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Cadernos do ITERRA

Ano II – Nº 06 – Dezembro de 2002

PEDAGOGIA DA TERRA

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Expediente

Produção: Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária – ITERRA

Organização: Coletivo de Coordenação do Setor de Educação do MST

Projeto gráfico, diagramação e capa:

Ilustração da capa: Sérgio Ferro

Todos os direitos reservados ao ITERRA.

1a edição: Dezembro de 2002.

ITERRA

Rua Princesa Isabel, 373

Cx. Postal 134

95 330 - 000 Veranópolis – RS

Fone / fax: (54) 441 17 55

Endereço eletrônico: iejcastro@veranet.com.br

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Sumário

Apresentação

1. Pedagogia da Terra: Turma Salete Strozake


Elizabete Witcel, Ivori Agostinho de Moraes, Judite Stronzake e Marli
Zimermann de Moraes

2. Pedagogia da Terra: Turma Paulo Freire – Espírito Santo


Dalva Mendes França, Magnólia de Souza Maia, Maria de Fátima Miguel
Ribeiro, Maria Nalva de Araújo e Nilvandia de Oliveira Prado

3. Pedagogia da Terra: Turma Paulo Freire – Mato Grosso


Maria Cristina Vargas, Rosana Cebalho Fernandes e Solange Serafim dos
Santos

4. Pedagogia da Terra: Turma Onalício de Araújo Barros


Deusamar Sales Matos, Maria Raimunda César de Souza e Maria Sueli
Ferreira Gomes

5. Pedagogia da Terra da Via Campesina: Turma José Martí


Marilene Hammel e Matilde de Oliveira de Araújo Lima

6. Pedagogia da Terra: formação de identidade e identidade de formação


Roseli Salete Caldart

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Apresentação

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra trabalha com a formação de


educadores e educadoras praticamente desde que nasceu. A partir de 1990 este
trabalho passou a incluir e dar muita importância aos cursos formais de Magistério
(agora chamado pela legislação de Curso Normal de Nível Médio), como forma de
combinar a formação com a escolarização das pessoas que atuam nas diversas
atividades do setor de educação. E desde 1998, o MST ampliou ainda mais esta tarefa
de formação de educadores e educadoras passando a desenvolver cursos de
graduação em Pedagogia, através de parcerias com diversas Universidades brasileiras.
O ITERRA tem participado diretamente destas práticas de educação e, mais
recentemente, também das parcerias que estão permitindo a democratização do
acesso ao ensino superior para as trabalhadoras e os trabalhadores do campo.
Este “Pedagogia da Terra” integra a coleção “Cadernos do ITERRA”, iniciada em
fevereiro de 2001 com o objetivo de fortalecer a dimensão da sistematização, da
pesquisa e da elaboração teórica no ITERRA e no MST, ajudando no processo de
formação do conjunto de educandos e educadores vinculados ao Movimento.
Trata-se de uma obra coletiva. Foi um Caderno organizado por pessoas que
integram o Coletivo de Coordenação do Setor de Educação do MST, com o objetivo
específico de registrar, socializar e refletir sobre as experiências do Movimento com os
cursos de Pedagogia.
São sete turmas desde 1998; duas delas já concluídas e as demais em
andamento ou iniciando. E há expectativas e possibilidades que estas experiências se
multipliquem e se ampliem também para outros cursos a partir de 2003. É urgente, pois,
o esforço de pensar com mais rigor sobre esta caminhada, extraindo lições que possam
melhor orientar os nossos próximos passos.
O processo de produção deste Caderno se deu ao longo de 2002. A decisão de
fazê-lo e de como seriam os seus textos foi tomada durante os primeiros meses deste
ano, em discussões feitas no setor de educação e no coletivo pedagógico do ITERRA.
A partir de junho as educandas e os educandos de cada turma foram desafiados a
produzir um texto que contasse e refletisse sobre sua experiência específica. Também

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combinamos de escrever um texto mais geral, que partindo do texto de cada turma
pudesse fazer um primeiro esforço de sistematização do conjunto das experiências. O
recorte de análise escolhido para este texto foi o da identidade de formação que vem
sendo construída através das turmas que passaram a levar este nome Pedagogia da
Terra, e a que reflexões nos desafia para que este esforço educativo do Movimento se
processe como práxis.
Aparecem registradas neste Caderno as experiências das turmas de Pedagogia
da Terra que desenvolvemos em parceria com as seguintes Universidades:
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ,
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Universidade Estadual do Estado do
Mato Grosso - UNEMAT, Universidade Federal do Pará - UFPA e Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS.
Outra parceria está iniciando com a Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN, além de outras tantas para realização dos cursos de nível médio, que
também continuam. E o desafio de que seus educandos e educandas comecem ou
continuem a registrar suas práticas e a refletir mais profundamente sobre elas, já fica
colocado aqui.
Agradecemos a disponibilidade e o esforço coletivo das turmas de Pedagogia da
Terra e de seus educadores, e em especial agradecemos às educandas e aos
educandos que ficaram com a tarefa da escrita de cada texto. Temos certeza de que foi
um desafio a mais na sua formação, e ao mesmo tempo a própria expressão material
dos processos educativos que têm vivenciado durante o curso e no conjunto das tarefas
de construção da Pedagogia do Movimento.
Nosso próximo passo coletivo deverá ser o de garantir que este Caderno possa
chegar para leitura e discussão do conjunto de educandas e educandos, e de
educadores e educadoras do MST e de nossas Universidades parceiras. E que esta
obra possa ser uma ferramenta a mais no enfrentamento dos grandes desafios que
temos pela frente.
Boa leitura e boa reflexão a todos e todas.

Coordenação Pedagógica do ITERRA


Veranópolis, dezembro de 2002.

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PEDAGOGIA DA TERRA
Turma Salete Strozake

Elizabete Witcel, Ivori Agostinho de Moraes, Judite Stronzake


e Marli Zimermann de Moraes 1

“Viva todo dia como se fosse seu último dia, seu último gesto, como uma prática diária de
viver pelos outros, sendo útil às outras pessoas que convivem com você”.
Salete Strozake

Quem éramos

No dia 19 de janeiro de 1998, chegamos na cidade de Ijuí, RS. Éramos pessoas


indicadas pelo MST para fazer parte da primeira turma de Pedagogia, oriundas dos
seguintes Estados: Sergipe, Maranhão, Ceará, São Paulo, Minas Gerais, Rondônia,
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia, Pará, Pernambuco e
Distrito Federal.
A discussão da indicação dos nomes se deu como forma de emulação política a
quem estava engajado no processo de luta do MST, especialmente nas áreas de
educação e de formação. Na prática, a presença também de algumas pessoas de
outros setores acabou desenvolvendo um intercâmbio intersetorial, envolvendo a troca
de experiências entre as tarefas concretas que cada pessoa desenvolvia em seu setor.
Dia 20 de janeiro aconteceu o vestibular do Curso. Foi um momento importante
de testar a noção de conhecimentos gerais, causando um certo apavoramento no
momento anterior à prova, pois não sabíamos o que viria pela frente, na questão do
estudo e da capacitação.
O curso iniciou oficialmente no dia 21 de janeiro de 1998 e teve seu ato de
encerramento no dia 04 de julho de 2001. Foi o resultado de uma parceria entre a
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI e o
Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária – ITERRA, com o
apoio financeiro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Foi

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Educando e educandas da turma. Texto recebido em novembro de 2002.

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fruto de um longo processo de luta dos trabalhadores Sem Terra e da sensibilidade às
causas sociais que a UNIJUÍ possui em sua história.
O nome escolhido para a turma foi Salete Strozake, em homenagem a uma
companheira e militante do Setor de Educação do MST que faleceu num acidente
rodoviário poucos dias antes de iniciar o curso, e para o qual a companheira também
tinha sido indicada para participar.
Logo após a instalação do Curso realizamos diversos seminários internos de
organização da Turma, pois os desafios estavam colocados e havia uma longa
caminhada pela frente em busca da realização dos objetivos a que nos propusemos
alcançar.

Objetivos do curso definidos pelo setor de educação do MST

1. Formar quadros - dirigentes para o MST, em especial para as tarefas de


educação e formação dentro da organização.
2. Especializar educadores/as nas diferentes áreas da educação fundamental para
atuar nos assentamentos e acampamentos da reforma agrária.
3. Avançar na formulação e implementação de uma Pedagogia que eduque o povo
na perspectiva de sua inserção consciente em processos de transformação
social.
4. Fortalecer a relação entre o MST e a Universidade, na perspectiva de um projeto
universitário vinculado a classe trabalhadora e ao desafio de trabalho imediato na
construção de um projeto popular de desenvolvimento para o Brasil.

Proposta do curso da Universidade

O curso estava organizado para funcionar em sistema de alternância, com


etapas presenciais, no período de férias, meses de: janeiro, fevereiro, junho e julho; e
nos demais meses do ano realizavam-se os trabalhos do tempo a distância, nos locais
de origem.
A dinâmica curricular combinava Núcleos de Estudos e Eixos Temáticos. Os
Núcleos de Estudos foram divididos entre os Estudos Básicos e Pedagógicos, comuns
a toda a Turma, e o Núcleo dos Estudos Específicos que dividia a turma em quatro

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opções de áreas de conhecimento para atuação nas Séries Finais do Ensino
Fundamental: Estudos Sociais, Língua Portuguesa, Ciências, ou Matemática.
Os Eixos Temáticos propostos para os sete Semestres tinham como objetivo
principal aglutinar as temáticas oriundas das práticas dos Estudantes Sem Terra
estabelecendo a seqüência da reflexão e a articulação das várias disciplinas em torno
dos mesmos temas. Os Eixos Temáticos abordados foram: Iniciação Científica,
Conhecimento, Historicidade da Educação, Conhecimento e Linguagem, Escola,
Currículo, Ensino e Aprendizagem, Cultura e Arte e Sistematização.
A implementação da proposta de Curso exigiu uma nova forma de atuação da
própria Universidade, por se tratar de um Projeto Interdepartamental que abrangia os
seguintes Departamentos: Pedagogia – DePe, Biologia e Química – DeBQ, Física,
Estatística e Matemática – DeFEM, Filosofia e Psicologia – DFP, Ciências Sociais –
DCS e Letras e Artes – DeLA.
Para darmos conta das mais de 3225 horas de estudos do Curso, distribuídas
entre os Estudos Básicos, os Estudos Pedagógicos e os Estudos Específicos,
precisávamos estudar durante 8 horas-aula por dia na Universidade, dividindo as
demais horas do dia e da noite entre os estudos complementares, a organização
interna e as atividades de sobrevivência da turma.

A moradia da turma

Em algumas etapas ficamos hospedados na Pensão do Schultz, próxima ao


Campus da UNIJUÍ, onde residiam outros estudantes da Universidade; e em outras
etapas ficamos na Escola Estadual de Ensino Fundamental Carlo Zimpel, um pouco
mais distante. Em nenhuma etapa tivemos acesso à casa do estudante, o que
pretendíamos desde o início.
Em todas as etapas a moradia foi um problema porque não tínhamos lugar certo
para ficar. No início do curso, realizamos muitos debates sobre a questão de morarmos
juntos, toda a turma, ou não. Havia duas opiniões fortes: 1) que deveríamos encontrar
na cidade várias casas pequenas e nos dividirmos em grupos para morarmos, porque
estava difícil encontrar uma única casa que alojasse a todos; e 2) que deveríamos,
mesmo no aperto, nos manter todos no mesmo local para facilitar o processo

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organizativo da turma. Depois de acalorados debates chegamos à conclusão de que o
melhor era ficar juntos, na mesma moradia. Avaliações posteriores afirmaram que foi
uma decisão política acertada.
A questão da moradia no decorrer do curso foi um elemento educativo, pois
sempre exigiu que nos organizássemos para sobreviver. Tivemos que pagar pelas
hospedagens e o fator econômico nos possibilitava discussões políticas e a construção
da unidade da turma.
Na 4a etapa chegamos a propor um acampamento no Campus da Universidade,
dado o alto preço da pensão. Após algumas negociações conseguimos ficar alojados
na Escola Carlo Zimpel, onde dormíamos em forma de acampamento, com colchões no
piso, fazíamos as refeições, estudos e reuniões em um pequeno refeitório. Os estudos
fora da Universidade aconteciam embaixo das árvores, porque as cinco salas de aula
tinham sido transformadas em alojamento, e não havia ambiente de estudo ali. A
situação nos exigiu uma capacidade maior de lidar com as condições de infra-estrutura,
e também soubemos que foi a primeira vez na cidade que uma turma de educandos e
educandas ficava hospedada numa Escola para poder estudar. Isto causou espanto,
reflexões e protestos entre a população local.
Onde estávamos hospedados se tornava uma casa do MST, com nossas rodas
de prosa, nossas culturas, nossos símbolos, nossas crianças... Como a maior parte de
nosso tempo era gasto com os estudos comprávamos o jornal Folha de São Paulo e
Correio do Povo para nos mantermos atualizados sobre a conjuntura; e quando
conseguíamos televisão emprestada assistíamos aos noticiários. A preocupação era de
nos manter ligados aos acontecimentos.

A organicidade interna

No início da primeira etapa tínhamos uma coordenação interna, sendo que nesta
primeira fase do processo nos organizávamos em equipes de trabalho e em grupos. Os
coordenadores de cada grupo constituíam a coordenação geral da turma.
Na terceira etapa a necessidade obrigou-nos a repensar a nossa forma de
organização. Passamos a nos organizar em núcleos de base e setores de trabalho
(pedagógico, comunicação e secretaria, finanças e infra-estrutura). Os núcleos de base

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tinham dois coordenadores e respondiam pela coordenação geral da turma. Cada setor
de trabalho tinha coordenador ou coordenadora que se articulavam através da
coordenação executiva para garantir a execução das decisões da assembléia, via
setores. Tanto os coordenadores de núcleos de base quanto os coordenadores de
setores mudavam a cada etapa, porque acreditávamos ser um exercício político e
pedagógico assumir a tarefa de coordenar. Neste mesmo período foi criado o Coletivo
de Acompanhamento Político e Pedagógico – CAPP, com pessoas da turma que
representavam uma referência política interna e também externa, para a Universidade e
para o MST.
Nossa organicidade nos trouxe três lições principais: a) importância de
redimensionarmos a utilidade e aproveitamento do tempo: tínhamos o tempo para os
trabalhos de sobrevivência e sobrava um bom tempo para os estudos; b) aprendemos
que a questão da organicidade interna está intimamente ligada ao desenvolvimento do
ambiente educativo e da intencionalidade pedagógica. Uma das maiores preocupações
no decorrer do curso era de seguir as linhas orgânicas do MST; c) o coletivo assimilou
com o passar das etapas que era preciso ter uma organicidade interna para atingirmos
os objetivos do curso, construindo um guia para nossas ações e posturas, sintetizado
no Regimento Interno da Turma.
Vimos que o fluxo de informações possibilitava a construção das idéias coletivas
e das discussões. Muitas vezes uma mesma informação chegava de dois jeitos, porque
cada coordenador ou coordenadora de núcleo ou de setor fazia sua interpretação da
discussão e repassava do seu modo, sem compreender a natureza da questão. Era
preciso desenvolver a habilidade de coordenação, desafiar-se a fazer uma boa reunião,
planejar antes a pauta, analisar o conjunto da turma. Organizar com antecedência uma
reunião e montar a pauta. Aprendemos que uma reunião também depende do
planejamento. Este desafio pedagógico se colocava cotidianamente para a turma, pois
era muito comum tecermos longas críticas às estruturas escolares pouco eficientes,
porém, na prática do Curso encontrávamos dificuldades de organizar internamente
nossa própria turma.
No início não conseguíamos compreender com clareza a questão da disciplina,
mas com o passar do tempo fomos assimilando que a disciplina é que media a

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convicção e a consistência ideológica da turma, no sentido de fazer mais e melhor,
ultrapassando o que previam os encaminhamentos conscientes. Havia uma relativa
observância das decisões tomadas e do cumprimento dos deveres. Aprendemos que a
disciplina era parte do processo organizativo, porque não era possível avançarmos na
organicidade sem ela.
Nos momentos em que os princípios foram entendidos e habitaram o coração
dos militantes, a organicidade andou bem, mas nos momentos em que esquecemos os
princípios a organicidade interna também capengou. Fatos diversos de indisciplina
ocorreram, como por exemplo, as entradas e saídas constantes da sala de aula, sem
necessidade. Algumas vezes tivemos que trazer um balde com água para lavar o rosto
e outro para beber, evitando assim as saídas e amenizando o sono na hora dos
estudos.
A partir da 4a etapa passamos a elaborar os pareceres sobre o desempenho de
cada educando durante a etapa presencial, ficando a tarefa de elaboração e de envio
às direções estaduais para o Coletivo de Acompanhamento Político e Pedagógico. Os
pareceres individuais sempre foram elaborados na intenção de dialogar com cada
companheiro ou companheira da turma, apontando limites políticos e incentivando
mudanças.
Uma lição importante do processo de acompanhar a nós mesmos era que dirigir
não significava mandar, mas acima de tudo o papel do CAPP era de formular,
acompanhar e apontar os passos que se deve dar em direção aos objetivos
fundamentalmente estratégicos. Ninguém dirige com segurança sem elementos
conscientemente assimilados e sem colocar o todo com primazia sobre as partes. E
para isso é preciso que se conheça o todo. O CAPP fazia reuniões internas que
atravessavam as madrugadas, no sentido de buscar uma análise mais precisa do
movimento interno do processo e tirar linhas de ação, ajudando a turma para que
também tivesse a visão do todo do processo em andamento.
Não realizamos essa caminhada sozinhos. Também foi importante o
acompanhamento externo. Vivemos períodos em que necessitamos das contribuições e
acompanhamento dos companheiros e das companheiras do MST que passavam pelo
curso, e ou que nos acompanhavam a distância. O que fomos e até onde chegamos

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também veio desta contribuição externa. O acompanhamento externo refletia a
importância e a necessidade histórica da educação do povo Sem Terra. Também
quando voltávamos para os nossos Estados de origem, fazia bem ter alguém que nos
acompanhasse na realização das tarefas, fazendo as interlocuções necessárias.
Outra situação que gerou muita tensão na turma foi a questão das saídas nos
finais de semana. Houve uma decisão coletiva de permitir a saída de cada educando
apenas durante um final de semana por mês, e a comissão de ética e disciplina era a
responsável pelo controle das saídas. O nosso argumento era a importância da
convivência social nos finais de semana, para fortalecer a amizade e o
companheirismo. E, de fato, foi nestes dias em que mais realizamos o processo de
formação paralela ao currículo oficial do curso.

Fazer a formação

Tínhamos os objetivos do curso, mas concretizá-los exigia uma longa


caminhada. Foi somente na 5a etapa do curso que começamos a nos perguntar sobre o
tipo de formação que estávamos tendo: nos perguntamos sobre o que é dialética, sobre
o que é marxismo...; sobre quem foram Marx e Engels... sobre por que a educação do
MST se fundamenta em pensadores como Makarenko, José Martí, Paulo Freire. Em
nossa trajetória aos poucos fomos ficando insatisfeitos em estudar somente alguns
conteúdos e não outros. Aprendemos e assimilamos mais ao final do curso que
tínhamos que construir um plano de formação paralelo.
Até a terceira etapa fomos mais moldados pelas circunstâncias do que forjamos
as circunstâncias. Nossa prioridade era fazer os trabalhos solicitados pela
Universidade, e não pensar o conjunto de uma proposta de formação para a turma. A
preocupação precisava ser equacionada no sentido de compreender o que era que nos
fazia sermos mais atentos aos conteúdos. Por que a turma imprimiu este ritmo na sua
trajetória e forjou sua conduta com este caráter? Foram as circunstâncias históricas que
encontramos na universidade que nos obrigaram a nos comportar de determinada
forma que nos deu uma identidade, mas não era só isto. Tinha também a condição de
que antes de entrar para a universidade não tínhamos experiências na área de estudos,
deste nível.

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Depois de idas e vindas percebemos que a elevação do nosso nível de
consciência política – pedagógica estava abaixo das necessidades que tínhamos. Um
dos problemas identificados era quanto a formação científica, político-ideológica e
pedagógica que todos, independente de serem educadores de sala de aula ou não,
precisam ter. Nossa discussão começou sobre a necessidade de desenvolvermos a
consciência em torno de aspectos estratégicos do MST e do Projeto Popular para o
Brasil.
No início desta descoberta tivemos um certo imediatismo; não tínhamos um
plano de metas e um plano estratégico elaborado para todas as etapas do curso. O
salto de qualidade aconteceu no momento que percebemos que era preciso aproveitar
ao máximo os estudos e o acúmulo histórico da Universidade. Mesmo assim
precisávamos refazer o caminho percorrido até a metade do curso, e discutir um Plano
de Formação Política, para elevarmos nosso nível de consciência. A necessidade nos
obrigou a combinar a formação universitária com a formação política do MST.
Aprendemos que para atingir os objetivos do curso era preciso clareza política,
humildade e consciência aberta. E era preciso também construir as nossas próprias
referências práticas e teóricas. Esse foi um dos maiores aprendizados: ser sujeitos do
nosso processo de formação.
Queríamos ser formados para dar aulas, queríamos ser formados e educados
para ajudar no processo de libertação da classe trabalhadora. Por isso resolvemos ser
os educadores de nós mesmos, passando a acreditar que era possível elaborar, propor
formas de avançar o nível de conhecimento técnico, político e ideológico.
Elaboramos um plano de formação complementar, que na época teve como
objetivo principal preencher as lacunas de formação que estavam sendo percebidas no
curso. Este plano não chegou a superar todas as lacunas e necessidades da turma,
ficando como desafio pós - curso: continuar a estudar!

O nosso jornal interno “Pedagogia da Terra”

Desde a 1a etapa, através de nossa comissão de Comunicação, começamos a


elaborar um pequeno jornal da turma. O objetivo era o de divulgar aos outros

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estudantes da universidade quem era a turma do MST, e também enviar informações
aos estados de origem dos educandos e das educandas.
Discutimos sobre o nome do jornal buscando algo que nos identificasse e nos
diferenciasse na Universidade. Houve várias sugestões de nomes. A conclusão foi que
a distinção entre nós e os outros estudantes era a terra, porque mesmo que a origem
de muitos deles fosse o campo, já tinham perdido os laços com a terra. Então o nosso
jornal passou a ser chamado de Pedagogia da Terra. O que não sabíamos naquele
momento é que esse nome iria ter um papel histórico em nossa turma e se transformar
em marca do curso.
Na segunda etapa do curso, sem grandes discussões, o jornal foi mudando de
caráter, ficando mais para uso interno. A equipe de comunicação sistematizava as
discussões internas das instâncias e elaborava o jornal com base nas linhas de ação
tiradas. O jornal Pedagogia da Terra passou a servir como um instrumento de
construção da unidade interna da turma.

Construção da identidade coletiva

No começo do curso nos anos de 1998 e começo de 1999, ficamos acomodados


quanto à construção da identidade coletiva da turma. Os embriões que ajudaram a
construir a identidade eram o nome do jornal, as celebrações das místicas, as
apresentações públicas e os debates em sala de aula com os professores. Tivemos
problemas regionais e culturais, nos apegando a questões sem relevância para o
processo. Não conseguíamos compreender as diferenças culturais que havia entre nós.
Só conseguimos superar isso no momento em que tivemos abertura para entender a
dimensão nacional que tem o nosso Movimento e nos desafiamos a vivenciar isso no
cotidiano da turma.
Nas primeiras etapas do curso experimentamos uma fase de encantamento com
a conquista do MST de termos vagas no ensino superior, chegando a nos identificar
como “acadêmicos do MST”. Esta compreensão mais ingênua da turma foi sendo
superada na medida em que fomos avançando na organicidade interna, que exigia uma
postura e um ritmo de trabalho e estudo comum nos demais cursos do nosso MST. Isto
nos fez perceber que mesmo estando num curso formal éramos “estudantes do MST”.

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Com o passar do tempo fomos percebendo também que precisávamos ter uma auto-
afirmação do nosso coletivo perante a Universidade.
Na 3a etapa tivemos a ameaça de fechamento do curso porque o INCRA não
tinha feito o repasse de recursos e a Universidade não tinha condições de assumir
todas as despesas. Tivemos que nos mobilizar enquanto Universidade e enquanto MST
para não perder esta conquista. Depois de resolvido o impasse com o INCRA ainda foi
preciso fazer um acordo com a Universidade de divisão da responsabilidade financeira:
a UNIJUÍ ficou responsável pelas despesas com os professores e outros gastos de uso
de sua estrutura física, e o MST ficou responsável pelas passagens, hospedagem e
alimentação dos estudantes. Neste momento a questão econômica nos apertou, porque
individualmente ninguém tinha condições de se manter fazendo o curso e o Movimento
também não tinha recursos suficientes para isso. Recorremos à nossa organização
para partilhar os sacrifícios e garantir o curso até o final.
Realizamos no decorrer das três primeiras etapas um debate político sobre ser
professor e ser militante. Gastamos bastante tempo discutindo e tentando entender
essa contradição interna; afinal compreendemos que tanto o professor quanto o
militante trabalham com seres humanos, tendo ambos os desafios próprios de ser
educador do povo. Nesse processo de discussões e práticas reafirmamos que todo
militante deve ir para o meio do povo como organizador, agitador, propagandista,
educador, formador. Nos demos conta então que era necessário dar um passo adiante
no processo de formação; não bastava aprender somente didáticas e dinâmicas, era
preciso ir além.
Em muitos momentos tivemos problemas em saber se o político-ideológico-
pedagógico-popular comanda o universitário, ou se é possível juntar as duas coisas
num mesmo processo. Ao final do curso avaliamos que era possível aproveitar o que a
Universidade tem a nos ensinar e que é preciso fazer o nosso caminho político dentro
dela sem esquecer nunca de que, acima de qualquer coisa, somos Sem Terra.
Novas contradições surgiam a todo o momento. Uma delas manifestou-se de
forma mais acentuada durante a 5a etapa, quando uma pessoa da turma decidiu não
mais participar da nossa organização interna, optando apenas por freqüentar as aulas
da Universidade. Conforme compromissos firmados no início e o engajamento da turma

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na manutenção do Curso ficou incompatível manter tal situação, o que levou à
realização de inúmeras sessões de negociação com a Universidade e com o conjunto
do MST. Nesta etapa chegamos a realizar uma greve para garantir nossa autonomia
organizativa e política enquanto estudantes Sem Terra.
Os momentos de crise serviram para forjar uma virtude da turma, a do valor da
superação diante dos problemas. De agarrar os limites e impasses do processo como
algo que servisse para impulsionar a nossa organização interna. Ou seja, tivemos que
pegar o "limão e fazer as limonadas". Os conflitos que existiram, foram ricos e em
muitas ocasiões decisivos para a continuidade do processo.
Percebemos que era preciso enfrentar alguns limites nos debates com os
professores sobre os conteúdos e a metodologia de ensino na sala de aula, por
exemplo. Isto também fez parte da construção da identidade de nossa turma;
aprendemos que trazer a nossa vivência nos assentamentos e acampamentos para a
sala de aula era vital para fluir o estudo e o debate.
Outro elemento da construção de nossa identidade foram os murais que
chamavam a atenção de quem passava em frente. As crônicas eram elaboradas a cada
dia por um núcleo de base.
Uma outra lição coletiva aprendida foi a de que a mística deveria manifestar-se
através de valores, práticas, e convivências coerentes. Realizávamos antes de iniciar
as aulas, todos os dias, um momento de celebração ou encenações. Tivemos vários
problemas nesta prática; um deles as desculpas que encontrávamos sobre a falta de
tempo para sua preparação. Aprendemos aos poucos que só não tinha tempo quem
não sabia aproveitá-lo. Cada núcleo de base fazia uma vez por semana a celebração
da mística.
A turma foi convidada para fazer duas apresentações em momentos de mística
do Movimento: 1) coordenamos e apresentamos a mística no ato de abertura da I
Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo; para participarmos desse
evento também confeccionamos um colete vermelho com o nome da turma; 2) A
direção nacional do MST delegou à turma a tarefa de fazer a mística de abertura do IV
Congresso Nacional do MST em agosto de 2000. Passamos todos os finais de semana
e noites ensaiando estas apresentações.

