11.16.20 e 10,4)
Nem este refrão temático e nem mesmo o conjunto de 5,25-30
menciona seu referente: Judá ou/e Israel? Nas 'estrofes' semelhantes desta
mesma canção, em 9,7 -20, a conexão com Israel é mais nítida (inclusive sob
exclusão de Judá). Mas aqui, em 5,25-30, não se define a referência, se israelita
e/ou judaíta. Descreve-se, com muitos detalhes, que [avé agirá (v.25a) por
meio de uma nação ou, veja v.26, de nações militarmente tão superiores a
tudo que encontrarão pela frente que seu "bramido será semelhante ao do
mar", devastador, conquistador, enfim, saqueador. Nada se diz, nesta primeira
'estrofe', sobre a identidade desta nação/nações e nem sobre a identidade de

16 No hebraico, o verbo em questão é xvb "retornar", "converter".


17 Quanto à tradução e suas respectivas alterações, veja José Severino Croarto, Isaías vaI. I: )·39, p.55- 56.

20
suas vítimas. Até poderia optar em ver nela os senhores governantes
responsáveis pelos próprios "ais". Mas, enfim, as nações/nação têm origens
"longínquas", como se expressa o v.26! Seu mundo há de ser assírio!
Em 9,7-20, temos outras três 'estrofes' que se referem à mesma nação
que 5,25.26-30: 9,7 -11.12-16.17 -20. Trata-se, como já dissemos de mais três
'estrofes', se bem que, agora, o refrão que estivera em 5,25b se repete, por três
vezes, no final, de cada subunidade: 9,11b.16b.20b.
Na 'estrofe' 9,7 -11, estão mencionados claramente aqueles contra os
quais se dirigem as palavras profétícas. poder-se-ia entender a referência a
Jacó e Israel, no v.7, como sendo o espaço" social e político, em que se dará
a ruína. Mas, no v.S, em todo caso estão citadas as entidade sociais, contra as
quais se destina a ameaça: "o povo"/ha-'am, "Efraim" e "o governante/yoxeb
de Jerusalém". Estas entidades, ao meu ver, estão relacionadas à força política
e militar de Israel/Jacó: "o povo" é, aqui, não a população em geral, mas são
os homens em armas; "Efraim" é a região sede do governo e seus setores
hegemônicos: e "o yoxeb de Samaria" não é 'o habitante', como no geral se
traduz esta expressão, mas é o próprio "governante". Estes segmentos sociais
e políticos serão aniquilados não propriamente pelos assírios, mas por pode-
res políticos vizinhos: arameus e filisteus (v.10-11) .
Em 9,12-16, nesta terceira 'estrofe', o assunto volta a ser "o povo",
pois este não se 'converte' (xub!). No lugar da conversão como que prefere
quem o fere. Aí, novamente, se percebe que o tal "povo" não é a 'população'
em geral, mas são, aqui, os que estão nas proximidades das armas, os solda-
dos; são, enfim, "este povo" (v. 15) . E esta expressão "este povo" são justa-
mente as pessoas que apóiam o senhorio da realeza! E, enfim, de onde seriam
tais mandatários? Seriam de Israel de acordo à estrofe anterior, se bem que
não se faça, nesta 'estrofe', como na primeira, menção alguma a quem se
dirige o castigo da ruína.
Na quarta e última'estrofe' de 9, 17-2 O, o foco recai sobre a destruição
que se pratica contra a terra e "o povo". Um aniquila o outro: Manassés contra
Efraim e ambos contra Judá. Portanto, a cena novamente é a da guerra.
Em foco estão os cenários da 'guerra siro-efraimita' de 733-732 a.c.

18 No texto, a preposição hebraica be- está anteposta a Jacó e a Israel. Este be-I"ern" poderia ser entendido
tão somente como espaço do castigo e não como objeto ("contra") do castigo. Mas, em todo caso, no v.lla
"Israel" (entenda-se: o estado e seus poderes!) é objcto da ruína.

21
NeIa "o povo "]" este povo "se
1: lere e busca a sua ruma,
' em especta
. I os mvaso-
.
res do norte, mas com eles outros se põem a participar das atrocidades milita-
res, como se assim pudesse ser encontrada alguma solução.
Pelas armas, a gente se destrói a si mesmo, além de eliminar a outros.
Por isso não há tanta diferença entre a guerra fratricida e a canção de enterro
"ai, ai" (veja Jeremias 22,13.18).
Por isso, o cenário não se fecha após o entorno a 6,1 até 9,61 Afinal,
quem nos fez chegar estes capítulos foi bastante explícito em sua
compreensão. Pois, por um lado, quando encerrara os dois entornos aos
nossos caps.ô-P tratara de juntar, de modo explícito, a canção com os "ais".
Ora, veja, em 10, 1-4a concluem-se os sete "ais", mas surpreendentemente
o fechamento deste ciclo dos "ais" é marcado pelo refrão que, em 9,7-20,
marcava o final de cada 'estrofe' contra "o povo"l"este povo" (lO,4b!).
Nesta menção do refrão conclusivo, afirma-se que o "ai" é profundamente
similar à canção contra as lideranças nela enfocadas, seja ela de Israel, de
Judá ou das "nações"! Não é, pois, acaso, que a partir de 10,5 segue um
longo e amplo "ai" contra a Assíria!
Enfim, o poder não conhece conversão (xub!)! Eis o tema do memorial
(caps.ó-P) e de seus entornos.

"Ai, Assíria" (10,5-34 19)


Penso que 10,5-34 são mais tardios que os trechos ao redor dos caps.ó-
9. Afinal, agora, Assíria encabeça toda uma unidade literária. Isso não fora
assim em trechos anteriores. Pois, estes precedem a marcante presença assíria
a partir de 733 a.C. Neste sentido, parece-nos que tanto o cap.10, a partir de
seu v.5, quanto o cap. 11 são posteriores à guerra siro-efraimita de 734-733.
Os dois capítulos - caps.10,5-34 e cap.lI- comentam dois dos conteúdos
centrais no memorial profético dos conflitos de 734-733: a esperança no
menino (cap.l l ) e a desesperança em relação aos senhores e donos da vio-
lência internacional (cap.1O,5-34). Por conseguinte, a partir de 10,5 até o
final do cap.12, os textos são posteriores aos que temos em 5,8 até 10,4. Mas,

19 Poder-se-ia subdividir esta unidade antiassíria nas seguintes subunidades: 10,5.1S 00,5·9.10·12.13·
iS) + 10,16·19 + 10,20·23 + 10,24·27 + 10,27·34 (assim Hans Wildbcrgcr,]esaja 1.12, p.390-43S). A
mesma subdivisão temos cm josé Severino Croatto, Isaías val.1: 1·39, p.80·86. e em Otto Kaiser,]esaja
1.12, p.218.238.

22
é possível que a parábola de S,1-7 ainda alcance estes cap. 1O (a partir do v.S)
e cap. 1L Em todo caso, trabalharia com a hipótese de que S, 1-7 tem até
mesmo os caps.lO e 11 em mente, ainda que estes dois capítulos tenham sua
ênfase distinta dos anteriores.
Atribuímos as profecias contidas em 1O,S-34 basicamente à Assíria.
Lógico, nos v.20-23 este não é o caso, mas nos demais talvez possamos
pressupor que o v.S ("ai, Assíria") funcione como uma espécie de título que
se estende até o v.34. Contudo, a Assíria não volta a ser explicitamente
mencionada após o v.S. Poder-se-ia postular também que esta unidade de
10,S-34 seria uma coletânea de palavras contra as opressões estrangeiras em
geral. Mas, aqui não nos cabe entrar em tais de talhamentos, o que me leva a
manter, por ora, esta visão repetida pela exegese, de que a Assíria seria
equivalente aos conquistadores julgados de morte/? ("ai!").
Em todo caso, já não nos encontramos nos tempos em que nos habi-
tuamos a situar as partes mais antigas no cap. 1, em caps.2-4 e em caps.S,l-
10,4 de Isaías. Pois, estes trechos ou precedem a presença assíria ou ainda
não a têm como potência decisiva nas questões de política externa na Pales-
tina. Os textos reunidos em 1O,S-34 são de tempos posteriores aos do 'me-
morial da guerra siro-efraimita' (em caps.6-9), quando a Assíria passa a ser a
grandeza decisiva para qualquer passo de política externa e até interna na
Siro-Palestina. Aqui obviamente não temos condições de debater em deta-
lhes as datações das respectivas subunidades do cap. 10. Mas, basta conferir
as datas atribuídas às várias subunidades por Hans Wildberger 21 para perce-
ber, de imediato, que nenhuma parte do cap. 10 é datada para antes de no
a.c.; os trechos reunidos no cap. 10 ou são dos tempos entre e 710 ou, no
inclusive, se aproximam da invasão assíria em torno de 700J Portanto, pode-
mos partir da premissa de que 1O,S-34 não são nem dos tempos da guerra
siro-efraimita e muito menos de antes deste episódio!
Isso não torna nosso trecho irrelevante para o que lhe precede, quer
dizer para os caps.6,l-9 ,6, mas somente nos dá a justa proporção do assunto.
Por ocasião da formulação e da disposição do livro de Isaías 1-12, seus reda-
tores - entre eles talvez o próprio visionário Isaías (8,16!) - fizeram questão

20 Quanto a esta interpretação de "ai", como pertencente ao ritual fúnebre, confira, em especial, Hans
Walter Wolff, Dodekaprophewn - 2 - Joel undAmos, Neukirchcn, Neukirchener Verlag, 1969, p.284-287
(424p.) (BiblischerKommentar Altes Testament, 14/2).
21 Veja Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.390-435.

23
de afiançar que a emergência dos assírios era decisiva para entender as pala-
vras proféticas. Por um lado, isso torna compreensível a posição profética de
que não adiantaria nem correr ao Egito e nem à Assíria, senão confiar intei-
ramente e tão-somente "crer" em [avé (7,9bl). E, por outro lado, por mais
que a palavra de Deus, em termos históricos, recorresse à invasão militar
assíria em Israel e Judá, como concretização do juízo de Deus, estes mesmos
assírios jamais seriam vitoriosos, porque espoliadores e arrogantes em suas
vitórias e em seus saques e em suas matanças. A concreção histórica do juízo
era, por si mesma, também submetida a este mesmo juízo!
Neste sentido, há que realçar que a tradição posterior, talvez até pós-
exílica, que se manifesta em 10,20-23, reenceta a esperança justamente em
Israel e Judá, e não lhe dá continuidade nos assírios: "um resto voltará".
Assim já se expressara Isaías ao levar consigo seu filho "Um-resto-volta".
Quem for do jeito deste menino de esperanças terá futuro, até em meio a
poderosos poderes como os dos poderosos assírios ou outros dos dias atuais. A
esperança está no resto!
Isso nos conduz ao cap. 11.

"Um rebento brotará" (11,1-16 22)


o cap.ll tem semelhança ao capítulo anterior, ao cap. 10. A negação
da Assíria (10,5-34) e a afirmação do "rebento", circundado pelos dons do
Espírito, estão correlacionados. O que é negado ao poder, é afirmado para o
"renovo". Não se deveria ler um trecho sem o outro; em especial, não se
deveria ler Isaías 11, sem ter consciência o quanto nele se fomenta a oposi-
ção a Assíria. O debate mais incisivo e que interessa não é tematizar a per-
gunta pela autoria do cap.ll (seria ele do visionário Isaías ou de gerações
posteriores, quiçá próximas ao Novo Testamento?), mas sobre o sentido das
promessas do cap.ll conquanto orientação para as esperanças mais profun-
das do povo de Deus. Quando as primeiras comunidades cristãs correlacio-
naram as promessas de Isaías 11 com o Jesus da manjedoura e da cruz, afirma-
ram um contraponto decisivo aos poderes imperiais. Jesus é "renovo" na
perspectiva do desmanche dos senhores do poder! O salmo de Isaías 12 de

22 A unidade se poderá subdividir em 11,1·9 e 11,10·16. Quanto à bibliografia, veja minha tese de doutorado
DasRecht derArrnen, Frankfurt a.M., Peter Lang Verlag, 1977, p.99.112.136.145 (Beitrage zur biblischen
Exegese und TheologielBET, 4).

24
todo modo enaltece justamente esta obra maravilhosa de Deus ao confiar
seus caminhos à gente em fraqueza, a um "rebento".
Nem tudo é propriamente antigo neste cap.ll. A autoria isaiânica é,
como indicávamos, arduamente debatida." A tendência é a de ver lingua-
gem de Isaías nos v.1-9 e pós-isaiânica nos v.1O-16. Aliás, esta posição até
tem seus paralelos no cap. IO, onde o poderio imperial também não só se fixa
na Assíria histórica, mas em quem a sucedeu nesta meta de viver da opressão
(veja o livro de Nauml), Assim se dá por igual com a esperança: seus contor-
nos avançam gerações afora, promovendo em cada novo momento novos
contornos das esperanças. As esperanças crescem, e, apesar de tudo, vingam,
mais cedo ou mais tarde!
Ainda que brevemente, havemos de enfocar alguns dos contornos mes-
siânicos do cap. 11. Afinal, este assunto retomará no estudo do 'memorial
isaiânico', nos caps.6-9.
No v.i, há que considerar, para nosso temário de agora, ao menos dois
aspectos. Perceba-se, inicialmente, que aí não se diz que o "rebento" sairá de
Davi. É o que a exegese tende a ler, mas isso não está escrito. Aqui somente
se faz referência a [essé. Há de se tratar, no caso, de Jessé, o pai de Davi.
Mesmo assim havemos que considerar que Davi teve vários outros irmãos e
outras irmãs, que estão incluídos nesta promessa. Mas, e aí vem o outro as-
pecto decisivo para a compreensão, não se diz que o "rebento" decisivo,
aquele que traz frutos(!) de acordo ao texto hebraico, seja de [essé mas de
suas raízes. Portanto, seu berço precede a Jessé! A frase decisiva é a segunda,
o v.lb; aqui se trata, neste v.l, de uma repetição, em que a segunda parte das
duas frases poéticas em correlação adiciona conteúdos decisivos à primeira:
E sairá um ramo do tronco de Jessé,
e um rebento de suas raízes brotará." (Isaías 11,1)
Estas frases poéticas têm seu auge na segunda, não na primeira! Na
segunda frase, o texto justamente começa pelo sujeito, o que não é usual no
hebraico. Pois, nesta língua, a frase normalmente deve iniciar pelo verbo
(veja a primeira frase: "e sairá um ramo..."). Considerando, pois, que o desta-
que recai sobre a segunda frase, temos nela a inversão de predicado-sujeito.
Ora, sendo a segunda a frase decisiva quanto ao conteúdo, há que conside-

23 Veja sobre este debate Hans Wildberger, Jesaja 1-12, em especial p.442-446.466-467.
24 Veja a tradução de José Severino Croatto, Isaías voU: 1-39, p.86.

25
rar que o interesse está no "rebento" que brota "de suas raízes". Isaías anun-
cia, pois, aquele que virá das "raízes"! Não se diz que aquele que há de vir
seja davídico e, a rigor, nem mesmo se diz que seja propriamente jessita!
Aliás, o que de verdade importa é o fruto do broto! Disso trata o v.2.
Neste v.2, se ressalta que o "rebento" tem como fruto as dádivas do
espírito, da ruah.25 ;
o espírito de Javé,
o espírito de sabedoria e discernimento,
o espírito de conselho e fortaleza,
o espírito de conhecimento e temor de [avé. (Isaías 11,2)
Esta ruabJ"espírito" está em sua relação e em sua origem em [avé, como
o expressam o começo e o final do v.2. No final, se realça "o espírito de
conhecimento e temor de Javé", o que especificamente se refere à prática do
"rebento".
Ele não decide pelas "aparências" e nem "por ouvir dizer" (v.3). Tal
capacidade do "rebento" é extraordinária, pois como que não cabe nas con-
dições humanas, que afinal necessitam de "olhos" e "ouvidos" para fazer va-
ler o "direito'vnuxpa], Mas este aqui não é o caso; o "direito" se impõe sem
qualquer porém! Pois, a condição do "rebento" é, de acordo ao v.5, "justiça'?
~edek e fidelidade. Não há, pois, possibilidade de engano, de corrupção neste
que não passa de "um rebento"! E tudo isso em defesa dos empobrecidos.
É o que o v.4 enaltece. Os "fracos", os "emagrecidos" pelas muitas ne-
cessidades e pela fome serão defendidos; veja que neste vA a raiz hebraica
xN, evidentemente, tem o sentido de "defender", valendo o mesmo para os
"oprimidos da terra";
e defenderá em justiça os fracos,
e decidirá com retidão em favor dos oprimidos da terra (Isaías
11,4a).
Este "rebento" é, no espírito, a defesa dos empobrecidos, contra os
senhores da Assíria e os senhorzinhos de Judá e Israel. É assim que é [avé!
O que segue nos v.5~9 corrobora esta visão encantadora de Isaías. A
paz que há de prevalecer em favor dos empobrecidos alcançará inclusive as

25 Quanto a mail, confira meu ensaio O espírito faz história, Centro de Estudos Bíblicos/Centro Ecumênico
de Evangelização, Capacitação e Assessoria, Belo Horizonte/São Leopoldo, 1988, 20p.

26
oposições entre os animais, por exemplo, no v.ó, entre o lobo e o cordeiro.
Mas, isso tudo se deve ao "menino", à "criança". Portanto, ao meu ver, isso
implica em que há que entender o "rebento" do v.l e, também, o "menino"
de 9,5 explicitamente como criança e não como adulto. As novas e estupen-
das ações de [avé se efetivam pelos pequenos, aqui pelas criancinhas! E por
isso que o senhorio da Assíria não leva chance; faz-se de prepotente e pode-
roso. Os ares de grandalhões dificultam a respiração, a ruab.!
Nos v.l 0-16, temos complementações ao que se lê até o v.9! Penso que
nestes versículos, de fato, temos linguagem mais tardia, pós-exílica. E, nela,
surpreendentemente, continua-se a se nutrir as esperanças isaiânicas. Afi-
nal, nestes novos versículos tão somente se reafirma o que já estivera dito. É
verdade, "a raiz de Jesse' (v.lO) faz-se mais proeminente, como se o davidis-
mo quisesse refazer-se. Mas, de todo modo, continua-se a testemunhar de
uma raiz e não de poderios. Aliás, mais decisivo que a tal "raiz" é o resgate da
diáspora espalhada mundo afora (v.11-13.16). É verdade, por fim há tam-
bém algo de conquista (v.14-15). Opressões em demasia podem transtornar
até o melhor dos sonhos! Nem sempre as palavras alcançam dizer o que a
Palavra de Deus quer que digamos.
Que nos encante a todos e a cada um: o que importa é a paz na justiça!

"Fazei conhecer os seus feitos" (12,1-6)


Um salmo encerra o encanto! Assim sucede também outras vezes Es-
critura afora. Habacuque, um dos profetas da escola de Isaías, conclui seu
livrinho com um salmo (cap.3). Dêutero-Isaías (Isaías 40-55) dá o fecho à
sua obra com cânticos de louvor e animação em 52, 11-12 e, em especial, em
55,12-13. O Gênesis já concluíra do jeito de louvores no cap,49. E, enfim, o
êxodo libertador culmina em salmo de louvor (Êxodo 15)!
A liberdade busca expressar seu encanto, animando ao canto!
Neste sentido, é muito especial que a primeira parte do grande livro de
Isaías culmine justamente num hino de louvor, neste seu cap.12. Pois, o que
está dito neste primeiro livro é, de verdade, surpreendente, inovador, revolu-
cionário. Crianças afloram como sinais de esperança (8,16-18), como meni-
nos prodígio. Oséias já começara a pressentir tais inovações. Mas, coube a
Isaías dizê-las, passo a passo, com intuições cada vez mais magistrais. O poder
como que se lhe escapa de diante dos olhos e o poder-de-fragilidade ou a

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fragilidade-de-poder se lhe impõe, como surpresa que consome sua fermenta
constituindo-a sob um novo patamar.
Tende-se a isolar o cap.12, pois sua fala é outra, é hínica. Em parte, a
pesquisa cientifica faz jus a um trecho como este, atribuindo-lhe outra traje-
tória e origem peculiar. Considerando que sua linguagem tende a mesclar
salmo de agradecimento e hino de louvação, até mesmo se pode postular,
com razão, origem pós-exílica tardia. Este cap.l Z de Isaías bem que pode
pertencer à edição final desta primeira parte de seu livro, os caps.1-12. Aliás,
há outros argumentos a mais de uso de termos e de perspectiva que aconse-
lham perceber que há distância entre o cap.12 e nosso visionário do 8° sécu-
lo. Tais considerações por certo são justas e adequadas à avaliação historio-
gráfica." Mas, por outra parte, há que perguntar ao cap.l2 até que ponto
está inserido, ainda que tardiamente agregado, à dinâmica dos capítulos pre-
cedentes. Trata-se só de uma adição ou também de um cântico de gratidão e
de louvação que quer estar vinculado aos capítulos precedentes, no caso de
modo especial aos caps.10 (10,5-34) e II.
Inicialmente realçaria que o cap.12 não entra em tensão com acentos
temáticos típicos de Isaías. Por exemplo, não se exalta o templo em si e nem
se promulgam expectativas messiânico-davídicas, Nestes aspecros, o cap.12
se vê abrigado no que se lia em capítulos anteriores. Quando o salmo se
refere a "Sião" (v.6), o faz no horizonte do que Isaías o diz, por exemplo em
8,16-18 e, desde os começos, desde 2,2-5. Em 12,3 ("tirareis águas com ale-
gria das fontes da salvação"), poderíamos ver-nos próximos das "águas de
Siloé que correm mansamente" (8,6). Alusões similares poderíamos identifi-
car em outros detalhes, para assinalar que este cap.12 não se encontra, por
acaso, neste final dos caps.1-12. Importa que se perceba que não basta falar
em aderido. É preciso perceber também a integração que, com um capítulo
como este nosso, quer dar a uma unidade.
Talvez faça sentido agregar aí uma observação a mais, neste intuito de
tentar indicar que afirmar o caráter secundário de trecho em relação a um
determinado autor, em nosso caso de Isaías, não é um juízo de valor. Pois,
afinal, o valor de conteúdo de um adendo bem que pode ser mais interessan-
te do que o próprio 'original'. Refiro-me, agora, ao seguinte: o cap.12 nítida-

26 Veja a respeito, por exemplo, o comentário de Hans Wildberger (Jesaja 1-12, p.479-480) que reúne
variados argumentos para situar o salmo fora da autoria isaiânica.

28
mente se constitui de duas 'estrofes', v.1-3 e v.4-6. Basta que se observe que
o v.1 e o v.4 começam de modo semelhante:
e dirás naquele dia (começo do v.1)
e direis naquele dia (começo do v.4).
Como este cap.12 já agrupa linguagens hínicas diversas em tempos
posteriores ao exílio, cada uma de suas estrofes tem outra tônica, uma do
jeito do agradecimento e outra do jeito do hino". Ora, tais peculiaridades
não conformam valores de juízo, mas tão somente peculiaridades. Mas, nelas
a expressão "naquele dia" passa a ter papel de destaque, pois coloca em todo
o caso o salmo em uma perspectiva de tempo. Diria que o tempo aqui é, na
linguagem de um comentarista, "escatológico". Eu quase diria pré-apocalíp-
tico. Para o cap. 12 este senso do tempo especial, do tempo pleno e conclusi-
vo é de importância primordial, motivo pelo qual antepõe a suas duas 'estro-
fes' esta expressão "naquele dia".
Aliás, este "naquele dia" é tão importante para quem concluiu esta
coleção de Isaías dos caps.I até 12 que a coloca em várias outras partes.
Primeiramente, percebo que "naquele dia" não só marca o cap.12, mas já os
versículos que o antecedem. Está na cabeça de 11,10-16, aquele conjunto
literário que dizíamos ser um adendo a 11,1-9. Igualmente 11,11 exibe nossa
introdução profética e, ao meu ver, tendente à apocaliptização da profecia,
em tempos pós-exílicos. No caso, para estes que adicionaram 11,10-16 e
12,1-3.4-6, há que ler o salmo na tendência do final do cap. 11. - Uma vez
que se tenha percebido esta ânsia do final do cap. 11 e do cap. 12 em assinalar
nossos novos tempos, outros 'dias', novas condições de vida livre e liberta,
há que perceber que esta é a tendência dos próprios caps.lvl Z. Afinal, a
expressão "naquele dia" se repete de modo persistente nestes capítulos. Em
2,2, encabeçando, pois, os caps.Zv-l, lê-se expressão semelhante: "no final
dos dias"; sua tônica, de fato, parece ser "escatológica'?". Em 2,11.20, a ex-
pressão "naquele dia" parece ser interpretação do "dia de Javé", anunciado a
partir de 2,12. Num tal contexto literário, percebe-se bastante bem o quan-
to "naquele dia" tende a ser explicitação pós-exílica de textos proféticos an-
teriores (como aliás sucede nos próprios caps.11 e 12). - Na medida em que

27 Veja a respeito o comentário de Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.478-479, e Frank Crüsemann, Studien ZJ,tT
Formgeschichte von Hymnus und Dankliedin Israel, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1969, 348p. (Wis.
senscahftliche Monographien zum Altcn und Neuen Testament, 32).
28 Assim Hans Wildberger,Jesaja 1.12, p.81.

29
viéssemos a observar esta expressão no decorrer dos caps.Ivl Z, perceberia-
mos com clareza o quanto ela aloca um novo tempo para a profecia isaiânica
do 8° século: este novo tempo é a emergência das angústias persecutórias
pós-exílicas, em meio às quais o espaço de vida da comunidade judaíta e da
diáspora se torna mais e mais perseguido e apertado. Por isso, "aquele dia"
passa a ser uma palavra chave, para indicar os novos tempos pelos quais se
espera.
Passemos, pois, aos textos que propriamente são a ênfase do presente
estudo, os caps.ô-P, em meio aos caps.Ivl Z. Estes caps.ó-P constituem um
conjunto específico, como iremos verificando no decorrer dos procedimen-
tos exegéticos. Um exegeta do passado, chamado Karl Budde, 29 designou estes
capítulos, de modo ao meu ver apropriado, de memórias do profeta Isaías.

29 Karl Budde, Jesaja's Erleben - Einegemeinverstiindliche AuslegungderDenkschrift desPropheten (KapiteI6, 1-


9,6), Gotha, Klotz, 1928, Vlp. + 123p. (Bücherei der christlichen Welt)

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1 .. Na vocação especial
Isaías 6 1

Tarefas proféticas especiais

Introdução
A vocação divina faz o profeta; "falou o Senhor [avé, quem não profe-
tizará?" (Amós 3,8). O mesmo ocorre, em nossos dias, com o que crê em
Jesus: a palavra de Cristo cria fé (confira Romanos 10,17). A ação divina,
que cria fé e vocaciona, sempre é o início de uma vida com características
especiais. É o que se observa no apóstolo Paulo (Atos 9,22-26; Filipenses
3,4-11), em discípulos (Marcos 1,16-20), no próprio Jesus (Marcos 1,9-11).
É o que mais se observa em nossos dias.
Como o chamado de Deus - e não a profissão herdada, como no caso
do sacerdote - faz o profeta, dever-sé-ia pressupor que cada livro profético
iniciasse com o relato da vocação. Mas, este não é o caso! Somente dois
livros proféticos têm este início: Jeremias (Jeremias 1,4-10) e Ezequiel (Eze-
quíel l-ô). Poder-se-ia também comparar Oséias (caps.l-J). Os outros livros
proféticos não iniciam com um relato de vocação. Que significa isso? Signi-
fica que não se pode restringir a vocação divina, 9.ue faz o profeta, a um
determinado relato sobre este acontecimento. Pois da maioria dos profetas
nem mesmo possuímos um tal relato. Não obstante, a cada página de seus
livros deparamos com a afirmação de que se entendem como enviados e
vocacionados por Deus: os títulos dos livros proféticos afirmam que neles é
colecionada "a palavra de [avé" (veja, por exemplo, Jeremias 1,1; Oséias 1,1;
Joel1, 1); falam porque "Javé falou" (veja, por exemplo, Amós 3,7; Isaías 1,2;
7,3), porque a eles "aconteceu a palavra de [avé" (veja, por exemplo,Jeremias
1,4.11); iniciam seus ditos com "assim disse [avé" (veja, por exemplo, Amós

1 Veja publicações em Hans Wildberger, ]esaja 1-12, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1968 e 1969,
p.230-231 + 261, além do próprio comentário deste autor a Isaías 6 nas p.230-261 (496p.) (Biblischer
Kommentar Altes Testament, 10/1).

31
1,3.6). Portanto, para poder falar da vocação dos profetas, nem de longe é sufici-
ente se ateraos relatos de vocação.
Mas, quando um profeta relata sua vocação? Tento uma resposta no
seguinte exemplo: Jeremias 1,4-10. Através do próprio texto bíblico (Jeremias
36), sabemos que Jeremias ditou a Baruque as palavras que falara "desde os
dias de [osias" (Jeremias 36,2), isto é desde o início de suas profecias. O rei
[eoaquim queimou aquele livro/rolo, mas Jeremias o ditou uma segunda vez.
Suponho que o relato da vocação (Jeremias 1,4-10) tenha iniciado este li-
vro/rolo.' Quer dizer: para legitimar seu anúncio contra Judá e Israel, Jeremi-
as relembra sua vocação, no início de sua vida, quando ainda era um "jo-
vem"/na'ar (Jeremias 1,6). Relatando sua vocação, o profeta luta por seu anún-
cio. Em situação de luta e disputa, também outros profetas recorrem à sua
vocação. É o que se observa em Amós. Em sua controvérsia com Amazias,
sacerdote de Betel, afirma: "eu não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas
boieiro e colhedor de sicômoros. Mas o Senhor me tirou de após o gado, e me
disse: 'vai, e profetiza ao meu povo Israel'" (Amós 7,14-15). O mesmo se obser-
va em Miquéias. Em sua luta contra os falsos profetas diz: "eu, porém, estou
cheio do poder do espírito do Senhor, cheio de juízo e de força, para declarar a
Jacó a sua transgressão e a Israel o seu pecado" (Miquéias 3,8). Poder-se-ia
recorrer a mais outros exemplos: IReis 22,19-28; Oséias 1-3; Gálatas 1,10-17.
Também nestas passagens verifica-se, repetidamente, que o relato ou a men-
ção da vocação do profeta tem a função de contestar os adversários e de legiti-
mar seu anúncio. Em que situação específica teria sido escrito Isaías 6?
Essas breves observações encaminham o estudo de Isaías e já levantam
alguns problemas.
Ora, queremos iniciar com o cap.ó, já que nele se fala da vocação do
profeta. A vocação de Isaías tem alguns elementos semelhantes à vocação de
Jeremias, com a qual (Jeremias 1,4-10) inicia aquele livro. Alguns comentá-
rios sobre Isaías inclusive tratam do cap.6 logo no início, antes do cap.l '.
Contudo, temos que perguntar: por que a vocação de Isaías está no cap.6 e

2 Confira também Wilhelm Rudolph, ]eremia, Tubinga, J. C. B. Mohr, 3ª edição, 1968, pA-S (32Sp.) (Hand-
buch zum Alten Tcsramcnt, 12); Carl Rictzschcl, Das Problem der Urrolle - Ein Beitrag zur Redaktionsgechi-
chie des]eremiabuches, Gütcrsloh, Gürcrsloher Verlagshaus, 1966, 142p.; e Siegfried Herrmann, jercmia,
Ncukirchcn, Ncukirchcncr Verlag, 1986-1990, 160p. (Biblischer Komrncntar Altes Testament 12/1).
3 Georg Fohrer, Das Buch]esaja- 1.Band Kapitell-23, Zurique/Stuttgart, Zwingli-Verlag, 1960, veja a partir
da p.20 (244p.) (Zürchcr Bibclkommcntare): Walther Eichrodt, Der Heilige in lsrael- ]esaja 1-12, Stuttgart,
Calwer, 1960, a partir da p.l3 (147p.) (Die Botschaft dcs Alten Testamcnrs, 17/1).

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não no cap. I, como em Jeremias e Ezequiel? Ou, em formulação mais exata:
teiete-sc também Isaías 6 a um acontecimento no início da vida do profeta?
As observações iniciais de acima lançam mais outra inquietação: veri-
ficávamos que a situação de luta e a necessidade de legitimação faziam com
que o profeta recorresse à sua vocação. Por isso perguntamos em relação a
Isaías 6: por que existe? Ou, em formulação mais exata: qual é a situação que
provocou este relato e, conseqüentemente, qual é sua função?
Isaías 6 é, sem dúvida, um dos textos básicos da profecia. Por isso penso
ser de proveito, se a seguir nos dedicarmos em detalhes a esta passagem.

Tradução literal
'No ano da morte do rei Uzias, vi" o Senhor sentado num trono alto e
elevado". E sua bainha enche o templo. 2Serafins estão parados acima
dele, seis asas para cada um. Com duas cobrem seu rosto. Com duas
cobrem seus pés". Com duas voam. 3E um gritava para o outro e dizia:
Santo, santo, santo - Javé Zebaote:
a plenitude de toda a terra [é] sua glória.
4Eestremeceram os pívôs' das bases por causa da voz do que grita. E a
casas é enchida com fumaça. SE disse":
Ai de mim!
Eis que tenho que silenciar!
Eis que um homem com lábios impuros eu sou
e em meio a um povo impuro de lábios impuros eu moro.
Eis que ao rei, [avé Zebaote, viram meus olhos!
6E voou para mim um dos serafins, em sua mão uma pedra em brasa
que com uma espevitadeira tirara de cima do altar. 7E fez tocar minha
boca e disse:
Eis que!
Tocou isto em teus lábios:
e se afasta tua culpa
e teu pecado está perdoado.

4 No hebraico, "c vi" (um 'imperfeito consecutivo').


5 Ou "suspenso".
6 Isto significa: "seu sexo".
7 Ou "os pinos".
8 Ou "o templo", "a sala".
9 No caso, o sujeito implícito é "cu": "e [eu] disse".

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8E ouvi a voz do Senhor dizendo:
A quem envio?
E quem vai por nós?
E eu disse:
Eis-me!
Envia-me!
9E (ele) disse:
Vai e dize a este povo:
Ouvi constantemente e não entendais!
Vede continuamente e não compreendais!
lOEnche de gordura o coração deste povo!
Seus ouvidos faze pesados,
seus olhos fecha",
para que não olhe com seus olhos,
com seus ouvidos não ouça,
seu coração não entenda,
e, em conseqüência, se converta e se cure.
llE [eu] disse:
Até quando, Senhor?
E (ele) disse:
Até que estejam desertas:
as cidades sem governante,
e as casas sem "chefe",
e a roça está se desolando em deserto.
l2E [avé mandará para longe ao chefe
e se tornará grande o abandono em meio ao país.
uE, se nela ainda permanecer uma décima parte, será destruída nova-
mente como o terebinto e o carvalho que, ao serem derrubados, dei-.
xam brotos".
Semente santa é seu broto".

10 Ou: "cola".
11 Ou: "tocos".
12 Ou: "toco".

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Formas e aparências
Ao encontrar alguém, sua aparência dá a primeira impressão. Aqui esta,
mos indo ao encontro do cap.6 de Isaías, ainda de modo formal. Convém, pois,
que inicialmente estabeleçamos o contato com estes versículos em suas formas e
aparências, para que, depois, os visitemos em relação a seus conteúdos.
Situemos nosso cap.6 em seu conjunto literário, em especial em Isaías
1,12. Veremos, depois, a formatação do cap.6 como relato que contém fala e,
em especial, poesia, ao relatar sobre um acontecimento 'vocacional' na pro,
fecia de Isaías.

Contexto literário
Na leitura de Isaías 6,1,13, percebe-se logo que é um texto que faz
sentido. Forma um todo. É também o que se evidencia observando o contex-
to, no caso literário, de nosso capítulo. As diferenças de Isaías 6 em relação a
seu contexto anterior (Isaías 5,25,30) são bem evidentes: Isaías 6 inicia como
relato em prosa, Isaías 5,25,30 são fala em poesia; em Isaías 6 o assunto é
Isaías, em Isaías 5,25,30 o tema é o exército que destruirá o povo de Deus.
Este conteúdo da destruição, por certo, também estabelece alguma ligação
entre nosso texto e seu contexto literário anterior, pois Isaías 6,9,13 têm a
destruição como tema. Essa ligação entre nosso texto e o contexto torna, se
ainda mais visível, quando se percebe que Isaías 5,25,30 está relacionado a
Isaías 9,7,20. Estes dois textos - 5,25,30 e 9,7,20 - formam como que um
quadro para Isaías 6,1,9,61 Mesmo considerando que nosso trecho está inse-
rido num contexto maior, pode-se dizer que, com o v.l de Isaías 6, inicia algo
novo. Este texto chega a seu fim com o v.13, i á que em Isaías 7,1 aparece
outra datação. Isaías 6 é do ano da morte de Uzias, Isaías 7 dos dias de Acaz.
Com isso, Isaías 6 está claramente delimitado em relação ao contexto literá-
rio posterior. Mas, apesar disso, não se pode deixar de observar que Isaías 6,1
e Isaías 7,1 são relatos. Seria 7,1,17 a continuação de 6,1,13? Essa pergunta
se impõe com insistência, quando se quer saber onde está relatada a destrui,
ção anunciada nos v.9, 13 do cap.6.
Verifica-se, portanto, que Isaías 6, por um lado, é um texto completo.
Por outro lado, aponta para além de si: o anúncio de destruição contido em
6,9,13 indica para o contexto anterior 5,25,30; este mesmo anúncio quase
que exige uma continuação. Isaías 7,1,17 seria esta continuação? Por ora
temos que deixar aberta esta pergunta.

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Olhando, agora, para o todo do texto, saltam aos olhos duas caracte-
rísticas formais: Primeiro, Isaías 6 é 'discurso indireto', é relato; e, segundo,
Isaías 6 está repleto de 'discurso direto', de fala e diálogo.

Um relato
Isaías 6 é relato! Isso se vê basicamente no tempo narrativo, isto é, nos
'imperfeitos consecutivos' (imperfeito hebraico + vav):
"e vi" v.I
"e estremeceram" vA
"e disse" v.S
"e voaram" v.6
"e fez tocar" v.]
"e disse" v.7
"e ouvi" v.8
"e disse" v.8
"e disse" v.9
"e disse" v.II
"e disse" v.lI
Os 'imperfeitos consecutivos' ("e" + imperfeito hebraico) perpassam
todo o trecho. Mas a narração não ocupa sua maior parte. O tempo narrati-
vo dá muito mais a estrutura ao trecho. Esta estrutura, formada por orações
indiretas, está cheia de orações diretas, de fala.

i,.. la direta
Isaías.6 está repleto de discursos diretos, de fala! Penso nos v.3.S.7.8.9-
-10.11-13. Todas estas orações diretas tendem para a poesia e se distinguem
nitidamente da prosa do restante do relato. O caráter poético da fala se ob-
serva principalmente na repetição das frases, mas a ela não se restringe:

Poesia
Poesia hebraica difere de nosso senso poético, que, aliás, 'somente'
vem marcado pelo jeito de ser poesia de nossos últimos séculos. Em tempos
mais antigos e, principalmente, em outros contextos, como o do semitismo
bíblico, há outras experiências e sensos poéticos. Tomo, pois, como ponto de
partida da poesia hebraica seu senso poético específico: ora, a repetição é o

36
que é típico do sentido hebraico de poesia. A disposição das repetições perfaz o
sentido da experiência poética no antigo hebraico. 13
Há também quem, por exemplo, proponha contar o número de sílabas
ou de palavras. Mas, não vejo grandes chances de identificar poesia à luz da
métrica, no caso da cultura hebraica.
Em v.I ~5, temos uma primeira unidade literária. É narrativa. Vem mar-
cada por traços de narração, encabeçada que é pelo 'imperfeito consecutivo'
no v.la ("e vi"), ao qual se dá continuidade no vAa "e estremeceram", e é
completado, no v.S, por novo 'imperfeito consecutivo': "e disse".
Ainda que o processo visionário seja, pois, seqüencial, narrativo ("e
vi", "e estremeceram"), o que é visto está parado. É expresso em formas ver-
bais participiais e em 'perfeito"! hebraico. Aquele que 'se viu' está 'sentado'
(particípio!). E tudo o que segue a este estar 'sentado' (yoxeb) , v.I b, leva este
sentido do duradouro, permanente, estático. O que é visto tem este jeito fixo
e estático, porque, afinal, estamos em meio a um êxtase vísionário". Tal êxtase
é, como tal, um evento e, por isso, vem rodeado por 'imperfeitos consecutivos'
("e vi", "e estremeceram"), mas em seu evento, propriamente dito, não 'tem'
tempo de narração, mas 'tempo' de durabilidade, portanto, parado.
Um aspecto especial cabe ao canto dos serafins, na segunda parte do
v.3. Este canto e refrão é claramente poético. Pois, trata-se de duas partes
frasais justapostas:
Santo, santo, santo - Javé Zebaote:
a plenitude de toda a terra [é] sua glória.
A segunda parte ("a plenitude de toda a terra [é] sua glória") explicita
a primeira. Ao estar cheia de glória, a terra se encontra com a santidade e o
próprio [avé. Um conteúdo de tamanho encanto - "santidade" e "glória"-
se relaciona à esfera divina. Aí se vê o quanto a poesia é a forma de comuni-
cação para realçar conteúdos. O canto dos serafins são frases nominais no
hebraico (sem verbo), o que é típico para hinos e salmos. 16

13 Veja a respeito Milton Schwantes, "Repetições e paralelismos - Observações em um debate hermenêu-


tico, exemplificado em Provérbios 10,1", em RevistaEclesiástica Brasileira, Petrópolis, Vozes, vo1.66, fascí-
culo 263, julho 2006, p.673·679.
14 O 'tempo' da ação concluída, feita, até certo ponto parada, similar, pois, ao que se expressa em particípio,
é que dá o sentido da continuidade do que está fixo.
15 Veja a respeito do êxtase, Rosileny Alves dos Santos, Entrea razãoe o êxtase - Experiência religiosa e estados
alterados de consciência, São Paulo, Lovola, 2002, veja em especial p.61.97 e 133.176 (249p.).
16 Veja Hermann Gunkel, Einleitung in die Psalmen - Die Gattungen der religiosen Lyrik Israels, Gotinga,
Vandenhoeck & Ruprecht, 2ª edição, 1966, p,48-49 (464p.).

37
o v.5 ainda é parte da narração iniciada no v.l : "e vi" (v.I) - "e disse"
(v.S). Julgo importante que se visualize a vinculação que este "e disse" do
começo do v.5 mantém com o v.l ("e vi"). Indica que os v.l-s formam uma
primeira sub-unidade de nossa perícope.
A fala isaiânica do v.s, diferente do que se via nos v.IA, é eminente-
mente poética. Determinante é o grito de desespero do começo do v.S: "ai de
mim" ('oi li) j nesta primeira frase o que lhe segue no v.s já está dito: desespe-
ro, ruína! Nos três "eis que" /ki, que seguem e que explicam o sentido do "ai
de mim", o segundo, o do meio(!), obtém duas frases. Nele se diz o que de
decisivo há que expressar.
Observemos inicialmente a disposição das quatro frases que seguem à
frase-grito ("ai de mim!") que encabeça o v.s:
Eis, tenho que silenciar!
Eis, um homem com lábios impuros - eu [sou],
em meio a um povo impuro de lábios - eu moro!
Eis, ao rei, [avé Zebaote, viram meus olhos!
Trata-se de três frases iniciadas por "eis"/ki. A que se encontra no meio
tem seu conteúdo repetido. Trata-se das que dão o sentido humano do de-
sespero do profeta: sua "impureza" /tema'. É o que marca seu' anoki/ "eu". Estas
duas frases nominais (sem verbo) que se localizam ao centro da fala vêm
ladeadas de duas outras que indicam a profundidade da desgraça profética.
Por um lado, a exclamação "ai de mim" implica em dmh II "ter que silenci-
ar" 17. E, por outro lado, retomando o início da visão, olhos de pessoa de
lábios impuros viram a [avé: uma perdição!
Os v.6-7 ainda se encontram na sequência dos vl ó. Afinal, aquele
serafim, que voa em direção de Isaías, provém da cena dos v.I-S. Neste sen-
tido, a cena daqueles versículos está continuando.
O 'discurso díreto' desta cena do serafim se apresenta em forma de
poesia, no v.7.
Veja! Tocou isto em teus lábios:
e se afasta tua culpa
e teu pecado está perdoado.

17 A raiz dmh II significa no nifal "ter que silenciar", conforme Ludwig Kohlcr, Lexikonin veteris testamenti
libras, Lcidcn, E.]. Brill, 1985, p.213 (l138p.).

38
Aqui chega ao fim o que fora iniciado no v.l. Esta conclusão está mar-
cada por um quiasmo poético (isto é: a inversão da seqüência de conteúdos)
entre as duas últimas frases/linhas. Refiro-me a
e se afasta tua culpa
e teu pecado está perdoado.
Quiasmo é, no hebraico, uma forma poética. Sua tarefa é conduzir um
pensamento à sua forma mais densa e bonita, invertendo a seqüência de
frases poeticamente relacionadas, como é o caso das duas frases de acima. A
frase inicial ("tocou isto em teus lábios") e a interjeição precedente ("eis
que"lhíneh) estão direcionadas às duas últimas frases, aquelas em forma de
quiasmo.
Chama a atenção que o quiasmo se encontra no final de um conjunto
de pensamentos: v.l-ó-l-ó- 7. No v.8 começa algo novo. Quiasmo utiliza-se,
seguidamente, nesta posição conclusiva de um pensamento.
No v.8 começa, pois, a segunda parte de nossa perícope. Neste versícu-
lo, prevalecem frases curtas, rápidas. Ainda que breves, são poéticas. E inclu-
sive tendem a ter seus conteúdos invertidos, portanto quiásticos, pois a pri-
meira das frases divinas ("a quem envio?"), v.Sa, tem sua resposta na última,
no final do v.8b Ç'envia-me!"). Poesia breve, marcante! A este nível chega a
linguagem neste centro das palavras.
sE ouvi a voz do Senhor dizendo:
A quem envio?
E quem irá por nós?
E eu disse:
Eis-mel
Envia-me!
Cheios de poesia estão os dois 'discursos diretos' do Senhor. De v.9 até
v.13 o relato se restringe ao "e disse", três vezes repetido; o resto é fala divina
na forma da poesia.
Os v.9~ 1Oconstituem poesia significativa. Devem ser tomados em seus
todos. Pois a breve introdução ("e disse") serve para tudo que lhe segue:
9E [ele] disse:
Vai e dize a este povo:
Ouvi constantemente e não entendais!
Vede continuamente e não compreendais!
"Enche de gordura o coração deste povo!

39
Seus ouvidos faze pesados,
seus olhos fecha 18,
para que não olhe com seus olhos,
com seus ouvidos não ouça,
seu coração não entenda,
e, em conseqüência, se converta e se cure.
Eis poesia de quem conhece a arte! 19 O livro de Isaías está cheio dela!
E aqui um belo exemplar se coloca diante de nós.
O elemento narrativo se restringe a um mínimo. No hebraico, vem a
ser uma só palavra: "e-disse", sendo "ele"/Deus o sujeito. Todas as demais
frases mantêm estreita relação entre elas, do jeito da poesia hebraica. Na
primeira ("vai e dize a este povo"), começa o que o autor quer realçar até o
final. Ora, elementos da frase referida se re-encontram, justamente, de novo,
no centro do conjunto poético, retomando a referência a "este povo", aque-
le ao qual Isaías se refere, querendo desdizê-lo e confrontá-lo. E, no final, lá
novamente está" o coração" , em um momento poético deveras sintomático.
Pareceria que a seqüência das frases estava por se concluir, pois "ouvidos" e
"olhos" estavam retomando, na mesma seqüência, frases de acima, no v.9. E,
além disso, a frase subalterna que inicia com "para que" indica a finalidade
de "ouvidos" e "olhos" "pesados" e 'fechados': 'não ver' e 'não ouvir'. Veja,
que beleza de inversões! Afinal, elas circulam com toda intensidade neste
v.lO. E isso, tais inversões quiásticas, justamente tendem a indicar conclu-
sões, encerramentos de discursos, como as temos no v.S (veja acima). Con-
tudo, surpresa(!), após o encantador jogo quiástico das frases do v.IO, o texto
como que recomeça. Refiro-me à frase "para que... seu coração não enten-
da". Precede-lhe o quiasmo, ao qual me referia, no v.lOb. Em relação às duas
frases quiasticamente dispostas
para que não olhe com seus olhos,
com seus ouvidos não ouça
a nova frase - refiro-me a "seu coração não entenda" - se agrega à frase que
lhe precede sem quiasmo. E isso se dá, porque é justamente em relação ao
"coração" - para o hebraico sede do "entendimento" (não da ernoçãol) -
que não haverá nem conversão e nem cura, como o destaca o finalzinho do

18 Ou: "cola".
19 A respeito da poesia em Isaías, veja Luis Alonso Schõkel, Estudios de poética hebrea, Barcelona, 1963,
549p.; Manual de poética hebrea, Madri, Cristiandad, 1987, 251p.

40
v.lO. E é isso o que derradeiramente está em jogo nos v.9-1O: no desvirtua-
mento do "coração" não haverá 'conversão'!
É possível que se deva aproximar os v.II-13. Há semelhanças entre
eles. Mas, também vale que cada um destes versículos tem sua particularida-
de. Por isso, prefiro mantê-los separados.
E, de fato, o v.ll parece generalizar. Poder-se-ia atribuir-lhe certos con-
tornos apocaliptizantes (por exemplo, ao se referir ao 'adam "pessoa"). Mas,
em meu entender o v.ll ainda nos mantém em meio à conceituaçâo proféti-
ca, como indica na tradução:
llE [eu] disse:
Até quando, Senhor?
E [ele] disse:
Até que estejam desertas:
as cidades sem governante,
e as casas sem "chefe",
e a roça está se desolando em deserto.
Em v.ll a, a palavra é de Isaías. Recorre à linguagem das lamentações
("até quando?"). A resposta do Senhor vem em quatro frases. A primeira ("até
que estejam desertas") e a última ("e a roça está se desolando em deserto")
estão em correspondência: a vida vira deserto, no caso a vida da cidade e do
poder. A desertificação toma conta de "cidades" e "casas". A ambos correspon-
dem os mandatários que são "governantes" (yoxebim, que não são, meramente,
os 'habitantes', como seguidamente se traduz!) e são "os homens", o 'adam.
Este 'adam aqui e em outras passagens da Bíblia são os que correspondem ao
"governante" (veja Gênesis 11,5 e Salmos 22,7) e não à população em geraL
No caso, a vida se tornará deserto, por lhe faltar os senhores sobre a vida.
Também o v.12 poderia estar desafiando a uma leitura apocalíptica.
Mas penso que se deve manter a concretude profética de seus termos. De
todo modo, as frases estão claramente repetidas. Dizem respeito à destruição
patrocinada por [avé/assírios, expulsando ao chefe ('adam), do "país" (ha-
'are,l). Sob este enfoque o v.12 é uma certa variação do v.ll, ao que se volta-
rá na interpretação.
12E Javé mandará para longe ao chefe
e se tornará grande o abandono em meio ao país."

20 No presente enfoque de aspectos poéticos, não destaco o v.U, considerando suas peculiaridades textuais.

41
Frase - relato e evento
Outra característica formal de Isaías 6 tem a ver com a construção de
frase. No hebraico, uma oração, em geral, apresenta a seguinte seqüência: pre-
dicado - sujeito - objeto. A inversão dessa ordem com a anteposição do obje-
to, dos adjuntos e, por vezes, do sujeito verifica-se muitas vezes em Isaías 6:
v.l - inicia com o adjunto temporal"
v.2a - sujeito vem antes dos particípio
v.2b - adjunto instrumental precede ao predicado
v.3b - começa com o objeto
v.5b - objeto é anteposto ao predicado
v.6b - adjunto instrumental antecede o predicado
v.7b - objeto vem antes do predicado
v.lO - duas vezes o objeto e duas vezes o adjunto precede ao predicado
v.ll - nenhuma oração inicia pelo predicado; o início forma: adjunto
temporal e três vezes o objeto
v.U - inicia com o adjunto.
A colocação do predicado em segundo lugar pode ter, no hebraico, vá-
rios significados". Mas, em geral, é assim que o acento temático está no início
da frase. O que se antepõe ao verbo finito, quer ser realçado", quer 'dominar?",
Mas tal explicação ainda não é o suficiente. Pois, quando uma oração
começa com o verbo finito, ela se caracteriza pela ação. Diferente é a oração
que inicia com sujeito/objeto/adjunto. Ela não narra ação, mas descreve uma
situação". Tende a ser estática.
Portanto: por um lado, Isaías 6 apresenta linguagem narrativa, interessa-
da na continuidade do relatado. Por outro lado, a linguagem é descritiva, inte-
ressada na fixação do observado. Essa tendência da linguagem de Isaías 6 de
certa maneira corre paralela ao fato de ser discurso direto e discurso indireto.

21 Confira Carl Brockclmann, Hebriiische Syntax, Neukirchen, Verlag der Buchhandlung des Erziehungsverein,
1956, § 123f (215p.); Rudolf Meyer, Gramática del hebreo bíblico, Tcrrassa/Espanha, Libros Clie, 1989, §
100.3c (Hebriiische Grammatik, Berlim, Walter de Gruvctcr, 1972, vol.J, § 100.3c [Sammlung Gocschen,
764a-dJ).
22 Oskar Grether, Gramáticahebraica, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1968, § 94n-s.
23 Confira Johannes Hollenberg e Karl Budde, Gramáticaelementar da língua hebraica, São Leopoldo, Sinodal,
1972, § 54b.
24 Carl Brockclmann, Hebriiische Syntax, § 123.
25 Confira Johannes Hollenberg e Karl Budde (ou: Hollenbcrg- Budde), Gramáticaelementar dalíngua hebrai-
ca, § 54c e RudolfMeyer, Gramática delhebreo bíblico, § 91.2a.

42
Até aqui estávamos observando fenômenos formais parciais. Podemos, ago-
ra, partir para o todo do texto, perguntando: que tipo de narração é Isaías 6?
Ora, Isaías 6 é o relato deumavisão. Isso é bem evidente no início ("e vi"
va~' er'eh). Este início determina todo o texto no sentido de ser um "ver", uma
visão. Mas, não se trata só de visão. Isaías 6 também é audição. Isso já se evi-
dencia no v.3: o profeta ouve os serafins. A partir do v.S, a audição passa a ser
predominante ("e ouvi" va~'exma'). Com sua visão e audição, Isaías participa
da esfera divina. Participa, como ainda havemos de detalhar, do conselho divi-
no. Contudo, não é suficiente dizer que Isaías 6 seja visão e audição.
Pois o profeta também fala. Intervém três vezes: v.5.S.11 ("e [eu] dis-
se" va~'omar). Tendo a chamar essa dimensão, provisoriamente, de 'inter-
venção profética', de 'diálogo'. Contudo, Isaías 6 não é só visão, audição,
intervenção profética.
Pois Isaías 6 termina como palavra de Deus (v.9~ 1O.1l~ 13 "e [ele] disse"
va~yo'mer), enviando Isaías. É evidente que nesse envio culmina todo o texto.
Entendo que estas quatro características são essenciais. A partir delas
designo Isaías 6 de relato de uma visão/audição que, no conselho divino, con-
fronta o profeta Isaías, conscientemente, com seu envio. Trata-se de um re~
lato do próprio Isaías ("eu"). A particularidade do ocorrido quase só permite
que o próprio envolvido o descreva. Visões em geral são relatadas na primei-
ra pessoa. Isaías 6 é, pois, auto-relato ou relato 'biográfico'.

Tradição e inovação
É necessário ter clareza sobre as características próprias de Isaías 6 para
poder valorizar devidamente uma comparação com outros texto bíblicos.
Tal comparação se impõe. Pois existem várias passagens semelhantes: Êxodo
3,6 (Moisés); Juízes 6,1~24 (Gideão): IReis 22,13~2S (Micaías): Jeremias 1
(Jeremias); Ezequiel Lô (Ezequiel): Atos 9,22.26 (Paulo), confira também
Amós 7 ~9j Isaías 40, 1~8j 1Samue13, i.zi, IReis 19, 19~21. Uma série de ele-
mentos é comum a estas passagens:
Sempre se menciona o envio. Este envio freqüentemente é expresso
peloverboxlh "enviar": Êxodo 3,10.13.15; Juízes 6,14; Jeremias 1,7; Ezequi-
eI2,3~4; 3,5~6 (veja Atos 22,14~15; 26,16~23).

Aquele que Deus envia, em geral, protesta e se opõe: Êxodo 3, 11~22j


6,12; Juízes 6, 13~ 15; Jeremias 1,6 (confira Amós 3,8;jeremias 20,7). Os pro-
fetas se consideram 'forçados' por Deus (veja Jeremias 20).

43
Da cena de envio, em geral, faz parte uma ação simbólica: Êxodo 3, 12;
Juízes 6,17 -24; Isaías 6,6-7; Jeremias 1,9; Ezequiel 2,8-3,3 (confira Atos 9,7-
9; 22,11-16).
Além destas, ainda poderiam ser destacadas outras semelhanças. Elas
permitem que se vislumbre o pano de fundo geral de nossa passagem. Vê-se
que Isaías 6 é só um braço num manancial bem maior. É parte das 'histórias
de vocação'. Através de Isaías 6 participamos de uma tradição muito mais
ampla. Se observo bem, então ainda não possuímos uma explicação apropri-
ada para as 'histórias de vocação'. 26 Não me parece possível reconhecer nelas
um 'formulário para vocação', usado na liturgia do culto do antigo Israel. 27
Por certo que os profetas tinham ligações com o culto; Isaías 6 e 8,1-4 podem
ser citados como exemplos. Mas, pelo que se vê, os profetas não são frutos
diretos do culto (Amós 7,14-15), mas da intervenção direta do Senhor. Além
disso, um tal 'formulário litúrgico para vocação' tende a não considerar o
suficiente as diferenças existentes entre os textos e os profetas. Por exemplo,
a meu ver, não é condizente comparar Isaías 6 com Jeremias 1,4_1028 • Sem
dúvida, há uma série de semelhanças. Mas há uma diferença básica: Jeremias
1,4-10 é uma audição, em que a parte visionária (v.9-10) é como que um
adendo"'. Isaías 6, ao contrário, é basicamente uma visão e, além disso, re-
presenta um tipo de visão bem específica: uma visão do conselho divino.
Neste caso, um texto comparável a Isaías 6 evidentemente não é Jeremias 1,
mas é IReis 22,19-28 (visão de Micaías, filho de Inlá) e, em parte, também
Ezequiel 1-3 (visão do profeta Ezequiel).
Ainda que o conteúdo da visão de IReis 22,19-28 seja bem diferente
do conteúdo de Isaías 6 (em IReis 22 se trata do envio de um mensageiro

26 Contudo, veja as p.489.507 de Gcrhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, ASTE, 2a
edição, 2006, 907p. Observe também a valiosa monografia de Grcgorio dei Olmo Lote, La vaeación dellider
en elAntiguo Israel- MOIfalagia de losrelatos biblicos devaeacian, Salamanca, Univcrsidad Pontificia, 1973,
p.235·261 (467p.) (Institución San Jerónimo, 2).
27 Esta conclusão é apresentada por Hcnnig Graf von Rcvcntlow, Liturgie und prophetisehes Ieh beiJeremia,
Gütersloh, Gütcrslohcr Verlaghaus Gerd Mohr, 1963, 267p. Para Reventlow (p.24· 77) este formulário
contém os seguintes elementos: epifania de [avé, lamentação, introdução do oráculo de salvação, oráculo
de salvação ("não temas"), envio, protesto do enviado, renovação do envio, ação simbólica, explicação
que acompanha a ação simbólica.
28 Veja H. H. Mallau, "Vocación por audición y vocación por visión", em Revista Bibliea, Buenos Aires,
Sociedad Argentina de Profesores de Sagrada Escritura, vo1.38, 1976, p.211.222.
29 Wilfried Thíel, Diedeuteronomistisehe Redaktian vonJeremia 1·25, Neukirchcn, Neukirchener Verlag, 1973,
a partir da p.62 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neucn Tcstament, 41) constata em
Jeremias 1,9·10 um acréscimo literário posterior.

44
mentiroso!), a paralelidade formal entre IReis 22,19,28 e Isaías 6 é evidente.
Pois, também IReis 22,19,28 é uma visão do conselho divino. As sernelhan-
ças, no entanto, não só dizem respeito ao todo dos dois textos. Elas se apre'
sentam até em detalhes:
1Reis 22 Isaías 6
Vi] avé Vi o Senhor
sentado sentado
sobre o trono sobre seu trono
e todo o exército dos céus serafins
parado acima dele parado acima dele
Quem enganará a Acabe? A quem enviarei? E quem vai por nós?
Eu o enganarei! Eis-mel Envia-me!
Sai e faze-o assim! Vai e dize!
Também Ezequiel 1,3 está perto de Isaías 6. A tarefa de Ezequiel é
igualmente formulada a partir da visão do que circunda o Senhor (Ezequiel
I!). Além desta, poder-se-ia detectar ainda outras semelhanças. Mas perma-
nece uma diferença básica, a saber, Ezequiel 1,3 não é propriamente uma
visão do conselho divino, mas a visão da majestade do Senhor. Além disso,
um século e meio separam estes dois textos.
Portanto, Isaías 6 só de um modo geral pode ser comparado com outras
histórias de vocação. O texto mais próximo, em termos formais, é o de 1Reis
22. Esta conclusão é de grande importância para nosso texto:
Primeiro: Isaías 6 é um tipo de visão/audição bem determinado. É uma
visão/audição do conselho divino.
Segundo: IReis 22,19,28 não é propriamente uma vocação: trata, se
antes de um comissionamento para uma tarefa específica: enganar a Acabe.
Seria Isaías 6 igualmente um preparo para uma missão especial de Isaías? Nesse
caso, Isaías 6 não precisaria ter ocorrido no início de sua atividade profética
e o fato de a 'vocação' não estar no início do livro estaria explicado. Ou
devemos continuar a designar Isaías 6 de vocação, pressupondo - como em
Jeremias e Ezequiel- que ela tenha ocorrido no início da existência proféti-
cal IReis 22,19,28, sem dúvida, sugere a primeira solução.

Origem da literatura
Acima, olhávamos para o cap.6 para saber algo de seu jeito de ser, de
sua forma e formação. Agora, cabe-nos um passo à frente para conhecer as

45
origens destas palavras, os contextos históricos nas quais foram ditas e pelas
quais foram feitas. Este trecho é de Isaías? Mais que isso: este Isaías é 'só' uma
pessoa ou é todo um conjunto comunitário-profético? Em que época este
nosso cap.6 foi conclusivamente formulado por escrito? A respeito se pode
consolidar alguma afirmação? Eis, questões para o que segue...

