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Contemporâneos
Autora: Profa. Carmem Lia Nobre Lemos
Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva
Profa. Angélica Carlini
Professora conteudista: Carmem Lia Nobre Lemos
Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2002, e mestre em
Antropologia em 2005, pela mesma instituição.
É professora da Universidade Paulista (UNIP) desde 2008, onde atua com as disciplinas de Homem e Sociedade,
Ciências Sociais, Antropologia e Cultura Brasileira, nos cursos de Psicologia, Pedagogia, Administração e Nutrição,
além de ser professora e líder das disciplinas Relações Étnico-Raciais no Brasil, do Instituto de Ciências Humanas, e
Antropologia da Alimentação, do Instituto de Ciências da Saúde, no curso de Nutrição.
Sua área de pesquisa é a de Antropologia Urbana, com estudos em cultura popular nas artes, atividades esportivas,
lazer na sociedade contemporânea, tendo artigos publicados sobre o tema.
104 p. il.
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Gustavo Guiral
Vitor Andrade
Sumário
Antropologia: Desafios Contemporâneos
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8
Unidade I
1 ESTRUTURALISMO E CRÍTICAS AO ESTRUTURALISMO.........................................................................9
1.1 Estruturalismo de Lévi-Strauss...........................................................................................................9
1.1.1 O papel dos mitos.................................................................................................................................... 13
1.2 Críticas de Antony Giddens e Pierre Bourdieu.......................................................................... 15
2 ANTROPOLOGIA E INTERPRETAÇÃO.......................................................................................................... 20
2.1 Antropologia interpretativa de Clifford Geertz........................................................................ 21
2.2 Visões complementares à interpretação de Geertz................................................................. 25
3 INTERCONEXÕES ENTRE CULTURA E HISTÓRIA................................................................................... 30
3.1 História, etnografia e etnologia...................................................................................................... 30
3.1.1 Culturas arcaicas, primitivas e contemporâneas........................................................................ 33
3.2 Temporalidade e história.................................................................................................................... 36
4 DEBATES ATUAIS SOBRE MÉTODO............................................................................................................ 39
4.1 Ética, escrita etnográfica e a questão da autoria.................................................................... 39
4.1.1 Códigos de ética: questões técnicas................................................................................................ 39
4.1.2 Antropólogo como mediador............................................................................................................. 43
4.1.3 Questão da autoria................................................................................................................................. 44
4.2 A pesquisa em áreas urbanas e a produção do distanciamento........................................ 46
Unidade II
5 ARTE, CULTURA E PATRIMÔNIO.................................................................................................................. 54
5.1 Ampliando o conceito de patrimônio........................................................................................... 54
5.2 Estudos de casos diversos.................................................................................................................. 59
6 ANTROPOLOGIA E CONSUMO..................................................................................................................... 65
6.1 Quebrando a resistência para um estudo do consumo......................................................... 65
6.2 Antropologia do consumo................................................................................................................. 69
7 ANTROPOLOGIA, POLÍTICA E MOVIMENTOS SOCIAIS........................................................................ 74
7.1 Antropologia da política..................................................................................................................... 75
7.2 Novos movimentos culturais............................................................................................................ 80
8 INTERSECCIONALIDADES E MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA.......................................... 85
8.1 Interseccionalidade estrutural e sistemas de opressão......................................................... 85
8.2 Interseccionalidade construcionista e os marcadores sociais da diferença.................. 90
APRESENTAÇÃO
Esta disciplina trata do debate acerca das transformações e reconfigurações da antropologia como
disciplina acadêmica. A antropologia sempre trabalhou com a lógica do distanciamento: entre pesquisador
e pesquisado, entre civilizações e culturas, no tempo e no espaço, entre europeu e não europeu. Essas
distâncias foram se tornando mais próximas ao longo da História e da crescente internacionalização do
capitalismo. Interessa aqui o debate das relações entre as reconfigurações do campo da disciplina e as
políticas científicas em voga, a relação da pesquisa antropológica com a ação política e a formação de
antropólogos e as demandas do mundo do trabalho.
O objetivo da disciplina é habilitar profissionais para o exercício da docência que sejam capazes
de analisar e apreender a realidade social em seus múltiplos aspectos. Preparar profissionais éticos e
competentes, com sólida formação teórica e metodológica nas áreas que compõem o campo científico
das Ciências Sociais: Antropologia, Sociologia e Ciência Política. No mais, pretende contribuir com as
seguintes competências:
• refletir sobre a antropologia nos últimos 40 anos, privilegiando diferentes rumos das indagações
e recortes que constituem a disciplina;
• incitar reflexões críticas sobre a dimensão política da antropologia e seus desdobramentos na vida
social, como a formulação de políticas públicas e propostas para a sociedade;
• promover o conhecimento, o estudo e a capacidade crítica dos alunos a respeito dos temas e das
teorias antropológicas contemporâneas.
A antropologia contemporânea nos permite refletir sobre a nossa própria cultura e as diversidades
internas que nos circundam enquanto cidadão, profissionais e estudiosos. Compreender a nós mesmos
é saber ouvir e dar voz aos nossos semelhantes e assimilar as diversas lógicas, práticas e sentimentos
que coexistem, bem como das relações de poder entre os grupos que as vivenciam. Nesse sentido,
buscamos analisar e interpretar as falas e experiências de diferentes grupos culturais considerados
minorias que historicamente tiveram poucas chances de demonstrar os seus pontos de vistas e suas
formas de vida, sendo invisibilizado por uma suposta sociedade hegemônica e universal nas construções
de suas identidades.
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Esta disciplina dialoga com outras disciplinas de Antropologia já estudadas no decorrer do curso de
licenciatura em Sociologia, e busca relembrar e relacionar os estudos anteriores dando uma continuidade
à compreensão do que é Antropologia e seus métodos de estudos.
INTRODUÇÃO
Durante o texto, você entrará em contato com estudos de diversos antropólogos tanto brasileiros
como as principais referências internacionais sobre os temas trabalhados. No mais, o texto traz indicação
de onde encontrar material adicional para que você possa se aprofundar ainda mais nas temáticas.
O material de base para as reflexões foram selecionados para que você entre em contato com
reflexões e autores recentes que trouxeram e ainda trazem grandes contribuições para a ciência. Nesta
disciplina, analisaremos tanto a estrutura social como suas regras, normas e sistema de dominação
como interpretar os atos dos sujeitos em busca da construção de suas identidades e seus modos de
sobreviver dentro dessa estrutura social.
Adiante, abordaremos os diversos desafios que a disciplina vem enfrentando ao tentar compreender
a própria cultura, as formas de construção da nossa identidade, bem como as marcas das nossas
diversidades. Para tanto, investigaremos temáticas, como a de patrimônio cultural, consumo, movimentos
sociais e interseccionalidade, como características da nossa cultura contemporânea e como marcas de
nossa identidade.
Durante todo o livro, a presença de visões críticas e complementares servem para enriquecer a
multiplicidade de leituras e métodos que podemos utilizar para melhor concebermos nosso objeto de
estudo. Assim, você vai poder observar como os antropólogos estão atuando não só em pesquisas, mas
também, e ativamente, na construção e na transformação de nossa realidade.
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Unidade I
1 ESTRUTURALISMO E CRÍTICAS AO ESTRUTURALISMO
A antropologia estruturalista ganha força a partir dos anos 1970, quando a França já não tinha
mais suas colônias, no entanto, as sociedades primitivas demonstravam uma recusa pelo surgimento do
Estado. Ou seja, as sociedades sem Estado que receberam o contato com as sociedades colonizadoras
mantinham suas estruturas sociais sem a presença política de um Estado vinculado ao sistema capitalista.
São essas estruturas sociais os objetos de estudos dos estruturalistas.
Ao falar em estruturalismo não podemos deixar de citar Claude Lévi-Strauss, fundador do Laboratório
de Antropologia Social na Escola francesa. Herdeiro de Durkheim e Mauss, suas principais obras são As
estruturas elementares do parentesco, de 1949, Mythologiques (série de quatro volumes entre 1964-
1971) e Tristes Trópicos, de 1957, no mais, temos a compilação de diversos artigos em Antropologia
Estrutural, de 1958, e Antropologia Estrutural 2, de 1973.
Lévi-Strauss trabalha com a ideia estrutural de pares binários ou opostos para a compreensão das
relações sociais e culturais, organizações sociais e categorias do pensamento, como no primeiro volume
de Mythologiques, o livro O cru e o cozido (1964), no qual o cru representa as sociedades primitivas e o
cozido, as civilizadas. Fez ensaios também sobre a cidade e o campo, o homem e a mulher. As relações
sociais estudadas servirão de modelos para explicar a estrutura social. Ao estudar diversos mitos, o
antropólogo percebeu a existência dessa estrutura nas ideias e conceitos de uma cultura.
Como elemento fundamental das relações, temos a divisão homem/mulher, que são referências
tanto para a construção das referências de parentesco, bem como para a organização social do trabalho.
Cada cultura elabora suas regras para a identidade do masculino e do feminino, comportamentos e
atividades destinadas a cada gênero.
Isso significa que, para existir uma família, é necessário que um membro da família da mulher
conceda-a direta ou indiretamente ao seu futuro esposo. Normalmente, o pai ou o tio materno
representam essa função. Dessa forma, percebe-se que há vários laços sociais:
Muitos outros pesquisadores buscaram definições para as relações de parentesco, e essas definições
e relações são mais amplas e complexas do que se apresentam à primeira vista. Para Lévi-Strauss (2003),
a família se constitui a partir de três colunas: divisão sexual do trabalho, exogamia e forma legítima de
união entre homem e mulher. É a partir da definição de família de cada povo que podemos compreender
a proibição do incesto.
Observação
Incesto é a proibição de relação sexual entre determinadas categorias
de parentesco, como pais/filhos, tios/sobrinhos, avós/netos.
Essa relação binária dos sexos mostra também a oposição entre alteridade/identidade, entre o “nós”
e o “outro”. Aqueles que possuem referências em comum a nós e àqueles que são diferentes. A proibição
do incesto tem a ver com a restrição das relações entre os que têm identidades iguais, sejam elas
consanguíneas, sejam espirituais.
Por essa pequena citação, já podemos perceber a existência das estruturas sociais das quais se refere
à teoria estruturalista e parte da complexidade de compreender as relações de parentesco e casamento.
Vale lembrar que nas sociedades patrilineares os filhos pertencem à metade da aldeia, que é de seu
pai, e, por exogamia, entende-se o casamento com alguém de fora dessa metade. Lévi-Strauss traz três
formas de casamento para as sociedades indígenas:
No casamento patrilateral, o filho macho pode se casar com a prima patrilateral, filha da sua tia
paterna; mas não com a filha de seu tio paterno. Outra curiosidade seria o papel dos tios: o tio materno
da noiva tem uma função de “pai”, protegendo ela em caso de violência ou divórcio; já o tio paterno é o
responsável pela iniciação dos sobrinhos homens. Outro exemplo do papel de tio pode ser colhido entre
os Lambumbu (uma população da Oceania): por exemplo, a relação do sobrinho com seu tio materno
é de liberdade e obediência, mas o filho não deve obediência ao pai, além do quê, o tio ainda pode
contradizer as ordens paternas.