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Aonde íamos as bandeiras do Brasil e do MST caminharam conosco. Teve uma
vez que algumas pessoas da Universidade queriam nos impedir de hastear as
bandeiras e hasteamos mesmo assim, por entender que os símbolos, a identidade, os
princípios do MST são valores, são patrimônio do povo e estando em qualquer lugar
devem estar junto e que nós não estávamos lá, como estudantes ou acadêmicos, nós
éramos o MST na Universidade, queríamos ser militantes–estudantes, e esse
sentimento Sem Terra era algo que corria em nossas veias, estava no sangue, na alma.
Sempre fomos intransigentes na defesa dos símbolos dentro da Universidade,
defendemos no Departamento de Pedagogia o uso da bandeira no mural, nos
corredores, não aceitamos que entrasse em pauta a negociação da nossa identidade.
Consideramos que a turma I de Pedagogia da Terra foi um ensaio de vivência da
Pedagogia do Movimento. Em nosso processo de construção da identidade coletiva
ficaram várias brechas, que não foi possível superar até o final do curso. Ficou o
desafio de implementar junto aos nossos coletivos as práticas formativas
experimentadas na Pedagogia da Terra. O mais importante é que ela continue sendo
vivenciada em outros coletivos e que outras turmas de Pedagogia possam refletir e
aprofundar este processo.

Sistema de Avaliação

Trabalhamos com dois mecanismos. 1) Pela universidade tivemos as notas das


disciplinas. 2) A turma construiu as avaliações de crítica e autocrítica, seminários de
avaliação do processo, assembléias gerais, parecer individual, definições de trabalhos
com prazos para a realização, onde se tentava avaliar a pessoa na sua totalidade, as
relações sociais, o compromisso, a pertença, o trabalho, a confiança no coletivo.
Na primeira etapa do curso realizamos a critica e autocrítica nos grupos de
estudo; na segunda etapa realizamos nas comissões de trabalho, e a partir da terceira
etapa realizamos na turma toda. Todos os seminários realizados de critica e autocrítica
marcaram a história da turma, em especial o da 4a etapa, em julho de 1999. Foi um
processo intenso e obrigou-nos a renunciar, a construir os novos valores nas relações
cotidianas. A convivência durante 24 horas por dia juntos nos possibilitava conhecer
cada companheiro e companheira em suas virtudes e em seus limites.

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Com esse processo aprendemos que o maior educador da personalidade e do
caráter é o coletivo; só o coletivo é capaz de nos desnudar e apontar as linhas de
conduta pessoal, perante a estratégia de nossa organização. Esse aprendizado
também possibilitou a construção com maior força da identidade coletiva da turma.

O Estudo e a Pesquisa

As dúvidas sobre o que é estudar, o que estudar e porque estudar percorreram


todo o nosso curso. Aprendemos uma lição que estudar e pesquisar também é uma
missão revolucionária, desde que encarada com seriedade. Aprendemos que tínhamos
que pesquisar para melhor compreender e atuar na realidade, para mudar as coisas, e
que nossas pesquisas não poderiam ter interesse puramente acadêmico ou pessoal.
Tínhamos que estudar para enxergar melhor a realidade; saber onde estávamos
pisando para avançar cada vez mais na luta. A nossa contribuição à Organização se
daria em três níveis; 1) a nossa prática de militância e nosso compromisso com a causa
dos trabalhadores Sem Terra; 2) com o nível de conhecimento científico adquirido
nestes anos; 3) com a pesquisa e escrita monográfica que seria a sistematização do
conhecimento de nossa realidade, embasada na ciência.
Elaboramos os nossos projetos de pesquisa inspirados em Mao Tse Tung: o
militante que não pesquisa, não tem direito à palavra. A partir da 5a etapa entramos na
fase de começar a produzir o texto da monografia, o que exigiu disciplina de leituras.
Foi neste momento que constatamos o quanto éramos fracos na leitura e interpretação.
Essa constatação gerou uma crise interna, nos ajudando a redimensionar o estudo.
Estudávamos até altas horas da madrugada, debatendo livros, conversando sobre um
autor e fazendo ligações com os problemas práticos da nossa vida de povo do campo.
Para resolver o problema da qualidade de nossos conhecimentos teóricos
tivemos que nos organizar em brigadas temáticas, necessidade que surgiu na 4a etapa
do curso. Reunimos as pessoas que tinham a mesma linha de pesquisa e em cada
brigada tínhamos um animador escolhido entre nós próprios. Esta iniciativa ajudou um
pouco nas referências bibliográficas, na interlocução e cooperação nos estudos.
Durante o processo de elaboração da pesquisa tivemos os orientadores da
Universidade e pessoas do MST ou próximas. O papel dos orientadores foi decisivo no

18
processo de elaboração e apresentação. Quem teve dificuldades em ter o seu
orientador, também teve dificuldades em elaborar e defender as idéias.
Na 6a etapa realizamos as bancas de defesa pública dos trabalhos que foram um
momento de debate e aprofundamento dos temas. Nas bancas estavam pessoas do
MST, da Universidade e outras pessoas próximas. Alguns companheiros e algumas
companheiras da turma tiveram que refazer seus textos. Mas mais importante que a
nota final foi o processo que desenvolvemos de escolher o tema junto com o coletivo de
origem, fazer o projeto de pesquisa, fazer a pesquisa de campo, fazer a pesquisa
bibliográfica, elaborar as idéias e apresentar às bancas e aos nossos coletivos de
origem.
Nosso maior problema sempre foi o de fazer análises coletivas da realidade, de
estudar coisas que nos ajudassem a crescer na organização. Aprendemos com o
decorrer do curso que o momento que estávamos vivendo requeria conhecimentos
profundos, reflexão dialética, desenvoltura e agilidade mental para de fato fazermos um
curso que atingisse os objetivos. O desafio era de não apenas estar na realidade, mas
de conseguir transformá-la.
Neste aspecto do estudo e da pesquisa tiramos outras duas lições importantes.
Primeiro: não poderíamos nos iludir de que sairíamos da Universidade pessoas
sabedoras de tudo. Segundo: não poderíamos estar mal preparados, do ponto de vista
do conhecimento, para trabalhar no MST. Nossa organização merecia muito mais do
que um militante que tem um conhecimento superficial da realidade e da ciência.
Fazíamos também as leituras dirigidas designadas pelo setor de educação do
MST. Esta prática tinha como objetivo nos ajudar a aprender a ler de verdade. Foi um
exercício de sistematizar e organizar as idéias. Muitas vezes a turma via o controle de
leitura como “castigo”, e fazia este exercício apenas quando sobrava tempo; um erro de
compreensão que tentamos corrigir coletivamente, mas um pouco tarde. Em algumas
etapas chegamos a realizar seminários dos livros lidos, baseados em questões
norteadoras do estudo.

19
Visitas, apresentações públicas e atividades culturais

Tivemos algumas visitas internacionais durante o curso. Como esquecer a


presença de Aleida Guevara, deixando o exemplo de simplicidade e humildade?
Também as brigadas de Portugal, da Espanha, da França, da Argentina, da Itália...
As visitas, também de dirigentes do Movimento, nos ajudavam a animar e
oxigenar o movimento interno do processo, possibilitando abrir os horizontes, obter
conhecimentos gerais, trocar experiências e nos reanimar na caminhada.
A disciplina da turma ficou como marca em todos os locais onde nos
apresentamos ao público. A Universidade quando promovia seminários convidava
representantes da turma para estar nas mesas. Este fato exigia que a turma se
mobilizasse em torno do jeito e o conteúdo das exposições, porque era o MST que
estava na mesa. Nestes momentos fazíamos momentos de mística que acabavam
marcando mais do que o conteúdo de nossas falas.
Quando tinha alguma data importante do MST, fazíamos caminhadas públicas da
pensão até a Universidade. Fazíamos manifestações nas paradas de ônibus. Tentamos
manter assim no imaginário dos estudantes e dos professores a luta dos Sem Terra.
As noites culturais marcaram como um momento de integração entre a turma e
outros estudantes e professores. Ali resgatávamos a cultura popular das várias regiões
do Brasil. Comemorávamos as datas importantes de lutas e dos aniversariantes. Nos
dias mais difíceis do processo é que aconteceram as místicas mais bonitas e alegres da
turma.
Realizávamos também sessões de cinema. Não tínhamos televisão e nem vídeo,
mas sempre pedíamos emprestados de algum professor ou de outros estudantes. E
nos domingos à tarde, ou em algum sábado assistíamos bons filmes que ajudavam a
abrir os horizontes e a obter conhecimentos gerais.
Outra atividade cultural era participar dos bailes do Diretório Central dos
Estudantes - DCE no centro da cidade. Íamos para fazer relações públicas e dançar.
Na convivência social e lazer, o princípio básico nos indicava que a consciência
social é fruto da convivência social, por essa razão é que nos dedicávamos a promover
momentos de integração coletiva. Porque não queríamos apenas passar sentados em
sala de aula ou de cabeça enfiada nos livros. Outros espaços de convivência social

20
criados foram jogos de futebol, o mutirão de embelezamento na escola, e a participação
no I Festival de Canções da Reforma Agrária. Também conseguimos emprestado um
aparelho de som para ouvir as músicas populares brasileiras e latino-americanas.

Ciranda Infantil

Em todas as etapas tivemos a presença dos Sem Terrinha conosco. Na pensão


ou na escola onde ficávamos hospedados não tinha um lugar adequado para a
organização da ciranda infantil, e por isso negociamos uma sala de aula na
Universidade. Fomos prontamente atendidos. A turma contatava com as educadoras
infantis, que vinham dos acampamentos ou assentamentos para educar e cuidar das
crianças.
Decidimos que o núcleo de base que tivesse criança era o responsável para
cuidar das roupas e cada dia um núcleo de base era o responsável para carregar as
mochilas e alimentos da pensão até a Universidade. As crianças Vinícius e Luz Helena
foram os primeiros a fazer amizades com a comunidade universitária e a vizinhança.
As questões que se mantiveram presentes o tempo todo no curso foram: de
quem são os Sem Terrinha? Como trabalhar no curso esta dimensão da educação
infantil?

Trabalho

O objetivo maior era o estudo e o estudo também deveria ser visto como
trabalho, mas a realidade obrigou-nos a realizar diversos tipos de trabalho, como por
exemplo: as pastas de arquivos, para termos um registro histórico, uma memória
completa de nosso caminho, e que isso requeria também o trabalho de sistematizar o
processo educativo vivenciado pela turma; limpar os banheiros e o refeitório; fazer o
café da manhã, a lavação das panelas e pratos; elaborar o jornal interno; fazer o mural;
conversar com os professores, organizar as metodologias de reforço das
aprendizagens, organizar os seminários de controle das leituras; organizar a educação
infantil; fazer as cobranças das quotas-parte, as negociações para baratear as
hospedagens; buscar recursos próprios através da produção de biscoitos/doces/cafés e
da venda do artesanato trazido pelos companheiros do Ceará; fazer as compras no

21
mercado; fazer prestação de contas; e outros tantos trabalhos básicos para o
andamento do coletivo.
Em assembléia geral interna era discutido e aprovado quem ocuparia quais
postos de trabalho. As definições baseavam-se em dois critérios 1) as habilidades
individuais e 2) as necessidades coletivas.
O desafio constante foi o de avançar nos postos de trabalho, e criar um método
de trabalho, onde havia prazos para a realização das tarefas; organizar o trabalho, em
vista das necessidades. Aos poucos passamos a entender que o trabalho é um
elemento fundamental da nossa formação.

As finanças

Tivemos que nos organizar e elaborar um orçamento por etapa com as receitas e
as despesas. Todos precisavam estar informados e ajudar a decidir sobre as questões
econômicas. A prestação de contas era quinzenal e enviada aos núcleos de base para
estudo antes das assembléias gerais.
As finanças sempre foram uma questão delicada. Era preciso ter maturidade
suficiente e compreender que esta questão também tinha que entrar em nosso
ambiente educativo.
Na 5a etapa discutimos a importância de termos um planejamento financeiro para
arrecadação própria de finanças, sem depender só do MST. Tivemos sempre que
correr atrás de dinheiro para não deixar dívidas em Ijuí.
Havia uma certa rigorosidade no controle de desperdício dos alimentos,
principalmente nos finais de semana, onde o conselho fiscal ficava atento a essa
problemática. Para reduzir gastos definimos que cada pessoa traria de casa alguns
produtos alimentícios. Cada companheiro e cada companheira se comprometia também
em conseguir materiais didáticos. E desde a primeira etapa todos nós tivemos que
pagar uma quota-parte de 100 reais por mês-etapa.
Íamos aos assentamentos da região solicitar contribuições em mandioca, batata-
doce, abóbora, hortaliças. Solicitávamos cestas básicas dos acampamentos para ajudar
em nossa alimentação. Vivíamos o tempo todo numa espécie de “período especial”.

22
Reflexão escrita

Criamos desde a primeira etapa o tempo reflexão escrita, que era um momento
do dia destinado para pensar e colocar no papel as lições do processo. Essa iniciativa
sempre foi um problema grave a ser resolvido, porque ninguém tinha hábito de
escrever.
Com esse exercício aprendemos que, no momento em que estamos refletindo no
papel, estamos desenvolvendo três capacidades ao mesmo tempo. A primeira
capacidade desenvolvida é a arte de analisar e estudar a realidade, porque nos exige
parar e repensar o que está acontecendo ao nosso redor. A segunda capacidade
desenvolvida é a arte do escrever, de organizar as idéias no papel. E a terceira é a
capacidade de desenvolver a pedagogia do exemplo, no sentido de saber que é só
fazendo que se aprende a fazer, e fazer primeiro para depois cobrar dos outros.
O exercício da reflexão escrita nos ajudou a desenvolver habilidades para
escrever a monografia. Só sentimos a importância de escrever as idéias no papel
quando tivemos que escrever a monografia; até então não tínhamos sentido o aperto.

Relação turma e UNIJUI

Em nossa trajetória universitária, houve momentos de tensão e momentos de


harmonia, mas o que predominou foi o conflito com a Universidade. Nas reuniões do
Colegiado do Curso cada parte buscava imprimir sua lógica no processo de formação
da turma.
Houve também uma tensão entre o núcleo pedagógico e o núcleo específico de
estudos. O maior tempo era gasto com as atividades do núcleo específico, mas isso
nos parecia contraditório com o objetivo central do curso que era o de nos formar
pedagogos e pedagogas da terra, educadoras e educadores do MST.
No final do curso tivemos mais um conflito de compreensão e de
encaminhamento entre a turma, a Universidade e os demais estudantes. De acordo
com a orientação do DCE – Diretório Central de Estudantes e da UNE – União Nacional
de Estudantes as turmas que estavam concluindo o Curso deveriam boicotar ou zerar o
provão do Ministério da Educação, como forma de repúdio às políticas neoliberais do
governo. A nossa turma optou por zerar o provão, ou seja, entregar a prova em branco,

23
mas os demais estudantes acabaram fazendo a prova, deixando nossa turma no
isolamento perante o conjunto das turmas de Pedagogia e a Universidade. Foi o preço
que pagamos pela fidelidade a uma decisão coletiva e por uma leitura inadequada da
conjuntura política daquele momento.

O planejamento

Descobrimos no decorrer do curso que era importante planejar os passos,


elaborar uma metodologia de estudo e trabalho. Não tínhamos objetivos a atingir
enquanto turma. O que tínhamos eram os grandes objetivos do curso, mas não o
caminho traçado de como atingir às expectativas de nossa Organização.
Tiramos a lição de que era fundamental criar um método, traçar o caminho que
nos ajudaria a chegar até determinado fim. Muitas vezes nosso método era o improviso,
baseado mais no estilo de cada um do que nos aspectos organizacionais e políticos.
Fomos aprendendo que: 1º) era necessário criar um instrumento metodológico que
reunisse a discussão dos objetivos do curso, do foco da etapa, da ementa das
disciplinas, da indicação dos professores da etapa, da organicidade interna, do plano de
metas da etapa e para todo curso, e do plano específico de nossa formação político-
pedagógica paralela ao currículo da Universidade. 2º) Era necessário trabalhar com os
professores da Universidade, estreitando as relações, fazendo a recepção no primeiro
dia de aula, conversando antes sobre a turma, sobre a metodologia que gostaríamos de
trabalhar nas aulas, e em cada intervalo ou no final do dia discutir com o professor,
buscando construir junto com ele o processo de conhecimento. 3º) Era também
necessário desenvolver a emulação interna como forma de reconhecimento do esforço
individual e do espírito solidário.

O entusiasmo revolucionário de uma coletividade é saber que nunca estará só na


construção da liberdade.
Na simplicidade agradecemos o carinho,
No carinho agradecemos o cuidado,
Com orgulho agradecemos as exigências,
Nas exigências agradecemos o respeito,
Com encanto agradecemos a confiança do Movimento.
E da convicção que nos une na história,
fica a certeza da vitória.
(extraído do convite de formatura)

24
PEDAGOGIA DA TERRA
Turma Paulo Freire – Espírito Santo

Dalva Mendes França, Magnólia de Souza Maia, Maria de Fátima Miguel


Ribeiro, Maria Nalva de Araújo e Nilvandia de Oliveira Prado 1

“Nada é mais poderoso do que uma idéia que chega no tempo certo.”
Victor Hugo

Na história das classes trabalhadoras brasileiras registra-se mais um capítulo de


negação do conformismo e aceitação histórica do destino pré-determinado de que para
os excluídos de tudo “sempre foi assim”. Os Trabalhadores Sem Terra recusando-se a
permanecer excluídos da terra, da dignidade, do conhecimento, da educação / escola /
Universidade, estão construindo a história calcada em outra lógica, a lógica da
construção de uma sociedade baseada nos pilares da socialização dos bens
construídos pela humanidade. É nessa perspectiva que se inserem os cursos de
formação de educadores que vêm sendo realizados em parcerias com Universidades
brasileiras, tendo como participantes os educadores e as educadoras que atuam em
áreas de assentamentos do Movimento Sem Terra – MST em todo Brasil. São homens
e mulheres que tecem o cotidiano de lutas, enfrentamentos, dificuldades no campo
brasileiro, porém que estão cheios de vontade de escrever nas páginas da educação
brasileira (principalmente a do campo), um capítulo diferente daqueles já escritos pelas
elites de nosso país.
Movidos de sonhos e desejos de propiciar às educadoras e aos educadores da
Reforma Agrária uma educação que venha ao encontro da Pedagogia do Movimento
Sem Terra, ampliando o leque de seus conhecimentos de filosofia, economia,
antropologia, sociologia... e para superar os desafios que encontramos no decorrer de
nossa trajetória de luta, construímos a idéia deste curso de graduação na área de
Pedagogia.
A idéia foi amadurecendo através de conversas informais, com pessoas ligadas à
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, à Comissão Pastoral da Terra e ao

1
Educandas e educadoras da Turma. Texto recebido em novembro de 2002.

25
Movimento. Este pensamento foi tomando corpo e se expandindo para o
aprofundamento e discussão, chegando ao Coletivo Nacional de Educação do MST que
abraçou a proposta com muito entusiasmo, dando suporte para a concretização deste
sonho. Como já dizia o poeta Raul Seixas, “sonho que se sonha junto é realidade”.
O Movimento Sem Terra dos Estados da Bahia, do Rio de Janeiro, de Minas
Gerais e do Espírito Santo, a Universidade Federal do Espírito Santo e a Comissão
Pastoral da Terra reuniram-se no intuito de discutir a estrutura do curso, início,
períodos, formas de ingresso, currículo, fluxograma (disciplina, carga horária, crédito),
caráter do curso, professores, finanças e número de estudantes que iriam participar
deste curso.
Após muita discussão, debates, o grupo sugeriu que uma equipe com vários
dirigentes e amigos do MST ficasse responsável pela construção e estruturação do
projeto de Pedagogia; também que haveria vestibular para ingressar na UFES, porém
ele seria diferenciado dos demais; que o curso seria realizado através de etapas, onde
haveria o TE (Tempo Estudo) presencial e TC (tempo Comunidade) à distância, e que
seria acrescentado no currículo oficial da universidade, centro pedagógico, algumas
disciplinas, tais como sociologia rural, economia agrícola rural, comunicação social,
alfabetização de jovens e adultos, educação infantil. O projeto ficou pronto e
posteriormente foi apresentado aos departamentos que foram reformulando, refazendo,
recriando e assim foi chegando até as instâncias de decisão dentro da estrutura
universitária.
Enquanto o projeto de implementação do curso de Pedagogia do MST tramitava
nas instâncias, conselhos universitários, os integrantes do MST articulavam os
educadores dos estados que iriam participar do curso, e junto com a Universidade,
elegiam a Coordenação Universitária do Norte do Espírito Santo – CEUNES, localizada
na cidade de São Mateus, como a unidade universitária que sediaria o curso.
Concomitante a isso os outros cursos desenvolvidos na CEUNES – pólo
universitário de São Mateus – passavam pela avaliação da Universidade, correndo risco
de serem fechados.
No início de 1999, após a elaboração de um projeto mais consistente, foi
entregue uma cópia deste para o reitor da UFES. Após alguns dias, o projeto retornou

26
ao Centro Pedagógico, a coordenadora tomou conhecimento do mesmo e convocou o
Movimento Sem Terra - MST para uma reunião. Esta reunião foi realizada em março do
mesmo ano com o objetivo de aprofundar e dar os encaminhamentos necessários para
tramitação do Projeto Pedagogia da Terra nos departamentos da UFES.
A partir de abril de 1999 este projeto estava tramitando simultaneamente na
UFES e no INCRA em Brasília, na busca de uma parceria INCRA – PRONERA – MST –
UFES para a efetivação do mesmo. A aprovação do curso, assim como a assinatura do
convênio com as instituições parceiras, passou por significativa demora.
Entretanto a educação popular realizada através das mobilizações não podia
esperar. Acontecia neste período a Marcha Nacional por um Projeto Popular para o
Brasil rumo à capital federal e eis que integrantes do MST de vários estados se
encontram em Belo Horizonte. Naquele momento foi realizada uma reunião com
representantes dos vários estados onde havia educadores e educadoras selecionadas
para fazer o curso, e representantes do setor de educação a nível nacional. Ao final
desta reunião, a partir das informações dadas que as educadoras e os educadores dos
estados gostariam de começar o curso nas condições que eram possíveis (sem
convênio, sem alimentação, sem aprovação do centro Pedagógico), decidiu-se o início
da etapa preparatória para o dia 26 de setembro de 1999, como forma de pressionar o
INCRA Nacional para acelerar o processo de aprovação do projeto do Curso de
Licenciatura Plena em Pedagogia para Educadores e Educadoras da Reforma Agrária.
Antes de iniciar a etapa preparatória veio um grupo de acampados e assentados
para iniciar a construção do galpão, refeitório, banheiro, da cozinha e da ciranda infantil.
Todas essas estruturas foram cobertas com uma lona preta, símbolo da resistência e
pressão. Em seguida chegou a equipe pedagógica que iria coordenar o curso e
finalmente chegam com muito entusiasmo e brilho na CEUNES, Coordenação
Universitária do Norte do Espírito Santo, hoje denominada Pólo Universitário do Norte
do Espírito Santo, os 63 educadores-estudantes sendo 5 de Minas gerais, 40 do
Espírito Santo, 10 da Bahia, 3 de Pernambuco, 1 de Sergipe, 2 do Rio Grande do Norte
e 2 do Maranhão, construindo assim um espaço de reflexão e reivindicação para
garantir o direito de estudar, como cidadãos brasileiros.

