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A cena, o olhar: Orfeu e Eurídice

em H. D., Rilke, Tsvetáieva,1


Bachmann e Miłosz
Olga Kempinska*

Resumo Introdução
“De repente, vou me ver virando e vol-
Tomando como ponto de partida a in-
tando”, pensou. Mas não ainda, talvez
certeza quanto à motivação do olhar
porque não tomasse a decisão disso.
de Orfeu pousado sobre Eurídice, este
O impulso de voltar sobre os próprios
artigo debruça-se sobre diversas in-
passos se retardava de momento a
terpretações do mito nos poemas de
H. D., Rilke, Tsvetáieva, Bachmann momento. Por fim, ele parou de se sur-
e Miłosz. Objeto de leituras bastante preender: uma tênue visão começou a
divergentes ao longo do século XX, a assombrar sua cabeça. Era Kit, sentada
cena do fatal gesto de Orfeu mostra- diante da janela aberta, lixando unhas
-se bastante estimulante enquanto e olhando a cidade. E à medida que
oportunidade de discussão das com- percebia sua atenção voltando cada vez
plexas relações entre a subjetividade mais, com o passar dos minutos, para
e a alteridade, sobretudo no que tan- aquela cena, inconscientemente ele
ge a seus envolvimentos nos proble- se sentia o protagonista, Kit a espec-
mas de gênero e de casal. A reflexão tadora. A validade de sua existência
acerca de diferentes posicionamentos naquele momento tinha como predicado
discursivos, de diferentes encenações a suposição de que ela não havia se
do vínculo afetivo entre o sujeito e o mexido, mas ainda estava sentada lá.
outro, e de diferentes formas de parti- Paul Bowles (2009, p. 22-23),
lha da própria cena, permite, de fato, O céu que nos protege
contemplar visões muito divergentes
da relação entre os gêneros, ou seja,
da articulação da diferença entre o
masculino e o feminino.

Palavras-chave: Alteridade. Gênero. *


Doutora em História Social da Cultura. Docente de Te-
Subjetividade. Eurídice. Orfeu. oria da Literatura, Instituto de Letras da Universidade
Federal Fluminense. E-mail: olgagkem@gmail.com

Data de submissão: mar. 2016 – Data de aceite: maio 2016


http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v12i1.5783

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É bem conhecida a cena do mito de como irremediavelmente ambíguo, do-
Orfeu, transmitida através dos séculos tando-se de caráter fortemente flutuante
desde Virgílio e Ovídio, na qual, após e de uma abertura semântica altamente
ter ido buscar Eurídice no submundo, provocadora. Essa talvez seja a razão de
o poeta-amante-marido infringe a proi- sua frequente reaparição em diversas
bição e acaba por voltar-se e a olha. obras do século XX, época de suas nu-
São igualmente bem sabidos os efeitos merosas reinvenções e reconfigurações.
nefastos da transgressão de Orfeu, que, Assim, nos textos de Rilke, H. D., Tsve-
em consequência da perda definitiva de táieva, Bachmann e Miłosz, entre muitos
sua amada, morrerá despedaçado pelas outros,2 a cena do olhar de Orfeu encon-
mênades. Muito menos óbvios são os tra interpretações bastante divergentes.
motivos desse gesto fatal. “Alguns dizem Essa diversidade mostra-se, por sua vez,
que aquilo que aconteceu depois foi um instigante como uma oportunidade de se
simples momento de descuido. Outros discutir as complexas relações entre a
dizem que Orfeu, ao chegar até o brilho subjetividade e a alteridade, sobretudo
do sol voltou-se para ajudar Eurídice, no que tange a seus envolvimentos na
achando que ela também já havia che- questão dos gêneros. No presente artigo,
gado”; mas aqui ainda não se esgotam dividido em quatro movimentos, A recu-
as possíveis explicações: peração da voz feminina, Reciprocidade
Há quem pense que ele desconfiava de Ha- entre o “eu” e o “tu”, Afinal, quem é o
des e precisava confirmar que ela mesmo fantasma?, e Do olhar à escuta, tentarei
estava lá, ou que não conseguia mais ouvir mostrar como diversas interpretações
seus passos e ficou com medo de que ela não
o tivesse mais seguindo (BONHAM-LIES, da motivação do olhar de Orfeu levam à
1999, p. 112-113, tradução nossa). construção de diferentes posicionamentos
discursivos e a diferentes encenações do
Em seus fragmentos poéticos, a polo-
vínculo afetivo entre o sujeito e o outro,
nesa Julia Hartwig chega até a duvidar
trazendo, assim, visões bastante diver-
abertamente da sinceridade do pacto
gentes da cena dos gêneros, ou seja, da
por parte dos deuses: “E se Orfeu foi
relação entre o masculino e o feminino.
enganado pelos deuses e Eurídice não
o estava seguindo?” (HARTWIG, 2004,
p. 10, tradução nossa). Há ainda quem A recuperação da voz
diga, como Marina Tsvetáieva, que foi a feminina
própria Eurídice que suplicou para ser
olhada (DENIS, 2006). Ao lado de tantas outras figuras mi-
Acompanhado da incerteza intranspo- tológicas femininas, Eurídice aparece
nível quanto à sua motivação – descuido, inegavelmente como uma das expressões
cuidado, desconfiança, arrogância, amor? bastante evocativas da patente assime-
–, o sentido do olhar de Orfeu aparece tria das relações de gênero no Ocidente.