Autoria? - Isaías como comunidade


Continuando a observar o todo de nossa passagem, devemos pergun-
tar pela autoria de Isaías 6. Sendo ele um auto-relato, seu autor é o próprio
profeta! Mas, pode todo o capítulo ser atribuído a um só autor?
Uma leitura atenta do capítulo detecta algumas rupturas literárias. Elas
estão localizadas nos v.9-13.
A ruptura mais clara está no final do v.13. A frase" semente/descenden-
te santo é seu broto/toco", além de faltar em parte na tradução grega, a Sep-
tuaginta, parece não se coadunar com seu contexto anterior. Apesar de ser
quase impossível fixar com alguma exatidão o significado do v.U, é evidente
que ele fala da eliminação total de Judá. No entanto, a frase final do v.U,
usando a mesma figura do contexto anterior ("tocolbroto"), afirma exata-
mente o contrário, ao menos no sentido da pequenez do "toco". Assim, o
final do v.U poderia não ser do mesmo autor do restante do capítulo, que
provém de Isaías. A frase final do v.U de todo modo é um protesto contra a
mensagem de destruição totaL Seu autor teria vivido depois de 701 a.c.,
quando, afora Jerusalém, todo Judá foi arrasado pelos assírios, ou é da época
depois do exílio. E, ainda assim, sobrou um "toco"! Afinal, as "crianças" com
Isaías - 8, 18! - eram tais" tocos", no sentido de brotos, de esperanças.
E, isso, de pensar que a profecia anunciava o fim de tudo e todos", isso
condiz com as intenções proféticas?! Seguramente, não! O não dos profetas
e das profetisas é contra o poder, não contra mulheres, homens e crianças
dos empobrecidos! Por isso, não convém mais insistir em entender os profe-
tas como mensageiros do fim, a não ser para quem já está no fim, os opresso-
res. Neste sentido, o v.U é típico para a profecia: nele há ameaça (v.U a), e

30 Veja Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, p.600.611; Hans Walrer Wolff, Dodekapropheton 2 -
Joel undAmos, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1969, p.124·126 (423p.) (Biblischer Kornmcntar Altes
Testament 14/2) sobre o fim total. A respeito do debate, observe meu ensaio sobre "Profecia e estado-
Uma proposta para a hermenêutica profética", em Estudos Teológicos, São Leopoldo, Faculdade de Teologia
da IECLB, vol.22, 1982, p.lOS·14S.

46
há esperança, por exemplo, para os 'tocos'. Em Isaías, tais 'toquinhos' são as
criancinhas! Assim sendo, um trecho tanto pode ser de ameaça (para uns) e
de promessa (para outros)! Os referentes, bem como os próprios autores do
texto, podem ser diversos, em um mesmo trecho! Não se pode querer prensar
num texto, um só autor, isso quanto à própria origem de um texto como estes
da profecia. A autoria bem que pode ser plural; afinal, Isaías tinha "discípu-
los" (8,16)! Nosso profeta, ansiava pelo amanhã de tais seguidores, e se ele
não o fizesse, estes mesmos, os "discípulos", as crianças assim o desejavam.
Profecia brota, também literariamente, do coletivo. Mas continuemos a ob-
servar este e outro tipo de enfoque nestes versículos finais do cap.6.
Interessantes são as rupturas literárias observáveis no restante dos v.9-
13: o v.10 não é uma seqüência direta do v.9. O v.9 resume a palavra do
profeta ao povo; o v.lO, porém, é a palavra do Senhor a Isaías. As perspecti-
vas são, pois, um pouco diferentes, ainda que ambos os versículos, em seu
estágio no cap.6, se encontram devidamente integrados. Poderiam ser, na
origem, palavras de autores diferentes.
Também o v.12 poderia ser entendido como se não fosse a continua-
ção direta e lógica do v.11, pois o v.11, como o v.13, é palavra do Senhor ao
profeta sobre o agir de Deus. No v.12, é usado o tetragrama yhvh e não o
epíteto 'adonayI"Senhor" como nos v.1.8.11. A partir dessas diferenças, com
freqüência, se tem concluído que o v.lO e/ou os v.12-13 sejam literariamente
secundários." Mas, no meu entender, as diferenças existentes nos v.9-13 po-
dem ser explicadas de outra maneira: Isaías 6 provavelmente não foi escrito
logo após haver ocorrido; aparentemente não representa o começo da ativi-
dade profética de Isaías. Nesse caso, parece-me muito provável que nos v.9-
13 se reflita a atividade profética de vários anos, talvez de decênios." São
como que uma coletânea. Os v.9-13 têm seu lugar de origem na vida profética
de Isaías e não só no momento da 'vocação', isto é no momento, em que
Isaías recebeu a tarefa especial anotada no cap.ó." Neste sentido, convém
ter em mente que um trecho como o de Isaías 6-9 já não só é fruto de uma
pessoa, mas de uma grupo, de uma comunidade, como aquela que se conso-

31 Confira Bemhard Duhm, Das Buch]esaja, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 5ª edição, 1968, p.69
(49Op.);Walther Eichrodt, DerHeilige inlsrael-]esaja 1.12, p.16·17; Hans Wildberger,]esajal-12, p.23 1.241,
e outros.
32 Nessa direção, também indicam: Georg Fohrer, DasBuch]esaja -1.Band Kapitell-23, p.30; e Otto Kaiser,
DerProphet]esaja- Kapitell-12, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 3ª edição, 1970, p.66 (136p.).
33 Quanto ao final do v.10, confira Bernhard Duhm, Das Buch]esaja, a partir da p.61. .

47
lidara ao redor de nosso profeta (8,16-18). Profecia é ação e palavra (são
debarim) plural! 34

Datação
Com isso já estamos falando do lugar histórico, da situação especial de
Isaías 6. É possível determinar com muita precisão seu lugar. Afinal, o que
relata e o que experimenta o relatado são idênticos: Isaías. É provável que o
profeta não tenha anotado sua visão logo após o ocorrido, pois o texto pres-
supõe um certo crescimento (pensemos, por exemplo, nos v.9-13!). Se a ano-
tação tivesse sido em seguida ao acontecimento, o relato por certo não seria
encabeçado por uma datação." Não sabemos qual foi o intervalo entre acon-
tecimento e fixação escrita. Mas parece que não foi grande. O relato, em todo
caso, deve ter sido escrito numa situação muito difícil para Isaías, por ocasião
de seu aparente fracasso (Isaías 8,16-18). Aí o testemunho foi selado!
O lugar da visão é o templo. Essa dedução se impõe. É mencionado o
templo (v. 1 hekal "templo", vA ha-bayit "casa" = templo) e o altar interno ao
templo (v.6 misbealJ. "altar"). Oferendas estão sendo queimadas (vAb). O
grito cúltico dos serafins (v. 3) é semelhante ao refrão litúrgico da comunida-
de (confira Salmo 99,3.5.9). Seria a arca o trono do Senhor?
É provável que, durante a visão, Isaías tenha estado num lugar bem
determinado do templo. O v.l menciona o hekal. Esta palavra pode designar
todo o templo, mas pode assinalar também aquela sala maior do templo,
situada entre o átrio e o santo dos santos. Esta grande sala do templo há de
ter sido o lugar da visão."
Poder-se-ia conjeturar que Isaías estivesse só, quando teve a visão. Ele
afinal só fala de si, de um acontecimento bem pessoal. Mas o templo é um lugar
público; o profeta sabe-se em meio a um povo impuro; os serafins cantam como
cantaria a comunidade (v.3); o serafim age como se fosse um agente do templo,
talvez um dos sacerdotes ou levitas (v.6-7). As grandes coisas que a Isaías são

34 Veja agora a respeito desta questão a tese doutoral de Alzir Sales Coimbra, Valorização e debate em tomo
da redação final do livro de Amós - Um estudo de Amós 6,1.14, São Bernardo do Campo, Universidade
Metodista de São Paulo, 2007, 437p. (tese de doutorado).
35 Confira Bernhard Duhm, Das Buch}esaja, p.64.
36 Quanto ao templo de Jerusalém, confira H. P. Rügcr, "Tempel'', em Biblisch·Historisches Handwarterbuch-
Landeskunde, Geschichte, Religion, Kultur, Literatur, editores Bo Reicke e Leonhardt Rost, Goringa, Vande-
nhoeck & Ruprccht, vol.J, 1966, p.1940; e AmulfKuschke, "Ternpel", em Biblisches Reallexikon, editado
por Kurt Galling, Tubinga, J. C. B. Mohr, 2ª edição, 1977, p.333.342.

48
dadas ver e ouvir não ocorrem em sua alma para a grandeza de sua individualida-
de, ocorrem no lugar público do templo para o todo do povo de Deus.
Estas colocações já pressupõem que a visão não tenha ocorrido através
de sonho, de êxtase ou de alguma visão interna, mística, poética.
Se fosse um sonho, seria usado outro verbo ("sonhar" = b.lm). Mas há
que lembrar que um templo pode ser usado também para descansar, inclusive
para dormir e sonhar (confira, porém, lSamuel3).
Mas também o êxtase - relacionado à profecia" - não entra propria-
mente em questão. O êxtase (o estar fora de si), conquanto estado alterado de
consciência, não necessariamente se caracteriza pela perda de identidade e
pelo arrebatamento do mundo." Em Isaías 6, observa-se que o profeta perma-
nece aguda e plenamente consciente do que o circunda no templo, mesmo
que ali tudo assuma novo sentido. O profeta preserva sua identidade, seu "eu",
e distingue-o do tu do Senhor, não se observando nenhum tipo de união mís-
tica com a divindade. O profeta participa conscientemente da visão, olhando,
confessando, ouvindo, dispondo-se, protestando. Nada disso é extático, no
sentido de estar fora de si, mas no sentido de aguçar a consciência, ao extremo!
Igualmente não faríamos jus a Isaías 6, se nele somente víssemos uma
visão interna, mística, poética. Pois, os portais tremem (vA), o templo se
enche de fumaça (vA), Isaías é tocado em sua boca (v.7). Nada disso é pura-
mente interno. É corporal e externo. Pode-se constatar que, na verdade, o
profeta não se encontra em estado psíquico anormal, mas normal, excepcio-
nal somente por sua supra-sensibilidade, por seu estado alterado. Exaltação
ou excitação ou estado alterado de consciência talvez sejam termos adequa-
dos para caracterizar a situação pessoal de Isaías por ocasião da visão."
Além de conhecermos a situação pessoal (exaltada e alterada) e o
ambiente (templo), sabemos da situação histórica da visão. Ela pretende ser
significativa, pois encabeça o texto. A visão de Isaías ocorre no ano da morte
do rei Uzias = Azarias. Este certamente era, para os primeiros leitores de
nosso texto, um momento histórico exato e significativo. Para nós, hoje, se
tornou difícil fixar a data e redescobrir a situação daquele ano.

37 Isaías8,11; 1Samuel 10; 19,23-24; IReis 18,20-40. Confira também o relato de viagem do egípcio Wn-'mn,
por volta de 1076 a.C, Bcrnhard Duhm, por exemplo, relaciona Isaías 6 ao êxtase (DasBuch]esaja, p.64).
38 Veja Rosilcny Alves dos Santos, Entre a razão e o êxtase, 249p.
39 Sobre o assunto, confira também Ivan P. Seicrstad, Die Offenbarungserlebnisse der Propheten Amos, ]esaja
und]eremia - EineUntersuchung derErlebnisvorgiinge unterbesonderer Berncksichtigung ihrer religios-sittlichen
A rt und Auswirkung, Oslo, Univcrsitctsforlagcr, 1965,271 p.

49
Pois, nos textos bíblicos (também no Novo Testamento), só temos
uma cronologia relativa. Na época de Isaías a cronologia era fixada confor-
me os anos de reinado do rei de Judá (sul) em sincronismo com os reis de
Israel (norte). Exemplos: 2Reis 15,1.32; 16,1; 18,1. É difícil transpor uma tal
'cronologia relativa' para nossa 'cronologia absoluta'. Isto vale, de maneira
especial, para a época que nos interessa, a dos reis Uzias/Azarias, [otão, Acaz
e Ezequias de Judá (Isaías 1,1). As dificuldades provêm, por um lado, do fato
que Uzias = Azarias, atacado por lepra (2Reis 15,5; 2Crônicas 26,16-23),
esteve impossibilitado de exercer o cargo, tendo emJotão e, provavelmente,
em Acaz seus substitutos, na qualidade de cc-regentes. Por outro lado, as
dificuldades se devem a eventuais incorreções no texto masorético, já que,
por exemplo, é improvável que 2Reis 16,1-2 e 2Reis 18,1, ao mesmo tempo,
estejam corretos (Acaz teria sido pai aos 9 anos!). Não podemos aqui discutir
estes e outros problemas que se apresentam a um estudo detalhado da cronolo-
gia da época que nos interessa, ainda mais que, neste ponto, não há unanimi-
dade na pesquisa. As diferenças podem ser observadas na tabela que segue:
Bright" Pavlovsky-Vogr" Begrich- [epsen? Thiele'"
Uzias 783-742 767-739 787-736 791-739
Jotão 750-735 739-733 56-741 750-732
Acaz 735-715 733-727 741-725 735-716
Ezequias 715-686 727-699 725-697 716-685

40 John Bright, História de Israel, São Paulo, Paulus, 7ª edição, revisada c ampliada, 2003, p.308·324.325·3 73
(621p.) (Nova Coleção Bíblica). Segue William Foxwcll Albríght, deste encontra-se uma tabela cronoló-
gica em William Foxwell Albright, DieBibel im LichtderAltertumsforsclumg - Ein Berichtüber die Arbeiteines
Jahrhunderts, Wuppertal, Aussaat Verlag, 1967, veja a partir da p.136 (Aussaat-Büchcrei, 35/36).
41 V.Pavlovsky cE. Vogt, "Dic Jahre der Kôníge von juda und Israel", cm Bíblica, Roma, Pontífícío Instituto
Bíblico, volA5, 1964, p.321.347. Esta cronologia é adorada, por exemplo, por O. Garcia de la Fucntc, "La
cronologia de los revcs de Judá y la intcrpretación de algunos oráculos de Isaías 1·39", em Estudios
Bíblicos, Madri, Instituto Francisco Suárez, vol.31, 1972, p.275.291. Com pequenas diferenças, esta
também é a posição de C. Schedl, "Textkritischc Bemerkungen zu deu Svnchronismcn der Ki\nige von
Israel und Judá", cm Vetus Testamentum, Leidcn, E. J. Brill, vo1.12, 1962, a partir da p.88, c C. Schedl,
"Worte und [ahre - Zehnervcrschrcibungen und Mitrcgentenschaften", em Biblica, Roma, Pontifício
Instituto Bíblico, vol.46, 1967, p.454·459.
42 [oachim Bcgrich, Chronologie der Kanige von Israel undJuda, 1929; Alfrcd [epscn, "Zur Chronologie der
Kõníge von Israel und Judá - Eínc Ubcrprüfung", cm Beihefte zurZeitsehrift jilrdie alttestamentliche Wissenschaft,
Berlim, Walter de Gruvtcr, vol.88, 1964, p.4-48; Alfred [epscn, "Noch cinmal zur israelitisch-jüdíschcn
Chronologie", em Vetus Testamentum, Lciden, E.]. Brill, vol.18, 1968, p.31-46. Esta cronologia é adorada,
entre outros, por Martin Noth, Martin Metzger, A. H. J. Gunnewcg, Siegfried Herrmann em suas
respectivas histórias de Israel.
43 Esta cronologia é assumida por Samuel]. Schultz, A história de Israel no Antigo Testamento, São Paulo, Vida
Nova, 1977,conftrap.152.153 (413p.).

50
Adoto a cronologia de Joachim Begrich/Alfred [epsen, devido à coe-
rência de sua argumentação. Isto significa que todo reinado de [otão (756-741
a.c.) e os primeiros anos do reinado de Acaz (741-725 a.c.) são anteriores(!)
à morte de Uzias em 736 a.C. Como em Isaías 1,1, além de Uzias, Acaz e
Ezequias também [otão é expressamente citado como contemporâneo das
profecias de Isaías, conseqüentemente se impõe que nosso profeta tenha atu-
ado antes da morte de Uzias, em 736 a.C. Que Isaías tenha atuado antes de
Isaías 6, reforça algumas observações já feitas. Justamente este aspecto da
datação de Isaías ainda será retomado nesta publicação.

Conteúdos: profecia para que não haja cura e nem conversão!

O início do relato, v.La, vem marcado por um episódio. Afinal, a 'data',


o episódio são dominantes, estão antepostos e devem ter um significado es-
pecial. Contêm palavra. Penso que ainda podemos perceber seu significado.
Profecia tem hora! Não é um conjunto de palavras cultuais, formadas
por tradição, tendendo ao absoluto e etéreo. Provérbios, leis, salmos, em
geral, não têm data. Data e lugar são o que caracteriza a profecia. Em seu
final, chega-se a fixar mês e dia do dito profético (confira Ageu). O lugar da
profecia é público; relaciona-se a todo povo. Assim a data do v.I ("no ano da
morte do rei Uzias") não toma por referência um acontecimento particular,
mas oficial. Por isso a profecia é, em sua essência, conflitival
Profecia é sombria! É morte. Morte é o conteúdo e o característico do
ano, em que Isaías recebe sua missão especial. Por certo que teria havido
outras possibilidades de caracterizar aquele ano: no plano internacional Ti-
glate-Pileser III (= Pul) - rei e conquistador assírio - em 738 já subjugara os
povos da Síria e do norte da Palestina. Manaém teve que pagar caro seu
reinado em Israel (norte); não passava de um vassalo dos assírios (2Reis 15, 19-
201).44 Neste ano de 738 também Judá já começava a sentir os primeiros
impactos do poderio assírio (2Reis 15,37).45No plano nacional, Uzias, doen-

44 Manaém é citado numa lista de tributos de Tiglatc-Pilescr III, de 738 a.C.: "recebi tributo de Custaspi
de Cornmangene, Rczírn de Arã, Menaém da Samaria, Hirão de Tiro" (Kurt Galling, Textbuch zur
GeschichteIsraels, Tubinga,J. C. B. Mohr, 2ªedição, 1968, p.55 [109p.]).
45 É possível que textos assírios de 738, ao relatarem a sujeição de um Azriiau de Iaudi, se estejam referindo
a nosso Azarias = Uzias (confira Kurt Galling, Textbuch zurGeschichte Israels, p.54- 55; James B. Pritchard,
Ancient Near Eastem Texts Relating to the Old Testament, Pnncenton, Princenton University Press, 2ª
edição, 1955, p.282 (xxip. + 544p.). No entanto, os pesquisadores situam este rei, em geral, na região da
Síria.

51
te de lepra, nem exercia o poder. Rei era - pela cronologia acima adotada -
Acaz. Por isso pode-se afirmar que Isaías não cita o ano da morte de Uzias,
porque neste ano teria ocorrido a ascensão de um novo rei ao trono, ocasio-
nando algum ambiente de incertezas e esperanças (como o de Isaías 14,28 -
morte de Acaz). Isaías menciona a data por causa da morte. Realmente, o
significado da data, encabeçando o relato, não está em nível internacional e
nem em nível nacional. Está em nível de morte!
Uzias parece ter sido um rei com algo de bom, mas marcado pela mor-
te. Uzias parece ter sido bem diferente de Acaz, de quem não se relatam
coisas boas (2Reis 16; Isaías 7,1-17). Uzias ('usiyahu, Septuaginta orios, sig-
nifica, "minha força [é] [avé" ['usi = "minha força" + yahu < yahveh "Javé"]).
Ao ser entronizado deve ter mudado seu nome para Azarias ('asaryah =
"ajuda [é] [avé"). Seu reinado foi marcado por tranqüilidade, expansionis-
mo e prosperidade (veja 2Crônicas 26). Mas foi contagiado por lepra, viven-
do aproximadamente 20 anos em reclusão." Este, digamos, bom rei, com
doença longa e incurável, marcado pela morte, dá, de início, uma tonalida-
de sombria ao que Isaías vai contar. O adjunto temporal do v.1 já não está a
antecipar a destruição e a morte anunciados nos v. 9-10.11-13!
Em vista dos v.I bA é necessário que saibamos de nossas limitações.
Diante de uma visão, tudo permanece tentativa, como a própria visão não
passa de uma tentativa. Isso, porém, não nos exime da tarefa de tentar ver e
compreender, ainda que não passemos das "bainhas das vestes" (confira v.l).
Logo se vê que a segunda parte do v.1a assume papel destacado: "vi o
:--pnhor sentado num trono alto e elevado". Este é o auge da visão. E o Se-
nhor é o centro no que o profeta "olha" em visão. O verbo r'h "olhar" freqüen-
temente significa"olhar" em visão (confira v.5, Isaías 28,7; Amós 7,1_9 47) . Este
verbo é, ao lado de hsh "ver" (em visão), um dos termos específicos para
designar um profeta (veja, por exemplo, 1Samuel9,9; Isaías 1,1; 30,10; Amós
1,1). Ter visto a Deus ou, melhor, os conteúdos de sua palavra - e não só
como em relâmpago, mas de maneira demorada (yxb "sentar" está no particí-
piol) - é o que põe em movimento todo o restante de nosso relato. Sua impor-

46 o cronista entende a lepra como castigo por sacrilégio. Quanto a este relato em 2Cr 26,16.22 confira A.
Zeron, "Dic Anmassung dcs Konigs Usia im Lichte von [csajas Berufung - Zu 2. Chronik 26,16.22 und
[esaja 6,1.13", em Theologische Zeitschrift, Basiléia/Suíça, Fricdrich Rcinhardt Verlag, vol.33, 1977, p.65.68.
47 Confira D. Verter, "Ver", em Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento, Ernst [enni e Claus
Westermann (editores), Madri, Cristiandad, vol.Z, 1985, colunas 871·883.

52
tância central é ainda bem palpável, em primeiro lugar devido à estrutura
das frases que seguem. Disso, porém, falo logo abaixo. Em segundo lugar,
porque a tradição diz que, quem vê [avé, quebra (v.5), morre (Êxodo 33,20;
Juízes 13,22). Se o relato inicia, pois, afirmando que alguém viu a Deus,
então inicia pelo que há de mais assombroso e tremendo, rodeado de morte.
Isaías 6 inicia com uma afirmação escandalosa! Em terceiro lugar, porque
Isaías teve evidente cuidado no uso das palavras: viu 'adonay. Ele não usa o
nome de Deus, o tetragrama yahve/ "[avé", mas usa 'só' um título de Deus
'adonay "Senhor?". Nessa pequena diferença, mostra-se a discrição do profe-
ta. Viu, mas não se vangloria." Estas observações sobre estrutura, tradição e
terminologia desse início do v.I sublinham o caráter central que tem para
nosso auto-relato.
Isaías não insiste em contemplar ao Senhor. O trono já lhe basta. O
profeta expressa a grandiosidade daquilo que vê, falando do lugar, em que
está. Designando o lugar de kise' "trono", ele também está dando ao Senhor
o título de rei. Pois o símbolo do trono de maneira alguma provém do tem-
plo. E mesmo que a 'arca da aliança' tenha sido interpretada como trono
(veja ISamueI4,4; 2Samuel6,2), isso ainda não significa que o trono tenha
sua origem no templo. Trono é reinado (confira, por exemplo, 2Samuel 7,13).
A partir de seus reis, Israel aprendeu a falar do trono de [avé: a ele muitas
vezes se cita: IReis 22, 19;]eremias 3,17; Ezequiel 1,26, etc. O trono de Deus
é imensamente mais que a 'cadeira' do rei (Isaías 66,I!). Isaías caracteriza o
trono divino com dois adjetivos, o que não ocorre em nenhuma outra passa-
gem. O trono é "alto" (ram) e "elevado", talvez até se pudesse dizer "suspen-
so" já que nisa' é particípio nifal, isto é, tem sentido passivo.P Esta passivida-
de e imobilidade é uma característica do Senhor que Isaías vê: está sentado,
alto, suspenso. Quão diferente é essa maneira de falar de Deus daquela em
Deuteronômio 26,S-II! Ali tudo é açãol O trono correria o perigo de querer
imobilizar o Senhor?
Dizia acima que a estrutura formal dos v.I-4 demonstra que a visão de
Deus (v.la) tem uma função toda especial. A descoberta surpreendente, à

48 Por isso, a meu ver, é totalmente impossível ler '[avé' ao invés de 'Senhor', como o faz, por exemplo, Hans
Wildberger,]esaja, p.231·232 (confira Biblia Hebraica Kittel).
49 A expressão "ver a Deus" sabidamcnre provém do culto pagão, referindo- se aí ao ver da imagem do deus
do templo. Na fé cm javé, esta expressão foi, por assim dizer, espiritualizada, pois Javé não tem imagem
(Êxodo 20,3.6).
50 ns' no kal significa "levantar", "erguer".

53
qual acima me referia, é a seguinte: a última parte do v.l (= v.l b) correspon-
de exatamente à última parte do v.4 (= v.4b)! Ora, vejamos:
e sua bainha enche o templo (v.1b)
e a casa está cheia de fumaça (v.-lb)
Essas frases são como que a moldura para os v.l bA. Antes de nos ater-
mos à moldura sugiro que olhemos para os detalhes do quadro emoldurado
por estas duas frases-moldura.
O quadro inicia (v.2) com a figura dos muitos serafins. Não se trata só
de dois serafins, como poderia parecer no vA e como sugere a tradução latina
da Vulgata: alter ad alterum = "um ao outro". Fosse só um par de serafins, o
hebraico teria usado o dual! Os muitos serafins "estão parados", distantes e,
curiosamente, acima do Senhor. Esta dupla caracterização do local dos serafins
é evidente a partir da preposição hebraica mima'al, que é composta por min +
min + 'al. A preposição min indica ponto de partida e distância "para longe
de", enquanto que 'al diz respeito à diferença de nível "acima de", "sobre". Na
Septuaginta, a tradução grega, os serafins estão "ao redor"jkyclos do Senhor.
Trata-se aí de uma correção que parte da convicção que nada pode estar acima
de Deus. Os serafins estão parados em posição de respeito e louvor. É o que se
vê na disposição e função de seus três pares de asas. Dois escondem o "rostos"
(panim). Outros dois escondem os "pés" (raglayim); "pés" significam aqui "ór-
gãos genitais", como em Êxodo 4,25; Isaías 7,20. Com dois voam (confira
Isaías 14,29; 30,6), certamente ao redor do Senhor. Seu vôo não é confuso,
mas muito ordenado e em conjunto, pois no v.6 é destacado que um se separa
dos demais. Na atitude de respeito e temor dos serafins, reconhecemos como
que em espelho o esplendor do Senhor em seu trono. Os serafins não estão aí
para servir ao Senhor," mas para dar-lhe reverência e honra.
Mas, afinal, que são serafins?
Fazem parte dos seres localizados entre Javé e as pessoas. Em diferença
aos anjos (em tempos pré-persas), que são mensageiros para pessoas, os sera-
fins fazem parte daqueles seres que rodeiam o Senhor. A este tipo pertencem
também os querubins (Êxodo 25,8-16, etc.) , os 'elohim de Salmo 8,6; 29,1;
82,1; 89,7, o exército dos céus (l Reis 22,19). Formam a corte de Javé. Isto

51 Bcrnhard Duhm (Das Buch}esaja, p.65), por exemplo, diz que os scrafins são "servidores". O verbo 'md
"estar parado", de fato, muitas vezes tem o sentido de "servir" (confira l Rcis 10,8). Mas nesses casos 'md
é construído com a preposição lipne "diante de"!

54
significa, por um lado, que a imagem do "Senhor", de Javé rodeado por seres
celestiais provém da figura do rei rodeado de seus ministros. Por outro lado,
representa uma herança da religiosidade politeísta que, na fé em Javé, foi,
porém, reinterpretada de modo que outras divindades foram vencidas e in-
corporadas, tendo que se esconder diante da resplendorosa maravilha do
Senhor. Fé em Javé não afirma que, de qualquer modo, tudo que é religioso e
tem ares de divindade seja [avé. Ela conta com outros deuses (Êxodo 20,3,
primeiro mandamento!) e se sabe em luta contra eles. Os serafins, de fato,
devem ser entendidos como divindades vencidas. O Antigo Testamento dá
algumas pistas que levam a esta afirmação:
Ora, o sarap evidentemente é uma cobra da estepe (confira Números
21,6.8; Deuteronômio 8, 15; Isaías 30,6). Assim como sarap, também serapim
etimologicamente provém do verbo srp "queimar". Conseqüentemente é
possível que sarap tenha sido uma cobra bem específica da estepe (Almeida:
"serpente abrasadora"). Afinal, um sarap toca com uma pedra em fogo a boca
de Isaías (v.6).
Sabemos também que a serpente, até a época de Ezequias (725-697
a.C}, fazia parte dos símbolos do culto de Jerusalém (Números 21,4-9; 2Reis
18,4), isto é, uma antiga figura cúltica pagã foi integrada ao culto javista da
capital. Neste caso, os serafins seriam, à moda egípcia, seres mistos com tra-
ços de gente (rosto, pés, mãos), de serpente (corpo) e de ave (asas), no âm-
bito do culto jerusalemitano."
Sabemos mais. As paredes do recinto maior do templo estavam orna-
mentadas. Querubins são mencionados como tais ornamentos (IReis 6,29-
38). Além disso, no santo dos santos, dois querubins pousavam sobre a arca.
Será que também serafins faziam parte dos ornamentos do templo?
Louvor é a tônica da segunda figura (v.3): "e um gritava para o outro e
dizia: santo, santo, santo - [avé Zebaote, a plenitude de toda a terra é sua
glória". Trata-se de um 'grito cúltico'53 que vai passando de um serafim para
outro. Este 'grito' (qr' "chamar em voz alta") é a atitude característica dos
serafins (o 'perfeito consecutivo' assinala aqui a repetição no passado"). Não

52 Confira figuras de tais seres mistos em Kurt Galling, Biblisches Reallexikon, p.224-228.
53 Confira Klaus Koch, Was ist Formgeschichte? - Methoden der Bibe/exegese. Neukirchen, Neukirchener
Verlag, 3ª edição, 1974, p.203 (260p.).
54 Confira Bcrnhard Duhm, Das BuchJesaja, p.66 e Oskar Grcthcr, Gramáticahebraica, § 82c.

55
é ocasional, mas contínuo. É mais bem litúrgico. Pois conhecemos a frase
"santo é ele" (= [avé, nosso Deus) como refrão litúrgico (Salmo 99,3.5.9,
confira 11,9) da comunidade de Jerusalém. Se bem que o canto/grito dos
serafins seja mais pleno em glória e retumbância (veja também Apocalipse
4,8), por certo não é outro que o canto/grito comunitário. Por isso é justo que
usemos este texto em nossos hinos e na liturgia, que incluamos o canto dos
anjos na noite de Natal (Lucas 2,14). A liturgia não isola o além do aquém!
O grito é causado pela santidade de [avé Zebaote. São os serafins que
introduzem o nome de Deus: [avé. Isaías se esquivara de usar o tetragrama,
usara só o título" Senhor" 'donay (v.1). Para os serafins, ou tro título era mais
significativo: Zebaote. Pelo que sabemos este epíteto - tão freqüente em Isaías
(56 vezes!) - estava ligado à arca da aliança, protegida por querubins (LSa-
muel4,4; 2Samuel6,2). E, mesmo que o significado exato do epíteto Zeba-
ote seja discutível", é possível que diga respeito aos seres celestes depotenci-
ados (confira 1Reis 22,19 l), como seria o caso dos próprios serafins. Portan-
to, o título dado a Javé pelos serafins talvez não tenha sido ocasional.
Acima de tudo, este [avé Zebaote é três vezes "santo" qadox. Pelo que
se observa no Antigo Testamento, essa palavra passou a ser usada relativa-
mente tarde, provavelmente sob influência cananéia", para caracterizar ao
Senhor, com freqüência, como santo (l,4; 5,16.19.24; 30,11; 31,1 etc.). A
gente não faria bem, se dissesse, em relação à nossa passagem, que Deus é
santo por destruir (como, por exemplo, em Êxodo 19,22; 1Samuel 6,20).
Pois, primeiro, deve-se considerar que a santidade não está a assustar, mas a
entusiasmar os serafins. Poder-se-ia dizer que o Senhor santo leva ao frene-
si?! E, segundo, deve-se considerar que a santidade do Senhor é menos des-
truidora que reveladora. A santidade revela culpa. Neste sentido é impor-
tante constatar que o contrário de "santo" (v.3) é "impuro" (v.5)! Dito de
modo mais geral: o Deus santo revela o pecado social e pessoal. 57

55 Conforme A. S. van der Woude, "Exército", em Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento, Ernst
Jenni e Claus Westermann (editores). Madri, Cristiandad, vol.2, 1985, colunas 627-639, o epíteto [avé
Zehaote pode ser entendido das seguintes maneiras: Javé todo-poderoso, Javé dos grupos de guerreiros,
[avé dos seres cósmicos (anjos, estrelas, ctc.).
56 Confira Werner H. Schmídr, "Wo hat dic Aussage: [ahwe 'der Heiligc' ihren Ursprung?", em Zeitschrift für
diealttentestamentliche Wissenschaft, Berlin, Walter de Gruvter, vol. 74, 1962, p.62-66.
57 Confira Ludwig Kôhler, Theologie des Alten Testaments, Tubinga, J. C. B. Mohr (Paul Sicbcck), 1966, p.35
(260p.) (Neuc Theologische Grundrisse).

56
A santidade de Javé é evidente na terra, entre nós. Ela transpassa para
cá," para a "plenitude de toda a terra". A gente sente nessa expressão como
o profeta está interessado na totalidade. Não se restringe a fatos de aqui e
acolá, a provas isoladas. O todo (ko!) indica para o santo. Neste sentido é
importante notar que a primeira palavra da última parte do v.3 (v.3b), melo'
"plenitude" é um substantivo e o sujeito da frase", o que realça, sobremanei-
ra, a função dessa palavra. Aliás, esta mesma palavra é o vocábulo central na
moldura, v.Ib.4b, de que falamos acima. Seria acaso que essa palavra central
na moldura é a palavra mais importante na segunda figura (isto é, na figura
central)? Pelo que se nota estamos diante de um texto composto com preci-
são!
A plenitude de toda terra é60 a "glória" de [avé. "Glória" kadod é, em
geral, o peso, a imponência, a grandiosidade, no caso do Senhor. Em nossa
passagem "glória" é, claramente, sinônimo de "santidade"; santidade se arti-
cula, se manifesta como glória. Isso ocorre na terra, na natureza. Ou seja: em
nosso texto, a glória do Senhor não está tão ligada a seu agir na história
(como, por exemplo, em Isaías3,8; 40,5) quanto a seu agir na natureza (confira
Salmo 29,9!).61 Terra inclui a glória do Senhor!
A terceira figura (v.4a) focaliza a reação dos gritos cúltico-litúrgicos
nas imediações de Isaías. A santidade que transpassara para a terra (v.3) tor-
na-se imediata e bem concreta. Os serafins não suportaram o Senhor; escon-
deram-se (v.2). A terra não suporta o "som", a voz, a ressonância (qol) dos
gritos de cada serafím." Estremecem os "pinos das bases" do templo. É inte-
ressante que o lugar, em que se observa o estremecimento, é exatamente
determinado. O profeta usa termos tão específicos e, em parte, únicos no
Antigo Testamento que por vezes se teve dificuldades de entendê-los. Mas,
hoje, sabemos com relativa segurança que a expressão 'amot ha-sipim signifi-

58 Entendo, pois, a frase assindética (v.3b) como uma frase consecutiva ("de sorte que"), confira Rudolf
Meyer, Gramática deihebreo bíblico, § 118.
59 Confira Carl Brockelmann, Hebraische Syntax, § 14b. Septuaginta, Vulgata e, em sua seqüência, Almeida
transformaram este substantivo em adjerivo (confira Biblia Hebraica Kittel).
60 Ou: a plenitude de toda terra fala de/testemunha de/indica para. No hebraico, trata-se de uma frase
nominal, isto é, sem verbo finito.
61 Confira Claus Westermann, "Ser pesado", em Diccionario teológico manualdeiAntiguo Testamento, Ernst
Jenni e Claus Westermann (editores), Madri, Cristiandad, vol.I, 1985, colunas 1089·1113.
62 A meu ver, o v.4a não deve ser entendido como se só um serafim cantasse. Cada vez que um serafim
gritava, estremecia o templo.

57
ca "pínos/pívô'" das bases'?", referindo-se aos pinos de madeira ou/e de metal
que, para poder movimentar as portas, são introduzidas na grande pedra de
fundamento", sobre a qual está assentada a porta do templo". É significativo
que Isaías se refira a estes pequenos "pinos das bases". Se estes pequenos
pinos se movimentam (nv' significa "cambalear'"), então isso é sinal de que
todo o resto igualmente está a estremecer. É como se fosse um terremoto. No
Antigo Testamento, é várias vezes relatado que o mundo reage diante da
proximidade de Deus (Êxodo 19; Amós 9,1; Ezequiel 1,13-14; 10,4, etc.,
confira Mateus 27,51-52). Mas o abalo sísmico em si não me parece ser o
momento mais significativo dessa terceira figura. Importante é que a soleira-
já por si um lugar com dimensões e significado sacrais (veja Juízes 19,27) - é
o limite do santuário (confira Ezequiel 40,6-7), a divisa entre o santo e o
profano, local especialmente guarnecido por guardas (2Reis 12,10; Jeremias
52,24). Vê-se, pois, que a santidade celebrada pelos serafins transcende para
a terra (v.3), e tende para o profano, o público. Sente-se como a visão do
profeta o está a conduzir para a rua!
Nas três figuras - cena dos serafins, cena do grito cúltico, cena do
abalo - observa-se o seguinte: iniciam pelo estático (particípios.), passam ao
movimento e grito (imperfeito e perfeito consecutivo) e chegam ao abalo
(imperfeito consecutivo); iniciam acima do Senhor, passam ao templo e à
terra e chegam ao limite para o profano. Portanto, o Senhor em todo caso
não quer que seu profeta se extasie junto aos serafins. Seu caminho indica
para fora da soleira do santuário.
Podemos falar, agora, do quadro que emoldura estas três figuras: v.I b e
v.4b. Também ele tende ao concreto. Parte da situação realizada (particípio)
e conduz ao acontecimento (imperfeito). Assim seu início (v.1b), ainda de-
terminado pela visão do Senhor em seu sublime trono, refere-se à esfera
divina. O Senhor é tão grandioso que já a "bainha" (xulim) de seu manto

63 'amah, cm si, é o "antebraço" e, a partir daí, uma medida, um "côvado". S6 em nossa passagem tem o
sentido de "antebraço", isto é, de "pino" da porta. Confira Walter Baumgartner, Habriiisches und aramiiis-
chesLexikon zum Alten Testament, Lciden, E. J. Brill, 1967, p.59-60.
64 sap também é a soleira da porta (veja, por exemplo,] uízes 19,27; 1Reis 14,17). Mas sap também designa
toda a base sobre a qual a porta está assentada (Amós 9,1 e Ezequiel 40 7) e da qual a soleira só é a parte
06-

visível.
65 Conforme Ezequiel 40,6 ela tinha 3m de fundura!
0

66 Confira as gravuras em L. Dclckato "T ür"oem Biblisch-Historisches Handwórterbuch - Landeskunde, Geschichte,


Religion, Kultur, Literaturo editores Bo Rcicke e Leonhardt Rosto Gotinga, Vandcnhocck & Ruprccht,
vol.J, 1966 p.2031; e Kurt Gallina, Biblisches Reallexikon o p.348-349.
0

58
real'" enche o templo. Mas seu final (v.-lb) já é bem mais concreto: "fumaça"
('axan) enche o templo. A fumaça provavelmente provém do altar das ofe-
rendas. (Ou vem da boca dos serafins 68 ? Ou a fumaça é, como o abalo dos
pinos das bases, simplesmente um elemento da teofaniai'") O quadro é igual-
mente concreto, porque indica o templo como local da ocorrência. Apesar
de que hekal "templo" e bayit "casa" possam referir-se ao palácio celeste de
Deus (para "casa" veja Salmo 36,9, para "templo" veja Miquéias 1,2; Haba-
cuque 2,20), esse não parece ser o caso em nossa passagem. Trata-se real-
mente do templo = casa de Jerusalém.
O templo está cheio. O verbo ml' é o eixo central da moldura. Com
ele, Isaías expressa o decisivo. O que vê não são parcialidades, mas plenitu-
des. É glória.
Diante de tanta glória, Isaías se dá conta de sua total perdição. O v.S é
a confissão de perdição e de culpa. É introduzida por um "ai de mim" ('ai li)
que contrasta radicalmente com o canto dos serafins. Aquele 'grito cúltico'
era todo louvor, este é um 'grito de medo e angústia?", Estes "ais" 'ai - que
não devem ser confundidos com os "ais" hoy da lamentação do morto (Jere~
mias 22,18) - são freqüentes no Primeiro Testamento: 1Samuel 4, 7~8; [e-
remias 4,13.31; 6,4; 10,19, sendo sempre circundados por medo e desespero
diante da ruína. Ao dizer "ai de mim", Isaías confessa estar arruinado. Tal ruína
ele mostra e fundamenta no restante do versículo, retomando três vezes a par-
tícula ki]'eis". Esta partícula tem, principalmente, o sentido de indicar e mos-
trar ("eis", "veja") e também pode fundamentar ("porque"). Cada uma das três
orações do v.5, introduzidas por ki, tem sua própria característica:
A terceira dessas orações com ki dá o motivo e a fundamentação para
as outras. Por isso, começo por ela: "eis/pois ao rei, [avé Zebaote, viram meus
olhos". Este é um resumo interessante dos v.1A. Nele se torna claro que a
visão de Isaías não é um ver para dentro de si, uma visão interna, uma auto-
sugestão. A visão é, realmente, um "ver" (r'h, confira v.1) para fora, um ver
dos olhos (uma visão externa). Ele vê, ou viu, a [avé Zebaote, isto é, Isaías dá

67 Em outras passagens bíblicas, a "bainha" (xulim) nunca é relacionada à vestimenta do rei. Refere-se à roupa
simples (Icrcmias 13,22.26 e Lamentações 1,9) e à vestimenta do sacerdote (Êxodo 28,33-34 e 39,24-31).
68 Bernhard Duhm, Das Buch]esaja, p.66. O fogo é uma das características dos serafins.
69 Hans Wildberger, ]esaja 1-12, p.251. Fumaça freqücntcmente acompanha a aparição de Deus: Êxodo
19,18; Isaías 4,5 e 14,31. Na verdade, 'axan "fumaça" nunca é relacionado a oferendas.
70 G. Wanke, "'oy und hoy", em Zeitschrift für die alnestamentliche Wissenschaft, Berlin, Walter de Gruyter,
vo1.78, 1966, p.215-218.

59
agora àquele que vê a mesma designação que os serafins lhe deram em seu
canto (v.3). Já no v.S, o profeta volta a designar Deus de Senhor 'adonay,
como no v.l. Mas o mais importante é que Isaías dá a [avé o título de "rei"
melek. Já os versículos anteriores falavam de Deus em símbolos reais (trono,
serafins como ministros, conselho real, bainha do manto real). Isaías con-
centra tudo isso, agora, no título "rei" para [avé. Isso, de maneira alguma, é
muito freqüente e antigo em Israel. Afinal, o povo de Deus não surgiu por
causa de algum rei, mas como um grupo de escravos espoliados no Egito.
Pelo que se verifica no Antigo Testamento, só lentamente o povo de Deus se
acostumou a intitular Javé de rei. Com o surgimento de reis em Israel, isso se
foi tornando usual. 71 Contudo, Javé sempre manteve distância crítica dos
reis. Se "Javé é rei" (veja Salmo 97,1; 98,6; 99,1), então os reis estão a perigo;
o reinado de Javé não serve para ideologizar o reinado de homens. É o que se
vê no Primeiro Testamento passo a passo: 1Samuel8,7-18; Isaías 7,1-17; 9,1-
6; 11,1-5.72
A visão desse rei motiva o grito de angústia" ai de mim", que é um grito
de gente em ruína. O conteúdo dessa ruína é indicado pelas outras duas
orações com kil"eis". O sentido da primeira ("eis que tenho que silenciar")
até hoje não está esclarecido, porque não está definido, se dmh significa "si-
lenciar" (Vulgata: taceo!) ou "destruir" (Septuaginta: katavússomai, confira
Almeida};" Enfim, a diferença não é grande!
Isaías silenciou. É um fato concluído ('perfeito' no hebraico). Ele tem
sua razão de ser na impureza dos lábios. Disso trata a segunda frase com ki/
"eis": "eis que um homem com lábios impuros eu sou, e em meio a um povo
de lábios impuros eu moro". Ao mencionar os lábios, o profeta certamente se
refere a toda sua pessoa e situação, isto é, não devem ser tomados como
órgãos isolados, mas em sua função para o todo da pessoa. Seus lábios são

71 Werner H. Schmidt, Afé do Antigo Testamento, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia/Sinodal, 2004,
562p. (Estudos Bíblico-Teológicos: AT) (Alttestamentlicher Glaube und seineUmwelt - Zur Geschichte des
alttestamentlichen Gottesverswndnisses, Neukirchcn, Ncukirclmer Verlag, 1968, p.12 7); temos em Isaías 6,5
um dos textos mais antigos como título de rei para [avé. Êxodo 15,17 -18; Números 23,21: Dcurcronôrnio
33,5 e IReis 22,19 não seriam mais antigos? Afinal, no mundo cananeu e oriental, o epíteto rei para a
divindade era comum (confira também Génesis 14,18?).
72 Veja Hans Walter Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p.251-258.
73 Walter Baumgartner (Hebraisches und aramaisches Lexikonzum Alten Testament, p.216) cita Isaías 6,3 em
dmh II "silenciar" e em dmh III "destruir"! Não seria possível tentar deduzir um significado a partir do
outro? Confira Hans Walter Wolff, Dodekapropheton 1 - Hosea, Ncukirchcn, Ncukirchcner Verlag, 2"
edição, 1965, p.96 (322p.) (Biblischer Komrucntar Altcs Testarncnt, 14/1).

60
impuros. Conseqüentemente toda a situação do profeta está em profundo
contraste com a situação dos serafins que celebravam a santidade divina;
tame' "impuro" é o contrário de qadox "santo" (Levítico 10,10); tame' "impu-
ro" deve ter aqui um significado genérico e teológico. Não aparece ter, em
nossa passagem, seu sentido específico, em que pertence à linguagem de cul-
to e sacrifício: o "impuro" não pode ser sacrificado, participar do culto e da
vida comunitária (vej a Levítico 11, IS). Se Isaías estivesse "impuro" nesse
sentido, como poderia estar no templo? Além do mais a expressão "lábios
impuros" é uma criação de Isaías; não aparece em nenhum outro lugar do
Antigo Testamento. Acho que até podemos definir o motivo de seu surgi-
menta: Isaías quisera acompanhar os gritos de louvor dos serafins; porém,
teve que "silenciar" (! dmh), porque seus lábios eram úteis para o "grito de
angústia", contudo imprestáveis e "impuros" para o louvor. No entanto, essa
situação não é só uma particularidade do profeta. Não é só sua culpa indivi-
dual. São culpa e situação coletivas. Os lábios impuros do profeta são só um
exemplar dos lábios impuros de todo povo. Ele não é impuro por causa do
povo, mas o é solidariamente junto ao povo (be~tok "em meio a"). Lá ele está
"sentado" (yxb) , mora e vive. O Senhor e o seu profeta estão "sentados"
(yxb) em lugares totalmente diferentes (v.1.S). Um está no trono, o outro no
impuro!
A confissão de culpa do v.S é abarcada pela absolvição dos v.6~ 7. A
absolvição se realiza através de um ato de purificação (v.ó-7a) e de sua expli-
cação, o anúncio do perdão (v.7b). O ato de purificação acontece através de
"um" ('enad) dos serafins que, voando, se separa dos demais. Em sua "mão"
(yad), isto é, em seu poder, está uma "pedra em brasa". Este é o sentido que
me parece ter a palavra riwah, que a Vulgata traduz por calculus "pedrinha".
Em geral, se tem interpretado esse termo - a partir da Septuaginta antrax
"carvão" - como "carvão em brasa'V". Mas, o hebraico designa carvão em
brasa com a palavra ganal. E, além disso, em 1Reis 19,6 riwah é uma "pedra
encandecida", sobre a qual se preparava pão. A "pedra em brasa", nas mãos
do serafim, deve ter sido uma lasca, um pedaço das pedras do altar interno ao
templo, sobre as quais se queimavam oferendas.
O "altar" (misbean) provavelmente não é o altar para sacrifícios, colo-
cada no átrio defronte ao templo de Jerusalém (IReis 8,22.64; 2Reis 16,14),

74 ConfiraLudwig Kõhler, Lexicon in veteris testamenti libras, p.907.e Hans Wildberger,}esaja 1-12,p.233.

61
mas o altar do incenso destinado às oferendas vegetais (Êxodo 30; Levítico
16,12-13; IReis 7,48 "altar de ouro") e colocado no recinto maior do tem-
plo, no hekal. O instrumento usado para retirar desse altar do incenso um
pedaço de pedra em brasa pertence aos utensílios do templo. O instrumento
é chamado de melqaf1ayim. Somente neste contexto do templo, o Antigo
Testamento conhece esta palavra melqaf1ayim (Êxodo 25,38; 37,23; Núme-
ros 4,9; IReis 7,49; 2Crónicas 4,21). Ela, a meu ver, não designa "tenaz",
"torquês", como em geral se postula a partir da Septuaginta e da Vulgata
(forceps)~75 Em nossa passagem, essa palavra deve ter o mesmo sentido que
nos outros textos. Nesse caso, trata-se de uma "espevitadeira", uma tesoura
especial para aparar os pavios das lâmpadas do templo. Com a ajuda desse
instrumento, o serafim lascara a pedra do altar. Esse enfoque não deixa de ter
sua curiosidade. Ela consiste do seguinte: no início do v.6, é-nos apresentado
um serafim com uma pedra em brasa na mão. Isso ainda está dentro das
dimensões divinas da cena: os serafins, que estão com o Senhor, também
podem transportar uma pedra em brasa com as mãos. Mas, na segunda parte
do v.6, o cenário muda. Agora estamos no templo terreno. E aí o serafim age
bem humanamente, utilizando um instrumento dos sacerdotes para lascar o
altar. O serafim, que lida com fogo de maneira divina, tem que lidar de ma-
neira humana com a pedra! 76 Entre as duas partes há um nítido desnível: a
primeira é da esfera divina, a segunda é da esfera humana.
O serafim "toca" (ng' hifil "fazer tocar", "atingir") a "boca" (peh) de
Isaías. Os termos peh "boca" (v.7a) e sepatayim "lábios" (v.6.7b) aqui certa-
mente são como que sinónimos (para ambos é usada a preposição 'ai "so-
bre"). Mas é interessante notar que no relato (início do v.7 = v.?a) usa-se
outra palavra que na fala (segunda parte do v.7 = v.7b). Essa diferença entre
relato e fala torna-se ainda mais clara, quando, agora, observarmos a explica-
ção (v.7) do ato simbólico (v.6). Especialmente introduzida pela interjeição
hineh "eis", "veja", ela inicialmente recapitula o ato simbólico ocorrido (no
hebraico 'perfeito'); a importância do ato deve ter motivado esta recapitula-
ção. A explicação praticamente só ocupa a última parte do v.7 (= v.7b).

75 Confira, por exemplo, Wilhclm Gcscnius, Hebriiísches und aramiii5ches Handwórterbuch überdasAlte Testa·
ment, Berlin, Springer Verlag, 18" edição, 1962, p.431; e Otto Kaiscr, Der Prophet]esaja - Kapítell·12,
p.56.63.
76 "(...) a tenaz pertence às humanizações involuntárias dos scrafins, A religião humaniza o mundo superior
(isto é o céu), a teologia dcsuruaníza-o novamente" (Bernhard Duhm, Das Buch]esaja, p.67).

62
Nela, a linguagem tem sua própria característica: é linguagem de culto, de
tradição. Ora, se esperaria que os verbos da explicação tivessem alguma rela-
ção com o ato simbólico (talvez: limpar, queimar, purificar) e que os substan-
tivos se relacionassem com a culpa de Isaías no v.5 (silêncio, perdição, impu-
reza). A linguagem do v.7b, no entanto, é bem diferente. Assim o verbo kpr77
(piel "cobrir", "expiar", pual "ser expionado") tem seu lugar vivencial nos
sacrifícios. Esse uso tradicional, e não a situação específica de Isaías, dá o
conteúdo a este verbo. Ainda que o verbo svr "afastar-se" não tenha um uso
cúltico tão bem delineado, igualmente não se adapta especificamente ao ato
de purificação de Isaías. Genéricos também são os dois substantivos. Mesmo
que cada um deles originalmente tenha tido seu significado próprio - 'avon
"distorção", "perversão" e nara'ah "erro" - em nossa passagem (confira 1,4)
tendem a ser sinônimos para pecado (Vulgata: iniquitas, peccatum; confira
Almeida). Portanto, o anúncio do perdão ocorre em linguajar geral, tradi-
cional do culto. O ato de purificação, porém, é algo especial e próprio da
visão de Isaías.
Procuremos, agora, delinear melhor esse acontecimento que estamos
chamando de ato de purificação.
Em se tratando de um cenário celeste, poder-sé-ia esperar que esse
acontecimento fosse algo totalmente sem similares. Esse, no entanto, não é
o caso. Pois, pode-se apontar para alguns paralelos nos profetas: Jeremias é
tocado na boca pela mão de Javé (Jeremias 1,9); Daniel é tocado nos lábios
por alguém da semelhança dos filhos dos homens (Daniel 10, 16); Ezequiel
come um rolo que uma mão lhe estende (Ezequiel 2,8-3,27). Os aconteci-
mentos relatados nestes textos mostram, como Isaías 6,5-7, interesse pela
boca e pela palavra do profeta. São os 'instrumentos' do profeta! Se o ato de
purificação de Isaías tem tais paralelos, pergunta-se: teria ele semelhanças
com textos não proféticos?
A esta altura se deve considerar que Isaías 6 acontece no templo. Cita-
se sua liturgia, fala-se de seus portais, da fumaça do incenso, do altar. Neces-
sariamente devemos procurar por um acontecimento no templo. Jeremias
1,9; Ezequiel 2,8-3,27 e Daniel 10,16 não se referem diretamente ao santu-
ário. Parece evidente que este acontecimento, pelo qual procuramos, não é

77 Confira Fritz Maass, "Expiar", em Diccionario teológico manualdei Antiguo Testamento, Emst Jenni e Claus
Westermann (editores), Madri, Cristiandad, vai. 1, 1985, colunas 1152·1171.

63
um sacrifício, se bem que parece que o sacrifício (no altar de íncensol) tenha
ocorrido por ocasião do ato de purificação. O perdão (v.7) não é concedido
em resposta à oferenda, o que, aliás, é pressuposto em outros textos bíblicos. 78
O perdão é declarado em continuação a um ato, no caso um ato litúrgico
interno ao próprio templo.
Para isso há paralelos. O Salmo 51,9 (= 51,7 Almeida) pressupõe que,
pelo hissopo (aspersão de água) ou pela lavação, alguém se torne limpo.
Trata-se aí evidentemente de um ritual cúltico. Dele também se fala em ou-
tros textos: Números 19 menciona ritos com água e pressupõe que estes ritos
tenham sido acompanhados por "fórmulas declarativas". Tais ritos de purifi-
cação com água também se encontram em Êxodo 11,32; 14,51; 15,16.18;
16,24.28; 17,15, etc. Pode-se indicar também para ritos de aspersão de san-
gue: Êxodo 12,22; 29,12.20-21; Levíticos 1,5, etc. No entanto, nenhum
desses ritos tem o elemento do fogo como Isaías 6,6- 7. Mas isso não é de
estranhar, por dois motivos: primeiro, em seres vivos não se poderia usar fogo
como elemento em rito de purificação. Números 31,22-23 dá ao fogo a mes-
ma função em metais (veja Isaías 1,25) que a água tem em seres vivos! Se-
gundo, pelo que pudemos verificar, os serafins tinham ligação com fogo (srp
"queimar'").
Concluindo: o ato de purificação, o "ato sacramental"?", que ocorre
com Isaías, tem como modelo outros ritos de purificação no culto de Israel.
Seria um tal ato cúltico a situação específica do cap.6, da 'vocação' de Isaías?
O modelo usado, em todo caso, foi adaptado à visão do profeta: o sacerdote
foi substituído por um serafim; o local de aplicação do rito passaram a ser a
boca, os lábios, os 'instrumentos' proféticos. Com este ato especial, Isaías se
destaca dentre os outros: em meio a um povo impuro está puro, por ato
divino.
Isaías foi destacado dentre seu povo; em meio a impuros tornou-se
puro. Está sendo preparado para uma tarefa especial. Agora, no v.8, já é
capaz de "ouvir" xm'. Só depois de um ato purificador de Javé, a visão trans-
forma-se em audição:

78 Confira as assim chamadas "fórmulas declarativas" em RolfRendtorff, Die Gesetze in der Priesterschrift-
Einegattungsgeschichtliche Untersuchung, Gottinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 1954, 80p. (Forschungen zur
Rcligion und Líteratur des Alten und Neucn Tcstamcnts, 62); c Gerhard von Rad, Teologia do Antigo
Testamento, p.227·244.256.260.
79 Hans Wildberger,]esaja 1·12, p.253.

64
"e vi o Senhor" (v.l )
"e ouvi a voz do Senhor" (v.S)
Já os v.3-4.7 pressupõem que Isaías ouve. Mas, ali nunca é usado o
verbo xm' "ouvir", dando a impressão que estes versículos ainda estejam in-
cluídos no "ver". E, nos v.3-4.7, falam serafins, Só no v.S Isaías, de verdade,
ouve a "voz" (qol, confira v.4) do "Senhor" ('adonay, confira vl ). Para poder
ouvir ao Senhor, ele mesmo nos prepara!
A voz do Senhor não é acompanhada por nenhuma glória, por ne-
nhum coro celeste, por nenhum tremor, por nenhuma confissão de perdi-
ção. Enfim, a audição é bem diferente que a visão dos v.I- 7.
O profeta ouve duas perguntas. A primeira ("a quem envio?") já indi-
ca o essencial. A visão e a audição ocorrem em função de uma missão, de
uma tarefa a ser executada. xlh piel significa "enviar" alguém para uma tarefa,
para uma mensagem. A segunda pergunta ("quem vai por nós?"80) indica
além disso que esse envio acontece concretamente através de um "ir" (hlk) ,
de uma caminhada. Esse ir ocorre lanu "em benefício/favor de nós". Curioso
é que, nessa segunda pergunta, o Senhor não usa a primeira pessoa do singu-
lar (como na primeira pergunta), mas a primeira pessoa do plural. Como se
explica isso?
Inicialmente se deve anotar que os tradutores gregos, a Septuaginta,
devem ter-se desconcertado diante desse plural. Eles traduzem lanu por pras
ton laon touton "para este povo". Não parece que eles tenham tido diante de
si um outro texto hebraico, digamos la-goy "para a nação" ao invés de nosso
lanu. Bem mais evidente é que a Septuaginta se tenha valido de uma expres-
são do v.9 tolao touto/"este povo" para não ter que traduzir lanu. Isso significa
que a Septuaginta, ao traduzir, corrigiu o texto hebraico. Mas, o que há de
tão irritante nesse lanu "para nós"?
É que este plural, aparentemente, não se pode explicar como alguma
particularidade gramatical. Por exemplo, em nossa passagem não se trata de

80 Talvez também se pudesse traduzir: "quem de nós vai?". Mas nesse caso a função da preposição le seria a
de circunscrever um genitivo, sendo que então lanu deveria vir logo depois de mi! Confira Wilhelm
Gesenius, Hebrdische Grammatik, Leipzig,Verlag von E C. W Vogel, 28ª edição, 1968, § 129 (1ª edição
1889!) (548p.); veja também Ernst Kautzsch, Gesenius' Hebrew Grammar, Oxford, Clarendon, 1966, 2ª
edição, 598p. - Na verdade, a preposição le tem aqui a função de um dativus commodi (dativo de
interesse). Confira Oskar Grcther, Gramáticahebraica, § 74d; e Walter Baumgartner, Hebrdisches und
aramaisches Lexikon zum Alten Testament, p.484.

65
um 'plural de majestade'. Pois o costume, pelo qual o rei fala de si na primeira
pessoa do plural- este é o plural de majestade - só está comprovado para a
época persa (confira Esdras 4,18; 1Macabeus 10,18-19; 11,30-31 81) . O 'plu-
ral de majestade' existe em muitos substantivos hebraicos antigos," mas não
em verbos! E igualmente não se trata de um 'plural de auto-consulta ou de
deliberação', como eventualmente é o caso em Gênesis 1,26 e 11,783. Pois,
como então se explicaria que, em Isaías 6,8, a primeira pergunta ocorre na
primeira pessoa do singular? Além disso, há de se ponderar que Isaías 6,8 é
uma pergunta que tem platéia (serafins e o próprio profeta).
Outra explicação é bem mais evidente e literal. Ora, o Senhor está
rodeado por serafins! Eles estão incluídos na pergunta. Isto significa que Isa-
ías 6,8 pressupõe a figura do 'conselho divino'". Ela está presente em uma
série de outros textos bíblicos: Gênesis 3,22; IReis 22,19-28; Salmo 29,1-2;
89,6.8; [ó 1-2; 38,7; Apocalipse 4. A origem dessa figura é politeísta. Mas, no
Antigo Testamento, este conselho divino, composto por seres divinos, nada
mais é que a corte e auréola de glória do Senhor. Portanto: o plural na segun-
da pergunta de Isaías 6,8 se dirige a esta corte divina!
A pergunta não é, pois, dirigida expressamente a Isaías. Ela está no ar.
Mas é ele quem chama a atenção sobre si: hineni "eis-me". A interjeição
hineh serve para chamar a atenção; é um grito. No v.5, Isaías iniciara com um
'grito de medo'. Agora se prontifica com um 'grito de atenção'. Pede para ser
enviado - xelab:.eni "envia-me". Retoma assim somente o verbo mais amplo
usado pelo Senhor na pergunta: xlb:. "enviar". Usa-se esse verbo, com fre-
qüência, quando se trata do envio de uma pessoa (veja, por exemplo, Gêne-
sis 32,3-4; 37,13-14). Igualmente freqüente é o uso do verbo "enviar", quan-
do Deus envia seus mensageiros: Êxodo 3,14-15; 4,13.28; 5,22; 7,16; Nú-
meros 16,28-29; Deuteronômio 34,11; Josué 24,5; 1Samue112,8; Miquéias
6,4; Salmo 105,26 (Moisés). Com insistência, esse verbo é usado quando se
trata de profetas: Natã (2Samuel12,l), Gade (2SamueI24,13), Elias (2Reis
2,2.4.6; Malaquias 3,23), Isaías (Isaías 6,8), Jeremias (Jeremias 1,7; 19,14;
25,15.17; 26,12.15; 42,5.21; 43,1-2), Ezequiel (Ezequiel 2,3-4; 3,6), Ageu

81 Veja Hermann Gunkcl, Genesis, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 8" edição, 1968, p.111 (S09p.).
82 Confira Oskar Grethcr, Gramática hebraica, § 69g4; e Carl Brockclmann, Hebriiísche Grammatik, § 19c; § SOf.
83 Veja Claus Westermann, Genesis 1-11, Ncukírchcn, Neukirchcncr Verlag, 1968, p.200-201 (Biblischer
Kommcntar Altos Testament, 111).
84 Confira, por exemplo, Wilhclm Gcscnius, Hebriiische Grammatik, 28" edição, 1962, § 124g.

66
(Ageu 1,12), Zacarias (Zacarias 2,12'-13.15; 4,9; 6,15), profetas em geral
(Juízes 6,8; Isaías 42,19; 48,16; 61,1; Jeremias 7,25; 25,4; 26,5; 29,9; 35,15;
44,4; Zacarias 7,12; Malaquias 3,1; 2Reis 17,13; 2Crônicas 24,19; 25,15;
36,15, confira Salmo 107,20; 147,15.18), falsos profetas (Jeremias 14,14-15;
23,21.32.38; 27,15; 28,9.15; 29,9.31; Ezequiel 13,6; Neemias 6,12, confira
Juízes 9,23). Estes muitos textos impressionam. Realmente o verbo "enviar"
xlh é decisivo para a profecia. Isaías é um enviado. Note-se que em Isaías 6
não é usado o verbo nb' nifal "profetizar" ou o substantivo nabi' "profeta"
para designar a função de Isaías. Parece que os profetas, em geral, não gosta-
vam de ser chamados de profetas (Amós 7,14-15!). No caso de Isaías só sua
esposa é designada de profetiza (Isaías 8,3); ele é enviado.
Pelo que se vê no v.8, Isaías não se tornou profeta por imposição divi-
na. O Senhor nem dirigira as perguntas diretamente a ele! Isaías se pôs à
disposição. Aceitou o desafio, conscientemente e em liberdade. Mas, lá por
isso, não é um herói. Por vezes, na comparação com [eremias", corre-se o
perigo de assim querer definir Isaías. Jeremias fica apavorado com sua esco-
lha, contra-argumentando com sua juventude (Jeremias 1,6). Na verdade,
Jeremias 1,6 só é comparável com Isaías 6,5! E aí a situação de ambos não
diverge muito; ambos são gritos de desespero. Isaías, portanto, se põe à dis-
posição não por ser por natureza um herói, mas por ter sido perdoado e puri-
ficado!
O relato passa de imediato à instrução do enviado. Consiste ela do ir,
do falar (v.9) e do fazer (v.lO). Não se anota expressamente que Isaías se
dispôs a ser o enviado e que isso foi aceito pelo Senhor. Penso que isso está
implícito.
A fórmula "vai e dize" é comum, tanto em se tratando de mensageiros
(confira IReis 18,8; 2Reis 8,10), quanto em se tratando de profetas (confira
2Samuel 7,5; Isaías 38,5). Em todo caso, essa 'fórmula de envio' sempre en-
caminha para uma tarefa concreta. Isso significa que o "ir" (hlk) de Isaías
ocorre em função de uma tarefa específica. Logo, o v.9 não está convocando
Isaías para um cargo mas para uma missão específica. Essa conclusão que se
impõe a partir do texto hebraico confirma observações anteriores, conforme
as quais o cap.6 não representa o início da atividade de Isaías, mas, nela, um
momento e uma mensagem especiais.

