Sei sulla pagina 1di 162

EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ


VICE-REITORIA DE GRADUAÇÃO – VRG
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – CEaD

Coleção Educação a Distância


Série Livro-Texto

Dinarte Belato

CIVILIZAÇÕES
CLÁSSICAS II

Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil


2009
1

EaD
2009, Editora Unijuí Din art e Belat o
Rua do Comércio, 1364
98700-000 - Ijuí - RS - Brasil
Fone: (0__55) 3332-0217
Fax: (0__55) 3332-0216
E-mail: editora@unijui.edu.br
www.editoraunijui.com.br
Editor: Gilmar Antonio Bedin
Editor-adjunto: Joel Corso
Capa: Elias Ricardo Schüssler
Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum
Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí

B426c Belato, Dinarte.


Civilizações clássicas II / Dinarte Belato. – Ijuí : Ed.
Unijuí, 2009. – 162 p. – (Coleção educação a distância.
Série livro-texto).
ISBN 978-85-7429-772-9
1. Civilizações. 2. Civilização mediterrânea. 3. Civili-
zações americanas. 4. Civilização romana. I. Título. II.
Série.
CDU : 930
930.85

2
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Sumário

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................7

CONHECENDO O PROFESSOR .................................................................................................9

UNIDADE 1 – O MEDITERRÂNEO E SUAS CIVILIZAÇÕES ..............................................11

Seção 1.1 – A civilização grega: o período arcaico ...................................................................20

1.1.1 – A sociedade arcaica .....................................................................................22

1.1.2 – A primitiva sociedade homérica .................................................................23

1.1.3 – Da crise da sociedade arcaica à democracia ateniense


e à autocracia militar espartana ...............................................................26

1.1.4 – Dracon – 624 a.C. ........................................................................................27

1.1.5 – Sólon – 594 a.C ............................................................................................28

1.1.6 – Clístenes e a democracia ............................................................................33

1.1.7 – O conselho dos 500 ou Boulé ....................................................................35

1.1.8 – A assembléia dos cidadãos ou Eclésia ......................................................36

1.1.9 – Os cultos do Estado ....................................................................................36

Seção 1.2 – Esparta: a pólis da disciplina militar .....................................................................37

Seção 1.3 – A maturidade da democracia ateniense – século 5º ............................................39

Seção 1.4 – Crise da democracia ateniense – 431-322 a.C ......................................................48

1.4.1 – A busca de uma solução para a crise .......................................................49

1.4.2 – Xenofonte e Isócrates – a restauração da tradição ................................50

1.4.3 – O realismo político de Aristóteles .............................................................53

Seção 1.5 – Alexandre e a conquista do oriente .......................................................................57

3
EaD Din art e Belat o

UNIDADE 2 – A CIVILIZAÇÃO ROMANA ...............................................................................63

Seção 2.1 – Da guerra ...................................................................................................................64

Seção 2.2 – O Lácio e os povos latinos .......................................................................................68

Seção 2.3 – Roma, uma máquina de guerra ..............................................................................68

Seção 2.4 – Os frutos da guerra ...................................................................................................71

Seção 2.5 – A política: uma aristocracia que jamais cede o poder e a riqueza ....................75

2.5.1 – As estruturas políticas ................................................................................76

Seção 2.6 – Nasce a Cives romana ou o Estado romano ........................................................79

Seção 2.7 – Os eixos históricos de uma classe predadora: o butim e a glória ......................80

Seção 2.8 – Os deuses romanos ...................................................................................................82

Seção 2.9 – O cristianismo e o império .......................................................................................87

Seção 2.10 – O legado do cristianismo primitivo ......................................................................89

Seção 2.11 – A escravidão na Grécia e em Roma .....................................................................90

Seção 2.12 – As heranças que nos vêm dos romanos ...............................................................95

2.12.1 – Heranças lingüísticas ...............................................................................95

2.12.2 – Arquitetura e urbanismo ..........................................................................98

2.12.3 – Direito romano ........................................................................................ 100

UNIDADE 3 – AS CIVILIZAÇÕES AMERICANAS .............................................................. 103

Seção 3.1 – Introdução .............................................................................................................. 103

Seção 3.2 – As dimensões civilizatórias da América .............................................................. 110

3.2.1 – Os sistemas alimentares da América ..................................................... 111

3.2.2 – Os sistemas alimentares dos índios brasileiros:

a civilização emerge na Amazônia ........................................................ 122

4
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

UNIDADE 4 – AS CIVILIZAÇÕES AVANÇADAS DA AMÉRICA ...................................... 131

Seção 4.1 – A geografia do império inca ................................................................................. 135

Seção 4.2 – Os deuses e divindades ......................................................................................... 139

Seção 4.3 – A polêmica da escravidão no império inca ........................................................ 149

Seção 4.4 – Códigos e regulações ............................................................................................. 150

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 159

5
EaD Din art e Belat o

6
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Apresentação

O Mediterrâneo foi um mar tão importante para as civilizações que em torno dele se
desenvolveram – a grega, a romana e a cristã e, em boa medida, a islâmica – como os Rios
Nilo, Tigre e Eufrates, Indo e Amarelo o foram para as civilizações egípcia, mesopotâmica,
hindu e chinesa. O espaço articulado pelo Mediterrâneo, entretanto, é pobre de recursos

naturais e impôs às sociedades movimentos contínuos de expansão, convertendo-se deste


modo num mar de ligação e de trânsito com todas as demais civilizações: as do Oriente
Médio e Extremo Oriente, as da África e, mais tarde, as da América.

Não é casual que as velhas civilizações do Oriente se tenham expandido pelo mundo,
carregadas pelas civilizações desenvolvidas no Mediterrâneo. É isto, em boa medida, que

explica nossa múltipla herança civilizatória, a que nos vem do Oriente, sobretudo pela via
religiosa do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, e a que nos vem do Mediterrâneo por
meio da Filosofia, do Direito e da política greco-romanas. Insisto neste ponto: é preciso que
reconheçamos as heranças que nos vêm das civilizações mediterrâneas, seja para entender
os fundamentos profundos da civilização contemporânea, seja para criticar-lhe a pretensão
de verdade (religiosa ou científica) única e absoluta.

Reconhecer no presente nossas heranças forjadas no passado talvez nos obrigue a fazer
a crítica de nossas atitudes presentes de auto-suficiência, arrogância e orgulho, tão próprias
da modernidade. Não esqueçamos nunca: todas as vezes que comemos um bocado de pão,
não estamos só nos alimentando, estamos comendo um símbolo universal das condições de
nossa existência cotidiana. Por isso dizemos: “dai-nos o pão nosso de cada dia...” e, quando
trabalhamos duro para sobreviver no dia-a-dia dizemos: “estou ganhando meu pão...”.

Este roteiro de estudo privilegia as duas grandes civilizações do Mediterrâneo: a grega


e a romana. E por ser um roteiro, padece da exclusão de muitos temas e questões importan-
tes de ambas as civilizações. Tive de fazer escolhas, e o critério que as orientou foi a imensa
herança social e política que nos advém dos gregos e romanos. Dos gregos discutiremos
principalmente a herança política, o paradigma da compreensão e do exercício do poder que

está na origem da reflexão científica e filosófica das poleis em particular, Atenas e Esparta.

7
EaD Din art e Belat o

Dos romanos abordaremos a construção de um vasto império, movido pela permanen-


te dinâmica de um poder fundado na guerra, na exploração econômica de inúmeros povos
subjugados e na necessidade de construir sistemas jurídico-políticos capazes de lhe oferecer
estabilidade e permanência. Roma, sob este aspecto, é a fonte inspiradora de todos os impé-
rios posteriores, seja o de Carlos Magno, o da Espanha, da França, seja o da Inglaterra ou
dos Estados Unidos da América.

Sobre outros temas não tratados aqui, podemos conversar no decorrer de nossos estu-
dos ou incorporá-los numa agenda futura de estudos e pesquisas.

Estudaremos na seqüência as civilizações americanas, aquelas que os povos da Amé-


rica construíram durante milênios e que foram bruscamente interrompidas com a conquista
e a dominação européia a partir de fins do século 15, quando da chegada das naus de
Cristóvão Colombo.

Nós conhecemos bem a história dos povos americanos sob a dominação européia. E
conhecemos muito mal a história desses mesmos povos antes de tal dominação. As razões
disso são diversas. A primeira delas deve-se ao fato da sistemática destruição da memória, dos
documentos e monumentos das civilizações anteriores. Os missionários europeus, ao erradicar
as crenças religiosas, a organização social e as diversas formas de organização do trabalho
dos povos americanos, destruíram também a sua história, ou, pelo menos, a silenciaram.

Faremos, em razão disso, um grande esforço no sentido de compreender os povos america-


nos em suas trajetórias originais de civilização. Descobriremos, às vezes espantados, que as civili-
zações americanas haviam percorrido algumas, outras estavam percorrendo trajetórias civilizatórias
em nada diferentes das percorridas por mesopotâmicos, egípcios, chineses ou europeus.

Não podemos esquecer em nossos estudos de compreender o quanto somos herdeiros das
civilizações indígenas da América, seja na longa lista de alimentos e bebidas incorporadas ao
nosso cotidiano, seja nos preciosos conhecimentos que nos legaram sobre a flora e a fauna da
América, ou ainda nos preciosos conhecimentos oriundos do manejo de ecossistemas tão diver-
sos como os da Cordilheira dos Andes, das florestas tropicais da Amazônia, das pradarias da
América do Norte ou da incrível capacidade de viver em ambientes tão hostis como os do Ártico.

Quando comeres um pão de milho, um chocolate, um tomate, um bocado de mandioca ou


uma batatinha frita, não te esqueças que aí está representado o “pão nosso” dos povos da Améri-
ca. E não esqueças que o chimarrão, que tanto apreciamos, é uma bebida indígena e guarani.

8
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Conhecendo o Professor

Dinarte Belato

Nasci em 1943, num pequeno município do norte do Rio Gran-

de do Sul chamado Maximiliano de Almeida, filho de colonos des-


cendentes de imigrantes italianos. Sou bacharel e licenciado em

Filosofia pela Unijuí e especialista em Filosofia contemporânea pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Comecei a lecionar na Unijuí em 1967, há quase 40 anos,

como professor de Filosofia da Educação e História da Filosofia e,

logo a seguir, também de História da Educação. Este convívio com


a História me levou, em 1978 e 1979, a fazer o Mestrado em Histó-

ria na Universidade Estadual de Campinas. A partir de então pas-

sei a fazer parte do grupo de professores do curso de História.

Desenvolvi pesquisas sobre as questões agrária e agrícola.

Atualmente sigo pesquisando esta problemática, mas a ela acres-


centei outros temas como: a história dos alimentos, a história da

morte e da velhice, temas que, no meu modo de entender, guardam


profunda relação.

Nunca, ao longo de minha atividade de professor, deixei de

manter um intenso trabalho de assessoria a grupos sociais popula-


res, movimentos sociais e aos professores da rede pública estadual

e municipal. São esses trabalhos que ligam profundamente a uni-


versidade com a sociedade e dão aos professores universitários as

razões e as motivações para o estudo, a pesquisa e a formação dos


futuros docentes.

Gosto de estudar, de fazer pesquisa e de ser professor.

9
EaD Din art e Belat o

10
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Unidade 1

O MEDITERRÂNEO E SUAS CIVILIZAÇÕES

OBJETIVOS DESTA UNIDADE

• Aprofundar nossos conhecimentos históricos da civilização grega, visando a compreendê-

la em seu processo de construção e, sobretudo, em sua significativa contribuição na cons-

trução da civilização atual, mostrando o quanto nossos valores, crenças, instituições

sociais, econômicas, políticas e estéticas tiveram suas origens nesta civilização.

AS SEÇÕES DESTA UNIDADE

Seção 1.1 – A Civilização Grega: o período arcaico

Seção 1.2 – Esparta: a pólis da disciplina militar

Seção 1.3 – A Maturidade da Democracia Ateniense – Século 5º

Seção 1.4 – Crise da Democracia Ateniense – 431-322 a.C.

Seção 1.5 – Alexandre e a Conquista do Oriente

Estudaremos as civilizações do Mediterrâneo: a civilização grega, a civilização roma-

na e a bizantina. Elas sucederam-se umas após as outras e os seus elos foram propiciados

pelas águas do Mar Mediterrâneo. O Mediterrâneo não é apenas o berço dessas civiliza-

ções, ele é o meio de contato e de influência das grandes civilizações do Oriente Médio: do

Egito, da Anatólia e, um pouco mais a leste, da Mesopotâmia. Mais tarde o Império Roma-

no sofrerá o impacto do Cristianismo e este, mais tarde ainda, o impacto do Islamismo.

11
EaD Din art e Belat o

Fonte: Disponível em: <http://galeria.blogs.sapo.pt/arquivo/


Mar_Mediterraneo_visto_do_espaco.jpg>. acesso em: 21/1/09.

O que é o Mediterrâneo, pergunta-se Braudel, o historiador contemporâneo que, pro-


vavelmente, mais o estudou e mais o conheceu. Ele mesmo responde:

Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens. Não um mar, mas
uma sucessão de mares. Não uma civilização, mas civilizações sobrepostas umas às outras.
Viajar pelo Mediterrâneo é encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na Sardenha, as
cidades gregas na Sicília, a presença árabe na Espanha, o islã turco na Iugoslávia. É mergulhar
nas profundezas dos séculos até as construções megalíticas de Malta ou até as pirâmides do
Egito. É encontrar coisas muito velhas ainda vivas, ladeando o ultramoderno; ao lado de Veneza,
falsamente móvel, a pesada aglomeração industrial de Mestre. Ao lado do barco do pescador,
que é ainda o mesmo de Ulisses, a traineira devastadora do fundo do mar, ou os enormes petro-
leiros. É ao mesmo tempo emergir no arcaísmo dos mundos insulares e surpreender-se diante da
extrema juventude de cidades muito antigas, abertas a todos os ventos da cultura e do lucro, e
que, há séculos, vigiam e comem o mar (1988, p. 1-2).

O Mediterrâneo são muitos mares. A oeste, lá está o Mar de Alboran; no centro, o Mar

da Ligúria, o Mar Tirreno e o Adriático; a leste, o Jônico, o Egeo, o Mar de Mármara ou


Propôntida e o Mar Negro ou Ponto.

12
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

O Mar de Alboran é a parte mais ocidental do Mar Mediterrâneo. Limita-se ao norte


com a costa espanhola, ao sul com o litoral do Marrocos, a oeste com o estreito de Gibraltar,
conexão do Atlântico com o Mediterrâneo. Estende-se a leste até o cabo de Gata. É a ilha
de Alboran que dá nome a esta porção do Mediterrâneo.

A importância histórica da Ligúria, do Golfo de Gênova e dos acessos e caminhos do


continente à península italiana, deu a essa pequena porção do Mediterrâneo o nome de
Mar Lígure ou da Ligúria.

Logo abaixo, ao sul, no espaço interno delimitado pelo litoral da Itália e as ilhas da
Córsega, Sardenha e Sicília, está o Mar Tirreno. É por ele que se tem acesso ao porto de
Óstia que, por sua vez, dá acesso a Roma. Entre a península italiana e balcânica está o Mar
Adriático, ponto de contato entre a civilização grega, que se estende mais ao sul ao Mar
Jônico que, por sua vez, a leste, dá acesso ao Egito, à Fenícia e às civilizações do Oriente
Médio, e a nordeste dá acesso ao Mar Egeo, o qual, pelo Mar de Mármara, abre caminho ao
Mar Negro, e por ele, à Pérsia, à Mesopotâmia e Anatólia.

É por isso que o Mediterrâneo são muitos mares, pois

[...] é uma encruzilhada muito antiga. Há milênios tudo converge em sua direção, confundindo e
enriquecendo sua história: homens, animais de carga, veículos, mercadorias, navios, idéias reli-
giosas, arte de viver. E até mesmo plantas (Braudel, 1988, p. 2).

Originárias daí, só a oliveira, o trigo e a vinha. Aí se adaptaram e aclimataram laranjei-


ras, limoeiros e tangerinas que vêm da Ásia do leste, da China, trazidas pelos árabes; as figuei-
ras, aloés e cactos, que vêm do norte da África, da Barbária; da América vêm os tomateiros, as
batatas, o milho, o tabaco, o girassol. As plantas e outros temperos da gastronomia mediterrâ-
nea, que vêm da Índia e do sudeste asiático. E para o Mediterrâneo convergiram e ainda
convergem povos de todos os continentes, da Europa setentrional, da Ásia e da África.

E conclui Braudel (1988, p. 3):

Tanto em sua paisagem física como em sua paisagem humana, o Mediterrâneo-encruzilhada, o


Mediterrâneo heteróclito apresenta-se em nossas lembranças como imagem coerente, como um
sistema onde tudo se mistura e se recompõe numa unidade original. Como explicar essa unidade

13
EaD Din art e Belat o

evidente, esse ser profundo do Mediterrâneo?... A explicação não é somente a natureza... Nem
apenas o homem... São ao mesmo tempo as graças da natureza, ou suas maldições – umas e
outras numerosas – e os múltiplos esforços dos homens, ontem como hoje.

Da mesma forma que os rios Nilo, Tigre e Eufrates, também o Indo, Amarelo e Azul são
dons da natureza, vantagens dadas potenciais, entretanto só o trabalho secular da socieda-
de pôde convertê-los em base sólida de civilizações. Assim também é o Mediterrâneo. Foi
preciso atravessá-lo, conhecer-lhe a diversidade, seus ritmos e perigos para convertê-lo em
base das civilizações que em suas margens se fizeram.

Os romanos, quando o dominaram por completo, chamaram-no de Mare Nostrum: Nos-


so Mar, ou Mediterrâneo, isto é, o mar que está cercado de terras, que está no meio da terra.

Ao recorte do mar em mares corresponde um desenho de terras que se projetam águas


adentro. São as sucessivas penínsulas que de oeste para leste adentram no mar: a península
ibérica, italiana, balcânica e anatólica. A península italiana divide o Mediterrâneo em dois, o
poente e o levante, o leste e o oeste, Ocidente e Oriente. Como destaca Braudel (1988, p. 8):

Aí a Itália encontra o sentido de seu destino: ela é o eixo mediano do mar e, [...], sempre se
desdobrou entre uma Itália voltada para o poente e uma Itália que encara o levante. Não foi
nisso que por muito tempo encontrou suas riquezas? Ela tem a possibilidade natural, o sonho
natural de dominar todo o mar.

Às vezes dizemos que tal ou qual região do Brasil tem um clima mediterrâneo. Que

queremos dizer com isso? Simplesmente que estamos comparando tal ou qual clima com o
do Mar Mediterrâneo. Que clima é esse? É um clima homogêneo, singular, que dá um cará-
ter único a toda a bacia do mar e que proporciona às paisagens e aos gêneros de vida que aí

se desenvolvem há milênios um toque unificador, uma identidade.

O clima é governado por duas forças que em sucessão se impõem: o deserto do Saara

ao sul e o Oceano Atlântico ao oeste.

“Todo o verão, o ar seco e ardente do Saara envolve toda a extensão do mar, ultra-

passando, porém, seus limites em direção ao norte. O Mediterrâneo torna-se, então,


quente, aprazível e à noite exibe céus límpidos e estrelados” (Braudel, 1988, p. 13). Van

14
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Gogh, um homem das planícies do norte da Europa, de céus cinzentos, captou como

ninguém este céu azul quando esteve internado no sul da França, em Arles. Ele pintou

também o vento implacável que, várias vezes por ano, no verão, sopra tórrido do Saara,

carregado de areia, que entorta as árvores e que obriga todos, homens e animais, a se
recolherem para dentro de casa. É o siroco, mistral, khamsin ou plumbeus auster, como

dizia o poeta romano Horacio. De abril a setembro os ventos dominantes do nordeste, os

ventos que os gregos chamavam de etésios, eram também quentes e não contrabalança-

vam o calor vindo do Saara.

A partir de outubro impõem-se os ventos carregados de umidade do Atlântico. Venta-

nias e chuvas torrenciais tornam o continente e o mar perigosos e umedecem o solo à espera
das sementeiras de primavera e de verão. O ciclo se repete a cada ano, de forma regular, há

milênios, e requer das sociedades que aí plantam, disciplinas coletivas e muito trabalho.

Não por acaso, gregos e romanos foram buscar na massa de escravos que capturaram

em guerras e piratarias o trabalho de que tanto necessitavam. Eles foram os criadores das

sociedades escravistas. Iguais a elas, só a escravidão em grande escala de povos africanos e

obrigados ao trabalho compulsório nas fazendas e plantações da América nos três séculos

que vão do 16 ao 18.

Se examinarmos com atenção as civilizações fenícia, grega e romana, todas têm como

um de seus móveis a busca de alimentos ou a expulsão de suas populações excedentes,

fundando sucessivas colônias ao redor da bacia do Mediterrâneo. Mesmo assim, a comida

nunca foi abundante, o que acabou convertendo a sobriedade, a temperança, em virtude

cardeal e explica o escândalo que produziam no povo romano e nos cristãos primitivos os

banquetes fartos dos ricos romanos que a iconografia fixou gordos e obesos. Não por acaso

gordo, “grosso”, “grasso, gras”, é sinônimo de rico, de abastado.

De um modo geral, observa Braudel (1988, p. 25), “[...] o Mediterrâneo equilibra sua

vida a partir da tríade: oliveira, vinho e trigo.” Muito pouca proteína animal, que vinha da

pesca e da criação de suínos e de caprinos e ovinos, mas muito poucos bovinos. O Império

Romano, em sua extensão máxima e em seu apogeu se converteu numa máquina de rapina

de alimentos que eram drenados para Roma: trigo, vinho, azeite, animais, queijo, peixes.

15
EaD Din art e Belat o

O trigo e o pão, entretanto, eram o alimento básico da população mediterrânea. Sua

escassez poderia ensejar revoltas e motins. Em contrapartida, uma celebração mediterrânea

pedia a Deus “...o pão de cada dia...”. O Cristianismo celebra a memória de Jesus Cristo

simbolizando seu corpo em pão e seu sangue em vinho. E observa Braudel (1988, p. 27):

Ainda hoje [...] em Nápoles e Palermo (os operários) [...] contentam-se com o Companatico, um
molho de cebola ou tomates sobre um pão regado com azeite, acompanhado de um pouco de
vinho [...].

A pizza tão apreciada hoje em sociedades superabundantes de comida é a comida típica dos
pobres do mediterrâneo: “sottile focaccia di pasta lievitata, condit a com olio, mozzarella,
pomodoro, o altro e cotta in forno o sotto bracia”.

Rodela fina de massa levedada, temperada com óleo (de oliva), queijo, tomate ou outra coisa e
assada no forno ou sob brasas (Minore, 1994).

O Mediterrâneo é onipresente e perigoso, traiçoeiro, de tempestades imprevistas e sú-

bitas que parecem governadas, como acreditavam os antigos, por deuses soberanos do mar:

Poseidon ou Netuno. E foi sempre pobre em sua fauna aquática e hoje vê suas reservas

biológicas ameaçadas pela pesca predatória e pela poluição.

O Mar Mediterrâneo foi, desde milênios, antes de mais nada, uma via de comunica-

ção, uma “superfície de transporte”, de intercâmbios e de riqueza (Braudel, 1988, p. 36). Há

indícios de que foram os cretenses os primeiros a ousar viagens em alto-mar desde Creta até

o delta do Nilo. A Odisséia descreve uma viagem de Ulisses desde a ilha de Itaca, onde se faz

passar por um mercador cretense, até o delta do Nilo.

Assaltou-me a vontade [...] de fazer um cruzeiro [...] para o Egito. Armo nove naus e os homens
afluem. Durante seis dias esses bravos festejam em minha casa [...]. No sétimo, embarcamos e,
das planícies de Creta, um belo e bom (vento) Boreas nos leva sempre em frente, como na corren-
te de um rio [...]. Bastou sentarmo-nos e deixarmo-nos levar pelo vento e pelos pilotos. Em cinco
dias alcançamos o belo rio Egyptor (Braudel, 1988, p. 38).

Os fenícios, marinheiros experientes, viajavam em linha reta de Creta até a Sicília e

daí para as Ilhas Baleares. A partir do século 4º a.C. a viagem da Ilha de Rodes à Alexandria

do Egito fazia-se em quatro dias (cf. Braudel, 1988, p. 38).

16
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

As rotas do Mediterrâneo foram se expandindo e os marinheiros ganharam o Atlântico

e daí o Mar do Norte e a Bretanha.

O Mediterrâneo será, por isso, disputado entre gregos e fenícios, gregos e persas, entre

romanos e cartagineses, entre cristãos e muçulmanos e entre genoveses e venezianos, entre

espanhóis e turcos. Na batalha de Lepanto, em 1571, enfrentaram-se as Marinhas de Guer-

ra do Império Turco e da Europa cristã de Felipe II, da Espanha: cem mil pessoas se confron-
taram em 250 navios de cada lado. A batalha lembra o que aconteceu próximo a Lepanto

em 480, quando os gregos venceram a frota persa, com navios menores, sem canhões, mas

muito ágeis e rápidos.

O Mediterrâneo são muitos mares, isto sabemos. As primeiras porções do Mediterrâ-

neo que vêm à luz são as do levante, as do Oriente, aquelas que põem em contato Creta,
Micenas, Hugarit, Síria-Fenícia e Egito, e mais ao longe, a leste, a Mesopotâmia.

Embora a técnica de transporte de mercadorias por água se tenha desenvolvido nas


civilizações agrícolas do Egito e da Mesopotâmia, inicialmente com barcos de junco e de-

pois de madeira, foram duas áreas mediterrâneas periféricas a essas civilizações que desen-

volveram embarcações capazes de navegar o Mediterrâneo, a partir do 2º milênio a.C.: os

povos do Mar Egeu e os povos do litoral da costa libanesa. Os novos barcos eram mais leves,
equilibrados, com remos e velas, querena e quilha. Foi o primeiro barco adaptado ao trans-

porte marítimo. Síria-Líbano e Egeu foram dois pontos onde se fabricaram navios e onde se

encontraram marinheiros capazes de manejá-los. Foram eles que, por primeiro, puseram em

contato as civilizações que nasceram no Oriente, trocando objetos, técnicas, modas, gostos,
correspondências.

Todas as civilizações comunicam-se entre si a partir de outras, [...] inclusive o Egito, normalmente
tão fechado... É a época das viagens das trocas de presentes [...]. Época em que se vê surgir nos
afrescos dos túmulos egípcios [...] todos os povos da Oriente Próximo e do Egeu: cretenses, micênicos,
palestinos, núbios, cananeus; em que as magníficas cerâmicas cretenses invadem todo o Levante;
em que as porcelanas azuis do Egito [...] acompanham os mortos nos túmulos micênicos; em que o
culto das divindades cananeias, sem dúvida, introduzido pelos comerciantes, espalha-se pelo delta
(do Nilo), enquanto as esfinges aladas ou os deuses do Egito florescem na Síria ou na região hitita
[...] em que a moda egípcia, até então devotada ao linho branco, apaixona-se pelos bordados sírios
e pelos tecidos de várias cores dos cretenses (Braudel, 1988, p. 61-62).

17
EaD Din art e Belat o

O Mediterrâneo, primeiro o Oriental, está pronto para desenvolver suas civilizações

peculiares: cretense, fenícia, micênica, grega e romana. E o Mediterrâneo será seu suporte

material, inspiração simbólica e desafio permanente.

A ligação das civilizações do Mediterrâneo com as do Oriente Médio realiza-se por

intermédio de três sociedades, muito parecidas entre si, constituindo uma herança muito

significativa para as futuras civilizações greco-romana. Cretenses, primeiro, micênicos a

seguir e fenícios constituem uma linha de tempo sucessiva que vai de 3 mil a aproximada-

mente 1.200 anos a.C.

Esses povos refletem no Mediterrâneo os grandes traços culturais das sociedades ori-

entais, seja na forma de organização do poder, fortemente centralizada na mão de um rei

semidivinizado, apoiado numa coesa burocracia civil e militar, seja num sistema de explora-

ção da terra mediante arrendamento e pagamento de tributos em espécie: vinho, azeite e

trigo e, sobretudo, de uma extensa divisão do trabalho artesanal de metais – bronze, cobre,

estanho – de cerâmica, tecidos e jóias de luxo e armas.

Adotam alfabetos do Oriente, modificados e adaptados às condições de cada uma des-

sas sociedades. É dos fenícios que os gregos receberam o alfabeto que se tornará, por sua

vez, o alfabeto romano, do qual deriva o alfabeto que utilizamos até hoje.

Em 1450 a.C. Micenas invade a ilha de Creta, de Rodes e de Chipre, destruindo para

sempre a civilização cretense. O século 12 a.C. é marcado por uma intensa movimentação

de povos que, partindo da Europa Central, do Cáucaso e da Ásia Central, movem-se para o

sul e se chocam com a civilização micênica, que é destruída. Na Anatólia chocam-se com o

hititas e só são contidos e derrotados nas costas da atual Síria e Líbano.

Essas invasões de povos vindos do norte, entre os quais estão os dórios, que se fixam

na Grécia continental, produzem uma profunda regressão cultural, um período em que de-

saparecem os avanços culturais cretenses e micênicos, extinguindo-se também a escrita. Os

historiadores costumam chamar o período que vai do início do século 12 até o século 8º a.C.

de idade obscura, idade média.

18
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

A partir do século 8º a.C. a Grécia reemerge e dá início ao que denominamos de civili-

zação grega. Por séculos o Mediterrâneo será grego.

A ocupação das bordas do Mediterrâneo pelos gregos realiza-se ao longo de séculos e


obedece a motivações variadas: seja a pressão das hordas invasoras vindas do norte, sejam

as condições geográficas da península, muito montanhosa, muito pedregosa, de poucas


planícies e terras de fertilidade medíocre.

Seja, finalmente, a grave crise agrária dos séculos 8º e 6º, que obrigava a grandes

contingentes de agricultores empobrecidos a emigrar, aliada a uma vigorosa expansão mer-

cantil, que importava cereais, peixe salgado, metais preciosos, marfim, âmbar, estanho, co-
bre, madeiras e pele e exportava vinho, azeite, jóias, armas, utensílios, navios, têxteis, cerâ-

mica, perfumes e ungüentos.

As colônias gregas semeadas desde o extremo leste do litoral do Mar Negro até a Espanha
davam à Grécia acesso ao trigo e peixe salgado produzidos nas terras férteis do Mar Negro, do

Egito e do sul da Itália; a madeira para a construção de navios vinha das florestas da Tracia,
os minérios da Espanha, França, Inglaterra e Groenlândia; produtos de luxo, do Egito e da

Fenícia. As colônias fundadas pelos gregos e os povos do Mediterrâneo, que os gregos chama-
vam de bárbaros, eram os consumidores dos produtos da indústria grega.