27
A lona preta que cobria os espaços de alojamento, refeitório e ciranda assustou o
coordenador do Pólo na época, que ligou imediatamente para a coordenação da UFES
pedindo opinião sobre o que fazer, já que os Sem Terra tinham ocupado a
Universidade. Parece que havia esquecido da combinação anterior de construir
estruturas para abrigar os estudantes. Criou-se então uma equipe de negociação para
aparar as arestas.
A primeira semana se iniciou com um mutirão para fazer a limpeza do
acampamento. Foram construídos barracos de lona preta, onde as educadoras-
estudantes ficaram alojadas. Estavam presentes crianças recém nascidas e de várias
idades, filhas de algumas estudantes do curso.
Assim iniciamos a etapa preparatória começando a nos organizar internamente,
com divisão de tarefas, equipe de trabalho, escolha dos representantes da turma, e a
coordenação geral do grupo, do que falaremos em síntese a seguir:
• Equipe pedagógica: participam um membro da direção do MST, setor de
educação, e três representantes dos estudantes com a tarefa de acompanhar as
atividades pedagógicas do curso: caderno de reflexão, produções,
administração, coordenação geral, encaminhamentos do tempo comunidade;
tem a função de representar o curso junto às entidades, à imprensa e de zelar
pela disciplina do grupo.
• Brigadas: são compostas por grupos de educandos numa média de até onze
membros. Cumprem o papel de fazer estudos coletivos, realizar atividades
práticas do curso, e dar opiniões e fazer avaliações sobre o curso.
• Equipes de Trabalho: são grupos de trabalho nas diversas áreas no curso.
Foram criadas as equipes de saúde, disciplina, finanças, cultura e a ciranda
infantil. Todas as equipes eram responsáveis de planejar e realizar atividades
necessárias para o funcionamento do grupo.
• Coordenação Geral: representada pelos coordenadores das brigadas,
modificando-se a cada etapa. Possuía a tarefa de coordenar as atividades
práticas, organizar e representar as brigadas e garantir a disciplina.
Esse período foi repleto de tensões entre a incerteza de aprovação do curso, o
fato de estar longe de casa, as condições de acomodação e alimentação, as vagas em

28
número menor que o total de estudantes presentes, ou seja, 63 candidatos para 60
vagas. Por outro lado os estudantes estavam dispostos a não desistir; o desejo do
curso superior superava os problemas existentes e o espírito solidário entre eles e elas
ajudava a acalmar os ânimos; um companheiro dava o ombro amigo para o outro, na
esperança de todos permanecerem no curso desafiando seus limites.
O objetivo coletivo era a aprovação do curso, mas o desafio individual era
ultrapassar a barreira do vestibular. A solução foi coletiva: vários educadores do
Movimento e ou parceiros, amigos do MST se revezavam nas aulas das disciplinas
específicas, ajudando na preparação de todos para o vestibular, que deveria acontecer
assim que o curso fosse aprovado. Além dos estudos, várias reflexões foram realizadas
sobre a proposta pedagógica do MST e sobre a conjuntura atual. Muitas oficinas
também faziam parte do processo educativo naquela etapa preparatória: além de
produções artísticas ajudavam o grupo a se descontrair. As oficinas marcantes foram as
de cartão ecológico, serigrafia e argila nas quais todos demonstravam seus talentos.
Outras atividades educativas que faziam parte da programação coletiva eram as
noites culturais. Nessas noites era possível fazer um passeio pela cultura e arte do
norte, nordeste e sudeste brasileiro. Cada estudante ou grupo de estudantes de cada
estado apresentava as manifestações artístico-culturais do seu estado de origem.
Esses momentos além de cumprir a função de tirar a tensão do grupo, cumpriam
também a função de integração, diversão, descontração e conhecimento das
características e manifestações artísticas culturais dos estados envolvidos, ou seja,
eram momentos de muitos ensinamentos e aprendizados coletivos.
Na histórica noite do dia 24 de outubro de 1999 um companheiro da direção
nacional do Movimento comunicou a aprovação do projeto do curso e a realização do
vestibular ainda naquela etapa. Aquela aprovação para o grupo significou a conquista e
o reconhecimento político e social do Movimento.
A aprovação do curso trouxe um certo alívio e segurança para os que fariam
parte desta turma de Pedagogia da Terra. Após a seleção os estudantes-educadores
do MST faziam de fato a ocupação coletiva da Universidade. Vencido esse desafio,
outros tantos iniciaram...

29
No final de semana antes do vestibular aqueles que moravam próximos foram
para seus lares, retornando no domingo a noite. Os demais permaneceram no
acampamento da Universidade e aproveitaram para conhecer a cidade de São Mateus
e o que ela tem bom para oferecer; também para providenciar todos os documentos
exigidos pela Universidade para a inscrição no vestibular.
Com a realização do vestibular, dois companheiros foram supostamente
eliminados, mas a coordenação do MST se reuniu com a equipe da UFES e ficou
decidido que os dois continuariam no curso na condição de ouvintes, ou seja, ficariam
na suplência, mais com o direito de assistir as aulas; caso houvesse alguma desistência
até o ato da efetivação das matrículas eles assumiriam as vagas, passando a ser
estudantes regulares do Curso de Pedagogia da Terra. Infelizmente já no segundo
período duas desistências aconteceram, ocasionadas por doenças e, assim os dois
suplentes puderam logo efetivar sua matrícula.
Essa conquista se deu de forma coletiva, pois graças ao MST o sonho de dar
continuidade aos estudos tornou-se realidade. E para retratar melhor essa experiência
de luta por uma educação de qualidade, muitas poesias surgiram fazendo parte do
cotidiano da Turma Paulo Freire. O poema que apresentamos a seguir foi feito por uma
educanda que registrou o momento histórico de início do curso.

INÍCIO DE TUDO
CEUNES aqui chegamos cansados
O estudo da pedagogia era nosso lema
Em pouco tempo fomos nos enturmando
Um grupo de 63 alunos oriundos de
07 estados a maioria professores de
assentamentos, todos do MST
arrumamos o visual, carregamos as madeiras,
limpamos o quintal
iniciamos nossos estudos embaixo da
lona que é a cara do MST
e em pouco tempo, um refeitório
dormitórios e a ciranda infantil
Nos organizamos em brigadas
Cada qual com sua palavra de ordem
Homenageando os nossos grandes líderes
Outros escolhendo palavras de futuro
Assim nos constituímos com
o Paulo Freire o pensador da educação

30
A Margarida Alves a lutadora Nordestina
O Josué de Castro o amigo dos pobres
O 26 de setembro quando aqui iniciamos
com Plantando o Futuro
Maria Olinda a recordação capixaba
Dandara a negra querida
E assim educando para a vida
Fomos nos angustiando
Da oficialização do curso
Lá na UFES eleições para atrasar
Polêmicas se criaram em torno do curso
Articulações por nossa comissão resistente
A luta não pára
Vimos pressionar pela educação
É hora de estar prontos na documentação
Alguns retornam para buscá-los
Mas todos, querem a turma unida selecionada
Estudos aqui não faltam para superação
Das dificuldades e a continuidade até o final
Uma boa parte nada entende dos estudos
Faz anos que vimos algumas matérias
Português, Matemática, História
Caíram nas provas, mas queremos
Que todos passem e continuaremos estudando juntos.
14/10/1999 Fátima Ribeiro - RN

Passadas as angústias de aprovação do curso, seleção através de vestibular, a


turma mais do que nunca precisava colocar em prática as lições pedagógicas
aprendidas no contexto da luta pela terra, ou seja, era preciso organizar-se
coletivamente para dar continuidade ao processo de romper o latifúndio do
conhecimento.
Na perspectiva de manter uma organicidade da turma e um bom relacionamento
foi elaborado um regimento interno que foi o guia durante todos os períodos. A aula
inaugural / oficial teve a presença de personalidades, amigos do MST da região e dos
estados vizinhos. Ao iniciar as aulas, o debate acerca do nome que pudesse identificar
a turma, alimentar a mística aflorou após intensos debates, estudos sobre biografias de
educadores militantes das causas do povo. Elegeu-se como nome da turma Pedagogia
da Terra – Turma Paulo Freire como forma de homenagear o grande Educador
Brasileiro, defensor das causas populares. Após a decisão coletiva foi encomendada a
pintura de um imenso painel do educador Paulo Freire que permaneceu na sala de aula
por todos os períodos. O aprofundamento sobre sua obra ficou por conta da disciplina

31
Educação de Jovens e Adultos, ministrada pela professora Edna Castro de Oliveira. Foi
a mesma professora que prefaciou o pequeno livro, mas profundo em conteúdo e
exigências aos educadores na atualidade, “Pedagogia da Autonomia – saberes
necessários à prática educativa”.
Nas atividades do tempo presencial os educandos em algumas disciplinas eram
desafiados a desenvolver atividades junto a comunidade local e regional, além de
participar nas atividades do MST do Espírito Santo. Para o grupo os momentos de
participação na sociedade foram marcantes. Um exemplo deles foi a preparação do
debate sobre a Questão Agrária Brasileira e com a participação do companheiro João
Pedro Stédile, onde participaram em torno de 300 pessoas. Também o Seminário “A
evolução da educação no Brasil: 500 anos”, organizado pelos educandos sob
coordenação da professora de história da educação, a senhora Magi.
É importante salientar que dado o sucesso deste seminário os educandos foram
convidados a apresentá-lo no Campus Central da UFES na capital do Estado Espírito
Santo, para os alunos da professora daquele Campus. O professor de Biologia também
propôs a realização de um Seminário no qual a turma superou seus limites realizando-o
com muito sucesso. Entre as atividades e lutas do MST - ES enumera-se a participação
na saída da Marcha Estadual para a Capital, o dia Nacional de Lutas e uma Assembléia
Regional dos Sem Terra.
Outras atividades foram desenvolvidas conjuntamente com outros cursos da
Universidade, a exemplo das mobilizações para o não fechamento das turmas de
Pedagogia existentes no pólo universitário de São Mateus. Além da ida a Vitória foi
organizado conjuntamente um ato público na cidade de São Mateus. O pólo
Universitário ficou outro, até a sua pintura foi modificada, dando um colorido mais vivo à
sua estrutura.
No que toca ao movimento estudantil a turma também não se omitiu e participou
com um representante no DCE. Segundo Lucia ex-coordenadora do Pólo Universitário
e assessora cultural da UFES, a “Turma Paulo Freire deu vida e alegria e sobretudo
fortaleceu as turmas de pedagogia existentes no pólo universitário.”
A cada disciplina realizada foram novos aprendizados; dependia da ousadia do
educador para a turma se tornar ousada e perseverante.

32
No desenvolvimento das disciplinas realizamos passeios para descontrair, nas
dunas da praia de Itaúnas e Rio Preto; fomos também à Escola Família Agrícola de
Vinhático, município de Montanhas, para observarmos o trabalho da agricultura
orgânica e os males causados pela utilização dos agrotóxicos, e os produtos
transgênicos. Visitamos APAE’s, escolas que realizam trabalho com portadores de
deficiência física e mental. Visitamos também o MANGUEZAL em Barra Nova para
observamos as espécies de caranguejo e a importância dos ecossistemas.
Fomos ainda ao projeto Araçá e conhecemos o seu funcionamento junto aos
menores de rua; visitamos um lixão, o que deixou a todos muita indignação pela disputa
do lixo com os porcos e urubus, como sobrevivência daquelas famílias, fazendo-nos
recordar da poesia O BICHO de Manuel Bandeira.
Paralelo aos estudos curriculares, criamos oficinas de violão, pintura, desenho,
informática, teatro e capoeira que contribuíram para enriquecer nossos aprendizados e
nos descontrair dos estudos do dia-a-dia.
A cada etapa realizada foi observado o crescimento da turma, tanto na sua
atuação prática, como nas intervenções na sala de aula. Demonstrando assim a
compreensão, construção e reconstrução dos conteúdos estudados.
As noites culturais eram realizadas todas as sextas-feiras, apresentadas pelas
brigadas, ora sobre temas trabalhados na disciplina, ora sobre temas escolhidos pela
professora da turma ou brigada. A marca inovadora foi a de trazer presente a cultura
dos estados, com muita criatividade. O destaque ficou para o Espírito Santo, que trouxe
o Jango, a Folia de Reis e o tradicional forró, que não podia faltar.
Outro aspecto a ressaltar é a animação e as místicas realizadas pelas brigadas,
todas com temas atuais ou ligados às disciplinas. Havia um grande empenho para que
elas fossem cada vez mais bonitas, mais emocionantes. As brigadas permaneciam até
altas horas da noite preparando-as, criando-as e dando um colorido encantador ao
ambiente, trazendo harmonia e sintonia entre a turma.
O ambiente de estudo teve uma ornamentação especial. A pintura do refeitório
teve a marca de cada educando. Dando asas à imaginação a ciranda infantil também
era pintada e arrumada a cada etapa a fim de acolher cada criança que nascia e se
desenvolvia no decorrer dos períodos. Os chás de bebês tornaram-se momentos

33
místicos de todos os períodos. No término do curso os bebês já totalizavam dez,
sementes da esperança germinada no seio do aprendizado coletivo.
No assentamento Jundiá foi feita a experiência piloto de construção do parque
infantil, considerada muito boa porque se sentiu a integração dos educadores /
educandos com a comunidade para construí-lo. Os pais, as crianças encantadas e
eufóricas dizendo que não iam mais deixar de participar da escola. A turma saiu muito
animada e com o desafio de ajudar a construir os parques infantis nos estados e nas
regionais.
No assentamento 13 de setembro foi realizado o estágio supervisionado do
curso.
Nos cursos formais realizados pelo MST foi introduzida a prática da pesquisa e
do trabalho de escrita monográfica ao final de cada curso, desde os cursos de nível
médio.
A Pedagogia da Terra, Turma do Professor Paulo Freire, também foi desafiada a
escrever um trabalho monográfico de conclusão do curso. Inicialmente este trabalho
não constava do fluxograma, mas por exigência da turma foi incorporado.
A partir do 2º período todos já estavam definindo os temas e objetos de estudo,
indagando sobre o que deveríamos pesquisar e escrever. Muitas angústias e tensões
marcaram a elaboração dos trabalhos; desde as dificuldades com a escrita, até a falta
de contato com a informática. Entretanto, muitas descobertas foram sendo feitas, novas
reflexões foram produzidas, e assim os sujeitos da história vão tecendo os fios e
vencendo desafios.
Finalmente, após angústias, alegrias, buscas e descobertas, foram apresentados
os trabalhos de pesquisa, as monografias. Muitas lições foram extraídas e estas vão
servir para redirecionar a prática de cada um. Para prestigiar e compor as bancas de
apresentação da monografia do curso de Pedagogia da Terra, Turma Professor Paulo
Freire, vieram educadores e educadoras, companheiros e companheiras de vários
lugares: da Universidade Federal do Ceará (UFCE), da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, da Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG, da Superintendência Regional de Educação de São
Mateus, do Setor de Educação, de Formação e de Produção do MST.

34
E foi no tempo comunidade que brotou no coração das educadoras e
educadores-estudantes os desafios maiores. À luz de velas, na máquina de escrever ou
no computador emprestado, nasceu a inspiração para mais uma poesia.

PLANTANDO GENTE
No acalento da escuridão da noite, o vento soprava forte, a vela quase apagava, mas a
vontade de ler e escrever era maior.
Lutava pra que o dia fosse maior, bem maior, pois aí sim daria tempo, mas que tempo?
Tempo pra ser mãe, amiga, esposa, companheira e militante.
Mas, na corrida contra o tempo, somente uma tarefa era imprescindível:
Transformar toda teoria em prática.
É difícil ser militante!
Pois o tempo é curto e as tarefas são muitas.
Mas o desejo de construir essa sociedade é maior.
Vencer os obstáculos rompendo as cercas, ocupando o latifúndio do saber.
É isso que o Educador da Reforma Agrária faz com luta, amor e sacrifício.
Pois nos caminhos da construção do Movimento Sem Terra, dor, lágrimas, sofrimento,
alegrias e paixão.
É isso que faz brotar no coração do Sem Terra a certeza de seguir em frente
plantando gente.

Aparecida Loureiro - MG

No término das apresentações das monografias, um grito ecoou de alegria,


deixando a todos muito felizes por vencer mais uma etapa desta caminhada. Felizes
por duas razões: a primeira por todos terem se esforçado para elaborar a monografia; e
a segunda, por todos apresentarem e posteriormente numa só voz, aplaudirem a idéia
de ter realizado esta tarefa. A sugestão foi de iniciar já no primeiro período o processo
de construção dos projetos de pesquisa.
Na avaliação do curso, foram destacados sua coordenação pedagógica, os
conteúdos, as metodologias, o crescimento e a organização da turma e o seu grau de
engajamento com o Movimento. É importante ressaltar que todos observaram que
poderiam ter contribuído e crescido ainda mais, e que necessitam estar abertos para o
novo que surge a cada dia.
Finalmente na última semana do curso foram muitas correrias para organizar a
festa da formatura, realizar as homenagens, agradecimentos, receber outros
educadores, amigos e familiares, comprometendo-se perante a sociedade, que a
prática será recheada com a teoria estudada e com o objetivo de transformar a

35
realidade, semeando junto aos pequeninos o grande sonho de um país justo e
soberano. Como já dizia o grande mestre Paulo Freire, educar é um ato de criar e
recriar idéias.
O latifúndio do saber cercado durante quinhentos anos de história agora foi
diminuído mesmo que numa pequena dimensão, mas para os educadores e as
educadoras da Reforma Agrária que concluíram o curso de Pedagogia será uma
semente que com certeza germinará e dará muitos frutos.

36
PEDAGOGIA DA TERRA
Turma Paulo Freire – Mato Grosso

Maria Cristina Vargas, Rosana Cebalho Fernandes e


Solange Serafim dos Santos 1

A realização deste curso só foi possível através das lutas desencadeadas por
famílias, homens, mulheres e crianças Sem Terra, que debaixo de sol e chuva
marcaram posição frente ao Governo do Estado do Mato Grosso e conquistaram a
parceria entre Universidade Estadual do Mato Grosso - UNEMAT, Secretaria Estadual
de Educação, INCRA-PRONERA e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Antes da consolidação da parceria, em julho de 1998, houve a realização da
etapa preparatória com pessoas do MST de vários estados, sendo: MT, MS, GO, RO,
DF, SP, PR, PA e TO. Durante a etapa, a turma iniciante, elegeu um símbolo que
representou o sentimento com relação àquele momento, sendo escolhido como símbolo
a corrente aberta, no sentido de poder incluir outras pessoas, assim como o MST
acolhe aqueles e aquelas que querem se somar na luta. Houve também, a construção
de um grito de ordem, sendo: “Somos educadores e somos valentes. Ninguém vai
conseguir arrebentar essa corrente”.
Após um ano da etapa preparatória, em julho de 1999, inicia-se a 1a etapa oficial
do curso, com a participação de educadores e educadoras dos estados citados acima,
exceto Tocantins. Para iniciarmos a 1a etapa deveria ser realizado um vestibular
especial, porém enfrentamos dificuldades de realizá-lo, pois o convênio entre INCRA e
UNEMAT não estava assinado. Em função desse atraso permanecemos durante três
semanas fazendo mobilizações para agilizar a assinatura do convênio. Aproveitamos
também, para fazer estudos internos do Movimento Sem Terra e nos preparar para o
vestibular que aconteceu na última semana do mês de julho, no qual 65 educadores e
educadoras foram aprovados estando aptos para freqüentarem o curso.
A mística, a pertença ao Movimento, a integração, a vivência de novos valores, o
gosto pelo estudo, estavam presentes em todos os momentos. Como o curso foi mais

1
Educandas da turma. Texto recebido em outubro de 2002.

37
uma conquista do MST, realizamos um ato público como marca de seu início, através
de uma caminhada pelo centro comercial de Cáceres, município onde acontece o
curso. Fomos até o centro cultural, onde fizemos um ato solene com a presença de
todos os parceiros do projeto. Foi um momento forte de mística, no qual a turma declara
o nome da mesma e homenageia o educador Paulo Freire, pela sua pedagogia e pelo
seu exemplo de educador do povo.
Nos meses de janeiro e fevereiro de 2000, realizamos a 2a etapa do curso. Essa
etapa foi marcada pelo fato de não estarmos estudando no prédio da UNEMAT; na fala
de uma educadora do curso “não estamos estudando na UNEMAT, fomos praticamente
expulsos dela, estudar na universidade significa conquista”. Após muitas negociações
com a Universidade, que não viabilizava as condições de estrutura física para acolher a
turma dentro do espaço universitário, a turma decidiu montar um acampamento no pátio
em frente ao campus.
Esta ação mostrou o MST ocupando um espaço conquistado por toda a
organização, que até então estava escondida para a comunidade acadêmica. Também
fortaleceu a mística de uma realidade vivida nos acampamentos e assentamentos,
onde algumas escolas funcionam em barracas de lona preta organizadas pela própria
comunidade. Ali estudamos, cantamos, recebemos apoio de amigos do Movimento e de
alguns setores da Universidade. Fomos reconhecidos, e os nossos educadores
vivenciaram essa experiência junto com a turma.
A ação mobilizou a Universidade que resolveu a situação providenciando um
mini-auditório, onde a turma estudou durante o final da etapa. Disso tiramos mais uma
vez a lição de que a luta faz valer. Nossa vida, nosso curso não é só feito de conteúdos,
mas da vivência no coletivo e das lutas pelo nosso processo educativo.
Durante a etapa, em nossa organização interna, homenageamos alguns
lutadores e lutadoras do povo, através dos núcleos de base. Cada núcleo elaborou
gritos de ordem que deram origem ao Hino da Pedagogia da Terra – Turma Paulo
Freire:
Somos Educadores

Somos educadores e o lema é vencer.


Só pensando no futuro de um novo amanhecer.
Com luta e sacrifício, nós estamos em missão.

38
Renovando a sociedade, através da educação.

Se educar no presente, o futuro vai ser diferente.


Tendo como exemplo mártires que lutaram
Paulo Freire e Florestan Fernandes nos ensinaram a lição
Que a Pátria vai ser livre com uma nova educação.

Se queremos mudar a nossa educação


Tem que haver cooperação.
A nossa pedagogia, feita pela nossa ação.
Esse é o nosso compromisso de mudar a educação.
Pra que seja nova prática de trabalho e produção.

Em julho de 2000 realizamos a 3a etapa. Educar no campo da reforma agrária


continua o grande desafio. Por isso, avançar no conhecimento torna-se uma grande
necessidade, para todos aqueles e aquelas que se propõe a tal, acreditando que a
educação problematizadora e dialógica é uma ferramenta eficaz no processo de
formação humana, formação que exige uma mudança de postura e, mais do que isso,
exige que se corra riscos , sem medo de ser feliz.
Sabemos que a elite brasileira tem usado todos os mecanismos possíveis para
fazer com que o povo trabalhador continue omisso e se deixe explorar. E por termos
clara a nossa posição de lutadores e lutadoras do povo, militantes de um movimento
social que almeja e luta para mudar esta estrutura política imperialista em nosso país, é
que mais uma vez deixamos nossos estados, regionais, assentamentos e famílias, para
estarmos ocupando o latifúndio do saber e garantir que a UNEMAT cumpra de fato com
sua função social, de democratizar e dar qualidade ao ensino público superior.
As assembléias dos educadores e das educadoras do povo traziam sempre a
mística que fazia todos sentir e empunhar dentro da Universidade a bandeira de lutas
destes homens e destas mulheres que fazem esta força explosiva chamada MST. A
nossa pedagogia parte do princípio da organização coletiva já que a educação dos
novos sujeitos está fortemente ligada a uma prática que seja motora de novos valores.
Apesar das dificuldades que enfrentamos desde o início desta etapa a mística do
IV Congresso Nacional do MST era forte em nosso meio e todos aguardavam o grande
momento, pois no final do mês de julho de 2000 toda a turma iria participar do
Congresso a ser realizado em Brasília.
No Congresso a turma Paulo Freire organizou a mística para a noite de entrega

39
de premiações a lutadores e lutadoras do povo internos e externos. Um dos momentos
fortíssimos foi o reconhecimento mais uma vez a Dom José Gomes, um grande
exemplo de vida que deixa no seu legado o anseio de justiça e solidariedade.
Nos meses de janeiro e fevereiro de 2001, realizamos a 4a etapa do curso. Nesta
etapa, assim como na 3a, ficamos alojados e tendo aulas no campus experimental da
EMPAER (Empresa de Pesquisa e Extensão do Estado do Mato Grosso) que fica a 8
km da cidade de Cáceres. As condições físicas melhoraram, porém enfrentamos
problemas com a água que não era potável e que usada nos banhos causava
problemas de pele como micoses, coceiras; houve inclusive casos de suspeita de
hepatite, que se confirmaram posteriormente. Outros problemas foram de transporte
para idas à cidade, e da utilização da biblioteca da Universidade.
Os professores da UNEMAT deslocavam-se para o campus, e algumas aulas,
dependendo da disciplina e da metodologia utilizada, foram bastante interessantes.
Esta etapa foi o marco inicial do problema político entre a coordenadora do curso
e a turma Paulo Freire. O principal problema foi o desrespeito à nossa estrutura
organizativa e aos tempos que havíamos estabelecido. No final da etapa houve uma
avaliação geral com a coordenadora e não conseguimos chegar a um entendimento, o
que acabou acarretando problemas ainda maiores nas etapas seguintes.

Estrutura organizativa da Turma Paulo Freire


• Instância máxima de decisão: assembléia geral.
• Coordenação Política e Pedagógica: é composta por cinco pessoas permanentes.
• Coordenação Interna: composta por um coordenador ou uma coordenadora de
cada Núcleo de Base – NB.
• Grupo de Ética e Disciplina: composto por três pessoas da coordenação interna.
• Núcleo de Base: composto por sete a nove pessoas.
• Setores de trabalho, com postos e atribuições de trabalho: composição conforme
as demandas de trabalho.

Dentre os postos de trabalho do setor pedagógico, que é um dos nossos setores


de trabalho, merece destaque a Ciranda Infantil. Durante os quatro anos do curso, foi
uma demanda grande para a turma, bem como fonte de aprendizados para todos.

40
Apesar dos vários limites que encontramos, como o de espaço físico para um bom
funcionamento da ciranda, educadores e educadoras que se dispusessem de forma
voluntária a ficar em cada etapa com as nossas crianças, a ansiedade das mães em
ficar longe de seus filhos durante todo dia, entre outros, ficou a certeza de que a
educação infantil deve ser ponto de pauta no conjunto do Movimento.

