Sei sulla pagina 1di 19

stência negra e escravidão na

loII::IIir:IiVlO "
_oI~ção das relações étnlco-raclals'
Erisvaldo Pereira dos Santos
10

!~~~ l"
) f'L/·
tema da resistência negra na história do Brasil é muito caro a
_..",.-''-& militante do movimento negro, que até o início da década de
obrigado a ouvir uma aula de História do Brasil, cujo enfoque
ore o/a êsCrãVôfa e não sobre o/a africano/a. Nesse sentido, ao
~==s;::::;;;z::~a experiência de resistência do negro à escravidão, estamos
.::IIlS:::I:::ndo duplo movimento de afirmação da luta dos antepassados
•. opressão do sistema escravista e também de valorização do patri-
cnlcural e histórico dos descendentes de africanos. Por um lado,
l:Ç:::::x:::2: a:ânnar que os africanos escravizados não aceitaram passivamente
--' .••••~-u que lhes foi imposta pelas potências europeias da época dó
:::::::;:::::;)amsmoeuropeu no processo de passagem do mercantilismo para
.:::Ii!~;ili:5nlO comercial. Por outro lado, esse movimento valoriza outra
.m::;~:%:l ce africanos e seus descendentes no contexto escravista, em que,
vezes são apresentados dentro do navio negreiro, chicoteados no
- pelourinho, marcados a ferro e fogo, carregando instrumentos
.::.:;~-:oscorporais, nos pés e no pescoço, conforme gravuras de artistas
..••• s:::I:tl5 europeus - como Debret, Rugendas e Ângelo Agostini - que
:s:::::::a::I! no Brasil, no século XIX.
rrapondo-se a essas imagens, as narrativas sobre a resistência
O!!:::=:=.::~ outra leitura sobre o protagonismo histórico de africanos e seus
.-::::o...J::l •.••...•Cl res na história colonial e imperial do Brasil, tanto do ponto de
- ico e cultual quanto do ponto de vista econômico. Pois, a esse
"lII!!::C:~=üIlO, acrescentam-se ainda os importantes papéis desempenhados

- cicsenvolvida com base na disciplina Resistência negra no Brasil, ministrada para a segunda
=no de Pós-Graduação História e Culturas Afro-Brasileiras do LASEB, na Faculdade de
- :::..liFMG. Aceitamos críticas e sugestões. erisvaldosanto@yahoo.com.br

113
nos campos da arte e da música erudita", nem sempre registrados nos
manuais escolares que tratam da história do negro no Brasil, quase sempre
na perspectiva do sofrimento causado pela escravidão. Em algumas abor-
dagens, o fato de o/a negro/a ser tratado/a como uma coisa dentro do
sistema econômico escravista é reafirmado como se essa fosse a forma de
o/a próprio/a negro/a se compreender no sistema e não a forma como
o sistema o compreendia, em virtude de sua dupla condição de valoroso
objeto de trocas econômicas e produtor de riqueza, pelo seu trabalho.
Ao inscrever a noção de resistência negra como um conteúdo da
educação das relações étnico-raciais, precisamos realizar um esforço epis-
temológico para operar o deslocamento da categoria de resistência dos
dois campos de conhecimento em que ela é mais utilizada e demarcar o
sentido /gg~
__
:stá sendo atribuído neste contexto discursivo. Do ponto de
vista d~, resistência é a capacidade de um corpo se opor à passagem
da corrente elétrica pelo mesmo, quando existe uma diferença potencial
aplicada. Do ponto de vista da(:Biolo~a, a resistência se refere a uma capa-
cidade de opor-se diante de agemes patogênicos. Se são esses os sentidos
do conceito de resistência utilizados pelos campos de conhecimento da
Física e da Biologia, qual é o sentido que podemos atribuir à noção de
resistência negra? A que os/ as negros resistiam? É possível pensar outra
forma de resistência que não seja apenas oposição~ sist~ma ;sc";avista?
- ----
O desenvolvimento desse argumento exige que alguns tópicos da
história dos/as africanos/as e sua descendência no Brasil sejam retomados
a fim de que a noção de resistência seja demarcada não apenas como uma
capacidade e um ato de se opor a algo, mas também como uma forma de
reelaborar outro modo de vida como reexistência. Essa categoria, ao ser
utilizada para fazer referência à ação de sujeitos de intenção e expressão,
além de ser uma capacidade, torna-se uma possibilidade de escolha e de
reapropriação do modo de vida e das razões de viver dos colonizadores.
Ou seja, não estaremos diante de algo que seja próprio da condição do
funcionamento de um determinado ente, como é, por exemplo, a condição
escrava, mas algo possível de ser desencadeado em situações variadas.
Isso significa compreender que: a) a resistência como oposição não
foi a única forma de os africanos e seus descendentes se posicionarem
diante do sistema escravista; b) nem todos os africanos e seus descendentes

2 Sobre a música erudita produzida por negros e mulatos, ver "Mestres Mulatos Sinfonistas dos Devotos
de Nossa Senhora dos Prazeres". www.mestresmulatos.com.br.

