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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

DIREITO PROCESSUAL PENAL

RESUMOS

CAPÍTULO I: INTRODUÇÃO

1. O direito processual penal no contexto da “ciência global” do direito penal

As ciências criminais, em sentido amplo, englobam o direito penal, a criminologia e a política criminal.
Estas três disciplinas integram a “ciência global do direito penal” de V. LISZT.

1.1 Direito processual penal e direito penal

O direito penal substantivo “visa a definição dos pressupostos do crime e das suas concretas formas de
aparecimento, bem como a determinação, tanto em geral como em espécie, das consequências ou efeitos
que à verificação de tais pressupostos se ligam”. Já ao direito processual penal “cabe a regulamentação
jurídica do modo de realização prática do poder punitivo estadual”. O direito penal exige uma
regulamentação complementar para que se realize, tarefa que é realizada pelo direito processual penal,
que permite a aplicação da consequência jurídica àquele que, com a sua conduta, praticou um crime.

A relação entre o direito penal e processual penal é, assim, uma relação de mútua complementariedade
funcional: só através do direito processual penal é que o direito penal consegue a sua concretização, a sua
realização. Desta forma, o direito penal substantivo exerce uma influência decisiva no direito processual
penal; e o direito processual penal tem também influência na conformação do direito penal.

No entanto, o direito processual penal é autónomo perante o direito substantivo: apesar de se poder
afirmar uma eventual instrumentalidade funcional, não se põe em causa a autonomia teleológica.

1.2 Direito processual penal e criminologia

A criminologia dos anos 60 veio chamar a atenção para a ideia de deliquência enquanto processo: nem
todos os crimes praticados levam a um processo, e nem todos os processos levam a uma condenação.
Temos aqui um efeito funil, tendo a criminologia posto em relevo as manchas de impunibilidade.

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Por outro lado, veio também mostrar os efeitos nefastos de um sistema de total enforcement, em que
todos as infracções fossem sancionadas. Isto poria em causa a validade das normas: “a função protectora
das normas só actua eficazmente se circunscrita a uma reduzida expressão quantitativa”.

Finalmente, certos estudos de criminologia traçam uma distinção entre a pequena e média criminalidade e
a grande criminalidade, e que vão exigir um tratamento processual penal adequando em função do tipo de
criminalidade.

1.3 Direito processual penal e política criminal

“O programa político-criminal de hoje assenta na ideia de que a imposição de pena só pode ter por
justificação a tutela das expectativas criadas pela norma ou a reafirmação da validade da norma violada, o
que acarreta consigo consequências relevantes ao nível do processo penal”.
• Desde logo, a celeridade do processo: o efeito de prevenção geral não depende da severidade das
penas, mas sim da probabilidade da punição e do lapso de tempo dentro do qual esta se venha a
efectuar.
• Temos ainda as ideias de desjudiciarização ou diversão (é manifestação a dispensa de pena), a
descentralização e desconcentração, e a participação das pessoas no processo (é visível quer em
relação à figura do arguido, quer à do assistente).

2. Finalidades do processo penal

2.1 Finalidades

São 3:
1. Realização da justiça e descoberta da verdade material;
2. Protecção dos direitos fundamentais;
3. Pacificação social e reposição contrafáctica da norma jurídica violada.

1) Realização da justiça através da descoberta da verdade material: é uma finalidade que sempre
existiu, o Estado tem um dever indeclinável de perseguir e punir os crimes. A justiça só é realizada
quando se consegue apurar qual foi a realidade da vida a que o direito se quer aplicar – importa apurar
devidamente quem cometeu o crime. Assim, a ideia da realização da justiça anda sempre
acompanhada da ideia de descoberta da verdade material. O art. 340.º do CPP contém um
afloramento do princípio da descoberta da verdade material, estando este ligado a um outro princípio, o

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da investigação. Todo o processo é levado a cabo no sentido de investigar e apurar os factos ocorridos no
passado.

É necessário ter em conta a distinção entre factos e provas: os factos são a realidade concreta da vida a
que se aplicam as normas, sendo que todo o processo visa apurar os factos – a acusação é uma acusação
por factos, e a sentença tem de dar como provados factos. Quando se fala na finalidade da descoberta da
verdade material, está em causa o apuramento dos factos. O próprio tribunal está encarregado de fazer o
que está ao seu alcance para a descoberta da verdade material – princípio da investigação. Porém, quem
decide no processo não tem conhecimento directo dos factos, e por isso vai decidir com base em provas,
pelo que o processo penal visa produzir as provas que permitem aceder aos factos. A realidade do
processo é uma realidade processualmente construída através das provas. O tribunal tem, assim, o poder
de decidir que factos é que ocorreram, sendo com base neles que se declara se houve ou não crime.

Sendo uma verdade processualmente construída, deve sê-la de todo o modo de um modo
processualmente válido. Não é uma verdade que deva ser alcançada a todo o custo, há limites e
procedimentos próprios. Um método eficaz para alcançar a verdade não é necessariamente um método
válido – a proibição da tortura, de meios fraudulentos e da proibição da autoincriminação são limites
inultrapassáveis. Para além destes, há limites fixados em função dos crimes concretos ou de outros
critérios – por ex., só certos crimes mais graves podem ser investigados através das escutas. Este é
domínio das proibições de prova.

Porém, isto não obsta a que institutos como o do caso julgado ou princípios como o in dubio pro reo
conduzam a condenações e absolvições injustas. Por outro lado, a descoberta da verdade material
não pode ser admitida a todo o custo, sendo necessário respeitar os direitos fundamentais das
pessoas – daí a proibição de certos meios de prova.

Assim, há casos em que a descoberta da verdade pode ceder, se tal for necessário para respeitar a
dignidade e os direitos fundamentais das pessoas.

2) Protecção dos direitos fundamentais das pessoas: o processo penal é um domínio normativo em que
o Estado pode lançar mãos de medidas altamente atentatórias dos direitos fundamentais das pessoas –
prender pessoas, fazer buscas, escutar conversas telefónicas, etc., pois tal são meios imprescindíveis à
descoberta da verdade. Porém, sobre o Estado impende apenas também o dever de proteger os cidadãos,
entrando aqui em cena a dogmática dos direitos fundamentais – estes são, desde logo, direitos dos
cidadãos contra o Estado, são autênticos direitos subjectivos de defesa. Isto vai impedir, em certas
situações, a obtenção da verdade material: em certos casos, os direitos fundamentais têm de ser postos

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em causa para a viabilização de uma eficaz administração da justiça penal – por ex., na prisão
preventiva põe-se em causa o direito à liberdade de alguém que se presume inocente.

Assim, também é fim do processo o respeito pelos direitos fundamentais das pessoas. Há limites
inultrapassáveis – existe um núcleo essencial dos direitos fundamentais que é inultrapassável, desde logo
a dignidade.

3) Pacificação social e reposição contrafáctica da norma jurídica violada: o próprio processo também
participa da finalidade do direito penal de pacificar a sociedade e repor a confiança na norma violada, é
um instrumento de que o Estado também se serve para perseguir este fim. Por ex., o art. 204.º/c) permite a
limitação da liberdade como forma de garantir a paz e ordem pública. Há uma ideia comunitária de que o
processo é uma forma de fazer justiça.

Isto manifesta-se quer no plano do arguido, que deverá ser julgado no mais curto prazo possível (art.
32.º/2 CRP), quer no plano mais amplo da comunidade jurídica. Esta finalidade liga-se a valores de
segurança, mas que também podem ter de ser postos em causa – nomeadamente, através do instituto do
recurso de revisão, que se justifica em nome da descoberta da verdade material

2.2 Concordância prática

Estas finalidades são muitas vezes conflituantes: o processo penal é um palco de conflitos, sendo uma das
tarefas que se deve visar é através da regulação legal criar um justo equilíbrio destas finalidades.
Fala-se aqui de uma concordância prática destas finalidades antinómicas. Isto implica, “relativamente a
cada problema concreto, uma mútua compressão das finalidades em concreto, por forma a atribuir a cada
uma a sua máxima eficácia”. Este é o critério geral; porém, em certos casos, deve-se dar primazia a uma
das finalidades, em nome do princípio da dignidade. Quando esteja em causa a garantia da dignidade da
pessoa, é necessário dar prevalência à finalidade do processo penal que dê cumprimento a essa garantia.

Notas:
• Esta tarefa de concordância é, antes do mais, do legislador: é a este que cabe definir os termos
segundo os quais as finalidades devem ser conseguidas no processo, optimizando-as.
• Mas é também uma tarefa dos próprios órgãos de administração da justiça, o MP e os
tribunais – na aplicação concreta do PP, os órgãos da justiça também devem orientar-se por esta
necessidade de concordância. Em certos casos, é o próprio legislador a entregar esta tarefa aos
órgãos de aplicação da justiça: por ex., em relação às medidas de coacção, está em causa uma
pretensão do Estado em limitar a liberdade do cidadão e um interesse do cidadão em defender-se.
Para que o cidadão se defenda, pode ter interesse em ter acesso às provas do processo; porém, o

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conhecimento desses elementos, em certo caso, pode prejudicara investigação – há aqui interesses
contrapostos. Neste caso, a lei entrega a decisão ao juiz: é este que decide se permite ao arguido
consultar ou não os elementos do processo, em função do perigo para as pessoas, para a
investigação, etc. Esta é uma tarefa de concordância práticas realizada no caso concreto.

A forma como está definido o regime legal tem sempre em vista a conciliação destes interesses
contrapostos e a maximizar as finalidades que o processo visa prosseguir.

3. A conformação jurídico-constitucional do processo penal

3.1 Pessoas singulares

O processo penal é direito constitucional aplicado, desde logo porque há uma série de normas e princípios
constitucionalmente consagrados em matéria de processo penal.

1) Art. 27.º: direito à liberdade e segurança. No n.º 3, exceptua deste princípio a privação da
liberdade pelo temo e nas condições que a lei determinar, enumerando as excepções nas alíneas
seguintes. A CRP, no art. 18.º, diz-nos que só pode haver restrições de direitos nos casos
constitucionalmente previstos. Interessa-nos também o n.º 4 e 5. A conformação do processo
penal traduz-se, muitas vezes, em restrições de direitos fundamentais, e por isso muitas vezes
estamos perante o regime das restrições dos DLG (art. 18.º).
2) Art. 28.º: prisão preventiva. No n.º1, estabelece que a detenção é submetida, no prazo de
quarenta e oito horas, a apreciação judicial. O n.º 2 estabelece o princípio da subsidiariedade da
prisão preventiva.
3) Art. 29.º: princípio da legalidade em matéria criminal. Este princípio vale, embora com
conteúdo e extensão diferente, no processo penal. O n.º 5 consagra o princípio do ne bis in idem,
e o n.º 6 diz que os cidadãos injustamente condenados têm direito à revisão da sentença e à
indemnização pelos danos sofridos.
4) Art. 31.º: habeas corpus.
5) Art. 32.º: o art. 32.º, cuja epígrafe é “garantias do processo criminal”, contém normas
importantes em matéria de processo penal.

Em relação ao art. 32.º:


• O n.º 1 diz que o processo criminal assegura todas as garantias, nomeadamente o recurso. A CRP
também assegura o princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado, não cessando
com a condenação em 1ª instância – é este princípio que faz com que exista o direito ao silêncio.

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Porque o arguido se presume inocente, quem se calar sobre os factos que lhe são imputados não
pode ser com isso desfavorecido. O arguido também tem direito a ser julgado no mais curto prazo
possível.
• O n.º 2 consagra o princípio da presunção da inocência do arguido até ao trânsito em julgado da
sentença e condenação.
• O n.º 3 diz que o arguido tem o direito a escolher defensor e a ser por ele assistido.
• O n.º 4 diz que toda a instrução é da competência do juiz, que é um preceito fundamental.
• É também o art. 32.º que diz que o processo tem de ter estrutura acusatória – o n.º 5,
articulado com o art. 219.º/1 e 2, diz que esta estrutura acusatória se tem de concretizar
através da partilha de funções entre magistratura judicial e não judicial, que é o MP. A CRP
quer que esta partilha de funções se faça entre magistraturas distintas.
• O n.º 7 diz que o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei – a lei exige ao
ofendido, para intervir no processo, que constitua assistente.
• O n.º 8 diz que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade
física ou moral da pessoa, etc. É a CRP que comina a nulidade quando as provas são obtidas
através destes meios.
• O n.º 9 consagra o princípio do juiz natural.

Outras normas gerais que importa considerar:


• Art. 20.º, que consagra o direito de acesso ao direito e tribunais; a protecção adequada do
segredo de justiça; o processo deve ser um processo equitativo.
• O art. 206.º consagra a regra da publicidade da audiência;
• Os arts. 202.º, 203.º, 215.º e 216.º dispõem sobre o estatuto e funções do juiz;
• Finalmente, temos o art. 219.º, sobre o estatuto do MP relativamente às perícias.

O caso do diário e da zaragatoa bucal. Neste último caso, o TC concluiu que não cabe dentro do direito à
não autoincriminação o teste da zaragatoa, logo não estava violada a reserva de lei; porém, acabou por
julgar a norma em causa inconstitucional uma vez que o procedimento teria de ser autorizado por um juiz
e não por um magistrado do MP.

3.3 Pessoas colectivas

O art. 12.º da CRP, que estatui o princípio da universalidade (todos somos titulares de direitos), diz no n.º
2 que as pessoas colectivas são também titulares de direitos. A realidade da responsabilização penal das
pessoas colectivas nos termos do CP é recente, apesar de já estar antes consagrada em legislação
extravagante. Isto coloca a questão de saber quais são os direitos de que as pessoas colectivas gozam

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no processo penal. Por ex., a protecção constitucional do domicílio também abrange as pessoas
colectivas?

Quanto à questão de saber se a protecção domiciliária abrange as pessoas colectivas, esta já chegou ao
TC, e o TC disse que a protecção constitucional do domicílio das pessoas colectivas é diferente do das
pessoa singulares, uma vez que nos termos do art. 12.º/2 esta não é compatível com a natureza colectiva.
Em Espanha, existe jurisprudência em sentido contrário, que também as pessoas colectivas devem ser
titulares à inviolabilidade do domicílio – e no mesmo sentido vai o TEDH.

Noutro caso, estava em causa saber o que é o domicílio, o que é que este conceito abrange – considera-se
que abrange a garagem, quarto de hotel, etc. Porém, ao TC foi colocada uma questão interessante – foi
ordenada uma busca a um estabelecimento comercial, e em anexo ao estabelecimento havia uns
compartimentos anexos onde as senhoras que trabalhavam lá “recebiam” os seus clientes. O TC entendeu
que estes anexos não integravam o conceito constitucional do domicílio, o que COSTA ANDRADE critica
na anotação.

Por outro lado, as pessoas colectivas gozam do direito à inviolabilidade da correspondência, entendendo-
se que é compatível com a natureza colectiva (mas já não, por ex., do direito à vida). Se há direitos em
que é fácil aferir da compatibilidade com a natureza, noutros é mais problemático.

Também se coloca a questão de saber se o direito à presunção da inocência é compatível com a natureza
colectiva. Existe uma proposta de directiva da UE em matéria de presunção de inocência, afirmando-se na
exposição de motivos que este direito não vale nos mesmos termos para as pessoas singulares ou
colectivas. Esta é uma questão muito debatida actualmente.

Podemos, como tal, perguntarmo-nos se não terá no futuro de existir um processo penal das pessoas
colectivas e das pessoas singulares.

4. Estrutura do processo penal português

Vimos já que o processo penal português tem estrutura acusatória, art. 32.º/5 da CRP.

Existem dois tipos de processo penal:


• Inquisitório;
• Acusatório.

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4.1 O processo penal de estrutura inquisitória

O processo penal de estrutura inquisitória é característico de uma concepção autoritária do Estado,


em que predomina o interesse estadual, para a finalidade de realização da justiça e da descoberta
da verdade material a todo o custo – ainda que com isso possamos pôr em causa os direitos, liberdades
e garantias das pessoas. Normalmente, estes são processos que limitam os direitos processuais do
arguido, que é visto como o objecto do processo penal. O arguido não é um sujeito co-actuante no
processo, não participa activamente nele, sendo desconsiderados os seus direitos. Nestes processos é
facilmente admissível a obtenção de prova por via da confissão do arguido, que em nome da verdade
material pode ser admitida através do recurso à tortura.

Outra característica deste processo é a de que não há uma repartição de funções entre entidades
distintas, a entidade que investiga e acusa é a que vai proceder ao julgamento. Ao juiz compete
simultaneamente inquirir, acusar e julgar.

4.2 O processo penal de estrutura acusatória

O processo penal de estrutura acusatória é característico de um Estado de pendor liberal: no centro está
agora o indivíduo, com os seus direitos. O processo penal é visto como um processo onde há duas partes
contrapostas: a acusação e a defesa, sendo o arguido um interveniente no processo titular de direitos de
natureza processual. Vigora o princípio da igualdade de armas entre acusação e defesa.

Por outro lado, nestes processos os juízes não têm pré-julgamentos, pois quem procede à investigação é
uma entidade distinta da que julga – este modelo garante uma maior objectividade e
imparcialidade da decisão. Com isto percebemos também porque é que muitas pessoas que são acusadas
não são condenadas – apesar de ser preciso muito menos para acusar, por outro lado o que sucede é que
podemos ter um inquérito com muita produção de prova e no julgamento estas provas não se reproduzem
(só as provas produzidas em julgamento servem para a formação da decisão do juiz).

A nota fundamental da estrutura acusatória é a separação entre a entidade que investiga e acusa e
a que procede ao julgamento – esta estrutura protege os direitos das pessoas, nomeadamente do
arguido, vindo-o um sujeito processual e não um mero objecto; porém, quando é uma estrutura
acusatória pura, basta-se com uma verdade meramente formal. A verdade é a que surgir dos
contributos das partes. Entre nós, a estrutura não é uma acusatória pura.

4.3 Evolução da estrutura do processo penal português

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O Código de 29 tinha traços de código autoritário, e, apesar de ser aparentemente acusatório, era
materialmente de base inquisitória – o juiz que investigava julgava novamente, apesar de ser o MP a
acusar. O facto de ser o MP a deduzir a acusação dava uma aparência acusatória, mas era a mesma
entidade a investigar a julgar. Para além disto, o MP que procedia à acusação era governamentalizado;
hoje, a magistratura do MP é autónoma num duplo sentido – da magistratura judicial e do poder público.
Apesar de o Procurador Geral da República ter a confiança política do Governo e da Presidência da
República, este não recebe ordens do Governo.

Em 72, surgiram dois importantes diplomas: um que veio criar a figura do juiz de instrução; e outro que
melhorou a posição processual dos arguidos.

Coma Revolução de 1974, e com a entrada em vigor da CRP, abre-se uma outra fase da reforma do
processo penal, que visa construir um sistema processual penal adequado aos princípios do Estado de
Direito material.

4.4 Notas da estrutura acusatória

O CPP que hoje temos é de 87, e que veio harmonizar as finalidades antitéticas do processo penal. O
modelo inquisitório privilegia o interesse estadual, e o acusatório a protecção dos direitos – o nosso
Código harmoniza, de forma quase exemplar, estas duas finalidades do processo penal.

A nossa estrutura base é, por imposição da CRP (art. 32.º/5) acusatória – isto significa duas coisas:
1. Princípio da acusação: é uma nota da estrutura acusatória, e significa que a entidade que
investiga e acusa (magistratura do MP) é distinta da que julga (magistratura judicial).
Iremos ver que existe aqui uma terceira figura, o juiz de instrução. Este juiz tem duas funções: em
primeiro lugar, está presente na fase da investigação, ordenando os actos que se prendem com as
restrições dos DLG (por ex., não pode ser o MP a decretar a prisão preventiva, nem dar ordens
para uma busca domiciliária). Este juiz de instrução está legalmente impedido de julgar o caso,
assegurando a estrutura acusatória. Por outro lado, o juiz de instrução está presente na fase
facultativa da instrução.
2. Leque amplo de sujeitos processuais: no sentido de serem intervenientes processuais que
participam de forma constitutiva na aplicação do direito ao caso. Nomeadamente, o arguido é um
sujeito processual, que como tal tem o direito de ser ouvido pelo juiz em certos casos, ou de
recorrer de decisão.