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Oscilando entre a musa amada, a amante imagem de vítima do processo da exclu-
perdida e a mulher-sombra, ela se reveste são das mulheres do domínio do poder
de traços de passividade e de negatividade simbólico, ela chega a encarnar uma das
que servem de pretexto para a atividade variantes das “loucas de sótão”, “uma
(discursiva, criativa e de deslocamento) de poeta que nunca conseguiu emergir da
Orfeu. Assim, por exemplo, em seu O espa- prisão de sua fossa” (GILBERT; GUBAR,
ço literário, texto que, em meados do século 2000, p. 99, tradução nossa). A crítica
XX, marcou fortemente a teoria da criação feminista das poéticas falocêntricas da
poética, Maurice Blanchot associava Eurí- criação insistiu também na configuração,
dice àquele “ponto profundamente obscuro na personagem de Eurídice, da passi-
para o qual parecem voltar-se a arte, o vidade feminina subordinada ao poder
desejo, a morte, a noite” (BLANCHOT, do olhar masculino, ao mesmo tempo
1955, p. 179, tradução nossa). No Brasil, constitutivo e aniquilador, e frisou a ur-
na mesma época, uma das configurações gência da “necessidade de se recuperar
poéticas mais evocativas é a conhecida a energia criativa feminina do não-ser
imagem de Eurídice em Invenção de Orfeu, e dos estreitos limites do canto órfico”
de 1952, de Jorge de Lima, na qual a Eurí- (AMBROŻY, 2011, p. 17, tradução nossa).
dice ao mesmo tempo concentra e exacerba Nesse contexto, o alcance da leitura
os aspectos noturnos do feminino: do conhecido e, de certa forma, inaugural
poema Eurídice de H. D., de 1916, não po-
[...] deria se restringir à investigação de seus
Eurídice, Eva espessa,
intrincados elos biográficos relacionados
musa de doces trevas,
mais que todas as Evas –
aos conflitos e à ruptura da poeta com o
musa obscura, Eva obscura [...] marido, Richard Aldington, e também a
(LIMA, 1958, p. 724). seu tumultuoso relacionamento com D.
H. Lawrence (SWORD, 1989). Eurídice
Tornando-se um dos casos ilustrativos de H. D. afirma-se, sobretudo, como um
do mecanismo da dominação que con- símbolo significativo da história da cria-
siste na “apropriação e [na] supressão tividade feminina, um gesto de inversão
dialéticas do Outro” (BUTLER, 2013, da configuração do mito órfico, chegando,
p. 34), Eurídice, aquela que inspira e, de certa forma, a ser um genuíno mani-
sobretudo, aquela que “segue”3 o homem, festo feminista. Com efeito, em vez de ser
surge como a imagem por excelência da reduzida a “um signo-objeto ou elemento
situação subalterna das mulheres. Desde de troca” (BUTLER, 2013, p. 84), dessa
a perspectiva feminista, a representa- vez, Eurídice impõe-se impetuosamente
ção de Eurídice vê-se frequentemente como um sujeito no interior do discurso
interpretada como um dos numerosos e como uma potente usuária de signos.
exemplos da construção da alteridade Talvez o caráter eminentemente revolu-
negativa. Desse modo, enquanto uma cionário desse texto resida não apenas

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em sua temática e no gesto de tomar a que, em poderosas imagens articuladas
palavra, mas, antes de tudo, em seu tom pelos contrastes visuais, não hesita em
irreverente, pois a Eurídice de Hilda afirmar a possibilidade da vitoriosa
Doolittle não se contenta simplesmente subversão da própria exclusão: “frente
com o ato de assumir a voz. Ela não fala, à negridão / e à cinza absoluta / tenho
mas esbraveja, produzindo no lugar do mais luz” (H. D.; POUND, 2002, p. 175).
dócil mutismo feminino um energético, E é, de fato, a vibrante potência das cores
revoltado e impiedoso jorro de palavras saturadas até o limite – “Açafrão das
cheias de ressentimento e de raiva: margens da terra, / açafrão bravo que
se reclinou/ sobre a acerada extremidade
Lançaste-me então para trás,
da terra” (H. D.; POUND, 2002, p. 169)
eu que poderia ter caminhado com as almas
[vivas
– que funciona aqui como o eficaz con-
sobre a terra, traponto visual à escuridão aniquilante.
eu que poderia ter dormido entre flores Ao mesmo tempo, como muitos dos
[vivas manifestos das vanguardas do início do
por fim; século XX, o discurso poético de Eurídice
reveste-se de agressividade, belicosidade
então pela tua arrogância
e unilateralidade, acabando por repe-
pela tua truculência
fui lançada para trás tir, em sua estrutura, o próprio gesto
para onde o líquen morto escorre patriarcal e falocêntrico da criação da
escórias mortas sobre musgo de cinza; alteridade negativa e da supressão do
outro. Simples inversão da relação de
então pela tua arrogância
dominação, enquanto uma cena de gê-
estou por fim despedaçada,
neros, Eurídice é uma ofensiva verbal
eu que vivi inconsciente,
que fui quase esquecida; que reduz Orfeu ao silêncio.