85 Otto Kaiser, DerProphet-Jesaja Kapitell-12, p.64.

67
o "ir" inclui necessariamente a saída do templo. O retumbante canto
dos serafíns fora até o limite do templo (vA). Agora, Isaías é impelido a ultra-
passar este limite: do templo ao povo. Uma das questões que com isso se
coloca é a seguinte: passo a passo observávamos como nos v.1-8 toda lingua-
gem provinha do culto; estávamos no templo. Será que continua esse tipo de
linguagem? A outra questão que se impõe é: será que o enviado terá sucesso?
Por ora só podemos anotar as perguntas.
A tarefa consiste em "dizer". Esse verbo 'rnr "dizer" é corriqueiro, como
se pode ver em sua constante repetição em nosso próprio capítulo. Um ver-
bo mais solene como qr' "proclamar" está reservado para os serafins (v.3-4).
Isaías não "proclama", ele simplesmente "diz a (ou: contrai) este povo". A
expressão "este povo" (ha- Iam ha-seh) tem uma conotação especial. Ela sem-
pre tem conotação negativa em Isaías; para "este povo" não há esperança.
Ela quase só se encontra em textos após o cap.ó: 6,10; 8,6.11-12; 9,15;
28,11.14; 29,13-14, confira ainda 14,32. 86 Antes de Isaías 6 a formulação
"este povo " nao
- aparece em Isaias,
- mas somente " " (3"meu
povo 5)" /seu povo ".
Também este "meu/seu povo" (isto é, povo de Javé) tem culpa (l,3; 3,14;
5,13.25), porém com ele Deus está sensibilizado (2,6; 3,5.12.14-15, veja
10,2). Quando Deus diz 'meu povo', então é porque está lutando por seu
povo; se diz "este povo", então é porque o rejeitou. Mas, afinal, quem é "este
povo"? São todos os integrantes de Judá, Jerusalém, Israel? Ou, "este povo" é
uma grandeza bem específica? Teremos que voltar a estas perguntas."
Portanto, já na 'fórmula de envio' está claro que o Senhor perdeu a
-sperança com alguém, com"este povo" . O conteúdo da mensagem (v.9b) e
da ação (v.10) , das quais o profeta é incumbido, corroboram o que a expres-
são "este povo" faz pressentir.
O conteúdo da mensagem é terrível!
Ela é introduzida como outras palavras proféticas, por um 'apelo à aten-
ção'88 ("ouvi") e um 'apelo à observação' ("vede"). Os apelos à atenção são
muito freqüentes entre os profetas (veja Isaías 1,2.10; 7,13; 28,14.23; 32,9;

86 Quando no livro de Isaías se fala da esperança para o povo de Deus (10,24; 11,11.16; 25,8; 26,11.20; 28,5;
30,19.26; 32,13.18), nunca é usada a formulação "este povo".
87 A respeito do assunto, veja a dissertação de mestrado de Daniel Piccoli, A expressão "estepovo" no Livro
do Emanuel (Isaías 6, 1-9,6) - Profecia e grupos dominantes em conflito, no Curso de Mestrado da Pontifícia
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo/SP, 1992, 206p.
88 Klaus Koch, Wasist Formgeeschichte? - MethodenderBibe/exegese, p.251.

68
33,13; 36,13, confira Amós 3,1; 4,1; 5,1, etc.). Menos freqüente é o apelo à
observação (veja Jeremias 2,10.19.23.31; 3,2; 5,1; 2Reis 7,14, etc.). Mas a
junção desses dois apelos" por certo que se justifica a partir do contexto:
Isaías retoma os dois verbos centrais do v.I-8: "ver" (v. I) e "ouvir" (v.8)!
Também o fato de os dois imperativos (xime'u "ouvi", re'u "vede") se-
rem refor~ados por infinitivos absolutos (xamoa', ra'o) tem um sentido bem
especial. E que nesse caso'? o infinitivo expressa continuidade e repetição.
Portanto, com os dois apelos, o profeta indica para várias de suas palavras,
em que acusava e ameaçava" "este povo".
Isaías inicia, pois, como se fosse formular uma palavra de censura e
ameaça. Mas qual nada! Ao invés do conteúdo dessa palavra - que em pen-
samentos se deve imaginar - o profeta já apresenta a reação dos ouvintes a
ela. Aquilo que, formalmente, é a palavra (não entendais! não compreen-
daisl), já é a reação dos ouvintes. E, de fato, entendimento e conhecimento
são exatamente o que, por outras passagens do profeta, falta ao povo (1,3;
5,13.19; 27,11; 29,24). Ele não "entende" (byn kal) e não "conhece" (yd');
tanto um quanto o outro verbo referem-se a conhecimento teórico e prático
(veja Isaías 1,3 e 29,15-16).
Portanto, não se deve querer ver no v.9 uma palavra que Isaías, nesses
termos, dirigiu a ouvintes. Uma tal palavra nem mesmo se encontra em seu
livro! Aqui já estamos diante do resultado de sua pregação. E o resultado
consistiu numa catástrofe: ninguém ouviu (30,15)! Conseqüentemente este
v.9 pressupõe que Isaías 6 tenha sido formulado depois de uma certa época
de atividade profética. O acontecimento da visão não coincide com sua for-
mulação, como acima já havíamos percebido.
A linguagem do v.9 não é a mesma dos versículos anteriores. Nos v.l-
8, a linguagem provinha do culto. O v.9 é diferente. O estilo dos apelos à
atenção e à observação eventualmente provém da instrução escolar (Provér-
bios 4,1; 7,24; 22,17; Io 13,6; 33,3). O verbo byn "entender" usa-se muito
na sabedoria (Provérbios 2,5.9; 14,15; 19,25, etc.) e yd' "conhecer" em todo

89 o duplo apelo é igualmente freqüente no linguajar profético (Isaías 1,2.10; 28,23; Oséias 5,1, etc.). Hans
Walter Wolff designa-o de 'fórmula para introduzir uma doutrinação' (Dodekapropheton 1 - Hosea,
Neukirchen, Neukirchener Verlag, 2ª edição, 1965, p.122-123 [Biblischer Kommentar Altes Testament
14/1]).
90 Hollcnberg-Budde (= [ohannes Hollenberg e Karl Budde), Gramáticaelementar dalínguahebraica, § 46c.
91 Penso que o apelo para ver não quer dizer que o povo deva ter visões (assim a Vulgata), mas que se
conscientize de sua culpa.

69
caso - em Isaías diferente que em Oséias'" - não deve ser localizado no am-
biente do culto.
Essa diferença de linguajar do v.9 para os v.l-S continua nos v.lO-13?
O v.lO, ao menos, não apresenta palavras do culto. São antes, falando
modernamente, palavras de 'médico', de observador do corpo humano. Com
elas a mensagem terrível do v.9 é ainda radicalizada. Pois, agora, não se trata
só da palavra e da sua reação nos ouvintes (v.9), mas da própria ação profé-
tica que irá impedir até mesmo o ouvir, o ver e o entender. (Os verbos da
primeira parte do v.lO estão no hifil que tem significado causativo.) Também
nessa sua ação o instrumento do profeta certamente não é outro que o da
palavra. O terrível é que o v.9 ainda pressupunha a possibilidade do ouvir e
ver. Até isso é negado no v.I O. O v.I O nega o que é normal!
O normal é que o "coração" (leb ou lebab) entenda (byn "entender").
É o que os textos pressupõem: Isaías 32,4; Provérbios 2,2; Eclesiastes S,5;
Daniel 10,12, veja Deuteronômio 8,5; [ó 17,4; Eclesiastes 7,2. Entender é
propriamente a função do coração. É a sua tarefa. Mas essa função precípua
do coração de princípio é rejeitada e tornada impossível. A preposição pen
"para que não" é a "conjunção da rejeição"?'. O coração não pode mais assu-
mir sua tarefa, porque ele é engordado (xmn "engordar"). Parece-me que
com essa expressão o profeta não só se refere ao estado doentio de adiposida-
de do coração. Refere-se, a meu ver, muito mais à neutralização do coração
que, à semelhança de um pedaço de carne, é embebido em óleo ou banha
para assim ser conservado. Dessa maneira o coração perde sua função. Vê-se
logo que nessa neutralização do coração consiste a ação mais importante de
Isaías: além de ser citado em primeiro lugar e de não ser, gramaticalmente,
instrumento" (como olhos e ouvidos") mas sujeito do conhecimento, o co-
ração afinal é o centro da vontade e da decisão (funções que nós hoje atribu-
ímos à cabeça, ao cérebro). Este centro vital é posto fora de funcionamento.
Isso eqüivale à doença de morte. - No entanto, mais outra particularidade
chama a atenção quanto ao coração. Ora, a expressão "coração/ouvidos/

92 Confira Hans Walter Wolff, '''Wissen um Gotr' hei Hosea als Urfonn von Thcologíc'', em Gesammelte Studien
zumAlten Testament- Theologische Bücherei, Munique, Christian Kaiscr Verlag, vol.22, 1964, p.182-205.
93 Confira Ludwig Kôhlcr, Lexicon in veteris testamenti libras, p.765.
94 No texto hebraico de Isaías, encontrado em Qumrã, na Septuaginra e na Vulgata, também o coração é
instrumento, corno olhos c ouvidos.
95 Trata-se, na segunda parte do v.lO, de um be- instrumental: be-'enav"com seus olhos", be-'osnav "com seus
ouvidos".

70
olhos deste povo" é curiosa. Pois nela se junta um vocábulo da corporeidade
e individualidade ("coração") a um vocábulo da política e coletividade
("povo"). Nesse pequeno detalhe, pode-se ilustrar quão impossível seria querer
centrar o Antigo Testamento unicamente no coração do indivíduo ou so-
mente na coletividade do povo.
,
O norma I e' que se " " (xm'" OUVlr
ouça ''') com o "ouvid
OUVl o " ('osen.
) Eo
que outros textos bíblicos pressupõem: Isaías 11,3; Jeremias 26,11; Salmo
22,12; [ó 13,1, etc. Ouvir é a função do ouvido. É sua tarefa. Ela, porém, é
negada, rejeitada (pen). A inaptidão do ouvido para sua função, todavia,
não se deve a uma surdez doentia, o que o hebraico expressaria com o verbo
hrx kal "ser surdo". A surdez é causada (hifill) pela palavra profética que "faz
pesado" (kbd hifil) o ouvido. Este verbo não nos dá a possibilidade de saber-
mos claramente de que maneira o ouvido ficou obstruído (Tornou-se pesada
a orelha a ponto de encobrir o ouvido? Impurezas teriam entulhado a ore-
lha?). Também em Isaías 59,1 e Zacarias 7,11 o verbo kbd é relacionado ao
ouvido, contudo sem deixar transparecer qual é o mal concreto"
O normal é que se "veja" (r'h) com os "olhos" ('ayin). É o que outros
textos pressupõem: Gênesis 45,12; Deuteronômio 3,21; Isaías 6,5; Jeremias
5,21, etc. Ver é a função dos olhos. Ela, porém, é rejeitada (pen). Mas, tam-
bém os olhos não estão doentes nem são cegos, pois para expressá-lo o he-
braico tem termos específicos: 'iver" cego". Os olhos "foram colados" (hífill).
Se entendemos corretamente o verbo x" hifil "colar", "tapar", "grudar" - só
usado por Isaías (29,19; 32,3?) - então por cima dos olhos é passada uma
camada pegajosa que impossibilita a visão.
Portanto: coração, ouvidos e olhos de "este povo" não estão possuídos
por anormalidades doentias, mas por doença voluntativa. Através de sua
ação, o profeta torna "este povo" incomunicável (olhos e ouvidos) e incapaz
de pensar (coração). Estas condições geraram a morte de "este povo". A catás-
trofe se assemelha àquela de Gênesis 11, da assim chamada torre de Babel!
A finalidade última dessa ação profética é que "este povo" não "se
converta e se cure". Nesta frasezinha final, está o alvo último do v.10 (o final
do v.1Onão participa da disposição quiástica do v.lO).
Mas sua autenticidade e sua compreensão são muito discutidas:

96 Em Êxodo 8,11.28; 9,7.34; 10,1 e ISamuc16,6, kbd refere-se ao coração, e, em Gênesis 48,10, aos olhos.

71
Parece-me que o problema básico está na compreensão dessa frase:
Em discussão está a tradução do verbo xvb. Significa "retornar", mas,
quando lhe precede outro verbo, pode expressar a repetição da ação do ver-
bo subseqüente. Esse é o caso no v.l3 e em Gênesis 26,18; 30,31; Jeremias
18,4, etc. E também o poderia ser em nossa frase va-xab ve-rapa' lo que então
se traduziria por: "e novamente se cure". A sugestão para assim traduzir o
v.10 é antiga. É defendida por Wilhelm Gesenius'", Otto Kaiser'", Georg
Sauer" e outros. Ela, no entanto, é improvável por três motivos: primeiro e
principalmente, porque a Septuaginta não traduziu xvb por palin "novamen-
te" (como no v.13 !), mas por epistrefo "retornar". - Segundo, porque a tradi-
ção masorética diferencia claramente entre os dois verbos em questão: o pri-
meiro va-xab é um 'perfeito hebraico' + ve, enquanto que o segundo ve-tapa
é um 'perfeito consecutivo'. Isso significa que va-xab inclusive tem que ser
traduzido por "e, em conseqüência, se converta", pois trata-se de um 'perfei-
to' hebraico que continua um 'imperfeito' (yabin). - Terceiro, porque Isaías
usa o verbo xvb em outros textos: 7,3; 30,15. Concluindo: no final do v.lO,
xvb não deve ser traduzido por "novamente", mas por "retornar", "conver-
ter-se" .
Em discussão também está a pergunta pelo sujeito na parte final do
v.lO: Deus ou "este povo"? Deus não pode ser sujeito; pois, v.9-1O são palavra
de Deus. Deus falaria de si na primeira pessoa, como se pode ver na própria
Septuaginta. Só resta "este povo" como sujeito, o que também é o mais lógico,
no v.10. Nesse caso, temos um le reflexivo em rapa' lo: "e se cure".
Por fim, em discussão está a autenticidade do final do v.10. Georg Fo-
hrer'?' e Georg Sauer'?', por exemplo, consideram-no um acréscimo posterior
ao texto de Isaías. É verdade que a parte final do v.lO cai fora da estrutura
quiástica do restante do versículo. E é verdade que essa parte final é difícil de
entender. Mas nem um e nem outro argumento servem de base para consi-
derá-lo como acréscimo posterior.

97 Hebrõisches und ararndisches Handworterbuch überdasAlte Testament, p.811.


98 Der Prophetlesaja - Kapitell-12, p.57.
99 "Die Umkehrungsfonlerung in der Verkündigung [esajas", em Wort-Gebot-Glaube em homenagem a
Walther Eichrodt, Zurique, Zwingli Vcrlag, 1970, p.2 79-284 (Abhandlungcn zur Thcologic dcs Altcn und
Neuen Testaments, 59).
100 DasBuchlesaja-1.Band Kapitell-23.
101 "Díe Umkehrforderung in der Vcrkündigung [esajas", p.284.

72
Podemos, pois, atribuir as últimas palavras do v.10 ao nosso profeta e
podemos traduzi-las por "e, em conseqüência, se converta e se cure". Essa é a
conseqüência última da palavra e da ação de Isaías. "Este povo" não terá
mais chance para "retornar" e "se converter" (xvb) e para se "curar" (rp'
Isaías 19,22; 30,26). xvb "converter-se" exprime o retorno ao local de saída,
no caso a volta ao convívio original com o Senhor. O verbo rp' "curar" ex-
pressa essa situação ideal. Este verbo está no nível das outras expressões que
no v.lO se referem ao corpo humano. Naturalmente, como os outros verbos
do v.lO, não dizem respeito só à cura do corpo doente. Trata-se de cura total
(Oséias 6,1), incluindo também perdão (veja Salmo 103,3).
Em relação ao final do v.10, se impõe mais outra observação. Pois,
aquilo que Isaías nega como possibilidade atual para "este povo", ele anteri-
ormente aguardara. Isaías 30,15 indica nessa direção: a conversão (xubah)
teria sido a salvação, "mas não o quisestes". Em alguma fase de sua atividade,
o profeta deve ter falado da necessidade do "retornar". Sim, a partir de 7,3,
sabemos que essa fase ocorreu quando nasceu o filho xe'aryaxub "Um-resto-
volta". Ela só pode ter ocorrido antes de Isaías 6! Em Isaías 6,10, essa possibi-
lidade está aniquilada, rejeitada (pen!).
Com isso, estamo-nos encaminhando para o problema que os v.9-1O
representam na tradição da fé cristã: Deus mesmo fecha "este povo" para sua
palavra!? Deus como motivador da incredulidade!? Esse motivo passou ao
Novo Testamento, onde Isaías 6,9-10 é várias vezes retomado (Mateus 13,14-
15; Marcos 4,12; Lucas 8,10; João 12,40; Atos 28,26-27) e o assunto está
presente no apóstolo Paulo (Romanos 9,18; 11,7-25). De lá passou para a
dogmática cristã, para a doutrina de providência e predestinação. Nosso tex-
to de Isaías 6,9-10, situa-se dentro dessa tradição. Mas, por certo, não pode-
mos discutir, aqui, essa problemática em sua amplitude. Podemos arriscar al-
gumas observações a partir do texto de Isaías 6,9-10.
Já a tradução grega, a Septuaginta, mostra que a afirmação de Deus
como causador da incredulidade foi inquietante. Na LXX, o povo (e não o
profeta sob mando de Deus) é responsável por coração, ouvidos e olhos fe-
chados. E, só nessa formulação(!), Isaías 6,9-10 passou ao Novo Testamento.
Se, porém, o próprio povo se tivesse fechado à palavra, como o quer a Septu-
aginta e, com ela, o Novo Testamento, então Isaías 6,9-10 deixa de conter
uma afirmação inquietante. Na verdade, pelo texto masorético a impossibili-
dade de crer provém do próprio Deus.

73
Contudo, a tradução da Septuaginta também não se encontra num
caminho totalmente diferente. Pois, vê-se que no Antigo Testamento um
mesmo acontecimento de incredulidade pode ser tido como causado por
Deus e pelas pessoas. Compare Êxodo 4,21 com 1Samue16,6, e Isaías 6,9-10
com Zacarias 7,11 para comprová-lo. A incredulidade como culpa humana
e a incredulidade ocasionada por Deus evidentemente estão entre si relacio-
nadas.
No próprio texto de Isaías 6,9-10 se percebe este relacionamento. Pois
a afirmação dos v.9-1O não nasceu como frase absoluta. Mesmo que ainda
não tenhamos estudado todo o contexto de Isaías 6, já se pode afirmar que
este cap.6 pressupõe a experiência profética e a decepção de Isaías com uma
parte de seus ouvintes. V9-10 nasceram nessa situação de rejeição real da
palavra profética. É experiência. Decisivo neste particular é a expressão "este
povo". Pois, ela não se refere ao conjunto da população. Refere-se antes a
um grupo social específico. Acontece que, no hebraico, o termo Iam não se
refere genericamente a "povo", mas concretamente a setores sociaisdelimita-
dos. Sim, também é possível que Iam se aplique, em geral, a 'povo' no sentido
de população ou habitante. Mas este não é o caso em Isaías 6-9, onde a expres-
são ba- Iam ha-seh não visa abrigar terminologicamente o povo em geral, mas
setores sociaisespecíficos, circunscritos aos senhores do poder. 102
Seria, porém, insuficiente ver nos v.9-10 só a explicação da experiên-
cia. Ora, foi Deus quem endureceu o coração de "este povo" e não o inverso.
Para entender melhor o endurecimento como ação divina, convém tomar
em conta que Isaías 6,9-10 não é um texto isolado. Também o coração de
faraó foi endurecido: Êxodo 4,21; 7,3.13; 8,11; 1SamueI6,6. 103 Nesse endu-
recimento do faraó, reside a catástrofe do Egito (veja Êxodo 14,20-31;
15,19.21). Algo semelhante ocorre em Isaías 6,9-10. O contexto de v.9-10 é
o v.11. V 11 é o anúncio da destruição das condições de vida de "este povo".
Este anúncio da destruição total dos totalitários em Israel/Judá é, sem dúvi-
da, a característica específica dos profetas do 8º século: Amós (8,2 + 9,1-4),

102 Veja a respeito de detalhes desta argumentação a dissertação de mestrado de Daniel Piccoli, A
expressão "este povo" no Livro do Emanuel (Isaías 6,1·9,6) - Profecía e grupos dominantes em confiito, no
Curso de Mestrado da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo/Sp,
1992,206p.
103 Confira Franz Hcssc, DasVerstockungsproblem ím Alten Testament - Einefrommigkeitsgeschichtliche Untersu·
chung, Berlim, Tocpclmann, 1955, 107p. (Beihefte zur Zeitschrift für dic alttestamentliche Wissens·
chaft, 74). Confira tamhém a crítica de Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, p.576·583.

74
Oséias (1,2-9), Miquéias (3,12) .104 Como se vê no v.11, o anúncio desse fim
de "este povo", causado pelo Senhor (!), é a tarefa de Isaías. Diante desse fim
que vem não há nem mesmo chance de mudança e conversão (veja Isaías
7,1-2 +3-9 e 7,10-17). Nesse sentido, v.9-1O não representam nada de extra-
ordinário. São só o outro lado do fim, sua concretização pessoal. Vejamos
como é descrito esse fim (v.ll)!
O anúncio divino de destruição ocupa a maior parte do vl l . O início
do v.11, porém, ainda contém, em uma pequena frase, palavras isaianas de
protesto. É a pergunta: "até quando, Senhor?". Ela é a reação à terrível tarefa
descrita nos v.9-1O. Para bem avaliar essa pergunta, é necessário considerar
que ela é comum nos salmos de lamentação (do povo: 74,10; 79,5; 80,5;
89,47; 90,13; 94,3, do indivíduo: 6,4; 13,1-3; 35,17).105 Isso significa que
aquela frasezinha não é só uma pergunta de informação e nem só um tipo de
intercessão pelo povo (como transparece, por exemplo, em Gênesis 20,7;
Amós 7,1-9), mas uma oração em causa própria. É dirigida ao "Senhor";
Isaías fala novamente em 'adonay, como nos v.I.8. Na inquietude da pergun-
ta "até quando" ('ad matay) está presente protesto e desespero: a terrível
mensagem e ação dos v.9-10 não podem ser duradouras! Ao lado do v.5
(grito de medo e angústia) e do v.8 (grito de atenção) designaria a pergunta
do v.11 de 'grito de protesto'.
Esse grito fica sem resposta adequada. A pergunta diz respeito ao tem-
po, a resposta ao conteúdo, ao que ocorrerá. O que ocorrerá, se diferencia
dos v.9-10. Lá palavra e ação proféticas foram verbalizadas em categorias
pessoais. Aqui o fim é expresso em categorias sócio-económicas: cidades,
casas, terra cultivável. O fim será destruição, deserto. Essa é a afirmação básica
do v.1I.
O v.l1 contém uma constatação básica e suas ilustrações. Esta obser-
vação as traduções atuais nem sempre consideram o suficiente (nem Almei-
da e nem um comentarista atual como Hans Wildberger 106), mas no texto
hebraico é evidente. A frase: "até que estejam desertas" já diz tudo; contém
a constatação básica. No restante do v.11, ela é descrita em relação a cida-
des, casas, terra. Essas são ilustrações daquela constatação fundamental.

104 Veja a respeito meu ensaio sobre Arnós em "Profecia e estado - Uma proposta para a hermenêutica
profética", p.105.145.
105 Hermann Gunkel, Einleitung in diePsalmen - Die Gattungenderrelibsen LyrikIsraels, p.127.230.
106 Veja Hans Wildberger,}esaja 1.12, p.231.

75
Na constatação básica, Isaías-Deus afirma ('perfeíto', no hebraicol) o
fim com um verbo que, além de em nosso v.ll, só aparece em Isaías 37,26;
2Reis 19,25 (Naum 1,5?). Pelo que se pode verificar x'h significa "estar deso-
lado" (confira Vulgata), "estar deserto" (confira Septuaginta). Deve-se rela-
cionar o verbo x'h com o substantivo xe'ol "deserto", "inferno". O fim de
"este povo" é o deserto. O Senhor anunciou, pois, o fim de "este povo" com
uma catástrofe ecológico-climática. Conforme o v.11, o fim não virá, pois,
através de uma derrota na guerra e da deportação'" e nem em forma de uma
catástrofe císmica (confira Amós 1,1; 2,13). O fim virá na forma de deserto.
O deserto que vai tomar conta oferecerá as seguintes cenas:
Primeira cena. Nas "cidades" ('arim) não fica "morador" (yoxeb). Ob-
serve-se que "cidades" são plural, "morador", porém, singular. Este contraste
não é acaso! Muitas cidades e nelas nem mesmo um único morador! ? E, além
disso, deve-se observar também que essa é a terceira vez que Isaías 6 usa
yoxeb: no v.I, o Senhor estava yoxeb "sentado" em seu trono; no v.S o profeta
estava yoxeb "sentado" em meio a seu povo; e, agora no v.ll, não resta um
único yoxeb "morador". Há um nítido descendo no uso de yoxeb em Isaías 6
(confira também Isaías 8,14) ! Nas duas primeiras vezes, o sentido de yoxeb é
mais genérico, podendo ser traduzido por "sentado", em especial no v.s. Mas,
auscultando com maior precisão o sentido de "sentado" no v.l, percebe-se
que ali "sentado" mantém relação com mando, com governo. Afinal, no v.l
este "sentado", o Senhor, exerce o mando! Afinal, está "sentado no trono"!
Esta conotação yoxebl"sentado" em especial também tem no v.l I. Trata-se
aí de 'o que manda' nas "cidades", em cada uma das cidades. Trata-se do
comandante local! O fim é, pois, sociologicamente identificável! O que se-
gue se situa neste mesmo ambiente de entidade socialmente identificável!
Segunda cena. Nas "casas" (batim) não fica "pessoa/gente" ('adam). Essa
cena e a anterior são semelhantes. Formalmente são exatamente paralelas:
nas cidades não há morador
nas casas não há 'adam
Ora, as expressões "cidades" e "mandante"/yoxeb impelem a pôr o olho
nas grandezas da governança. O que segue, por assim dizer, enfoca a 'socie-
dade civil': ela tem as casas/batim sob o mando do 'adam. Ora, 'adam não
quer referir-se a toda e qualquer pessoa ("gente"), mas a quem manda. Desse

107 AssimHans Wildberger,jesaja 1-12, p.257.

76
jeito se usa o conceito de 'adam em várias passagens bíblicas: basta que eu
aqui me refira a Gênesis 11,5l°8, e ao Salmo 22,7(!). Assim sendo, 'adam
corresponde a yoxeb! Um 'governa' (yoxeb), o outro é dos mais influentes na
sociedade ('adam). No v.10 este 'adam era chamado de "este povo"! Logo, o
v.11 não diz respeito ao fim do povo em geral, mas ao fim de quem manda na
sociedade!
Terceira cena. Ela contrasta com o cenário citadino ("cidades", "ca-
sas") das duas anteriores. Já sua formulação é bem diferente. Em especial,
'adamah que designa a terra cultivável, a "roça", é o contrário de "cidades" e
"casas". Além disso, a terceira cena volta ao início. Ela usa o mesmo verbo
x'h "estar deserto" da afirmação básica 109, mas com a diferença que aquilo que
na afirmação era fato consumado ('perfeito', no hebraico) é, no verbo da
terceira cena, situação em continuidade (Tmperfeito', no hebraico). O de-
serto será constante! xemamah significa "deserto" e é, precisamente, o oposto
da terra cultivada ('adamah). A 'adamah muitas vezes está incluída na catás-
trofe que os profetas anunciam a Israel/Judá: Isaías 1,7 11°; 7,16; 32,13; Amós
7,17; Jeremias 7,20; 12,14, etc. De fato, o agir de Deus vai muito além do
coração (veja v.10). Não resta nada na terra. Tudo é destruição. Esta afirma-
ção não é alterada no v.l2.
Os acentos do v.12 são um pouco diferentes, a iniciar pelo fato que
v.9-11 são palavra divina, enquanto que o v.12 é palavra profética.
A diferença principal é que o v.l2 explicita o fim como deportação.
Isso não se deduz tanto do anúncio de que em meio à terra "se tornará nu-
meroso/grande o abandono". Pois aí é afirmado, em outro vocabulário, o
mesmo que no v.11: tudo estará deserto!". Para expressá-lo, o v.12 usa a

108 Veja Milton Schwantes, ''A cidade e a torre (Gênesis 11,1-9) - Exercícios hermenêuticos", em Estudos
Teológicos, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, vol.21, 1981, p.lOl-l03 (p.75-106).
109 Na Scptuaginta, o final do v.11 tem o seguinte teor: "e a terra restará como deserto" (confira Vulgata).
Essa tradução grega parece pressupor uma forma do verbo x'r nifal "sobrar", "restar", ao invés de x'h
"estar deserto". Mas, a partir da Septuaginta, não se pode mudar o texto masorético em questão, como
o sugerem a Biblia Hebraica Kittel, a Biblia Hebraica Stuttgartensia e outros, pois é fácil de explicar a
tradução grega: no início do v.ll (naquilo que chamo de afirmação básica) a Septuaginta traduz x'h por
eremóo. Como esse verbo já estava ocupado na tradução do final do v.11 (xemamah = éremos!) , os
tradutores gregos tiveram que optar por outro vocábulo.
110 Isaías 1,7 tem semelhança com Isaías 6,11. Mas, enquanto Isaías 6, 11 se refere ao ano 736 a.C, Isaías 1,7
se refere à catástrofe de guerra por volta de 701 a.C, Isaías 1,7 é realização parcial de Isaías 6,11!
111 Nesse ponto, a observação de Bernhard Duhm é condizente: "12 é só uma repetição sem conteúdo do
v.11" (Das BuchJesaja, p.69).

77
palavra ha-'asubah, que é particípio passivo de 'sb "abandonar". A ação des-
truidora do Senhor contra sua terra é expressa com o verbo 'sb "abandonar"
também em: Isaías 7,16; 17,2.9; 27,10 e 32,141 Que o v.12 entende a catás-
trofe como deportação, verifica- se no verbo r!J.q "mandar para longe", "afas-
tar totalmente". Esse verbo não se refere só a "deserto" e "abandono", em
que se transformarão cidades, mas acrescenta a isso o deslocamento, a depor-
tação, das pessoas de poder ('adam) para um lugar distante. r!J.q sempre inclui
a distância. Para assinalar a deportação, esse verbo também é usado em Jere-
mias 8,19; 27,10; Ezequiel 11, 16 e JoeI4,6.
A meu ver, percebe-se no v.12 mais outra nuance. Os anúncios nos
v.9-10 dizem respeito a "este povo", isto é, a um determinado setor social
jerusalemita dentre os dominantes. No v.l l , o conceito 'adam ocupava este
sentido. Como "este povo", 'adam não é, por si só, um conceito social claro.
Mas, também, não deixa de ter conotações sociais de setores dominantes, em
vários textos do Primeiro Testamento. E a quem se refere o v.12? Observo que
nele 'adam não é diferente do que se lia no v.1I. Ora, veja! No v.12, 'adam é
determinado pelo artigo! Logo, ha-'adam (v. 12) é, exatamente, aquele do ver-
sículo anterior, do v.11! É verdade, ha-éte; (no v.12b) poderia ser entendido
no sentido terra = mundo. Mas não me parece ser sábio proceder desse jeito na
interpretação. Pois, neste v.12b, diz-se que "tornar-se-à grande o abandono
em meio à terra". É um conteúdo que não convém entender em sentido como
que apocalíptico, como se a terra criada por Deus estivesse sendo por ele des-
truída apocalipticamente. Não, o sentido é mais concreto; dá-se "em meio à
terra", à de cultivo e de moradia, dominanda pelo 'adam. O profeta Isaías ainda
não explicita esta compreensão, mas também não a nega. Acontece que neste
momento de seu escrito, neste cap.6, o enfoque ainda não é claramente social,
como será nos capítulos subseqüentes. Lidos à luz do que segue, convém inter-
pretar, desde já, os conceitos em sentido social, como o estou propondo aqui.
Na tradição da Septuaginta (tradução grega) e da Vulgata (tradução
latina), o v.12 não foi entendido como juízo, mas como graça. Na Septua-
ginta se lê: "e depois disso Deus afastará os homens, mas os que restarem
serão multiplicados na terra." Na Vulgata se lê: et longe faciet Dominus homi-
nes, etmultiplicabitur quae derelicta fuerat in medio tettae. Parece-me que estas
traduções são um tipo de resposta ao grito de protesto de Isaías: "até quando
Senhor?". Além disso, essas traduções mostram que a mensagem de destrui-
ção de Isaías é uma mensagem com um momento próprio. Deus ainda tem
outra palavra além da palavra destruidora!

78
o v.13 contém uma amostra da passagem do juízo para a graça, da
destruição para a salvação - isso na medida em que formulamos o assunto de
modo 'abstrato'. No concreto da vida, a questão se coloca de outro jeito,
como veremos no decorrer da interpretação. De todo modo, na frase final do
v.l3 fala-se da 'semente': "semente santa é seu broto".
De resto, o v.U reafirma integralmente v.11 e v.12: a destruição que
menciona é sem qualquer esperança, obviamente para quem for por ela atin-
gida. Os v.l l e v.12 já tinham anunciado que certos setores viriam a estar
totalmente vazios e sem gente. A novidade do v.l3 consiste na afirmação do
fim destes setores que estão no fim. Explico: em foco continua a estar 'ela',
no caso a terra, como nos v.11 e 12. No início do v.l3, é aventada a possibi-
lidade de "ainda" Cad) sobrar na terra (bah "nela") uma "décima parte" Casi-
ri). Ora, uma décima parte já por si não representa nenhum sinal de esperan-
ça, mas é um sinal de dizimação de quem detém a terra, como se pode ver em
Amós 5,3. Mas essa "décima parte" também será destruída. Esse é o fim do
fim (veja Amós 5,18-20; 6,9; 9,1-4).112 O verbo b'r que formula essa destrui-
ção final pode ser entendido de duas maneiras distintas. Pode ser relaciona-
do a b'r "queimar"!" ou a b'r "pastar", "destruir". Nesse segundo significado
de "pastar/destruir", Isaías usa o verbo em 3,14 e 5,5. E, já que o significado
de b'r também depende da figura da segundaparte do v.l l , teremos que
retornar à questão.
O v.U evidentemente não fala de deportação como o v.12. Ele até
pressupõe a impossibilidade de uma deportação, já que o extermínio final se
dará na própria terra. Além disso, vê-se que o v.l3 não trata de uma catástro-
fe militar, o que seria o caso no v.12. O verbo b'r, signifique ele "pastar" ou
"queimar", indica muito mais para uma catástrofe ecológico-climática, como
no v.1L
Realmente difícil é a figura da segunda parte do v.U (= v.l3b). Pois,
as tradições antigas do texto diferem entre si:
O texto masorético compara a destruição, pela qual passa a décima
parte, com dois tipos de árvores (terebinto e carvalho) que, ao serem derru-
badas, deixam m(1lebet. O significado dessa palavra, nesse contexto, é muito

112 De maneira alguma iria entender essa "décima parte" como se fosse Judá (como o fez Hans Wildberger,
Jesaja 1·12, p.258), pois a expressão "décima parte" nunca é relacionada ajudá.
113 Assim Walter Baumgartner, Hebraisches UM aramiiisches Lexikonzum Alten Testament, p.140 e outros.

79
discutido. Em 2Samuel18,18 m~ebet tem o mesmo significado de m~ebah
"coluna" (de pedra). Se ma~ebet, em nossa passagem, tiver esse sentido (veri-
fique Almeida) - o que me parece possível- então a raiz verbal b'r necessa-
riamente tem o significado de "queimar": o resto de Judá será queimado como
os tocos (= as colunas) dos terebintos. No entanto, m~ebet pode significar
também "brotos"!". Nesse caso, b'r provavelmente significa "pastar", "des-
truir". A comparação, então, deve ser interpretada da seguinte maneira: a
décima parte será pastada/destruída como são pastados/destruídos, pelos ani-
mais, os brotos de terebintos derrubados.
O texto da Septuaginta é mais breve: "como um terebinto e o carva-
lho, quando caem de seu lugar". Por caracterizar a destruição, essa figura da
tradução grega, apesar das diferenças, se assemelha ao texto masorético.
No entanto, no texto do livro de Isaías, encontrado em Qumrã, nossa passa-
gem é ainda diferente: 'axer mxlkt ma~ebet bamah (vocalização acrescentada).
Ao invés de bam (preposição be- + sufixo da terceira pessoa plural),
Qumrã tem bamah "colina", "alto". Como bamah "colina" é um lugar de culto
de origem cananéia (confira, por exemplo, IReis 11,7 e Jeremias 19,5) e como
masebei pode ser, em termos de gramática hebraica, 'estado construído' de m~e­
bah "coluna de pedra", que igualmente é um objeto de culto (confira, por exem-
plo, Êxodo 23,24 e Oséias 10,2), parece que na tradição de Qumrã o v.U
contém crítica ao culto: destruição das colunas nas colinas. Essa possibilidade
de interpretação de nosso v.U a partir de Qumrã deu margem a outras suges-
tões de mudanças no texto masorético, de sorte que a liquidação não só é
comparada à destruição de árvores, mas também à destruição de cultos. 115
Portanto, existem várias possibilidades de entender o v.U. Pelo que
até hoje sabemos, não se deveria considerar nenhuma delas como a solu-
ção definitiva. Por isso deve-se manter a interpretação especialmente aberta.
Mesmo assim, encontro dois argumentos que falam a favor do texto maso-
rético: 1) seria estranho se a figura do v.U contivesse crítica aos cultos
cananeus e pagãos, enquanto que o restante do capítulo nada disso deixa
entrever; 2) a frasezinha final do v.U ("semente santa é seu broto") em
todo caso não entendeu a figura como crítica ao culto pagão, já que assu-
me o termo ma~ebet positivamente.

114 Veja Walter Baumgartncr, Hebraisches und aramaisches Lexikonzum Alten Testament, p.587.
115 Confira William Foxwell Albright, The HighPlace inAncient Palestine, Leiden, E. J. Brill, 1957, p.254-255
(Supplcmenrs to Vetus Tcsramentum 4); c Walter Baumgartner, Hebraisches und aramaisches Lexikon zum
Alten Testament, p.587.

80
As últimas palavras do v.13 são uma importante delimitação dos anún-
cios de desgraça e destruição dos v.9-13. Retomam a figura do v.13. Mas o
"toco/broto/coluna", que tinham sido sinal de total e radical destruição, são,
agora, transformados em símbolos de esperança. Também em 11,1 o broto
assinala a nova esperança! O "broto" é "semente", ou melhor, "descenden-
te", já que sera' é usado aqui em sentido figurado. O "descendente" (Uma
nova comunidade? Uma continuação do tribalismo?) freqüentemente é sím-
bolo de esperança (Génesis 12,7; 13,15; 2Samuel 7,12; Jeremias 30,10; Oséias
2,25, etc.). Essedescendente é "santo" (qodex). A escolha dessa palavra ("san-
to") deve ter sido determinada pelo tríplice santo dos serafins no v.3. Pelo
que se vê a frase final do v.13 - o protesto de esperança - usa linguagem de
Isaías 6 ("santo", "broto") e está na corrente daqueles que - como Isaías
11,1! - esperam pelo novo.
Portanto: Isaías 6 aponta para além de si.

Alvos
Antes de acompanhar a continuação de Isaías 6 nos caps.7 e 8, procu-
roresumir:
Isaías 6 relata como o Senhor prepara seu enviado. A preparação se dá
através de visão, audição, confissão de culpa, ato de purificação, envio, defi-
nição da mensagem a comunicar.
A cena da preparação de Isaías ocorre no templo de Jerusalém, prova-
velmente no ano 736 a.c., no espaço da sala maior do templo, ante o santo
dos santos.
Esse preparo especial está em função da tarefa especial de Isaías. Sua
tarefa, em palavra e ação, é anunciar e realizar o fim e a morte de "este
povo", aquilo que nos v.11.12.13 é designado de "terra". Esse anúncio catas-
trófico para estes ouvintes é a palavra do Senhor. (Quem é "este povo"? e
quem é a terra? - o detalhamento do juízo será tarefa dos caps. 7-8 e 9!)
A função de Isaías 6 é a de explicitar a palavra profética como palavra
divina, como palavra do santo. Este cap.6 deve ter sido escrito numa situa-
ção de luta e dificuldade para o profeta, afrontado pelas elites de Jerusalém.
Não é necessário e nem recomendável ver em Isaías 6 a visão e vocação
inicial de Isaías. Pelo contrário, há indícios vários que indicam que Isaías 6
deve ser entendido como preparo para uma missão especial, uma tarefa con-
creta, a de declarar morte a "este povo" e, por extensão, à terra.

81
Há indícios de que acontecimento visionário e redação literária não
coincidem. A redação pressupõe algum tempo de atuação profética.
Há indícios de que Isaías historicamente tenha atuado, como visioná-
rio (Isaías 1,1), antes do cap.6. Como conteúdo de sua mensagem antes do
cap.6 transparece conversão e cura. 116

Atualizando
Isaías 6 aponta para frente. Não por último, tende para a atualidade.
São vários os momentos que, em Isaías 6, tendem à atualização. Durante a
interpretação alguns já foram sendo anotados.
É inquietante a 'mistura' de religião e política. Serafins são do mundo
das religiões. O trono e o conselho divino são do mundo político. Como se
articula a fé diante dos mandatários de religião e trono?
Confissão e absolvição são, em Isaías 6, ações decisivas. Ações proféti-
cas inovadoras, como a do começo de uma radical oposição profética a "este
povo" jerusalernitano, precisam brotar do templo.
A novidade de Isaías 6 irrompe sob a forma de visão e audição. A
esperança é visionária. Por que o caráter visionário da fé está tão atrofiado
em igrejas históricas? Pode o presente ser rompido sem visão?
As questões colocadas estão abertas para o diálogo. Aqui só podem ser
anotadas. Mas, num assunto de Isaías 6 quero deter-me com algumas obser-
vações mais detalhadas:
Inquietante e atual é a mensagem do fim, da catástrofe total, que ocu-
pa a maior parte do capítulo: v.9-13. Através de Isaías, o Senhor realiza a
destruição: faz da terra e da roça um deserto! O profetismo foi, em Israel,
basicamente um movimento para o fim. Isso é estranho.
Esta ruína é fim de "este povo". Isaíasnão se refere, pois, a um fim total de
tudo em colorido apocalíptico. Mas refere-se à ruína que abrange quem já não tem
olhos, nem ouvidos e muito menos compreensão para a profecia.Virá a ser muito
importante caracterizar muito claramente quem é "este povo", quem são estesdo-
nos da terra (5,81) em Isaías. Sem uma leitura social dos textos, não poderemos
contribuir para uma nítida interpretação dos textos. Isso equivale a dizer que os
caps.7-8 certamente irão interpretar o que ainda não coube ao cap.6 explicitar.

116 Veja Milton Schwanrcs, "A cidade da justiça - Estudo exegético de Isaías 1,21-28", em Estudos Teológi-
cos, São Leopoldo, Faculdade de Teologia da IECLB, vo1.22, 1982, p.5-48.

82
2 .. Da corte ao cortiço
Isaías 7..8

Isaías 7 e 8 são a continuação formal e intencional de Isaías 6. Já for-


malmente os dois capítulos estão relacionados: 6,1 e 7,1-2 começam por
determinar a situação histórica. Em 7,1-2, ela é descrita bem mais extensa-
mente que em 6, 1. Isso está relacionado à função que 7,1-2 têm nos caps.? e 8.
Nos caps.? e 8, a única data está em 7,1-2. Isso sugere que se entenda
7,1-2 como introdução geral para os caps.7 e 8. Cada unidade menor - designo-
as de cenas - tem sua introdução própria. Todas elas falam do agir do Senhor:
"e disse o Senhor a Isaías" 7,3
"e continuou o Senhor a falar a Acaz, dizendo" 7,10
"e disse o Senhor a mim" 8,1 1
"e continuou o Senhor a falar a mim" 8,5 2•

Sem crer não se permanece


Isaías 7,1-2 +3-9+ 10-17( + 18..25)
Estas quatro cenas, iniciadas de maneira muito semelhante, são intro-
duzidas por 7,1-2.
O presente ensaio se ocupará da primeira cena, de 7,3 -9. Para poder
situá-la em sua linguagem e em sua situação iniciamos pelo estudo de 7,1-2,
que introduzem a 7,3-9.

A corte está em pânico!


7, 1-2 - Indicação da situação histórica
Os dois primeiros versículos do cap.7 introduzem, pois, aos caps.? e 8.
Entendo que estes dois capítulos se compõem de cenas proféticas: 7,3-9;

18,3 (segunda parte) inicia como 8,1. Contudo, é evidente que na segunda parte de 8,3 não inicia uma nova
unidade.
2 A partir de 8,6, não há mais nenhuma introdução comparável a 8,5. Será que 8,5 se refere a 8,5-23? Seria
8,5-18, de fato, uma só unidade? Aqui só podemos assinalar esse problema.

83
7,10-17; 8,1-4; 8,5-18 (e 9,1-6). Estas cenas formam um conjunto de memó-
rias proféticas. Em 7,1-2, está o começo, o contexto.

Tradução literal
O texto masorético de Isaías 7,1-2 pode ser traduzido da seguinte ma-
neira:
'Nos dias de Acaz, filho de [otão, filho de Uzias, rei de Judá,
subiu Razào/Rezim, rei de Arã, e Peca, filho de
Remalias, rei de Israel, a Jerusalém para a guerra
contra ela, mas não conseguiu vencê-la, 2e
.anunciaram à casa de Davi: ''Arã ocupou Efraim". Então tremeu seu
coração e o coração de seu clã como tremem árvores de mato na tem-
pestade.

Um texto ampliado
Esse breve 'texto' é uma introdução histórica; caracteriza o momento
histórico orientando o leitor e a leitora. Uma tal exposição evidentemente
não tem uma função própria; não substitui uma narração. Ela só prepara o
que segue; situa o leitor. É o pano de fundo, do qual se destacam aconteci-
mentos especiais. Tanto em sua forma (exposição histórica) quanto em sua
função (indicar para o que segue), Isaías 7,1-2 têm muitos paralelos nos evan-
gelhos (veja Mateus 5,1-2; 8,1, etc.)3.
7,1-2 é um texto da autoria de Isaías. Mas, podem todas as partes destes
dois versíçulos ser atribuídas ao profeta?
Enquanto o v.2 se restringe a um momento na preparação do confron-
to, o v.l é, em parte, um breve resumo de toda guerra: Arã e Efraimllsrael
atacaram Jerusalém, mas não conseguiram derrotá-la. Em si, partes do v.l
pressupõem que a guerra já esteja no fim. Os dois verbos do v.l estão no
perfeito, que no hebraico expressa ação concluída. Portanto, o v.l (ou parte
dele) foiescrito.depois dov.2. Isaías poderia ser também o autordo v.l (de
sua segunda parte). Mas alguns argumentos tornam muito improvável que
Isaías seja este autor da segunda parte do v.l: primeiro, pelo que se pode

3 ConfiraKarlLudwig Schmidr, Der Rahmen derGeschichte}esu ~ Literarkritische Untersuchungen zur iiltesten


}esusüberliefernng, Berlim, Trowitzsch & Sohn, 1919,322p.

84
deduzir de 8,16,18, Isaías escreveu antes do fim aa guerra. Mas, cónformea
segunda parte do v.1, a situação de guerra já passou..- Segundo, em 6,1~ à
exposição histórica se restringe, como em 7,2 e 7,1 (início), á6 absolutamen-
te necessário. - Terceiro, grande parte da segunda parte dov.1 encontra-se,
quase na mesma formulação, em 2Reis 16,5. A diferença éque7; lnãó tatu
expressamente do cerco à cidade. Mas, a omissão da frase "e cer'car'árilaAt.áz"
de 2Reis 16,5 em 7,1 se justifica: estaria em contradição com'7,3/onciese
pressupõe que a cidade ainda não estava cercada. ~'Parêce;medjdis,'mUitô
provável que, a partir de 2 Reis 16,5, algum autor posteriorrenhaatãplíado'à
exposição histórica do v. l , que em Isaí~s originalmente era mais breve.'

Ambiente histórico
o que torna necessário um enfoque histórico é o retrospecto, Quando
o momento atual está distante do.raomentodo acontecírnento, então no
relembrar e recontar se torna necessário situar o ouvinte e a leitora. A loca'
lização é uma necessidade da narrativa histórica. O mornentôatüal não pre-
cisa de uma localização expressá, poisá situação hístórica' estáírnptítit3.ho
próprio acontecimento. Nas diversas cenas dos éaps.7e·8, há várias referên-
cias ao momento histérico (confira-por exemplo,7,6}, maselasainda estão
inseridas no próprio relato do episódio. Quando Isaías reuniu osváríós episó-
dios daquela situação de guerra; tomou-se necessária a itttrddúção histórica;
A coleção de episódios é, pois, o lugar de 'surgimento dei,l ,2! Em outras
palavras, estes dois versículos iniciais provavelmente surgirám'recém naf~a~
ção escrita dos episódios. Isso de modo implícito também valepata-á'dstaçãb
de 6,1, se bem que aquela não só dá a data eh vocação. também j â assinél.'1a
para seus conteúdos (a morte).
A situação histórica de 7,1,2 e, com isso, do tod'o doscaps.? e 8 éá

guerra de Arã (= Síria) e Efraim (= Israel) contra Jet:usalém/JucfánosaIlos


de 734-733 a.C. É a assim chamada 'guerra siro-efraimita'". Essa guerra deve
ser vista num contexto maior. Este é o expansionismo dos assírios. Desde 745
a.C; Tíglate-Pileser era soberano na Assíria. Reinícioua expandiro domí-
nio assírio nas regiões da Síria e Palestina. Em 740 a.c., impôs-se ao norte da
Síria. Em 738 a.c., os reis de Arã e Israel (talvez até de Judá) jápagavam

4 Confira Martin Noth, Historia de Israel, Barcelona, Garriga, 1966, p.237 ·27 3 (429p.).

85
tributo aos assírios.' Em 734 a.C; eles já se encontravam na divisa com o
Egito, isto é, todos os pequenos estados da Síria e Palestina - entre os quais
estão Arã, Israel e Judá - encontravam-se sob a influência e o domínio dos
assírios. Isoladamente os pequenos estados da Síria e Palestina não poderiam
desafiar o poderio assírio. Tentam-se alianças anti-assírias. Isaías 7,1-2; 2Reis
15,37; 16,5-18 falam de uma tal aliança entre RazãolRezim de Arã e Peca de
Israel. Arã foi a força determinante nessa coalizão. O rei Acaz de Judá, apa-
rentemente, não quis participar. Por isso, Rezim e Peca, em 734/3 a.C; so-
bem contra Jerusalém (confira porém 2Reis 16,6), especificamente, para de-
por e substituir Acaz (Isaías 7,6!). Esse é o lugar histórico dos caps.? e 8.
Conforme 7,2 estamos nos preparativos do confronto: Arã e Israel se alia-
ram; em Jerusalém se treme de medo ao saber da notícia. O cerco de Jerusa-
lém e o confronto são iminentes."

Medo! - Notas sobre os conteúdos


A introdução situa o leitor na época do rei Acaz. Seu nome 'ahaz é
uma abreviação de yeho-'ahaz e significa "[avé agarrou"." Além de seu nome,
são mencionadas sua linhagem e sua função. É filho de [otão (yo-tam = "Javé
[é] íntegro") e neto de Uzias (confira acima 6,1). A menção de Uzias - neste
v.i - estabelece a ligação para 6,1; a catástrofe que Isaías vira no ano da morte
de Uzias começa sua caminhada sob o neto daquele rei. Parece ser proposital
que Isaías cite a genealogia de Acaz até este Uzias. A função de Acaz é a de
melek "rei" de Judá. Isaías não fixa o ano de reinado de Acaz, no v.1. Se consi-
derarmos que a guerra siro-efraímita foi em 734/3 a.C; e se seguirmos a crono-
logia de ]oachim Begrich e Alfred jepsen", então naquela época Acaz já era rei
durante 8 anos (veja, porém, 2Reis 15,37?). Acaz não era, pois, principiante
no trono, o que é importante para a compreensão do medo do v.2.

5 Veja os textos em Kurr Galling, Textbuch zurGeschichte Israels, Tubinga, J. C. B.Mohr, 2' edição, 1968, p.54-
55 (l09p).
6 Pelo que se sabe, Acaz não se salvou pelas próprias forças e armas, mas pelo tributo que pagou aos assírios
(2Reis 16,8). Em resposta a este tributo, o exército assírio veio em socorro de seus súditos em Judá;
liquidou a Síria e a partes de Israel (2Reis 16,9). E dez anos mais tarde arrasou todo o Israel/norte (2Reis
17,3-41). Mas estes acontecimentos já são posteriores a Isaías 7,1-2.
7 O rei Acaz, no Antigo Testamento, só aparece com este seu nome abreviado, mas numa lista de Tiglatc-
Pileser (confira Kurt Galling, Textbueh zur Geschichte Israels, p.59) é usada a forma completa do nome: Yauhazu.
8 Veja Joachim Begrich, Chronologie derKonige von Israel und}uda, 1929, e Alfrcd jcpscn, "Zur Chronologie
der Kônige von Israel und [uda - Eine Überprüfung", em Beihefte zur Zeitsciitüt fuer die alttestamentliche
Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruytcr, vo1.88, 1964, pA-48.

86
o
v.2 fala do medo. Esse medo é causado por uma notícia (ngd hofal
"ser comunicado", "ser noticiado") que chega ao palácio real. Ela diz que os
exércitos arameus haviam acampado em Efraim = Israel. N a formulação he-
braica, essa notícia é breve: nabah 'aram 'ai 'eprayim. Sua compreensão de-
pende do verbo. Vários pesquisadores querem traduzir nbh, em nossa passa-
gem, por "aliar-se". Nesse caso, querem deduzir a forma nabah do árabe naba
"apoiar-se'? ou do acádico nabu "ser reconciliado", "aliar-se"!", Também a
Septuaginta indica nessa direção: sumphoné "concordar com". Não é, porém,
necessário postular para nossa raiz nbh 'ai um significado especial. Compa-
rando 2SamuelI7,12; Salmo 125,3; 2Crônicas 1,14; 9,25 entre si, verifica-
se que nvb não só significa "repousar", mas também "ocupar". Como esse
verbo, em nossa passagem é acompanhado pela preposição 'ai "sobre", "con-
tra", toma-se ainda mais evidente que nvb é um repousar hostil, isto é, ocu-
par. Portanto, a notícia que chega ao palácio real em Jerusalém diz que os
arameus com seu exército ocuparam Efraim. Os arameus eram, na verdade, a
força impulsionadora na assim chamada guerra de Arã e Efraim contra Jeru-
salém. Isso provavelmente também justifica que 7,1.5 usem o singular quan-
do se referem a Arã e Efraim.
Isaías não chega a explicar no v.2 (confira, porém, 7,6!) porque a no-
tícia da ocupação de Israel por Arã põe em pânico a corte de Jerusalém. O
profeta parece não estar interessado em dar informações históricas detalha-
das. (Isso também deve ter motivado aquele acréscimo no v.1.) Seu interesse
é ressaltar o pânico reinante na corte. Ele o expressa com o verbo nv' que em
6,4 fora usado no contexto de um abalo císmico. Aqui a causa do "cambalear",
"tremer" (nv') é o medo, como em Êxodo 20,18 e Isaías 19,1. O sujeito do
"cambalear" é o "coração" da casa de Davi e do povo. Como em 6, 10, "cora-
ção" não se refere a um indivíduo, mas a uma organização. "Coração" (lebab)
simboliza aqui a emocionalidade e a racionalidade humanas. A Septuaginta
traduz psyche "vida", "alma". Para melhor focalizar o medo, Isaías usa uma
comparação da natureza (ke "como", 6,131). O "coração" "cambaleia" como
"cambaleiam" "árvores de mato" Ceie ydar) "na tempestade". Entendo a pala-
vra rual1 aqui como tempestade (confira também Isaías 32,2; IReis 19,11) e
não como brisa ou vento. Os grandes em Jerusalém estão prestes a cair como

9 Ludwig Kohlcr, Lexicon in veteris testamenti libras, Leidcn, E. J. Brill, 1958,p.606 (l l Jêp.).
10 Otto Eissfeldt, "Núab'sichvertragen'". cmKleine Schriften, Tubinga, J. B.C. Mohr, vol.J,1966, a partirda p.124.

87
grandes árvores. Isaías recorre, assim, a uma comparação violenta (tempesta-
del) para configurar o pânico no palácio. Corresponde ao texto o fato de só
estar falando medo palaciano. Pois, a notícia da ocupação de Israel por Arã foi
relevante para o bet david "a casa de Davi" e para o 'amo A "casa de Davi" é
constituída pela família e corte real em Jerusalém, pela dinastia, cuja tradição
remonta a Davi (2SamueI7,8-I7; IReis 16,26; 13,2). O Iam, que juntamente
com "a casa de Davi" se apavorou, aqui não deve ser entendido como povo em
geral, como população de Jerusalém e Judá. Iam tem, em nosso texto, um sen-
tido bem mais restrito. São aqueles que, mesmo sem estar na corte, na
casa = palácio davídico, pertencem à numerosa descendência de Davi, usufru-
indo, pois, dos benefícios do reinado. Iam é aqui o clã de Davi; assemelha-se a
"este povo" do cap.6. li Essa constatação leva a duas conseqüências:
Isaías inicia com a situação da corte de Jerusalém. É a ela que o profeta
dirige sua palavra. Conforme 7,1-2, Isaías se dirige aos governantes. Isaías
inicia como profeta na corte!
Conforme 6,9-10, Isaías deve anunciar e realizar a destruição junto ao
ha·'am ha-seh "este povo". Na primeira vez que o profeta menciona o Iam
não é a população em geral, mas o clã do rei que tem em mente!
O início do v.I e o v.2 estão interessados no pânico que surge no palá-
cio. O acréscimo na segunda parte do v.I (a respeito confira acima) está
interessado em acontecimentos e personagens de guerra. O início do v.I e o
v.2 criam suspense: medo! E agora? A segunda parte do v.I desfaz todo sus-
pense por antecipar o resultado da guerra.
Apesar dessas diferenças, o acréscimo também relaciona os aconteci-
mentos somente à capital Jerusalém, e não a Judá. Nisso, está de acordo com
o v.2, onde o alvo de Arã e Israel é a dinastia davídica.
Os personagens do conflito são rezin 12 e peqab.. Razom/Rezim era rei
arameu em Damasco. Peca, filho de um Remalias, sem ascendência real (Isaías
7,9), foi rei em Israel (norte) durante poucos anos (734-732 a.C,). Fora um

11 Quanto a 'am como designativo de parentesco, confira A. R. Hulst, "Pucblo", em Dú:cionario teológico manual
dei AntiguoTestamento, Madrid, Cristiandad, vol.2, 1985, p.373-415. Otto Kaiscr dcfine 'am como "camada
dos proprietários de terra que era influente e ligada à dinastia" (Der Prophet [esaia Kapitel 1-12, Gotinga,
Vandenhoeck & Ruprccht, 2' edição, 1963, p.70 [Das Alte Testament Deutsch, 17/1]).
12 A vocalização correta deste nome teria sido razon, como atesta a Septuaginra Paasson e, principalmente,
os textos assírios: rahianu (confira Kurt Galling, Textbuch zur Geschichte Israe/s, p.55.57). Os masorctas
devem ter desfigurada a vocalização já que razon, que significa "agrado", "benevolência", daria um
sentido muito positivo a este rei aramou.

88
capitão do exército. Matara seu antecessor, Pecaías, para fazer-se rei (2Reis
15,25-31).
Razom e Peca sobem ('lh "subir") para Jerusalém. A cidade fica no
alto; é necessário subir. Sua intenção é a de "guerra" (milhamah) contra jeru-
salém. Mas não conseguiram "vencer" (lhm nifal "lutar", "vencer"). 2Reis
16,5 ainda fala do cerco à cidade. Pelo que sabemos, igualmente de 2Reis
16,7-20, Razom e Peca tiveram que desistir do cerco, porque Acaz comprou
a ajuda de Tiglate-Pileser,

Alvos principais

Na introdução, Isaías, por um lado, conduz a atenção de leitora e lei-


tor para a corte davídica em Jerusalém e, por outro, nela focaliza o medo do
clã governante diante do perigo que representa a ocupação de Efraim=Israel
pelos arameus. Assim a introdução mostra a preocupação do profeta pela
corte, e cria suspense quanto à solução do pânico igualmente na corte.
Com essa introdução, Isaías deixa claro que suas palavras têm um mo-
mento histórico. A profecia tem hora. Mesmo ao ser anotada, tempos depois
de falada, sua hora e seu momento permanecem sua característica. No mo-
mento novo, em que Isaías escreve, é preservado o momento original, em
que o profeta falou. Também a profecia escrita quer ser profecia falada! (A
respeito, veja também Jeremias 36.) É impossível degradar a profecia à letra!
Não é, porém, suficiente dizer que a palavra profética teve e tem mo-
mento. Pois seu momento é expressamente político. A profecia está direta-
mente relacionada aos governantes. De que qualidade é essa palavra política
do profeta aprenderemos a ver no decorrer de um estudo das diversas cenas
dos caps.? e 8. A seguir enfocarei a primeira das cenas, em Isaías 7,3-9.

Os inimigos estão destruídos


7,3-9 - Crer e pennanecer
Arameus e efraimitas coligados estavam por assaltar a cidade de Jerusa-
lém. O alvo da guerra era a deposição do rei Acaz e sua substituição por outro
que fosse favorável a incluir os exércitos judaítas em uma aliança anti-assíria.
Neste contexto, Isaías interfere profeticamente:

89
Tradução literal
3Edisse Javé a Isaías:
"Sai ao encontro de Acaz, tu e Um-resto-volta, teu filho, para o fim do
canal do Lago Superior, na estrada do campo do tintureiro, 4e dize a
ele:
'Cuida e te acalma, não temas e teu coração não amoleça, por causa
desses dois restos de achas fumegantes, por causa do ardor da raiva de
Razão/Rezim, de Arã e do filho de Remalias. SSe Arã decidiu maldade
contra ti, Efraim e o filho de Remalias, dizendo: "6'Subamos contra
Judá, amedrontêmo-la e conquistêrno-la para nós, façamos reinar em
seu meio o filho de Tabeal', então 7assim disse o Senhor [avé:
'Não durará!
Não acontecerá! -
"que a cabeça (= capital) de Arã (seja) Damasco
e a cabeça de Damasco (seja) Rezim.
E, em ainda 65 anos, Efraim será apavorado de sorte que
deixará de ser povo.
9E a cabeça de Efraim (é) Samaria
e a cabeça da Samaria o filho de Remalias.
Se não crerdes, eis que não permanecereis!'"