O legislador levou, no CPP, o princípio da acusação às máximas consequências – falamos aqui da


máxima acusatoriedade possível. A separação de funções não é apenas uma separação pessoal, indo

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mais longe, de uma autêntica separação de magistraturas, de tal modo que os juízes são sempre poupados
à investigação criminal. Esta função está atribuída ao MP (também no sistema alemão).

A finalidade primordial do processo penal é a protecção dos direitos das pessoas e, nomeadamente,
do arguido – porém, é também um processo que está empenhado na descoberta da verdade
material. Assim, a estrutura acusatória está integrada por um princípio da investigação: o juiz pode
ele próprio ir além dos contributos da acusação e da defesa, criando as bases necessárias para a boa
decisão da causa. O juiz pode mandar produzir meios de prova oficiosamente – por ex., se ficar com
dúvidas sobre a imputabilidade do arguido pode ordenar uma perícia psiquiátrica; pode também mandar
ouvir testemunhas não arroladas. Isto está exemplarmente expresso no art. 340.º do CPP, que mostra que
o processo penal português tem uma estrutura acusatória integrada pelo princípio de investigação em
nome da descoberta da verdade material e da realização da justiça. Note-se que a intervenção do juiz é
subsidiária, quando for estritamente necessária para a prossecução daquela finalidade.

Por outro lado, a estrutura não é acusatória pura também porque o processo penal não pode ser visto
como um processo de partes – de parte acusadora, o MP; e o arguido. O MP, nos termos do art. 53.º do
CPP, deve pautar a sua actividade por critérios de objectividade, e não tem o estatuto de parte acusadora
– quando um crime é denunciado, o MP não tem de investigar a todo o custo, e pode investigar para
desresponsabilizar a parte. Por outro lado, pode interpor recurso no interesse do arguido e pode pedir a
absolvição do arguido nas alegações finais.

O art. 348.º do CPP revela o que acabámos de ver. O modo como inquirimos uma testemunha em
julgamento expressa a estrutura acusatória – no Código de 29, quem investigava certas testemunhas era o
juiz, ou seja, o advogado do arguido pedia ao juiz que fizesse certas perguntas, não havia um
interrogatório directo. Hoje, o art. 348.º/4 diz que as testemunhas são inquiridas por quem as indicou,
sendo depois sujeita a contra-interrogatório. O n.º 5 exprime o princípio de investigação com carácter
subsidiário – o juiz pode ainda fazer as perguntas que entender necessário para um bom esclarecimento e
decisão.

Não existe na CRP nenhuma norma ou princípio segundo a qual a estrutura acusatória deve ser integrada
por um princípio de investigação; porém, a jurisprudência constitucional já apontou neste sentido. O
processo penal também está preocupado com os valores da verdade material e da justiça, permitindo em
certos casos a entrada no domicílio dos cidadãos (ex: terrorismo).

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CAPÍTULO II: DIREITO PROCESSUAL PENAL E RESPECTIVA APLICAÇÃO

1. Fontes do direito processual penal

Quais são as fontes de processo penal?


• CRP – é fonte directa de processo penal, em particular a nível dos DLG.
• CPP – é o centro da regulação do processo penal, é o diploma básico. Foi aprovado em 87, na
sequência de um projecto elaborado por FIGUEIREDO DIAS. Depois de 87, sofreu inúmeras
alterações:
o Revisão de 1988.
o Revisão de 2007.
o Revisão de 2010 e 2013.
• Temos ainda diplomas de direito internacional, como a Convenção Europeia dos Direitos do
Homem (art. 6.º, processo executivo); e diplomas extravagantes que regulam matérias específicas
(ex: Lei 5/2002, do cibercrime, etc.).

2. Interpretação e integração da lei processual penal

Em relação à interpretação, o problema da interpretação da lei não ganha, no direito processual penal,
autonomia. FIGUEIREDO DIAS chama apenas a atenção para dois pontos: a relevância da consideração das
finalidades do processo e a de tomar em conta o princípio da interpretação conforme a CRP.

Note-se que vale aqui o princípio da legalidade do processo, art. 2.º. O processo penal rege-se por um
princípio de legalidade, o que quer dizer que a tramitação do processo e todas as decisões e actos
processuais devem, em regra, conhecer específica regulação legal (previstas e reguladas na lei), e
devem conformar-se com as leis do processo (princípio de conformação processual à lei). Esta é uma
garantia fundamental do Estado de Direito. Isto para que o arguido saiba com o que é que pode contar, e
para que os poderes públicos sejam exercidos com respeito pelos direitos fundamentais das pessoas. Um
acto processual contra a lei é um acto inválido, e pode não produzir efeitos (art. 118.º e segs.). Há uma
certa propensão da prática jurisprudencial portuguesa para contornar a determinação da conformidade
com a lei.

Diferente é a situação de integração de lacunas – por imposição da CRP, dispõe o art. 4.º que as lacunas
em processo penal se integram por recurso a:
1. Em primeira linha, à analogia.

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2. Em segunda linha, recorre-se às normas e princípios de processo civil que se harmonizem com o
processo penal. É o que sucede, por ex., em relação às regras de contagem do prazo; e também se
defende que o art. 39.º seja integrado pelas regras do processo civil de impedimento do juiz, uma
vez que a lei processual penal não prevê que o juiz ofendido na causa seja juiz do julgamento
3. Em terceiro, aos princípios gerais de processos penal.

Note-se que não basta concluir por uma omissão para procedermos a uma integração de lacunas, há
omissões que têm sentido (por ex., o Código não fala intencionalmente do caso julgado).

Vemos aqui uma diferença em relação ao direito penal – no direito penal, está vedada a integração de
lacunas. A doutrina tradicional vai no sentido de que a analogia não oferece nenhuma especialidade no
direito processual penal. Porém, de acordo com FIGUEIREDO DIAS (1954), no direito processual penal
não é possível recorrer à analogia se esta se traduzir num enfraquecimento da posição processual
do arguido ou numa diminuição dos seus direitos. O autor estende assim o princípio da legalidade
ao processo penal, este tem uma dimensão adjectiva.

Em 2013, o TC estendeu o conteúdo do princípio da legalidade ao processo penal, seguindo a


posição de F. DIAS (Ac. 224/2013).

Estava em causa o princípio da recorribilidade das decisões – se nada for dito, pode-se recorrer das
decisões. Uma decisão que era irrecorrível (art. 400.º antes da reforma de 2013) era o acórdão da Relação
que aplicasse pena não privativa da liberdade, art. 400.º/1/e). Porém, o STJ interpretava esta norma de
outra forma, pois em vez de ler “pena não privativa”, lia “pena privativa até 5 anos”. O STJ chegou
a esta conclusão invocando o art. 432.º/1/c): recorre-se para o STJ de acórdãos proferidos em 1ª instância
(tribunal colectivo ou do júri) que apliquem pena superior a 5 anos, restritos a questões de direito (recurso
per saltum). Se nestas hipóteses só se pode recorrer para o STJ no caso de a pena ser superior a 5 anos,
então também só se poderá ir da Relação para o Supremo nos mesmos casos em que a pena de prisão é
superior a 5 anos. A lógica é a de que ao STJ só deverão chegar os casos mais graves, sendo que entendeu
que não estava em causa uma analogia, mas sim uma redução teleológica – logo, seria admissível.

O TC veio entender que estava em causa antes uma analogia (aplicação de um regime análogo a um caso
omisso), pois só se pode falar de interpretação quando a solução a dar ao caso tem um mínimo de
correspondência com a letra da lei. Ao estender a irrecorribilidade a estes casos, o STJ estava a recorrer à
analogia e a enfraquecer a posição do arguido. Na revisão do CPP, a al. e) passou a ler “pena não
privativa de liberdade ou pena inferior a 5 anos”.

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3. Aplicação da lei processual penal no espaço e quanto às pessoas

O art. 6.º, na sequência do art. 5.º do CP, consagra o princípio de territorialidade: a jurisdição penal
contém-se estritamente dentro dos limites do Estado. Isto não se opõe a que, em certos casos, a jurisdição
penal portuguesa se aplique a crimes cometidos no estrangeiro, o que acontece nos casos em que é
aplicável a lei penal portuguesa (arts. 5.º, 6.º e 7.º do CP). Note-se que devemos ter em conta a Lei de
Cooperação Judiciária Internacional e o mandato de detenção europeu.

Em relação ao âmbito de aplicação pessoal, a regra é a de que a lei processual penal portuguesa aplica-
se a todas as pessoas, desde que a essas pessoas seja aplicável o direito penal português. Porém, pode
haver casos em que não se aplica:
1. Por motivos de direito internacional (ex: na embaixada);
2. Para além disto, há normas na CRP que têm desvios às regras do CPP relacionados com os
estatutos de certas pessoas – por ex., em relação ao Presidente da República pelos crimes
cometidos nas suas funções (art. 130.º). Temos ainda regras relativas aos deputados (art. 157.º e
163.º), e aos membros do Governo (art. 196.º).

4. Aplicação da lei processual penal no tempo

Finalmente, também em relação à aplicação da lei no tempo há diferenças em relação ao direito penal.
Aqui, a regra é a regra geral do direito, de aplicação imediata da lei nova.

O art. 5.º/1 consagra dois princípios:


• Princípio de que a lei nova não prejudica a validade dos actos processuais praticados
anteriormente. Se, num certo momento, um acto é praticado de acordo com aquilo que a lei
prescreve, não é o facto de depois a questão vir a ser regulada de forma diferente que vai
prejudicar a sua validade. Por ex., um acto é praticado estando o arguido desacompanhado de
advogado, sendo que a lei no momento não obrigava o arguido a estar acompanhado; depois, a
lei é alterada e consagra-se a obrigatoriedade do advogado. Isto não põe em causa a validade do
acto anterior.
• Princípio segundo o qual a lei nova processual penal é de aplicação imediata, o que é uma
característica corrente das leis processuais: aplicam-se não apenas aos novos processos que se
iniciem depois da sua entrada em vigor, mas também aos processos que já estão pendentes no
momento da sua entrada em vigor. Se o legislador modifica a lei processual penal, fá-lo porque
entende que existe um regime preferível, e como tal esta nova e melhor regulação deve aplicar-se
também aos processos antigos. É esta a justificação para que a lei processual penal seja de

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

aplicação imediata. Também existe outra razão, de ordem prática, e que se prende com a a
dificuldade que existe quando existem várias leis processuais que se aplicam ao mesmo tempo.

Porém, temos limitações ao princípio da aplicação imediata, previstas no art. 5.º/2.


• Alei nova não se aplica imediatamente quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar a
quebra da harmonia de julgados (n.º 2, al. b)).
• Mas mais importante que esta al. b) (não é aplicada na prática) é a al. a), que nos diz que a lei
nova também não se aplica ao processo já iniciada se acarretar o agravamento sensível da
posição do arguido, nomeadamente o seu direito de defesa. Temos aqui uma situação
equivalente ao que sucede com a analogia, em nome de um processo penal que assegura todas as
garantias de defesa. Vale, mais uma vez mais, o princípio da legalidade criminal (art. 29.º/1 da
CRP) – que, segundo F. DIAS e o TC, vale também no âmbito do direito processual penal. A
teleologia própria vai no sentido de garantir ao arguido que as condições do processamento da
causa não sejam alteradas em seu desfavor no decurso do processo, para que haja previsibilidade,
segurança, etc. Esta al. a) é uma concretização do princípio da legalidade – se a lei nova puder
ter como efeito uma agravação sensível e inevitável da situação do arguido, nomeadamente do
seu direito de defesa, então a lei nova não se aplica. Note-se que a lei fala em agravamento
sensível, logo não é qualquer alteração que se aplica, tem de prejudicar de forma séria o direito
de defesa.

Mas a questão pode não ser assim tão simples na prática – imaginemos que alguém estava a ser julgado
por homicídio simples, e na altura da abertura do processo havia recurso para a Relação e para o STJ em
função da moldura abstracta do crime; porém, na fase de inquérito, a lei muda e deixou de ser o critério
da pena abstracta para ser o da pena concreta. Aplica-se a lei nova? Em casos deste tipo, nada obsta a que
se aplique a lei nova, pois em teoria agrava a posição do condenado, mas devemos aferir se agrava ou
não a posição processual no momento em que se coloca a questão de saber se se interpõe ou não
recurso. No momento em que se recorre, já se estava a contar com o novo regime; seria diferente se a lei
nova entrasse em vigor no momento em que se iria recorrer. O agravamento afere-se em função da fase
processual concreta.

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CAPÍTULO III: TRAMITAÇÃO DO PROCESSO PENAL COMUM

O processo comum está estruturado em 4 fases:


1. Inquérito, art. 262.º e segs.: é uma fase obrigatória e dirigida pelo MP. É a fase de
investigação criminal.
2. Instrução, art. 286.º e segs.: é uma fase facultativa, tendo de ser requerida para ter lugar.
3. Julgamento, art. 311.º e segs.: se o processo não se ficar pela fase de inquérito ou instrução,
há ainda outra fase obrigatória, do julgamento.
4. Recurso, art. 399.º e segs.: é uma fase facultativa, só se abrindo a fase de recurso se alguém
recorrer.

A tramitação do processo penal é tendencialmente unitária: independentemente da natureza e gravidade


do crime, corre sempre da mesma forma. Porém, é só tendencialmente: na fase de julgamento, há
diferenciações consoante a natureza e gravidade do crime.

1. Princípios gerais da promoção processual

Quando se alude à promoção processual, está em causa o impulso do processo. Valem os seguintes
princípios:
1. Princípio da oficialidade: quem tem legitimidade para a promoção processual?
2. Princípio da legalidade da promoção processual: existe alguma obrigação de promoção
processual?
3. Princípio da acusação: quais são as consequências da promoção processual para as outras fases
do processo?

1.1 Princípio da oficialidade

1.1.1 Conteúdo e justificação

Está em causa saber quem tem legitimidade para tomar a iniciativa de investigar a prática de uma
infracção e tomar a decisão de a submeter ou não a julgamento. Esta matéria encontra-se regulada no
CPP, entre os arts. 48.º e 52.º, e no CP, entre os arts. 113.º e 117.º.

Esta questão põe-se sobretudo em 2 momentos (também é assim para o princípio da legalidade):
• Momento da abertura do inquérito.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

• Momento do encerramento do inquérito.

Ø Conteúdo: de acordo com este princípio, a decisão de investigar a prática de uma infracção e de se
submeter ou não a causa a julgamento (acusação) cabe a uma entidade pública estadual oficial, o
Ministério Público. Se não tivéssemos este princípio, quem decidiria se se investigaria e se haveria
julgamento seria o ofendido pela prática do crime ou outras pessoas em sua substituição. Estas duas
decisões não estão na disponibilidade do ofendido nem de quem o substitua (a criminologia é que fala das
vítimas do crime).

Ø Justificação:
• Porque é que é o MP? Desde logo, o direito penal é um direito de tutela subsidiária dos bens
jurídicos, logo extravasa a relação entre o ofendido e o agressor. Aliás, muitas vezes deixa de
haver uma relação linear entre o ofendido e o agressor, uma vez que existem bens jurídicos
supraindividuais.
• Este princípio prende-se também com uma evolução que houve no processo penal, de monopólio
estadual da função jurisdicional no que diz respeito à descoberta do crime e aplicação da sanção
correspondente – princípio da exclusão da auto-defesa ou do monopólio estadual da função
jurisdicional (art. 205.º CRP). Há razões sólidas para que seja o Estado a perseguir os crimes –
desde logo, porque valeria a lei do mais forte, e também para que seja uma entidade externa e não
uma pessoa envolvida. Isto tem a ver também com o facto de o monopólio da força ser assumido
pelo Estado, o que tem como contrapartida o dever de o Estado perseguir os crimes; e também
por estarem em causa bens colectivos, cuja violação abala a comunidade.

Ø Fundamentação legal: o princípio da oficialidade está no art. 219.º/1 CRP, quando diz que o MP tem
competência para exercer a acção penal. No CPP, vemos no art. 48.º que cabe ao MP a promoção do
processo penal; o art. 241.º CRP prevê que é o MP a entidade competente para adquirir a notícia do
crime (primeira decisão); e o art. 276.º/1 prevê que, findo o inquérito, é o MP que decide se acusa
ou arquiva o processo (segunda decisão).

1.1.2 Crimes públicos

Assim, a única entidade para a promoção do processo é o MP, é este que tem sempre legitimidade; a
questão está em saber se esta legitimidade é detida sempre pelo MP independentemente da vontade
dos particulares ou, se pelo contrário, há determinados casos em que a aquisição da legitimidade do
MP está relacionado com a vontade dos particulares.

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Quando o procedimento criminal siga esta regra da oficialidade, o crime em questão designa-se por crime
público. Os crimes públicos são aqueles em que vale o princípio da oficialidade em toda a sua
extensão, i.e., em que o MP promove oficiosamente e por sua própria iniciativa o processo penal e decide
com plena autonomia.

Isto não significa que haja uma necessária identificação entre a natureza pública do crime e a natureza
do bem jurídico – não é pelo facto de ser um bem jurídico individual que deixamos de estar perante um
crime público. Se for um crime que contenda com bens colectivos, segue-se sempre o princípio da
oficialidade; porém, também nos deparamos com situações em que o crime é público e o bem individual
(ex: homicídio, ofensa à integridade física grave).

Note-se que o MP, a pedido da vítima e tendo em conta o seu interesse, suspende acusar nos termos do
art. 381.º. Apesar de tudo, o legislador mostra que tem algumas medidas de consideração dos interesses
da vítima.

Porém, a par destes crimes, temos ainda os crimes semipúblicos e os crimes particulares, que integram a
categoria dos crimes particulares em sentido amplo. Assim, temos:
1. Crimes públicos.
2. Crimes particulares em sentido amplo:
a. Crimes semipúblicos – dependem de queixa. Constituem uma limitação ao princípio
da oficialidade.
b. Crimes particulares – dependem de acusação particular. Constituem uma excepção
ao princípio da oficialidade.

Quem diz se o crime é público, semipúblico e particular é o legislador: quando o legislador nada
diz, o crime é público. Por ex., os arts. 132.º e 132.º nada dizem sobre isto, logo o crime é público;
porém, no art. 143.º/2 diz-se que o procedimento criminal depende de queixa; já o art. 188.º é um
exemplo de crime particular. Note-se que no art. 143.º/2 é no próprio tipo legal de crime que o legislador
prevê que o crime é semipúblico; no art. 188.º, não é no tipo legal de crime, este é um preceito legal que
abrange vários tipos legais.

1.1.3 Regime dos crimes semipúblicos e particulares

1) Crimes semipúblicos: constituem uma limitação ao princípio da oficialidade, uma vez que a decisão
de investigar o crime não cabe ao MP, mas sim ao ofendido ou outras excepções; porém, a partir do
momento em que o ofendido apresenta queixa, é o MP que volta a decidir se a causa é ou não
submetida a julgamento. Só muda a primeira parte da questão. São exemplos os crimes do art. 143.º e

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art. 178.º/1 e 2. Assim, todas as queixas apresentadas são denúncias-crime; nem todas as denúncias são
queixas, pois só existe queixa quando o crime é semipúblico.

Quem são as pessoas que têm legitimidade para apresentar queixa? Isto está previsto no art. 113.º do CP:
• Ofendido;
• Nos números que se seguem, prevêem-se casos de incapacidade para apresentar queixa – quando
o ofendido seja menor (é o representante legal); tenha falecido; ou seja maior mas incapaz para
avaliar sentido e alcance da queixa. As outras pessoas são, assim, as que em caso de incapacidade
ou morte se substituem ao ofendido no direito de queixa.