Todos os elementos de um grande comércio intramediterrâneo estavam então reunidos

e a Grécia, bastante incapaz de viver em autarquia – isto é, de ser economicamente auto-


suficiente – a não ser que se resignasse a uma vida miserável, abria-se largamente por todos

os lados (Levêque, 1967, p. 129). A expansão colonial representava ao longo da história


grega uma solução para as graves crises que a acometiam, pois sempre

[...] transportava em si uma força indefinida de expansão; assim, quanto mais se importava trigo,
menos havia necessidade de o produzir, mais se podia cultivar a vinha e a oliveira, mais se podia
exportar vinho e azeite (e também recipientes de cerâmica para seu transporte); a madeira de
importação permitia construir barcos cada vez em maior número, instrumento necessário para
um comércio unicamente marítimo. Os minérios que afluíam – principalmente – do ocidente
forneciam a matéria-prima indispensável tanto às indústrias utilitárias como às indústrias artís-
ticas e daí vem um aumento das exportações em direção do novo mundo. A indústria e a agricul-
tura eram simultaneamente estimuladas e o comércio tornava-se a base de uma vida em contí-

19
EaD Din art e Belat o

nuo desenvolvimento. A Grécia e a Anatólia enriqueciam-se com o incessante entrecruzamento


de navios que iam longe trocar as suas produções agrícolas e industriais requintadas por víveres
e metais (Levêque, 1967, p. 130).

Tamanha transformação da Grécia, porém, só foi possível porque se fizeram acompa-


nhar de profundas revoluções sociais, políticas e culturais, das quais emergirá a civilização

grega, como veremos mais adiante.

A expansão econômica e colonial grega no Mediterrâneo foi favorecida também pela

queda de seus concorrentes fenícios. Em 677 a.C. Sidon é tomada pelo Império Assírio e em

573 a.C. Tiro é conquistada pelos babilônios, embora, a partir de então, os impérios

mesopotâmicos tentem submeter o Mediterrâneo e incorporá-lo a seu poder. As Guerras


Greco-Pérsicas e as conquistas de Alexandre Magno são desdobramentos desse novo qua-

dro geopolítico. Oriente e Ocidente inaugurarão uma sucessão de choques intermináveis e

que se prolongam até os dias de hoje (Belato, 2008b).

Seção 1.1

A Civilização Grega: o período arcaico

O povo grego é o resultado de um longo processo histórico de invasões, todas vindas

do norte, em direção à península e ao Mar Egeu.

O mapa a seguir nos mostra a “descida” dos gregos, todos povos indo-europeus ocu-

pando territórios e guardando características lingüísticas e culturais que se conservaram ao

longo da história grega: jônicos, eólios, aqueus e dórios darão o caráter definitivo ao povo-

amento da península e da Anatólia.

20
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Fonte: Disponível em: <http://www.templodeapolo.net/Civilizacoes/grecia/


historia_civilizacao/mapa_invasao_dorica.html>. Acesso em 21 jan. 2009.

21
EaD Din art e Belat o

Os dórios, os últimos a chegar, destroem a civilização micênica e reduzem a península

e as ilhas adjacentes a um estado de barbárie. Foram necessários quatro séculos para que

nascesse uma nova cultura, que é a que conhecemos como cultura grega.

1.1.1 – A SOCIEDADE ARCAICA

Os historiadores costumam dividir esta primeira fase da história grega em duas etapas.
A primeira, que se inicia com as invasões dos dórios e é denominada de obscura, medieval,

vai do século 12 ao século 8º a.C. A segunda vai do século 8º ao século 4º a.C.

Para os gregos, arcaico é um adjetivo de significado altamente positivo, pois indica

princípio, ponto de partida, fundamento. O período arcaico é, então, para os gregos, aquele

em que a sociedade plantou seus alicerces e deu feição à sua cultura e civilização. É o

período em que foram criadas as instituições sociais, políticas e intelectuais que lhe deram

um lugar único na História: a sua experiência democrática, de um lado, e a experiência

militarista e autoritária, de outro, uma em Atenas e a outra em Esparta. Foi também quando

se iniciou uma nova forma de pensar e conhecer o mundo: a Filosofia e a Ciência. De ambas

(Atenas e Esparta), da democracia, da Filosofia e Ciência, somos herdeiros diretos.

Faz parte dessa etapa também a formação do imaginário religioso mediante a criação

de uma complexa sociedade de deuses e deusas e entes divinos que foi inteiramente assumi-

do mais tarde pela religião dos romanos. É nessa fase que se escrevem as duas grandes

epopéias –, a Ilíada e a Odisséia –, e a poesia lírica, que nasce o teatro com suas tragédias e

comédias, bem como a sofisticada arquitetura urbana e a inimitável arte da escultura. Todo

esse complexo cultural e civilizatório que se forma no período arcaico atinge sua plenitude

e força no período seguinte, o clássico, nos séculos 5º e 4º a.C.

Toma forma igualmente no período arcaico um traço que marcará as sociedades roma-

na e moderna ocidentais: a escravidão. Nenhuma dessas sociedades foi possível sem a escra-

vidão. E mais, a civilização grega e romana e a sociedade moderna européia do século 15 ao

19 plantam seus fundamentos na escravidão, mas, por contraste, exaltam a liberdade da-

queles que, em última instância, vivem do trabalho compulsório.

22
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

1.1.2 – A PRIMITIVA SOCIEDADE HOMÉRICA

O período obscuro e bárbaro que se sucede à invasão dos dórios foi-nos revelado pelos

poemas homéricos: a Ilíada e a Odisséia, atribuídos a um poeta jônico chamado Homero.

Os gregos reconhecem-se descendentes de três grandes grupos étnicos: jônios, aqueus/


eólios e dórios. Os laços de identidade lhes advém de uma comum cultura religiosa, de uma

língua que se impôs a todos com suas próprias variantes dialetais e, sobretudo, de um modo

descentralizado de organização política, chamada pólis, cada uma delas completamente

independente. Esse conjunto de elementos dava-lhes uma identidade própria, e permitia


marcar a diferença em relação aos demais povos: a si denominavam gregos e civilizados; aos

demais chamavam de estrangeiros e bárbaros.

Produziu-se na Grécia, da diversidade, uma unidade e uma identidade, uma civiliza-

ção. Compelidos a expandir-se na orla do Mediterrâneo, os gregos faziam-no fundando co-

lônias que, embora guardassem entre si profundos vínculos culturais e religiosos com a

metrópole, constituíam unidades políticas e econômicas completamente autônomas.

A sociedade descrita nos poemas de Homero é uma sociedade de classes bem definida:

Horizontalmente, pode-se distinguir um certo número de classes que se definem por sua fortuna,
liberdade jurídica e atividade econômica. No topo, estão os grandes proprietários de terra, os
nobres, que são os companheiros do rei. Eles apropriam-se das melhores e mais extensas terras
(trabalhadas por escravos e dependentes e concentram em suas mãos também prestígio social e
poder). A participação nas guerras lhes dá direito à partilha do butim. Nesta sociedade há tam-
bém os camponeses livres que trabalham a terra do nobre. São pequenos produtores, pastores
que habitam com suas famílias sua própria casa . Vêm depois os demiurgo s [... ] artesãos
especializados (carpinteiros, ferreiros), mais ou menos ambulantes, pagos por tarefa. Vêm a
seguir os “thetes”, que só possuem sua capacidade de trabalho. São livres, descendentes de es-
trangeiros ou camponeses expropriados, vivem junto à casa do nobre e são pagos por tarefa. Não
se pode confundi-los com os escravos. Os escravos que Homero denomina de “andropoda” ou
animal de duas patas, são, sobretudo as mulheres, presas de guerra [...] (Humbert, 1984, p. 23).

A esta estrutura de classe horizontal sobrepõe-se, segundo Humbert (1984, p. 23), uma

clivagem vertical que lhe dá sentido. “A sociedade homérica é dominada por um grupo que é, ao
mesmo tempo, unidade de produção econômica e uma das bases do poder político. É a oikos.”

23
EaD Din art e Belat o

O que é a oikos, que literalmente significa casa?

[...] a oikos reúne em torno do chefe da casa e de seus parentes próximos, [...] todos os que,
instalados na propriedade participam de sua exploração, seja o conjunto dos bens e meios desti-
nados à produção agrícola e à pecuária, sejam os camponeses livres, pastores e escravos, sufici-
entemente amplos para que a propriedade seja auto-suficiente (p. 24).

A oikos é também uma estrutura jurídica e política. O chefe da oikos tem sob sua
dependência todos os que nela habitam, aos quais garante proteção e defesa, que se funda
no poder de jurisdição doméstica sobre seu domínio (apenas as questões graves são levadas
ao rei e a seu conselho). O indivíduo aí ganha seu estatuto, identidade e proteção, uma vez
que isolado não tem existência social e pode ser morto (p. 24).

A oikos, porém, não é uma unidade isolada, ela faz parte de uma unidade maior, que
agrupa várias oikos e dá origem à fratria (ou fraternidade de armas). Na Ática havia 12
fratrias, por sua vez repartidas em quatro tribos. A oikos é unidade de poder político, e é a
condição do poder:

É a oikos que dá suporte e faz de seu chefe um nobre (os aristoi, os agathoi). A estrutura agrária
muito estável da oikos faz com que seja impossível a um pretendente adquirir a terra suficiente
para tornar-se um senhor de prestígio. O sistema, então, acaba por gerar uma casta. Primitiva-
mente aristocracia agrária, a nobreza se converte em nobreza de sangue. A nobreza se fecha
totalmente. A oikos, que deu aos companheiros do rei os meios (riqueza e prestígio) de acesso ao
poder, lhes permite, no fim do período homérico, assegurar-se o monopólio do poder (p. 25).

Esta nobreza, convertida em casta para se proteger, minará e eliminará o poder do rei.
E o fará de forma gradativa, mediante um processo de separação dos poderes até então
enfeixados na sua mão, que dará origem ao colégio dos arcontes, cujos membros são eleitos,
inclusive o rei, por dez anos, cada um deles exercendo o poder por um ano. Os eleitores são
o conjunto dos nobres que constituem o Conselho dos nobres ou “areópago”.

O areópago ou Conselho, do qual fazem parte os arcontes, é constituído pela elite polí-
tica e econômica da nobreza. Seus membros têm mandato vitalício e se constituem no verda-
deiro núcleo do poder da sociedade. Reúnem-se, não mais no palácio do rei, mas na Colina de
Ares (Deus da guerra), daí o nome de Conselho da Colina de Ares ou Areópago. Este Conse-
lho, como poder supremo, controla os arcontes que, por turno, exercem o governo.

24
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

A assembléia do povo, composta por todos os que não fazem parte do Conselho, nada

representa. Mesmo quando convocada, nada diz, nada nunca decide. É apenas um teste-

munho que observa. Perdeu, com a monopolização do poder pela nobreza, inclusive o poder

de dar ou negar confiança aos governantes. Deixou de ser, como afirma Humbert (1984),
mesmo passiva, um contrapoder. Ao povo resta apenas o caminho do confronto, do qual

sairá vitorioso em Atenas e derrotado em Esparta e na maioria das póleis da Grécia.

Essa nobreza oligárquica, que monopoliza o poder e a riqueza da sociedade, também

se apropria da religião ao moldar um panteão e dinastias de deuses das quais esta nobreza

pretende ser descendente. Deuses e deusas feitos à imagem e semelhança da nobreza

oligárquica.

Por toda a parte a nobreza controla com mão de ferro a sociedade. E o povo foi com-
pletamente excluído de qualquer intervenção nos negócios públicos: governo, guerra, ad-

ministração da justiça:

O exercício do poder, da riqueza, o prestígio deram às famílias tradicionais mais poderosas uma
coesão e uma amplitude que lhes permitirão por longo tempo dominar a polis. Estas famílias
atribuíram a si não só o título de “agathoi”, os “bons” ou sua forma superlativa, os “aristoi”, os
melhores, mas também de “eupatridai”, isto é, os “bem nascidos” (Humbert, 1984).

A religião, a administração da justiça, as armas – só acessíveis aos nobres e seus clien-

tes – o poder, enfim, só têm sentido no interior de uma linhagem ou com o apoio de uma

linhagem ilustre. Em seu conjunto, a nobreza se converte numa oligarquia.

A cultura também estará a serviço dos interesses da nobreza. A escrita, que reaparece

no século 8º, se presta à difusão da Ilíada e da Odisséia, que se converte num manual de

educação da nobreza. Como observa Aristóteles, no entanto, “A desigualdade gera o des-

contentamento: e quando é prolongado, provoca um estado de crise” (Aristóteles. Política,

VIII, 2007, 9, 21). E acrescenta Humbert (1984):

A nobreza manteve-se no poder enquanto se perpetuavam as condições que lhe deram nascimen-
to: a riqueza ligada à terra. Mas a partir do momento em que o comércio se tornou outra fonte de
riqueza, a partir do momento em que os camponeses tomam consciência de sua existência e não

25
EaD Din art e Belat o

mais aceitam um acesso à terra que sequer lhe permite sobreviver, o Conselho e o povo entraram
em conflito. E as alternativas tentadas pelos reformadores foram muitas: deportar o povo,
decapitá-lo politicamente e tentar composições e acordos. As poleis do mundo grego dão amos-
tras de todas essas tentativas. Duas, no entanto, representam as soluções radicais da luta de
classes que sacode a Grécia nos séculos VII e VI: Atenas e Esparta.

1.1.3 – DA CRISE DA SOCIEDADE ARCAICA À DEMOCRACIA


ATENIENSE E À AUTOCRACIA MILITAR ESPARTANA

Hesíodo é um poeta completamente diferente de Homero. Ele não canta a nobreza,


seus feitos, seu heroísmo, seu parentesco com os deuses. Ele canta e conta a miséria dos
pobres, dos camponeses, a exploração que sofrem por parte de uma nobreza que lhe suga o
sangue. Ele canta o trabalho do camponês, exalta a sua luta para sobreviver. Eis o conselho
que ele dá ao irmão Perseu:

[...] vá, mas lembra-te sempre de meu conselho: trabalha, Perseu, para que a fome te tenha ódio
e que tornes amado da grande deusa Demeter – deusa da agricultura e da fertilidade – que
encherá teu celeiro de trigo que dá vida (Hesíodo, Trabalhos, v. 298ss).

É notável o esforço de Hesíodo no sentido de construir uma referência identitária e de


classe dos camponeses perante os nobres, que ele vai chamar de “ reis comedores de presentes”
por sua venalidade na administração da justiça e do governo que eles mantêm e controlam de
forma monopólica. Em Hesíodo temos a primeira manifestação de uma consciência campone-
sa que transformará os camponeses em atores centrais das reformas políticas que se seguirão.

Não são somente os camponeses que se movem. Um pouco por toda a parte e em
decorrência da expansão das colônias gregas ao longo do litoral do Mediterrâneo, surgem
novos atores econômicos e sociais que entrarão no confronto com a nobreza e seu regime
oligárquico: artesãos da cerâmica, da metalurgia, do bronze e do ferro, joalheiros, pedreiros
e marceneiros e uma burguesia mercantil cada vez mais rica e poderosa, de uma riqueza que
não vem da terra, mas do comércio de longa distância, da bacia do Mediterrâneo.

Todos esses novos personagens pretendem partilhar o poder da nobreza, do qual estão
excluídos. As fontes de tensão social estão dadas. E é entre os camponeses que ela toma
corpo e se converte em luta de classes, que irá levar às reformas. Esclarece Aristóteles:

26
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

[...] os nobres e o povo entraram em conflito por um longo período. Com efeito, o regime político
era oligárquico em tudo; e em particular, os pobres, suas mulheres e seus filhos eram escravos
dos ricos e eram chamados “clientes” e “hectomeros”, isto é, trabalhavam para os ricos cinco
dias em seis. Toda a terra estava na mão de poucos. E se os pobres não pagassem suas dívidas,
caíam na escravidão eles e seus filhos” (Política, 2007, 2, 2).

Partilha da terra e fim da escravidão, eis o eixo maior do conflito: crise política e crise

agrária. Ambas requerem reformas. E como a aristocracia detinha de forma absoluta e man-

tinha sob controle a administração da justiça e o fazia a partir de princípios e regras

estabelecidas pelo Conselho dos nobres, ao qual a população não tinha acesso, a primeira

reforma incidiu sobre os códigos, leis e procedimentos da justiça. E a demanda central era

que as leis fossem escritas e todos pudessem ter acesso a elas.

É provável que os gregos, ao se expandirem pelo Mediterrâneo oriental, tenham co-

nhecido a sua prática de gravar em pedra as leis e códigos que regiam a sociedade. O exem-

plo do rei babilônico Hamurabi, que gravou seu código em pedra, em 1800 a.C., chega à

Grécia 1.200 anos depois. Atenas, que fez suas primeiras reformas em 624, foi antecedida

pelas reformas jurisdicionais da Locrida, em 663, e da Catania em 633. Corinto e Creta

fizeram suas reformas durante o século 6º.

Administração da justiça, direito penal, direito civil: por toda a parte se afirma simultaneamente
a autoridade do Estado em detrimento dos interesses da aristocracia ou dos preceitos tradicio-
nais. A obra dos grandes legisladores marca uma data na história do direito e assegura o primei-
ro triunfo do demos (do povo) sobre os nobres (Levêque, 1967, p. 137).

1.1.4 – DRACON – 624 A.C.

A reforma do Arconte Dracon, governante de turno em 624, dá o primeiro passo

para as sucessivas reformas em Atenas. A administração da justiça era um privilégio ex-

clusivo da nobreza. Dracon não muda a lei em vigor. Publica a lei penal que confere a

sua reforma a fama de severidade (lei draconiana). São publicadas também as leis refe-

rentes ao Direito de Família, a devolução sucessória, a condição (de escravos) dos deve-

dores insolúveis.

27
EaD Din art e Belat o

O avanço representado pela reforma consiste no acesso de todos aos termos da lei.
Consiste também na vitória da comunidade, da pólis, sobre as linhagens de nobres. É a
primeira fenda na cultura e na prática jurídica monopolizada por uma classe.

E há outros avanços ainda embrionários, como o da punição individual. Ao se desfa-


zer a linhagem, o crime de um indivíduo não é mais um crime coletivo do clã ou da família,
mas emerge em seu lugar o indivíduo. Em vez de responsabilidade ou crime coletivo, a
responsabilização criminal do indivíduo se torna possível... A sanção do crime será definida
agora pela gravidade da intenção.

O delito será doloso – intencional –, ou culposo – involuntário, não-intencional. Pu-


nir-se-á, portanto, a vontade criminosa de um acusado e não mais, como antes, o clã ao
qual pertence o criminoso. Reconhece-se também a busca individual de reparação ou vin-
gança pela ofensa ou lesão recebida. Antes, o indivíduo fora do clã simplesmente não tinha
existência. A ação se torna individual. Com a reforma de Sólon – que virá logo depois da de
Dracon – a ação será popular, isto é, aberta a todos os cidadãos.

Sob todos os aspectos, começam a ser definidos os primeiros traços daquilo que virá a
ser, muitos séculos depois, o Direito moderno (Humbert, 1984, p. 46-47).

1.1.5 – SÓLON – 594 A.C

As reformas de Dracon, longe de resolver os problemas da sociedade ateniense, agra-


varam-nos, pois os nobres recusavam-se a fazer qualquer outra concessão, explicitando de
forma ainda mais clara as profundas diferenças sociais, das quais o povo ia tomando cons-
ciência.

Sólon pertencia a uma família aristocrática e muito rica. Poeta, assumia posição favo-
rável aos camponeses em seus poemas. Tornou-se popular entre as camadas pobres rurais e
urbanas. Foi nomeado arconte com a tarefa de propor uma nova reforma capaz de pacificar
a sociedade. Não conseguiu seu intento, mas sua obra marca de finiti va, teóri ca e
metodologicamente as concepções de sociedade e das regulações que esta necessita instau-
rar para viver.

28
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Sólon conhecia as e speculações filosóficas dos primeiros filósofos jôni cos, Tales e

Anaximandro. Eles estavam em busca das leis naturais que re gem permanentemente o

universo. Sólon tinha a convicção de que também existem leis permanentes que gover-

nam o mu ndo soci al. Essas, como as da nature za, são própr ias da soci e dade e
independem da vontade dos de use s, nem são por e le s reveladas aos homens. Ele diz

num poema:

[...] da nuvem vem a neve e a chuva de gelo (de pedras de gelo); ao relâmpago lhe sucede neces-
sariamente o trovão e se uma cidade tiver nela homens excessivamente poderosos, irá à ruína e o
povo (demos) cairá sob o poder de um déspota. O princípio da causalidade acaba de ser desco-
berto. E a causa da ruína da cidade é o desequilíbrio, o excesso (que Sólon vai denominar de
hybris) de grupos rivais. Desmedida dos ricos em seu afã irracional e louco de lucro (é próprio da
riqueza não ter medida). Loucura também do povo que em sua fraqueza e imaturidade está
sempre pronto a lançar-se nos braços de um tirano. Excesso do povo igualmente em seu desejo
imoderado de se apropriar da riqueza dos nobres (eupátridas). Para Sólon, os nobres (os ricos)
são um contrapeso à pressão popular; seus privilégios uma vez justamente contidos, servem de
barreira a uma massa politicamente não formada (Humbert, 1984, p. 48).

Seria errôneo pensar que Sólon teria adotado uma espécie de determinismo físico.

Existem as leis da sociedade, mas é o homem o único responsável por seu destino. E diz:

“Nossa cidade não perecerá por um decreto de Zeus... São os próprios cidadãos, por sua

avidez de dinheiro, por sua estupidez, que conduzirão a cidade à ruína.” O futuro da soci-

edade política não é fruto do acaso.

O homem é o senhor deste mundo coerente. As reformas de Sólon são a primeira

afirmação da capacidade exclusivamente humana de propor soluções globais às crises que

ele próprio produz. Sólon separa a política da religião, das divindades do transcendente. A

política e a sociedade são tarefas humanas, imanentes. Maquiavel retomará estas teses no

século 16 d.C.

Por onde irá Sólon iniciar suas propostas de reforma social? Pela classe social que fora

mais severamente expropriada e explorada pela nobreza latifundiária. Para eles, Sólon de-

cretou o “estado de seichtheia”, contra a voracidade dos nobres. E incidia sobre o passado,

o presente e o futuro.

29
EaD Din art e Belat o

As disposições imediatas para o presente: os devedores terão suas dívidas extintas,

sejam elas públicas ou privadas, isto é, os proprietários nobres, credores e o Estado não

receberão qualquer indenização. Ficam abolidas as dívidas dos pobres. Igualmente ficam

suprimidas as hipotecas das terras. São extintas também as humilhantes taxas de pagamen-

to (5/6) da colheita.

Sólon extingue e proíbe a escravização de gregos. Os devedores insolventes caíam na

escravidão, muitos deles eram vendidos a estrangeiros e muitos outros fugiam para não

serem escravizados. Liberta todos os escravos e estabelece o resgate dos que foram vendidos

ao estrangeiro por conta do Estado.

Sólon proíbe a hipoteca da terra dos camponeses e dos membros de sua família, extin-

guindo desse modo a “máquina” que na Antiguidade fabricava escravos: as dívidas.

A legislação de Sólon incide sobre outras questões e atende a outros sujeitos sociais.

Ocupa-se em definir leis que protegem a família nuclear e nela, o direito de sucessão. Sólon,

porém, não propõe uma reforma agrária, uma redistribuição geral das terras. Ele sugere a

urbanização dos sem-terra, incorporando-os nas atividades industriais e nos serviços de

transporte marítimo.

Para tal, propôs e instituiu uma reforma de pesos e medidas, uma reforma monetária.

Proibiu a exportação de trigo, método adotado pela nobreza para, produzindo escassez,

aumentar-lhe o preço e alimentar a cadeia de dívidas e a escravidão. Sólon dá a esses cam-

poneses urbanizados garantias de participação política, militar e meios de vida.

Sólon avança ao estabelecer o direito de todos os cidadãos de participar do Estado (da

pólis): na sua defesa, como soldados; como partícipes do sistema de administração da justi-

ça – o crime torna-se uma responsabilidade coletiva –; abre o acesso e amplia a participação

na pólis das camadas subalternas, mas não o faz de forma igualitária. O critério de partici-

pação é censitário, isto é, em conformidade com a riqueza do indivíduo, critério definido

anteriormente no direito de participação na defesa da pólis e que dá origem ao modelo

hoplita de organização do exército da pólis.

30
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

As cate go ri as de soldados e ci dadãos ce nsi t ári os são as se gu i nte s: os

pentacosiomedimnes, aqueles cujos bens equivalem a 500 medimnes ou mais; os cavaleiros

são os que têm uma renda de 300 medimnes e os zeuguitas, a quem corresponde uma renda

de 200 medimnes. E, finalmente, os tetes, que estão abaixo desses patamares, que constitu-

em as camadas pobres da sociedade. Embora esta divisão da sociedade já existisse, a novi-

dade introduzida por Sólon foi que a avaliação das rendas não se fazia mais em espécie, mas

em dinheiro.

A dracma correspondia a um medimne e as listas censitárias das cidades não eram

mais fixadas exclusivamente com base nos rendimentos das terras, mas de acordo com o

rendimento total. Essa medida representou efetivamente a garantia de acesso à participa-

ção política dos cidadãos cujas rendas proviessem do comércio e da indústria (Jardé, 1977,

p. 167; Humbert, 1984, p. 34).

A faceta verdadeiramente revolucionária da reforma política de Sólon consiste no acesso

dos “tetes”, daqueles que, por definição, não têm renda alguma, e eram isentos das obriga-

ções militares, de acesso à assembléia, à “eclésia”. Agora eles ascendem aos novos poderes

da pólis criados por Sólon. O povo, o demos, passou a participar da eleição dos magistrados

– outrora prerrogativa da nobreza – e da assembléia popular composta de 6 mil cidadãos,

que passou a exercer o direito de ratificar as sentenças dos magistrados.

Pronunciar as sentenças converte-se em direito soberano do povo, um direito coletivo.

Sólon igualmente confere a todo o cidadão a iniciativa da lei: todo o delito contra um ho-

mem ou uma mulher, uma criança, um concidadão ou estrangeiro livre ou escravo pode ser

levado à justiça por qualquer cidadão para que o delito seja reparado e o delinqüente casti-

gado. Cada indivíduo-cidadão é, assim, pessoalmente responsável pela aplicação do direito

e da justiça.

As reformas de Sólon, porém, não são ainda a democracia, apesar do acesso dos “tetes”

à justiça e à eclésia, da redução dos privilégios dos nobres e dos devedores libertados de suas

dívidas e da escravidão. Sólon não propôs uma Constituição que igualasse a todos perante

a lei e uma distribuição igualitária do poder político. A sociedade nascida das reformas de

Sólon no início do século 6º permanece desigual econômica, social e politicamente.

31
EaD Din art e Belat o

Para Sólon, a sociedade divide-se entre os bons ou nobres (os kaloi kagathoi, literalmen-
te, belos e bons) e os feios e maus (kakoi) ou vilões. Os nobres não partilharão suas terras com
os pobres porque eles detêm a virtude política, porque é perigoso dar muitos bens a que não
tem nada, posto que eles não têm a sabedoria necessária. Por isso, diz Sólon, “os nobres não
terão suas terras confiscadas, pois não me agrada dar aos bons e aos maus uma parte igual
das terras férteis da pátria” (Aristóteles, Política, 2007, 12; Humbert, 1984, p. 54).

O princípio ordenador e pacificador da sociedade e que Sólon denominou Eunomia,


que significa “ordem e medida”, impõe aos nobres a renúncia de seu orgulho e de sua força
brutal e ao povo que se contente com os novos poderes que recebeu sem exigir mais nada.
Não pode haver entre essas duas classes nem vencidos, nem vencedores.

Não foi isso que aconteceu. Os nobres reagiram à perda de seus privilégios e o povo
por não ter recebido o que desejava, sobretudo uma justa distribuição da terra. E a Ática
acabou por dividir-se em três facções antagônicas: o “partido da planície”, composto pelos
ricos e nobres proprietários de terras, defensores de um governo oligárquico; em confronto
com eles, formou-se o “partido da montanha”, que agrupava os camponeses pequenos pro-
prietários, pastores e sem-terra, decepcionados por não terem recebido as terras que recla-
mavam para si; e o “partido da costa”, isto é, da cidade de Atenas e do litoral, que aceitaram
as reformas de Sólon, pois por meio delas artesãos e mercadores podiam ter acesso às magis-
traturas e aos Conselhos.

A Ática estava à beira de uma guerra civil. Essas três facções, acentua Aristóteles, em
contínuo confronto entre si freqüentemente impediam a eleição dos magistrados (Aristóteles,
Política, 2007, 13) até que, em 561 a.C., um nobre de nome Pisístrato que, eleito chefe do
exército e habilmente apoiado no partido da montanha (os camponeses pobres), dá um gol-
pe de Estado e se apodera do poder como tirano.

A “tirania” era uma forma de governo instituída em diversas póleis da Grécia, que
consistia na reunião de características monárquicas e democráticas: monárquicas porque o
tirano possuía autoridade ilimitada, sustentado por um exército de soldados mercenários;
democráticos porque, para conquistar o poder, o tirano se apoiava nas classes subalternas –
os pobres do campo e da cidade –, diminuindo os privilégios da aristocracia e promovendo o
bem-estar e a prosperidade do povo.

32
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Pisístrato governou Atenas por 20 anos, até sua morte, em 528 a.C. Ao invés de pro-
mover uma reforma agrária, Pisístrato investe pesadamente na infra-estrutura urbana e por-
tuária e converte Atenas num dos mais poderosos centros industriais e comerciais do Medi-
terrâneo e atrai os camponeses mais pobres para a cidade, integra-os à economia urbana e
aos demais, converte-os numa classe estável de pequenos proprietários, confiscando as ter-
ras das famílias nobres que o tirano mandara ao exílio.

A estes novos proprietários concede os empréstimos necessários para que façam os in-
vestimentos na formação das culturas permanentes – a oliveira e a vinha – e na compra de
instrumentos e animais de trabalho. Em contrapartida, favorece a importação de trigo para o
abastecimento da população. A Ática, mediante a indústria urbana e a cultura da vinha e da
oliveira, tem excedentes exportáveis e meios de inserção no amplo mercado do Mediterrâneo.

A pólis ateniense não mais precisa nem depende de sua aristocracia. Nasce e se con-
solida neste período uma classe média ampla e próxima das aspirações do povo, que muito
rapidamente tomou consciência de si, de sua identidade. Estava aberto o caminho para a
democracia (cf. Humbert, 1984, p. 55-58; Jardé, 1977, p. 166).