Continuidade

É mais que evidente que Isaías 7,3-9 se encontra na continuidade de


7,1-2 e, também, de 6,1-13. Essa afirmação pode ser assim categórica por uma
série de observações:
7,3 continua aquela série de imperfeitos consecutivos, que vem desde
o cap.6 (v.1.4.6, etc., 7,1.2). Mais precisamente, o início de 7,3 está na con-
tinuidade de 6,8, onde a visão ("ver") se transforma em audição ("ouvir").
Desde 6,8 alternam-se o "dizer" do Senhor e o "dizer" ('mr) do visionário, do
profeta. É o que também se observa em 7,3 e 7,4: em 7,3 o Senhor "diz", em
7,4 o profeta é mandado a "dizer" (confira 6,9!).
Já que 7,3 inicia com o 'imperfeito consecutivo' ("e disse"), também
esta nossa unidade de 7,3 -9 é relato, é 'discurso indireto', como 6, 1-13 e 7,1-2.
Todo o episódio de 7,3-9 é relato daquilo que o Senhor disse a Isaías. É, pois,
uma citação. Nela observa-se prosa e poesia. Nos primeiros versículos, predomi-
na a prosa. Mas, no final (v. 7-9), a fala divina toma-se nitidamente poética. É

90
fácil perceber que há repetição de frases e métrica. Nos v.Sa e v.9a, observa-se
uma aliteraçâo, a segunda parte da repetição retoma duas palavras da primeira
parte. O auge dessa aliteração está na segunda parte do v.9 (= 9b):
'ím lo' ta'amínu
kí lo' te'amenu
"Se não crerdes,
eis que não permanecereis!"
Em 7,3~9, observa-se, pois, um crescendo na fala do Senhor: prosa (v.3~
6), poesia com métrica (v.7-9a) ,e, no ápice (v.9b) poesia artística. Essa des-
coberta mostra que o v.9b é o auge! Também em 6, 1~ 13 observávamos que
nos últimos versículos havia mais poesia que nos primeiros.
Em 7,3~9, encontra-se uma figura singular. Os dois reis, Rezim/Razão e
Peca, a respeito dos quais o rei Acaz deve ser admoestado a não ter medo, são
designados de xene sanbot ha~'udím ha-'axenim. Nesta expressão, sanbot, plural de
sanab, significa "cauda", "rabo" de animais (veja Isaías 9,13~14; 19,15; Êxodo
4,4; Juízes 15,4, etc.). 'udím, plural de 'ud, é a "acha" de lenha. Essa palavra ainda
é usada em Amós 4,11 e Zacarias 3,2, e se refere aí ao pedaço de lenha no fogo.
Seu significado em Isaías 7,4 é um pouco diferente; aí as achas já foram consumi-
das pelo fogo, mas, carbonizando, sua "cauda"/"rabo", isto é, seu resto, ainda
fumega. Essafigura em seu contexto ironiza a raiva e o furar dos dois reis inimigos
como sendo fogo, perigo, que já passou. Vão se extinguindo. Essa figura tem algo
a ver com as figuras já anteriormente usadas por Isaías. Poisesta já é a terceira vez
que a árvore ou parte dela se torna figura: 6,13; 7,2 e 7,4. E nenhuma delas é uma
figura corriqueira. Cada uma delas é singular.
Mais outro aspecto liga a cena de 7 ,3~9 a 6, 1~ 13 e 7, 1~2: Isaías localiza
o que relata de maneira precisa e situa seu leitor e sua leitora em um momen-
to histórico definido. Os acontecimentos têm data (6,1; 7,1). A situação é
precisa e exata (7,2, veja 6,5). O local é definido (templo em 6,1.4; casa de
Davi = palácio em 7,2). No episódio de 7,3~9, não é citada uma data, já que
a introdução histórica (7,1) é válida para 7,3 ~9. Ma o local é cuidadosamen-
te definido. Não deixa de ser impressionante com que esmero Isaías indica o
local de seu encontro com o rei: no "fim do canal do Lago Superior no cami-
nho do campo do lavadeira" (confira ainda Isaías 32,2; 2Reis IS, 17). Nós,
hoje, não sabemos mais onde fica o fim (qe~eh) desse canal/aqueduto (te'alah)
que sai do Lago Superior. Nem mesmo sabemos onde se situa o Lago Superior
(ha-berekah ha~ 'elyonah). Uns procuram-no a norte, outros a sul e, ainda ou-

91
tros, a oeste de Jerusalém. 13 E, conseqüentemente, não sabemos onde ficava
aquela "estrada aterrada" (mesilah 14) junto ao campo (sadeh) ocupado pelos
lavadeiros e pisoeiros para lavar e tornar macios panos recém tecidos ("cal,
car", "apisoar"), Mas o que nós, hoje, não sabemos, era conhecido de leitoras
e leitores; através dessa descrição pormenorizada, podiam imagi~a.r exata-
mente o local de encontro entre Isaías e Acaz. '\
Entendo que o fato de a palavra de Isaías - aliás do Senhor - só se
dirigir a Acaz também aponta para a continuidade existente entre 6,1,13 e
7,1,2 + 7,3,9. Outros, porém, quiseram ver uma tensão entre o endereço da
mensagem profética em 6,1,13 e 7,1,2, por um, e 7,3,9, por outro lado" En-
tendem que o encontro entre Isaías e Acaz tivesse sido em secreto (como o
de Jeremias com o rei Zedequias em Jeremias 37,17,21) ou que Isaías nessa
situação altamente política, de repente, só se tivesse interessado pela pessoa
e pelo indivíduo Acaz." No entanto, o local de encontro (no Lago Superi-
or) é um local público, não escondido. Além disso, observa, se que Isaías vai
definindo sempre melhor o endereço de sua profecia: em 6,9,10 seu endere-
ço é, de maneira ampla, "este povo"; em 7,2 o círculo diminui, são os da
dinastia; e, agora, em 7,3 seu endereço é o representante, o 'chefe', dessa
dinastia. Observa, se, pois, não uma individualização da mensagem, mas uma
concentração. Acaz não é só indivíduo particular, é simultaneamente chefe
no palácio e rei "deste povo".
Além desses aspectos que evidenciam a ligação existente entre nossa
cena e 6,1,13; 7,1,2, é necessário destacar também que 7,3-9 tem suas parti,
cularidades:
7,3,9 não é relato de Isaías (como 6,1,13), mas relato na terceira pes-
soa sobre Isaías. Muitas vezes se tentou transformar, no início do v.3, a tercei,
ra pessoa em primeira pessoa, querendo ler 'elay "para mim" ao invés de 'el
yexa'yahu "para Isaías", confira 8,1 16, ou decretando 'el yexa'yahu como acrés-
cimo posterior". Tais operações podem ser simpáticas, mas têm contra si a

13 Veja Hans Wildberger,]esaja 1-12, Ncukircheu, Neukirchener Verlag, 1965-1972, p.276-277 (496p.)
(Biblischcr Kommentar Altes Testamcnt, 1011).
14 mesilah não é a estrada natural, mas a estrada especialmente construída com aterro.
15 É o que dá a entender Odil Hannes Stcck, "Rettung und Verstockung ~ Exegetische Bemerkungen zu
Jesaja 7,3.9", em Evangelische Theologie, Munique, Christian Kaiscr Verlag,vol.33, 1973, a partir da p.83.
16 Confira Biblia Hebraica Kittel e Biblia Hebraica Stuttgartensia.
17 Hans Walter Wolff, Frieden ohne Ende - ]esaja 7,1-17 und 9,1-6 ausgelegt, Ncukirchen, Ncukirchcncr
Verlag, 1962, p.13 (93 p.) [Biblische Studicn, 35].

92
tradição do texto masorético (também de Qumrã) e da Septuaginta. Por isso
é necessário convencer-se de que 7,3-9 é um relato sobre Isaías. Isso, a meu
ver, não rompe a continuidade existente entre 6,1-13 e 7,1-2 e 7,3-9. Deve
ser considerado como sendo uma particularidade de nossa cena e da cena de
7,10-17. Estas duas cenas têm um acento peculiar. Seu acento não está no
confronto entre Isaías e Acaz, mas entre [avé e Acaz. Nesse confronto tudo
se decide (v.9b!). Portanto, além de 7,3-9 também 7,10-17 é um relato na
terceira pessoa. Eles devem ter sido escritos por pessoas que conviviam com
o profeta. A partir de 8,16, podemos chamá-los de discípulos. O relato de
7,3-9 e 7,10-17 na terceira pessoa mostra que Isaías não andava só.
E esta é, precisamente, a outra particularidade de nossa cena. Em 6, l-
U, Isaías estivera só. Em 7,3-9, está acompanhado. Por ordem do Senhor
leva seu "filho" (ben) de nome xe'ar yaxub "Um-resto-volta". Esse filho é
portador de mensagem e é nessa função que Isaías deve levá-lo. Mesmo que
esse filho corporifique mensagem, com ele está rompida a solidão do profeta.
Contudo, esse filho não só é companheiro de Isaías, é igualmente sua mensa-
gem. Por isso temos que voltar a falar desse filho. Mas, antes disso, se torna
necessário descrever a situação histórica de nossa primeira cena.

Situação histórica
7,3-9 esboça de maneira clara a situação do momento. A capital Jeru-
salém está sendo preparada para a defesa. É o que deduzo da descrição do
local, em que Isaías e Acaz se encontram ("no fim do canal do Lago Superi-
or" v.3). Ainda que ultimamente se tenha afirmado que o local de encontro
seria um esconderijo, 18 a interpretação tradicional parece-me a mais prová-
vel: quando Isaías vai ao encontro de Acaz, este estava inspecionando o
abastecimento de água de Jerusalém devido ao cerco iminente dos damasce-
nos/efraimitas. Naquela situação de susto e medo, o rei estava cuidando da
segurança de sua capital.
Mas a situação do momento, da qual a inspeção do canal de água (v.3)
só é uma conseqüência, está detalhada nos v.S-6. Eles são a fundamentação
para as ameaças anunciadas nos v.7-9a. 19 Portanto, a situação histórica apa-

18 Veja Odil Hanncs Steck, "Rettung und Verstockung", a partir da p.83.


19 Que os vj·6 não são fundamentação para o vA, más para o dito profético de v.7·9a está fundamentado em
Hans Walter Wolff, Frieden ohneEnde, p.20.21.

93
rece, de maneira mais detalhada, na citação da culpa! Inicialmente o autor
resume a situação: v.5a20 "Arã decidiu maldade contra ti". Esse resumo não
descreve, mas conceitua e avalia a situação. E o faz na terminologia típica de
Isaías. O verbo y'~ "planejar", "decidir" e o correspondente substantivo são
freqüentes em nosso profeta (Is 5,19; 8,10; 28,29; 29,15; 30,1, etc."): fazer
planos não compete aos humanos, só ao Senhor. E com o termo ra'ah "mal-
dade", Isaías resume a culpa humana também em outros textos (Isaías 1,16;
3,9; 5,20; 13,11; 31,2; 32,7, confira ainda 7,15-16). Uma conceituação e
avaliação similar a do v.5a encontra-se na segunda parte do vA (= vAb).
Ali, Isaías caracteriza os inimigos de Jerusalém com hori 'ap. 'p é o "nariz", a
"respiração" e, a partir daí, a "raiva". hori é "fogo"l"ardor". Os inimigos estão
com fogo no nariz!
O plano destes inimigos cheios de raiva está no v.6. Para ressaltar a
maldade de seu plano, Isaías cita as palavras dos próprios siros/damascenos; a
citação das palavras do culpado sempre serve para ressaltar sua malevolência
(veja Amós 4,1 !). O alvo de seu plano é a substituição de Acaz! Mesmo que
no v.6 a investida dos arameus se dirija a todo Judá (7,1 falara só de Jerusa-
lém), é bem claro que os arameus não querem destruir Judá ou Jerusalém.
Querem "meter medo" (qv~ hifiFl) na terra de Judá e 'conquistá-la' (bq' hifil
"conquístar'F'). Os damascenos já haviam anexado Efraim (7,2l) e, agora,
querem subjugar Judá para que, à força, aumente o círculo de opositores ao
assírio Tiglate-Pileser. Sua vitória estará consumada, quando em lugar do
davidida Acaz constituírem como rei (meIek) um ben tabe'al "filho de Tabeal.
Além do nome de seu pai (Tabeal) , nada mais sabemos desse contra-rei que
os arameus quiseram impor em Jerusalém. Na ironia fulminante de Isaías, ele
nem mesmo nome tem. E para os que vocalizaram o texto hebraico, seu

20 o texto hebraico do v.5h está um tanto deslocado. Ele anota que além de Arã também "Efraim e o filho
de Rcmalias" decidiram maldade. Por questão de fluência de linguagem 'eprayim vu-ben-remalyahu/
"Efraim e o filho de Rcmalias" deveria anteceder a ra'ah/"maldade", como aliás é a formulação da
Scptuaginta. Seria "Efraim e o filho de Rcrnalias" um acréscimo posterior influenciado pelo final do vA?
Em todo caso, também o v.5 confirma a observação de que na guerra contra Jerusalém o mando estava com
os ararneus (= siros) e não com os israelitas (confira 7,2).
21 [ohanncs Fichtncr, "[ahwcs Plan in der Botschaft dcs [csaja", em GattesWeisheit - GesammelteStudienzum
Alten Testament -Arbeiten zur Thealagíe, Stuttgart, Calwcr Verlag, vol, 213 , 1965, p.2 7-43.
22 Com frcqüência, traduz-se esse verbo por "separar" (veja Ludwig Kõhler, Lexiconin verens testamenti libras,
p.834). Mas, parece-me lógico que esse verbo signifique no v.6 o mesmo que no v.16 onde, induhitavcl-
mente, é "temer".
23 Esse verbo se usa quando, na conquista de uma cidade, se descreve que os muros são derrubados (2Reis
25,4; Ezequicl26,l0).

94
nome significa "Não-é-bom'?'. Supõem-se que esse "filho de Tabeal" tenha
sido algum israelita a serviço dos arameus ou, talvez até, um arameu. Os
arameus, em todo caso, queriam por fim aos davididas, uma dinastia que
então já somava 250 anos! Ao intencionarem eliminar os davididas, os ara-
meus se propunham eliminar uma das tradições básicas de Jerusalém, a de
que o Senhor constituíra a dinastia davídica para a eternidade em Jerusalém
(2Samuel 7). Se, pois, Isaías promete a destruição dos inimigos de Acaz, ele
se apóia em uma das tradições fundamentais de Jerusalém: o reinado dos
descendentes de Davi. E, Isaías se coloca, ao menos inicialmente (veja con-
tudo 7,17!), ao lado dessa tradição e, de certa forma, ao lado dos davididas.
Mas, com essas observações já estou iniciando a descrição da mensagem de
Isaías em 7,3-9:

A posição profética e política


Já observamos que o ápice da palavra de Isaías, aliás do Senhor, a Acaz
está no v.9b:
"se não crerdes, então não permanecereis".
No entanto, por um lado não condiziria ao contexto, se só concen-
trássemos nossa atenção nessa frase. Por outro lado, lendo com atenção o
episódio de 7,3-9, nota-se que o Senhor dá mais que um recado ao rei.
A primeira palavra nem é verbalizada. É simbolizada: Isaías é acompa-
nhado por seu filho xe'ar yaxub. Esse nome contém uma mensagem. Como
nome ele é totalmente incomum, no hebraico. Sabemos de mais um filho de
Isaías com um tal nome incomum: "Rápido-presa pressa-saque" (veja em 8,1-
2). Outro nome simbólico encontra-se em 7,14: Imanuel. Oséias também dará
a seus filhos e à sua filha nomes provocantes: jezreel, Desfavorecida, Não-
meu-povo (Oséias 1). Também estes nomes simbolizam mensagem profética.
Antes de tentarmos descrever essa mensagem simbolizada por xe'ar
yaxub diante de Acaz, é necessário estar ciente de que esse filho já há mais
tempo, naturalmente em seu nascimento, recebera esse nome. Quando ele
"saiu" (y,i' kal "sair" 1) com seu pai Isaías, deve ter tido, no mínimo, dois anos.
Conseqüentemente, o nome da criança prova que 7,3-9 não é a primeira

24 A vocalização de !abe'al é uma deformação. Em si a vocalização deveria ser !abe'el, como comprovam Esdras
4,7 e a Septuaginta, significando então "Deus [é] bom".

95
profecia de Isaías, após o cap.6. Isso reforça minha observação anterior de
que sua atuação profética é anterior a 6,1,13. O nome da criança caracteriza
o conteúdo da pregação daquela época. Portanto, quando o profeta aparece
diante de Acaz acompanhado de seu filho, assinala que sua palavra tem cons-
tância. A palavra que vai falar naquela situação nova da guerra siro-efraimita
de 734,733 a.C, coaduna com a palavra que dissera anos atrás. O filho sim,
boliza a tradição de sua profecia. Mas, afinal, qual é o conteúdo da mensa-
gem simbolizada por xe'ar yaxub?
xe'aryaxub é uma frase, em que a primeira palavra é o sujeito e a segun-
da o predicado (confira Isaías 10,21-22). Nessa frase, o sujeito está destaca,
do, por isso a ordem normal da frase hebraica (predicado - sujeito) é inverti,
da. A tradução é: "Um-resto-volta". Nessa frase o verbo xvb por certo não se
refere só ao 'retornar' da guerra, ao sobrar na destruição, mas também ao
"retornar", "converter,se" ao Senhor.
Não sabemos da situação específica, em que Isaías deu esse nome a seu
filho. Por isso, para interpretá-lo dependemos exclusivamente de sua men-
ção em 7,3 (em 7,3,9). Na interpretação, a pergunta básica é se ele somente
é negativo (resto com símbolo de aniquilamento, confira Amós 5,3) ou tam-
bém positivo (resto como símbolo de reinício). O atual contexto de 7,3 su-
gere uma interpretação positiva do nome. Ora, no contexto anterior, isto é,
em 6,10 e 6,13, é expressamente negado que "Um-resto-volta". 6,10 afirma
que não mais haverá xvb "retornar". 6,13 não usa o vocábulo xe'ar "resto" ,
mas, ao afirmar que até mesmo a décima parte que eventualmente perrnane-
cer na terra será aniquilada, nega implicitamente a permanência de qualquer
resto. Quando Isaías recebeu sua tarefa especial no ano da morte de Uzias
(6,1,13), negou a preservação e conversão de algum resto do povo. Mas
antes desse seu comissionamento especial do cap.6, na época em que nasce,
ra aquele filho, Isaías ainda tinha esperança de que "Um-resto-volta".
Os textos dessa época confirmam essa observação. As primeiras profe-
cias de Isaías, aquelas que são anteriores ao cap.6, devem ser procuradas nos
caps.l e 2-4. Em algumas passagens desses capítulos, o profeta pressupõe a
preservação de alguns. Conforme 1,7-9, resta Sião/Jerusalém (veja 2,2-5).
Em 1,21,28, o profeta não fala do aniquilamento total, mas só de uma puri-
ficação. Conforme 1,18,20 ainda há chance. Portanto, em suas primeiras
profecias, Isaías contava com a possibilidade de um resto.
Para contextualizar este nome ainda melhor, é importante observar

96
que, nos caps. 1+2-4, Isaías só se ocupa com a situação interna em Judá/
Jerusalém. A maldade é denunciada e seu castigo anunciado. Não se fala,
porém, de nações estrangeiras, como a partir de Isaías 7. Conseqüentemente
o resto, que há de voltar, é um resto de Judá/Jerusalém.
A criança "Um-resto-volta" ao lado de Isaías lembra Acaz do anúncio
profético de destruição e mostra que a hora é de extremo perigo; o anúncio
está se realizando. Mas "Um-resto-volta" também lembra a Acaz de que ain-
da há chance. A questão é: como Acaz assumirá a mensagem que representa
o filho? Ser-lhe-á graça ou desgraça? Tornar-se-á ele com sua casa o resto que
volta a [avé ou o resto que se perde?
Essas perguntas já apontam para a admoestação final do v.9b ("se não
crerdes, então não permanecereis"). Mas antes de olhar para esta palavra
decisiva do profeta, devemos olhar para a segunda mensagem de Isaías a
Acaz, no vA. Este vA é uma palavra com característica própria: uma admo-
estação (quatro imperativos!) com fundamentação (figura com achas fume-
gantes). Duas ordens e duas proibições perfazem a admoestação. As duas
proibições parecem ser as mais claras, ainda mais que para elas existem para-
lelos na assim chamada 'guerra santa' (Êxodo 14,13; Deuteronômio 20,3;
Josué 8,1, etc."). A Acaz é proibido "temer" (yr'). A seu "coração" (raciona-
lidade/decisão) não é permitido "desanimar" (rkk, veja Septuaginta: asthenéo
"ser fraco"). Compreende-se que medo e desânimo podem ser negados, já
que o inimigo não passa de "achas fumegantes". Mas como compreender as
duas exigências de que Acaz deve "cuidar-se" (xmr) e "aquietar-se" (xqt)?
Inicialmente se deve constatar que tais exigências também têm paralelos nos
'discursos da guerra santa': o exército de Israel fica passivo enquanto o Se-
nhor vence os inimigos (Êxodo 14,13-14; Deuteronômio 20,3-4). Portanto,
as exigências de Isaías remontam à tradição da 'guerra santa'. Depois se deve
constatar que a exigência de passividade também aparece em outros textos
de Isaías (8,6; 18,4; 28,12; 30,15; 32,17). Afinal, o Sião é a morada do Se-
nhor (8,18!), para que as pessoas permaneçam na agitação? Na exigência à
passividade certamente se articula a tradição de Sião (confira 10,27-34;
14,28-32; 17,12-14; 29,1-8, etc."). Como Isaías encontra Acaz preocupado

25 Confira Gerhard von Rad, Der Heilige Krieg im Alten Israel, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 5' edição,
1969 (especialmente a partir da p.56) (84p.); e Nelson Kirst, "Nas pegadas de um gênero - 'Não temas!'
na tradição da guerra santa", em Estudos Teológicos, São Leopoldo, Faculdade de Teologia da IECLB,
vo1.10, 1970, a partir da p,45.
26 Gcrhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, ASTE, 2ª edição, 2006, p.582-594 (901p.).

97
com a segurança de Jerusalém naquele Lago Superior (v.3), a exigência à
passividade, ao pacifismo, é contra a preocupação pela segurança. O pacifis-
mo de Isaías implica claramente em antimilitarismo (30,15~ 16!). É provável
que as exigências por passividade tenham mais outro acento crítico. Acon-
tece que sabemos de 2Reis 16,7 ~ 14 que Acaz, diante da ameaça de arameus
e efraimitas, pediu ajuda de Assur, a potência mundial da época. Ao exigir
cuidado ("cuida~te" de Assur?!) e passividade, Isaías talvez estivesse questio-
nando tal pedido de ajuda, dizendo: em Assur, no império, não há salvação.
Seu pacifismo é anti-imperialista. Na insistente admoestação do v.4, palpita,
pois, o momento político, em que Isaías se opõe aos cuidados pela segurança e
à confiança na potência da hora. Pelo que se vê Isaías é incomodamente atual.
A gente sente que com a palavra do v.4 ainda não está dito tudo.
Afinal, por que Arã e Efraim não passam de "achas fumegantes"? A resposta
está nos v.5~9a. Esses versículos são um 'dito de mensageiro' contra os inimi-
gos de Judá, sendo comparáveis com os oráculos contra os povos em Isaías
13~23. Neste dito de mensageiro, os v.7 ~9 são anúncio introduzido pela 'fór-
mula de mensageiro' koh 'amar'adonay yahveh "assim disse o Senhor [avé". A
denúncia (v.5~6) expõe a maldade de Arã e Efraim que decidiram amedron-
tar e conquistar Judá, e constituir nela um novo rei. O anúncio não nega
esse plano", mas nega a existência de seus executores ao anunciar a destrui-
ção das capitais (Damasco e Samaria) e dos reis inimigos (Rezim e o filho de
Remalias, isto é, Peca). Para a destruição de Efraim é dado inclusive um pra-
zo de 65 anos. (Este prazo é bem superior aos anos que de fato transcorreram
até o fim de Samaria. Estamos em 734 a.C. E Samaria foi aniquilada em 722
a.C.' Enfim, não sabemos ao certo como entender estes 65 anos.)
A destruição física dos inimigos, no entanto, não é o único conteúdo
do anúncio do Senhor através de Isaías. É o que se nota na maneira como o
profeta fala de Efraim e de seu rei. Seu rei não tem nome! É filho um Rema-
lias, uma pessoa desconhecida, não-davídida. Também o rei que os arameus
querem impor em Jerusalém não tem nome; é filho de um Tabeal, uma pes-

27 A interpretação do v.7h ("não durará e não acontecerá") é muito discutida. Para alguns, negam-se aí os
v.5-6, isto é, o plano dos aramcus não durará nem acontecerá. Nesse caso, os v.8-9a necessariamente
teriam que falar também de Judá. Por conseguinte, Hans Wildberger (Jesaja 1-12, p.272-273) pressupõe a
elipse de "e a cabeça de Judá é Jerusalém, e a cabeça de Jerusalém o descendente de Davi". Mas por que
isso não está no texto hebraico? Diante desse dilema, parece-me mais conveniente não ver no v.8 uma
a
fundamentação ("porque" Almeida) mas uma conseqüência Ç'que''). v.8 é uma conseqüência do v.7b.
Confira Odil Hanncs Stcck, "Rettung und Verstockung", p.78-83.

98
soa desconhecida. Além de não ter nome, o mandatário em Efraim (e em
Arã) não tem título. Não é chamado de rei. Só é "cabeça". Essa terminologia
por certo não provém do acaso. Dessa maneira Isaías nega tradições religio-
sas ao inimigo. Um rei, um melek, pode haver em Jerusalém na tradição de
Davi! Pelo que se observa, a promessa divina à dinastia davídica (2Samuel
7) é uma tradição viável em Isaías, ainda que não seja central.
Contudo, o oráculo contra os inimigos arameus e efraimitas, na verda-
de, tem a Acaz e sua corte como alvo último. Na segunda parte do v.9 (=
v.9b), encontramos a quarta palavra de Isaías a Acaz. Em sua alternativa de
graça ou desgraça, vida ou morte, culmina a cena de 7,3-9. A frase é poética
e magistral:
"se não crerdes,
eis que não permanecereis!"
Essa é a 'aplícação'" das outras três palavras de Isaías a Acaz ("Um-rest-
volta", "não temas", os inimigos "não durarão"). Essa aplicação não se refere só
a Acaz, mas à toda corte, porque o v.9b se dirige a um "vós" e, principalmente,
porque o verbo 'mn nífal "permanecer" reaparece em 2Samuel 7,16, onde se
refere à dinastia davídíca." A dinastia dos davididas não terá continuidade, "se
não crerdes". A gente logo se pergunta: qual é o conteúdo do crer exigido da
corte? Mas para essa pergunta não há uma resposta definitiva. Ora, 'mn "crer"
é usado aqui de maneira absoluta. Por isso, as explicitações de conteúdo neces-
sariamente são provisórias. A mim me parece que aqui o conteúdo da fé é,
antes de mais nada, confiar em que a promessa divina dada à dinastia davídica
(2Samuel 7,8-15) vale contra arameus e efraimitas. Uma antiga interpretação
do v.9b em 2Crônicas 20,20 fixa como conteúdo do "crer" o Senhor e a
palavra profética. Além disso, deve-se ver em "crer" também um sinônimo
de "aquietar-se" (vA, confira 28,16); crer é deixar o Senhor agir!
Resumindo, destaco dois pontos importantes nessa primeira cena dos
caps.j-S:
Primeiro: toda a cena está preocupada com o rei. Isaías inicia na corte.
Isso parece indicar que Isaías foi, em seu início, um profeta muito preocupa-
do com a corte. Lá pode estar sua origem.

28 Com essa palavra Gcrhard von Rad caracteriza nosso v.9b (DerHeilige Krieg im altenIsrael, p.57).
29 Ernst Würthwein, "[esaja 7,1.9 - Ein Beitrag zu dern Thema: Prophetie und Politik", em Wart und
Existenz - 5tudien zum Alten Testament, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 1970, a partir da p.127
(especialmente a partir da p.138!) (319 p).

99
Segundo: nessa cena observam-se várias palavras proféticas. Entre elas
não há contradição e nem tensão. Mas cada uma tem seu acento especial.
Todas elas culminam na aplicação, no ultimato (não crer- não permanecer)
do v.9b. Para lá tudo converge. Tudo converge para a decisão: o nome "Um-
resto-volta" pode ser graça ou desgraça; a admoestação ao pacifismo pode ser
esquecida por militares e diplomatas; o anúncio do fim dos inimigos pode ser
ignorado por causa do perigo iminente que representam estes mesmos adver-
sários. Tudo depende, pois, da reação ao ultimato. É dessa reação que trata a
segunda cena em 7,10-17.

"Ouvi, casa de Davi!"


7,10-17 - "Contra ti"

Isaías 6-9 é um conjunto de palavras proféticas em um contexto social


e histórico específico. Encontramo-nos, como vimos, em torno de 734-732
a.c. Israel e Judá se defrontavam com uma nova situação; ameaças profun-
das pairavam no ar. Pois, um novo e impetuoso império, o dos assírios, anun-
ciava sua presença conquistadora na Síria e na Palestina, destroçando cida-
des e estados. Em Oséias 5-8 podemos ler a respeito dos mesmos episódios.
A presente abordagem exegética se dedicará à leitura de um trecho
literário específico, Isaías 7,10-17, uma narração sobre a profecia isaiana no
contexto das decisões políticas e militares daqueles momentos dramáticos da
história e da profecia de Israel.

Tradução literal
lOE continuou Javé a falar a Acaz, dizendo: ,,11 Pede para ti um sinal de
[avé, teu Deus. Pede da profundeza ou da altura lá em cima." l2E disse
Acaz: "Não pedirei e não porei à prova a [avé!" UEdisse: "Ouvi, casa
de Davi! Não vos basta cansardes homens (= soldados) que também
quereis fatigar a meu Deus? 14por isso o próprio Senhor vos dará um
sinal: Eis! A jovem mulher está grávida e dará à luz um filho. E chama-
rá seu nome Imanuel (= Conosco está Deus). 15Coalhada e mel come-
rá para que saiba." desprezar o mal" e escolher o bem". 16Eis que, an-

30 Literal "para seu saber".


31 Literal "em o mal". Veja também v.16.
32 Literal "cm o bem". Veja também v.16.

100
tes" que o menino saiba desprezar o mal e escolher o bem será aban-
donada a terra cultivável, diante de cujos dois reis tu tens medo. 17Javé
fará vir contra ti, e contra teu clã e contra a casa de teu pai dias como
não vieram desde o dia em que Efraim se separou de Judá: o rei da
Assíria. "34

Dando continuidade

Estes versículos que acabamos de traduzir literalmente dão continui-


dade ao que precede. Encontram-se na seqüência de 6,1-13, de 7,1-2 e de
7,3-9. O título, também para nosso relato, está em 7,1-2. Tal título tanto
introduz 7,3-9 quanto nossa unidade, 7,10-17. Estas duas unidades - 7,3-9 e
7,10-17 - são qual duas cenas paralelas sob o título de 7,1-2. V árias observa-
ções o confirmam:
Os 'imperfeitos consecutivos' o comprovam: "e continuou" (v. 10) , "e
disse" (v. 12 e 13). Nesse relato está enquadrado um diálogo (uma 'disputa-
çãO'35) entre Acaz e Isaías. Ele culmina na palavra profética dos v.13-17.
Em 7,14, retorna a figura do filho, em cujo nome está simbolizada a
mensagem profética. Em 7,3, o filho de Isaías "Um-resto-volta" aparecera só
como acompanhante do profeta. Em 7,14, o filho a nascer da "jovem mu-
lher" é central no episódio; em seu nome está a mensagem.
Os personagens e seus dilemas continuam os mesmos nesta segunda
cena, quer dizer em 7,10-17. A luta do visionário Isaías se dá, em 7,10-17
como em 7,3-9, em torno de Acaz e da casa real. O dilema de Acaz continua
sendo sua posição diante de Razon e Peca, que em 7,16 são chamados de
"dois reis que te dão medo".
Deve-se apontar também para o vocabulário que deixa entrever liga-
ções com o contexto literário anterior. "Casa de Davi" (v. 13) e "casa de teu
2 "A terra" que "
pai." ( = O aVI,. v.17) apontam para 7,. , ab an d onada"
sera a re-
lembra 6,11.12. O verbo "fazer medo" de 7,6 reaparece em 7,16. O reino do
norte continua sendo chamado de Efraim (7,17) e não de Israel.

33 Literal "em antes".


34 Confira em especial José Severino Croatto, "EI 'Emmanuel' de Isaías 7,14 como signo de juicio - Análisis
de Isaías 7,1-25", em Revista Bíblica, Buenos Aires, Sociedad Argentina de Profesores de Sagrada Escri-
tura, n.29·30, vo1.50,p.135.142. Veja também José Severino Croatto, Isaías val.i: caps.i-39- O profeta da
justiça e dafidelidade, Petrópolis, São Paulo, Editora Vozes, 1989, 247p. (Comentário Bíblico).
35 Assim Hans Walter Wolf[, Frieden ahne Ende, p.26.

101
Contudo, a ligação mais clara dessa segunda cena para com o texto
anterior é estabelecida pela primeira frase de nosso episódio. Ao ser introdu-
zida por "acrescentar'V''continuar", necessariamente pressupõe o episódio
anterior. Lá, em 7,3-9, o Senhor "disse", aqui, em 7,10-17, o Senhor conti-
nua a falar. As duas cenas são fala do Senhor e não do profeta. E, no entanto,
observando 7,10-17, com atenção, nota-se uma interessante diferença para
7,3-9. Essa nem reside tanto no fato de que 7,3-9 é palavra do Senhor a
Isaías enquanto que em 7,10 o Senhor fala diretamente a Acaz. A diferença
é que 7,11-17 só podem ser entendidos como fala do profeta, pois neles o
Senhor sempre está na terceira pessoa. Portanto, 7,11-17 se apresentam como
fala profética, mas 7,10 os entende como fala divina. Daí concluo que o v.1O
é um tipo de costura, através da qual um relato de uma fala profética passa a
ser continuação da fala divina. Essa diferença que se constata entre v.10 e
v.11-17 é mais uma mostra de que o relato de Isaías 6-9 não surgiu de uma só
vez e de que não foi escrito por uma só mão.
Nesse sentido, é necessário que também se aponte para uma particula-
ridade desse episódio de 7,10-17:
Essa segunda cena não contém poesia. 7,10-17 é em seu todo um tex-
to de prosa. Isso talvez tenha a ver com o fato de que em nossa cena se
desenrola um diálogo.
Porém, a diferença maior de 7,10-17 está em sua mensagem. Nela há
algo fundamentalmente novo que não se encontra em 7,3-9. Logo a seguir
tentarei caracterizar a mensagem de nosso episódio. Antes disto procuro
enfocar sua situação.

Situação
Urgência é o que marca a situação histórica dessa cena. De resto, o
contexto que transparecia em 7,3-9 continua em vigor. Arameus e efraimitas
ainda ameaçam Jerusalém. Acaz e os seus continuam a "ter medo". O medo
tornou-se-lhes até mesmo uma constante, pois no v.l.ó o verbo "ter medo"
está no particípio. E o particípio indica, no hebraico, uma situação constan-
te." Medo passou a morar no palácio!

36 [ohauncs Hollcnbcrg e Karl Buddc, Gramáticaelementar da língua hebraica, São Leopoldo, Sinodal, 1972, §
45; e Oskar Grcther, Gramática hebraica, São Leopoldo, Sinodal, 1968, § 84d.

102
É possível que nossa segunda cena transcorra alguns dias depois de
7,3~9. Em todo o caso, o local de encontro entre Isaías e Acaz não é mais o
Lago Superior (7,3), como em 7,3~9. 7, 1O~ 17 deve ser uma cena no palácio,
pois Isaías se dirige à "casa de Davi" (v. 13). Além disso, aquela "jovem mu-
lher" parece estar presente à 'disputaçâo' entre rei e profeta. Pois ela é men-
cionada com artigo. E o artigo, no hebraico, além de ter também função
demonstrativa", indica que a mencionada mulher é conhecida e localizá-
vel" . Essa jovem mulher pode ter estado presente no encontro Acaz- Isaías
no palácio. 7, 10~ 17 provavelmente nos apresenta o profeta em pleno palá-
cio reaL Parece que, ao menos inicialmente, Isaías havia tido bom relaciona-
mento com a corte, o que lhe permitia estar em seu meio.
No entanto, a característica que mais transparece em 7,1O~17 é a ur-
gência da hora. Já o v.9b fazia culminar a cena anterior num ultimato (não
crer - não permanecer). Mas, agora, a situação tornou-se ainda mais pre-
mente. 7,3~9 falara da destruição de arameus e efraimitas, mas em 65 anos.
Em 7,16 os acontecimentos estão bem mais próximos e iminentes. Com o
nascimento de Imanuel o fim já estará acontecendo!
Portanto, a situação histórica que transparece no segundo episódio
não é muito diferente da cena anterior. Mas ela é bem mais urgente.

É o fim! - Anotações sobre a mensagem


Parte de nosso texto passou ao Novo Testamento (Mateus 1,23, confira
Lucas 1~2): Jesus nascido de uma virgem. Na leitura e na tentativa de entender
Isaías 7,1O~17, deve-se estar ciente dessa história de nosso trecho. Mas, no
contexto dessa minha interpretação, estou longe de poder avaliar toda essa
complicada história do v.14. Por ora tentemos verificar o que ocorre em Isaías.
A tradição que, através da citação em Mateus 1,23 trouxe o v.14 para
o centro das atenções, tornou muito discutida a segunda parte de nosso epi-
sódio. 39 Q peso da cena, sem dúvida, está nessa segunda parte; os v.13~ 17, na
verdade, são as palavras proféticas, a partir das quais se deve tentar descrever

37 Oskar Grether, Gramática hebraica, § 22a e [ohannes Hollenbcrg e Karl Budde (= Hollenberg-Budde),
Gramática elementar da língua hebraica, § 15a3.
38 Rudolf Mcycr, Gramática deihebreo bíblico, Terrassa/Espanha, Libros Clic, 1989 (Hebráische Grammatik,
Berlim, Walter de Gruyter, 3ª edição, 1972, vol.J, § 96.4a, confira § 32.6 [Sammlung Gõschcn, 5765]).
39 Éo que, por exemplo, se percebe em Balduíno Kipper, "O vaticínio de Emanuel (Isaías 7,14)", em Revista
deCulturaBíblica, São Paulo, Loyola, vol.2, 1958, p.224-232.

103
a mensagem na cena. Mas, estes versículos, a meu ver, não são os únicos
difíceis em 7,10-17. V10-12 são igualmente pouco claros.
Pois, como se há de entender a posição de Acaz: "não pedirei (isto é,
um sinal), pois (ou: para que; nemr" não tento a [avé" (v.l2)? A primeira
parte do versículo nega obediência à ordem de Isaías: o profeta manda "pe-
dir" um sinal, o rei se nega a "pedir". Para bem poder avaliar o significado
dessa negativa do rei, é necessário poder dizer qual é a função do "sinal".
Para essa inquietação, o texto não dá uma resposta expressa. No texto se lê,
isso sim, que Acaz livremente pode escolher qualquer sinal. Pois, se lhe é
ordenado "pede da profundeza ou da altura lá em cima'"" , então através dos
extremos (profundeza - altura) o todo da realidade é posto à disposição do
rei para pedir o sinal que quiser. E no texto também se lê que o sinal será um
acontecimento entre o rei e o Senhor (o sinal não está no poder do profeta),
pois o rei o pede para si de seu Deus. Se, nesse contexto, o Senhor é chama-
do de Deus de Acaz, de "teu Deus", então isto certamente ocorre devido ao
pacto de [avé com os davididas (2Samuel 7,14; Salmo 2,7; 132). Obtém-se
essas informações do v.lO. Mas não se obtém informação expressa sobre a
função do sinal que Acaz deve pedir. Conseqüentemente é necessário recor-
rer ao contexto. Nele, o sinal certamente se refere à alternativa do v.9b (não
crer - não permanecer). Naquele ultimato, naquela 'aplicação', culmina,
como vimos, o convite de retorno ao Senhor (v.3), a ordem ao pacifismo
(v,4), o anúncio do fim dos dois inimigos (v.5-9a). Diante da alternativa,
Acaz titubeia. O sinal, a meu ver, quer tirar o rei dessa vacilação. Tem a
função de ser 'sinal da fé'42, não só no sentido de assinalar e indicar para a fé,
mas muito mais no sentido de antecipar e realizar a fé. Pedindo o sinal, o rei
estaria assumindo a fé (isto é, derrota dos inimigos, passividade, retorno ao
Senhor). Negando-o, distancia-se da palavra profética que em 7,3-9 explici-

40 No hebraico, as duas partes da resposta de Acaz estão ligadas por ve- "e". Isso admite várias possibilidades
de definir a relação entre as duas frases do v.12. A segunda pode intensificar ("nem", Septuaginta),
fundamentar ("para que", Berhard Duhm, Das Buch ]esaja, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 5'
edição, 1968, p.74 [490p. J) e dar a causa ("pois") da primeira.
41 Essa parte do texto permanece enigmática: xe'alah deve ser alguma forma de x'l "pedir", provavelmente um
imperativo (confira Wilhelm Gcscnius, Hebráische Grammatik, Leipzig, Verlag von F. C. W Vogel, 28"
edição, 1968, § 29u [IO edição 1889!] [548p.J). A tradução grega e a Vulgata lêemxe'olah "reino dos
mortos". -ha'emeq é infinitivo absoluto de 'mq hifil "fazer fundo" e hagbeah é infinitivo absoluto de gbh hifil
"fazer alto". - Se xe'olah é imperativo, então os infinitivos absolutos são adjuntos adverbiais (confira
Oskar Grethcr, Gramáticahebraica, § 85c; e Ludwig Kõhler, Lexiconin veteris testamenti libras, p. 716).
42 Sobre 'ot "sinal" veja o artigo de F. J. Helfmeyer, "Sinal", em Diccionario teológico delAntiguo Testamento,
Madrid, Cristiandad, vol.I, 1973, coluna 156-162.

104
tamente é palavra divina. Acaz se fechou (confira 6,9-101) à palavra de Deus.
Em conseqüência, a causa apresentada pelo rei ("pois não quero tentar ao
Senhor") só aparentemente é uma afirmação verdadeira. Que o Senhor pode
"tentar" as pessoas, mas que as pessoas não podem tentar ao Senhor, é uma
afirmação constante (veja Gênesis 22,1; Êxodo 17,2.7; Números 14,22; Deu-
teronômio 6,16; Mateus 4,7). Acaz cita a tradição da fé para esquivar-se da
decisão da fé. Pela letra, o rei é bom teólogo e deveras piedoso, mas tudo isso
no espírito e na hora errados. Lutero comenta: "Assim são os hipócritas: onde
não é necessário, são religiosíssimos, onde porém deveriam ser humildes, são
soberbíssimos. No entanto, onde Deus manda arriscar, temos que arriscar.
Pois obedecer à palavra, não é tentar a Deus.?"
A palavra profética decisiva encontra-se na reação de Isaías à increduli-
dade do rei, no v.13-17. No último versículo (v.17), onde é anunciada a des-
truição da dinastia, está o alvo da profecia! O alvo não está no v.14 (no assun-
to Imanuel)! Isso pode ser afirmado de maneira tão categórica, porque o peso
da palavra profética evidentemente está em seu final (como em 7,3-9), porque
o assunto lançado no início da profecia do v.U é retomado em seu final: v.13
"casa de Davi" - v.17 "casa de teu pai" (= Davi)! Portanto, para o final, para o
v.17, e não para o v.14 (Imanuel) deve estar voltada a nossa atenção!
A profecia de 7,13 -1 7 segue o esquema de anúncio e denúncia. A de-
núncia está no v.13. Seu início é assinalado por uma introdução especial: o
'apelo à atenção' ("ouvi", veja 6,9) e o novo endereço ("casa de Davi"). A
profecia não se restringe ao indivíduo Acaz, como poderia parecer nos v.lO-
12. Em jogo está toda a dinastia (v.17). O conteúdo da denúncia que segue a
essa introdução é um tanto difícil de entender, pois em que consiste o "cansar"?
Quem são os "homens"? É difícil sabê-lo. Alguns" acham que, sob a palavra
"homens", o profeta pense em si mesmo. Mas a corte também pode estar'can-
sando os homens' com sua política de sujeição aos assírios ou com a exploração
dos fracos, da qual se lê em Isaías l-S. E aí "homens" tendem a ser os "solda-
dos". Se a acusação nesse particular fica em aberto, parece compreensível que
o profeta não fale mais de "teu Deus" (= Deus de Acaz), mas de "meu Deus"
(= Deus de Isaías). A negativa de Acaz foi a negação de seu Deus, do Deus de
sua dinastia. A rigor, a corte ficou sem Deus! E para os visionários, os assim
chamados 'profetas' de Israel, isso é o fim da corte. Sem o Senhor, não há rei.

43 Martin Luther,Werke - Kritische Gesammtausgabe, Weimar, 1902,val.2S,p.116.


44 Hans Wildberger,Jesaja 1-12,p.287-288.

105
E, de fato, a partir do v.14 tudo está sob o sinal da ameaça. Com a
partícula "por isso" é assinalada a ameaça. No v.14, bem como em muitos
outros ditos proféticos (Isaías 1,24; 5,13; 8,7; 30,13; Amós 3,11; Oséias 2,8;
Miquéias 3,12, etc.) , o termo "por isso" introduz o anúncio, a ameaça. Con-
seqüentemente o "sinal", que o próprio Senhor" "dará", é antecipação e re-
alização da desgraça. Nele se realiza em forma de "sinal" o que os v.16-17
anunciam em forma de palavras. Essa observação, a meu ver, é decisiva para
a avaliação do v.14: o sinal do filho não só não deve ser isolado de seu con-
texto maior (isto é, Isaías 6-9), como não pode ser interpretado só a partir do
nome da criança (isto é, a partir de Imanuel) e, além disso, tem que ser visto
com os olhos dos v.16-17. Em outras palavras: o sinal do filho não é interpre-
tável a partir de si (parece-me que a citação de Mateus 1,23 incorre nesse
perigo), mas a partir de sua própria interpretação que está nos v.16-17. Olhe-
mos, agora, para o sinal do Imanuel:
Parece-me pouco provável que o sinal seja apresentado como visão.
Tem-se tentado afirmar o caráter visionário do sinal a partir da introdução
("eis!"46). Mas este "eis", que também introduz outras 'promessas de filho'?
(Gênesis 16,11; Juízes 13,3.5; Lucas 1,31), serve somente para chamar a
atenção, para indicar para o sinal. "Eis!", "olha!" é um tipo de flecha, de
dedo indicador, para o que segue: "a jovem mulher". Esta "jovem mulher" é
determinada e conhecida, pois é mencionada, no hebraico, com artigo ("a").
Mas que é 'almah, uma "jovem mulher"? É uma "jovem mulher" "até ao
nascimento do primeiro filho":". Essa palavra hebraica não se refere à vir-
gindade da "moça" ou "jovem mulher", mas à sua juventude. A questão da
virgindade passou a ser atribuída a essa palavra a partir da tradução grega, da
Septuaginta e da tradução latina Vulgata (virgo, Almeida "virgem"), apesar de
que outros tradutores gregos (Áquila, Teodócio, Símaco) usam um termo gre-
go que significa "jovem mulher?" aproximando-se bastante do sentido do ter-
mo hebraico. Entendo que em nosso texto 'almah necessariamente deve ser

45 o sinal não está no poder do profeta, mas do Senhor. Já no v.11 se vê que o sinal é um acontecimento entre
Acaz e seu Deus. O v.14 reafirma que o sinal é do "próprio Senhor" 'adonayhu'. Isaías não aparece aqui
como algum milagreiro.
46 Confira Hans Walter Wolff, Frieden ohne Ende, p.38.39.
47 Hartmut Gcsc, "Natus ex virginc", em Probleme biblischer Theologie, Munique, Christian Kaiscr Verlag,
1971, p.74·75 (p.73·89).
48 Confira Ludwig Kóhler, Lexiconin veteris testamenti libros, p.709.
49 Veja Walter Bauer, Griechisch·deutsches Wórterbuchzu den SchriftendesNeuen Testaments und derübrigen
urschristlichen Literatur. Berlim, Verlag Alfred Toepclmann, 6' edição, 1963, p.1057 (1780p.).

106
traduzida por "jovem mulher". Ora, a forma verbal hebraica em questão neste
v.14 não pode ser traduzida por futuro ou por presente. A forma verbal é, no
hebraico, um perfeito; expressa ação concluída. Portanto, a "jovem mulher"
em questão"está grávida"! Só o nascimento é um acontecimento futuro: trata-
se de um particípio hebraico, isto é, a ação está por acontecer.
No meu entender, Isaías se refere, pois, a uma jovem mulher, já grávi-
da, conhecida (artígol) dos ouvintes e, provavelmente, presente à cena ("eis!",
"olha!"). Com essa interpretação as várias tentativas de identificar a "jovem
mulher" estão questionadas. Algumas delas são."
Isaías se estaria referindo à esposa de Acaz, isto é, à mãe do rei Ezequias.
Isaías estaria indicando para alguma dama da corte.
Isaías se estaria referindo à sua própria esposa.
A "jovem mulher" seria figura para uma coletividade: a comunidade,
Sião, o povo, etc.
A "jovem mulher" seria uma figura da mitologia, a mãe da criança
divina.
Depois destas e de outras tantas tentativas há de se perguntar, se não
nos deveríamos contentar com as indicações que Isaías nos dá, ainda mais
que o sinal que o Senhor "dará" (imperfeito!) não se refere à "jovem mulher"
que "está grávida" (perfeito!), mas consiste da criança e do nome simbólico,
com que a mulher" o "chamará" (perfeito consecutivo): 'imanu 'el. Esse nome
não é totalmente incomum no mundo hebraico. 52 Se o tomarmos isolada-
mente, com certeza não expressa juízo e ameaça, mas representa salvação. É
uma confissão cheia de confiança'" ou um 'viva de salvação'>'. Nele se pode
estar articulando a teologia do templo de Jerusalém (confira Salmo 46,8.12;
Jeremias 7,4), ou a teologia da 'guerra santa' (Deuteronômio 20,4; Juízes
6,11-18), ou ainda a teologia da dinastia (confira 2Samuel 7,9; IReis 1,37;

50 Veja Hans Walter Wolff, Friedenohne Ende, a partir da p.32; e Hans Wildberger,]esaja 1-12, p.290-291. Não
é possível entrar nos detalhes de uma contra-argumentação. Espero que esta já esteja implícita na
interpretação apresentada.
51 Quanto à vocalização qara't, como 3ª feminino singular, veja Wilhelm Gesenius, Hebrdische Gramatik, § 74g.
52 Os paralelos extrabíblicos ('mnyh, 'mdyn) estão mencionados, entre outros, em Hans Wildberger,]esaja 1-
12, p.292.
53 Martin Noth, Dieisraelitischen Personennamen im Rahmendergemeimemitischen Namengebung, Hildcsheirn,
Georg Olms Verlag, 1966, p.160 (260p.) (Bcitrãge zur Wissenschaft vom Alteu und Neuen Tcstament).
54 J. J. Starnm, "Immanuel'', em Biblisch-Historisches Handwiirterbuch - Landeskunde, Geschichte, Religion, Kultur,
Literatur, editores Bo Reicke e Leonhardt Rost, Gotinga, Vandenhocck & Ruprecht, vol.2, 1964, p.761.

107
11,38, etc). Também o v.IS, em parte, reforça a compreensão do nome Irna-
' b oIo d e saIvaçao.
nue I como sim - n ' " coa lh ad a" (
rois, . "I" nata.
ou:" manteiga "7) e
"mel", por vezes, são alimentos da era da salvação (Isaías 7,22; Êxodo 3,8.17;
Deuteronômio 6,3; 32,13; Salmo 81,17, etc.). E, além disso, estes alimentos
têm aqui uma finalidade boa: "para que" ele saiba" diferenciar entre o bem e o
mal. 7,21~22 reforçam a compreensão do v.15 como anúncio de salvação.
Contudo não é suficiente interpretar o sinal da criança e de seu nome como
salvação. Ora, o contexto histórico do sinal é o da ameaça ("por isso" v.14).
N essa criança, manifesta ~ se o juízo à "casa de Davi". Afinal, a criança vai saber
decidir entre "bem" e "mal", revelando-se assim como o contrário de Acaz que
não fora capaz de "desprezar" e "escolher" ao negar o sinal e o ultimato. E, além
disso, o próprio nome simbólico Imanuell"Conosco está Deus" representa uma
clara negação da dinastia. É um nome anti-dinástico!" Fosse ele uma confir-
mação da "casa de Davi", seu nome teria que ser "Convosco está Deus"! O
"nós" no nome simbólico é, de fato, o plural do "eu" do profeta (veja "meu
Deus", no v.13). Lógico! Por conseqüência o "nós" é o grupo em torno de
Isaías (8,16.18). A dinastia está abandonada: "Conosco está Deus".
Logo, o "Conosco está Deus", em todo caso, é exclusivo. A dinastia
davídica está excluída. Há, porém, um "nós" que está incluído. Deve-se en-
tender o sinal da criança Imanuel nessa ambivalência de graça e desgraça,
salvação e juízo, e, nesse sentido, repete o nome simbólico "Um-resto-volta".
Algo dessa ambivalência do sinal da criança também está presente em
sua explicitação (kil"pois", "portanto") nos v.16-I7. O que o v.16 anuncia
poderia ser salvação para a "casa de Davi". Que vem a se transformar em
desgraça (v.17), é conseqüência da negação da salvação.
Quase surpreende que Isaías volta a falar dos arameus e efraimitas, re-
afirmando seu aniquilamento. Essa nossa segunda cena, quer dizer 7, 1O~ 17,
afinal está centrada em Acaz e na "casa de Davi". Mas para anunciar ao rei que
não precisa ter medo, Isaías volta a atenção aos inimigos, reafirmando que
Rezim e o filho de Remalias (isto é, Peca) realmente estão aniquilados. É o que
Isaías agora já diz pela terceira vez: 7,4; 7,7 ~9 e 7,16. Cada um desses anúncios

55 le-da'to é infinitivo construto com le-. Nesse nosso contexto, le- tem significado de finalidade "para que"
(Oskar Grcthcr, Gramáticahebraica, § 28p + 86d). Scptuaginra ("antes que", confira Almeida "quando")
e outros (Walter Baumgarrner, Hebrdisches und aramdisches Lexikonzum Alten Testament, Lcidcn, E. J. Brill,
1974, p,483) entendem o le- em sentido temporal, adaptando () v.15 ao v.16.
56 Hans Walter Wolff, Frieden ohne Ende, p,42-43.

108
tem suas particularidades: a particularidade de 7,16 consiste em que nele tam-
bém "a terra cultivável" é atingida pela destruição; "será abandonada". Con-
forme 7,4, os reis inimigos eram atingidos pela destruição, conforme 7,7-9 além
dos reis estavam incluídas as capitais, e conforme 7,16 também a terra está
incorporada. Observa-se como o círculo dos atingidos aumenta.
O fim dos reis inimigos e de sua terra já está acontecendo. Com o sinal
da criança, sua realização está a caminho. É isso que expressa a frase "antes
que o menino saiba desprezar o mal e acolher o bem". Alguns tentaram trans-
por essa frase para números. Uns afirmam que aos 3 a 4 anos", outros que aos
20 anos'" e mais outro acha que nem mesmo nessa idade alguém sabe decidir
entre bem e ma1. 59 Mas Isaías nem especulou sobre números e datas. Para ele
é certo que em breve Arã e Efraim estarão desabitados, pois enquanto Ima-
nuel ainda for "jovem", "rapaz", os inimigos estarão aniquilados. O fim dos
inimigos está acontecendo.
Se o v.16, de certa forma, é repetição, a grande novidade está no v.17.
Este versículo é o auge da segunda cena. Nela, Isaías anuncia como realidade
o que em 7,9b (não crer - não permanecer) fora alternativa: o rei de Jerusa-
lém e os seus não permanecerão. O Senhor é contra sua dinastia! Esse é o
próprio, o característico e o revolucionário na profecia. Que o Senhor fosse
contra os reis inimigos, até certo ponto era lógico. Que o Senhor fosse contra
os erros de um certo rei, era possível (veja, por exemplo, 1Reis 21: Elias contra
Acabe). Mas que o Senhor é contra a dinastia divina e eterna (2Samuel 7!),
essa é uma novidade radical! É uma das marcas de Isaías (veja 11,1-5) !
No v.17, manifesta-se, pois, a grande ruptura de Isaías. Percebe-se que
ela ainda está no começo de sua articulação. Ainda é um tipo de relâmpa-
gO.60 Ainda não está formulada em sua clareza última." Pois entre a destrui-
ção da terra dos inimigos (v.16) e a da dinastia davídica (v.17) não há passa-
gem. O fim dos davididas ocorre como o dos reis arameus e efraimitas? Deixa-
ram os davididas de ser algo especial? Ou há alguma contraposição entre o

57 Bcrnhard Duhm, DasBuch]esaja, p.75-76.


58 Ütto Kaiser, DerProphet]esaja Kapitell-12, 2' edição(!), p.83. Mas, a respeito, veja também as inovações
interpretativas do mesmo autor, a partir da 5' edição do mesmo comentário: Ütto Kaiser, Das Buch des
Propheten]esaja Kapitell-12, Gotinga, Vandcnhocck & Ruprecht, 5' edição, 1981, p.150-167 (Das Alte
Tcstamcnt Deutsch, 17).
59 Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.296-297.
60 Assim Hans Wildherger,Jesaja 1-12, p.302.
61 Bernhard Duhm (Das Buch]esaja, p.76) diz que o autor do v.17 "se expressa desajeitadamente".

109
v.16 e o v.l?? (Almeida inicia o v.l 7 por "mas".) 62 Que Isaías realmente está no
começo da ruptura com o reinado, sente-se na comparação que usa. Para tor-
nar compreensível o desastre que sobrevirá ao reinado, o profeta usa uma com-
paração da história do próprio reinado. Com essa comparação, o profeta se
apresenta como bom conhecedor da história do reinado. Afinal, ele convivia
com a corte e sabia de sua trajetória. Assim é capaz de citar um acontecimento
ocorrido em 925 a.C; há dois séculos! Na separação de Efraim (= Israel) de
Judá, na época de Roboão, o sucessor de Salomão e o reinado dos davididas
ficaram restritos ajudá, perdendo as regiões maiores e mais ricas do norte. Mas
o que agora virá será pior que a cisão entre Judá (sul) e Efraim/Israel (norte); os
davididas não só perderão parte de seu território, mas sucumbirão.
Aqui está a ruptura básica da profecia de Isaías. Como vimos, no v.17
ela tão somente está em seu início. Ainda é como um relâmpago. Isso é
compreensível. Pois, Isaías aparentemente provinha do próprio ambiente da
corte. Seu interesse básico e inicial era a corte (7,1-9). Mas, aqui, no v.17,
manifesta-se o começo do distanciamento de sua origem.
Estou afirmando que o v.l 7 é profecia contra os davididas. Dois argu-
mentos o comprovam. Primeiro: o "rei da Assíria" é citado como o instru-
mento do Senhor nos dias que virão. Isso só pode significar destruiçâo.v'
Segundo: bv' "ir", "entrar") + 'ai "contra" expressa destruição. A raiz bv' +
preposição 'ai são usadas nesse sentido em Gênesis 34,27; [ó 2,11; Isaías
47,9; Amós 4,2 (veja ainda Isaías 3,14; 5,12; 13,6.9.22; 19,1; 30,27).
No v.I 7, Isaías anuncia o fim só aos davididas: "tu, teu clã e a casa de
teu pai". Em geral não foi reconhecido que no v.17 só se fale dos davididas,
se bem que o problema tenha sido detectado. Mas, tentaram resolvê-lo com
a hipótese de acréscimos: muitos quiseram ver um acréscimo posterior em
a amka)64 , outros em "contra a casa dee teu cai"
"contra teu povo "( = 'I' pai ('aI bet
'abika)65. O problema detectado por essas hipóteses é o significado da palavra
'amo Pois, 'aleka "contra ti" certamente se refere a Acaz; e 'ai bet'abika "con-
tra a casa de teu pai" se refere à dinastia dos davididas em sua perspectiva e
profundidade histórica, incluindo todos os que desde Davi reinaram em Judá.

62 A Scptuaginta inicia por alla/"mas". No texto de Isaías cm Qumrã, o v.17 inicia com ve- (confira Biblia
Hebraica Kittel).
63 Costumciramcnre o final do v.17 ("o rei da Assíria") é considerado acréscimo posterior, influenciado por
7,18.20;8,4.7.
64 Biblia Hebraica Kittel; Hans Walter Wolff, Frieden ohneEnde, p.l0 e 46, c outros.
65 Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.264,268.

110
Entremeio a Acaz e à dinastia davídica 'ol 'amka não pode significar "povo"
ou "população" de Judá, mas tem aqui o mesmo significado que em 7,2, indi-
cando o círculo de pessoas em torno de Acaz, seu "clã", sua "parentela".

Concluindo
A palavra profética da segunda cena (7,10-17) luta pela decisão dos
davididas. A resposta do rei é negativa. Nessa negação, o sinal do Imanuel
que poderia ser salvação, que poderia ser o começo do fim dos inimigos que
cercam e aterrorizam Jerusalém, torna-se sinal também do começo do fim
dos davididas. O profeta e seu Senhor voltaram-se contra sua dinastia.
Esta ênfase de Isaías - ameaça contra a dinastia de Davi - se repete em
8,14-15; 9,1-6 e 11,1-5. Para as profecias de Isaías, o decisivo nas tradições
de Judá/Israel não são, pois, as esperanças davídicas, como sucede, por exem-
plo, em seu contemporâneo, mas interiorano, Miquéias no qual, sim, há ex-
pectativas messiânicas ligadas a Belém, à terra natal de Davi (veja Miquéias
5,1-5). Decisivo é para Isaías a tradição de Sião. Esta, sim, é portadora de
esperanças, como se vê, por exemplo, no cap.6 e em 8, 18 (veja 2,1-5 e 14,32).
Novamente outra é, neste aspecto, a decisão de Miquéias que antes de mais
nada ameaça a Sião (3,9-12, veja Jeremias 7 e 26).
Os novos sinais não se encontram, pois, em Isaías, vinculados ao davi-
dismo, mas a Sião e às crianças, como o expressa marcadamente Isaías 8,18.
O novo é Imanuel, que justamente não é alguém do âmbito do davidismo!

"Naquele dia"
Isaías 7,18-25 - Uma releitura
Em 7,18-25, temos certa continuação dos versículos precedentes, em
especial do v.17, e também de v.15-1 7. Já, por isso, se torna aconselhável
incorporar estes versículos a nosso estudo.
Contudo, o texto não é isaiânico" Ora, dá-se que o linguajar não é de
nosso profeta-visionário, e muito menos o horizonte de sentido em que se usa
a expressão "naquele dia". Aliás, no próprio jeito de nossos versículos se vê não
serem de nosso profeta. No caso, penso na relação destes v.18-25 particular-

66 Ainda que Hans Wildbcrgcr,Jesaja 1-12, Neukirchen, Neukirchcner Vcrlag, 1970, p.301-310 (486p.) (Bíblís-
cher Kommentar Altes Testament, 10/1), proponha que, ao menos partes do trecho, sejam do profeta Isaías.