Dessas relações de parentesco, há exemplos dos mais diversos, porém podemos nomeá-los em
relações matrilineares ou patrilineares, nas quais os filhos pertencem à família da mãe ou do pai,
respectivamente. Pode haver num mesmo povo as duas formas, sendo patrilinear para as meninas e
matrilinear para os meninos, por exemplo. A relação entre irmãos também pode ser de proximidade ou
rivalidade, ou de proximidade entre irmãos de mesmo gênero e de rivalidade entre irmão de gêneros
diferentes. O mesmo pode-se observar na relação entre tios e sobrinhos, nas suas várias combinações:
tio materno com a sobrinha ou com o sobrinho, e tio paterno com a sobrinha ou sobrinho. Em alguns
povos, a relação com cunhados também pode ser observada.
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Unidade I
Para designar irmão do pai, insere-se FaBr; para indicar filho do irmão, BrSo e assim por diante.
A simbologia utilizada por Marconi e Pressotto (2001) ilustra o sexo masculino por um triângulo e o
feminino por um círculo; uma linha indica consanguinidade e duas linhas paralelas indica afinidade.
= = = =
FaSi FaBr
Fa Mo
= = = = =
FaBrSo FaBrDa Br Ego Si
No diagrama, podemos observar que os símbolos cujos pontos ocupados sejam o centro são os
pertencentes à família do indivíduo-referência, chamado Ego. Sendo assim, os parentes da família
materna (à direita no diagrama) não pertencem à sua família, assim como alguns parentes da linhagem
paterna que são filhos/filhas de tias e primas paternas. Apenas tios homens, primos homens paternos e
seus filhos são considerados da mesma família.
Tentar compreender essas estruturas como um antropólogo não é tarefa fácil, mas precisamos
ter em mente neste momento a diversidade cultural e uma visão relativista. A compreensão dessas
estruturas diversas é o que impulsiona a paixão antropológica. Muitas outras estruturas de parentesco,
de casamento e de incesto são possíveis e existentes. Magaret Mead e Mary Douglas também fizeram
suas análises de parentescos que muito contribuíram para o estruturalismo. O que é possível concluir
desse enorme acervo de análises que a ideia de dualismo ou opostos é muito mais complexa do que
simples. Seus múltiplos desdobramentos permitem diversas relações entre cada elemento apresentado.
Saiba mais
Para ser considerado uma estrutura, o modelo deve satisfazer a quatro condições, segundo Lévi-
Strauss (2003, p. 316):
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
• O funcionamento do modelo construído deve explicar todos os fatos observados. Assim, é possível
explicar como pensam e agem as pessoas da cultura estudada.
A utilidade de toda essa estruturação da organização social de um povo não é apenas uma curiosidade
antropológica e um exercício de dedução e compreensão das relações humanas, mas é a partir da análise
dessa estrutura que se entende a diversidade cultural, as regras sociais, as atuações políticas e religiosas,
as funções trabalhistas etc.
Para compreender as culturas de povos indígenas brasileiros, Lévi-Strauss estudou não apenas
as estruturas de parentesco, mas também os mitos e a linguagem. A nomenclatura que designa
os parentes permite o reconhecimento de quais são os casamentos permitidos e os proibidos. Essa
nomenclatura aparece tanto no relato de informantes como em mitos. Ao estudar os mitos, temos
que nos ater à significação do mito, é ali que se encontrará a organização lógica e o sentido dos
elementos fundantes da estrutura social. Qualquer modificação nos elementos de um mito vai
interferir no sistema como um todo. Ou seja, para assimilarmos o sistema cultural, teremos de
perceber as partes integrantes desse sistema e como elas se relacionam entre si.
Nas palavras de Lévi-Strauss: “o mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele
se nos dá a conhecer, ele provém do discurso” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 240). O mito está na
linguagem e além dela, possui uma língua e palavras que pertencem a um tempo passado, ou
seja, possui um sistema temporal e, ao mesmo tempo forma uma estrutura permanente que
se relaciona ao passado, ao presente e ao futuro que pode ser estudado e depreendido. Assim,
os elementos que provêm de um mito são grandes unidades constitutivas, portanto estruturas
possíveis de serem avaliadas e absorvidas.
Nos casos de mesma palavra para designar os astros, cada um deles pode ser classificado de
acordo com uma qualidade de iluminação ou calor que os distinguirá, ou então o mito acaba
mostrando a qual gênero pertence cada um, pois o Sol nasce do homem e a Lua nasce da mulher,
ou, ainda, a Lua tem qualidades masculinas e o Sol, femininas. É isso mesmo: não há consenso
quanto ao gênero de Lua e Sol.
Em outros mitos, eles podem ser parentes (irmãos, por exemplo). Isso ajuda a transmitir o que é
incestuoso em cada cultura, podendo ainda tratar-se de incesto homossexual ou heterossexual. Em
algumas tribos, ao invés dos astros terem gêneros diferentes, é a divergência de idade que se torna
importante, sendo o Sol mais velho que a Lua. Ou, ainda, trabalha-se a dualidade sagrado/profano.
Sendo assim, existe a oposição física de gêneros ou a oposição moral, mas sempre há fatos e casos
discordantes. Chega-se, portanto, à seguinte conclusão:
Tanto mais se estuda, mais variantes surgem, mas pode-se concluir “que os mitos não tratam o sexo
dos astros como um problema isolado” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 228). O pensamento mítico mantém em
si estruturas do pensamento, da linguagem e da organização social de seu povo.
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Portanto, é nas relações entre termos, conceitos e definições que conseguiremos absorver, entender
e compreender a essência do nosso objeto de estudo.
A sociologia de Giddens e Bourdieu tenta superar o estruturalismo dual e trazer uma nova
metodologia de investigação baseada principalmente na divisão entre agência e estrutura. O
conceito de “estrutura”, tomado de Lévi-Strauss, é um modelo abstrato de dualidade nas relações
humanas, mas não no tempo e espaço; dessa forma, as estruturas são “virtuais”, pois existem fora
do tempo e espaço, são “sem sujeito” e reproduzidas involuntariamente em práticas cotidianas.
Giddens incorpora à discussão o fato de a estrutura não ser limitadora, mas um ato de ação e
reprodução social. Há, nas estruturas, as regras, mas também a possibilidade de ação, ou seja, as
estruturas são regras implícitas ou explícitas em formas de leis ou práticas socialmente conhecidas
que nos capacitam e nos dão competência para nos comportarmos diante das situações sociais
encontradas. Junto ao conceito de estrutura, temos de pensar o conceito de agente, que seria a
consciência do ator social. Aqui, a contribuição de Giddens:
15
Unidade I
Portanto, as regras e as estruturas sociais existem, mas existe também o sujeito consciente que
escolhe ou não seguir determinadas regras. São as escolhas desses agentes, sejam elas conscientes,
sejam inconscientes, que trarão à realidade presente novidades e mudanças na sociedade e na sua
organização social. As ações sociais estão imersas nas estruturas coletivas, as quais pertencem, no
entanto, ao indivíduo dotado de capacidade e motivações para seguir as regras ou reconstruí-las.
Neste ponto, nota-se a grande influência weberiana na leitura de Giddens, contraposta à herança
durkheimiana de Lévi-Strauss, para que se compreendam as diferentes leituras aqui apresentadas.
Observação
Giddens traz à tona a discussão sobre a participação dos indivíduos na construção da sociedade: os
indivíduos, grupos e instituições fazem parte dessa estrutura, portanto não apenas a legitimam, como
a constroem e a modificam. Ou seja, a dicotomia pode ser vista pelos conceitos agência/estrutura ou
indivíduo/sociedade.
Gabriel Moura Peters, em sua dissertação de mestrado (2006) intitulada Percursos na teoria das
práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu, elucida bem essa conduta individual:
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Saiba mais
Para conhecer melhor as teorias de Giddens, leia seu livro a seguir:
GIDDENS, A. Estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de
Janeiro: Zahar, 1975.
O estudo das estruturas sociais mostra quais são as regras, como funcionam, qual a ordem social
existente a qual os indivíduos estão submetidos, o universo de comportamento mais provável, mas não
significa que não haja comportamentos desviantes, como o próprio Lévi-Strauss elucida durante seus
estudos. Aqui, vale a máxima: “para todas as regras, existe uma exceção”. Então, não devemos tomar a
ideia de estrutura social como algo certo, fixo, imutável e absoluto.
Por isso, é importante incluir a participação do agente, o indivíduo que atua nessa sociedade. Ele
é dotado de motivações, vontades, interesses diversos, que podem levá-lo a romper com a ordem
social vigente. A noção de estrutura sem os agentes passa a sensação de que tais sociedades são
harmoniosas, sem conflitos, cooperativas e sem disputa de poder. Contudo os indivíduos, consciente
ou inconscientemente, acabam por tomar decisões que não necessariamente respeitam a ordem
social, basta lembrar das motivações weberianas (racional, tradicional, emocional) ou ainda a noção
de habitus de Bourdieu, aquele “impulso inconsciente internalizado através da experiência” (PETERS,
2006, p. 38-9).
Os indivíduos, então, têm participação ativa na construção da sociedade, eles assumem papéis
sociais, possuem uma identidade e uma posição social que lhes dá permissão para atuar na estrutura. É
esse papel social que insere o indivíduo na estrutura.
Por exemplo, o tio paterno em algumas sociedades patrilineares. Ele tem a função de protetor
da noiva, isso lhe permite intervir e orientar a vida da sobrinha. A forma como ele vai ou não
realizar essa atribuição mostrará a diversidade dentro da estrutura social. Um tio que não assume
seu papel, deixa a sobrinha à mercê da sociedade. Ou então, entre as mulheres de algumas etnias
indígenas, cabe-lhes, ao darem à luz, observar a criança para saber se deve ou não amamentá‑la;
caso essa mulher escolha alimentar uma criança com desenvolvimento incompleto, o que
acarretará deficiência e dificuldade de adaptação à vida social, essa mãe rompe com a regra
social e poderá ser excluída ou marginalizada em sua sociedade. Esses são exemplos de como os
indivíduos são também agentes dentro das estruturas sociais, e como as suas escolhas podem
interferir na estrutura preestabelecida.
17
Unidade I
Dessa forma, cada indivíduo tem referências externas e internas para desempenhar seu papel
social, e estas norteiam as várias possibilidades de ação dentro de cada sociedade. As referências
internas foram transmitidas e aprendidas em um universo simbólico de regras da estrutura social
no qual o indivíduo está inserido. As externas são as coerções das regras sociais explícita ou
implicitamente conhecidas. Isso não significa que o indivíduo, ao agir motivado por parâmetros
internos ou externos, tenha consciência das consequências de sua ação, mas que um conjunto
de ações desviantes da regra tradicional pode ocasionar uma transformação da estrutura social
como um todo (PETERS, 2006).