se me tivesses deixado esperar


teria crescido da indiferença
Reciprocidade entre o
para a paz, “eu” e o “tu”
se me tivesses deixado repousar com os
[mortos, Apenas a criação de situações genui-
ter-me-ia esquecido de ti namente dialógicas traz a promessa da
e do passado.
transformação do gesto de dar a voz a
(H. D.; POUND, 2002, p. 165).
Eurídice em uma indagação da relação
entre gêneros enquanto uma construção
O domínio da alteridade negativa,
mais complexa do que uma simples di-
ou seja, o submundo dominado pela
cotomia. Com isso, é graças a diversas
escuridão, pela morte e pelo silêncio,
formas de dialogismo, de reciprocidade e
encontra-se no poema de H. D. triunfal-
de endereçamento que se torna possível
mente apropriado pelo sujeito feminino,

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evitar a reificação não apenas do femi- priamente é. Pois o “eu” que é dito em um
poema lírico não se refere exclusivamente ao
nino, mas também da própria relação eu do poeta, um eu que seria diverso do eu
entre os participantes da cena. do leitor que se expressa em primeira pessoa
Comentando o dialogismo intrínseco à (GADAMER, 2010, p. 418).
poesia de Paul Celan, Gadamer ressaltou Publicado em 1952, o poema de Inge-
a inevitabilidade da reciprocidade entre borg Bachmann Dizer trevas, mescla os
o “eu” e o “tu”, desdobrada ainda, neces- temas do amor e da morte inerentes ao
sariamente, em uma inserção do leitor mito de Orfeu, revelando muitos traços
na configuração-eu do poema: da relação intertextual e amorosa da
Quem lê um poema lírico sempre já com- poeta com Paul Celan (RYCHLO, 2012).
preende em certo sentido quem é aí o eu.
Não somente no sentido trivial de saber
Cito aqui também o original alemão, pois
que é sempre apenas o poeta que fala e não nem toda densidade de significação rele-
alguma pessoa introduzida por ele. Para vante para a presente discussão deixou-
além disso, ele sabe o que o eu-poético pro-
-se transpor na tradução:

Como Orfeu, toco Wie Orpheus spiel ich


a morte nas cordas da vida auf den Saiten des Lebens den Tod
e à beleza do mundo und in die Schönheit der Erde
e dos teus olhos que regem o céu und deiner Augen, die den Himmel verwalten,
só sei dizer trevas. weiß ich nur Dunkles zu sagen.
 
Não te esqueças que também tu, subitamente, Vergiß nicht, daß auch du, plötzlich,
naquela manhã, quando o teu leito an jenem Morgen, als dein Lager
estava ainda húmido de orvalho e o cravo noch naß war von Tau und die Nelke
dormia no teu coração, an deinem Herzen schlief,
viste o rio negro den dunklen Fluß sahst,
passar por ti. der an dir vorbeizog.

Com a corda do silêncio Die Saite des Schweigens


tensa sobre a onda de sangue, gespannt auf die Welle von Blut,
dedilhei o teu coração vibrante. griff ich dein tönendes Herz.
A tua madeixa transformou-se Verwandelt ward deine Locke
na cabeleira de sombras da noite, ins Schattenhaar der Nacht,
os flocos negros da escuridão der Finsternis schwarze Flocken
nevavam sobre o teu rosto. beschneiten dein Antlitz.
 
E eu não te pertenço. Und ich gehör dir nicht zu.
Ambos nos lamentamos agora. Beide klagen wir nun.
 
Mas, como Orfeu, sei Aber wie Orpheus weiß ich
a vida ao lado da morte, auf der Seite des Todes das Leben,
e revejo-me no azul und mir blaut
dos teus olhos fechados para sempre. dein für immer geschlossenes Aug.
(BACHMANN, 1992, p. 27-29).

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Diferentemente do texto de H. D., no estabelecimento de qualquer limite
qual o discurso de Eurídice não deixa inequívoco entre os participantes da
nenhum espaço para a reciprocidade relação, tornando-se, antes, o ponto
de Orfeu, transformando-o, antes, em de resistência a qualquer tentativa de
mero objeto de ressentimento e de divisão simplória da cena dos gêneros
ataque verbal, o texto de Bachmann em um espaço bilateral, simetricamente
instaura uma situação de comunicação distribuído entre a vítima e o carrasco.
muito mais permeável e muito mais A dolorosa cena da perda irremediável,
propícia à troca. Longe de ser unilate- para a ambiguidade da qual contribuem
ral, reduzido a um palco monológico, o ainda múltiplos desdobramentos dos sig-
poema Dizer trevas lança mão de uma nificados das palavras, tais como Lager
sutil rede discursiva que, desdobrando (leito, campo de concentração) e Saite/
a estrutura da reciprocidade, entrete- Seite (corda/página, lado), é igualmente
ce o “eu”, o “tu” e o “nós”. Como o faz repartida e compartilhada pelo “eu” e
Gadamer em sua leitura de poemas de pelo “tu”.
Celan, é possível perguntar aqui: quem Implicados na complexa configuração
sou (é) “eu”, quem és (é) “tu”? Na leitura do “eu” e, portanto, na cena dos gêneros,
do poema de Bachmann fica, de fato, tanto o leitor quanto a leitora do Dizer
bastante emaranhada a distinção entre trevas podem, então, entrar no lugar do
o “eu” que pronuncia o discurso e o “tu” “eu” enunciador do poema, confundindo
ao qual ele se endereça. a estabilidade das posições assumidas
Quem seriam, nesse poema, Orfeu no mito pelo masculino e pelo feminino,
e Eurídice e qual seria sua relação? As pelo sujeito e pelo objeto, pelo vidente e
estruturas da reciprocidade abrem o pelo visto. Aliás, em vez de enfatizar a
espaço para trocas, correspondências e atividade nefasta e unilateral do olhar
até mesmo para sugestivas inversões. de Orfeu e de opô-la à passividade vi-
As alusões ao fatal olhar são tão visíveis timizada de Eurídice, o poema insiste,
quanto pouco nítidas, começando pela antes de tudo, na imagem dos olhos
relação indireta do “eu” com o Orfeu, vistos e abertos ao reflexo, evocando sua
apenas sugerida por meio da compa- beleza, sua potência e seu inapagável
ração. O canto, a vida, o amor, a clari- brilho azul.
dade e a beleza, evitando um simples
contraponto e recusando a situação de Afinal, quem é o
confronto, entretecem-se em movimen-
tos insinuantes com o silêncio, a morte
fantasma?
e a escuridão. Tampouco a reciprocida- Uma das configurações mais frutí-
de do arrependimento – “também tu”, feras do tema do deslocamento da Eu-
“ambos nos lamentamos” – permite o rídice para o domínio da irremediável