Notas:
• Nos termos do art. 49.º, o ofendido ou as outras pessoas têm de apresentar uma queixa ao MP –
neste caso, a denúncia do crime tem a designação específica de queixa. A partir daqui, tudo se
passa como se fosse um crime público.
• Há ainda outra especificidade – o titular do direito de queixa pode desistir da queixa até à
publicação da sentença em 1ª instância, i.e., nos termos do art. 116.º/2 do CP, o queixoso pode
desistir desde que não haja oposição do arguido.
o Isto não pode ocorrer relativamente aos crimes públicos, em que o MP não pode desistir
da acusação.
o O art. 51.º trata da desistência do ponto de vista processual – o arguido é informado de
que se pode opor, e neste caso o processo prossegue normalmente.
o Há possibilidade de oposição porque o arguido pode ter interesse em ver a sua
inocência decretada – nomeadamente se estivermos perante queixas infundadas (para as
quais há o crime de denúncia caluniosa), sendo que o arguido pode querer recorrer para
um tribunal superior. COSTA ANDRADE diz que temos aqui uma forma de não roubar ao
arguido o conflito jurídico-penal. Na prática, este regime permite verdadeiras
negociações (por ex., quando era crime a passagem de cheques sem cobertura).

2) Crimes particulares: constituem uma excepção ao princípio da oficialidade porque é o MP que toma
aquelas duas decisões. São exemplos os crimes do art. 188.º; e os crimes de difamação e injúria. Nos
termos do art. 50.º, é preciso que as pessoas se queixem, constituam assistentes e deduzam acusação.
Também nestes crimes tem de haver apresentação de uma queixa.
• Nos termos do art. 50.º, voltamos ao art. 113.º por remissão do art. 117.º, onde se prevê que quem
tem de apresentar queixa é o ofendido ou outras pessoas. O art. 50.º prevê o procedimento.
• No art. 246.º, como a queixa é uma forma de denúncia, prevê-se que a declaração de que quer
constituir-se assistente é obrigatória (n.º 4) – ligando este preceito ao art. 68.º/1/d) e 2, o

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

ofendido (ou outras pessoas previstas no art. 113.º) tem de apresentar uma queixa e tem de
dizer se se constitui assistente, tendo um prazo de 10 dias para o fazer. O assistente é o
ofendido que quer ter uma posição processual activa – este é o único caso em que a constituição
de assistente é obrigatória. Só depois de apresentada a queixa e de o queixoso se constituir
assistente é que o MP começa a investigar o crime.
• No final do inquérito, o MP notifica o assistente para que este, caso queira, deduza acusação (art.
285.º).

As Lições de F. DIAS não estão actualizadas: o ofendido apresentava queixa e isso era suficiente para o
MP investigar. Se quisesse apresentar acusação, aí era obrigatório constituir-se assistente. A razão de ser
desta alteração está em que, na prática, a pessoa apresentava queixa a quente e no momento da acusação
recuava. Hoje, a pessoa tem 10 dias para pensar se quer efectivamente que haja processo-crime e se quer
levar aquela causa a julgamento – até porque a constituição de assistente não é gratuita; e é necessário
constituir advogado para tal.

Note-se que o MP pode acompanhar ou não a acusação do particular (art. 285.º/4), apenas o fazendo
se houver indícios suficientes da prática do crime. Poderá não fazer muito sentido o ofendido decidir por
ele submeter uma causa a julgamento, o que é algo grave; porém, temos de ter em conta que existe o
crime de denúncia caluniosa; por outro lado, há sempre a possibilidade de alguém que se sinta injustiçado
requerer a fase da instrução, e o juiz poderá decidir não submeter a causa a julgamento.

Por outro lado, o arguido pode opor-se à desistência da acusação particular (art. 116.º e 117.º do CP),
uma vez que pode ter interesse em ver a sua inocência declarada.

O art. 113.º/5/a) prevê, em relação aos crimes semipúblicos e particulares, que quando a vítima seja
menor ou incapaz, o MP, apesar de o crime não ser público, pode decidir dar início ao processo em nome
do interesse do ofendido. Sucede o mesmo quando a titularidade do direito de queixa caiba apenas ao
agente da prática do crime (ex: o representante do menor é o agente da prática do crime).

1.1.4 Razões que justificam a existência de limitações e excepções ao princípio da oficialidade

Podemos invocar 4 razões:

1. Relativamente a certas infracções, não é comunitariamente exigível a existência de um


processo penal (ex: a comunidade não exige a existência de um processo por A dar uma bofetada
a B, mas já se A mata B). São casos quase bagatelares, de pouca importância, em que se deixa
nas mãos do ofendido decidir se há ou não processo. Exemplos: art. 143.º/2; art. 203.º/3 do CP.

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Note-se que o MP não tem total liberdade quando decide, logo este princípio também se justifica
por razões práticas (seria obrigado a investigar todas as bofetadas).

2. A promoção processual pode ser prejudicial para interesses da vítima que relacionam
directamente com a sua intimidade, quer da vida privada, quer da familiar. É o exemplo dos
crimes quanto a honra – o ofendido pode não ter interesse em que aqueles aspectos da sua vida
privada se tornem ainda mais públicos. Além do art. 188.º do CP, que diz que os crimes de injúria
e difamação são particulares, o art. 207.º/1/a) do CP prevê o caso de quando o furto seja entre
familiares (isto se for furto simples; se for qualificado, não há nada a fazer). O art. 156.º do CP
também é um caso de crime semipúblico (operações médicas arbitrárias), uma vez que o ofendido
pode não querer divulgar que foi submetido a esse tratamento médico.

3. A criminologia mostra que, muitas vezes, a existência de um processo leva a um fenómeno


de vitimização secundária – ao mal do crime acresce o mal do processo. Há uma matéria em
que isto é particularmente visível, nos crimes contra a liberdade sexual; e também no crime de
tráfico de pessoas (a partir de 2007, este passou a ser um crime autónomo daqueles). Assim se
justifica que seja a vítima a decidir se, no fundo, quer passar outra vez pela história que
vivenciou. O legislador dá a liberdade a estas vítimas, quando adultas, de decidir (art. 178.º). O
art. 87.º/3 mostra-nos que os actos processuais decorrem em regra com exclusão da publicidade
nos casos dos crimes contra a liberdade sexual e tráfico de pessoas. Os arts. 271.º e 294.º,
juntamente com os arts. 355.º e 356.º, dispõem que só pode valer para o efeito de formação da
convicção do juiz as provas produzidas em julgamento. Isto tem algumas excepções, sendo uma
delas as declarações para memória futura: logo na fase de inquérito (art. 271.º) ou instrução
(294.º) pode-se como que antecipar a audiência de julgamento, não tendo aí de ser repetida. Este
regime é muito importante para não desincentivar as pessoas a apresentar queixa. Por outro lado,
a lei das perícias médico-legais e forenses permite que a vítima faça o exame directo e apresentar
também a queixa.

4. Finalmente, podemos conseguir o fenómeno de descriminalização real. Se a queixa está na


mão do ofendido, é este que define se o comportamento é crime ou não. Por outro lado, é bom
que assim seja quando tenhamos dúvidas quanto às incriminações (ex: crime de importunação
sexual).

1.1.5 Os crimes de violência doméstica e crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual

Há dois temas que têm tido grandes alterações legislativas – os crimes de violência doméstica e crimes
contra a liberdade e autodeterminação sexual. Até 95, estes crimes eram semipúblicos, sempre

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dependentes de queixa. Em 95, isto alterou-se, passando a ser crimes públicos: apesar de haver uma
problemática comum, as razões que estiveram na origem da mudança são algo diferentes. Em relação à
violência doméstica, interpôs-se aqui um discurso de defesa dos direitos das mulheres – a prática
mostrava que poucas mulheres apresentavam queixa, por várias razões (designadamente, a crença de que
aquelas agressões não se irão repetir, gerando o círculo de agressões que a criminologia estuda, a
existência de laços afectivos).

Quanto aos crimes sexuais contra menores, dizia-se que estes crimes deveriam ser semipúblicos pois a
existência de um processo crime pode prejudicar o desenvolvimento sexual do menor. Ficava na
liberdade de decisão dos pais decidir ou não a existência de um processo. A prática veio mostrar que a
maior parte das agressões é feita por pessoas do círculo familiar, logo não se fazia queixa para protecção
do agressor.

Porém, o MP nestes dois crimes tinha sempre possibilidade de dar início ao processo, ainda que não
houvesse queixa, sempre que o interesse da vítima o exigisse. Esta solução intermédia do direito
português não foi bem recebida, desde logo por gerar uma luta de competências entre os juízes e o MP.
Houve um caso em que o MP apresentou queixa com este fundamento e a mãe do menor veio ao processo
desistir: o Tribunal da Relação do Porto resolveu a questão dizendo que podia o titular de um direito de
queixa opor-se. Isto não faz qualquer sentido.

Assim, este regime não funcionou: levantava-se a questão de saber se nestes casos tínhamos um crime
ainda semipúblico, público ou uma figura mista, daí que se tenha tornado crime público. MARIA JOÃO
ANTUNES mostra-se favorável ao regime anterior.

1.2 Princípio da legalidade

Está em causa saber se o MP, uma vez adquirida a notícia do crime, está obrigado a investigar esta
notícia ou não, i.e., se tem liberdade de decisão; e também se está obrigado a deduzir a acusação
sempre que tem indícios suficientes. O princípio da legalidade opõe-se a um outro, o da oportunidade –
se valesse este, o MP teria liberdade de decisão quanto aquelas duas questões (é o que sucede em França).

Entre nós, vale o princípio da legalidade, pelo que o MP está obrigado a investigar a notícia do crime e
a deduzir acusação sempre que tiver recolhido indícios suficientes da prática do crime e saiba quem
o praticou. Não há lugar para qualquer juízo de oportunidade sobre a promoção e prossecução do
processo penal, antes esta se apresenta um dever para o MP; ou seja, a sua actividade desenvolve-se com
estrita vinculação à lei.

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A justificação dada para este princípio é a que de, sem o princípio da legalidade, a justiça penal fica a
coberto de suspeitas de parcialidade (por razões políticas, religiosas, económicas, etc.). Pode-se mesmo
dizer que o princípio da legalidade acaba por garantir, ao nível da justiça penal, o princípio da
igualdade.

Mas como é que garantimos isto? Temos aqui os mecanismos de fiscalização e controlo da decisão do
MP.
• Quanto à decisão de submeter a causa a julgamento, é relativamente fácil pois o processo penal
prevê ele próprio mecanismos de controlo da decisão do MP – a intervenção hierárquica (pode-
se pedir ao superior hierárquico para rever uma decisão de arquivamento, por ex.) e o
requerimento da fase da instrução.
• O problema põe-se em relação ao momento inicial, pois não temos mecanismos ao nível do
processo penal – porém, sempre podemos dizer que está a haver violação de deveres do MP,
incorrendo este em responsabilidade profissional, ou ainda responsabilidade criminal (art. 369.º
do CP).

Onde é que podemos fundar legalmente o princípio da legalidade?


• Art. 219.º/1 da CRP: cabe ao MP o exercício da acção penal orientada pelo princípio da
legalidade, logo é a própria CRP que faz uma opção no sentido deste princípio.
• Art. 262.º/2: a notícia do crime dá sempre lugar à abertura do inquérito, ressalvando-se os casos
previsto s na lei – excepto se o crime for um crime semipúblico ou particular, casos em que não é
qualquer notícia do crime que dá lugar a abertura do inquérito, mas apenas através da
apresentação de uma queixa do ofendido ou de outras pessoas.
• Art. 283.º/1: regula o despacho da acusação, o MP está obrigado a deduzir acusação.

Consequências do princípio da legalidade:


1. No que toca à acusação pública, vale um princípio da imutabilidade, segundo o qual não se
pode desistir da acusação. Se o MP está obrigado a abrir inquérito e a acusar, não faz sentido que
desista de uma acusação que tenha feito.
2. Existe um dever de denúncia em relação a certas categorias de pessoas. Nos termos do art.
284.º, qualquer pessoa pode denunciar – a diferença está em que, para certas categorias de
pessoas, a denúncia é obrigatória. O legislador não faz de cada um de nós um polícia público.
Porém, os ventos vão no sentido de fazermos dos outros polícias, promovendo-se as denúncias
principalmente nos crimes económicos de empresas. Quais são os casos de dever de denúncia?
a. Nos termos do art. 242.º, as entidades policiais têm um dever de denunciar todos os
crimes de que tomarem conhecimento – o legislador não falou aqui de propósito em
órgãos da polícia criminal.

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b. Também têm este dever os funcionários públicos, que são pessoas que, pelo seu estatuto,
participam na função pública – logo têm de colaborar directamente com a administração
da justiça penal.
c. E também os equiparados a funcionários, art. 386.º. Este preceito dá-nos uma acepção
lata de funcionário, que é quem esteja envolvido em funções públicas. Há alguma
desarticulação com a realidade de hoje da função pública, uma vez que existem poucos
funcionários. Note-se que apenas têm este dever se tomarem conhecimento no exercício
das suas funções.

Note-se que se pode gerar um conflito entre um dever de denúncia e o dever de sigilo profissional (o
exemplo dos médicos que assistem a um crime no hospital). A solução não é linear: estamos aqui entre
conflitos das finalidades do processo penal, entre a descoberta da verdade material e a tutela dos direitos
fundamentais (está aqui em causa o direito à intimidade da vida privada). Só poderemos ver caso a caso,
sendo que o único segredo inquebrável é o segredo religioso (isto vê-se a propósito das testemunhas).

Houve um Acórdão do TR Coimbra que deu razão a uma médica que invocou o segredo de justiça num
processo por interrupção voluntária da gravidez.

Qualquer uma das entidades com dever de comunicar a denúncia ao MP pode receber a denúncia (art.
241.º), sendo que a lei, para diminuir os efeitos de vitimização nos casos de crime de abuso sexual as
delegações e gabinetes do INML, prevê que se possam prestar as declarações aí.

1.2.1 Limitações ao princípio da legalidade

Há casos em que excepcionalmente vale o princípio da oportunidade. Para além disto, temos de ter
em consideração que, mesmo nos casos em que vale o princípio da legalidade, há sempre alguma
margem de manobra (o exemplo de F. DIAS das gratificações ao homem do lixo). Temos aqui também o
efeito-funil: só alguns crimes praticados é que chegam a um processo penal.

Os arts. 280.º e 281.º prevêem duas excepções ao princípio da legalidade no sentido da


oportunidade: o art. 280.º prevê o arquivamento em caso de dispensa ou isenção de pena e o 281.º a
suspensão provisória do processo.

Estas são verdadeiras alternativas à decisão de acusação: não obstante o MP ter recolhido, durante o
inquérito, indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem o praticou, não submete a
infracção a julgamento, arquiva ou suspende provisoriamente o processo.

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• O art. 280.º está pensado para os casos em que levariam a dispensa de pena, de pequena
criminalidade: permite que o MP, em vez de acusar no final do inquérito, arquive o
processo pois este caso acabaria, em julgamento, numa dispensa de pena. Os pressupostos
são os mesmos da dispensa de pena; para além disto, exige-se a concordância do juiz de
instrução. Esta solução justifica-se por um princípio de celeridade processual; para além disto, é
uma manifestação do carácter unilateral do princípio da culpa a nível processual. Este é um
mecanismo de diversão simples.
• Já o art. 281.º está pensado para os casos de média criminalidade, e depende, para além do
consenso do juiz de instrução, da imposição ao arguido de injunções e regras de conduta.
Fala-se aqui de um consenso alargado: o MP determina a suspensão provisória do processo
com o acordo do juiz de instrução, do arguido e do assistente (al. a)). Temos aqui um
mecanismo de diversão com intervenção. Distingue-se da suspensão da execução da pena, que é
uma verdadeira pena de substituição: aqui, ainda que haja a imposição de injunções e regras de
conduta, não temos nenhuma pena, o que é desde logo revelado pelo facto de se exigir a
concordância do arguido. Outro dos pressupostos exigidos é a ausência de um grau de culpa
elevado (al. e)) e ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda
suficientemente às exigências de prevenção (al. f)). O n.º 2 prevê o tipo de regras e injunções que
podem ser impostas.

Note-se que estas decisões não são susceptíveis de impugnação (art. 280.º/3 e 281.º/6), uma vez que o juiz
tem de dar a sua concordância.

No entanto, será que temos aqui verdadeiras excepções ao princípio da legalidade? Como FIGUEIREDO
DIAS nota, mais do que consagrações do princípio da oportunidade, os arts. 280.º e 281.º dão
cumprimento ao programa político-criminal, ou seja, temos aqui um “princípio da legalidade que deixa
de ser comandado por uma ideia de igualdade formal típica dos Estados liberais para passar a ser
norteado pelas intenções político-criminais básicas do sistema penal”. Assim, podemos falar de um
princípio de legalidade aberta.

A ideia destes institutos tem vindo a ser subvertida, tendo o legislador introduzido o n.º 7, 8 e 9 do art.
281.º a propósito dos crimes de violência doméstica e crimes sexuais contra menores.

Também é no contexto do princípio da legalidade e oportunidade que podemos considerar a mediação


penal (Lei 21/2007): esta vem permitir que o MP não deduza acusação e remeta o processo para
mediação. Nos termos do art. 4.º, a mediação penal é um processo informal e flexível, conduzido por um
terceiro imparcial, que promove a aproximação entre o arguido e o ofendido e os apoia na tentativa de

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

encontrar um acordo que permita a reparação dos danos causados e contribua para a restauração da paz
social.

Ø Suspensão provisória do processo

Importa ver este instituto com maior detalhe. “A suspensão provisória do processo foi introduzida no
ordenamento português pelo CPP de 87, afirmando-se como uma alternativa ao despacho de acusação:
apesar de o MP ter recolhido indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, a
infracção não vai ser submetida a julgamento. Alcançado o acordo entre os diversos sujeitos
processuais (MP, juiz de instrução, arguido e assistente) e verificados os demais pressupostos
previstos na lei, o MP é competente para impor ao arguido certas injunções e regras de conduta,
cujo cumprimento conduzirá ao arquivamento do processo” (art. 282.º/3) (SÓNIA FIDALGO, “O
consenso...”). Este instituto levantou dúvidas de constitucionalidade: o TC considerou que a suspensão
não era, em si mesma, inconstitucional, mas seria necessário o acordo do juiz de instrução. O TC também
já se pronunciou no sentido de que o art. 281.º não viola a reserva da função jurisdicional e o princípio da
independência dos tribunais.

“Com o objectivo de alargar a aplicação da suspensão provisória do processo, após a revisão de Setembro
de 2007, passou a permitir-se expressamente a promoção deste instituto a requerimento do arguido ou do
assistente (art. 281.º/1)”.

As injunções e regras de conduta ao arguido cumprem uma função de reposição do bem jurídico violado
numa tripla vertente: reparação da vítima, reparação do Estado e ressocialização do delinquente. Estão
previstas no n.º 2, que é uma cláusula aberta. O TC foi chamado a pronunciar-se sobre se esta cláusula
aberta violava o princípio da legalidade das medidas restritivas da liberdade, e concluiu que não: as
injunções e regras de conduta só podem ser impostas mediante acordo do arguido; não podem contender
com a dignidade deste; e estão sempre sujeitas ao controlo do juiz de instrução.

A revogação da suspensão provisória ocorre nos casos do art. 282.º/4: se o arguido não cumprir as
injunções ou regras de conduta; e se cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.

1.3 Princípio da acusação

Já vimos que a estrutura do sistema penal português é acusatória, desde logo, porque adopta o princípio
da acusação (note-se que princípio da acusação é diferente de estrutura acusatória) – a entidade que
investiga e acusa é distinta da entidade que julga. Este princípio pretende garantir objectividade e
imparcialidade na decisão, e está previsto no art. 32.º/5 da CRP.