As críticas, todavia, evidenciam a ausência de uma visão sócio-histórica das estruturas sociais e o
papel dos agentes na construção e transformação de tais estruturas. Mais adiante, refletiremos melhor
sobre esse referencial histórico nas análises antropológicas.
Pierre Bourdieu, ao fazer suas críticas ao estruturalismo straussiano, argumenta que, conforme o
estruturalista, os indivíduos seriam vistos como “marionetes” dentro da estrutura social, ou seja, seriam
atores totalmente controlados externamente. Bourdieu analisa, ao contrário, como se fosse um jogo,
no qual existem regras, mas cada jogador tem variáveis para fazer suas ações e escolhas. Em entrevista,
Bourdieu comenta como ele chegou à noção de “agentes sociais”:
Saiba mais
18
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Se as sociedades fossem tão estruturadas e sem a ação de seus atores, nós apenas representaríamos
constantemente o papel que nos teria sido destinado, sem jamais questionar ou alterar nossos gestos.
Por isso, importa a reflexão sobre a ação e os agentes.
Com isso, importa compreendermos quais são esses “mecanismos”’ de reprodução ou transformação
das estruturas sociais. Ao estudar a sociedade argelina, na região de Cabila, Bourdieu pôde desenvolver
parte de sua teoria e compreender a existência de agentes sociais que são distribuídos de forma
desigual, com diferentes capitais simbólicos e que atuam em diversos campos de atividades. Esses
agentes internalizaram, ao longo da vida, diversos esquemas simbólicos, por meio da socialização, que
orientarão o modo de pensar, agir, sentir, interpretar etc. (PETERS, 2006).
Bourdieu quer trazer à baila a discussão sobre a relação entre objetivismo e subjetivismo.
O estruturalismo não leva em consideração os aspectos subjetivos dos agentes. Os indivíduos
19
Unidade I
possuem competências práticas que são utilizadas cotidianamente de modo subjetivo nas suas
relações sociais. Para o autor, existe uma correspondência entre as estruturas mentais de percepção
do mundo e a estrutura objetiva da organização social. Por exemplo, na organização social de
Cabila, existe uma relação objetiva entre os agentes homem/mulher, são agentes diferentes, com
funções e papéis distintos, e essa divisão é legitimada subjetivamente pelo habitus masculino/
feminino. Isso pôde ser observado nos rituais, nas relações domésticas, nas atividades cotidianas
da sociedade.
Assim, o que podemos perceber com as críticas e conceitos bourdieunianos é a existência de agentes
que participam da construção e transformação da sociedade, e essa participação pode ser observada
nas práticas e nos habitus que mostram um conhecimento sem consciência das regras do jogo e sua
participação ativa na sociedade.
2 ANTROPOLOGIA E INTERPRETAÇÃO
A cultura é compreendida como uma linguagem que, a partir da noção de Kenneth Burke, é uma
ação, não apenas uma descrição. Assim, Geertz entende que a cultura é também uma ação, a interação
humana é feita por meio de linguagens, em um “drama social”. Assim, a antropologia deve “descrever
o que acontece no interior de cada interação ‘dramática’ em termos daquilo que ela significa para os
participantes naquele tempo e lugar particulares” (TERRI apud SCOTT, 2015). Para tanto, o antropólogo
deve viver um tempo na sociedade que pretende estudar para poder observar, registrar, descrever e
interpretar. As interpretações são provisórias e relativas, não absolutas.
20
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Veremos também algumas leituras complementares à de Geertz com a contribuição dos antropólogos
brasileiros Roberto Cardoso de Oliveira e seu orientando Celso Azzan Junior. Ambos refletirão sobre a
diferença entre as antropologias straussiana e geertziana.
Uma das tarefas centrais da antropologia é a interpretação das culturas estudadas, e por interpretação
podemos entender que é necessário o binômio explicar e compreender, é isso que se entende por
antropologia pós-moderna ou antropologia interpretativa ou ainda antropologia hermenêutica.
O antropólogo, na maioria das vezes, vale-se da etnografia como método de pesquisa, a coleta de
dados por meio de relações, informantes, genealogia, diários de observações etc. Com essas informações,
ele faz uma descrição densa dos fatos e fenômenos observados. A ideia de descrição densa, ele toma
emprestado de Gilbert Ryle e explica:
Vamos considerar, diz ele, dois garotos piscando rapidamente o olho direito.
Num deles, esse é um tique involuntário; no outro, é uma piscadela conspiratória
a um amigo. Como movimentos, os dois são idênticos; observando os dois
sozinhos, como se fosse uma câmara, numa observação “fenomenalista”,
ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela ou,
na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora
não retratável, a diferença entre um tique nervoso e uma piscadela é grande,
como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela
segunda. O piscador está se comunicando e, de fato, comunicando de uma
forma precisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em particular,
(3) transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um código
socialmente estabelecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros.
Conforme salienta Ryle, o piscador executou duas ações — contrair a pálpebra
e piscar — enquanto o que tem um tique nervoso apenas executou uma —
contraiu a pálpebra. Contrair as pálpebras de propósito, quando existe um
código público no qual agir assim significa um sinal conspiratório, é piscar. É
tudo que há a respeito: uma partícula de comportamento, um sinal de cultura
e – voilá! – um gesto (GEERTZ, 2008, p. 11).
No exemplo anterior, podemos notar o que são a descrição densa e a análise de seus significados;
assim, o ato de piscar pode ser interpretado também em outras situações, desde que se explique e
compreenda o significado de cada piscadela. A observação e a transcrição dos fatos examinados já
contêm em si uma parte da explicação. Para narrar nossa verificação, temos de explicar os códigos
já conhecidos ou dar sentido àqueles que não são de conhecimento do nosso público leitor.
21
Unidade I
Geertz (2008) entende a cultura como um documento público de atuação, não importa se é objetiva
ou subjetiva, entende que é ela um produto que transmite, comunica algo dotado de sentido. Produto
esse que pode ser um pensamento, um sentimento ou uma ação, um comportamento realizado por um
agente. Mas isso não significa que a cultura é apenas algo que está na mente e no coração das pessoas,
como diria Goodenough, nem que é a soma das ações observáveis é a cultura, ou ainda que cultura é
uma realidade “superorgânica autocontida”.
Explicar e compreender uma cultura não torna ninguém um nativo, saber o que é uma piscada e
saber fazê-la não é pertencer a uma cultura. A descrição densa do etnólogo não o torna uma pessoa
da cultura estudada, pois não basta apenas saber e conhecer as regras, comportamentos, significados.
Mesmo sabendo falar a língua e conhecendo regras de outra cultura nós não os assimilamos, não nos
situamos entre eles (GEERTZ, 2008).
Em italiano, existe uma expressão que explica bem essa situação, a pessoa de fora está ou se sente
spaesata, algo como: deslocada, fora de seu país ou território de origem, perdida, desorientada, sem
pontos de referência.
A pesquisa etnográfica tenta dar esses pontos de referência, apreender para poder se situar,
conversar com o outro, ampliando, portanto, o discurso humano. Os signos culturais, assim como
as palavras de um texto, são interpretáveis; a cultura é o contexto, é dentro dela que os signos
têm sentido e podem ser descritos (na analogia com o texto: a sociedade, o período histórico, as
relações sociais na qual vive o autor/locutor/emitente são o contexto de produção). Fora de seu
contexto, os signos nada significam, não sendo possível interpretar, encontrar sentido (ou seja,
um texto, sem seu contexto de produção, possui palavras que perdem a relação com o mundo, e
se torna incompreensível).
Para avaliarmos melhor a outra cultura, temos de olhar pelo ponto de vista do outro. A
antropologia é uma interpretação, não a compreensão exata do sistema simbólico de outros povos.
Como qualquer interpretação, ela está limitada a um texto e um contexto específico, às falas e
aos agentes envolvidos na observação. As descrições antropológicas são análises científicas dos
dados, das falas, das estruturas observadas, mas não são a cultura em si – uma coisa é o objeto de
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
estudo, outra é o estudo. O que se lê é o resultado do estudo, é a interpretação feita dos dados, é
uma interpretação de segunda ou terceira mão, uma vez que a apreciação de primeira mão apenas
os agentes nativos podem fazer.
Portanto, o que se faz é uma “compreensão da compreensão”, como diria o próprio Geertz (1998)
anos mais tarde, em seu livro O saber local: ensaios em antropologia interpretativa. A nossa percepção
de nós mesmos e dos outros é influenciada pelo intercâmbio cultural entre o nosso modo de pensar e o
modo dos outros de interpretar (FREHSE, 1998).
É como se o antropólogo escrevesse uma ficção, um livro ou uma peça sobre o outro não no sentido
de falso ou imaginário, mas de algo construído, modelado. A antropologia existe nos livros, artigos,
conferências. A cultura existe na realidade vivida. Dessa forma, diria Geertz (2008), para ter acesso
ao sistema simbólico, é preciso inspecionar os acontecimentos, e não arrumar entidades abstratas em
padrões unificados; por isso, a necessidade da descrição densa. Esses sistemas têm coerência, porém
isso não significa que existam repetição e frequência dos mesmos fenômenos ou ações em situações
similares, ou seja, não necessariamente ocorrerá o mesmo fenômeno novamente no mesmo lugar,
mesmo que se for com as mesmas pessoas.
A descrição é interpretativa, pois interpreta o fluxo do discurso social, tentando salvar o que foi dito
em um discurso que seja possível pesquisar. Essa visão é microscópica.
Como na descrição da piscada conspiratória, ela explica o que é a piscada, busca assimilar o seu
significado social, avalia a comunicação entre os dois agentes envolvidos, cria um discurso que poderá
ser pesquisado e consultado novamente, mas é a observação daquele momento entre aqueles agentes
específicos. Dessa análise microscópica, é possível tirar conclusões gerais como fazem outros nas ciências
humanas (GEERTZ, 2008).
A observação participante do etnógrafo permitirá que ele tenha várias passagens, vários relatos,
diversas observações, que lhe permitirão compreender uma ampla paisagem cultural.
O autor alerta para que os exames não sejam considerados mais do que eles realmente nos podem
mostrar. Não é possível de um caso apreciado presumir que todos os outros membros da sociedade
agiriam de maneira semelhante, ou que em outros períodos as ações seriam as mesmas, ou mesmo que
todas as sociedades possuem comportamentos iguais. E lembra do caso do complexo de Édipo, que foi
tido como regra geral, mas que, conhecendo melhor outras culturas, como na ilha de Trobiand, pode
se dar o contrário, como o papel dos sexos estar invertido, em Tchambuli, ou nem haver agressividade
entre os índios Pueblo. O mesmo se pensarmos no kula, hoje ele já não existe mais na realidade, porém
pode ser lido e compreendido por meio dos livros. As avaliações antropológicas têm sua profundidade
e seus limites.