1.1.6 – CLISTENES E A DEMOCRACIA

Depois de derrotar, em 507 a.C., uma tentativa da nobreza de voltar ao poder, Clístenes,
um aristocrata aliado das camadas populares, inicia a mais profunda reforma que dará ori-
gem ao regime democrático de Atenas. A reforma completa, a ruptura definitiva com as
antigas estruturas de poder e de organização da sociedade: e em seu lugar criará uma tríplice
estrutura de inserção do indivíduo na pólis: o demos, a tritie e a tribo.

O demos é a célula local de base. Clístenes divide o território da pólis (do Estado) em
cem circunscrições, os demos, igualmente distribuídos em três espaços: a cidade, a costa (o
litoral) e o interior. A cidade de Atenas é dividida em 30 demos, que obedecem a uma geo-
grafia semelhante à dos nossos bairros. Os demos do interior organizam-se sobre as comuni-
dades rurais pré-existentes. Cada demos agrupa entre 300 e mil pessoas – homens adultos.
Isto dá à Ática uma população total de 25 a 30 mil cidadãos, 80 a 100 mil com suas famílias,
às quais se juntam uns 10 mil metecos e uns 30 a 40 mil escravos.

33
EaD Din art e Belat o

O demos agrupa todos os indivíduos residentes em seu território, independentemente


de classe social, origem étnica ou posses. Sua identidade lhe vem do demos ao qual pertence
e dele recebe inclusive o nome. Todas as referências ao passado são abolidas.

O demos cumpre uma dupla função. Em primeiro lugar, é uma unidade administrativa
de base que politicamente se expressa na assembléia, que elege o demarca ou “prefeito”,
cujas funções são: gerir as finanças locais e os bens da comunidade, supervisionar os cultos,
manter o cadastro dos cidadãos e cumprir a função de polícia. É esta assembléia também
que elege os membros que formarão, por um ano, o Conselho da Cidade (a Boulé).

Em segundo lugar, o demos é o lugar no qual todos os cidadãos aprendem a fazer


política. É uma escola permanente de civismo. É no seu demos que o adolescente inicia sua
vida pública, de cidadão.

A segunda estrutura de representação e organização política da pólis é a “tritie”. Seu


objetivo é evitar que os demos se tornem entidades isoladas, feudos e, desta forma, se perca
de vista o interesse geral da pólis. Cada tritie agrupa três ou quatro demos contíguos. Ob-
tém-se, assim, 30 trities, ou circunscrições homogêneas: dez para a cidade, dez para o inte-
rior e dez para o litoral. Para evitar que se torne um organismo poderoso, a tritie não dispõe
de meios efetivos de poder, como magistrados e assembléias. Ela serve apenas para encabe-
çar os demos e formar as tribos.

As tribos criadas por Clístenes visam a eliminar as anteriores sobre as quais a nobreza
exercia completo controle. Essas novas tribos são circunscrições puramente territoriais, po-
rém não homogêneas, pois cada tribo é composta de três trities, misturando uma tritie da
cidade, uma do litoral e outra do interior, de tal sorte que na tribo estão representados todos
os cidadãos, de todos os territórios da pólis.

A tribo, geograficamente descontínua, mistura, funde, as três frações da população


que estavam na base das lutas e dos conflitos políticos anteriores. Em contrapartida, a tribo
assume um caráter “nacional”, pois cada uma delas contém representantes de toda a Ática
e impede que a cidade cresça em poder e rompa o equilíbrio geral. Cada tribo designa, por
sorteio, todo ano, os 50 cidadãos que representarão cada tribo na Boulé, composta de 500
membros, que é a imagem em miniatura, mas fiel, da totalidade do corpo cívico da pólis.

34
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

1.1.7 – O CONSELHO DOS 500 OU BOULÉ

O Conselho (Boulé) criado por Clístenes é formado de 500 membros, designados cada
ano por sorteio, à razão de 50 por tribo, a partir das listas feitas por cada demos. Todos são
candidatos, porém com a seguinte limitação: ninguém pode ser conselheiro mais de duas
vezes em sua vida, o que garante a alternância de governar e ser governado. Todo o cidadão
pode, por duas vezes em sua vida, ascender ao órgão máximo de governo e de poder da pólis.
É o Conselho que convoca a assembléia dos cidadãos e a dirige, é ele que propõe as pautas

de deliberações a serem tomadas.

Cabe ao Conselho também governar a pólis, dia e noite, em sessão permanente, não
porém, simultaneamente, reunindo todos os 500 membros. O sistema de tribo resolve o pro-
blema da seguinte forma: durante um décimo do ano (chamado Pritania), os 50 membros de
uma das dez tribos residirão sem descontinuidade no quarteirão dos pritanos, prontos a se

reunirem todo o dia no “bouleterion” (prédio do Conselho ou Boulé) que Clístenes mandou
construir sobre a “ágora”.

Durante este “mês político” os 50 conselheiros (buleutas) assumem o nome “pritanes”


(isto é, os chefes, os primeiros) e, cada dia, escolhem, por sorteio, um deles para ser o presi-

dente (epistate dos pritanes). O presidente não pode ser reeleito. Em conseqüência, cerca de
360 buleutas sobre 500, cada ano, podem orgulhar-se de ter sido por um dia – e unicamente
por um dia – o chefe de Estado. São previstas sessões plenárias do Conselho, neste caso
todos os buleutas participam delas (cf. Humbert, 1984, p. 62-71; Aristóteles, Política, 2007,
liv. VI, cap. I-VIII).

A estrutura da pólis compreende também outros organismos de representação e gover-


no. Salientam-se entre outros: o exército e seus comandos, a assembléia dos cidadãos (a
Eclésia), os cultos cívicos e o ostracismo.

O novo exército da pólis é composto por todos os cidadãos. Sua inserção militar se faz
por meio das dez tribos, cada uma delas formando um regimento. Cada tribo também elege

o comandante do seu regimento. Os comandantes dos regimentos são subordinados ao co-


mandante geral do exército denominado “arconte polemarco”, que é eleito pela assembléia
dos cidadãos.

35
EaD Din art e Belat o

1.1.8 – A ASSEMBLÉIA DOS CIDADÃOS OU ECLÉSIA

A assembléia dos cidadãos ou eclésia é o órgão soberano de governo e de poder. A

presidência da assembléia cabe aos “epistates dos pritanes” de turno. A assembléia se reúne
em um prédio especialmente construído para tal, denominado Pnix. Ali os cidadãos partici-

pam das deliberações, escutam os discursos e os debates, sentados em degraus semelhantes

aos de um teatro. Clístenes garante a cada cidadão o direito de tomar a palavra na assem-

bléia, antes de votar. Este princípio será incorporado por todas as democracias antigas e
modernas.

1.1.9 – OS CULTOS DO ESTADO

Clístenes propõe um novo calendário, não mais religioso e lunar, mas político. A pólis
viverá segundo o ritmo da sucessão anual das dez pritanias que, a seu turno, governam,

promovem as assembléias, as eleições, prestações de contas, etc. Clístenes não pretende


abolir o calendário religioso anterior, simplesmente ele não é mais o calendário da pólis. É
um calendário privado, no qual se conservam os antigos cultos dos ancestrais, com seus

ritos e sacerdotes.

Cada demos e cada tribo terá seus deuses cívicos, suas festas e celebrações. A religião

se subordina à política. O conjunto dos deuses cívicos compõe o novo panteão da pólis.

O ostracismo proposto por Clístenes é um instrumento de proteção da pólis e de auto-


defesa dos cidadãos. Consiste na cassação ou suspensão dos direitos políticos de um cida-
dão cujas ações, atitudes e propostas impliquem ameaça à pólis. O acusado só será punido

com a pena do ostracismo se seu nome for anotado por pelo menos 6 mil cidadãos na con-
cha de uma ostra (ostrakon, em grego, daí ostracismo).

O condenado por ostracismo deverá abandonar a pólis dentro de dez dias e por dez
anos. Não é, porém, uma condenação penal, nem implica multa em dinheiro, nem perda de
sua capacidade civil e de seus direitos cívicos, os quais simplesmente suspensos. O ostracis-

mo não desonra a pessoa nem envolve os membros de sua família. O condenado tem direito
a apelar da sentença.

36
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

O Estado democrático fundado por Clístenes atingirá sua plenitude, a isonomia, isto

é, a autoridade, por ser exercida em função do interesse comum, e não segundo os interesses

de uma classe ou de um indivíduo. Todas as deliberações são submetidas ao público e pres-

ta-se a ele contas da autoridade exercida, esclarece Heródoto. A democracia ateniense se


completa quando todo o poder passa pelos canais constituídos pelos demos. A democracia é

o governo da pólis pelos demos. Ela atingirá sua plenitude no século 5º, depois de ter passa-

do pelo duro teste das guerras contra os persas (cfe. Levêque, 1967, p. 196-198; Humbert,

1984, p. 71-76).

SEÇÃO 1.2

Esparta: a pólis da disciplina militar

Esparta passou no século 7º a.C, tal como as demais pólis gregas, por uma severa
crise social. Os messênios, povo vencido quando da invasão dos dórios, iniciaram uma lon-
ga rebelião que acabou por exigir da nobreza proprietária das terras, como ocorrera em
Atenas, reformas profundas da estrutura social. O fio condutor dessas reformas é aqui tam-
bém a eunomia, a disciplina, a ordem. Aqui, entretanto, diferentemente das reformas pro-
postas por Sólon para Atenas, elas têm sucesso e Esparta é marcada definitivamente por
elas.

A vitória sobre os messênios revoltados só foi possível pela incorporação ao exército da


nobreza, da massa dos cidadãos comuns, dos esparciatas, ao todo uns 7 ou 8 mil cidadãos.
A nobreza proprietária das terras desfez-se delas e as pôs a serviço de toda a comunidade.
Renuncia também às suas prerrogativas de classe e às diferenças em relação aos cidadãos
comuns. Nasce daí a sociedade dos iguais.

Todo o espartano recebe um lote de terra (cleros), inalienável e não suscetível de hipo-
teca. O lote é cultivado por um hilota, messênio derrotado e escravizado, propriedade do
Estado, que deve entregar em espécie uma quantia de alimentos suficiente para manter a
família do titular e sua contribuição diária para a refeição comum. Aos espartanos é proibi-
da qualquer atividade econômica ou cultural. Sua ocupação única e permanente é a guer-
ra. Todos os espartanos são, em princípio, iguais nas posses.

37
EaD Din art e Belat o

Essa igualdade se estende também à educação, que consiste na formação do soldado.

Sua formação militar inicia-se aos 7 anos e mais se assemelha à doma de um animal. Depois

de passar por sucessivas provas e iniciações, torna-se soldado aos 18 anos. É autorizado a

casar-se aos 30. Sua educação intelectual reduziu-se à aprendizagem de um “catecismo


moral” expresso em sentenças curtas ou “lacônicas”.

Politicamente, os espartanos também são iguais. Todos participam da assembléia. A


assembléia escolhe, entre os iguais, magistrados ou éforos, cujo mandato dura um ano. A

assembléia é dirigida pela “Gerusia”, o conselho dos anciãos, composto por todos os que,

chegados aos 60 anos, encerraram sua participação ativa no exército. Os espartanos con-

servaram também a figura política do rei, cujas funções eram exercidas por duas pessoas,
simultaneamente, das quais as principais eram comandar o exército nas guerras e presidir

celebrações religiosas e cívicas.

O militarismo que perpassou a sociedade dos iguais esterilizou a sociedade espartana

em termos culturais, artísticos e econômicos (cf. Humbert, 1984, p. 38ss) e observa Levêque

(1967, p. 181, 186-187):

Esparta aparece claramente como um fenômeno sociológico quase único, como um anacronis-
mo vivo, com a decisão cruel e muito sua de continuar fiel aos esquemas ancestrais e à sua
sociedade igualitária, herdade de idades longínquas.

E acrescenta:

Os espartanos amputaram-se de tudo o que poderia temperar sua rudeza. Desde então, Esparta
não sorrirá... nada pode dissimular o fator de egoísmo que entra na sua constituição oligárquica,
a serenidade que entra no seu imobilismo, o desprezo pelos bens espirituais que entra na sua
ruptura com a civilização (p. 186-187).

Essa sociedade exclusivamente voltada para a guerra só foi possível porque, como

vemos, submeteu e escravizou populações de camponeses obrigados a trabalhar suas ter-

ras em regime de escravidão, os hilotas. A sociedade igualmente dependia de outro impor-

tante grupo humano, os “periecos”, isto é, os que habitavam a periferia urbana e as terras
cultivadas pelos hilotas. Gozavam de alguma liberdade, dedicavam-se ao comércio, ao

38
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

artesanato, à indústria. Diferentemente dos hilotas, nunca se revoltaram e parece terem

aceitado com resignação sua marginalização política e militar (Jardé, 1977, p. 162;

Humbert, 1984, p. 41).

Embora tanto Esparta quanto Atenas tenham iniciado suas trajetórias históricas no

mesmo período e com o mesmo problema social a re solver, as duas soluções foram

diametralmente opostas. Ambas duraram um longo período e terminaram suas trajetórias


sob o domínio dos macedômios, primeiro, e dos romanos, depois.

Entre esses dois extremos, de Esparta e Atenas, estão as demais poleis gregas. Todas,

em seu conjunto, nos legaram boa parte das bases sobre as quais se assentam as sociedades

ocidentais.

SEÇÃO 1.3

A Maturidade da Democracia Ateniense – século V

A civilização grega, ao término do século 6º, já percorrera todas as experiências polí-

ticas, fruto inicial de revoltas e revoluções contra as aristocracias que desde o século 8º, se

haviam instalado no poder e o monopolizavam de forma absoluta, constituindo-se numa

cerrada oligarquia.

Desses movimentos antiaristocráticos ou antioligárquicos surgem, a partir do século

7º, os regimes governados por tiranos que promoveram em quase todas as póleis, à exceção

de Esparta, reformas políticas e sociais que implicaram, senão o fim da aristocracia, pelo

menos uma decisiva diminuição de seu poder e riqueza.

Atenas, entretanto, rapidamente ultrapassou o regime dos tiranos e em seu lugar ins-

taurou um regime baseado numa ampla participação dos demos. Foi a reforma de Clístenes.

Os atenienses, porém, não deram a seu novo regime o nome de democracia. A palavra

não existia, embora, como observa Humbert, na prática, a realidade do poder já estivesse no

povo.

39
EaD Din art e Belat o

A palavra democracia aparece pela primeira vez, ainda segundo Humbert, na tragédia
de Ésquilo, as Suplicantes, escrita em data incerta entre 499 e 472 a.C.: “A mão soberana do
povo” (em grego “demou cratousa kheir”) “é a transposição poética do poder soberano de
votar a lei erguendo a mão. A maneira como a palavra foi construída é reveladora. Não se
trata de um decalque de “mon-arquia”, palavra já em uso, ou “oligarquia”. “Arquein” expri-
me o poder de mando sobre o outro, sobre um sujeito: o termo só conviria ao povo do qual se
pode dizer que não é senhor de si mesmo.

A palavra “cratein”, em contrapartida, abria um caminho de significações muito mais


rico: a idéia de um poder que tem sua origem, sua fonte, em si mesmo, de um poder, portan-
to, que se possui de forma absoluta. “Demo-cratia” exprime a noção de “poder soberano”
que reside no povo, que nada mais é do que o modo como os antigos gregos afirmavam a
“soberania popular ” (Humbert, 1984, p. 78).

Atenas pôde realizar a mais importante, talvez única, experiência democrática radical da
Antiguidade porque reuniram-se na Ática do fim do século 6º e no século 5º a.C. as condições
intelectuais, materiais e jurídicas que permitiram esta extraordinária experiência política e social.

Os persas, depois de uma rápida expansão, iniciada em 559 a.C, submeteram a Ásia
Ocidental, as bordas da Ásia Central, o Egito e a Líbia e em 512 a.C submeteram a Trácia,
região nordeste da Grécia. Em 494 submeteram todas as colônias jônicas da Ásia Menor
(Mileto, Éfeso, Colofon). Os persas pretendiam submeter a seu poder todas as costas do Mar
Negro, controlar os estreitos de Helesponto e da Propôntida, além de todo o Mediterrâneo
Ocidental e a Península Balcânica.

A ameaça persa era real e iminente e poderia significar a extinção da civilização grega
e o fim da recém-criada democracia ateniense. Em 490 a.C, sob o comando de Mardônio, os
persas avançam sobre a península, submetendo as póleis uma após a outra. Atenas, porém,
resolve resistir e derrota duas vezes os persas, a primeira vez na batalha da planície de Ma-
ratona, em setembro de 490 a.C.

Os persas são novamente derrotados em 480 a.C na batalha naval de Salamina. Os persas,
até então invencíveis no mar, retiraram-se para a Ásia Menor. O projeto de tomar o Mediterrâ-
neo foi abandonado quando as esquadras persas e de seus aliados etruscos e cartagineses foram
derrotadas, ambos inimigos de Roma, que saberá tirar proveito desses eventos.

40
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

A vitória sobre os persas foi o teste decisivo da democracia ateniense. O povo compre-
endeu definitivamente que era não só o poder político, mas também o poder militar. A pólis
foi salva pelos “demos armados, pelo povo em armas, inclusive aquela parcela da população
pobre, chamada “tetes” que havia sido negligenciada por Clístenes. Os tetes tomaram defi-
nitiva consciência de si na batalha de Salamina. A defesa da pátria e a vitória contra o
poderoso inimigo os converte de vez em cidadãos. Os tetes eram os remadores dos navios de
guerra gregos. Eles foram, portanto, decisivos na vitória.

Em 462 a.C., Efialte, chefe do partido democrático, decide abolir todas as funções
políticas e jurídicas do Areópago, conselho mantido por Clístenes e onde se representava
ainda a velha aristocracia oligárquica, com poderes, segundo Aristóteles, de tutelar a cons-
tituição, de controlar os altos magistrados (arcontes e estrategos) e a jurisdição criminal.
Efialte atribui esses poderes ao conselho dos 500 e à assembléia popular. Ao concluir a
reforma Efialte foi assassinado por um estrangeiro (meteco) a mando e armado pelos parti-
dários da nobreza.

Cimon, influente político conservador, aliado da nobreza, recebeu da assembléia o


voto de ostracismo e foi declarado inimigo do povo. É muito provável que entre os inspiradores
da queda de Cimon estivesse Péricles (cf. Humbert, 1984, p. 84-85), que irá prosseguir nas
reformas de Efialte.

Péricles, nascido em Atenas em 490 a.C, foi a mais ilustre personalidade grega do
século 5º, conhecido como século de Péricles, primeiro dos cidadãos de Atenas. E com justi-
ça. Aliado de Efialte, prossegue as reformas e o aperfeiçoamento da democracia, por 13
vezes foi eleito estratego, isto é, chefe das forças armadas de Atenas e dos aliados da confe-
deração grega, tesoureiro das finanças, membro permanente da Boulé e partícipe da elabo-
ração das leis. A ele se devem múltiplas iniciativas: a construção dos muros ligando a cidade
ao porto, a construção da Acrópole e do templo da deusa Atena, cujas ruínas existem ainda
hoje. Patrocinou o teatro, as artes, a ciência e a Filosofia.

As iniciativas e propostas de aperfeiçoamento da democracia ateniense são as seguin-


tes: entre 454 e 450 a.C. Péricles introduziu o princípio da remuneração de todas as ativida-
des públicas. Os honorários são modestos, representam apenas o mínimo vital necessário,
tomando-se por base a remuneração de um soldado.

41
EaD Din art e Belat o

Mas esta compensação dada ao cidadão durante o tempo de exercício de sua função pública é,
em sua origem, uma medida capital: uma das regras da democracia dá suporte efetivo à igualda-
de aritmética, à igualdade de oportunidades a todos de exercer os mesmos direitos políticos. Sem
estes honorários, todos os que dependiam de seu trabalho para viver, metade dos cidadãos de
Atenas, não poderiam participar de fato da vida pública [...] (Humbert, 1984, p. 92).

Os inimigos da democracia opuseram-se ferozmente a esta medida taxando-a de demagógica,


fonte de corrupção dos juízes, declínio do civismo e, sobretudo, de acesso dos mais pobres, por-
tanto, dos mais ignorantes ao governo da cidade (p. 92).

Péricles promoveu a fundação de colônias nas quais assentou a população desempre-

gada e desocupada de Atenas, freqüentemente mobilizada contra Péricles e o regime demo-

crático pela nobreza, que viu extintos definitivamente seus privilégios.

Para proteger a democracia contra suas próprias possibilidades de praticar excessos,


de cometer erros, Péricles propõe um mecanismo de autocontrole chamado “ação de ilega-

lidade”, que visa a

[...] proteger o demos contra uma decisão que ele próprio seria tentado a tomar, por força de
enganos ou má informação. “A ação popular ”, cuja iniciativa está aberta a qualquer cidadão, é
dirigida contra o cidadão autor de um projeto de lei contrária à democracia [...]. Trata-se de um
mecanismo de autodefesa, que impede o demos de oscilar entre o abuso e a tirania [...]. Tecnica-
mente é um mecanismo que permite ao próprio povo julgar a legalidade de medidas propostas à
assembléia ou votadas por ela (Humbert, 1984, p. 94).

A democracia ateniense atinge assim sua forma mais elaborada de organização e par-

ticipação política da totalidade dos cidadãos. Atenas se converteu em centro de convergên-

cia não só de negócios e de febril atividade econômica e mercantil, como também de artis-

tas, filósofos, urbanistas, arquitetos, médicos e escultores.

A experiência política da participação popular, direta e permanente, conferiu à demo-

cracia um sentido humano, terreno, do poder: “A democracia é uma obra humana. Por ela, o

homem, sem o apoio dos deuses [...] afirma seu poder de decisão face aos deuses, à nature-

za, aos outros homens [...]” (Humbert, 1984, p. 94).

Isócrates, ao fazer um balanço da democracia ateniense, afirma:

42
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Nós implantamos nas outras poleis a mesma constituição que a nossa [...]. Apenas algumas
palavras são suficientes para fazer-lhe o elogio. Nós vivemos por setenta anos sob um regime que
não conheceu tiranos, livres dos bárbaros, protegidos das intrigas intestinas, promovendo a paz
a todos os homens (p. 95).

É de Péricles que nos vem, talvez, a melhor avaliação da democracia ateniense, conti-

da num discurso fúnebre pronunciado em 431 a.C, recolhido por Tucídides e reproduzido em
seu livro História da Guerra do Peloponeso. O próprio Tucídides nos conta as circunstâncias

e as razões do discurso:

No curso do mesmo inverno os atenienses, seguindo um costume de seus antepassados, celebra-


ram a expensas do tesouro os ritos fúnebres dos primeiros concidadãos vítimas desta guerra. A
cerimônia consiste no seguinte: os ossos dos defuntos são expostos num catafalco durante três
dias, sob um toldo próprio para isto, e os habitantes trazem para os seus mortos, as oferendas
desejadas; no dia do funeral ataúdes de cipreste são trazidos em carretas, um para cada tribo, e
os ossos de cada um são postos no ataúde de sua tribo; um ataúde vazio, coberto por um pálio,
também é levado em procissão, reservado aos desaparecidos cujos cadáveres não foram encon-
trados para o sepultamento. Todos os que desejam, cidadãos ou estrangeiros, podem participar
da procissão fúnebre, e as mulheres das famílias dos defuntos também comparecem e fazem
lamentações; os ataúdes são postos no mausoléu oficial, situado no subúrbio mais belo da cida-
de; lá são sempre sepultados os mortos em guerra, à exceção dos que tombaram em Maratona
que, por seus méritos excepcionais, foram enterrados no próprio local da batalha. Após o enterro
dos restos mortais, um cidadão escolhido pela cidade, considerado o mais qualificado em termos
de inteligência e tido na mais alta estima pública, pronuncia um elogio adequado em honra dos
defuntos. Depois disso o povo se retira. São assim os funerais e durante toda a guerra, sempre que
havia oportunidade, esse costume era observado. No caso presente das primeiras vítimas da
guerra, Péricles, filho de Xântipo, foi escolhido para falar. No momento oportuno ele avançou
para o local do mausoléu, subiu à plataforma, bastante alta para que a sua voz fosse ouvida tão
longe quanto possível pela multidão [...] (Humbert, 1984, p. 107).

Eis o discurso de Péricles:

Muitos dos que me precederam neste lugar fizeram elogios ao legislador que acrescentou um
discurso à cerimônia usual nestas circunstâncias, considerando justo celebrar também com pa-
lavras os mortos na guerra em seus funerais. A mim, todavia, ter-me-ia parecido suficiente,
tratando-se de homens que se mostraram valorosos em atos, manifestar apenas com atos as
honras que lhes prestamos – honras como as que hoje presenciastes nesta cerimônia fúnebre
oficial – em vez de deixar o reconhecimento do valor de tantos homens na dependência do maior
ou menor talento oratório de um só homem. É realmente difícil falar com propriedade numa

43
EaD Din art e Belat o

ocasião em que não é possível aquilatar a credibilidade das palavras do orador. O ouvinte bem
informado e disposto favoravelmente pensará talvez que não foi feita a devida justiça em face de
seus próprios desejos e de seu conhecimento dos fatos, enquanto o outro menos informado, ouvin-
do falar de um feito além de sua própria capacidade, será levado pela inveja a pensar em algum
exagero. De fato, elogios a outras pessoas são toleráveis somente até onde cada um se julga capaz
de realizar qualquer dos atos cuja menção está ouvindo; quando vão além disso, provocam a
inveja, e com ela a incredulidade. Seja como for, já que nossos antepassados julgaram boa esta
prática, também devo obedecer à lei, e farei o possível para corresponder à expectativa e às
opiniões de cada um de vós.

Falarei primeiro de nossos antepassados, pois é justo e ao mesmo tempo conveniente, numa
ocasião como esta, dar-lhes este lugar de honra rememorando os seus feitos. Na verdade, perpe-
tuando-se em nossa terra através de gerações sucessivas, eles, por seus méritos, no-la transmiti-
ram livre até hoje. Se eles são dignos de elogios, nossos pais o são ainda mais, pois aumentando
a herança recebida, constituíram o império que agora possuímos e a duras penas nos deixaram
este legado, a nós que estamos aqui e o temos. Nós mesmos aqui presentes, muitos ainda na
plenitude de nossas forças, contribuímos para fortalecer o império sob vários aspectos, e demos
à nossa cidade todos os recursos, tornando-a auto-suficiente na paz e na guerra. Quanto a isso,
quer se trate de feitos militares que nos proporcionaram esta série de conquistas, ou das ocasiões
em que nós ou nossos pais nos empenhamos em repelir as investidas guerreiras tanto bárbaras
quanto helênicas, pretendo silenciar, para não me tornar repetitivo aqui diante de pessoas às
quais nada teria a ensinar. Mencionarei inicialmente os princípios de conduta, o regime de
governo e os traços de caráter graças aos quais conseguimos chegar à nossa posição atual, e
depois farei o elogio destes homens, pois penso que no momento presente esta exposição não será
imprópria e que todos vós aqui reunidos, cidadãos e estrangeiros, podereis ouvi-la com proveito.

Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao
contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende
não de poucos, mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais
para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir
em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos
mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar
serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos
liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida
privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe
apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao
mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública
nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos
submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimi-
dos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos.

Instituímos muitos entretenimentos para o alívio da mente fatigada; temos concursos, temos
festas religiosas regulares ao longo de todo o ano, e nossas casas são arranjadas com bom gosto
e elegância, e o deleite que isso nos traz todos os dias afasta de nós a tristeza. Nossa cidade é tão

44
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

importante que os produtos de todas as terras fluem para nós, e ainda temos a sorte de colher os
bons frutos de nossa terra com certeza de prazer não menor que o sentido em relação aos produ-
tos de outras.

Somos também superiores aos nossos adversários em nosso sistema de preparação para a guerra
nos seguintes aspectos: em primeiro lugar, mantemos nossa cidade aberta a todo o mundo e
nunca, por atos discriminatórios, impedimos alguém de conhecer e ver qualquer coisa que, não
estando oculta, possa ser vista por um inimigo e ser-lhe útil. Nossa confiança se baseia menos em
preparativos e estratagemas que em nossa bravura no momento de agir. Na educação, ao contrá-
rio de outros que impõem desde a adolescência exercícios penosos para estimular a coragem,
nós, com a nossa maneira liberal de viver, enfrentamos pelo menos tão bem quanto eles perigos
comparáveis. Eis a prova disso: os lacedemônios não vêm sós quando invadem nosso território,
mas trazem com eles todos os seus aliados, enquanto nós, quando atacamos o território de nossos
vizinhos, não temos maiores dificuldades, embora combatendo em terra estrangeira, em levar
freqüentemente a melhor. Jamais nossas forças se engajaram todas juntas contra um inimigo,
pois aos cuidados com a frota se soma em terra o envio de contingentes nossos contra numerosos
objetivos; se os lacedemônios por acaso travam combate com uma parte de nossas tropas e
derrotam uns poucos soldados nossos, vangloriam-se de haver repelido todas as nossas forças;
se, todavia, a vitória é nossa, queixam-se de ter sido vencidos por todos nós. Se, portanto, levando
nossa vida amena ao invés de recorrer a exercícios extenuantes, e confiantes em uma coragem
que resulta mais de nossa maneira de viver que da compulsão das leis, estamos sempre dispostos
a enfrentar perigos, a vantagem é toda nossa, porque não nos perturbamos antecipando desgra-
ças ainda não existentes e, chegado o momento de provação, demonstramos tanta bravura quan-
to aqueles que estão sempre sofrendo; nossa cidade, portanto, é digna de admiração sob esses
aspectos e muitos outros.

Somos amantes da beleza sem extravagância e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a
riqueza mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós
não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la. Ver-se-
á em uma mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas e públicas, e em
outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá falta de discernimento
em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém
que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses,
decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-
las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à nação, e sim o fato de não se
estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores
aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de
refletir sobre os riscos que pretendemos correr; para outros homens, ao contrário, ousadia signi-
fica ignorância e reflexão traz a hesitação. Deveriam ser justamente considerados mais corajo-
sos aqueles que, percebendo claramente tanto os sofrimentos quanto as satisfações inerentes a
uma ação, nem por isso recuam diante do perigo. Mais ainda: em nobreza de espírito contrasta-
mos com a maioria, pois não é por receber favores, mas por fazê-los, que adquirimos amigos. De
fato, aquele que faz o favor é um amigo mais seguro, por estar disposto, através de constante
benevolência para com o beneficiado, a manter vivo nele o sentimento de gratidão. Em contraste,

45
EaD Din art e Belat o

aquele que deve é mais negligente em sua amizade, sabendo que a sua generosidade, em vez de
lhe trazer reconhecimento, apenas quitará uma dívida. Enfim, somente nós ajudamos os outros
sem temer as conseqüências, não por mero cálculo de vantagens que obteríamos, mas pela con-
fiança inerente à liberdade.