Tempos Educativos
• Tempo aula: mínimo de oito horas-aula por dia podendo aumentar ou diminuir,
conforme a dinâmica e as condições da etapa.
• Tempo reflexão escrita: um horário semanal para o registro das reflexões de
cada um. Tempo destinado para análise do processo, para elaboração, tirando
lições do dia para a vida e para a militância no MST.
• Tempo estudo coletivo: duas horas por semana para o estudo de temas políticos
nos NBs.
• Tempo Núcleo de Base: Uma hora e trinta minutos por semana para reuniões de
avaliações e encaminhamentos do coletivo.
• Tempo Trabalho: cada membro deste coletivo está inserido em um setor de
trabalho, no seu posto/responsabilidade de trabalho. Tem por obrigação
organizar-se para cumprir da melhor forma a sua responsabilidade.
• Tempo programa de leitura dirigida: este tempo será realizado através de leituras
de livros encaminhados pela coordenação política do curso para o Tempo
Comunidade. Inclui também a realização de seminários sobre os livros lidos no
Tempo Escola.
• Tempo seminário de avaliação: tempo quinzenal para avaliação interna do
processo pedagógico da turma.
• Tempo assembléia: tempo quinzenal para aprovações ou ratificações das
decisões internas na instância máxima de decisão deste coletivo.
• Tempo Formatura: tempo aproximado de dez minutos diários que dá início às
atividades de cada dia, com toda a turma reunida. Inclui: informes, conferência
dos NBs, momento da mística do dia, socialização dos informes dos estados e
leitura do texto do dia que funciona da seguinte maneira: a cada dia uma pessoa
é responsável para ler um texto produzido por ela, para incentivar a produção de

41
textos, bem como, a prática de ler em voz alta para uma platéia Em anexo
alguns destes textos.
• Tempo Cultura: primeiros quinze minutos do início do período da tarde para
apresentação do momento cultural preparado pelos NBs. E a cada quinze dias
há noites culturais, jornadas socialistas ou outras atrações culturais para o
entretenimento e para manter acesa a chama da mística.
• Tempo crítica e autocrítica coletiva: tempo por etapa para realização do
seminário de crítica e autocrítica com o objetivo de avaliarmos nossas práticas
individuais e coletivas. É de responsabilidade da Coordenação Política e
Pedagógica organizar e coordenar este tempo.
• Tempo Oficina: tempo semanal para a realização de oficinas pedagógicas,
organizadas pelo setor pedagógico. Dentre as oficinas realizadas, citamos
algumas: oratória, violão, artesanatos de diversas formas, fantoches, bordado em
ponto cruz, crochê, culinária, brinquedos pedagógicos alternativos, dobraduras
em papel, faixas e painéis, oficina do teatro do oprimido.

A 5a etapa realizou-se no mês de julho 2001, ainda no centro experimental da


EMPAER. Os problemas com a coordenação continuaram. As questões que mais
ficaram explicitadas foram: as nossas místicas como parte das aulas, os nossos
estudos internos nas noites e algumas vezes aos domingos, sem contar os trabalhos
práticos que fazemos para garantir a higiene e limpeza do local. A coordenadora do
curso alegava que com todos esses afazeres não sobrava tempo para os estudos dos
conteúdos das disciplinas, tendo pouco rendimento durante as aulas, e que isso estava
sendo avaliado pelos professores. Não concordamos com essa posição e decidimos
garantir a nossa estrutura orgânica e, acima de tudo, garantir os princípios do MST
quanto à realização dos trabalhos e estudos políticos. Pela nossa reação, que não foi
unânime, mas foi da maioria dos estudantes da turma, houve momentos de muita
tensão com a coordenadora.
Enfrentamos ainda o problema de acesso à biblioteca que permaneceu trancada
durante os primeiros dias da etapa. Revertemos esta situação disponibilizando uma
pessoa da própria turma para coordenar a liberação de livros e fazer o controle dos
empréstimos. Também não tínhamos acesso livre ao refeitório, podendo utilizá-lo

42
apenas para as refeições, sendo que não dispúnhamos de outro local para realização
de estudos nos núcleos de base, principalmente a noite. Essa foi outra questão que
conseguimos resolver ‘na marra’: ocupamos o refeitório!
Não houve a liberação da verba do PRONERA para a realização desta etapa, o
que não acontecia pela primeira vez, havendo transtornos também na questão
financeira. Uma comissão nacional do PRONERA esteve realizando uma auditoria no
INCRA-MT com representantes também da UNEMAT, mas não chegou a visitar a
turma. O ponto mais preocupante era o número elevado de desistências, que já atingia
17 pessoas, sendo apenas dois os casos de saída por motivos de saúde comprovados.
Um passo importante dado durante a etapa foi a discussão sobre o estágio
supervisionado e o desenvolvimento da monografia. Acertamos que faríamos o estágio
em escolas de assentamentos e acampamentos e que a pesquisa levaria em conta a
agenda de pesquisa do MST, desembocando na elaboração da monografia. Esse
acerto foi feito com a coordenadora do curso na presença do prof. Bernardo Mançano
Fernandes da UNESP, que tinha vindo designado pelo setor de educação do MST para
começar esta discussão sobre pesquisa com a turma, e também da companheira
Itelvina Masioli, uma das responsáveis pelo acompanhamento do curso pelo MST. A
discussão de temas para realização da pesquisa monográfica começou então a ser
feita nos estados.
A 6a etapa do curso foi realizada nos meses de janeiro e fevereiro 2002, sendo
que desta vez o alojamento e as aulas foram na cidade de Cáceres. A chegada foi
bastante tumultuada, pois a casa alugada para o alojamento não estava disponível para
os estudantes; diante disso ficamos acampados por dois dias na secretaria regional do
MST. Um dos companheiros que tinha saído por problemas de saúde estava
retornando à turma, animado a superar as dificuldades que certamente teria pela
ausência prolongada.
Novamente enfrentamos problemas com a estrutura física. O local em que
ficamos não tinha condições de hospedagem para todos; ficamos amontoados, sem
local disponível para organizar nossa secretaria e nossa ciranda infantil.
Além disso, outros problemas que nos ocuparam bastante foram os seguintes:
1- Reprovação de um companheiro da turma

43
A coordenação do curso informou sobre a reprovação de um dos nossos
companheiros da turma pelo motivo de não ter enviado os trabalhos de recuperação de
duas disciplinas que tinha perdido na etapa anterior. Ele estava com os trabalhos para
ser entregues ali, mas não tinha justificado antes o não envio nos prazos combinados.
Embora reconhecendo a indisciplina do educando, a turma não aceitou essa
reprovação, porque ela estava sendo decidida sem nenhuma oportunidade de
discussão com a turma ou mesmo com o educando. Acabamos tomando uma posição
mais firme e não efetuamos as matrículas da etapa enquanto não fosse retomada a
discussão sobre o caso, levando o problema para a Faculdade de Educação. No dia 15
de janeiro a chefe da FAED deu parecer escrito favorável para permanência do
educando mediante a entrega dos trabalhos, e a turma efetivou as matrículas.
2- Saída de duas pessoas do curso
Devido a problemas que o MST do estado do Mato Grosso estava enfrentando,
algumas questões se acirraram durante o tempo desta etapa. Duas pessoas do curso
estavam participando diretamente de uma articulação contra o MST numa região do
Estado. A princípio tentamos não deixar que esses problemas interferissem no curso,
porém aconteceram fatos perante os quais não pudemos ficar alheios ou passivos, pois
feriam diretamente os princípios e objetivos de nossa Organização. Não era mais
possível aceitar que estas pessoas que articulavam contra o Movimento continuassem
na turma como se fossem Sem Terra.
Diante disso, decidimos fazer uma avaliação das posturas das duas pessoas.
Por unanimidade, a turma decidiu que as mesmas solicitassem transferência para
outras turmas e se retirassem. Isto não foi aceito pelas educandas. Buscando
orientações, e sabendo que a UNEMAT não poderia forçar as duas estudantes a pedir
transferência, propusemos que elas permanecessem assistindo às aulas, porém não
mais fazendo parte de nossa estrutura organizativa enquanto turma. Na verdade
pensávamos em vencê-las pelo cansaço, já que havia uma rejeição geral da turma a
elas, mas isso não aconteceu.
Esse período foi de muita tensão e levou mais três pessoas a pedir suas
transferências, porém a coordenadora não quis encaminhar os pedidos e as manteve
no curso. Então já não eram mais duas, mas cinco pessoas que permaneciam sem

44
aceitação da turma, só não podendo continuar no mesmo alojamento conosco. Frente a
esse problema a coordenação do curso se colocou inteiramente à disposição das cinco
educandas, pagando hotel com os recursos do projeto e elaborando documentos
mentirosos e difamadores contra a turma e contra o MST, que foram enviados para o
INCRA e o PRONERA e também para pessoas do Movimento, chegando também a
fazer uma denúncia ao Ministério Público e ao Centro de Direitos Humanos em Cáceres
citando fatos não verdadeiros. Pensamos que seu papel neste caso não deveria ter sido
de tomar posição, mas sim de ajudar a intermediar as discussões para chegarmos
todos a um entendimento.
3- Solicitação de afastamento da Coordenação do Projeto
O fato anterior foi a gota d’água nos problemas que já vínhamos enfrentando
com a coordenadora. A posição tomada por ela, em qualquer que fosse o problema, era
em nosso modo de ver de extremo autoritarismo e de desrespeito à turma e ao MST
Não reconhecia mais o MST como parceiro desse projeto, considerando-se dona do
curso.
Diante de tantos fatos solicitamos à Faculdade de Educação a substituição da
coordenação. A Faculdade de Educação encaminhou a questão dentro dos seus
trâmites institucionais. Para pressionar a Universidade a tomar uma posição, fizemos
uma reunião com o reitor no último dia da etapa, para expor os fatos que nos levavam a
pedir a substituição da coordenadora.
Durante o Tempo Comunidade, porém, houve uma reunião do Conselho da
Universidade, mas a decisão da maioria dos conselheiros foi pela permanência da
coordenação.
4- Estágio e Monografia de conclusão do Curso
Para acirrar ainda mais os problemas, a coordenadora não respeitou uma
discussão feita na 5a etapa de que o estágio seria realizado nas escolas de
assentamento e nos estados de origem, e que a monografia seria resultado de um
projeto de pesquisa realizado dentro da agenda de pesquisa do MST. Na 6a etapa os
encaminhamentos já não eram mais estes. Sem nenhuma discussão já estava decidido
que o estágio seria em oito grupos de estudos, e que os estados teriam que se juntar
numa mesma escola para a realizá-lo, tendo acompanhamento obrigatório de

45
professores da UNEMAT. Assim, as estudantes de São Paulo teriam que ir para uma
escola do Paraná; as do Distrito Federal e do Pará ficariam juntos numa escola em
Goiás. Quanto à monografia, ficou definido que será um relatório final do estágio, com
uma reflexão sobre um problema observado na escola e apresentando possíveis
soluções para o mesmo. Avaliamos que como isso já era o previsto no projeto inicial do
curso, e dados todos os outros problemas com a coordenação, não teríamos neste
momento força suficiente para garantir a discussão feita na etapa anterior. Acatamos as
definições, ainda que com uma boa dose de frustração para muitos educandos e
educandas, especialmente em relação à pesquisa.
A 7a etapa aconteceu no mês de julho 2002, na cidade de Cáceres. Diante de
toda a problemática que o curso vinha enfrentando, tomamos como orientação seguir
firmes nos estudos e não continuar os enfrentamentos com a coordenadora, nem com
as cinco educandas. Já havia uma decisão tomada pelo CONEP (conselho que é
instância máxima da Universidade), decidindo que a coordenadora permaneceria até a
conclusão do curso e que haveria um intermediador entre a turma e a coordenação.
Todos e todas saíram animados e dispostos a dar o máximo de si para
realização da segunda fase do estágio supervisionado e a elaboração da monografia
final, preparando-se para a defesa da mesma prevista para os dias 30 e 31 de janeiro
de 2002. Estamos, afinal, chegando ao término de um curso que para nós, apesar de
todos os contratempos, limites e desafios, está capacitando educadoras e educadores
para contribuir na luta pela terra e pela educação dentro do Movimento Sem Terra.
Essa etapa criou na turma a mística da formatura, das discussões internas para
decidir o que fazer para comemorar mais essa conquista. A 8a e última etapa do curso
está prevista para o início de 2003 e o compromisso-juramento que já preparamos para
o encerramento é o seguinte:

Com a certeza do cumprimento da tarefa a nós delegada por crianças, jovens, homens e
mulheres, concluímos o Curso de Pedagogia da Terra. Com a responsabilidade de
continuarmos nos capacitando para contribuir na construção de um sujeito crítico e capaz de
transformar a realidade com base em princípios humanistas e socialistas: reafirmamos nosso
compromisso como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, honrando seus
objetivos, princípios e fortalecendo a sua Pedagogia.
Nós, educadores e educadoras assumimos o compromisso de continuarmos resistindo
ao sistema neoliberal, e assumindo com clareza o Projeto Popular para o Brasil.
Comprometemo-nos a ocupar o latifúndio do saber, romper com as cercas do
analfabetismo, educando jovens e adultos que lutam por um Brasil sem latifúndio.

46
Algumas lições do processo até aqui

1a A luta faz valer. A história deste curso é resultado de lutas desencadeadas por
homens, mulheres e crianças Sem Terra, de acampamentos e assentamentos de vários
cantos do Brasil ao lutarem pela efetivação do PRONERA, e especificamente é
conquista dos trabalhadores e das trabalhadoras do estado do Mato Grosso.

2a Precisamos realizar parcerias com Universidades que tenham mais


experiência e sensibilidade na relação com os Movimentos Sociais.

3a O Movimento Sem Terra deve discutir de igual para igual com os possíveis
parceiros, no caso as Universidades, não aceitando que nos ofereçam projetos prontos
e sem o nosso conhecimento. Isto evitará problemas políticos maiores no decorrer da
execução do projeto. E devemos fazer constar no texto do projeto todas as questões
que consideramos relevantes, como por exemplo, a lógica da elaboração da monografia
final.

4a O MST precisa se preocupar mais com a questão pedagógica do projeto,


ajudando na discussão sobre os conteúdos a serem trabalhados nos cursos. É
importante chegar a elaborar um currículo que satisfaça os anseios e as necessidades
de nossas escolas e do conjunto do Movimento.

5a Reforçamos no curso a velha lição: “o coletivo educa”. Os limites, os desvios,


os vícios, se não são resolvidos cem por cento, são amenizados pelas discussões e
reflexões coletivas. Elas contribuem para que cada companheiro e cada companheira
tomem posição e aprendam a não ficar “em cima do muro”.

6a As situações difíceis, os problemas, as tensões e as crises fortalecem a nossa


mística e unem o coletivo em prol de objetivos comuns.

7a As contradições ajudam a refletir e a avaliar o processo para um maior


amadurecimento político das pessoas.

8a A estrutura organizativa de cada curso propicia, principalmente para os


militantes iniciantes no Movimento, melhor entendimento sobre o MST. Mas é o Tempo
Comunidade que afirma a prática e o fortalecimento da militância.

47
9a A certeza da necessidade de continuidade. O processo pedagógico, a
escolarização, a vontade de continuar se capacitando, o gosto pelos estudos, devem
estar sempre presentes na vida dos militantes do Movimento.

10a É preciso estudar um método melhor de escolha das pessoas para envio aos
cursos do MST, de modo a reduzirmos o índice de desistências, que em nossa turma
consideramos alto. Bem como precisamos aprender a trabalhar com as pessoas que no
processo se revelam contra o Movimento. Afinal de contas, esse é um grande
investimento da nossa Organização.

11a Precisamos fazer de nossas cirandas infantis dos cursos um compromisso


coletivo, desde a organização do seu ambiente educativo, até a responsabilidade com a
educação de nossas crianças, que não pode ser vista como uma tarefa apenas das
mães.

Anexos

Objetivos do Curso
1. Formar quadros-dirigentes para o trabalho de educação e formação para o conjunto do
MST.
2. Especializar educadores para o ensino fundamental e para atuar nos assentamentos e
acampamentos da Reforma Agrária.
3. Avançar na formulação e implementação de uma Pedagogia que eduque o povo na
perspectiva de sua inserção consciente em processos de transformação social.
4. Fortalecer a relação entre o MST e a Universidade, na perspectiva de um projeto
universitário vinculado à classe trabalhadora e no desafio de trabalho imediato na
construção de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil.

Compromissos assumidos pelos estudantes no início do curso


1. Seguir o curso até o seu final.
2. Cumprir com as combinações a serem feitas, em relação à sustentação financeira do
curso.
3. Trabalhar em tarefas definidas pelo MST até pelo menos três anos após a conclusão do
curso.
4. Realizar com seriedade todas as tarefas previstas para o curso, tanto no Tempo Escola
quanto no Tempo Comunidade.
5. Assumir junto com as instâncias do MST e com as instâncias da UNEMAT a condução
coerente do processo de formação e educação, elaborando propostas, discutindo com
os professores, sobre os conteúdos e métodos de ensino, organizando tarefas,
atividades formativas complementares, sempre na perspectiva de atingir os objetivos do
curso e do MST.

48
6. Levar a mensagem do MST ao conjunto da comunidade universitária, ampliando apoios
e possibilidades de intercâmbios, de parcerias e de novas inserções na luta pela reforma
agrária e pela transformação social.
7. Estudar e estudar muito! Com determinação, disciplina, coragem. Companheirismo,
firmeza e clareza dos objetivos do MST com este curso de Pedagogia e com esta turma.
8. Ter uma postura de militante – estudante do MST. Cultivar os valores de solidariedade,
companheirismo, capacidade de organização, e demonstrando clareza ideológica em
todos os momentos e locais.
9. Transformar a prática cotidiana em extraordinária.

Exemplos de textos do dia


Um pensar coletivo
Milton Rêgo
O meu primeiro momento de existência de vida foi lutar no meio de milhões de pequenas
criaturas, consegui entrar no colo do útero da minha de mãe e vir ao mundo. Na minha
adolescência, fui atacado por três vírus de doenças, sendo: congelamento no sangue, trombose
e meningite; fiquei em coma, quase sem chance de sobreviver. Depois de oito meses de
tratamento voltei a brincar, falar, andar, nadar...
Como integrante do Movimento Sem Terra, adquiro novos conhecimentos nessa
caminhada humana, resgatando a nossa cultura. O curso é um espaço de construir novos
caminhos, de pensar e agir diante de cada situação. Encontro na luta o jeito para conduzir o
aprendizado permanente quer seja na sala, na marcha, nos trabalhos, nas ruas, nas
comunidades.
A vontade de fazer e aprender move dentro de mim uma força para dedicar cada vez
mais e avançar nas tarefas de transformação de homens e mulheres para uma nova sociedade.

Mulher ao espelho
Paulo Marcos

Ela, num dia parou...


Não! Não era um dia como os outros. Seus sentimentos, seus prazeres e desprazeres...
foi isso, foi mais que isso. E ela um dia parou.
Parou, não porque se cansou em seus árduos dias... mas por que se viu num caco de
espelho na parede, que lhe mostrava sua face esguia.
Parou... olhou-se novamente e retoma os afazeres. Mas o que foi? É o caco de espelho que cai
no chão batido e suga novamente sua imagem fria... ela? Ela parou... e assim falou: “Fui loira,
fui morena, Maria e Lorena. Professora, companheira, magrinha e mãe solteira... foi tudo o que
quiseram que eu fosse. Só não fui o que sempre quis... só não fui feliz...

Chegamos
Antônia Lima de Barros
Vindos/as de muitos estados desse imenso país, chegamos...
Olhamos a nós mesmos e aos outros, o meio que nos cerca...

49
Vimos o curso num contexto sócio-político, cultural, econômico e social e sentimos que é
necessário refletirmos sobre a nossa identidade social Sem Terra. Reafirmamo-nos como
referência da classe trabalhadora, mas também enquanto construção dialética.
Somos nós, somos nós mesmos, Sem Terra, que chegando, olhamos o mundo e vimos
o que muitos não viram, sentimos a indignação que o comandante Che sentiu. Pensamos em
mudanças, refletimos nossas possibilidades e limitações e buscamos viver com intensidade.
Liberdade....
Amamos de tal maneira, que deixamos nossas famílias, vamos para bem longe lutar
para que haja mudança social pra todos, mesmo aqueles que nos odeiam...
Sim. Somos este povo Sem Terra, que desejamos o novo “porque dele ainda não somos
capazes", como dizia Arthur da Távola, poeta maranhense. Partimos dessas reflexões,
decidimos e mudamos nossa postura, repensamos nossa organicidade, nosso jeito de ver,
olhar, sentir, pensar, buscar, desejar, amar e odiar, mudar o mundo e o nosso próprio jeito de
ser.
Entre certezas e incertezas, construímos e desconstruímos muitas vezes o nosso olhar
histórico sobre o mundo. Ora criticamos, ora reafirmamos nossas crenças e valores.
E entre choros e risos chegamos ao final, levando conosco a certeza de que os erros
precisam ser vistos como caminho para os acertos; e que ambos fazem parte do processo de
construção da sociedade com a qual sonhamos.
Após o choro, a alegria e a indignação, brotam sempre o novo homem e a nova mulher,
os quais cuidam para que o final de cada dia nos traga sempre a certeza de que "o final é
sempre um novo começo”.

50
PEDAGOGIA DA TERRA
Turma Onalício de Araújo Barros

Deusamar Sales Matos, Maria Raimunda César de Souza e


Maria Sueli Ferreira Gomes 1

Um pouco de nós...

Fruto de muita luta e intensas negociações junto a órgãos governamentais, o


MST possui hoje em parceria com universidades públicas mais de 200 estudantes em
processo de qualificação plena em Pedagogia, espalhados em diversos estados
brasileiros. Temos também outras turmas ainda em processo de negociação, e também
parcerias em outras áreas de conhecimentos como agronomia, sociologia, economia.
São conquistas importantes em se tratando de um país que, ao longo de sua história,
sempre negou o acesso de seu povo mais humilde às suas ‘academias’.
No Pará, estado marcado pelo domínio das oligarquias rurais, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra também conseguiu furar o bloqueio imposto contra o
acesso dos movimentos sociais aos espaços do saber acadêmico. Somos hoje uma
realidade no meio universitário deste estado; buscamos a capacitação a partir das
regras formais do ensino, mas também buscamos disseminar nossas utopias de um
mundo mais justo, nossa esperança de que nossos filhos e filhas viverão num país
igualitário e mais humano. Com educadores e estudantes buscamos aprender novos
conhecimentos que auxiliem em nosso trabalho junto aos filhos e filhas da reforma
agrária.
Este texto trata da Pedagogia da Terra da Regional Amazônica – curso de
Licenciatura Plena em Pedagogia, uma parceria do MST com a Universidade Federal
do Pará, através do seu Centro de Educação, e apoiado pelo INCRA, através do
PRONERA, e que escolariza educadores e educadoras do MST dos estados do Pará,
Maranhão, Tocantins, Ceará e Piauí.

1
Educanda e educadoras da Turma e do Coletivo de Educação da Regional Amazônica. Texto recebido
em dezembro de 2002.

51
A turma “Onalício Araújo Barros”

A turma de Pedagogia da Terra “Onalício de Araújo Barros” da Regional


Amazônica, é a quarta do MST em nível nacional. São 44 estudantes oriundos das
diversas regiões dos estados do Pará, Maranhão, Tocantins, Ceará e Piauí. Destes, 31
são mulheres e 13 são homens. Todos são militantes do MST que atuam nas áreas de
assentamentos e acampamentos de reforma agrária como educadoras e educadores
nas escolas ou no trabalho de base para organização do povo.
Em dois períodos do ano (janeiro a março e julho e agosto) os estudantes se
deslocam de suas comunidades para, na Universidade Federal do Pará, socializar e
construir conhecimentos úteis ao processo de escolarização, capacitação e formação
da turma.
Para seu “comandante” os estudantes escolheram o grande combatente e
lutador do povo, companheiro Onalício Araújo Barros, o “Fusquinha”, como chamado.
Fusquinha, Sem Terra assassinado em 26 de março de 1998 pela mão do latifúndio
armado do sudeste do Pará.
Onalício Barros era um pedagogo das massas; sabia como ninguém conversar
como o povo, ouvir e falar. Organizava e liderava multidões de Sem Terra que
carregavam o sonho da conquista da dignidade. O comandante Fusca tinha entre
outros um grande sonho: aprender a ler e a escrever. O sonho de Onalício não foi
interrompido pela crueldade dos que detêm o poder. Pois somos os continuadores de
sua bandeira, do seu sonho, e da luta pela vida.
A turma é mais um fruto da luta incansável do Movimento Sem Terra, que
acredita na educação e na formação do povo como ferramenta de sua libertação.

Organicidade da Turma

Para garantir o bom desenvolvimento das atividades de formação acadêmica,


política e organizativa dos estudantes, a turma vem se organizando de acordo com a
estrutura orgânica do MST. Levamos em conta nossa realidade específica e as
experiências já acumuladas por outros cursos de formação, capacitação e
escolarização. As mudanças são feitas na organização mediante a avaliação contínua
do processo educativo e as necessidades da turma.

52
A organização da turma de Pedagogia da Terra da Regional Amazônica é
composta por seis Núcleos de Base e estes são constituídos a partir de critérios
apontados pela coordenação pedagógica do curso, levando em conta gênero, acúmulo
político, limites e facilidades em acompanhar os estudos. Cada núcleo é responsável
pelo planejamento e execução das tarefas de necessidade da turma: infra-estrutura,
saúde, cultura e lazer, ciranda infantil, secretaria e comunicação; assim como pelas
tarefas do cotidiano com limpeza do patrimônio e mística.
A coordenação da turma é composta por um companheiro e uma companheira
que cada núcleo indica para acompanhar todo o desenvolvimento da proposta
pedagógica da etapa e fazer os encaminhamentos necessários a partir da avaliação do
processo.
Existe ainda a Coordenação Pedagógica do Curso que é constituída de cinco
estudantes indicados pelas direções dos estados do Pará e Maranhão. Estes
companheiros e estas companheiras fazem parte do coletivo de educação de seus
respectivos estados. Esta instância tem a responsabilidade de garantir a nossa
proposta político-pedagógica, bem como os objetivos, princípios e valores que orientam
o MST.
O acompanhamento diário aos estudantes é feito de forma individual e coletiva,
ajudando a identificar problemas que estejam interferindo no seu processo de
aprendizagem e buscando alternativas de solução junto aos educandos.
A vivência coletiva exige respeito mútuo entre as pessoas, companheirismo e
muita paciência. E como estes são valores em construção, torna-se necessário criar
normas que proporcionem uma convivência agradável do grupo. Diante disso
constituímos uma comissão de disciplina, composta por uma pessoa de cada núcleo.
Esta comissão não é uma instância de decisão, mas sim um coletivo importante que
atua junto à coordenação da turma, orientando o cumprimento dos princípios do
Movimento e do regimento interno da turma, e propondo encaminhamentos quando há
comportamentos em desacordo com eles.