114 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


opunham-se ao sistema escravista; c) alguns resistiam ao escravismo, outros
se acomodavam à situação escravista, e muitos foram cooptados pelo sis-
tema, reproduzindo seus valores e suas lógicas, como forma de reexistirem.
Processos de reapropriação do modo de vida e das razões de viver podem
ter sido desencadeados, mesmo diante de urna resistência mais radical ao
sistema escravista. Com essa demarcação, estamos partindo do pressuposto de
que seja qual tenha sido a posição tomada por eles/ elas, a análise sobre essas
situações não pode deixar de considerá-los/as como sujeitos históricos.
Com efeito, a noção de sujeito histórico evidenciada pela clivagem
do ~terialismo dialético é ..9uas~Sempre atnbuída a .um sujeito que, !o
tomar consciência da opressão imposta por um sistema de casta ou de (
c~~se...:constrói estratégias coletivas de
rebelião e revolução.Aqueles sujeitos
que se acomodam ousedelxam cooptar pelo-sistema, reproduzindo seus
valores e lógicas, são considerados alienados. Quando essa perspectiva de
compreensão é utilizada para analisar a história da escravidão de africanos/
as no Brasil, apenas os' ~ilombolasJ são considerados sujeitos históricos.
A luta empunhada por eles é celebrada como a forma mais radical de
oposição ao sistema escravista. No entanto, nem todos os africanos e seus
descendentes escravizados foram para o quilombo. Diante desse fato, a
pergunta que brota é: = q~e alienação é a categoria lTIais_apropriada ~
para compreender aqueles/as que não foram para o quilombo? <e ('.
A fim de problematizar esse argumento e discutir a-noção de resis-
tência também como reexistência de africanos/as e seus descendentes
negros, "mulatos/as", livres, forros/ as" e escravos/as no contexto do sis-
tema escravista, esta reflexão está organizada em duas partes. A primeira
parte é constituída pela compreensão da escravidão como um sistema
econômico estruturado pelas potências europeias, que se apropriou do
tipo de escravidão que existia na África e com o apoio da Igreja católica.
Essa compreensão se dá no contexto de passagem do mercantilismo para o
capitalismo comercial até o colapso do sistema escravista, com o advento
do capitalismo industrial.

3 Designação comum a escravos fugitivos de engenhos e organizados em quilombos, como forma ({)
de resistência ao sistema escravista. ~a atualidade, refere-se aos descendentes de escravos negros "Y.:o
organizados em comunidades, qu~ mantêm a posse da terra e diversas tradições culturais. '>t,
4 Durante o período em que vigorou a escravidão, muitos/as negros/as foram alforriados/as através "\ 'n/
de uma concessão do seu senhor ou de compra da "Carta de Alforria". Essa condição poderia
gerar pessoas livres, pois o/a filho/ a doi a alforriado/ a era livre, enquanto o seu genitor continuaria
sendo forro.

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étntco-raclaís 115


Na segunda parte, seu foco estará direcionando para informações históri-
cas que nos permitam compreender a teia de relações, tensões e contradições
produzidas pelos/as africanos/as e seus/suas descendentes no Brasil,não apenas
como uma forma de resistência, mas também com modo de reexistência dos
valores civilizatórios, das heranças culturais trazidas da África, reproduzidas ou
reinterpretadas no Brasil, através de um processo de reapropriação de modos
de vida e razões de viver dos colonizadores. A pretensão, aqui, não é pro-
priamente uma análise,histórica, mas sócio-=-~storica.Isso-SignificapriViíegiãr
as marcas de sociabilidade que contribuíram para o protagonismo histórico
de africanos e seus descendentes no Brasil, em -diferentes conruções sociais e
rustintos modos de vim,no período em que vigorou a escravidão. Como se
trata de um esforço didático para oferecer urna abordagem panorâmica da
relação entre reexistência negra e escravidão no Brasil, o que se ganha em
abrangência se perde em profundidade - que, por sua vez, pode ser obtida em
pesquisas publicadas como as de João José Reis e Flávio dos Santos Gomes
(Orgs.) (1996), John Thomton (2004), Marina de MeTIo e Souza (2006) e
Anderson José Machado de Oliveira (2008). / "1 /Vl t.. O~ í/i. Su (;) f 3,1 L) I•

l 1-t
V t.
,..,.
r
I'~"-
1_ >
••'
,-
f
\,i
S
A escravidão como um sistema econômico
/, ,~( t.» j )
Se a noção de escravidão aparece no discurso do senso comum como
uma condição à qual os negros deveriam se opor no contexto colonial,
seu significado carece então de uma demarcação mais detalhada a fim de
que seja possível compreender sua especificidade. Aqui, não se trata de
simplificar o argumento em torno da ideia de uma escravidão branda,
mas de compreender as distinções fundamentais entre experiências de
escravidão no Brasil, a partir da produção historiográfica mais recente, que
mais do que reforçar alguns lugares comuns sobre a escravidão no Brasil e
em África, apresenta uma série de nuanças resultantes da tensão marcada
por conflitos e negociações na relação entre senhor e escravo e também
entre africanos e colonizadores. Isso significa considerar a capacidade dos
africanos - negro, escravo ou livre, forro e mulato - de não apenas esta-
belecer estratégias de resistência à escravidão, mas também acomodar-se
ao sistema e/ou realizar um processo de reapropriação dos seus valores e
lógicas, como forma de reexistir.
No contexto de uma discussão sobre escravismo, é importante ressaltar
que, embora seja possível identificar dinâmicas e práticas diferenciadas, seu
funcionamento é muito antigo na História da humanidade. Os egípcios,

