Capitulo 3
A SALVAGUARDA
DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL*
Cabe-me, meus caros estudantes, a honra e a responsabilidade de
falar-vos ao transcurso do sesquicentenario do nascimento de Rui B:
bosa e Joaquim Nabuco, dois paradigmas na formagiio da nacionalida-
de. E 0 faco em recinto que abriga as tradicdes civicas do Centro Aca-
démico 11 de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de Sio
Paulo.
Rui, com o habeas corpus, libertou presos politicos e assumiu, na
tribuna e no foro, a grandeza e a majestade de um Berryer, o advogado
dos perseguidos.
Nabuco, com a palavra e a fora do talento, libertou escravos €
teve, simbolicamente, nos comicios da Aboligio, a estatura de um
Abraham Lincoln.
que € 0 certificado da cidadania dos povos, 0 compromisso de seu fu
turo, o monumento de sua maioridade, a Carta de seus direitos, 0 com;)
péndio de suas liberdades, a garantia de sua protegio fundamental,
* Texto definitivo de conferéncia proferida em Sio Paulo, no dia 20 de maio
de 1999, no auditério do Centro Académico 11 de Agosto, a convite dos estudan-
tes de graduacio e de pés-graduagio da Faculdade de Direito do Largo de Sao Fran-
cisco, onde o orador foi saudado pelo Prof. Fabio Konder Comparato, Catedritico
da Universidade de Sao Paulo. A mesma conferéneia 0 Autor a fez, com ligeiras
variantes, em ontras Capitais da Federago.Salvaguardar a Coustituigdio figura, a0 meu ver, como:o primeiro
dos deveres do cidadao e do governante. Se os codigos foram, outrora;
u expresso da legalidade, as: Constituigdes sfio, agora, a esséncia da
legitimidade, Sem legitimidade nao ha democracia, e sem democracia
nio prevalece 0 Estado de Direito. Faltando uma ¢ outra, falta tudo a
crises ce ites.
O Brasil, desde a Emenda materialmente inconstitucional da ree-
Ivigdio do Presidente da Reptblica, se acha imerso e submerso numa
dessas crises.
Ontem as Diretas-j4 nos tiraram de uma autocracia; hoje as Medi-
das Provisérias, as miniconstituintes ¢ os plebiscitos inconstitucionais,
Se 0 povo nfo for as ruas, poderdo, breve, nos levar de volta ao subter-
riineo da ditadura.
Desgragadamenite, é 0 que ha de resultar do delirio continuista
da cegueira politica que ameagam mexicanizar 0 Pais, instalando'e per
petuando no poder as piores oligarquias de todas as idades republica: _
nas de nossa Histéria-
E este, em sutta, o quadro, para o qual perde o pincel dé Rui Bar-
hosa quando, ao'comeco deste século, tragow 0 seguinte perfil do regi-
me
“A Constituigdo esta ein destrogos e 9 lie nos ameaga agora (...)
¢, coma iiltima ruina das nossas liberdades, a perda total de nés mes-
nos. Nao & a Constituigfio que se acha em perigo; € a Patria, o Brasil, a
nossa integridade, a nossa coletividade, tudo 0 que soios, tudo o que
éramos, tudo 0 que aspiramos a ser, a nossa éxisténcia mesma nos seus
clementos morais, em todas condigdes da sua realidade e de seu valor,
«lu sua atualidade,e do seu futuro, da sua duragao € da sua honra, do
scu préstimo e do seu destino. —-
“Se nos nfo ergueritios hum grande movimento de reabilitagdo, a
faléncia da nossa nacionalidade estaré declarada”.
Estas palavras, meus senhores, Rui Barbosa as proferiu quando
‘uinda nao havia neste Pais reelei¢ao presidencial, neoliberalismo, Me-
didas Provisérias, globalizagao desnacionalizadora da economia brasi-
Icira e propostas de Emenda Constitucional que destroem,a esséncia
«la propria Constituigao.
De Rui Barbosa podemos, alids, dizer 0 que de Rousseau disse
um publicista das Espanhas; que ele dera sua alma a um século, sua
palavra a uma tribuna imortal ¢ sua idéia a uma revolugdo.Da mesma forma Rui o fez, mas em dobro, porquanto foi ele a
alma de dois séculos — 0 XIX e 0 XX ~a palavra de duas tribunas — a
da imprensa ¢ a do parlamento ~ e a idéia de duas revolugdes: a federa-
tiva e a republicana.
E nessa triplice conjungao que Rui, arrimado invariavelmente ao
magistério da Constituigao, foi em seu tempo a sintese do Pais consti-
tucional e a voz da democracia.
Eu invoco o constitucionalista baiano porque ele incorporava dois
principios, colocados, de tiltimo, debaixo da ameaga de serem destro-
gados: o principio da legalidade e o principio da constitucionalidade; a
legalidade, trucidada, inumeraveis vezes, por Medidas Provisorias, ¢ a
constitucionalidade ameacada, criminosamente, por cinco Propostas de
Emenda a Constituigo, que tramitam no Congreso Nacional, e tra-
zem, oculta, a sentenga de morte do § 2%, do artigo 60 da Lei Magna.
Sio elas, com seus respectivos autores, as seguintes: Emendas ns. 554,
do deputado Miro Texeira; 580, do deputado Aécio Neves; 599, do de-
putado Anténio Kandir; 463, do deputado Inocéncio Oliveira; ¢ 50, do
Senador Pedro Simon.
Ocupar-me-ei, a seguir, to-somente de duas, que sendo espelho
paradigma das demais, demonstram a deserg%io da chamada classe po-
litica aos seus deveres constitucionais. E frisante exemplo dessa deser-
gio a Proposta n, 554, jd aprovada 4 unanimidade pela Comissao de
Constituigio e Justiga e de Redagao da Camara dos Deputados. Intro-
duzida no Congresso Nacional por uma estranha e indecorosa iniciati-
va de 29 deputados de quase todos os partidos de oposigZo, logrou 0
dbvio ¢ entusiastico apoio das hostes parlamentares majoritatias mais
servis aos designios da ditadura constitucional, que, no dizer preciso
de Fabio Comparato, intenta transformar a Constitui¢aa numa “colos-
sal Medida Proviséria”, -
Com efeito, 0 Projeto de Emenda em tramitagdo convocava um
plebiscito para 4 de outubro de 1998, simultaneo as eleigdes presiden-
ciais — afortunadamente ja inviabilizado a mingua de tempo — e uma
constituinte, a reunir-se em janeiro de 1999, “livre e soberana”, cogno-
minada de miniconstituinte, em razio de sua delimitagaio a determina-
dos artigos da Lei Maior e aqueles que lhe so conexos. Se se pode
conceber, da parte do elemento parlamentar, um ato de traiggo A demo-
cracia, 0 mandato legislativo, aos fundamentos da ordem constitucio-
nal, esse ato é, por sem ditvida, a sobredita Emenda. Aparelhou-se uma
nova espada de Damocles que 0 Planalto e seus aliados mantém ‘sus-
Pensa sobre as nossas cabegas enquanto prosseguem em marcha batida