23
Unidade I
Nessa descrição densa, deve-se manter a subjetividade do pesquisador de lado, para se buscar
uma explanação sem julgamentos ou para não cair em uma visão etnocêntrica sobre a sociedade
estudada. Por exemplo, quando Geertz estudou a briga de galos em uma comunidade da Indonésia,
fez a descrição da importância e das relações sociais existentes sem se apegar à crueldade ou à
violência que existe na rinha, pois esses conceitos são da sociedade de fora. A briga de galos não
é vista como violenta ou cruel entre seus praticantes, porém como parte da vida masculina, do
comércio, da economia, das relações locais.
A teoria de Geertz tem uma abordagem semiótica da cultura, apreendem-se e analisam-se pequenos
casos ou situações para compreender a lógica dos pensamentos e comportamentos envolvidos:
Para Geertz é difícil uma teoria da interpretação cultural, pois as interpretações são sempre
microscópicas, e a teoria deveria ficar sempre próxima a cada terreno da avaliação. Diferente das ciências
biológicas ou exatas, na antropologia, é difícil construir teorias verificáveis, que se possa testar em
laboratórios, manipular objetos etc. As descobertas antropológicas não seguem uma curva ascendente
ou um conhecimento cumulativo, são sequências desconexas, estudos seguem outros estudos. Cada
novo estudo, munido de informações, conceitos, fatos e hipóteses anteriores buscam se aprofundar mais
na mesma coisa, não para quebrar ou construir teorias, mas para avançar nos estudos. As formulações
teóricas das análises se esgotam em si mesmas, pouco funcionam fora delas. A interpretação cultural
não busca “codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis descrições minuciosas; não generalizar
através dos casos, mas generalizar dentro deles” (GEERTZ, 2008, p. 18).
Outra característica da teoria cultural é que ela não é profética, não busca antecipar o que vai ou pode
acontecer, mas também não é apenas post facto. As teorias culturais devem sobreviver intelectualmente
às realidades que estão por vir, e as formulações feitas sobre piscadelas ou brigas de galos devem
continuar servindo para outras interpretação para que sejam refinadas, afinal, as ideias teóricas são
retomadas de um estudo anterior para novas problemáticas interpretativas.
• a descrição densa, que é a anotação dos significados que as ações sociais têm para seus atores, ou
seja, a descoberta das estruturas que informam os atos dos sujeitos e;
função, sagrado e cultura. Fatos pequenos do nosso cotidiano mostram como esses conceitos se
entrelaçam na descrição, e é a partir deles que se tiram grandes conclusões para assimilar o papel
da cultura nas nossas vidas.
Por fim, a antropologia interpretativa é incompleta por natureza, é sempre possível ir mais a fundo,
refinar mais, buscar novos relatos e significados. Geertz critica quem transforma a cultura em folclore,
quem coleciona relatos, quem transforma as análises em instituições ou classificações. A visão semiótica
e subjetiva é essencialmente contestável e assim deve permanecer.
Segundo Azzan Jr. (1991), Geertz generaliza um conjunto de diferenças que acaba evidenciando as
particularidades da cultura. Os dados singulares que se têm de determinada cultura induz a percepção
de verdades sobre ela. Já Lévi-Strauss, ao codificar as regularidades, deduz qual é a estrutura social. Mas,
no fim, por um método ou outro, a antropologia é capaz de transformar a realidade em conhecimento.
Assim, tanto a parte é capaz dar sentido ao todo, como o todo é capaz de conferir absorção das partes.
Ambas as metodologias chegam ao mesmo objetivo, no entanto, uma explica e a outra compreende,
e o processo dialético entre explicar e compreender gera um conhecimento antropológico de dupla
interpretação.
Roberto Cardoso de Oliveira (2006) traz à discussão a questão da dupla interpretação a qual todo
antropólogo está destinado: a primeira é o resultado da descrição, a segunda é a avaliação dessa
descrição. Qualquer descrição passa pela análise, uma vez que deve informar e apreender.
O que Cardoso de Oliveira (2006) quer mostrar é que existe uma interpretação explicativa e uma
interpretação compreensiva. A relação entre essas duas modalidades subjetivas permitirá uma visão sábia
e profunda, enquanto uma leitura tendendo para uma ou outra modalidade ocasiona uma interpretação
superficial. A interpretação explicativa são análises formais, que buscam uma síntese, um código, a
identificação das regras e padrões; a interpretação compreensiva busca o significado desses códigos,
regras e padrões, é também o resultado da observação participante.
25
Unidade I
Por postura nomológica, o autor quer trazer a importância da análise etnocientífica dos anos 1960,
que devem posteriormente ser refinadas na busca de uma compreensão sábia, ou seja, seria essa postura
uma parte da análise hermenêutica. A análise metódica formal ou formalizante do estruturalismo e da
observação participante deve depois buscar uma apreensão dos sentidos, ir além do objetivismo para
chegar à dialética. Portanto, deve-se passar pelas duas interpretações para uma visão mais sábia.
Tanto Geertz como Lévi-Strauss possuem essa leitura dialética para explicar a cultura observada,
no entanto, um dá mais ênfase ao explicar e o outro ao compreender. Lembremos que Lévi-Strauss
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
começa suas pesquisas nos anos 1930 e publica diversos livros importantes até os anos 1970; já
as pesquisas de Geertz, iniciadas nos anos 1950, começam a ganhar notoriedade em seu percurso
acadêmico nos anos 1970. Segundo esse ponto de vista, podemos perceber que um se torna a
continuidade do outro: primeiro explicar para então compreender.
Segundo Azzan Jr. (1991), a preocupação na antropologia interpretativa está no caso particular e
sua interpretação, não se busca a lei ou a instância mais geral ou classificações. Para tal interpretação,
deve‑se passar por uma densa descrição. Isso para poder penetrar no modo de pensamento de outros
povos. Parte-se do senso comum de casos particulares para uma interpretação profunda, filosófica,
psicológica, histórica, literária. Nesse momento, transforma-se o caso em uma análise científica.
Assim, o caminho para atingir uma análise antropológica passa primeiramente pela descrição das
formas simbólicas particulares, e em seguida para sua contextualização dentro da estrutura total de
significados. Para chegar a essa abordagem, é fundamental pressupor que a cultura são “símbolos
interpretáveis”, ou seja, a própria cultura é interpretável, ao invés de codificável; esse é o conceito de
cultura semiótica. A possibilidade de interpretar, é mais do que codificar, classificar, encontrar leis e
regras gerais, e isso que torna a cultura produtora e construtora de sentido, e não apenas de signos.
As ações que cada sujeito toma é dotada de significado, e quando agimos a ação é viva apenas
naquele momento; quando o antropólogo registra a ação do sujeito, o significado dessa ação
persistirá para a interpretação, para a análise e compreensão. Então, o registro das ações se torna
um documento sobre o qual o antropólogo pode trabalhar como as pinturas rupestres, inscrições em
pedras, pergaminhos etc. É assim que a cultura passa a ser um texto interpretável, ou melhor, um
conjunto de textos interpretáveis que formam uma teia.
Segundo Azzan Jr. (1991), o que Geertz pretende fazer é uma etnografia do pensamento, pois existe
uma variedade radical do modo como se pensa, isso que significa um estudo da intersubjetividade:
as estruturas do pensamento mudam, as províncias de pensamento são demarcadas, normas de
pensamento são mantidas, modelos de pensamento são adquiridos. Compreender isso nos permite
aprofundar no sentido da cultura. Com isso, a etnografia geertziana se demonstra muito mais descritiva
que interpretativa, mas a abundância de descrição é que permite a assimilação.
Na visão de Geertz, a abordagem interpretativa era superior às outras abordagens, sejam elas
românticas, positivistas ou tradicionais. De certo, a abordagem interpretativa se afasta do reducionismo
positivista e do idealismo alemão, no entanto, é possível concluir que ela se tornou mais humanista,
porém não superior. Geertz traz de novidade o fato de a sociedade não ser mecânica (como analogia das
ciências exatas), nem um organismo (como analogia das ciências biológicas), mas que existe um jogo,
um drama, um texto. Nesta analogia, podemos compreender melhor o conceito semiótico de cultura
que Geertz coloca nas ciências sociais (AZZAN JR., 1991).
Por exemplo, ao tratar da briga de galo balinesa como um texto, permite um afastamento emocional
para uma análise e uma compreensão do jogo, do drama que existe entre os diversos personagens
envolvidos. A briga de galo é apenas um de tantos textos da vida balinesa. Junto com esses outros
textos, o antropólogo pode aprofundar a concepção e o diálogo com a cultura balinesa.
27
Unidade I
Uma crítica que se faz dessa leitura da cultura é que não se conhece o autor, o destinatário ou o
contexto desse texto antropológico. As narrativas e descrições estão descontextualizadas socialmente.
Nesse momento, Azzan Jr. (1991) faz uma crítica à noção de texto de Geertz. A elaboração de textos sobre
culturas exótica permite a construção de um documento inscrito que poderá servir para compreender a
historicidade de tal cultura. Mas, uma vez que o próprio texto está descontextualizado, ele se torna um
objeto de frágil potencial histórico. Para a história, é importante saber quem é o falante, o ouvinte e o
dito dentro de seu contexto. Uma vez feita a descrição do que foi visto e dito, perdem-se a caracterização
e a dimensão dos personagens envolvidos.
É como se nós estivéssemos lendo um livro ou vendo um filme no qual existem muitos personagens
e figurantes, mas não protagonistas. A história é sempre contada por um narrador externo a ela. Ao
fazer uma leitura da interpretação da briga de galos de Geertz, Azzan Jr. comenta:
Segundo a crítica falta dizer o que os balineses compreendem de sua própria realidade. A
hermenêutica pretendida ou projetada por Geertz não é atingida, pois o texto, sendo uma parte de
um todo, exige que se recupere essa conexão. Apenas apresentar vários textos densamente descritivos
e sem autoria (ou protagonistas) não permite chegar na hermenêutica, ou na interpretação e
compreensão do todo. Seria necessário um julgamento reflexivo relacionando os diversos textos, os
mais centrais e os mais periféricos para poder reconstruir o todo. Na ausência dessa reconstrução, pode-
se cair no engano de concluir que a sociedade balinesa funciona em torno da briga de galos, sendo que
esse evento não é tão central assim, do mesmo modo que as touradas na Espanha não o são.
Não há como interpretar os atores sociais que são descritos nas etnografias geertziana, pois não
conhecemos suas intenções. A ausência das falas e das intenções dos sujeitos faz com que os textos não
possuam autores. Por autores, nesse caso, estamos querendo dizer os autores no texto, e não o autor do
texto. Azzan Jr. (1991) esclarece: os autores do texto são a sociedade, uma vez que a cultura é pública;
os autores no texto e seriam os sujeitos, e esses sujeitos fazem parte da descrição e desempenham seus
papéis e têm consciência desses papéis, no entanto, eles não constroem o texto que querem. Existe
ainda uma terceira autoria, a do antropólogo. Afinal, é o antropólogo que transforma a experiência
observada e vivida em textos, para serem analisados cientificamente. Esse texto é que Geertz aproxima
de uma ficção, pois a realidade já está em um tempo e espaço distantes. Neste sentido, Geertz afasta
a etnografia da ciência e a aproxima da literatura – por isso, a ideia de ficção. No mais, o etnógrafo
não deve ser uma autoridade no discurso, mas permitir que o nativo fale de modo direto, igual, ao
lado do antropólogo. A experiência do antropólogo não pode valer mais do que a realidade. O texto
antropológico é a versão escrita do que foi dito pelos personagens. O que Geertz propõe é uma “autoria
dispersa”, ou seja, uma autoria pública.