116 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


,
t ç( ft,./y).)f\..l
-I
I

um dos vários povos africanos, tiveram escravos que construíram tem-


plos, pirâmides e tantas belezas demarcadas como patrimônio cultural da
humanidade. A Bíblia narra a história da escravidão do povo hebreu no ...J J -
I'
Egito e a forma como Moisés conduziu esse povo de volta à Palestina: A ~\
Terra Prometida. Os gregos tiveram escravos, os quais, juntamente com as
mulheres e os estrangeiros, não desfrutavam do estatuto de cidadãos. Em
Atenas do V século antes de Cristo, os escravos respondiam por toda ativi-
dade produtiva. Eles garantiam o ócio necessário à produção filosófica. Em
Roma dos Césares, gregos e outros povos foram transformados em escravos
após serem vencidos em guerras. Até o período feudal na Europa, houve
um tipo de escravo mais voltado às atividades domésticas, uma vez que os
servos da gleba não eram propriamente escravos - pois estavam vinculados à
terra, que até poderia mudar de dono, mas esse não podia expulsá-Ios. Assim
os servos da gleba passavam a dever obrigações ao novo dono do feudo.
Na África do início do século XV, continuava existindo escravidão
como resultado de guerras entre grupos rivais. Tal como aconteci~m
outras culturas e outros povos antigos, os vencidos eram transformados
em escravos, que realizavam todo tipo de atividade. Conforme o histo-
riador africano Joseph Ki-Zerbo, em sua obra História da África Negra
(volume I), havia distinção entre escravos domésticos e escravos de guerra,
que viviam com suas famílias. Em razão das diferenças existentes entre a
escravidão na África e o modo de escravidão instaurado pelos europeus, no
contexto do desenvolvimento do mercantilismo, com o tráfico de escravos,
Ki-Zerbo afirma que "é ridículo, portanto, pensar que os Europeus mais
não fizeram do que prosseguir uma prática preexistente" (KI-ZERBO,S/D,
p. 266). No entanto, Ki-Zerbo ressalta que: "O tráfico de escravos não foi
uma operação premeditada. Aqueles que partiam para 'o santo empreen-
dimento da rota das Índias e das especiarias' sabiam o que iam procurar,
mas ignoravam o que iam encontrar e como iam encontrar" (KI-ZERBO,
S/D, p. 262). Assim, os primeiros africanos escravizados foram levados à
Europa como forma de "demonstrar que se tinha realmente chegado ao
país dos Negros (sic) e satisfazer a curiosidade ardente dos compatriotas:
como se pode ser preto?"(KI-ZERBO, S/D, p. 266)
Embora Ki-Zerbo conteste a preexistência de uma prática de escra-
vidão com fins lucrativos na África, antes da chegada dos europeus, o
historiador americano Thornton (2004) discute essa contestação afirmando
ser o escravo africano, no período pré-colonial, uma fonte de riqueza
correlata à terra para os europeus. Segundo Thornton, "a escravidão era

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étnico-raciais 117


difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de
propriedade privada que produzia rendimentos, reconhecida nas leis afri-
canas" (THORNTON,2004, p. 125). Em razão dessa tese, Thornton conclui
que "foi a ausência de propriedade privada de terras - ou, para ser mais
preciso, foi a propriedade corporativa da terra - que levou a escravidão
a ser tão difundida na sociedade africana" (THORNTON, 2004, p. 125).
A importância de conhecer bem como se estruturava a escravidão
no contexto africano antes da chegada dos europeus não está relacionada
à construção de argumentos para relativizar os prejuízos demo gráficos e
econômicos da escravidão ao continente africano. O objetivo é demonstrar
como são complexas essas ilações históricas, muitas vezes simplificadas pôr
aligeiramento didático e ideológico. É verdade que também "havia tribos
em que a e~cravatura era desconhecida, como entre os Fangs da África
equatorial" (KI-ZERBO, S/D, p. 266). No entanto, é o próprio Ki-Zerbo
quem afirma: "Nas regiões de África em que a evolução econômica
estava avançada, como em torno dos centros urbanos de Jena e Tom-
buctu [Mali], a escravatura tomara um caráter de acentuada exploração"
(KI-ZERBO, S/D, p. 265).
O fato é que os africanos já haviam desenvolvido um sistema econô-
mico em que a posse de escravos era equivalente à propriedade privada
da terra. Mesmo que a propriedade corporativa da terra sugira uma lógica
econômica mais fundada na distribuição do excedente do que na sua acu-
mulação, ainda assim temos de reconhecer um protagonismo de africanos
na produção de renda. Pois, como afirma Thornton:

Os escravos africanos eram, em geral, usados de duas maneiras diferentes.


Primeiro, eles tomaram-se uma forma proeminente de investimento e
manifestação de riqueza privados - um modo seguro de gerar fortuna
equivalente à posse de terra na Europa. Segundo, os escravos eram uti-
lizados pelos funcionários do estado como um grupo dependente e leal,
tanto para a produção de renda como para desempenhar serviços admi-
nistrativo ou militar na luta entre reis e dirigentes que queriam centralizar
seus estados, e outras elites que procuravam controlar o absolutismo real.
(THORNTON, 2004, p. 142)

Com efeito, no processo de desenvolvimento do capitalismo comer-


cial, no contexto do expansionismo europeu e da colonização das Améri-
cas, a possibilidade de utilização da mão de obra escrava africana significou
uma alternativa econômica lucrativa, tanto para europeus como para afri-
canos. No decorrer dos quatro séculos de vigência do sistema escravista,

118 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


até mesmo os brasileiros participaram do lucrativo comércio de escravos,
como foi o caso do baiano Francisco Felix de Souza. Para os espanhóis e
os portugueses, os escravos africanos também significaram uma alterna-
tiva para o povoamento e a exploração das colônias, sobretudo a partir
dos obstáculos colocados pela Igreja, que se posicionou contrariamente à
escravidão dos indígenas. O bispo Bartolomeu de Las Casas (1474-1566)
foi para Europa solicitar o aumento do número de colonos espanhóis,
opondo-se à escravidão dos índios, cuja taxa de mortalidade era mUlto
a ta. Após a -sugesfão- e que nüs-ínruõsTossem
L..
substituídos por pretos,
mais robustos, dóceis e aclimatados às regiões tropicais, ele aceitou como
um mal menor" (KI-ZERBO, S/D, p. 266-8).
Ki-Zerbo considera errado "ver em Las Casas o homem que pôs em
marcha a máquina infernal do tráfico de escravos" (KI-ZERBO, S/D, p.
268). O que se sabe, no entanto, é que, durante quatro séculos, o sistema
econômico escravista enriqueceu europeus, brasileiros e africanos, tendo o
escravo como sua principal "peça", já que esse era em si mesmo, pelo seu
corpo, moeda de troca e fonte de lucros econômicos; pelo seu trabalho,
produtor de riquezas e expressão de riqueza do engenho, quando eram
muitos; pela sua relação afetivo-sexual, reprodutor do sistema escravista e
responsável pelo equilíbrio interno, agregando qualidade às relações huma-
nas. No caso específico da experiência do Brasil, a afirmação mais categórica
sobre o papel dos escravos como principal "peça" do sistema econômico
encontra-se na obra do padre jesuíta André João Antonil escrita em 1711, em
que ele assevera que" os escravos são as mãos e os pés do senhor do enge-
nho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar
fazenda nem ter engenho corrente" (ANTONIL,1982. p. 89).
No processo de desenvolvimento do sistema escravista, Portugal e
Espanha tiveram a Igreja católica como uma aliada muito importante.
Associando-se aos interesses econômicos, essa instituição contri um para
que seu interesse religioso retirasse muitos escravos do poder de régulos
africanos, a fim de que fossem trabalhar nas colônias. Com a promessa de
que sendo transformados em cristãos poderiam merecer a salvação eterna,
muitos escravos foram compulsoriamente batizadosjá no continente afri-
cano. A existência de reis africanos que aderiram ao catolicismo no final
do século XV (em 1491 se deu a conversão e o batismo do rei do Congo)
muito contribuiu para o êxito da atividade missionária da Igreja católica
(SOUZA,2006. p. 49). O projeto do expansionismo europeu de ocupação
colonial, através da produção de uma monocultura de grande escala com