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alteridade surgiu no poema de Rainer [...]
Maria Rilke: Orfeu. Eurídice. Hermes, Ela, a Tão-Amada.
escrito em 1904. É nesse texto que, por
Mas incerta, suave e sem impaciência,
meio de múltiplos deslocamentos de ela seguia pela mão de deus,
foco, a cena do olhar de Orfeu esteve o passo tolhido pelas longas fitas mortuárias.
pela primeira vez repartida entre o Estava em si, de altas esperanças,
masculino e o feminino. Da inexistência e não pensava no homem que lhe ia à frente
quase total, Eurídice emerge aqui final- nem pensava no caminho que subia para
[a vida.
mente como um ente dotado de um pon-
Estava em si. E ser-morta
to de vista. Outro elemento importante a colmava de plenitude.
da recriação rilkiana do mito consiste Qual fruto cheio de dulçor e treva,
na introdução na cena de Hermes, que sentia-se repleta da sua grande morte,
transforma a relação a dois em um po- que lhe era nova e que não compreendia.
tencial triângulo.4
Ela entrara numa outra, uma intangível
Ao mesmo tempo, em sua condição
donzelice; seu sexo se fechara
de “ser-morta”, Eurídice é investida de como uma flor recente ao fim da tarde
muitas características genéricas for- e suas mãos se haviam desabituado tanto
temente questionáveis. Encarnando a do enlace que até mesmo o toque
“natureza” (por ser “raiz”) e apresentada infinitamente suave do leve deus a conduzi-la
como uma virgem grávida da própria lhe doía como excessiva intimidade.
(RILKE, 1993, p. 95-97).
escuridão e do mistério da morte, ela
acaba por ser relegada ao lado negativo
das oposições binárias, situando-se no Ao lado da variação dos pontos de
regime da ausência, do frio, do desumano vista e da introdução de Hermes, uma
e, sobretudo, da falta de desejo. Não sem das invenções mais originais do poema
vagos ecos da misoginia decadentista,5 o de Rilke consiste na abertura da cena
próprio submundo aparenta aqui traços do olhar de Orfeu a um outro sentido. A
eminentemente femininos de um “conti- atenção estética desloca-se aqui, de fato,
nente negro”,6 um domínio paradoxal e da experiência visual para a experiência
inexplorável, ao mesmo tempo perigoso, háptica, logo colocada, aliás, sob o sinal
misterioso e atraente: de um excesso. Inserida em uma estru-
tura paradoxal, Eurídice – quase-anjo –,6
em sua condição de intangível, revela-se
por demais sensível ao tato (de Hermes).
Dada a insistência na desmateriali-
zação de Eurídice e sua transformação
em sombra, por um lado, e sua estranha
plenitude, por outro, é possível interpre-
tar o olhar do Orfeu rilkiano como uma

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forma de exacerbação do desejo que, Ela não era mais aquela mulher loura
paradoxalmente, torna intangível seu que os cantos do poeta invocaram tantas
[vezes,
objeto. Tal estrutura é detalhadamente
não mais o aroma e a ilha do espaçoso leito,
analisada por Agamben como própria da nem propriedade mais daquele homem.
melancolia e inseparável da
[...] perversão de uma vontade que quer o Já estava solta como longa cabeleira
objeto, mas não o caminho que a ele conduz e outorgada como chuva sobrevinda
e ao mesmo tempo deseja e obstrui a estrada e repartida como cêntupla ração.
ao próprio desejo (AGAMBEN, 2007, p. 29).
Ela era já raiz.
Note-se, de passagem, que a dispo-
sição melancólica de Orfeu foi sugerida E quando, de repente,
também por Fernando Pessoa (em uma o deus a fez parar e com amargura na voz
ode de Ricardo Reis): “Atrás não se torna, disse as palavras: Ele se voltou –,
nem, como Orfeu, volve / Sua face, Sa- ela não compreendeu e perguntou-lhe,
turno” (PESSOA, 1986, p. 214). Manter o [baixo: quem?
desejo fixo no inacessível para, finalmen-
Mas ao longe, recortado contra a luz da saída,
te, retrair-se no eu, narcisisticamente via-se o vulto obscuro de alguém cujas
identificado com o objeto perdido, é, de [feições
fato, o traço característico do melancólico não se podia distinguir. Estava de pé e dali
entregue aos prazeres ambivalentes da [contemplava,
excessiva prática fantasmática. Como como sobre a risca de uma vereda campestre,
o deus das mensagens voltar-se em silêncio
Eurídice rilkiana transformada em som-
e com olhar pesaroso acompanhar a figura
bra, o objeto de um desejo melancólico é, que, incerta, suave e sem impaciência,
ao mesmo tempo, real e irreal, incorpora- ia já refazendo o caminho anterior,
do e perdido, afirmado e negado: o passo tolhido pelas longas fitas mortuárias.
(RILKE, 1993, p. 97, grifo do autor).