Com essa visão, Geertz distancia o trabalho etnográfico de interpretações feitas por colonizadores
nas décadas e séculos anteriores, as quais a subjetividade do colonizador ditava a interpretação do
28
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
colonizado. O que se fazia no período colonial era a construção de uma representação do outro
segundo a lógica do colonizador, com uma metodologia das ciências exatas e biológicas para se atingir
um suposto objetivismo. Diferente da proposta geertziana, que busca a intersubjetividade, ou seja, a
descrição do ponto de vista de quem está sendo descrito, afastando-se dos preconceitos do subjetivismo
do colonizador (AZZAN JR., 1991).
É devido à impossibilidade de uma objetividade por parte do etnógrafo que Geertz insere a
antropologia nas humanidades e na literatura, ao invés das ciências. No entanto, esclarece:
Para compreender melhor essa passagem, é importante lembrar que o texto tem quatro características:
Desse modo, vimos que a objetividade está cristalizada no texto, apesar de tanto o autor como o
leitor possuírem e utilizarem suas subjetividades para interpretar o texto, é isso que Geertz entende por
intersubjetividade e de que falávamos anteriormente sobre dupla interpretação.
Azzan Jr. (1991) refletiu mais profunda e minuciosamente sobre a teoria de Geertz. A abordagem
interpretativa trouxe um novo olhar para a antropologia e uma nova metodologia. Estruturalismo e
interpretativismo não se excluem, são um a continuidade do outro e a busca por uma antropologia
dialética. Ambas buscam se afastar dos preconceitos e etnocentrismos gerados por abordagens ou más
leituras anteriores e trazer um relativismo para a antropologia contemporânea, maior compreensão
sobre as diversidades culturais, estruturais e de pensamento.
Saiba mais
29
Unidade I
“Os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem”.
(Karl Marx)
Houve um momento das ciências humanas em que foi necessária a divisão metodológica entre
a história e as ciências sociais. Essa divisão se deu muito mais nas questões de método do que de
conteúdo. Com o passar do tempo, a história desenvolveu e definiu seus próprios métodos, já as ciências
sociais, segundo Lévi-Strauss (2003, p. 13), desenvolveram-se às custas de muitos “conflitos, discórdias
e confusões”.
Não se trata de esboçar uma história da antropologia (tema trabalhado em outra disciplina), mas
de compreender como essas duas áreas do conhecimento estão próximas e em que aspectos elas se
distanciam. DaMatta diria que há duas perspectivas:
Para entrarmos nessa discussão, precisamos lembrar dos métodos de pesquisa da antropologia: os
estudos etnográficos mostram uma viagem de ida para a descoberta do desconhecido do exótico, o
etnógrafo observa uma outra cultura; e os estudos etnológicos é a viagem de volta, de análise dos dados
coletados do que parecia exótico e que acaba revelando traços implícitos com a sociedade do próprio
antropólogo (DAMATTA, 1987).
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Ao estudar os grupos humanos e suas instituições, sistemas, estruturas, não é possível construir
um passado ou querer explicar o presente por um passado que é desconhecido dos pesquisadores. Por
exemplo, não é possível explicar ideias religiosas relacionadas a práticas que envolvem espécie animais
(na alimentação ou sacrifício) com vestígios de um sistema totêmico existente no passado desse povo
ou que, eventualmente, entrou em contato com tal população. Isso não é plausível de verificação, uma
vez que a etnografia estuda as particularidades de um grupo no presente.
A etnologia reconstrói a história de povos antigos, mas sem dispor de fatos sobre o desenvolvimento
desses povos. Respeitando os limites de tempo e espaço, certas hipóteses podem ser feitas, mas seria
errado deduzir que determinadas regras e estruturas sociais coexistentes derivem uma da outra,
correndo assim o risco de criar um evolucionismo entre as tribos. Por exemplo, nos estudos de Boas, seria
errado dizer que as estruturas matrilineares tenham transformado-se em estruturas patrilineares ou
bilaterais, pois isso colocaria as sociedades matrilineares como primitivas, mesmo as que existem ainda
hoje. Leituras como essa levaram muitos pesquisadores e estudiosos a reforçarem o eurocentrismo. Nas
palavras de Boas, “Para compreender a história, não basta saber como são as coisas, mas como chegaram
a ser o que são” (BOAS apud LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 21). Boas se concentrou em fazer uma análise
sincrônica dos estudos da cultura.
Se lembrarmos de Malinowski, ao analisar a função do kula, ele compara com aspectos de sua
própria cultura das joias da coroa. Isso não significa que a coroa britânica em algum momento do
passado tenha entrado em contato com os trobriandeses, nem o inverso, mas que, para a compreensão,
é necessária uma “comparação por contraste” ou “comparação relativizadora”; para dar sentido a uma
31
Unidade I
diversidade cultural, foi importante encontrar uma referência na própria cultura. A diferença é que as
joias da coroa foram tiradas de seu tempo e colocadas em um museu, enquanto os objetos do circuito
kula marcam uma linha do tempo, criando as relações pessoais vivas no tempo.
A principal diferença entre história e etnografia é que a história estuda e critica documentos de
diversos observadores, enquanto a etnografia é a leitura de um único observador (o etnógrafo). Muitas
vezes, esse etnógrafo pode ser um dos observadores estudados pelos historiadores, ou servir também
de referência para outro etnógrafo (desde que esse último se aproprie de métodos históricos para a
análise). Nesse momento, Lévi-Strauss conclui então que tanto o objeto como o objetivo e o método
utilizados entre etnógrafos e historiadores são os mesmos, porém existe uma diferença de perspectiva,
uma vez que o historiador estuda as expressões conscientes e o etnógrafo as condições inconscientes
da vida social de determinada população em determinado período.
32
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Mais uma característica é levantada por Lévi-Strauss: a etnografia se interessa por aquilo que não
está escrito e eternizado em documentos, busca na tradição oral e na memória social o seu objeto de
estudo. A metodologia e a riqueza da tradição oral superam seus próprios limites.
Essas diferenças entre história e etnografia não significam que seus estudiosos ignorem ou se
afastem da perspectiva do outro, nem mesmo que andem em caminhos opostos. Porém buscam uma
orientação diferente, o etnólogo olhando do consciente para o inconsciente, e o historiador parte de
atividades concretas e particulares e se afasta para uma perspectiva mais ampla. Sendo assim, uma das
leituras será sempre completar à outra, concluiria Lévi-Strauss (2003).
Enquanto a história encaminha seus estudos em uma linha contínua no tempo, a antropologia
estuda as diferenças culturais, dispensando o tempo, privilegiando o espaço como categoria comparativa
entre as diversidades culturais. Desse modo, o antropólogo relativiza a própria cultura para compreender
a outra. A dialética antropológica, segundo DaMatta (1987, p. 112), dá-se entre o “eu” e o “outro”, o
familiar e o exótico, o próximo e o distante, o explícito e o implícito, o racional e o irracional, o universal
e o particular, o vivido e o concebido.
Como então estudar e explicar povos humanos do passado? Sociedades e culturas já distantes da
sociedade contemporânea? É possível categorizar em culturas arcaicas, primitivas e contemporâneas? A
primeira categoria se refere às culturas que viveram num tempo e espaço anterior ao nosso; a segunda
àquelas que nos antecedem no tempo, mas se manifestam nos mesmos espaços; e a terceira àquelas que
vivem no mesmo tempo, mas em outra parte do planeta (LÉVI-STRAUSS, 1993).
Das sociedades arcaicas, conhecemos muito pouco, o que se tem são hipóteses ou analogias
feitas a partir de objetos, vestígios e restos que sobreviveram à destruição do tempo. Apesar de haver
semelhanças das sociedades primitivas com as arcaicas, não é possível afirmar e compreender como
viviam os povos arcaicos. As interpretações são baseadas em raciocínio lógico na busca de sentido e de
semelhança com fenômenos conhecidos na atualidade. É assim que se interpretam pinturas rupestres,
pedras lascadas, jazidas e outros objetos.
Pode nos parecer que as culturas arcaicas e primitivas sejam de povos sem história, porém todos os
povos têm história, mesmo aqueles que parecem mudar pouco ou muito vagarosamente; mesmo estes
são compostos de homens e mulheres que cresceram, criaram, combateram, inventaram etc. O fato de
não terem uma história escrita ou documentada significa apenas que essa história nos é desconhecida.
Lévi-Strauss diria que essas sociedades possuem uma história ativa, mas não progressiva, como aquelas
que acumulam achados e invenções para construir grandes civilizações. A diferença é o uso que se faz
do tempo em cada uma delas.
A divisão temporal que existe na paleontologia das eras das sociedades arcaicas é bastante cômoda
do ponto de vista didático, mas do ponto de vista antropológico o progresso entre elas não é verdadeiro,
pois elas coexistiram no mesmo tempo e em espaços compartilhados ou distintos, o que significa que
não é possível afirmar que houve um progresso contínuo entre idade da pedra lascada, idade da pedra
33
Unidade I
polida, idade do cobre, do bronze e do ferro. Eram sociedades contemporâneas entre si, e encontraram
técnicas diferentes de construção de instrumentos e ferramentas no mesmo período histórico, a tentativa
de copiar objetos de outras culturas possibilitava a invenção de novas técnicas.
Assim, a ideia de “progresso” não é necessária, nem contínua, não é uma escada que se sobe apenas
um degrau por vez, sem jamais retroceder. Basta lembrarmos da redescoberta do continente americano.
Aqui, ele já era conhecido, coexistiam diversas culturas com tecnologias, agricultura, domesticação de
animais, conhecimentos astrológico, farmacêutico, calendários complexos, relógios de sol, culinárias e
técnicas de conservação das mais diversas. Todo esse saber foi compartilhado com os povos europeus
que aqui desembarcaram e passaram a conhecer e explorar elementos dessas culturas ao ponto de
se tornarem referências para a economia, mercado e culinária global. Ou seja, não é possível afirmar
que os europeus trouxeram o progresso e a civilização, uma vez que eles também aprenderam e se
apropriaram da cultura aqui existente. E mais, todos os povos e formas de vida coexistentes estavam
vivos e construindo suas próprias histórias. São, portanto, culturas contemporâneas com as quais as
histórias se cruzaram.
O que se pode afirmar então é que o progresso cultural é uma coligação entre as culturas, é no contato
entre os diferentes que ocorre a troca de conhecimento, de materiais, de técnicas e de tecnologias. O
contato com a diversidade nos possibilita a criação do novo, a curiosidade e a reflexão, desde que
estejamos abertos para tal percepção, como todo antropólogo deve estar.
