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debates

Publicação destinada exclusivamente a médicos associados da ABP PSIQUIATRIA HOJE


Ano 1 . Nº4 . Jul/Ago de 2009

w w w. a b p b r a s i l . o r g . b r

“Antipsiquiatria”
Debate sobre movimento
estruturado na década de 60
tem relações com assistência
em saúde mental

Democracia
Dois artigos sobre uso de
drogas discutem abordagem
de usuários: liberação,
descriminação e tratamento debate hoje | 1
debates
PSIQUIATRIA HOJE

2 | debate hoje
Editorial
Opinião

Debates
Durante o XXVII CBP, foram lançados oficialmente três livros, dois opúsculos como pré-
lançamentos e três publicações de divulgação e orientação, pela ABP Editora.

A criação de uma editora fez parte da plataforma de João Alberto Carvalho como can-
didato a presidente da ABP. Após um ano e meio de diálogo, amadurecimento, prepa-
rativos e registro legal da marca, formalizou-se sua existência física no estande da ABP,
no dia 5 de novembro, às 16h. Numa cerimônia simples, mas repleta de significados,
reuniram-se os autores dos livros, o presidente, o editor, diretores, a equipe da Assesso-
ra Comunicação, e diversos associados, com direito a autógrafos e muita alegria.

A satisfação manifesta se amparava no minucioso trabalho de bastidores para entregar


qualidade e rigor na forma e no conteúdo. A editoria só pode ser grata aos autores que
cederam seus nomes para dar peso e credibilidade ao selo recém criado.
Rogério Wolf Aguiar
Editor Foram lançados: Introdução à psicopatologia compreensiva, de José Luís Pio Abreu;
Ulysses Pernambucano e a Escola de Psiquiatria Social do Recife, de Bruno Marcello
Nascimento; Intervenção em Situações Limite - Desestabilizadoras, Crises e Traumas,
de José Thomé, Moty Benyakar e Ively Taralli (organizadores); Psiquiatria e Psicanálise
– confluências e condutas clínicas (pré-lançamento), de João Alberto Carvalho, Cláudio
Rossi, Pedro Gomes, João Carlos Dias e Antonio Leandro Nascimento (organizadores).

Também foram lançados ou relançados o Indicador Profissional 2009-2012, Proposta de


Diretrizes Técnicas para Assistência Integral em Saúde Mental no Brasil (revisão e atu-
alização das ‘Diretrizes’, elaboradas em 2006 sob a direção de Josimar França); Manual
para a Imprensa (2ª edição); Comportamento Suicida: conhecer para prevenir; e Enten-
dendo os Transtornos Mentais – Psiquiatria para uma Vida Melhor (pré-lançamento),
do programa ABP Comunidade, de Marco Antonio Brasil, João Alberto Carvalho, Luiz
Alberto Hetem, João Carlos Dias e Antonio Leandro Nascimento (organizadores). As
fichas catalográficas foram elaboradas pela bibiotecária Lioara Mandoju (CRB 75331).
Os projetos gráficos e a editoração foram feitos por Renato Dalecio Jr/Assessora Comu-
nicação (Carolina Fagnani), com a colaboração de Liliane Paleari e Danilo Maeda.

Com este marco, a ABP Editora ganhou corpo e foi inscrita no registro catalográfico na
Agência Brasileira do ISBN (International Standard Book Number) – Fundação Bibliote-
ca Nacional, que é um sistema internacional padronizado que identifica numericamen-
te os livros por autor, título, assunto, etc.. Desta forma, ganhamos todos, associados da
ABP, mais uma promoção no contexto geral da psiquiatria: a ABP Editora.

debate hoje | 3
Av. Presidente Wilson, 164 / 9º andar
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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da revista


índice
Ano 1 . Nº4 . Julho/Agosto de 2009

Entrevistas
José Manoel Bertolote
Professor da Faculdade de Medicina de
Botucatu e consultor da Organização Mun-
dial da Saúde acredita que prevenção do
suicídio é questão de saúde pública. pág.06

Euripedes Constantino Miguel


Pesquisador coordena estudos de Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquia-
tria do Desenvolvimento. pág.12

Artigo [Transtornos Alimentares]


Maria Angélica Nunes
Competição entre jovens com transtornos
alimentares através da internet. pág.29

Artigo [Política]
Hélio Lauar
Avalianda a reforma da assistência em
saúde mental no Brasil. pág.33

Opiniões [Drogas e Democracia]


João Alberto Carvalho
e Ana Cecília Marques
Drogas, democracia e saúde. Pág.41
Capa [debate!]
Ronaldo Laranjeira
O direito de não usar drogas. Pág.43

Antipsiquiatria PáG. 17
Posicionamento
[Psiquiatria geriátrica]
Teoria, prática clínica e assistência pública permeiam debate sobre mo-
vimento. Nesta edição da revista Psiquiatria Hoje – Debates, Rogério Associação Brasileira de
Wolf de Aguiar, Francisco Paes Barreto e Marcelo Pio de Almeida Fleck Psiquiatria - ABP
escrevem artigos sobre movimento que remonta à década de 60, cons- Terceira idade: o futuro (e o presente) da
truído sobre críticas à psiquiatria da época como especialidade centrada saúde mental. Pág.47
na prática hospitalar em “Instituições Totais”.

Artigo [Preconceito]
Telmo Kiguel
Direitos Humanos e o Projeto
Discriminação. Pág.46

debate hoje | 5
Entrevista
José Manoel Bertolote

Questão de
saúde pública

P
revenção do suicídio. Os números re- causas de morte entre jovens do sexo masculino.
lacionados ao tema mostram sua im- Então deixa de ser uma questão da dimensão da
portância: são 24 mortes por dia no taxa de suicídio e passa a ser um problema real de
Brasil e três mil em todo o mundo, saúde pública. A primeira causa de morte é homi-
além de 60 mil tentativas. As doenças cídio, a segunda é acidente e a terceira é suicídio.
mais relacionadas com esses casos são depres- Antes de qualquer doença. Então essa é a primeira
são, alcoolismo, esquizofrenia e transtornos de mensagem: os jovens no Brasil estão morrendo de
personalidade. Representam quase 90% dos ca- violência, não de doença.
sos. A apresentação do professor da Faculdade de
Medicina de Botucatu, que durante 20 anos foi A segunda mensagem: o suicídio tem uma estrei-
coordenador da equipe de transtornos mentais e ta conexão com doença mental. Todos os estudos
neurológicos na sede da Organização Mundial da mostram que 90% das pessoas que se suicidam
Saúde, em Genebra, dialoga com uma campanha têm transtorno mental. Em geral, se isso acontece
de prevenção ao suicídio organizada pela ABP e é porque não foram bem atendidos. Então, embo-
lançada no XXVII Congresso Brasileiro de Psiqua- ra essas três causas sejam externas, ou violentas
tria. Confira a entrevista. como nós chamamos, por trás do homicídio não
tem necessariamente uma doença mental, pode
O que o senhor pretende trazer para debate em ter álcool e drogas, por trás do acidente também,
sua conferência no CBP? mas por trás do suicídio existe como fator causal
direto uma doença mental.
Fundamentalmente, são algumas mensagens. A
primeira delas é que suicídio é um problema grave E em uma proporção de 90%.
de saúde pública no mundo. No Brasil, se consi-
derar toda a população, o suicídio tem uma frequ- Isso. Não são alguns, é a imensa maioria. Portan-
ência muito baixa. Entretanto, se especificar gru- to, o que nós temos que fazer é identificar esses
pos populacionais, que é o que a epidemiologia grupos e tratar adequadamente, pois grande parte
faz, você verá que ele está entre as três primeiras deles acaba se suicidando por que não são identi-
ficados ou não são tratados adequadamente. Isso idosos. Mas como no Brasil há muito mais jovens
é uma mensagem geral, que eu daria para qual- do que idosos, em números absolutos aparecem
quer audiência. Pode ser médico geral, policial, mais suicídios de jovens.
professor de escola, qualquer um, tem que saber
essas coisas. Se olhar apenas alguns números, pode-se ter
uma falsa impressão?
Eu vou especificar um pouco mais a mensagem
para psiquiatras e entrar em pormenor quais são os Sim. E a abordagem é totalmente diferente em
transtornos mentais mais comumente associados como se faz prevenção do suicídio em um jovem
com o suicídio e quais são as melhores interven- de 18 anos e com uma velinha de 85.
ções para esses transtornos. Como um exemplo,
o suicídio tem uma taxa muito alta em pacientes As pessoas que desenvolvem ideação suicida cos-
com transtorno bipolar. Os pacientes com trans- tumam procurar o sistema de saúde?
torno bipolar acompanhados adequadamente com Não. A discussão nessa área é que a ideação sui-
Lítio têm uma redução brutal na taxa de suicí- cida tem muito menos a ver com o suicídio do
dio. São poucos casos, porque a prevalência de que se imagina. Quando você faz inquéritos po-
transtorno bipolar é relativamente baixa. Então, pulacionais, sobretudo em jovens, na maioria dos
isso não chega a ser uma quantidade que pese na países mais de 20% dos jovens pensam em sui-
população geral, mas é o exemplo mais brilhante cídio. Ou seja, dois em cada dez indivíduos. Mas
de prevenção ao suicídio tratando doença mental: na verdade, vão chegar ao suicídio dois em cada
é o tratamento do transtorno bipolar com Lítio e 100 mil. Então há uma enorme distância entre o
acompanhamento psiquiátrico. pensamento e o suicídio consumado ou mesmo a
tentativa de suicídio. O conceito que se forma en-
Embora, em tese o psiquiatra não possa interferir tre os pesquisadores atualmente é que a ideação
no nível de violência da sociedade, homicídios e suicida é uma coisa que está no ar, muita gente
acidentes, no suicídio efetivamente pode. É uma pensa, mas poucos chegam a fazer um plano e
contribuição que começa pequena, aos poucos, tentar o suicídio.
mas que atinge uma proporção importante. Os
diagnósticos mais frequentemente associados Se a ideação não é um indicador preciso de uma
com suicídio são depressão, alcoolismo, transtor- possível tentativa de suicídio, existe algum
no de personalidade e esquizofrenia. Com exceção outro sinal que a pessoa emite antes disso?
do transtorno de personalidade, que tem um ma-
nejo difícil e complexo, o manejo da depressão, Sim, existem muitos. Talvez eu vá responder sua
do alcoolismo e da esquizofrenia é absolutamente pergunta de uma outra forma, mas em todo caso
padrão hoje. Não tem por que os pacientes não de paciente com depressão, alcoolismo ou esqui-
terem esse tratamento. O fato é que não têm e zofrenia o suicídio deveria ser investigado. Nesses
acabam se suicidando. pacientes, a ideia é muito mais grave do que em
um adolescente que pensa em se matar por ter
Digamos que, em termos “jornalísticos”, essa será tirado nota baixa, que depois de pouco tempo não
a minha conferência. Vou apresentar dados, nú- pensa mais em se suicidar. Em casos de depres-
meros sobre comparações geográficas sobre como são, alcoolismo ou esquizofrenia, os sintomas vão
é no Brasil e em outros locais do mundo, como piorando até um momento em que a pessoa não
é em homens e mulheres, jovens e adultos. Uma aguenta mais. E muitas vezes não se pergunta. Há
outra coisa relevante é que quando você olha a um mito de que você não pode perguntar sobre
taxa de suicídio, a proporção, ela é altíssima em suicídio porque despertaria a ideia, mas no sis-

debate hoje | 7
Entrevista
José Manoel Bertolote

tema de saúde o suicídio deveria ser investigado vai demorar 15 dias, 20 dias, até três meses, o
sistematicamente, pelo menos nesses casos que paciente pode se suicidar antes disso. Tem que en-
têm uma associação frequente. caminhar de forma que o paciente seja atendido.
Não é só se “livrar da carga”, tem que assegurar
Agora, tentando responder mais diretamente à que alguém o atenderá.
sua pergunta, a pessoa que está com uma séria
intenção de suicídio começa a dar vários sinais. Qual deve ser o comportamento da família e
Em idosos, um sinal muito dramático é que a pes- das pessoas próximas?
soa começa a se desfazer de todos os seus bens.
Se uma pessoa idosa, com uma doença crônica Depende do paciente. O médico que lida com a
irreversível, que pode ser depressão, síndrome crise suicida vai dizer sistematicamente que preci-
de dor crônica, câncer, começa a distribuir seus sa fazer um contato com a família. Se o paciente
bens, é um sinal dramático de risco de suicídio. puser algum obstáculo, dizendo “não quero que
Outros falam claramente e pedem ajuda, mas nor- alguém saiba disso”, o que é muito raro de acon-
malmente não se pede ajuda para profissional de tecer no Brasil, mas que é comum em países da
saúde. A pessoa que está em uma dificuldade, América do Norte e da Europa, o médico não pode
uma crise suicida, vai falar com amigos. Por que fazer nada. Aqui no Brasil se trabalha bem com a
a maioria das pessoas não entende que o suicídio família, então o profissional deve dizer para o pa-
é uma questão de saúde. Para a maioria é uma ciente que precisa fazer um contato com a família.
questão filosófica, religiosa, de vida. Então, o Se ele consentir e a família também concordar,
profissional de saúde não pode esperar que o pro- a discussão é dizendo que essa é uma crise, um
curem por causa de risco de suicídio. Ele tem que problema de saúde e que o médico vai precisar
ser ativo, buscar onde está o risco de suicídio. de ajuda da família. Quando o risco de suicídio
é eminente, não vejo outra alternativa além de
Como os profissionais não especializados em internar o paciente. Por que a família dificilmente
saúde mental podem colaborar com a preven- vai conseguir vigiar o paciente 24 horas. Quando
ção ao suicídio? eu digo internar, é em uma instituição que real-
mente vai acompanhar o tempo todo. Se a equipe
O primeiro passo é, no mínimo, investigar o risco. se descuida por 10 minutos, é nesse tempo que o
Se ele aparecer, deve encaminhar para um serviço paciente vai se suicidar. Há casos terríveis em que
especializado. Eu não espero que os clínicos ge- a pessoa se enforca com o cadarço, com o cinto
rais tenham uma formação para lidar com a crise do roupão.
suicida, que é um problema especializado. Aqui
em Botucatu nós estamos desenvolvendo com a Em geral, a família não consegue armar um es-
rede básica da prefeitura um programa de atenção quema para alguém ficar acordado, ao lado do
a pacientes com depressão. Em toda avaliação, a paciente, 24 horas por dia. O paciente com risco
investigação sobre risco de suicídio é obrigató- intenso de suicídio tem que ser internado como
ria. A recomendação é: se for positivo, encaminhe em uma UTI. Precisa ter alguém acompanhando
imediatamente para um serviço especializado de até quando o paciente precisa ir ao banheiro, ao
saúde mental ou para o pronto-socorro, que tem menos que exista uma estrutura como alguns hos-
a instrução do que fazer em um caso desse. pitais europeus já têm, sem nenhuma saliência. O
Se um clínico geral, um neurologista ou um onco- chuveiro sai do teto, a maçaneta e a torneira são
logista percebe o paciente com risco de suicídio, embutidas, não há onde pendurar nada. Se exis-
deve encaminhar imediatamente. E quando eu te alguma saliência que permite pendurar alguma
digo isso é por que quando o médico encaminha, coisa ela é construída de forma a não suportar
acha que fez o serviço, mas como o atendimento mais que 20 quilos. Isso acontece nos sistemas