Em suma, digo que nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade e que, segundo me
parece, cada homem entre nós poderia, por sua personalidade própria, mostrar-se auto-suficien-
te nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade. E isso não é
mero ufanismo inspirado pela ocasião, mas a verdade real, atestada pela força mesma de nossa
cidade, adquirida em conseqüência dessas qualidades. Com efeito, só Atenas entre as cidades
contemporâneas se mostra superior à sua reputação quando posta à prova, e só ela jamais susci-
tou irritação nos inimigos que a atacaram, ao verem o autor de sua desgraça, ou o protesto de
seus súditos porque um chefe indigno os comanda. Já demos muitas provas de nosso poder, e
certamente não faltam testemunhos disto; seremos, portanto, admirados não somente pelos ho-
mens de hoje mas também do futuro. Não necessitamos de um Homero para cantar nossas
glórias, nem de qualquer outro poeta cujos versos poderão talvez deleitar no momento, mas que
verão a sua versão dos fatos desacreditada pela realidade. Compelimos todo o mar e toda a terra
a dar passagem à nossa audácia, e em toda parte plantamos monumentos imorredouros dos
males e dos bens que fizemos. Esta, então, é a cidade pela qual estes homens lutaram e morreram
nobremente, considerando seu dever não permitir que ela lhes fosse tomada; é natural que todos
os sobreviventes, portanto, aceitem de bom grado sofrer por ela.

Falei detidamente sobre a cidade para mostrar-vos que estamos lutando por um prêmio maior
que o daqueles cujo gozo de tais privilégios não é comparável ao nosso, e ao mesmo tempo para
provar cabalmente que os homens em cuja honra estou falando agora merecem os nossos elogi-
os. Quanto a eles, muita coisa já foi dita, pois quando louvei a cidade estava de fato elogiando os
feitos heróicos com que estes homens e outros iguais a eles a glorificaram; e não há muitos
helenos cuja fama esteja como a deles tão exatamente adequada a seus efeitos. Parece-me ainda
que uma morte como a destes homens é prova total de máscula coragem, seja como seu primeiro
indício, seja como sua confirmação final. Mesmo para alguns menos louváveis por outros moti-
vos, a bravura comprovada na luta por sua pátria deve com justiça sobrepor-se ao resto; eles
compensaram o mal com o bem e saldaram as falhas na vida privada com a dedicação ao bem
comum. Ainda a propósito deles, os ricos não deixaram que o desejo de continuar a gozar da
riqueza os acovardasse, e os pobres não permitiram que a esperança de mais tarde se tornarem
ricos os levasse a fugir ao dia fatal; punir o adversário foi aos seus olhos mais desejável que essas
coisas, e ao mesmo tempo o perigo a correr lhes pareceu mais belo que tudo; enfrentando-o,
quiseram infligir esse castigo e atingir esse ideal, deixando por conta da esperança as possibili-
dades ainda obscuras de sucesso, mas na ação, diante do que estava em jogo à sua frente, confi-
aram altivamente em si mesmos. Quando chegou a hora do combate, achando melhor defender-
se e morrer que ceder e salvar-se, fugiram da desonra, jogaram na ação as suas vidas e, no
brevíssimo instante marcado pelo destino, morreram num momento de glória e não de medo.

Assim estes homens se comportaram de maneira condizente com nossa cidade; quanto aos sobre-
viventes, embora desejando melhor sorte deverão decidir-se a enfrentar o inimigo com bravura
não menor. Cumpre-nos apreciar a vantagem de tal estado de espírito não apenas com palavras,

46
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

pois a fala poderia alongar-se demais para dizer-vos que há razões para enfrentar o inimigo; em
vez disso, contemplai diariamente a grandeza de Atenas, apaixonai-vos por ela e, quando a
glória vos houver inspirado, refleti em que tudo isso foi conquistado por homens de coragem
cônscios de seu dever, impelidos na hora do combate por um forte sentimento de honra; tais
homens, mesmo se alguma vez falharam em seus cometimentos, decidiram que pelo menos à
pátria não faltaria o seu valor, e que lhe fariam livremente a mais nobre contribuição possível.
De fato, deram-lhe suas vidas para o bem comum e, assim fazendo, ganharam o louvor impere-
cível e o túmulo mais insigne, não aquele em que estão sepultados, mas aquele no qual a sua
glória sobrevive relembrada para sempre, celebrada em toda ocasião propícia à manifestação
das palavras e dos atos. Com efeito, a terra inteira é o túmulo dos homens valorosos, e não
somente o epitáfio nos mausoléus erigidos em suas cidades que lhes presta homenagem, mas há
igualmente em terras além das suas, em cada pessoa, uma reminiscência não escrita, gravada no
pensamento e não em coisas materiais. Fazei agora destes homens, portanto, o vosso exemplo, e
tendo em vista que a felicidade é liberdade e a liberdade é coragem, não vos preocupeis
exageradamente com os perigos da guerra. Não são aqueles que estão em situação difícil que
têm o melhor pretexto para descuidar-se da preservação da vida, pois eles não têm esperança de
melhores dias, mas sim os que correm o risco, se continuarem a viver, de uma reviravolta da
fortuna para pior, e aqueles para os quais faz mais diferença a ocorrência de uma desgraça; para
o espírito dos homens, com efeito, a humilhação associada à covardia é mais amarga do que a
morte quando chega despercebida em acirrada luta pelas esperanças de todos.

Eis porque não lastimo os pais destes homens, muitos aqui presentes, mas prefiro confortá-los.
Eles sabem que suas vidas transcorreram em meio a constantes vicissitudes, e que a boa sorte
consiste em obter o que é mais nobre, seja quanto à morte – como estes homens – seja quanto à
amargura – como vós, e em ter tido uma existência em que se foi feliz quando chegou o fim. Sei
que é difícil convencer-vos desta verdade, quando lembrais a cada instante a vossa perda ao ver
os outros gozando a ventura em que também já vos deleitastes; sei, também, que se sente tristeza
não pela falta de coisas boas que nunca se teve, mas pelo que se perde depois de ter tido. Aqueles
entre vós ainda em idade de procriar devem suavizar a tristeza com a esperança de ter outros
filhos; assim, não somente para muitos de vós individualmente os filhos que nascerem serão um
motivo de esquecimento dos que se foram, mas a cidade também colherá uma dupla vantagem:
não ficará menos populosa e continuará segura; não é possível, com efeito, participar das delibe-
rações na assembléia em pé de igualdade e ponderadamente quando não se arriscam filhos nas
decisões a tomar. Quanto a vós, que já estais muito idosos para isso, contai como um ganho a
maior porção de vossa vida durante a qual fostes felizes, lembrai-vos de que o porvir será curto,
e sobretudo consolai-vos com a glória desses vossos filhos. Só o amor da glória não envelhece, e
na idade avançada o principal não é o ganho, como alguns dizem, mas ser honrado.

Para vós aqui presentes que sois filhos e irmãos destes homens, antevejo a amplitude de vosso
conflito íntimo; quem já não existe recebe elogios de todos; quanto a vós, seria muito bom se um
mérito excepcional fizesse com que fôsseis julgados não iguais a eles, mas pouco inferiores. De
fato, há inveja entre os vivos por causa da rivalidade; os que já não estão em nosso caminho,
todavia, recebem homenagens unânimes.

47
EaD Din art e Belat o

Se tenho de falar também das virtudes femininas, dirigindo-me às mulheres agora viúvas, resu-
mirei tudo num breve conselho: será grande a vossa glória se vos mantiverdes fiéis à vossa
própria natureza, e grande também será a glória daquelas de quem menos se falar, seja pelas
virtudes, seja pelos defeitos.

Aqui termino o meu discurso, no qual, de acordo com o costume, falei o que me pareceu adequa-
do; quanto aos fatos, os homens que viemos sepultar já receberam as nossas homenagens e seus
filhos serão, de agora em diante, educados a expensas da cidade até a adolescência; assim
ofereceremos aos mortos e a seus descendentes uma valiosa coroa como prêmio por seus feitos,
pois onde as recompensas pela virtude são maiores, ali se encontram melhores cidadãos. Agora,
depois de cada um haver chorado devidamente os seus mortos, ide embora (Tucídides, 2001).

Seção 1.4

Crise da Democracia Ateniense – 431-322 a.C

O fim do século 5º e o século 4º representaram um período de crises e de agonia

irreversível para a experiência política, social e civilizatória da Grécia. Péricles morre em 429

a.C. É uma morte emblemática, mas, por paradoxal que possa parecer é, nesse século de

crise e decadência, que os intelectuais gregos, alguns deles entre as mais brilhantes inteli-

gências humanas, como Sócrates, Platão e Aristóteles, vão tentar encontrar saídas para a

crise em que mergulhara a civilização grega.

De um lado, Sócrates e Platão ensaiarão propostas que, em última instância, se reve-

laram irrealizáveis, pois negavam radicalmente a rica experiência das póleis e de seus siste-

mas de participação popular (Platão, A República. As leis). Já Xenofonte e Sócrates tenta-

ram compreender detalhadamente a história política das póleis em busca de um equilíbrio

de classes capaz de estabilizar o regime e pacificar a sociedade (Aristóteles. A Política). To-

dos fracassaram.

Alexandre submete a Grécia em 335 a.C. Novo paradoxo. A civilização grega se ex-

pande sobre todo o Oriente Médio, o Egito e o Mediterrâneo. As póleis gregas já não mais

existem, mas sua secular civilização marcará para sempre a cultura humana.

48
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Sem seu legado político e filosófico, sem suas categorias lógicas e epistemológicas,

não poderíamos compreender e exprimir o mundo do modo como o fazemos. A cultura e a

civilização ocidental, hoje globalizada, guarda da Grécia as bases sobre as quais se assenta.

O próprio Cristianismo é despojado de suas estruturas mentais orientais e revestido das

categorias gregas, que lhe dão sentido e inteligibilidade.

1.4.1 – A BUSCA DE UMA SOLUÇÃO PARA A CRISE

Pensar a crise, buscar-lhe uma solução, eis a obsessão dos intelectuais gregos do sécu-

lo 4º. E o fizeram com tal profundidade que criaram a ciência política, os fundamentos das

leis e do Direito e as regras da moral individual e coletiva.

Comecemos por Sócrates. Terminada a Guerra do Peloponeso, em 404 a.C, a democra-

cia foi restaurada em Atenas e proclamada uma anistia segundo a qual ninguém poderia ser

acusado por crimes passados, sob pena de morte. E em 399 a.C, em completa desobediência

à Lei da Anistia, um líder político chamado Anytos propõe uma “ação pública de impieda-

de”: “Sócrates é denunciado por impiedade, pois ele não crê nos deuses da cidade e por

introduzir divindades novas. É culpado também de corrupção da juventude. Pena proposta:

morte.”

Protágoras e Anaxágoras, estrangeiros, foram expulsos de Atenas pela mesma acusa-

ção. Sócrates era ateniense, de vida intocável, cidadão exemplar. Por que a condenação, por

que a morte decretada pelo Conselho dos Heliastes e pelo arconte-rei?

Sócrates conhecia bem os avanços conquistados pelos filósofos-cientistas que o prece-

deram. Deles aprendeu não só suas descobertas, como o método de obtê-las. Ele sabia que

os astros, tidos como sagrados, são feitos de terra ou fogo e nada tinham de divinos ou

misteriosos. O ser humano, já o diziam os sofistas, é a medida de todas as coisas. O homem,

porém, precisa conhecer a si mesmo do mesmo modo como a ciência conhecera a natureza.

E o método que ele propõe é o diálogo, o confronto com o outro, o debate, a discussão. É daí

que nasce a verdade, a justiça, ensinava Sócrates.

49
EaD Din art e Belat o

Em que poderia tal prática ameaçar a democracia e o Estado? Humbert (1984) enten-

de que a restauração da democracia de 403 a.C, após o término da Guerra do Peloponeso

(Tucídides) é percebida como tarefa de regeneração moral. Os mentores políticos de tal pro-

posta, um deles é Anytos, pensavam que era fundamental reconciliar a pólis com seus deu-

ses, pois estes a tinham abandonado. A condenação de Sócrates toma então todo o seu

sentido político.

Ele foi condenado porque criticava e ridicularizava a religião tradicional como uma

mitologia imoral e ingênua; denunciava o uso mesquinho da oração, das oferendas, ato

puramente mercantil. Ele provocou a ira e o medo dos dirigentes políticos, que precisaram

suprimir toda e qualquer possibilidade crítica. Provavelmente esta tenha sido a última opor-

tunidade para o ressurgimento da democracia em Atenas.

1.4.2 – XENOFONTE E ISÓCRATES – A RESTAURAÇÃO DA TRADIÇÃO

Xenofonte e Isócrates entendiam que a desordem social e política vinha da pobreza

das camadas populares. Suas propostas consistiam fundamentalmente nos modos de eliminá-

la. Na prática, eles propunham a expulsão dos pobres das póleis por meio do velho método

adotado pelas oligarquias dos séculos 8º e 6º: a colonização. Xenofonte sugere o envio dos

pobres para a Trácia (atual Bulgária). Isócrates defende a mesma proposta.

A proposta de Isócrates é, porém, mais sofisticada e abrangente de todas as póleis e

não só de Atenas, um projeto “pan-helênico”. Todas as póleis gregas devem unir-se contra a

Pérsia, seu grande rei e suas possessões: é sobre estas terras e nas dos aliados que deverão

ser instalados os pobres. Quando ficou claro que sua proposta não seria viável, foi buscar

apoio junto ao rei Felipe da Macedônia, que acatou a proposta, mas a executou à sua

maneira. O pan-helenismo deu a Alexandre as bases ideológicas da conquista do império

persa e da própria Grécia.

Voltemos à proposta da expulsão dos pobres. O poder deverá voltar ao Areópago, isto é,

para a nobreza, que deverá controlar a aplicação da lei pelos magistrados. É preciso, sobretudo,
acabar com os honorários pagos pelo Estado para que os pobres não participem da política, e

50
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

restituir, desta forma, aos ricos, o monopólio do poder que, para exercê-lo, deveria ser onerado.
Os candidatos aos cargos públicos não serão assim motivados pela oportunidade de ganho, mas
unicamente pela ambição (timé-kai-timocracia) e pelo amor às honras. Aristóteles retomará
esta proposta e lhe dará as bases teóricas em seu livro Política, como veremos adiante.

Platão (427-348), discípulo de Sócrates, passa boa parte de sua longa vida pensando
alternativas à crise das póleis gregas, cujo objetivo básico deveria ser a supressão do conflito
social, da luta de classes, origem de todos os males da sociedade. Busca, portanto, um novo
fundamento, legitimador e organizador da pólis.

Platão parte do pressuposto de que os homens são desiguais por natureza. É preciso,
por isso, descobrir os desiguais e agrupá-los segundo sua igualdade, isto é, segundo sua
“justiça” ou sua alma.

Para Platão, os homens podem ser classificados segundo as virtudes de suas almas: a
sabedoria, a virtude dos filósofos, os que conhecem a justiça e, por isso, devem governar a
pólis; a fortaleza, a virtude dos que devem defender a polis e, finalmente, a temperança, a
virtude dos que, por seu trabalho, sustentam a si mesmo e os demais.

Platão usou uma metáfora para explicar estas desigualdades: uma parcela da socieda-
de é constituída pelos que têm alma de ouro; outra de prata e uma terceira de ferro. A
sociedade será, desta forma, um corpo composto de três partes inseparáveis: a cabeça (filó-
sofos/governantes); o tronco ou peito (a força), os militares ou defensores e, finalmente, os
braços e as pernas que trabalham e carregam as outras duas partes. A cada porção do corpo
da pólis corresponde uma classe, uma função e uma virtude.

Organizar a sociedade segundo a virtude de cada um é organizá-la de acordo com a


justiça, o bem, a verdade. Em contrapartida, toda vez que uma sociedade mistura as classes,
resulta disso a injustiça, a desordem, o conflito e a monstruosidade. O que pode ser mais
monstruoso do que os pés pretenderem ser a cabeça?

Platão, ainda para ilustrar sua concepção de ordem social, imaginou outra metáfora, a de
um Estado em que os chefes ou pastores são os detentores do conhecimento supremo, os filóso-
fos. A eles cabe o governo da cidade. Os guerreiros ou cães de guarda, que encarnam a coragem,
defenderão a cidade e, finalmente, os produtores ou o rebanho, trabalharão para a cidade.

51
EaD Din art e Belat o

O filósofo defende sua proposta argumentando que os regimes políticos das póleis

gregas são exemplos tanto das desordens da alma e das injustiças daí decorrentes quanto

da impossibilidade de restaurá-los ou reformá-los. Eles são a expressão das várias formas de

injustiça. Assim, argumenta Platão:

– a timocracia (a paixão da guerra, sem a sabedoria) se funda na ambição e não na sabedoria, e


impele os guerreiros a governar. Essas almas só têm uma virtude, uma qualidade, a disciplina.
Assim era Esparta. Mas o apetite de riqueza inevitavelmente leva à oligarquia;

– a oligarquia (paixão pelo dinheiro) é sinônimo de governo dos ricos, de plutocracia, que divide
a pólis em dois campos antagônicos: os ricos e os pobres. Para Platão, riqueza e virtude são
excludentes;

– a democracia (o instinto de liberdade), governo do povo, é um regime de desordem, pois aí se


confundem e se misturam as funções de forma anárquica e onde se iguala o desigual;

– finalmente, a tirania que nada mais é do que o governo dos instintos bestiais, o pior regime
concebível (Humbert, 1984, p. 155).

Platão não se ateve apenas às propostas que ele desenhou em seu volumosos livro

A República. Mais velho, escreveu um tratado chamado Leis, um código regulador da

pólis. Suas propostas básicas desenhadas nessa obra são, conforme Humbert (1984), as

seguintes:

1ª – A estrutura da pólis

– A pólis terá 5.040 (sic) cidadãos, todos originários de um mesmo país, que eles abandona-
ram, como um enxame, para fundar uma nova pólis. Para Platão, a unidade étnica é
garantia de coesão.

– A cidade será construída longe do mar, pois a cidade deverá viver em completa autarquia
e ao abrigo das influências externas, do comércio e da marinha, pelas quais Platão tinha
particular aversão. Unicamente pessoas escolhidas poderão manter contatos externos.

– Na nova cidade todos gozarão de direitos políticos. Todos são proprietários de lotes iguais
e inalienáveis. Cada casal terá um único filho, que herdará a propriedade do pai. Caso
nasçam outros filhos, serão dados a casais sem filhos.

52
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

– O ouro e o dinheiro serão banidos. Só serão toleradas pequenas diferenças de fortuna, que

darão origem a quatro classes censitárias. As atividades manuais e a agricultura serão

entregues aos escravos e aos estrangeiros.

2ª – Os organismos da cidade

O exemplo seguido por Platão é Esparta, pois ele considera sua Constituição equili-

brada: a monarquia compartilhada por dois reis é contrabalançada pelos éforos e pela gerúsia.

Os magistrados e os cidadãos serão dominados por 37 guardiões das leis, que serão, por sua

vez, submetidos a controladores que, por sua vez, serão inspecionados. Trata-se de um siste-

ma de vigilância mútuo, total e permanente. Acima de todos está o Conselho Noturno (os

olhos e os ouvidos da cidade) que encarna o saber religioso e o poder judiciário. Sua função

consiste em traduzir em leis humanas as leis divinas, pois Deus é a medida universal.

O que Platão nos propõe é um Estado totalitário e teocrático. Para ele, a ortodoxia

religiosa é uma necessidade porque as leis divinas governam a condição humana. O ateísmo

e o desprezo pelos deveres religiosos tradicionais serão reprimidos.

Nas duas tentativas de solucionar a crise das sociedades gregas, Platão simplesmente

joga as soluções para um mundo transcendente, que só encontrará eco séculos mais tarde

no Cristianismo, nos seus sistemas de vida religiosa e monástica e nas concepções teocráticas

tão caras aos pensadores da Idade Média e aos teóricos do absolutismo da Idade Moderna.

A Grécia não lhe deu ouvidos, nem mesmo seu mais brilhante discípulo, Aristóteles.

1.4.3 – O REALISMO POLÍTICO DE ARISTÓTELES

Aristóteles é um pensador que estudou e escreveu praticamente sobre todos os temas.

À política ele dedicou um volume, cujo título é Política, no qual se propõe a relatar a história
das experiências políticas das póleis gregas, entender sua natureza e especificidade, bem

como as categorias e a teoria que lhe emprestam sentido e inteligibilidade. E propõe os

princípios e as alternativas que, segundo ele, seriam capazes de contornar a crise política

das póleis gregas.

53
EaD Din art e Belat o

Segundo Humbert (1984), a obra de Aristóteles pode ser dividida em duas grandes
partes: a primeira estabelece os princípios de um bom governo e a segunda propõe sua apli-

cação concreta.

Aristóteles não se propõe a eliminar a luta de classes e a conflitividade nas relações huma-
nas. Para ele, os conflitos se originam dos desequilíbrios e dissimetrias presentes nas constitui-
ções das póleis. É preciso, portanto, examinar tais constituições, identificando tanto os

desequilíbrios quanto os elementos que numa boa constituição devem produzir o equilíbrio.

Segundo Aristóteles são os seguintes os princípios de um bom governo:

1. O princípio da igualdade geométrica. Aristóteles rejeita o princípio de igualdade univer-


sal estabelecido pela democracia ateniense. Ele afirma: “igualdade só para os que são
iguais e não igualdade entre os desiguais.” E acrescenta: “Aqueles que, por sua capaci-
dade moral superior fortalecem o bem comum de todos merecem receber direitos políticos
superiores aos demais cidadãos.” Aristóteles, então, vai estabelecer os critérios para me-
dir tal capacidade superior.

2. O princípio da riqueza (ou princípio timocrático). Os melhores cidadãos não são esco-
lhidos apenas por suas virtudes morais (justiça, sabedoria, prudência, discernimento...),
mas também por um critério de riqueza, de posses. Segundo Aristóteles, a riqueza de uma
pessoa dá a ela liberdade e independência. Por conseguinte, os pobres devem ser excluí-
dos, assim como os ricos que, por força de seu trabalho, dependem de seu salário. Pobreza
e trabalho alienam a liberdade. Só podem ocupar-se da política os que gozam do lazer,

não precisam trabalhar e, então, podem dedicar-se ao governo da pólis.

Para Aristóteles, se o magistrado ou o juiz forem ricos, não procurarão no governo o


que eles já têm. Eles procurarão unicamente um bem moral, a honra (time). É o princípio da
timocracia.

E mais: quanto maiores as responsabilidades dos cargos exercidos na pólis, tanto mais
rico deverá ser seu ocupante. Aristóteles sabe, no entanto, que essa proposta o levaria à
plutocracia, ao governo dos muito ricos. Estabelece, então, o terceiro princípio, cuja função
é equilibrar o poder dessa maioria rica.

54
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

3. O princípio majoritário ou a virtude do número. O bom governo não pode dispensar o


número, a massa que, enquanto tal, tem sua virtude própria: “A multidão, composta de
indivíduos que, tomados separadamente, são pessoas sem valor, tomadas em conjunto,
constituídas em corpo, são capazes de se mostrar superiores à elite (Política, 3, 2007,
1281a). E acrescenta: “[...] a multidão é menos suscetível à corrupção do mesmo modo
como uma grande quantidade de água está menos sujeita a corromper-se do que uma
pequena [...]” (Política, 3, 2007, 1286).

A massa, por seu número e por suas virtudes, serve de contrapeso ao poder dos ricos e
impede que a minoria (dos ricos) use a Constituição em benefício próprio, ou que a pólis
caia sob o poder de uma oligarquia.

Aristóteles, contudo, não pensa o número de forma simplesmente aritmética. Ele vai
estabelecer um critério ao número, que consiste no seguinte: “É preciso que este número
permita estabelecer uma maioria de rendas que, somadas, ultrapassem a renda dos magis-
trados que exercem individualmente ou em colégios restritos os grandes cargos do Estado”
(Política, 3, 2007, 1281a).

Eis o equilíbrio que Aristóteles entende ser o fundamento da participação política no


governo da pólis. Teoricamente, pelo menos, o número (a massa) e a riqueza se equilibram.
A soma de numerosas pequenas rendas individuais confere à massa dos cidadãos o poder de
controlar, punir, eleger ou depor os magistrados, mas isso só é possível mediante um censo
ou uma declaração de renda dos cidadãos.

4. O censo dos cidadãos. Aristóteles exclui os pobres da política. Sua justificativa é a se-
guinte: é preciso que os cidadãos candidatos a participar do governo da pólis disponham
de uma renda média, isto é, nem tão pobres, nem tão ricos. Por quê? Se a renda exigida
for muito alta, os ricos acabarão ficando majoritários, mas se a renda for muito baixa, a
massa cívica será excessivamente numerosa e suas rendas somadas ficarão abaixo da
soma da riqueza dos ricos. É preciso, portanto, encontrar um número que não seja exces-
sivamente alto, pois beneficiaria aos ricos, nem excessivamente baixo, pois favoreceria os
pobres. O resultado é que ficam, desta forma, excluídos os pobres. O poder de equilíbrio
migraria para uma classe média alta e uma elite rica. A estes, Aristóteles dará o nome de
cidadãos ativos. O conceito fez tanto sucesso que só foi extinto com o surgimento das
democracias de massa na segunda metade do século 20.

55
EaD Din art e Belat o

Na prática, a proposta de Aristóteles para a crise política das póleis é uma “democra-

cia ou oligarquia moderada”.

De posse desses critérios e princípios, Aristóteles tem os meios teóricos e metodológicos

para julgar, avaliar as constituições e as experiências políticas das póleis e, a partir daí,
propor a Constituição adequada ao momento de crise que a sociedade grega atravessava.

As constituições das muitas póleis gregas, segundo Aristóteles, podem ser classifica-

das em três tipos: monarquia, aristocracia e república (politéia, em grego), a melhor Consti-
tuição. Cada uma delas conheceu formas degeneradas: a tirania, a oligarquia e a democra-

cia. Cada uma dessas formas degeneradas exprime o interesse egoísta dos governantes:

– a monarquia supõe que um cidadão tenha tal mérito e superioridade que ele, no limite,
não deveria fazer parte da cidade. É uma espécie de Deus entre os homens, ele é para si

mesmo a lei (Política, 3, 2007, 1284a). Aristóteles exclui radicalmente este sistema de
governo;

– a aristocracia tampouco é admissível pois é ela mesma contraditória em seus termos;

– a oligarquia e a democracia, ambas devem ser rejeitadas, em particular a democracia, a

experiência de Atenas, em que o número é lei e os pobres são os senhores invejosos da


riqueza da minoria e estão sempre prontos para expropriá-la. Os honorários pagos aos

pobres pelo exercício das funções públicas só agravam e pioram as coisas. A democracia
deu aos pobres a ocasião de se ocupar dos negócios da pólis;

– finalmente, Aristóteles faz sua proposta: democracia ou oligarquia moderada, cujos tra-

ços básicos são os seguintes:

• a massa cívica será formada de cidadãos – trabalhadores. São aqueles proprietários


que se enquadram nos critérios do censo, são trabalhadores livres e independentes. As

obrigações de sua profissão, entretanto, não lhes permite participar das tarefas do go-

verno. Eles elegerão os magistrados. Controlarão suas contas e os julgarão. Serão ex-
cluídos do governo da pólis os operários e os não-proprietários, isto é, a maioria da

população livre. Os magistrados, os governantes, serão eleitos unicamente entre os

56
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

homens cujas rendas os liberem do trabalho. O modelo censitário de governo proposto

por Aristóteles foi imposto a Atenas em 322 a.C por Antipatros, testa-de-ferro e suces-

sor de Alexandre. Foi também o critério de participação na história política de Roma,

nas formas limitadas de participação política na Idade Moderna, nas propostas liberais

de governo modernas. E, como afirmei anteriormente, foram o modelo de poder das

elites até meados do século 20. Não é incomum, ainda hoje, ouvir pessoas que se opõem

ao direito de participação universal na gestão da res-pública. Muitos dizem: “o povo

(ou número, como chama Aristóteles) é burro.”

Aristóteles, é preciso reconhecer, foi, como teórico da política, um homem muito bem-

sucedido. E será difícil esquecê-lo.

Seção 1.5

Alexandre e a Conquista do Oriente

A Macedônia era um pequeno reino ao norte da Península Balcânica, governado por

uma aristocracia. Os gregos consideravam os macedônios bárbaros. Em meados do século

4º, ascende ao poder Felipe II. Consolidou-se no poder confiscando as terras da nobreza e

distribuindo-as aos camponeses pobres, muitos dos quais foram engajados no novo exército

que criara.

A Macedônia rapidamente converteu-se num Estado poderoso. O rei Felipe, apro-

veitando-se da crise generalizada das póleis gregas e dos conflitos que continuamente

as enfraqueciam, estende sobre elas seu poder, impondo-lhes uma confederação na qual

exercia um efetivo poder de mando. Quando se preparava para invadir a Pérsia, foi as-

sassinado.

57
58

EaD
http://www.templodeapolo.net/Civilizacoes/grecia/historia_civilizacao/mapas.html

Din art e Belat o


EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Sucedeu-lhe o filho Alexandre, então com 20 anos de idade. As póleis gregas, imagi-
nando que o jovem rei poderia ser facilmente vencido, rebelaram-se. Alexandre as derrota
uma atrás da outra e inicia em 334 a.C a guerra contra os persas. Morre 11 anos depois, aos
33 anos, na Babilônia, capital de um gigantesco império, que ia do Egito e Macedônia até
o vale do Rio Indo, quando se preparava para conquistar o norte da África, a oeste do Egito,
e a bacia do Mediterrâneo ocidental.

O império, após violentas lutas entre os generais de Alexandre, foi dividido em três
grandes reinos: o reino da Macedônia e a Grécia ficaram com Antígono; o Egito com
Ptolomeu e a Ásia com Seleuco. Esses reinos desaparecerão ao serem derrotados pelos exér-
citos romanos e incorporados ao império como meras províncias.

Embora ainda hoje os feitos militares e políticos de Alexandre sigam espantando os


historiadores e ninguém ouse contestar-lhe o epíteto de “O Grande”, não é por esses feitos
que ele é mais importante, mas por ter sido capaz de integrar economicamente o Oriente e o
Ocidente e, sobretudo, difundir a civilização grega em todos os recantos do império e dos
reinos que lhe sucederam. Desse longo contato da cultura ocidental grega com as culturas
orientais da Mesopotâmia, Pérsia, Índia e Egito surgem, mediante empréstimos e fusões, a
cultura helenística comum a todos os povos e cujo vínculo é a língua grega, denominada de
“Koiné”, língua universal.