53
A Turma em Movimento

O Movimento de lutas internas e externas que acontece simultaneamente ao


Tempo Escola (TE) e o Tempo Comunidade (TC), durante todo o ano, tem sido de
grande relevância no processo de formação e capacitação de educadoras e
educadores dos filhos e filhas da reforma agrária. Tem elevado o nível de consciência
política, social e cultural da turma formando-os como quadros militantes da luta contra
as injustiças e desigualdades que envolvem a classe trabalhadora.
A turma tem procurado participar das diversas lutas, no sentido de manter uma
relação entre conteúdos curriculares e a luta por transformação e dignidade. Assim,
temos realizado ações de solidariedade e de denúncia das injustiças cometidas contra
estudantes e educadores. Apoiamos diversas lutas reivindicatórias dos estudantes dos
Campi Universitários do interior do estado, que tem se deslocado para a capital
exigindo autonomia, melhores condições de estudo, direitos iguais... A turma também
está envolvida nas grandes lutas nacionais, como a luta contra a ALCA e contra a
entrega de parte de nosso território na Base de Alcântara, que é uma tentativa dos
Estados Unidos de recolonizar o nosso país, dentre outras manifestações sociais que o
movimento histórico exige de nós.
Em todas as etapas os estudantes realizam atividades abertas à comunidade
universitária, valendo-se da presença dos assessores nacionais para ministrar palestras
e realizar seminários. Isto tem sido muito estimulante, no sentido de que tem reforçado
nossas relações com outros setores da Universidade. Também tem nos oportunizado
disseminar nossos princípios e ouvir dos participantes, críticas e sugestões diversas
para nosso processo ensino-aprendizagem e a luta pela Reforma Agrária.
Tem sido possível identificar que desde o início do curso surgiram novas
lideranças na turma. Ao retornar para seus assentamentos e acampamentos, vários
estudantes têm se destacado por suas intervenções positivas nas comunidades,
assumindo tarefas e se tornando referência positiva de apoio às lutas coletivas dessas
comunidades. Muitos, porém, carecem ainda de tempo para efetivar uma relação mais
profunda entre as aprendizagens do curso e a realidade de suas comunidades.

54
Durante o tempo escola, a turma está inserida na realidade da Universidade, nos
fatos que ocorrem na capital, fazendo o que é possível para intervir e contribuir com as
lutas dos diversos movimentos sociais.
No tempo comunidade é tarefa de todos estar inseridos em suas comunidades, e
nas lutas do MST como um todo. Assim, além dos trabalhos acadêmicos individuais e
coletivos, é orientação político-pedagógica que todos devem participar das
mobilizações e atividades de nosso calendário de lutas como: a Semana Paulo Freire,
Encontros de Educadores, Mobilização de Sem Terrinha, ocupações de terra,
negociações com órgãos públicos, acampamento de mulheres, cursos de formação.
Sozinha, a turma possui pouca capacidade de intervenção, mas se somando ao
conjunto do MST e dos movimentos sociais, e colocando à disposição as habilidades
adquiridas no curso, é possível contribuir muito.
Acreditamos que estar inseridos na vida de nosso povo seja tarefa de todos os
estudantes que se desafiam a se preparar para estar a serviço deste mesmo povo que
luta por terra, justiça e dignidade.

Filhos da Terra

A Ciranda Infantil “Filhos da Terra” tem garantido a permanência de crianças,


filhos e filhas de mães estudantes, com acompanhamento e cuidados especiais de
educadoras infantis, estimulando e proporcionando às mães maior tranqüilidade e
atenção aos estudos.
Em uma sala na universidade é preparado um ambiente agradável onde crianças
e também as estudantes grávidas podem repousar.
Os trabalhos são desenvolvidos por educadoras que vêm a cada etapa para
assumir esta importante tarefa. Elas têm um acompanhamento feito pelos estudantes
da turma responsáveis pela Ciranda Infantil, que tem a função de orientá-las, e de
desenvolver atividades de formação e capacitação específica para que construam
novos conhecimentos e habilidades para o trabalho com as crianças.
Crianças estudando e brincando nos corredores e uma Universidade?!... No
começo isto causou um certo impacto, chamando a atenção dos que passavam. Aos

55
poucos foi se tornando um símbolo, espaço de visitação, e reafirmação de nossa
identidade, e da continuidade...

Espaços

Durante o tempo escola, para garantir as condições necessárias para a


convivência e o estudo, os estudantes se acomodam em dois espaços: Campus
Universitário do Guamá e Escola Bosque.
No Campus da Universidade acontecem as aulas, palestras, debates,
seminários, e funciona a Ciranda Infantil “Filhos da Terra”.
A Escola Bosque é o espaço que nos foi cedido para o alojamento da turma.
Como a estrutura da Escola é razoavelmente grande, apenas parte está à disposição
dos estudantes: oito quartos com banheiro interno e armários; uma cozinha industrial
com refeitório; uma sala para a secretaria do curso; salas de aula para estudo nos finais
de semana; espaço de lazer; e um auditório quando necessário.
A Escola é localizada em Outeiro, uma das ilhas do município de Belém. Fica
aproximadamente a 40 km do Campus Universitário. Em virtude disso os estudantes
deslocam-se todos os dias às 7h em um ônibus exclusivo, para garantir o início das
aulas às 8h na universidade. Retornam para a Escola Bosque às 18h.
Vale ressaltar que esse espaço é cedido gentilmente ao MST pela Prefeitura
Municipal de Belém, através de sua Secretaria Municipal de Educação.

Descrição do Projeto do Curso

O nome oficial do curso é “Licenciatura Plena em Pedagogia - Modalidade:


Docência em Educação Infantil, Ensino Fundamental – Séries Iniciais, Ensino Normal,
Gestão e Coordenação.”
Como projeto específico da Universidade para o período de 2001 a 2004, seu
objetivo é “qualificar Educadoras e Educadores que atuam nos assentamentos do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, de modo a contribuir para o aumento
da escolaridade e consciência de cidadania.”

56
A justificativa elaborada na época da proposição do projeto para a Universidade
e para o INCRA incluiu as idéias que seguem.

O Centro de Educação da Universidade Federal do Pará e o Setor de Educação


do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, vêm firmar uma parceria
objetivando desenvolver uma educação com qualidade social referenciada, a fim de
atender a uma clientela muito específica: os professores e as professoras que atuam
nos assentamentos do MST e que têm o papel fundamental de formar/educar a partir
de uma concepção diferente de mundo e de sociedade. Concepção esta que privilegia
a luta por uma sociedade justa e igualitária, por uma educação para a cidadania.

O curso que ora delineamos se destina para um grupo de pessoas que


apresenta características distintas daquelas que ingressam no Curso de Pedagogia no
Campus do Guamá. Esse grupo de pessoas é constituído de professores e professoras
que militam na educação em funções docentes e não docentes. Além disso, é
profissional que desenvolve uma práxis política em um contexto social concreto que é a
luta pela terra, em torno qual se desenvolve a luta pela vida e pela cidadania.
Um diploma de curso superior, no contexto da vida dessas pessoas representa
uma oportunidade privilegiada de formação de novos conceitos e valores, mas
representa também, a instituição de uma autoridade (já conferida pela prática) por via
de certificação.

Proposta Pedagógica do Curso

O curso de Pedagogia da UFPA recentemente sofreu modificações na sua


estrutura, principalmente no currículo, estando hoje organizado da seguinte forma:
- Núcleo Básico – Obrigatório
- Núcleo Específico – Obrigatório
- Núcleo Eletivo – Optativo
O núcleo básico tem como princípio a formação do pedagogo fortalecendo o
teórico-prático, visando assim um embasamento teórico que possibilite a construção de
processos educativos em diferentes espaços e dimensões.

57
O núcleo específico objetiva contribuir na formação do pedagogo com vistas a
diferentes campos de atuação profissional abrangendo assim, as séries iniciais da
educação fundamental, a educação infantil e o ensino médio (modalidade Normal) e a
gestão e coordenação.
O núcleo eletivo busca possibilitar ao estudante uma adequação do currículo à
realidade em que está inserido, ou seja, proporciona uma abertura no currículo,
buscando contemplar as necessidades do profissional que surgem nos núcleos básico
e específico. Esse núcleo é de caráter optativo, sendo desenvolvido através de diversos
tópicos temáticos, tais como: educação indígena, educação rural, formação e
capacitação de profissionais em ambientes não escolares, tecnologias informáticas e
comunicacionais, educação especial, educação a distancia e Educação de Jovens e
Adultos. Estes tópicos temáticos podem atender diferentes interesses dos estudantes,
sendo trabalhados no decorrer do curso.
A partir dessa estrutura curricular do Curso de Pedagogia da Universidade
Federal do Pará, a Turma Onalício Araújo Barros (Pedagogia da Terra) do Movimento
dos Trabalhares Rurais Sem Terra, da Regional Amazônica, que está estudando desde
2001 na cidade de Belém, funciona da seguinte forma:
O curso é intervalar, ou seja, acontece em etapas de estudos presenciais nos
meses de janeiro a março e julho e agosto. No entanto, além das aulas presenciais
existe também o tempo comunidade, ou seja, o estudo acontece em dois momentos:
• Tempo Escola – momento das aulas presenciais – No Campus Universitário
do Guamá, Belém.
• Tempo Comunidade – Momento em que segue o estudo nos assentamentos
de acordo com a orientação de cada professor ou professora, desenvolvendo
trabalhos de pesquisas, e objetivando o fortalecimento da relação entre a
teoria e a prática nos diversos campos de atuação dos educandos e das
educandas.
A proposta pedagógica do curso busca desenvolver algumas competências e
habilidades junto aos educandos e educandas no decorrer do curso, como: domínio de
conhecimentos científicos; capacidade de pensar, coordenar, propor, orientar e

58
executar o trabalho pedagógico; compreender que a prática educacional está inserida
no contexto social mais amplo; compreensão dos profissionais como seres sociais.
Quanto ao desenvolvimento das disciplinas, há participação direta dos
educandos, dando sugestões na escolha dos professores de cada etapa e também
para o plano de curso específico de cada disciplina.
A proposta pedagógica do curso através do núcleo eletivo permite uma abertura
para que a turma busque estudos que venham suprir algumas necessidades que
surgem no decorrer das disciplinas obrigatórias, proporcionando assim, um espaço
reflexivo na formação do profissional voltado para as especificidades de sua região.
Nesse sentido, é que criamos em nossa parceria mais um tópico temático que
contemplasse nossas discussões e bandeiras de luta – Educação do Campo.
Nesse contexto, o curso tem procurado se adequar ao perfil da turma, ou seja, à
medida que vão surgindo dificuldades, seja no tempo escola ou no tempo comunidade,
as atividades vão sendo discutidas e avaliadas na perspectiva de que realmente
atendam aos anseios da proposta geral do projeto em ação.
O curso como um todo tem sido um desafio para a Turma Onalício Araújo
Barros, principalmente no desenvolvimento dos trabalhos de pesquisa de campo e sua
apresentação no tempo presencial. As idéias vão se confrontando e tomando novos
rumos, pois é no momento de reelaboração das leituras e atividades práticas que vai se
dando a construção do conhecimento. E é também no confronto das idéias que o curso
vai nos enriquecendo.

Bibliografia

Universidade Federal do Pará. Projeto de Formação de Educadores. Curso de


Licenciatura Plena em Pedagogia, parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra. UFPA: Belém, 2000.

59
PEDAGOGIA DA TERRA DA VIA CAMPESINA
Turma José Martí

Matilde de Oliveira de Araújo Lima e Marilene Hammel 1

O curso

Os Movimentos sociais do campo, e o MST em particular, vêm historicamente


despertando seus grupos de base para a importância do estudo e do direito à
educação, e por isso vêm ocupando a escola e se ocupando dela como espaço
importante de formação de crianças, jovens, adultos, homens e mulheres do campo. Ou
seja, os trabalhadores organizados vêm criando uma consciência do direito à
escolarização, também pelo fato de que a sociedade atual cobra cada vez mais o
domínio das habilidades que a escola ajuda a construir. Hoje há uma demanda e uma
busca muito forte pela escola por parte das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais.
Para contar a história do curso, e especificamente da nossa turma é importante
registrar que ela é fruto das experiências anteriores de convênios dos Movimentos
Sociais com as Universidades, especialmente a partir de 1998, e que também é fruto da
mobilização popular e do governo democrático e popular do Rio Grande do Sul, que
tornaram possível a criação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS.
No início do primeiro semestre de 2001 o MST foi convidado para participar da
discussão sobre a criação da Universidade Estadual, uma vez que o governo do estado
do Rio Grande do Sul daria início à implementação desta proposta que estava em seu
programa de governo. Logo em seguida o governo nomeou uma comissão de
implantação da mesma.
No mês de junho do mesmo ano o ITERRA entregou na comissão de
implantação da UERGS um ofício solicitando uma turma de pedagogia para educadores
do campo. A partir de agosto o ITERRA, o MST e outras organizações populares foram

1
Educandas da turma. Texto recebido em setembro de 2002. Elaborado com base nos textos de registro
da Memória da Turma, que vem sendo produzidos a cada etapa pelo conjunto das educandas e dos
educandos.

60
chamados a contribuir na formatação do projeto dos cursos de pedagogia e de
desenvolvimento rural e gestão agroindustrial da nova Universidade.
As discussões sobre os cursos foram levadas para dentro das organizações e
para a articulação da Via Campesina no Rio Grande do Sul, que reúne o Movimento
dos Pequenos Agricultores - MPA, o Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, o Movimento das Mulheres
Trabalhadoras Rurais - MMTR, a Pastoral da Juventude Rural – PJR, e o Movimento
dos Trabalhadores Desempregados - MTD. Destas discussões surgiu e se definiu a
idéia de que o curso de pedagogia que estava solicitado pelo ITERRA seria com
educandos e educandas do conjunto dos Movimentos da Via Campesina. E foi esta
articulação que tornou possível a conquista da parceria com maior rapidez.
Outro debate importante deste momento foi sobre o local onde deveria se
realizar o curso. Como o próprio projeto global da UERGS prevê sua implementação
em diversos lugares dos estado, e também a realização de parcerias com outras
instituições para garantir mais rapidamente a expansão da oferta dos cursos, a
avaliação feita é que esta turma específica poderia ser realizada nas próprias
dependências físicas do ITERRA, junto ao Instituto de Educação Josué de Castro, já
que as condições de espaço, de equipamentos e de equipe de trabalho eram
adequadas.
A decisão de fazer o curso de Pedagogia em Veranópolis trouxe para os
Movimentos, e principalmente para o MST, uma responsabilidade ainda maior, com
desafios que estamos buscando coletivamente responder a cada etapa. Este fato é
importante porque tem nos permitido maior autonomia pedagógica e porque representa
um avanço a mais no sentido de trazer a Universidade para junto dos trabalhadores e
das trabalhadoras do campo.
A coordenação do curso tem sido partilhada entre o ITERRA e a Área de
Educação da UERGS. A carga horária e a base curricular desenvolvida nesta nossa
turma são as mesmas dos cursos regulares de Pedagogia da Universidade. O mesmo

61
acontece na parceria desenvolvida entre a UERGS e a FUNDEP para o Curso de
Desenvolvimento Rural. 2
Internamente ao ITERRA, e a partir de uma discussão com as organizações da
Via Campesina envolvidas com o curso, tomamos a decisão de organizar um Colegiado
de Coordenação, composto por duas pessoas de cada organização, sendo uma delas
educanda da turma e a outra responsável pelo acompanhamento dos educandos, e
pelas coordenadoras do curso, do ITERRA e da UERGS. O colegiado menor dos
educandos e coordenação interna se reúne sempre que necessário para o processo
pedagógico da turma, e o colegiado maior, com todos os seus membros, se reúne pelo
menos uma vez a cada etapa para avaliações e planejamento.
Como todas as turmas de Pedagogia da Terra, a nossa também realizou uma
etapa preparatória ao curso, com o objetivo de preparar técnica e politicamente os
educandos e educandas para o seu início. A etapa preparatória iniciou no dia 15 de
março de 2002. É importante lembrar que neste momento o Conselho Estadual de
Educação ainda não havia dado o parecer favorável à criação da Universidade, mas a
Via Campesina apostou na mobilização da turma como forma de impulsionar o
processo. O convênio entre o ITERRA e a UERGS para realização desta turma foi
assinado em 28 de março de 2002; e o parecer de credenciamento da UERGS só foi
aprovado pelo Conselho Estadual em 9 de outubro do mesmo ano, já com o conjunto
das turmas da Universidade em andamento, o que foi possível através de autorização
formalizada pelo mesmo Conselho.
O curso de Pedagogia da Terra da Via Campesina tem como nome oficial na
Universidade “Pedagogia Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Educação de Jovens
e Adultos”. Está organizado para acontecer em oito etapas, sendo duas etapas por ano,
em regime intensivo de oito horas-aula diárias. Os objetivos do curso, que constam no
projeto geral do curso de Pedagogia da Universidade são os seguintes:
a) Afirmar a educação enquanto direito humano
b) Democratizar o acesso à informação, ao saber especializado e a cultura acadêmica,
permitindo a compreensão dos processos socioculturais em curso.

2
A Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da Região Celeiro – FUNDEP desenvolve em
Braga, RS, uma turma deste curso da UERGS também para o conjunto dos Movimentos que compõem a
Via Campesina Brasil.

62
c) Desenvolver qualificações que possibilitem fazer o uso e inovar as tecnologias
relacionadas à educação, numa perspectiva emancipatória e de estreitamento das
relações entre educação e desenvolvimento sociocultural regional e global.
d) Formar o professor em suas dimensões política, epistemológica e estética, apto a
desenvolver estratégias educativas e democratizadoras do acesso, do
conhecimento e da gestão educacional.
O currículo está organizado em quatro eixos temáticos, sociedade e educação;
conhecimento e educação; educação anos iniciais do ensino fundamental e educação
de jovens e adultos, e pesquisa em educação. A partir destes eixos se organizam todas
as disciplinas. Todo o processo de ensino e aprendizagem está organizado em regime
de alternância. Cada etapa é composta por um Tempo Escola, que é o tempo de estudo
presencial e um Tempo comunidade, que é de complementação dos estudos e trabalho
de campo, especialmente na área da pesquisa. Além das tarefas do curso os
educandos e as educandas têm neste Tempo tarefas de inserção e de militância em
suas organizações. Estas tarefas são registradas em um relatório que é entregue no
início da etapa seguinte; além de descrever a tarefas desenvolvidas cada educando faz
uma avaliação do seu Tempo Comunidade e de sua atuação. Estas avaliações, bem
como os pareceres elaborados pelos responsáveis de cada organização, são discutidos
no Colegiado de Coordenação do Curso e no Coletivo de Acompanhamento Político e
Pedagógico do Instituto.
A pesquisa tem um lugar importante no curso por estar colocada como
“ferramenta articuladora de saberes locais e globais e exercício imprescindível na
formação humana, sendo ao mesmo tempo, instrumento de leitura do real, de
apropriação de conhecimentos e de intervenção na realidade local e regional”. (Projeto
do Curso). A definição das demandas da pesquisa em nossa turma e a construção de
toda a orientação do trabalho da mesma aconteceu num bonito processo de estudo e
de discussão no Colegiado de Coordenação do curso, que definiu como linha de
pesquisa , Movimentos sociais e Educação do Campo, tendo como tema, os processos
de formação/educação dos sujeitos do campo. São duas questões gerais de pesquisa
que orientarão a elaboração dos projetos de cada educando e educanda da nossa
turma: como são e como se formam/se educam os sujeitos do campo, e como são e

63
como se formam/se educam os educadores dos sujeitos do campo? Ou seja, todo o
trabalho de pesquisa tem como objetivo exercitar o nosso olhar para os sujeitos dentro
do contexto do campo, e em suas diferentes fases de desenvolvimento. Foi decidido
pesquisar as crianças, os jovens, os adultos, os idosos e os educadores do campo.
Cada educando e cada educanda está fazendo a sua opção, orientado pela demanda
de sua organização.
Na segunda etapa do curso foram constituídos os cinco grupos de pesquisa, e
cada grupo terá um orientador específico. Assim os projetos serão individuais, mas com
um importante espaço de discussão coletiva sobre os diferentes aspectos da formação
que estarão sendo pesquisados.
A partir do projeto do curso e do projeto Pedagógico do Instituto, é elaborado o
Projeto Metodológico de cada etapa. O Projeto Metodológico da etapa preparatória e da
primeira etapa foram elaborados pela coordenação do curso e pelo coletivo pedagógico
do Instituto. A partir da segunda etapa passou a ter contribuição direta da turma,
principalmente nos itens que se referem às metas de aprendizagem, ementas das
disciplinas, oficinas e seminários. O desafio da coordenação e da turma é elaborar até o
final do curso o Projeto Pedagógico do Curso, combinando o acúmulo da UERGS, do
ITERRA e do conjunto das organizações envolvidas, uma vez que a Via Campesina
pretende continuar esta articulação e desenvolver muitas outras turmas de Pedagogia.

A turma

Iniciamos com 60 pessoas dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Tocantins. Sendo 47 mulheres e 13 homens. Vinte
e nove educandos e educandas foram indicados pelo MST, sete pela PJR, sete pelo
MAB, quatro pelo MPA, duas pelo MTD e onze pelo MMTR. Hoje a turma está com 56
educandos, sendo onze homens e quarenta e cinco mulheres. Uma das desistências
aconteceu durante o Tempo Escola da primeira etapa, e as outras três desistências
aconteceram durante o Tempo Comunidade da primeira etapa.
A indicação das educandas e dos educandos se deu a partir de expectativas
muito concretas de parte das organizações. Alguns são educadores das escolas e as
organizações esperam que se capacitem para educar e escolarizar dentro da

64
pedagogia do campo; outros são das coordenações dos coletivos de educação e
formação, e as organizações esperam que se tornem de fato dirigentes destes e com
capacitação técnica para atuarem melhor; alguns estão iniciando a militância e os
Movimentos esperam que se tornem militantes educadores e formadores nos grupos de
base onde atuam; outros já são dirigentes e os Movimentos esperam que se capacitem
política e pedagogicamente para que ajudem a conduzir com mais qualidade a sua
organização. “ Em mim foi depositada total confiança, sei que esperam que eu tenha a
capacidade para ser uma educadora do Movimento. Esperam que eu contribua na
elaboração do projeto político e educacional para o meio rural. Foi neste momento que
comecei a ter mais responsabilidade pois sei que um coletivo espera isto de mim.”
(Maristela, educanda do MMTR).
Estas expectativas, que são dos coletivos que indicaram as educandas e os
educandos, são carregadas também por eles, mas nem sempre de uma forma tão
consciente e madura, o que gera alguns conflitos, principalmente para os que estão
iniciando agora e ainda não têm a sua consciência suficientemente formada de
trabalhadora e trabalhador organizado no Movimento Social.
A coordenação do curso e o conjunto do Instituto, na busca de responder estas
expectativas dos educandos e das organizações, vêm organizando o processo de
formação, no estudo, nas tarefas do tempo comunidade e na gestão do curso e do
Instituto, de forma a garantir os objetivos pretendidos, e levando em conta as diferentes
dimensões da formação humana e da capacitação pedagógica.
A média de idade das educandas e dos educandos de nossa turma é de 22
anos. Os mais jovens têm 17 e os mais velhos 40 anos. O tempo de participação nas
organizações também varia, desde iniciantes até aqueles que têm 15 anos de
envolvimento. Toda esta heterogeneidade permite uma importante troca de saberes e
de experiências e coloca desafios para todos no sentido de aprender a conviver com as
diferenças, pois a partir das experiências de vida as pessoas trazem também
expectativas diferentes e em alguns momentos elas se chocam. É nesta convivência
que todos estão aprendendo a aprender e a decidir individual e coletivamente.
Oito crianças também já tomaram parte diretamente da história da turma.
Trazidas por suas mães elas participam da Ciranda Infantil do Instituto. A presença

65
delas provocou o início de uma discussão muito importante, sobre a solidariedade com
as mães e o compromisso coletivo da turma com a educação e o cuidado destas.
Muitos gestos de solidariedade foram praticados desde o cuidado até a compra coletiva
de fraldas. Ainda persiste o desafio no sentido de pensar as crianças como parte da
turma e do Instituto.
A turma está organizada, conforme as demais turmas no Instituto, em Núcleos de
Base, que têm como tarefa participar da gestão do Instituto e garantir o processo
organizativo da turma. O núcleo é coordenado atualmente por duas pessoas, um
homem e uma mulher, e estes compõem a coordenação da turma. Desta coordenação
duas pessoas são tiradas como coordenadores do grupo e que participam, em nome da
turma, da Coordenação dos Núcleos de Base do Instituto. Outra célula de organização
da turma é o Grupo de Estudo, que é espaço de estudo coletivo das disciplinas, onde
se busca superar os limites individuais e coletivos de aprendizagem.
Todas as educandas e educandos estão inseridos também em um dos setores
de trabalho do Instituto e têm quinze horas semanais de trabalho. Os setores
atualmente em funcionamento são: Formação, Educação, Econômico, Serviços e
Restaurante. Estes setores estão organizados em unidades de trabalho, que contém os
postos de trabalho. Cada educando ou educanda é responsável por ocupar um posto
de trabalho que tem atribuições que devem ser realizadas diariamente.
A participação no Colegiado de Coordenação do Curso é uma atividade realizada
pelos seus membros para além de suas outras atribuições. Este coletivo, além de
participar das discussões gerais sobre o andamento do curso e da parceria com a
UERGS, tem também como tarefas a de garantir informações gerais, e as deliberações
e encaminhamentos de sua organização junto aos demais militantes presentes na
turma. Além disso, estes educandos devem garantir as reuniões periódicas por
Movimento para que as pessoas não se sintam distantes das questões específicas de
sua organização durante o Tempo Escola, e possam estar estudando e contribuindo
permanentemente com o debate sobre elas.
Sempre que necessário realizamos os Encontros da Turma para deliberar sobre
questões gerais e específicas de nosso interesse. Estes encontros têm sido importantes
como espaço para criar a unidade da turma e como exercício de autogestão.