111
mente com v.I7. Afinal, há tradições que até preferem conectar o v.I7 ao que
lhe segue e não ao que lhe precede (veja João Ferreira de Almeida). Acontece
que, com o v.17 conectado aos nossos v.I8-25, obtém-se cinco(J) pequenas
unidades ([v.I7,] v.I8-I9, v.20, v.2I-22 e v.23-25), em que o termo yom "dia"/
"dias" desempenha papel central. E isso, aliás, é muito evidente uma vez que
cada subunidade contém a expressão "naquele dia" (v.I8.20.lI e 23). Mas
justamente esta expressão-refrão indica o quão posteriores são os v.I8-2S ("na-
quele dia") em relação ao v.I7 (somente "dia'") ou aos v.I5-I7. O que sucede,
pois, não é que os v.I8-25 sejam isaiânicos, mas que são ditos que dão conti-
nuidade a Isaías em outros tempos, em datas posteriores.
Em que tempos? Se fosse fácil achar uma evidente resposta a esta ques-
tão, deixariam de haver opiniões diversas entre estudiosos de nossos capítu-
los de Isaías. Verdade é que os indícios não são unívocos. Minha opinião é
que, para atribuir nossos versículos a tempos posteriores aos de Isaías, basta
verificar que, por um lado, sua linguagem contém conteúdos típicos de ou-
tras passagens bíblicas, no caso das maravilhas ou pragas no Egito em Êxodo
7-13), e, por outro lado, sua cosmovisão tende claramente ao apocalíptico.
Situaria nossa releitura de Isaías no 4º século, quando a apocaliptização de
textos proféticos foi fazendo escola.
Mas, vamos a nossas quatro pequenas unidades, às quais como que
haveria que antepor, tendo em mente os leitores posteriores, ao menos o
v.I7, talvez até os v.IS-I7:
1sE acontecerá, naquele dia,
assobiará Javé às moscas que vivem nas regiões remotas dos rios do Egito
e às abelhas na terra da Assíria.
19E virão e pousarão todas elas nos vales íngremes dos penhascos e nas
fendas das rochas sobre todos os espinheiros e sobre todos os bebedouros.

2°Naquele dia,
rapará o Senhor, com uma navalha alugada além do rio,
com o rei da Assíria, a cabeça e o pêlo das pernas,
e, em especial, a barba arrancará.
21E acontecerá, naquele dia,
conservará em vida cada pessoa'? uma novilha e duas ovelhas.

67 No hebraico, trata- se de "homem"l'ix!

112
22Em virtude da produção abundante de leite se alimentará de coalhada,
Eis, de coalhada e de mel se alimentará todo o que for deixado na terra.

23E acontecerá, naquele dia,


acontecerá todo o lugar onde acontecem mil videiras, no valor de mil
moedas de prata,
em espinheiros e em matagal acontecerá.
24S Ó armado de arco e flecha se entrará ali,
eis, de espinheiro e matagal estará toda terra.
25Em todos os montes, atualmente virados à enxada, já não se poderá
entrar, de medo dos espinheiros e do matagal;
os bois andarão soltos neles
e as ovelhas os pisarão."
A estrofe dos v.18-19 tem sua unidade; o temário está integrado (inva-
são de "moscas" e "abelhas"). Dele não se pode dizer que tenha alguma rela-
ção com os v.17! No v.17, trata-se de conquista, aqui a realidade ameaçadora
de Assíria e, em especial, do Egíto é envolta em figuras. Estas são igualmente
ameaçadoras, mas não são explicitamente militares.
A ameaça está nas imediações, mas ainda não se manifestou plena-
mente. As 'pragas' ou 'maravilhas' - para remeter ao cenário do Êxodo onde
as figuras daqui parecem ter seu berço - estão prestes a irromper. Tomaram
posição. Tão somente aguardam, como o diz o título do v.IS, por "aquele dia".
Portanto, o cenário "daquele dia" está esboçado; sua irrupção está próxima.
De todo modo, a ação é de "[avé". Seu assobio é que chama "moscas"
e "abelhas". O que acontece, "naquele dia", é, ou melhor, será ação exclusiva
de [avé.
Esta ênfase retorna no v.20. Também aí o ator é Deus, no caso o "Se-
nhor". Ele desonra "cabeça", "pêlo" e "barba". Mas, de quem? Novamente
não há explicitação de quem irá sofrer as ações do "Senhor". As ações são
evidentes, o referente permanece escondido. É, pois, óbvio que a linguagem
tende ao apocalíptico.
A poesia deste v.20 está bem feita: temos uma introdução ("naquele
dia") e duas frases. O verbo está no comecinho da primeira frase; e verbo da

68 Tradução de José Severino Croatto, Isaías vai. 1: caps.1-39 -O profeta dajustiça e dafidelidade, p.66; procurei
adequar esta tradução à disposição poética dos versículos.

113
segunda, no final! A primeira frase ("rapará...") se estende; vem um tanto
sobrecarregada de conteúdos. Tanto mais breve é a segunda Ç'arrancará''),
sobre a qual recai o interesse. Afinal, "arrancar a barba" é, na linguagem
masculina, a ofensa maior. Por isso, esta segunda frase vem introduzida pelo
advérbio gam "em especial".
As açôes, em todo caso, têm conotação histórica, como se vê na
primeira frase. O agente histórico da ação divina é "o rei da Assíria".
Nesta ênfase, esta nossa segunda 'estrofe' (v.20) se assemelha à primeira
(v.18-19).
Nos v.21-22, reencontro, em poesia, a linguagem do Êxodo e de Isaías
7,10-17. Não há que esquecer o êxodo, pois a ele já tivemos referência acima,
nos v.18-19. Lógico, o que mais marca esta nova 'estrofe', como as duas
anteriores, é a preocupação com o tempo: "acontecerá naquele dia"! O olho
está posto no horizonte!
Esta 'estrofe' identifica o local dos acontecimentos; de certo modo, já
o sabíamos em versículos anteriores (v.18-19), mas, agora, não resta mais
dúvida: os acontecimentos se dão "na terra", ern judá. Nossos versículos, não
dizem, pois, respeito a pessoas em exílio ou em diáspora, longe da terra esco-
lhida por Deus. Os referentes são judaítas!
A rigor, o referente é o "homem" judaíta. Em minha tradução, mantive
a tradução de José Severino Croatto: "cada pessoa", Melhor seria traduzir
"homem", pois aqui se trata do conceito sociológico de "homem", que não só
se refere à pessoa masculina, mas principalmente ao representante de uma
unidade agrícola produtiva.
O que importa, em nossos dois versículos, é, pois, o alimento deste
"homem"], desta unidade agrícola constituída, no caso de: "novilha e duas
ovelhas". É o que um "homem" simples, pobre possuía (veja 2Samuel12,1-4).
Ainda assim seu alimento é de qualidade: "coalhada e mel", similar aos tre-
chos sobre o Êxodo (veja Êxodo 3).
Chama a atenção que estes v.21-22 sejam tão explícitos na apresenta-
ção da alimentação do "homem", em favor do qual se dará "aquele dia",
Aliás, a frase final realça os benefícios, pois ela começa com "eis", "atenção".
E este "eis" diz respeito, justamente, ao alimento: "coalhada e mel"! O "ho-
mem", em prol do qual ocorrem as esperanças destes versículos, não é rico,
mas seu alimento é de qualidade!
Na 'estrofe' final, nos v.23-25, o verbo "acontecer"/hyh é marcante. A

114
raiz em questão aparece seis vezes, todas no sentido do 'imperfeito' hebraico,
referindo-se a ações a serem concluídas.
Estes versículos dizem o contrário dos anteriores (de v.21-22). Lá ha-
via bom alimento, ainda que simples. Aqui não há alimento. Some. Ora,
some porque se trata, agora, nestes v.23-25, não do "homem" simples, mas
dos magnatas. Trata dos que têm "mil videiras" a "mil pratas"! Acima o foco
recaía sobre quem tivesse "uma novilha e duas ovelhas". Enquanto que lá,
nos v.21-22, se celebrava o alimento, aqui se anuncia o castigo: "espinheiros
e matagal". É isso que "acontecerá".
Os v.24-25 dão coloridos especiais a estas "mil videiras": só servirão de
local de caça! Roça vira terra inóspita, local de caça! Vira descampado; trans-
forma-se em "morros", onde só dá caça, já não videiras. Em tais "morros" se
levam "bois" e "ovelhas" a pastar.
Enfim, é fundamental perceber que os v.23-25 são o inverso dos versícu-
los anteriores (v.21-22). Ou seja, o sentido ético desta linguagem apocalipti-
zante ainda é plenamente profética: vai em defesa do "homem", e em crítica ao
dono das "mil videiras"! Já não estamos com Isaías, mas a escola de Isaías, à
qual pertencem estes nossos versículos, não abandonou a ótica de Isaías!

Armas não armam tendas de paz


8,1-4
A profecia de Isaías pode ter-se originado nos espaços em meio aos
grupos de poder em Jerusalém. Há alguns indícios que o assinalam. Ele co-
nhecia muito bem as tradições jerusalemitas, como se percebe na unidade
anterior (7,10-17), em 1,21-28 ou no cap.6. Ele foi chamado a ser visioná-
ri0 69 nos espaços do templo e em meio às tradições do estado e da capital,
como se percebe no cap.6. Ele conhece as tradições de paz, de xalom que
envolvem o sentido do templo a [avé em Jerusalém (2,2-5) Estas e outras
passagens convidam a pensar Isaías como profecia que brotou em Jerusalém, e,
aí, em setores sociais próximos a círculos cortesãos e ligados ao templo. Isso
não quer dizer que eu entenda Isaías como um visionário para a elite, o que
obviamente não poderia ser confirmado nem à luz dos conteúdos de seus
ditos e igualmente não em relação aos sofrimentos aos quais foi submetido

69 Quanto a este título de Isaías, veja, por exemplo, 1,1 e 2,1, onde o verbo "ver" hyh tipifica a ação de Isaías.

115
pelos senhores do poder (8,16-18). As esperanças isaianas transformam o
templo, para que este seja abrigo de pobres (14,32), e superam o davidismo
do poder militar por outro, da fragilidade das crianças (8,18 e 9,5). Ainda
que Isaías saiba ver templo e davidismo de modo positivo, este seu valor não
reside no que estas instâncias sociais eram, mas no que poderiam vir a ser:
lugares sem armas, espaços de crianças (veja o cap. 11l). 70
Daí se entende porque, em Isaías, este visionário da capital Jerusalém,
temos outros acentos e temas que em seu contemporâneo Miquéias ou em
seu antecessor Amós. Tarefa isaiana foi a de perscrutar os poderes que iam
destruindo as chances de sobreviver de seu povo. E aí foi o espaço de Isaías,
em especial na denúncia das armas. Eis o assunto de 8,1-4. As armas não
serão vitoriosas nas relações entre pessoas e povos. Símbolos e palavras pro-
féticas têm mais efeito que armas e similares. Esta é a afirmação dos caps.6-9
e também de outros trechos isaianos.
Isaías, sem dúvida, coincide com outros profetas em sua crítica aos
senhores do poder, mas ele a realiza de um modo peculiar, inserido nas tradi-
ções de Jerusalém.

Tradução literal
'E disse-me [avé:
"Toma para ti uma grande tábua e escreve sobre ela em escrita simples:
para 'Rápido presa, pressa saque"!", 2E eu tomei para mim testemunhas
fiéis": Urias, o sacerdote, e Zacarias, filho de Jeberequias.
3E me aproximei à profetisa e ela engravidou e deu à luz um filho. E Javé
me disse: "Chama seu nome: Rápido presa, pressa saque". "Pois antes que
a criança saiba chamar: "Meu pai!", e "Minha mãe!" será carregada a
riqueza de Damasco e o saque de Samaria, para diante do rei da Assíria.

Parte de um conjunto maior

Os versículos de acima têm sua ênfase própria. Aí começa algo novo.


Mas, ao mesmo tempo, estes versículos também se encontram na continui-

70 Milton Schwantcs, "Esperanças messiânicas e davídicas", em Estudos Bíblicos, Pctrópolis, Vozes, vol.23,
1989, p.18-29.
71 Ou: 'o que é rápido recebe presa, o que se apressa recebe saque'.
72 Fidedignas.

116
dade do anterior, quer dizer de 7,3-9 e 10-17. Em todo caso, não se pode
perceber em 8,1-4 uma passagem tão clara em relação ao anterior como se
observava em 7,10-17 em relação a 7,3-9.
Em relação a 7,3-9 e 7,10-17, temos em 8,1-4 uma terceira cena com
suas próprias características. De certo modo há descontinuidade em relação
ao que lhe precede, em 7,10-17. Quanto a esta relação de 8,1-4 com 7,10-17
diga-se também, desde já, que 7,18-25 são breves textos, cujo contexto his-
tórico não é o de 7,10-17. 73 Por conseguinte, não relacionamos estas breves
unidades, reunidas em 7,18-25, com as cenas das memórias isaiânicas a res-
peito da guerra siro-efraimita, em cujo contexto situamos as cenas de 7,1-2 +
7,3-9 + 7,10-17 + 8,1-4 + 8,5-8 + 8,11-15 + 8,16-18 + 9,1-6. As breves
unidades de 7,18-25 representam uma releitura posterior das memórias do con-
fronto entre Síria/Israel contra Judá, em 734/3.
8,1-4 são diferentes, ainda que estejam relacionados aos demais textos
isaiânicos dos caps.6-9! Eles estão na primeira pessoa do singular. São auto-
relatos de Isaías, como 6,1-13. E assim se diferenciam do relato de terceiros
em 7,1-2.3-9.10-17.
O cenário de 8,1-4, e das demais unidades do cap.8, não é nem o Lago
Superior (7,3-9) e nem o palácio real (7,10-17). O cenário de 8,1-4 parece
não ser a corte. Em 8,1-2, o cenário provavelmente é o pátio do templo
(confira 6,1-13!), em 8,3 -4 a própria casa de Isaías.
Em 7,1-17, Isaías está ocupado com a "casa de Davi"; inicia caracteri-
zando sua situação (7,2), propõe-lhe a alternativa (7,9), anuncia-lhe seu fim
(7,9b.17). A quem 8,1-4 se dirige? Em todo caso, os davididas não são men-
cionados. Parece que 8,1-4 se dirige ao público em geral.
7,1-17 também continham oráculos contra dois reis e povos inimigos
(Arã e Efraim). Mas seu alvo indubitavelmente era Acaz e os seus. 8,1-4
apresentam-se só como oráculo sobre os dois povos estrangeiros que estavam
cercando Jerusalém.
As quatro breves profecias (7,18-25), aparentes acréscimos posteriores,
reforçam a distância entre a segunda e a terceira cena, entre os caps.7 e 8.
Essas observações permitem-nos perceber que 8,1-4 se diferenciam de
7,1-17. As duas unidades visivelmente estão em certa descontinuidade. De-
vem ter surgido em processos específicos.

73 A respeito de 7,18-25, veja a interpretação de Hans Wildbetger,]esaja 1-12, p.301-310.

117
Mas apesar dessa descontinuidade, ainda há elementos suficientes que
exigem que se entenda nossa cena como continuação de 7, 1~ 17:
Também 8,1-4 é relato, como 6, 1~ 13 e 7,1 ~ 17. Predomina o 'imperfei-
to consecutivo' hebraico: "e disse", "e me aproximei", etc.
A linguagem de 8,1-4 chega a repetir formulações de 7, 1O~ 17. Em 8,3~4
se reconhecem claramente as formulações de 7, 14~ 161 O início de 8,1 lembra
7,3. A palavra chave de 7,9b retorna no v.2 ('mn nifal "permanecer").
O conteúdo da mensagem em 8,4 equivale à mensagem de 7,4.5~9.16:
fim de arameus e efraimitas. Este fim está, no anúncio de 8,4, até mais perto
que em 7,16; a proximidade do fim se intensifica. Sendo a mensagem básica-
mente a mesma, também a situação é a mesma, como veremos em seguida."

Situação de guerra
A situação ainda é a da guerra siro-efraimita de 73413 a.C. 75 Se [erusa-
lérn continua na iminência do cerco (7,3) ou se seus arredores já estão torna-
dos pelos exércitos inimigos, não se torna evidente em 8, 1~4. Em resumo, a
situação é a do capítulo 7!
Os acontecimentos de 8,1~4 ocorreram depois do cap.7? Um sim pare-
ce evidente! Principalmente porque o fim dos arameus e efraimitas no vA é
tido como mais próximo que em 7,16. Assim sendo, o que está relatado no
v.3b (nome da criança) e no vA (explicação do nome da criança), em todo
caso, é posterior ao cap. 7! Mas vale o mesmo para vI-Z e v.3a? Pois, afinal, a
concepção da criança (v.3a) e o nome que depois do nascimento vem a
receber (v.3b) estão separados por nove meses! E, além disso, entre a con-
cepção da criança (v.3) e a ação simbólica dos v.l ~ 2 também pode ter trans-
corrido algum tempo." Enfim, mais ou menos um ano separa os v.I- 2 do vA!
Considerando, agora, que o episódio da guerra siro-efraimita deve ter durado

74 José Severino Croarro (Isaías 1-39 - O profeta da justíça e da fidelidade, p.68) dá bastante destaque às
semelhanças de 8,1-4 com 7,3-9.
75 Novas e interessantes hipóteses sobre a datação e sobre outros aspectos de nossa perícope e, em geral,
sobre Isaías 6-9 fornece Erhard Blum, "[esajas prophctisches Testarnenr - Bcobachtungcn zu Jesaja I-1 I",
em Zeuscluiit für diealttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruyrer, vol.I 08 e 109, 1996 e 1997,
p.547-568 + p.12-29.
76 Muitos querem entender o início do v.3 como mais-que-perfeito ("eu fora ..."). Mas, nesse caso, o v.3 não
deveria iniciar com um imperfeito consecutivo, que continua a narração, mas com um perfeito (confira
Oskar Grcthcr, Gramática hebraica, 1968, § 79). Tamhém a Septuaginta e a Vulgata não traduzem por
mais-que-perfeito.

118
um, no máximo dois anos (confira, porém, 2Reis 15,37), e que as palavras de
Isaías nos caps.ó-S devem ter sido ditas e (!) escritas antes do fim da guerra
(veja 8,16-18), é certo que a ação simbólica dos v.1-2 ocorreu bastante no
início daquela guerra. Portanto, é provável que 8,1-2 tenham ocorrido antes
ou durante os acontecimentos relatados no cap.7!
Em 8, 1-4 transparece a situação pessoal de Isaías. Estes versículos per-
mitem uma série de deduções sobre a pessoa do 'profeta':
Isaías sabia escrever (veja 30,8!). E entendia tanto de escrita que o
Senhor, em sua ordem, especifica o material, em que deve escrever, e o tipo
de escrita que deve usar. Tal especificação usa um vocabulário tão peculiar (e
técnico) que, nós hoje, temos dificuldade de entendê-lo. Gilayon certamen-
te designa o material, sobre o qual Isaías escreveu. Em geral essa palavra é
traduzida por "tábua", "ardósia"; outros interpretam-na como "papiro" 77• Seja
ela "tábua" ou "papiro", em todo caso, é "grande" (gadol), para que todos
possam vê-la. Trata-se de um 'placar'! Discutido é o que sejaneret 'enox (h.eret
= "estilete", 'enox = "pessoa") 78. A meu ver, designa o tipo de escrita como
"escrita comum", entendida por todos. Sabendo escrever, Isaías fazia parte de
uma 'elite intelectual' muito pequena em judá. (Jeremias, por exemplo, apa-
rentemente não era bom de escrita - Jeremias 36,4.321). Essa observação
ganha em importância, quando se atenta para o v.2.
Pois, é significativo que Isaías leve Urias e Zacarias como testemunhas
para sua ação de colocar a tábua (no pátio do templo?). Urias é sacerdote.
Conforme 2Reis 16,10-18, parece ter sido, na época, o sacerdote mais impor-
tante em Jerusalém. Este Zacarias, filho de [eberequias, deve ter sido o sogro
do rei Ezequias, o sucessor de Acaz (veja 2Reis 18,2). Neste caso, certamen-
te era uma pessoa influente na corte. Mesmo que não possamos supor que
Urias e Zacarias tenham sido correligionários de Isaías, parece que o visioná-
rio tinha acesso às pessoas da corte e do templo. Isso sugere uma resposta
positiva à pergunta: não estaria a origem de Isaías igualmente nestes círcu-
los? Nessa direção indica mais outra observação sobre a pessoa de Isaías,
como passaremos a ver.

77 Confira Walter Baumgartner, Hebraisches und aramaisches Lexikonzum Alten Testament, p.185; e Hans
Wilberger,Jesaja 1-12, p.311-312.
78 Confira Walter Baumgartner, Hebraisches und aramaisches Lexikan, p.68; e Hans Wildberger, Jesaja 1-12,
p.312.

119
Sua esposa é chamada de ha~nabi'ah "profetisa". Poder-se-ia pensar que
a esposa aqui é chamada de profetisa por causa da profissão do marido. Mas,
por um lado, não está comprovado que existia esse costume na época pré-
exílica e, por outro lado, o próprio Isaías não usa o título "profeta" (veja 1,1
e 2,1). Se a esposa de Isaías não é chamada de "profetisa" por causa do mari-
do, então ela mesma é profetisa. E, de faro, no Antigo Testamento, lê-se de
várias profetisas: Miriã Êxodo 15,20, Débora Juízes 4,4, Hulda 2Reis 22,14.
É muito provável que a esposa de Isaías fosse, como Hulda, uma profetisa no
templo em Jerusalém.
Estas três observações - Isaías era letrado, suas testemunhas provinham
da corte e do palácio, sua esposa era profetisa do templo - levam a afirmar
que a origem de Isaías está nos círculos de elite religiosa e política em jerusa-
lém. O fácil acesso que tem ao rei e a preocupação por ele (Isaías 7) e sua
'vocação', que ocorre no ambiente e na linguagem do templo (Isaías 6),
reforçam essa afirmação.

o fim dos invasores - Conteúdos proféticos


A mensagem de 8, 1~4 não deixa de repetir o conteúdo de 7,3 ~ 17. A
diferença não está em nível de conteúdo, mas de tempo: para 8,1-4 o fim dos
inimigos (Arã e Efraim) está bem próximo. Está por acontecer. O fim dos
inimigos está muito próximo!
A mensagem está expressa nas duas ações simbólicas do visionário (v. 1~
2 e v.3-4). A expressão maher xalal nax ba; é a ponte entre as duas ações
simbólicas. Na primeira, a mensagem inclusive só é composta pela expressão
maher xalal b.ax bar, inscrita na "grande tábua/papiro". Essa expressão consti-
tui-se em uma repetição, um assim chamado paralelismo. Os dois substanti-
vosxalal e baz são sinônimos (confira Isaías 10,2.6 e Ezequiel 26,12, etc.).
Designam o "saque" e a "presa" que, na guerra, o exército vitorioso realiza
na terra e nas cidades vencidas. Com sua inscrição, Isaías anuncia uma
catástrofe de guerra. Também os verbos mhr pieI e nvx são sinônimos (veja
lSamuel20,38). Tem o significado de "apressar-se", "ser rápido". A forma
verbal, porém, pode ser entendida de várias maneiras: b.ax pode ser 3ª pes-
soa singular do perfeito ou particípio; maher pode ser infinito absoluto,
imperativo ou particípio. Se a gente entender a forma verbal como particí-
pio, dever~se~ia traduzir: "o que é rápido - presa, o que se apressa - saque".
Mas também outras traduções são possíveis. Almeida: Rápido-Despojo-

120
Presa-Segura." Não é de se admirar que seja difícil fixar o significado exato
da inscrição. Pois, também em outros pontos ela permanece enigmática:
quem é o vitorioso e quem o derrotado nessa guerra? Quem é a vítima do
saque: Judá, Jerusalém, Efraim, Arã? Para os que liam a inscrição de Isaías,
essa pergunta decisiva ficava aberta. A mensagem profética podia conter
tanto uma ameaça contra Jerusalém quanto contra seus inimigos. Talveznem
mesmo Isaías soubesse a resposta (confira Isaías 20). Durante mais ou menos
um ano a ação simbólica permaneceu um sinal aberto, até que, na segunda
ação simbólica (v.3-4), o próprio Senhor fixou sua interpretação.
Essa segunda ação simbólica (v.3-4) aprofunda a primeira. Na primeira
uma grande tábua carrega a mensagem, na segunda, uma pessoa; o símbolo
agora é vivo. Na primeira, o símbolo permanecia enigmático, na segunda,
sua explicação nada deixa a desejar.
É incomum que alguém se chame maher xalal nax bar, no Antigo Testa-
mento. Isso só ocorre em 8,3. Este nome - como "Um-resto-volta" (7,3) e
"Conosco-está-Deus" (7,14) - é mensagem. O próprio filho de Isaías assume e
corporifica a mensagem profética. A família do mensageiro está a serviço do
anúncio; é a corporalidade do anúncio. Se o anúncio estiver errado, a vida
dessa criança será uma constante zombaria. Se o anúncio de Isaías estiver cer-
to, toda a vida da criança lembrará sua verdade. Será "sinal" nas categorias de
Isaías8,18. Ao incorporar sua famíliana profecia, Isaías também a põe a perigo.
Decisiva é a explicação do nome simbólico. Pois, o nome como tal
contém o mesmo dilema da inscrição (v. 1): quem sofrerá o saque? A explica-
ção define o símbolo:
O acontecimento prenunciado na inscrição (v. 1) e no nome simbóli-
co (v.3) está por ocorrer. Já os dois verbos xU e hvx "apressar-se" o expressa-
vam. Que há pressa, se torna ainda mais determinante no v.4: "antes que a
criança saiba chamar: 'Meu pai!' 'Minha mãe!'", isto é, em um ano, terá
acontecido. Um novo futuro é iminente.
A explicação também define quem é vítima e quem agente. Vítima
não é Jerusalém e nem Judá, mas seus inimigos: Damasco e Samaria! Tam-
bém em 7,7-9a a destruição destas duas capitais era o auge do oráculo contra
os inimigos; já em 7,16 também a "terra cultivável" estava incluída. 8,4 está

79 VejaHans Wildberger,]esaja 1.12, p.312.313.

121
mais próximo de 7,t9a do que de 7,16! (Esse é mais um argumento para
afirmar que 8,1 A não se refere propriamente a acontecimentos posteriores a
7,17.) Agente da destruição é o rei da Assíria. Jerusalém não será salva do
cerco pelas próprias forças (7,4!), mas o Senhor provê seus instrumentos.
A explicação, por fim, define o que os assírios carregarão (ns' "carre-
gar"): hayil e xalal. Em gerallJayil é traduzido por "riquezas" (veja Almeida).
Isso é correto, enquanto não se restringir "riquezas" a valores materiais. Pois
se os assírios levam lJayil de Damasco, então isso não se refere só a sua prata,
seu ouro e seus tesouros (conforme 2Reis 24,13), mas inclui animais e pessoas
(veja Números 31,9). Também xalal "saque" inclui coisas e seres vivos (con-
fira Deuteronômio 20, 14; 1Samuel 30,20) . O que Isaías anuncia, inclui, pois,
a deportação da população de Damasco e Samaria, de suas elites.
Concluindo: 8,1 A é continuação do relato de 7,1-17; é a terceira cena,
dando continuidade às duas do cap.7. O que 8,1-2 relata deve ter ocorrido
antes ou ao mesmo tempo de 7,1-17. A pressa é a característica da mensa-
gem: o fim dos inimigos - Damasco e Samaria - é iminente!

Sinais e símbolos
8,5-18(-23)
No cap.? de Isaías, pode-se reconhecer nitidamente duas unidades,
com uma introdução: 7,1-2 + 7,3-9 + 7,10-17. No cap.8, à semelhança,
podemos identificar nitidamente a breve unidade de 8,1-4. As dificuldades
surgem depois destes quatro versículos iniciais. Quais seriam as outras unida-
des no cap.8, similares ao que encontramos no cap.7 e em 8, IA?
Nossa hipótese é a de que os v.S-18 constituem uma só unidade literá-
ria, intencional. Mas, em sua base, encontram-se unidades retóricas meno-
res: v.S-8 (-9-10), vl I-If e v.16-l8 (-19-23).

Tradução literal
SE continuou [avé a falar-me ainda'" dizendo:
6Já que este povo rejeitou as águas de Siloé que correm mansamen-
te, e 'se esvai diante de'" Rezin e do filho de Rernalias,

80 O termo hebraico 'od ressalta a 'continuidade'.


81 A respeito do começo do v.ób, veja a argumentação de Hans Wildherger,]esaja 1·12, p.321.

122
7e, porisso: eis que o Senhor está fazendo subir" contra eles as águas
do Eufrates, fortes e numerosas: o rei da Assíria e todo seu poder.
E subirá sobre" todos seus canais,
e passará sobre todas suas margens,
8e passará em Judá,

inundará
e transbordará,
até ao pescoço chegará.
E acontecerá:
suas asas estendidas encherão a amplidão de tua terra, Conosco Deus. 84
9Ó povos, sabei-o
e espantai~vos,
prestai atenção, todos os confins da terra:
Por mais que vos prepareis para a luta, haveis de ficar apavorados.
lOPor mais planos quefaçais, serão frustrados,
Por mais que pronuncieis a vossa decisão, não subsistirá.
Eis, Conosco Deus!85

llpois assim me disse o Senhor, ao firmar-se a mão'" e me advertiu que


não andasse o caminho deste povo, dizendo:
12Não direis: rebelião! para tudo que este povo diz: rebelião!
E seu medo não temais
e não tremais!
13A Javé Zebaote a ele considerai santo:

e ele (seja) vosso temor,


e ele (seja) vosso tremor.
14E será para santuário"
e para pedra de tropeço
e para rocha de estorvo
para as duas casas de Israel,

82 A forma hebraica em questão é um particípio hifil de 'lh "fazer subir".


83 "Acima de".
84 Os v.9-10 constituem uma unidade própria, como também vemos em Hans Wildberger, Jesaja 1-12, p.329-
333; e José Severino Croatto,1saías 1-39 - O profeta dajustiça e fidelidade, p.69-70.
85 Quanto à tradução dos v.8b-lO, segui basicamente a tradução de José Severino Croatto, Isaías voU:
caps.1-39 - O profeta dajustiçae da fidelidade, p.69.
86 Isto é: de Deus.
87 = templo.

123
para arapuca e para dardo(?) para o govemante'" de Jerusalém.
15E dentre eles muitos" tropeçarão,
cairão
e serão quebrados,
serão capturados e presos.

16Embrulha o testernunho'",
sela orientação em meus discípulos.
17E guardarei em [avé, que está escondendo seu rosto da casa de Jacó,
e nele esperarei.
18Eis! Eu e as crianças que [avé me deu para sinais e símbolos em Israel
da parte de [avé Zebaote que reside no monte Sião.

Um só conjunto literário
Penso que 8,5-18(-23) podem ser considerados como uma só unidade
literária! Ainda assim subdivide-se essa unidade, em geral, em vários peque-
nos textos (veja Almeida"). Há motivos para tal subdivisão: o assunto do v.6
chega à sua conclusão no v.8; v.6-8 são uma 'palavra de juízo' que inicia
(v.6) com a descrição da culpa". V9-1O são determinados pelo imperativo;
trata-se de 'intimações para o combate'. V.11-15 provavelmente não depen-
dem dos v.9-1O; estes v.ii-i5 indicam ser um 'dito de mensageiro' ("assim
disse o Senhor"). Têm sido caracterizados como junção de uma 'palavra de
advertência'?' e outra 'palavra de ameaça'?". Os v.II-13 até mesmo, com mais
exatidào, podem ser designados de 'palavra de orientação'; são uma típica
toralv": Novamente diferentes são os v.i6-i8j sua linguagem é a de uma 'con-

88 Ou: habitante?
89 Ou: todos.
90 Ou: documento.
91 Hans Wildherger aesaja 1-12, p.321-361), por exemplo, subdivide da seguinte maneira: v.5-8, v.9-1O, vl l-
IS, v.16-20, v.21-23.
92 Claus Westermann, Grundformenprophetischer Rede, Munique, Christian Kaiscr Verlag, 4" edição, 1971,
p.124-125.
93 Robert Bach, DieAufforderung zur Fluchtund zum Kampfim alttestamentlichen Prophetenspruch, Ncukírchcn,
Neukirchener Verlag, 1962, pAI (112p.) (Wissenschafthche Monographicn zum Altcn und Neuen
Testament,9).
94 Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.335.
95 Claus Westermann, Grundformenprophetischer Rede, p.146.

124
fissão', sendo comparável a das confissões de [eremías". Nos v.19-23 parece
continuar a doutrina; estes versículos são muito difíceis de entender; dão a
impressão de fragmentos acrescentados, em parte à semelhança de 7,18-25.
Por isso, iremos concentrar nossa atenção nestes ensaios aos v.S-LS.
Apesar da existência desses conjuntos menores, parece-me acertado
afirmara relativa unidade de 8,5-18 (-23). Para tal há um motivo decisivo: os
v.s-8, v.l l-Lf e v.16-18 não são palavras públicas. O cenário não é o palá-
cio, o templo, as ruas, é o isolamento. Todas elas são palavras 'particulares',
estando reservadas a poucas pessoas. Isso é evidente nos v.11-1s e nos v.16-
18. Y.16-18 se restringem ao próprio visionário Isaías, às crianças e aos discí-
pulos. Os v.11-15 são dirigidos aos discípulos, A 'privacidade' também é uma
característica dos v.5-8. Por certo que entre 8,5-8 e 7,10-17 há semelhanças:
compare 7,10 com 8,5; 8,6-7 são uma ampliação de 7,17. Contudo, 7,10-17
é uma palavra pública à "casa de Davi". E 8,6-8 é uma palavra de esclareci-
mento do Senhor a Isaías "sobre eles"(!) (veja v.7). Em 8,5-18 estão, pois,
reunidas as palavras de Isaías, quando o profeta se retirara do palco político,
quando alguns poucos (crianças e seus discípulos) permaneceram com ele.>-
Contudo, há mais outra observação que aproxima os v.5-8 dos v.11-15 e dos
v.16-18 entre si. Trata-se do seguinte: figuras e símbolos também tinham
estado presentes nos caps.6 e 7: lembro só 7,4 e 7,14. Essa tendência de
nosso visionário se torna decisiva em 8,5-8. Em 8,6-8, toda a mensagem é
envolvida pelo símbolo da água. Em 8,14-15, toda ameaça é determinada
pelos símbolos da pedra e da caça. Em 8, 16, a profecia escrita é semelhante a
um documento jurídico. E, em 8,18, tudo o que de concreto resta para as
expectativas proféticas são "sinais e símbolos"! Realmente a figura toma con-
ta da linguagem de Isaías em 8,5-18.
Estou a falar da unidade de 8,5-18 sem, contudo, mencionar decisiva-
mente os v.[8b?]9-1O e v.19-23. Não incluí os v.19-23 nas observações de
acima, porque - devido a seu caráter fragmentário - são difíceis de entender
e porque provavelmente são textos de outra situação do que os v.s-8.ll-
15.16-18. Não incluí os v.[8b?]9-10 porque essas palavras de salvação(!)
certamente não são da situação da guerra siro-efraimita como seu contexto;

96 Confira Gerhard von Rad, "Las confesiones de [ercmías", em Estudios sobre el Antiguo Testamento, Sala-
manca, Sígueme, 1976, p,461-471 (Biblioteca de Estúdios Bíblicos, 3); original em alemão se encontra em:
"Die Konfcssionen jercmias", em Theo!ogische Bücherei, Munique, Christian Kaiser Verlag, vol. 48,1973,
p.224-235.

125
estes versículos exatamente confirmam que a [udá/lerusalérn nada ocorrerá,
o que está em evidente tensão com os versículos anteriores, em que Judá é
ameaçado (veja 7,9b.17).

Mas, o livreto continua


Ainda que o caráter de unidade que atribuo a 8,5~ 18 seja contestável,
incontestável é que a partir de 8,5 temos uma continuação de 8,1~4. Já a
linguagem figurada que prevalece a partir de 8,5 aponta para essa conclusão.
Além disso: 8,5 introduz o que segue como continuação (ysp hifil "continu-
ar ""d"
e a novamente, ""'d"')R
am a .. eaparece nos v.1213 . a ad vertencia con-
A'

tra o medo de 7 A. Fala-se no v.18 dos yeladim "filhos" (melhor: "crianças"),


que o Senhor deu ao profeta: "Um-resto -volta", "Conosco-está-Deus'', "Rá-
pido-presa pressa-saque" (7,3.14; 8,3). Eles são 'or "sinal" (v.18, confira
7,11.14). Novamente se fala do bayit "casa" (8,14.17, confira 7,2.13.17).
Ocorre repetição de vocabulário: rn's kal "repudiar" (8,6, confira 7,15), me-
lek 'axur "rei de Assur" (8,7, confira 7,17~23; 8,4).
No entanto, as pontes mais visíveis de 8,5~ 18 não estão lançadas para
7,1~17 e 8,1~4. Antes 8,5~18lança pontes para o cap.6! São muitas as liga-
ções entre 8,5~ 18 e 6, 1~ 13: em 8,6.11~ 12, Isaías volta a falar em ha~'am tia-
zeh "este povo" como em 6,9~1O. Em 7,1~8A, essa expressão não aparece.
Isaías volta a intitular Deus de "[avé Zebaote" (8,13.18) como em 6,3.5. Em
7,1~8A esse título não aparece. - Volta a preocupação pela santidade de [avé
(8, 13~ 14, confira 6,3). Esse assunto não aparecera em 7, 1~8,4. - Enfim, 6, 1~
13 provinha da teologia do templo. Em 8,18, encontramos a formulação
exata dessa teologia do templo: yhvh zebo'o: lia-xoketv be-bas s.iyan "[avé Ze-
baote que reside no monte Sião". A teologia do santuário já está em 8,6
("águas de Siloé"): 8, 14~ 15 são teologia do Sião ao inverso; 8,8b~ 10 são a
pura nata dessa teologia. - Em 8,11, Isaías inclusive retorna ao assunto do
cap.6, à 'vocação'. Em seu v.11, o comissionamento é expresso em língua-
gem bem diferente que no cap.6. Conseqüentemente o v.11 não se refere ao
acontecimento do cap.6! Lá, no cap.6, se tratava de visão e audição. Aqui o
Senhor agarra (em êxtase?) a Isaías, pois nesse sentido se há de entender a
formulação ke-nesqat ha-yad "no firmar-se a mão". A meu ver, a yad "mão" é
eufemismo para o Senhor. A mão de Deus agarra a Isaías com firmeza. (A raiz
verbal nsq significa no kal "ser firme/duro", no hifil "agarrar'") Também ou-
tros visionários ou assim chamados profetas expressam o ato de recepção da

126
palavra divina como sendo a mão de Deus que deles se apodera (Ezequiel
1,3; 3,14; Jeremias 15,17; IReis 18,46, etc.). Mesmo que no v.l l se trate de
uma linguagem e (J) de um acontecimento diferente daquele relatado no
cap.6, idêntica é a auto-compreensão e a mensagem que dele advém. Isaías
se entende, a partir deles, como mensageiro; em 6,8 isso é expresso com a
raiz verbal xlb: "enviar", em 8,11 pela 'fórmula de mensageiro' ("assim disse o
Senhor"). Isaías traz algo novo e diferente; em 6,9-12, a novidade está em
suas palavras aniquiladoras, em 8,11 a novidade está em sua conduta (derek
"caminho", "comportamento") diferente. Realmente, 8,5-18 lançam uma
ponte para o cap.6. E, com isso, também está comprovado que Isaías 6 deve
ser visto no contexto de Isaías 6-91

Em meio ao conflito militar e a crianças


A situação dos v.5-S.1I-15.16-18 ainda é a guerra siro-efraímita. Os
assírios ainda não vieram em socorro de Judá/]erusalém. E Arã e Efraim con-
tinuam a amedrontar ao rei judaíta Acaz, sua corte e capital. Se a guerra já
estivesse no fim e Jerusalém não mais estivesse sitiada, então a acusação de
conspiração (v.12) não mais faria sentido. Também os v.16-18 necessaria-
mente pressupõem que a situação de guerra ainda persiste; eles estão cheios
de expectativa pelo que há de acontecer.
A quarta cena, 8,5-18, nos fornece algumas informações sobre a pessoa
do visionário Isaías. Elas basicamente confirmam observações já feitas. Pri-
meiro: esta cena está cheia da teologia do templo de Jerusalém. Isso é total-
mente evidente no final do v.18: o Deus de Isaías é o Deus que mora no local
do templo, no Sião. Os v.14-15 estão cheios da piedade cultivada no templo.
Também a figura das águas de Siloé provém do santuário. Portanto, a quarta
cena fornece subsídios para que mais uma vez se possa afirmar que o templo
é a origem espiritual das visões e palavras de Isaías! - Segundo: Isaías recebe
ordens de escrever. É o que se conclui do v.16, ainda que a interpretação
deste versículo seja muito difícil. A escrita entra em função, depois que sua
fala, seu anúncio profético, foi rejeitado. Que Isaías tenha escrito, também é
afirmado em 8,1 e 30,8-17. Portanto, a quarta cena fornece subsídios para
que mais uma vez se possa afirmar que Isaías fazia parte daquela minoria que
sabia escrever, devendo ter sua origem na corte de Jerusalém.
A quarta cena também fornece informações sobre a situação de Isaías
naqueles dias.

127
Isaías ficou sozinho com sua mensagem. Isso é enfocado na figura do
v.6: "este povo rejeitou as águas de Siloé que correm calmamente" .97 Que
significa essa figura? "As águas de Siloé" são um canal que conduz águas da
fonte Giom, situada ao pé da colina de Sião, em cuja encosta estava edifica-
da a antiga cidade de [erusalérn." A fonte Giom estava incorporada aos atos
cúlticos em Jerusalém (IReis 1,33.45). Talvez seja ela a fonte do templo a
que aludem algumas passagens (Ezequiel 47; [oel-l, 18; Zacarias 14,8; Salmo
36,9-10; 46,5; confira Génesis 2,13). Isaías talvez queira aludir à sacralidade
das águas conduzidas pelo canal Siloé. Contudo, o que mais lhe interessa
nessas águas é que elas "correm calmamente". As águas calmas do Siloé são
uma figura para as ações do Senhor. "Este povo" rejeitou ao Senhor, especifi-
camente sua palavra na guerra siro-efraimita, qual seja: os inimigos, Arã e
Efraim, estão aniquilados; logo; não há necessidade de haver preparação para
a guerra. "Este povo", ao contrário, se definiu pelo medo e pela preparação
da guerra, pelo militarismo contra o pacifismo isaiânico. E nisso rejeitaram
ao Senhor, as águas mansas, e conseqüentemente a Isaías, o enviado do Se-
nhor. Isaías ficou sozinho com a palavra do Senhor.
Ele até está sendo aterrorizado por "este povo". É acusado de revolucio-
nário e subversivo! No v.12, a palavra qexer resume a acusação. Este termo
qexer designa a conspiração de um grupo para a derrubada de governantes e
reis. O levante de Absaláo contra Davi é qexer (2SamueI15,12). Quando
Atalia se vê deposta, grita qexer qexer (2Reis 11,14). O rei israelita Oséias
trama qexer contra os assírios (2Reis 17,4). Nestes contextos, o verbo qxr é
muitas vezes usado (ISamueln,8.13; IReis 15,27; 16,9, etc.). Se, pois, Isa-
ías e seu grupo é acusado de qexer "rebelião", "conspiração", "revolução",
então isso significa que ele está intencionando derrubar o rei Acaz, o que
aliás também arameus e efraimitas queriam (7,6)! Nosso visionário nem é o
primeiro de seu tipo a ser acusado de conspiração contra o governo. O sacer-
dote Arnazias denuncia a Amós por ter conspirado contra o rei israelita [ero-
boão II (Amós 7,10, confira IReis 18,17 -18; 2Reis 10,9-10 Elias!). Se Isaías
é acusado de conspirador e revolucionário, então é visto na tradição de um
Elias e de um Amós, opositores de reis. Nesse sentido, Isaías não está só.
Aliás, qexer ninguém faz sozinho. O verbo qxr, de que provém nosso substan-

97 Não abordo a segunda parte do v.6, isto é, v.ób, porque sua interpretação é muito complexa.
98 Confira Kurt Galling, Biblisches Reallexikon, p.157 -158.

128
tivo, tem o significado de "juntar", "ligar", "associar"?", Quem conspira está
em grupo. Nesse sentido, é significativo que o v.12 evidentemente se dirige a
um grupo de pessoas, um "vós" que se distingue de "este povo". Este "vós",
que nos v.11-15 é instruído, deve ser o grupo de pessoas que está ao lado de
nosso visionário. A partir do v.16 pode-se chamá-lo de grupo de discípulos.
O que restou a Isaías são estes "alunos/discípulos", em hebraico limu-
dim e yeladim. O que significa o v.16 é problemático. Conforme o texto ma-
sorético os "alunos" são alunos do Senhor ("meus discípulos" como em Isaías
54,13, confira 50,4). Como são designados de alunos do Senhor, é provável
que provenham do pessoal do templo. - Além dos discípulos restaram a Isa-
ías os yeladim (v.18). Almeida traduz "filhos", no que segue a Vulgata pueti
mei "meus filhos". Contudo, yeladim pode ter um significado mais geral, de-
signando "crianças" (Septuaginta: paidía "crianças"). Já que Isaías menciona
os yeladim porque neles estão registrados os sinais que o Senhor deu, parece-
me mais viável traduzir yeladim por "crianças": "Um-resto-volta", "Rápido-
presa pressa-saque" (filhos de Isaías) e "Conosco-está-Deus". Alguns alunos/
discípulos e umas criancinhas - este é o grupo que apavora os governantes
de Jerusalém! Essa gentinha de nada são os subversivos e conspiradores! Esse
é o cortiço de Isaías! Isaías emigra do templo e do saber. Sua emigração é um
processo gradual, histórico, tipicamente profético.

Pequenos sinais
A mensagem em 8,5-18(-23) não é pública! Essa é a característica dessa
unidade; diferencia-a das unidades anteriores. 8,5-18 estão dirigidos: ao pró-
prio visionário Isaías, a seus discípulos, ao Senhor (v.17!). Portanto, o ende-
reço da mensagem varia em nossa quarta cena. Se juntarmos essa observação
à constatação de acima de que nossa unidade é uma composição de breves
ditos, então se tornará evidente que devemos atentar inicialmente para a
mensagem específica de cada conjunto de versículos. Vejamos!

Um 'dilúvio' sobre Judá (v.5-8+9-1O)


Nos v.5-8, encontramos uma mensagem contra Judá (v.8!). Isso sur-
preende! Em 7,1-17 e 8,1-4, Judá nunca é mencionado como vítima de uma

99 ConfiraLudwig Kõhler, Lexicon in veteris testamenti libros, p.860.

129
ameaça. Naqueles textos - naturalmente além de Arã e Efraim - só o rei e o
clã da corte são ameaçados (confira 7,9.17). Anúncio de desgraça contra
Judá é, pois, algo específico que diferencia 8,5-8 do contexto anterior. Coin-
cide com esta mais outra diferença:
V5-8 voltam a mencionar ha-'am ha-seh "este povo" (veja também v.11-
12). Aqui"este povo" evidentemente é sinónimo de Judá. Em 7,1-17 e 8,1-4,
porém, nunca se falara contra "este povo", como não se falara contra Judá.
Quando lá (isto é, em 7,1-17 e 8,1-4) se falava de "povo" Iam, então isso se
referia, em meu entendimento, ao clã davídico. Contudo, em 6,9-10 é usada-
como em nossos versículos - a expressão ha-'am ha-seh "este povo". E, além
disso, percebe-se em 6,9-10 que também lá "este povo" é sinônimo de Judá.
Pois, em 6,11 não é só anunciada a destruição de Jerusalém, mas de "cidades"
'arim (plurall) e de "a roça" ha-'adamah. Portanto: em 8,5-8 e em 6,9-11 Isaías
usa a expressão "este povo" como sinônimo de Judá; "este povo" = Judá é
ameaçado de aniquilamento. Em 7,1-17 e 8,1-4, não se menciona "este povo"
ou Judá e, naturalmente, nem um e nem outro são ameaçados. Essasconstata-
ções insinuam uma interessante conclusão sobre a mensagem dos v.5-8.
Mas, antes de poder formulá-la, deve-se considerar ainda outra dife-
rença entre 6,1-13 e 8,5-8, por um lado, e 7,1-17 e 8,1-4, por outro lado.
7,1-17 e 8,1-4 relatam sobre a atuação pública de Isaías. 6,1-13 e 8,5-18 não
são do mesmo modo públicos. Dizem respeito a um grupo bem mais restrito de
ouvintes: Isaías, discípulos do Senhor, crianças, pessoal do templo. Na verda-
de, 6,1-13 e 8,5-18 estão centrados em Isaías e naquilo que o Senhor dele faz.
Estamos, pois, diante de duas observações. Primeira: 7,1-17 e 8,1-4 são
profecia pública. Em 6,1-13 e 8,5-18 o acento está na relação entre o Senhor
e o visionário. Segunda: em 7,1-17 e 8,1-4, a ameaça se dirige à corte real =
clã davídico. Em 6,1-13 e 8,5-18 a ameaça se dirige ajudá = "este povo". A
conclusão que a partir destas observações se impõe é a seguinte: a ameaça
que Isaías anuncia em público ainda não é tão radical como aquela que o
Senhor lhe fez ver. O anúncio público fala do aniquilamento da corte; mas
Isaías já sabe que o aniquilamento arrastará consigo um círculo muito maior
que o da corte. Incluirá todo Judá!
Para aprofundar essa conclusão, deve-se considerar que Isaías certa-
mente redigiu os caps.ó-S ( + 9?) depois que seus ouvintes na corte se decidi-
ram contra a sua palavra. Que o profeta escreveu depois de ter sido rejeitado,
está em 8,16, mas já em 6,9-11 era palpável. Por causa da rejeição da palavra

130
profética, a ameaça torna-se mais radical e abrangente. Portanto, a reação
negativa diante da palavra de Isaías amplia a ameaça. Em Isaías 6-9 vemos,
pois, como a mensagem profética se radicaliza.
Na descrição da mensagem dos v.5-S parti do fato surpreendente de
que neles Judá = "este povo" é ameaçado. Pergunto agora: de que Judá =
"este povo" é ameaçado? A resposta está nos v.7 e S. Judá é ameaçado com
uma espetacular enchente!
Vejamos, inicialmente, origem e desenrolar dessa catástrofe climática.
A origem está no ha-nahar "o rio". Trata-se aqui do rio Eufrates (veja 11,15;
Gênesis 31,21; 2SamuelS,3, etc.). Em contraste com as águas mansas de
Siloé, as águas do Eufrates são caracterizadas como "fortes" ('Q,ium) e "nume-
rosas" (rab). São "fortes", porque têm muita correnteza. São "numerosas",
porque têm muita quantidade. Formam enchentee. O rio não permanecerá
em seus 'apiqim. Isto são os canais de um rio. O estuário do Eufrates, no
Golfo Pérsico, era cheio de canais e braços. Contudo, a enchente não se
restringirá ao estuário e a seus canais. Mas atingirá "todos" (kol) os canais e,
além disso, "todas" as "margens" (gedotim). Isto quer dizer que todo, Eufrates,
em seus 2.SOO km de extensão, será uma só enchente. Até aqui, isto é no v.7,
a catástrofe descrita por Isaías permanece perfeitamente dentro do normal.
Pois, o Eufrates é, de fato, um rio caudaloso, especialmente para um morador
de Jerusalém que só conhece pequenos rios em suas redondezas. E é comum
que ocorram enchentes no Eufrates, principalmente na época do degelo das
montanhas armênias. O espetacular e catastrófico dessa enchente é que ela
atingirá Judá (v.S).
Porém, com essa afirmação já me estou antecipando. Pois, na verdade,
deve-se ser cuidadoso ao afirmar que as águas da enchente do Eufrates tenham
chegado às colinas de Judá (com altitudes de até 900 m e 1000 m acima do
nível do mar'P'). Acontece que a linguagem do v.Sé um tanto dúbia. Explico:
o verbo h.lp "passar" nunca é usado para indicar uma enchente. Em textos
semelhantes ao nosso, esse verbo diz respeito à chuva ou ao vento (Cântico
2,11; Isaías 21,1; Habacuque 1,11; Jó4,15). Isto quer dizer que no início do v.S
parece não ser afirmado que a enchente do Eufrates cobre Judá, mas que chu-
vas intensas, porém passageiras, estão se abatendo sobre Judá. Também xiP
"desaguar", "correr", "inundar", por vezes, se refere a chuvas torrenciais (veja,

100 ConfiraHarold Henry Rowley, Pequeno atlas bíblico, São Paulo,ASTE, 1966,p.3 (24p.).

131
por exemplo, Isaías 28,2; Ezequiel 13,11.13). Estas tudo arrastam consigo e
provocam uma enchente em Judá. Esta interpretação'?' é possível. Contudo,
não se deveria deixar de ver que em Judá não só choverá intensamente, mas -
nessa região montanhosa! - a enchente será total. Já o verbo xW indica nessa
direção. Pois, além de se referir a chuvas torrenciais, também descreve rios
transbordantes na enchente (Isaías 28,15.18; 30,28; Naum 1,S). Na mesma
direção indica o verbo 'br "transbordar" (confira Isaías 28,lS; 54,9). Porém, a
prova mais contundente de que não se deve pensar num aguaceiro, mas numa
enorme enchente está no início e no fim da ameaça nos v.5-S. Início: o Se-
nhor ('adonay!) está fazendo subir ('lh hifil) as águas "contra eles" 'alehem. Isto
quer dizer que, de princípio, a descrição da enorme enchente do Eufrates (no
v.7) tem a "este povo" = Judá como alvo. São realmente as águas do Eufrates
que chegam a Judá. Fim: a afirmação final é de que a água "chegará até ao
pescoço" ('ad-sava'r yagia'). As águas dessa monumental enchente vêm do
Eufrates e, em Judá, serão acrescidas de grandes aguaceiros. Assim Isaías, na
verdade, está anunciando uma catástrofe de dimensões universais (veja 6, 12!).
Judá estará submersa. Isso é como que um 'dilúvio'!
A ameaça que paira sobre Judá é, pois, essencialmente climática. Con-
tudo, num ponto a figura usada começa a ser rompida. Pois as colossais águas
do Eufrates são identificadas como sendo "o rei da Assíria e toda sua glória"
('et melek 'axurve-'et kol kebodo, v.7). Aí, nessa alusão, se pode ver que, para
Isaías, a catástrofe não só ocorrerá através de acontecimentos climáticos,
mas também, talvez principalmente, através de acontecimentos históricos.
Por certo, não se deve valorizar demais essa pequena alusão no v.], ainda
mais que nela, em geral, se vê um adendo posterior. 102 O essencial na ameaça
de Isaías, de fato, não é um acontecimento histórico (uma guerra 103), mas um
acontecimento climático. Aliás, no mesmo nível se encontra a ameaça de
Isaías em 6,11. O fim de Judá será uma catástrofe climática e ecológica.
Estou a dizer que nos v.5-S se fala do fim de Judá. Realmente, não se
deveria querer ver no fato de a água só chegar ao pescoço algum grande sinal
de esperança. Nessa situação de 'dilúvio' desde o Eufrates até às colinas de
Judá, estar com a cabeça fora d'água é antes o sinal de que nada mais resta

101 Ela se encontra em Hans Wildberger,Jesaja 1-12, p.326.


102 Confira, por exemplo, Otto Kaiscr, Der Prophetlesaja Kapitell-12, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht,
5'(!) edição, 1981, p.178-181.
103 Assim Hans Wildberger, lesaja 1-12, p.325-326. A segunda parte do v.8, isto é, v.8b, não poderia estar
indicando para o poder avassalador do exército assírio!

132
que afogar. Se alguma salvação houver nessa situação extrema, então esta só
poderá estar no poder do Senhor. (Seria este o significado da segunda parte
do v.S, isto é, do v.Sb, e dos v.9-10?)
Mas, afinal, por que Isaías está anunciando que do Eufrates vem a
catástrofe contra Judá? Não parece ser suficiente indicar para o fato que a
Assíria era a potência da época. Para aprofundar o assunto convém lembrar a
situação histórica: os exércitos de Arã e Efraim continuavam a cercar Jerusa-
lém; a corte real jerusalemitana se havia preparado para o cerco; estava apavo-
rada, porque a intenção de sírios e efraimitas era a substituição do rei davidida:
nessa situação os davididas recorreram aos assíriospara deles pedir ajuda (2Reis
16,7-9!). Nesse ambiente foram articulados os v.5-S. E vêm a ser uma crítica
clara ao pedido de ajuda da Assíria. São uma palavra profética sobre a política
internacional dos davididas, Os davididas rejeitaram as 'águas mansas' (v.ó).
Rejeitaram ao Senhor e a força do pacifismo do próprio povo. E agora estão
recorrendo ao grande império da época para poder livrar-se dos dois pequenos
estados vizinhos, Arã e Efraim. Mas, este império assírio, este pretenso 'irmão
maior', que os davididas estão chamando, trará morte para Judá. O império
não pode ajudar e nem salvar, só avassalar. Diante de uma palavra profética
como v.5-S temos que nos perguntar: convém que os pequenos e dependentes
recorram aos impérios? Pois, em suas águas só há morte! A história de nossa
própria terra não dá um testemunho eloqüente a este respeito?
Resumindo a palavra dos v.5-S: Judá será inundado pelas águas do
Eufrates. Ao rejeitar ao seu Senhor, as águas mansas, sujeitou-se aos que o
aniquilarão!

A torah-orientação para os discípulos (v.II-I5) 104


Passando, agora, para a análise da mensagem dos v.II-I5, lembremo-
nos que estes versículos fazem parte de uma unidade maior (S,5-IS), mas que
nela têm suas características particulares. A mensagem nos v.II-I5 - intro-
duzida com a 'fórmula do dito de mensageiro' ("assim disse o Senhor") -
refere-se a dois grupos diferentes. Os "vós", que provavelmente são os ami-
gos/discípulos de Isaías, são admoestados, instruídos (v.11-13). Outros são
ameaçados (v.14-15). A mensagem destes v.I4-15 é semelhante à dos v.5-S.
Por isso falemos deles primeiro.

104 Veja Mairolct Vega Comas, Santificarás a Javé- Um estudo de Isaías 8, I 1-15, São Bernardo do Campo,
Universidade Metodista de São Paulo, 2007, 128p. (dissertação de mestrado).

133
A ameaça dos v.14-15 tem lá suas características especiais. Observo
três:
Primeiro: os v.14-15 referem-se de modo peculiar ao endereço da ame-
aça. No v.8 era Judá. Nos v.14-15 são mencionados: "as duas casas de Israel",
"o 'morador' de Jerusalém", "todos".
Inicialmente a ameaça diz respeito às organizações políticas no povo
de Deus. Nesse sentido, interpreto a expressão "as duas casas de Israel" xene
bate yisra'el. Nela a palavra bayit "casa" se refere principalmente à casa real, à
dinastia, a quem é abarcado pelas duas instituições monárquicas. Esse era
também o caso em 7,2.13.17. A "casa" é o conjunto de pessoas organizadas
como grupo-estado, o todo da população ativa na organização do reinado
(confira 2Samuel2,4j 12,8, etc.), lembrando-se, contudo, que este não é o
todo da população. A esse grupo-estado Isaías designa de "casas". Note-se
que "Israel" não designa aqui o reino do norte, pois este Isaías (nos caps.6-9)
não denomina Israel, mas Efraim (confira 7,2.9, etc.). Israel é aqui o todo do
povo de Deus dividido em "duas" (xenayim) organizações políticas (confira
7,17). Juntas, estas "casas" sucumbirão. Reencontrar-se-ão em seu fim. Nisso
está a trágica ironia dessa ameaça. Pois, nos caps.7 e 8, Isaías iniciara por
anunciar destruição a Efraim, lutara com sua profecia para que Jerusalém e
Judá retornassem (7,3), confiassem no Senhor (7,9). Isto é, inicialmente
nosso visionário havia diferenciado claramente o reinado do norte (= Efra-
im) do reinado do sul (= Judá). Mas, agora, após a rejeição da profecia por
"este povo", o caminho de ambos passava a ser igual. Contudo, o final das
"casas" não é o fim de Israel!
A ameaça se refere às instituições políticas. Nela, as pessoas, especial-
mente em Jerusalém, são incluídas. Neste particular, chama a atenção a ame-
aça contra o yoxeb yeruxalayim, usualmente traduzido por "morador de Jeru-
salém", pois yxb pode ser "morar". Tal compreensão de yoxeb pode estar ade-
quada. Mas, creio que não para Isaías 8,14, onde o "morador de Jerusalém" se
encontra em paralelo com "as duas casas de Israel", quer dizer com os dois
estados monárquicos, um no norte e outro no sul! Neste contexto, o "mora-
dor" é, de fato, o "governante", o que senta no trono! A raiz yxb pode ter este
justo sentido "governar". 105

105 A respeito de yoxeb e yoxebim, veja a obra de Norman Karl Gottwald, As tribos de Iahweh - Uma sociologia
da religião de Israelliberto 1250-1050 a.c., São Paulo, Paulinas, 1986, p.Sü4-S59 (932p.) (Colcção Bíblia c
Sociologia, 2).

134
Proponho que argumentemos, uma vez mais, a respeito deste sentido
precípuo de "morador de Jerusalém" e de "as duas casas de Israel". Para bem
avaliar a mensagem de Isaías, no v.14, é preciso reconhecer que estas duas
expressões estão em paralelismo (confira Isaías 22,21). Nosso visionário, colo,
ca "as duas casas de Israel" e "o morador de Jerusalém" intencionalmente em
correlação lado a lado. Qual é essa intenção? Para encontrar uma resposta
devemos tentar definir mais exatamente quais são as grandezas ameaçadas no
v.14. Ora, ameaçados são: a nação - isto é, Israel, suas formas de organização
estatal, seus dois reinados - e os mandantes na capital de um dos estados. Feita
essa descoberta, pode-se anotar que em 7,8,9 Isaías usa um esquema parecido
(confira também 7,4). Porém, a conseqüência que se deve tirar dessa descober-
ta vai além dessa comparação. A descoberta é que a crise básica que Isaías prevê
é a do reinado! A anunciada catástrofe definitiva parte de uma crise concreta: a
crise da instituição do reinado! Na verdade, essa constatação também afirma
que, a partir da oposição da casa real à palavra profética (7,1,8,41) e do anún-
cio da destruição dessa casa real (7,17!), a catástrofe se alastrou: ajudá (8,8), a
todos (6,1l,13), talvez à humanidade (6,12; 8,6,8)106. Conseqüentemente:
(1) 6,9,13 não é o ponto inicial, mas o ponto final, a súmula da ameaça; (2) a
eventual ampliação da catástrofe é extensão da crise do reinado.
Em 8,15, temos, de certo modo, mais uma ampliação. Pois aí - no
espaço de Jerusalém - todos são atingidos pela ameaça. Na tradução usual do
início do v.15 para o português ("e dentre eles muitos tropeçarão"), isso não
fica bem claro. Pois, a palavra "muitos" parece incluir a grande maioria, excluir,
porém, outros tantos. Mas a palavra hebraica não favorece essa compreensão,
pois rabim não exclui alguns de uma maioria, mas os inclui. Por isso, rabim deve
sertraduzido por "todos" (veja Isaías 2,2,3!).107 Mas estes "todos" estão "dentre
eles", dentre "o morador" e "as duas casas". Logo, o "todo" não diz respeito à
população geral de Israel, mas a seus dirigentes! Estes sim: todos!
Segundo: comparando com os v.5,8, os v.14, 15 não só falam diferente
dos endereçados da ameaça. Referem-se também diferente do acontecimen-
to anunciado. Nos v.5,8, o fim ocorre como um 'dilúvio'. Diferente nos v.14,
15. Neles o visionário usa duas figuras para descrever o fim do senhorio:

106 Digo aqui: à humanidade, mas sei que o sentido isaiânico destes versículos é menos amplo, como mostrei
nas respectivas passagens em questão.
107 Joachim Jeremias, "Pollós", em Theologisches Worterbuch zum Neuen Testament, editado por Gerhard
Kittel,Stuttgarr, Kohlhammer, vo1.6, 1959,p.536-538.