Por exemplo, no pensamento evolucionista seriam classificados os sistemas políticos em “pré” e “pós”
(pré-político e pós-político), já o antropólogo estruturalista analisaria o sistema político da sociedade
avaliada tendo como referência a noção de política da sociedade estudada, e não da sociedade materna
do pesquisador. A comparação se dá a posteriori, ao observar o inconsciente presente na cultura estudada
e trazê-lo para o consciente antropológico, um lugar onde se pode tomar consciência das diferenças
culturais. Nesse caso, DaMatta entende por inconsciente “um lugar de onde se pode tomar consciência
das diferenças e, por meio delas, alcançar as semelhanças entre as relações e as instituições humanas”
(DAMATTA, 1987, p. 114).
Então, ao observamos a política como uma instituição, apesar de existirem diversos tipos de governos
(absolutista, ditatorial, democrático etc.), é possível perceber que em todos existe um representante
com poderes de organizar e modificar regras sociais. Agora, a forma como esse representante chega ao
poder é que são variáveis e quanto poder eles têm também. Mas não podemos colocar uma sequência
histórica linear universal, ou seja, não podemos dizer que um governo absolutista é mais antigo que um
sistema democrático. É possível analisar dentro de uma mesma sociedade suas mudanças políticas, e o
Brasil é um exemplo da não existência dessa linearidade, pois antes do nosso período ditatorial tivemos
um período democrático que se restituiu depois de décadas.
Outro exemplo, lembrando um pouco dos estudos de Geertz sobre Bali, ao observamos como é
organizado o tempo entre os balineses, veremos que os eventos religiosos são as referências temporais
dos dias cheios (aqueles com compromisso social, controle do comportamento em espaço público), já
os dias vazios são aqueles sem ritos sagrados. No entanto, na nossa cultura os eventos religiosos se dão
no que para nós são dias vazios, os feriados, nos quais estamos livres das obrigações de trabalho e do
controle social do relógio, enquanto os dias cheios se referem à nossa rotina de trabalho, aos dias úteis;
são esses dias que nos dão a noção de dia, semana, mês, férias etc.
Saiba mais
35
Unidade I
Esses dois exemplos servem para compreendermos melhor como que a antropologia trabalha e
como é que se relativiza ao estudarmos culturas diferentes sem cairmos em uma leitura etnocêntrica.
As culturas são dissemelhantes, mas isso não as coloca como atrasadas e avançadas, ou incompletas e
completas, ou ainda melhores e piores.
O exercício antropológico permite trazer à consciência o que está implícito inclusive na nossa
sociedade ao percebermos como a nossa vida é organizada a partir do trabalho, é ele quem diz a hora
de acordar e de voltar pra casa, os dias de folga, as férias e feriados; ele serve de referência para
comportamentos sociais como o happy hour (normalmente às sextas-feiras, após o expediente, aquele
momento de relaxar com amigos); é por ele que as segundas-feiras são tristes e as sextas-feiras, felizes,
e assim por diante.
Dessa reflexão, deduz-se que os homens, sendo iguais, encontram modos distintos de construírem
suas identidades, o que forma sociedades e culturas diversas entre si.
Então, se o tempo é percebido de modo diferente entre as culturas, é possível afirmar a existência
ou não de história em sociedades arcaicas e primitivas? A resposta está muito mais na definição do que
na filosofia. Se pensarmos na temporalidade, as sociedades humanas têm uma noção de temporalidade,
percebem a passagem do tempo, mas não necessariamente todas elas são capazes de perceber a
ideologia dos blocos históricos construídos pela mentalidade da sociedade ocidental. Ou seja, essa
forma de entender a passagem do tempo por blocos históricos pertence à nossa ideologia ocidental com
grande influência da visão europeia. São esses blocos ideológicos que Lévi-Strauss e DaMatta entendem
por História.
O que a sociedade ocidental entende por história é a visão de um ou mais historiadores sobre dada
sociedade, ou seja, é uma história construída e interpretada por homens, historiadores e filósofos. É
uma perspectiva, um ponto de vista entre tantos possíveis. Um historiador acaba se destacando para
transmitir às próximas gerações a “história” de um povo, uma história que seleciona pontos de vista,
informações, documentos etc. A história do Brasil, por exemplo, é baseada na visão dos portugueses que
aqui chegara e desbravaram, conquistaram, colonizaram e civilizaram o território. Essa é a nossa história
oficial aprendida nos livros, filmes e documentos.
O que os antropólogos questionam é: e a visão dos nativos? Como seria a história do Brasil narrada
pelas culturas indígenas e pelas populações africanas que foram escravizadas nesse território? A noção
de tempo dessa população também existe, mesmo que não seja a mesma perspectiva histórica já
conhecida pelos portugueses. Após a chegada e o contato com os homens brancos, surgiram mitos
indígenas com a presença de “homens brancos”, esse foi o modo como os indígenas encontraram para
contar essa parte de suas histórias.
As etnias indígenas aqui existentes antes da colonização possuíam uma noção de temporalidade,
pois seus mitos mostram o que veio antes do presente, como era o mundo antes de suas existências,
como o Sol e a Lua deram forma ao mundo e ao caráter dos heróis, por exemplo. Porém não é possível
36
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
separar, no pensamento mítico, o tempo do processo histórico, porque ambos estão entrelaçados. Os
mitos que incluem o homem branco mostram as transformações que passaram a ocorrer nas sociedades
indígenas.
DaMatta (1987), ao ilustrar a noção de temporalidade dos Apinayés, trabalha com a ideia de “presente
anterior” e “presente atual”. No mito do Sol e da Lua, percebe-se o “presente anterior”, no qual existe
o céu e a terra (o alto e o baixo), no céu estão os heróis Sol e Lua, e a terra é caótica e sem forma. Já o
“presente atual” é o tempo de hoje, que está se vivendo, mas esse tempo é o reflexo daquele tempo em
que tudo estava se formando, ou seja, o presente reflete o passado, e vice-versa. Não é possível fazer
uma cisão do tempo. Não existem historiadores na sociedade Apinayé, não existe o mito da revolução,
os heróis da história, um mundo antigo melhor ou pior do que o atual. Da mesma forma, não existe
uma nostalgia de um passado ou a projeção de um futuro ideal. Existe a noção do tempo da formação
da terra e do tempo que não existia o homem branco cercando e devastando suas terras e liberdades.
O que se pode perceber é que o tempo para os Apinayés não é linear, é um ciclo oscilante
entre “presente anterior” e “presente atual”, as transformações não são internas, mas externas, não
são produzidas pela própria sociedade. No mais, não é possível acelerar o tempo, como na nossa
ideologia de temporalidade é possível, para os Apinayés, o ritmo do tempo é igual para todos. Na
nossa cultura, como diria DaMatta (1987), há “aceleradores do tempo”, nossas ideias revolucionárias,
nossa noção de dialética marxista nos permite construir uma leitura de “vanguarda”, “modernista”,
“futurista”, são visões daqueles que estão “à frente de seu tempo”, por exemplo, slogans como
“50 anos em 5” para a construção de uma capital; todas essas leituras mostram a possibilidade de
acelerarmos a noção de tempo na nossa sociedade.
Lembrete
Para a nossa cultura, o tempo como linha histórica é fundamental, essa é a nossa forma de organização
dos fatos, das transformações, das mudanças e do desenvolvimento. Mas, como antropólogos, temos
de ser capazes de relativizar e entender o tempo sob o ponto de vista dos outros também, pois há
vários modos de conceber e vivenciar o tempo, segundo DaMatta (1987). Tanto o antropólogo como o
historiador escolhem alguns dados, em detrimento de outros, não é possível lembrar e analisar tudo o
37
Unidade I
que foi visto e vivenciado. Nos estudos, acabamos por selecionar aquilo que nos parece mais relevante,
mais significativo, digno de ser lembrado e eternizado.
Para melhor compreendermos a relatividade do tempo, podemos lembrar de Thomas Mann, que
falava de um tempo interno e outro externo. Por exemplo: quando lemos uma narrativa, existe um
tempo interno, a história pode ser de um dia ou de 80 anos da vida de uma personagem, mas existe
também o tempo externo, que seria o tempo que levamos para ler aquelas páginas. Ou seja, o tempo
interno de um espetáculo, de uma história, de uma música é diferente do tempo externo de quem os
aprecia. O tempo externo é calculável, cronometrável, já o interno é variável.
Evans-Pritchard, ao estudar os Nuer, percebeu que o tempo é vivenciado pelas linhagens e clãs
patrilineares, a ancestralidade comum cria a noção de tempo e espaço; quando mais longe o ancestral
em comum, mais antigo, mais distante o tempo. Se lembrarmos também dos balineses de Geertz, os
ciclos temporal e familiar se fecham a cada três gerações, quando a nomenclatura dada ao bisavô e ao
bisneto é a mesma, mostrando o marco inicial e final de companheiros contemporâneos, que separam
os antecessores dos predecessores.
Podemos notar também nessas leituras antropológicas que temporalidade está ligada à
distância e proximidade, ou seja, ao espaço. Quando um historiador ou antropólogo narra a
vida de personagens, culturas, sociedades, acaba criando uma narrativa na qual a temporalidade
interna é desconexa da externa; por isso, é importante relativizar a visão do tempo. Outro fator
essencial é perceber ser muito mais fácil estudar algo distante no tempo, que já está concluído,
do que uma história em aberto, no presente, que está ainda por se fazer. A história já finalizada
tem uma legitimação do social, é plausível de interpretação e de estabelecer uma relação com o
contexto atual.
Os eventos presentes, ainda estão quentes, estão se desenrolando, somos testemunhas, mas
somos também atores, as opiniões políticas interferem na leitura e na interpretação. Por isso a
dificuldade da perspectiva histórica em estudar o tempo presente de sua própria sociedade. A
nossa história traz mudanças políticas, revoluções, heróis de guerras, mas e a história das etnias
indígenas? Quais seriam os fatos e eventos importantes em uma sociedade sem Estado, sem
heróis de guerras, sem revoluções populares? E como faz então o antropólogo que estuda o tempo
presente de uma cultura diversa?
O que se faz é estudar as sociedades desconhecidas reproduzindo nelas algo conhecido por nós,
categorias, instituições, sistemas. Busca-se compreender como é a religiosidade, a família, a política, a
economia, a tecnologia etc. Esses são conceitos valorizados pela nossa sociedade e buscamos nas outras
as suas diversidades e similaridades. Devemos atentar, porém, para não classificar como atrasados os
itens que não se assemelham à nossa cultura.
Assim, afastamo-nos da noção de tempo histórico e observamos o tempo interno daquela cultura,
como se estivéssemos vendo um filme ou lendo um livro. Importam aqui os fatos internos, e não
as consequências e passados que os trouxeram até o modo como vivem hoje. Ao observamos essas
culturas, devemos lembrar da lógica do totemismo, que traz uma noção de continuidade social entre
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
o homem e a natureza, para os clãs totêmicos, existe uma aliança entre o homem e a natureza. Um
clã “A” associado a um animal possui características parecidas com esse animal, já o outro clã “B”
associado a outro animal possui características do outro animal e portanto diversas do clã “A”.