Uma transformação de Eurídice em


sombra intangível operada pelo desejo
melancólico do poeta deixa-se ler tam-
bém, segundo Pierre Brunel (2003), que
analisa a presença de Orfeu na poesia
francesa, no poema Canção do mal-ama-
do (1913), de Apollinaire, especialmente
nos versos “Esposa das trevas amada /
És minha, não sendo nada / Ó minha
sombra em luto de mim” (APOLLINAI-
RE, 1977, p. 26, tradução nossa). Mais
impiedosamente ainda do que no poema

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rilkiano, Eurídice surge aqui como uma Para quem esgotou os últimos farrapos
sombra esvaziada de qualquer alteridade Da carne (não há lábios nem faces!...)
Não será um abuso dos direitos
positiva, reduzida a um mero reflexo da
Orfeu descer ao Hades?
sombra do próprio Orfeu.
Em seu estudo sobre a crueldade me- Para quem rejeitou os últimos elos
lancólica, Jacques Hassoun (2002) nota Terrestres... Quem no leito dos leitos
que a paixão é o modo de expressão mais Recusa a mentira da contemplação
espetacular da estrutura melancólica E olha para dentro – o encontro é faca.
do desejo. Nessa configuração subjetiva
Porque – todas as rosas do sangue
particular, no entanto, “o ser que emo- São a paga desta capa folgada
ciona o apaixonado é desprovido de toda Da imortalidade...
alteridade”, sendo um mero Tu, que me amaste
[...] porta-mantô desses fragmentos de ob- Até ao nascer do Letes, dá-me a paz
jetos escapados de um desastre e que estão
como que à espera de um destinatário ima- Da memória apagada... porque nesta casa
ginário que lhes permitiria causar o desejo Assombrada – o fantasma és tu, vivo,
(HASSOUN, 2002, p. 108). E eu, morta, o real... Que mais te direi senão:
“Esquece e dá-me a paz!”
Em suma:
[...] o(a) apaixonado(a) ama um(a) Não me darás vida! Não me seduzo!
anônimo(a) qualquer e perfeitamente in- Já não tenho mãos! Nem lábios para neles
diferente, encarregado(a) de representar o Colares os lábios! A paixão da mulher acaba
enigma de que ocorre ser ele(ela) a presa
Com a picada da víbora da imortalidade.
(HASSOUN, 2002, p. 108).

Em consonância com a estrutura Porque está tudo pago – lembra-te dos meus
do desejo melancólico e devido a suas [gritos!” –
Por esta derradeira vastidão.
ricas relações intertextuais com o tema
Não vale a pena Orfeu descer a Eurídice
rilkiano da desmaterialização de Eu- Nem irmãos inquietarem irmãs.
rídice, a colocação do “eu” feminino no (TSVETÁEVA, 2011, p. 167, grifo do autor).
poema Eurídice – para Orfeu (1923), de
Marina Tsvetáieva, revela-se bastante Tendo se apaixonado muito ao longo
interessante: da vida, inclusive por Rilke, ela mesma
muito propensa ao impiedoso desejo me-
lancólico que desconsidera o outro e cuja
dinâmica é, aliás, explicitada com uma
lucidez surpreendente em suas cartas e
anotações – “amo você ou o meu desejo
de amar?” (TSVETÁIEVA, 2008, p. 88)
–, Tsvetáieva pratica em seu poema uma
curiosa exacerbação do funcionamento

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da alteridade negativa rilkiana. Eurídice Do olhar à escuta
aqui quer ser esquecida e deixada em
paz, investindo, por sua vez, de imate- Em todos os poemas discutidos até
rialidade o próprio Orfeu, devolvendo- agora, o ponto nevrálgico, o núcleo explo-
-lhe o reflexo: o fantasma é ele. Com sivo da cena dos gêneros é não apenas o
essa reescrita do mito, acompanhada de direito à palavra, mas, antes de tudo, o
uma inversão da relação com o objeto poder do olhar, ou, melhor dito, o olhar
do desejo melancólico, a própria prática enquanto poder: aquele que é “lançado”
fantasmática perde toda sua inocência, ou “erguido”, capaz de aniquilar o ou-
tornando-se ela mesma um objeto de jogo. tro; aquele que o configura como outro,
aquele que o transforma em mero re-
O mais surpreendente talvez seja o
flexo. Como se o ato de ver tivesse uma
fato de que, em uma carta posterior, de
positividade absoluta de apropriação e
1926, endereçada ao poeta Boris Paster-
de domínio, como se o trabalho do olhar
nak, rememorando o tumultuoso contex-
não fosse também uma obra de perda, in-
to da escrita desse poema – relacionado
separável de “sentir que algo inelutavel-
à emigração, ao reencontro após vários mente nos escapa” (DIDI-HUBERMAN,
anos da poeta com seu marido Serguei 2010, p. 34).
Efron, a respeito de quem nem sabia se É justamente essa fixação estética
estava vivo ou morto, e à relação amoro- na visão enquanto uma simples prática
sa com o próprio Pasternak –, Tsvetáieva apropriadora que parece ter sofrido um
tenha deslocado a culpa da desgraça do deslocamento significativo na poesia
olhar de Orfeu para a própria Eurídice: mais recente. De fato, para além da
“Poderia ter sabido persuadir Orfeu a expressão da crueldade do desejo me-
não olhar para trás – Orfeu que olha lancólico e abandonando a configuração
para trás é obra de Eurídice” (DENIS, poética da luta pela palavra e pela visão,
2006, p. 170). Oscilando dramaticamente parece esboçar-se uma promessa de
entre um sinal de arrependimento por continuação da reinvenção da cena do
não ter conseguido abandonar o marido impossível casal de Orfeu e Eurídice.
e uma bravata emocional tão caracterís- Nesse sentido, parece-me estimulante
extrapolar temporalmente a presente
tica da poeta, e condensando de forma
reflexão para além do século XX com
espantosa na figura do Orfeu o poeta
mais uma leitura, a do poema Orfeu
Pasternak e o marido, cujo nome Efron
e Eurídice, de 2002, do poeta polonês
revela traços de um anagrama com o
Czesław Miłosz:
nome mítico (DAIS, 2006), o audacioso
poema de Tsvetáieva abusa da intertex-
tualidade e da reflexividade para sub-
verter a cena do olhar melancólico.