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1.3.1 Consequências do princípio da acusação

Quais são as consequências do princípio da acusação?

1. Implica, desde logo, que o tribunal do julgamento não pode, por sua iniciativa, começar
uma investigação. Ex: o juiz do julgamento apercebe-se, na audiência, que o arguido acusado de
homicídio também burlou a vítima: o juiz não pode condenar por burla, tem de ser aberta uma
nova investigação pelo MP. Esta implicação é acolhida integralmente no CPP, arts. 48.º, 241.º,
262.º, 263.º e 276º.

2. Não pode haver julgamento sem um despacho prévio do MP a deduzir acusação – não há
julgamento sem acusação. Note-se que, porém, teoricamente podemos ter um julgamento sem
acusação – por ex., se houver um arquivamento do processo, se pedir instrução e for proferido
um despacho de procedência. Arts. 283.º e 285.º/1.

3. É a acusação que define e fixa perante o tribunal de julgamento o objecto do processo. O


juiz do julgamento só vai poder conhecer e decidir aquilo que consta da acusação do MP e, em
casos excepcionais, da pronúncia do juiz de instrução – fala-se aqui do efeito de vinculação
temática da acusação. Se o juiz pudesse descobrir novos factos no julgamento, teríamos um
processo de base inquisitória e não acusatória; por outro lado, isto é assim em nome das garantias
de defesa dos arguidos, o arguido tem de saber de que é acusado. Daqui resultam três princípios:
a) Princípio da identidade: o juiz de julgamento, perante uma acusação, tem de julgar o
que está na acusação. O objecto do processo penal fixa-se na acusação e mantém-se
inalterado, i.e., o juiz do julgamento não pode alterar o objecto do processo.
b) Princípio da unidade: o juiz do julgamento tem de conhecer todo o objecto.
c) Princípio da consunção: ainda que não conheça todo o objecto, o efeito do caso julgado
estende-se a todo o objecto. Se o MP acusar por crime continuado os factos x, y e z e o
juiz apenas conhece por lapso os factos x e y, o efeito de caso julgado estende-se ao facto
z e o MP não pode acusar novamente.

A vinculação temática do tribunal constitui “a pedra angular de um efectivo e consistente direito de


defesa do arguido”. O arguido é protegido contra alargamentos arbitrários da actividade do tribunal, e
também se asseguram os seus direitos de contraditoriedade e audiência.

A matéria do objecto é das mais difíceis do processo penal, e está ligada ao conceito de alteração
substancial dos factos (art.º 1.º/1/f)). Imagine-se que, num julgamento por homicídio simples, o juiz

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constata que havia uma relação familiar e quer condenar por homicídio qualificado: pode fazê-lo? Ainda
estamos dentro do objecto do processo? Esta é uma matéria muito discutida.

1.3.2 Regime de recusas, escusas e impedimentos

O princípio da acusação, imposto em nome da objectividade e imparcialidade das decisões, reflecte-se


ainda no regime dos impedimentos recusas e escusas, previstos nos arts. 39.º a 47.º. Estas são
circunstâncias que, estado verificadas e dizendo respeito a um determinado juiz, podem significar o seu
afastamento da causa por ter alguma relação com um interveniente no processo. O juiz fica impedido de
exercer a sua função no processo.

1) Impedimentos: são circunstâncias previstas na lei de forma taxativa no art. 39.º, e que implicam
automaticamente o afastamento do juiz. O art. 40.º diz ainda que o impedimento pode resultar de uma
prévia intervenção do juiz no processo.

2) Recusas e escusas (suspeições): correspondem a objecções à participação do juiz no processo,


fundadas numa cláusula geral de suspeição (art. 43.º). Enquanto que nos impedimentos o afastamento
é automático, aqui é preciso verificar se no caso concreto o juiz está numa posição que faça recear a
ausência de imparcialidade.
• A recusa é uma objecção lançada pelo arguido, MP, assistente ou partes civis (art. 43.º/3).
• A escusa é lançada pelo próprio juiz (art. 43.º/4).

O art. 40.º é um artigo muito polémico.


• Art. 40.º/b): o juiz que conduziu o debate instrutório não pode ser juiz de julgamento ou de
recurso. Isto é pacífico.
• Art. 40.º/a): o juiz que aplicou medida de coação prevista no art. 200.º a 203.º não pode ser
juiz de julgamento ou de recurso. Estas são medidas de coacção que só podem ser aplicadas se
o juiz formar um juízo de forte convicção sobre a prática do crime pelo arguido, e daí que não
possa acompanhar mais o processo.

A propósito desta al. b), discute-se se esta solução é a mesma se o juiz tiver aplicado a medida de coacção
em sede de inquérito ou de instrução. O TC, no Ac. 186/98, declarou com força obrigatória geral a
inconstitucionalidade do art. 40.º, na parte em que permite a intervenção do juiz no julgamento que, em
fase de inquérito, decretou e manteve a prisão preventiva do arguido (ver também Ac. 935/96). Isto foi
fortemente criticado pela doutrina: FIGUEIREDO DIAS e MARIA JOÃO ANTUNES defendem que está por
demonstrar que o juiz que tenha esse tipo de intervenção não tenha condições para julgar de forma

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imparcial. Para além disto, temos sempre uma válvula de segurança, o regime das escusas e recusas (art.
43.º/2).

Note-se que a decisão de manutenção da medida de coação não é razão suficiente para se aplicar o
impedimento.

2. Princípio gerais do processo penal relacionados com a prossecução processual

São 4:
1. Princípio da investigação;
2. Princípio da contraditoriedade ou contraditório;
3. Princípio da suficiência;
4. Princípio da concentração.

Vamos estudar a investigação e concentração a propósito da prova e da forma.

2.1 Princípio da contraditoriedade

Este princípio diz-nos que toda a prossecução processual deve conduzir-se de forma a fazer ressalvar
quer as razões da acusação, quer da defesa. Para além disto, o processo penal deve ouvir sempre toda e
qualquer pessoa relativamente à qual tome uma posição que a afecte – com isto, podemos estar a falar,
para além do arguido, do assistente, defensor, testemunhas, peritos, etc. Hoje, o princípio do
contraditório tem este sentido mais amplo, de um direito de ser ouvido no decurso do processo
penal sempre que haja actos que afectem os participantes e sujeitos processuais. Este direito pode
fazer com que certos participantes sejam autênticos sujeitos (vamos ver isto mais à frente).

Qual é a razão de ser?


• Este princípio existe enquanto garantia de defesa do arguido, art. 32.º/1.
• Para além disto, see perspectivarmos o princípio do contraditório não estritamente através da
perspectiva do arguido, então integra-se numa estrutura acusatória como é aquela que tem o
processo penal português – são estruturas protectoras dos direitos das pessoas. Surge enquanto
característica típica de um processo de estrutura acusatória.

Em relação à fundamentação legal, resulta do art. 32.º/5 da CRP: impõe a submissão da audiência de
julgamento ao princípio do contraditório, bem como os actos instrutórios que a lei determinar.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Assim, a sede não exclusiva deste princípio é a audiência de julgamento; porém, vale também nas outras
fases.
• Fase do julgamento:
o Art. 327.º: apenas serve para formar a convicção do julgador as provas produzidas na
audiência
o Art. 321.º/3: é relativo à publicidade da audiência de julgamento e diz que a decisão é
sempre procedida da audiência dos sujeitos processuais.
o Art. 348.º: relativo aos processos de investigação, a testemunha é contra-interrogada.
o Art. 360.º: as alegações finais são produzidas quer pela acusação, quer pela defesa.
• Fase da instrução: também podemos ter manifestações deste princípio. Esta é uma fase oral e
contraditória – por ex., nos termos do art. 298.º, o debate instrutório decorre de forma oral e
contraditória; e o art. 289.º diz o mesmo.
• Fase do inquérito: o CPP releva também o princípio do contraditório, ainda que de forma
limitada. Nos termos do art. 61.º/1, als. a), b) e f), o arguido goza do direito de estar presente em
todos os actos processuais que directamente lhe digam respeito, de ser ouvido pelo juiz de
instrução e do direito de intervir no inquérito (que se estende ao assistente, art. 69.º/1/a)).

Está também presente no estatuto dos sujeitos processuais, nomeadamente do arguido (tem o direito de
ser ouvido pelo tribunal ou juiz de instrução sempre que tomem qualquer decisão que o afectem, art. 61.º)
e do assistente (por ex., permite-se que este requeira a realização de diligências probatórias, art. 69.º/2/a)).
Só não se ouve o arguido quando tal seja de todo impossível. Quando se aplica uma medida de coacção, o
arguido tem de ser ouvido (art. 184.º/4). Coloca-se a questão de saber se o “ouvir” aqui também inclui o
assistente, se tem de ser oralmente ou pode ser por escrito, se basta comunicar, etc. A regra dos actos no
processo penal é a oralidade, pois a esta junta-se a vantagem irrecusável da imediação – não é por acaso
que as testemunhas são interrogadas oralmente, pois assim é mais fácil para o juiz aferir da veracidade
dos factos. Por outro lado, pode-se ouvir o arguido ouvindo o defensor? Estas são questões que estão hoje
a ser discutidas. Ver Acórdão do habeas corpus de Sócrates, que trata desta questão incidentalmente.

A sede por excelência deste princípio é a audiência de julgamento, mas como vimos vale também
nas fases de inquérito e instrução. Esta é uma nota a destacar no processo penal português – não é
normal que este princípio valha quando o processo está em segredo de justiça, há um entender geral que
quando tal sucede não há contraditório, pela natureza das coisas, pois aí deixaria de haver segredo. Hoje,
a regra é a da publicidade do processo desde o início, só excepcionalmente é que é secreto. No Código de
1987, a fase de inquérito era uma fase secreta desde o início, e valia o princípio do contraditório. O
segredo do inquérito justifica-se por duas razões: em nome dos interesses da investigação e dos interesses
dos arguidos (um inquérito pode acabar com um despacho de arquivamento, e assim não se lança a

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

suspeita de que alguém cometeu um crime). O Código de hoje abandonou a regra do secretismo para
adoptar a da publicidade desde o início.

2.2 Princípio da suficiência

Está consagrado no art. 7.º, e diz-nos que o processo penal é promovido independentemente do
processo civil e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa, basta-se a si
próprio. O princípio da suficiência remete-nos para o tema das questões prejudiciais (questões que,
possuindo objecto ou natureza diferente da questão principal, são de resolução prévia indispensável para
se conheer em definitivo da questão principal).

Este princípio diz-nos que o processo penal é tido como suficiente para a resolução de todas as questões
que interessem à natureza da causa, e opõe-se ao princípio da devolução obrigatória – teria de ser
devolvida ao tribunal competente. Não adoptamos este princípio com razões que têm a ver com a
concentração do processo penal no tempo; por outro lado, também não há devolução obrigatória porque
nem sempre a resposta que o tribunal competente daria serviria para o processo penal. Por ex., o
conceito de funcionário para efeitos penais é diferente do conceito para efeitos administrativos; ou a
relação de filiação, para efeitos penais, pode ser de direito mas também de facto.

Porém, o legislador processual penal admite que excepcionalmente se possa devolver a questão não
penal para o tribunal competente, art. 7.º/2. Para que isto suceda, é necessária a verificação de dois
requisitos:
1. A questão tem de ser necessária “para se conhecer da existência de um crime”: a doutrina
entende que tem de estar em causa o conhecimento de um elemento constitutivo do crime, que
decida da condenação ou absolvição do arguido.
2. A questão não pode ser “convenientemente resolvido no processo penal”: isto introduz um amplo
poder discricionário no que respeita à devolução da questão prejudicial.

O n.º 3 do art. 7.º faz uma exigência formal quanto ao momento da suspensão do processo para decisão da
questão prejudicial; e o n.º 4 visa evitar que a devolução crie obstáculos ao exercício do processo penal.

Note-se que, quanto às questões são de natureza jurídico-constitucional, qualquer tribunal pode recusar a
aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade – logo, o princípio da suficiência
sofre aqui uma quebra pois há recurso obrigatório para o TC.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

3. Participantes e sujeitos processuais

Temos um número considerável de entidades que intervêm no processo; porém, nem todos os
participantes no processo são considerados sujeitos processuais. Assim, distingue-se entre os sujeitos
processuais, que têm uma participação conformadora e constitutiva, e os participantes processuais,
que têm uma participação acessória, instrumental. Quando uma pessoa tem o estatuto de sujeito,
significa que a sua actuação pode conformar em concreto a tramitação do processo penal tendo em vista a
decisão final. A par dos sujeitos, temos os meros participantes processuais, que também intervêm em
actos singulares do processo penal, mas o conteúdo processual desses actos praticados esgota-se na
própria prática desses actos.

Temos 5 sujeitos processuais:


1. Tribunal;
2. MP;
3. Assistente (via de regra, corresponde ao ofendido, à vítima);
4. Arguido (pessoa contra quem o processo é dirigido);
5. Defensor (advogado do arguido).

Cada um destes sujeitos tem uma regulação legal específica.

3.1 Juiz ou tribunal

O estatuto de sujeito processual do juiz funda-se num conjunto de princípios jurídico-constitucionais.

Desde logo, funda-se no monopólio da função jurisdicional, previsto no art. 202.º/2 da CRP. Para saber
se o acto é da competência do juiz e não do MP, temos de saber se estamos perante um acto jurisdicional
ou não (esta repartição de competências é particularmente relevante na fase do inquérito).
• Nos termos do n.º 2 do art. 202.º, “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e reprimir a violação da
legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”. Liga-se o
segmente “reprimir a violação da legalidade democrática” à matéria penal.
• A CRP inclui expressamente na reserva jurisdicional a condenação de alguém em pena ou medida
de segurança (art. 27.º) e a decisão de entrada no domicílio (art. 34.º/2).
• Temos os arts. 268.º e 269.º, que enumeram os actos do juiz de instrução.
• Depois, tem de ser por via da doutrina ou jurisprudência se determinado acto é ou não da
competência do juiz.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Podemos distinguir dois papéis fundamentais que o processo penal atribui ao juiz/tribunal:
1. Por um lado, o juiz surge como responsável por uma fase do processo, a fase de instrução e a
fase do julgamento.
2. Por outro lado, é a entidade que tem competência para, ao longo do processo, praticar,
ordenar ou autorizar actos que se prendam directamente com os direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos.

Um outro princípio jurídico-constitucional é o princípio da independência jurisdicional, o que significa


que os juízes são independentes em relação a todos os poderes do Estado (art. 203.º CRP). Isto tem a ver
com uma ideia de imparcialidade – a própria CRP diz que os juízes são independentes e apenas estão
vinculados à lei. A nota da independência e da imparcialidade é outra das notas do estatuto processual dos
juízes. Nesta linha, prevêem-se impedimentos e suspeições, que já vimos.

3.2 Ministério Público

O Ministério Público tem estatuto constitucional, previsto no art. 219.º CRP. O n.º 1 diz-nos quais as
funções do MP; enquanto que o n.º 2 nos diz que o MP goza de estatuto próprio e de autonomia. A
magistratura do MP é distinta da magistratura judicial, e é autónoma em relação aos outros poderes.

Não obstante o processo penal português ter uma estrutura acusatória, não é um processo de partes, não
podemos dizer que existe de um lado a acusação, encabeçada pelo MP, e por outro a defesa, encabeçada
pelo arguido. Isto resulta do art. 203.º CRP e 53.º CPP: nos termos do art. 53.º/1, compete ao MP
colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e da realização do direito, obedecendo a sua
actividade a critérios de objectividade. O MP não está no processo com o objectivo de deduzir uma
acusação a todo o custo – por ex., quando está a investigar a notícia do crime, também investiga no
sentido de concluir que não foi aquele agente a praticar o crime.

Isto está exemplarmente plasmado no art. 53.º/2: compete ao MP interpor recurso, ainda que no exclusivo
interesse da defesa.

3.3. Defensor

O defensor é o advogado do arguido. Nos termos do art. 32.º/3 CRP, o arguido tem direito a escolher
defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em
que a assistência por advogado é obrigatória. Os arts. do CPP que relevam aqui são o art. 62.º, 61.º/1/e) e
63.º.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

No processo penal português, o defensor não é um puro representante dos interesses do arguido, daí
ser um sujeito processual: o defensor é um órgão de administração da justiça penal, que actua no processo
no exclusivo interesse do arguido, sem se confundir com ele. Por ex., há casos em que a assistência do
defensor é obrigatória, quer o arguido queira, quer não (art. 64.º).

3.4 Arguido

Ø Suspeito

Antes do arguido, temos a categoria do suspeito que, ainda que não seja um sujeito processual, pode ser
um mero participante processual. Está definido no art. 1.º/e): “é toda a pessoa relativamente à qual exista
indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para
participar”. O suspeito pode depois adquirir a qualidade de arguido.

Ø Momento da aquisição e modo de constituição

Qual o momento de aquisição da qualidade de arguido?


• O art. 57.º diz-nos que, regra geral, assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for
deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal. Assim, só se assume a qualidade
de arguido com a dedução da acusação. Para além disto, também adquire a qualidade de
arguido se for requerida instrução (2ª parte).
• Porém, temos excepções, que acabam por ser mais frequentes do que a regra.
o O art. 58.º/1 elenca casos de constituição obrigatória de arguido durante o inquérito. Nos
termos do art. 58.º/1/a), correndo inquérito contra pessoa em relação à qual haja
suspeita fundada da prática de crime, se esta tiver de prestar declarações perante
autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal tem de ser constituída arguida.
o O art. 59.º/1 refere-se aos casos em que surge suspeita do crime durante a inquirição feita
a pessoa que não o arguido (ex: testemunha).
o Nos termos do art. 59.º/2, pode ainda haver constituição de arguido a pedido do próprio.

Em relação ao modo de constituição, vale o art. 58.º/2.

Ø Estatuto processual

O art. 60.º diz-nos que, desde o momento em que uma pessoa adquire a qualidade de arguido, é-lhe
assegurado o exercício de direito e deveres processuais, sem prejuízo da aplicação de medidas de coação
e de garantia patrimonial, e da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

Daqui retiramos que o arguido é um sujeito processual, pois é titular de direitos e deveres, e ainda é
objecto do processo penal.

Em geral, podemos dizer que o estatuto processual penal do arguido se pauta por dois vectores essenciais:
por um lado, o reconhecimento ao arguido de um direito de defesa (art. 32.º/1 CRP); por outro lado, o
reconhecimento do direito de presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença
condenatória (art. 32.º/2).

O art. 61.º elenca os direitos processuais do arguido, conformados com o direito de defesa e o direito à
presunção de inocência.
• Al. a): direito de estar presente aos actos processuais que lhe disserem respeito.
• Al. b): direito de ser ouvido pelo tribunal (por ex., se for sujeito à aplicação de uma medida de
coacção).
• Al. c): direito de ser informado.
• Al. d): direito ao silêncio do arguido. O arguido tem o dever de responder com verdade às
perguntas que lhe são feitas sobre a sua identidade (n.º 3, al. b)), mas o mesmo não se exige ao
fazer questões sobre os factos que lhe são imputados. Este silêncio não o pode desfavorecer,
sendo que isto resulta do direito à presunção de inocência. Isto explica o facto de as autoridades
serem obrigadas a constituir a pessoa como arguida quando é obrigada a prestar declarações: se
não for constituída arguida, tem o dever de falar com verdade.
• Al. e): direito de constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor.
• Al. f), g) e h): direito de intervir no inquérito de instrução, de ser informado pela autoridade
judiciária ou órgãos de polícia criminal e direito a recorrer.

Porém, o arguido tem também deveres – ver art. 59.º/3 e 60.º/2.