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étnico-raciais 119


o trabalho de africanos escravizados, não foi objeto de oposição radical
da Igreja católica, que participou ativamente do tráfico negreiro, teve vários
escravos e também se integrou no comércio transcontinental envolvendo
América, África e Europa.Ou seja,durante os séculosXVI e XVII, o senti-
mento de uma dignidade h'umailaafrontadapela escravidãonão resultou em
fortes oposições ao sistemaescravista,visto que a Igreja era beneficiada.
< -

Não é de se estranhar o fato de que o horror da escravidão dos afri-


canos tenha aparecido com mais força na História do Brasil, no século
XIX, justamente no contexto em que as potências econômicas estavam
mudando o foco dos interesses diante da crise do capitalismo? Com
raras exceções, como o caso de dois padres jesuítas que se opuseram à
existência de escravos dentro da Ordem no Colégio da Bahia (Gonçalo
Leite (1546-1603) e Miguel Garcia (1550-1614), nem mesmo a Bula do
papa Bento XIV, em 1741, ameaçando com excomunhão quem tivesse
escravos na Igreja, conseguiu consolidar uma posição da Igreja católica
contra o sistema da escravidão antes do século XIX. Permanecia firme a
afirmação do Padre Antônio Vieira para quem "Deus permitiu a escravidão
dos negros para melhor encaminhá-los para a salvação" (CINTRA,1985.
p. 105). Quanto ao envolvimento dos jesuítas no tráfico de escravos, o
documento mais significativo nos foi legado pelo reitor do Colégio de
Luanda, padre Luís Brandão, que escreveu uma carta em 1611 ao seu
colega, também padre jesuíta, Alonso Sandoval de Cartagena das Índias,
afirmando: "Nós mesmos que vivemos aqui faz 40 anos e temos entre nós
padres muito doutos, nunca consideramos este tráfico como ilícito. Os
padres do Brasil também não, e sempre houve, naquela província, padres
eminentes pelo saber" (CINTRA,1985. p. 105). Ou seja, os escrú ulos
quanto ao envolvimento dosjesuítas com o sistema escravista,se existiam,
ainda não eram tão fortes antes do século XIX.
A configuração da escravidão como um sistema econômico que
envolveu múltiplas relações com o desenvolvimento do capitalismo, o
expansionismo europeu e o comércio triangular entre a Europa, a África e
asAméricas, no período colonial, teve como objetivo principal demarcar o
papel que o escravo desempenhou nesse sistema. Assim, seja como objeto
de compra e venda, seja como moeda de troca por cargas de açúcares, e
mesmo como propriedade, que em função do grande número ostentava
a riqueza dos senhores de engenhos, o escravo construía sua sociabilidade
nessa condição econômica ejurídico-política. Sua resistência a essesistema
era dificultada até mesmo pela instituição que deveria defender o direito

120 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


à liberdade, como expressão de dignidade dos seres humanos. Assim, em
uma carta de 1691, o padre Antônio Vieira escreveu a Roque Monteiro
Paim, afirmando que: "Os escravos rebeldes estão e permanecem em
estado contínuo de pecado mortal enquanto não voltarem ao serviço e à
obediência de seus patrões" (CINTRA, 1985. p. 105).
Nesse contexto cultural e econômico desenvolviam-se diferentes :;t-
modalidades de relação entre senhor e escravo: relações marcadas por tra- J
tamentos aviltantes, com chicotes, uso de instrumentos de tortura física e ~ -:::» 0) 1

pelourinho; relações marcadas por rebeliões internas com envenenamento 1(, ").
de senhores e fugas para o quilombo; relações marcadas por negociações "": \
internas que garantiam o tempo dos folguedos e da plantação para o con-
sumo pessoal; relações marcadas por um associativismo que formava redes
de solidariedade, através de irmandades religiosas, onde se cultivavam a
devoção a santos/as negros/as e se organizavam uma forma de previdência
social; relações marcadas por um jogo de sedução e linguagem que permi-
tiam a conquista da carta de alforria e a possibilidade de aquisição de escra-
vos; relações marcadas por um tipo de trabalho realizado na cidade como
"escravos de ganho", que garantiam a subsistência dos próprios senhores;
relações em que os saberes e as práticas terapêuticas trazidas da África eram
utilizadas para cuidar da saúde e do bem-estar de várias pessoas. Em todas
'y ~as relaçõe~, os africanos escravizados e seus descendentes construíram sua
" sociabilidade, reapropriando-se de valores, modos de vida e razões de viver
do colonizador e, assim, reexistindo no sistema econóilliCo escravista ate o
seu colapso, a partir da segunda metade do século XIX.
O colapso do sistema econômico escravista pod;ser considerado como
um dos fatores que contribuiram para o progressivo enfraquecimento do
comércio de africanos e seus descendentes. No contexto dessa reflexão
sobre a resistência, a reexistência negra a esse colapso contribuiu para
uma modalidade de oposição ao escravismo, estruturada pelo movimento
abolicionista. No entanto, as fugas em massa, as invasões de engenho e
as organizações em quilombos foram as formas mais radicais de oposição
ao escravismo. O sistema capitalista _deixou ~e avaliar o comérci~ o
trabalho de escravos como lucrativos. O trabalho livre passou a se impor
co~o mais adequado ao desenvolvimento do -capitalismo industria . De
forma que a pressão exercida pelo grande número de quilombos espalhados
Brasil a fora, o movimento de abolicionistas adeptos de ideias liberais e a
própria pressão do sistema capitalista exercida por uma potência, como

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étnico-raciais 121


era a Inglaterra no século XIX, dimensionam o significado do colapso do
sistema escravista, sem, contudo, retirar o mérito do protagonismo negro
no interior do sistema escravista.