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Parado na calçada, na entrada dos infernos, distante em sua aparente proximidade,
Orfeu encolhia-se sob o vento cortante Eurídice remete, assim, a um dos mais
Que puxava seu casaco, levantava uma
dolorosos equívocos visuais, quando o
[cortina de névoa,
Debatia-se contra as folhas das árvores.
morto parece apenas mergulhado no
[Com cada nova onda sono e, portanto, capaz de acordar a
de névoa as luzes dos carros empalideciam. qualquer momento.
Anos antes, em 1975, Miłosz já ha-
Parou diante das portas vidradas, incerto via se debruçado em um ensaio sobre a
Se terá forças para essa última prova.
topografia do inferno, descobrindo seu
Lembrava-se do que ela dizia: “Você é um
paralelo frequente com o relato de via-
[homem bom”. gem e comparando suas representações
Não acreditava muito. Os poetas líricos, em diferentes épocas: “[...] o espaço de
Bem o sabia, costumam ter frios corações. Dante é palpável, possui sua extensão,
É quase uma condição. A perfeição da arte altura e largura, enquanto o espaço de
Vem em troca de uma tal deficiência.
Milton é cambaleante e incomensurá-
Apenas seu amor esquentava-o, tornava-o
vel” (MIŁOSZ, 2013, p. 123, tradução
[humano. nossa); em Swedenborg, o inferno é
Quando estava com ela, pensava-se diferente. “completamente deslocado para o in-
Não podia decepcioná-la agora que estava terior do ser humano” (MIŁOSZ, 2013,
[morta. p. 127, tradução nossa). No poema
[...]
tardio, trata-se de uma composição
(MIŁOSZ, 2011, p. 1295, tradução nossa).
heterogênea da qual participam tanto
o inferno interior permeado pela culpa,
Escrito após a morte da segunda
quanto uma imagem do “inferno na
esposa do poeta, Carol Thigpen, o po-
terra”, contínuo com a vida cotidiana. A
ema de Miłosz retoma mais uma vez o
cena do olhar vê-se, assim, transportada
movimento de motivação autobiográfica
para o mundo contemporâneo e o espaço
direta, repetindo o motivo rilkiano da
representado faz pensar no espaço de
alienação de Eurídice do mundo dos vi-
um hospital:
vos. Todavia, desta vez, trata-se não do
desejo melancólico, mas do sofrimento
do luto: a distinção entre a subjetividade
e a alteridade é suspensa pela doloro-
sa experiência na qual a morte do ser
amado torna-se a morte própria. Eurí-
dice de Miłosz não é uma condensação
ambivalente da sexualidade e da morte:
sua alienação corresponde, antes, à apa-
rência de uma pessoa adormecida. Tão