Os centros dinâmicos de produção cultural não são mais as antigas póleis gregas, mas
a cidade de Alexandria, no Egito, fundada por Alexandre, convertida em capital do reino
pelos reis Ptolomeus. Era aí que se reuniam os cientistas, filósofos, poetas, historiadores e
escritores do mundo helenístico. Os faraós da dinastia grega dos Ptolomeus criaram ali a
maior biblioteca da Antiguidade, com mais de 700 mil livros manuscritos. Outros centros
importantes eram Antioquia e Pérgamo. A biblioteca de Pérgamo tinha um acervo de 400
mil volumes. Não é por acaso que, entre 250 e 100 a.C., um grupo de rabinos – 70, segundo
a tradição – traduziu boa parte dos textos bíblicos para o grego da Koiné. Esta tradução é
ainda hoje adotada pela Igreja Ortodoxa grega.

Intelectuais, pesquisadores, cientistas, reunidos nos centros helenísticos de Alexandria


e Pérgamo, deram importantes avanços às ciências. O astrônomo e matemático Eratóstenes

demonstrou que a Terra era redonda e calculou com margem pequena de erro sua circun-

59
EaD Din art e Belat o

ferência. Aristarco de Samos (século 3º a.C.) demonstrou que o Sol é maior que a Terra e

esta move-se girando sobre seu próprio eixo e ao redor do Sol. Essas descobertas foram

rejeitadas em favor do geocentrismo defendido pelo astrônomo Ptolomeu, cujas teses só

foram derrubadas por Copérnico e Galileu na Idade Moderna.

Viveu em Alexandria na primeira metade do século 7º a.C. o matemático Euclides. A

ele devemos, até hoje, o que os matemáticos denominam de Matemática e Geometria

euclidianas. Em algum momento de nossa vida escolar nos deparamos com os axiomas,

teoremas e postulados da Geometria formulada por ele.

Em Siracusa, uma pólis grega do sul da Itália, viveu o célebre cientista Arquimedes. A

ele devemos os primeiros desenvolvimentos da Física, em particular a formulação da Lei da

Hidrostática. Homem prático e cidadão dedicado, aplicou seus conhecimentos de Matemá-

tica e Física para inventar máquinas de guerra para a defesa da cidade, tais como: catapultas,

balestras, aríetes e espelhos côncavos que, concentrando os raios solares sobre os navios

inimigos, incendiava-os.

Em Alexandria se reuniam poetas, escritores, copistas, literatos. Os estudos das obras

literárias do passado, levadas a efeito por esses intelectuais, deram origem à crítica literária

e a sistemas aperfeiçoados de exegese textual. Aos estudiosos do idioma grego devemos a

elaboração das primeiras gramáticas destinadas ao ensino da língua. Foram esses gramáticos

que, mais tarde, a pedido dos romanos, elaboraram a gramática da língua latina.

Os centros de cultura helenísticos funcionaram como antecipações do que mais tarde

se denominará universidade, isto é, locais em que se reuniam os estudiosos de todos os

saberes humanos (Michulin, 1963, p. 140ss).

Se é certo que a cultura grega, racional e científica, seu alfabeto simplificado e práti-

co, sua língua, ambos longamente elaborados pela poesia épica e lírica, pelo teatro e orató-

ria, pela Filosofia e pela política, seu modo de cultivar o corpo e exibi-lo em esculturas,

pinturas e nas gravuras e jogos, foram adotados com entusiasmo pelos orientais, é certo

também que o Ocidente adotou os deuses do Oriente, sua presença constante na vida das

pessoas e seus modos de cuidar das angústias da condição humana.

60
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

O Ocidente não apenas orientalizou seus deuses como adotou quase sem acréscimos

os deuses e a espiritualidade orientais. Como entender de outro modo a difusão das religiões

orientais de origem persa, egípcia e judaica? E, sobretudo, teremos de levar em conta heran-

ças religiosas que, sob as condições sociais e políticas do helenismo, se reformularam e se

adaptaram às condições de vida de frações da população que buscavam na religião razões

novas de vida.

É daí que emergem novas crenças, quase todas elas independentes dos deuses oficiais,

dos deuses tutelares do Estado, tal como o Cristianismo que se separa do Judaísmo, religião

de Estado por excelência. Grupos de homens e mulheres “formavam confrarias, se encontra-

vam lado a lado porque escolheram livremente adorarem o mesmo deus” (Levêque, 1967, p.

491). E acrescenta Levêque:

Gregos e bárbaros, cidadãos e estrangeiros aí (nas confrarias) se acotovelavam. Ainda que os


escravos se agrupem por vezes só entre eles, [...] a maior parte das confrarias recebe ao mesmo
tempo homens e escravos. Mulheres e homens estão aí em igualdade e mesmo as crianças são
admitidas como meninos de coro. Pode imaginar-se o poderoso fer mento de unificação social
que essas confrarias representam: ao mundo clássico, onde a oposição entre grego e bárbaro ou
entre cidadão e escravo é absoluta, onde a mulher é desprezada, sucede um mundo novo em que
os antagonismos se atenuam, onde todos os homens se sentem irmãos, visto que amam um mes-
mo deus e esperam dele a mesma salvação. (Levêque, 1967, p. 491).

É neste caldo de cultura, de incertezas, conflitos e angústias que as camadas popula-

res, que não tiveram acesso às respostas da Ciência e da Filosofia gregas, vão buscar suas

âncoras que se apresentam como religiões de salvação, sejam as religiões órficas, dionisíacas

ou as religiões de mistério dos semitas e iranianos e egípcios.

É também deste mundo que nascerá uma religião oriental, religião também de mistérios, reli-
gião também de salvação, que vai impor-se lentamente: o cristianismo. Ainda que suas raízes
judaicas sejam evidentes, é na religião helenística que ele encontra a sua preparação psicológi-
ca: a trindade, a possibilidade de um traço de união entre natureza divina e natureza humana, a
mãe do salvador, o culto dos santos, seus dogmas cujo equivalente direto se encontra nos reinos
helenizados do Oriente, ao passo que são profundamente estranhos ao judaísmo. Aliás, o essen-
cial é talvez que, tal como o misticismo do Egito ou da Ásia, o cristianismo ensina o amor e não
o medo do Senhor (p. 492).

61
EaD Din art e Belat o

O helenismo não é, como muitas vezes se poderá supor, um caudal de influências e

aportes civilizatórios de mão única. E como assegura Levêque (1967, p. 492):

Na confrontação da Grécia e do Oriente, que foi provocada pela conquista de Alexandre, é difícil
medir o que o Oriente proporcionou à civilização helenística: por assim dizer nada no que respeita
à literatura, um pouco mais na arte, na filosofia e na ciência, mas quase tudo na religião.

Pela mão dos gregos voltamos ao Oriente, não aquele Oriente tal como o vimos em

Civilizações Clássicas I, mas um Oriente helenizado, do qual recebemos a civilização à qual

conferimos o epíteto de ocidental e cristã.

62
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Unidade 2

A CIVILIZAÇÃO ROMANA

OBJETIVOS DESTA UNIDADE

• Aprofundar nossos conhecimentos históricos da civilização romana, visando a compreendê-la

em seu processo de construção e, sobretudo, em sua enorme contribuição à civilização

atual, mostrando o quanto nossos valores, crenças, instituições sociais, econômicas, po-

líticas e estéticas tiveram suas origens nesta civilização.

AS SEÇÕES DESTA UNIDADE

Seção 2.1 – Da Guerra

Seção 2.2 – O Lácio e os Povos Latinos

Seção 2.3 – Roma, uma Máquina de Guerra

Seção 2.4 – Os Frutos da Guerra

Seção 2.5 – A Política: uma aristocracia que jamais cede o poder e a riqueza

Seção 2.6 – Nasce a Cives Romana ou o Estado Romano

Seção 2.7 – Os Eixos Históricos de uma Classe Predadora: o butim e a glória

Seção 2.8 – Os Deuses Romanos

Seção 2.9 – O Cristianismo e o Império

Seção 2.10 – O Legado do Cristianismo Primitivo

Seção 2.11 – A Escravidão na Grécia e em Roma

Seção 2.12 – As Heranças que nos vêm dos Romanos

63
EaD Din art e Belat o

Estudaremos a civilização romana a partir de uma de suas mais importantes dinâmi-

cas de expansão: a guerra. Sem guerra não haveria nem Roma, nem seu império, nem sua

civilização. A guerra determina os sucessivos formatos do Estado romano, a identidade e a

cidadania dos indivíduos, bem como seu lugar na estrutura do poder e da riqueza. Quando
Roma não mais pôde expandir-se e, portanto, fazer guerra, rapidamente entra em decadên-

cia e desaparece sob os golpes dos povos “bárbaros”.

Seção 2.1

Da Guerra

A Itália é uma península que divide ao meio o Mediterrâneo. Os romanos souberam


tirar proveito desta posição estratégica do território, expandindo seu domínio em todos os

quadrantes e construindo

um império que, a partir

das bordas do Mediterrâ-


neo, adentrou o continen-

te e urope u, o norte da

África, se apossou do Orien-

te Médio até o limite dos


Rios Tigre e Eufrates e, a

nordeste, até o Cáucaso e

as de se mbocaduras do

Rio Danúbio.

Fonte: Disponível em: <http://api.ning.com/files/


1d1SYnz7Bhli1e2NIZHmA*TCsApxOSVa9cEAMqCH6v8_/RomaAntigoMapa>. Acesso em: 21/1/2009.

64
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Fonte: Disponível em: <http://br.geocities.com/paulopphs/roma6.jpg>. Acesso em: 21/1/2009.

Para uns, a Itália lembra uma bota feminina; para outros, uma árvore, cujas raízes se

plantam ao sul, na Sicília, e ao norte, a galhada dos Alpes. Seja qual for a metáfora que a

Geografia nos sugere, por força da sua posição no Mediterrâneo, seu clima é ameno, seus

solos, embora divididos de norte a sul pela cadeia dos Apeninos, são férteis, com extensas

planícies e platôs, bem irrigados por chuvas regulares e rios perenes.

É na Itália que se reuniram todas as condições para o desenvolvimento da agricultura

e da pecuária típica do Mediterrâneo, isto é, da criação de bovinos, cabras, ovelhas, suínos,

e da produção do trigo, da oliva, da uva, bem como dos figos, maçãs, pêras, cítricos, alho e

cebolas.

Suas florestas são ricas em pinheiros, ciprestes e carvalhos, cujas madeiras são apro-

priadas para a construção de casa, móveis e embarcações.

65
EaD Din art e Belat o

A ocupação humana da península é muito antiga, recuando para 2 mil anos a.C. Os

arqueólogos mapearam assentamentos humanos indicando a existência de intercâmbios

culturais e econômicos da Itália e Sicília com o mundo grego do Egeu. Desses primitivos

povos, cujas culturas são chamadas calcolíticas, foram desenterradas aldeias de cabanas e

túmulos, freqüentemente situados em cavernas.

A partir de meados do segundo milênio a Itália passa a ser invadida por sucessivas

ondas de povos que falavam línguas de origem indo-européia. Estes povos deixaram vestígi-

os em seus assentamentos ao longo de toda a península e seu desenvolvimento foi impactado

no século 9º pelas invasões dos etruscos no centro-norte; já no século 7º o sul é invadido

por colonos vindos das diversas póleis gregas. Esses invasores trazem consigo os avanços de

suas respectivas civilizações, de tal modo que a Itália pôde incorporar-se ao vasto movimen-

to civilizatório que se havia consolidado no Oriente Médio e na Grécia.

Nota-se por toda a parte uma melhoria material e moral. Os grandes centros urbanos multipli-
cam-se. A escrita difunde-se nas diversas regiões, os primeiros documentos epigráficos apare-
cem, os quais permitem uma classificação lingüística e uma delimitação territorial dos diferen-
tes povos [...] (Bloch; Cousin, 1964, p. 6).

No mesmo período, mercadores fenícios, assentados no litoral africano da atual Tunísia,

expandiram-se formando colônias inicialmente na Sicília e Sardenha e, posteriormente, na

Espanha (p. 6).

A partir do século 8º, a Itália tinha seu território partilhado entre os seguintes povos:

vênetos, no extremo nordeste da península itálica e hístrios no noroeste da península

balcânica. A costa do mar Adriático, do norte para o sul, estava dividida entre picentes,

dauni, peucetios e messepios.

Os etruscos, em sua máxima expansão, ocuparam o centro-oeste da península, do Rio

Tibre ao Arno e, posteriormente, o vale do Rio Pó. Os lígures ocupam o atual território da

Ligúria, cuja capital é Gênova; mais ao centro-oeste e leste, na Coroa dos Alpes, estão os

celtas. No restante do território, do centro para o sul, viviam umbrios, sabinos, latinos,

equos, samnitas, volscos, oscos e, na Sicília, os sículos.

66
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Os gregos e fenícios ocuparam, como vimos, o sul da Itália e a Sicília. Os fenícios


ocuparam também, até serem expulsos pelos romanos, as ilhas da Sardenha e da Córsega,
habitada originalmente por sardos e corsos.

Gregos e fenícios, ao se expandirem, levaram com eles sua civilização: sociedades ur-
banas, com artesanato de bronze e ferro muito desenvolvido, bem como uma agricultura
organizada na produção de trigo, de azeitonas e uvas, base para a indústria do óleo e vinho,
produtos de alto valor mercantil e de consumo em todo o Mediterrâneo e Oriente Médio.
Foram eles que introduziram alfabetos fonéticos, que estão na base do alfabeto que os ro-
manos adotaram, recebendo-o dos gregos, aperfeiçoaram-no e no-lo legaram.

Os etruscos, por sua vez, trouxeram da Ásia (Anatólia) uma cultura desenvolvida que
os distinguia em muito dos povos italianos, seus vizinhos. Sua riqueza lhes advinha de uma
bem estruturada produção industrial de ferro, cuja exploração se dava nas minas do norte,
da exploração das florestas da Toscana, da produção de cereais e animais e de um intenso
comércio com os fenícios, tudo isso aliado à prática da pirataria, do saque e roubo (cf. Bloch;
Cousin, 1964, p. 23).

Os etruscos distinguiram-se também pela avançada técnica urbana, por sua arquite-
tura privada pública e funerária, em que a abóbada foi inteiramente utilizada, e pelas abun-
dantes pinturas, imagens e jóias, que se conservaram, por um gosto refinado pela boa vida,
pela boa comida e pelo vinho, pelos banquetes, esportes e lazer. Dedicavam a seus mortos
rituais elaborados, tumbas luxuosas que parecem indicar, ao menos para os ricos, uma con-
tinuação da boa vida depois da morte.

Os latinos, comparados com eles, eram bárbaros muito primitivos. A cultura etrusca
foi profundamente marcada pela cultura das póleis gregas. E foi por meio deles que os lati-
nos tiveram acesso à cultura helenística e, sobretudo, os primeiros contatos com as divinda-
des do panteão grego, que os latinos, reforçados por contatos diretos e por influência das
colônias gregas, adotaram quase integralmente, apenas substituindo seus nomes originais
por nomes latinos.

O alfabeto etrusco é uma variante do alfabeto grego, o que permite a leitura das inscri-
ções que deixaram. Até agora, porém, a língua etrusca continua ininteligível.

67
EaD Din art e Belat o

Os latinos submeteram os povos circunvizinhos e, sucessivamente, as três civilizações:

a etrusca, a grega e, depois de três longas guerras, a fenícia, nas chamadas Guerras Púnicas.

Seção 2.2

O Lácio e os Povos Latinos

O berço de Roma é um pequeno território chamado Lácio, constituído da parte baixa


do vale do Rio Tibre. Ali os latinos criaram suas cidades, cujos nomes chegaram até nós:

Alba-Longa, Lanúvio, Árdea, Preneste e Roma. Estas cidades e territórios eram circundados

por outros povos com suas cidades que os latinos, liderados por Roma, irão submeter. A

língua latina dava a estes povos um vínculo e bases culturais comuns, em particular o culto
a um Deus tutelar comum, o Júpiter Latino.

A língua falada pelas tribos do Lácio se chamou Latin, aparentada ao Veneto (povos
do Vale do Rio Pó), o Faliscio, falado na desembocadura do Rio Tibre, e o Sículo, falado

pelos habitantes da Sicília. Os latinos conservaram sua antiga língua, a desenvolveram e a

impuseram aos povos que iam, ao longo dos séculos, dominando. Tornou-se a língua uni-

versal do Império e substituiu, nesta função, o grego, que exercera esta função desde as
conquistas de Alexandre.

Seção 2.3

Roma, uma Máquina de Guerra

Sabemos que a população da Roma primitiva organizava-se em clãs, a que os romanos

deram o nome de “gentes”. As terras constituíam propriedade comum, ou bem patrimonial


ou “pátria”. As terras que não pertencessem a nenhum clã eram consideradas terras comuns

68
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

ou “agar publicus”, que poderiam ser ocupadas por um clã mediante “posse” ou “possessio”

(posse). A principal atividade dos clãs era a criação do gado, “pecus”, que constituía sua

mais importante riqueza, “a pecunia”. A estrutura da sociedade em clãs exprimia-se tam-

bém militarmente.

Todos os adultos de cada clã, capazes de portar armas, deveriam participar das guerras

promovidas por Roma que, além da defesa contra os ataques de outras gentes, visavam,

sobretudo, a apoderar-se de seu gado, de seus bens e de suas terras, impor-lhe pesados tribu-

tos em espécie e trabalho. A guerra estava, portanto, no centro da atividade econômica de

Roma.

A coesão interna dos clãs assentava-se numa concepção de “fraternidade” fundada no

mito de um ancestral comum, cujo culto está na origem das práticas religiosas do clã, de

seus deuses e deusas e entes divinos. A identidade de cada clã era dada pelo nome comum

portado por cada membro do clã: os júlios, os cipiões, os cornélios, os otávios, etc. (Diacov;

Covalev, 1965, p. 654-655).

A estrutura social, política e militar de Roma organizava os clãs ou famílias em três tribos:
Tities, Ramnes e Luceres. Cada tribo compreendia dez cúrias [...], cada cúria, dez decúrias. Esta
divisão simples respondia às necessidades do recrutamento de tropas. Cada tribo contribuía com
mil soldados de infantaria e cem cavaleiros. A divisão política da cidade correspondia a esta
organização militar... A assembléia da cúria aprovava por aclamação as propostas do rei. Os
chefes das gentes constituíam o senado e auxiliavam o soberano com seus conselhos nas questões
graves (Bloch; Cousin, 1964, p. 42).

Esta estrutura social muito primitiva já deixa entrever a divisão da sociedade em clas-

ses, que se irão antagonizar ao longo da História: de um lado, os patres e suas famílias que

darão origem à aristocracia romana ou os patrícios e, de outro, a plebe, as frações sociais

das gentes e tribos que foram sendo excluídos do poder, das partilhas da guerra, das terras e

escravos. Eles vão constituir a plebe romana que, segundo Bloch, incorporará também os

descendentes de povos vencidos, ou estrangeiros excluídos dos cultos da cidade ou ainda

camponeses caídos numa semi-servidão imposta pelos grandes proprietários (Bloch; Cousin,

1964, p. 42).

69
EaD Din art e Belat o

Esta estrutura de classes está também na origem, seja da permanente tensão e pressão
política dos plebeus, seja da imperiosa necessidade de incluí-los nos benefícios sociais, sem
que os patrícios abdiquem de seus privilégios. O modo como Roma resolveu essa permanen-
te contradição foi a guerra externa. A guerra externa, de expansão, de busca de riqueza,
deslocou o conflito de classes para a guerra de conquista. É por isso que Roma não poderá
jamais renunciar à guerra. A guerra é sua condição de existência. O Império Romano irá
acabar quando não for mais capaz de levar as guerras civis que explodiam o tempo todo
para fora das suas fronteiras.

As guerras de Roma dirigem-se, inicialmente, a três objetivos: o primeiro, tomar as


terras dos etruscos ao longo do curso baixo do Rio Tibre; o segundo, a contenção das inva-
sões gaulesas vindas do norte e, finalmente, a dominação dos povos latinos e sua incorpo-
ração aos territórios de Roma.

A segunda fase das conquistas completa o domínio do território da península median-


te a submissão da Etruria e de toda sua parte leste. São incorporadas as colônias gregas de
Tarento, Crotona e Reggio.

A terceira fase, que dura mais de um século, é a guerra quase ininterrupta de conquis-
ta dos territórios fenícios, cujo centro político é Cartago. São as célebres guerras púnicas. A
última guerra terminou em 146 a.C., com a completa destruição de Cartago. O saldo das
guerras contra Cartago foi a redução à condição de províncias romanas, a Sicília, a Sardenha
e a Córsega, bem como o norte da África, o que conferiu aos romanos o controle dos mares
Adriático, Jônico e Tirreno.

Esta posição estratégica de Roma sobre o Mediterrâneo abre-lhe o caminho para a


conquista dos territórios a oeste e, sobretudo, das grandes civilizações a leste: Grécia,
Anatólia, Síria, Pérsia e Egito. Roma começou a pôr em prática o sonho de reconstruir o
império de Alexandre.

A quarta fase de expansão, a fase externa propriamente dita, realiza-se inicialmente


em duas frentes: a ocidental e a oriental. Na frente ocidental, Roma conquista a Península
Ibérica ao derrotar os celtiberos e os lusitanos. Logo a seguir submete o sul da Gália, onde
se situavam antigas colônias gregas e fenícias. Completa-se, desta forma, a conquista do
Mediterrâneo ocidental.

70
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Os romanos iniciam a conquista do Oriente: ocupam a Macedônia e a Grécia (o reino


da Macedônia) e, a seguir, a Síria (o reino dos Lágidas, cuja capital era Antioquia) e, final-
mente, o Egito, o reino dos Ptolomeus, cuja última rainha foi Cleópatra VII. Todas as por-
ções do Mediterrâneo e do Mar Negro estão agora sob o poder de Roma. Os três reinos em
que se dividiu o império de Alexandre – Macedônia e Grécia, Síria e Babilônia e Egito – são
províncias romanas.

A expansão, contudo, não pára. E as guerras de conquista prosseguem: no fim da Repú-


blica, no último século antes de Cristo, Roma conquista a Gália, um gigantesco território
situado entre a Espanha e os eixos dos Rios Reno e Ródano. As conquistas prosseguem com a
vitória sobre os gauleses/celtas do vale do Rio Pó (a chamada Gália Cisalpina) e todos os
territórios a leste do Rio Reno e ao sul do Danúbio até sua desembocadura no Mar Negro.

Foram submetidas também as Ilhas Britânicas, a Bretanha, a Escócia e a Irlanda. O impé-


rio em sua expansão foi detido por duas razões fundamentais: na Europa Central, a leste do
Reno e ao norte do Danúbio, pela resistência eficaz dos povos germânicos e as extensas flores-
tas que cobriam a região. Foram obstáculos que os romanos não foram capazes de superar. A
leste dos Rios Tigre e Eufrates os povos chamados partas derrotaram os romanos quando inten-
taram submetê-los. Estava assim fechado o caminho para a Ásia Central e para a Índia.

O segundo tipo de obstáculo é de ordem natural: por um lado, o deserto do Saara que
interrompe com suas areias o avanço romano e, por outro, a oeste, o grande mar, o Atlânti-
co. Para navegá-lo será preciso aguardar mais mil anos, quando as naus portuguesas e
espanholas se atreverão a devassá-lo em todas as direções com suas caravelas e galeões.

Seção 2.4

Os Frutos da Guerra

As guerras entre os povos itálicos visavam à expropriação das terras, do gado e dos

bens dos vencidos e escravos, que constituíam o espólio ou o butim. A distribuição do butim

e das terras não era igualitária. Famílias mais poderosas apropriavam-se de mais terra, bens

71
EaD Din art e Belat o

e escravos. E as diferenças sociais cresciam continuamente, gerando tensões muito violen-


tas que conduziram a reformas sociais e à busca de novos equilíbrios sem que se tocasse
efetivamente nos privilégios de uma classe restrita que se nobilitou e enriqueceu.

Foi numa dessas reformas que emergiu a plebe como sujeito político e militar e os
clientes, que compreendiam a massa de indivíduos desenraizados, romanos, latinos ou de
outros povos subordinados que passavam à esfera do poder de um patrício.

As tensões, porém, sempre podiam ser resolvidas, externalizando-as por meio de guerras:

As conquistas eram, antes de tudo, vantajosas para os patrícios e os plebeus ricos, porque lhes
dava oportunidade de apoderar-se da terra dos povos conquistados. Entretanto, como parte da
terra também caía em mãos dos plebeus pobres, o campesinato romano ia com prazer à guerra...
Foi possível, então, em menos de dois séculos, conquistar toda a Itália (Michulin, 1963, p. 154).

Dessa forma, na mesma medida em que a guerra resolvia os conflitos internos, jogava-
os a um outro patamar, que se resolvia com novas guerras, expandindo suas conquistas em
todas os rumos. E, como observam Franco Júnior e Chacon (1980), as conseqüências foram
muito significativas, não só sociais, políticas e culturais, mas, sobretudo, econômicas:

Apoderando-se de regiões bem mais ricas que a Itália de então, como Cartago e Ásia Menor, os
romanos, por meio de saques e indenizações devidas pelos vencidos, canalizaram para a penín-
sula imensos capitais: a primeira guerra cartaginesa (264-241 a.C.) proporcionou mais de 26
milhões de denários (moeda de prata que valia dez asses. Cada asse pesava 327 gramas)
(Bornecque; Mornet, 1976, p. 140).

A segunda Guerra Púnica (218-202) rendeu 60 milhões de denários. A conquista da Ásia Menor
(74-63 a.C.) rendeu mais de 188 milhões de denários em indenizações de guerra. As minas de
Cartagena (outrora sob domínio cartaginês) rendiam oito toneladas anuais de prata (Franco
Júnior; Chacon, 1980, p. 51).

Os romanos impunham as indenizações imediatamente após a derrota dos exércitos


inimigos. A exploração, porém, não terminava aí: uma parcela da população era vendida
como escrava, as terras eram expropriadas e distribuídas entre os patrícios, que as arrenda-
vam aos vencidos, ficando estes obrigados a pagar rendas anuais elevadas. Quando os ro-
manos desejavam consolidar as conquistas, destinavam partes importantes das terras dos
vencidos para assentamento de soldados e colonos.

72
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Considerando as indenizações, os impostos cobrados e o aluguel das terras ocupadas, calculou-


se para a primeira metade do século II a.C., uma renda aproximada de 500 milhões de denários.
Dessa maneira, Roma se tornou importante praça financeira, pois nenhuma cidade concentrara
antes, no mesmo grau, a maior parte das riquezas existentes em tão vasto raio (Franco Júnior;
Chacon, 1980, p. 51-52).

Tamanha riqueza deu origem a um complexo sistema monetário e a um organizado sistema ban-
cário voltado a operações públicas, visando à arrecadação de impostos e seu encaminhamento ao
erário do Estado e a operações de empréstimo, financiamento e constituição de empresas por
“ações” ou “partes”, como as denominavam os romanos (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 52).

As conquistas criaram um gigantesco mercado onde estava bem marcada uma inédita

divisão internacional do trabalho:

[...] cada região especializou-se em um ou mais produtos [...]. O Egito, a África do Norte e a
Sicília eram grandes produtores de trigo; a Itália e a Grécia, de vinho e azeite; a Espanha, de
minérios; a Ásia Menor e a Itália, de gado; a Síria e a Gália, de manufaturados [...] (p. 52).

Essa divisão internacional do trabalho, ao romper os sistemas regionais auto-suficien-

tes, propiciou um enorme desenvolvimento do comércio. Dispomos de alguns números: Roma

consumia em torno de um milhão e meio de toneladas de trigo por ano, das quais 500 mil

toneladas vinham do Egito, 300 mil do norte da África e 200 mil da Sicília.

Além do intenso comércio entre as diversas províncias romanas, havia grande inter-
câmbio entre a Itália, exportadora de vinho, azeite, lã, cerâmica, objetos de metal, e as

demais regiões, das quais importava, além de trigo, cobre, estanho, chumbo, prata, da

Espanha; madeiras da Ásia Menor e Síria; peixe salgado do Mar Negro e da Espanha, quei-

jo e manufaturados da Gália e objetos de luxo (jóias, perfumes, sedas, porcelanas, especia-


rias) da Arábia, Sudão, Índia e China (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 52-53).

Tamanha divisão do trabalho e do sistema de trocas que implicava, atingia duramente


as populações que viam seus modos de vida e de trabalho destruídos. Os pequenos proprietá-

rios da Itália, por exemplo, foram atingidos por três calamidades simultâneas: seus lotes de

terra muito pequenos e, em geral, pouco férteis, eram continuamente pressionados pelos lati-

fúndios da nobreza que não paravam de crescer; esses grandes proprietários compravam es-
cravos baratos e em grande quantidade, baixando dramaticamente os custos de produção.

73
EaD Din art e Belat o

A ruptura dos sistemas de produção locais auto-suficientes obrigava esses campone-

ses a comprar quase tudo. Eles não tinham dinheiro para tal. Contraíam empréstimos, endi-

vidavam-se e acabavam perdendo as terras. Aos poucos, a pequena propriedade desaparece.

Os camponeses migravam para as cidades, onde acabavam sendo alimentados pelo governo

(pão e circo) quando não estavam engajados em guerras.

A guerra seguiu sendo uma solução indispensável para evitar que multidões de

expropriados ensejassem guerras civis destruidoras. Em meados do século 1º a.C. Roma

tinha 200.000 pessoas nestas condições (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 53). A aristo-

cracia romana em suas disputas internas pelo poder, ganhava o apoio dessa massa, tan-

to para buscar aí os soldados quanto para as disputas eleitorais na busca de cargos

estratégicos no Estado. Júlio César, por exemplo, ganhou o apoio dessa massa quando

se fez nomear chefe do abastecimento de Roma e promotor de jogos, festas e banquetes

públicos.

As guerras de conquista deram a Roma uma gigantesca fonte de riqueza: a redução à

escravidão de populações vencidas. Temos alguns números reveladores: na primeira Guerra

Púnica (264-241 a.C.), 20.000 prisioneiros foram vendidos como escravos. Nessa guerra

Cartago perdeu a Sicília, a Córsega e a Sardenha e pagou pesada indenização (Michulin,

1963, p. 160-163).

Na terceira Guerra Púnica (140-146 a.C.) Cartago foi definitivamente vencida. Trinta

mil homens e vinte e cinco mil mulheres foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos.

A conquista da Grécia, em 146 a.C., rendeu 150.000 escravos. A máquina de guerra mostra-

va-se cada vez mais eficiente. Supõe-se que de meados do século 3º a meados do século 2º

a.C., a Itália tinha recebido algo como 2,5 milhões de escravos. Acredita-se também que no

tempo do imperador Otávio Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) Roma deveria ter 3 escravos para

cada 5 livres (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 53-54).