8 | debate hoje
contra incêndio, com os “chuveirinhos” que ligam dessas doenças com o risco de suicídio?
com presença de fumaça. Esse é um hospital pro-
jetado para minimizar o risco, mas ainda assim No alcoolismo, que é um pouco diferente de ou-
precisa de atenção 24 horas. tras drogas, é pela comorbidade com depressão.
Invariavelmente, nesses casos, o paciente alco-
Realmente não é uma ideia que passa e vai olista entra em depressão, uma coisa complica a
embora. É um problema sério que precisa de outra e ele entra em um processo de tratamento
acompanhamento adequado, certo? com diversas internações e recaídas no qual ele
perde família, emprego e a situação fica cada vez
Na doença mental sim. Como disse, em adolescen- pior. Ele não consegue vencer a doença, o tra-
tes, a ideia vai e vem. Agora, em uma pessoa com tamento não é muito bem feito, a depressão se
doença mental crônica e grave, cada recaída é um amplia e chega ao suicídio. Esse é um mecanismo
peso maior. Nos portadores de esquizofrenia, rara- habitual.
mente é no começo da doença. É depois de qua-
tro ou cinco internações, quando o paciente não No paciente com dependência de drogas, em geral
aguenta mais, sabe que a vida será assim. Nesses o suicídio é meio que disfarçado como overdose.
casos, cada dia de internação é um peso a mais. Então o paciente ingere uma dose excessiva, que
Na depressão acontece um fenômeno curioso que ele sabe por experiência ser letal. Então muitos
é o deprimido profundo, grave, não tem nem como desses casos são registrados como morte aciden-
planejar o suicídio. E justamente quando começa tal por overdose quando na verdade foi suicídio. A
a melhorar o risco aumenta. Por que ele continua menos que o paciente deixe uma mensagem expli-
com a ideação suicida e adquire com o tratamento citando isso, não é registrado como suicídio.
a energia pra idealizar um plano. É algo paradoxal.
Há quem diga que o medicamento antidepressivo Então, por casos como esse, os índices são me-
aumenta o risco de suicídio, mas na verdade ele nores que a realidade?
possibilita ao deprimido executar o plano. É um
momento especial, delicado. O paciente com Al- Praticamente no mundo inteiro as taxas de suicí-
zheimer, por outro lado, só se suicida bem no co- dio são subestimadas. Muitos casos são registra-
meço da doença, quando ele ainda percebe o que dos como acidente ou parada cardíaca, por exem-
está acontecendo e tem condição de controlar o plo, porque há vários mecanismos que contribuem
ambiente. Assim que a doença avança, ou ele não para isso. Há países no qual o seguro não é pago
se dá mais conta ou nem consegue planejar, pelo se o paciente morrer por suicídio. Então a viú-
déficit cognitivo, como vai se matar. São as fa- va dá um jeito com o médico, que acaba sendo
ses críticas. No Alzheimer, à medida que a doença “bonzinho” e dá um atestado de óbito com ou-
avança, o risco diminui. Na depressão, alcoolismo tra causa. Em outros locais, isso desencadeia um
e esquizofrenia, ele aumenta. tremendo processo criminal; o médico não quer
ser envolvido e não registra. Outros, por motivo
No caso da depressão, o risco também é alto quan- religioso. Até recentemente, padres e bispos não
do o paciente emerge da situação grave. É algo enterravam suicidas. Se a família é muito católica,
que a gente observa como um caso típico em hos- pede ao médico um atestado diferente para po-
pital psiquiátrico. O paciente começa a melhorar der cumprir o rito religioso. Nós sabemos que no
e a equipe abaixa a vigilância. É nesse momento mundo inteiro a taxa real de suicídio é um pouco
que ele se suicida. maior do que está registrada. Em alguns países,
muito maior. Um estudo feito no México mostrou
Especificamente na questão do alcoolismo e que, dependendo da região, o número de casos
da dependência química, como se dá a relação reais chegou a 10 vezes o número de registros.

debate hoje | 9
Entrevista
Euripedes Constantino Miguel

Um novo
paradigma
P
ara o coordenador do Instituto Nacional tar intervenções. Para isso, usamos o que temos hoje
de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do de desenvolvimento nas neurociências, por exemplo.
Desenvolvimento para a Infância e Ado- Integrando conhecimentos de áreas como genética
lescência, o desenvolvimento científico da e neuroimagem, acreditamos que será possível criar
especialidade permitirá a criação de inter- uma metodologia para definir o indivíduo de risco,
venções precoces voltadas para a prevenção de doen- aquele com alguém na família afetado e genes de vul-
ças mentais. A definição de fatores de risco e o estudo nerabilidade que, diante de certos fatores ambientais,
de estratégias para promoção da saúde são as metas têm mais risco de desenvolver a doença.
de pesquisa do grupo liderado pelo Departamento de
Psiquiatria da Universidade de São Paulo, entrevista- Quando a doença começa a se desenvolver, antes
do pela revista Psiquiatria Hoje – Debates. mesmo dos sintomas propriamente ditos, pode haver
alterações no cérebro. Os instrumentos de neuroi-
Qual a principal proposta da psiquiatria do desen- magem podem mostrar que há um desenvolvimento
volvimento? atípico. Então vamos testar intervenções para trazer
essas pessoas a um desenvolvimento típico. Isso
O pressuposto básico que motiva uma nova proposta, ainda antes de um quadro clínico preenchendo os
um novo paradigma, é a ideia de que os transtornos critérios que nós utilizamos hoje para fazer diagnós-
mentais são transtornos do cérebro. Eles começam na tico em psiquiatria.
infância e são, portanto, transtornos do desenvolvi-
mento cerebral. Hoje, quando tratamos os transtornos Então o primeiro passo é definir os indivíduos que
mentais, que em geral são crônicos, nossos instrumen- têm risco de desenvolver a doença e em seguida
tos terapêuticos trazem benefício apenas parcial, e não testar intervenções?
recuperação total. Então, baseado nisso a gente che-
ga em um novo paradigma, uma nova visão, que é a Isso. Trazer o indivíduo de uma trajetória atípica de
psiquiatria do desenvolvimento com uma proposta de, desenvolvimento para uma trajetória típica.
para conseguir melhores resultados, intervir antes da
doença acontecer, na fase prodrômica ou pré-mórbida. Como a parte genética é importante, podem ser
O objetivo com essas intervenções é evitar que a doen- testadas intervenções no período pré-natal?
ça apareça ou que apareça de forma atenuada, para que
nossas abordagens terapêuticas possam ser eficazes no Antes disso, deixa só explicar sobre a genética em
sentido de levar à cura ou à recuperação total. psiquiatria. Sabemos que os transtornos psiquiátricos
obedecem o modelo de transmissão das doenças com-
Uma das propostas é desenvolver uma tecnologia que plexas. São doenças poligênicas, ou seja, são muitos
permita a identificação de indivíduos de risco e tes- genes envolvidos na etiologia dos transtornos psiqui-

12 | debate hoje
átricos. As variações no genoma explicam muito pou- materno. Ou seja, naquela fase inicial da vida o com-
co a variação do fenótipo, do quadro clínico. O am- portamento de lamber está alterando ou silenciando
biente contribui, mas sozinho também explica muito certos genes que vão ser importantes nesse compor-
pouco. Sabemos hoje que é a interação entre ambos tamento na fase adulta.
que é determinante para tentar entender a natureza
dos transtornos mentais. Quando identificamos genes, Além disso, os filhotes de ratos que não lambem res-
descobrimos aqueles que fazem com que a pessoa seja pondem ao estresse de uma forma mais intensa du-
mais suscetível a fatores ambientais. Essa é a ideia que rante a vida toda. E essa resposta ao estresse, que é
temos hoje. O indivíduo tem um gene de vulnerabilida- uma avaliação feita pelo nível de cortisol, também
de, mas não necessariamente terá a doença. Ele precisa pode ser transposta para o homem. As pessoas que
interagir com fatores ambientais. têm maus cuidados maternos e sofrem estresse preco-
ce têm uma predisposição para desenvolver diversos
Mais recentemente, aprendemos que existe um modo transtornos mentais, como ansiedade e depressão, e
de transmissão epigenético, que é uma área que es- também têm mais chances de desenvolver doenças
tuda como o ambiente pode interferir na questão ge- sistêmicas, como obesidade, diabetes e hipertensão.
nômica. Então, sem alterar a sequência do DNA, o
ambiente pode interferir na regulação de certos genes Para a psiquiatria do desenvolvimento, se você quiser
e, em sua maior expressão, no silenciamento deles. alterar o desenvolvimento de determinado transtor-
Essa transmissão epigenética é muito importante nos no mental, as fases iniciais da vida são muito im-
estágios iniciais da vida. Após o nascimento, certos portantes e certos comportamentos, como cuidado
fatores ambientais podem fazer ou não alguns genes maternal, com certeza têm implicações a longo pra-
serem silenciados. zo. Se pensarmos que estamos querendo intervir o
mais precocemente possível, as fases iniciais após o
A partir de modelos animais, nós estudamos mães nascimento seriam muito importantes. Agora, como
“cuidadoras”, que em um estudo feito com roedores a gente sabe também que o período de gestação e
são os animais que têm um comportamento de lam- o próprio parto também envolvem vários fatores de
bedura das crias. Percebemos que esse comportamen- risco, eles também devem ser incluídos nas interven-
to, que na transposição para o ser humano seria um ções da psiquiatria do desenvolvimento. Em mães que
maior cuidado maternal, é importante para expressão fumam, por exemplo, os filhos têm maiores chances
de vários genes. As mães que cuidam mais de seus fi- de desenvolver transtorno de déficit de atenção e hi-
lhos aumentam as chances de que eles cuidem melhor peratividade, em trauma de parto aumenta a chance
da prole subsequente. Naquelas que não lambem seus de esquizofrenia e assim por diante. Então, um pro-
descendentes, que na transposição para o ser humano grama de profilaxia que pense em longo prazo deveria
seriam mães que cuidam menos, tem filhotes que ao começar a partir da gravidez.
ficarem adultos também cuidarão menos de sua prole.
Quando você troca os descendentes, colocando os fi- Sabemos que quem teve cuidados maternos precá-
lhotes da roedora que lambe bastante para serem cui- rios e sofreu estresses precoces durante o desenvol-
dados pela mãe que não lambe, eles não vão lamber vimento, até maus tratos e abusos na infância, tem
sua prole. E o contrário acontece com a cria das que mais chances de desenvolver diversos transtornos
não lambem. Quando são criados pela “lambedora”, mentais. Então, quando a gente pensa hoje em cui-
eles adquirem o hábito de lamber no futuro. dado materno, conseguir que essas mães desenvol-
vam seu potencial máximo desde a gestação até as
Então tem alguma coisa no ambiente, o comporta- primeiras fases da vida, com certeza isso pode ter
mento maternal, que está alterando o comportamento um grande impacto, não só para impedir o desenvol-
desses animais quando adultos. E vão transmitir es- vimento de transtorno psiquiátrico como também de
sas características nas gerações subsequentes. Agora, doenças sistêmicas.
isso só acontece na primeira semana de vida. Se você
trocar os ratinhos depois de um mês, esse comporta- Hoje em dia existem vários programas domiciliares
mento já não sofre mais influência do comportamento que procuraram intervir precocemente em populações

debate hoje | 13
Entrevista
Euripedes Constantino Miguel

de risco, como por exemplo mães grávidas solteiras tos e seguro-saúde, mais receita, no sentido que o
e adolescentes. Nesse sentido, o melhor estudo que grupo da intervenção está trabalhando e gerando im-
pude conhecer foi feito na Universidade do Colorado, postos, e menos gastos com serviços de saúde. Então
que teve como protagonista um pesquisador chama- ele é custo-efetivo. Investir nesse tipo de programa
do David Olds. Esses programas surgiram no final da tem retorno para a sociedade.
década de 70 e começo da década de 80. Esse que
estou citando investiu em enfermeiras. Existiu um Então, porque a psiquiatria do desenvolvimento é
outro programa mais voltado para os pais, outros para um novo paradigma?
profissionais de educação à partir dos três anos de
idade. Mas nesse que estou chamando atenção, que é Por que o enfoque passa a ser mais do que combater a
o mais bem feito, com metodologia adequada, esco- doença, mas promover a saúde. Então, não é só olhar
lheram mães adolescentes grávidas pela primeira vez para fatores de risco, que aumentam a chance de a
e de nível socioeconômico baixo. Eles cuidaram delas pessoa desenvolver a doença, mas em fatores proteto-
uma vez a cada 15 dias no período gestacional, até o res. Intervenções e fatores que protegem: pais que cui-
primeiro ano de vida da criança e depois continuavam dam, supervisionam e monitoram o desenvolvimento
seguindo essas crianças por mais um ano, mensal- de seus filhos faz com que eles tenham menos chances
mente. Então enfermeiras treinadas iam no domicilio de usar drogas. São fatores protetores para doenças
dessas mães e utilizavam todo um protocolo muito mentais também. É promoção da saúde, não só com-
bem definido, que envolvia diversas medidas, não só bate de doenças.
para ajudar a mãe e fazer uma ponte entre ela e os
outros cuidadores de saúde para que tivesse um pré- A ênfase não é tanto no tratamento, mas na preven-
natal adequado, mas também uma preocupação muito ção. Outro aspecto relevante é que essa visão da in-
grande no sentido de ajudar em sua realização pes- teração entre fatores genéticos e ambientais permite
soal. Que pudesse ter uma auto-suficiência. Também que você integre abordagens diferentes, como a visão
foi feito um trabalho importante para que elas não neurobiológica e a visão psicodinâmica, por exemplo,
engravidassem de novo rapidamente, que buscassem onde o ambiente e as influências afetivas fazem parte
envolvimento dos pais e outros familiares no cuidado do modelo em que acreditamos que o ambiente está
dessa criança e várias condutas no sentido de ajudar interferindo na neurobiologia, no gene e vice-versa.
essa mãe, além de informações sobre o papel delas Então, isso permite que se crie um novo modelo epis-
como mães. Eles seguiram essas crianças e mães por temológico que junta o que já estudamos esses anos
mais de 15 anos. Não investiram tanto em desfechos todos, sobre a importância de aspectos ambientais
psiquiátricos, mais em problemas legais como pri- agora com bases científicas para entender como esses
sões, condenações, sentenças. Em relação ao grupo aspectos interferem na expressão gênica e no desen-
controle, as mães que participaram da intervenção volvimento cerebral a longo prazo.
tiveram uma frequência muito menor de problemas
legais. Isso foi mais intenso naquelas que eram mais Uma última questão importante é que essa visão é
necessitadas. Quanto mais pobres ou mais jovens, custo-efetiva. É mais barato você investir para que a
mais elas se beneficiaram desse programa. E os filhos população não fique doente do que tratar um indivíduo
também tiveram menos problemas legais. O espaço que está doente. Custa mais caro e o impacto desse in-
entre uma gravidez e outra também aumentou. As divíduo doente ocorre de diversas maneiras.
crianças que participaram do programa estavam mais
prontas para entrar na escola e com mais capacidade Além disso, mesmo que não existisse essa relação
cognitiva também. de custo-benefício, não faria sentido deixar a pessoa
adoecer para depois tratá-la...
Do ponto de vista custo-efetivo, também se viu que
para cada dólar investido nesse programa, há um re- Pois é, também não faria sentido, se a gente soubesse
torno de 3 dólares, que vem a partir de menos gastos como fazer isso. Seria antiético, mas mesmo assim é
com problemas legais, com investimento em orfana- mais barato.