66
A turma está neste momento no Tempo Comunidade da 2a etapa. Neste curto
período de curso já podemos registrar muitas situações de aprendizado. Um fato central
é a própria forma de organização do Instituto, que se assemelha ao que acontece nas
organizações, onde se busca uma forma organizativa que permita a participação
concreta de todos como sujeitos. Mas como no Instituto os tempos acontecem no
mesmo espaço e numa seqüência programada, no início, provoca um estranhamento
muito grande nas pessoas. Sem contar que alguns ainda chegam no Instituto pensando
que escola é lugar apenas de estudo. Mas com o tempo este estranhamento vai se
transformando em aprendizado e compromisso com o trabalho e com o estudo. E como
primeira turma da Via Campesina, o grupo tem a nobre e desafiadora tarefa de
elaborar, juntamente com o Coletivo de Coordenação o Projeto Pedagógico do curso.
O sistema de avaliação da UERGS, combinado com o do Instituto tem sido
também um importante provocador e acelerador de novas aprendizagens. No Instituto,
todos os educandos e educadores internos são avaliados levando em conta as
dimensões do estudo, do trabalho e da convivência social. Mensalmente são feitas as
avaliações nos Núcleos de Base e nos Setores de Trabalho e no final de cada Tempo
Escola, o Instituto elabora um parecer que é entregue para cada educando ou
educanda e enviado para quem acompanha as pessoas no seu local de origem; no final
do Tempo comunidade quem acompanha também elabora um parecer colocando os
principais avanços e limites da educanda ou educando e envia para o Instituto. Assim
nem a escola nem a comunidade de origem perdem o contato com os educandos.
Em relação às disciplinas a avaliação segue as orientações da UERGS e os
objetivos do curso. Os educadores têm o compromisso de utilizar pelo menos dois
instrumentos de avaliação por disciplina, com a orientação de que se alternem
momentos coletivos e individuais deste trabalho. Geralmente as educandas e os
educandos são desafiados a produzir textos sobre as aprendizagens construídas
durante as aulas. O desafio é de refletir e sistematizar o aprendizado e não responder
perguntas a partir da lógica e da cabeça dos professores. No final de cada disciplina as
educandas e educandos recebem os seguintes conceitos A – Avança; AR – Avança
com Recomendações; DAC – na dependência de avaliação complementar; P –
Permanência; PF – Permanência por Freqüência Insuficiente. É importante ressaltar

67
que para chegar a estes conceitos os educadores e as educadoras devem levar em
conta as diferentes manifestações de aprendizagem, e em diferentes momentos das
aulas.

Fatos e situações de aprendizado

A etapa preparatória aconteceu dos dias 15 de março a 11 de abril de 2002, e a


primeira etapa de 12 de abril a 31 de maio, no Instituto, sendo o primeiro tempo
comunidade desenvolvido até 1º de julho, e a segunda etapa de 2 de julho a 17 de
agosto de 2002 na escola, com tempo comunidade previsto até 5 de janeiro de 2003.
Apesar do pouco tempo podemos recolher nos escritos e depoimentos de membros da
turma o registro de muitos momentos marcantes de aprendizados.
O ato de abertura do curso. Foi um momento forte para todos e todas, foi o
primeiro contato com o espaço e com os objetivos do curso. Representantes de todas
as organizações se fizeram presentes, algumas delas representadas pelos próprios
educandos, demarcando já de início que a construção do curso seria obra também da
turma. Todas as falas foram no sentido de reforçar o compromisso de todos com o
curso para a efetivação de uma conquista que ainda não estava completa, uma vez que
a Universidade ainda não estava totalmente legalizada, e que a vitória dos
trabalhadores do campo só seria completa quando conseguisse superar completamente
o analfabetismo e o abandono do campo. “Não esqueçam, que o que trouxe cada um e
cada uma de vocês aqui foi o vestibular da luta” (Érico, da PJR). “Busquem neste curso
mais que um diploma, se construam como educadoras e educadores do povo. Quem
paga o estudo de vocês são os trabalhadores. A burguesia nos faz algumas
concessões porque são obrigados a nos engolir, se dependesse dela seríamos
analfabetos, como são tantos em nosso país....” (Mário, do MST).
O vestibular. Foi feito através da elaboração de um memorial. Na etapa
preparatória nos preparamos para esta produção, com aulas de português e com
trabalhos de grupo para falar das histórias de vida e ativar nossa memória, o que foi
muito marcante e um espaço importante para todos se conhecerem. Mas era
impossível evitar a tensão, porque a imagem do vestibular como algo seletivo e
excludente, que alguns já haviam tentado e muitos nem sequer tinham tido a

68
oportunidade de tentar um dia, estava sempre presente. Somou-se a isso o fato de que
a Universidade estava propondo uma turma de 50 estudantes, e as Organizações
propunham trabalhar com todos que atingissem a nota mínima exigida. Os requisitos e
a forma de avaliação também demoraram a ser definidos devido à Universidade estar
ainda se organizando. O adiamento da data de realização do vestibular aconteceu por
duas vezes, à espera da assinatura do convênio entre a UERGS e o ITERRA, o que
deixou a todos ainda mais preocupados. Finalmente ele aconteceu, no dia 1º de abril de
2002. Foi um momento importante onde cada pessoa pode refletir sobre o seu processo
de formação e educação. Para alegria geral o resultado saiu no dia 7 de abril,
comunicando que todos tinham atingido a nota mínima, e podendo assim permanecer
no curso.
Teste de conhecimentos gerais. Por iniciativa da coordenação do curso e do
Instituto, e com objetivo de conhecer melhor os educandos e as educandas em vista de
um planejamento mais adequado, foi aplicado um teste individual de conhecimentos
gerais. A correção foi feita de forma coletiva. Foi importante para cada um também ir
percebendo seus limites e, mais do que isso, foi um momento de aprender
coletivamente. Depois do teste foi colocado no mural por uma educanda da turma o
poema “A ventania” de Eduardo Galeano, que segundo ela retratava o sentimento da
turma após a realização do teste. “Assobia vento dentro de mim. Estou despido. Dono
de nada, dono de ninguém, nem dono de minhas certezas. Sou minha cara contra o
vento, a contra vento, e sou o vento que bate em minha cara.”
Seminários dos Movimentos e das Organizações. Durante a etapa
preparatória, realizamos seminários sobre a história e os objetivos de cada
Organização. Foi um momento de envolvimento de educandos e dirigentes. A mística
marcou muito uma vez que retratava objetivos e também os sentimentos de cada luta.
A mística mostrou aquilo que não se pode explicar sobre o ato de ocupar a terra; sobre
o desemprego, que tira o pão, a dignidade e a auto-estima; sobre a situação das
famílias atingidas pelas barragens, onde não se perde apenas terra, mas raízes; a
juventude do campo com todas as suas angústias e sonhos; as mulheres, que apesar
de exploradas e abandonadas têm força de continuar lutando e sendo fonte de
sustentação da família camponesa; os pequenos agricultores que a cada dia se vêem

69
mais empobrecidos e enganados, e decidem criar sua própria organização. Foi um
momento especial para mostrar a importância de cada Organização no resgate da
dignidade do campo.
Definição dos objetivos específicos da turma. A partir das expectativas
trazidas pelos educandos, da realidade específica e dos objetivos do curso, cada turma
no Instituto é desafiada a discutir e levantar objetivos específicos da turma. Os objetivos
dizem respeito ao que a turma pretende do ponto de vista da formação e dos
compromissos de cada um dos sujeitos que dela participam, tendo claro onde querem
chegar com o curso. Em nossa turma esse processo exigiu em primeiro lugar uma
reflexão sobre as expectativas das Organizações e Movimentos, exigiu que cada
pessoa refletisse sobre os seus objetivos, que a turma refletisse e compreendesse os
desafios da formação da coletividade. Foram várias semanas de debate durante a
primeira etapa para definirmos os seguintes objetivos:
a) Fortalecer a construção da Via Campesina, aprofundando a inserção em nossas
organizações e cultivando na turma e na militância a mística e a identidade de
trabalhadoras/es do campo.
b) Participar na formulação e construção de uma Educação Básica do Campo que
valorize a educação popular, o mundo do trabalho e a prática social.
c) Apropriarmo-nos do conhecimento dos camponeses e das teorias acumuladas
para construir novas teorias e novas práticas.
d) Constituirmo-nos numa coletividade forte, respeitando a especificidade de cada
organização da Via Campesina, construindo novas relações de respeito, diálogo,
solidariedade, humildade e companheirismo, vivenciando e construindo novos
valores.
e) Garantir nossa formação como pedagogos e pedagogas, e como quadros
políticos capazes de compreender a realidade histórica e de intervir nela,
respeitando a diversidade cultural do nosso povo.
f) Desenvolver habilidade e postura de pesquisador / pesquisadora.
g) Aprofundar nossa formação política e ideológica a partir da visão da luta de
classes.

70
h) Apropriarmo-nos da metodologia do trabalho de base acumulada pelas
organizações dos trabalhadores, para desenvolvermos uma pedagogia coerente
com a realidade do campo.
i) Participar da construção de um projeto popular de desenvolvimento econômico e
social do campo, respeitando a história, a cultura e os valores do povo.
j) Desenvolver habilidades na escrita, na oralidade e nas artes para melhorar
nossa comunicação com o povo.
k) Formar através de nossa prática sujeitos com iniciativa, livres e sensíveis em
busca de sua emancipação humana.
l) Termos uma prática que estimule em nossas organizações o debate sobre a
importância e o papel da educação.
m) Sermos coerentes com as expectativas e os objetivos pelos quais fomos
indicados a fazer este curso.
n) Comprometermo-nos com a educação popular, compreendendo-a como meio
para libertação do povo.
o) Formar educadoras/es para atuar a partir das demandas estratégicas da Via
Campesina.
p) Desenvolvermos a compreensão do trabalho e da coletividade como princípios
organizativos e de militância.
q) Desenvolvermos a consciência e a compreensão de que o trabalho, a cultura, o
Movimento Social e a experiência da opressão são matrizes que formam e
educam o ser humano, e que para educar é preciso levar em conta estas
experiências dos sujeitos envolvidos.
A escolha do nome da turma. Foi também um momento de muita
aprendizagem. Os núcleos realizaram estudos individuais e em grupo para propor e
defender nomes. Foi preciso acontecer plenárias e debates acalorados, coordenados
pela própria turma. Foi um exercício real da argumentação, do debate respeitoso de
propostas diferenciadas e de respeito às decisões da maioria. A turma decidiu chamar-
se Pedagogia da Terra José Martí, em homenagem ao educador, revolucionário e poeta
Cubano.

71
Estar longe da família e da comunidade. Esta é uma experiência desafiadora,
e que foi ainda mais profunda pelo fato da primeira etapa ter se iniciado logo ao final do
tempo escola da etapa preparatória, somando mais de 70 dias consecutivos no
Instituto. Isso foi positivo porque permitiu que a turma melhor se conhecesse e
integrasse no ambiente do Instituto, mas provocou também muita saudade. Muitas
pessoas não estavam acostumadas a ficar por tanto tempo longe de seus familiares e
de suas comunidades.
Viagens à capital do estado. A primeira etapa foi marcada também por duas
viagens à capital do estado, Porto Alegre, uma vez para participar da Conferência
Estadual Por Uma Educação Básica do Campo, organizada pela Secretaria de Estado
da Educação em conjunto com as organizações populares, para a qual a turma
assumiu a tarefa de organização da mística de abertura. E a outra viagem foi para
participar do Seminário de formação sobre as conseqüências da ALCA – Área de Livre
Comércio das Américas, para o Brasil, promovido pelas organizações populares. Estas
viagens foram importantes porque permitiram espaços de lazer e integração entre as
pessoas da turma, em torno de uma tarefa concreta fora do Instituto, bem como
proporcionou que a maioria delas se encontrassem com outros militantes de sua
organização e até com familiares.
Elaboração da memória da turma. Em cada etapa é nomeada pela
coordenação da turma uma comissão que juntamente com alguém do Colegiado
Interno de Coordenação, vai juntando os fatos e elaborando um texto narrativo e
reflexivo sobre a etapa, que no final de cada tempo escola ou no iniciar do tempo
escola seguinte é estudado, debatido nos núcleos e concluído por todo o conjunto da
turma. Esta prática tem sido fundamental como momento concreto de reflexão sobre a
prática e também de preparação para a participação qualificada dos educandos na
condução do processo de formação da turma.
Produção de textos. Todas e todos são desafiados a elaborar no final de cada
disciplina um texto sobre as aprendizagens na disciplina e no final de cada Tempo
Escola sobe os aprendizados da etapa e do curso. Este exercício tem sido assumido
com entusiasmo e como um grande desafio, por se tratar de um momento de reflexão e
de olhar não apenas para os conteúdos apreendidos, mas de olhar para o que mudou

72
no seu conhecimento, no seu pensamento, no sentimento e no comportamento diante
do mundo particular e global. “No decorrer destes cinco meses de curso, mudou
completamente minha vida. Já adquiri um grande aprendizado, vale destacar, o estudo
da história a partir de uma visão materialista, a organicidade aqui trabalhada, a
disciplina, não como obediência, mas como postura, na afetividade, no
companheirismo, na organização, no trabalho, no estudo...” (Fabiane, educanda do
MPA). “Somos capazes de afirmar que aprendemos e dominamos um conteúdo quando
nossa prática condiz com o que foi estudado” (Cleusa, educanda do MMTR). “Antes de
chegar no curso eu tinha sido induzido a pensar que a história era movida por grandes
homens iluminados. No curso tive a oportunidade de conhecer como funciona e como
se faz acontecer o movimento da história.” (Maciel da PJR).
Avaliação do Tempo Escola. No final de cada tempo escola a turma faz a
avaliação do período levando em conta os diferentes momentos e tempos educativos;
avalia os avanços e limites da turma e levanta propostas de metas de aprendizagem
para a etapa seguinte, bem como sugestões de conteúdos para as disciplinas,
seminários e oficinas, ou seja, propostas para o Projeto Metodológico (PROMET) da
etapa seguinte. Este momento é importante para que a turma saia unida em torno da
avaliação do que foi a etapa e com compromissos coletivos de avanço para a etapa
seguinte.
A construção da coletividade. A construção de uma coletividade passa
necessariamente pela clareza dos objetivos comuns dos sujeitos envolvidos, objetivos
que ultrapassam os interesses meramente pessoais, pela confiança nas pessoas, pelas
relações de companheirismo. A turma tem muitos desafios ainda neste sentido, mas
muitos fatos demonstram que já existe um caminho percorrido. No início da primeira
etapa uma das companheiras da turma, durante um momento de estudo, pediu a
palavra e disse que queria revelar para todos o porque ela fazia uso de tantos
medicamentos, uma vez que já se sentia em casa e já não se sentia bem em ter
apenas para si sua experiência de vida. Ela explicou que é soro positiva, ou seja,
portadora do vírus HIV. Foi um momento de emoção e de revelação da importância de
uma coletividade onde as pessoas possam ser elas mesmas. Hoje esta companheira é

73
um exemplo de força para todos e contribui sempre que necessário com estudos e
palestras sobre o tema, para o conjunto do Instituto.
O primeiro Tempo Comunidade. Depois de passar tantos dias na escola o
nosso envio para o tempo comunidade foi marcado de muita emoção; alguns disseram
que não sabiam o que doía mais, se a saudade de casa ou se era a dor de deixar
aqueles com os quais tinha criado uma relação quase familiar; mas era o momento de
cada um retornar para suas bases e se inserir novamente nas atividades que tinha
deixado. O tempo seria curto e o desafio era dar conta de curtir a família, fazer as
tarefas e retornar. E foi com muita alegria que, ao retornar para o Tempo Escola da
segunda etapa, todos puderam mostrar orgulhosos todos os trabalhos feitos, além de
uma bagagem maior de conhecimentos produzidos através do estudo e da prática
concreta das lutas e do trabalho de base, agora como militante-estudante e com um
olhar bem mais reflexivo sobre a realidade.
Construção da identidade. Este foi o debate que marcou a segunda etapa. Ele
apareceu em diferentes momentos; no estudo sobre a vida e obra de José Martí, no
aprofundamento teórico dos objetivos da turma, no seminário sobre método de
construção da coletividade e se tornou mais compreensível para todos durante as aulas
de Português, quando a professora, no sentido de engrandecer a turma disse: “vocês
são universitários e precisam se orgulhar disso, vocês precisam dizer o que são...” a
fala dela provocou um silêncio geral na sala, pois de fato, ninguém em nenhum lugar
tinha se apresentado assim, colocando-se em primeiro lugar como universitários. No
momento alguns se encorajaram e puxaram o debate sobre o que de fato dá identidade
a este grupo.
Ficou ainda muito a aprofundar deste debate, mas já temos clareza de que hoje
o que dá identidade à turma é ser dos Movimentos Sociais do Campo, muito mais do
que ser da Universidade, porque o Movimento vem antes e é por isso que estamos
estudando. O curso é fruto da luta dos Movimentos e é assim que deve ser visto e
valorizado.
As desistências. Um fato desagradável que marcou o período do curso até o
momento foi a desistência de quatro educandos da turma. Várias avaliações foram
feitas, tentando explicar o fato, mas nem sempre as atitudes humanas podem ser

74
explicadas racionalmente. O certo é que se tratavam de pessoas que ainda estavam
em processo de definição sobre sua atuação em seus Movimentos de origem. A turma
fez muitas reflexões sobre o fato no sentido de que todos se mantenham firmes, pois a
desistência significa uma perda para os movimentos e para a turma, sendo um
enfraquecimento do curso enquanto conquista da luta.
Gestão do Instituto. Esse tem sido para nós um importante espaço de formação
e capacitação. Os educandos são convocados a contribuir na gestão a partir dos seus
Núcleos de Base, opinando e decidindo desde questões do orçamento até os planos de
produção de cada setor. Essa é a parte mais desafiante de estar numa escola do
Movimento; em outro lugar talvez nem soubéssemos em que se gastam os recursos do
curso. Durante todos os tempos no Instituto, a turma teve uma participação ativa nos
espaços de gestão coletiva, mas isso ainda não foi suficiente para que a turma toda se
sinta realmente sujeito do processo. Este é um aprendizado que não se constrói de
uma vez por todas; é um desafio que se coloca para todo o curso, pois se trata de um
coletivo de pessoas que ao crescer se torna mais exigente consigo mesmo.
“Posso dizer que vivi intensamente este processo, chorei, tive muita vontade de
desistir, ao ser desafiada, logo no início, a coordenar o Núcleo de Base e mais tarde à
coordenação dos Núcleos de Base do Instituto. A contradição profunda exposta serviu
para eu me dar conta de que não tinha para onde fugir, e me educou para ser menos
voluntarista e centralizadora, e, por outro lado, a assumir as tarefas delegadas pelo
coletivo com humildade e espírito de sacrifício.” (Sandra Regina, educanda do MTD)
Momentos culturais e de mística. As noites culturais realizadas nos finais de
semana, e as místicas realizadas todas as manhãs, junto com outras turmas, foram
fundamentais para fortalecer a unidade da turma, para fortalecer a identidade de
trabalhadoras e trabalhadores do campo e para tornar mais próximo de todos os
objetivos da Via Campesina. Também foi muito importante no período da etapa
preparatória o envolvimento com outras turmas do Instituto na preparação e celebração
da Semana Santa. Foi um momento forte de vivência da mística e dos valores da vida,
da esperança, do serviço ao outro e da luta pela construção do reino de justiça e
igualdade, tão sonhado pelos índios, pelos cristãos e pelo conjunto das lutadoras e dos
lutadores do povo.

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O trabalho. Este é um tempo educativo que ocupa um lugar importante no curso
e no Instituto. São quinze horas por semana que são fundamentais, pois além de
garantir a sobrevivência representam um tempo importante de formação e capacitação.
“...Foi na experiência do trabalho que pude melhor compreender o materialismo e os
conceitos marxistas...foi no trabalho que vivi o conflito do dizer ser agricultora e
realmente ser, adquiri a humildade para reconhecer o não saber fazer aquilo que
deveria ser-me comum, já que sou agricultora...”. (Rosimeire, educanda do MST). E
durante um trabalho em mutirão para terminar uma empreitada de colheita de milho,
que realizamos na segunda etapa, uma educanda falou: “Meu pai sempre me disse,
filha vai estudar para sair da roça. Nesta escola é ao contrário, a gente vem estudar
para ir para a roça”.
A convivência. Toda a convivência no Instituto, no estudo, no trabalho e nos
momentos culturais foram muito importantes para fortalecer em cada educando e
educanda o gosto de ser do campo, de ser do movimento social e de ser lutadoras e
lutadores do povo, mas com certeza a construção da identidade individual e coletiva
será também um desafio para todo o curso, e por toda a vida uma vez que, como nos
ensina Paulo Freire, somos seres inacabados.
“Nós viemos ao longo desses meses de estudos teóricos e práticos mudando
nossa existência, pois muita coisa que havia adormecido em nós começa a despertar,
como a força da coletividade, a busca da interpretação da realidade (leitura de mundo),
a crítica e autocrítica, que pode ser citada como um grande momento dessa etapa onde
buscamos a superação dos nossos desvios ideológicos que sem dúvida intervêm e
atrapalham o bom funcionamento do coletivo. O coletivo nos educa pois sem ele, com
certeza, eu não poderia saber quais são os meus desvios e dificuldades na contribuição
com a organização.” (Edson, educando do MST).
“Com a vivência coletiva pude mudar minha maneira de ver muitas coisas, que
antes ignorava ou pensava não ver. Um aspecto interessante e bastante importante foi
a reflexão que passei a fazer sobre as diferentes realidades vivenciadas pelos nossos
companheiros. Assim mudando minha postura um tanto acomodada para uma postura
participativa, passando então a ter tarefas tanto no coletivo do Instituto, quanto no
coletivo do Movimento de Mulheres....Aprendi a ser menos individualista. Parei de

76
pensar só em mim e comecei a pensar mais no geral, no coletivo.” (Maristela, educanda
do MMTR).
O estudo. O curso está organizado de forma a proporcionar vários espaços de
leitura e estudo, individual e coletivo; o objetivo é despertar para a importância do
estudo e sua ligação com a realidade. “Somos desafiados a construir um novo projeto
de sociedade o que faz brotar em nossa coletividade, a solidariedade, companheirismo,
espírito de sacrifício e igualdade, onde se vive hoje aqui o que queremos o que se viva
em toda sociedade. Neste sentido somos desafiados a estudar a realidade e
fundamentalmente é preciso ler muito para que a leitura nos ajude nesta compreensão,
portanto estou adquirindo gosto pela leitura neste curso” (Edson).
“Um fato que marcou para mim, com bastante intensidade, a caminhada até o
presente momento, é a forma como começo a conceber as teorias acumuladas. Eu
sempre achava que os livros e quem os escrevia não eram importantes, pensava que
eu próprio deveria escrever, elaborar teoria e que isto viria a acontecer a partir de
minha cabeça. O estudo das concepções de educação, de aprendizagem e de mundo,
com mais a questão da pesquisa, seu desafio e meus limites, me colocaram contra a
parede e então eu comecei a perceber o quanto estava sendo ingênuo e até arrogante.
Percebi que a realidade está na realidade e não na minha cabeça; minha cabeça pode
entender a realidade, ler a realidade, mas não serei eu quem vai descobrir a roda da
história. A partir deste entendimento começo a ser mais humilde em saber que preciso
buscar conhecer o acúmulo que já existe sobre a história.” (Joceli, educando do MAB)
A pesquisa. Desde a primeira etapa a turma teve contato com a disciplina de
pesquisa e já iniciou o exercício de observação da realidade, tanto no Tempo Escola
quanto no Tempo comunidade. Foi marcante o trabalho de observação no primeiro
Tempo Comunidade. Durante a apresentação e discussão do exercício no Tempo
Escola o coletivo se deu conta de que olhar para os sujeitos não é uma tarefa simples;
muitos se deram conta de que olharam para tudo na realidade, menos para as pessoas
que são de fato quem constrói e sofre as conseqüências desta realidade.
Contribuição financeira dos educandos. Com a dificuldade de receber os
recursos previstos no convênio com a Universidade, e também porque não eram
suficientes para cobrir todos os nossos gastos, discutimos que cada pessoa deveria

77
contribuir com um valor financeiro. Para garantir esta contribuição cada organização se
articulou de acordo com suas possibilidades. No caso dos educandos do MST, uma
parte é de responsabilidade de cada pessoa e a outra parte está sendo garantida pelo
Movimento. O fato incentivou a nossa mobilização enquanto educandos, e a prática
concreta da solidariedade com aqueles que têm mais dificuldades em conseguir sua
parte. A venda de pastéis, o trabalho em festas na cidade e as empreitadas nas
lavouras em alguns domingos foram algumas das alternativas encontradas. Com
certeza este é um desafio que permanecerá forte ao longo do curso. 3

Lições e desafios

Apesar de recém iniciado o curso, a vivência intensiva de dois Tempo Escola e


de um Tempo Comunidade, já nos permite extrair das discussões e das elaborações
que fizemos algumas importantes lições que se traduzem também em desafios para o
conjunto dos sujeitos e coletivos envolvidos.
1. Fazer do curso um espaço privilegiado de construção da unidade camponesa.
A articulação entre os Movimentos e as organizações passa, fundamentalmente, pela
compreensão de projeto dos sujeitos e pela incorporação da identidade de lutadores e
lutadoras do povo, ou seja, exige compromisso de classe, que vai além da luta de sua
organização.
2. Criar e fortalecer nos educandos o vínculo e a identidade do campo e com o
campo e compreender e assumir os desafios da educação do campo. Sabemos que
muito de nossos jovens que moram na área rural não mais se identificam com a cultura
do campo.
3. Estreitar em cada etapa o vínculo entre o conteúdo e a prática das educandas
e dos educandos de forma que correspondam cada vez mais às expectativas e
necessidades das organizações e do campo neste momento histórico.