74
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Economia do Império Romano

Fonte: Franco Jr.; Chacon (1980, p. 60)

Seção 2.5

A Política: uma aristocracia que jamais cede o poder e a riqueza

Ao longo da história de Roma, em nenhum momento as camadas populares alcança-


ram avanços sociais e políticos comparáveis aos que foram conquistados pelo povo de Ate-
nas e pelo de muitas outras póleis. Por quê?

A resposta é complexa. Precisamos lembrar o que vimos no item anterior: a guerra foi

um fator de permanente externalização dos conflitos internos. A aristocracia romana, em-


bora tenha feito concessões à plebe e às camadas subalternas mais pobres, em nenhum
momento perdeu o poder e as bases sobre as quais se assentava: o controle do Estado e de
seus órgãos, o poder de ministrar a Justiça e promulgar a lei, o controle absoluto do Senado
enquanto instância política e legislativa.

75
EaD Din art e Belat o

Quando fez concessões muito significativas, como quando a plebe se rebela e sob
ameaça das armas impôs reformas, a aristocracia cooptou uma parcela dessa camada, a
converteu em “cavaleiros” e, logo após, em “cavalheiros”.

A organização política das camadas mais pobres da sociedade e sua redução à condi-
ção de clientes das várias frações do patriciado impediram que tomassem consciência de si
como fração de classe. Foram permanentemente o núcleo mais estável de apoio às mano-
bras das elites. A desqualificação da plebe romana à condição de fração dependente das
políticas de pão e circo, e das guerras do Estado romano, neutralizou para sempre sua capa-
cidade política e sua consciência de classe.

Um episódio mostra o quão dramático pode tornar-se essa incapacidade política da


plebe. Em 122 Caio Graco foi eleito tribuno, o que lhe conferiu amplos poderes de governo e
de iniciativa da lei. Ele propôs à assembléia popular um projeto de lei que concedia direitos
de cidadania aos aliados de Roma. Na prática, estendia às camadas populares de toda a
Itália o direito de cidadania e beneficiava diretamente todos os camponeses da península
que, dessa forma, poderiam requerer lotes de terra para suas famílias.

A assembléia popular não apoiou o projeto porque não queria compartilhar sua “situa-
ção privilegiada” com os demais povos da Itália. Caio Graco viu-se obrigado a retirar o proje-
to, não obteve o apoio para se reeleger no ano seguinte e acabou assassinado por tropas do
Senado. Foi decapitado e seu corpo jogado no Rio Tibre (Michulin, 1963, p. 180-181).

2.5.1 – AS ESTRUTURAS POLÍTICAS

Voltemos às origens remotas de Roma. A sociedade compunha-se de comunidades or-

ganizadas segundo um modo arcaico e fechado, chamadas “gentes” (singular: gens).

A gens define-se como um agregado de famílias ligadas pela crença mítica num ancestral comum.
Todos os membros do grupo, os “gentiles” têm o mesmo nome, embora entre eles não hajam
vínculos de consangüinidade. Submetida à autoridade do chefe (pater) a comunidade gentílica é
proprietária dos meios de subsistência (terras coletivas e butins), conserva as tradições religiosas
(cultos e sepulturas gentílicas) e garante a segurança jurídica. A justiça interna é constituída de
“decretos gentílicos” promulgados e acumulados ao longo do tempo. Os conflitos externos são
regulados segundo a lógica da guerra privada até o surgimento do Estado (Humbert, 1984, p. 174).

76
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

É impensável e socialmente impossível a existência isolada, fora da estrutura gentílica.


Uma pessoa ou família sem esses vínculos pode ser morta, ninguém irá vingá-la. Nessas
sociedades o indivíduo não existe, não é um ente social.

As gentes aos poucos diferenciam-se internamente e parcelas de seus membros são


mantidas em sua estrutura de forma subordinada. São os clientes. Sua existência indica, de
um lado, o poder que se vai concentrando na mão de uns poucos e que se intitularão “patres”
que, como coletivo de gentes, constituirão a classe dos patrícios ou nobreza, aristocracia.

Cliente, que deriva do verbo cluere, e que significa obedecer, é um indivíduo livre que
se colocou, voluntariamente, e em confiança, sob a “patronagem” de um membro de uma
gens. O vínculo, constituído pelo compromisso bilateral, é hereditário e recíproco. O cliente
deve ao patrão (ou senhor) dias de trabalho, obediência, respeito e serviço militar. O patrão
garante ao cliente segurança e proteção jurídica. O costume e a regulação posterior conde-
nam à morte a violação do vínculo de clientela.

O vínculo sacraliza-se e apesar da evolução da vida política romana, ele não se enfra-
quecerá. Perpetuar-se-á como um trunfo insubstituível das famílias romanas poderosas em
suas disputas políticas e eleitorais. Permanecerá hereditário e recíproco. Em resumo, ele
perpetuará vigorosamente as solidariedades pré-cívicas (Humbert, 1984, p. 173-175).

Essas famílias poderosas formam muito rapidamente um coletivo, certamente o ances-


tral do senado, e elegem um dos seus como rei, com mandato anual, findo o qual o poder
retorna ao conselho. Os “patres põem novamente o governo (res) em comum. De sorte que,
a autoridade real, os auspícios sobre as comunidades gentílicas é uma emanação provisória
do poder inalienável dos patres” (Humbert, 1984, p. 176-177). Em outras palavras, o poder
jamais escapa da esfera da classe dominante.

O conceito de “auspício”, fundamental no Direito Público romano, exprime o poder


de entrar em contato com os deuses para obter deles sua concordância, antes de tomar uma
decisão pública. Empreender uma guerra, ordenar o combate, convocar uma assembléia,
nenhuma decisão é válida sem a aprovação dos deuses (p. 177). É por isso que em Roma o
poder político guarda uma função sacerdotal. O imperador romano é, ao mesmo tempo,
sumo pontífice, isto é, aquele que liga permanentemente o povo romano aos deuses.

77
EaD Din art e Belat o

A estrutura organizativa de tipo gentílico estabelece com clareza a fratura da socieda-


de entre os “patres” e os “clientes”. Ela define as relações de fundo que atravessam séculos,
mas por ser uma estrutura arcaica, não dá conta de uma realidade social e evoluirá para
formas mais complexas, como as guerras. Para esse fim a sociedade, como vimos, se organi-
zou em tribos que, por sua vez, são formadas de dez “cúrias”. A cúria, que os gregos chama-
vam “fratria”, organiza a “fraternidade de combate” ou coletivo de combate ou, em latim,
“co-viria”, literalmente “homens-junto” ou “unidos”.

O que pertence a uma “cúria” recebe o epíteto de “quirites”, isto é, o romano por
excelência, aquele que se distingue do escravo, do latino, do estrangeiro. A mim parece que
aqui se encontra uma das poderosas razões da permanência e da reprodução do poder da
aristocracia romana: todos são ou clientes ou patres e nisto são ao mesmo tempo diferentes
e amarrados por vínculos sacralizados. Já ser quirite, epíteto que se atribui a todos os roma-
nos e só a eles, dilui a crueza da diferença entre patrícios e clientes/plebeus.

De sorte que as relações designam o que a sociedade romana engendra desde seu
nascimento e que perpetuará até sua decadência, mas que acabam se escamoteando du-
plamente: de um lado, pelo vínculo sagrado de senhor-cliente e, de outro, pela condição
comum de quirite. Como observa com justeza Humbert (1984, p. 179), “Mas a assembléia
das cúrias ou comícios curiatos é dominada pela ascendência dos chefes das gentes.” E
acrescenta: “o poder, soberanamente, pertence aos chefes das gentes” (p. 179).

Roma parece conter em germe sua evolução futura:

Em fins do século 7 a.C., quando Roma nasce, a aristocracia dos patres já domina a organização
(pré)cívica e a realeza que ela criou. No conselho federal (da federação dos povos latinos) ela
garante a vitória do princípio de hereditariedade: a composição do conselho tende a excluir
todos os que não pertençam à fração da aristocracia. Tenderá também ampliar seu poder apro-
priando-se das funções sacerdotais, atribuindo-se o direito exclusivo de nomeá-los (ou ordená-
los). Esta mesma autocracia, rica em terras e em clientes, apropria-se dos comandos do exército,
pois é dela que advém a “milícia sagrada” dos cavaleiros (Humbert, 1984, p. 178-179).

Temos aí, claramente, o nascimento da nobreza (ou aristocracia) romana, que deu a si

mesma o nome de “patres”, agora dá a si mesma o nome de “patrícios” ou descendentes ou

nascidos dos patres.

78
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Seção 2.6

Nasce a Cives Romana ou o Estado Romano

A evolução das estruturas gentílicas e curiais dos romanos recebe um impacto a partir
do momento em que os etruscos passam a dominar os romanos. Eles impuseram suas estru-
turas políticas e, sobretudo, uma temporária expropriação do poder da aristocracia romana.

A monarquia etrusca imposta a Roma funda-se no conceito de “imperium”, isto é,


num poder pessoal do rei, civil e militar, poder total, sem apelação, soberano. A ele cabe o
poder de coerção, de vida e morte. Os símbolos de seu poder: o manto púrpura, o cetro
encimado por uma águia e uma coroa de folhas de ouro, que o patriciado romano conserva-
rá de bom grado e os imperadores adotarão como signos de seu poder.

A aristocracia romana que se vê frente ao poder etrusco despojada de seus poderes, vai
custar para reavê-los. A monarquia etrusca, porém, ameaçada pela aristocracia, irá buscar
apoio nas camadas subalternas e, inspirada nas reformas de Sólon e do tirano Pisístrato,
encaminhará reformas significativas, entre elas a formação de um poder que emana de uma
massa cívica homogênea e equilibrada, que a aristocracia vê como ameaça a seu poder.

As reformas, sob inspiração de Sólon e Pisístrato, dão ao patriciado um outro lugar e


outra legitimidade, o direito de governar porque constituem a porção mais rica da socieda-
de, ou o governo dos ricos, ou timocracia. Em Roma, Sólon não conduz à Clístenes e a
Efialte e Péricles, pois a nobreza não estava disposta a ceder tanto. Livra-se da dominação
etrusca, livra-se da monarquia e cria um regime político pelo qual poderia fazer concessões
sem ceder o poder, a República, que nada mais é do que um regime oligárquico do patriciado
que, rapidamente, verá surgir um poder contestatório, a plebe.

Ela se insurge contra a aristocracia, rejeita seu poder e leva à tensão extrema da rebe-
lião. A plebe foi vitoriosa nos confrontos, mas não conseguiu reter o poder conquistado por
muito tempo. Uma parcela da plebe enriquece e conquista o estatuto de cavaleiros e se
nobilita pela riqueza, convertendo-se em cavalheiros, isto é, em nobres. As conquistas ro-
manas da Itália, a partilha de terras e da riqueza com plebe e clientelas, desaquecem as
lutas populares e seus avanços políticos.

79
EaD Din art e Belat o

Quando o regime republicano entra em crise não são as camadas populares, a plebe e
os clientes que formulam as soluções. São as elites que tomam a iniciativa e resolvem os
problemas impostos pela expansão das conquistas mediante uma disputa interna violenta,
na qual as camadas populares participam como massa.

E como nesta disputa não há um tertius a luta intra-elites leva inexoravelmente ao impé-
rio. E o império, nós já sabemos, é um poder absoluto de uma classe social. As frações da nobre-
za que lutam pelo poder imperial precisam da plebe e dos clientes, mas eles não participaram da
partilha do poder e da riqueza que o império acumulou em proporções jamais vistas até então.

É a vitória final da aristocracia romana. E a sua vitória foi de tal forma absoluta que
não gerou no seu momento de crise nenhuma força popular criadora. E o império morreu
nas mesmas mãos que deram o impulso expansivo da sociedade romana antes mesmo de seu
surgimento como Estado.

Ninguém melhor do que Cícero, um dos intelectuais mais brilhantes de Roma, resumiu
a história política e militar das elites romanas, imitadas aliás até hoje em suas estratégias e
guerras imperialistas: “Roma jamais foi à guerra que não fosse para garantir sua defesa (pro
salute) e socorrer seus aliados injustamente agredidos (pro fide)” (Laelius apud Cícero, 1999,
3, 34; apud Humbert, 1984, p. 237).

Seção 2.7

Os Eixos Históricos de uma Classe Predadora: o butim e a glória

Três eixos de força alimentaram por um milênio uma classe violenta e predadora: a
aristocracia romana – praeda, cupido gloriae et maiestas populi romani (espólio ou butim,
busca desenfreada de glória e exaltação do povo romano):

– A busca do butim – praeda, em latim – é um dos móveis centrais das guerras romanas. E atraía
todas as frações da sociedade. O Estado romano ao se apropriar das indenizações de guerra do

Oriente, trazidas pelo cônsul Manlius Vulso, em 187 a.C., paga a dívida colossal (25 anos de

soldo) que o governo devia aos banqueiros romanos contraída na guerra contra Hanibal.

80
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Os magistrados, os generais, usam os gigantescos lucros das guerras para construir


monumentos em seu louvor e em homenagem ao povo romano. As guerras vencidas legitima-
ram a pilhagem, velho método de recompensa dos soldados. Compreende-se porque jamais as
assembléias populares votaram contra uma declaração de guerra proposta pelas elites.

Há, porém, uma exceção a essa prática, que foi a votação pela guerra da Macedônia.
O povo opõe-se, mas os voluntários em massa se prontificaram a atender o apelo dos gene-
rais. A campanha foi um sucesso. Só em escravos o saldo foi de 150.000 pessoas... E, quanto
mais o recrutamento foi perdendo apoio popular, tanto mais cresceram as promessas de
pilhagem ou butim. Hoje não podemos esquecer dos negócios que dependem da guerra:
fabricantes de armamentos e todo o tipo de fornecedores militares: transporte terrestre e
naval, infra-estrutura, alimentos, vestuário...

– A busca da glória, ou os bens simbólicos que a guerra traz a seus participantes, o que os
romanos chamavam de cupido gloriae.

A guerra é indispensável à glória dos aristocratas que dependem do sucesso militar para a
realização de uma notável carreira política. O magistrado é antes de mais nada um chefe: não é
a ciência do direito nem o domínio da filosofia que forma o estadista romano, mas as campanhas
militares que ele for capaz de conduzir vitoriosamente. O que importa é ser “imperator ” (saber
mandar) e não (só) ser “orator ” (saber falar). A cultura e a civilização romana são em seu núcleo
belicistas. Sem guerra não há civilização romana. Todos os heróis romanos, sem exceção, são
heróis guerreiros (Humbert, 1984, p. 239).

Conservou-se um refrão que indica bem este espírito de guerra. O Senado teria orde-
nado ao general Vitelio que partisse para a guerra contra os bárbaros: i Vitelli dei romani
sonno belli: vai Vitelio ao soar dos clarins do deus da guerra dos romanos.

– A magnificência do povo romano, ou a vontade de poder é um dos traços profundos da


mentalidade coletiva do povo romano. As preces, mesmo as mais solenes, não pedem aos
deuses paz e segurança nas fronteiras do império, mas a subjugação dos inimigos de
Roma. Os sacerdotes romanos suplicam aos deuses que tornem os romanos e seu império
mais forte e mais vasto (ut populi Romani res meliores et ampliores facerent) ou ainda mais
fortemente: “[...] que os deuses da cidade se dignem, na guerra e na paz, aumentar o
poder (imperium) e a superioridade (majestas) do povo romano” (Humbert, 1984, p. 238-
239). A guerra é, portanto, uma bênção dos deuses.

81
EaD Din art e Belat o

Seção 2.8

Os Deuses Romanos

Os romanos, como os demais povos antigos, são profundamente religiosos. Seus deu-

ses e deusas desempenham, na vida cotidiana das famílias e do Estado, uma multidão de

tarefas que se assemelham à divisão social do trabalho da sociedade. Havia deuses privados
e deuses públicos: deuses tutelares das famílias e das pessoas e deuses tutelares do Estado,

aos quais correspondiam práticas e cultos privados e cultos públicos.

A família tem seu culto prestado no interior da casa pelos membros de uma mesma família.
Consiste essencialmente na adoração das almas dos antepassados falecidos, em primeiro lugar,
do “lar familiaris”, alma do fundador da família, que se tornou gênio protetor da casa – e dos
“manes”, que são as almas dos demais antepassados (Bornecque; Mornet, 1976, p. 67).

Para os romanos, os mortos continuam junto aos vivos, participam de sua vida e têm

um lugar central na casa, onde são cultuados, que se chama “Lararium”, santuário domés-

tico. O culto doméstico é presidido pelo pai (pater famílias) e nesta condição ele exerce a

função de sacerdote.

Por meio de oferendas, de sacrifícios e de preces cotidianas, ele atrai a proteção dos

deuses. Se, porém, o morto é esquecido ou seu culto negligenciado ou se ele tiver cometido

grandes crimes, sua alma volta como fantasma ou assombração para atormentar seus des-

cendentes (Bornecque; Mornet, 1976, p. 67), ou mais comumente sob a forma de vermes ou

“larvas”. Para expulsar estas almas o pai de família, de pés descalços, percorria a casa ati-

rando favas pretas e batendo num vaso de bronze (p. 68). No altar onde o sacerdote fazia as

oferendas havia o fogo sagrado, símbolo e presença dos deuses ou dos “lares”. É daí que

deriva, para as línguas neolatinas, a palavra “lar ”, com conotações de fogo (lareira), de

família (lar doce lar), de intimidade.

Havia também, no espaço da família, o culto aos deuses chamados “penates”, encar-

regados de cuidar do abastecimento de tudo o que a família necessitava, especialmente os

alimentos e as bebidas consumidas diariamente.

82
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

A intimidade com que os romanos se relacionavam com as divindades exprimia-se na


sua multiplicidade e no detalhamento das tarefas a eles atribuídas. A casa era protegida
pelos deuses do lar e dos penates, bem como por “Fórculo”, que guardava a porta, os gonzos
(ou dobradiças); Limentino, a soleira da porta (ele guardava a linha que separava o exterior
do interior da casa). ”Limem” em latim significa limite, fronteira. A infância merecia o tra-
balho de muitos deuses: o Deus Vaticano fazia o recém-nascido soltar o primeiro choro;
Rumina o ensinava a mamar; Educa e Potina ensinam a criança a comer e beber; Estatino,
a ficar em pé; Abeona e Adeona a caminhar e Fabulino, a falar.

Os deuses e os gênios continuavam a proteger o homem nas demais fases de sua vida
e, freqüentemente, o comportamento individual era visto como manifestação do seu gênio
tutelar: por exemplo, pessoa de gênio bom, amável, afável ou, ao contrário, um gênio
irritadiço, inquieto. O gênio participava da vida, das alegrias e tristezas de seu tutelado a
ponto de um se confundir com o outro. A pessoa acabava sendo seu próprio gênio.

Outras divindades tomavam conta de atividades produtivas importantes como: Bubona


cuidava dos bois; Epona dos cavalos; Pales dos carneiros; Flora das flores e das espigas de
trigo; Matuta do amadurecimento das espigas; Robigo combatia a ferrugem (Bornecque;
Mornet, 1976, p. 70-71).

A conclusão impõe-se: os romanos e os gregos, embora de forma distinta dos orientais,


egípcios, mesopotâmicos e judeus, são muito piedosos e as práticas religiosas os acompa-
nham a cada passo. Vejamos, a seguir, como os romanos codificaram suas principais práti-
cas religiosas:

– Voto: oração ou compromisso dirigido aos deuses em busca de sua proteção ou de algum
benefício.

– Suplicações: rito de origem grega que consiste em prostrar-se diante da estátua de um


Deus e em beijar-lhe as mãos, os joelhos e os pés. É um ato de agradecimento à divindade
por algum benefício ou graça alcançada ou para pedir um favor.

– Sacrifício: é o mais importante ato religioso. Oferece-se à divindade um animal ou um


produto da terra. O animal chama-se “victima” se for grande, um boi; se for pequeno,
uma ovelha, ou se for produto da terra – trigo, farinha, pão, vinho, azeite – chama-se

83
EaD Din art e Belat o

“hostia”. Os sacrifícios são na verdade banquetes públicos porque apenas uma parcela

muito pequena das oferendas é queimada – alguns miúdos dos animais ou pequenas

porções dos vegetais. O restante é distribuído e consumido pelos participantes.

– Purificação ou lustração: consiste em conduzir três vezes um cortejo processional (pom-

pa) ao redor da assembléia ou da(s) casa(s) que se quer purificar. A cerimônia termina

com a recitação das orações e o sacrifício de um novilho, um touro, um porco e uma


ovelha, seguidos do banquete. Pessoas ou coisas purificadas ou submetidas à lustração

tornam-se ilustres ou puras.

– Libações: consistem em despejar em honra da divindade vinho misturado com água. A

água utilizada devia vir de uma fonte, às vezes purificada pela adição de sal ou mergu-

lhando-se nela tochas acesas. A água, desta forma, torna-se lustral, ou pura. Nestas
ocasiões oferecia-se à divindade também comidas: mel, bolos (liba), especialmente pro-

duzidos para tal fim.

– Os jogos públicos, que os romanos copiaram dos gregos, eram na verdade grandes festas

populares em homenagem aos deuses. Para este fim, os romanos construíram grandes
praças esportivas como o Coliseu, as arenas e os circos.

Havia uma grande variedade de cultos dedicados a deuses tutelares próprios de um

grupo privado, de um coletivo, por exemplo, de carpinteiros, de ferreiros, sapateiros, de co-


merciantes. E havia os cultos públicos, do Estado, denominados “sacra pública”, cujo altar
e fogo sagrado estavam no capitólio, centro oficial do culto.

Aí eram venerados os “lares do Estado”, isto é, os fundadores míticos de Roma: Rômulo


e Remo e os Penates públicos que cuidam do abastecimento da cidade. Os deuses tutelares

do Estado não se resumiam a esses. Seu número foi se ampliando, sobretudo com a incorpo-
ração dos deuses gregos e do Oriente: do Egito e da Pérsia:

– Carmenta, deusa das fontes e depois da predição;

– Ceres (a Demeter dos gregos), deusa que preside o nascimento e o crescimento dos frutos

da terra (dela deriva a palavra “cereal”);

84
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

– Diana (em grego, Ártemis), protetora dos campos e das florestas, deusa da caça;

– Fauno (em grego, Pã), deus dos animais;

– Flora, deusa das flores;

– Jano, Deus do dia, ele abre a porta (janua) do céu, dela fazendo surgir a luz pela manhã e

fechando-a no fim do dia. Ele é representado com dois rostos;

– Juno (em grego Hera), esposa de Júpiter e protetora das mulheres. Deusa nacional do

povo romano;

– Júpiter (Zeus, em grego), o mais poderoso de todos os deuses, Deus da luz, do raio e do
trovão. Deus tutelar máximo do povo romano, juntamente com Juno e Minerva. Os jura-

mentos eram feitos invocando seu nome;

– Líber (em grego, Baco ou Dionísio), Deus da vinha, do vinho, Deus da festa e dos “bacanais”;

– Marte (em grego, Ares), Deus da guerra, pai de Rômulo e Remo, por isso é considerado pai
divino dos romanos;

– Mercúrio (em grego, Hermes), Deus do comércio, das estradas, dos mensageiros;

– Minerva (em grego, Atena), deusa da inteligência, deusa tutelar das profissões liberais e
das escolas;

– Netuno (em grego, Poseidon), Deus das águas, dos mares e dos exercícios eqüestres;

– Plutão ou Orco (em grego, Hades), Deus que habita embaixo da terra, nos “infernos” para
onde vão as almas dos mortos;

– Pales, protetora dos pastores e dos rebanhos;

– Pomona, deusa protetora dos frutos (daí deriva a palavra “pomo”, que nas línguas neolatinas

virou sinônimo de maçã);

85
EaD Din art e Belat o

– Prosérpina (em grego, Perséfone), mulher de Plutão;

– Quirino, um dos nomes de Marte. Este era também o nome de Rômulo;

– Saturno (em grego, Cronos), Deus das sementes e da cultura;

– Tellus, Deus das sementes e das colheitas (daí deriva a palavra telúrico);

– Vênus (Afrodite), deusa do amor;

– Vesta, deusa do fogo doméstico;

– Vulcano (Efesto), Deus do fogo (Bornecque; Mornet, 1976, p. 68-69).

Entre todos esses deuses e outros que os romanos ainda incorporaram a seu panteão,

os principais, aqueles que constituíam os deuses públicos, os deuses tutelares do Estado,


estão os seguintes: Júpiter, Marte e Quirino, Jano, Vesta, Juno e Marte. Estes são os princi-

pais protetores ou tutelares do povo romano. O Sol e a Lua eram deuses muito reverencia-

dos. Os bosques estavam cheios de “faunos” e de “silvanos”; as fontes cheias de ninfas.

Certos atributos ou eventos poderiam assumir a forma divina, como paz, vitória, fortuna...

Passaram também a fazer parte do panteão romano os seguintes deuses gregos: Apolo,

as nove musas, Cibele, Hércules (Heracles). Foram incorporados, no império, as divindades


egípcias Ísis e Serapis, e Mitra, da Pérsia. As influências religiosas e políticas orientais abri-

ram o caminho para a divinização dos imperadores e da instituição de seus cultos. Para tal

fim edificavam grandes templos chamados “basílicas”, em que sua estátua recebia os cultos

e adoração.

Os imperadores, além de se tornarem deuses, eram sumos sacerdotes, ou “pontífices”,

isto é, são deuses que ligam o império a todos os demais deuses, são a ponte e a mediação
entre o “céu e a terra”. Nesta função “pontifical” os imperadores tornam-se, a partir de

Otávio, “Augustos”, ou seja, aqueles que são capazes de interpretar os auspícios, ou os

sinais enviados pelos deuses para orientar as ações ou as tomadas de decisão importantes

como empreender uma guerra, iniciar uma obra pública, lançar uma lei ou um decreto. O
imperador torna-se a voz, a vontade, a presença dos deuses na Terra.

86
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Esta condição divina do imperador, que deriva, como vimos, da divinização dos

governantes orientais, egípcios e persas, representa a síntese das antigas heranças roma-

nas, etruscas, gregas e orientais. Esta síntese ganha, com a divinização dos imperadores,

contornos cada vez mais nacionais, não só porque são deuses oficiais, públicos e tutelares
de Roma e do Império, mas também porque precisam excluir, afastar ou eliminar deuses

estrangeiros com pretensões a divindades públicas tutelares do Império.

Embora os imperadores fossem tolerantes com os cultos privados dos estrangeiros, não

permitiam seus cultos nem sua conversão em divindades do panteão romano. É isto que

explica a repressão aos cultos estrangeiros ordenados por Augusto em 28, por Agripa em 21,

por Tibério em 9 d.C. e, a partir do século 3º d.C., os cultos a Jesus, uma divindade judaica
que se proclamava único deus verdadeiro e cujos seguidores denunciavam os deuses roma-

nos como ídolos e falsos deuses. A resposta romana a tal insulto foi particularmente severa

sob alguns imperadores, sobretudo Diocleciano, devoto e dedicado, mediante reformas, a

tentar salvar o Império.

Seção 2.9

O Cristianismo e o Império

O surgimento do cristianismo introduziu na vida política romana um dado absolutamente novo.


Na Grécia e em Roma, a religião é um elemento essencial da vida política. Os deuses oficiais do
Estado garantem-lhe vigor e potência; reforçam o poder e lhe dão um caráter sagrado; garan-
tem, pelo culto aos mesmos deuses, a coesão e a lealdade dos cidadãos. O culto às divindades
públicas é o ato cívico mais importante. É expressão do patriotismo. Ocorre que o cristianismo
primitivo é de outra natureza. Não é romano, não foi concebido para servir ao Estado terrestre,
prega o desprendimento e o desprezo das coisas deste mundo. Pretende-se universal e celeste. É
por isso suspeito, perigoso e merece a hostilidade dos governos (Humbert, 1984, p. 403-404).

Examinemos, agora, em detalhe, onde se situa o núcleo conflitivo entre o Império, sua

religião e o Cristianismo. Nós vimos que os cristãos negavam o panteão romano. Os deuses
são ídolos. São, portanto, ficções, invenções humanas. Criaturas de madeira, pedra e barro.

87
EaD Din art e Belat o

Essas doutrinas não são só religiosas. São um manifesto político, pois destroem as bases da

vida cotidiana dos romanos – os deuses e cultos domésticos e privados – bem como da vida
pública, uma vez que os deuses são cívicos e o próprio imperador é um entre os deuses.

Os cristãos, em conseqüência, rejeitam os ritos religiosos romanos qualificando-os de


demoníacos. Plínio, o jovem, diz que eles recusavam-se, como superstição, a sacrificar o
incenso e o vinho diante da imagem imperial. Tal recusa implica pena de morte, pois é uma
ameaça à existência do Estado. O Cristianismo primitivo é visto então como uma facção
religiosa subversiva.

E mais, o desprezo do mundo faz com que o cristão se sinta sempre no exílio, em terra
estrangeira – sua pátria é o céu – e se recuse a acatar as ordens, as determinações e os
impostos municipais, recuse a autoridade dos juízes, rejeite a prestação do serviço militar,
pois este implicava juramento de fidelidade aos deuses de Roma e ao imperador. Apesar
disso, a repressão dos cristãos nos primeiros dois séculos foi esporádica e castigava apenas
as manifestações explícitas da rebeldia e desobediência, do mesmo modo como eram repri-
midos os seguidores dos demais cultos estrangeiros “ilícitos”, não permitidos.

A situação muda a partir do século 3º. Os cristãos já eram muito mais numerosos, recu-
savam-se a mobilizar-se para a defesa das fronteiras ameaçadas pelos bárbaros. Tertuliano
desafia o Império ao negá-lo em sua essência: “um cristão não pode servir a dois senhores, a
Deus (Cristo) e a César (romano).” Iniciam-se, então, as repressões sistemáticas e em maior
escala. Ficava evidente para todos que “a cidade romana e a fé cristã tornavam-se cada vez
mais inconciliáveis. Uma das duas deveria desaparecer ” (Humbert, 1984, p. 404-405).

O culto cristão, proibido diversas vezes, é novamente interditado em 304, as igrejas


destruídas, seus bens confiscados e os membros do clero feitos prisioneiros. Os resultados,
porém, foram praticamente inúteis. E os cristãos continuavam crescendo.

Em 312 os cristãos obtêm um triunfo definitivo: o imperador Constantino converte-se


ao Cristianismo. Nunca saberemos se o fez por mero oportunismo ou por convicção. Impor-
ta agora que o Cristianismo se torna religião oficial do Império e a religião romana, o panteão
romano e seus cultos proibidos e reprimidos, seus templos e estátuas destruídos, seus bens
confiscados. A repressão agora muda de lado.

88
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

O clero cristão recebe de volta os bens confiscados, é beneficiado com amplas isenções

de impostos, os símbolos cristãos são impressos nas moedas na mesma proporção com que

desaparecem os símbolos romanos. As igrejas são também autorizadas a receber doações,

heranças e legados. Nasce, desta forma, o patrimônio eclesiástico.