Aqui, a lógica temporal entre homem e natureza é de continuidade, na nossa leitura historicista existe
uma lógica de causa-consequência, uma forma nasce da outra, existe uma sociedade anterior e uma
sociedade posterior. Mas não é possível que um clã associado à águia tenha nascido da tal animal, ou
seja, a consequência do cruzamento desse animal com um homem. A lógica é outra. Segundo DaMatta
(1987), as sociedades – tanto as chamadas civilizadas, como as denominada primitivas, possuem as duas
lógicas, a totêmica e a historicista, a diferença é que cada uma prioriza uma das lógicas e deixa a outra
implícita, ou inconsciente.
Nota-se a lógica historicista dos indígenas nos mitos que aparecem um personagem de fora, que
pode ser o homem branco, e, a partir do encontro com esse personagem, surgem as transformações
internas na sociedade indígena, agora dominada pela cultura dita civilizada. Esses são conhecidos como
mitos de contato.
De mesmo modo, nossa sociedade apresenta a lógica totêmica quando observamos torcidas de
futebol do time A e do time B, o confronto entre os times permite o rito social da vivência coletiva. O
nosso vínculo a um time, e não ao outro, bem como as diversidades entre os times mostram a lógica
totêmica. Os times também têm seus mascotes, que são animais que os simbolizam. Mesmo exemplo
ocorre quando utilizamos algumas metáforas, como bem lembra DaMatta (1987), “casal que parece gato
e rato”, para dizer que são diferentes e vivem brigando, mas existe uma continuidade, pois ambos são
animais. Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas não é o caso.
Enfim, tempo, história, historicidade, antropologia, todos tem suas convergências e divergências.
Os papéis do historiador e do antropólogo são diversos, mas complementares, estão ao mesmo tempo
próximos, mas sob perspectivas dissemelhantes.
Agora, vamos nos aproximar dos debates mais atuais da antropologia e seus desafios contemporâneos.
Para isso, percorreremos um debate emergente sobre a ética profissional, reflexões sobre o material
produzido e sua autoria, o rumo da antropologia em áreas urbanas e a importância do distanciamento.
Bela Feldman-Bianco. Nele, encontramos três seções: os direitos dos pesquisadores, os direitos dos
pesquisados e as responsabilidades dos primeiros.
Saiba mais
Para melhor compreensão, vejamos alguns pontos, sobre os direitos dos antropólogos:
A análise antropológica não tem o intuito de intervir na dinâmica cultural da sociedade estudada, o
foco é aprender com e sobre ela. No mais, deve respeitar a cultura e dar acesso ao material produzido
durante e após a pesquisa. Por fim, as responsabilidades dos antropólogos são:
O pesquisador deve apresentar-se como tal e respeitar as práticas científicas. Hoje, muito se
ouve sobre a ética nas avaliações das ciências biológicas, porém falar de ética em antropologia
não se refere a uma discussão filosófica do que é ética, ou de um distanciamento, de uma
neutralidade objetiva; ética, para os etnógrafos, refere-re à relação direta entre pesquisador e
pesquisado, do “deixar-se afetar”, da participação do avaliador, da proximidade. Essa relação
entre o antropólogo pesquisador e os sujeitos objetos de sua análise questionam a noção de
ética de outras ciências. Por isso, é tão importante deixar claros os direitos e responsabilidades
do investigador.
O etnógrafo, quando em campo, possui uma “posição desigual em relação aos seus interlocutores”
(SARTI; DUARTE, 2013, p. 11); temos de pensar na relação observador-observado, o olhar do observador
deve ser distanciado, mas há a necessidade de uma proximidade para a interlocução; da mesma forma,
o cientista não faz parte das relações sociais e de poder existentes em cada grupo. Aqui, começam os
desafios desse profissional.
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Unidade I
A principal diferença é que a biociência faz pesquisa em seres humanos, enquanto a antropologia
faz estudos com seres humanos, como bem lembra Luís Roberto Cardoso de Oliveira (apud VÍCTORA et
al., 2004). A análise na área de saúde trata os seres humanos como cobaias (objeto de intervenção para
testar medicamentos, por exemplo; nas ciências humanas, os humanos são atores, com os quais existe
uma interlocução. Por isso, Oliveira considera o termo de consentimento, exigido pelo Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP), como pouco produtivo, uma vez que o pesquisador de certa forma deve se inserir e
negociar sempre o consentimento (implícito) com os nativos para poder manter o diálogo. O avaliador
é também um ator, e muitas vezes participa e compartilha experiências com seus interlocutores. O
consentimento informado antecipadamente quebraria a possibilidade da experiência e da participação
do antropólogo.
Outro problema levantado por Oliveira é a questão de uma definição prévia e clara dos objetivos,
problemas e resultados esperados. Em antropologia, muitas vezes os objetivos são reformulados
posteriormente ao trabalho de campo, pois não é possível prever o que será vivenciado e observado
pelo investigador, nem o que exatamente será publicado cientificamente. O consentimento informado
exigido pela Resolução nº 196 parte de uma visão da pesquisa em seres humanos, e não considera a
análise com seres humanos, e nesse aspecto torna impossível a realização da pesquisa antropológica
com o consentimento do CEP. No mais, ocorre de as sociedades estudadas serem anágrafas, o que
dificulta ainda mais a possibilidade de um consentimento informado.
Alcida Rita Ramos, citada por VÍCTORA et al. (2004), também lembra casos antiético em pesquisa
tanto biomédica como etnográfica. O caso mais conhecido que gerou grande movimento para a busca
da ética na avaliação geneticista e antropológica foram os estudos dos Yanomamis, de James Neel
e de Napoleon Chagnon. James Neel, geneticista, fez experiências com vacinas contra sarampo nos
anos 1960, causando a morte de milhares de índios. O caso gerou muita discussão entre as ciências,
mas acabou sentenciado apenas como falta de ética, ainda que tenham sido revelados subornos e
declarações falsas que convenceram os índios a doar sangue para a pesquisa. Ainda hoje, substâncias
corporais dos Yanomamis são manipuladas por estranhos, o que causa grande desconforto à cultura,
pois muito desse material pertence a parentes já falecidos, e a existência desse material não permitiria
que eles descansassem em paz.
Já a etnografia de Napoleon Chagnon concluiu que os Yanomamis eram ferozes, e isso repercutiu na
academia estadunidense com ideias falsas e preconceituosas, que os reputavam como a população mais
primitiva e violenta da terra, comparados a babuínos.
A questão da ética na pesquisa deve ser vista de forma diferente em relação às pesquisas com e
em seres humanos, ou dos estudos das ciências sociais e das análises das ciências biológicas ou de
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
saúde. Qualquer cientista deve respeitar os limites da ética e da moral, mas as questões metodológicas
de cada ciência deve também ser respeitada e levada em consideração suas diversidades.
O que a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) propõe é uma outra regulamentação para as
ciências humanas, sem desrespeitar ou descartar a Resolução nº 196, mas restringindo esta última
ao campo da biomedicina, subordinado ao Ministério da Saúde. A nova regulamentação de ética em
pesquisas seria subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Em 2012, a ABA conseguiu uma
resolução complementar à 196 específica para as pesquisas em Ciências Sociais, mas continua vinculado
ao Ministério da Saúde. A Associação mantém aberto um canal de comunicação para que pesquisadores
antropólogos relatem suas experiências quanto à regularização da análise junto aos Comitês de Ética
em Pesquisa locais (CEPs) (SARTI; DUARTE, 2013).
Saiba mais
<http://www.portal.abant.org.br/>.
Além da luta pela regulamentação da metodologia antropológica dentro de uma resolução ética
reconhecida pelos órgãos políticos, há outros debates éticos discutidos nos encontros, reuniões, debates
e simpósios de todo o Brasil: a questão da ação política do antropólogo. Em determinada situações de
conflitos étnicos, antropólogos são peça fundamental para estabelecer um diálogo entre a sociedade
nacional e as comunidades étnicas (sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, rurais etc.). Essa
atuação do antropólogo exige também uma reflexão ética para defender direitos e garantir os deveres
entre os grupos em conflito, respeitando as diversidades e sem tendenciar para as populações tidas
como mais fracas e desconhecedoras das leis da sociedade nacional.
Esse é também um ponto levantado por Oliveira (2006): a questão da imparcialidade das
interpretações antropológicas. Para ele, não é possível manter a neutralidade, mas uma imparcialidade,
pois o pesquisador pode interpretar as diversas versões dos fatos sem tendenciar para uma ou outra.
Por exemplo, um antropólogo que elabora laudos técnico-científicos para demarcação de terras,
ele pode e deve ser imparcial, não se inclinando para nenhum dos lados interessados, seja de povos
indígenas, quilombolas ou fazendeiros. Os critérios não devem ser arbitrários e ou beneficiar um grupo
em detrimento do outro, por simpatia ou antipatia a esses grupos.
Nesse sentido, podemos acompanhar a experiência de Roberto Cardoso de Oliveira (apud VÍCTORA
et al., 2004), que, ao ressuscitar a ideia de etnólogo “orgânico” de Gramsci, relembra a relação umbilical
que o pesquisador tem com a entidade que ele representa, seja ela uma ONG, um setor político ou
governamental ou um segmento missionário. Ou seja, o antropólogo fala de um lugar, ele mantém de
43
Unidade I
alguma forma uma relação com ideologias sociais. A questão ética se coloca quando o antropólogo
deve fazer a mediação entre as culturas, como mediador deve fazer a tradução dos sistemas culturais,
pensando nas particularidades tribais e nos valores tidos como universais.
Roberto Oliveira relata o caso do infanticídio entre os índios Tapirapé, que é costume entre os
Tapirapés o sacrifício da terceira filha com o objetivo de controlar o “índice demográfico compatível
com seu ecossistema”, argumento reforçado pela ideia de que “a vida de todo um povo vale mais do
que a de um indivíduo” (OLIVEIRA apud VÍCTORA et al., 2004, p. 26). Esses valores particulares vão ao
encontro da ideia universal (ou ocidental) de que qualquer vida tem seu valor absoluto, ou ainda a
ideia constitucional do direito à vida, no qual o sacrifício de qualquer indivíduo, principalmente de uma
criança recém-nascida, seria considerado um crime.
Casos como esse colocam em questão o papel do antropólogo ético de ser um mediador dos valores
das duas sociedades, não podendo ele ser um juiz, ou advogado de nenhuma das partes. E, assim,
releva a noção de imparcialidade do etnógrafo em suas funções de conhecer e intermediar, buscando
o consenso, embora sempre afastado, definitivamente, da pretensão de neutralidade. Roberto Oliveira
esclarece que o pesquisador intermediador fica na mesosfera entre a sociedade nacional que está na
macroesfera – presa à universalidade, aos princípios universais (defendido pela ONU), e instrumentos
jurídicos – e as sociedades indígenas na microesfera – presas às particularidades, hábitos tradicionais.
Esse vínculo com a sociedade nacional é o cordão umbilical ao qual o pesquisador está preso, e o
conhecimento (adquirido por meio de um método científico) que tem das sociedades indígenas permite
que ele assuma o papel de mediador.