3
Nestas primeiras etapas do curso um apoio importante que recebemos foi do Programa Políticas da
Cor, do Laboratório de Políticas Públicas – LPP da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, que
aprovou um projeto do ITERRA intitulado “Educadoras e Educadores Sem Terra na Universidade”. Este
projeto tem ajudado a viabilizar este início de permanência do conjunto dos estudantes no curso,
contribuindo especialmente com a realização de atividades durante o Tempo Comunidade.

78
4. Fazer dos momentos de elaboração teórica, tempos que contribuam para a
reflexão das aprendizagens individuais e coletivas e sobre o processo de organização e
implementação do curso.
5. Que o coletivo dos educandos e das educandas se torne a cada dia mais
sujeito ativo da construção do curso. E que ao sair dele, cada uma e cada um tenham
aprendido, além dos conteúdos, como melhor organizar um processo coletivo de
educação, formação e capacitação.
6. E que a pesquisa sirva como instrumento de qualificação da intervenção de
cada educando e educanda na luta, e que seus resultados contribuam para uma melhor
participação das organizações na transformação da realidade do campo e do país.

79
PEDAGOGIA DA TERRA
Formação de identidade e identidade de formação

Roseli Salete Caldart 2

“O verdadeiro movimento nunca aparece como o


concebiam aqueles que o prepararam.”
(F. Engels, 1857)3

O objetivo deste texto é ajudar no processo de registro e de reflexão das práticas


de formação de educadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em
especial daquelas que vêm sendo desenvolvidas através dos cursos de graduação em
Pedagogia, realizados em parceria com um conjunto de Universidades brasileiras.
Além de narrar e contextualizar rapidamente a trajetória do MST com estes
cursos, a proposta é iniciar uma reflexão sobre como a experiência das diferentes
turmas vem construindo uma identidade de curso e de processo de formação, que
precisa ser compreendida e cultivada pelos seus próprios sujeitos. De nome-apelido, a
expressão Pedagogia da Terra vai aos poucos identificando a presença de
determinados sujeitos na Universidade, bem como um jeito talvez novo de fazer e de
pensar a formação das educadoras e dos educadores do campo.
O setor de educação do MST tem se colocado como desafio multiplicar estas
experiências e também potencializá-las ao máximo como espaço de formação de seus
militantes. Para isso precisamos fazer o esforço de compreender a historicidade da
Pedagogia da Terra: a que tempo do Movimento corresponde, com que discussões
mais gerais de educação se vincula, a que questões da realidade tem buscado
responder, e que transformações projeta para o trabalho de formação-escolarização de
educadores.

O MST e o Curso de Pedagogia

2
Do Setor de Educação do MST e da Coordenação Pedagógica do ITERRA. Texto elaborado em
novembro de 2002.
3 a
Apud Konder, Leandro. O futuro da filosofia da práxis. 2 ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

80
Como já foi analisado em outros textos, o primeiro envolvimento do MST com
cursos formais de formação de educadores foi com o curso Magistério, sendo sua
primeira turma iniciada no Rio Grande do Sul em 1990. Na origem deste curso há uma
circunstância objetiva bem específica relacionada à luta por escolas públicas nos
primeiros acampamentos e assentamentos: era preciso garantir professores nossos nas
escolas conquistadas em cada área. Isto fazia parte da luta pela Reforma Agrária e
seria a forma de começar a discussão sobre a educação pretendida pelas famílias
ligadas ao Movimento. Então era preciso titular professores oriundos dos próprios
assentamentos, de modo que pudessem disputar vagas nos concursos e contratações
públicas.
A partir da experiência das primeiras turmas foi possível transformar a opção
circunstancial de trabalho com cursos desse tipo em uma escolha consciente. A prática
nos mostrou a potencialidade política e pedagógica deste processo mais sistemático e
mais longo de formação de educadores. Ou seja, logo estes cursos começaram a ser
vistos como lugares de formação de militantes da educação no MST, e não apenas
para o trabalho direto nas escolas. Logo também o Movimento passou a criar outros
cursos técnicos de nível médio, até que chegamos a ter nosso Instituto de Educação
Josué de Castro (IEJC), que é uma escola de educação média e profissional ligada ao
Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, o ITERRA.
Com a ampliação dos seus objetivos, os cursos de Magistério também foram
passando por diversas adequações curriculares e de condução geral do processo
pedagógico. A experiência com os cursos de Magistério segue até hoje, também
através de parcerias com Universidades e Secretarias de Educação. No IEJC estamos
iniciando no final de 2002 a nona turma, agora com a nova denominação exigida pela
atual legislação: Curso Normal de Nível Médio. Desde 1995 temos cursos de Magistério
também em outros estados. Começou com uma turma no Espírito Santo e depois na
Paraíba. Atualmente temos turmas no Mato Grosso do Sul, em Sergipe, na Bahia, no
Pará e no Maranhão.
Foi no final do ano de 1994 que discutimos como setor de educação a
necessidade de organizar um curso de educação superior na área de pedagogia. A
história se repete e não se repete. Para chegar na primeira turma de Magistério o MST

81
negociou por mais de três anos possibilidades de parcerias que garantissem uma turma
específica de professores de assentamento, até que acabou decidindo criar seu próprio
curso, contando apenas com a experiência anterior desenvolvida por educadores e
educadoras que ajudavam no trabalho do recém-criado setor de educação do MST. No
caso do curso de Pedagogia, já havia toda a experiência refletida das turmas de
Magistério, mas também a clareza de que neste caso a única possibilidade viável em
curto prazo seria a da parceria com uma Universidade.
Passamos então de 1995 a 1997 fazendo audiências e reuniões com diversas
Universidades Federais, Estaduais e Comunitárias, especialmente do centro-sul do
país, até conseguir iniciar a primeira turma em janeiro de 1998, em parceria com a
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ, com sede
na cidade de Ijuí.
Para este curso a circunstância objetiva impulsionadora da demanda foi um
pouco diferente da anterior. Embora tenha pesado e continue influenciando na criação
de novas turmas a necessidade de titulação dos professores para as escolas dos
assentamentos e acampamentos, até pela nova legislação que prevê o curso superior
como formação mínima para o trabalho nos anos iniciais da educação fundamental, não
podemos dizer que essa tenha sido a motivação determinante. O que pesou mais foi a
constatação da fragilidade de formação pedagógica das pessoas responsáveis pelo
setor de educação nos estados, que começaram a perceber seus limites na condução
de certas tarefas, especialmente aquelas relacionadas ao acompanhamento das
escolas de educação fundamental, mas também diante dos desafios da educação de
jovens e adultos, da educação infantil e da coordenação geral do setor. E os membros
do coletivo nacional que já tinham feito nossos cursos de Magistério sentiam mais ainda
a necessidade de continuar estudando, diante de um mundo de conhecimentos que
apenas começava a ser vislumbrado.
Um momento importante na produção da consciência desta necessidade foi um
curso não formal que o setor de educação organizou em janeiro de 1994 para o seu
coletivo nacional ampliado. Foram 20 dias de estudos e de desafios práticos de
elaboração de materiais e de propostas de ação em cada uma das frentes de atuação
do setor. O curso, realizado em Belo Horizonte, MG, foi chamado de “curso de

82
pedagogia”. Muitos dos materiais iniciados nas oficinas deste curso só puderam ser
concluídos anos depois, aguardando o amadurecimento necessário. O caderno sobre
educação fundamental, por exemplo, só chegou a ser editado em 1999. A experiência
mostrou ao mesmo tempo as lacunas da formação dos quadros do setor e as
potencialidades pedagógicas de tornar mais sistemática um tipo de formação como a
realizada nestes dias.
Foi nesta perspectiva que a primeira turma do curso de Pedagogia, formalmente
assim dito, reuniu boa parte do nosso coletivo nacional de educação e iniciou com
grandes expectativas. Tal como tínhamos conseguido fazer do Magistério um lugar de
elaboração teórica do projeto de educação do MST, esperávamos agora fazer do curso
de Pedagogia um lugar de aprofundamento e discussão da Pedagogia do Movimento,
de formação política mais ampla para os integrantes do setor e de elaboração
específica em educação fundamental, educação de jovens e adultos e educação
infantil.
O contexto mais amplo das lutas do MST também ajuda a compreender a origem
e o processo de construção do curso. Estávamos vivendo o momento de abertura do
Movimento à sociedade e de reafirmação da questão agrária na agenda política
nacional, com todas as implicações e relações com lutas mais amplas que isto passou
a significar. Também é importante relembrar que no mesmo ano em que começamos a
primeira turma de Pedagogia realizamos a I Conferência Nacional Por Uma Educação
Básica do Campo, ampliando o leque de articulações e a abrangência de nossas lutas
específicas por educação.
O entusiasmo foi tanto que a partir de 1999 já foram iniciadas turmas de
Pedagogia em outros estados, com outras parcerias. Com a Universidade Federal do
Espírito Santo iniciamos uma turma no campus de São Mateus; e com a Universidade
Estadual de Mato Grosso, no município de Cáceres. No ano seguinte aconteceram as
negociações com a Universidade Federal do Pará e em 2001 começou o curso em
Belém. As turmas passaram a ser de caráter regional e a receber também um bom
número de educadoras e educadores das escolas de assentamento, e também de
nossos programas de educação de jovens e adultos.

83
A análise era de que o momento do MST exigia multiplicar os processos de
formação; não podíamos repetir o mesmo ritmo inicial que tivemos na implantação dos
Magistérios. Em alguns lugares foram as próprias Universidades que procuraram o MST
para discutir a possibilidade de parceria. O momento conjuntural começava a mudar e a
criação do PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) em 1998
pelo governo federal, também parecia facilitar mais as negociações com as
Universidades. 4
Nas negociações e no diálogo com as Universidades o formato da solicitação
geralmente tinha (e tem) como elementos básicos: a constituição de uma turma
específica para nossos estudantes do MST (ou turma especial na linguagem das
Universidades), incluindo uma forma diferenciada de organização curricular (geralmente
em etapas alternadas) e também de vestibular; condições dignas de estudo e de
moradia nos locais de realização da turma; adequações na base curricular do curso de
Pedagogia já existente na Universidade em vista de demandas de conhecimentos
relacionados à educação do campo, geralmente não consideradas nestes currículos.
Na primeira turma, em Ijuí, RS, conseguimos que a Universidade criasse uma
nova habilitação, pioneiramente começando a formar, em um curso de Pedagogia,
educadores para o conjunto da educação fundamental, e não apenas para os anos
iniciais, como é o mais comum atualmente. Nas turmas posteriores oscilamos entre
uma adequação de ementas e acréscimos de componentes curriculares ofertados.
Entre 2001 e 2002 o MST foi chamado a um desafio novo: ao buscar parcerias
para realizar uma nova turma no Rio Grande do Sul acabou participando da criação de
uma nova Universidade, a UERGS ou Universidade Estadual do Rio Grande do Sul.
Junto com o Movimento dos Pequenos Agricultores, o Movimento dos Atingidos por
Barragens, o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais, o Movimento dos
Trabalhadores Desempregados e a Pastoral da Juventude Rural, o MST deu início
então à primeira turma de Pedagogia da Terra da Via Campesina Brasil.

4
Este programa foi uma das reivindicações do MST formuladas em diálogo com representantes de
algumas Universidades durante o I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária
– I ENERA, realizado no mês de julho de 1997 em Brasília. Com este programa foi possível conseguir
recursos específicos para o desenvolvimento de cursos de formação de educadores através de
convênios entre o MST, as Universidades e o INCRA.

84
O curso começou em março de 2002, através de convênio formalizado entre a
UERGS e o ITERRA, sendo garantida sua realização na própria sede do ITERRA, em
Veranópolis, RS, outro desafio novo para o Movimento. Como a própria Universidade
estava discutindo o projeto pedagógico e a base curricular de seus cursos, aqui foi
possível participar da discussão de formatação geral do currículo, o que não excluiu a
necessidade posterior de adequações das ementas aos objetivos e às características
peculiares da turma, tarefa facilitada pelo fato do ITERRA ter participação direta na
coordenação do curso. Esta experiência certamente merecerá uma análise específica,
mais adiante, pela novidade de algumas questões que coloca e porque outras
iniciativas semelhantes, com a Via Campesina ou com a articulação Por Uma Educação
do Campo, já começam a ser discutidas também em outros estados.
O MST continuou neste ano de 2002 as negociações para a abertura de novas
turmas em outros lugares. No Rio Grande do Norte, em julho deste ano foi iniciada uma
nova turma em parceria com a UFRN; e no Espírito Santo está previsto o início de uma
segunda turma em parceria com a UFES. Outras negociações estão sendo feitas no
Paraná, em São Paulo e Minas Gerais. A primeira turma teve sua formatura em julho de
2001; a turma do Espírito Santo em junho de 2002, e a próxima a concluir o curso é a
do Mato Grosso em 2003.
A partir da formatura da primeira turma, e pela necessidade de aumentar o
número de turmas em todo o país, o coletivo nacional do setor de educação passou a
dedicar mais tempo e reflexão a esta frente dos cursos formais, tanto de Magistério
como de Pedagogia, sendo ponto de pauta obrigatório em todas as reuniões ou
encontros que realiza. As discussões principais têm sido sobre as possibilidades e os
limites da relação do Movimento com as Universidades, e sobre a especificidade da
condução de um processo pedagógico em cursos como estes.
Outros setores e outras instâncias do MST também passaram a incluir os cursos
formais em sua agenda de discussão, passando a olhá-los como espaços de formação
de técnicos e de militantes. A discussão passou a abranger todos os cursos
desenvolvidos nas diferentes áreas. É preciso lembrar que o primeiro curso técnico de
nível médio na área de administração de cooperativas iniciou em 1993, estando hoje
em sua oitava turma. Há hoje também cursos na área da saúde, da agropecuária e da

85
comunicação. Um curso superior na área de desenvolvimento rural e gestão
agroindustrial iniciou na FUNDEP em 2002, no mesmo convênio que envolveu os
Movimentos da Via Campesina e a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul.5
No debate temos destacado o significado histórico deste processo de ocupação
da Universidade pelo Movimento Social. Os sujeitos de ambos têm se educado
reciprocamente e contribuído na projeção/construção de políticas públicas que
permitam avançar na democratização do acesso do povo à educação e a uma
educação voltada aos seus interesses sociais.
É também neste momento que começamos a refletir melhor sobre os significados
deste nome, Pedagogia da Terra, que já foi popularizado como identificação comum às
diversas turmas do MST, e agora passa a ser uma construção do conjunto de
movimentos e organizações da Via Campesina.

A formação de uma identidade de formação

O nome Pedagogia da Terra surgiu de forma casual e sem uma intencionalidade


prévia. Apareceu primeiro como nome de um jornal que a primeira turma, a Turma
Salete Strozake de Ijuí, RS, decidiu fazer já em sua primeira etapa para contar aos
demais estudantes quem eram estes novos freqüentadores da Universidade, que para
muitos pareciam esquisitos demais com sua agitação, seus bonés e bandeiras
vermelhas, suas crianças, seu jeito. O batismo foi uma espécie de intuição política e
pedagógica da turma sobre uma diferenciação que precisava ser destacada e uma raiz
que não deveria ser abandonada, especialmente diante da insistência com que a
Universidade passava a chamá-los de “acadêmicos”.
Quando o jornal da turma começou a circular no setor de educação, o nome
pareceu simpático e logo passou a ser utilizado como uma espécie de apelido do curso:
“a turma da Pedagogia da Terra!” Nas negociações das novas turmas a expressão foi
incorporada e hoje já se tornou linguagem comum: as próprias Universidades
identificam as turmas do Movimento com este nome, embora nenhuma delas tenha
chegado a incorporá-lo na designação oficial do curso, com o argumento de que isto

5
FUNDEP: Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da Região Celeiro. É também uma
entidade educacional vinculada aos movimentos sociais do campo, com sede no município de Braga, RS.

86
implicaria em uma desgastante tramitação burocrática, e desnecessária para o que de
fato importa: o respeito a uma identidade que aos poucos se constitui nesta relação
entre os Movimentos Sociais do Campo e a Universidade.
Mas um nome pode ser apenas um nome: identifica, mas não significa, até que
se construam coletivamente estes significados, e em um contexto de relações e,
geralmente, de contradições e de conflitos. Uma identidade é uma marca de
pertencimento a um determinado grupo, que se diferencia de outros, ou que se
contrapõe a outros grupos, outros traços de cultura, outro jeito de ser. Pode ser, pois,
de conformação ou de resistência ao ambiente social em que se origina.
Quando os estudantes do MST passaram a se chamar de pedagogos e
pedagogas da terra, estavam demarcando e declarando este pertencimento: antes de
universitários somos Sem Terra, temos a marca da terra e da luta que nos fez chegar
até aqui.
O processo de construção da identidade de Pedagogia da Terra acabou sendo
mais acelerado quando esta afirmação tornou-se ou foi entendida como confronto.
Quando alguém da Universidade em algum momento, e no contexto de determinadas
situações objetivas, disse à turma de Ijuí, “vocês não são Pedagogia da Terra, vocês
são PEF!”,6 talvez sem saber acabou desencadeando um rico processo de construção
de significados para este nome, que se desdobra até hoje e vem à tona nas
contradições que afloram em outros lugares, outros tempos e com outras
Universidades: estaríamos, afinal, diante de dois cursos? A conclusão foi formulada por
uma das educandas de Ijuí no dia de sua formatura: “hoje estamos encerrando o PEF,
porque o Pedagogia da Terra nós mal iniciamos...”.
Precisamos compreender isso melhor: estamos dizendo que a trajetória das
turmas de Pedagogia do MST, e agora também da Via Campesina, está constituindo
um determinado jeito de estar na Universidade, de ser um estudante universitário, e de
fazer formação de educadores, cuja marca simbólica tem sido este nome: Pedagogia
da Terra. Só que talvez isto ainda não esteja assim tão claro para os mais de 200
estudantes que estão nestes cursos; e nem mesmo para as equipes de educadores e

6
PEF é a sigla da designação oficial do curso na Universidade: “Pedagogia para Magistério no Ensino
a a
Fundamental: séries iniciais e 5 a 8 séries em, ou Matemática, ou Ciências, ou Língua Portuguesa, ou
Estudos Sociais”.

87
de educadoras que realizam cotidianamente seu acompanhamento. É por isso que há
necessidade de refletirmos mais profundamente a respeito, para que esta construção
avance em intencionalidade e qualidade. O desafio é passar de uma identidade de
resistência a uma identidade de projeto (Castells, 2000).7
Buscando analisar o processo de constituição desta identidade é possível afirmar
que ele hoje se apresenta em duas dimensões principais que na prática se realizam de
modo simultâneo e ainda fragmentado, mas que acabam nos indicando alguns traços
fundamentais de nossa pedagogia, e o rumo dos desafios político-educativos que
temos pela frente.
A primeira dimensão pode ser dita assim: a identidade da Pedagogia da Terra
vem se constituindo como crítica aos formatos mais tradicionais do curso de Pedagogia
e à concepção de educação ainda dominante na Universidade.
Trata-se de uma ‘crítica prática’ ou de uma ‘resistência afirmativa’. Ou seja, em
cada turma se vai ajustando o jeito de fazer o curso e nestes ajustes, que têm muito de
contraponto, vai se formulando esta crítica. E isto, diga-se, não se realiza contra a
Universidade, mas com ela, no movimento das contradições próprias a uma relação
entre sujeitos tão diferentes, e também nas sintonias com professoras e professores
universitários que buscam construir uma Universidade mais próxima às necessidades
do povo e ao projeto político da classe trabalhadora.
Ao olhar para o que vem acontecendo em cada uma de nossas turmas, é
possível perceber pelo menos dois eixos principais em torno dos quais esta crítica está
sendo feita:
1º) O que e como estudar.

7
Manuel Castells analisa o processo de construção social da identidade e aponta três formas e origens
desta construção: a identidade legitimadora é aquela introduzida pelas instituições dominantes da
sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais; a
identidade de resistência, criada por atores que se encontram em posições ou condições desvalorizadas
e ou estigmatizadas pela lógica da dominação, e que constrói trincheiras de resistência e sobrevivência
com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a
estes últimos; e a identidade de projeto é aquela em que os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo
de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na
sociedade, e ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social. (O poder da identidade,
vol. II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 24) Aqui estas expressões indicam apenas uma inspiração
de análise; um curso ou uma prática de formação não chega a ter a materialidade necessária à
constituição de uma identidade social. Mas sem dúvida é possível buscar vê-lo (e fazê-lo) na perspectiva
desta construção.

88
Em praticamente todas as nossas experiências8 foi organizado um programa
paralelo (“extraclasse”) de estudos; o previsto pela base curricular do curso não bastou.
Como entender isso? Talvez recorrendo à análise do contexto mais amplo de que
fazem parte estes educandos e estas educandas. O momento político atual é complexo
e os embates passam a ter múltiplas questões e inclusive diferentes tipos de
materialidade. O Movimento exige de seus militantes uma leitura cada vez mais
abrangente e mais rigorosa da realidade social, e em especial da realidade do campo.
Isto implica na apropriação de teorias que de modo geral não integram mais (ou em
alguns casos nunca integraram) os cursos universitários, e menos ainda os da área da
educação. A sensação de quem está terminando os cursos é de que em alguns
aspectos estão atrasados em relação a outros companheiros que continuam fazendo
apenas os cursos não formais mais breves (mas de atualização mais dinâmica) de
formação do próprio Movimento.
No campo específico da pedagogia, o que a dinâmica do Movimento pede é a
preparação de pessoas capazes de compreender e de implementar a Pedagogia do
Movimento, na escola e fora dela; pedagogos e pedagogas que consigam ajudar o
conjunto da organização a ter mais claro o que significa fazer a educação do povo na
perspectiva de torná-lo sujeito das transformações, que façam do próprio Movimento o
pedagogo referência para sua tarefa de educar, e ainda que demonstrem um certo
traquejo para participar dos embates da construção de políticas públicas de educação
do campo...
E se é verdade que isso não é um projeto de curso, mas sim de formação de
vida inteira, as expectativas se frustram ainda mais quando nos deparamos com um
curso onde predomina uma concepção tradicional de pedagogia: além de
excessivamente escolar, com um conceito bastante limitado de escola, e com
pouquíssimo estudo de teoria pedagógica. Já tivemos turmas em que o estudo da obra
de Paulo Freire, por exemplo, teve que integrar o programa paralelo de estudos, porque
este clássico já não integra o currículo regular do curso de Pedagogia (!). Da mesma

8
A exceção por enquanto é a da turma que acontece em nosso próprio espaço, o ITERRA. A discussão
ali é sobre a necessidade ou não de garantir momentos específicos de estudo por Movimento.

89
forma isto tem acontecido com o estudo da filosofia da práxis e com as temáticas da
educação do campo.
Diante dessa realidade, cada turma por sua iniciativa e também o setor de
educação do MST a partir de reflexão sobre a experiência das primeiras turmas, vêm
organizando um programa de leitura dirigida e de seminários que se realizam para além
das aulas regulares do curso, e que visam incluir o estudo de temas e de teorias
consideradas necessárias à formação pretendida, além de um espaço mais dinâmico
de diálogo sobre as práticas pedagógicas em que estes estudantes estão envolvidos no
cotidiano do Movimento.
Na mesma perspectiva se colocam as discussões que temos feito com as
Universidades para inclusão, no próprio currículo oficial, de estudos eletivos, da
pesquisa e elaboração de um trabalho de conclusão de curso, da possibilidade de
combinar alguns estudos com a produção de materiais e com o planejamento e
realização de atividades nas diferentes frentes de atuação pedagógica do Movimento.
Através da análise destas iniciativas certamente é possível identificar alguns
traços da identidade da Pedagogia da Terra não apenas no que se refere ao que
estudar, mas certamente ao como estudar na perspectiva da construção de
conhecimentos vinculados ao desafio de ações transformadoras. Ou seja, há uma
discussão a ser feita sobre que teorias privilegiar na formação destes pedagogos e
pedagogas, mas também sobre como é possível ajudar cada educando a construir
conhecimentos desde suas vivências sociais e no diálogo com teorias já produzidas.

2º) Que tempos e atividades considerar como parte do processo da formação.