3.5 Assistente

Ø Distinção entre ofendido e assistente; quem pode constituir-se assistente

Temos, desde logo, de distinguir entre o assistente, que é sujeito do processo penal, e o ofendido, que
é um mero participante processual. De acordo com o art. 68.º/1/a), considera-se ofendido o titular dos
interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Em regra, o ofendido pela prática do
crime é um mero participante processual, prestando declarações no processo nessa qualidade; porém, se
quiser, pode constituir-se assistente.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

De acordo com o art. 68.º/1/a) e b), pode constituir-se assistente o ofendido e, além deste, as pessoas
de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento. Ver também al. c) e d).

A al. e) cobre os casos em que não é possível identificar os titulares de interesses que a lei quis proteger,
quando o bem jurídico protegido é superindividual. Nestes casos, qualquer cidadão, desde que tenha mais
de 16 anos e seja capaz, pode constituir-se assistente. Isto serve também para controlar a decisão que o
MP venha a tomar no final do inquérito – se decidir arquivar o processo, não teríamos ninguém para
requerer instrução e pedir um reexame da decisão.

Ø Estatuto processual do assistente

Nos termos do art. 69.º/1, os assistentes têm a posição de colaboradores do MP. O assistente pode (art.
69.º/2):
• Oferecer e requerer diligências de prova (al. a)).
• Deduzir acusação (al. b)). Remissão para art. 285.º (crimes particulares) e 283.º e 284.º (crimes
públicos e semipúblicos).
• Interpor recurso (al. c)).

3.6 Partes civis e órgãos de polícia criminal

Ø Lesado

Uma mesma pessoa que se constitui assistente pode também ter o papel do lesado, que se distingue do
ofendido e assistente muito embora possam encarnar na mesma pessoa. O lesado é uma parte civil, que
tem direito a uma indemnização por perdas e danos emergentes da prática do crime. Note-se que a
indemnização, de acordo com o CP, é regulada pela lei civil, e por isso é se prevê que se pode fazer o
pedido de indemnização civil no processo penal (art. 71.º e segs.). Se não existissem estas normas, o
lesado (ofendido ou terceiro) teria de ir a um tribunal civil pedir essa mesma indemnização. Vale aqui um
princípio de adesão – a acção civil adere à acção penal. Quem faz o pedido é o lesado (princípio do
pedido).

O lesado é o sujeito da acção civil que adere à acção penal, não é participante nem sujeito
processual. Além disto, importa ainda reter que uma mesma pessoa pode ser ofendido e lesado.

Ø Órgãos de polícia criminal

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

O art. 1.º/c) diz que órgãos de polícia criminal são todas as entidades e agências criminais a quem caiba
levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou ordenados pelo Código. Daqui
resulta a opção do legislador no sentido de não termos propriamente uma polícia criminal – o Código
não se refere à polícia judiciária, mas sim aos órgãos de polícia criminal. Isto é porque no processo penal
intervêm várias polícias, embora a Polícia Judiciária seja a polícia criminal por excelência. A PJ depende
directamente do MP, enquanto que a GNR e PSP dependem do Ministro e Ministério da Administração
Interna, pois são polícias na sua raiz distintas. Cada vez mais a PJ tem actuações de investigação criminal
e a PSP e GNR de repressão criminal.

Em relação às competências dos órgãos de política criminal, nos termos do art. 55.º compete-lhes
coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização do fim do processo penal. Não são
vistos como sujeitos do processo penal, mas como meros participantes – a sua actividade é uma
actividade sob a direcção da autoridade judiciária e na sua dependência. De um ponto de vista orgânico,
as polícias são independentes das autoridades judiciárias; porém, de um ponto de vista funcional,
quando actuam no processo, dependem da autoridade judiciária (art. 56.º). Temos um modelo de
autonomia orgânica e dependência funcional. Os arts. 263.º e 290.º concretizam os art. 55.º e 56.º.

Isto não significa que não possamos dizer que existem actos que são da competência própria dos órgãos
de polícia – é o que está previsto no art. 55.º/2. Nos meios de obtenção de prova e medidas cautelares,
o Código prevê que haja uma série de actos da competência das polícias – por ex., relativamente às
buscas domiciliárias, que têm de ser ordenadas pelo juiz mas há situações em que tal não é preciso (art.
177.º/3). Excepcionalmente, estes actos são da competência dos órgãos da polícia criminal, com o
seguinte fundamento: pode intervir sem intervenção prévia da autoridade judiciária nas situações de
perigo na demora.

Em suma: não são sujeitos dada a dependência funcional, sem prejuízo de certos actos que são da
sua competência própria nos casos de perigo na demora. Para além disto, os órgãos de polícia
criminal têm de comunicar imediatamente à autoridade competente que actuarem nestas circunstâncias, e
tem de haver um acto posterior de validação (arts. 249.º, 251.º e 252.º-A).

Além destas competências próprias que têm a ver com meios de obtenção de prova, os órgãos de polícia
criminal tem outra competência própria importante, prevista no art. 250.º e que se relaciona com a
identificação de suspeitos.

4. Fases processuais

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

4.1 Fase do inquérito

A primeira fase do processo penal é a fase do inquérito. Está prevista no art. 262.º e segs., e é uma fase de
investigação criminal no sentido estrito do termo. Nos termos do art. 263.º, é da competência do MP,
coadjuvado pelos órgãos da polícia criminal. A abertura do inquérito inicia-se com a aquisição na
notícia – nos termos do art. 241.º, o MP adquire a notícia por si, pelos órgãos da polícia criminal ou por
denúncia. Esta aquisição dá lugar à abertura do inquérito, de acordo com o princípio da legalidade,
ressalvadas as excepções previstas na lei (art. 262.º/2).

Outras notas relativas à competência:


• O art. 270.º prevê os actos que podem ser delegados pelo MP nos órgãos de polícia criminal
(exceptuando os do n.º 2).
• Por outro lado, há certos actos que no inquérito têm de ser praticados ou ordenados/delegados
pelo juiz, art. 268.º e 269.º. Por ex., a busca a uma casa tem de ser ordenada pelo juiz, uma vez
que se prende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
• Pode haver outros actos para além dos dos arts. 268.º e 269.º que têm de ser praticados pelo juiz
de instrução por contenderem com direitos do arguido. Imaginemos que o MP, durante o
inquérito, considerar que está perante um inquérito de elevada complexidade e que o prazo deve
ser alargado: faz algum sentido que a declaração de especial complexidade tenha de ser decretada
pelo juiz de instrução? Isto é o que sucede, mas MARIA JOÃO ANTUNES entende que este é um
caso claro de competência do MP. Já se a elevada complexidade derivar do facto de o arguido
estar preso, faz sentido ser da competência do juiz.

As finalidades e âmbito do inquérito estão previstos no art. 262.º/1, que determina que o inquérito
compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os
seus agentes e recolher as provas. Ou seja, vai procurar-se indagar determinados factos ocorridos no
passado, a fim de verificar se houve um crime, quem é que praticou nesse crime e apurar as suas
responsabilidades criminais, e produzir/recolher as provas necessárias. Esta fase investigar crimes, e daí
que a competência desta fase caiba ao MP, a juristas. É essencialmente uma fase de produção e recolha
de provas – ouvem-se testemunhas, o arguido, recolhem-se documentos, fazem-se perícias, buscas, etc.

Esta actividade probatória está sempre pré-ordenada a uma certa finalidade, indicada na parte final do art.
262.º/1 – “em ordem à decisão sobre a acusação”. O MP investiga para verificar se houve crime e para
decidir, encerrada a investigação, se acusa ou não alguém. Esta é uma ideia crucial para compreender o
processo – enquanto que na fase de julgamento é para decidir se se condena ou não, aqui é para decidir se
se leva ou não a julgamento. Daí que as garantias no julgamento tenham de ser muito mais fortes, pois no
pior dos cenários na fase da investigação o arguido é acusado. Por ex., o art. 32.º/5 diz que a audiência de

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2014/2015

julgamento está sujeita ao princípio do contraditório, o que não acontece necessariamente na


investigação.

O art. 276.º/1 diz que, no fim da investigação, o MP ou acusa (nos termos do art. 283.º), ou arquiva
(art. 277.º). Note-se que, nos termos do art. 97.º/3, os actos decisórios do MP tomam a forma de
despacho. Porém, vamos ver que existem casos que significam um desvio a esta regra – art. 280.º e 281.º.
Com o despacho de acusação ou arquivamento, é encerrado o inquérito, sendo que este despacho deve ser
notificado aos sujeitos processuais.

Vejamos os dois cenários.

1) Acusação: a acusação é uma imputação de factos ao arguido. O MP acusa para que o arguido seja
levado em julgamento.
• O destino normal da acusação é o julgamento – em regra, havendo acusação, segue-se a fase do
julgamento.
• Porém, pode suceder que o arguido acusado pretenda evitar a ida a julgamento, e para isso a lei
processual faculta-lhe a fase da instrução (art. 276.º e segs.). Quando requerida pelo arguido
(art. 287.º/1/a)), serve para submeter a acusação à apreciação de um juiz, o juiz de instrução: esta
é uma fase de controlo jurisdicional na qual o juiz irá comprovar o bom fundamento, ou
não, da acusação com que findou o inquérito (art. 286.º/1). Esta é uma fase facultativa (n.º 2),
que tem de ser requerida.
• Mas também pode acontecer que o arguido acusado não seja o único insatisfeito – o assistente
também pode ficar insatisfeito. Nomeadamente, pode entender que o MP fica aquém daquilo que
deveria, por ter acusado por pouco (por ex., acusa por furto e não por roubo). Assim, o próprio
assistente pode requerer a fase da instrução, no sentido de ampliar os factos a imputar ao
arguido.

Temos, assim, 3 cenários:


• Julgamento.
• Instrução requerida pelo arguido.
• Instrução requerida pelo assistente.

2) Arquivamento: o MP conclui que não existem elementos suficientes, existindo uma série de motivos
que podem levar ao arquivamento e que estão definidas no art. 277.º.
• Se ninguém reagir ao arquivamento, o processo extingue-se. Existe um desvio a esta regra, que é
um mecanismo interno do MP (art. 278.º). Só pode ser aberto em casos excepcionais (art. 279.º).

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• Pode, porém, dar-se o caso de alguém ficar insatisfeito com o arquivamento – em regra, o
assistente. A lei fornece dois mecanismos de reacção:
o Intervenção hierárquica, art. 278.º.
o Requerimento para abertura da instrução: a fase da instrução também pode ser aberta
na sequência de um arquivamento, quando haja o requerimento para abertura da instrução
apresentado pelo assistente. O assistente requer esta fase para que o juiz verifique se a
decisão de arquivamento foi ou não bem tomada, sendo a finalidade última do
requerimento a submissão do arguido a julgamento. Para além disto, simultaneamente o
requerimento é também no fundo uma acusação, funciona na prática como aquela
acusação que o MP não fez.

Assim, o assistente pode requere a fase de instrução em caso de arquivamento, art. 287.º/1/b). Importa
fazer aqui duas precisões:
• O assistente apenas pode fazer este pedido se o procedimento não depender de acusação
particular, ou seja, se o crime for público ou semipúblico.
• Como vimos, também pode suceder que o MP acuse por uns factos e não por outros, caso em que
temos formalmente um despacho de acusação, mas com partes em que o MP não acusa. Assim, a
doutrina entende que o assistente pode também requerer a instrução no caso de despacho
de acusação, relativamente a factos não acusados pelo MP.

Este art. 287.º revela a posição do arguido e assistente enquanto sujeitos processuais.

4.2 Fase da instrução

Ø A fase de instrução é uma fase facultativa (art. 286.º/2), que visa a comprovação judicial da decisão
de deduzir acusação ou arquivar o inquérito (art. 286.º/1). É esta a finalidade da instrução, que por
isso não é uma fase de investigação. Cabe ao juiz de instrução dirigir a instrução, art. 288.º e 291.º.

Nos termos do art. 289.º, a instrução é composta pelo conjunto dos actos de instrução e, obrigatoriamente,
pelo debate instrutório. Este é o único acto obrigatório; de resto, é o juiz que decide se pratica ou não os
outros actos. O art. 284.º/4 diz que o juiz investiga autonomamente, no sentido de que não deve estar
limitado aos factos da acusação – pode ordenar diligências de prova para além destes.

A instrução termina, nos termos do art. 307.º, com a decisão instrutória. Esta decisão pode assumir as
mesmas feições da decisão com que termina o inquérito:
1. Despacho de pronúncia: é o equivalente material da acusação. Se o juiz conclui que há indícios
suficientes do arguido ter cometido o crime, profere este despacho e, tornando-se este definitivo,

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o arguido pronunciado será em regra submetido a julgamento. Ou seja, o processo segue para
julgamento.
2. Despacho de não pronúncia: é o equivalente material de arquivamento. Se o juiz proferir um
despacho de não pronúncia, e essa decisão se tornar efectiva, o processo extingue-se e não passa
da fase de instrução.

Ø Por causa das alterações legislativas, o fundamento da instrução enquanto fase de controlo foi
sendo diluído. Em matéria de publicidade, tal como o inquérito, a instrução podia ser secreta; desde
2007, esta é uma fase pública do processo. Outro ponto que sofreu alteração foi o de estender em demasia
o contraditório à fase de instrução, art. 289.º/2; e o regime da qualificação dos factos do julgamento
também foi estendido a esta fase (art. 303.º/5). Hoje, acaba por ser um ensaio prévio da audiência de
julgamento, sendo que MARIA JOÃO ANTUNES critica estas alterações, que desvirtuam a natureza de fase
de controlo da decisão do MP.

Nos termos do art. 303.º/3, uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento
para abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia do
processo em curso; sendo que o n.º 4 diz que a comunicação da alteração substancial dos factos ao MP
vale como denúncia. Assim, se surgirem factos novos, o juiz não os pode considerar, o que revela que
a instrução não é um suplemento da investigação, mas apenas uma fase de controlo. Porém, o
problema foi que em 2007 o legislador passou a afirmar isto apenas em relação aos facto que forem
autonomizáveis, que tenham a ver com a prática do crime; parece que, relativamente aos factos não
autonomizáveis, o juiz os pode considerar.

O juiz de instrução está vinculado à investigação do MP, para garantir uma total separação entre quem
investiga e acusa e quem procede ao julgamento. Isto é imposto pelo art. 219.º/1 da CRP. Esta é hoje uma
questão pacífica, mas nem sempre foi assim – estas normas foram a fiscalização preventiva (Ac. 7/87).
Argumentava-se com uma “burla de etiquetas” (VITAL MOREIRA), chamando inquérito aquilo que era
instrução; mas, pelo contrário, esta é a única forma se assegurar o que está previsto pela CRP. Um
papel de subordinação do MP ao juiz de instrução não seria compatível com o estatuto constitucional.
Hoje, já mais ninguém questiona que o inquérito seja da competência do MP.

Ø Uma questão muito discutida na jurisprudência e doutrina é a da recorribilidade da decisão


instrutória. Pode o arguido recorrer da pronúncia, ou o MP da não pronúncia? A questão é regulada, em
primeira linha, pelo art. 399.º, que estabelece o princípio geral da recorribilidade – se não houver
nenhuma indicação legal em contrário, pode interpor-se recurso. Há, porém, uma excepção, a do art.
310.º: a decisão instrutória é irrecorrível se houver uma coincidência entre a decisão do MP e a do
juiz. Está em causa o interesse da celeridade processual, devidamente suportado por uma convergência de

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posições de duas magistraturas. Esta questão já foi inúmeras vezes analisada pelo TC, e tem sempre
entendido que não há inconstitucionalidade.

Houve um acórdão recente (428/2014 do TC), que veio abrir uma brecha, entendendo que o arguido pode
recorrer da competência do juiz da instrução. Foi a primeira vez que o TC reconheceu uma
inconstitucionalidade no art. 310.º.

Para além disto, pode-se sempre recorrer de um despacho de não pronúncia, mesmo que a decisão
do MP tenha sido de arquivamento, i.e., mesmo havendo convergência de posições. Pode-se recorrer
pois não há aqui nenhuma celeridade processual a proteger. Também pode haver recurso do arguido
quando haja uma decisão de pronúncia subsequente a um despacho de arquivamento. Sendo admissível o
recurso, o tribunal competente para conhecer do recurso é o tribunal da Relação: qualquer que seja o
sentido da sua decisão, nunca é possível recorrer para o STJ, porque tal é impedido pelo art. 400.º/1/c).

4.3 Fase do julgamento

A fase do julgamento é a fase central do processo, sendo as outras fases designadas fases preliminares do
processo. Havendo uma acusação ou pronúncia, o processo pode passar para a fase do julgamento, i.e., o
julgamento é uma fase que só tem lugar se tiver havido acusação do MP e não tiver sido aberta instrução;
ou se, tendo sido requerida instrução, terminar com um despacho de pronúncia. Está regulada nos arts.
311.º a 380.º, é uma fase de contraditório pleno, desde logo por força do art. 32.º/5 da CRP. Em geral, a
audiência é pública e há uma contrariedade plena. Isto resulta especialmente do art. 327.º.

A fase do julgamento é mais ampla que a audiência – começa com o chamado despacho de saneamento
do processo, art. 311.º. De seguida, há lugar aos chamados actos preliminares; e depois à audiência de
discussão e julgamento, arts. 321.º a 364.º. A fase do julgamento termina com a sentença, que vem
regulada entre os arts. 365.º e 380.º.

O art. 283.º/3 diz que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a
aplicação ao arguido da sanção (al. b), entre outros elementos). Este é o cerne da acusação, a imputação
de factos, sendo que estes factos são o objecto de processo. A acusação é uma garantia do arguido,
porque fica a saber de que factos é que está acusado, e a partir daí pode organizar a sua defesa. Uma
defesa só pode ser cabalmente exequível se uma pessoa souber de que factos é que está a ser acusado. É
por isto que a acusação é uma peça-chave do processo, sendo em torno dela que o processo vai ser
desenvolvido.

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O julgamento tem a finalidade de apurar se aqueles factos devem ou não serem provados. Está prevista no
art. 311.º e segs., sendo a parte central a audiência de discussão e julgamento. Nesta, presidida pelo
tribunal, estão em geral presentes: o tribunal, o MP e o defensor sempre, podendo estar presente o
assistente, bem como o arguido (a presença deste não é obrigatória). A audiência visa a produção de
prova num contexto de contraditório pleno, devendo a acusação e a defesa estar em igualdade de armas.
Ao MP cabe sustentar a acusação, e ao arguido é dada, se quiser, a oportunidade de se defender. No
julgamento está em causa a produção de prova – o tribunal é confrontado com a prova apresentada pela
acusação e pela defesa, prova esta que incide sobre os factos.

No fim do julgamento, o tribunal profere a chamada sentença (tribunal singular) ou acórdão (tribunal
colectivo ou do júri).

A sentença é a decisão de fundo, na qual o tribunal vai tomar decisão sobre a responsabilidade ou não:
pode ser absolutória, se absolve, ou condenatória, se condena. A parte crucial da sentença é aquela em
que o tribunal toma decisão, com base na prova produzida diante de si, sobre quais os factos que
considera provados e os que considera não provados. É com base nos factos que o tribunal considera
como aprovados (art. 237.º, livre apreciação da prova) que decide se houve crime ou não.

Os factos sobre os quais se pode produzir prova constam do art. 239.º: factos da acusação, da contestação
e eventualmente factos instrumentais.

4.4 Fase do recurso

Consoante os casos, pode depois haver uma nova fase, do recurso (art. 399.º e segs.). Só tem lugar se
algum sujeito processual recorrer da sentença – se a sentença for condenatória, pode recorrer o arguido, o
MP (no interesse do arguido ou contra ele) ou o assistente. Havendo absolvição, o arguido não tem
interesse em agir, logo pode haver recurso do MP ou assistente.

Nos pontos 8 e 9, vamos ver mais alguns detalhes quanto à fase de julgamento e de recurso.