135
Uma é a figura da caça. Os ameaçados são como caçados. São citadas
as armas de caça: pan e moqex. O termo pan é usado para prender pássaros; é
um tipo de arapuca.l'" O outro termo, moqex, provavelmente é um desses
instrumentos de caça, que são arremessados, um tipo de bumerangue ou dar-
do.'?' Com estas duas armas de caça os ameaçados "serão capturados" e "pre-
sos". Os verbos yqx nifal e lkd nifal (veja 2S,13) "capturar", "prender" são
sinônimos.
A outra é a figura de alguém que, ao andar e correr, esbarra e cai. Ele
esbarra em "pedra" 'eben e "rocha" ~ur. Para o que caminha, "pedra" e "rocha"
se tornam "tropeço" (negep) e "estorvo" (mikxol). Ao bater nesses obstácu-
los, "tropeça" (kxl), "cai" (npl nifal) e "é quebrado" (xbr nifal).
Para "as duas casas de Israel", o "morador" (= governantel) de Jerusa-
lém" e os "muitos/todos", as duas figuras - a da caça e a do que anda a correr
- contêm uma mesma mensagem: serão quebrados, serão presos. Portanto,
em seu conteúdo a mensagem dos v.14-15 não é diferente dos v.5-S.
Terceiro: a figura da enchente do Eufrates nos v.5-S certamente foi
provocada pela realidade do poderio assírio. O próprio v.7 identifica o Eufra-
tes com o rei da Assíria. Isto significa que nos v.5-S a motivação real da
linguagem é política. Nos v.14-15 a linguagem provavelmente não só foi
motivada pelos exércitos inimigos que estavam por vir a cercar e aprisionar a
cidade de Jerusalém. Nos v.14-15 a motivação da linguagem é religiosa. Isso
a gente já começa a perceber, quando vê que as figuras de caça e de tropeço
são comuns nos salmos: Salmo 27,2; 69,23 (= 69,22 Almeida); 91,3; 119,110;
124,7, etc. Ao usar essas figuras, Isaías parece ter adotado uma linguagem
típica da oração (veja v.17). Que nossos v.14-15 estão determinados por
uma linguagem religiosa, vê-se de maneira ainda mais clara ao constatar que
'eben e ~ur não se referem a "pedras" e "rochas" quaisquer. O templo de Jeru-
salém estava construído sobre uma rocha! A partir daí tornou-se símbolo
para a ajuda de Deus (Salmo lS,3; 62,3, erc.). Contudo, a prova mais evi-
dente de que os v.14-15 estão impregnados de linguagem religiosa é o início
do v.14. Ali é expressamente mencionado o "santuário" miqdax. Portanto, a

108 Confira Gustav Dalman, Arbeitund Sittein Palastina, Hildesheim, Olms, vo1.6,1964 (reimpressão = 1939),
p.321.338-340 (XlIp. + 396p.); e M. L. Henry, "Vogelfang", em Biblisch-Historisches Handwiirterbuch-
Landeskunde, Geschichte, Religion, Kultur, Literatur, editores Bo Reicke e Leonhardt Rost, Gotinga, Vande-
nhoeck & Ruprecht, vol.J, 1966, p.2111.
109 Confira Hans Wildberger,Jesaja 1·12, p.339.

136
linguagem encontrada nos v.14-15 é a linguagem religiosa usada no culto de
Jerusalém. Porém, o conteúdo apresentado através dessa mensagem é exata-
mente o inverso das afirmações cúlticas usuais. No culto se diz que Deus é
refúgio, que salva das arapucas e dos dardos, que faz cair os inimigos. Mas
Isaías profetiza o contrário: Israel está caindo sobre sua própria pedra de sal-
vação! Deus mesmo se tornou escândalo para "o governante" e "as duas
casas"! Deus mesmo os faz cair e se quebrar!
Nestas três observações de acima quis assinalar as semelhanças de con-
teúdo entre v.5-8 e v.14-15 e, ao mesmo tempo, apontar para as característi-
cas próprias dos v.14-15.
Enfocamos, primeiramente, os v.14-15, procurando clareá-los. Mas,
estes dois versículos só representam a parte da ameaça no conjunto formado
pelos v.ll-1S. A primeira parte desse conjunto, os v.II-l3, são uma instru-
ção, uma torah ou 'torá', a um "vós", isto é, a meu ver aos discípulos. Essa torá
consiste de proibição e mandamento.
A primeira proibição diz respeito à situação do momento. Isaías estava
sendo acusado de "conspiração" (qexer). Ele proíbe seus discípulos de acom-
panhar essa acusação: "não direis: conspiração!". Isaías deve ter sido acusado
de conspirador por causa de suas palavras contra elites e corte: ameaçou os
davididas (7,17; 8,14-15); prometeu um novo rei (9,1-6; 11,1-5).
A outra proibição de 8,11-13 repete uma exigência anteriormente fei-
ta. A proibição de medo ("e seu medo não temais e não tremais", v.12b) está
em 7,4. Lá como aqui a palavra central para expressá-la é yr' "temer". Em
7,4, esse verbo era acompanhado por rkk "ser temeroso". Em nosso v.12 (con-
fira v.13 e 29,23), yr' é acompanhado por 'rshífíl "tremer". Mas essa variação
de Isaías no uso dos vocábulos para descrever o medo já conhecemos de
7,6(.16), onde encontramos o verbo qv~ hífil "apavorar". Portanto, tanto a
mensagem de 8, 12b quanto seus vocábulos de maneira alguma são novos. A
novidade está no endereço! O que antes fora dito à casa real (7,4), é dito,
agora, aos discípulos. Estes são, por assim dizer, os substitutos da corte. Este
grupo insignificante em torno de Isaías são, para a palavra profética, os 'her-
deiros' da corte!
No mandamento do v.13, as duas proibições anteriores (no v.12) che-
gam a seu alvo. Nesse v.13 palpita algo central na mensagem isaiânica. Fala
de Deus como yhvh~eba'ot "[avé Zebaote". É seu nome e título em 6,3.5! A
ele se deve santificar (qdx hifil "considerar santo"). Eis, o ponto de partida da

137
visão (6,3). A ele se deve "temor" yare' e "tremor" maaris (particípio hifil de
'r~). É o que Isaías não encontrou na casa real, pois esta estava apavorada
com o cerco de sírios e efraimitas. Temiam aos inimigos, como haveriam de
temer ao Senhor (7,4.6.16)? Nessa exigência novamente se vê (confira v.12b!)
que a esperança de Isaías é a de que os discípulos realizem o que nem foi
começado a ser realizado pela corte: temor ao Senhor. Mas no v.13 não ocor-
re só este 'deslocamento' (tarefa da corte passa a ser tarefa de um pequeno
grupo). Há mais outro 'deslocamento' qual seja: dos discípulos Isaías espera o
que viu nos serafins (6, 1~4). Os serafins santificaram ao Senhor. É o que
espera dos discípulos.
Em resumo: o "vós" dos v.l l-Li, os discípulos, tornaram-se herdeiros
da corte e réplica dos serafins. Aí inicia uma nova comunidade! Nos v.16~ 18
ficamos sabendo da angústia e da esperança desse novo povo de Deus:

Mas há esperança! (v.16~18)

Os v.16-18 são, sem dúvida, um certo aglomerado defragmentos, que, de


algum modo, têm sua continuação nos v.19-23. Cada versículo está comple-
to em si; não necessita do anterior e do posterior. (Este caráter fragmentário
do texto encontra-se também nos subseqüentes, os v.19-18.) Dois versículos
(v.17~ 18) são, nitidamente, palavras de profeta; são confissões; falam em "eu".
Mas o v.l6 é palavra do Senhor; é imperativo.
Se nesse aglomerado de unidades que não vão além de um versículo
perguntarmos pela mensagem, então convém descobrir a mensagem central
em torno da qual se aglutinam as demais. Vejo esse centro no v.l7: "aguarda-
rei em Javé ... nele esperarei". Esperança é a característica da nova comunida-
de, expressamente delineada a partir do v.1I. Na realidade, nada daquilo
que Isaías anunciara havia acontecido até aquele momento: Arã e Efraim
ainda não estavam destruídos, mas continuavam a cercar Jerusalém; Judá e
Jerusalém igualmente ainda não estavam sendo alagados pelas águas do Eu-
frates. Nessa situação concreta, Isaías fala em "esperar no Senhor", isto é, o
visionário permanece na expectativa de que o Senhor realize aquilo que lhe
mandou anunciar. Portanto, não seria suficiente dizer que Isaías espera pela
redenção pessoal diante do assédio dos adversários (confira 8,12!, como ocorre
freqüentemente nos salmos; veja Salmo 27,14; 39,8, etc.). O conteúdo de
sua esperança é sua própria mensagem. Aliás, o próprio v.17 o diz de maneira
totalmente inequívoca. Pois, o Senhor, no qual nosso vocacionado espera, é

138
aquele que "esconde seurosto da casa de Jacó". Essas palavras podem ser definidas
como um resumo da mensagem profética nos caps.? e 81 Se o Senhor está se
afastando (observe o particípio no hebraico'), então isso significa morte para
"a casa de Jacó", isto é, em especial para o norte, para Efraim.
Nessa situação de expectativa, Isaías não está só (v.18). Está com "cri-
anças" que lhe são sinais de antecipação e garantia de seu anúncio. Através
delas o anúncio profético está presente e vai se realizando. Além de estar
com"crianças" (e discípulos, v.16), está com a tradição. Aquela parte final
do v.18 é como que a 'identidade religiosa' de Isaías: "[avé Zebaote que resi-
de no monte Sião". Como aqui, Isaías recorre sabidamente várias vezes à
tradição do Sião (1,8-9; 2,1-5; 14,24-32, etc.): observávamos no cap.6 como
o templo - o monte Sião é o local do templo! - era decisivo para Isaías.'!"
Portanto: o anúncio de Isaías contra Efraim, davididas, elites de Judá, Jerusa-
lém parte da tradição que em Jerusalém era mais cara, a tradição de Sião. O
Senhor que se volta contra os mandatários de seu povo é realmente o Deus deste
povo (confira também 8,14-15)!
Na situação de expectativa, Isaías não só não está sozinho, também
não fica inativo. A esperança ativa! Na expectativa pela concretização do
anúncio profético, anota sua mensagem! Ao bem da verdade se deve anotar
que essa interpretação que estou atribuindo ao v.16 não é a única interpreta-
ção possível. O v.16 é um versículo discutido. 11I Contudo, claro me parece
que os infinitivos absolutos ior e hatom podem ser traduzidos como imperati-
vos. 112 Além disso, os dois verbos, no meu entender, necessariamente pressu-
põem que Isaías se refere a algum documento. Pois, ,ivr significa concreta-
mente"embrulhar", "amarrar" (veja 2Reis 5,23; 12,11 = 12,10 Almeida). E
htm significa "selar", "lacrar" (uma carta IReis 21,8, uma escritura Jeremias
32,10, um livro Isaías 29,11, etc.). Esses dois verbos, tão concretos, sugerem
a que se veja no v.16 uma ordem do Senhor para que Isaías anote suas pala-
vras (confira 8, 1; 30,8-17!). Naturalmente falta a ordem expressa para escre-
ver. Mas isso se explica pelo fato de que o interesse do v.16 está na função do

110 Sem aqui poder aprofundar a questão, aponto para o interessante capítulo sobre Isaías em Gerhard von
Rad, Teologia do Antigo Testamento, p.583.594. Veja também Odi! Hanncs Steck, Friedensvorstellungen im
altenJerusalem - Psalmen, Jesaja, Deuteojesaja, Zurique, Theologischer Verlag, 1972, 75p. [Theologische
Studícn, 111].
111 Confira a este respeito os comentários, por exemplo, Hans Wildberger, Jesaja 1-12, p.342.354; e Otto
Kaiser, Der ProphetJesaja Kapite11-12, p.188.192.
112 Oskar Grcther, Gramática hebraica, 1968, § 85g.

139
livro (rolo) e não em seu surgimento. É o que os substantivos deixam bem
claro. Como objeto dos verbos não é usado o termo seper "rolo", "livro",
"carta", mas palavras que falam da função do livro. E a função é a de ser
te'udah e torah. O termo torah indica "orientação", em especial a orientação
sacerdotal (confira jr 18,18!). Aqui, em nosso caso, trata-se da torah do que
profetiza (veja 7, 4-5; 8,20; 9,14). Como torah poderíamos designar as proi-
bições e o mandamento de 8,12-13. Também 7,4.9b são um tipo de torah. A
outra função da palavra escrita de Isaías é a de ser te'udah. Além de se encon-
trar em nosso contexto imediato (8,20), esse termo só aparece mais uma vez
em Rute 4,7. Lá designa um ato de confirmação de um negócio; é um tipo de
atestado, de escrituração. Trata-se de um documento com valor jurídico.
Isaías usara o verbo 'vd hifíl (nosso substantivo te'udah é formado a partir
desse verbol) em 8,2 onde pessoas importantes e fidedignas de Jerusalém são
testemunhas de sua palavra escrita. Nessa direção também se deveria com-
preender te'udah em nosso v.16: aquilo que nosso visionário escreve é guar-
dado ("embrulhado", "selado") como se fosse um documento. Quando se
realizar o que está anotado nesse documento, isto é, em Isaías 6~8( +9), en-
tão o livro o atestará. O "livro" testemunha o que virá. A escritura surge na
expectativa do que vem. Ao menos a partir de Isaías 8, 16, deve-se dizer que
a Bíblia não só existe por causa do que aconteceu, mas por causa do que
acontecerá. É muito mais um livro de visão, do que de tradição!
Se essa nossa interpretação do v.16 estiver correta, então nele está a
ordem que deu origem aos capítulos que estamos examinando. O v.16 carac-
teriza a situação e a intenção, em que surgiram nossos caps.ó-S (+9) do livro
de Isaías. Is 6~9 foram escritos antes do final da guerra siro-efraimita, em 733
a.c. As profecias de Isaías na situação daquela guerra haviam sido rejeitadas
em Jerusalém. Na expectativa do cumprimento de seus anúncios contra as
autoridades em Arã, Efraim e Judá/Jerusalém, o profeta anota seus ditos. O
anúncio oral e sua rejeição precedem à letra. A letra fixa o anúncio do pro-
fético, não por causa do passado, mas por causa de sua realização futura. A
letra anseia por realização!

Gente "acabrunhada e esfomeada" - Uma releitura


Isaías 8, 19~23
Estes nossos versículos não estão bem preservados. Afirmo-o de início
para indicar a provisoriedade dentro da qual os interpretamos.

140
Seu caráter algo como fragmentário indica não só uma má preservação
do trecho, mas principalmente que estamos diante de uma releitura do que
precede. Penso que o percebemos na primeira frase do v.20: "à instrução e à
atestação!". Que sentido teriam tais exclamações - em nossa tradução ao
menos as traduzimos neste sentido - em meio a um texto? Ora, trata-se de
uma reverberação do v.16. Em outras palavras, os v.19-20 tendem a propor
uma exegese de versículos a seu redor. Esta é, a meu ver, a razão para as
dificuldades do texto: são comentários fragmentários a palavras isaiânicas.
Aqui ainda não estamos na apocalíptica, como me parece ser o caso de
7,18-25. Devemos estar mais próximos a Isaías, mas já nos séculos pós-exíli-
cos da extorsão persa, geradora de violência e pobreza na Palestina.
19E se vos disserem,

consultai os espíritos (dos mortos) e os adivinhos,


os que chilreiam e murmuram,
não deve um povo consultar os seus deuses, os mortos em favor dos vivos?
20 À instrução e à atestação!
Se não se exprimirem segundo esta palavra de que não há para ele ( =
povo?) aurora... 113

21Atravessa a terra, acabrunhado e esfomeado.


Sob o efeito da fome, irrita-se,
e amaldiçoa o seu rei e o seu Deus.
Volta-se para o alto,
22depois olha para a terra
e eis: angústia e trevas, escuridão angustiante,
noite para a qual é enxotado,
eis, não (haveria) escuridão para aquela (isto é, terra) que está em
angústia! ?114

23Mas não há mais a escuridão para a terra que estava na angústia.


Como o primeiro tempo envergonhou!" a terra de Zebulom e a terra

113 Recomendo consultar para a tradução e interpretação destes dois primeiros versículos: Otto Kaiser, Der
Prophet]esaja Kapitell.12, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 5ª edição, 1981, p.l92 (Das Alte Testa-
ment Dcutsch, 17).
114 Estes v.21-22, em boa medida, seguem a tradução da Tradução Ecumênica da BíbliafTEB, São Paulo,
Loyola, 1994, p.617 (248Op.).
115 Ou: como nos primeiros tempos, ele [Deus?] envergonhou?

141
de Naftali, assim o último (isto é, tempo) tornará glorioso (ou: no últi-
mo tempo ele [Deus?] tornará glorioso) o Caminho do Mar, a Transjor-
dânia, a Galileia dos Povos. 116
Os v.19~20 são uma reflexão exegética. Não chamaria estes dois versí-
culos propriamente de profecia, mas de aplicação exegética. Não haverá "au-
rora", futuro, amanhã, para quem não se orientar por "esta palavra". No caso,
esta palavra é o texto do profeta Isaías. O futuro do 'povo' (seria este o "para
ele" do v.21b?) depende da orientação bíblico-profética.
A profecia se tornou "instrução e atestação", quer dizer, basicamen-
te, torahl"orientação". Lê-se, pois, o profeta Isaías para obter "orientação't/
instrução e "atestação'vtesternunho. Mas estes advêm de "esta palavra" es-
crita, do texto.
Ora, tal palavra profética escrita é utilizada, no v.19, no sentido de
contrapor-se à necromancia e a adivinhações (veja lSamuel 28). Já não
estamos em dias de Isaías, mas seu texto que insiste no valor da torah (8,16),
ao passar a outros e novos contextos de vida, continua a ter sua importância.
Os v.21-22 bem que ainda podem estar na continuação do cabeçalho
do v.19 "e se vos disserem". Enquanto"esta palavra" profética prevalecia no
sentido dos v.19-20, agora impõe-se a dor do 'povo'. Este conceito 'povo' a
rigor não aparece, mas talvez possamos incluí-lo hermeneuticamente.
O foco recai sobre o "acabrunhado e esfomeado" ou, em outros ter-
mos, sobre o "oprimido e afadigado"!". Este é o assunto, o tema. Entendo
que aí há referência aos "meus discípulos" e às crianças portadoras de espe-
rança nos v.16-18. Mas, este resto sobrante, aos olhos dos v.21~22, diferente
que os de Isaías, sofre na miséria em que Judá e Jerusalém foram transforma-
das pelo exílio. A tônica é a do livro das Lamentações e de [ó: a miséria
tomou conta. Para este "acabrunhado e esfomeado" tudo é "noite", como o
expressa o final da lista de sofrimentos, vividos por esta gente pobre.

116 Aqui não estou incluindo o início do v.23: "eis que, não (haverá) escuridão para aquela (isto é, terra)
que está em angústia". Pois, por um lado, esta frase ainda há de se referir ao v.22 (assim BibliaHebraica
Stuttgartensia), c, por outro lado, a tradução, acima apresentada, permanece sendo só uma possibilidade.
Uma interpretação diferente do começo do v.23 apresenta C. F. Whitley, "The Language and Exegesis
oflsaiah 8,16-23", cm Zeitschriftfürdie alttestamemliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruyrer, vo\.90,
1978, a partir da p.33.
117 Veja José Severino Croarto, Isaías vai.1: 1-39 - O profetada justiçae da fidelidade, Petrópolis, Vozes, 1989,
p.72.(Comentário Bíblico).

142
Decisivo me parece que estes grupos de "oprimidos" "atravessam a ter-
ra". Trata-se de grupos de pobres andarilhos, sem lar e sem teta. Guiados pela
fome, sem rei e sem Deus, vagueiam pela vida sem céu e sem terra. Só "noi-
te"! Estes já não são os pobres que ainda têm alguma vinculação com as
aldeias e as roças. Estes "esfomeados" de nossa passagem, de certo modo víti-
mas dos anúncios de destruição veiculados pela profecia, vivem a pobreza
radical! É este o lamento de nossos dois versículos.
A defesa dos mais pobres e "afadigados" não só é tema do profeta Isaías
(3,14-15 e 10,1-2), mas também é a ótica de quem transmitiu a profecia e
lhe propôs releituras, como a de nossos versículos. Inspirada não é só a pro-
fecia originária (no caso Isaías), mas também seus intérpretes.
Entendo que o v.23 é parte dos v.19-20+21-22. Neste sentido, o de-
bate que tem havido em relação a 9,1-6 tem sua razão de ser. Pergunta- se
seguidamente, se o v.23 não seria parte de 9,1-6, o que chegou a ter influen-
cia na numeração dos versículos, por exemplo na Septuaginta (na tradução
grega). A respeito, falaremos em detalhes no próximo capítulo, na aborda-
gem de 9,1-6. E aí chegaremos ao resultados de que não se pode querer vin-
cular o v.23 com 9,1-6. Afinal, o v.23 é o ápice de v.19-20 + v.21-22, e não
a abertura de 9,1-6!
No v.23, nega-se o ar de fatalidade de que as duas sub-unidades ante-
riores estavam imbuídas, em especial a segunda. Afirma-se esperança. As
trevas não prevalecerão! Parecia que assim viesse a ser, que trevas e angústia
obtivessem a vitória. Mas isso não vale nem para Judá (veja 9, 1-6) e também
não para as extremidades norte de Israel (Zebulom e Nafatli). Até para aque-
las distantes terras, já sob domínio estrangeiros, sob controle das nações/
goyim há futuro.
Estas são vozes exegéticas pós-exílicas. Trata-se de comentários atuali-
zantes dos textos isaiânicos para os tempos de dominação persa, quando a
escuridão parecia que viria a tomar conta, mas quando se abrem novos hori-
zontes messiânicos para as comunidades de "acabrunhado e esfomeado", para
gente sem eira nem beira.

Retomando os caps. 7.. 8


Isaías 7-8 é uma composição. É formada de uma introdução (7,1-2) e
de quatro cenas/episódios (7,3-9; 7,10-17; 8,1-4; 8,5-18). A quarta cena tem
caráter aglomerativo, até fragmentário. Foram adicionadas, posteriormente,

143
a estas quatro cenas outras palavras (7,18-25; 8,19-23). Mas a tendência
para tais aglomerações está dada na própria quarta cena.
Essa composição tem uma só situação. É a situação da guerra siro-efrai-
mita em 734/3 a.C; isto é, do cerco que Arã e Efraim impuseram a Jerusalém
com o intuito de depor o rei davidida e de forçar Jerusalém/Judá a acompa-
nhar a aliança anti-assíria.
Essa composição tem um palco relativamente restrito. Esse palco é Je-
rusalém. As cenas têm lugar nas redondezas de Jerusalém (7,3-9), no palácio
real (7,10-17), no pátio do templo (8,1-2), na casa de Isaías (8,3-4.5-18).
Pelo que se vê, o ambiente original de Isaías é a corte real e o templo de
Jerusalém.
Essa composição tem um assunto básico. E esse é a atitude da corte real
diante da mensagem profética. Diante da ameaça militar siro-efraimita, Isa-
ías propõe pacifismo e anuncia o aniquilamento dos agressores. A corte rejei-
tou essa mensagem, motivo pelo qual a ameaça que de início só incluía Arã
e Efraim passa a incluir também os davididas, a corte, os governantes de
Jerusalém, Judá. Contudo, uma ameaça contra o templo de Jerusalém não se
encontra em Isaías 6-9.
Essa composição inicia com Isaías em confronto com a corte. E ela ter-
mina com o isolamento do profeta. Vai da corte aocortiço. Por cortiço entendo
aqui o pequeno grupo de pessoas, insignificantes em termos de poder, que fica-
ram ao lado de Isaías: algumas crianças e alguns amigos/discípulos.
Nessa situação de isolamento, surge um documento escrito de Isaías.
Seu "livro" aguarda a realização da mensagem; tende ao futuro. Este docu-
mento está no atuallivro de Isaías. E certamente é formado pelos caps. 7 e 8
e, além disso, pelos caps.6 e 9. No cap.9 encontramos o provável fim desse
documento/livro de Isaías da guerra siro-efraimita.

144
3 .. Na provocação
Isaías 9,1~6

A leitura, a meditação e o estudo de Isaías 9, 1~6 (isto é, Isaías 9,2~ 7 em


diversas traduções, entre elas a de João Ferreira de Almeida') podem partir
de duas motivações.
Primeira: para a comunidade de Jesus, o acesso a Isaías 9, 1~6 ocorre
através do Novo Testamento. Pois, em Mateus 4, 15~ 16 são citados Isaías
8,23 e 9,1. E em Lucas 1,32~33 percebem-se alusões a Isaías 9,1,6. Essa ob-
servação de que Isaías 9, 1~6 está presente no Novo Testamento nos força às
seguintes perguntas:
(1) Isaías 9,1~6 está no Novo Testamento! Então, por que retomar ao
Antigo Testamento?
(2) O Novo Testamento já relaciona Isaías 9, 1~6 a Jesus, e é dele que
importa falar! Portanto, por que retomar a um texto que só aponta implicita-
mente para alguém (isto é Jesus), do qual o Novo Testamento fala de manei-
ra muito mais plena e explícita?
Cada qual há de perceber que nessas perguntas está em jogo um pro-
blema complexo. Esse problema é a relação dos dois testamentos, do Antigo
e do Novo Testamento. O estudo de Isaías 9, 1~6 inevitavelmente inclui a
pergunta pela relação de Antigo e Novo Testamento. No modelo de Isaías
9, 1~6 teremos que avaliar a existência de dois testamentos. - No final dessa
meditação e desse estudo sobre Isaías 9, 1~6, havemos de retomar às pergun-
tas de acima. Contudo, já agora é possível constatar o que é evidente: (1) Só
parte de Isaías 9, 1~6 está no Novo Testamento. Mas, certamente, é insuflei-
ente considerar só parcelas, fragmentos do todo de um trecho. Portanto, já
que o Novo Testamento cita nossa passagem só fragmentariamente é neces-
sário retomar ao todo que está no Antigo Testamento, em Isaías 9, 1~6. (2)

1 João Ferreira de Almeida (tradutor), A Bíblia Sagrada - Antigo e Novo Testamento, Brasília, Sociedade
Bíblica do Brasil, 1969, p.699·700.

145
Isaías 9,1-6, na verdade, só parcialmente é relacionado com Jesus, no Novo
Testamento. Isto, em geral, é desconsiderado. Dito de maneira mais exata: a
criança, de que fala Isaías 9,1-6, no Novo Testamento não é claramente
identificada com Jesus. Em geral, pressupõe-se que Isaías 9,1-6 diga respeito
a Jesus. Mas, o próprio Novo Testamento só relaciona Isaías 8,23 e 9,1 ex-
pressamente à vida de Cristo. Conseqüentemente, temos a tarefa de pergun-
tar, com um cuidado bem maior, pela relação de Isaías 9,1-6 com Jesus. E,
para realizar esta tarefa, não basta olhar para o Novo Testamento. É necessá-
rio olhar para Isaías 9,1-6 no Antigo Testamento! Mas antes de olharmos
com atenção para Isaías 9,1-6 no Antigo Testamento devo falar da segunda
motivação.
Segunda: a segunda motivação é menos evidente se olharmos a partir
de nossa tradição, mas ela é igualmente eminente. Pois, é inegável que a
esperança que se articula em Isaías 9,1-6 é política. Espera por um governan-
te que realiza "paz" (xalam), "direito" (mixpat) e "justiça" (~edaqah). Dentro
da Igreja essa esperança concreta e política nunca foi totalmente apagada.
Mas, por certo, a História da Igreja também dá amostras suficientes de como
essa esperança em prol da sociedade foi sendo relegada a um segundo plano.
A acentuação unilateral do além tende a eliminar a esperança para o aquém.
Contudo, isso não significa que a esperança política deixou de existir. Ela foi,
isso sim, marginalizada na Igreja. Mas desenvolveu-se, com vigor, fora da
Igreja, em sistemas políticos. O marxismo é um tal sistema que reativa a espe-
rança. Na esperança que propõe à sociedade reside, sem dúvida, uma de suas
grandes forças. A pergunta é, se a comunidade de Jesus necessariamente tem
que marginalizar a esperança política, e se a comunidade de Jesus tem que
delegar a esperança política a sistemas ideológicos. À primeira vista suspeito
que seríamos infiéis ao texto bíblico de Isaías 9,1-6, se a esperança política-
a esperança para o mundo - não voltar a ser reintegrada à fé em Jesus. Mas,
para verificar tal suspeita deve -se ler, meditar e estudar Isaías 9,1-6.
Vejamos, inicialmente, a tradução a partir do texto hebraico:

Tradução literal
10 povo que vive na escuridão
verá grande luz;
habitantes em região deserta...
luz resplandecerá sobre eles!

146
2Completarás o povo
aumentarás a alegria.
Alegrar-se-ão diante de ti
como em alegria de colheita,
como se regozijam ao repartir um saque.
3Eis,
a carga que pesa sobre eles,
a vara sobre seu ombro,
o porrete de quem o oprime,
e espantarás como no dia de Mídíã.
4Eis,
toda bota que marcha com estrondo
e uma capa revolvida em sangue
e será para queima, pasto de fogo.
SEis,
uma criança nos foi nascida,
um filho nos foi dado.
E o governo estará sobre seus ombros,
e seu nome será:
Maravilha de conselheiro,
Deus lutador,
Pai de eternidade,
Funcionário de paz
6para o aumento do governo/

e para a paz sem fim


sobre o trono de Davi

2 Aqui teríamos, para muitos exegetas (Hans Wildberger, Jesaja 1-12, Neukirchen, Neukirchener Verlag,
1970, p.365 [495p.] [Biblischer Kommentar Altes Testament, 10/1]), um problema de transmissão do texto
masorético. Acontece que o hebraico lê: le-marbeh na primeira palavra do v.6. A preposição também se
encontra na frase paralela que começa com le-xaloml"para paz". Esta paz deriva de ha-misrahl"o governo".
Se entendo bem, o texto masorético entendeu a sequência de palavras do começo do v.6 como um estado
construído le-marbeh ha-misrah, no sentido de "para aumento de governo". Portanto, o "nome", em especial
o último, "funcionário da paz", é retomado e reforçado neste começo do v.6. Lógico, também se poderia
°
querer alterar o texto masorético, como fazem muitos exegetas (veja nas notas da Biblia Hebraica
Stuttgartemia) , mas penso que o melhor, em tais casos de certa insegurança quanto à transmissão do texto
°
hebraico, é que permaneçamos com quem nos tem transmitido texto hebraico. Penso, pois, que também
aqui sejam dispensáveis quaisquer alterações.

147
e sobre seu reino,
para firmá-lo e garanti-lo em direito e justiça
desde agora e para sempre.
o zelo de [avé Zebaote fará isso!'

Fonna
Importa que não percamos de vista a motivação que nos conduz para
Isaías 9,1-6 e que, inicialmente, procurei formular sob dois tópicos (confira
acima). Pois, Isaías 9,1-6 está repleto de dificuldades. Por isso, será necessário
que tentemos observá-lo palavra por palavra, procurando auscultar as barrei-
ras que se apresentam!
As dificuldades começam, quando se procura delimitar nossa unidade
em relação ao contexto literário.
Fácil é fixar o fim da unidade. Vejamos! O v.6b ("o zelo de [avé Zeba-
ote fará isso") é como que uma 'assinatura' que assegura a veracidade do
anterior. Essa 'assinatura' assinala que o texto está no fim. O v.] evidente-
mente não pertence mais ao texto que é concluído no v.6b. Pois, o v.] não
trata nem da criança (v.5) e nem do reino (v.6) , mas de Jacó=Israel, isto é,
do reino do norte. Além disso, é fácil constatar que, no v.7, inicia um grande
'hino' que abrange 9,7 -20 e, provavelmente, inclui 5,25-30. Portanto, posso
afirmar categoricamente: no v.6 está concluída uma unidade!
Contudo - e essa vem a ser a dificuldade - onde começa essa unidade?
Que no início de nossa unidade há problema, verifica-se na própria
numeração dos versículos. Em João Ferreira de Almeida, o cap.8 tem 22
versículos, e o cap.9 tem 21 versículos. Essa numeração também se encontra
na tradução latina, isto é na Vulgata, e em outras traduções ainda em uso
(Figueiredo, Ave Maria). Na Biblia Hebraica, o cap.8 tem 23 versículos e o
cap.9 tem 20 versículos. Essa numeração encontro também na tradução de
Lutero. Como se vê o problema é o v.n (na numeração da Biblia Hebraica):
para uns é o último versículo do cap.8, para outros é o primeiro versículo do
cap.9. Traduzo, pois, este v.23:
Como o primeiro tempo envergonhou" a terra de Zebulom e a terra de

3 Quanto à tradução, confira, em especial, Hans Wildberger,]esaja 1-12, a partir da p.363.


4 Ou: como nos primeiros tempos, ele [Deus?] envergonhou?

148
Naftali, assim o último (isto é, tempo) tornará glorioso (ou: no último
tempo ele [Deus?] tornará glorioso) o Caminho do Mar, a Transjordâ-
nia, a Galiléia dos Povos."
O problema que aí se apresenta não é meramente formal. O que está
em jogo é o início de nossa unidade: para aqueles, que fazem do v.2 (do texto
masorético) o primeiro versículo do cap.9, nossa unidade tem seu início no
v.23. É o que, por exemplo, se verifica em João Ferreira de Almeida.
Mas, a tradição que inclui o v.23 (refiro-me daqui por diante sempre à
numeração do texto masorético) na unidade em questão é bem anterior a
João Ferreira de Almeida. Acima já havíamos visto que ela se encontra na
tradução latina da Vulgata. Além disso, pode ser encontrada na tradução gre-
ga, na Septuaginta." E também é atestada pelo Novo Testamento. Em Mateus
4,15-16 reencontramos Isaías 8,23-9,1. Ainda que Mateus 4,15 não seja uma
citação literal de Isaías 8,23 (só Mateus 4,16 é igual a Isaías 9,1!), mas só uma
alusão, é evidente que, para Mateus, Isaías 8,23 fazia parte da unidade que
inicia (ou continua?) em 9,1. - Resumindo, deve-se dizer: tanto pelo Novo
Testamento (Mateus 4,15-16) quanto pelas traduções antigas mais re-
presentativas (Septuaginta e Vulgata) o v.23 deveria fazer parte de nossa unidade.
Também na atualidade, a maioria dos estudiosos entende que o v.23
seja parte de 9,1-6. Cito exemplos: Bernhard Duhm", Otto Kaiser", Hans
Wildberger9 • Quem se dedicou a fundamentar essa posição foi Albrecht Alt'",
em 1950. Já que na atualidade muitos se baseiam nesse estudo de Albrecht
Alt, começo por resumir os argumentos, com os quais ele fundamenta o iní-
cio de nossa unidade no v.23:

5 Aqui não estou incluindo o início do v.23: "eis que, não (haverá) escuridão para aquela (isto é, terra) que
está em angústia". Pois, por um lado, esta frase ainda há de se referir ao v.22 (assim Biblia Hebraica
Stuttgartensia), e, por outro lado, a tradução, acima apresentada, permanece sendo só uma possibilidade.
Uma interpretação diferente do começo do v.23 apresenta C. F. Whitley, "The Language and Exegesis of
Isaiah 8, 16-23", em Zeitschrift fiá diealttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruyter, vol.90, 1978,
a partir da p.33.
6 VejaJoseph Zícgler, Isaias, [esaja, Vandenhoeck & Ruprccht, 1939, p.154-155 (370p.) (Septuaginta Vetus
Testamentum Graecum, 14).
7 Bernhard Duhm, Das Buch[esaia, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 5ª edição, 1968, a partir da p.88
(49Op.).
8 Otto Kaiser, DerProphetJesaja KapiteI1-12, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 2ª edição, 1963, a partir
da p.97 (Das Alte Testament Deutsch, 17).
9 Hans Wildberger,Jesaja 1-12, a partir da p.362.
10 Albrecht Alt, "Jcsaja 8,23-9,6 - Befreiungsnacht und Krõnungstag" (1950), em Kleine Schriften zur Geschichte
des Volkes Israel, Munique, C. H. Beck'sche Verlagsbuchhandlung, vol.2, 3ª edição, 1964, p.206-265.

149
o primeiro argumento diz respeito à métrica. A.Alt pensa poder re-
construir a mesma métrica no v.23 e em 9,1-6. Tratar-se-ia sempre da
métrica 2-2 (Confira também a Biblia Hebraica Stuttgartensia.).
O segundo argumento diz respeito às regiões citadas. O v.23 diz que a
terra de Zebulom, a terra de Naftali e - assim acrescenta AAlt - a
planície de Sarom e as colinas de Gileade estavam aflitas. E o v.23
afirma que o Caminho do Mar, a Transjordânia e a Galiléia dos Genti-
os recuperarão a glória. Para A.Alt, Zebulom e Naftali (e Sarom e Gi-
leade) são idênticos a Caminho do Mar, Transjordânia e Galiléia. Es-
tes nomes descrevem, para A.Alt, aquelas regiões de Israel (isto é do
reino do norte!) que Tiglate-Pileser anexara em 733 a.c. (observe
também 2Reis 15,29)11. Naquela oportunidade, os assírios assumiram
todas as regiões do Estado de Israel. Restava tão somente a região em
torno de Samaria, anexada em 722. Portanto, para AAlt, a promessa
do v.23 e de 9,1-4 se referem à libertação das regiões anexadas pelos
assírios em 733. Contudo, A.Alt também reconhece que 9,5-6 se refe-
rem a Jerusalém, em sua opinião à cerimônia de entronização de um
davidida. Existem, pois, aparentemente dois cenários: um é o norte de
Israel que voltará a ser libertado da opressão assíria (8,23-9,4), o outro
é Jerusalém onde é entronizado o agente dessa libertação, um novo rei
da família dos davididas (9,5-6). Para confirmar a ligação entre estes
dois cenários, A.Alt afirma que 9,5-6 são palavras de arautos (observe
o "nós" v.5!). Em 9,5-6, estaria sendo citada a mensagem que os envi-
ados de Jerusalém levam às regiões sob ocupação assíria no norte de
Israel. Por isso, para A Alt, toda unidade de 8.23-9,6 se refere à liber-
tação da parte do Estado de Israel, ocupada em 733 pelos assírios (veja
2Reis 15,291).
Esta proposta de interpretação, apresentada por Albrecht Alt, mostra
de maneira derradeira que a inclusão de 8,23 em nossa unidade não é uma
questão formal. A inclusão de 8,23 determina a interpretação de 9,1-61 Para
AAlt, por exemplo 8,23 é a chave para a compreensão de 9,1-6! Assim
sendo, enquanto eu agora for avaliando criticamente os argumentos que rei-
vindicam a inclusão de 8,23 em nossa unidade, inevitavelmente já estou
antecipando questões básicas sobre a compressão do todo de 9,1-6.

11 Veja Martin Noth, Historia de Israel, Barcelona, Garriga, 1966, p.243-244 (429p.).

150
Pergunto, pois: 8,23 pode ser incluído em nossa unidade?
Primeiro: é impossível concordar com a métrica que AAlt postula para
8,23~9,6. Pois, para poder afirmar a mesma estrutura métrica em 8,23 e em
9, 1~6, faz uma série de alterações no texto hebraico; em 8,23, A.Alt inclui-
no que é seguido por Otto Kaiser" - três palavras, em 9,1 exclui três pala-
vras!? Na verdade, de maneira alguma 8,23 tem a mesma métrica de 9, 1-6!
Eventualmente o ritmo de 8,23 seja de 4 x 2 - 2, como a Biblia Hebraica
Stuttgartensia apresenta (9,1 é 2 x 3 - 3!). Contudo, até mesmo a proposta
métrica da Bíblia Hebraica Stuttgartensia está baseada numa alteração do tex-
to masorético. Por isso, inclusive continua sendo muito provável que em
8,23 nem mesmo haja poesia, mas, sim, simples prosa, como já se lia em
Berhard Duhm!' e, agora, se lê em Hans Wildberger 14• Portanto, a métrica,
em todo caso, fala contra a ligação de 8,23 e 9, 1~6. Pela métrica nossa unida-
de não inicia em 8,23 mas em 9,11
Segundo: AAlt não conseguiu afirmar a ligação de 8,23 com 9,1~6
sem postular uma hipótese suplementar muito problemática, qual seja: 9,5~6
seriam uma citação, seriam a mensagem de arautos jerusalemitas aos habitan-
tes daquelas regiões setentrionais de Israel, mencionadas em 8,23. O problema
que AAlt tenta resolver com essa hipótese de arautos é o seguinte: 9,5~6 ine-
gavelmente dizem respeito a Jerusalém, pois falam expressamente do "trono de
Davi". Sendo, pois, Jerusalém o ambiente dos v.5~6, estes estão em contraste
com 8,23, cujo ambiente são as regiões setentrionais de Israel. A hipótese dos
arautos tem a função de conciliar este contraste. Contudo, tal contraste entre
8,23 (norte de Israel) e 9,5~6 (jerusalém) pode ser evitado de maneira bem
mais simples. Basta não querer juntar 8,23 a 9, 1~6! Portanto, já que 9,5-6 diz
respeito aJerusalém, 8,23 nãopode fazer parte da unidade que inicia em 9,1!
Terceiro: AAlt parte de uma pressuposição que, ao meu ver, de ma-
neira alguma é evidente. Pressupõe sorrateiramente que, por volta de 730, os
davídidas de Jerusalém estivessem a reclamar para si a hegemonia sobre o
reino do norte. Pelo que posso verificar no Antigo Testamento, nessa época,
Judá/sul e Israel/norte eram dois estados independentes. A divisão do antigo
reino de Davi e Salomão (no 1Oº século) era algo consumado (veja por exemplo

12 Orto Kaiser, DasBuch}esaja, p.97.


13 Veja Berhand Duhm, Das Buch}esaja, p.SS.
14 Hans Wildbergcr,}esaja 1-12, p.366.

151
Isaías 7,17!). A centralização das tradições do povo de Deus em Judá/]erusa-
lérn se processou somente após ao aniquilamento de Israel/norte em 722. E a
hegemonia de Judá sobre Israel tomou forma decisiva, de verdade, na refor-
ma de [osias (2Reis 22-23; Deuteronômio) e nas conquistas de [osias em
regiões do então extinto Estado de Israel. Mas isso só ocorreu em 622, por-
tanto mais de um século após nosso texto! Portanto, não se pode partir do
pressuposto de que, por volta de 730, os davididas de Jerusalém se conside-
rassem, por direito, reis também de Israel/norte!
Quarto: o v.23 não explicita seu sujeito. Quem concretamente tornou
desprezível? Quem tornará glorioso? Em geral, subentende-se que Deus seja
sujeito; essa, por exemplo, é a proposta de João Ferreira de Almeida, de A.Alt
e da Biblia Hebraica Stuttgartensia. Mas, exatamente nesse caso, há tensão
entre o modo de falar de Deus em 8,23 e 9, 1~6. Em 8,23, fala-se de(!) Deus
(isto é, na terceira pessoa), em 9,2~3 fala-se a Deus (isto é, na segunda pes-
soa). Daí concluo que 8,23 e 9, 1~6 não são um, mas dois textos! Essa afirma-
ção é sustentável apesar de que em 9, 1~6 também se fale de Deus na terceira
pessoa. Isso ocorre no fim do v.6: "o zelo de [avé Zebaote fará isso". Mas,
desse modo, certamente não é retomado 8,23 onde igualmente se falara de
Deus na terceira pessoa, como o quer H. Wildberger 15• Pois, em 8,23 e no
final de 9,6 trata-se de dois estilos diferentes: 8,23 é, em seu todo, uma pro-
messa: o final de 9,6 é só a 'assinatura' a uma promessa. Esse lugar específico
que o final de 9,6 assume justifica que nele se fale de Deus na terceira pessoa.
Portanto: 8,23 não faz parte de 9, 1~6, porque 8,23 fala de Deus, enquanto
que 9, 1~6 se dirigem a Deus l
Quinto: não se faz jus a 8,23, se a gente engloba este versículo na
unidade que inicia em 9,1. Pois, 8,23 não necessita de continuação. É um
dito profético próprio. Em sua primeira parte, descreve a situação. Para tal
usa, no hebraico, um perfeito (9,1 descreve a situação em particípios!). Ze-
bulom e Naftali se tornaram desprezíveis (qll hifil). Em sua segunda parte,
8,23 descreve o que há de vir. Para tal usa um perfeito profético. O norte de
Israel voltará a ser glorioso (kbd hifil). 8,23 menciona, pois, o problema (na
primeira) e a solução (na segunda parte), não necessitando de nenhuma
continuação. Essa observação de que o v.23 não necessita de continuação é
sublinhada pelo fato de que se trata de uma comparação ("assim... como").

15 Hans Wildberger,]esaja 1-12, p.366.

152
Se no v.23 constasse expressamente o sujeito da ação (isto é, Deus), então
poderíamos dizer que se trataria de um texto totalmente completo. A falta
desse sujeito lhe dá um caráter fragmentário. Mesmo assim este v.23 - um
dito profético na maneira de uma comparação - muito bem pode ser atribu-
ído ao profeta Isaías e compreendido - como A. Alt o sugere - a partir de
733 a.C. 16 , isto é, da invasão assíria no norte de Israel. E até mesmo me
parece possível que este v.23 originalmente faça parte do livro da guerra siro-
efraimita." Pois, mesmo que nos caps.ó-S sempre tenhamos observado uni-
dades maiores (6,1-13; 7,1-9; 7,10-17; 8,1-4; 8,5-8; 8,11-15), em 8, 16-18 já
havíamos verificado unidades pequenas compostas de uma só frase. 8,23 é
comparável àquelas pequenas unidades de 8,16-181 Com isso, ao mesmo
tempo, quero chamar a atenção para o fato de que 8,23 não é comparável
aos textos fragmentários e mui enigmáticos de 8,19-22 (+ início do V.23).18
Concluindo: 8,23 não faz parte da unidade que inicia em 9,1 e termina
em 9,6; este v.23 é antes um dito profético próprio.
Enquanto ia sendo definido o contexto, como vimos especialmente o
contexto anterior (8,23), sorrateiramente já tive que ir antecipando algo da
interpretação de 9,1-6. Teríamos que voltar-nos, agora, a estas questões. Mas,
antes, importa verificar mais outros momentos formais de nosso texto, para
poder depois perceber, com mais propriedade, sua intenção.
9,1-6 é, em seu todo, poesia, o que, já à primeira vista, se evidencia nas
repetições. 19 Isto significa: um pensamento é expresso em duas ou mais for-
mulações frasais similares (paralelas, na linguagem usual), sendo que a se-
gunda parte pode descrever e intencionar mais ou menos o mesmo que a
anterior, ou o contrário e antitético, ou ainda ser um acréscimo ou uma com-
plementação." Já isto diferencia nossa unidade daquelas que anteriormente

16 Nessa direção também indica C. E Whitley, "The Languege and Exegesis oflsaiah 8, 16-23", em Zeitschrift
fiádiealttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruvter, vo1.90, 1978, pAIA2.
17 Isto significaria que, no instante em que o anúncio de destruiçãodc Israel/Efraim (7,4.9.16; 8,4) começa
a se realizar, inicia o anúncio de restauração. Também no profeta Oséias se pode observar como na hora
da destruição nasce a nova esperança; observe Oséias 11 (em especial v.8-9); 14,2-9. Confira Hans Walter
Wolff, Bíblia AntigoTestamento - Introdução aosescritos e aosmétodos de estudo, 1978, p.85-86 (Biblioteca de
Estudos Bíblicos, 3).
18 C. E Whitley, "The Languege and Exegesis oflsaiah 8, 16-23", p.29-34.
19 A respeito da poesia no sentido das repetições, confira, agora, meu artigo: Milton Schwantes, "Repetições
e paralelismos - Observações em um debate hermenêutico, exemplificado em Provérbios 10,1", em Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, Vozes, vo1.66, fascículo 263, julho 2006, p.673-679.
20 Veja ainda Aage Bentzen, Introdução aoAntigoTestamento, São Paulo, ASTE, vol.l , 1968, p.135-219; Hans
Walter Wolff, Bíblia Antigo Testamento, a partir da p.66.

153
observávamos.Nos caps.ó-S sempre também havia relato, narração. Por exem-
plo, em 6,1; 7,1.3.10; 8,1.5, as unidades regularmente iniciavam com um
'imperfeito consecutivo', isto é, com o tempo narrativo do hebraico. Esse
não é o caso em 9,1! Mas isso não significa que 9,1-6 nada tenha a ver com
aqueles textos anteriores, pois também em 8,5-15 havíamos encontrado uni-
dades menores que não iniciavam com um 'imperfeito consecutivo', com o
tempo da narração. Penso em 8,11-15 e 8,16-18.
Para bem poder perceber de que qualidade poética é nossa unidade,
torna-se necessário acompanhar sua disposição e apontar, ao menos, para
alguns de seus encantos. É necessário que sempre me esteja referindo ao
texto hebraico. Contudo, também na tradução se há de poder observar al-
guns dos elementos poéticos em questão. Vejamos, pois!
O primeiro versículo - v.l - forma uma clara unidade de sentido; po-
deríamos chamá-la de primeira 'estrofe?':
O povo que vive na escuridão verá luz grande;
habitantes em região deserta... luz resplandecerá sobre eles! (v. 1)
Aí temos duas frases, em correspondência. Os conteúdos de uma estão
em correspondência aos da outras. Trata-se também de uma 'estrofe', pois
8,23 (como já vimos) não tem continuidade neste 9,1, e nem este v.l segue
no v.2. Denomino, pois, uma tal unidade de sentido na poesia de 'estrofe';
aqui ela é breve, estando conformada somente por uma repetição." Compa-
rando, pois, os dois paralelismos, se constata que, na verdade, o mesmo as-
sunto é duas vezes repetido: duas vezes se fala de pessoas em escuridão, duas
vezes da irrupção da luz. Há mais alguns detalhes formais interessantes. Veja-
mos o ritmo. Ora, cada frase é composta de seis palavras (refiro-me ao texto
hebraico). Percebo também que há, na primeira frase, no texto hebraico,
uma alireração", na segunda frase temos um anacoluto". A aliteração se en-
contra em "viram luz", pois, no hebraico(!), se trata de ra'u 'ar; no hebraico,
estas as duas palavras compõem-se das mesmas consoantes! O anacoluto

21 Nessa dircção já indicava Berhard Duhm, Das Buch Jesaja, veja a partir da p.88; veja agora Hans
Wildberger,Jesaja 1-12, p.367.
22 A respeito, veja meu artigo: Milton Schwantcs, "Repetições e paralelismos - Observações em um debate
hermcnêu tico, exemplificado em Provérbios 10,1", p.6 73-679.
23 Veja Hans Walter Wolff, Bíblia Antigo Testamento, p.67.
24 Outros anacolutos estão citados em Wilhelm Gescnius, Hebrdische Grammatik, Hildesheim, Georg Olms
Verlagsbuchhandlung, 28ª edição, 1962, § 167b. Veja também Ernst Kautzsch, Gesenius' Hebrew Gram-
mar, Oxford, Clarendon, 2ª edição, 1966, 598p.

154
está na primeira parte do v.lb; a frase ("habitantes em região deserta...") não
está concluída. A primeira parte do v.l b, na verdade, é interrompida: inicia
com"os habitantes em terra deserta..." e deveria continuar com "vêem luz".
Ao invés disso, a frase é interrompida e reiniciada, com troca de sujeito (em
lugar de "habitantes" o sujeito passa a ser "luz") e com sua anteposição.
Com essas observações sobre o instrumentário artístico do v.l , pode,
mos perceber que essa linguagem não é só ocasional, mas que é particular,
mente poética, 'polida' e estudada. Não obstante, esse v.l não é nenhuma
exceção. O segundo versículo - parece ser a segunda 'estrofe' - é igualmente
impressionante em sua poesia:
Completarás o povo,
aumentarás a alegria.
Alegrar-se-ão diante de ti
como em alegria de colheita,
como se regozijam ao repartir um saque. (vZ)
Este versículo evidentemente difere do versículo anterior. O v.l se com,
punha de repetições bem encaixadas, enquanto que no v.Z temos frases em
crescendo. Nas duas primeiras, quem age é o tu de Deus ("completarás" e
"aumentarás"). Já na terceira frase, o sujeito da ação passa a ser "eles" ("ale,
grar-se-ão"), sendo o referente o tu ("diante de ti") das duas primeiras frases.
Estes"eles" devem ser"o povo" (do próprio v.Z). Em todo caso, a mudança de
sujeito de "tu" (nas duas frases iniciais) para o "eles" indica que o peso recai
sobre esta terceira frase. E isso fica ainda mais realçado pelas duas comparações
agregadas ("como"). - A vogal característica do v.Z é "i" (8vezes!) que no v.l
só aparecia uma vez; este "i" do v.Z indica o som estridente da alegria.
O terceiro versículo forma outra unidade de sentido, chama-la-ernos
de terceira 'estrofe'. Já sua aparência formal traz novidades em relação às
anteriores:
Eis, a canga que pesa sobre eles,
a vara sobre seu ombro,
o porrete de quem o oprime -
quebrarás como no dia dos midianitas. (v.3)
Ocorre nova troca de sujeito. Na segunda parte do v.Z, o sujeito era
uma terceira pessoa plural ("eles"), agora, no v.3, volta a ser Deus (como na
primeira parte do v.Z) e o objeto indireto ao invés de ser uma terceira plural,
como se aguardaria a partir dos v.l,Z, passa a ser uma terceira singular (no v.5

155
vem a ser uma primeira plurall). Especialmente esta última diferença chama
a atenção. Mas ela se explica ao observarmos que no v.3 inicia a explicitação
ou fundamentação da luz e da alegria anteriormente anunciados. Que o v.3
explicita e, em especial, leva ao auge o anterior, se observa no ki "eis" inicial.
O caráter poético deste v.3 é peculiar. Nele temos, propriamente, uma
enumeração, cujo ápice está no fim ("quebrarás..."). A enumeração caracte-
riza em três figuras (canga, vara, porrete) a situação, cuja solução está na
última frase. Portanto, a terceira 'estrofe' tem seu final como meta.
O vA, introduzido por novo "eis"/ki, é nova unidade de sentido; é a
quarta 'estrofe':
Eis, toda bota que marcha com estrondo
e a capa revolvida em sangue
será para queimada,
alimento de fogo.
Esta é, de fato, uma nova 'estrofe'. E não só devido ao "eis" inicial, mas
também porque no final repete a última palavra precedente: "alimento de
fogo" retoma a expressão "para queimada" no que precede. Neste detalhe,
este vA se assemelha ao v.2 ("como ..."): no final ambos apresentam o que
chamo de 'nó', um fator conclusivo.
No começo, temos enumeração ("bota" e "capa"), semelhante ao ver-
sículo anterior, v.3. Esta enumeração culmina na frase 'final': "será para quei-
mada", sempre formalmente similar ao versículo anterior.
Nesses primeiros quatro versículos, passo a passo, pudemos acompa-
nhar a intuição poética. Sua característica são breves 'estrofes'; cada versícu-
lo compõe uma. Os dois versículos finais, v.5-6, esta quinta 'estrofe', diferem
um tanto. Pois, aí temos propriamente o que importa nesta nossa unidade
literária.
Inicialmente, detenho-me no começo do v.5, porque ele é esmerada-
mente poético. Este começo do v.5 integra o conjunto dos v.5-6; e, aqui, só
o destaco pelo seu esmero em poesia:
Eis, uma criança nos nasceu,
um filho nos foi dado. (v.5a)
Essa frase respira poesia em seus detalhes. A frase está cuidadosamente
formulada. E é, também, a última frase claramente poética. Vejamos! O su-
jeito continua sendo o dos versículos anteriores: Deus. Ele não é expressa-

156
mente mencionado, mas o passivo dos verbos (pual e nífall) aponta para
Deus. O que muda é o objeto indireto ("para nós"). Nos versículos anterio-
res, falava-se de uma terceira pessoa plural (v.1-2) e de uma terceira singular
(v.3). O v.S muda para a primeira plural: "nós"! Isso há de ter um significado
especial, do qual ainda devemos falar (cf abaixo). - No início, vê-se uma
sonora figura etimológica": yeled yulad que literalmente poderia ser traduzi-
da por: "um nascido foi nascído":". Também é evidente a aliteração que se dá
pelo triplo lamed (le -). Além da figura etimológica e da aliteração há até
mesmo rima final: lanu "para nós". Como se vê, nossa frase é poética, de
detalhe em detalhe!
O que segue no v.s-6 não é tão detalhista em poesia, mas não deixa de
sê-lo também. Olhemos, pois, agora, para o conjunto desta última 'estrofe';
SEis, uma criança nos nasceu,
um filho nos foi dado
e estará o governo sobre seus ombros
e será chamado seu nome:
Conselheiro de Maravilhas,
Deus Heróico.
Pai da Eternidade,
Funcionário de Paz,
6 para aumentar o governo"

e para uma paz sem fim,


sobre o trono de Davi
e sobre seu reino,
para firmá-lo
e garanti-lo,
em direito e justiça
desde agora e para sempre.
O zelo de [avé Zebaote fará isso!
Nesta 'estrofe', está o ponto final da unidade 9,1-6. Sua poética vem
marcada por seu conteúdo. Já o anotávamos em relação às duas primeiras

25 Outros exemplos de figuras etimológicas podem ser verificados em Wilhe1m Gesenius, Hebrdische Gram-
matik, § 117p-r.
26 Outra figura etimológica encontra-se também no início do v.4: se'onso'en.
27 Nas duas primeiras palavras do v.6 ("para aumentar o governo"), frequentemente se quer reencontrar o
quinto título do "menino".

157
linhas/frases do v.5, as que se referem à "criança"/"menino". O que lhe segue
(a rigor em dois 'imperfeitos consecutivos'!) são outras duas frases em bela
correlação poética:
e estará o governo sobre seus ombros
e será chamado seu nome
Os títulos que seguem ("conselheiro de maravilhas, Deus lutador, etc.),
a rigor, estão aí emendados, pois são "seu nome" ou é o que está "sobre seus
ombros". Estes títulos, que são quatro, situam-se no centro dos v.5-6. Para
eles converge o todo. Os títulos expressam o sentido da "criança"/"menino".
É interessante que sejam quatro os títulos que se coadunam, de certo modo,
ao estilo deste v.5-6, em que tudo está expresso de modo duplo. Até a titula-
ção obedece ao ritmo 2 x 2, a repetições!
Assim segue o V.6. 28 Nele já não há, a rigor, frases, mas algo como 'enu-
merações'. Três delas se constituem de repetições. Quatro expressões indi-
cam "para"/le- que serve o "governo"/misrah. Enfim, sua meta é "para paz"!
Este é o ápice da titulaçào'"; ela até contém uma bela aliteração através das
consoantes sibilantes: ~ar ~alom, que, para imitar a aliteração no hebraico,
poderia ser traduzido por "príncipe de princípio". Afinal, este quarto título
do "menino" é, no final do v.5, "funcionário da paz". Esta 'finalidade' é "des-
de agora para sempre" a própria meta de "o trono de Davi". Mediante a
"criança", sua vocação visa a "paz". Tal "paz" é "direito e justiça", como o
expressa a última das enumerações. Nela somente temos uma seqüência 'fra-
sal', mas, para permanecer dentro dos parâmetros dos v.5-6, dois conteúdos
("direito e justiça").
A frase final ("o zelo de Javé Zebaote fará isso!"), poeticamente, quer
ser uma duplicata do que lhe precede ("desde agora para sempre"). Até neste
final, mantém-se o mesmo estilo.
Detectamos pormenores da linguagem de Isaías 9,1-6. Procuro resumir
o que pôde ser visto:
Isaías 9,1-6 é uma verdadeira "pérola da poesia hebraica'l'". Sente-se
nesse texto uma sensibilidade genial para com as possibilidades do hebraico.

28 No v.6, não se tem chegado a resultados unãnimes convincentes quanto à fixação de eventuais seqüên-
cias poéticas. Basta comparar a Biblia Hebraica Kittel, a Biblia Hebraica Stuttgartensia e o comentário de Hans
Wildberger Uesaja 1-12) para constatar as divergências.
29 A Biblia Hebraica Stuttgartensia indica claramente nesta direção,
30 Hans Wildberger,]esaja 1-12, p.367.

158
Não é, pois, acaso que Luis Alonso Schõkel afirme: "Isaías es el poeta clásico
de la literatura hebrea. EI gran maestro soberano del estilo.":"
Ao perscrutar as finezas poéticas de Isaías 9,1-6 não se está lidando
com exterioridades e formalidades. Poesia aqui não é carcaça. É conteúdo.
Por isso, ao perscrutar as formas poéticas, estávamos sondando, passo a passo,
a mensagem. Em alguns pontos já divisamos resultados claros, por exemplo:
no início do v.s há um auge poético que há de corresponder a um auge de
conteúdo. Em outros pontos estamos diante de perguntas que ainda have-
mos de esclarecer, por exemplo: nos v.s-6 observávamos uma variação da
concentração poética. Pode isso significar que "a promessa termina em cal-
ma e certeza"32? Ou não significa isso que o autor está agitado, tateando e
procurando? Na verdade, esse tipo de inquietação nos impulsiona a um ca-
minho novo até aqui pouco explorado. Nele, trata-se de livrar a poesia do
formalismo e redescobrir a origem da poesia na vivência. Estamos por dema-
sia acostumados a ligar poesia a regras e jeitos formais, a um elitismo culturaL
A poesia, porém, não se esvai em formalidades, muito antes brota da vivên-
cia da 'alma'. Alma nepex é vida. Nessa caminhada de intuições estamos no
começo. No Antigo Testamento, nem de longe exploramos o potencial in-
terpretativo que advém da poética. Contudo, vejo pistas na direção assinala-
da, por exemplo, na interessante interpretação de Claus Westermann em
Gênesis 2,23. 33
Sabendo que toda a atenção para os detalhes, aparentemente só for-
mais, é um tatear para perceber sua palavra, torna-se necessário atentar para
os verbos. Afinal os verbos nos dão a dinâmica do texto. Ora, analisando
nossos versículos sob o enfoque dos verbos, chega-se logo a uma constatação
bem definida: a estrutura verbal básica de Isaías 9,1-6 é formada por 'perfei-
tos'; no hebraico, o 'perfeito' indica uma ação concluída. Temos dois perfei-
tos no v.I, três perfeitos no v.2, um perfeito no v.3, dois perfeitos no início do
v.s e, como relativamente equiparáveis a estes perfeitos, dois 'imperfeitos
consecutivos' no v.s. Sendo, pois, o 'perfeito' (no sentido hebraico!) deter-
minante, a interpretação de nosso texto depende em muito da avaliação

31 LuisAlonso Schõkel,"Isaías, el profeta de la justicia", em Cuademos de Teología, BuenosAires, ISEDET,


vol.5, 1978, p.185.
32 Hans Wildberger,Jesaja 1-12,p.376.
33 Claus Westermann,Genesis 1-11,Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1970,p.314-315(824p.) (Bíblíscher
KommentarAltesTestament 1/1).