14 | debate hoje
Debate
matéria de capa

Antipsiquiatria
Teoria, prática clínica e assistência pública
permeiam debate sobre movimento. Nesta
edição da revista Psiquiatria Hoje – Debates,
Rogério Wolf de Aguiar, Francisco Paes Barreto e
Marcelo Pio de Almeida Fleck escrevem artigos
sobre movimento que remonta à década de
60, construído sobre críticas à psiquiatria da
época como especialidade centrada na prática
hospitalar em “Instituições Totais”.

Com a palavra:

Francisco Paes Barreto: Membro da


Associação Brasileira de Psiquiatria (TEP), Mem-
bro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Asso-
ciação Mundial de Psicanálise (AME).

Rogério Wolf de Aguiar: Professor


Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medi-
cina Legal da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e Mestre em Psiquiatria pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.

Marcelo Pio de Almeida Fleck:


Professor Associado. Departamento de Psiquia-
tria e Medicina Legal Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Debate
matéria de capa

moralista que o tratamento moral constituir-se-ia


como o fundamento de todo tratamento psiqui-
átrico. Embora os textos psiquiátricos tivessem
Da psiquiatria à saúde exorcizado as referências à moral social —depois
de enfatizá-la por mais de um século—, ela so-
mental breviveria sub-repticiamente sob o manto da nor-
malidade social.
Francisco Paes Barreto: Nos anos
sessenta, tivemos a antipsiquiatria, a partir prin- Na vertente institucional, está a crítica do mani-
cipalmente das contribuições de Foucault, na cômio, enquanto instituição total. Para Foucault,
França, de Laing e Cooper, na Inglaterra, e de Pinel não teria libertado os loucos de suas amarras;
Basaglia, na Itália. Uma crítica da psiquiatria, na pelo contrário, teria reservado para eles o cerco dos
qual se podem distinguir três vertentes: a teórica, hospícios. A fachada médico-terapêutica serviria
a profissional e a institucional. para legitimar o regime de exclusão e segregação.
Os loucos seriam os herdeiros da sina dos leprosos.
Na vertente teórica destacarei o questionamento Destituídos da fala, da circulação e inclusive de
do conceito de normalidade, ou, mais precisamen- seus direitos civis, só lhes restaria o confinamento,
te, do binômio conceitual normalidade-doença situação que reforçaria a crença de que a normali-
mental. O hífen, muito mais do que separar, reu- dade nada teria a ver com a loucura.
niria os dois termos. Ou seja, a doença mental
não poderia ser reduzida a um extravio do cami- Quem melhor extraiu conseqüências das idéias
nho certo da normalidade, ou a uma excrescên- anti-psiquiátricas foi Basaglia. O eixo de suas
cia que nada teria a ver com ela. Pelo contrário, proposições pode ser condensado na fórmula de-
normalidade e doença mental seriam partes de sinstitucionalização da loucura. Assim se consti-
um mesmo contexto, frutos de uma mesma árvo- tuiria a sua psiquiatria democrática: primeiro, pela
re, uma inconcebível sem a outra. A doença men- desmontagem dos muros institucionais que en-
tal, não estranha à normalidade, e vice-versa: a gessam a loucura (o hospício em primeiro plano),
normalidade, não estranha à doença mental. Mais e segundo, pela criação de novos serviços, que
do que isso, uma remeteria continuamente à ou- se introduziriam na cidade, re-inserindo o louco
tra, havendo entre elas, portanto, algo da ordem ou evitando a sua exclusão. Depois de Basaglia,
da causalidade, embora não se tratasse de uma o objetivo da reforma psiquiátrica passou a ser
causalidade linear. Assim sendo, não deveria ser a negação do hospital psiquiátrico, denunciado
objetivo do psiquiatra conduzir o doente mental à como lugar de exclusão, como manicômio, e que,
normalidade, mas, retirá-lo desse beco sem saída como tal, deveria ser abolido. Situar o louco na
e tentar levá-lo a uma outra condição, que, em cidade, mais do que uma questão geográfica, seria
certo momento, Cooper chamou de metanóia. considerá-lo como cidadão.

Na vertente profissional situou-se o questiona- Quais os efeitos desse movimento? Perante questão
mento do psiquiatra. Ele seria a encarnação do de tal amplitude, salientarei um aspecto. A refor-
movimento inaugurado por Pinel, no qual Fou- ma psiquiátrica deu contribuição decisiva para a
cault sublinha dois aspectos: a concepção da lou- transformação do campo psiquiátrico, embora ou-
cura como doença, no sentido médico, e a con- tros agentes tenham participado do processo de
cepção da loucura como erro, no sentido moral. A mudança. Refiro-me à constituição do campo da
partir de então, a loucura passaria a ser tratada saúde mental. Não se trata aqui, evidentemente, de
como uma doença cujas principais causas seriam algo homogêneo; pelo contrário, existem numero-
morais. É no contexto desse discurso médico- sas versões de políticas de saúde mental. Procurarei

18 | debate hoje
indicar, não obstante, o que há de comum a todas do comportamento, ou mesmo a de sofrimento
elas, o que significa dizer o que caracteriza o campo mental. Embora não seja explícito, não há como
da saúde mental. Privilegiarei, uma vez mais, as ver- delimitá-las senão a partir da norma social; ou
tentes teórica, profissional e institucional. seja, como desvio da norma ou como perda da
faculdade normativa.
Do ponto de vista teórico, a doença mental deixa
de ser considerada doença no sentido estritamente Na verdade, desde sempre foi assim. Quando Pinel
médico, tal como o fazia a psiquiatria clássica, e se dirigiu à Bicêtre e à Salpêtrière para o seu ato
passa a ser concebida como sobredeterminada por fundador, já encontrou lá, previamente seleciona-
múltiplos fatores. É o que está presente na idéia de dos pela sociedade, os tipos que deveria investi-
sofrimento mental, ou mesmo de transtorno mental. gar e tratar. Mais adiante, e durante dois séculos,
a psiquiatria tentou encontrar as bases anatômi-
Do ponto de vista profissional, a passagem do cam- cas e fisiológicas capazes de confirmar as doenças
po da psiquiatria para o campo da saúde mental mentais como doenças cerebrais. Em vão. Tem
representou a substituição da hegemonia absoluta sido sempre a partir da norma social como hori-
do psiquiatra, em prol de um trabalho realizado por zonte que se isolam os quadros mentais. Antes de
vários profissionais, de modo mais ou menos disci- ser cerebral, a doença mental é social.
plinado, mais ou menos conflitivo. Os trabalhado-
res da saúde mental dominam agora o cenário. Poderia ser dito que a base estatística da norma
social daria cienticificidade a esse critério. En-
Do ponto de vista institucional, houve o estanca- tretanto, conforme assinala Jacques-Alain Miller,
mento do modelo hospitalocêntrico, sendo que as ainda que tenha base estatística, adaptar-se a ela
propostas mais incisivas pregam a abolição sumá- é uma decisão política.
ria do hospital psiquiátrico. A ênfase recai sobre
os serviços de saúde mental, que se apóiam em A questão principal, como se vê, não é a defi-
concepções como a rede ou o setor. nição de transtorno ou de sofrimento mental a
partir da norma social (ainda que ela não este-
O campo da saúde mental, da forma pela qual está ja explícita). A questão principal é fundamentar
constituído, na contemporaneidade, apresenta al- o tratamento na normalização, ou no retorno à
guns avanços, em relação ao campo da psiquia- normalidade. Quando as coisas são postas nesses
tria. Dentre eles: a concepção mais complexa dos termos, e é nesses termos que elas são postas,
problemas, a diversificação do trabalho profissio- permanece intacta, ou mesmo reforçada, a lógica
nal, o encolhimento da segregação nos hospícios da exclusão. A normalização como base do trata-
e a inserção dos serviços na cidade. Todavia, é mento é a versão contemporânea do tratamento
chegada a hora de uma crítica dos modelos da moral, a sua reedição. É uma perspectiva que põe
saúde mental, ou, como preferirei, do modelo da como imperativo o todos iguais. Uma perspecti-
saúde mental. Por comodidade, ou por coerência, va que visa à anulação da diferença. Ora, assim
manterei a mesma ordem que venho seguindo até como tantos outros transtornados ou sofredores,
agora, considerando as três perspectivas: teórica, o louco é irredutivelmente diferente; vê-se então,
profissional e institucional. com clareza, o impasse no qual desemboca uma
diretriz como essa.
Anti-saúde mental
Miller afirma, em outro momento, que não há
-1- definição de saúde mental que não seja ordem
No cerne do questionamento teórico da saúde social. Com efeito, o objetivo da saúde mental é
mental está a noção de transtorno mental ou cuidar dos perturbadores da ordem social. Logo

debate hoje | 19
Debate
matéria de capa

em seguida, ele corrige a sua definição: há dois sional, o emprego maciço de modelos de capa-
tipos de perturbadores. Uns, considerados res- citação simplórios e pobres. Cada ator tem seu
ponsáveis, são encaminhados à Justiça, para que papel circunscrito e deve ser pragmático, segundo
sejam punidos; outros, considerados não respon- uma ótica de resultados objetiváveis e de curto
sáveis, são encaminhados à Saúde Mental, para prazo. As tarefas seguem uma rotina sufocante e
que sejam curados. Lacan, por sua vez, comenta infernal: nada mais igual a um dia do que outro
que os trabalhadores da saúde mental agüentam dia. Tudo o que foge a esse rito reverbera como
a miséria do mundo, e que fazer isso “é entrar no um despropósito. O que se espera é quantidade,
discurso que a condiciona, nem que seja a títu- quantidade, nada mais do que quantidade. O tem-
lo de protesto”. Refere-se ao discurso do Senhor po é sempre o tempo da pressa; não existe o tem-
contemporâneo —o discurso capitalista—, que po da pausa. Ou quando existe, é mal visto. Num
trouxe a globalização que conhecemos na atua- esquema como esse, urge padronizar as condutas
lidade. O mundo globalizado introduz a univer- e tipificar os pacientes. Formação exigente? Só
salização de modos de gozo uniformizados. É um para tornar as coisas menos viáveis.
mundo padronizado, onde impera a ideologia da
avaliação; em que se pretende a quantificação da Na saúde mental, há cada vez menos lugar para a
própria subjetividade; em que prevalece o homem clínica, para a singularidade, para a criatividade,
sem qualidades. Nesse contexto, tudo o que é da para a pesquisa, para o debate. O que vale é o ati-
ordem da diferença ou da singularidade é mal to- vismo, a palavra de ordem, o tecnicismo, a produ-
lerado. Motivo pelo qual Lacan previu, para nosso tividade. Sim, produzir o máximo com o mínimo
futuro de mercados comuns, uma extensão cada de gastos, como convém ao discurso do mestre
vez mais dura dos processos de segregação. contemporâneo. A qualidade do tratamento im-
porta pouco. Não há como evitar a conclusão: o
A saúde mental trabalha para a normalização e que se busca não são soluções minimamente efi-
por definição é ordem social. Por conseguinte, cazes para os casos, mas, sim, medidas para aco-
ainda que tenha contribuído para reduzir a segre- modar as aparências e remendar a ordem social.
gação no nível dos hospícios, ela pode contribuir
para reforçá-la, em outros níveis. -3-
Agora, o aspecto institucional. Distribuir os servi-
-2- ços na cidade, como passo indispensável à inser-
No que concerne o aspecto profissional, a saúde ção do paciente: é a idéia régia da saúde mental,
mental parte da perspectiva de que o seu objeto de em contraposição ao confinamento no hospício.
trabalho é complexo, tanto assim que exige pro- Todo o problema surge, porém, como foi dito,
fissionais de várias áreas. Trata-se, a meu ver, de quando se evidencia que se trata da inserção na
um avanço, em relação ao que existia: uma visão normalidade. Os loucos, assim como os transtor-
puramente médica (psiquiátrica), em que outros nados e os sofredores que estou considerando,
atores eram apenas coadjuvantes. No entanto, o são particularmente resistentes a isso.
mínimo que se pode dizer é que, trabalhar em
equipe, isso é algo que requer um planejamento No caso específico dos loucos, há um agravante. A
muito mais exigente. E se temos uma equipe tra- psicanálise demonstra que a psicose é uma expe-
tando de um problema de alta complexidade, não riência que se caracteriza por uma exclusão fun-
há como não privilegiar a questão da formação. damental. A psicose manifesta, ou loucura, está
fora do discurso. A tendência à segregação do
O que se constata, porém, é algo diametralmente louco é um dado de estrutura. O hospício, a rigor,
oposto. Em vez de complexidade, simplificação. é a exclusão de um excluído. Mais do que excluir,
E em vez de aprimoramento da formação profis- ele institucionaliza a exclusão. Livre desse cerco,