Os bispos ampliam seus poderes ao se converterem em governadores, chefes militares e

juízes em questões religiosas e civis. Este poder dos bispos amplia-se quando obtêm do im-

perador o poder exclusivo de reprimir os crimes contra a fé. A execução das sentenças pas-

sou a ser realizada pelo Estado ou, como se dirá na Idade Média, pelo “braço secular ”. Os

bispos obtêm, finalmente, a jurisdição exclusiva – privilégio de foro – para o julgamento dos

crimes e demandas do clero.

Em 380 d.C. o imperador Teodosio, pelo Edito de Tessalônica, impôe a fé cristã a

todo o Império. O Cristianismo torna-se definitivamente a religião única do Estado. As

outras religiões são condenadas e os “desvios heréticos” perseguidos. Um século depois

da grande onda de repressão aos cristãos decretada pelo imperador Diocleciano, a polí-

tica se inverte. Os bens dos templos pagãos são confiscados em todo o império, o culto

pagão é proibido, inicialmente em Roma e, posteriormente, em todo o império (Humbert,

1984, p. 435).

Seção 2.10

O Legado do Cristianismo Primitivo

Por estranho que possa parecer, o Cristianismo, embora se opusesse firmemente à

divinização do imperador, contribuiu para conferir ao poder monárquico seu caráter divino

e absolutista.

O teólogo Eusébio de Cesaréia, contemporâneo do imperador Constantino, desenvol-

ve a teoria da monarquia de direito divino:

89
EaD Din art e Belat o

Segundo essa teoria, o príncipe monárquico é justificado (legitimado) porque Deus é o modelo do
poder real; é ele que decide sobre o estabelecimento de uma autoridade única para todos os ho-
mens. Segundo Eusébio, Deus é a origem do poder monárquico: é do senhor do universo, e através
dele, que o imperador recebe e reveste a imagem de sua suprema realeza (Humbert, 1984, p. 402).

A legitimação da teoria exprime-se tanto nas imagens do imperador recebendo o dom


do poder diretamente de Deus quanto nos epítetos – divinos – pelos quais é nomeado: bem-
amado de Deus; aquele que é coroado das virtudes que são inerentes a Deus; aquele cuja
alma recebeu de Deus os eflúvios que vêm de Deus... e se tornou racional ...sábio... bondo-
so... Com olhos voltados para o alto – para Deus –, ele governa a sociedade conforme o
modelo, o arquétipo divino... (p. 402).

Os imperadores bizantinos e os papas romanos encarnarão este modelo de poder, cujo


fundamento, em última instância, é a sacralização e a absolutização do poder.

O Cristianismo, ao se converter na força social do Império Romano só pôde sê-lo por-


que assimilou, lentamente, ao longo de séculos, sua cultura e sua civilização e tornou-se
seu defensor intransigente. A organização religiosa foi tomada do modelo civil. O Cristia-
nismo, ao romanizar-se, cristianiza a civilização greco-romana. É por intermédio do Cristi-
anismo que nós, que pertencemos à “civilização cristã”, temos acesso às três fontes que lhe
dão origem: a tradição oriental, que nos vem do judaísmo; a tradição grega, que nos vem da
Filosofia e da política; a tradição romana, que nos vem das instituições e da organização
centralizada e divinizada do poder e do Estado.

Seção 2.11

A Escravidão na Grécia e em Roma

Em todas as sociedades pré-modernas há testemunho da presença de escravos. Há


escravos exercendo todo o tipo de atividade: domésticos, pedagogos, especialistas em ofícios
– ferreiros, perfumistas, escultores, construtores, pastores... Alguns são membros empobreci-
dos da comunidade que perderam, por força de dívidas, de acesso precário à terra ou por
outro motivo, as condições de se manter e a sua família.

90
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Na Grécia, as famílias donas de pequenos lotes, localizados nas encostas pedregosas,

geralmente pouco férteis, não produziam os alimentos necessários e suficientes para se manter.

Contraíam empréstimos e dívidas que jamais conseguiriam saldar. Hipotecavam a terra, os

bens e os membros da família. E acabavam escravos nas mãos dos credores, dos grandes

proprietários que, dessa forma, ampliavam seus domínios e podiam contar com mão-de-

obra barata e abundante.

Outros escravos eram presas de guerra, não necessariamente estrangeiros, podiam ser

membros de outras tribos ou parentelas. Caíam vítimas de conflitos e disputas. Em Esparta,

os dórios proprietários, que se haviam convertido numa espécie de nobreza dominante,

submeteram à escravidão os membros empobrecidos e que reivindicavam acesso à terra e à

comunidade. Esparta representa provavelmente a mais violenta experiência de escravização

de frações da população da comunidade. As reformas de Sólon e Clístenes, na Ática, proibi-

ram a escravidão de gregos, mas liberaram a escravidão do estrangeiro.

As dívidas e as guerras são a origem dos escravos egípcios, mesopotâmicos e judeus. A

Torá – o livro da lei dos judeus – tem regras muito precisas para evitar a escravidão de

membros da comunidade e normatizar o tratamento dos que são escravizados.

Na Grécia e em Roma os grandes conflitos sociais travados entre a aristocracia e os

camponeses têm em sua origem as ameaças de escravidão. Os regimes tirânicos nas póleis

gregas e as mobilizações da plebe e dos proletários romanos têm esta motivação de fundo.

Não é esta escravidão que faz da Grécia e de Roma sociedades escravistas, nem mesmo

a escravidão que os europeus impuseram nas colônias de exploração na América a partir do

século 16.

A escravidão grega e romana se instalou quando o escravo se converteu economica-

mente em mercadoria e socialmente é transformado em coisa, em “ res”, como diriam os

romanos, ou como diria Aristóteles: “instrumentos dotados de uma alma”, ou ainda quando

lhe é negada a condição humana e é despojado da condição cívica e política. Ele desapare-

ce, por conseguinte, da condição humana, torna-se máquina viva e propriedade de seu se-

nhor ou do Estado.

91
EaD Din art e Belat o

Em meados do século 2º a.C. a sociedade romana passa por uma crise aguda que só se
resolve com o fim do regime republicano e a instituição do regime imperial.

A crise é complexa e pode ser visualizada sob vários aspectos, entre os quais acolho os
que são apresentados por Humbert (1984, p. 302-305):

– As guerras de conquista e a pacificação das províncias rebeldes requer um esforço militar


contínuo e altamente desgastante, sobretudo para aquelas frações sociais que eram obri-
gadas a suportar os seus pesados custos, os camponeses, pequenos proprietários.

– As conquistas de províncias ricas em cereais puseram em perigo a produção da península.

A importação de trigo das províncias, vendido ao povo romano a baixo preço e depois
distribuído gratuitamente, arruinou a produção local e os camponeses. Endividados, se
obrigaram a abandonar suas terras.

– O censo realizado em meados do século 2º a.C. indica uma regressão demográfica, que se

mantém a partir daí e mesmo se acelera depois de 136 a.C.

– Na mesma medida em que decresce a população livre, aumenta a população escrava. Eles vêm
em massa do nordeste da Europa e do Oriente. “Entre o início do segundo século e término do
primeiro, o número de escravos aumentou em 50% para o conjunto da Itália, passando de um
milhão e meio para três milhões, para uma população total da península da ordem de sete

milhões e meio de habitantes na época de Augusto. No segundo século d.C., as cidades tinham
em média um escravo para cada 2,5 cidadãos. A zona rural tinha em média um escravo para
cada 1,5 cidadão. A brutalidade desta estrutura social é propícia para as rebeliões e as repres-
sões em grande escala”, como veremos mais adiante. (Humbert, 1984, p. 303-305).

– Consolida-se então o modo de produção escravista. O trabalho no Império é escravo ou


marcado pela escravidão, o que acarreta o surgimento dos grandes proprietários agríco-
las, monocultores e dos grandes empresários das indústrias, que tocam seus empreendi-
mentos com centenas e, às vezes, milhares de escravos. As conseqüências são muitas:
concentração das fábricas, produção em série e a baixo preço, grande propriedade
monocultora e ruína do artesão livre e independente e do camponês pequeno proprietá-
rio. O clima de revolta e rebelião social estava dado.

92
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

As revoltas e rebeliões tornaram-se muito freqüentes porque o número de escravos


crescia continuamente e porque, desta maneira, podiam criar uma consciência coletiva de
sua condição subhumana. Os hilotas de Esparta levantaram-se inúmeras vezes. Na Itália
duas rebeliões tornaram-se conhecidas porque ameaçaram a integridade da sociedade ro-
mana: a primeira foi a rebelião comandada pelos escravos Sálvio e Atenion. Ambos chega-
ram a reunir, em 103 a.C., um exército de mais de 20 mil homens. Os romanos só consegui-
ram derrotá-los depois de uma guerra que durou quatro anos.

A segunda grande rebelião ocorreu de 73 a 70 a.C. e foi comandada por um escravo de


origem macedônica, detentor de grande experiência militar, chamado Espártaco. Divergências
internas, entretanto, dividiram os escravos. Os romanos enviaram contra eles um grande exérci-
to que os derrotou. Seis mil escravos prisioneiros foram condenados à morte e crucificados. Os
motins e revoltas seguiram acontecendo durante todo o Império, mas foram movimentos que
não ameaçaram seriamente a sociedade escravista. Eram, no entanto, um signo permanente de
uma luta de classes que acabaria por ser uma das causas da extinção da sociedade romana.

Com o advento do Cristianismo e sua difusão pelo Império Romano, aconteceram im-
portantes mudanças na condição dos escravos, embora as guerras continuassem a lançá-
los no mercado: Vespasiano trouxe 92.000 escravos judeus; Adriano capturou muitas cente-
nas de milhares deles; Crasso capturou 20.000 sarmatas. Sob Nero e Sétimo Severo, cogi-
tou-se vesti-los com uma espécie de uniforme para que pudessem ser mais facilmente reco-
nhecidos. A idéia foi abandonada pelo temor de que a visão de seu número pudesse desper-
tar sua consciência de classe e, em conseqüência, a rebelião. No segundo século nota-se
uma diminuição do afluxo de escravos adultos e prisioneiros de guerra, mas aumenta o
comércio de crianças, de jovens e de mulheres. Os imperadores tentaram estabelecer regras
destinadas a pôr ordem nos vários aspectos relacionados ao trato de escravos: preço por
peça; critérios de avaliação de suas aptidões físicas e mentais; critérios para concessão da
alforria; estatuto dos filhos nascidos de mãe escrava e pai livre, sem grande sucesso.

Os filósofos estóicos e o Cristianismo pregavam a igualdade dos homens, no entanto,


ao mesmo tempo, São Paulo ensinava o conformismo aos escravos, impondo-lhes a obedi-
ência e o respeito a seus senhores. É verdade que os cristãos proclamavam a igualdade e a
liberdade, não entre os homens, só em Deus ou perante Deus. Para Jean Cousin, mudanças
significativas vinham se acumulando desde o reinado de Otavio Augusto:

93
EaD Din art e Belat o

A diminuição do número de prisioneiros de guerra, o aumento das alforrias, o acréscimo do


trabalho livre utilizado por contrato, a conversão dos escravos dos templos pagãos em escravos
de igrejas cristãs (sem que nada houvesse mudado em suas condições de vida), obscureceram os
aspectos quantitativos e qualitativos do problema (Bloch; Cousin, 1964, p. 302).

E acrescenta Jean Cousin (1964, p. 302):

Não se levaram em conta dois fatos: por um lado a evolução geral do estatuto econômico e social dos
grupos humanos que apagou progressivamente os limites que separavam o homem livre do escravo;
por outro lado, o intervencionismo estatal (na esfera dos negócios privados) e a burocracia ligada à
economia dirigida aproximaram as condições numa submissão de todos ao Estado e ao imperador.

Finalmente, Cousin observa que, muito mais do que o discurso e a caridade cristãos,
foi o retorno gradativo a uma economia agrária e à instituição de um sistema de colonato
que de fato vai mudando a relação escravista e encaminhando-a para uma relação que
evoluirá para a servidão da gleba.

Ser livre ou escravo perante o grande senhor territorial não fazia grande diferença... “A
sujeição física do escravo ao seu senhor no período republicano, que podia condená-lo aos
grilhões, estendeu-se no fim do império ao homem livre, que é submetido com o mesmo rigor,
na sua profissão ou função, à mesma vergonha” (Bloch; Cousin, 1964, p. 302).

O Cristianismo não pôde opor-se à escravidão, ao contrário, aceitou-a e legitimou-a,


como vimos, porque seus dirigentes, a maioria deles vindos da elite do Império, entenderam
que sem os escravos o Império não poderia sobreviver, mesmo quando o Cristianismo se
tornou religião lícita e oficial. O Cristianismo... “não se pôs o problema de modificar as
estruturas sociais e políticas; limitou-se a pregar o desapego individual, a lealdade nas tran-
sações, a submissão à autoridade política e judiciária, se esta estiver de acordo com a moral
do senhor...” (Bloch; Cousin, 1964, p. 304).

Para concluir:

[...] entre Aristóteles (e os gregos) que faz do escravo um instrumento dotado de alma, os estóicos,
que consideravam o sofrimento como um acidente indiferente para a serenidade do espírito e os
cristãos que querem nivelar na humildade as desigualdades sociais, há uma evolução sensível,
mas os discípulos de Cristo orientam-se menos pela abolição total da escravidão do que para
uma atenuação da miséria e uma maior maleabilidade das leis (Bloch; Cousin, 1964, p. 303).

94
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

À decadência, lenta e gradual, do Império, corresponde também uma gradual diminui-


ção da escravidão. Ela nunca será extinta de todo, sobreviverá na Idade Média européia e
terá grande ímpeto no mundo islâmico, particularmente a partir do século 10º, quando os
mercadores do norte da África, pelos caminhos do Saara, iniciarão um tráfico de povos ne-
gros que duraria mil anos.

Os mercadores cristãos do início da Idade Moderna introduzirão a escravidão na Amé-


rica, baseada principalmente na captura e tráfico de escravos africanos. No século 16, os
cristãos não terão nenhum problema de consciência pela escravidão que imporão aos negros
e índios. As denúncias e condenações da escravidão não foram capazes de mudar a realidade.

Seção 2.12

As Heranças que nos vêm dos Romanos

Somos herdeiros da civilização romana. Ela nos legou a língua portuguesa – uma das
línguas neolatinas – com uma multidão de palavras, conceitos indispensáveis à nominação
da realidade; dela e da Grécia recebemos também o modo urbano de viver em sociedade,
modos de participação política. Dela nos vem o modelo da arquitetura monumental cujo
componente estrutural é o arco; nos vêm também as celebrações, os jogos públicos e teatros,
para os quais construíram gigantescos edifícios. Finalmente, deles recebemos os fundamen-
tos do Direito e das instituições públicas e privadas.

2.12.1 – HERANÇAS LINGÜÍSTICAS

São, portanto, numerosas as heranças que recebemos dos romanos. Antes de mais
nada, herdamos a língua portuguesa que, com o italiano, francês, espanhol, são chamadas
línguas neolatinas, isto é, dialetos ou línguas crioulas que se desenvolveram nas regiões de
maior influência, de mais prolongado domínio da cultura romana: França, Espanha, Portu-
gal e Itália. Recebemos deles não só uma multidão de palavras, como também a estrutura
da língua e o alfabeto em que está escrita.

95
EaD Din art e Belat o

Vejamos um exemplo bastante simples: a palavra velho. Na cultura latina, que reco-

lheu importante contribuição da cultura grega, a nomeação dos velhos exprime, em subs-

tantivos e adjetivos, a diversidade de sua condição social: velhice, senectude, senilidade,

decrepitude; velho, senil, decrépito, veterano, vetusto, idoso, veterato, veterado, (inveterado).

Alguns adjetivos latinos, que não têm exata transposição para o português, são muito ricos

semanticamente: veterosus: letárgico, adormecido, inativo, lânguido; veternus: velho, anti-

go, colhido pelo marasmo, entorpecido, inerte, apático; veteratorius: fino, finório, manhoso,

matreiro, hábil (nas manhas); veterarium: adega onde se envelhece o vinho ou onde se guar-

da o vinho envelhecido.

A palavra aetas que significa idade, período de vida, tempo que a vida dura ou, sim-

plesmente, vida, dá origem ao adjetivo/substantivo idoso, com sentido de velho que, por sua

vez, pode ter valor positivo ou negativo.

Talvez o grupo de palavras de maior carga positiva derive do substantivo senecta

(senectae), que significa velhice e da qual se originam: senator (senador); senatorius (relati-

vo ao senador, senatorial); senatus (assembléia dos velhos, senado, conselho deliberativo);

senectus (velho, envelhecido, velhice e, figuradamente, severidade, gravidade, seriedade,

maturidade); senere e senescere (ser velho, envelhecer, encanecer); sênior (mais velho, opos-

to de junior – mais novo).

A raiz “sene”, entretanto, contém, também, um oposto negativo muito forte. Senilis,

por exemplo, significa exatamente “senil”, signo de incapacitação do velho, ou “senium”

que significa velhice, peso da idade, declinação, enfraquecimento, pesar, mágoa, dor, enfa-

do, decrepitude, morosidade.

Há também no dicionário da cultura latina um conjunto de significações ligadas à cor

branca dos cabelos dos velhos, são as célebres “cãs”. Cani (canorum) significa cãs, cabelos

brancos e velhice, com forte sentido de respeitabilidade, de experiência vivida, de valor mo-

ral, exemplo a ser seguido.

A cultura romana nos deixou de herança boa parte das múltiplas e contraditórias

significações da velhice. De um lado, a respeitabilidade individual e coletiva dos velhos:

96
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

– senex, senator, que exprime o poder político individual e coletivo dos velhos;

– vetus, veteranus, que indica o pretérito pertencimento de alguém a uma atividade ou fun-

ção: veterano (do exército, do esporte ou de qualquer outra atividade profissional) e guarda

um sentido de identidade e de respeitabilidade.

– a cor branca dos cabelos e barba (as cãs) mistura respeito, cuidado, carinho pelo que

alguém fez, foi ou sofreu em sua vida. É também signo de altivez e dignidade.

E há os sentidos pesadamente negativos, seja de desprezo, seja “de fim da vida”, de

inutilidade, de demência: senilidade e decrepitude.

Na língua portuguesa os adjetivos podem guardar as duas concepções antitéticas, em

particular, velho e velhice, de respeitabilidade, apreço, carinho ou desprezo.

Já as palavras senil, senilidade, decrépito, decrepitude, exprimem a forma mais despre-

zível e excludente da velhice. Não há aí nada de positividade. Decrepitude, por exemplo,

deriva do verbo crepare: estalar ruidosamente, crepitar, fazer ruído. O prefixo “de” é uma

partícula de negação. Daí: não crepitar, não estalar como a lenha ao fogo, estar apagado,

fogo morto. Velho, tout court (Belato, 2006).

Outro exemplo interessante por sua significação política e para o complexo conceito

moderno de cidadania é a palavra emancipação (emancipar, emancipado), da qual derivam

expressões, hoje de uso corrente, como educação emancipatória, práticas emancipatórias,

sociedade emancipatória. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa ainda não re-

gistra o adjetivo “emancipatório”. As palavras, tal como as pessoas, precisam de uma maio-

ridade para serem admitidas em certos ambientes, no caso das palavras, ao dicionário, mas

este registra o sentido do verbo emancipar: “...eximir do pátrio poder; tornar independente,

dar liberdade...”. Conjuga-se também na forma reflexiva: “emancipar-se, libertar-se...”.

Emancipar, conforme o Dicionário Escolar Latino-Português, editado pelo MEC em

1956 e coordenado pelo professor Ernesto Faria, vem do verbo latino emancipare e significa:

emancipar, excluir da tutela, libertar.

97
EaD Din art e Belat o

Tutela, por sua vez, significa, também segundo o mesmo dicionário, guarda, patrono,

protetor. O sentido é claro: emancipar indica a nova condição de uma pessoa que deixa de

estar sob o poder de alguém, seja pai, tribo, clã, igreja, partido ou chefe.

Etimologicamente emancipar compõe-se da partícula negativa “e” = “não” e do subs-

tantivo mancipium, que significa: ação de tomar na mão a coisa de que a pessoa se torna

proprietária; significa, também, coisa adquirida como propriedade..., direito de propriedade.

Mancipare e tutelare são, nesta acepção, sinônimos. E emancipare, então, significa tirar da

mão ou, drasticamente, cortar a mão, cortar vículos, amarras, o que prende.

As línguas neolatinas e mesmo anglo-saxônicas guardaram esta significação orinal e

a ampliaram nos debates modernos e nas lutas pela cidadania e emancipação política. O

Dicionário Le Robert, Dictionnaire D’Aujourd’Hui, diz que “’emancipar ’ significa isentar ou

libertar um menor do poder paterno ou da tutela, libertar alguém da tutela de uma autorida-

de superior, liberar, libertar-se de uma tutela, de uma sujeição, de servidões ou de prejulgados,

libertação; tomar liberdades; romper constrangimentos morais ou sociais”.

A língua italiana guarda as seguintes significações: “tornar-se livre, independente;

emancipar-se da dependência econômica e de outras dependências (Vocabolario della Lín-

gua Italiana. Da Nicola Zangarelli).

Em inglês, emacipate significa: “libertar-se da escravidão ou de outro regido e injusto

controle” ( English Dictionary for Speakers of Portuguese).

O espanhol nos diz que emancipar-se significa: “tornar-se uma pessoa livre do domí-

nio de outra; independizar uma pessoa” (Gran Diccionario Usual de la Lengua Española).

2.12.2 – ARQUITETURA E URBANISMO

Dos romanos herdamos o modelo das cidades, seus serviços e, sobretudo, a cidade

como o centro da vida política, social e econômica. Para os romanos e gregos, só são verda-

deiramente cidadãos (ou políticos) os que vivem na cidade e tomam parte de sua vida.

98
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Roma nos legou um modo de viver na cidade que hoje se reproduz em todo o mundo: o

lazer urbano com seus locais especialmente construídos para tal fim: teatros, anfiteatros,

circos. Era aí que se comemoravam os grandes eventos culturais, como as encenações tea-

trais, os jogos olímpicos, as comemorações religiosas e a vitórias contra os inimigos. Deles

aprendemos a realização de eventos, jogos e comemorações de massa.

O circo Maximo era um gigantesco centro de jogos, comemorações de vitórias contra

os inimigos, celebrações religiosas, tinha 600 metros de comprimento por 200 de largura e

podia acolher até 300.000 espectadores (Vision, 1996, p. 52).

O Coliseu, de sde a Antiguidade o monumento ícone de Roma de todos os te m-

pos, é uma ousada obra de e nge nharia: 50 metros de altura do ane l exte rno, com capa-

cidade para 70.000 espe ctadores (Vision, 1996, p. 10). Sua construção foi i niciada no

ano 70 d.C. pelo i mpe rador Ve spasi ano e concluí do pelo imperador Tito. Este cons-

truiu ao lado do Colise u, para celebrar suas vitórias, um gi gantesco “arco do Triunfo”

(Valigi , 1996, p. 46).

Além desses locais destinados aos espetáculos públicos, havia vários teatros e anfitea-

tros, banhos públicos e termas, ginásios e academias para exercícios físicos e desenvolvi-

mento corporal, de luta corporal e de aptidões físicas em geral. Roma foi copiada por todas

as cidades capitais de província do Império.

De Roma herdamos a arquitetura monumental dos edifícios públicos destinados ao

culto, como templos e panteões, e os prédios públicos, como o foro de Augusto, a praça do

foro, o mausoléu do imperador Adriano (cf. Vision, 1996).

Diferentemente das arquiteturas egípcia e grega, que se caracterizavam pelo uso ma-

ciço de colunas para a sustentação dos prédios, os romanos puderam não só dar-lhes ampli-

tude, como criar extensos espaços internos, graças à combinação da coluna, do arco e das

cúpulas. Os monumentos sobreviveram aos séculos: o Coliseu, o Panteão, os arcos de Triun-

fo, os teatros, o aqueduto e as pontes. Só o cimento e o aço foram capazes de substituir, no

século 20, a técnica romana da construção de grandes prédios.

99
EaD Din art e Belat o

2.12.3 – DIREITO ROMANO

Foram os imperadores que, ao centralizar os poderes da sociedade, se converteram em

“fontes da lei” e impuseram a uniformização dos princípios, normas e procedimentos jurídi-


cos. As constituições imperiais, cujo último esforço de compilação e sistematização foi em-

preendido pelo imperador Justiniano, recebem o nome de leges (leis).

Todas as demais formas anteriores de criação do direito, leis votadas, senatus-consultus (autori-
dade suprema em termos jurídicos e legais durante o período republicano), éditos do pretor, e os
“ responsa” (respostas) de pessoas de notório saber (prudentes) desapareceram em proveito da
vontade única do imperador. O imperador se auto-proclama lei viva: deus entregou ao impera-
dor o poder das leis, por ele enviado aos homens como lei viva (Humbert, 1984, p. 426).

O imperador Justiniano (527-565), o último grande governante do império romano


(do Oriente ), procede u à codi ficação do Direi to Romano que chegou até nós. É a
materialização da nossa herança jurídica de procedência romana. Justiniano, em seu esfor-
ço de sistematização e compilação da legislação imperial foi movido por duas razões bási-
cas: a primeira, de natureza operacional ou técnica, pois as codificações anteriores (a do
imperador Adriano – 117-138 – e a do imperador Teodósio – 379-394) já não correspondiam
às necessidades de regulação da sociedade; a segunda é de natureza política e consiste na
afirmação da autoridade imperial.

A tarefa foi entre gue ao jurista Triboniano, profe ssor da Escola de Direi to de
Constantinopla que, juntamente com um numeroso grupo de juristas, elaborou quatro do-
cumentos: o Código, o Digesto, os Institutos e as Novelas. O conjunto forma o que os juris-
tas da Idade Média denominarão Corpus Júris Civilis (Corpo do Direito Civil) para distingui-
lo do Corpus Júris Canonici (Corpo do Direito Canônico) (cf. Humbert, 1984, p. 431). O
Código foi promulgado pelo imperador Justiniano no ano de 534 d.C.

O Código e os esforços de Justiniano para reerguer o Império Romano, atacado por


ondas sucessivas de povos que o invadiam, o transformavam criando novas culturas, novos
poderes e novas sociedades, foram inúteis. O Império do Ocidente fora partilhado em “ rei-
nos bárbaros”, o Império do Oriente, sob pressão da expansão muçulmana a partir do sécu-
lo 8º, e do Império Persa, encolherá política e territorialmente até sucumbir em meados do
século 15, quando Constantinopla foi tomada pelos turcos islamizados.

100
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Foi, porém, pelo Código de Justiniano que a civilização ocidental pôde ter acesso ao

acervo jurídico e institucional criado pelos romanos durante um milênio. O movimento

renascentista europeu dos séculos 15 e 16 d.C. tem como um de seus centros irradiadores a

recuperação e a releitura do Código de Justiniano. O Direito Romano fornecerá as premis-


sas jurídicas e políticas do combate ao Direito medieval e de afirmação da legitimidade do

poder monárquico que, rapidamente se pretenderá, como na Roma imperial, de direito divi-

no e absoluto.

Não foi, porém, só o Renascimento que releu e se apropriou, via Código de Justiniano,

do Direito Romano. O mundo contemporâneo foi buscar nele a grande matriz jurídica. Al-

gumas passagens parecem sair de textos constitucionais hoje em vigor:

Justiça é a constante vontade que dá a cada um o seu direito; jurisprudência é o conhecimento


das coisas divinas e humanas; a ciência do justo e do injusto.

Os preceitos do Direito são os seguintes: viver honestamente, não causar dano a outro e dar a
cada um o que é seu.

Dois são os aspectos deste estudo, o público e o privado. Direito público é o que diz respeito ao
estado da coisa romana; privado, o que pertence à utilidade de cada um. Dever-se-á tratar, assim,
do Direito privado, que consta de três partes; pois se formou dos preceitos naturais, dos preceitos
das gentes ou dos preceitos dos civis (Bueno; Constanze, 2008).

E como afirmam Bueno e Constanze:

A herança principal, no entanto, é que se trata de uma razão jurídica escrita, impossível de ser
ignorada ou alterada, e que já continha as regras fundamentais de que não há crime nem pena
sem lei anterior que defina o crime e a pena, de que ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de
fazer alguma coisa a não ser em virtude de lei e de que, em caso de dúvida na aplicação da lei, se
deve favorecer o réu.

O Império Romano sucumbiu, não, porém, sua cultura, que é a herança que até nós
chegou.

101
EaD Din art e Belat o

102
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Unidade 3

AS CIVILIZAÇÕES AMERICANAS

OBJETIVOS DESTA UNIDADE

• Aprofundar nossos conhecimentos da história dos povos americanos e das civilizações por
eles criadas.

• Demonstrar que a trajetória da construção das civilizações americanas é absolutamente


idêntica à das civilizações da Ásia (Oriente Médio e Extremo Oriente) e do Mediterrâneo
(Grécia e Roma). E também que esta trajetória foi bruscamente interrompida quando os
europeus “descobriram” a América.

• Estudar a expressiva contribuição civilizatória dos povos americanos para o mundo.

AS SEÇÕES DESTA UNIDADE

Seção 3.1 – Introdução

Seção 3.2 – As dimensões civilizatórias da América

Seção 3.1

Introdução

Quando Cristóvão Colombo, no comando de uma expedição exploratória em busca de

um caminho que o levasse à Índia, navegando para o oeste – o caminho para o leste estava

reservado aos portugueses por força do Tratado de Tordesilhas – chegou, em 1492, a Santo
Domingo (Dominica), pensando ter chegado ao Japão (Cipango), o fato ficou conhecido

como o descobrimento da América.

103
EaD Din art e Belat o

Na América, porém, existiam inúmeros povos, aqui chegados, segundo a hipótese mais

aceita, durante a última glaciação pelo estreito de Behring, que separa a América da Ásia

Oriental. Esses grupos de povos asiáticos teriam se deslocado pelo Ártico atrás dos rebanhos

de renas. Eram caçadores. Não sabemos exatamente quando chegaram os primeiros. Prova-
velmente, por volta de 35.000 a.C. e depois deles outros grupos os seguiram ao longo de

muitos milênios. É muito provável que, mais tarde, grupos migratórios também tenham che-

gado à América pelo Pacífico, como o último estágio de sucessivas migrações e ocupações

das ilhas do Pacífico Sul.

Migrações dos Povos Neolíticos e Pré-neolíticos

Fonte: Disponível em: <http://www.ateus.net/artigos/miscelanea/imagens/


migracao_humana.jpg>. Acesso em: 28 jan. 2009.