159
destes perfeitos. É sabido que aquilo que, no hebraico, denominamos de 'per-
feito' não designa, como no português, uma ação já passada, mas "apenas
caracteriza uma ação como estando concluída, completa, terminada, encer-
rada"34 j "expressa o fato de uma ato ou estado estar concluído e completo'i"
esteja ele no passado, presente ou futuro. Só através do contexto é possível
fixar o tempo (no português), através do qual se traduz um tal 'perfeito' hebrai-
co. Aplicando estas considerações aos nossos versículos, pergunto: Devemos
traduzir os 'perfeitos' de Isaías 9,1-6 como passado, presente ou futuro?
Alguns indícios facilitam a decisão:
Primeiro: em dois lugares nosso texto abandona o 'perfeito'. No vA,
passa para o 'perfeito consecutivo' e no final do v.6 para o 'imperfeito'. Estes
dois exemplos mostram que o acontecimento de que Isaías 9,1-6 fala, de
maneira alguma, está passado. Ele não ocorreu (passado), mas está ocorren-
do ou está por ocorrer, já que, no hebraico, o 'imperfeito' e o 'perfeito conse-
cutivo', que lhe é equiparável, "caracteriza uma ação como... inconclusa,
incompleta, em continuação, surgente":". Resumindo: o 'perfeito consecuti-
vo' no v.4 e o 'imperfeito' no v.6 sugerem uma tradução dos 'perfeitos' como
presente ou futuro!
Segundo: em nosso texto nos defrontamos várias vezes com particípi-
os: dois particípios no v.l, um particípio no v.3, dois particípios no vA. (Equi-
parável a estes particípios é, ao meu ver, o imperfeito no final do v.l: O
particípio nos títulos do v.6, yo' e~ "conselheiro", de fato, já é um substanti-
vo.) O particípio "é usado para a descrição de uma situações ou de um esta-
do"37. Em Isaías 9,1-6, isto significa que com os particípios o autor está descre-
vendo a sua atual situação. Conseqüentemente estes particípios devem ser
traduzidos pelo presente: "o povo que anda/vive..."38 (v. 1), "o porrete de quem
oprime..." (v.3) etc. Resumindo: os particípios de nosso texto sugerem a que
não se traduza os perfeitos por passado ou presente, mas pelo futuro!

34 johannes Hollenberg e Karl Budde, Gramáticaelementarda línguahebraica, São Leopoldo, Sinodal, 1972,
p.58 (§ 17).
35 Oskar Grether, Guia português paraa gramática hebraica, São Leopoldo, Faculdade de Teologia da 1ECLB,
1968, p.89 (§ 79a).
36 [ohannes Hollenber e Karl Budde, Gramáticaelementar da línguahebraica, p.58 (§ 17).
37 Oskar Grether, Guia português paraa gramática hebraica, p.93 (§ 84d). Confira Johannes Hollenber e Karl
Budde, Gramáticaelementar da línguahebraica, § 45.
38 A tradução de João Ferreira de Almeida "andava", que está sob a influência da Vulgata, não condiz
exatarnente ao particípio hebraico.

160
Terceiro: a tradução grega da Septuagínta, no geral (não posso dedi-
car-me aqui à análise dos pormenores), transfere nosso texto para o futuro.
Para a Septuaginta, Isaías 9,1-6 há de ocorrer!
Quarto: uma vez comprovado - a partir do próprio texto! - que em
Isaías 9,1-6 os perfeitos hão de ter dimensão de futuro, constato que o mes-
mo ocorre com freqüência no Primeiro Testamento (jó 5,20; Salmo 85.2-4 39) ,
em especial nos profetas (Isaías 5,13; 10,28; 11,9; 43,3; Amós 8,2). Este tipo
de perfeito é chamado de 'perfeito profético'", com que se quer dizer que
algo está 'perfeito', isto é, concluído, na dimensão profética e futura.
Concluindo. Pode-se afirmar que nos 'perfeitos' de Isaías 9,1-6 se trata
de perfeitos proféticos. Traduzimos tais perfeitos pelo futuro, cientes de que
aquilo que expressamos como futuro não é só algo que, eventualmente, há
de ocorrer, mas é algo que, em verdade, já ocorreu, já está concluído. Em
outras palavras, o acontecimento como tal já está 'perfeito' e encerrado na
medida em que é anunciado, mas enquanto realidade está acontecendo ou
está na iminência de acontecer. Nosso texto é, pois, fala do futuro de um
acontecimento que, contraditoriamente, já aconteceu! E assim o simples es-
tudo dos verbos nos conduziu ao âmago do conteúdo de nossa unidade.
Estamos percebendo como a análise de um só aspecto do texto (como,
por exemplo, as repetições poéticas, ou os verbos) está nos conduzindo ao
todo. Diante do todo perguntamos, agora, por sua estrutura, por suas consti-
tuintes básicas.
É verdade que Isaías 9,1-6 se ressente de alguma marca que caracterize
formalmente seu início. Não há um começo como, por exemplo, em Isaías
6,1 (relato) ou em Isaías 8,11 (fórmula de mensageiro). Mas de resto esta
unidade prima pela clareza na estrutura.
O começo, v.1, enfoca o problema e a grande solução. O começo diz tudo.
A grande novidade da luzpassa a ser explicitada em sua 'conseqüência'",

39 Diethelm Michel, Tempora UM Satzstellung in denPsalmen, Bonn, H. Bouvier, 1960, a partir da p.90 (268p.)
(Abhandlungen zur evangelischen Theologie, 1).
40 [ohannes Hollenber e Karl Budde, Gramáticaelementar da línguahebraica, § 44a; Oskar Grcther, Guia
português paraa gramática hebraica, § 791e 81f; Rudolf Meyer, Hebriiische Grammatik, Berlim, Walter de
Gruyter, 1992, § 101.4a. (de Gruyter Studienbuch).
41 Assumo aqui, de maneira provisória, o termo 'conseqüência' (veja também Hans Walter Wolff, Frieden
ohneEnde- Jesaja 7, /-17 UM 9, 1-6 ausgelegt, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1962, p.64 (93p.) [Biblís-
che Studien, 35]) para indicar a relação do v.l para o v.2. A correlação entre estes dois versículos carece
de uma melhor definição.

161
em seu efeito. Da 'conseqüência' fala o v.2. E o faz na perspectiva do agir de
Deus (v.2a) e na perspectiva do agir das pessoas (v.2b).
A partir do v.3, a novidade e suas 'conseqüências' são fundamentadas.
Nos v.3-6 - três 'estrofes' introduzidas pela partícula demonstrativa ki "eis"/
"pois" - são apresentadas as causas para a alegria (v.2) e - formulando a
função dos v.3-6 em relação ao v.l - é explicitada a luz.
A primeira atenção ("eis") chama-se sobre uma vitória de guerra (v.3).
A segunda menciona a queima dos destroços do campo de batalha (vA).
A terceira fala - em contraste às duas anteriores! - do nascimento de
uma criança, cujo governo/reinado é a seguir descrito (v.s e v.6).
A conclusão está no fim do v.6: "o zelo de [avé Zebaote fará isso".
Trata-se de uma espécie de assinatura final.
Constato, pois, que Isaías 9,1-6; sem um início expressamente assina-
lado, apresenta uma novidade (v.1), descreve sua 'conseqüência' (v.2) e enu-
mera suas três causas (v.3-6), concluindo em promessa. Inquietam-me nessa
estrutura a passagem do v.l para o v.2 e o contraste existente entre os v.3+4
e os v.s-6. Devo retornar a estas questões.
Como havemos de denominar um texto com tais constituintes bási-
cas, com uma dinâmica verbal como a que acima observávamos e com fine-
zas poéticas como as que descobrimos? Com esta pergunta estou perguntan-
do pelo gênero literário de Isaías 9,1-6.
Nessa busca pela definição do gênero de Isaías 9,1-6 atualmente não
estamos em condições de ir muito além de uma constatação negativa. É pos-
sível afirmar que nosso trecho não é típico para profetas do 8º século. Típico
para um profeta é, no geral, que use a fórmula de mensageiro ("assim disse
[avé"), que denuncie injustiças e anuncie o fim dos exploradores (como em
Amós 4, 1_3).42 Mas os profetas também não se restringiram a falar da destrui-
ção do poder em Israel e Judá. Há palavras que indiretamente significam
salvação para Israel e Judá (como, por exemplo, Isaías 7,4-9.15-16; 8,1-4.11-
15). E há palavras que expressamente falam da reconstituição (como, por
exemplo, Isaías 1,21-26; 2,2-5; Oséias 14,2-9; Miquéias 1,8-16; 5,1-5).

42 As formas básicas da linguagem profética estão descritas em Claus Westernlann, Grundfarmenprophetíscher


Rede, Munique, Christian Kaiscr Verlag, 4ª edição, 1971, 150p.; tradução ao inglês: Basic Farms af
Prophetic Speech, Cambridge, Luttcrworth Press, 1991, 222p.

162
Por certo, Isaías 9,1-6 tem alguma semelhança com tais palavras. Mas
estas semelhanças não ajudam a definir o gênero, pois aqueles textos seme-
lhantes não têm a estrutura básica encontrada em nossos versículos. Tam-
bém não representa grande ajuda definir nossa unidade de 'predição messiâ-
nica', como em geral ocorre." Pois tal conceituação, por um lado, provém
muito mais de premissas ueo-testamentárias do que de um estudo cuidadoso
dos gêneros do Primeiro Testamento e, por outro lado, está determinado por
critérios de conteúdo e não por critérios de forma como seria o desejável.
Além disso, nem é 'possível afirmar categoricamente que nosso texto seja
'predição', anúncio. Na verdade, a pesquisa bíblica ainda não chegou a se
dedicar ao estudo do gênero das assim chamadas 'predições messiânicas' e
dos textos proféticos com conteúdos de salvação." Por este motivo não me
quero precipitar na definição do gênero de Isaías 9,1-6. O que de mais defi-
nitivo se pode afirmar é que nossa unidade não é típica para os profetas, e
que, conforme Gerhard von Rad 45, é algo único no que diz respeito ao gêne-
ro. Tendo em vista o conteúdo, pode-se dizer ainda que nessa nossa unidade
não se fala de juízo, mas de salvação que virá. O que, além disso, ainda
procuro dizer não passa de tentativas:
Desperta a atenção a linguagem do v.1. Ela é genérica. Como tal não é
característica para profetas. Enquadra-se antes na linguagem mais formaliza-
da dos salmos e da sabedoria. E, de fato, lá encontro textos semelhantes ao
nosso v.1: Salmo 18,28-29; 23,4; 27,1; 36,10; 56,14; 89,16; 107,10.14; Jó
10,21-22; 18,5; 29,3. 46 Comparando estes textos, já se pode suspeitar de que
o autor de nossa unidade esteja ambientado com salmos.

43 Como, por exemplo, se lê em Bernhard Duhm, Das Buch]esaja, p.88, em Aage Bentzen, Introdução ao
AntigoTestamento, vol.2, p.165, e em Werner H. Schmidt, Afé do AntigoTestamento, São Leopoldo, Escola
Superior de Teologia/Sinodal,2004, p.193-216 (562p.) (Estudos Bíblico-Teológicos Antigo Testamento). Para
estes autores, são 'predições messiânicas' entre outras os seguintes textos: 2Samue\7; Isaías 7,10-17; 9,1-6;
11,1-5; Miquéias 5,1-5; Jeremias 23,5-6; Ezequie\34,23-24; Zacarias 9,9-10; Salmo 2; 72, etc.
44 Pistas para uma definição cuidadosa das profecias de salvação encontro em Hans Walter Wolff, "Díe
Begründungen der prophetischen Hcils- und Unheilssprüchc" (1934), em Theologische Bücherei, Muni-
que, Christian Kaiser Verlag, vol.22, 1964, p.9-35; Klaus Koch, Was ist Formgeschichte? - Methoden der
Bibe/exegese, Neukírchen, Neukirchener Verlag, 3ª edição, 1974, a partir da p.261; Claus Westermann,
"Der Weg der Verheissung durch das Alte Testament" (1963), em Theologische Bücherei, Munique,
Christian Kaiser Verlag, vol.55, 1974, p.230-249; Claus Westermann, Teologia do Antigo Testamento, São
Paulo, Paulinas, 1987, p.48-71 e p.117 -127 (202p.).
45 Essa observação Gerhard von Rad (Teologia do AntigoTestamento, São Paulo, ASTE, 2ª edição, 2006, p.594-
599 [907p.]) faz cm relação a Isaías 11,1-5 e Miquéias 5,1-5, mas que, sem dúvida, aplica-se também a
nosso texto.
46 VejaHans Wildberger,]esaja 1-12, p.371-372.

163
E, de fato, a partir do v.2 essa suspeita ganha em probabilidade. Pois, os
v.2-4, a rigor, não são anúncio, não são 'predição'. Eles estão dirigidos a um
tu, isto é, a Deus. São oração, reza. Contudo, o conteúdo dessa oração dos
v.2-4 não é um pedido. É antes a descrição daquilo que Deus vai fazer (v.2a.3-
4) é que, em conseqüência, pessoas vão fazer diante dele (v.2b). Assim, essa
reza tende a glorificar, a decantar a Deus. Com isso é necessário afirmar que
nos v.2-4 temos diante de nós a linguagem de salmos! Discute-se a que gêne-
ro de salmos precisamente se deve atribuí-los. Uns falam em 'canto de ação
de graças':", outros em 'hino', que é definido como salmo de gratidão", ou-
tros em 'canto de ação de graças e hino'". Porém, Frank Crüsemann'? desta-
cou um gênero de hino, em que um indivíduo se dirige a Deus, relatando,
em especial em verbos no perfeito, as obras divinas em alocução direta (2ª
pessoal) ao próprio Deus, em que, porém, a introdução falava de Deus na 3ª
pessoa. Afirma que esse gênero especial de um hino de um indivíduo, origi-
nalmente, tinha a função de introduzir uma oração de petição em favor do
rei. Frank Crüsemann mesmo não chegou a ver relação entre este gênero e
nosso texto. Mas entendo que tal relação se impõe. E assim os perfeitos e a 2ª
pessoa na parte central de nosso texto, nos v.2 + 3-4, estão plenamente justi-
ficados. A 2ª pessoa é, então, mui original!" E o fato de o final do v.6 (e o
v.l?) falar de Deus na 3ª pessoa é plenamente compreensível, já que aquela
frase - uma 'assinatura' - está fora do hino propriamente dito e/ou já que
existem hinos (por exemplo Salmo 104), em que se fala de Deus tanto na 2ª
quanto na 3ª pessoa. O v.l teria a função da introdução que não necessaria-
mente tem que estar dirigida a Deus. Ao caracterizar nosso texto como hino
igualmente se faz jus ao tríplice kí "eis", no início dos v.3.4.5. Ora, tais kí "eis"
são característicos para hinos. 52

47 Hans Wildberger,}esaja 1-12, p.366; semelhante Otto Kaiscr, Der ProphetJesaja Kapitell-12, p.99.
48 Sigmund Mowinckel, He thatCometh, Oxford, Basil Blackwell, 2ª edição, 1959, p.102 (528p.). Veja edição
em espanhol: El que ha de venir-Mesianismo y mesias, Madri, Fax, 1975, 556p.
49 Georg Fohrcr, Das BuchJesaja 1, Zurique, Zwingli-Verlag, 1960, p.125 (Zürcher Bibelkommentare).
50 Frank Crüscmann, Studien zur Formgeschichte von Hymnus und Danklied in Israel, Neukirchen, Neukirchner
Verlag, 1969, a partir da p.191 e da p.285 (Wissenschaftliche Monographien zum Altcn und Neuen
Testament, 32).
51 Enquanto a gente acompanha - como por exemplo procede Hans Wildberger Uesaja 1-12, p.374) - as
definições de Hermann Gunkcl (Einleitung in diePsalmen - DieGattungender re/igiosen LyrikIsraels, Gotinga,
Vandenhoeck & Ruprccht, 2ª edição, 1966, p.97) dever-se-ia esperar 3ª pessoa nos v.2A.
52 Encontram-se, com grande frcqüência, naquele tipo de salmo que Frank Crüscrnann denomina de 'hino
imperativo' (Studien zurFormgeschichte von Hymnus und Dank1ied in Israel, p.32-35); veja também Hermann
Gunkel, Einleitung in diePsalmen - DieGattungender religiosen LyrikIsraels, pA2A3. Mas tais ki "eis" também
estão presentes naqueles hinos que Frank Crüsemann chama de 'hinos de um indivíduo' (Salmo 44,8;
66,10; Êxodo 15,1; Isaías 25,1-5).

164
Se todas essas observações representarem uma pista correta, então po-
demos afirmar haver deparado com um gênero que marca nosso trecho. A
linguagem hínica não caracteriza só uma parte, mas o todo de Isaías 9, 1~6.
Contudo, isso não significa que sob esse teto geral do hino não existam ele-
mentos de outra origem. Estes por vezes são procurados e encontrados nos
v.5~6. Afirmou-se que o início do v.5 fosse um 'oráculo de nascimento' e que
os v.5~6 seriam o 'protocolo da entronização de um rei'". Mas aí não se trata
propriamente de novos gêneros de forma. O que ocorre é que no fim de
nossa unidade se manifestam tradições bem específicas, tradições da casa real.
Disso havemos de falar a seguir, quando nos preocupar o lugar de nosso texto.
Resumindo este nosso tatear e procurar, torna-se possível dizer, com a
devida provisoriedade, que Isaías 9, 1~6 é determinado pelo gênero dos hi-
nos, mais especificamente pelo gênero do 'hino individual dirigido a Deus'.
Linguagem de salmo e culto num profeta? Isso de início parece um tanto
estranho, mas em Isaías 6,3 já havíamos encontrado um hino, um refrão
litúrgico (cf acima). E, com isso, já estamos perguntando pelo-lugar de nosso
texto: Quem é o seu autor? Quais são seus ouvintes? Quais suas tradições?
Qual sua época?

Lugar histórico
Continuamos nossas observações anteriores. Elas nos estavam enca-
minhando para a descrição das tradições de Isaías 9, 1~6.
Averiguamos que o linguajar provavelmente provém do gênero dos
hinos. Por conseguinte seu ambiente é o santuário. A linguagem hínica indi-
ca, pois, claramente que o autor desta nossa unidade vive das tradições cúl-
ticas do templo. Aliás, cap.6 e 8 também nos mostravam um Isaías ligado ao
templo.
Duas vezes deparamos com comparações. Na primeira o autor se refere
à vida do agricultor e às lidas do guerreiro (v.2b). Estas comparações são
corriqueiras. Quase cada israelita poderia usá-las (abaixo havemos de com-
prová-lo). Mas a segunda comparação (final do v.3) tem outras característi-
caso A expressão "como no dia de Midiã" refere-se a um acontecimento de

53 Refiro-me, por exemplo, a Georg Fohrer, Das BuchJesaja I, p.125-126. Veja rambém Siegfried Herrmann,
lsraels Aufenthalt inÀgypten, Stuttgart, Verlag Katholisches Bibelwerk, 1970, 110p. (Stuttgarter Bibelstu-
díen, 40).

165
uns quatro séculos atrás (Juízes 6-9)! O Primeiro Testamento, afora em Juízes
6-9, em nosso texto e em Isaías 10,26, refere-se só mais uma vez(!) a esse
acontecimento, no Salmo 83,10-11. Por isso a referência ao "dia de Midiã"
de maneira alguma é uma comparação corriqueira como aquelas do v.2b (agri-
cultura, guerra). Ela atesta senso histórico para quem a usa. Até me parece
possível dizer que essa referência atesta a seu autor conhecimentos de espe-
cialista! Aliás, em 7,17, Isaías se nos apresentou como conhecedor da Histó-
ria do povo de Deus!
Já que existe o gênero da 'promessa de filho' (7,14), poder-sé-ia querer
reconhecê-lo também naquela exclamação no início do v.S ("eis, uma crian-
ça nos nasceu, um filho se nos deu");" Manifestar-se-ia, então, em nosso
texto uma tradição da família. Mas é fácil verificar que o início de nosso v.S
não é equiparável a 7,14 - um dos exemplos para a 'promessa de filho'. O
anúncio do nascimento de uma criança não ocorre, em nossa unidade, como
algo novo e especial, mas - como demonstra a introdução através do ki "eis"
- está plenamente integrado no todo do texto. Ou será que o anúncio do
filho no início do v.S tem algo a ver com o que se lê no restante dos v.S e v.6?
Para tornar devidamente compreensível essa pergunta, devo relatar a
proposta que a pesquisa tem apresentado para entender os v.S-6: um dos
elementos que fazia parte do cerimonial de entronização de um novo rei em
Jerusalém era - como nos povos vizinhos - a entrega de um 'protocolo real'.
"En ese protocolo real Yahvé habla en lenguaje directo al rey, le llama hijo:
le confiere la soberanía; le otorga su nombre de trono, etc."55 Em relação aos
v.S-6, essa proposta significa: que eles são como citação daquele protocolo
real, são a "forma estilística del protocolo real"56; que o início do v.S não fala
do nascimento físico de uma criança mas, como no Salmo 2,7 e em 2Samuel
7,14, de uma adoção; que no "nós" no início do v.S Deus se refere a si mes-
mo; que os títulos e a descrição do governo são citações do dito 'protocolo
real'. Não cabe aqui verificar em detalhes essa cativante proposta para a

54 Nessa direção, parece indicar Georg Fohrer, Das Buch}esaja I, p.125.126.


55 Gerhard von Rad, "EI ritual real judío" (1947), em Estudios sobre el Antiguo Testamento, Salamanca,
Sígueme, 1976, p.197 (p.191.19S) (Biblioteca de Estudios Bíblicos, 3). Esse ensaio de Gerhard von Rad,
de 1947, continua sendo a publicação, em que a gente se pode informar, da maneira mais concisa, sobre
o ritual de coroação de um rei em Judá. Na bibliografia a respeito, a maioria simplesmente retoma
Gcrhard von Rad. Veja ainda a respeito do assunto Sigmund Mowinckel, Psalmstudien II, Amsterdã,
Verlag P. Schíppcrs, 2ª edição, 1961, p.6·S, e Psalmstudien III, Amsterdã, Verlag P. Schippcrs, 2ª edição,
1962, p.SS, citando inclusive nosso texto isaiânico.
56 Gcrhard von Rad, "EI ritual real judío", p.198.

166
interpretação dos v.S-6. O serviço que ela nos presta é o de afirmar, de ma-
neira particular, que os v.S-6 provêm do âmbito da corte, da 'ideologia real'
como se costuma dizer. Chegou-se a dizer que se trata de uma 'cítação'" da
cerimônia de coroação. E isso é totalmente evidente. Pois a afirmação de que
"direito" (mixpa!) e "justiça" (~edaqah) fundamentam (kvn hifil) o reinado é
comum no âmbito da corte." Sim, os quatro (ou cinco?) títulos do rei, sem
dúvida, foram assumidos da corte egípcia. 59 Ora, até mesmo se menciona
expressamente o trono de Davi e de seu reino. Estes três exemplos bastam
para evidenciar que nos v.S-6 encontramos tradição da corte de Jerusalém.
Aliás, em 7,1-17 havíamos deparado com um Isaías bem ambientado com a
corte jerusalemitana!
Resumindo. O autor de Isaías 9,1-6 encontra-se familiarizado com as
tradições do culto (hino de um indivíduo), com a história remota de seu
povo ("dia de Midiâ") e com a 'ideologia' dos reis (títulos). Tudo isso aponta
para um autor originário do âmbito do culto e da corte de Jerusalém.
Com isso estamos na questão do autor de nosso texto. O assunto é com-
plicado. De início devemos desistir de querer abranger o todo do problema.
Primeiro: Otto Kaiser'" fez da seguinte exigência um postulado de pes-
quisa: "de princípio toda palavra, que também pode ser explicada a partir de
uma outra época, não deve ser atribuída ao profeta" Isaías. Se fôssemos assu-
mir esta exigência, não só teríamos que avaliar uma imensa gama de eventu-
alidades. Mas, principalmente, teríamos que discutir o conceito de História
que se encontra na base daquela exigência: um conceito de História que
postula o momento histórico como um único absoluto condiz à realidade?!
Segundo: também temos o direito de nos restringir. Afinal, os diversos
autores, ao discutirem a autoria de nosso texto - naturalmente sem alcançar
um consenso -, desenvolveram os argumentos básicos. Podemos aqui res-
tringir-nos a avaliá-los."

57 SiegfriedHerrmann, Die prophetischen Heilserwartungen irn alten Israel-Ursprungund Gestaltwandel, Stuttgart,


W Kohlhammer, 1965, p.133 (325p.) (Beítrãge zur Wissenschaft vom Altcn und Ncuen Testament, 85).
58 Veja H. Brumer, "Gerechtigkeit ais Fundament des Thrones", em Vetus Testamentum, Lciden, E. J. Bríll,
vol.8, 1958, a partir da pA26. Veja Salmo 72,1.2; 89,15 e outros.
59 Confira Hans Wildberger,Jesaja 1·12, p.381.
60 Otto Kaiser, Der Prophet Jesaja Kapitel13.39, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 1973, pA (Das Alte
Testamcnt Deutsch, 18).
61 Quanto ao resto, veja Hans Wildberger,Jesaja 1.12, a partir da p.368. Já em 1899, as questões eram vistas,
de maneira cristalina, por August Dillmann, DerProphetJesaja, Leipzig, Verlag S. Hirzel, 6" edição, 1898,
p.89-90 (534p.) (Kurzgefasstes excgetisches Handbuch zum Alten Testament, 5).

167
Pelo que observo, está definitivamente comprovado que o vocabulá-
rio, de maneira alguma, fala contra a autoria de Isaías."
Que 9,1-6 finaliza um complexo de textos, um 'livro' (Isaías 6-9) com
uma promessa - como ocorre mais vezes no livro de Isaías: 4,2-6 conclui 2,6-
4,1; 12,1-6 fecha 1,1-11.16 etc. - é evidente." Mas isso ainda não significa
que 9,1-6 seja secundário. Pois, por um lado, observo que Isaías 6-8 contêm
promessas (7,9b! 8,1-4! por exemplo), e, por outro lado, ainda havemos de
ver que 'Isaías 9,1-6 é promessa em meio ao juízo.
Com muita perspicácia alguém atribui a autoria de nosso texto a um
"profeta da corte de [erusalém'P'. Isso, contudo, não exclui a autoria de Isaías,
como o quer aquele autor, mas a confirma. Pois, como observávamos, nosso
Isaías exatamente tinha suas origens no templo (Isaías 6; 8,1-4; 8,14-15), na
corte (Isaías 7 j 8,2), entre os bem informados da História de Israel (7,17).
Concluindo digo: Nada fala decisivamente contra a autoria de Isaías
em 9,1-6. Muito fala a favor.
Qual é o momento histórico dessa palavra de Isaías? Haveria uma res-
posta clara e evidente, se 8,23 fizesse parte de nossa unidade. Pois, 8,23, com
certeza, se refere à invasão e às conquistas dos assírios (Tiglate-Pileser III)
nas regiões setentrionais de Israel. Assim sendo: quem adiciona 8,23 à uni-
dade 9,1-6, passa a ter um momento histórico exato: 732 a.C.!65 Contudo,
não me pareceu convincente ver em 8,23 o início de nossa unidade (ef.
acima). Por isso temos que auscultar o próprio texto de 9,1-6. E este texto
revela a situação em que foi dito?
De formulações generalizantes como as do v.l e, em grande parte, do
v.2 e de material tão tradicional, com característica de citação, como os v.5-
6 não se pode deduzir uma data. Mas os v.3-4 nos dão algumas pistas valiosas.

62 Veja J. Vollrner, "Zur Sprache von ] csaja 9,1.6", em Zeitschrift für diealttestamentliche Wissenschaft, Berlim,
Walter de Gruytcr, vol.80, 1968, a partir da p.343. Este autor curiosamente tentou demonstrar, através
do estudo de 10(!) palavras, em um texto de mais de 80(!) palavras, que nossa perícope não é de Isaías!?
Hans Wildberger (Jesaja 1·12, p.369·370) apontou para um outro tanto de palavras, comprovando o
contrário!
63 Georg Fohrer, "Enrstchung, Komposition und Überlieferung von jesaja 1·39", em Studien zur alttestamen·
tlichenProphetie 1949·1965, Berlim, Walter de Gruvtcr, 1967, a partir da p.113 (Bcíheftzur alttcstamen-
tlichen Wissenschaft).
64 T. Lcscow, "Das Geburtsmotiv in dcn messianischcn Weissagungen bei jesaja und Micha", em Zeuschiiit
für diealttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruyter, vol. 79, 1967, p.l88.
65 Isso se pode constatar em AlbrcchtAlt, "[esaja 8,23·9,6 - Befreiungsnacht und Kr6nungstag", p.206·265;
veja também Hans Wildberger.Jesaja 1·12, p.371.

168
Neles percebemos que a situação é de pesada opressão (canga, vara, porrete,
bota), que o ambiente é de guerra, de vitória no campo de batalha (saque,
bota perdida, capa ensangüentada, v.2, 4). E, principalmente, descobrimos
neles que não se trata de um inimigo interno (rico e comerciante), mas de
um inimigo externo, estrangeiro. Nessa direção eventualmente indica a men-
ção do "dia de Mídiã" (v.3) , e certamente aponta a terminologia do início do
v.4: a raiz s'n é um estrangeirismo emprestado da língua assíria, isto é, o autor
descreve o inimigo usando seu vocabulário (quanto à esta questão cf. abaixo
a explicação do v.4). Pelo que se deduz, a situação é a do domínio assírio.
Contudo, essas conclusões nem de longe fixam a data de nossa unida,
de. Pois, a supremacia assíria sobre a Siro-Palestina foi uma constante desde
740 a.C, Judá e Jerusalém confrontaram,se, desde então, por várias vezes
com o poderio e o terror dos assírios'f':
Em 738 a.c., o rei Uzias = Azarias provavelmente já pagava tributo a
Tiglate-Pileser III.
Em 734 a. c., os assírios subjugam todas as cidades situadas na planície
do Mediterrâneo, em especial Gaza, indo até aos limites com o Egíro.
Isso significa que exércitos assírios passaram a uns 40 km de Jerusalém.
A partir de então já se conhecia em Jerusalém o pisar de um soldado
assírio (cf. v.4!).
Em 734/3 a.C; Acaz, assediado por Arã e Israel na assim chamada
guerra siro-efraimita, comprou com tributos a ajuda dos assírios. Estes
liquidaram Arã e anexaram as regiões do norte de Israel, deportando a
população. No templo de Jerusalém, assinalando a vassalidade aos as'
sírios, agora também se prestava culto às divindades do grande império
da época (2Reis 16,10,20).
Em 722 a.C; Salmanesser V (ou Sargão II?) destrói Samaria e assim
aniquila Israel, o estado irmão de Judá. (Samaria está a uns 60 km de
[erusalérnl) Em conseqüência, muitos israelitas fogem para Jerusalém e
[udá."

66 Restrinjo-me, a seguit, a afirmações. As fontes estão em 2Reis 15.20, em Kurt Galling, Textbuch zur
Geschichte Israels, Tubinga,J. C. B. Mohr, 2ª edição, 1968, p.54· 70 (109p.) (vejaJames B. Pritchard, Ancient
Near EastemTexts Relating to theO/d Testament, Princenton, Princenton University Press, 2ª edição, 1955,
p.282·288 [xxi p. + 544 p.J). Para a interpretação das fontes, orientei-me em Martin Noth, Historia de
Israel, p.237·273.
67 A este respeito, veja, agora, Georg Fohrer, Geschichte Israels von denAnfangen biszur Gegenwart, Heidel-
berg, Quelle & Meyer, 1977, a partir da p.156 (290p.) (Uní-Taschcnbücher, 70S).

169
Em no a.C; alguns estados do sul da Palestina, contando com apoio
egípcio, aliam-se contra os assírios. Entre eles está Judá. Em última
hora seu rei Ezequias paga tributo e se livra de Sargão II. Mas, Asdode,
a sudeste de Judá, vira província assíria.
Em 701 a.c., os assírios aniquilam Judá. Acontece que Senaqueribe,
após a morte de seu antecessor em 705, tivera que desvencilhar-se de
concorrentes antes de assumir o controle do império assírio. Os pe-
quenos estados da Palestina aproveitaram a situação. Fizeram-se inde-
pendentes dos assírios. Entre eles também está Judá. Essa 'insubordi-
nação' dessa vez custou caro. Em 701 a.c., 46 cidades de Judá foram
aniquiladas, 2001S0(! - de acordo a textos assírios) habitantes de Judá
foram deportados e, em Jerusalém, Ezequias foi cercado qual pássaro
em gaiola, como diz a crónica assíria (veja Isaías 1,8-9). Mas, os assírios
se retiraram antes do assalto final à Jerusalém que, como por milagre,
ficou preservada.
Esta resenha mostra que o confronto mais marcante entre assírios e
Judá/Jerusalém ocorreu em 701 a.C, sendo Ezequias rei em judá e Senaque-
ribe rei na Assíria. Conseqüentemente nosso texto, não raras vezes, foi rela-
cionado a esta situação de 701 a.C, 68. Penso que há alguma probabilidade de
que assim seja. Pois, fato é que também temos outras palavras de Isaías ditas
por ocasião de 701 a.c.: 1,4-9; 10,S-lS.27b-32; 14,24-27; 22,1-14; 28,23-
29; 29,15-16; 30,1-5.6-7.27 -33; 31,1-3.4-9; 32,9-14. 69 Observo algumas se-
melhanças entre essas palavras e nosso texto. Mas estas semelhanças se res-
tringem a algumas figuras: confira v.3 com 10,5; 30,31-32, e v.4 com 10,27 e
14,25. E também não faltam diferenças: ora, 1,4-9 e 10,6 falam de outro
modo do povo que 9,1. Portanto: a interpretação de nosso texto em cone-
xão a 701 a.C. não vai muito além da probabilidade. Faltam argumentos
decisivos.
Mais adequado é conectar nosso texto a 734/3 a.c. Nessa direção in-
dicam as seguintes observações:

68 Assim Bernhard Duhm, Das BuchJesaja, p.88, e, em parte, Hans Walter Wolff, Frieden ohne Ende, p.63.
69 Adorei a opinião de Georg Fohrcr (Das BuchJesaja I, p.lO), pois aqui não é possível discutir a questão.
Contudo, não há consenso sobre os textos que devem ser relacionados a 701 a.c., como se vê, por
exemplo, em Otto Kaiscr, Einleitung in dasAlte Testament - EineEinführungin ihre Ergebnisse und Probleme,
Gü tcrsloh, Gü tcrslohcr Vcrlaghaus, 5ª edição, 1984, p.I 78 (455p.). Veja também Herbert Donner, Israel
unter den Viilkem- DieStellung derklassischen Propheten des8.Jahrhunderts v.Chr. zurAussenpolitik derKiinige
von Israel undJuda, Lcidcn, E. J. Brill, 1964, xii p. + 193p. (Supplcmenrs to Vetus Testamcnrum).

170
Primeiro: 8,23 tem a ver com as conquistas assírias no norte de Israel,
em 733/2 a.c. Nosso texto não está descrevendo para Judá a salvação que
8,23 anuncia e descreve em relação às regiões setentrionais do Estado de
Israel?
Segundo: nos demais textos da guerra siro-efraimita, a Assíria sempre é
executora dos anúncios ameaçadores (7,17.18.20; 8,4.7). Só em 9,3-4 seria
vítima, como Isaías o anunciava em anos posteriores (por exemplo 10,5-34).
Mas essa constatação não pode ser aproveitada como argumento contra a
fixação de nossa unidade em 734/3 a.c. Pois, 9,1-6 evidentemente não foi
dito, como Isaías 6-8, antes do início das operações dos exércitos assírios em
Arã e Israel, mas quando o anúncio de Isaías contra Arã e Israel já estava em
realização. É compreensível que a Assíria, que até então só era executora do
juízo, agora passe a ser vítima. E nosso texto, visivelmente, recém marca um
início nessa nova posição de Isaías diante do império da época, pelo fato de
a Assíria não ser expressamente mencionada nos v.3-4. Aliás, o que aqui
ocorre com a Assíria, ocorre no cap.? com Judá: no início era terra agracia-
da, depois terra desgraçada.
Terceiro: em 733/2 a.C; a soldadesca assíria ainda não invadira o ter-
ritório de Judá. Mas também essa constatação não pode ser aproveitada como
argumento contra a fixação de nossa unidade em 734/3 a.c. Pois,Judá, mes-
mo não ocupado, estava acoçado, rodeado e submisso à Assíria: pagava pesa-
do tributo; em seu templo eventualmente já se observava a influência de
cultos assírios; o vizinho ao norte (Israel) estava arrasado, os vizinhos ao sul
(Gaza, Asdode) já eram vassalos. E tudo isso ocorria há poucos quilômetros
de Jerusalém. Realmente, em Jerusalém já se ouvia "a bota que marcha com
estrondo" (v.4).
Quarto: pela composição do livro de Isaías, 9,1-6 necessariamente é
parte do complexo dos caps.6-9; pois 5,25-30 continuam em 9,7-20 e 5,8-24
continuam em 10,1-4. Conseqüentemente devemos atribuir a 9,1-6 a data
de Isaías 6-9, ou seja: 734/3 a.c.!
Afirmo, pois, que nosso texto está relacionado aos acontecimentos da
guerra siro-efraimita de 734/3 a.c. Contudo a situação de 9,1-6 não é total-
mente idêntica a de Isaías 7 e 8. Já o havia indicado acima e agora devo
ressaltá-lo expressamente. Afinal nossa unidade pressupõe um estágio mais
avançados dos acontecimentos. Em Isaías 7 e 8, a situação era a do cerco que
israelitas do norte e arameus impunham a Jerusalém. Por causa de sua profe-

171
cia, Isaías, por fim, ficara só e na expectativa de que seu anúncio de destrui-
ção se realizaria; nessa expectativa o profeta anotara os caps.ó-S (8,161). Em
9,1-6, nada mais indica que Jerusalém continue cercada por arameus e israe-
litas. Agora o cenário é dominado pelos assírios (v.3-4). Derrotaram os ara-
meus, dissecaram a Israel (8,23!) e aterrorizam Judá. Nessa situação, Isaías
tem uma nova palavra. Esta (9,1-6) pressupõe as anotações anteriores (Is 6-
8) e traz um novo enfoque. Isaías 9,1-6 é, pois, um tipo de adenda a Isaías 6-81
Com isso a data de nosso texto deve ser a de 732 a.C. (na época da colheita?
v.2a?), quando os soldados assírios haviam 'inundado' (cf. 8,5-8) a Síria e a
Palestina.
Falávamos do novo enfoque e do caráter de adendo que Isaías 9,1-6
apresenta. Isso poderia dar a impressão de uma ruptura profunda entre os
caps.ó-S e o cap.9. A diferença, a descontinuidade realmente existe. Mas a
continuidade também é evidente. E ela consiste, entre outros, da situação de
Isaías. Entendo que ele continua só, com os discípulos (8,16-18). E a este
círculo de pessoas são dirigidas nossas palavras. Elas "não fazem parte de seu
ministério público", mas "só tem em vista o próprio profeta e o pequeno
grupo dos que com ele vivem da esperança"?". Assim sendo, Isaías 9,1-6 não
é uma palavra para o grande público, mas para o pequeno grupo de amigos
do profeta! Só descrevendo o ambiente de nossa unidade nesses termos, po-
demos entender algumas de suas particularidades: falta em Isaías 9,1-6 qual-
quer introdução especial, tal como "assim disse o Senhor", "eis", etc., nosso
texto não está dirigido a um público, mas a Deus; aqueles que estão direta-
mente envolvidos no v.5 são um grupo de pessoas denominado de "nós". A
identificação desse "nós" do v.5 sabidamente é discutida. Para uns este "nós"
é igual a Deus (cf. 6,8).71 Para outros são os "arautos de Jerusalém" que se
sabem unidos a todos os súditos dos davidídas." Para mais outros é o "povo",
a "população de Jerusalém e Judá"73. Enfim, alguns - e estes no meu entender
indicam na direção adequada - descrevem o "nós" como "comunhão dos pie-
dosos, da qual também o profeta faz parte"?", como "círculo dos crentes'?". O

70 Bernhard Duhm, Das BuchJesaja, p.88.


71 Gerhard von Rad, "EI ritual realjudío", p.198.
n Albrccht Alt, "[csaja 8,23-9,6 - Befreiungsnacht und Krünungstag", p.207.
73 Bernhard Duhm, Das BuchJesaja, p.89; Hans Wildberger, Jesaja 1-12, p.371.
74 Martin Rehm, Der kónigliche Messias im Licht der Immanuel-Weissagungen desBuches Jesaja, Kevelaer, Verlag
Butzon & Bercker, 1968, p.143 (432p.) (Eichstãtter Studicn, 1).
75 Hans Walter Wolff, Frieden ohne Ende, p.69.

172
"nós" é realmente o profeta e aquele grupo que com ele permanece. São os
mesmos que esperam por Imanuel. Porém, com estas observações já estamos
em meio à análise de detalhes. É a ela que agora nos podemos dedicar procu-
rando auscultar a palavra, o sentido destes nossos versículos, com o qual o
próprio Isaías de maneira tão maravilhosamente poética e hínica e em um
linguajar tão repleto de tradições, olhando para o futuro, conclui em 732
a.C. suas anotações da época da guerra siro-efraimita de 734/3 a.c., com
palavras faladas a seu pequeno círculo de amigos.

Um menino para a paz e a justiça - Os conteúdos


Acima aprendíamos a enxergar cinco'estrofes' em nossa perícope: v.1,
v.2, v.3,6, subdivididos em v.3, vA e v.S-6. Ao interpretarmos, a seguir, os
conteúdos, iremos deixar-nos conduzir por esta estruturação inerente à nos,
sa unidade literária.
No v.I, as promessas se iniciam; trata' se de uma síntese do todo:
O povo que anda na escuridão verá luz grande;
governantes em região deserta... luz resplandecerá sobre eles! (v.1)
Nos itens anteriores, cheguei a alguns resultados claros sobre o v.I.
Recordêmo-los rapidamente! Evidenciou-se que o v.1 é um todo; é uma 'es-
trofe'. Por isso, os vários detalhes necessariamente têm que ser interpretados
em vista ao todo do versículo. Evidenciou-se também que estamos lidando
com repetições de conteúdo; duas vezes é delineado um conteúdo similar.
Por isso, na interpretação é preciso considerar que no v.1 há tanto afirma-
ções iguais como afirmações antagónicas. Evidenciou-se ainda que o v.1 é
uma introdução que já abarca o que o segue. Por isso, na interpretação se
torna necessário saber que o v.1 já fala do todo do texto.
.O v.1 em seu todo é uma figura. É uma figura das trevas e da luz. Que
Isaías use linguagem figurada nas suas palavras na guerra siro-efraimita
(caps.ô-v), não é novidade. Temos figuras em 7,2.4; 8,6,7. Temos uma ação
simbólica em 8,1-2. Não seria possível designar a linguagem do cap.6 igual,
mente de figurativa? O uso de figuras não é, pois, nada de novo. Novo é que
Isaías introduz essa sua palavra e, devido à função dominante do v.1 sobre os
v.2-6, que tende a caracterizar toda nossa unidade como imagem. Não só o v.1
é figura. Com ele 9,1-6 também é linguagem figurada. Com isso nos está dado
um critério interpretativo básico para o v.1 e para os v.2-6. Ora, uma figura
sempre está aberta. Sua interpretação não está fixa. Ela, assim entendo, não

173
pode ser definida, só pode ser descrita. Uma definição procura por conceitos.
E um conceito quer concentrar, abranger e sintetizar em terminologia exata
e adequada uma verdade ou realidade. Ao contrário uma figura! Ela não
pode ser reduzida a um conceito. Ela deve ser descrita. Nessa descrição da
figura, a gente procura perceber as direções, em que indica, ou as possibilida-
des de que o v.1 não tenha só uma e única maneira de interpretação, mas
que esteja aberto a várias possibilidades de compreendê-lo. Já estou a ouvir
que agora alguém conteste: Mas isso é puro relativismo! Pode parecer como
se eu estivesse abrindo as portas a um relativismo desregrado, sancionando,
de princípio, toda e qualquer interpretação. Levo a sério tal crítica. Lembro,
porém, que o chavão do relativismo sofre doentiamente da premissa de que
tudo seja absolutamente definível. Com isso o chavão do relativismo coloca-
se dentro daquela tradição de pensamento que quer captar a realidade da
vida em conceitos precisos, exatos e controláveis. Mas a vida evidentemente
excede aos conceitos. Se, pois, digo que o v.1 é figura e que, por extensão,
também os v.2-6 o são, não postulo que qualquer interpretação de nossa uni-
dade seja adequada ao texto. O que me parece decisivo é que, diante da figura,
nenhuma interpretação se pode arrogar o direito de haver dito a última pala-
vra. Para captar uma figura são necessárias mais vozes (o que, aliás, vale para o
todo da Escritura). Se observo as interpretações que Isaías 9,1-6 já recebeu por
diversos autores," então descubro nelas e nas particularidades, que cada autor
ou autora apresenta, a riqueza de nossa unidade, de nossa figura.
Insisto, pois, em que se leve a sério o caráter de figura do v.1 e que se
veja nela um texto aberto. É valioso que o v.1 e com ele nosso texto sejam
uma figura aberta. Pois, este é um dos motivos pelos quais continua vivo. A
figura de luz e trevas teve acesso fácil à linguagem atual: a gente a reencontra
no Novo Testamento, principalmente no Evangelho de João (cf. por exem-
plo 1,577); nosso texto está na liturgia dos cultos da época de Advento e
Natal; é texto de reflexão para o Natal; e está presente numa série de can-
ções natalinas. Portanto: por ser figura, o v.1 não se esgota em si. Não pára na
situação específica, em que foi articulado em 732 a.C. Por ser figura, o v.1 (e
com ele todo nosso trecho) tende para o futuro!
Podemos, agora, atentar para os detalhes do v.l , O peso da figura deste

76 Em Hans Wildberger,jesaja 1-12, p.362-363, é citada mais de uma página de hibliografia!


77 Confira a bela exposição de Rudolf Bulrrnann, Teologia do Novo Testamento, São Paulo, Teológica, 2004,
p.429-529 (925p.).

174
versículo evidentemente recai sobre a luz. A palavra 'or "luz", afinal, é a
única usada duas vezes no v.I. Além disso, a luz é "grande" e está "acima de",
"sobre" ('ai) as pessoas. E, por fim, os dois verbos finitos se referem à luz.
Portanto, o v.l converge para a luz, para a grande luz!
Mas, antes de continuar a falar desse centro do v.l, olhemos para suas
periferias. Em que ambiente cai a luz? Vejo-o caracterizado com dois vocá-
bulos que, com freqüência, aparecem contrastando com luz (Isaías 5,20; [e-
remias 13,16; Já 12,22 etc.) 78. Tiata-se de hoxek e 'ere~ ~almavet. No geral,
pressupõe-se que ambas as palavras tenham o mesmo ou mais ou menos o
mesmo significado: 'escuridão'. E, de fato, muitas vezes estão usadas no mes-
mo sentido: Salmo 107,10.45; Já 3,5; 10,21; 12,22; 34,22. Mas, será que
realmente são sinônimos plenos? Ora, hoxek é claramente definíveL É a "es-
curidão", em especial a da noite (por exemplo Gênesis 1,4~5; Já 3,4). A meu
ver, 'ere~ ~almavet não tem exatamente o mesmo sentido. Uma observação
mui simples indica nessa direção: acontece que "uma terra de escuridão"
seria inabitável, inexistente para pessoas! Quer dizer, se ~almavet tem o senti-
ao de "escuridão" da noite, então é necessário pressupor que a segunda me-
tade de nosso versículo seja um contra-senso. Além dessa observação, fiz
mais outra descoberta que vejo como decisiva. Acontece que aqueles textos,
em que ~almavet aparece como sinônimo de hoxek "escuridão", são por mui-
tos decênios posteriores a nosso texto. É o caso de Jeremias 13,16; Já 3,5;
10,21~22; 12,22; 24,17; 28,3; 34,22; 38,17; Salmo 107,10.14; Amós 5,8 79 •
Inclusive somente a partir dessas passagens se pode afirmar que 'ere~~almavet
tenha o significado de "mundo dos mortos", de xe'o1.80 E, por fim, verifiquei
que em várias passagens bíblicas a palavra ~almavet não designa uma escuri-
dão, mas um "ermo", "descampado", "deserto". Esse é o caso em Jeremias 2,6;
Salmo 23,4; 44,20. Assim sendo, 'ere~~almavet não é simplesmente um sinô-
nimo de hoxek "escuridão". Mas diferencia-se de hoxek porque caracteri~~ o

78 Veja M. Saebo, "Luz", Diccionario teológico manualdeAntiguoTestamento, Madri, Cristiandad, vol.1, 1978,
colunas 148-156.
79 Hans Walter Wolff (Dodekapropheton 2 -]oe1 um!Amos, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1969, p.135.276
(424p.) [Biblischer Kommentar Altes Testament 14/2]) vê em Amós 5,8 um texto da época de Josias!
80 Hans Wildberger,]esaja 1-12, p.373. Este também é o ponto de partida de Sigmund Mowinckel, He that
Cometh, p.102-103, ao afirmar: "que essa metáfora foi derivada do mito do deus-sol, o deus da vida, e da
sua invasão vitoriosa no inferno, no mundo dos mortos para reavivar a morte", e ao constatar: "por isso o
pano-de-fundo da metáfora é, em última análise, a idéia pré-israelita de que o rei é o representante do
deus-sol e do deus-fertilidade".

175
ambiente de vida dos "habitantes" como um "ermo"." A segunda metade do
v.l (= v.lb) fala, portanto, de uma "terra/região de descampado", isto é, uma
região deserta." Desse assunto Isaías já falara anteriormente em suas anota-
ções de 734/3 a.c. Refiro-me a Isaías 6,11 e penso também em 7,16 e 8,4.7.
As destruições que o profeta ali anunciava falavam de terra destruída e deser-
ta. A menção de uma 'ere~ ~almavet "região deserta" em Isaías 9,1 enquadra-
se muito bem nesse contexto!
Contudo, com a definição desses dois vocábulos b.oxek e 'erei ~alma­
vet só estive falando de um dos momentos que compõem o ambiente, em
que irrompe a luz. Quem está envolvido nessa "escuridão" e quem está
vivendo nessa "terra erma"? O v.l não menciona indivíduos, mas coletivi-
dades: ha-Iam ha-holekim e yoxebim. O que me surpreende é que nesses dois
termos se reencontra exatamente a linguagem que Isaías usou na guerra
siro-efraimita. Ora, tanto Iam "povo" (6,5.9-10; 7,2.17; 8,6.12) quanto
yoxeb ou seu plural yoxebim "habitante(s)" reaparecem em várias nuanças,
sucessivamente em Isaías 7 e 81 Estes yoxebim são os "sentados", podendo
ser tanto "sentados"-habitantes quanto "sentados"-governantes, eles estão
continuamente (yoxebim é particípio de yxb "sentar-se") "ern'" terra deserta".
Estes "sentados" são, à luz de nossos caps.ó-S, os governantes de Jerusalém
(8,141) e de Judá (cf 6,11). O termo Iam, em princípio, designa esse mesmo
grupo de pessoas. Contudo, em nosso contexto ele tem lá suas peculiaridades.
Não é um "povo" qualquer, mas "o(l) povo" ha-'am. É um grupo bem determi-
nado, já conhecido. E, de fato, Isaías 6-8 nos mostra que "o povo" são os da
corte real (7,2.17), os de Judá que se opunham à palavra profética ("este povo"
ha-'amha-seh). "Este povo" de lá (isto é, dos caps.ó-S) era culpado, "o povo"
aqui (isto é, no v.l) já foi castigado. Este povo, no fundo a elite, "anda"
constantemente (holekim é particípio) na escuridão. Não me parece que "an-

81 Verifico que Franz Delitzsch, em 1889, já tendia a interpretar 'ere~ ~almavet nesse sentido (Commentar
über dasBuchJesaja, Leipzig, Doerffling & Franckc, 4" edição, 1889, p.164·165 [642p.] [Bíblíschcr Kom-
mentar über das Alte Tcstarncnt, 3/1]).
82 Em João Ferreira de Almeida, ~almavet é traduzido por "sombra da morte". Essa tradução remonta à
Septuaginta e à Vulgata (umbramoreis). Baseia-se numa explicação etimológica muito dúbia de ~almavet,
segundo a qual esta palavra se comporia de ~el "sombra" + mavet "morte". Segundo os dicionários, esta
etimologia é muito improvável: veja Wilhelm Gesenius, Hebriiisches und aramiiisches Handwarterbuch über
dasAlte Testament, Berlin, Springer Verlag, 18ª edição, 1962, p.684, e Ludwig Kõhlcr e Walter Baumgar-
tner, Lexiconin veteris testamenti libras, Leidcn, E. J. Brill, 1985, p.805.
83 Quanto à preposição be· no statusconstructus, confira Wilhelm Gcsenius, Hebriiische Grammatik, § l30a;
veja tarnbérn johanncs Hollenberg e Karl Budde, Gramáticaelementarda línguahebraica, § 48d.

176
dar" hlk seja usado aqui no seu sentido original. "Andar" é metáfora para uma
atitude ética, para "viver", como se observa também em outras passagens
bíblicas (Isaías 59,9; Provérbios 6,12; Eclesiastes 2,14 etc.). "O povo" e os
"habitantes"/govemantes, de que fala o v.l, são, pois, grandezas conhecidas
e determinadas (observe o artigol): encontram-se na corte real, em Jerusa-
lém e em judá, já estão experimentando a realização das ameaças que Isaías
anunciara (já estão em "região deserta"). Com isso está descrito o ambiente
sofrido, do qual se destaca a irrupção da luz. E, podemos agora com mais
propriedade analisar a epiíania da luz; o local de convergência de todo o v.l
e, por extensão, de nossa unidade.
Por um lado (v.la), pessoas "vêem" (r'h "ver") essa luz, por outro lado
(v.Ib), a própria luz, como sujeito, aparece, "resplandece" (ngh "resplande-
cer"). Estes dois verbos funcionam aqui como sinónimos; o substantivo na-
gan "resplendor" - derivado de nosso verbo ngh- freqüentemente encontra-
se nas proximidades de 'ar "luz": Habacuque 3,11; Provérbios 4,18 etc. A
diferença está no uso. O verbo ngh "resplandecer" só aparece seis vezes." Ao
contrário r'h "ver". Este é o verbo usual para "ver". Algumas vezes ele até
tem (como em nosso versículo) "luz" 'ar como objeto (Salmo 36,10; 49,20;
[ó 3,16; 31,26; 37,21). Contudo o decisivo ainda não é isso. Decisivo é que
esse verbo r'h "ver" está no cap.6, no início das anotações proféticas por
ocasião da guerra siro-efraimita. Em 6,1, se lê "vi o Senhor". E, em 6,10,
Isaías recebe a tarefa de fechar (colar) os olhos do povo "para que não veja
(olhe) com seus olhos". Agora, em 9.1, isso está superado; "o povo" volta a
ver. Com isso também se vai tornando claro que o "ver" de nosso versículo
não é um "enxergar" qualquer. O "ver" de 9,1 é qualificado. Isso já se pode
perceber no verbo que está paralelo a "ver" r'h. Penso em ngh. Pois, esse
verbo procura transmitir um impacto: ngh é um "resplandecer" fulgurante e
avassalador. É epifania'" divina. E além disso ngh é construído com a preposi-
ção 'aI que sempre assinala uma diferença de nível, ou seja, o brilho vem
rorte e marcante do a1to. " O
L povo" se encontra " " (b'
em terra a- are,l) , a 1uz
vem de cima sobre as pessoas. Essa luz é, pois, qualificada. A gente o percebe

84 No qal ("resplandecer"): Já 18,5; 22,28; Isaías 9,1; no hifil ("fazer resplandecer"): Isaías 13,10; 2Samuel
22,29 = Salmo 18,29.
85 Veja referente à raiz ngh: Hans Walter Wolff, Dodekapropheton 2 - Joel undAmos, p.302; confira também
H. P. Muller, "Uns ist ein Kind geboren... Jesaja 9, 1·6 in traditionsgeschichtlicher Sicht", em Evangelísche
Theologie, Munique, Christian Kaiser Verlag, vol.21, 1961, p.408-409.412 -413.

177
de maneira bem clara, se tenta identificar essa luz. Que é 'ar "luz"? Poderia
ser sol, lua, estrelas. Os dois verbos "ver" e "resplandecer" são usados nesses
contextos (Isaías 13,10; Salmo 49,20; Io 3,16; 31,26 por exemplo). Porém,
não parece ser adequado aproximar 'ar com astros. Em 6,1, Isaías falava em
"ver" ao Senhor, a Deus. Em 9,1, ele não vai tão longe. Mas mesmo assim
"luz" deve ser aqui símbolo para Deus. Que "luz" expresse a presença salvífi-
ca de Deus é freqüente (Isaías 10,171 31,9! [ó 22,28; Salmo 18,29 = 2Sa-
muel22,29; Salmo 36,10 86 ) . Luz é o Salvador! Portanto, aquele Deus, que
no v.2 é chamado de "tu", é simbolizado no v.l na figura da luz! Com isso já
estou a apontar para o v.2. Mas antes de perscrutar sua palavra e seu sentido,
tento fixar resultados obtidos na observação do v.l:
O v.l não é só a entrada, o início. Ele é a luz para o todo do texto. Na
análise dos v.2-6 havemos de verificar se essa constatação confere.
O v.l é uma figura. Por ser figura, todo texto se torna metafórico. Con-
seqüentemente é necessário saber da radical provisoriedade de qual-
quer fixação dessa unidade.
O v.l está centrado na figura da treva e do ermo vencidos pela luz.
Quem é essa luz? O v.2 responde: tu, Senhor!
O v.l (e com ele v.2-6) fala para dentro de uma situação de desastre. A
destruição anunciada por Isaías e registrada nos caps.6-8 está se reali-
zando. É uma palavra em meio a trevas e deserto, por onde andam "o
povo" e os "habitantes"/governantes.
Feita esta síntese, vamos ao v.Z:
2Completarás o povo,
para ele aumentarás a alegria,
alegrar-se-âo diante de ti como alegria em colheita,
como a gente se regozija em seu repartir um
saque.
Acima estávamos descobrindo que a luz do v.l é aquele, a quem se
dirige o v.2 (isto é, Deus). A luz é um 'tu' ("tu multiplicarás/completarás..."),
uma pessoa. Não é só um fenômeno. É um agente. Esta passagem do v.l para
o v.2 percebe-se também na linguagem: v.l é descrição, v.2 é oração pelo que

86 Confira M. Saebo, "Luz", em colunas 88.90.

178
está por ocorrer. Esta oração do v.2, por sua vez, contém duas perspectivas
diferentes. Ela é, em sua primeira parte (v.2a), explicitação teológica ou louvor
profético da figura do v.I. E ela é, em sua segunda parte (v.2b), encenação do
efeito ou da conseqüência do que está por ocorrer ("se alegrarão...").
Portanto, é-nos possível fixar, inequivocamente, as funções do v.2a
(explicitação do v.1) e do v.2b (efeito/conseqüência). Essa visão do todo do
v.2 facilita a discussão de seus pormenores, ainda mais que, no v.2a, o texto
hebraico oferece algumas dificuldades. Contudo, a solução desse problema
de crítica textual não interfere na compreensão do todo do versículo quanto
ao acima exposto. Vejamos, pois, o texto do v.2a:
Na Bíblia Hebraica, se lê o seguinte:
hirbita ha-goy, lo'higdalta ha-simf1ah
Para a tradução é importante saber que a negação (lo' "não") só pode
referir-se ao segundo verbo, ou seja: a higdaltat' aumentarás". Nesse caso,
teremos a seguinte tradução:
multiplicarás o povo, 'não' aumentarás a alegria.
O conteúdo dessa frase em si, evidentemente, não é impossíveL Ele se
torna impossível no contexto, já que na segunda parte do v.2 (= v.2b)
é afirmado que haverá alegria. Não vejo motivo que possa justificar,
por um lado, a afirmação da alegria em v.2b e, por outro lado, sua
negação no v.2a. Portanto o problema é o lo't'não" no v.2a!
Antes de passarmos a enfocar a solução desse problema, é necessário
estar ciente de que o texto mais antigo do v.2a é aquele que está na
Bíblia Hebraica. Isso evidentemente não só afirmo pelo fato de o texto
da Bíblia Hebraica (baseado num texto hebraico do 11° século d.C.!)
ser confirmado pela tradução latina, a Vulgata: multiplicasti gentem, et
non magnificasti laetitiam. Afirmo-o porque a antiguidade do v.2a está
confirmada, agora, pelo livro de Isaías de Qumrã, do 2° século a.C.'
Para ser bem claro: no livro de Isaías de Qumrã consta aquele lo', usu-
almente traduzido por "não", que é o problema de nosso v.2a!
Não somos, porém, os primeiros a perceber que no v.2a não pode ha-
ver negação. Os que nos transmitiram o texto hebraico (os masoretas)
anotaram à margem que aquele lo' (que até aqui entendíamos no sen-
tido de "não") deveria ser entendido como lo no sentido de "para ele";
ao invés do quetib dever-sé-ia ler o querê. (Esta variante está anotada

179
na margem direita do texto hebraico da Biblia Hebraica Kittel e da
Biblia Hebraica Stuttgartensia.) Essa mudança não só foi feita pelos
masoretas. Encontra-se em alguns manuscritos hebraicos, na tradução
aramaica (Targum) e na tradução síria (confira Biblia Hebraica Kittel).
E, no meu entender, também já está presente na tradução grega. A
Septuaginta tem uma versão bastante diferente no v.2a: to pleiston tou
laou, o kategages en eufrosune sou.../"a totalidade do povo, que tu con-
duziste à tua alegria ...". Mas, apesar das diferenças, o texto da Septua-
ginta também não contém a negação. Portanto, já a Septuaginta, do
3°/20 século a.c., não traduziu nosso lo' por "não"!
Há mais uma terceira possibilidade de ler o texto hebraico do v.2a.
Trata-se de uma conjetura: muitos querem ler ha~gilah "o júbilo" ao
invés de ha~goy lo' "o povo não". Essa é, agora, a única sugestão na
nova Biblia Hebraica Stuttgartensia. E ela já constava na Biblia Hebrai~
ca Kittel. É aceita pela grande maioria dos intérpretes." Esta conjetura
consegue reconstruir, no v.2a, um belo paralelismo sinónimo, em que
dois verbos descrevem um aumentar (rbh e gld) e dois objetos se referem
à alegria (gilah e simnah). Essa conjetura não se afasta muito das conso-
antes do atual texto hebraico: ha~goy lo' é graficamente parecido a ba-
gilah. E, além disso, a raiz do substantivo conjeturado ha~gilah encontra-
se no final de nosso versículo no verbo gyl kal "alegrar-se"."
Agora, torna-se necessário decidir. Estamos diante de três alternativas:
primeira: o texto masorético ha~goy lo'/"o povo não", sustentado pela
Vulgata e, principalmente, pela cópia de Isaías de Qumrã; segundo: a
leitura dos masoretas, o querê (ha-goy lo/" o povo para ele"), sustentada
pelas traduções síria, aramaica e, principalmente, grega; terceiro: uma
conjetura (ha~gilah/"o júbilo"), adotada pela grande maioria dos intér-
pretes atuais. Decido-me pela segunda alternativa. Pois: (1) a terceira
alternativa apesar de ser lógica não encontra nenhum apoio em anti-
gas traduções; (2) a primeira alternativa não faz sentido em relação à
segunda parte do v.2; (3) a segunda alternativa - pela qual me decido

87 Limito-me a mencionar alguns: Hans Wildberger,Jesaja 1-11, p.364; Otro Kaiscr, DerProphet}esaja Kapitel
1-12,2' edição, 1963, p.98; Sigmund Mowinckel, He that Cometh, p.103, até mesmo A. R. Chabtrcc, A
profecia de Isaias, 1967, p.IS2 afirma acompanhar esta conjetura, apesar de negar tal afirmação na
tradução (na p.ISO!?).
8S Uma argumentação pormenorizada em favor de ha-gilah ("o júbilo") encontra-se em Hans Walter Wolff,
Frieden ohneEnde, p.53-57.