A resistência e a reexistência negra na escravidão


Numa clássica interpretação marxista que relaciona escravidão e
racismo, a condição escrava é vista como algo que retira doia negro/a a sua
condição de homo sapiens, capaz de planejar e, estrategicamente, executar
fugas, conduzindo formas de organizações sociais e políticas, como foram
os quilombos. O argumento apresentado para sustentar essa afirmação é
de que com as "características da situação de casta vivida pelo escravo, ele
não dispunha de elementos para organizar uma inteligência política da sua
alienação e possibilidades de luta" (IANNI,1978, p. 35). Nessa perspectiva,
todos os movimentos de resistência dos (as) escravos(as), inclusive aqueles
em que eles/as se rebelavam, são considerados "em geral [...] produto de
uma revolta, por assim dizer, subjetiva, individual ou anárquica" (IANNI,
1978, p. 36)',-No entanto, em nosso entendimento, quando os/as escravos/
as fugiam, escondiam-se, suicidavam, matavam ou roubavam-o senhOrCle
\ l.{y
engenho e membros de sua "casta", rebelando-se e criando quilombos,
\j' J.

eles/ as estavam se opondo ao funcionamento do sistema escravista em


rI' A' ,\
contextos bem específicos. Esses movimentos, e também aqueles em que,
:/ ~ 1 J ao invés de resistir com violência, eles/as articulavam outra estratégia de
( Jjl' sobrevivência dentro do sistema, demonstram que - bem ao contrário __
r ..;-. do
. U ~ que o sistema pretendia em termos de sua subordinação aos valores e padrões
pv
I
de entendimento e comportamento - eles/ as estavam operando mudanças
- -
profundas no modo de civilização que estava sendo implantando no Brasil.
O nosso pressuposto é de que todos aqueles movimentos, com rebelião
ou sem rebelião, referiam-se a níveis de intencionalidade que permitiam a
preservação e a reapropriação de valores, saberes, crenças, ritos, expressões
linguísticas, ritmos, danças, instrumentos, sabores e culinárias presentes
em estilos de vida que demarcam, ainda hoje, a forma de reexistência
dos africanos e seus descendentes no Brasil. As marcas dessa reexistência
como preservação de valores civilizatórios estão bastante presentes no
campo da experiência religiosa, em que é possível identificar não apenas
a presença de várias divindades africanas, às quais se tributam cultos, mas
também um catolicismo africanizado, em que negros e negras fazem per-
cutir suas caixas e dançam para Nossa Senhora do Rosário. Esse fato nos

122 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


permite compartilhar da hipótese presente em Thornton (2004), Souza
(2006) e Oliveira (2008) de que, quando os/as africanos/as aderiram ao
catolicismo, mesmo que compulsoriamente, tal adesão se deu através de
modelos devocionais análogos ou próximos às crenças vivencia as em
s~as comunidades de origem. ----
Ao defender a ideia de reexistência, estamos considerando o fato de
que os africanos trazidos para o Brasil pertenciam a modelos de civilizações
distintas daquelas que estavam sendo implementadas na "Terra de Pindo-
rama". Os saberes, as crenças, os valores, a lógica, o modo de produção
e distribuição, a visão de mundo e a capacidade de criação artística@
foram perdidos na travessia do Atlântico - vieram na memória indivi-
dual e coletiva de cada um. A história dos projetos civilizatórios de cada
grupo étnico não poderia ser completamente dizimada pela escravidão
porque estava inscrita na memória ancestral e nos códigos corporais que
cada um trazia. Portanto, refletir sobre a história da resistência negra no
- -~VI
t:;:;
Brasil, abandonando essa compreensão, seria o mesmo que afirmar ser a _ "">z
condição escrava uma espécie de magia feita pelos europeus, cujo efeito /-) C
teria conseguido apagar não apenas a memória dos africanos, ~as ~ s~a /,7~7..' I

capacidade de reação, contraposição de interesses, ressignificação e ree-


xistência dentro do sistema escravista.
A escravidão de africanos, salvo algumas interpretações míticas que
a apresentam como uma punição das divindades, nada tem a ver com
magia. Muito menos ainda, uma magia feita pelos europeus. Se tivesse
sido uma magia, os/as africanos/as escravos/as e seus descendentes não
teriam ultrapassado as barreiras do sistema econômico e produzido uma
tensão política mais radical quando fugiam do engenho e se organizavam
em quilombo, resistindo ao sistema escravista com o uso de armas. Além
disso, fora desse contexto, não teriam tido condições de negociar e se
acomodar à situação, buscando uma mobilidade no interior do sistema. O
fato é que muitos africanos escravizados não apenas foram cooptados, illãS
estabeleceram negociações em favor dos seus interesses, colaborando com
o funcionamento do sistema econômico escravista. Essas duas perspectivas,
acomodação e cooptação pelo sistema, poderiam resultar na conquista da
alforria e também na compra de escravos por ex-escravos, cuja posse pode-
ria garantir ganhos e rendas individuais. A história do Brasil é pródiga em
relatos de que um ex-escravo comprou cinco escravos para trabalhar em seu
benefício e de que um forro deixou escravos em seu testamento (OLIVEIRA,
2008, p. 259, 279). Diante desses relatos, costumam aflorar sentimentos de