5. Meios processuais

5.1 Considerações introdutórias

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Incluem-se nos meios processuais os meios de obtenção de prova; os meios de prova; as medidas
cautelares e de polícia; as medidas de coacção; e as medidas de garantia patrimonial. Estes meios já
tiverem lugar nesta altura do processo, antes do julgamento.

Até onde é que podemos ir na obtenção dos meios de prova? É aqui que encontramos a maior tensão entre
a descoberta da verdade material e a protecção dos direitos. Também se coloca a questão de saber quem é
competente para quê.

É nesta matéria que o Código e legislação extravagante introduzem diferenciações em função do tipo de
criminalidade. O art. 1.º distingue certos tipos de criminalidade: por ex., o alargamento dos prazos de
prisão preventiva é diferente (são maiores na criminalidade altamente organizada, por ex.). MARIA JOÃO
ANTUNES diz que devemos averiguar em concreto se estamos perante um caso de criminalidade altamente
organizada, mostrando-se desfavorável às soluções diferenciadas.

O art. 125.º consagra o princípio da legalidade da prova, e o art. 126.º diz quais são os métodos proibidos
de prova – por ex., a utilização de métodos enganosos. COSTA ANDRADE insere a problemática dos
agentes infiltrados nesta proibição. Apesar de o nosso código ser garantístico, a legislação complementar,
distinguindo vários tipos de crime dentro da criminalidade organizada, não protege tanto os direitos dos
cidadãos. Para além disto, temos vários conceitos de criminalidade altamente organizada – a CRP diz que
nestes casos o julgamento é por tribunal de júri. MARIA JOÃO ANTUNES inclina-se para a
inconstitucionalidade de toda esta diferenciação.

5.1 Meios de prova

É preciso distinguir os meios de obtenção de prova dos meios de prova: os meios de prova são aquilo
que obtemos através dos meios de obtenção de prova; enquanto que os meios da obtenção da prova
são os meios processualmente admissíveis para obter os meios de prova. Estes são preferencialmente
usados no inquérito, sem prejuízo de o juiz, no julgamento, ordenar novos meios. Só os meios de prova
podem concorrer para a formação da convicção do juiz, sendo que existe uma grande confusão entre os
meios de obtenção e meios de prova – por ex., há muitos juízes que baseiam a sua decisão em escutas
telefónicas, que devem ser consideradas meios de obtenção. A partir da escuta, devemos ir buscar outros
meios. O art. 188.º/12 diz que os “suportes técnicos referentes a conversações não transcritas para meio
de prova...”, logo admite a contrario as escutas como meios de prova, fazendo confusão.

A lei elenca vários meios de prova:


• Prova testemunhal (art. 128.º e segs. e art. 348.º);
• Prova de declarações do arguido (art. 140.º e segs.);

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• Prova por declarações do assistente (art. 145.º);


• Prova por acareação (art. 146.º);
• Prova por reconhecimento (art. 147.º);
• Reconstituição do facto (art. 150.º);
• Prova pericial (art. 151.º);
• Prova documental (art. 164.º e segs.).

Vamos ver os meios de prova em mais detalhe a propósito do princípio da livre apreciação da prova.

5.2 Meios de obtenção de prova

Nos termos dos arts. 171.º e segs., incluem-se nos meios de obtenção de prova os exames, revistas,
buscas, apreensões e escutas telefónicas.

1) Exames: o art. 171.º prevê o exame de lugares, coisas ou pessoas. As pessoas podem ser sujeitas a
exames, art. 172.º; quando for para determinar as características das pessoas, há cautelas adicionais, e será
competente o juiz.

2) Revista: revista-se pessoas, enquanto que as buscas são buscas a locais. Está prevista no art. 174.º.

3) Busca: é ordenada busca quando se suspeitar quem um dado objecto está numa área reservada, art.
177.º Há na CRP uma protecção exigente da inviolabilidade do domicílio, e por isso é que as regras das
buscas gerais são diferentes da das buscas domiciliárias, sendo que estas têm de ser ordenadas por um
juiz. A busca domiciliária, na sequência do art. 34.º da CRP, não é permitida durante a noite (art. 177.º).
As exigências para a busca domiciliária são maiores, e isto levanta a questão de saber qual é o conceito
constitucional de domicílio.
• Para as pessoas colectivas, não vale o direito ao domicílio, não têm uma reserva de vida privada e
familiar.
• Já chegou também ao TC saber se um quarto de hotel é considerado domicílio – considerou-se
que sim.
• Num caso mais recente, colocou-se a questão de saber se a autorização do cônjuge chega para a
entrada no domicílio – considerou-se que não.
• O caso das alternadeiras e anotação de COSTA ANDRADE.
• A busca em escritório de advogado ou consultório médico também é polémica. Aqui está em
causa o segredo profissional, colocam-se as mesmas exigências que a busca domiciliária.

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4) Apreensões: existe a apreensão em geral (art. 178.º) e de correspondência (art. 179.º). As regras de
apreensão de objectos são diferentes das regras de apreensão da correspondência, pois em relação a esta
coloca-se a reserva de intimidade da vida privada. Temos regras mais exigentes também nos casos de
escritórios/consultórios (art. 180.º). No art. 181.º, prevêem-se as apreensões em estabelecimento bancário.

Tudo o que é apreendido na busca pode ser usado como prova? Houve um caso, que chegou ao TC, a
propósito de um diário encontrado numa busca. Esta é uma proibição de prova independente (não houve
ilegalidade na sua obtenção).

5) Escutas: estão previstas no art. 187.º como meios de obtenção de prova. Só podem ser autorizadas
durante o inquérito se houver razões para crer que a diligência é indispensável. Existe aqui um princípio
de subsidiariedade e necessidade, prevendo-se os casos em que pode haver escutas telefónicas – crimes
do catálogo, só relativamente a estes crimes pode ser ordenada as escutas telefónicas. Por via do art.
189.º, este regime é também aplicável às conversações/comunicações transmitidas por outro meio, por ex.
correio electrónico. Hoje, estes artigos são claros no sentido de as escutas abrangerem também a
localização celular e os números com que a pessoa comunica.

Nos meios processuais, estamos a falar de restrições a direitos, liberdades e garantias, logo um princípio
fundamental é o da reserva de lei.

5.3 Medidas cautelares e de polícia

Já vimos estas medidas a propósito dos órgãos de polícia criminal.

Uma medida cautelar muito importante é a detenção, art. 27.º e 28.º da CRP, e art. 254.º e segs.
Distingue-se da prisão preventiva, que é uma medida de coacção:
• A detenção tem uma duração máxima de 48 horas (art. 28.º da CRP); enquanto que a prisão
preventiva pode durar anos.
• Ao contrário da prisão preventiva, que tem de ser decidida por um juiz, pode ser feita por uma
autoridade judiciária, por um órgão de polícia criminal ou por qualquer cidadão em determinadas
circunstâncias.
• Para além disto, outra nota distintiva é a de que se pode deter qualquer pessoa, enquanto que
apenas se pode prender preventivamente os arguidos.

As finalidades da detenção estão previstas no art. 254.º/1:

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• Nos termos da al. a), uma pessoa pode ser detida para, no prazo de 48h, ser apresentado a
julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz para interrogatório judicial ou aplicação de
execução de uma medida de coacção.
• Nos termos da al. b), pode ser detida para assegurar a presença imediata (24h) perante a
autoridade judiciária em acto processual. É exemplo a testemunha que falte sistematicamente à
audiência de julgamento.

A detenção pode ser em flagrante delito ou fora de flagrante delito, sendo que a competência para a
detenção varia consoante se trate de uma ou de outra.
• Detenção em flagrante delito: pode deter qualquer autoridade judiciária ou entidade policial (art.
255.º/1/a)) ou qualquer pessoa, desde que uma das entidades referidas na al. a) não esteja presente
ou não seja chamada em tempo útil (al. b)).
• Detenção fora de flagrante delito: em princípio, é da competência do juiz, uma vez que contende
com os direitos fundamentais do arguido (art. 257.º).

5.4 Medidas de coacção

As medidas de coacção são meios processuais, estando reguladas nos arts. 181.º a 226.º; e 27.º/3/b) e 28.º
da CRP. As medidas de coação previstas no processual penal português estão previstas no art. 196.º a
202.º, estando enunciadas por ordem de gravidade (à medida que vamos avançando, encontramos
medidas cada vez mias graves)

Ø Tipos de medidas

1) Termo de identidade e residência, art. 196.º: é um documento no qual o arguido comunica ao


processo os seus dados pessoais e morada, ficando obrigado a informar o processo de quaisquer
alterações à sua residência ou quaisquer ausências superior a 5 dias. É uma medida de coacção em sentido
impróprio pois não tem de ser aplicada por um juiz, e a sua aplicação não está dependente da verificação
de qualquer exigência de natureza cautelar prevista no art. 204.º. Sempre que alguém é constituído
arguido, tem de prestar termo de identidade e residência, art. 61.º/3/c).

A lei prevê, no art. 197.º, a caução carcerária (distingue-se da caução económica, prevista no art. 227.º,
que se trata de uma medida de garantia patrimonial), que corresponde a uma garantia que visa garantir o
cumprimento futuro de deveres processuais pelo arguido, nomeadamente o dever de se apresentar perante
as autoridades policiais e processo quando for chamado e o dever de cumprir outras medidas de coacção.

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2) Obrigação de apresentação periódica, art. 198.º: obrigação de o arguido se apresentar, com certa
regularidade, perante o órgão de polícia criminal.

3) Suspensão do exercício de profissão, função, actividade ou direito, art. 199.º: o arguido pode ser
proibido de, durante determinado período, exercer uma determinada profissão, função ou actividade
(pública ou privada), ou poder paternal. O arguido fica inibido de certos direitos pessoais ou profissionais.

4) Proibição ou imposição de condutas, art. 200.º: podem ser as mais variadas.

5) Obrigação de permanência na habitação, art. 201.º: o arguido fica obrigado a permanecer num
determinado local, é uma medida privativa da liberdade. Em geral, é controlada através da vigilância
electrónica.

6) Prisão preventiva, art. 202.º do CPP e arts. 27.º/3/d) e 28.º da CRP: é uma medida de coacção
privativa da liberdade, cumprida num estabelecimento penitenciário. É a mais severa das medidas de
coação previstas no ordenamento português.

A privação, até ao trânsito em julgado, da liberdade tem como justificação a prisão preventiva: enquanto a
sentença não transitar em julgado, a pessoa só pode estar presa no âmbito da prisão preventiva. O
cumprimento da pena de prisão ditada pela sentença só se inicia após o trânsito em julgado (sendo
descontado o tempo cumprido em prisão preventiva, art. 80.º do CP).

Ø Princípios

Todas estas medidas afectam, de forma mais ou menos intensa, direitos fundamentais da pessoa a quem
são aplicadas, sendo aplicadas coactivamente pelo Estado. Este é um domínio altamente problemático,
uma vez que chocam aqui interesses e princípios contrapostos – a ideia de concordância prática tem aqui
um interesse prático significativo. O arguido presume-se inocente, logo o Estado está a limitar a liberdade
de alguém que não só não foi declarado culpado, mas que se presume inocente. Para além disto, existe a
necessidade de garantir interesses de ordem pública que o processo deve prosseguir e se prendem com
uma boa e efectiva realização da justiça. Temos assim dois interesses que colidem, sendo uma matéria
que é objecto de uma minuciosa regulação legal e sujeita a vários princípios, as mais das vezes de
natureza constitucional.

A aplicação de uma medida de coacção depende da verificação de pressupostos materiais, de ordem


geral e específica. Para além disto, temos uma outra vertente, de índole processual: a própria questão
da aplicação de uma medida de coacção aparece-nos num dado procedimento, é um incidente processual.

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Há questões específicas que recebem um tratamento processual próprio. Onde a questão assume maior
delicadeza é a fase do inquérito – há interesses específicos do inquérito, nomeadamente o de manter a
investigação sigilosa, que colidem com o interesse do arguido em defender-se da restrição da sua
liberdade.

Temos assim duas vertentes: uma substantiva e uma processual.

1) Vertente substantiva: no que diz respeito à vertente substantiva, esta é uma matéria
constitucionalmente conformada (nas normas que regulam as restrições aos DLG). Há princípios basilares
do Estado de Direito que incidem aqui de forma directa:

• Princípio da legalidade: para uma medida de coacção seja aplicada, tem de haver expressa
previsão legal, art. 191.º/1 (parte final). Esta exigência de legalidade implica também que uma
determinada medida de coacção só possa ser aplicada se os respectivos pressupostos estiverem
verificados.

• Princípio da proibição do excesso, art. 18.º/2: só se pode restringir a liberdade na medida do


necessário para proteger outros interesses, resultando daqui uma exigência constitucional de
necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.
o Necessidade: não pode restringir-se as liberdades das pessoas senão naqueles casos em
que haja determinadas necessidades de ordem cautelar que concretamente justifiquem
essa limitação. Na medida em que se presume inocente, o processo não deve ser um
instrumento de eventual punição futura. Tem de haver uma necessidade adicional,
nomeadamente as necessidades do art. 204.º, que tem de ser conjugado com o art.
191.º/1 e 193.º/1 – se nenhuma destas exigências estiver concretamente verificada, não
se pode aplicar medida de coacção, por mais grave que o crime seja. Note-se que estas
exigências não podem ser supostos em abstracto, têm de em concreto, e dadas as
efectivas circunstâncias que o caso revela, indiciar-se.
o Proporcionalidade (art. 193.º): as medidas têm de ser proporcionais.
o Adequação (art. 193.º): as medidas têm de ser adequadas à exigência processual em
causa.

• Exigência de reserva de juiz: as restrições dos direitos fundamentais são da exclusiva


competência de um juiz (art. 32.º/4 CRP e 194.º).

• Princípio da subsidiariedade: vale em relação às medidas mais graves (permanência na


habitação e prisão preventiva), e está previsto no art. 193.º/2: a prisão preventiva e a obrigação

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de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou


insuficientes as outras medidas.

• Princípio da precariedade: as medidas de coacção são precárias. Isto está expresso no art.
212.º/1/b), que diz que se as circunstâncias que justificarem a aplicação da medida de coacção
deixarem de existir, esta tem de ser revogada ou substituída por outra.

2) Vertente processual: qual a tramitação processual de que depende uma medida de coação? Existe um
procedimento próprio, uma espécie de mini processo, destinado a aplicar a medida de coacção. As
medidas de coacção são medidas processuais que afectam liberdades fundamentais, e nessa medida a sua
aplicação é sempre, qualquer que seja a fase processual, da competência do juiz. Esta matéria é
regulada, desde logo, no art. 194.º/1. Assim, durante o inquérito, é competente o juiz de instrução (art.
17.º e 268.º/1/b)); durante a fase da instrução, compete ao juiz de instrução; durante a fase do julgamento,
ao juiz do julgamento; durante o recurso, ao juiz do recurso.

As medidas de coacção são transversais a todo o processo, aplicam-se em qualquer fase, e vale quanto a
elas uma reserva do juiz, nos termos do art. 32.º/4 da CRP. São actos materialmente jurisdicionais. Seria
inconstitucional uma eventual norma legal que entregasse a uma entidade que não o juiz a competência
para aplicar uma medida de coacção.

Embora seja o juiz quem tem competência, a esta matéria não é indiferente saber quem é o titular o
processo no momento em que se sente a necessidade de aplicar uma medida desta natureza (art. 194.º):
• Durante a fase do inquérito, o juiz só aplica uma medida de coacção se tal for pedido pelo
MP.
• Findo o inquérito, durante a fase da instrução, julgamento e recurso, o juiz pode aplicar uma
medida de coacção oficiosamente, a pedido do MP ou do assistente, sendo necessário ouvir
sempre o MP.

Porque é que a lei faz esta distinção? Durante a fase do inquérito, quem dirige o processo é o MP – como
tal, a avaliação das exigências cautelares cabe-lhe em primeira linha. Depois do inquérito, quem dirige o
processo é o juiz, e como tal deve poder aplicar uma medida de coacção independentemente de qualquer
pedido do MP.

Note-se que só podem ser aplicadas a quem for arguido (art. 192.º).

Ø Aplicação de uma medida de coacção durante a fase do inquérito

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Onde as questões relacionadas com o procedimento de aplicação de uma medida de coacção assumem
maior complexidade é na fase do inquérito. Os problemas agravam-se, por várias razões: está em causa a
limitação das liberdades fundamentais do arguido num momento em que não há sequer acusação, e como
tal o arguido não tem uma percepção clara do objecto do processo e sente dificuldade acrescida em
defender-se. Por outro lado, existe a necessidade de compatibilizar os interesses da investigação em
descobrir a verdade material, desenvolvendo a investigação de forma secreta, com o interesse do arguido
de se defender.

Como é que as coisas se passam na fase do inquérito? Quando o MP pretende que ao arguido seja
aplicada uma medida de coacção, deve impulsionar um procedimento nesse sentido. A intervenção
do juiz na fase do inquérito é, por isso, a pedido do MP – as intervenções do juiz na fase do inquérito
são pontuais, este entra, toma uma específica decisão, e sai. Porque é que é o juiz?
• Estão em causa decisões que contendem com direitos fundamentais das pessoas, e só por isso já
seria exigível a sua intervenção.
• Mas também porque há aqui uma exigência acrescida de imparcialidade, é um terceiro que não
está comprometido com a investigação. O MP pode sobrevalorizar os interesses da investigação
em relação aos interesses do arguido. Intervém no sentido de verificar se os pressupostos de que
depende a restrição dos direitos fundamentais do arguido estão verificados, intervém aqui como
um juiz supra-partes. O juiz não é parceiro do MP, e só intervém porque este pede. Daí haver
uma querela muito grande no sentido de saber se o juiz pode aplicar uma medida mais grave do
que a pedida pelo MP, que a partir de 2013 passou a ser possível com base no art. 194.º/3. A que
título é que o pode fazer? Isto é muito discutível.

Como tal, a medida de coacção é da competência do juiz, sob promoção do MP, no contexto de um
interrogatório judicial, que segue a tramitação prevista no art. 141.º/4. O interrogatório é obrigatório,
art. 194.º. A audição do arguido visa dar-lhe a possibilidade de contraditório, de defesa.
• O MP manifesta a vontade de aplicar uma medida de coacção ao juiz de instrução, e como tal
requer que o arguido seja submetido a interrogatório.
• O arguido é chamado ao interrogatório, sendo que pode ser submetido a ele num estado de
liberdade, ou sob detenção (interrogatório judicial do indivíduo detido) – seja em flagrante delito
(art. 55.º e 56.º) ou fora dele.
• Estando perante o juiz, estão presentes o juiz de instrução, funcionário judicial, MP, arguido e seu
defensor. O MP deve comunicar ao juiz os factos que, no seu entendem conduzem à aplicação de
uma medida de coacção, e os elementos do processos que importam a imputação desses factos. O
juiz deve re-transmitir ao arguido os factos que segundo o MP levam à verificação dos indícios
do crime (tem o dever de comunicar esses factos) e pode, em regra, comunicar ao arguido quais

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são os elementos do processo que suportam essa indiciação. Art. 148.º/4 e 194.º/8 – o primeiro
vale, por remissão dos arts. 143.º, para todos os inquéritos.

Que informações devem ser dadas ao arguido?


• Em primeiro lugar, deve ser sempre informado dos factos que lhe são imputados. Esta informação
é obrigatória.
• Uma outra informação que pode ser dada é os elementos do processo, os meios de prova que
constam do processo.