20 | debate hoje
as coisas não se resolvem para o louco. Somen-
te a criação de um laço social, mínimo que seja,
poderá retirá-lo da condição em que se encontra.
O que não é tarefa simples. No mundo contempo-
râneo, como foi dito, há um acirramento do con-
ALGUMAS IDÉIAS
formismo, uma discriminação da diferença. O pro- SOBRE A PSIQUIATRIA,
blema maior é que, na saúde mental, o louco se
depara com a exigência do somos iguais, com essa A ANTIPSIQUIATRIA E
máquina de excluir que é o imperativo normali-
zador. A possibilidade de manter-se segregado é
A BUSCA DE UM NOVO
grande; na sua família, nas ruas, onde estiver. É a MODELO DE ASSISTÊNCIA
neo-segregação.
EM SAÚDE MENTAL*
Como tornar as coisas diferentes? O desafio é a
superação do binômio exclusão-inserção, ou do bi- Rogério Wolf de Aguiar: Uma das
nômio transtorno-normalidade; um tratamento que características mais marcantes dos principais mo-
vise um acordo não do sujeito com a sociedade, vimentos de Reforma Psiquiátrica no mundo in-
mas um acordo do sujeito consigo mesmo, e que teiro é a manutenção da exclusão de pessoas que
crie um laço social a partir de sua singularidade necessitam atendimento, mas que não se enqua-
irredutível. O resultado seria alguém diferente: não dram nos modelos propostos pelos grupos que os
transtornado, embora não normal. Desafio para o adotam. Nenhum movimento até agora conseguiu
qual não se pode esperar apoio do discurso domi- resolver as contradições entre suas propostas teó-
nante, a não ser através de suas brechas. Pelo con- ricas e a prática clínica. Em meu entendimento, o
trário, é preciso remar firme contra a correnteza. maior desafio é o de poder conviver com os limi-
tes de cada área de saber e aceitar os outros sa-
Não é mais tempo da antipsiquiatria. Dela ficou- beres, para evoluir para um novo conhecimento,
nos a herança, essa sim duradoura, de um espírito que seja diferente dos anteriores, mas que deles
crítico que devemos ter sobre o nosso trabalho, se nutra como vertentes.
sobre as nossas convicções e sobre as nossas me-
lhores intenções. Por que não dizer? É tempo da
anti-saúde mental. As abordagens da saúde mental ao
longo dos tempos contemporâneos

Sucessivamente, a assistência em saúde mental pas-


sou pelo modelo hospitalocêntrico, comunidades
terapêuticas, psicoterapia institucional, psiquiatria
de comunidade, psiquiatria de setor ou preventiva,
pela reabilitação psicossocial e, nas últimas dé-
cadas, pelo que tem se convencionado chamar de
reforma psiquiátrica. Permeando esses movimentos,
acrescentaram-se as contribuições da psicanálise,

* Artigo baseado no relatório apresentado na IX Jornada


Gaúcha de Psiquiatria, realizada em Porto Alegre (19 a
22/08/2009) e no capítulo O novo modelo de assistência
à saúde mental, em livro organizado por Maria Lucrécia
Zavaschi, Crianças e Adolescentes Vulneráveis – O atendimento
interdisciplinar nos Centros de Atenção Psicossocial; Porto
Alegre: Artmed, 2009,p.95-9.

debate hoje | 21
Debate
matéria de capa

das técnicas grupais e dos medicamentos. Por um continuou a limitar a expectativa de cura.
lado o progresso no campo da neurociência e, por
outro lado, os movimentos de controle social im- A psiquiatria comunitária, ou de setor, ou preven-
pulsionaram, cada um por seu turno, a mudança dos tiva, postulou levar para o ambiente comunitário,
modelos de diagnóstico e tratamento. no meio em que as pessoas viviam, o tratamento e
mesmo a identificação de fatores de risco, buscan-
Há décadas atrás, o tratamento dos doentes men- do impedir o aparecimento ou minorar os efeitos da
tais foi centralizado nos hospitais. Os hospícios, doença mental. Os anos 1960 e 1970 viram grande
manicômios e casas de alienados e de psicopatas expansão desse modelo, inclusive com programas
acabaram assumindo a imagem do isolamento, de governamentais sendo adotados em mais de um
país. Entretanto, ele enfrentou resistências fortes
pela tendência de “psiquiatrizar” a população,
“Os hospícios, manicômios e casas de promovendo intervenções invasoras da privacidade
alienados e de psicopatas acabaram em um tema tão movediço quanto a saúde mental.
assumindo a imagem do isolamento, Também não foi capaz de resolver a questão da
cronicidade e da tolerância da população com os
de cronificação e de exclusão social.” comportamentos perturbados e perturbadores.
Rogério Wolf de Aguiar
Após a II Guerra Mundial, também localizado prin-
cronificação e de exclusão social. São mais lem- cipalmente nos anos 60 e 70, cresceu um conjun-
brados pelos seus altos muros e pelo seu ambiente to de movimentos sociais, que ficou chamado de
sombrio do que como casas de tratamento. Estas contracultura, que basicamente contestava valores
imagens concorrem com a herança das contribui- estabelecidos na cultura ocidental, clamando por
ções de estudiosos da psicopatologia, como Krae- novas maneiras de viver em todas as áreas. Neste
pelin, Kretschmer, Valejo-Nágera e tantos outros. contexto, David Cooper, formado na cidade do Cabo,
A idéia de que se poderia avançar na reabilitação usou o termo antipsiquiatria (Psychiatry and antip-
modificando o sistema de relacionamento intra- sychiatry, 1967) pela primeira vez, em que contes-
hospitalar, entre a equipe técnica e os pacientes, tava a psiquiatria e a psicoterapia como formas de
teve seu ápice com a criação das comunidades repressão e dominação a serviço da manutenção do
terapêuticas. A partir de 1959, com Maxwell Jo- establishment. Aliou-se a Ronald Laing e outros na
nes, estas ganharam maior notoriedade. Desde Philadelphia Association, que procurava métodos
então, vários hospitais se inspiraram neste mo- alternativos à psiquiatria ortodoxa. Entre outros
delo. Propunham participação ativa dos pacientes médicos, Silvano Arieti também postulava e figura
nas decisões tomadas em práticas terapêuticas da sociedade esquizofrenizante (ou de famílias), e
ocupacionais, nos cuidados com a organização e viam a doença como uma reação a estas influên-
limpeza das enfermarias, na escolha de passeios cias. Thomas Szasz publicou seu livro “O mito da
e jogos, nas assembléias que discutiam problemas doença mental”, também sendo um autor que mar-
de relacionamento e administrativos. Além disso, cou esta época. Todos estes foram autores marcan-
nessas comunidades, também se redirecionou a tes na contestação da visão da psiquiatria, embora
hierarquia centrada no médico, que passou a ser nunca estivessem aliados à contracultura. Ainda no
distribuída por toda a equipe de saúde mental. A fluxo destes movimentos, Franco Basaglia, psiquia-
idéia central era a de que se poderia vivenciar as tra italiano, organizou um atendimento centrado
relações humanas em um ambiente hospitalar de em instrumentos extra-hospitalares, acabando por
tal maneira que servisse de aprendizado para a fechar o Hospital Provincial de Trieste, do qual era
vida na comunidade. Ainda assim, a dificuldade de diretor. Ele não propunha o fim da psiquiatria, mas
transferir esse modelo para a vida extra-hospitalar sim uma transformação radical em seus métodos,

22 | debate hoje
eliminando o atendimento centralizado no manicô- mento do isolamento intramuros tornou-se possí-
mio e reformulando a relação da sociedade com a vel, e isso tem sido fundamental para possibilitar
“loucura”. Este movimento, independente da antip- que todas as tentativas anteriores sejam exercidas
siquiatria, cunhado como “Psiquiatria Democráti- com maior liberdade. Difundiram-se diversas op-
ca”, evoluiu para a aprovação na Itália da Lei 180, ções de tratamento para os transtornos do humor
em 1978, chamada de Lei Basaglia, que estipulava e de ansiedade, não só no terreno das grandes
a substituição gradativa dos manicômios por dis- psicoses. A evidência da eficácia psicofarmacote-
positivos extra-hospitalares, territorializados. rápica se impôs no mundo inteiro. Também não
escapou das críticas, em pleno vigor, de se sub-
É oportuno lembrar Foucault, dedicado a estudar meter às imposições mercadológicas da indústria
as relações de poder nas organizações sociais, que farmacêutica.
postulou que o poder psiquiátrico se estabeleceu
na pós-revolução francesa, quando foram criados Nos países que adotaram reformas mais consisten-
dispositivos legais que modificavam o sistema tes, como Itália (em várias regiões), Estados Unidos,
jurídico penal da época. Antes, para tal crime Canadá, Inglaterra, França e outros, esses movimen-
se aplicava tal pena. Surgiram então as “circuns- tos têm tido avanços e recuos. As justificativas são
tâncias atenuantes” (dentre as quais, a doença várias, desde ideológicas até financeiras.
mental), que equalizavam a pena. Nos tribunais,
ganhou força o diagnóstico psiquiátrico, e os ju-
ízes passaram a ter que dividir seu poder com os O fim do modelo hospitalocêntrico
psiquiatras. Diluía-se cada vez mais o poder abso-
lutista real e do judiciário, e crescia o do médico e A manutenção do modelo manicomial e hospita-
da psiquiatria. Assim, ganhou corpo a psiquiatria, locêntrico não tem mais encontrado defensores.
originária da medicina legal. Entretanto, o abandono desse modelo não tem
garantias da criação de um outro modelo melhor.
Paralelamente, desenvolveu-se a psicanálise, tra- Desconstruir um constructo não é garantia de que
zendo para o campo da saúde mental a proposta haja outro. No vazio dessa passagem, a exclusão
do inconsciente e da necessidade de compreen- continua sendo largamente praticada. Os riscos da
der as fantasias além dos sintomas. Sua propos- manutenção do modelo manicomial e hospitalo-
ta, criada e fortalecida no campo do humanismo, cêntrico são substituídos pelos riscos da desaten-
enfatizava a singularidade do sujeito, com sua ção e da geração de movimentos de resistência
história pessoal intransferível, em contraponto baseados em fatos.
ao sistema diagnóstico médico e psiquiátrico,
visto como uniformizador das idiossincrasias pes- O maior problema da antipsiquiatria e de seus se-
soais. Sua influência foi grande nas classificações guidores explícitos ou mascarados é a negação de
psiquiátricas, principalmente americanas. Com o todo um saber psiquiátrico, em bloco e total, que
avanço dos métodos diagnósticos e investigati- vai desde o diagnóstico até a psicofarmacotera-
vos oriundos da neurociência, a psicanálise tam- pia. Uma vez estigmatizada a psiquiatria, e, por
bém passou a ser fortemente criticada por “psi- extensão, o psiquiatra, tudo que provém da área
cologizar” excessivamente os fatores causais da médica é depreciado no campo da saúde mental.
enfermidade mental.
Por outro lado, o maior problema dos defenso-
A partir dos anos 1950 aparece o desenvolvimento res incondicionais do modelo hospitalocêntrico e
da psicofarmacoterapia. Os antipsicóticos tiveram da hegemonia médica é desconhecer tudo o que
uma importância decisiva na criação de condições provém do conhecimento social, interdisciplinar
favoráveis à desospitalização. O ideal do rompi- e psicanalítico.

debate hoje | 23
Debate
matéria de capa

A partir dos anos 70 os progressos da psiquiatria vertendo totalmente o fluxo de atendimento.


e os movimentos de controle social têm se or-
ganizado para mudar o modelo hospitalocêntrico È absolutamente imprescindível que as organiza-
baseado na internação. ções de familiares e as entidades psiquiátricas e
médicas em geral se unam para combater o desvio
No Brasil, estas contradições também ocorrem. A da assistência em saúde mental, intervindo com
legislação em saúde mental tem avançado pratica- ações concretas para que a população seja ade-
mente através de portarias do Ministério da Saúde. quadamente atendida.

Nos últimos vinte anos houve uma redução signi-


ficativa de leitos psiquiátricos (de 120 mil para Referências
menos de 40 mil). Ainda há uma população es- AGUIAR RW. O novo modelo de assistência à saúde
timada entre 20 e 30 mil internos em hospitais mental. In: Zavaschi MLS (org) e cols. Crianças e
psiquiátricos há mais de dois anos, a maioria pro- Adolescentes Vulneráveis – O atendimento inter-
vavelmente em condições de alta hospitalar. Em disciplinar nos Centros de Atenção Psicossocial;
meados de 2009, o MS alcançou a marca de mais Porto Alegre: Artmed, 2009,p.95-9.
de 1300 CAPS no Brasil, entre estes os especia- COOPER D. Psiquiatria e Antipsiquiatria. Rio de
lizados em Dependência Química (CAPSad) e em Janeiro. Editora Perspectiva. 1982. 162pg.
Adolescentes e Crianças (CAPSi). O lançamento do ZUSMAN, J A. Reflexões, revoluções e reformas
Programa “De Volta para Casa”, em 2003, provê psiquiátricas. Psiquiatria Hoje, ano XXIV, n. 2,
uma bolsa para as famílias que receberem pa- 2002, p. 8-16.
rentes egressos de internações psiquiátricas com FIGUEIREDO, G. Ética e Reforma da Assistência
mais de dois anos de duração consecutiva. Psiquiátrica no Brasil.
Com várias emendas um substitutivo foi finalmente BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. Legislação em
aprovado no Congresso Nacional e foi promulgada a Saúde Mental. Ministério da Saúde. 2002.
chamada “Lei da Reforma” em 6 de abril de 2001. Saúde Mental no SUS: Acesso ao Tratamento e
Mudança do Modelo de Atenção,
Entretanto, a aplicação da lei carece de ações Relatório de Gestão 2003-2006 Coordenação Ge-
efetivas dos gestores da saúde pública no sentido ral de Saúde Mental
de dotar a sociedade com os recursos adequados AMARANTE, P. O Homem e a Serpente: outras
da rede integral de assistência que ela mesma histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de
propõe. A desativação de mais de 80000 (oitenta Janeiro, FIOCRUZ, 1996.
mil leitos) em hospitais psiquiátricos nos últimos WIKIPEDIA
vinte anos não foi acompanhada pelo adequado
parque de leitos em hospitais gerais. Os serviços
comunitários não suportam a demanda de aten-
dimento psiquiátrico em número suficiente. O re-
sultado deste descompasso é a superlotação dos
serviços de emergência e pronto-atendimento,
que não têm para onde enviar os pacientes que ali
estacionam. Estes serviços acabam por se trans-
formar em pequenos e inadequados hospitais,
com insuficiência aguda de profissionais para o
atendimento. As portarias dos hospitais são fre-
qüentemente pressionadas por ordens judiciais de
internação compulsória por falta de vagas, sub-

24 | debate hoje
propunha um novo modelo para países pobres. Ao
mesmo tempo, um fantástico avanço tecnológico
A Evolução do surgia especialmente na tecnologia espacial com
a chegada á Lua, sondas chegando à Marte e Vê-
Movimento da nus além do lançamento de satélites. Nesta mes-