Em todas as turmas a organização do currículo do curso se dá através de etapas


intensivas, onde o tempo de estudo na Universidade acontece de modo geral em quatro
meses concentrados no início e na metade do ano. Trata-se de um cronograma que
viabiliza a presença de pessoas que moram distantes da sede da Universidade
(incluindo outros estados), e que podem permanecer em seu trabalho local como
educadoras nos outros meses do ano.
Este formato traz algumas implicações para o dia a dia do curso. A vida em
comum de um grupo relativamente grande de pessoas (que na maioria dos casos inclui
também a presença de crianças menores, trazidas pelas educandas-mães), e que já

90
tem uma referência de organização coletiva, produz um conjunto de outros tempos e
outras atividades diárias que não apenas as aulas, propriamente ditas. Isto na maioria
de nossas experiências tem se tornado um embate com a Universidade, explicitando
contradições importantes: para as Universidades a formação é igual a aulas e o que
pretendem os professores é uma dedicação exclusiva a elas; por outro lado, muitos
educandos e educandas acabam usando as outras atividades como escudo diante de
suas dificuldades de dedicação ao estudo.
Diante do conflito um dos resultados tem sido a afirmação política dos tempos de
organização, de trabalho, de preparação da mística, de jornadas culturais e, à medida
que avança a capacidade reflexiva do grupo, também a consciência do desafio de dar
mais intencionalidade pedagógica a estas atividades, integrando-as efetivamente no
processo de formação do curso. – Os momentos de mística, por exemplo, de modo
geral são bastante apreciados pelos professores e outros observadores da
Universidade; daí o argumento das turmas: vocês imaginam fazê-los sem um tempo de
preparação? E isto também não pode ser considerado uma forma de estudo?
Nesta mesma lógica está a visão de que o curso continua no Tempo
Comunidade. Na maioria de nossas parcerias temos alguma carga horária das
disciplinas a distância. No começo, os próprios estudantes consideravam como curso o
momento de estar na Universidade e depois o de fazer as tarefas ou os estudos
complementares das disciplinas. Logo isto foi percebido como incoerente com a nossa
concepção de educação, que defende a importância da dimensão formativa dos
processos de inserção na dinâmica do Movimento. Tratou-se então de intencionalizar o
assim chamado Tempo Comunidade, configurando-o como tempo do curso cuja
centralidade está na realização de tarefas delegadas pela organização, e onde o
acompanhamento deve ser prioritariamente feito pelas suas instâncias.
É novamente a crítica prática delineando uma característica muito própria aos
cursos que podem se designar de Pedagogia da Terra: o curso precisa incluir em seu
projeto de formação a ação pedagógica direta do Movimento Social, como forma de
construção de significados para os próprios estudos feitos na Universidade.
Mas, é bom que se diga, estas ações de resistência têm apresentado limites. O
limite principal é que a formação acaba ficando muito fragmentada, não se constituindo

91
como práxis verdadeira. Ou seja, ter um espaço paralelo para estudar os materiais do
Movimento e conversar sobre nossas práticas de educação, por exemplo, ainda que até
contando com a presença e a simpatia de alguns professores da própria Universidade,
não basta para chegarmos a produzir conhecimentos que orientem a continuidade
destas ações. A grande contribuição do curso deveria ser a de proporcionar uma crítica
teórica da prática de educação no Movimento, o que somente é possível se houver uma
intencionalidade de estudos e de reflexões nesta direção.
Nenhum estudante do MST poderia receber o título de pedagogo da terra sem
compreender a historicidade da ação educativa, sem estudar a concepção de educação
que permite a nossa elaboração em torno da Pedagogia do Movimento; sem analisar as
condições objetivas ou as forças materiais que conformam hoje o papel estratégico da
educação nas lutas dos Movimentos Sociais do Campo... Assim como ninguém deveria
sair do curso sem entender melhor o campo... Mas dada a ausência de determinadas
questões no currículo, muitas delas ficam tratadas de um modo superficial, em tempos
pouco propícios ao estudo, e não se consegue fazer as conexões necessárias com o
conjunto da formação geral e profissional desenvolvida no curso.
Da mesma forma, embora seja inegável a dimensão pedagógica de ter
funcionando uma estrutura organizativa a exemplo do que acontece em outros espaços
do Movimento, e tentar realizar na prática uma concepção diferente de escola, isto é
muito menos do que fazer desta própria construção uma vivência pedagógica refletida,
que se integra nos debates sobre como acontece a formação humana, e que identifica
os desafios que estas outras dimensões colocam ao ato de educar. Além disso,
enquanto permanecemos na superfície do embate, que é a da disputa de tempos com a
Universidade, corremos o risco de não refletir com mais cuidado sobre esta dimensão
da organização dos tempos em um processo de formação, e de chegar mesmo a
prejudicar a dedicação das turmas aos estudos que efetivamente interessam.

A segunda dimensão do processo de construção desta identidade: a Pedagogia


da Terra vem se constituindo como e através da afirmação dos sujeitos (humanos e
sociais) que fazem este curso.
Esta é, nos parece, a materialidade principal da formação da identidade da
Pedagogia da Terra: seus sujeitos históricos, com sua condição social objetiva e sua

92
identidade construída e em construção. É esta materialidade que permite a própria
emergência da crítica como dimensão deste processo. Ou seja, estamos dizendo que
nada identifica (e significa) mais um curso chamado de Pedagogia da Terra do que o
tipo de pessoas que dele participam, e a forma como estas pessoas constroem sua
presença na Universidade: não como indivíduos, mas como parte de uma identidade
coletiva cujo processo de construção nem começa nem termina em um curso ou no
espaço da Universidade.
Em nosso caso se trata de sujeitos que trazem na bagagem algumas marcas
distintivas fundamentais: - estão entrando na Universidade os pobres do campo;
pessoas que provavelmente não teriam o direito ao estudo universitário se não fosse
seu vínculo com o Movimento Social: pessoas que expressam em todo o seu ser as
marcas da exclusão, da discriminação, da dominação; - estão entrando na Universidade
pessoas que não vêm em nome próprio; foram indicadas por um coletivo e suas
expectativas não podem ser apenas individuais; precisam compreender e atender aos
objetivos da organização que garantiu sua vinda para o curso; - estão entrando na
Universidade pessoas que querem estudar para não ter que sair do campo; são de
Movimentos Sociais que já descobriram a importância do estudo na formação dos
sujeitos capazes de fazer as transformações necessárias a um novo projeto de
desenvolvimento do campo; - estão entrando na Universidade pessoas que participam
de um Movimento Social, e que já partilham entre si uma identidade de luta, de
propósitos, de símbolos, de jeito de ser e de conviver; as pessoas podem até não se
conhecer, mas já chegam com laços construídos e se vêem como membros de uma
mesma comunidade, de origem e de destino; algumas chegam com esta identidade já
bem consolidada, outras têm um pertencimento coletivo ainda frágil.
Quando se colocam no curso, e diante do mundo da Universidade, assim como
são, assumindo o peso (político e pedagógico) desta distinção, estes homens e
mulheres, educandos e educandas, passam a construir mesmo que sem o saber, a
Pedagogia da Terra, e com ela continuam a formação de sua identidade.
A identidade da Pedagogia da Terra nasce como projeto de formação, pois, no
enfrentamento coletivo e pessoal de contradições: diante de uma Universidade
acostumada a tratar seus estudantes como indivíduos, a afirmação das turmas como

93
sujeitos coletivos; diante de uma perspectiva de estudar para melhorar apenas as
condições individuais de buscar um emprego melhor, a afirmação de que se quer
estudar para contribuir mais na construção de um projeto coletivo de sociedade; diante
da lógica de que é preciso estudar para sair do campo, a afirmação de que é preciso
estudar para ficar no campo...
Esta é uma questão muito séria. Estamos tratando da possibilidade de reverter
uma lógica social que permite, por exemplo, um depoimento como este: “foi na escola
onde pela primeira vez senti vergonha de ser da roça...” E é sério também porque cada
turma de Pedagogia que já tivemos, se refletir com cuidado sobre sua trajetória, poderá
identificar vários momentos ou situações onde as pessoas titubearam, onde se
envergonharam diante de sua condição, agora não apenas de ser da roça, mas
também e principalmente, de ser Sem Terra, ou ser de Movimento; onde o
deslumbramento por uma outra lógica de ver o mundo chegou a formular expressões
do tipo: “aqui dentro não somos Sem Terra; somos ‘acadêmicos’, e assim precisamos
nos comportar para não ter problemas...” Acontece assim, exatamente porque esta não
é uma lógica da Universidade, mas sim a lógica dominante no conjunto da sociedade.
Por outro lado, este entrar na Universidade como sujeito com uma identidade
coletiva já formatada, não pode significar a falta de uma perspectiva de síntese; o
processo de formação é ainda mais rico porque estes sujeitos passam a incorporar
novos traços em sua identidade, sem deixar de ser o que já são, ou sendo o que são de
um jeito diferente; traços que, neste caso, vão sendo construídos especialmente desde
as relações com o mundo do conhecimento. Uma postura mais reflexiva e curiosa
diante das próprias ações, e a convicção sobre a importância do estudo e da luta pela
escolarização de todo o povo, são características que aos poucos costumam ser
incorporadas à identidade de quem vive uma experiência mais forte de estudos
universitários.
Da mesma forma que a Universidade precisa se desafiar a receber e a
compreender estes estudantes como são, respeitando sua raiz anterior, também o
Movimento precisa se desafiar a compreender a especificidade desta nova vivência de
seus militantes; ajudá-los a processar a síntese de modo que o principal fique

94
preservado: o objetivo maior de lutarmos tanto pelo estudo; o sentido, afinal, de
Universidade e Movimento Social assumirem juntos uma tarefa como essa.
Na maioria das turmas esta não é uma discussão já processada. Chama a
atenção o fato de que em geral os estudantes do MST quando registram ou narram
oralmente suas memórias de curso, muito pouco tratam sobre as aulas que tiveram,
sobre as teorias de que se apropriaram, sobre os conhecimentos que produziram e as
novas leituras que têm da realidade. Talvez isto nos mostre a real dimensão daquele
limite que antes identificamos: não estamos fazendo do curso um espaço de formação
que conduza à práxis; que seja práxis.
Mas também é preciso se dar conta de que a materialidade desta dimensão da
formação, e da influência do mundo universitário na composição da identidade é de
difícil apreensão, e por isso mais dificilmente chega a ser conscientizada. Como disse
uma educanda: “não sei dizer o que aprendi aqui; vou saber no momento em que sentir
que minha prática está ficando diferente, que eu estou ficando diferente...” De qualquer
forma, é preciso que cada turma compreenda que esta não é uma reflexão secundária.
Porque ela está na própria razão de buscarmos fazer nossa afirmação enquanto
sujeitos, também no espaço da Universidade: converter a ação transformadora em
conhecimento e converter o conhecimento em ação transformadora.
Um grande desafio pedagógico para quem faz ou de alguma forma está
envolvido com estes cursos, pois, é o de apreender o movimento de construção desta
identidade, em suas diversas dimensões, e pensar sobre o que projeta enquanto
ênfases para nosso próprio trabalho de acompanhamento pedagógico. Compreender
que é exatamente na relação com o diferente (e contraditório) que se dá o
fortalecimento da consciência do que somos. “O outro me põe em contato com uma
realidade que o isolamento pode me impedir de enxergar”. (Konder, 1992)

Pedagogia da Terra e Projeto Educativo

O processo de constituição da identidade da Pedagogia da Terra vem


desenhando alguns traços importantes do que pode ser entendido como um projeto
educativo da formação de educadores e educadoras do campo. E embora se trate de
um nome nascido da experiência de cursos de ensino superior, as reflexões que

95
estamos fazendo aqui bem podem ser remetidas ao conjunto das práticas de formação
de educadores desenvolvidas pelo MST, seja em cursos de ensino médio, seja também
em cursos não formais.
Estes traços reafirmam algumas concepções de educação ou algumas matrizes
de formação humana que nos fazem herdeiros e continuadores de certos ideais
pedagógicos de formulação já bem antiga. Ao mesmo tempo são traços que afirmam
novos elementos ou acrescentam novas dimensões a estas matrizes, a partir das
particularidades dos processos e dos sujeitos sociais que os estão produzindo.
Em uma leitura mais atenta da construção da Pedagogia da Terra é possível
identificar questões que nos vinculam às concepções do humanismo histórico, da
filosofia da práxis, da pedagogia do oprimido; às experiências de educação socialista e
de educação popular. Assim como podemos entender todo este processo como
afirmação e construção prática e teórica da pedagogia do movimento e da educação do
campo.
Há um grande desafio colocado, pois, aos sujeitos da Pedagogia da Terra, sejam
do Movimento ou da Universidade, que é o de identificar e compreender mais
profundamente estas questões e estas matrizes pedagógicas que a trajetória das
diversas turmas tem projetado. Esta é uma condição para chegarmos a uma identidade
de projeto, o que quer dizer para termos mais clareza de que transformações
precisamos fazer em nossos cursos, e nas próprias concepções de formação que
defendemos.
Nesta perspectiva, e sem pretender esgotar aqui esta análise, apontamos três
grandes traços deste projeto educativo que podem orientar uma reflexão mais geral
sobre nossos cursos de formação de educadores:

1º) A pedagogia da terra como práxis.

“A práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no


mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a
si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais conseqüente, precisa da
reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que

96
enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática.”
(Konder, 1992) 9
A nossa experiência com a Pedagogia da Terra projeta a necessidade de pensar
os cursos de formação neste movimento que transforma as atividades e vivências dos
educandos no Movimento Social em práxis, exatamente porque esta é a exigência para
qualificarem sua atuação como sujeitos humanos, como sujeitos sociais e políticos.
Para o MST o curso de Pedagogia foi criado neste contexto da urgência histórica
de tornar mais conseqüente sua intervenção na sociedade. Mas são as práticas de
cada turma que estão desenhando a possibilidade e o formato de fazê-lo assim. No
caso dos elementos já destacados neste texto, há pelo menos duas intuições (em
alguns momentos já transformadas em convicções) principais nesta direção. A primeira
é a busca dos educandos em assumir a condição de sujeitos do curso, e não apenas
sujeitos ao curso ou sujeitados a uma intencionalidade de que não participam. Sentem
que esta nova atividade que pretende formá-los precisa ser uma construção feita com
eles e não apenas para eles. E é assim, como herdeiros da pedagogia do oprimido, que
têm a segunda intuição: buscam na complexidade do momento histórico vivido pelo
Movimento a matéria-prima para propor o que precisam realmente estudar.
Não se trata de pensar que um curso, por melhor que ele seja, é capaz de dar
conta de um desafio tão grandioso que é o de transformar as pessoas e sua prática
social, e mesmo que ele em si mesmo possa se materializar como práxis. A questão
aqui colocada é a da possibilidade de um curso também fazer parte deste processo
mais amplo de formação requerido pela dinâmica atual do Movimento.
Para que isto aconteça é preciso alterar a visão que geralmente se tem da
relação prática, teoria e prática. No próprio âmbito da educação popular é comum a
idéia de que o curso é, nesta relação, o momento da teoria: os educandos vêm de uma
prática; estudam no curso as teorias e depois voltam à prática, em tese mais
qualificados para transformá-la. Por que isto não basta? Porque se é como sujeitos
sociais que os educandos são capazes de melhor significar o que estudam, o seu
processo de formação como sujeitos precisa perpassar o curso, e isto somente é
possível no movimento permanente (e contraditório) entre teoria e prática.

9
Leandro Konder interpreta neste conceito a concepção original de práxis que foi formulada por Marx.

97
Não estamos defendendo, pois, o ajuste dos conteúdos de estudo às demandas
de conhecimento que cada educando, ou mesmo que cada turma, já consegue formular
conscientemente. Isto seria simplista e deixaria de lado talvez a maior riqueza
pedagógica deste nosso processo que é a participação dos educandos em um
Movimento que se constitui como seu educador maior. O que precisa ficar claro é que
este desafio de fazer a formação tornar-se práxis passa pelo objetivo específico da
formação da identidade coletiva: sem nos afirmarmos e fortalecermos como sujeitos
humanos e sociais, não será possível fazer do curso um lugar de produção de
significados para nossa atuação no Movimento, na sociedade. Por sua vez, este desafio
de produzir significados através do curso também ajuda a nos fortalecer como
sujeitos.10
Incluir na intencionalidade de um curso a formação ou o fortalecimento desta
identidade coletiva significa provocar o envolvimento dos educandos em atividades
concretas cada vez mais complexas, e que exijam reflexão, autotransformação,
conhecimento. Isto nos remete às tarefas de inserção no Movimento, cuja ênfase está
no Tempo Comunidade e é por isso que este tempo não pode ser voltado apenas às
atividades de estudo. Mas também isto se refere ao conjunto de dimensões a ser
trabalhado no Tempo Escola, e ainda ao jeito como se organizam as próprias atividades
de estudo. Ou seja, trazemos de volta a reflexão bem antiga sobre o necessário vínculo
entre estudo e trabalho; e em nosso caso também entre estudo, organização coletiva e
luta social.
O processo de constituição da turma como coletividade, experiência destacada
em todas as nossas experiências de Pedagogia da Terra, pode ser uma atividade a
mais, ou pode ser intencionalizada de modo a permitir uma espécie de inventário das
visões de mundo de cada educando, da turma, da equipe de acompanhamento
pedagógico, e a exigir a reflexão teórica que diz respeito não apenas a esta experiência
particular, mas às questões de organização e de relacionamento humano que estão no
próprio Movimento, e que estão nos embates de construção de um novo formato de

10
“Este é, afinal, o grande desafio pedagógico do Movimento, e de todos que com ele se identificam:
transformar em escolha consciente (consciência social e política) de cada pessoa que dele participa a
a
identidade coletiva que sua história produz.” ( Caldart, Roseli S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 2
ed., Petrópolis, Vozes, 2000.)

98
sociedade. Por isso defendemos que o curso não pode ser apenas aulas, e por isso
também as aulas não devem ser apenas aulas, mas lugar de atividades, de produção
de obras, de realização de debates e de reflexões capazes de mexer com o modo de
pensar e de sentir das pessoas.
Diante deste traço de identidade, então, há algumas perguntas-chave que
podemos fazer a cada turma concreta da Pedagogia da Terra: - o curso tem se
materializado em um ambiente educativo capaz de ajudar na formação das educandas
e dos educandos como sujeitos humanos e sociais? - as teorias que estudamos estão
nos ajudando a construir um olhar mais reflexivo sobre nossa atuação no Movimento,
na sociedade? os conteúdos das disciplinas podem afinal ser considerados como
teorias? e o modo de estudá-los tem nos ajudado a fazer o movimento entre prática e
teoria? - as pessoas envolvidas no curso estão sendo provocadas a pensar sobre o
processo de autotransformação que estão vivendo durante o tempo do curso, e também
a projetá-lo? - quem são os sujeitos que constroem a intencionalidade deste curso?
está havendo um progressivo envolvimento dos educandos na condução pedagógica
do curso? cada etapa é pensada enquanto estratégia pedagógica ou ainda apenas
como lista de disciplinas, de conteúdos e de professores?

2º) A pedagogia da terra como educação do campo.

Embora o nome pedagogia da terra possa sugerir algum possível retorno a uma
concepção naturalista de educação,11 na verdade o que em sua experiência concreta
ele tem reafirmado é uma visão humanista e dialético-materialista de educação: o ser
humano se produz a si mesmo, socialmente, e sob determinadas condições materiais; e
o processo de formação humana acontece no movimento permanente e contraditório
entre circunstâncias e escolhas, entre ser transformado pelas circunstâncias e
transformar as circunstâncias, transformando-se também a si mesmo. (Marx)
O substantivo terra, associado com a pedagogia, indica o tipo de materialidade e
de movimento histórico que está na base da formação de seus sujeitos e que precisa
ser trabalhada como materialidade do próprio curso: vida construída pelo trabalho na

11
Educando como semente ou planta a ser cuidada; educador como jardineiro que zela para que as
plantas se desenvolvam desde o que prevê a sua natureza dada e a-histórica...

99
terra, luta pela terra, resistência para permanecer na terra. E este nome pode ser
entendido também como crítica a um humanismo excessivamente antropocêntrico,
apontando para a necessidade de uma visão mais ecocêntrica: somos seres humanos
e sociais que integramos uma totalidade ainda mais ampla: terra lembra ecologia,
planeta, cuidado com a vida em suas múltiplas formas, espécies, relações... Estas são
dimensões que já integram as discussões sobre um outro projeto de desenvolvimento
do campo, mas que nem sempre costumam fazer parte de nossas reflexões sobre
educação e muito menos de nossa intencionalidade na formação de educadores.
Esta vinculação material da pedagogia da terra com o campo e a educação dos
sujeitos do campo não pode produzir um projeto de formação que se resuma a incluir
no currículo do curso algumas questões da realidade do campo sob forma de “estudos
eletivos” ou “temas transversais”. Isto é muito pouco. O que se projeta aqui é a
possibilidade deste processo de formação de educadores construir-se como parte da
luta histórica do povo brasileiro que vive no campo pela afirmação da sua educação
como direito e como pedagogia própria; e de pensarmos a formação destes educandos
efetivamente como pedagogos e pedagogas da terra; como educadoras e educadores
do campo.12
Ou seja, àquela realidade mencionada antes: foi na escola onde pela primeira
vez senti vergonha de ser da roça..., já formulamos o nosso contraponto político, que
aparece sintetizado na fala direta de um dirigente do Movimento dos Pequenos
Agricultores às suas educandas do Pedagogia da Terra: se vocês pensam que estão
estudando pra sair da roça, podem saber que estão no curso errado, porque este aqui é
exatamente para lhes garantir o caminho de volta... Mas a questão é também
radicalizarmos esta inversão de lógica do ponto de vista pedagógico, conseguindo
desdobrá-la em estratégias de formação que não absolutizem, mas também não
neguem a possibilidade de pensar a educação desde a realidade específica dos
sujeitos do campo e, portanto, afirmem a necessidade de algumas dimensões

12
Do campo aqui no sentido que vem sendo trabalhado pela articulação nacional por uma educação do
campo, criada em 1998 por movimentos sociais do campo e entidades de apoio como a CNBB, a
UNESCO, o UNICEF, a UnB e outras. Trata-se de uma articulação de lutas por políticas públicas
específicas para a garantia do direito à educação no campo, e também pela defesa do direito do povo do
campo pensar e fazer a sua educação (inclusive na escola) desde a terra em que pisam, desde o lugar
em que vivem e produzem sua existência social e humana.

100
específicas de formação para quem deve ser preparado para atuar nesta realidade,
para transformar esta realidade e transformar-se junto com ela.
E se o próprio fortalecimento ou cultivo da identidade coletiva destes educandos
já se coloca nesta perspectiva, à medida que fazem parte de movimentos sociais do
campo, é preciso pensar em uma intencionalidade talvez ainda mais específica,
garantindo também atividades que permitam um tipo de reflexão como a dessa
educanda: tenho vivido o conflito de dizer ser agricultora e realmente saber ser
agricultora...
Na mesma perspectiva se coloca o esforço de compreender que a práxis dos
novos sujeitos sociais do campo, que combina lutas sociais relacionadas à terra, com a
construção de novas relações de trabalho e com a recuperação e transformação da
cultura camponesa, vem produzindo também uma pedagogia, ou um modo de formar
sujeitos humanos. Esta pedagogia precisa ser cotejada com as teorias pedagógicas e
as questões mais universais de educação para poder ser transformada em um projeto
educativo dos sujeitos do campo. É este esforço que talvez produza também uma outra
reflexão em nossa educanda: tenho vivido o conflito de dizer ser uma pedagoga da
terra e realmente sê-lo...
Algumas perguntas para nossas experiências concretas de Pedagogia da Terra
sobre este traço: - o curso tem nos preparado para ajudar nas transformações do
campo pelas quais tem lutado o nosso Movimento? - o ambiente do curso tem
reforçado nossa escolha de estudar para ficar no campo? - os estudos que temos feito
nos ajudam a compreender a identidade dos diversos sujeitos do campo, e a perceber
como suas práticas e seu modo de vida podem ser fonte de nossa reflexão
pedagógica? – já entendemos realmente o que significa este movimento por uma
educação do campo? - como o curso está ajudando a formar pedagogos e pedagogas
com a sabedoria do cuidado da terra, e capazes de ajudar na reeducação dos povos do
campo para se entenderem como ‘guardiões da terra’ e não proprietários ou
dominadores dela?

3º) A pedagogia da terra como pedagogia do movimento.

101
Este é um traço do nosso projeto educativo, mas é também uma chave de leitura
dos traços anteriores: ver o processo de construção da Pedagogia da Terra, enquanto
práxis de educação do campo, como uma expressão e uma forma histórica de
materialização da pedagogia do movimento.
A pedagogia do movimento está sendo concebida por nós como uma práxis de
formação humana que tem o Movimento como sujeito e como princípio educativo.
Movimento aqui em seu duplo e combinado sentido: de Movimento Social, que pela
força material de sua luta e de sua dinâmica organizativa se faz lugar e ou sujeito
coletivo capaz de educar as pessoas que dele participam, transformando-as em sujeitos
humanos e em sujeitos sociais, ou seja, em parte do próprio sujeito coletivo que as
educa; e também no sentido de movimento mesmo, movimento da realidade,
movimento da história, o que significa considerarmos que é a vivência da historicidade
e a busca de superar as contradições presentes no movimento da realidade o que
permite ao ser humano crescer como sujeito humano, participando da própria
intencionalidade de sua educação.
O processo de formação da identidade coletiva dos sujeitos da Pedagogia da
Terra tem como pedagogo principal o próprio Movimento Social: estes educandos não
seriam o que são e como são, e nem estariam neste curso, se não fosse a sua
participação no Movimento. É ele que aciona, organiza e dá o tempero da atuação das
diferentes matrizes pedagógicas presentes no processo de educação destas pessoas: a
cultura, o trabalho, a situação de opressão e a resistência a ela, o próprio estudo...
E o processo de formação da identidade da Pedagogia da Terra, enquanto
projeto educativo, tem se dado no movimento das relações e contradições entre estes
sujeitos e sua realidade; entre os sujeitos do Movimento Social e da Universidade; entre
os diferentes sujeitos humanos e o sujeito coletivo que tenta conduzir sua formação.
O que isto projeta enquanto identidade de formação é o esforço de uma atividade
ou de um processo que tem uma materialidade específica, em dar continuidade ao
projeto pedagógico do Movimento Social, ou seja, de ajudar a cultivar esta identidade
coletiva dos educandos, respeitando-os e procurando educá-los como sujeitos
humanos e como sujeitos sociais. Também o que projeta é uma formação que assume
e trabalha a historicidade do próprio Movimento e de seus próprios sujeitos; busca

102
ajudar os educandos a compreender o movimento do Movimento, não temendo as
contradições, mas explicitando-as; não fugindo das transformações de si próprio, mas
buscando provocá-las.
Algumas perguntas podem ajudar no olhar de nossas experiências concretas
desde este traço, que também é matriz: - o curso tem sido uma continuidade (que
também pode ser contraponto) do processo de formação que vivenciamos sendo do
Movimento? - estamos aprendendo a olhar para a realidade na perspectiva do
movimento, ou seja, buscando compreender o seu processo de produção em cada
momento e em cada lugar? - já conseguimos compreender do ponto de vista teórico o
sentido da pedagogia do movimento como matriz de formação humana? - o curso nos
tem ajudado a transformar nossas vivências pedagógicas em um projeto educativo que
inclua também um projeto pedagógico de escola do campo?...

Esta é uma reflexão inacabada. Sua continuidade depende das transformações


que os sujeitos desta prática forem capazes de fazer na realidade que a provocou, e a
partir de sua disposição efetiva de pensar sobre o que estão fazendo com sua própria
formação.

103

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