Acerca das informações dadas ao arguido durante a fase do inquérito:


• O art. 141.º/4 distingue entre os factos e os elementos do processo. Quer a al. d) (factos), quer a
e) (elementos do processo), são consequência de uma jurisprudência do TC – Ac. 416/2003 e
outros. Para que alguém se defenda, tem de conhecer os elementos do processo, mas
essencialmente conhecer os factos. O TC veio dizer que, na comunicação dos factos, o juiz deve
partir da presunção de inocência e deve comunicar os factos com uma precisão tal que
permita a um presumível inocente ficar ciente da suspeita que sobre ele recai.
• Um outro problema que se coloca, e que é mais complexo, é o do conhecimento dos elementos
do processo. O processo forma a indiciação através de elementos de prova – normalmente, há da
parte do arguido o interesse em conhecer quais são esses elementos; e, mais do que isso, há o
interesse de conhecer o conteúdo desses meios (por ex., o que as testemunhas disseram). Aqui, a
lei confronta-se com dois interesses colidentes: por um lado, o interesse da investigação,
nomeadamente quando o processo corre em segredo de justiça, de que o material recolhido
permaneça preservado; e, por outro, o interesse do arguido, para se defender o melhor possível,
em conhecer esses elementos. O TC veio dizer que não é pelo facto de o processo estar em
segredo de justiça que o arguido deve ser privado de aceder ao processo. O legislador
acolheu isto na al. e): o juiz deve fazer um exercício de ponderação, avaliando se o acesso ao
processo (nos casos em que esteja em segredo de justiça) e a esses elementos é susceptível de pôr
em perigo a descoberta da verdade material e a integridade pessoal do ofendido, testemunhas, etc.
Se o juiz entender que esses perigos não existem, mesmo que esteja em segredo de justiça, o
arguido deve ter a possibilidade de conhecer os elementos, e até aceder directamente ao processo.

O juiz deve começar por informar o arguido dos factos e elementos do processo. Após isto, o arguido
presta declarações, se quiser, sobre os factos que segundo o MP podem justificar a aplicação da medida
de coacção, e faz um enquadramento dos elementos do processo. Ou seja, exerce o contraditório.

Feito este contraditório, o juiz profere um despacho sobre a aplicação da medida de coacção, nos
termos do art. 194.º/1 a 7, 9 e 10. Até 2013, a lei não permitia que o juiz aplicasse uma medida de

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coacção mais grave que aquela que o MP lhe pedisse, estava limitado ao pedido. Nesse ano, a lei foi
alterada, e agora o n.º 2 admite expressamente que o juiz aplique uma medida mais grave do que
aquela que foi requerida, se essa decisão de aplicação da medida de coacção se basear na al. a) ou c) do
art. 204.º. Se o perigo for o da al. b), então diz a lei que o juiz não pode aplicar medida de coacção mais
grave, sob pena de nulidade. A lei entende que, estando em causa um perigo da prova, quem conhece o
risco para a produção de prova é o MP.

Da decisão que o juiz tomar, seja ela no sentido de não aplicação, seja ela no sentido de aplicação, há
possibilidade de recurso para tribunal superior, nomeadamente para o da Relação. Se o juiz não
aplicar uma medida de coacção pretendida pelo MP, este pode recorrer nos termos do art. 399.º (Ac. de
fixação de jurisprudência). Se o juiz aplicar uma medida de coacção, o arguido pode recorrer para o
tribunal da Relação nos termos do art. 219.º.

O despacho de aplicação deve ser fundamentado; e, sendo aplicada uma prisão preventiva, existe um
especial dever de fundamentação, devendo o juiz explicitar as razões pelas quais entende que mais
nenhuma medida é adequada ou suficiente para prevenir o perigo em questão.

Aplicada a medida de coacção, o arguido tem o dever de a começar a cumprir de imediato, nos termos do
art. 61.º/3/d), mesmo que interponha recurso. Tratando-se de prisão preventiva ou obrigação de
permanência na habitação, há lugar a uma revisão periódica dos pressupostos de aplicação, art. 213.º.
Em geral, de 3 em 3 meses o juiz deve verificar se os pressupostos que estiveram na base da aplicação da
medida se mantêm – se sim, a medida mantém-se; se não, revoga-a ou substitui-a por uma menos grave.

5.5. Medidas de natureza patrimonial

Enquanto que as medidas de coacção são aplicadas quando houver exigências processuais de natureza
cautelar que as justifiquem, as medidas de garantia patrimonial são medidas preventivas e servem
para garantir que há dinheiro para pagar a multa, custas do processo ou qualquer dívida
relacionada com o crime (ex: indemnização ou outras obrigações civis).

São elas:
• O art. 227.º consagra caução económica, que é diferente da caução enquanto medida de coacção.
• O art. 228.º consagra o arresto preventivo de bens, para garantir o pagamento.

Vale o princípio da legalidade (só podem ser aplicadas as medidas previstas na lei) e os princípios da
necessidade, adequação e proporcionalidade (art. 193.º).

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Finalmente, só podem ser aplicadas a quem tiver sido constituído arguido (art. 192.º) e por um juiz (art.
194.º).

6. Princípios gerais relacionados com a prova

6.1 Princípio da investigação

Este princípio diz-nos que o juiz, em processo penal, tem o ónus de investigar e esclarecer o facto
submetido a julgamento, sendo que a actividade investigatória do tribunal não é limitada pelo material
de facto levado ao processo pelas partes. Isto resulta do art. 340.º, em geral, e dos arts. 154.º, 164.º, 174.º,
267.º, 288.º, 290.º, 354.º, etc. Nos termos do art. 340.º, o tribunal ordena, oficiosamente ou a
requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhes afigure necessário
à descoberta da verdade e da boa decisão a causa. Este princípio opõe-se ao princípio do dispositivo,
de contradição ou discussão, ou da verdade formal.

Não podemos, assim, dizer que o nosso processo penal tem uma estrutura acusatória simples, pois se
assim fosse o juiz teria uma intervenção passiva no processo. Falamos antes de uma estrutura acusatória
integrada por um princípio da investigação.

Tendo em conta este poder-dever de investigação judicial autónoma da verdade, compreende-se que não
existe, em processo penal, qualquer ónus probatório das partes, não vale o princípio da auto-
responsabilidade probatória das partes, como sucede no processo civil. Daí que se diga que em processo
penal está em causa, não a verdade formal, mas sim a verdade material, num duplo sentido: no sentido de
uma verdade subtraída ao comportamento processual da acusação e defesa; e ainda no sentido de uma
verdade judicial, prática, e processualmente válida.

Tem-se vindo a defender, nomeadamente FIGUEIREDO DIAS, que apesar de o princípio da investigação ser
essencial para a busca da verdade material, deve ser mobilizado pelo juiz com muita cautela, só devendo
ser convocado em última instância. O princípio da investigação tem um carácter subsidiário, o que se
reflecte no art. 348.º/5, a propósito da inquirição das testemunhas: as testemunhas são interrogadas por
que as indicou, sendo depois sujeitas a contra-interrogatório; os juízes e jurados formulam às testemunhas
as perguntas necessárias para o esclarecimento do depoimento prestado e para a boa decisão da causa.

6.2 Princípio da legalidade da prova

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Está previsto no art. 125.º, e diz-nos que apenas são admissíveis as provas que não forem proibidas
por lei. O art. 126.º do CPP e 32.º/8 da CRP diz-nos quais são os métodos proibidos de prova. Em
termos gerais, são nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção ou ofensa da integridade física
ou moral (art. 126.º/1), dando o n.º 2 exemplos de métodos proibidos (ex: polígrafo ou soro da verdade).
COSTA ANDRADE inclui aqui os agentes encobertos.

Qual a sanção? As provas obtidas contra a lei leva à nulidade da prova, não podendo estas ser utilizadas.
Porém, um aspecto singular do processo penal português é a de que, além da sanção da nulidade, temos
neste caso a sanção da proibição de valoração da prova. O art. 118.º diz que as violações à lei do
processo penal geram irregularidade; neste caso, temos uma nulidade e ainda uma proibição de prova.

Discute-se se a proibição da valoração se estende às provas consequenciais, por ex., uma pessoa
confessa que praticou o crime, mas também onde escondeu o cadáver ou arma do crime. Isto também
depende dos tempos – se numa época há uma preocupação maior com os direitos das pessoas, a proibição
estende-se às provas consequenciais. Assim, hoje temos uma tendência para a não valoração das provas
consequenciais; porém, pode ser discutido se se admite, por ex., no domínio da criminalidade grave.

6.3 Princípio da livre apreciação da prova

Está em causa saber se, quando uma prova é produzida, a entidade competente aprecia a prova através de
critérios legais ou da sua livre convicção. A apreciação da prova pode ter lugar na base de regras legais
predeterminantes do valor a atribuir-lhe (sistema da prova legal), ou na base da livre valoração do juiz e
da sua convicção pessoal (sistema da prova livre).

O nosso sistema optou pelo princípio da livre apreciação e não pelo princípio da prova legal, como
resulta do art. 127.º. Porém, quando dizemos que o juiz aprecia a prova de acordo com a sua livre
convicção, não estamos com isto a admitir uma apreciação da prova subjectiva e arbitrária: pelo
contrário, deve prosseguir as finalidades da descoberta da verdade material e tem de ser sempre
objectivável. Esta é uma “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade
material –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, redutível a critérios objectivos e,
portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Por outro lado, se é verdade que a convicção do
juiz deve ser pessoal, é “em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto
capaz de impor-se aos outros”. Esta convicção existe quando “o tribunal tenha logrado convencer-se da
verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.

O facto de a convicção formada ter de ser objectivável está expresso no art. 365.º, que estabelece regras
sobre a deliberação: no n.º 3, diz que cada juiz e cada jurado expõe as razões da sua convicção. Também

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está expresso no art. 374.º, que versa sobre os requisitos da sentença: é necessário expor os motivos de
facto e direito (n.º 3), sob pena de a sentença ser nula. Se a sentença se limitar a dar os factos como
provados, sem a fundamentação da decisão, tal acarreta a nulidade da decisão (art. 379.º).

Ø Em relação a cada meio de prova

Temos de fazer algumas precisões quanto a cada meio de prova, sendo que encontramos limitações e
mesmo excepções a este princípio.

1) Prova testemunhal (art. 128.º e segs.): o princípio vale sem quaisquer limitações, com excepção
do testemunho de ouvir dizer (art. 129.º). Nos termos do art. 128.º, a testemunha é inquirida sobre
factos de que possua conhecimento directo, já o depoimento indirecto (depoimento de factos que o
vizinho viu e contou) não pode ser valorado. Para além disto, também não é admissível, por depoimento,
a reprodução de vozes de opiniões públicas.

Nos termos do art. 131.º, existe o dever de prestar depoimento dizendo a verdade, sob pena de incorrer
em responsabilidade. Porém, há casos em que é possível recusar prestar depoimento, no caso em que a
testemunha tenha uma relação especial com o arguido (art. 134.º). Por outro lado, o dever de testemunhar
e falar com verdade pode ser recusado sob invocação da violação do segredo profissional (art. 135.º). Isto
não é absoluto, pois por ordem do tribunal superior aquele que recusa o depoimento pode ser obrigado a
prestá-lo. Apenas o segredo religioso é absoluto, nos termos do n.º 5.

2) Declarações do arguido: relativamente ao arguido, devemos distinguir as declarações do arguido


quanto à sua identidade e antecedentes criminais, e as declarações do arguido relativamente aos factos
que lhe são imputáveis.

2.1) Regime das declarações do arguido relativamente à sua identidade e antecedentes criminais: o
art. 61.º/3/b) diz que recai sobre o arguido o dever de responder com verdade às perguntas feitas sobre a
sua identidade. O mesmo resulta do art. 342.º/2, sendo que o arguido pode incorrer em responsabilidade
penal; e do art. 141.º/3. Houve uma evolução legislativa, e hoje o arguido não é perguntado sobre os
antecedentes criminais – começou a haver um discurso excessivo no sentido de que perguntar ao arguido
pelos seus antecedentes poderia reverter contra ele.

2.2) Regime das declarações do arguido relativamente aos factos que lhe são imputáveis: aqui, temos
de distinguir consoante este negue os factos que lhe são imputados, os confesse, ou não diga nada sobre
eles.

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Ø Se o arguido negar os factos que lhe são imputados, esta negação fica sujeita ao princípio da livre
apreciação.

Ø Se o arguido confessar, o art. 344.º regula a confissão em audiência de julgamento e distingue


consoante estiver em causa pequena e média criminalidade ou criminalidade grave. No âmbito da
pequena e média criminalidade (crime punível com pena inferior a 5 anos), se houver uma confissão
integral e sem reservas, temos as 3 consequências do n.º 2:
• Renúncia à produção da prova relativa aos fatos imputados e consideração destes como provados;
• Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros
motivos, à determinação da sanção aplicável;
• Redução da taxa de justiça em metade.

Assim, se houver uma confissão livre, integral e sem reservas do arguido por crime punível até 5
anos de prisão, os factos são dados como provados, o que constitui uma limitação do princípio da
livre apreciação. Porém, se o juiz suspeitar do carácter livre da confissão, nos termos do n.º 3, al. b), não
se verificam os efeitos do n.º 2. Assim, de certa forma ainda vale aqui de certa forma o princípio da livre
apreciação.

Já se estiver em causa um crime punível com pena de prisão superior a 5 anos, vale inteiramente o
princípio da livre apreciação da prova (n.º 3, al. c) e n.º 4).

Ø Se o arguido se remeter ao silêncio, temos aqui uma verdadeira limitação à livre apreciação, na
medida em que o arguido tem o direito ao silêncio e este nunca pode desfavorecer o arguido (art.
61.º/1/c), 343.º/1 e 345.º). Este direito extrai-se do direito à presunção de inocência até ao trânsito em
julgado da condenação (art. 32.º/2 da CRP), sendo que o arguido não pode nem ser considerado culpado,
nem ver a sua responsabilidade agravada. O silêncio pode ser total ou parcial.

Note-se que o arguido também não tem nenhum dever de falar com verdade, não podendo ser
responsabilizado criminalmente se não o fizer. O ordenamento jurídico português não vê o arguido como
alguém com o dever de colaborar com a administração da justiça, ao contrário do que sucede com o perito
e testemunhas.

3) Prova pericial (art. 151.º e segs.): a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos
factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (art. 151.º). O nosso sistema de
prova pericial é um sistema de perícia oficial, ou seja, o perito é nomeado pelo tribunal (ao contrário do
que sucede no processo civil, em que cada parte nomeia o seu perito). As partes, nos termos do art. 155.º,

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apenas podem nomear consultores técnicos, que podem acompanhar a realização da perícia mas não se
substituem ao perito.

Esta prova constitui efectivamente um desvio à livre apreciação da prova, como resulta do art. 163.º: o
juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do
julgador. Há aqui um critério legal de valoração da prova pericial, o juiz não pode livremente
valorar a perícia. Note-se que se diz que se presume subtraído à apreciação do juiz – pode suceder,
apesar de ser raro, que o juiz seja também um perito e decida em sentido contrário (n.º 2). Estas são
situações excepcionais.

4) Prova documental (art. 164.º): vale inteiramente o princípio da livre apreciação da prova, mesmo
em relação a documentos autênticos ou autenticados. Com efeito, o art. 169.º diz que se consideram
provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade
do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. O tribunal
pode declarar um documento junto aos autos como falso (art. 170.º).

6.4 Princípio in dubio pro reo

Em processo ao penal, ao contrário do que sucede em processo civil, “compete em último termo ao juiz,
oficiosamente, o dever de instruir e esclarecer o facto sujeito a julgamento: não existe aqui, por
conseguinte, qualquer verdadeiro ónus da prova que recaia sobre o acusador ou o arguido”.

Este princípio diz-nos que, se o juiz ficar numa situação de dúvida em relação à prova, se ficar
aquém de uma dúvida razoável, esta dúvida tem de ser valorada a favor do arguido. A dúvida
conduz à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao
arguido. Não encontramos nenhuma norma que consagre expressamente este princípio; porém, pode
extrair-se do art. 32.º/2 da CRP, que consagra o direito à presunção de inocência.

Note-se que este princípio só vale para as dúvidas que o juiz tenha em relação à matéria de facto, e
não em relação a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Havendo dúvidas em relação à
matéria de direito, a única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao
arguido, mas sim aquele que se reputar juridicamente mais exacto.

Quando houver uma violação deste princípio, já temos uma questão de direito, que cabe no âmbito de
competência do STJ (que só conhece de questões de direito). O STJ já se pronunciou erradamente no
sentido de excluir a violação do princípio in dubio pro reo da sua esfera de competências.

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7. Princípios gerais da forma

7.1 Princípio da publicidade

O art. 86.º/6 diz-nos que a publicidade do processo significa 3 coisas:


• Al. a): assistência, pelo público em geral, à realização dos actos processuais (ao debate instrutório
e à audiência de discussão e julgamento).
• Al. b): narração dos actos processuais ou reprodução dos seus termos pelos meios de
comunicação social.
• Al. c): acesso ao processo (consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de
quaisquer partes dele).

Anteriormente, só a fase do julgamento era obrigatoriamente pública: nos termos do art. 206.º da
CRP, as audiências dos tribunais são sempre públicas, salvo se o tribunal decida em contrário. Daqui se
retira que a CRP só exige a publicidade na fase do julgamento. Hoje, o princípio da publicidade vale
em todo o processo, art. 86.º/1: o processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as
excepções da lei. Pode, porém, haver restrições à publicidade do processo (art. 321.º e 88.º/2/c)), sendo
que o momento da sentença é sempre público.

Em regra, o processo é do domínio público, só excepcionalmente está em segredo de justiça. O que é que
pode justificar o segredo de justiça? Há aqui dois valores fundamentais:
• Uma razão é o bom nome da pessoa acusada.
• Para além disto, podemos dizer que “o segredo é a alma do negócio”: é importante para a
investigação que esta não seja pública.

MARIA JOÃO ANTUNES critica a alteração legislativa no sentido de estender a publicidade a todo o
processo, havendo razões fortes que justificam o secretismo do processo penal.

7.2 Princípio da oralidade e imediação

O princípio da oralidade determina que a decisão tomada pelo juiz seja proferida com base numa
audiência de discussão oral da matéria a considerar. Este princípio foi consagrado no processo penal
reformado, de índole acusatória, típico do séc. XX, uma vez que se entende que o sistema da oralidade da
audiência do julgamento é mais favorável à obtenção de uma justa decisão. Resulta hoje de vários artigos

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que supõem uma actividade processual exercida na presença dos participantes, e por isso oralmente (arts.
96.º, 298.º, 348.º, 350.º, 355.º, 360.º e 423.º). Só as provas produzidas e analisadas em audiência é que
valem para formar a convicção do juiz – por ex., o depoimento das testemunhas tem de ser sempre
prestado oralmente (salvo certas excepções).

Note-se que a oralidade não significa a exclusão da escrita, no sentido de proibição de que os actos que
tenham lugar oralmente fiquem registados.

Já o princípio da imediação está intrinsecamente ligado ao princípio da oralidade, e define-se como “a


relação de proximidade comunicante entre o tribunal os participantes no processo, de tal modo que
aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão”. Na
maior partes dos casos, não é possível separar o princípio da oralidade e imediação; porém, na prova
documental, por ex., temos imediação mas não oralidade.

O art. 357.º trata da reprodução ou leitura permitida de declarações anteriormente feitas do arguido. Se o
arguido confessar mas, na audiência de julgamento, se remeter ao silêncio, pode o juiz considerar a sua
declaração anterior? Isto só é possível nos casos elencados no art. 357.º/1.

Em relação à adoção destes princípios, F. DIAS afirma que “só estes princípios, com efeito, permitem o
indispensável contacto vivo e imediato com o arguido”, “avaliar o mais concretamente possível da
credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”, e “uma plena audiência destes
mesmos participantes”.

7.3 Princípio da concentração

O princípio da concentração exige uma prossecução unitária e continuada do processo. Podemos


identificar duas dimensões:
1. Concentração espacial: a audiência de julgamento deve começar e acabar no mesmo sítio.
2. Concentração temporal: o processo penal deve prosseguir de forma concentrada no tempo – só
se retira vantagens de haver um princípio da imediação se houver uma concentração temporal.
Esta dimensão está consagrada no art. 328.º, que recentemente teve uma nova redação:
a. Antes, o adiamento da audiência de julgamento não podia exceder 30 dias (por causa da
imediação). Caso excedesse este prazo, a prova que já tinha sido produzida tinha de ser
produzida de novo (perda de eficácia da prova).
b. Hoje, ainda se diz que o adiamento não pode exceder 30 dias, mas caso isso aconteça a
prova não perde eficácia. Isto veio abalar o princípio da imediação.