Antipsiquiatria ma época a IBM lança o circuito integrado com as


primeiras gerações de computadores e a Arpanet
(o embrião da Internet). O Movimento Hippie
Marcelo Pio de Almeida Fleck: O com seus ideais de “Paz e Amor” representava a
Movimento da Antipsiquiatria surgiu e foi-se es- síntese do pensamento da época radicalizado: a
truturando ao longo da década de 60 do último busca por uma vida “natural”, longe das grandes
século. O termo foi utilizado pela primeira vez por cidades, o não consumismo e a busca do prazer. A
David Cooper em 1967 em sua obra “Psiquiatria e liberalização sexual, a crítica aos valores da épo-
Antipsiquiatria”. Abrigava um conjunto de críticas ca e à família tradicional monogâmica expandia
à Psiquiatria da época como especialidade médica o conceito de família a uma vida em comunidade
centrada na prática hospitalar em “Instituições em que tudo era aceito e era “proibido proibir”.
Totais”. De forma mais abrangente o movimen- As drogas aumentavam “os limites da percepção”.
to da Antipsiquiatria pode ser definido como um Toda esta oposição aos valores e costumes da
movimento social que questionava não só o privi- época sem precedente pode ser sintetizado como
légio de psiquiatras para “prender” e tratar indiví- o movimento de “Contracultura”.
duos como doenças mentais até mesmo de forma
compulsória, mas também criticava a crescente É dentro desta visão de mundo dos anos 60 que
“medicalização” da doença mental, suas formas surge o Movimento da Antipsiquiatria. Alguns de
de “tratamento” e em sua posição mais radical a seus principais representantes foram David Co-
própria existência da doença mental. oper (África do Sul/Inglaterra), Michel Foucault
(França), Ronald Laing (Escócia/Inglaterra), Tho-
Para a compreensão do surgimento do movimento mas Szasz (Hungria/Estados Unidos) e Franco
da Antipsiquiatria e de sua evolução, involução e Basaglia (Itállia). Partilhavam de vários pontos
descaracterização é fundamental que se entenda de vista em comum na suas posições de ques-
o contexto histórico de seu surgimento e também tionamento amplo dos pressupostos básicos da
as mudanças que ocorreram desde então. Psiquiatria como etiologia, nosologia e a função
do diagnóstico como “rótulo” bem como o uso
Os anos 60 são anos marcantes da História re- político e opressor da Psiquiatria na diferencia-
cente da Humanidade pela intensa participação ção entre o normal e o patológico. No prefácio da
social de questionamento amplo dos valores vi- obra “Psiquiatria e Antipsiquiatria”, David Cooper
gentes pelo “Establishment”. O Mundo Ocidental sintetiza alguma destas posições. Afirma “O que
vivia o período imediatamente Pós-Guerra . Uma tentei fazer nesta monografia foi dar uma olhada
nova ordem social era exigida. Eclodiam nas di- na pessoa rotulada como esquizofrênica, no sue
ferentes regiões do planeta movimentos espon- contexto humano real e pesquisar como tal rótulo
tâneos e coordenados que exigiam igualdade de lhe foi colado, quem a colou e o que isto signifi-
direitos das mulheres (Feminismo) e de minorias ca, seja para os rotuladores, seja para o rotulado”.
como negros e homossexuais. A Igreja se flexibi- Quando define Esquizofrenia, embora reconheça-a
lizava através do Concílio Vaticano II. Havia pro- como uma situação de “crise” destaca o aspec-
testos contra a Guerra do Vietnã e a Guerra Fria, to arbitrário de reconhecê-la como doença. Para
ao mesmo tempo que a África e o Caribe come- Cooper “Esquizofrenia é uma situação de crise
çavam a ser descolonizados. A Revolução Cubana microssocial na qual os atos e a experiência de

debate hoje | 25
Debate
matéria de capa

determinada pessoa são invalidados por outras, Na época do surgimento da Antipsiquiatria, a Psi-
em virtude de certas razões inteligíveis, culturais quiatria apresentava um momento de transição
e microculturais (em geral familiais), a tal ponto importante. Na primeira metade do século 20, a
que essa pessoa é eleita e identificada como sen- Psiquiatria tinha na Psicanálise seu modelo te-
do “mentalmente doente” de uma certa maneira e, órico hegemônico que, por suas características,
a seguir, é confirmada (por processos específicos, não era viável como opção para doentes graves e
mas altamente arbitrários de rotulação) na identi- em saúde pública. Nos anos 50 com a introdução
dade de “paciente esquizofrênico” pelos agentes dos psicofármacos e uma crescente biologização
médicos ou quase médicos” . Quando vê a função da Psiquiatria, inúmeros radicalismos foram co-
da Psiquiatria afirma que “Em nossa sociedade, metidos pela Psiquiatria Institucional: super-
existem numerosas técnicas mediante as quais medicação de pacientes, ausência de critérios de
certas minorias são, primeiro, assim designadas “a quem medicar com o que”, uso precipitado de
e, a seguir, tratadas ao longo de um continuum de tratamentos radicais como a psicocirurgia, uso
operações que vão da depreciação insinuada, não político da Psiquiatria na associação com regimes
aceitação em determinados clubes, exclusão de autoritários entre outros.
certas escolas e empregos e assim por diante, até
a sua invalidação total como pessoas, assassínio Dentro deste contexto, tanto macro-cultural (Mo-
e extermínio em massa, no final mais remoto do vimento da Contracultura) e micro-cultural (crise
continuum.” e arbitrariedades da Psiquiatria Tradicional) , o
Movimento da Antipsiquiatria tem um sentido
Ronald Laing junto com David Cooper criaram não só histórico, mas determinante do momento
em 1965 a “Philadelphia Association” que juntou da Psiquiatria atual. Em verdade, o Movimento da
indivíduos com esta visão e buscou aplicar es- Antipsiquiatria teve um componente de crítica e
tes pressupostos em estratégias de “tratamento” de oposição à Psiquiatria. Esta distinção é impor-
que permitiam que a pessoa fizesse uma “Viagem tante, pois a crítica é baseada em argumentos, é
através da Loucura” sem que isto fosse visto como lógica e permite um crescimento mútuo. A opo-
uma doença e, portanto, sem necessidade de tra- sição é doutrinária, é movido mais por crenças
tamento tradicional com medicamentos e psiquia- do que por argumentos, é mais “baseada em ad-
tras e suas abordagens psicoterápicas usuais. O jetivos do que substantivos” e visa à derrota do
“tratamento” consistia mais de uma experiênica opositor e não o enriquecimento mútuo.
em Comunidade e que os demais membros destas
Comunidades eram companheiros de viagem e o Talvez o grande legado das críticas da Antipsi-
terapeuta um “guia”. quiatria, foi a crescente hegemonia do modelo
integrador Biopsicossocial da doença mental.
Entre as posições mais radicais dentro da Antip- Este modelo, por sua abrangência e complexidade
siquiatria é a do Psiquiatra Thomaz Szasz que foi epistemológica deixa pouco espaço para radica-
co-fundador do Citizens Comission on Human Ri- lismos e oposição e abre o espaço para a crítica
ghts em 1969. Szasz não se vê alinhado do ponto e o diálogo. Muitas das críticas da Antipsiquia-
de vista teórico com outros antipsiquiatras. Reco- tria foram verdadeiras e úteis à Psiquiatria. Dois
nhece, apenas, que tem “um inimigo em comum”. exemplos entre tantos podem ser lembrados. O
Em seu livro “O Mito da Doença Mental” questio- primeiro é a arbitrariedade dos diagnósticos em
na de forma veemente as bases da existência da Psiquiatria. Vários estudos do final dos anos 60
Doença Mental, diferenciando de outras doenças reconheceram abertamente e cientificamente esta
na Medicina e da inexistência de critérios para fragilidade. Novos sistemas classificatórios foram
mantermos alguns comportamentos com o nome criados, estudos de seguimento foram desenvol-
de “doença”. vidos para avaliar o impacto destes diagnósticos

26 | debate hoje
vistos sobre vários parâmetros psicológicos e ser operacionalizadas em medidas práticas e que
sociais. Modernos instrumentos de neuroimagem possam ser testadas em relação aos modelos e
permitem identificar potenciais áreas do cérebro procedimentos usuais.. O que se vê, passados 10
afetadas por estes diagnósticos no sentido de anos do século 21, especialmente nos países em
validá-los também do ponto de vista biológico. desenvolvimento, são críticas anacrônicas de uma
Qualquer psiquiatra medianamente atualizado Psiquiatria que já não é mais assim, feitas com
sabe dos limites e problemas dos diagnósticos argumentos da Antispiquiatria de 1960. Isto não
em Psiquiatria e sobre a necessidade de evolução é mais crítica, é apenas “oposição”.
desta área. Um segundo exemplo é o papel das In-
ternações Psiquiátricas. A Psiquiatria atual é uma
especialidade eminentemente ambulatorial. Os Referências
transtornos psiquiátricos são muito prevalentes e
a necessidade de internação é restrita a alguns Berlim MT, Fleck MP, Shorter E. Notes on antip-
casos. A internação em Psiquiatria é voluntária, sychiatry. European Archives of Psychiatry and
o paciente participa desta decisão e em casos ra- Clinical Neurosciences 2003 253(2):61-7.
ros, amparados por lei, ela pode ser compulsória.
Todos os psiquiatras medianamente atualizados Cooper D. Psiquiatria e Antipsiquiatria. Rio de Ja-
sabem disto. Há cinqüenta anos atrás quando o neiro. Editora Perspectiva. 1982. 162pg.
Movimento da Antipsiquiatria surgiu a realidade
era sabidamente outra. Rissmiller DJ, Rissmiller JH. Evolution of the an-
tipsychiatry movement into mental health consu-
Como qualquer área do conhecimento, a Psiquia- merism. Psychiatric Services 2006 57(6):863-6.
tria continua precisando de críticas para evoluir.
Principalmente, das “boas críticas” bem funda-
mentadas e contemporâneas. Críticas que possam

A SAÚDE MENTAL precisa de atenção


10% dos brasileiros
17 milhões de pessoas, ou 9% da sofrem de depressão.
população brasileira, sofrem de Até 10% da população brasileira
transtorno mental grave. adulta é dependente de álcool.

A OMS recomenda que 5% do 1% da população mundial sofre


orçamento total para a saúde deve ser de esquizofrenia.
empregado em saúde no mental. No
Brasil esse percentual é de 2,3%. Transtornos mentais são a segunda
causa dos atendimentos de urgência.

Um em cada quatro pacientes que


utilizam serviços de saúde tem pelo
menos um transtorno mental,
No Brasil existem 0,23 leitos de atendimento neurológico ou de comportamento.
psiquiátrico por mil habitantes. O Ministério da
Saúde determina como número ideal 0,45.
Uma pessoa se suicida a cada 23 segundos.
Essa á a terceira causa de morte entre jovens
O atendimento público em saúde mental é uma questão muito séria, (15-35 anos). 90% dos casos são motivados
que tem sido negligenciada no Brasil. O tratamento das doenças
por transtornos mentais.
mentais não pode ignorar as evidências científicas e o conhecimento
médico. Apenas uma abordagem responsável do problema diminuirá
o sofrimento de doentes e familiares. Para saber mais sobre o
assunto, acesse as "Diretrizes para um Modelo de Assistência Integral
em Saúde Mental no Brasil": www.abpcomunidade.org.br/diretrizes
Fontes: ABP, OMS, MS, Unifesp, Cebrid

Não existe saúde mental sem psiquiatra

debate hoje | 27
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0!42/#).!$/2%3
Transtornos Alimentares
artigo Maria Angélica Nunes
Psiquiatra associada da ABP. Doutora em Psiquiatria e coordenadora do Grupo de
Estudos e Assistência aos Transtornos Alimentares (GEATA) - CEAPIA, Porto Alegre, RS.

Competição entre
jovens com
transtornos
alimentares
através da internet

N
as últimas décadas, houve um aumento da ocorrência e da pesquisa
científica sobre os transtornos alimentares (anorexia e bulimia ner-
vosas). Alguns autores atribuem o crescente aumento da ocorrência
dos transtornos alimentares a fatores socioculturais, como o padrão
de beleza imposto pela mídia, pela indústria da moda e do entrete-
nimento, que preconiza um corpo ideal magro.

Também ocorreu a ampliação das possibilidades do indivíduo acessar, através da


internet, todo o tipo de informação, no conforto e privacidade de seu domicílio.
A internet possibilita um ilimitado leque de informações como também permite
o contato com milhões de outros internautas ao redor do mundo. A troca de in-
formações entre os indivíduos ocorre em qualquer lugar e em qualquer tempo. Ela
apresenta caráter interativo, ou seja, permite conversar ao vivo.

Antes mesmo do advento da internet, um dos sinais e sintomas clássicos do indiví-


duo com transtorno alimentar é a busca de informação sobre seu comportamento,
em livros e revistas. Atualmente, na era do computador e da internet, particular-
mente para as gerações mais jovens, esse sintoma tomou uma nova forma.

Eles querem saber sobre os comportamentos alimentares, e um grande número co-


nhece inclusive os riscos físicos secundários ao comportamento alimentar inade-

debate hoje | 29
Transtornos Alimentares
artigo

quado. O medo mórbido de ganhar peso, contudo, faz com que os riscos sejam
desprezados e os objetivos nunca alcançados.

Sendo assim, as razões para a visita aos sites que fornecem informações inadequa-
das (sites negativos) são quase as mesmas razões para buscarem a leitura em livros
e revistas, com algumas diferenças: eles querem ler, validar e ensinar as pessoas
com as quais se relacionam – internautas - sobre formas de engajamento no com-
portamento e formas de burlar os familiares sobre seu comportamento.

Existem centenas de sites sobre transtornos alimentares. Embora a internet possa


educar o individuo sobre o tema, também fornece uma vasta gama de informações
equivocadas que subestimam o dano físico e psicológico envolvido. A liberdade de
postar um website possibilita inclusive que alguns advoguem a favor dos trans-
tornos alimentares como um estilo de vida. São os sites Pró Anorexia (Pró ANA) e
Pró Bulimia (Pró MIA), cujo conteúdo é repleto de informações sobre a maneira de
desenvolver comportamentos alimentares inadequados, com o objetivo de adquirir
o padrão estético ideal vigente na atualidade - corpo magro.

Esse padrão ideal ora atingido confere aos seus seguidores valores considerados
outrora inatingíveis como controle sobre o corpo e de sua própria vida, poder de
decidir sobre sua vida, valorização da auto-estima, aceitação pelo grupo de iguais.

O indivíduo com transtorno alimentar costuma apresentar ausência de inquietude


sobre seu estado, ou seja, ele nega a própria doença. Participar de comunidades que
apoiam seu comportamento e reconhece seu comportamento como uma opção ou
estilo de vida garante a perpetuação dos sintomas. É do conhecimento da comuni-
dade científica que, quanto mais crônico é o comportamento alimentar inadequado,
como o vômito auto-induzido, o uso de laxantes, a dieta restritiva, o jejum e o
exercício extenuante, para evitar o ganho de peso, pior o prognóstico.