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Empurrou a porta. Seguia por um labirinto resistentes e, afinal, ontológicas (“você
[de corredores, elevadores. é”) e éticas (“um homem bom”) –, salva-
A pálida luz não era luz, mas uma treva
[terrestre.
va Orfeu. Por isso mesmo, a marcha do
Cachorros elétricos passavam ao lado em poeta destituído de seus poderes rumo à
[silêncio. prometida superfície está acompanhada
Descia um andar após o outro, cem, de sentimentos de perda e de culpa. O
[trezentos, para baixo.
desamparo de Orfeu, seu silêncio e sua
Sonhava. Tinha a consciência de ter se
[encontrado no Nada. tremenda vulnerabilidade correspondem
Debaixo de milhares de séculos estagnados, no poema também à fragilidade do seu
Entre as cinzas de gerações calcinadas, autor, ele mesmo próximo da morte que
Esse reino parecia não ter fundo nem limite. terá lugar dois anos mais tarde:
Rodeavam-no rostos de uma multidão de
E Hermes trouxe Eurídice.
[sombras.
Seu rosto mudado, completamente cinza,
Alguns reconhecia. Sentia o ritmo de seu
Pálpebras baixadas, a sombra de cílios.
[sangue.
Avançava rígida, conduzida pela mão
Sentia com força sua vida, junto com sua
Do guia. Pronunciar seu nome
[culpa
Ele queria tanto, acordá-la desse sono.
E temia encontrar aqueles a quem havia
Mas segurou-se, pois havia aceito a condição.
feito mal.
[...]
(MIŁOSZ, 2011, p. 1295-1296, tradução Partiram. Ele primeiro e atrás, mas não
nossa). [de perto,
O som de suas sandálias e de pequenos passos
Dos seus pés envoltos em saia como em uma
Nesse texto tardio – Miłosz tinha
[mortalha.
noventa e um anos no momento de sua A senda íngreme lançava para o alto brilhos
escrita –, Eurídice não é uma sombra im- [fosforescentes
possível, mas a esposa pranteada. Em um Na escuridão, que era como paredes de um
gesto de relutância, o “eu” lírico é evitado [túnel.
Ele parava e escutava. Mas então eles também
e substituído pela terceira pessoa. A fala
Interrompiam a marcha, desaparecia o eco.
direta, lembrada e evocada em citação, Quando voltava a andar, surgia de novo o
pertence a Eurídice, que, longe de ser [duplo ritmo,
um mero reflexo passivo e maleável, ao Uma vez, parecia, mais perto, outra, mais
contrário, com uma estranha força, desa- [longe.
No fundo de sua fé crescia a dúvida
fiando até o próprio Orfeu, torna-se a pro-
E envolvia-o como uma fria hera.
tetora do bom discurso e da boa imagem. Aquele que não sabia chorar, chorava a perda
A inversão dos elementos do mito atinge Da esperança humana na ressurreição dos
aqui o próprio sentido da “atividade” [mortos,
por meio do sutil questionamento de seu Pois agora ele era como qualquer outro
[mortal,
atrelamento à ideia de mobilidade. Com Com sua lira calada, sonhava sem proteção.
efeito, desta vez é Eurídice que, ao repetir [...]
as mesmas palavras – tão simples, tão (MIŁOSZ, 2011, p. 1297, tradução nossa).

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Trata-se aqui de uma outra cena de movimento alheio, mas que nem por isso
gêneros e de casal. Ao acolher todo o visa a alguma fusão utópica dos corpos
afluxo da tristeza irremediável de um –, tão presentes na caminhada juntos,
ser humano que perdeu um ser humano talvez sejam disposições afetivas mais
amado, ela se configura esteticamente inspiradoras para a reinvenção da cena
de um modo diferente daquele legado do casal e da relação entre gêneros do
pela tradição. Abandonado o sentido da que os desejos envolvidos em embates
visão no qual o mito (do olhar) de Orfeu verbais e confrontos visuais.
concentrava-se até então, sendo, assim,
cúmplice da estética tradicional centrada Considerações finais
na apreensão do visível, a atenção per-
ceptiva desloca-se no poema de Miłosz O nome de Eurídice vem da palavra que deu
inteiramente para a escuta. O incerto também a forma aos nomes tais como Euro-
som dos passos da esposa, que trazem pa, Euritos, Eurifassa, entre muitos outros;
todos denotam o amplo jorro da aurora no
também ecos intertextuais dos “passos céu (MALLARMÉ, 1880, não paginado,
tolhidos pelas longas fitas mortuárias” tradução nossa).
da Eurídice de Rilke, aquela frágil ex-
Associada ao mito solar do resgate
periência auditiva da qual o poeta pa-
da aurora das trevas (AUSTIN, 1970,
radoxalmente espera que lhe sirva como
p. 12), a figura de Eurídice parece con-
garantia da fé e como guia no caminho
ter, desde seu nome, um potencial de
de volta, esteticamente satura a cena e
subversão da alteridade negativa. Em
substitui toda a música de Orfeu, toda
muitos dos poemas do último século que,
sua poesia, descrita anteriormente como
ao recolocar em cena o olhar de Orfeu,
solidária da plenitude da vida.
propõem diversas versões e “inversões”
O desejo remete aqui sobretudo à pre-
(SEGAL, 1989, p. 185) do mito órfico, a
servação da ameaçada continuidade do
raiz do vocábulo Eurídice, eurus, que sig-
movimento de andar com o outro, em sua
nifica amplo em grego (BRUNEL, 2003,
proximidade. Nesse poema de um luto
p. 46), torna-se mais aparente e permite
recente, o que é almejado na relação com
a restauração de todo um teor da ambi-
o outro não se relaciona à especularida-
valência inerente ao nome próprio e a
de, mas à possibilidade de finalmente
seu lugar na cena mítica.
caminhar ao seu lado, sem a necessidade
No século XX, não sem relação ínti-
de ir à frente e nem de ser seguido. Quem
ma com a intensificação da tomada da
sabe, a disposição e a atenção ligadas ao
palavra pelas poetas mulheres, o olhar
prazer recíproco de acompanhar o ritmo
de Orfeu é frequentemente recolocado
dos passos do outro – esforço levado a
em cena e, com isso, a própria cena vê-se
ponto de se tornar confusa a clareza da
cada vez mais investida de uma reflexão
distinção entre o movimento próprio e o
crítica e de uma busca por uma refor-