Debret, tendo em vista que o antropólogo é um mediador, levanta a questão de que, na sociedade
nacional, ele detêm status, prestígio e poder, enquanto a pesquisada é tida por desprivilegiada, com
vítimas e minorias vulneráveis. Com isso em mente, “os interesses dos grupos pesquisados devem
preceder os interesses da pesquisa” (DEBRET apud VÍCTORA et al., 2004, p. 45). Além do consentimento
informado, ele traz à tona:
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Questões como da autoria e da coautoria também fazem parte dos questionamentos da ética na
antropologia, uma vez que a produção do etnógrafo é feita em conjunto com os sujeitos pesquisados.
Além de mediadores, a antropologia pode também contribuir em dar voz e autonomia ao povo
estudado, que é muitas vezes visto como leigo, excluído e não conhecedor das regras, leis e direitos da
sociedade nacional. No entanto, a inserção da população indígena ao nosso sistema de estudo (graças
às políticas de ação afirmativas) vem colocando-os também em contato com estudos universitários
nas áreas de direitos, saúde, pedagogia, entre outros.
Lembrete
Nesse sentido, vale lembrar o estudo da antropóloga Jane Felipe Beltrão, que investiga a
interculturalidade:
Beltrão propõe uma nova escrita, em conjunto, na qual os sujeitos da pesquisa sejam também
intérpretes e autores. Hoje, alguns povos indígenas vivenciam os dois mundos: sua cultura materna
e o mundo não indígena; portanto, possuem formas diferentes de interpretar a realidade e podem
contribuir na análise tanto da própria cultura como na “tradução” para a cultura não indígena. A
ideia principal é tratar de forma simétrica os saberes e romper com a visão colonialista de que o
registro escrito por autoridades (religiosas ou científicas) sejam mais fidedignos que os saberes e
a tradição oral.
Mais do que dar respostas prontas, pretendemos com essa reflexão possibilitar o questionamento,
abrir espaço para novas formas de ver e dar voz aos sujeitos que sempre foram vistos como objetos de
estudos, mas que podem, hoje, construir uma nova forma de compreender a disciplina e criar um novo
método de avaliação.
45
Unidade I
Quando se fala em antropologia urbana, a referência brasileira é Gilberto Velho, antropólogo que
pesquisou (entre muitos outros temas) as moradias populares no Rio de Janeiro. Velho foi aluno de
Anthony Leeds, que passou anos no Brasil estudando as favelas, foi ele quem introduziu a antropologia
urbana no Brasil. Foi a busca por conhecer as diferenças entre as classes sociais que despertou os
interesses de pesquisa. Depois de décadas de dedicação da antropologia a culturas tradicionais distantes
e diferentes, nos anos 1960, inicia-se uma busca por conhecer as diferentes expressões e práticas
culturais dentro das sociedades urbanizadas.
As favelas abriram as portas para uma diversidade cultural desconhecida dos cientistas e os estudos
se tornaram referências para a compreensão da nossa própria sociedade e para a elaboração de políticas
públicas. Desde então, vem crescendo o interesse em fazer antropologia urbana sobre os mais diversos
temas. As classes médias e baixas tornaram-se alvo de diversas pesquisas, e é dessas análises que nasce
a avaliação referente a áreas urbanas e a busca por um distanciamento, uma vez que muitos peritos
estudavam a própria sociedade.
Diversas pesquisas começam a trazer à tona as relações de dominação, os valores morais e regras
sociais que marcavam (e marcam até hoje) a discriminação e padrões dominantes que existem entre as
classes sociais. Velho revela que:
Tanto Gilberto Velho como Roberto DaMatta vão se empenhar em construir um método de
aproximação e distanciamento para compreender a sociedade que estamos envolvidos. Diferente de
estudar sociedades distantes, a pesquisa urbana exige do investigador um exercício de distanciamento
complexo da nossa sociedade; para tal, foi necessário um diálogo com outras disciplinas como psicanálise,
história da cultura e filosofia (VELHO, 2011).
DaMatta, por exemplo, estudou o carnaval, o conceito de malandro e a ideia de heróis, questões
raciais, a relação entre comida e sexo da sociedade brasileira contemporânea.
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Saiba mais
Para saber mais sobre pesquisas de DaMatta, leia seu livro na íntegra:
Velho lembra: “[...] na cidade, em seus trânsitos, trilhas e anonimatos relativos, defrontamo-nos
ainda de modo mais agudo com essa experiência de multipertencimentos e fragmentação” (VELHO,
2011, p. 173), enbfatizando a complexidade dos indivíduos e das relações sociais, que, além do racional,
somos guiados pelas emoções, desejos e afetos, e isso interfere nas relações e na identidade de cada
indivíduo. Daí a importância de se estudar a vida simbólica, as crenças, os mitos, tradições e costumes,
eles vão para além do racional, envolve um sistema de crenças e costumes que precisam ser desvelados
para nós mesmos.
Nesse sentido, podemos lembrar das práticas de Bourdieu, citadas anteriormente, e da parcialidade
necessária ao cientista, pois as pesquisas em áreas urbanas também exigem essa postura. Por exemplo,
ao estudar a acusação de um drogado, Velho revela uma conjuntura histórico-cultural que vai desde
a família até o Estado, passando por políticas e poderes. Há diferenças nas visões internas da nossa
sociedade, o desvio de comportamento ou a acusação exigem uma visão relativista, pois acusado,
família e Estado possuem sistemas simbólicos diferentes que devem ser desvendados para uma
compreensão mais ampla. O que nos remete a uma leitura mais interpretativa de Geertz. Ou seja, Velho,
em sua antropologia urbana, utiliza-se de diversas abordagens antropológicas para avaliar as diversas
identidades da cidade, cada bairro com a sua moral.
Ao estudar esses ambientes, ficou evidente também a “cultura da violência”, que passou a ser objeto
de estudos, como criminalidade, tráfico de drogas e armas, cartéis, quadrilhas, gangues, corrupção,
abuso de poder etc. Esses temas trazem à tona a “crise de valores”, e antes de julgarmos precisamos
compreender o jogo de poderes existente por traz de tanta violência. Assim, a violência passa a ser
também um objeto de estudo da antropologia, vinculado às políticas públicas, e como pesquisadores,
não podemos assumir a visão de mundo das elites, classes médias, agressores ou autoridades. “O estudo
das gerações, seus valores, atitudes e projetos sugerem trilhas e possibilidades de conhecimento em que
a interdisciplinaridade torna-se cada vez mais prioritária” (VELHO, 2011, p. 178).
A partir das diversas pesquisas urbanas, acaba-se se revelando um mapa social, que vai além dos
índices tradicionais, pois existem espaços de prestígio, status, e espaços de violência, miséria, que
constroem fronteiras simbólicas e hierarquização dos bairros. Raquel Carriconde e Gilberto Velho
(2013) esclarecem como as políticas públicas e os poderes utilizam-se dessa fragmentação da cidade
e seus espaços de prestígio:
Outro exemplo levantado pela autora, ao refletir sobre as pesquisas de Velho, é o bairro da Lapa
no Rio de Janeiro: ele antigamente era reduto de malandros, travestis e prostitutas, e após um
amplo investimento de revitalização de iniciativa público-privada tornou-se um destino turístico
de diversão noturna, aparecendo inclusive em filmes de circulação global. Moradores antigos do
bairro que era estigmatizado tiveram de deslocar-se para bairros distantes e desprivilegiados,
devido à especulação imobiliária, que transformou a identidade da área em um bairro de prestígio
(CARRICONDE; VELHO, 2013).
Pensando-se em como elaborar o distanciamento, uma vez que se está estudando a sociedade em
que vivemos e que a parcialidade se torna mais complexa, pois nossos interesses e valores pessoais
estão intimamente envolvidos com ela. Como é possível o antropólogo, que faz pesquisas muito
mais qualitativas que quantitativas, criar esse distanciamento e se manter imparcial em suas análises
e interpretações? “O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de
confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes
a respeito de fatos, situações” (VELHO, 1981, p. 131).
Para isso, é novamente Velho quem nos orienta. Há o distanciamento social e o psicológico.
O fato de estarmos na mesma sociedade não significa que estejamos mais próximos uns dos
outros do que quando se visita uma outra sociedade. Existe a questão da empatia, é possível
nos sentirmos próximos e termos uma vivência rica de trocas e comunicação com pessoas de
sociedades distintas, desde que se tenha um interesse em comum, e termos grande dificuldade
de convivência e comunicação com o nosso próprio vizinho, por não termos identificação um
com o outro. Desse modo, a distância ou proximidade passa pela possibilidade de comunicação,
interação, interesse, vivência etc. Falar a mesma língua não é o suficiente para isso, pois existem
usos de vocabulário e expressões com valores diferentes entre as classes sociais. A noção
de nacionalidade é uma construção do Estado-nação com ideologias da classe dominante,
portanto, as referências simbólicas que unem a todos na mesma sociedade são vivenciadas de
formas divergentes dentro de cada classe e grupo social. Velho recorda DaMatta, pois existe
uma diferença entre o que é familiar, mas não conhecido, e o que é exótico, mas conhecido.
Muitas vezes observamos algo que parece familiar, no entanto, ignoramos seus significados,
e o mesmo acontece ao notarmos algo tido como exótico, porém temos noções sobre suas
diversidades.
Velho traz exemplo: parece familiar observamos os grupos que transitam na nossa cidade (jovens
estudantes, trabalhadores esperando o ônibus, vizinhos trocando informações etc.), no entanto, não
sabemos os valores, as crenças e os hábitos de cada uma dessas categorias. Existe aqui a familiaridade com
o ignorado. Os estereótipos que temos dos grupos com que convivemos na cidade parecem suficientes
para nos trazer a familiaridade, no entanto, são dotados de preconceitos e visões generalizadas desses
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
modelos. Por outro lado, esses estereótipos mapeiam e hierarquizam a cidade, impondo referências de
como nos portar em cada ambiente social.
O antropólogo urbano terá de “se colocar no lugar do outro” e romper essas fronteiras simbólicas
para poder participar desse “outro” ambiente social. Assim, vamos “identificar mecanismos conscientes e
inconscientes que sustentam – e dão continuidade a – determinadas relações e situações” (VELHO, 1981,
p. 128). Busca-se conhecer e compreender as lógicas das relações, mesmo as que parecem familiares,
desvendar os estereótipos e classificações generalizadas.
O diferencial principal dos estudos urbanos é a possibilidade constante de testar, revisar e confrontar
um estudo com outro, pois há diversos pesquisadores e diversas interpretações; diferente dos estudos
em sociedades exóticas, no qual normalmente temos um ou dois antropólogos e não há a possibilidade
de confronto de interpretações. No mais, o próprio estereótipo já é uma fonte de informação para
análises e interpretações na busca de confirmá-los, desconstruí-los, buscar suas origens históricas. Além
disso, a visão antropológica pode ser confrontada ou validada por outras produções que observam a
cidade como filmes, literatura, jornalismo, política etc.
Resumo
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