Como o transtorno alimentar atinge especialmente adolescentes, ele frequentemen-


te quer ser aceito por aqueles ao seu redor, em especial nesse período do ciclo de
vida – adolescência - cuja necessidade de pertencer atinge seu ápice. Se o caminho
para ser aceito em um dos sites é ser parte do grupo, ele aceita jogar o jogo do
grupo, que é perder cada vez mais peso ou ser o melhor em seu comportamento
alimentar inadequado.

É consenso que o indivíduo com um transtorno alimentar frequentemente apresenta


uma baixa auto-estima. Ser aceito, pela comunidade da internet, demonstra que
seu comportamento faz outra pessoa se sentir bem. Isso significa que restringir a
ingestão alimentar, vomitar e adotar qualquer outro comportamento alimentar é um
caminho para se sentir melhor.

30 | debate hoje
Maria Angélica Nunes

Também é comum se sentir negligenciado ou que recebe pouca atenção. Às vezes se


sente invisível (e algumas vezes quer mesmo que seus sentimentos e emoções sejam
invisíveis). A competição por atenção em um ambiente não saudável, como, por
exemplo, os sites Pro ANA e Pró MIA, pode levar a aguardar essa atenção, mesmo
que de forma não saudável - comportamentos inadequados, competição em ser o
mais magro ou adoecer para receber atenção.

A natureza do transtorno alimentar costuma levar o individuo a dissimular e a men-


tir sobre seu comportamento alimentar. Participar de um site que o encoraja a
continuar com o seu comportamento é alimentar a doença.

O indivíduo com transtorno alimentar costumeiramente imita atitudes de outros. Se


ele não é desafiado ou estimulado a encontrar meios de identificação mais saudá-
veis, ele continua justificando seu padrão inadequado como normal.

Sentir e expressar sentimentos no indivíduo com transtorno alimentar é considerado in-


significante e desnecessário. Ele não se sente no direito de expressá-los e prefere guardá-
los a sete chaves. Se através do site ele é encorajado apenas a falar sobre peso corporal,
alimentos e comportamentos alimentares, pode manter escondidos as emoções e os sen-
timentos experimentados. Sendo assim, o site permite que ele se mantenha submerso em
seu comportamento e muito longe dos seus sentimentos e emoções.

Outro aspecto importante é que o indivíduo frequentemente se encontra isolado


socialmente. Estar online com pessoas que apresentam os mesmos comportamentos
reforça a perpetuação do sintoma e a manutenção do isolamento social ao desenco-
rajar, inclusive, a busca de tratamento. Ele se mantém acompanhado do comporta-
mento e continua evitando a troca de vivências emocionais.

Nos dias atuais, a internet é o meio de comunicação da maioria das pessoas. Não
seria diferente para o adolescente. E também não seria diferente para aquele com
transtorno alimentar. A comunicação virtual tem a função de acolher e apoiar ideias
e valores. O adolescente pode experimentar, através da internet, a sensação de reco-
nhecimento e identificação com seus pares, tão necessária na adolescência. Muitas
vezes ela exerce o papel dos pais, da família.

Considero que pais cuidadosos podem e devem estar atentos ao comportamento do


adolescente, inclusive quanto ao uso da internet. Propiciar um diálogo permitirá
mais facilmente que o adolescente exponha em ambiente adequado, sentimentos
experimentados.

Agradecimentos: Dra. Clarissa Zavagna Gralha e Psicóloga Lisandra Dias Cozzatti


Fuchs, membros do GEATA, pela busca de informações.

debate hoje | 31
Artigo
Helio Lauar | Segundo Tesoureiro da ABP

Avaliando a reforma da
assistência em saúde
mental no Brasil
“O Minestério da Saúde reconhece que existe um
problema para o financiamento do sistema, e recla-
ma aumento de investimento para a saúde, mas não
aponta um orçamento objetivo e nem mesmo um
critério de locação e metas que permita lidar com
uma previsão orçamentária específica”

Introdução

O movimento antimanicomial e a antipsiquiatria construíram a denúncia e a crítica ao instituto manico-


mial, e a partir de propostas reformistas pensaram um paradigma psicossocial para loucura gerando um
novo modo de funcionamento entre os diferentes atores do modelo assistencial.

Esta orientação transparece na crítica a autoridade formalmente instituída do médico, seja pela negação
do saber do psiquiatra, seja pela negação do mandato social de custódia do paciente (Basaglia,1994).

Na reforma da assistência psiquiátrica também se preconiza a inserção do doente mental nos espaços
sociais de que antes ele era privado. Tal fato indica que existe um reconhecimento desse ator como sujeito
ativo e competente, capaz de exprimir sua vontade, circular na cidade, tendo e exercendo direitos.

O movimento antimanicomial e reforma da assistência psiquiátrica representam epistemologias alter-


nativas à lógica positivista de pensamento e organização social da modernidade e abarcam o germe de
um novo entendimento da doença mental que vem se desenvolvendo de modo gradual, principalmente
a partir dos pactos políticos que vem fazendo na cultura.

Alguns desafios ainda exigem esforços sistemáticos na construção da política de saúde mental: a cons-
trução de modos de operar clinicamente e capazes de afrontar uma cultura excludente e manicomial e a
criação de mecanismos de inclusão do discurso médico no programa assistencial e político.

34 | debate hoje
20 anos de um processo de nações psiquiátricas. Os Centros de Atenção Psi-
construção de uma política pública cossocial (CAPS), peças estratégicas do sistema
assistencial público em saúde mental aumenta-
Pedro Gabriel Godinho Delgdo (Ministério da Saú- ram em número, passando de 295 unidades em
de – MS, do Brasil), em audiência pública no se- 2001, para 1326 unidades em 2008.
nado federal em 2009, analisou os “20 anos de
um processo de construção de uma política públi- Vale anotar que a priorização dos CAPS tem dei-
ca baseada em luta social”. Para efetiva avaliação xado a atenção básica bastante descoberta, e que
ele propôs uma periodização, a saber: os CAPS, no novo modelo podem funcionar como
uma das vias de acesso ao sistema desde que de-
I. Antes de 1987: período caracterizado pela pre- vidamente equipado e com avaliações psiquiátri-
sença de Asilos do Ministério da Saúde e Clínicas cas sistemáticas, juntamente com os serviços de
conveniadas com INAMPS, perfazendo cerca de urgência e emergência, indicando o tratamento
95% dos gastos da união com saúde mental. adequado para cada caso, mas devemos reconhe-
cer que os CAPS ainda não são suficientes sob o
II. De 1987 a 1992: período que se refere a criação ponto de vista dos critérios de proporção po-
do SUS e onde experiências de atenção extra-hospi- pulacional, ou mesmo sob a lógica da cobertura
talar em saúde mental começam a ser implantadas. territorial, nem nas áreas mais densamente po-
pulosas e desenvolvidas, nem nas áreas opostas.
III. De 1992 a 2001: período onde a Reforma da Também não existem analises que privilegiam
Assistência Psiquiátrica se institucionaliza culmi- as avaliações das estruturas e dos processos de
nado com o fechamento de instituições insalubres; atendimento destas instituições sob o ponto de
e quando se implantam as primeiras normas de vista da eficiência e da eficácia, nem mesmo sob
atenção psicossocial; respaldadas politicamente o ponto de vista da satisfação do usuário ou do
pelos pactos sociais propostos pela II Conferencia trabalhador. Há embutido na defesa quase exclu-
Nacional de Saúde Mental (CNSM.). siva e intransigente desta forma assistencial a
suposição de que os pacientes não precisam de
IV. A partir da Lei 10.216: período onde se acompa- internação e que não existe doença mental uma
nha a realização da III CNSM. e uma efetiva mudan- vez que a instituição se nomeia apenas como psi-
ça do modelo assistencial e ampliação do acesso. cossocial, e desloca o psiquiatra da posição de
condutor do caso. Sob a premissa necessária da
Acompanharemos a argumentação proposta pela escuta da subjetividade e da construção de redes
Coordenação de Saúde Mental do MS para ponto a de suporte e circulação social tem desvalorizado
ponto analisarmos os conteúdos do discurso oficial os pressupostos biológicos da doença mental.
e suas argumentações, para que possamos con-
tribuir com a construção de uma política publica
sensível à uma práxis psiquiátrica que tem espe- As estratégias sociais para viabilizar
cificidades e que sabe dialogar com as dimensões altas
psicossociais do processo de reforma em curso.
Como forma de garantir o compromisso assisten-
cial para com os pacientes longamente interna-
A nova lógica de acesso e regulação dos, sem vínculos familiares e ainda marcados
pelo adoecimento, com déficits estáveis e que
O MS sustenta que depois da Lei 10.216: o acesso gradativamente são transferidos para a nova ló-
ao sistema de atendimento não é mais majori- gica assistencial o MS sustenta que o Sistema Re-
tariamente garantido exclusivamente por inter- sidencial Terapêutico (SRT) tinha 85 unidades em

debate hoje | 35
Artigo
Helio Lauar | Segundo Tesoureiro da ABP

2002 e 533 unidades em 2009, e ainda o Progra- A redução de eleitos tem sido um dos pontos mais
ma de Volta para Casa (PVC) que oferece subsidio polêmicos da reforma da assistência, não porque ele
econômico para sobrevivência e cidadania destes sinaliza uma mudança do eixo “hospitalocêntrico”
pacientes crônicos, oferecia 206 benefícios em para o eixo “capscêntrico” do modelo assistencial,
2003, passou para 3.294 benefícios em 2003. ou porque propõe a extinção dos macro-hospitais e
preconiza os hospitais de pequeno porte, ou porque
O SRT ainda não possui níveis de complexidade a propõe diminuição da concentração de hospitais
serem indicados segundo o grau de autonomia do por unidades territoriais, ou ampliação do acesso,
paciente. As unidades são insuficientes para as mas porque o projeto “antimanicomial” quer a ex-
necessidades clinicas instaladas, uma vez que os tinção de todos os hospitais, mesmo quando a Lei
pacientes cronicamente internados não receberam 10.216 e a clinica prevêem a continuidade da in-
alta hospitalar por falta de recursos terapêuticos ternação, e sua utilidade num contexto terapêutico
ou dispositivos institucionais de cuidados e ou que prevê recursos terapêuticos múltiplos e suple-
suporte social que garantam o acolhimento e a mentares. Quando o MS capciosamente sugere que
continuidade do tratamento extra hospitalar. houve diminuição dos hospitais acima de 400 leitos
(29,43 para 14, 49 em 2002/2007) e aumento dos
O valor dispensado para o benefício do PVC apesar até 160 leitos (24,11 para 43,98 em 2002/2007),
de estar baseado no salário mínimo nacional não ele usa de um silogismo que trata redução global
tem sido suficiente para a manutenção de pacien- de leitos como se fosse apenas redução de grandes
tes sem vínculos familiares e que exigem cuidados hospitais e aumento de pequenos hospitais, alem
de terceiros. O numero de vagas no SRT e o nume- de ampliação da rede ambulatorial e interiorização
ro de benefícios do PVC não acompanham propor- desta rede, para enfrentar a argumentação contrá-
cionalmente os quase 16 mil leitos fechados no ria ao fechamento de leitos, que afirma que não se
período e muito menos atende a as necessidades pode acabar com as internações psiquiátricas ou
clinicas de um sistema assistencial que poderia suas indicações clinicas, sob o risco de se produzir
abreviar internações, favorecer a transição inter- uma ação de lesa cidadania, ou seja, ameaçar o
institucional e ampliar os recursos terapêuticos direito de tratar.
na falta de suporte social com a utilização dinâ-
mica e transitória do SRT. Recentemente a Associação Brasileira de Psiquia-
tria (ABP) entrou com uma ação no Ministério
Público cobrando agilidade do MS no trabalho de
A redução progressiva de hospitais coordenação de uma comissão ministerial criada
psiquiátricos e leitos psiquiátricos a pedido da ABP para normatizar implantação de
eleitos psiquiátricos em hospital geral. Em face
Depois da Lei 10.216 observa-se uma profun- deste fato político discute-se ainda a proposta da
da transformação do dispositivo hospitalar. Há ABP para se adotar no Brasil o parâmetro de 0.45
inequivocamente uma redução significativa dos leitos psiquiátricos/1.000 habitantes, já utilizado
macro-hospitais (acima de 400 leitos), fazendo em 2002 para hospitais psiquiátricos. Segundo o
MS “se este parâmetro fosse adotado, o Brasil vol-
restar majoritariamente hospitais de pequeno
taria a ter 87.000 leitos psiquiátricos, retornando
porte (abaixo de 160 leitos) através da interven-
ao status quo antes do início dos anos 90, um
ção de mecanismos regulares de fiscalização (ex.
atentado à Reforma em curso”. Chega a dizer que
PNASH-Psiquiatria), que oferecem subsídios téc- a medida contrariaria a Lei 10216, e que o parâ-
nicos e políticos para os fechamentos de eleitos. metro, resíduo do ordenamento anterior à lei, não
Dos 52.962 leitos instados em 2001, encontramos se aplica mais, e foi substituído em 2006 (Dire-
36.797 em 2008. trizes da PPI, Portaria GM). Atualmente, segundo