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étnico-raciais 123


indignação ética, fundamentados em um sentido de dignidade humana
depurado pela crítica marxista à exploração do homem pelo homem.
O sentimento de indignação ética decorre do fato de que algumas
leituras e reflexões referentes ao período anterior à assinatura da Lei Áurea
tendem a apresentar os/as africanos/as e seus descendentes apenas na con-
dição de escravo/a. Muitos educadores e também pesquisadores se!..eferem
a negros do período escravista brasileiro como se todos fossem escravos.
Essa inferência é feita até mesmo quando não existem documentos que
comprovem que um determinado negro foi escravo, como é o caso de
Carnilo Silvério, negro que comprou, em 1888, o terreno ocupado, hoje,
no município de Contagem-MG pelos Arturos, seus descendentes diretos
(SANTOS,1997, p. 39). Alguns estudiosos afirmam tratar-se de um ex-
escravo, apenas porque informações obtidas pela oralidade o apresentam
como trabalhando de agregado em uma fazenda.
Camilo Silvério foi mais um dos tantos descendentes de africanos
que conseguiram ter posse de terras antes da assinatura da Lei Áurea e da
Proclamação da República. Um fato é que nas informações disponíveis
sobre a escravidão no Brasil, se encontra registrado que, quando se deu
a Abolição da Escravatura, apenas um décimo da população de cor era
cativa. Em Minas Gerais, havia uma grande quantidade de negros/as livres
e forros proprietários de terras e de escravos desde o século XVIII. O his-
toriador Carlos Magno Guimarães cita a investigação de Francisco Vidal
Luna, identificando no Serro Frio, em 1738, entre os 1.744 proprietários
de escravos, 387 que eram forros. Ainda a partir dessainvestigação, ele nos
informa que "na freguesiadas Congonhas do Sabará, em 1771, de um total
de 235 proprietários de escravos, 51 eram forros" (GUIMARÃES, 1996, p.
152), portanto, ex-escravos.
:J pL..!\ i'0- Referindo-se a um tempo tão remoto, essascifras demonstram con-
:; ""\v tradições no interior do sistema escravista, pois necessariamente o senh~
~ 1~.;II de escravos não era um branco. Sendo apontado como um forro, não
\ .' :)\ ~havianascido livre, tinha, portanto, algum vínculo com a escravidão.
)Jl R'" ,
J ~ Alguns estudiosos parecem gostar tanto de falar dos horrores de quatro
~d,i\" séculos de escravidão no Brasil, que se recusam a aceitar o fato de que,
quando se deu a Abolição da Escravatura, a maioria da população negra
do Brasil já não era escrava. Outros pesquisadores, como é o caso de
Octávio lanni, que realizaram seus estudos no contexto de predominância
da teoria do materialismo dialético marxista, estavam tão comprometidos

124 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


com essa base teórica que pretenderam identificar, no antagonismo da
relação senhor e escravo, a possibilidade de um desdobramento em luta
revolucionária (IANNI,1978, p. 35). Esse entendimento conduziu Ianni
à seguinte afirmação:

Acontece que a condição econômica, juridico-política e sociocultural do


escravo não lhe abria qualquer possibilidade de elaborar, como coletividade,
uma compreensão articulada e crítica da própria situação. Na medida em
que era socializado como escravo, isto é, como propriedade do senhor,
ao escravo não se abriam quaisquer possibilidades de entendimento inde-
pendente ou crítico da sua situação. (1978, p. 35)

Com esse tipo de posição, Ianni nega ao escravo não apenas um


projeto coletivo de resistência ao escravismo como sistema, mas também
"uma compreensão articulada e crítica da própria situação". Isso significa
que ele não era sujeito his0rico, pois não tinha capacidade de ressignificar
sua existência dentro do sistema, avaliando possibilidades, interpondo
interesses, articulando outras estratégias, não apenas de sobrevivência,
mas também de existência. O escravo teria de compreender ~ ~scravis~o
como um sistema econômico, com toda complexidade que essa com-
preensão significa. No entanto, a afirmação de Octávio Ianni só pode ser
compreendida no contexto de uma base teórica bem específica, como é
o marxismo. As informações arroladas por pesquisadores como Guimarães
(1996), Silveira (1988) e Thornton (2004) não deixam dúvidas quanto ao
fato de que o escravo sabia da existência de negros africanos envolvidos no
tráfico; era muitas vezes o responsável pela socialização do novo escravo
que chegava aos portos brasileiros; conhecia muitos ex-escravos que estavam
integrados no sistema do tráfico e no emprego da mão de obra escrava; tinha
conhecimento das fugas, organizações e perseguição aos quilombos; colabo-
rava ora com a resistência quilombola, ora com os senhores de engenho, os
capitães do mato e a força policial; além disso tudo, alimentava a esperança
de conseguir comprar sua alforria para ascender a um novo status social.
Qual seria, então, o efeito dessa socialização como escravo, que, não lhe
abrindo quaisquer possibilidades de entendimento independente ou crítico
da situação, não lhe abria também a possibilidade de se pensar como uma
coletividade? O que seria mesmo essa coletividade?
O sentido que o texto de Octávio Ianni produz sobre coletividade
nos permite raciocinar do ponto de vista das ações pensadas e realizadas
por grupos. Ora, em que pesem as vicissitudes da condição escrava,