180
- tem apoio em antigas tradições e preserva ao máximo possível o tex-
to hebraico do v.Za que passa a ser o seguinte:
completarás o povo,
lhe aumentarás a alegria".
Essa tradução encontra-se também em traduções já tradicionais: Al-
meida, Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas (Testemu-
nhas de Jeová), Martim Lutero (no texto revisado de 1912!).
Entendo que não estaria fazendo jus ao assunto abordado, se com esse
resultado o desse por concluído. Afinal uma questão de crítica textual
não é algo puramente técnico. Por isso tento conscientizar-me do que
ocorreu:
Ora, decidi-me contra aquele texto que, do ponto de vista histórico, é
mais antigo, ou seja: aquele que hoje está testemunhado na Bíblia
Hebraica e que se encontra em Qumrã. Por motivos de interpretação
tive que considerar um texto mais recente como mais original! Essa
decisão não pode ser considerada meramente como sendo técnica. Na
verdade, ela é de conteúdo. Admito, através deste exemplo de crítica
textual, a necessidade da interpretação do processo da transmissão da
Escritura, baseado sempre em evidências que nos permitem perceber a
versão possivelmente mais antiga do texto hebraico. Em nosso v.Za,
por exemplo, a Vulgata mantém o texto hebraico com aquele lo'/"não".
Mas para então conseguir adaptar o v.Za ao todo do texto, a Vulgata
interpreta goy como "pagão". Concluindo: um estudo como o que aci-
ma fizemos nos pode indicar a necessidade da interpretação da Escri-
tura. Recitá-la não é suficiente!
Por fim, nosso v.Za nos instiga a mais outra reflexão: três foram as alter-
nativas; delas tive que escolher uma. Entendo que as outras duas não
estejam excluídas. Com isso quero dizer que a interpretação de um
texto ocorre em diálogo constante. A leitura que eu faço da Escritura
necessita ouvir a leitura que outros fazem ou fizeram, seja em termos de
vivência, seja em termos de literatura. Eu, como intérprete, não sou
dono da interpretação da Escritura. Isso por um lado nos toma humil-
des em nossas opções, sem dúvida necessárias, na leitura da Escritura, e
por outro lado dá a ela a dimensão ecumênica!

89 = aumentarás sua alegria.

181
Com a definição da grafia do texto, sabemos que formalmente o v.2a é
um texto poético, no qual a segunda frase amplia a primeira; a alegria (se-
gunda metade) já é uma conseqüência do aumento do povo (primeira meta-
de). Surpreende que Isaías fale do aumento do povo. Pois, este, no geral, é
um assunto dos textos que se referem à era de mães e pais no começo da
história (Gênesis 12,2; 17,2; 26,24; Êxodo 1,7.20, etc.) e ao exílio (Jeremias
30,19; 33,22; Ezequiel 36, 10-11; Salmo 107,38, etc.). Em outros textos do
profeta Isaías, não vejo referência a uma promessa de aumento do povo.
Realmente, a esperança pelo aumento do povo no v.2a não tem similar em
Isaías, se bem que também a encontro em Oséias 2,1-3. Mas, apesar disso, ela
se coordena muito bem com nosso contexto. O v.1 fizera duas afirmações
sobre a situação sofrida do povo ("o povo que vive em escuridão", "habitan-
tes em região deserta") e anunciara o novo de modo só metafórico ("luz"). O
v.2 faz, agora, a afirmação positiva e materializa o que vem a ser luz: "com-
pletarás o povo". Estou evitando traduzir rbh hifil por "multiplicar" (como
entre outros o fazem a Vulgata e Almeida), pois este verbo hebraico não só
diz respeito a um aumento numérico e quantitativo, mas principalmente a
um aumento qualitativo, expressando algo de pleno, total e completo. É
significativo que a Septuaginta usa pleiston "a grande maioria", "a totalidade"
que é superlativo de polusl"muito". Se o "povo" se torna rabl"muito", então
isso não só significa que ele aumenta numericamente, mas principalmente
que ele preenche todos os espaços. É importante vislumbrar atentamente tal
dimensão econômica no significado de rbh hífil, pois então pode-se aquilatar
adequadamente o uso de goy. Esse termo goy não designa o "povo pagão",
como o quer a Vulgata (gens). Isaías usa tanto Iam quanto goy para o povo de
Deus: 1,4; 10,6; e até mesmo para a Septuaginta estas duas palavras hebrai-
cas são sinónimos, pois ela traduz Iam no v.1 e goy no v.2 por laos. Portanto
goy, aqui, de fato, é o povo de Deus! Isso significa que devemos entender essa
palavra a partir das duas expressões usadas no v.1 para designar este povo de
Deus: tanto Iam (que é o clã da corte e a partir dele a população em geral)
quanto os "habitantes em região deserta" (que são aqueles cujas terras foram
arrasadas pelos inimigos) são termos freqüentes em Isaías 6-8. A palavragoy
é nova em Isaías 6-9. Isso significa: o que o Senhor (= "tu") vier a fazer será
algo novo. Não será simplesmente a renovação da corte Cam) e nem só a
reconstituição dos habitantes atuais. A grandeza que vier a surgir será nova!
Mas talvez alguém diga que eu esteja superestimando nosso texto, que ele
nem está polemizando contra a corte e os habitantes de Jerusalém. Contra

182
tal ceticismo tenho cá uma pequena contestação: o verbo rbb kal "aumen-
tar", que está bem próximo do rbh hifil em nosso v.2a, encontra-se em Isaías
6,12. Lá rbb kal expressa a totalidade da destruição. Aqui, no v.2a, quase o
mesmo verbo sinaliza a totalidade da novidade a ocorrer. Por certo que isso
não é acaso, mas nosso v.2a, intencionalmente, contrapõe a nova obra de
Deus à sua antiga obra de destruição. E, por isso, também a escolha do termo
goy - para descrever o novo - não há de ser acaso.
Ora, goy é um termo eminentemente político. Designa um "povo" como
grandeza politicamente organizada em um território determinado.'? Com a
palavra "am se designa um povo a partir de seus clãs, em nosso versículo em
especial a partir do clã real, da corte (veja 7,17!). A partir da palavra goy
designa-se um povo em relação à totalidade de sua realidade político-econô-
mica (= nação) .91 No v.2a, Isaías espera por uma nova organização política
(hoje diríamos: por uma nova sociedade) sem clã real dominante.
A figura da luz do v.l é, pois, concretizada no início do v.2 em dimen-
são política: luz é o povo! Já a segunda metade do v.2a ("aumentarás a sua
alegria") começa a descrever as conseqüências, que depois serão o ternário
do v.2b ("se alegrarão diante de ti como..."), o v.2b se fixa nos efeitos e, por
isso, também muda de sujeito, de "tu" (v.2a) passa para "eles" (v.2b). En-
quanto isso, a segunda metade do v.2a ("aumentarás a sua alegria") ainda
está determinada pela frase inicial ("completarás o povo"), da qual descreve
os efeitos. Assim o verbo gdl hifil "aumentar" é nitidamente paralelo a rbh
hifil "completar", "multiplicar". Ambos os verbos estão no hifil e também em
outras oportunidades são paralelizados (por exemplo, Ezequiel 16,7, confira
Gênesis 12,2 com Êxodo 1,7). A conseqüência do grande povo é a grande
alegria. As comparações no v.2b servem para enaltecer quão grande é a ale-
gria. Povo é alegria! A palavra hebraica que designa "alegria" simnah é -
dentre os muitos termos hebraicos que significam alegria - bastante abran-

90 Veja Leonhard Rost, "Die Bezeichnungen für Land und Volk im Alten Testamcnr'' (1934), em Das kleine
Credound andere Studien zum Alten Testament, Heidclberg, Springer Verlag, p.76-1O1; G. [ohannes Bot-
terweck e R. E. Clemcnts, artigo "goy ", em Theologisches Warterbuch zum Alten Testament, Stuttgart,
Kohlhammer, vol.L, 1973, p.965-973; A. R. Hulst, artigos '''am/goy'', em Diccionario teológico manual deI
Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, Madri, Cristiandad, vol.2, 1985,
colunas 373-415.
91 De fato, o termo "nação" corresponderia muito bem ao sentido de goy. Mas, cá entre nós, também há que
ver que a palavra tende a ser usurpada por quem é contra o povo, suas necessidades, seu direito à terra
e ao trabalho.

183
gente. Em nosso v.2, é evidentemente mais abrangente que seu sinônimo gyl
"jubilar" (confira também Salmo 21,2; 45,16). simb.ah é abrangente, mas em
nosso texto não é meramente religiosa. Tende-se a interpretar a "alegria" de
nosso versículo nesse sentido, quando em simb.ah e gyl se quer ver terminolo-
gia de culto." À primeira vista nosso versículo até parece favorecer essa com-
preensão: afinal, a alegria ocorre "diante de ti" = de Javé: le-txuie-ka. E, em
grande número de passagens bíblicas, estar "diante de Deus" significa: estar
no templo." E bem que a alegria da colheita poder-sé-ia referir à festa de
entrega das primícias da colheita no templo." Sim, há alguns indícios de que
a alegria do v.2 fosse a alegria do culto no santuário, e que, nesse sentido, a
alegria fosse do âmbito da celebração religiosa. Contudo, em nosso versículo
há indícios suficientes que comprovam o contrário, isto é, de que a alegria
aqui não é cúltica, mas vital, do todo da vida. O primeiro indício está na
paralelidade entre "alegria" e povo. A causa da alegria é uma nova grandeza
política. - O segundo indício está no que se diz da colheita. ''A alegria da
colheita" é uma comparação (ke- "como"). A grande alegria era (e é) a satis-
fação que os agricultores expressavam, quando na Palestina nos meses de
abril, maio e junho colhiam os diversos cereais;" asseguravam, assim, sua
sobrevivência. Isto é comparado à alegria diante de Deus. Alegria diante de
Deus é alegria plena. O profeta não diz que os agricultores tenham que vir ao
templo para lá se alegrar diante de Deus, pois então ele teria formulado "ale-
gram-se diante de ti na (I) colheita". Nesse caso ele se estaria referindo à festa
da colheita do trigo de Êxodo 23,16. 96 O local da colheita é o local da ale-
gria. Colheita é alegria por excelência (Salmo 4,8 e 65,14).97 Isso vale em
especial à luz dos v.3 e 4: afinal, a colheita é abundante também porque o

92 Nessa direção, apontam: Claus Westermann, artigo "gyl", em Diccionario teológico manual dei Antiguo
Testamento, editado por Ernst [enni e Claus Westermann, Madri, Cristiandad, vol.L, 1978, colunas 591-
596, e Hans Wildberger,}esaja 1-12, p.374.
93 Os textos estão citados em A. S. van der Woude, artigo "panim", em Diccionario teológico manual dei
Antiguo Testamento, editado por Ernst [enni e Claus Westermann, Madri, Cristiandad, vol.Z, 1985,
colunas 548- 582.
94 Assim interpreta Asa Routh Chabtree, A profecia de Isaías, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista,
1967, p.182 (465p.).
95 Gustav Dalman, Arbeit und Sittein Paliistina, Hildesheim, Olms, vol.3, 2' edição, 1964, veja a partir da p.I
e da p.34.
96 Confira Hans-[oachim Kraus, Gottesdienst in Isarel- Grundriss eineralttestamentlichen Kultgeschichte, Muni-
que, Christian Kaiser Verlag, 2' edição, 1962, p.73-75 (284p.).
97 "Diante do Senhor" não necessariamente tem que significar: estar no santuário. De modo bem mais
amplo, "diante do Senhor" aparece, por exemplo, em Gênesis 8,22; 27,7; Deuteronômio 24,4; Salmo 85, 14;
Isaías 66,22.

184
inimigo-ladrão fugiu. - Decisivo é o terceiro indício. Que na menção da
alegria realmente não devemos vislumbrar terminologia cúltica e religiosa,
deduz-se inequivocamente da última frase: "como se regozijam ao repartirem
a presa". Esse exemplo Isaías o toma do meio da vida de conflitos (já aparece ~
ra em 8,1-4!). Ele o toma da lida cruel da guerra, em que, após derrotado o
exército inimigo, há grande festa na partilha da presa (lSamuel30, 16; Salmo
119,162; Jeremias 50, 1O~ 11).98 Esse "repartir" (hlq piel) do "despojo" (xalal)
ocorre no próprio campo de batalha (veja, por exemplo, Juízes 5,30), e não
no templo. A nós, hoje, uma comparação como a que Isaías aqui utiliza é
suspeita. O profeta não estaria justificando as barbaridades dos exércitos ven-
cedores? Para encontrar uma resposta diante de tal inquietação teremos que
definir melhor quem são os vencedores para o profeta. Mas essa questão já
nos lança para os v.3 e vA. Pois lá toda a linguagem é determinada pelas
cenas da guerra. O fim do v.2 ("como regozijam ao repartirem a presa") liga
muito bem com o assunto dos v.3~4 (alegria pela vitória sobre o inimigo).
Antes de focalizá-los, um breve apanhado do v.2:
Deus é sujeito do futuro. A ele se dirige o v.2, louvando seu agir futuro.
O v.2 é inicialmente (v.2a) a explicitação da linguagem figurativa do
v.1. Conforme minha opção na reconstituição do texto hebraico (lo
"para ela", ao invés de lo' "não"), a grande luz é concretizada como
grande povo. O v.2 ora e espera por uma nova situação política.
O v.2 também descreve o efeito na realização dessa expectativa. O efei-
to é a alegria. Não se deveria entender essa alegria como estando voltada
ao ambiente religioso. É uma alegria muito concreta, envolvida e exem-
plificada por ocorrências da vida (colheita, vitória na guerra).
Só o v.2 se refere aos efeitos do que vier a acorrer. A tendência do
restante é referir-se às causas (ki "eis"/"pois"), como veremos nos v.3~
4.5~6.

Estes versículos se compõem de três assuntos, iniciados sempre por ki


"eis". É obvio que a ênfase recai sobre o último "eis", sobre os v.5~6. Os v.3 e
4 como que conduzem a este final.
Observemos o v.3:
3Eis,

98 ConfiraRolandde Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, SãoPaulo,Teológica, 2003,p.297·306.

185
a canga de sua carga
e a vara sobre seu ombro,
a aguilhada de seu opressor
e espantarás como no dia de Mídiã.
Este v.3 inicia, pois, as fundamentações que abrangem todo o restante
de nosso texto. Qual é a causa dessa marcante, tríplice, extensa fundamenta-
ção? É ela composta de uma ou de mais conteúdos? Anoto, já aqui, estas
perguntas. Só mais adiante será possível aprofundar uma resposta.
Estou designando o v.3 (e os vA e 5-6) de fundamentação, pois os v.3-
6 dão as causas para a conseqüência, o v.2. Apesar dessa constatação ser
lógica e coerente é preciso suspeitar dela. Essa constatação tão lógica even-
tualmente não passa de uma muleta, da qual nós, do mundo ocidental, faze-
mos uso para nos apercebermos da dinâmica de um texto hebraico. É valio-
so manter tal distância crítica da conceituação aplicada sobre os v.2 (conse-
qüência) e v.3-6 (causa, fundamentação), porque então se descobre que o
texto hebraico não diferencia claramente entre causa e conseqüência. Con-
funde-os antes. Ora, já no v.2 percebíamos que nele se fala tanto da causa
(início do versículo: "completarás o povo, aumentarás na alegria") quanto
da conseqüência (segunda parte do versículo). E os v.3-6, em que predomina
a citação das causas, na verdade são, ao mesmo tempo, também conseqüên-
cia. Eles são as conseqüências, as descobertas possíveis após o v.2. A tríplice
repetição de ki possibilita essa afirmação. Infelizmente a partícula ki, em ge-
ral, é considerada como conjunção de fundamentação ("porque"). Mas, na
verdade, ki acima de tudo é interjeição demonstrativa, indicativa ("pois",
"eis", "sim".99 Portanto, os v.3-6 não só se relacionam ao v.2 como fundamen-
tação deste, mas são, a meu ver, acima de tudo, conseqüências do v.2. Ou
seja, o aumento do povo e a alegria (isto é, o v.2) permitem descobrir, ver e
perceber as novas realidades dos v.3-6. Essas afirmações são, sem dúvida,
básicas para a compreensão de nossa unidade!

99 Veja Hans Walter Wolff, Hosea, Ncukirchen, Neukirchener Verlag, 2' edição, 1965, p.173 (Bihlischer
Kommcntar Altes Testament, 14/1), edição em inglês: Hosea- A Commentary on the Bookof the Prophet
Hosea, traduzido por Gary Stansell, Philadclphia, Fortress, 1974, 257p. (Hermencia): Frank Crüscmann,
Studiem zur Formgeschichte von Hymnus und Dankliedin Israel, Ncukirchcn, Neukirchencr Verlag, 1969,
p.32-35 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testamcnt, 32); Walter Baumgartner,
Hebraisches und aramaisches Lexikon zum Alten Testament, Leidcn, E. J. Brill, 1974, p.448; Nelson Kirst e
outros, Dicionário hebraico-português & aramaico-português, São Leopoldo, Sinodal, 14' edição, 2002, p.100.

186
De que nos encontramos no caminho correto, percebemos no con-
teúdo do v.3: o lavrador que se alegra na colheita (v.2) é o que descobre a
libertação (v.3); o v.3 não é só a fundamentação da alegria do v.2, é, muito
mais, sua realização, concretização. O assunto do v.3 é a libertação do lavra-
dor oprimido, mais exato: do roceiro feito animal de trabalho. A linguagem
usada provém evidentemente da lida do agricultor: 'ol é a "canga" 100. Apesar
de que xebe; muitas vezes seja entendido como"cetro" (confira Vulgata') do
governante (veja, por exemplo, Amós 5,8 101) , esta palavra é aqui uma "vara",
uma "aguilhada" para conduzir animais no trabalho. 102
mateh é difícil de compreender. Freqüentemente se quis ler rnojor ao
invés de mateh. 103 Estes motot são os "canzis" na canga. A partir daí, motot e
'ol se tornam sinônimos (confira, por exemplo, Jeremias 27,2 e Isaías 58,6), o
que também seria o caso em nosso v.3. Contudo, não só a tradição masoréti-
ca é unânime em manter mateh, mas também a Septuaginta - que traduz
mateh e (!) xebet por "vara" - a confirrna.l'" Podemos, pois, sustentar o texto
masorético e supor com os tradutores gregos que mateh não é sinônimo de 'ol
"canga", mas está próximo de xebet "aguilhada", já que a Septuaginta traduz
tanto um quanto outro com "vara" ,lOS Essa suposição a partir da Septuaginta
pode ser tornada provável com o uso de mateh no Primeiro Testamento. Esta
palavra designa um utensílio de trabalho do homem do campo: em Isaías
28,27 (paralelo com xeberl, confira Ezequiel 19,14) serve para malhar. Dedu-
zo que também em nosso texto mateh seja um tal instrumento do agricultor,
que - em diferença do xebet; "aguilhada" que serve para conduzir e cutucar
- se destina a bater em animais; afinal, mateh provém do verbo nth que
significa "bater") O "ombro" xekem é o local do bater: "vara sobre seu om-

100 Confira as fotografias em R. Hentschke, "J och", em Bíblísch-historisches Handwarterbuch - Landeskunde,


Geschichte, Religion, Kultur, Literatur, editores Bo Reicke e Leonhardt Rost, Gotinga, Vandenhoeck &
Ruprecht, vol.2, 1964, p.869.
101 Veja Hans Wildberger,]esaja 1-12, p.375.
102 Confira Gustav Dalman, Arbeitund Sitten in Paliístina, Híldcshcim, Olms, vol.2, 1964 = 1932, p.l20, vol.6,
1939 = 1964, p.238-239 (e veja fotografias 28.35.38). Veja também Dorothy Irvin e Kurt Galling, "Ptlug",
em Bíblisches Reallexikon (editado por Kurt Galling), Tubinga, J. C. B. Morh, 2' edição, 1977, p.255-256.
103 Assim, por exemplo, a Bíblia Hebraica Stuttgartemía.
104 A tradução de mateh ou xebet ao grego no sentido de "vara" (rabdós) é freqüente; confira Edwin Hatch
e Henry A. Redpath, A Concordance to the Septuagint and the otherGreekVersiom of the Old Testament,
Graz/Áustria, Akaderníschc Druck und Verlagsanstalt, 1954, p.1247.
105 Observo que "a sua carga pesada" e "a vara sobre seu ombro" são separados por umve-I"e". O mesmo não
ocorre entre "a vara sobre seu ombro" e "a aguilhada de seu guia", o que indica que essas duas frases
estão mais próximas.

187
bro".lOó No uso da palavra xekem, o autor também deixa claro que os golpes
desfechados com a "vara" são contra pessoas, e, de modo algum, contra ani-
mais! Isso pode ser afirmado tão categoricamente porque xekem nunca é usado
em relação a animais, mas regularmente a pessoas! É, pois, muito evidente que
a linguagem do v.3 espelha a lida das pessoas da roça; para seus opressores eles
são como animais de trabalho; estão na canga, sendo batidos e aguilhoados.
Com isso já se vai evidenciando que nosso versículo fala da lida do
lavrador num contexto maior, no mundo político. Trata da situação da gente
do campo como setor social oprimido. Este contexto amplo do v.3 é muito
evidente. Assim sabei 107 bem como as demais palavras formadas a partir do
verbo sbl "carregar", exceto no Salmo 144,14, não designam cargas de ani-
mais, mas constantemente as "cargas" transportadas por trabalhadores força-
dos ou escravos (Gênesis 49,15; Êxodo 1,11, etc.; IReis 5,29; 11,28; Nee-
mias 4,4.11; 2Crônicas 2,1.17; 34,13) 108. Em Isaías 10,27 e 14,25 (veja tam-
bém Êxodo 1,11, etc.) , as cargas são impostas por um governante estrangei-
ro. Seria esse também o caso do nosso versículo? O ambiente da palavra sabei
carga é, pois, o da exploração econômica de mão de obra oprimida. Esta
"carga" é a canga: "a canga de sua carga'"?', - Para exploração econômica
aponta também o verbo ngs "conduzir", "impelir". Ele uma vez refere-se cla-
ramente a animais (Já 39,5-7). Em nosso versículo como que ressoa algo
desse mesmo ambiente. 110 Contudo, em geral, ngs significa"oprimir", "explo-
rar", "exigir dívidas" (Êxodo 3,7; 5,6, etc., Deuteronômio 15,2-3; 1Samuel
13,6; 2Reis 23,35, etc.'!'). Nesse sentido econômico também se há de enten-
der o verbo ngs em nosso versículo, ainda mais que Isaías o usa neste signifi-
cado em 3,5.12 (14,2.4?). Portanto, sabei e ngs indicam uma mesma direção:
exploração econômica. - É interessante, por um lado, que tanto a -raiz sbl

106 Isto significa que entendo o status constrnctus ma!eh xikmo, com a LXX, como genitivo objctivo (veja
Oskar Grether, Guia português paraa gramática hebraica, § 72.g2).
107 Quanto à vocalização subolo, veja Wilhelm Gcsenius, Hebriiísche Grammatik, § 10h; 93q, e Hollcnbcrg/
Budde, Gramáticaelementar da línguahebraica, § 6.214 (p.24).
108 Confira Werner H. Schmidt, Exodus 1-6, Ncukirchen, Neukirchener Verlag, 1974, p.35 (Bihlischcr
Kommenrar Aires Tcstamcnt, 2/1); Martin Noth, Koníge 1-16, Ncukirchcn, Neukirchener Verlag, 1968,
p.275-276 (Bíblischcr Kommentar Altes Testament, 9/1).
109 Entendo, pois, o estado construído' 01 subolo como genitivo de qualidade (Oskar Grcthcr, Guia português
paraa gramática hebraíca, § 72g4) que também poderia ser traduzido com "sua canga carregada/pesada"
(veja a LXX!).
110 Wilhelm Gescnius, Hebrdisches und aramiiísches Handwortenbuch, p,485.
111 Confira Frícdrich Horst, "Das Privilegrecht jahwes" (1930), em Theologische Büchereí, vol.12 (Gottcs
Rechr), 1961, p.87-88.

188
quanto a ngs encontram-se, com freqüência, nos relatos da opressão no Egi-
to, um tema teológico-social que, de resto, está ausente em Isaías.!"
Ficou claro que Isaías fala de pessoas (xebem são "ombros" de gente) e
não de animais como as palavras "canga" e "aguilhada" poderiam dar a enten-
der. Mas ele também não se refere a qualquer pessoa ou a todo povo, mas
precisamente aos lavradores e às lavradoras ("canga", "vara", "aguilhada"!). O
principal é realçar a gente do campo como exploradas em seu trabalho ("car-
ga", "oprimir"). Impressiona como o profeta focaliza a libertação, da qual fala
na parte final do versículo ("e espantarás/destruirás") no local vital (a gente
trabalhadora) e no problema fundamental (exploração) da sociedade de en-
tão. Isaías não anuncia aqui de remendos, mas de uma revolução social! É
disso que fala a parte final do versículo: "e l13 espantarás como no dia de Midiã".
Já percebemos que o v.3 contém figura e realidade. Nem sempre é evi-
dente, se determinada palavra é figura ou realidade: ha-noges é "guia"ou "opres-
sor "7. xebe~ e' so, " " ou tambémo
vara em o "cetra " ('vU
1. Igata.l) do governante.7 Exata-

mente este mesmo dilema se apresenta no verbo principal do versículo: hahito-


ta. Este verbo diz o que ocorrerá com opressão e opressores. É, pois, impor-
tante saber precisamente seu significado. Ora, se a gente lê a partir das pala-
vras concretas ("carga", "vara", "aguilhada"), então o significado do verbo hu
hifil só pode ser "quebrar". 114 Contudo, o verbo para "quebrar" éxbr (jeremias
28,2). Nosso verbo hu originalmente tem a ver com "assustar", "apavorar",
"espantar", como em parte já o percebera a Septuaginta, que agrega um ver-
bo no sentido de "espalhar", e a Vulgata (superare). 115 Este significado tam-

112 Os antigos comentários de Franz Delitzsch (Commentarüber das Buch}esaja, 1889, p.166 e de August
Dillmann (Der Prophet}esaja. p.91) já haviam percebido a relação do v.3 com a opressão no Egito: "eine
feinc Rückbcziehung auf dicbefrciung von der ãgvptischen Díenstbarkcit scheint unverkennbar (vgl.
10,24)" = "uma sutil referência à libertação da escravidão egípcia parece evidente (veja 10,24)" (August
Dillmann). Nos comentários atuais, nada disso se encontra!
113 Este ve-T'e" antes de hanitota "espantarás" é testemunhado em Qumrã (veja Biblia Hebraica Kittel); na
Biblia Hebraica Stuttgartensia essa observação infelizmente caiu fora. Considero-o antigo porque, à seme-
lhança, se encontra no vA (ve-hayatah) e porque no v.3 deve ter sido omitido por haplografia (bove-
hahitota).
114 É o que se encontra na tradução de Martim Lutero ("zerbrechen"/quebrar), em João Ferreira de
Almeida ("quebrar") e em muitos outros. A Septuaginta segue por um caminho próprio e interessante;
traduz nosso verbo, simultaneamente, por: "tirar" e "cortar" (afaireo), adicionando ainda o verbo dia-
skedazo "espalhar".
115 Ressalto, pois, que a Septuaginta recorre a dois verbos para traduzir nosso fut hifil: "tirar"/afaireo e
"espalhart"/diaskedazo. Confira Fritz Maass, artigo fut, em Theologisches Wortenbuch zum Alten Testament,
Stuttgart, Kohlhammcr, vol.3, 1978, a partir da p.296; diferentemente Walter Baumgartncr, Hebrdisches
und aramdisches Lexikonzum Alten Testament, Leídcn, E. J. Brill, 1967, p.351.

189
bérn se impõe em nosso texto, se a gente percebe que o v.3 basicamente não
é figura, mas realidade social, e se a gente observa que Isaías não usa nosso
verbo em 7,8; 20,5; 30,31; 31,4.9 (veja 8,9?) no sentido de "quebrar", mas
de "apavorar", e, enfim, se a gente valoriza que o "pavor" contra o inimigo é
da temática da assim chamada 'guerra santa'!". Se bem que "apavorar" nu
não seja um verbo típico para descrever o susto contra os inimigos, ele aparece,
com freqüência, em textos de 'guerra santa' (Deuteronômio 1,21; Josué 1,9;
8,1, etc.) e, principalmente, "o dia dos midianitas" contém tradição de 'guerra
santa'. Para Isaías, "o dia de Midiã" (yom midyan) lembra um dia, isto é, um
evento especial na História de Israel na época anterior ao reinado, de há mais
de três séculos. Certamente se trata do episódio narrado em Juízes 6-7 (8): os
midianitas, provenientes do sul do Mar Morto, invadiram a planície de [ezreel,
no norte da Palestina, dominando com sua moderna técnica militar (valiam-
se de camelos!), e saqueando os camponeses israelitas na época da colheita.
Gideão com mais trezentos lavradores obtêm uma vitória aniquiladora sobre
os midianitas. Todo o episódio contém traços evidentes de 'guerra santa'
(confira, por exemplo, Juízes 7,9.21).117 "O dia de Midiâ" assume assim, em
nosso versículo, a função de um símbolo da libertação de lavradores (confira
também Isaías 10,26 e Salmo 83,10). Impressiona como Isaías, vê a ação
futura de Deus dentro de uma caminhada histórica de libertação. O profeta
não menciona expressamente as tradições do êxodo do Egito, mas em sua
referência à vitória contra os midianitas situa-se nas imediações do que tradi-
ções nortistas, presentes, por exemplo, em Oséias (12,1O!), celebravam na
memória exodal! Em todo caso, o novo porvir não é inovação mas está pre-
sente na profundidade da História de Israel. No novo, Deus como que se
recorda da constituinte libertadora do passado.
Víamos muitas figuras dificultando a fixação do sentido exato do v.3.
O v.4 é bem mais claro:
Eis,
toda bota pisando com estrondo
e a capa, manchada com sangue
e será para queima, pasto de fogo.

116 Esta pista é dada por Gcrhard von Rad, Der Heilige Krieg im Alten Israel, Gotinga, Vandcnhoeck &
Ruprecht, 5' edição, 1969, p.62 (84p.).
117 Roland de Vaux, Historia antigua de Israel - Asemamiento en Canaan y período de los ]ueces, Madri,
Cristiandad, vol.2, 1975, a partir da p.312 (366p.).

190
Aqui não mais se fala em figuras de opressão - só o início do versículo
("que anda com estrondo") ainda poderia ser entendido nessa direção (vide
porém abaixo) - mas de cenas do campo de batalha após a derrota do inimi-
go. A situação do v.4 é idêntica a do final do v.2 ("como se alegram ao repar-
tirem o saque"). Está pressuposto que o pavor anunciado no fim do v.3 ("e
espantarás como no dia de Midiã") tenha ocorrido, isto é, o v.4 está na se~
qüência do v.3. Se bem que estas afirmações sejam evidentes, permanece
discutido o que expressam as cenas de guerra do v.4. Expressam elas a vitória
que introduzirá, enfim, a era da paz, a destruição derradeira e total do mate-
rial bélico (confira Isaías 2,4).118 Ou, impõe-se outra compreensão? Para en-
contrar uma resposta adequada temos que observar os detalhes do versículo.
Nele nada se lê de armas! Isso é indiscutível. Só se lê a respeito de
indumentária: se'on simlah. E essa expressão significa?
Hoje em dia podemos dizer que o substantivo se'on e o verbo s'n, que
só se encontram em nosso texto, estão esclarecidos. A Septuaginta ainda
traduzia se'on por stolé "hábito" (roupa) e a Vulgata por praedatio "roubo".
Mas, hoje, sabemos que a palavra provém de um termo acádico senu com o
significado de "bota", referindo ~ se precisamente à bota do guerreiro (cotur ~
no).119 Conhecemos excelentes gravuras dessas botas de guerreiros bem ar-
mados (de hoplitas, se quisermos recorrer a uma comparação com os gre-
gos)."? Como a palavra se'on só aparece essa única vez no Primeiro Testa-
menta, como evidentemente é emprestada do acádico, e como, pelas infor-
mações existentes, tais botas não faziam parte do armamento de um soldado
israelita-judaíta, deduz-se que ela aqui se refere a soldados estrangeiros, assírios.
Opressor e inimigo das pessoas de nosso versículo são, pois, provavelmente o
exército assírio (confira também Isaías 10,5~34 e 14,24~27), que deve ter
causado um profundo impacto nas pessoas da época, como se lê no próprio

118 Esta posição se encontra, entre outros, em Georg Fohrer, DasBuchJesaja, p.126.127, e em Otto Kaiser,
DerProphetlesaja Kapitell·12, 2' edição, 1963, p.101.
119 Confira Ludwig Kõhler, Lexicon in veteris testamentí libros, 1985, p.646, e, também, Wilhelm Gesenius,
Hebriiisches undaramaisches Handworterbuch überdas Alte Testament, p.533.
120 Veja as gravuras em B. Reicke, artigo "Hcer", em Biblisch·Historisches Handworterbuch - Landeskunde,
Geschichte, Religion, Kultur, Literatur, editores Bo Reicke e Leonhardt Rost, Gotinga, Vandenhoeck &
Ruprecht, vol.Z, 1964, p.671-672 (gravura n.3); e B. Reicke, artigo "Rüstung", em Biblisch·Historisches
Handwarterbuch - Landeskunde, Geschichte, Religion, Kultur, Literatur, editores Bo Reicke e Leonhardt
Rost, Gotínga, Vandenhoeck & Ruprecht, vol.3, 1966, p.1627-1628 (gravura n.L): e ainda, Helga
Weippert, artigo "Leder und Lederbearbeítung", em Kurt Galling, Biblisches Reallexikon, Tubinga, J. C. B.
Morh, 2' edição, 1977, p.203.

191
Isaías 5,25-30 e 9,7-20. Lembro que em 734 a.C, os soldados assíriosjá haviam
avassalado as cidades marítimas nas proximidades de Jerusalém. Entendo que
na formulação so'en be-vaax "pisando com estrondo" esteja refletido tal im-
pacto. Parece-me ter razão quem deduz que, nessa explicitação da função
das botas, Isaías tenha querido expressar o caráter inegavelmente opressivo
desse exército; muitas vezes se deduziu este sentido: já o Targum (tradução
aramaica) interpretava "pisando com injustiça", lendo oe-vexa "em injusti-
ça" ao invés de be-vaax "em estrondo", no que foi seguido pela Septuaginta e
pela Vulgata. Mas a palavra ra'ax nunca se refere a um acontecimento social,
mas basicamente a um acontecimento geológico; ra'ax é o "terremoto" (Amós
1,1; Isaías 29,6, etc.) ou, como aqui a algo que tenha efeitos semelhantes
(Jeremias 47,3; Naum 3,2; [ó 39,24, etc.). Portanto, comso'en be-taax Isaías
se refere à marcha estrepitante dos soldados assírios com suas, na época,
modemas botas militares. Este fenômeno não só se dá num contexto de opres-
são, mas também lhe dá sonoridade: opressões são também acústicas. No vA,
o profeta justamente está expressando a luta social referindo-se a seu impacto
auditivo: o estrondo causado pela totalidade (kol "todo") dos cotumos em
marcha. Por que o profeta fala exatamente das botas? Por que não se refere às
armas (confira Isaías 2,4)? Talvez a frase exatamente paralela ("e a capa, man-
chada com sangue") que se refere ao simlah nos ajude.
Esta palavra simlah realmente surpreende. Pois, nunca pertence à ves-
timenta do guerreiro, e, além disso, não designa alguma roupa especial, tal
como o traje de algum governante, para o que o hebraico tem outras pala-
vras ('aderet Jonas 3,6). simlah é a "capa", o "sobretudo", bem comum e co-
nhecido através de várias gravuras.':" que até mesmo os mais pobres ainda
tinham (Êxodo 22 ,26 e Isaías 3,6-7). Muitas vezes essa palavra não só repre-
senta a "capa", o que também deve ser seu significado em nosso versículo,
mas designa em geral a roupa de qualquer pessoa (Isaías 3,6-7; 4,1; Gênesis
35,2; DeuteronômiolO, 18; 2SamuelI2,20, etc.). Se simlah significa "capa",
então a cena, à qual nosso versículo se refere, evidentemente não é do com-
bate: ninguém combateria naqueles tempos com "sobretudo"! Não sendo
cena de combate, é cena do descanso, do descanso noturno. Acontece que
uma "capa" simlah era, à noite, usada como cobertor, o que o Antigo Testa-

121 Confira Georg Fohrer;artigo "Klcídung", em Biblisch-Historuches Handwbrterbw:h ~ Lnndeskunde, GeschU:hte,


Religion, Kultur, Literatur, editores Bo Reicke e Leonhardt Rost, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprccht,
vol.2, 1964, p.963-964 (gravura n.41).

192
mento atesta em outras passagens (Gênesis 9,23; Êxodo 22,26; Deuteronô-
mio 22,17; Rute 3,3). A esta "capa", usada nas frias noites da Palestina como
"cobertor" (semelhante ao poncho), alude nosso versículo! - Esta "capa"
está megolalah be-damim. Tal caracterização da capa tem atualmente duas
interpretações. Uns entendem-na a partir de gll II (particípio poal) "man-
char", "lambuzar'Y'? "e a capa lambuzada/manchada em sangue". Mas, a
maioria entende-a (igualmente como particípio poal) a partir de gll I "revol-
ver", "arrastar" (Vulgata: miscere "misturar") .123 A diferença entre as duas in-
terpretações não é grande: uma acentua mais a ação ("revolver"), outra mais
o resultado ("manchar"). Em todo caso, damim (plural de dam "sangue") são
aqui as "poças de sangue"124 no chão, resultantes da chacina de guerra dos
soldados opressores. Sangue pode ser sinônimo de guerra.!" Portanto, tam-
bém essa parte do versículo que trata da "capa" é, indubitavelmente, uma
cena do âmbito da guerra. Mas, por que ela se fixa exatamente na "capa", no
"sobretudo", nessa peça de vestuário de modo algum típico para um soldado
em combate? Por que Isaías focaliza "coturno" e "sobretudo"? Talvez a con-
tinuação do versículo nos ajude nessas perguntas.
Na segunda metade do v.4 (no v.4b), lê-se sobre o destino de "bota" e
da "capa"!": fogo! Duas vezes é mencionado o fogo, em duas breves frases
repetidas. Parece que o profeta procura deixar-nos a impressão do rápido
crepitar das chamas que vão consumindo "bota" e "capa".
O primeiro vocábulo para fogo é serepah. Significa "queima", "queima-
da", "combustão" (veja Vulgata). A raiz dessa palavra nos é bem conhecida
de serapim, de Isaías 6 (veja acima). Aparece também em Isaías 1,7. O verbo
que descreve a 'combustão' é hyh le- "acontecer em relação a/para" (confira
Isaías 64,10). Aqui se percebe, uma vez mais, que hyh "acontecer" não assinala
nada de estático, podendo só excepcionalmente ser traduzido por "ser", "per-
manecer"; este verbo (hyh) é fundamentalmente dinâmico, expressando "agir"

122 Walter Baumgartner, Hebrdisches und aramdisches Lexikonzum Alten Testament, vol.l, p.186.
123 Confira também Walter Baumgartncr, Hebrdisches und aramdisches Lexikonzum Alten Testament, vol.I,
p.186; Wilhelm Gcsenius, Hebrdisches und aramdisches Handwoterbuch über das Alte Testament, 1962,
p.142, e muitos outros. Veja João Ferreira de Almeida: "revolver" ("e a capa revolvida/arrastada em
sangue").
124 Veja Wilhelm Gcsenius, Hebrdische Grammatik, 28' edição, 1962, § 124n.
125 Veja detalhes em B. Kedar-Kopfstcin, artigo "dam", em Theologisches Worterbuch zum Alte Testament,
Stuttgart, Kohlhammer, vol.2, 1977, p.256·257.
126 A disposição gramatical do vA é explicada em Wilhelm Gescnius, Hebrdische Grammatik, 28' edição,
1962, § l l Zmm c 143d.

193
"acontecer" "tomar-se". Assim, a frase em questão expressa literalmente: "tor-
nar-se em queima/combustão" ou mais livremente: "queimará/queimarâo'l.''"
A segunda parte do final do vAb usa, para designar fogo, uma combina-
ção muito freqüente no Primeiro Testamento: ma'akolet 'ex ("comida/pasto de
fogo") (veja Êxodo 3,2; Amós 1,4; Ezequiel 23,25; Sofonias 3,8; Zacarias 9,4).
'kl "comer", "devorar" é a função típica do "fogo" 'ex. Também em Isaías essa
expressão é comum: 5,24; 9,18; 10,17; 24,6; 26,11; 29,6; 30,27-30; 33,11.14.
As duas figuras para fogo coincidem em seu conteúdo: "bota" e "capa"
serão consumidas pelo fogo. O vocabulário usado reaparece em outros textos
de Isaías. O símbolo do fogo encontra-se mais vezes nos escritos da guerra
siro-efraimita: fogo é o elemento purificador em 6,6-7; em 7,4 aparecem "dois
restos de achas fumegantes"; a "luz" de 9,1 lembra o fogo desse nosso vA.
Mas, afinal, para que o fogo é aqui (diferente que em 6,6-7 e 9,1) o elemento
destruidor? Sim, por que a "bota" de soldado (e não a espada), por que a
"capa" de dormir (e não alguma arma) são consumidas pelo "fogo" (e reparti-
das entre os vencedores como troféu e saque de guerra) ?
Tento uma resposta! Parece muito evidente que o vA tem em vista
uma situação depois de uma guerra ou batalha; dia de Midiã, as botas de
soldados e o sangue indicam indubitavelmente nessa direção. Mas também é
evidente que nosso versículo só alude a esta situação, pois, afinal, falta indi-
car o fim do combate: armas e cadáveres. Ao só aludir à guerra, o vA dá a nós
hoje a impressão de querer manter algum segredo. Há alguma explicação
para o que, a nós(!), aparece como 'misterioso'? .
A gente poderia recorrer ao templo para explicar a linguagem aparen-
temente misteriosa. Isaías só mencionaria "bota" e "capa", porque o "fogo"
que os consome seria o do altar do templo (6,6-7, confira 8,1-2.14); lá não se
poderiam queimar nem cadáveres de soldados e nem armas de metal. E, de
fato, "fogo" aparece, com freqüência, em relação aos sacrifícios nos altares
(Números 19,6.17; Juízes 6,21, etc.). Contudo, contra essa hipótese fala,
que saques de guerra não eram queimados em altares, pois eram impuros.
Dentro do mesmo ambiente sacral encontra-se outra solução para a
linguagem 'misteriosa' do vA. E essa é bem mais óbvia: o vA provém da
tradição da 'guerra santa'! Ora, o v.3 ("dia de Midiã") concluía inclusive com

127 Quanto ao uso do singular hayetah (3ª pessoa feminino singular perfeito qal), confira Carl Brockelmann,
Hebriiische Syntax, Ncukirchen, Neukirchener Verlag, 1956, § SOc (21Sp.).

194
um episódio de guerra santa. Entendendo o vA a partir da guerra santa, ele se
torna transparente:
(1) Afinal, o vA pressupõe que nem ocorreu combate (como em Juízes
6- 7, confira 7,19-25), por isso o vA não fala em armas de guerra.
(2) Afinal, o vA pressupõe também que o opressor fugiu - foi 'espanta-
do' v.3! - em grande confusão (como em Juízes 6-7, confira 7,21), por isso
" capa""b
e ota". simp Iesmente rroram ab an d onad as e, apesar d e h aver sangue
(como conseqüência da confusão), não se fala de cadáveres.
(3) Afinal, pressupõe-se até que tudo ocorre durante a noite (como
em Juízes 6-7, confira 7,19); por isso só se menciona a "bota" (que foi descal-
çada para dormir) e a "capa" (que servia de cobertor).
(4) Afinal, o vA pressupõe que o saque de guerra é de [avé (confira
lSamueI15), 128 por isso "bota" e "capa" não são repartidas entre o povo (com-
pare o final do v.2!), mas passadas ao "fogo", isto é, entregues ao Senhor. 129
Descobrimos, pois, que as duas primeiras fundamentações, iniciadas
por dois ki "eis" no v.3 e vA, formam uma seqüência de sentidos. For-
malmente elas são constituídas pela frase final do v.2 e pelo vAb que
falam, ainda que sob ângulos distintos, do mesmo assunto (saque de
guerra).
Além disso, o v.3 e o vA convergem em seus assuntos. Seu pano de
fundo teológico é a tradição sacral da 'guerra santa'. O que vier a ocor-
rer é obra exclusiva de [avé. Às pessoas só resta queimar as sobras dei-
xadas pelo inimigo fugido.
O pano de fundo social é a opressão de exércitos ("coturnos") estran-
geiros (assírios) não em geral contra o povo, mas precisamente contra
o lavrador e a lavradora transformados em animais de trabalho. O es-
panto que o Senhor causa liberta o trabalhador do terror militar! Os
v.3 e vA são, pois, uma crítica às armas opressoras (vej a Isaías 2,4; 7,3-
9) e crise do opressor.
Sim, três são as fundamentações, as pequenas unidades iniciadas por

128 Gerhard von Rad, DerHeilige Krieg imAlten Israel, p.13-14.62, confira também Hans Wildberger, Jesaja 1-
12,p.376.
129 A Septuaginta não percebeu que a linguagem 'misteriosa' do vA se evidencia como muito lógica, quando
entendida a partir da 'guerra santa' e por isso criou um texto novo: "pois estenderão todas roupas
reunidas com dolo e o vestuário com trocas e desejarão serem feitos fogo".

195
"eis" ki. Estão, como já vimos, nos v.3, v.4 e v.5~6. Esta última ocupa mais
espaço que as a junção das duas outras. Logo, são os v.5-6 os que mais aten-
ção merecem. Aí chegamos ao auge, ao que de mais importante se pode
expressar, concretamente, quanto ao que seja a "luz" (v. 1) e ao motivo da
alegria do "povo" (v.2). Inicialmente repito a tradução:
sEis,
uma criança nos nasceu,
um filho nos foi dado.
E o governo estará sobre seus ombros,
e seu nome será:
Maravilha de conselheiro,
Deus lutador,
Pai de eternidade,
Funcionário de paz,
6 para o aumento do governo

e para a paz sem fim


sobre o trono de Davi
e sobre seu reino,
para firmá-lo e garanti-lo
em direito e justiça
desde agora e para sempre.
O zelo de [avé Zebaote fará isso!
No final do v.6, temos como que uma assinatura ("o zelo de [avé Zebaote
~:,ráisso"). Esta sentença conclusiva se refere ao todo de 9,1-6, senão ao
próprio livro das memórias proféticas, contidas nos caps.6-9. O verbo final, é
"fazer" 'sh. A profecia anuncia, pois, novas perspectivas de vida e sua realiza-
ção; é palavra/dabar falada e em acontecimento. Aliás, justamente esta palavra
profética é o "isto", com que o trecho fecha: "isto", quer dizer os anúncios
proféticos anunciados e tornados memória nos capítulos anteriores.
O sujeito é o "zelo" (um feminino no hebraico!). Ao se traduzir qin'ah
por "zelo", certamente, se faz jus a um dos aspectos do termo; mas, há que
lembrar também que o termo comporta o sentido "ardor". É, pois, um con-
ceito forte e vibrante este que se atribui a "J avé Zebaote". Este atributo "Ze-
baote" sebáot há de ter relações com a arca da aliança, sediada, desde Davi,
em Jerusalém. Em seu ambiente gostava-se de celebrar a "J avé" como ~eba' ot,
dos exércitos populares que, junto à arca, em experiências tribais, defendiam

196
com empenho e zelo os caminhos do povo! Isaías tem agrado em designar
[avé de ~eba'ot (veja Isaías 1,24; 6,3!).
A assinatura posta, no final do v.ó, a Isaías 9,1-6 e aos caps.6-9 é isaiâ-
nica!
As duas primeiras frases do v.S condensam o que os v.S-6 têm a dizer.
Encabeçam o sentido. Ocorre, pois, em nossa última 'estrofe', o inverso que
nas duas anteriores; nelas os principais conteúdos estão mencionados no
final, em v.3b ("espantarás como no dia de Mídiã") e vAb ("será para quei-
ma, pasto de fogo"). O inverso sucede na terceira e mais extensa 'fundamen-
tação', nos v.S-6. Neles, o começo expressa a novidade; este condensa o
conjunto.
Quanto a estas duas frases que encabeçam os significados, a rigor não
haveria mistério maior:
uma criança nos foi nascida,
um filho nos foi dado (v.Sa).
Novamente somos direcionados "a nós" lanu, expressamente em cada
uma das frases. Este "nós" não há de ser outro daquele que já conhecemos:
em 8,16-18 este "nós" são os "discípulos"/yiludim (veja o "nós" 7,14). São
aqueles "vós" de 8,11-12. Neste mesmo sentido havemos que tomar o "nós"
de 9,5 como plural de "eu", de Isaías. Este "nós" e o próprio visionário Isaías
são expressamente juntados com "as crianças"/ha-yeladim mencionadas na
palavra isaiânica de nossos capítulos (caps.ô-P). 7,3 ("Um-Resto-Voltará"),
7,14 ("Conosco-Deus" I'imanu-el) , 8,1.3 ("Rápido-Saque -Pressa- Presa" /maher
xalalhax bas), 11,1 ("Um-Renovo"/neser), veja 6, 13 (sera' "semente"). Penso
que, neste sentido, está, a rigor, solucionada uma das dificuldades de inter-
pretação. O alvo de nossa promessa é "nós"; são estes que acompanham
Isaías, em seus anúncios e em seu posicionamento profético-político, no
ambiente da preparação da assim chamada guerra siro-efraimita de 734-733
a.C, Este "nós" é, em 9,1-6, o Iam "povo" que, à luz da profecia, já jubila e se
alegra, porque saiu da escuridão para a luz no concreto, já sabe do nascimen-
to do menino, do Imanuel, enfim dos "sinais e prodígios" (8,18) que a profe-
cia de Javé colocou no horizonte de suas vidas. 9 ,Sa reafirma, pois, profecias
já conhecidas de nossos caps.6-9. Decisivo é que não se queira ler 9,1-6 fora
do âmbito em que estão colocados.
Este "menino"/yeled é designado, na repetição, de benl"filho". Reco-
mendo que se interprete este benl"filho" no próprio sentido de "menino"/

197
"criança"/yeled. o que é evidente é que seja pequeno, que nos encontremos
no nível da "criança". ben leva, aqui, este mesmo significado. 130 A este res-
peito deveria haver, a meu ver, uma certa unanimidade na exegese. Igual-
mente há que ter em mente que a raiz yld (no qal: "nascer") aqui, em nosso
v.S, se encontra no perfeito pual yulad "nasceu" ou, melhor, "foi nascido".
O verbo paralelo a este pual yulad igualmente tem sentido passivo, no caso
no tronco nifal nitan/"foi dado", novamente em sentido passivo. Conside-
rando que estas duas formas verbais são passivas, sem explicita menção do
sujeito, é evidente que este é divino. Portanto, [avé, a considerar o v.6b,
[avé-Zebaote é o sujeito tanto do "ser nascido" quanto do "ser dado". Por se
tratar de uma cena de mulheres, melhor até seria que [avé/mulher-e-mãe
(veja, por exemplo, Gênesis 16 e Oséias 11) é, propriamente esta divinda-
de atuante na dádiva da criança/menino/tilho.
O que segue a esta sensacional abertura da promessa de uma criança,
no começo do v.S, são variações do mesmo assunto. Portanto, as duas frases
iniciais sobre o "menino" e o "filho" são esmiuçadas no restante dos v.S e 6.
Ou, em outras palavras, os conteúdos do v. e 6 têm sua hermenêutica na
apresentação da "criança". Não se pode, pois, dissociar os v.S e 6 de seu
slogan de abertura. Se esta interpretação for adequada, então teremos evi-
tado uma serie de transtornos que tendem a se dar com nosso texto.
Um destes problemas de interpretação reside em transformar a "cri-
ança" em foco, digamos sorrateiramente, de novo num adulto. Faz-se aí
uma 'ginástica' alegorizante: o texto se refere a "menino", o 'eu' do intér-
prete arroga-se o direito de tornar este pequenino em um adulto. Não ado-
to esta postura. A meu ver, esta criança permanece criança, pois, afinal,
para expressá-lo nos termos de 8,18 são "as crianças que me deu Javé para
sinais e prodígios" ! Se isolássemos 9, 1~6 deste seu contexto de "as crianças...
para sinais e maravilhas" talvez pudéssemos promover outra leitura, mas
não em seu contexto literário. Crianças são aqui modelos hermenêuticos!
Assim podemos retornar aos v.S~6. Vejo que neles, após as duas frases
paradigmáticas de abertura sobre "menino" e "filho", trata-se de fixar sua fun-
ção. E esta é do "governo". No caso, o termo hebraico usado para este "gover-
no", usado somente em nossos v.S e no começo do v.6, é misrah (infelizmente

130 Veja este sentido de yeled e de ben em]. Kühlcwcin, artigo "ben" e yeled, cm Diccionario teológico manual
dei Antiguo Testamento, editado por Ernst jccní e Claus \Vestermann, Madri, Cristiandad, vol.I, 1978,
colunas 460-472 (ben) e colunas 1008·1011 (yeled).

198
de difícil definição etimológica). É possível que, em nosso trecho, Isaias tenha
desejado fugir dos termos usuais para referir-se ao exercício do poder.
De todo modo o jeito e a função deste "governo" da "criança" se ex-
pressam, quanto à sua qualidade, através de seu "nome" /xem. O ato de "go-
vernar" reside no senso do "nome". Pois, o nome é a presença do que no-
meia. E estes conteúdos de cada "nome", enfim também do próprio "gover-
no", são idêntico aos 'nomes', quer dizer a seus respectivos títulos.
Os títulos/t'nomes" são quatro. E não o são por acaso. Acontece que,
hoje, sabemos de onde estes quatro 'nomes' que, a rigor, constituem um só e
mesmo "nome" foram tomados: estes títulos eram de faraós. Isaías, conhece-
dor da história e das culturas, tomou-os dos próprios faraós e os aplicou ao
"menino" sem-nome. Os faraós, estes grandes senhores do Egito, são, por
assim dizer, usurpados de seu grande "nome". Entendo que Isaías era compe-
tente para fazê-lo, pois, como originário de círculos de saber e poder em
Jerusalém, conhecia história e linguagem da corte da capital (veja 8,1-4) e a
inseriu em sua profecia, ainda que sob o signo de novos significados, consi-
derando sua marginalização (8,11-15) do núcleo do poder (8, 18!). Daí por-
que não se há de entender a tradição faraónica, citada por Isaías, no sentido
faraônico, mas no sentido que o profeta lhe dá, a partir da marginalidade em
que está posto (8,16). É, pois, necessário atentar para o lugar social do profe-
ta para poder aquilatar o significado dos 'nomes' em jogo.
Trata-se de quatro nomes; cada um está em função de um dos pontos
cardeais. Originalmente celebra o poderio universal de faraó quanto a sua
similitude com o poder criador das divindades egípcias, presente por toda
criação. Neste sentido, não é de estranhar que os títulos faraônicos em sua
origem, agora messiânicos em sua nova aplicação e sentido, tenham cone-
xões evidentes com a simbologia da criação. Mas, talvez, exegeticamente
nem convém centrar-se, em demasia, na história traditiva dos títulos dentro
do âmbito faraônico, considerando que, em Isaías, títulos e conteúdos são
"nome" do "menino". E é isso que importa, que a criança seja vista como
chance de vida, não o faraó, que de todo modo é horizonte de morte. Veja-
mos, pois, os quatro títulos, cada um composto de dois vocábulos:
Maravilha de conselheiro,
Deus lutador,
Pai de eternidade,
Funcionário de paz (v.5b)

199
Penso que a seqüência destes títulos não seja fortuita: ora, o segundo e
o terceiro nome dizem respeito a características divinas; começo e final cele-
bram dimensões humanas. Além disso, é nítido que peso maior recai sobre o
último nome em que o assunto é a "paz" /xalom.
Observemos, inicialmente, os nomes que se encontram no centro:
ambos se referem a Deus, o primeiro de modo explicito ("Deus lutador") e o
segundo, porque nele "Pai" é titulação divina ("Pai de eternidade"). No nú-
cleo temos, pois, teologia, por um lado voltada à historia, por outro à cria-
ção. "Pai de eternidade" ressalta tanto os cuidados paternais do "menino"
quanto a origem de tudo no "pai". No caso, o termo cad não é tanto a 'eter-
nidade' como tempo descontinuo e perene, mas, de modo hebraico, tempo
nos tempos; cad tem a ver com "continuidade", com um "sempre" que, mes-
mo sendo continuo, não deixa de ser temporal, inserido na história. Nisso
esta expressão "Pai de contínuo" se assemelha a "Deus lutador". Nele, o ter-
mo giborl"lutador" é eminentemente histórico. Ora, gibor é um homem apto
e empenhado nas lutas da vida, podendo até ser o comandante em enfrenta-
mentos e lutas.!" Quanto à origem e ao sentido, a titulação "Deus lutador"
mantém significante semelhança com o título do final do v.6 "J avé Zebaote".
Os outros dois nomes, o do início e do final, se apresentam ainda mais histó-
ricos. Ora, "Maravilha de conselheiro" aponta para a proximidade de Deus
com o soberano, em nosso caso com o "menino". Pois, "conselheiro" é o que
Isaías talvez tivesse sido antes de seu expurgo da corte.!" "Maravilha"/pele'
qualifica este conselho de modo extraordinário, pois o substantivo hebraico
pele' tem precisamente este sentido de caracterizar algo como fora de série,
como sendo simultaneamente estupendo e diferente. Ao 'aconselhar' o "me-
nino", marca a diferença. Critério desta dimensão extraordinária é a "paz"/
xalom, como se lê no último "nome". Nele, sarl"funcionário" é similar a yo'e~
"conselheiro"; ambos os termos apontam para tarefas e funções originaria-
mente dentro da corte. Enquanto isso xaloml"paz" se refere as relações hu-
manas e sociais entre as pessoas alcançadas por este "governo". Este xalom
tem, pois, perfil social, como o expressa tão bem o Salmo 89,15. Em verdade,

131 Veja J. Kühlcwein, artigo "gbr", em Diccionario teológico manual delAntiguo Testamento, editado por Ernst
[eeni e Claus Westermann, Madri, Cristiandad, vol.I, 1978, colunas 568-574.
132 Veja Roland de Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.144-170; H.·P. Stãhli, artigo "y'~", em
Diccionario teológico manual dei Antiguo Testamento, editado por Ernst [enni e Claus Westermann, Madri,
Cristiandad, vol.I, 1978, colunas 1030-1036.

200
nosso Isaías diz o mesmo, porque no próprio v.6 interpreta o xalom esperado
como sendo a vida de "direito e justiça". Com este assunto já estamos no v.6.
Enunciados os 'nomes', o v.6 retoma o assunto que precede o elenco
do "nome"/títulos do menino: "para o aumento do governo". Este tipo de
"governo", englobado pelos 'nomes', há de ser 'aumentado'. Na expressão
paralela acima, "o governo" "estará" (veja acima v.5). Agora, neste começo
do v.6, ele existe "para o aumento do governo". Mas, este "aumento"/marbeh
está estritamente em função do xalom, como este começo do v.6 o expressa.
Aliás, trata-se de um xalom "sem fim"!133 Isaías não tem em mente uma con-
dição de vida momentânea ou provisória, mas como a que se encontra em
2,2~5! Assim, "o aumento do governo" faz crescer a qualidade do xalom, da
tarefa do "Funcionário da paz". E isso fica vinculado ao "menino", como o
cap.ll, em especial a partir do v.6, o expressa de modo magistral. Aqui, "paz"
não é um tipo de armistício que interrompe a guerra, mas uma nova vida!
"Paz" é, pois, o que importa, em Isaías. Esta é letra da música que nos
chega através dos caps.ô-P. A aposta militar e violenta, na qual o templo se
baseia e na qual os davididas apostavam são sons de morte. Com armas não
há como permanecer, nem crer (7,9b!). Por isso, a fé profética de Isaías se
contrapõe aos davididas. Daí brota a solução de um messianismo pós-davídi-
co ancorada na "criança", no "menino", no "filho", a caminho da "paz", sim
do "aumento do governo" da paz.
O problema não é, pois, nem o templo e nem a tradição davídica, mas
os sacrifícios que nele se realizam, esquecendo a verdadeira função do tem-
plo como ensino da torah, como abrigo de crianças, como berço das orações
e das profecias. Tampouco o problema são os governantes, em si, mas seu
anseio por guerras (7,3~9) e por decretos de espoliação (l0,1~2). Por isso, o
que importa é o "menino", engrandecido mundo afora, como o expressam
seus títulos faraónicos, e assentado nas tradições davídicas.
As tradições que giram em torno de Davi, mesmo as cúlticas (veja
2Samuel 7) não são desmerecidas. Pois, é para a "paz" que elas têm suas
funções de existirem qual "trono" e "reino". E esta "paz" - radicalmente sem
guerra e sem arma! - é a vida em "direito e justiça". Portanto,"paz" não é um
estado social em que a guerra cessou momentaneamente. Estes "direito e

133 Aponto aqui novamente para o maravilhoso livro de meu professor: Hans Walter Wolff, Frieden ohne Ende
- Jesaja 7,1-17und 9,1-6ausgelegt, 93p.

201
justiça" são o contexto e o espaço de xalom. No caso, "direito" é aquilo que
cabe a cada pessoa: a casa, a terra de plantio, a palavra, enfim, a vida. E a
"justiça" é o apelo sob o qual se vive de corresponder às necessidades da socie-
dade, de empenhar-se pelas pessoas de convívio, de inclusive cuidar e guardar
a criação. Por estes caminhos haverá firmeza da sociedade e garantias de vida.
Por aí se vêem melhor as tragédias em que nossa próprias terras brasi-
leiras e latino-americanas se embrenharam. Nossos antepassados achavam,
infelizmente achavam, que se pudessem livrar de índios e negros, impedin-
do-os de participar dos bens de nossa terra. Mas isso foi e é mera ilusão. Sem
"direito e justiça" não teremos "paz"! O dia-a-dia de nossas vidas nó-lo ensi-
na, a duras penas. É bom que andemos pela justiça, pois sem ela não seremos
filhos da paz. Que Deus nos abençoe a assentarmos nossas vidas no que é
seguro e que vale crer.
Há aí, no final destes primeiros seis versículos do cap.9, uma profunda
surpresa: a solução é o contrário do problema! O terror social (veja os
"ais" do cap.5 e 10) soluciona-se por seu contrário, pela fé nas crian-
ças, nos pequeninos, nos meninos e nas meninas.
Templo e rei impressionam. Seus sacrifícios e armas são grandiosos.
Mas seus efeitos são contra-vida. Vida se dá bem com sementes (6,3),
com recém-nascidos e pequeninos. Por aí há esperança: "um menino
se nos deu".
Deus Javé pode ser entendido a partir de armas e templos.
Pode... e é... Mas, de verdade, só as águas mansas dele dão testemunho.
É eterno (9,6) o que aí se canta no brilho da luz (9,1). Cabe-nos,
cantar e celebrar, contar e comemorar que há "paz sem fim"!

Inquietação, no fim

Este cap.9 é tão lindo! Não há como não percebê-lo. Nele um visioná-
rio lança sua sorte sobre sua própria vida, já perseguida e marginalizada (8,11-
15.16-18). Histórias pós-bíblicas até contam que teria sido martirizado. Afi-
nal, não gostamos do novo; inquieta-nos e nos atormenta, porque nos faz
sonhar novos horizontes. Por isso o novo tende à heresia.
Ao formular este novo da vida, Isaías se lança no miolo da sociedade,
nas sedes em que o poder se consolida: armas e sacrifícios. Ambas nos enga-

202
nam, porque de nada servem. São mui religiosas, mas falsas e idolátricas.
Pois, sacrifícios são máquinas que jamais páram. Guerras, tolices que não
querem cessar. O problema no martírio/testemunho de nosso visionário pro-
fético é inventar nos caminhos de Deus novos trilhos de vida, sem guerras e
sem sacrifícios.
É o que a religião não suporta. Ela detesta tamanha liberdade. Por isso,
ela anseia pela morte, pela eliminação. Ela te ensina, dia-a-dia, a tola lição
de que flores não têm mensagem, quando de verdade só mesmo os lírios do
campos são capazes de anunciar o novo.
Nosso cap.9, e este junto com os demais capítulos estudados, são pro-
moções de ilusões, sábias e com raízes de chão.

203
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