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8. Fase do julgamento

8.1 Alteração da qualificação jurídica dos factos e alteração, substancial ou não substancial, dos factos

Um dos corolários do princípio da acusação é o de que a acusação define o objecto do processo – efeito
de vinculação temática da acusação.

Porém, não podemos dizer sem mais que é a acusação do MP que define os poderes de cognição do
juiz:
• Desde logo, podemos chegar a julgamento por uma acusação do assistente (crimes particulares).
• Para além disto, pode haver julgamento sem acusação, quando há arquivamento, o assistente
requer a abertura de instrução e o juiz de instrução profere despacho de pronúncia. Nestes casos,
é o despacho de pronúncia que delimita o âmbito de poderes de cognição do juiz.
• Finalmente, podemos chegar a julgamento com um despacho de acusação e um despacho de
pronúncia, e neste caso são estas duas peças a delimitar o objecto do processo.

Note-se que também o juiz de instrução está limitado nos seus poderes de cognição – não pode ir para
além da acusação e do requerimento para abertura de instrução.

Temos de ver aqui dois regimes – o regime de alteração dos factos e de alteração da qualificação jurídica
dos factos.

1) Alteração da qualificação jurídica: por ex., o MP acusa o arguido de homicídio qualificado por ter
havido frieza de ânimo (art. 132.º/j)); porém, na fase de julgamento, os factos são os mesmos mas o juiz
entende que a frieza de ânimo não demonstra especial perigosidade, subsumindo os factos no homicídio
simples.

O CPP de 87, na sua versão inicial, partia do princípio da liberdade quanto à qualificação jurídica dos
factos, até porque a magistratura judicial é independente da do MP. Porém, o TC começou a entender que
isto punha em causa os direitos de defesa do arguido, o que MARIA JOÃO ANTUNES critica.

Hoje, o juiz pode alterar a qualificação jurídica dos factos, mas tem de notificar o arguido e
conceder-lhe um prazo para a preparação da defesa (art. 358.º/3, vale para a fase de julgamento).
Se isto ocorrer durante a fase de instrução, vale o art. 303.º/3 (dispõe o mesmo).

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2) Alteração dos factos: ocorre uma alteração dos factos quando surge um facto novo. Por ex., o MP
acusa o arguido por crime de furto, e na audiência de julgamento faz-se prova de que houve violência
sobre a vítima. A distinção entre a alteração dos factos e a alteração da qualificação jurídica pode não ser
fácil de fazer, sendo que temos uma alteração dos factos quando surge um facto novo no processo. Por
outro lado, muitas vezes a alteração dos factos leva a uma alteração da qualificação jurídica – no exemplo
dado, o crime passa-se a subsumir no tipo legal de roubo.

Temos de distinguir se a alteração é ou não substancial. Nos termos do art.º 1.º/f), a alteração
substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou
a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. O regime da alteração substancial e não
substancial é diferente.

2.1) Alteração substancial:


• Final do inquérito: nos crimes públicos e semipúblicos, vale o disposto no art. 284.º/1 e
311.º/2/b). Nos termos destes artigos, o assistente, com a sua acusação, não pode provocar a
alteração do objecto do processo, não pode juntar acusação por factos que importem a alteração
substancial do processo. Para os crimes particulares em sentido estrito, vale o art. 285.º/4 e
311.º/2/b): o MP também não pode acusar por factos que importem uma alteração substancial da
acusação particular.
• Instrução: vale o art. 303.º/3 e 4, segundo o qual uma alteração substancial dos factos
descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada
em conta pelo tribunal (n.º 3). O juiz comunica estes novos factos ao MP, o que vale como
denúncia (n.º 4) – isto se os factos forem autonomizáveis (por ex., o juiz descobre que cometeu
um outro homicídio). A consequência da violação destes artigos é a do art. 309.º, nulidade da
decisão instrutória.
• Julgamento: vale o art. 359.º, que diz que o juiz pode tomar em conta a alteração substancial
dos factos para efeitos de condenação (n.º 1); porém, exceptua-se o caso em que haja acordo
do MP, do arguido e do assistente (n.º 3). Isto percebe-se por motivos de economia processual.
Se houver violação desta regra, a consequência é a nulidade da sentença (art. 379.º/1/b)).

2.2) Alteração não substancial:


• Final do inquérito: tratando-se de uma alteração não substancial, nos crimes públicos e semi-
públicos o assistente pode deduzir acusação por factos que impliquem uma alteração não
substancial dos factos acusados pelo MP (art. 284.º/1); no caso dos crimes particulares, o mesmo
vale em relação ao MP (art. 285.º/4).
• Instrução: o juiz comunica o defensor da alteração, interroga o arguido e concede um prazo para
que este se defenda quanto aos novos factos (art. 303.º/1).

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• Julgamento: vale o art. 358.º/1 e 2. O presidente do tribunal comunica a alteração ao arguido e


concede-lhe o tempo para a preparação da defesa, salvo quando a alteração tenha derivado de
factos alegados pela defesa.

8.2 Competência do tribunal

Uma questão importante é a de saber qual o tribunal competente para proceder ao julgamento, sendo
que iremos apenas ver a competência material. A questão da competência deve ser decidida aquando do
saneamento do processo, sendo definida em função dos factos da pronúncia e da natureza dos crimes.
Esta matéria vem regulada nos arts. 13.º a 16.º e na Lei 62/2013. Estão previstas 3 espécies de tribunais:
1. Tribunal do júri, art. 13.º;
2. Tribunal colectivo, art. 14.º;
3. Tribunal singular, art. 16.º.

A matéria da competência conhece uma regulação legal que visa a observância do princípio do juiz
natural ou juiz legal, que está consagrado no art. 32.º/9 da CRP. Este princípio do juiz legal estabelece
que a definição do tribunal competente deve resultar de uma regulação legal prévia, o tribunal não pode
ser escolhido ad hoc. Deste modo, previnem-se manipulações no sentido da escolha do tribunal, evitando-
se também o desaforamento.

Quanto à espécie do tribunal, existem métodos que podem ser usados pela lei no sentido da definição da
competência.
• Temos o método da atribuição abstracta da competência, nomeadamente em função ou do tipo de
crime em apreço, ou da pena máxima aplicada ao crime.
• Temos também o método da definição concreta da competência, art. 16.º/3. O tribunal
competente é determinado em função da pena concreta que previsivelmente, e de acordo com o
MP, deverá ser aplicada. Este é um método excepcional.

Há aqui vários factores a ter em conta:


• Por um lado, favorecer a qualidade do julgamento e da decisão, acompanhado da ideia de que, em
princípio, os tribunais colegiais dão mais garantias do que o tribunal singular. Nessa medida, há
uma tendência de reservar para os crimes mais graves e puníveis com penas mais graves tribunais
colegiais.
• Por outro lado, temos o interesse da celeridade, da economia processual e da mobilização de
recursos: o julgamento no tribunal colegial implica maiores recursos humanos e torna mais difícil
o agendamento da audiência, prejudicando a celeridade. Assim, entregam-se os casos menos
graves a tribunais singulares.

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• Em matéria de tribunal do júri, o art. 207.º da CRP prevê que este tribunal intervém no
julgamento nos casos mais graves. Temos aqui uma indicação constitucional que o legislador tem
de respeitar.

Composição:
• O tribunal do júri está regulado no art. 13.º e no DL 387.º-A de 87, sendo formado por 3 juízes de
direito, 4 jurados efectivos e 4 suplentes.
• O tribunal colectivo é composto por 3 juízes de direito, normalmente mais experientes.
• O tribunal singular é composto por um único juiz.

1) Tribunal do júri: o art. 13.º defere competência ao tribunal do júri em dois tipos de casos:
• Para os crimes previstos no art. 13.º/1.
• Em função da pena máxima aplicável: pode intervir quando a pena máxima seja superior a 8
anos.

Só há intervenção do tribunal do júri se algum sujeito processual o requerer: na prática, esta


intervenção é muito pouco frequente, pois existe uma certa desconfiança em relação aos jurados. Por
outro lado, o tribunal do júri português, de acordo com o art. 2.º/3 do DL 387.º-A, intervém nas questões
de direito e da sanção: logo, os jurados pronunciam-se sobre isto, o que é gerador de desconfiança (os
jurados estão em maioria).

2) Tribunal colectivo: intervém nos casos do art. 14.º.


• São competentes para os casos do art. 14.º/1.
• Sempre que se trate de um crime doloso contra à vida, independentemente da pena aplicável, o
tribunal competente é o colectivo (art. 14.º/2/a)).
• Além disso, integra a competência do tribunal colectivo os casos em que estejam em causa crimes
que, não cabendo ao tribunal singular (art. 16.º/2/a) e 16.º/3), respeitarem a crimes cuja pena
máxima seja superior a 5 anos de prisão – art. 14.º/2/b).

A 2ª parte do art. 14.º/2/b) vale para o caso de concurso de crimes: o tribunal é competente quando das
regras do concurso resulte a possibilidade de aplicação de uma pena única superior a 5 anos. Isto mesmo
que nenhuma das penas abstractamente aplicáveis a nenhum dos crimes em concurso seja superior a 5
anos. Tem de se conciliar com o art. 77.º: se for admissível a aplicação de uma pena superior a 5 anos, é
competente o tribunal colectivo.

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3) Tribunal singular: tem competência para julgar todos os outros processos, i.e., têm uma competência
residual. Além desses casos, o art. 16.º/2 diz que compete julgar:
• Os processos que respeitem aos crimes contra a autoridade pública (art. 347.º e segs.), mesmo que
puníveis com uma pena superior a 5 anos.
• Os crimes cuja pena máxima seja igual ou inferior a 5 anos.

O art. 16.º/3 (oral) diz que compete ainda o julgamento dos crimes do art. 14.º/2/b), quando o MP na
acusação ou requerimento entender que não deve ser aplicada em concreto pena de prisão superior
a 5 anos. Esta norma adopta o critério de definição concreta da competência (ao contrário de todos os
outros casos que vimos), e veio permitir, por razões de celeridade e economia processual, que quando o
MP entenda fundadamente que no caso concreto e em função dos critérios de determinação da pena não
deve ser aplicada uma pena superior a 5 anos, o tribunal competente é do singular. Esta norma permite
que o processo, à partida da competência do tribunal colectivo (pena máxima aplicável superior a 5 anos),
seja desviado para o tribunal singular. Isto não pode ser arbitrário, baseia-se numa apreciação do MP no
sentido de verificar se, em face das circunstâncias do caso e da personalidade do agente (exigências
preventivas e culpa) que já foi possível avaliar, e à luz dos critérios gerais de determinação da pena do art.
71.º, é previsível que o agente venha a ser punido com uma pena inferior a 5 anos. O MP fundamenta isto
no despacho de acusação e encaminha o processo para o tribunal singular. Note-se que esta faculdade só
vale para os casos do art. 14.º/2/d), logo exclui os casos de crimes dolosos contra a vida.

Se o MP enveredar por esta via, então o art. 16.º/4 diz que não pode o tribunal singular aplicar pena de
prisão superior a 5 anos. O tribunal singular passa a estar vinculado a uma pena máxima de 5 anos. Já
houve parte da jurisprudência que se insurgiu contra este limite, pois seria o MP a limitar a pena; o TC
nunca considerou esta norma inconstitucional. Temos aqui a ideia de que o MP representa o interesse
primitivo do Estado. Se o MP fundamentar, no despacho de acusação, não se pode fazer nada. Há autores
que defendem que o superior hierárquico pode ter alguma coisa a dizer quanto à fundamentação.

8.3 Presença do arguido na audiência

É admissível o julgamento na ausência do arguido? O CPP consagra a regra da obrigatoriedade da


presença do arguido na audiência de julgamento – nos termos do art. 332.º, o arguido tem o dever
de comparecer ao julgamento. Isto veio na sequência de uma decisão do TC a propósito do art. 394.º/3
do Código de Justiça Militar, que veio declarar inconstitucional esta norma na parte em que permitia um
julgamento sem a presença do réu. Teve aqui muita influência a doutrina de EDUARDO CORREIA, que veio
defender que os arguidos têm o direito de estar presentes na audiência de julgamento.

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Nesta linha, o CPP prevê um regime rigoroso em relação às consequências da falta do arguido: as faltas
podem ser justificadas por atestado médico (art. 117.º); ou injustificadas, sendo que as consequências da
falta injustificada podem ser variadas, como a detenção (art. 116.º) ou a declaração de contumácia – é
uma espécie de morte civil, é caracterizada pela compressão da capacidade negocial do arguido (arts.
335.º e 337.º).

Porém, constatou-se que este sistema não resultou, uma vez que era muito fácil justificar a ausência, o
que levava a um adiamento sucessivo das audiências, e as medidas previstas para as faltas injustificadas
eram insuficientes e ineficazes – nomeadamente a declaração de contumácia, cujo efeito se limitava
praticamente à publicação do respectivo despacho no Diário da República.

Assim, com a Revisão de 98, veio conferir-se à declaração de contumácia um carácter meramente
residual, e alargou-se o número de casos em que a audiência podia ter lugar sem a presença sem o
arguido. Esta solução foi permitida pela CRP, que com a Revisão de 97 acrescentou o art. 32.º/6, que diz
que a lei define os casos em que pode ser dispensada a presença do arguido nos actos processuais,
incluindo a audiência de julgamento. Assim, deixou de se questionar a constitucionalidade dos
julgamentos na ausência dos arguidos.

Actualmente, a regra da obrigatoriedade da presença do arguido no julgamento está consagrada o


art. 332.º. Como decorre a tramitação até ao julgamento?
• O processo chega ao tribunal e é marcado julgamento;
• Marcado o julgamento, os serviços do tribunal devem notificar o arguido e o seu defensor nos
termos do art. 313.º/2 e 3. O arguido só pode ser julgado tendo sido regularmente notificado.
• Tendo sido o cidadão notificado de que vai ser julgado, no dia do julgamento e à hora marcada, o
funcionário judicial faz a chamada dos envolvidos no processo. Se o arguido não estiver presente,
não pode ser julgado.

Porém, a regra do art. 332.º tem excepções, art. 334.º:


• Ao processo cabe a forma de processo sumaríssimo mas foi reenviado para a forma comum, não
tendo o arguido sido notificado do despacho que designa dia da audiência ou tendo faltado
injustificadamente (n.º 1). Está em causa a pequena criminalidade (art. 392.º).
• O arguido requer ou consente que a audiência tenha lugar na sua ausência (n.º 2). Isto revela a
existência de um direito a estar presente na audiência, a que o arguido pode renunciar.

Para além disto, o juiz pode sempre decidir que a presença do arguido é indispensável à descoberta da
verdade material (art. 333.º). A audiência pode ser adiada nos termos do art. 312.º e 313.º. Assim, há 2
pressupostos para que o arguido possa ser julgado na ausência:

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1. Regularidade da notificação;
2. Não absoluta indispensabilidade do arguido para a descoberta da verdade material.

Para além destes casos, o arguido pode ainda ser julgado sem estar presente, quer tenha ou não
justificado a falta, se tiver prestado termo de identidade e residência (art. 196.º, 333.º, 334.º e 380.º-
A).

A declaração de contumácia subsiste no CPP, ainda que com carácter meramente residual: abrange
apenas aqueles arguidos que, não tendo prestado termo de identidade e residência, não foi possível
notificar do despacho que designa de dia de audiência ou deter ou prender preventivamente (art. 335.º).

9. Recursos

Os recursos estão previstos no art. 399.º e segs. e podem ser ordinários ou extraordinários: os recursos
ordinários

Têm legitimidade para interpor recurso (art. 401.º):


• O arguido;
• O MP;
• O assistente.

O direito ao recurso é um direito constitucionalmente consagrado, fazendo parte das garantias do arguido
nos termos do art. 32.º/1 da CRP. Já no que toca ao direito ao recurso do MP ou assistente, este é
garantido pelo direito de acesso à justiça (art. 20.º CRP) – salvo que o MP interponha recurso no
exclusivo interesse do arguido (art. 401.º/1/a) e 53.º/2/d)), em que o parâmetro constitucional volta a ser o
art. 32.º.

Nos termos do art. 427.º, exceptuado os casos em que há recurso directo para o Supremo (art. 332.º/1/c)),
o recurso da decisão proferida por tribunal de 1ª instância interpõe-se para a Relação. O princípio
geral é o da recorribilidade de todas as decisões, art. 399.º.

O entendimento do TC é o de que a CRP não impõe um duplo grau de recurso (ou triplo grau de
jurisdição), existindo uma margem de liberdade do legislador na limitação dos graus de recurso. Porém,
em 98, o legislador introduziu o duplo grau de recurso – em relação às decisões do tribunal colectivo e
em matéria de facto, pode-se recorrer para a Relação e desta decisão pode ser ainda interposto
recurso para o Supremo (art. 400.º/1/f), 427.º, 428.º/1 e 432.º/b)).

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Assim, à partida existe um duplo grau de recurso, mas este princípio conhece várias excepções (art.
400.º, exclui em muitos casos o recurso da Relação para o Supremo), e vem sendo objecto de uma
interpretação restritiva dos tribunais de recurso. Pelo que, em geral, vale apenas um único grau de
recurso.

O art. 432.º/c) diz-nos que pode haver recurso per saltum para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo
tribunal do júri ou colectivo que aplique pena de prisão superior a 5 anos, visando-se exclusivamente o
reexame da matéria de direito. Assim, é necessário que se verifiquem 2 requisitos:
• Decisão de tribunal de júri ou colectivo que aplique pena de prisão superior a 5 anos.
• Que esse recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito.

O STJ decide apenas os casos mais graves, e é um tribunal de revista, que conhece apenas de matéria de
direito (com a ressalva do art. 410.º/2 e 3). Já os tribunais da relação conhecem de facto e de direito (art.
428.º). Nos casos do art. 410.º/2 e 3, temos um recurso de revista alargado.

O art. 400.º determina os casos de irrecorribilidade.


• Al d): não é permitido o recurso de acórdãos absolutórios proferidos em recurso pelas
relações, salvo no caso de decisão condenatória em 1ª instância em pena de prisão superior
a 5 anos. Assim, se o tribunal de relação absolve, e o de 1ª instância também absolveu ou
condenou o arguido em pena inferior a 5 anos, não há recurso para o STJ. Temos aqui uma
grande limitação ao duplo grau de recurso.
• Al. e): não é permitido o recurso de acórdãos proferidos em recurso pelas relações que
apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos. Há uma
hipótese muito discutida: imaginemos que um arguido é absolvido em 1ª instância e condenado
pelo Tribunal da Relação em suspensão da execução da pena de prisão ou pena inferior a 5 anos –
por esta alínea, não é possível recurso, mas pode-se argumentar que o arguido apenas foi
condenado no tribunal da Relação.
• Al. f): não é permitido o recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas
relações que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8
anos – dupla conforme condenatória.

Um dos princípios fundamentais em matéria de recurso é o princípio da proibição da reformatio in


pejus, art. 409.º: interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo MP no exclusivo
interesse daquele, ou pelos dois em conjunto, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie
ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda
que não recorrentes. Se fosse possível uma agravação da pena, isto desmotivaria o arguido de recorrer,

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afectando o direito ao recurso – assim, entende-se que este princípio tem estatuto constitucional e funda-
se no art. 32.º/1 da CRP. O art. 409.º/2 contém uma limitação a este princípio, aplicável no caso de pena
de multa: se a situação do arguido melhorar consideravelmente, o quantitativo diário pode ser aumentado.

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