36 | debate hoje
os dados do MS temos 0,20 leitos psiquiátricos 79,54% eram com gastos hospitalares e 20,46%
/1.000 habitantes, mas se formos seguir as di- com gastos extra-hospitalares, em passou a se
retrizes de 2006, as internações seriam dados do gastar em 2007, R$1.200,37 com saúde mental,
passado, ou numa proporção muito inferior a atual 36,65% eram com gastos hospitalares e 63,35%
que segundo dados internacionais são insuficien- com gastos extra-hospitalares.
tes para responder às demandas populacionais de
internação, em situações de crise, desorganização O aumento numérico bruto do investimento, ain-
grave e ou complexa do eu, do suporte social ou da não indica melhoria da relação investimento/
insuficiência das instituições ambulatoriais. cobertura/qualidade no sistema assistencial em
saúde mental como um todo e especial nos recur-
Apesar das discordâncias acima comentadas o MS sos extra-hopitalares. O sistema CAPS ainda não
afirma que deve patrocinar a ampliação de leitos tem projetos arquitetônicos que compatibilizam
em hospitais gerais, e está pleiteando através do função e estrutura, e muito menos estão em nu-
Grupo de Trabalho sobre Hospital Geral, uma am- mero suficiente. O sistema hospitalar que já vinha
pliação do financiamento para este fim. A meta é sendo progressivamente sucateado com um bai-
ter 3.200 leitos em HG, qualificados e articulados xo financiamento que não garante qualidade de
aos CAPS, ao sistema urgência/emergência e à atendimento, ainda hoje se mostra prejudicado,
atenção básica, mas este número aparentemen- uma vez que o MS insiste que um leito psiquiátri-
te grande é bastante insuficiente para atender co custa menos do que um leito da medicina em
as demandas instaladas e reprimidas. Hoje temos geral. Em 2009, paga 24 reais por diária de inter-
184.612.814 habitantes e 36.797 leitos psiquiá- nação completa, incluído hotelaria e atendimen-
tricos instalados. Não esta claro se estes leitos to médico e de outros profissionais, medicação,
serão leitos acrescidos ao montante existente, ou exames, etc. enquanto paga no mínimo 45 reais
se serão leitos transferidos dos hospitais psiqui- por uma diária de internação na clinica médica.
átricos para os hospitais gerais. É bom lembrar Somente a título de comparação um leito psiqui-
que os pacientes psiquiátricos nem sempre se be- átrico para a medicina suplementar (2009) em
neficiam apenas de leitos, mas que necessitam regime de enfermaria, em Minas Gerais, custa cer-
de todo um contexto onde se pode produzir um ca de no mínimo 105 reais por dia, excluindo os
tratamento dinâmico, com ocupação, sociabili- procedimentos em geral, e se acoplados apenas
zação, lazer, e participação de familiares, mesmo os atendimentos de terapia ocupacional subiriam
nos períodos de curtas internações. Ao temer as para no mínimo 160 reais a diária básica.
internações e patrociná-las apenas como um pro-
cedimento médico standard corremos o risco de Os mecanismos reguladores
perder muito das necessárias abordagens psicos-
sociais nos momentos de internação. Não bastasse a redução do financiamento, os me-
canismos reguladores e de fiscalização do sistema
hospitalar (ex. PNASH-Psiquiatria) usam de expe-
O financiamento dientes e critérios oriundos do projeto Lei Paulo
Delgado que não foram incluídos na Lei 10.216,
De 2002 a 2007 observa-se uma inversão do fi- para avaliar os hospitais psiquiátricos, reduzindo
nanciamento em saúde mental, afirma o MS. lhes a pontuação, especialmente se indicam ou
Lamentavelmente houve um decrescente inves- fazem ECT, ou ainda se internam além do que os
timento no financiamento hospitalar e um cres- gestores estipulam como media oportuna. Pare-
cente financiamento do sistema ambulatorial, que cem não entender que se há demanda de interna-
se implantava progressivamente. Se em 2001 se ção isso se dá ou por contingência e necessidade
gastava R$602,77 com saúde mental sendo que clinica ou por insuficiência dos dispositivos am-

debate hoje | 37
Artigo
Helio Lauar | Segundo Tesoureiro da ABP

bulatoriais ou falta de suporte social. Insistem A participação social


em punir os serviços que cumprem sua função no
sistema de atendimento. Ainda cabe anotar que Outro ponto avaliado pelo MS é participação so-
os mecanismos sanitários usados para avaliar os cial no planejamento e controle do sistema de
hospitais de psiquiatria vêm de outras referencia saúde mental. Afirma o porta voz do ministério
hospitalares e não respeitam as especificidades que depois da Lei 10216 o “Sujeito em sofrimen-
da especialidade. A regulação proposta pelo MS to” se tornou ator político e protagonista do cui-
não possui a mesma constância ou intensidade na dado. Acreditam que foram feitas intervenções de
avaliação dos CAPS e dos outros dispositivos. inclusão social no campo do cuidado clínico: cul-
tura, geração de renda, habitação (“atenção psi-
O alto custo cossocial”), e ainda, que aconteceram avanços na
constituição de grupos e movimentos sociais de
O MS reconhece que existe um problema para o usuários e familiares (com implicações benéficas
financiamento do sistema, e reclama aumento na clínica dos transtornos mentais severos).
de investimento para a saúde, mas não aponta
um orçamento objetivo e nem mesmo um critério Não há dúvida de que há uma crescente mobili-
de locação e metas que permita lidar com uma zação social em torno da construção de um país
previsão orçamentária específica. Ressalta que de direitos. Foram criados muitos conselhos e co-
os medicamentos de alto custo e “judicalização” missões permanentes, conferencias: municipais,
da saúde permitiram uma liberação de cerca de estaduais e nacionais de saúde e saúde mental,
47.550.885 comprimidos de antipsicóticos atí- nas quais a sociedade civil organizada é convo-
picos em 2008 ao custo de R$ 169.935.762,26. cada a participar e dizer o que pensa e demanda.
Temos que tomar cuidado com aproximações in- Importante melhorar o acesso a estas instâncias
devidas quando se trata de investimentos. O que representativas e democráticas, garantir diver-
priorizar? A saúde mental certamente se benefi- sidade de interesses, para que haja construções
ciou com os novos pactos políticos e culturais, de pactos sociais legítimos, desatrelar estas co-
mas deve ser pensada sempre como uma questão missões das estratégias automáticas de governa-
da saúde e, portanto, não deve abrir mão de uma bilidade e fornecer a estas comissões pareceres
profunda redefinição dos critérios para alto-custo técnicos e subsídios que garantam decisões com
(medicações especiais, TC, RM, RMF, SPECT, PET, acesso a informações de qualidade.
EEG, avaliações NP) e tratamentos biológicos
(ECT, ETC). A psiquiatria desde os anos 50 vem Será preciso ainda, neste campo, levar adiante uma
provando dos efeitos positivos da chamada revo- profunda discussão sobre estigma, como vem pro-
lução farmacológica. Muitas vezes esquecida, esta pondo a ABP, para que tenhamos realmente o su-
revolução trouxe mensuráveis contribuições para jeito com doença mental, transformado num sujeito
os tratamentos psiquiátricos: reduziu o tempo ativo e competente, capaz de exprimir sua vontade,
de internação, permitiu novas estratégias para circular na cidade, tendo e exercendo direitos. De-
abordagem das crises, prevenção de recaídas e re- vemos patrocinar um amplo debate com o judiciário
cidivas, reduziu sintomas e viabilizou circulação para que possamos discutir direitos de cidadania
familiar e social dos pacientes com transtornos para o sujeito com doença mental, sem negar sua
mentais. Depois dos anos 90, a pesquisa biológica diferença, ou incapacitá-lo por antecipação.
ficou muito mais expressiva e ampliou os recur-
sos terapêuticos e propedêuticos. O MS não deve
pensar a psiquiatria baseando-se apenas na histó-
ria dos baixos investimentos que caracterizaram
os anos anteriores.

38 | debate hoje
Conclusão 5- não se pode admitir que se pense a saúde men-
tal com a exclusão da medicina e por conseguinte
O MS (2009) reconhece que os principais proble- da psiquiatria, uma vez que ela também defende
mas do sistema assistencial público de saúde as dimensões psicológicas e sociais dos transtor-
mental no Brasil são a necessidade de: amplia- nos mentais.
ção e qualificação de leitos em Hospitais Gerais,
consolidação da Saúde Mental na atenção básica, Para concluir vale citar, de modo adaptado, dois
ampliação e qualificação da rede CAPS (CAPS III, fragmentos do documento internacional produzi-
CAPSad e CAPSi) nas grandes cidades, melhoria do pelo Parlamento Europeu, sobre metas para a
da articulação urgência-emergência/regulação de saúde mental (2009):
leitos em alguns municípios de grande porte, am-
pliação do cuidado intersetorial para problemas “Assim sendo seria oportuno reforçar o convite
associados ao consumo nocivo de álcool e outras para que todos possam cooperar e contribuir para
drogas (ex.: crack), ampliação do financiamento. a ação entre as instituições de saúde, as autorida-
des regionais e locais e os parceiros sociais dos sec-
Certamente que o reconhecimento público des- tores prioritários para a promoção da saúde mental
tes problemas pelo MS abre uma fértil via para e do bem-estar da população, incluindo todos os
os debates sociais e técnicos. No conjunto deste grupos etários e gêneros, origens étnicas e grupos
processo vale lembrar que: sócio-econômicos, o combate à estigmatização e à
exclusão social, o reforço da ação preventiva e da
1- a reforma da assistência psiquiátrica publica auto ajuda e a prestação de apoio e tratamento
não é mérito de nenhuma corporação profissio- eficaz às pessoas com problemas de saúde mental,
nal isolada, e sim fruto de uma discussão social às suas famílias e aos que delas cuidam.
ampla, que surge com os trabalhadores de saúde
mental no final dos anos 70, envolvendo o Estado (…)
e a Cultura;
Nessa perspectiva, convém não dificultar os esfor-
2- a legislação deste debate trouxe compromis- ços da investigação médica pública e privada atra-
so social e político com a implantação do novo vés da acumulação de obstáculos administrativos,
modelo, bem como sua avaliação sistemática e frequentemente onerosos, nem por uma excessiva
financiamento; restrição quanto á utilização de modelos pertinen-
tes utilizados para o desenvolvimento de medica-
3- a transformação do modelo assistencial psiqui- mentos seguros e eficazes”.
átrico, e da saúde mental como um todo, deve ser
vista como um processo, no qual se possa garantir Ainda que existam muitos pontos específicos
as melhores condições para um trabalho comum e que poderiam ser listados e gerar propostas de
para o trabalho de cada uma das áreas profissio- intervenção, seria oportuno anotar que o siste-
nais envolvidas; ma assistencial deve produzir uma descompres-
são do sistema CAPS, incluindo-se outros níveis
4- não se pode admitir que a psiquiatria, que de cuidados, incrementando e ampliando a rede
sempre foi ator legítimo do processo de reforma de atenção em saúde mental e se valer de in-
da assistência seja acusada por fins corporativos dicadores de saúde bem construídos que possam
escusos de ser contra este processo e contra os orientar epidemiologicamente o planejamento e
direitos de cidadania dos pacientes, porque dis- as negociações estratégicas, segundo as deman-
cute publicamente suas propostas de melhoria do das sociais.
sistema assistencial;

debate hoje | 39
Opinião
Drogas e Democracia João Alberto Carvalho
Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria

Ana Cecília Petta Roselli Marques


Coordenadora do Departamento de Dependência Química

Drogas, Democracia
e Saúde
N
o dia 21 de agosto, foi realizada a primeira reunião da Comissão
Brasileira sobre Drogas e Democracia. O grupo tem o objetivo de
discutir o tema com a sociedade civil e deslocar o foco da repressão
para o tratamento dos usuários. Entre os participantes estão per-
sonalidades como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os
ministros do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso e Ellen Gracie.

Com a criação do grupo, o assunto teve a repercussão naturalmente dispensada


às personalidades que integraram a comissão (veja abaixo a lista de integrantes).
Como a proposta geral é focar no tratamento, a iniciativa pode render bons resul-
tados. A própria Associação Brasileira de Psiquiatria, por meio do Departamento de
Dependência, vem defendendo, junto com outras organizações científicas, que o
consumo de drogas – legais ou não – deve ser encarado como um problema social
e de saúde pública.

Contudo, nota-se que a constituição da Comissão Brasileira sobre Drogas e Demo-


cracia é pouco democrática, pois carece de posicionamentos cientificamente fun-
damentados. Curiosamente, há somente um profissional de saúde entre os 27 parti-
cipantes, o médico e escritor Dráuzio Varela. Não se trata de crítica à participação
de setores diversos da sociedade, já que o tema é multidisciplinar, mas a presença
de quem trabalha e faz pesquisa na área, um especialista, é imprescindível. Se isso
não acontece, o grupo passa a servir apenas para validar e repercutir proposições
ideológicas, que estão longe de incluir uma das ciências do século XXI, a neuroci-
ência das drogas.

Um bom exemplo de como a ausência de profissionais com conhecimento técnico e


boas práticas permite avaliações equivocadas, é a proposta de legalização do consu-
mo de drogas consideradas “leves”, como a maconha. De forma geral, a abordagem
indicada por entidades científicas é a criação de uma política contextualizada para
as drogas, na qual a descriminalização é preconizada dentro da realidade social,
cultural e demográfica de cada país, além de incluir medidas repressivas, preventivas
e assistenciais. A legalização permite o acesso às drogas e, obviamente, aumenta
o seu consumo.

42 | debate hoje
Vale a pena lembrar que a lei brasileira sobre drogas acabou de ser modificada, e atualizou o entendimento e o
manejo de uma questão complexa. Existem vários tipos de relações dos indivíduos com as drogas e quem deve
ser penalizado é o traficante e não os diferentes usuários. Na realidade, é a política sobre drogas que precisa ser
revisitada, não a lei.

Além disso, a temática proposta pela Comissão deveria ser mais ampla. Se existe o entendimento da comple-
xidade do problema, é preciso esclarecer que antes de realizar qualquer mudança na lei é necessário equiparar
a atenção à saúde, treinar adequadamente os profissionais e cuidar dos familiares. Dependência é também um
problema de saúde, que se resolve com avaliação de necessidade de cada local, adequação dos recursos e pro-
cedimentos baseados em evidências científicas e, ao final, avaliação da efetividade. Para resolver um problema
tão complexo, a política sobre drogas hoje deveria estar de braços dados com a ciência.

Composição atual da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia:


1. Carlos Costa - Líder comunitário
2. Carlos Velloso - Ministro do Supremo Tribunal Federal
3. Celina Carpi - Presidente do movimento “Rio Como Vamos”
4. Celso Fernandes - Presidente da Visão Mundial Brasil
5. Daiane dos Santos - Ginasta olímpica
6. Dráuzio Varela - Médico e escritor
7. Ellen Gracie - Ministra do Supremo Tribunal Federal
8. Edmar Bacha - Economista, ex-diretor do Banco Central
9. Joaquim Falcão - Diretor da Escola de Direito da FGV
10. João Roberto Marinho - Vice Presidente das Organizações GLOBO
11. Jorge Hilário Gouvea Vieira - Advogado
12. Cel Jorge da Silva Cel PM, Ex-Chefe do Estado Maior da PM do Rio, Doutor em Sociologia
13. José Murilo de Carvalho - Doutor em Ciência Política, membro da Academia Brasileira de Letras
14. Lilia Cabral - Atriz
15. Luiz Alberto Gomes de Souza - Sociólogo
16. Maria Clara Bingerman - Decana da Faculdade de Teologia da PUC RJ
17. Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça - Ensaísta e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras
18. Paulo Gadelha - Presidente da FIOCRUZ
19. Paulo Teixeira - Deputado Federal (PT/SP)
20. Pedro Moreira Sales - Presidente do Conselho Itaú Unibanco
21. Popó - Ex-campeão mundial de boxe
22. Regina Maria Filomena Lidonis De Luca Miki - Coordenadora da CONSEG e ex-Secretaria de Defesa Social da
Prefeitura de Diadema
23. Regina Novaes - Antropóloga, Ex-presidente do Conselho Nacional da Juventude
24. Roberto Lent - Neurocientista, UFRJ
25. Rosiska Darcy de Oliveira - Escritora, co-presidente do movimento “Rio Como Vamos”
26. Viviane Senna - Presidente da do Instituto Ayrton Senna
27. Zuenir Ventura - Jornalista

debate hoje | 43
Opinião
Drogas e Democracia Ronaldo Laranjeira
Professor titular de Psiquiatria da Unifesp, é coordenador do Instituto
Nacional de Políticas do Álcool e Drogas (Inpad) do CNPq

O direito de
não usar
DROGAS
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 28/09/2009

R
ecentemente, divulgou-se a opinião sobre o futuro da política de
drogas no Brasil do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que
defende maior liberdade de uso da maconha. Fernando Henrique dis-
se que um mundo sem drogas é inimaginável, expressando a visão
da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia. Ao alegar que a
sociedade conviverá sempre com as drogas, defende com uma clara distorção da
racionalidade a ideia de que isso deveria tornar os usuários imunes ao sistema
criminal. Teríamos uma inovação na área dos direitos humanos, na qual todos
nós deveríamos ter o direito de continuar usando drogas ilícitas, independen-
temente das consequências negativas para o indivíduo e para a sociedade. Por
essa visão, seria um abuso dos direitos individuais qualquer constrangimento ao
uso de drogas.