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étnico-raciais 125


vivenciada no sistema econômico escravista, a pesquisa historiográfica
vem desnudando projetos e ações coletivas que vão desde as organizações
quilombolas, que resistiram ao escravismo durante décadas, passando pelas
organizações em confrarias e irmandades religiosas, que são consideradas a
primeira experiência de previdência social no Brasil até chegar a afirmar
a existência um conluio entre os escravos e os seus senhores na comer-
cialização das pedras preciosas ocultadas durante a mineração (SCARANO,
1978, p. 106). Acrescenta-se a isso o registro de revoltas coletivas em
que o protagonismo negro se fez presente na Balaiada, do Maranhão, na
Conjuração Baiana, e na Revolta dos Malês, em Salvador.
No entanto, é preciso ressaltar que o protagonismo negro foi mais _
representativo na organização dos quilo~bos. Aqui não se trata de esta-
belecer dicotomias nem reproduzir análise reducionistas, mas de explicitar
as contradições existentes no interior do sistema escravista, no qual era
possível encontrar: 1) africanos/as e descendentes negros/as escravos/as que
resistiam à escravidão fugiam para as matas, organizavam um grupo para
ajudar outros negros escravos a saírem de sistema escravista; 2) africanos/
as e descendentes negros/as livres, forros/as e mulatos/as que colaboravam
com os aquilombados, vivendo no povoamento, vendendo produtos e
potencializando a rede de informações sobre a perseguição aos quilom-
bos, em favor dos quilombolas; 3) africanos/as e descendentes negros/as
escravos/as que eram cooptados pelo sistema escravista a ponto de cola-
borar na perseguição de escravos fugitivos, portando armas e conseguindo
cargos e alforria; 4) africanos/as negros/as livres e forros/as e mulatos/
as que aderiram ao sistema de tal maneira, a ponto de comprar escravos
e fazendas; 5) brancos proprietários de escravos que estabeleciam algum
tipo de relação clandestina com os quilombolas, comprando e vendendo
produtos e participando de uma rede de contrabando bastante lucrativa.
~ t\yl f t- J Embora contraditórias, em nenhuma dessas situações podemos negar
,.J \., o protagonismo negro, pois, mesmo quando cooptado pelo sistema, houve
~J~. um processo de reapropriação do modo de vida, de valores, símbolose
I razões de viver, processo esse demarcado por uma avaliação de inter~es
{liY.~\' r: sobre as vantagens de acomodar-se ao modo de funcionamento do sistema
escravista, elaborando sua reexistência.
Nesse sentido, estamos nos distanciando da análise do historiador
Caio Cé;;~s~i, quando esse se refere à participação dos mulatos nas
irmandades religiosas, como cedendo "a elas seus direitos e vontades
enquanto indivíduos, pondo de lado uma eventual resistência violenta

126 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


e política ao sistema e acomodando-se à sombra harmoniosa e adesista das
irmandades, numa míope opção pelo branqueamento social" (BOSCHI,1986.
p. 172). Mesmo porque, do ponto de vista crítico, esse movimento de cessão
ou expropriação do direito de revolta não poderia se dar sem uma avaliação
das perdas e ganhos na adesão ao sistema escravista. Assim, retirar do escravo,
do forro, livre, negro ou mulato a capacidade da avaliar as vantagens de aco-
modação ao sistema e de contrapor e negociar seus interesses, no contexto
do escravismo, significa o mesmo que negar-lhe o papel de sujeito histórico.
Nesse sentido, ainda que se tome a noção de sujeito histórico apenas como
possibilidade de rebelar-se, o reconhecimento do direito de recusa da rebe-
lião terá de ser considerado como uma posição que o sujeito pode tomar.
Nessa perspectiva, o uso da categoria alienação toma-se problemática, já que
somente reconhece o protagonismo de africanos/as e seus descendentes
negro/a, mulato/a quando esse(a) se alia aos rebelados em tomo de uma
ideia de revolução, que somente começou a fazer sentido a partir do fmal do
século XVIII. Dessa forma, estamos diante da negação do livre uso de uma
razão que poderia avaliar as vantagens do associativismo entre os negros como
uma possibilidade de construir uma rede de solidariedade, que servisse, por
exemplo, para comprar a alforria de maior número de confrades.
Com esse tipo de distanciamento da posição de Boschi, estamos afir-
mando que, como uma possibilidade de fazer uso de sua capacidade de
escolha e ação, mesmo que sejam identificadas estratégias de inculcação
ideológica no contexto, ainda assim, faz-se necessário compreender a
posição de sujeito como uma das possibilidades razoáveis de escolha. Uma
vez que contradições podem ser identificadas em qualquer contexto social,
elas não deveriam ser analisadas na perspectiva de anomalias sociais, mas
como inerentes ao conjunto de possibilidade dos sujeitos. Se "os senhores de
escravos tanto poderiam ser livres quanto poderiam ser forros e até mesmo
outros escravos" (GUIMARÃES,1996. p. 145), como exigir que todo escravo
fosse contrário ao sistema escravista, em uma perspectiva revolucionária?

Considerações finais
o objetivo desta reflexão não foi o de substituir as diversas pesquisas sobre
a escravidão de africanos no Brasil, bem como as narrativas sobre a resistência
imposta por africanos/ as ao sistema escravista, presentes em pesquisas como as
de Silveira (1988) Guimarães (1996) e Thornton (2004). O esforço de apresen-
tar as marcas de sociabilidade que contribuíram para o protagonismo histórico