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mulação enquanto espaço de relação. dos sexos, o sentido do olhar do Orfeu
As subversões discursivas não apenas permanece flutuante.
retiram Eurídice do seu longo mutismo, Para além de seu sentido de uma lo-
mas passam também a ressaltar a im- gomaquia doméstica, a noção da “cena”
portância do dialogismo, tanto em sua torna possível a apreensão de toda uma
dimensão intertextual, quanto em seu dimensão de teatralidade das relações,
alcance intersubjetivo e, dessa forma, na qual seus participantes – Orfeu,
a alteridade negativa atrelada ao mito Eurídice, (Hermes) –, escapando à iden-
encontra-se não mormente invertida, tidade fixa e recuperando uma impres-
mas genuinamente questionada enquan- sionante mobilidade, assumem diversos
to forma de articulação da relação com papéis discursivos, afetivos e genéricos.
o outro. Diversificando os desdobramentos da
Como bem o mostram os exem- distância e dos pontos de vista, o leitor
plos discutidos, um traço igualmente dos poemas, entrando ele mesmo no
relevante da recolocação em cena do papel do(a) espectador(a) da cena do
olhar de Orfeu remete a seu enfático olhar de Orfeu, não apenas revigora sua
envolvimento biográfico nas cenas de incerteza a respeito do que afinal está
casal. Enquanto trocas de “contestações aí em jogo, mas é também convidado a
recíprocas” (BARTHES, 1995, p. 36) ou desconfiar da onipotência do olhar. O
como buscas por uma genuína partilha sentido da cena parece, dessa forma,
da palavra, as encenações poéticas da libertar-se da inscrição exclusiva no
relação entre Orfeu e Eurídice revelam- domínio da visualidade e da visibilidade,
-se, de fato, fortemente impregnadas passando a invocar também a atividade
pelos embates de narcisismos invetera- dos outros sentidos do fruidor: do tato
dos, pelas experiências de abandonos e e, sobretudo, da audição relacionada à
de rupturas vividas pelas poetas, que escuta do outro.
passam a subverter a própria noção de O uso da cena é, assim, ele mesmo
casal e a questionar suas próprias rela- aos poucos modificado. O deslocamento
ções com os maridos e com os amantes. que diz respeito à relevância estética
Nesse contexto, não estranha que as dos sentidos faz com que a cena deixe,
disputas pela palavra e as rivalidades passo a passo, de ser um espaço estru-
pela própria cena invistam-se por vezes turado pelo conflito, um lugar limitado,
de uma violência mal disfarçada. Ao ao mesmo tempo centrípeto e partido
mesmo tempo, oscilando entre o mal- em dois, de confrontos verbais e visuais.
-estar amoroso, as miragens do paraíso Com a relevância crescente atribuída à
perdido subjacentes à formação do casal, escuta dos passos do outro e ao desejo de
a perversão da lei e de sua transgressão, caminhar juntos, a cena transforma-se
e o dilaceramento prazeroso e doloroso em um espaço decentralizado e aberto,

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destinado a ser percorrido em mais di- Notas
versos sentidos e, sem dúvida, ao lado
do outro amado. 1
No presente trabalho, mantenho diversas trans-
literações do russo para o nome da poeta nas
referências bibliográficas; no corpo do texto, sigo
La scène, le regard. Orphée a grafia proposta na edição brasileira de 2008.
2
A reinterpretação do mito de Orfeu no século XX
et Eurydice chez H.D., Rilke, foi tão frequente que se torna difícil enumerar
Tsvetáieva, Bachmann aqui todas as obras que a compõem. Entre as
mais significativas e não contempladas no pre-
et Miłosz sente trabalho, constam: Eurídice (1941), de
Jean Anouilh, Eurídice (1947), de Edith Sitwell,
Résumé Orfeu (1950), de Jean Cocteau, Orfeu (1951),
de Muriel Rukeyser, A descida de Orfeu (1957),
En partant de l’incertitude quant à la de Tennessee Williams, Orfeu negro (1959), de
motivation du regard d’Orphée posé Marcel Camus, Sonho que sou a morte de Orfeu
sur Eurydice, l’article se penche sur (1968), de Adrienne Rich, H. E. O. (1997), de
les diverses interprétations du mythe Zbigniew Herbert.
3
A possibilidade de desconstrução do gesto de
dans les poèmes de H.D., Rilke, Ts-
“seguir”, relacionada à animalidade, à recipro-
vetáieva, Bachmann et Miłosz. Objet cidade do olhar e à diferença genérica, foi ex-
des lectures très divergentes au cours plorada no conhecido texto de Jacques Derrida
du XXe siècle, la mise-en-scène du fa- L’animal que donc je suis (DERRIDA, 2002).
tal geste d’Orphée se révèle bien sti- 4
Os traços desse “terceiro” deixam-se detectar
mulante en tant qu’opportunité d’une desde a Antiguidade também na figura de Aris-
discussion de complexes relations en- teu, que, segundo o mito, persegue com seu de-
sejo Eurídice no dia de seu casamento, causando
tre la subjectivité et l’altérité, surtout
sua morte com a picada de uma serpente.
en ce qui concerne leurs implications 5
Um rico estudo da estrutura polarizada das
dans des problèmes de genre et de representações inspiradas pela misoginia de-
couple. La considération de différents cadentista do fim do século XIX, com o título
positionnements discursifs, de diffé- evocativo A mulher que eles chamavam fatal,
rents liens affectifs entre le sujet et foi elaborado por Mireille Dottin-Orsini (1996).
l’autre, et de différentes formes de
6
A desconstrução da problemática expressão
freudiana “continente escuro”, que relega a
partage de la « scène » permet, de
feminilidade ao domínio da alteridade negativa,
fait, contempler des visions assez foi proposta por Luce Irigaray (1985).
divergentes de la relation entre des 6
Uma interessante interpretação psicanalítica da
genres, c’est-à-dire, de l’articulation transformação do visível no invisível na figura
de la différence entre le « masculin » do anjo foi proposta por Ronald Britton (1998).
et le « féminin ».

Mots-clés: Altérité. Genre. Subjectivité. Referências


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