No Brasil, a lei que regula o consumo de substâncias (Lei nº 11.343/2006) trouxe


mudanças significativas, com menor rigor penal para o usuário. Ainda não se sabe
se produziu alguma diminuição do consumo de drogas. Todas as evidências indicam
o contrário. Em relação à maconha e à cocaína, somos um dos poucos países do
mundo onde o consumo está aumentando. No mínimo, essa nova lei não impediu
esse aumento. Estamos com maior liberdade para usar drogas, mas os usuários con-
tinuam tão desinformados e desassistidos de tratamento quanto antes.

A defesa do direito ao uso de drogas é uma visão por demais simplista e não leva em
consideração a complexidade do uso de substâncias, em particular as modificações
que o uso de drogas provoca no sistema nervoso central. Parte-se do princípio de
que todos os usuários de drogas teriam plenas capacidades de decidir sobre o seu
consumo. Não podemos afirmar que todos os que usam drogas estejam comprometi-
dos quanto ao seu julgamento, mas podemos argumentar que uma parte significati-
va dos usuários apresenta diminuição de sua capacidade de tomar decisões.

44 | debate hoje
As drogas que produzem dependência alteram a capacidade de escolher quando, quanto e onde usar. É ilusório
pensar que um dependente químico tenha total liberdade sobre o seu comportamento e possa decidir plena-
mente sobre a interrupção do uso. É por isso que os dependentes persistem no comportamento, com grandes
prejuízos individuais, para sua família e para a sociedade.

Se, por um lado, a opinião de Fernando Henrique carece de legitimidade com relação aos direitos humanos bá-
sicos, pois não existe um direito ao uso de drogas ilícitas, por outro, temos aspectos do debate que não foram
mencionados. Por exemplo: existe uma relação entre saúde e direitos humanos. As Nações Unidas e a Organi-
zação Mundial da Saúde desenvolveram recentemente o conceito de que todos deveriam ter o direito ao mais
alto padrão de saúde possível (right to the highest attainable standard of health). É um conceito relativamente
novo, com não mais de dez anos. Afasta-se de declarações vagas sobre saúde e responsabiliza a sociedade e o
sistema de saúde pela implementação de políticas que garantam a qualidade dos cuidados.

Recentemente o Estado de São Paulo deu um bom exemplo de garantia do mais alto padrão de saúde possível ao
proibir o fumo em todos os ambientes fechados. O que se garantiu nessa nova lei não foi o direito de fumar, mas
o direito de a maioria da população ser preservada do dano da fumaça. Mesmo os fumantes têm o seu direito
a um mais alto padrão de saúde garantido ao ser estimulado a fumar menos. Esse foi um exemplo de como é
possível termos intervenções governamentais que preservem o direito à saúde e ao mesmo tempo sinalizem
uma intolerância ao consumo de uma droga que mata um número substancial de cidadãos.

Experiências de sucesso em outros países apontam na direção de combinar estratégias, do setor de Justiça
com o setor educacional e de saúde, para que se obtenham melhores resultados. Leis que sejam respeitadas e
fiscalizadas tendo como objetivo o bem comum. A Lei Seca, que proíbe o beber e dirigir, identifica o indivíduo
e impõe sanções, também pode ser um exemplo, pelo número de vidas salvas até o momento. O fato de se criar
uma intolerância com o fumar ou com o beber e dirigir em nenhum momento produziu desrespeito aos cidadãos
que fumam ou bebem.

No Brasil não temos uma política de prevenção do uso de drogas. Deixamos os milhões de crianças e adoles-
centes absolutamente sem nenhum tipo de orientação sobre prevenção do uso de substâncias. Fornecemos
muito mais informações sobre o meio ambiente do que com os cuidados de saúde. Temos uma boa política de
prevenção ambiental, mas não temos com relação às drogas. Não temos um sistema de tratamento compatível
com a magnitude do problema, deixando milhares de usuários completamente desassistidos.

O tema proposto por Fernando Henrique Cardoso é importante, traz a oportunidade de debatermos que tipo de
política construir para a próxima geração. Queremos uma sociedade em que o uso de drogas seja um direito ad-
quirido? Ou queremos uma sociedade muito mais ativa, em que o sistema de Justiça funcione em sintonia com
os sistemas de saúde e educacional e possamos criar ações baseadas em evidências científicas para diminuir o
custo social das drogas?

Talvez um mundo sem drogas jamais exista. Como também não existirá um mundo sem crimes ambientais ou
sem violações dos direitos humanos. Isso, no entanto, não é desculpa para descartar o ideal e continuar a lutar
pelo objetivo de um mundo melhor. Tolerar as drogas, banalizar o seu consumo não é a melhor opção para uma
sociedade que valorize a saúde e os melhores valores de respeito à dignidade humana.

debate hoje | 45
Posicionamento
Psiquiatria Geriátrica

Terceira idade:
o futuro (e o presente)
da saúde mental

S
egundo divulgado pelo Instituto Brasi- pessoas acima de 65 anos de idade, “o aumento em
leiro de Geografia e Estatística, o en- gastos com saúde e previdenciários adquire impor-
velhecimento da população e a queda tância capital, visto que os idosos são responsáveis
do índice de natalidade são dois dos por uma ampla fatia dos custos envolvidos na as-
principais desafios para o futuro do sis- sistência médica oferecida pelo Estado”.
tema de saúde brasileiro. Como o tratamento de
idosos necessita de mais recursos que a média da Na área de saúde mental, são duas as doenças
população, é previsto um crescimento dos gastos que mais preocupam nessa fase da vida. O mal
com saúde superior ao crescimento do Produto de Alzheimer, que tem prevalência de 5% aos 65
Interno Bruto. anos e alcança até 20% a partir de 85 anos, e a
depressão, que é considerada um dos quatro gi-
Pela relevância do tema, a Associação Brasileira gantes da geriatria (os outros três são demência,
de Psiquiatria destaca e esclarece aos associados quedas e infecções).
suas repercussões para a especialidade. No trecho
destinado à terceira idade, as “Diretrizes para um Nesse sentido, vale reafirmar o posicionamento
modelo de assistência integral em saúde mental” técnico de nossa instituição, já afirmado em nos-
já demonstram preocupação com a estrutura do sas Diretrizes.
sistema de saúde pública, mediante a tendência
de envelhecimento populacional no Brasil. As principais causas para institucionalização de
idosos são os quadros de agitação ou agressividade
O documento destaca textualmente que com o e a dependência para realizar atividades cotidia-
crescimento da expectativa de vida e do número de nas. Essas características evidenciam a necessidade

debate hoje | 47
Posicionamento
Psiquiatria Geriátrica

de especialização na área, que é multiplicada pelo 2. Encaminhamento desses casos para os ambula-
crescimento da demanda populacional. tórios, onde os diagnósticos dos casos suspeitos
podem ser refinados e o tratamento instituído.
Assim, destaca-se a relevância da formação e do Estes casos serão contra- referidos para a rede
atendimento especializado em psiquiatria geriátri- primária, onde o acompanhamento deverá se dar.

3. Organização de aulas e equipes de educação so-


“No trecho destinado à terceira bre temas referentes a idosos na comunidade, jun-
tamente com associações de idosos e de parentes
idade, as “Diretrizes para de pessoas com doenças psiquiátricas de idosos.
um modelo de assistência
4. Estabelecimento de uma rede integrada de
integral em saúde mental” atendimento terciário e quaternário para casos
já demonstram preocupação que necessitem de internação.

com a estrutura do sistema 5. Formação de centros de referência para idosos


de saúde pública, mediante a com demência e depressão por todo o país, não
apenas para o tratamento multidisciplinar, e o
tendência de envelhecimento estabelecimento de Centros-Dia para reabilitação
voltados para atividades de vida diária e também
populacional no Brasil.” para garantir a distribuição de medicamentos de
alto custo para demência, psicose e depressão ne-
ca em todos os níveis, com todos os profissionais cessários aos usuários idosos.
envolvidos no atendimento: médicos, psicólogos,
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, enfer-
meiros, assistentes sociais e musicoterapeutas.

Por fim, sobre a estrutura da rede de atendimento João Alberto Carvalho


necessária para essa população, transcrevemos os Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria
cinco passos expostos pelas Diretrizes:
Luiz Alberto Hetem
1. Reconhecimento de casos de depressão e demên- Vice-presidente e coordenador do colegiado de de-
cia, além de quadros de ansiedade e de psicoses partamentos da ABP
pelas equipes de saúde no serviço primário. Trei-
namento dessas mesmas equipes em instrumentos Sergio Luís Blay
básicos de rastreio e quantificação de transtornos, Coordenador do Departamento de Psiquiatria Ge-
com escalas validadas em nosso meio. riátrica

48 | debate hoje
Artigo
Preconceito

Dr. Telmo Kiguel


Coordenador do Departamento
de Psicoterapia e Coordenador
do Projeto Discriminação

Direitos Humanos
e o Projeto Discriminação

O
s grupos discriminados estão conse- grandes possibilidades que isso também ocorra
guindo importantes conquistas so- com a criminalização da homofobia e a lei das
ciais, políticas, institucionais, traba- cotas sociais e raciais nos vestibulares de univer-
lhistas e jurídicas. sidades públicas.

Coincide em 2008 o início do nosso projeto e as É sabido que as cotas já estão sendo implementa-
prévias do Partido Democrático entre H. Clinton e das em algumas universidades e tribunais já estão
Barack Hussein Obama e depois a disputa entre o condenando o racismo e a homofobia.
último e J. McCain do P. Republicano.
Em várias cidades do Brasil ocorrem, diariamente,
Certamente a eleição de um negro, filho de pai mu- debates sobre racismo, homofobia, discriminação
çulmano, para presidente da maior potência mun- contra mulheres, crianças, adolescentes, idosos,
dial com sua triste história de racismo é uma dos doentes e deficientes físicos e mentais, anti-se-
grandes marcos na luta contra as discriminações. mitismo, xenofobia, etc.

Se os Estados Unidos elegeram um negro, certa- Pesquisas bem conduzidas tem sido feitas em
mente todos grupos discriminados passaram a ter nosso país e dessas salientamos duas, publicadas
mais esperança nas suas lutas. Ainda mais agora nos últimos meses e com grande repercussão en-
depois de ganhar o Nobel da Paz. tre os interessados no tema.

Aqui em nosso país estamos vivendo também uma “Pesquisa sobre Preconceito e Discriminação no
situação de avanços na luta pela igualdade dos di- Ambiente Escolar” do Prof. José Afonso Mazzon
reitos humanos e pela aceitação da diversidade. (USP) realizada pela Fundação Instituto de Pes-
quisas Econômicas (FIPE) e a pedido do Institu-
Acabamos de ter uma conquista importante com to Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e há Anísio Teixeira (INEP/MEC).

debate hoje | 49
Artigo
ABP

“Direitos Humanos e as Práticas de Racismos: O que interlocutores quanto à entrada de psiquiatras


Faremos com os Brancos Racistas?”. Tese de doutora- (ABP) nesse debate.
do do Prof. Ivair Augusto Alves dos Santos (UNB).
Em contrapartida, desde o início, encontramos par-
Outro acontecimento recente é a decisão da As- ceiros na imprensa com importante sensibilidade-
sembléia Geral da ONU de criar uma agência única afinidade psicológica para entender nossos objeti-
para as mulheres que deverá ter um status maior vos e a partir daí agir como divulgadores do PD.
que os quatro organismos já existentes dedicado
às mulheres. Será dirigido por uma Subsecretária- Estamos nos referindo ao médico sanitarista, es-
Geral, terceiro cargo em importância dentro do critor e membro da Academia Brasileira de Letras
Sistema ONU. Moacyr Scliar; ao jornalista Roberto Brenol de An-
drade (Jornal do Comércio – RS); à Rádio Guaíba e
Quanto ao Projeto Discriminação – ABP Jornal Correio do Povo (RS); à Rádio Bandeirantes
Comunidade, que o leitor pode conhecer no link: (RS) e Jornal o Sul; e a muitos blogs e instituições
http://www.abpcomunidade.org.br/projeto_ conhecidas por sua luta contra as discriminações.
discriminacao/ , podemos informar que ele
experimenta todos percalços de uma experiência E por fim, no mês de agosto, na IX JORNADA GAÚ-
pioneira. CHA DE PSIQUIATRIA, realizamos o I ENCONTRO
DO PD com o tema DISCRIMINAÇÃO: FRONTEIRAS
Desde o início, nem a coordenação, nem a diretoria DA NORMALIDADE.
tinham uma idéia muito clara de como e quais ca-
minhos percorreríamos para conseguir atingir o nos- Constou de uma conferência do Dr. Ivair Augusto
so objetivo principal que é a participação da nossa Alves dos Santos, secretário executivo do Conse-
especialidade nos debates que acontecem no país lho Nacional de Combate à Discriminação (SEDH
sobre as mais diversas formas de discriminações. da Presidência da República) seguido de um deba-
te com o Des. Rui Portanova (Tribunal de Justiça
Baseados na compreensão de que o processo discri- – RS) e com o público presente.
minatório é de origem emocional e que o os grupos
discriminados tem como conseqüência um sofri- O sucesso do evento e do projeto pode ser medi-
mento psíquico decorrente do ataque (agressão) do, ate agora, pelo convite, já oficializado, que
discriminatório, nada mais natural de que nós, psi- recebemos da Secretaria Especial de Direitos Hu-
quiatras, participarmos desse debate para ajudar- manos para apresentarmos o PD na Câmara Fede-
mos os discriminados no enfrentamento (externo) ral, em Brasília, e para eventos em conjunto com
dos discriminadores e (interno) no seu sofrimento a Secretaria de Justiça do Estado do RJ e de SP.
mental decorrente da ação discriminatória.

Talvez o obstáculo mais importante que nos depa-


ramos foi com a surpresa (resistência) de nossos

50 | debate hoje
debates
PSIQUIATRIA HOJE
www.abpbrasil.org.br
52 | debate hoje

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