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étnico-raciais 127


de africanos e seus descendentes no Brasil, em diferentes condições sociais e
distintos modos de vida, no período em que vigorou a escravidão, possibilitou
muito mais uma informação do que um desenvolvimento argumentativo.
No entanto, cremos haver alcançado os objetivos didáticos e pedagógic~,
cuja pretensão foi contribuir para afastar leituras românticas e reducionistas
referentes não apenas à escravidão no Brasil, mas também na Áfric~. A f~
de atingir esse propósito, aproximamos distintas abordagens historiográficas
sobre a África, como as de Joseph Ki-Zerbo e John Thornton, dialogamos
com a imensa quantidade de dados arrolados pelo historiador mineiro Carlos
Magno Guimarães sobre o século XVIII, além de discutir com pesquisas de
base teórica marxista, como a do sociólogo Octávio Ianni.
No esforço de uma compreensão sócio-histórica da escravidão como
um sistema econômico, focalizamos não apenas os europeus como únicos
responsáveis pelo estabelecimento do tráfico de escravos, mas também os
africanos e os brasileiros, estes últimos, a partir do século XVII. Com essa
perspectiva, já sabemos do incômodo produzido em muitos militantes que
gostariam de saber que nenhum negro foi atuante no tráfico de escravos,
mas essa informação não é possível. Muito menos os militantes gostariam
de saber que houve escravos que tiveram escravos. Tais informações,
embora sejam chocantes, são fundamentais para garantir o entendimento
da complexidade do escravismo, afirmar o protagonismo negro na História
do Brasil e buscar identificar as heranças africanas no Brasil, hoje, como
um processo de reapropriação de valores, símbolos e de razões de viver.
A inspiração destas análises é oriunda da pesquisa que alguns histo-
riadores têm feito como base em registros e documentos da época. Todavia,
por dever de honestidade intelectual, não podemos deixar de informar que
toda esta reflexão tem por base o fato de que, na contemporaneidade, temos
negros! as empenhados! as na luta política em prol da melhoria de condições
de vida; temos negros! as que se acomodam diante do sistema político e eco-
nômico vigente; temos negros que, após conseguirem uma mobilidade social
e econômica, aderem ao sistema de tal maneira, chamando para si um mérito
pessoal que os outros não têm; temos negros que, mesmo ascendendo social
e politicamente, continuam solidários à luta da população negra por melhores
condições de vida; temos negros que não gostam de ser negros, celebram o
padrão de beleza branco, colaborando para o branqueamento dos outros! as
negros!as; temos negros e negras que valorizam as raízes africanas, estudam e
reafrrmarn seus valores civilizatórios na perspectiva da ancestralidade; temos

128 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)


ainda negros que dizem não existir problemas de racismo e preconceito racial,
mas apenas problemas sociais de ordem econômica.
Em todos esses casos, não estamos identificando crises de identidade,
mas a forma como o sujeito se põe na relação consigo, com seus semelhan-
tes e com as possibilidades de avaliação, reapropriação, escolha e conquista
de lugares sociais que lhe garantam algum tipo de vantagem, como, por
exemplo, bem-estar. Compreendendo-os na perspectiva das contradições
sociais, mesmo em se tratando de uma posição que poderíamos chamar
de politicamente correta, estaríamos diante de um lugar social de busca do
bem-estar, pois é em função da felicidade que os sujeitos constroem projetos
de vida e participam da construção de um projeto de sociedade. Entretanto,
não estamos afirmando a perspectiva de que tanto faz estar de um lado
como do outro, ou de lado nenhum. Essa não é uma posição eticamente
defensável, diante do processo de apagamento, desqualificação e exclusão
das marcas das civilizações africanas do patrimônio cultural brasileiro.
Portanto, a explicitação de posições críticas envolvendo a história da
escravidão não esgotou a fonte dos aspectos que poderiam ser tratados;
apenas refletiu algumas perspectivas de compreensão. Entre as várias ques-
tões que não foram abordadas aqui, encontra-se aquela que se refere ao
desenvolvimento das teorias racistas, as quais começaram a ser articuladas
a partir da segunda metade do século XIX, coincidentemente, no período
do colapso do tráfico de escravos. Essa questão é importante porque o
aporte dos discursos racistas na formação de uma ideia de nação brasileira
coincide também com a decisão de preservar a nossa ascendência europeia,
no momento em que mais da metade da população brasileira era com-
posta de descendentes de africanos/as. Um descolamento do significado
dessa decisão para os dias de hoje pode ajudar a interpretar a ausência da
história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar até 2003,
quando um dispositivo legal sancionado pelo Presidente Luís Inácio da
Silva, a Lei n" 10.639/03, estabeleceu sua obrigatoriedade.
Diante dos fatos compreendidos nesta reflexão, somos levados a concluir
que os descendentes de africanos continuam reexistindo no Brasil, através da
luta dos militantes dos movimentos negros e adeptos das religiões brasileirasde
matriz africana, para manter viva a memória dos ancestrais e a valorização do
patrimônio cultural dos seus antepassadostambém no currículo escolar. Funda-
mentalmente, essareexistência acontece atravésdesseprocesso de reapropriaçãô
dos fatos e arranjos da História. Com essaperspectiva de luta, a educaçãoâas
relações étnico-raciais recebe o conteúdo forrnativo das referências identitárias

Reexistência negra e escravidão na educação das relações étnico-raciais 129


que herdamos da África, as quais têm sido historicamente reinterpr~tadas
ressignificadas em nossas relações sociais, como reexistência.

Referências
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São
Paulo: Edusp, 1982.

BELLINI, Ligia. Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de


alforria. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o
negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora


em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.

CINTRA, Raimundo. Candomblé e Umbanda: o desafio brasileiro. São Paulo: Pau-


linas, 1985.

GROSSI, Ivonne de Souza. Constança do Serro Frio: escravos libertos nas Minas
Gerais do século XIX. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n°
73, p. 219-237,jul. 1991.

GUIMARÃES, Carlos Magno, Mineração, quilombos e Palmares, Minas Gerais no


século XVIII. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.

KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra 1. Tradução de Américo de Carvalho.


Lisboa: Publicações Europa-América, S/Do

Y OLIVEIRA, AndersonJosé Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no


Brasil colonial. Rio de Janeiro: Paperj, 2008.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos qui-
lombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Religiosidade, identidade negra e educação: o processo de cons-
trução da subjetividade de adolescentes dos Arturos. Belo Horizonte: FaE-UFMG, 1997.

SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos


Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978.

SILVEIRA, Renato. Pragmatismo e milagres de fé no Extremo Ocidente. In: REIS,


João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1988.

)- SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coro-
ação de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

TERRA, João Evangelista Martins. O negro e a Igreja. São Paulo: Loyola, 1988.

\.- THORNTON,John. A África e os africanos naformação do mundo atlântico - 1400-1800.


Tradução Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus; Elsevier, 2004.

130 Formação continuada de docentes da educação básica: construindo parcerias (LASEB)

Potrebbero piacerti anche