Esses grupos iniciais foram lentamente ocupando novos sítios até cobrir praticamente

todo o território do continente. E tiveram trajetórias civilizatórias bastante diferenciadas.

Os índios do México e Guatemala e os da Colômbia, Peru e Bolívia, evoluíram para

sociedades internamente diferenciadas em classes sociais, com intensa divisão do trabalho,

criaram Estados que, a partir de um centro, expandiram seu poder sobre extensos territóri-
os. Embora de forma imprópria, essas estruturas de Estados receberam o nome de impérios:

Asteca, Maia, Inca.

104
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Os demais povos da América do Norte, Caribe, América Central e do Sul, atingiram o

estágio civilizatório que os arqueólogos e historiadores chamam de neolítico, isto é, povos

que além de praticarem a coleta, a caça e a pesca, vivendo em comunidades quase sempre

pequenas, haviam iniciado a domesticação de plantas e animais, começando, deste modo, o

longo processo de sedentarização ou, pelo menos, de ocupação dos mesmos sítios por tem-

pos cada vez mais longos.

De qualquer forma, esses povos já não dependiam mais exclusivamente da coleta, da

caça e da pesca, atividades que lhes propiciaram sofisticado conhecimento, tanto em rela-

ção à sua qualidade, disponibilidade, acessibilidade ao ecossistema, como da criação de

meios e instrumentos para manejá-los (Ribeiro, 1986a, v. 1, 2).

Esses povos neolíticos, como os demais povos da Ásia, da Europa e África, intensifica-

ram e complexificaram sua cultura, sua linguagem, bem como a regulação de seus modos

de vida, dando origem a sociedades altamente complexas (Ribeiro, 1986b, v. 3; Villas Boas;

Villas Boas, 1976).

Em 1500, há milênios encontrava-se em marcha, na América, a formação de culturas

e civilizações, em estágios de evolução diferenciados, em nada distintos dos mesmos proces-

sos e ocorridas ou em curso nos demais continentes. A chegada da civilização européia,

militarmente mais poderosa e ideologicamente conquistadora, interrrompeu este curso

civilizatório e impôs aos povos da América, àqueles que não foram exterminados, sua civili-

zação (Las Casas, 2000; Ayala, 1987).

As conquistas das civilizações americanas são múltiplas e mudaram, com suas contri-

buições, as demais culturas do mundo. Algumas delas só agora se tornaram conhecidas por

força de poderosos interesses econômicos dos grupos farmacêuticos transnacionais, que

buscam saber dos índios as extensas propriedades fitoterápicas das plantas sul-americanas,

que eles há séculos descobriram.

O desenvolvimento das civilizações americanas, em virtude de seu completo isolamen-

to das civilizações africana, asiática e européia, teve de contar apenas com suas próprias

forças e não recebeu daquelas civilizações, a não ser depois de 1492 d.C., seus aportes, bem

105
EaD Din art e Belat o

como a elas emprestou os seus. Sofreu por isso, limitações muito importantes, tais como:
completa ausência de animais de carga, tiro e alimento, como cavalos, asnos, burros, bois,
búfalos, elefantes, ou animais de médio porte, importantíssimos para o aporte de proteínas,
fibras e couro, tais como: cabras, ovelhas e suínos.

O desenvolvimento das tecnologias da roda foi por isso afetado, não apenas no trans-
porte, que era feito apenas com força humana, como também na cerâmica. Os historiadores
acreditam que esta ausência de animais de trabalho possa ter afetado o desenvolvimento da
metalurgia que, na América, era incipiente mesmo entre astecas, maias e incas (Portilla,
apud Bethell, 1998, p. 29).

Essa diferença de ritmo de desenvolvimento civilizatório da América em relação às


civilizações dos demais continentes, contudo, não parece ter afetado tanto a ocupação do
espaço do continente quanto as condições de crescimento das populações, embora nunca
saibamos, com certeza, quantos habitantes havia na América quando da chegada dos euro-
peus. Não havia então nada parecido com as modernas contagens e censos aos quais estamos
habituados hoje. O que existe atualmente são hipóteses e projeções oriundas das informa-
ções deixadas pelas populações indígenas e pelos invasores europeus. As dúvidas, as pes-
quisas e os debates continuam.

Bethell (1998, p. 129) elaborou uma boa síntese das pesquisas e estudos de história
demográfica. Vejamos, conforme a autora, o que nos dizem os estudos, por região.

A região do México Central, núcleo da sociedade asteca, teria, segundo Cook, Borah e
Sherburne, da Berkeley School, 25 milhões de habitantes. Este número foi aceito também
por Soares (1976) e Chaunu (1969). Em contraste, para a mesma região, Angel Rosemblat
propõe um número que gira em torno de 4,5 milhões. Já William Sanders propõe um número
de 11 a 12 milhões de habitantes. Henry F. Doibyns pensa que a população mexicana seria
de 50 milhões. Creio que não se trata de optar por uma ou outra cifra. A incerteza é grande,
mas, conforme Leslie Bethell, “... pesquisa mais recente produziu estimativas... que vão de
8-10 até 13-14 milhões” (1998, p. 129).

Para a América Central os números também são incertos: Rosemblat calcula uma po-
pulação de aproximadamente 1 milhão de habitantes. Pesquisas realizadas na década de 80
indicariam uma população entre 5-6 milhões (Bethell, 1998, p. 129).

106
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

É muito incerto também o número de habitantes das Antilhas e do mar das Caraíbas.

Aceita-se, hoje, como razoável e bem fundado, um número de habitantes assim distribuídos:

1 milhão para Hispaniola (República Dominicana e Haiti) e 2 milhões para as demais ilhas,

inclusive Cuba e, 1 milhão para a Venezuela.

As populações indígenas da América do Sul em fins do século 15 apresentam os se-

guintes números aproximados:

Para a Colômbia, 3 milhões. Já para o Peru os números oscilam de 2 a 3 até 12 a 15

milhões. Doibyns defende, para o Peru, uma população de mais de 30 milhões. Hoje, no

entanto, parece haver algum consenso para os seguintes números: 9 milhões para o Peru e

uma população total entre 12 a 13 milhões para o conjunto dos Andes Centrais (território

do Império Inca). Os povos da Araucânia (sul da Cordilheira dos Andes) são estimados em

aproximadamente 1 milhão. Nas demais regiões do sul da América do Sul as populações

eram seguramente mais rarefeitas e dificilmente chegariam a 1 milhão de habitantes.

As estimativas das populações indígenas que viviam no atual território do Brasil em

1500 são também de muito difícil avaliação. Segundo John Hemming, a população seria de

aproximadamente 2 milhões e meio de habitantes. Já Denevan estima um número em torno


de 9 milhões, dos quais 5 milhões para a bacia amazônica (Bethell, 1998, p. 130-131).

Por toda a parte os primeiros contatos com os europeus foram fatais às populações

da América. As doenças trazidas por eles – gripe, varíola, sarampo, lepra, tifo – dizimaram

as populações que não tinham qualquer tipo de anticorpos contra elas. Às doenças segui-

ram-se as guerras de conquista que, além de matarem contingentes significativos da po-

pulação masculina adulta, desorganizaram a estrutura social e econômica existente, acar-

retando a morte por fome e inanição de crianças e mulheres. À população sobrevivente à

conquista foram impostos regimes de trabalho e privações que dificultavam sua reprodu-

ção. É por isso que para a maioria das regiões conquistadas e que foram depois integradas

à economia mercantilista mundial, foi preciso importar índios de outras regiões ou popu-
lações negras da África. O padre Bartolomeu descreveu com espanto e indignação as ma-

tanças, expropriações e violências de toda a ordem perpetradas pelos espanhóis contra os

índios (Las Casas, 2000).

107
EaD Din art e Belat o

Ayala (1987) também nos conta o que aconteceu com os povos do Peru imediatamente

após a conquista, escrevendo ao Rei Felipe III uma gigantesca carta de 1.200 páginas de

denúncias contra padres, bispos, juízes, oficiais militares, soldados e colonos. Ele defende

que nada pior poderia ter acontecido aos índios do que a chegada dos espanhóis, suas dou-
trinas, ganância, violência e exploração. Nas 1.200 páginas, encontramos denúncias como

esta: “... escribir es nunca acauar...”, literalmente, “escrever é nunca acabar, isto é, são

incontáveis e é impossível descrever todos os males que a dominação espanhola acarretou

para os índios”. Assim descreve ele a “bondade” dos padres Agostinianos:

[...] os ditos reverendos são tão bravos e coléricos, tão enfurecidos, irados contra os índios e
mesmo contra as autoridades indígenas (caciques e prefeitos) que os enchem de pauladas. E não
temem nem a Deus, nem à justiça e não tem nenhuma caridade nem qualquer amor aos índios...
(Ayala, p. 690, vol. B).

De um outro frade, da ordem dos Mercedários, dizia: “E este dito frade era juiz substitu-

to do corregedor. Ele roubava as mulheres casadas e as filhas e irmãs dos índios...” (idem, p.

694) A denúncia da exploração sexual das mulheres índias pelo clero e pelos espanhóis, assim
como a exploração de seu trabalho, em particular o da tecelagem, é uma constante. Os índios

viam nos espanhóis uma matilha de animais selvagens que os atacavam por todos os lados:

Pobres índios tem seis animais que os índios mais temem e que devoram os índios deste reino:

– o corregedor, que é a serpente;

– o tigre, são os espanhóis viajantes, hóspedes das pousadas;

– o leão: o encomendero, grande proprietário, para quem os índios eram obrigados a trabalhar;

– a raposa, o padre; o gato, o escrivão; o rato, o cacique principal (Ayala, v. 3, p.749).

Ayala, depois de nomear as seis pragas que assolam os índios, acrescenta: “Estes ditos
animais que não temem a Deus, assolam os índios deste reino e não há remédio. Pobre Jesus

Cristo...” (p. 748). E os descreve do seguinte modo:

– Que os ditos índios temem os corregedores porque são piores que as serpentes. Comem gente
porque lhes comem a vida e as entranhas e lhes roubam os bens como um animal bravo. É o
mais poderoso de todos e a todos vence e rouba e não há remédio.

108
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

– O encomendero é temido porque é leão. Quanto ataca com aquelas unhas, não perdoa. É o mais
bravo de todos os animais. Não perdoa o pobre e não agradece e age(m) como ferozes animais
neste reino e não há remédio.

– Dos padres missionários os índios lhes têm um grande temor porque são manhosos e raposas e
são estudados e sabem mais ardis do que a raposa e lhes roubam os seus bens, as mulheres, as
filhas, usando seus saberes de manhosos, letrados, bacharéis. E desta forma, destroem os po-
bres índios deste reino e não há remédio.

– Os índios temem o escrivão porque é gato caçador, que vive assediando e perseguindo e agarra
o pobre rato. Ronda os bens dos pobres índios até roubá-los e mesmo roubando-o uma vez, não
deixa de rondá-lo até agarrá-lo de novo e roubá-lo e não há remédio para os pobres índios.

– Dos espanhóis viajantes que se hospedam nas pousadas e que não temem nem a Deus nem a
justiça, deles os índios têm medo porque são tigres, bravio animal. Ao chegaram à pousada
roubam o mitaio e a mitaia (índio obrigado a pagar tributo em trabalho), não pagam a hospe-
dagem nem o que gastam e não interessa quem seja, prefeito, cacique principal ou pobre índio.
A estes todos enche de bastonadas e lhes roubam quanto tenham e levam embora. Assim nas
hospedarias dos povoados e nas estâncias e são piores que os demais animais e não há remédio
para os pobres índios.

– Os índios temem também os índios que os espanhóis botaram para governá-los, sejam caci-
ques, curacas ou mandõezinhos. A estes, os índios temem porque são ratos. Roubam os bens dos
índios de dia e de noite e roubam tão furtivamente que ninguém percebe que é roubado e
furtado. Além disso, vivem extorquindo os índios nas taxas, frutas, dinheiro e outras comidas e
se apropriam das comidas da comunidade e das que se destinam aos velhos, doentes e viúva,
órfãos. Ele é pequeno, o rato, mas na realidade ele é maior que todos os animais porque de dia
e de noite nunca pára e não há remédio para os pobres índios deste reino (Ayala, 1987, p. 748-
750. Tradução livre – Dinarte Belato).

Não faltam relatos, crus e diretos, como os de Felipe Guaman Poma de Ayala, ou in-

dignados como os do padre Bartolomeu de Las Casas, dos cronistas do rei, das cartas ou dos
relatos de expedições punitivas que assolavam de todos os lados os índios.

Nathan Wachtell (1976), em seu livro Los Vencidos; los Índios del Peru frente a la Con-
quista Española (1530-1570), afirma que o impacto da conquista teria produzido uma mor-

tandade na ordem de 70% da população. O mesmo autor assegura que, a partir de 1570, a

população teria voltado a crescer. Os relatos de Guaman Poma de Ayala em sua carta, escri-

ta provavelmente a partir de 1600, e certamente concluída em 1615, revelam a existência de


uma população indígena perfeitamente recuperada do impacto da conquista, mas submeti-

da à brutalidade da exploração colonial.

109
EaD Din art e Belat o

No Brasil, as populações indígenas submetidas ao sistema de exploração colonial ra-

pidamente decresceram e, em muitas regiões, foram extintas. As populações situadas dis-

tante da civilização branca mantiveram-se intactas até praticamente o século 20, quando

suas terras começaram a ser apropriadas pelo latifúndio e, a partir daí, também declinaram.
O recente episódio da demarcação das terras da reserva Raposa Serra do Sol mostra o quan-

to ainda hoje a pressão sobre as terras indígenas é forte e violenta, com e os índios correndo

o risco de perdê-las.

Seção 3.2

As Dimensões Civilizatórias da América

Os povos da América, em seus diferentes estágios de desenvolvimento, ofereceram à

humanidade contribuições civilizatórias fundamentais.

Por força do isolamento da América, as culturas que aqui se desenvolveram só conta-

ram, como vimos, com suas próprias forças, diferentemente das que se desenvolveram na

Eurásia e África, que sempre mantiveram intensas trocas e mútuas influências. Embora a

chegada dos europeus tenha significado o aporte da cultura até então acumulada na Eurásia

e África, o impacto da conquista, a dominação e exploração colonial interrompem brusca-

mente a trajetória das culturas indígenas, muito embora muitas delas se tenham mantido,

transformadas pela cultura dos colonizadores, outras seguiram sua evolução pela continui-

dade de seu isolamento, como ocorreu com populações indígenas da América do Norte até

fins do século 19 e, na América do Sul, nas vastas florestas amazônicas, até o século 20.

Para dar início ao estudo das civilizações americanas, seleciono apenas alguns aspec-

tos de seus aportes civilizatórios. Indicarei, no texto, outras fontes de estudo e pesquisa

para aprofundamento das temáticas que não serão tratadas aqui, especialmente as socieda-

des americanas mais desenvolvidas – astecas e maias –, a respeito dos quais são abundantes

os estudos em livros e em sites da Internet. Dedicarei à civilização inca a Unidade 4.

110
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

3.2.1 – OS SISTEMAS ALIMENTARES DA AMÉRICA

Tomemos nosso cardápio cotidiano. Tentemos observar que alimentos e bebidas con-
sumimos. Identifiquemo-los e tentemos descobrir de que região e que povos ao longo dos
séculos os domesticaram. Descobriremos que nosso cardápio cotidiano é verdadeiramente
mundial. Os alimentos que consumimos no dia a dia foram domesticados por povos da Ásia
do Leste e do Oeste, da Europa, da África e da América.

Que significa domesticar alimentos, plantas e animais? Domesticar significa tornar


doméstico. Domus, em latim, significa casa. É daí que vem, por derivação, domínio, dominus
(senhor). Domesticar significa estar sob o poder de alguém. Deixar de ser, de agir segundo
sua vontade, para agir ou ser sob o poder de outrem.

Então, domesticar plantas e animais significa obrigá-los a agir, a se comportar confor-


me a vontade ou a determinação da espécie humana e não de acordo com a espécie animal
ou vegetal a que pertencem. A domesticação é, em última instância, um processo secular, às
vezes milenar, de seleção de determinadas espécies animais e vegetais de acordo com as
necessidades humanas e não de acordo com as necessidades das espécies que, por oposição
às domesticadas, nós passamos a chamar de “selvagens”.

A domesticação de plantas e animais é, como vimos, um longo processo secular ou


milenar e modifica a vida dos grupos humanos primitivos sob muitos aspectos:

– abandonam suas antigas formas de busca de alimentos por meio exclusivamente da caça,
da coleta e da pesca, substituindo-as pelo cultivo de plantas e pela criação de animais;

– abandonam também o nomadismo, isto é, o deslocamento contínuo dos locais de moradia e


refúgio para seguir os deslocamentos das manadas de animais ou ir em busca de ecossistemas
ricos de frutas e grãos alimentícios. Os seres humanos “sedentarizaram-se”, isto é, passa-
ram a morar em aldeias mais ou menos permanentes, das quais, não raro, originaram-se
cidades, que são as formas mais aperfeiçoadas e permanentes de moradia humana;

– criam normas, regras e formas de organização social e convivência novas e mais comple-
xas, bem como regras de consumo e abstinência: não se pode comer tudo, imediatamen-
te. É preciso distribuir o consumo ao longo do ano até a próxima colheita, nem se pode

111
EaD Din art e Belat o

consumir as sementes e os animais destinados à reprodução. Impõe-se a organização do

trabalho segundo as estações definidas pela posição da Terra em relação ao Sol, o que

inicia a longa trajetória da descoberta dos calendários e dos métodos eficazes de marca-

ção do tempo. E surgem os deuses e as deusas, não só como garantidores e justificadores


da ordem e da disciplina social, como também da marcação dos passos civilizatórios: os

deuses representam tanto os avanços da humanização quanto as realizações que propi-

ciaram tais avanços. Os deuses são, sob este aspecto, sofisticadas simbolizações do tra-

balho humano de criação da sociedade e dos meios necessários à sua reprodução contí-
nua no espaço e no tempo e são guardados na memória coletiva como narrativas míticas.

Algumas dessas narrativas são cosmogonias, isto é, mitos que contam a origem do mun-

do e dos homens. Os mitos judaicos, egípcios, babilônicos e a genealogia dos deuses

gregos são exemplos de tais mitos. Outros são mitos que narram aventuras, criações,
benefícios ou desgraças singulares, como o mito de Prometeu, que teria roubado o fogo

dos deuses para dá-lo à humanidade, compadecido dela porque vivia na escuridão e no

frio, ou o mito de Noé, personagem que está sempre presente nas civilizações das águas,

lá onde a irrigação é uma bênção, uma dádiva, mas que pode se converter em desgraça
quando as águas, pelas cheias, fogem ao controle das represas e canais.

Os mitos, invariavelmente, têm como fundo a imprescindível condição humana de


trabalhar. Não há mundo, não há humanidade, não há nada sem trabalho. É o trabalho
que cria o mundo. O mito da criação do mundo e do homem tal como narrado na bíblia

nos conta que Javé criou o mundo trabalhando seis dias e, cansado, repousou no sétimo.
Adão e Eva, por comerem o fruto proibido, receberam a incumbência de trabalhar segundo
uma divisão sexual do trabalho, isto é, segundo as tarefas que são próprias do homem e da

mulher.

Caim e Abel, filhos de Adão e Eva, trabalham: um cria gado, o outro cultiva o trigo. Eis

a divisão social e técnica do trabalho, que exprime as duas formas básicas das sociedades
agrárias antigas: as sociedades agrícolas e as sociedades pastoris. Da criação do mundo a
partir do nada à divisão técnica do trabalho temos duas gerações. Sabemos hoje que do Big

Bang à divisão técnica do trabalho são 14 bilhões de anos. Há evidente contradição entre as
duas versões, no entanto o que o mito nos passa é que, simplesmente, o mundo humano
nasce do trabalho. E assim são todos os demais mitos, dos demais povos.

112
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

a) O pão nosso de cada dia

Voltemos ao nosso cardápio cotidiano. Observe os dois mapas a seguir: o primeiro indica
os centros e subcentros de domesticação de animais e plantas e o segundo nos mostra de que
forma plantas e animais domesticados se expandiram pelos continentes e foram sendo adap-
tadas cuidadosamente em cada novo ecossistema em que eram introduzidos. A domesticação
não é, portanto, um processo fechado, ele requer sucessivas domesticações e adaptações, do
que resulta, de um lado, a repetição em cada sociedade dos efeitos sociais produzidos pela
domesticação original e, de outro, a ampliação das espécies e variedades domesticadas.

Fonte: Mazoyer; Roudart, 2001.

113
EaD Din art e Belat o

Fonte: Mazoyer; Roudart, 2001.

O deslocamento das espécies domesticadas pelos continentes é um indicativo de como


os seres humanos se deslocavam e entre si trocavam animais, plantas e sementes e enrique-

ciam, deste modo, seus sistemas alimentares cotidianos, embora ainda hoje seja possível

identificar nos sistemas alimentares aqueles que são os originais antiqüíssimos: no Oriente

Médio e Europa o trigo é o alimento básico, é o “pão nosso de cada dia”, no Sul, Sudeste e
Leste da Ásia, o arroz é o alimento básico; na África, o inhame, o arroz africano, o sorgo, e

na América, o milho, a batata, a batata-doce e a mandioca.

114
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

A partir do século 16, as viagens, as descobertas, a colonização européia na América,

na África e na Ásia dão início a uma fase acelerada de deslocamentos e trocas de plantas e
animais em escala mundial e sua adaptação aos mais variados ecossistemas. Processo que
segue ocorrendo ainda hoje de forma cada vez mais acelerada. E nosso cardápio cotidiano é
verdadeiramente global:

– Nosso desjejum tem: café (da Arábia e Etiópia), manteiga, queijo, leite (do Oriente
Médio), presunto, salame (da Europa), banana (da Indonésia), pão (Oriente Médio), bana-
na e açúcar (da Nova Guiné).

– Nosso almoço tem: arroz e óleo de soja (da China), carne de gado, de ovelha, de
cabra (do Oriente Médio), carne de porco (da Europa), feijão (da América Central), alho e
cebola (do Egito), batatinha, batata-doce, abóbora, mandioca, óleo de girassol, abacaxi e
pimenta, tomate e carne de peru e uma boa sobremesa de chocolate (da América).

– Nossa janta, em geral uma refeição mais leve, pode ter uma pizza com cobertura de
cebola, azeitonas, queijo, tomate, presunto de porco e de peru. A pizza pode ter cobertura
de chocolate com uma boa pitada de coco (que vem da Indonésia) ou banana flambada. Se,
porém, desejamos uma refeição à base de frutas, o cardápio pode ter melancias, melões,
laranjas, limões, peras da Ásia Central, bem como maçãs, figos, damascos, uvas, abacates,
abacaxi.

Como se pode ver, é possível reunir o trabalho de bilhões de pessoas, ao longo de


milênios, num simples prato de comida que temos a nossa frente em cada refeição diária.
Assim visto, o prato já não é mais um simples prato de comida. Ele resume milênios de
história humana, da sobrevivência humana oriunda do trabalho multiplicado, acumulado e
sintetizado num prato de comida. Parto do pressuposto de que o trabalho humano e a pro-
dução de alimentos necessários à vida estão na origem e fundamentam as civilizações. Não
poucos historiadores identificam as civilizações por seu alimento básico: a civilização do
arroz, a civilização do pão (e do vinho), a civilização do milho, da batata ou da mandioca.

Vejamos a contribuição dos povos da América para o sistema alimentar da humanida-


de. Há, em primeiro lugar, os grandes alimentos, aqueles que estão na base de alimentação
diária de bilhões, como o milho, originário e domesticado no México, a batata – conhecida

115
EaD Din art e Belat o

como batata inglesa, mas que é originária de variados ecossistemas do Peru, da Bolívia e

Colômbia –; a mandioca, da América Central. O milho e a mandioca ganharam importância

suplementar porque são também componentes fundamentais na composição das rações dos

animais. Sem milho, mandioca e farelo de soja (esta da Ásia), seria inimaginável e inviável o

atual sistema de produção em escala de suínos, aves e leite e engorda confinada de bovinos.

E há, em segundo lugar, os alimentos que embora não façam parte do nosso cardápio

cotidiano, ganham importância crescente no sistema alimentar mundial: o abacate, o amen-

doim, o abacaxi, o mamão, a quinoa, a batata doce e o cacau.

Em terceiro lugar, a América domesticou uma planta inebriante, capaz de produzir

alterações psicológicas, sobretudo quando usada em rituais xamânicos ou celebrações cole-

tivas: o tabaco. Os europeus rapidamente o difundiram pelo mundo, convertendo-se num

hábito pernicioso por força do modo como é consumido indiscriminadamente.

Em quarto lugar estão as plantas que tiveram pouca difusão inicial, mas ganham

importância nos hábitos alimentares contemporâneos, seja como um modo de variar a ali-

mentação diária, seja como meio de organizar regimes alimentares mais saudáveis e mais

equilibrados: as abóboras, as morangas e abobrinhas (originárias do México e da América

do Norte); o pimentão (e muitas pimentas), a sapota, o amaranto, a quinoa, o girassol, o

tremoço; a oca, a papalisa e a isaño (variedade de batatas cultivas pelos povos andinos) e a

erva mate.

Em quinto lugar estão as plantas que só muito recentemente estão disponíveis para

nosso consumo, mas que eram cultivadas há milênios pelos povos indígenas da Amazônia e

do Cerrado Brasileiro, como o açaí, o cupuaçu e o pequi, por exemplo.

Já vimos que a domesticação de plantas e animais inicia a sedentarização dos grupos

humanos nômades, mas exatamente quando esses grupos começaram a ser efetivamente

sedentarizados? Segundo Mazoyer e Roudart (1997), quando eles se tornaram capazes de

produzir regularmente três fontes alimentares e de fibras básicas: um ou mais cereais para o

provimento de calorias, uma ou mais fontes de proteínas vegetais e uma ou mais plantas ou

animas portadores de fibras para a tecelagem do vestuário, redes, sacos, etc.

116
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Na América Central, por volta de 3500 a.C.

...os agricultores indígenas dispunham de um cereal, o milho, e de uma leguminosa alimentar, o


feijão, que lhes permita suprir suas necessidades calóricas e protéicas e de uma planta têxtil, o
algodão. É a partir daí somente que a agricultura se tornou o modo de exploração do meio
ambiente senão exclusivo, pelo menos nitidamente predominante e que as populações se
sedentarizaram nas aldeias que se tornam permanentes ao longo do vale do Tehuacan e de
muitos outros sítios como Taumalipas, Oaxaca, etc. (Mazoyer; Roudart, 2001, p. 76-77).

Na América do Norte, na região compreendida entre as montanhas Apalaches e as


grandes pradarias continentais, aí os povos indígenas, a partir de 4.000 anos a.C., domesti-

caram o sabugueiro do banhado, a abóbora, a abobrinha e a moranga, o girassol e a anserina

(falso morango). Só por volta de 250 d. C., porém, é que esses povos conseguiram produzir

permanentemente os alimentos básicos que lhe permitiram a sedentarização: a “sempre noiva”,


a cevadinha e uma variedade de milho miúdo. Segundo Mazoyer e Roudart,

[...] a agricultura da América do Norte dispunha de sete plantas cultivadas, que forneciam
algo como dois terços da alimentação dos agricultores sedentários. Eles dispunham também
de machados de pedra, enxadas, pedras de moer os grãos e silos. Mas tarde, chegou o milho
vindo do México, que, mais tarde ainda, tor nou o cereal mais importante (1997, p. 83. Tradu-
ção Belato).

Na América do Sul as sociedades indígenas evoluíram em ritmos muito diversos, mas

em todos os lugares ocorreram intensos processos de domesticação de plantas e animais.

Os grandes vales da Cordilheira dos Andes, bem como seus Altiplanos, em particular o

da atual Bolívia, como afirmam Condori et al (2008) “... fazem parte dos oito centros mais

importantes de domesticação de plantas do mundo”.

Aí os agricultores domesticam a partir de 6.000 a.C. o feijão de lima, o amendoim, a


batata, a oca, a quinoa, o tremoço, o porquinho da Índia, a lhama, a alpaca.

Mais tarde, em data incerta, chegou da América Central o milho, que se expandiu
também para o restante da América do Sul, juntamente com a mandioca e a batata-

doce.

117
EaD Din art e Belat o

Esta base alimentar dará origem à civilização andina, e inclusive, mais tarde, ao

surgimento de um império sob o comando dos índios incas. Processos civilizatórios seme-

lhantes ocorreram na América Central e México. Veremos a seguir como tal trajetória estava

também em curso por toda a parte na América do Sul .

b) A memória mítica da domesticação de plantas e animais

Os povos indígenas da América, como os demais povos, guardaram em sua memória

coletiva narrativas míticas que marcaram os diversos momentos de sua existência como

grupo social e as condições de sua reprodução no espaço e no tempo. As narrativas míticas


são de uma extraordinária objetividade e clareza.

Vejamos alguns exemplos.

– Para que todos possam viver, é preciso morrer.

[...] o primeiro dos índios (da tribo Modoc, noroeste dos EUA), Kumokuns, construiu uma aldeia
nas margens do rio. Embora os ursos tivessem bons refúgios para proteger-se e dormir (no inver-
no), os veados se queixavam que fazia muito frio e que o pasto era escasso.

Kumokuns então construiu outra aldeia longe daí e decidiu passar a metade do ano em cada
uma. Dividiu o ano em duas partes, seis luas de verão e seis luas de inverno, e a lua que sobrava
foi reservada para as mudanças.

E muito feliz foi a vida alternada entre as duas aldeias e se multiplicaram assombrosamente os
nascimentos, porém os que morriam não queriam partir e a população cresceu de tal modo que
não havia maneiras de alimentá-la.

Kumokuns decidiu então expulsar os mortos. Ele sabia que o chefe do país dos mortos era um
grande homem e não maltratava ninguém.

Pouco tempo depois, morre a filha de Kumokuns. Morreu e partiu para o país dos mortos como
se havia estabelecido. Desesperado, Kumokuns consultou o porco-espinho. “Foste tu que decidis-
te”, desse o porco-espinho, “agora deverás sofrer a morte da filha como qualquer outro”.

Kumokuns viajou ao país dos mortos para buscar sua filha. Agora, tua filha é minha, desse o grande
esqueleto que era o chefe aí. Ela não mais tem nem carne nem sangue. Que pode ela fazer em teu país?

Kumokuns respondeu, eu a quero mesmo assim. O chefe do país dos mortos, depois de pensar
longamente disse: leve-a, mas advertiu-o. Ela caminhará atrás de você. Ao aproximar-se do país
dos vivos, a car ne tornará a cobrir seus ossos. Tu, porém, não poderás olhar para trás antes que
tenhas chegado, me entendeste bem? Dou-te esta oportunidade.

118
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Kumokuns iniciou o caminho de volta. A filha caminhava a suas costas. Por quatro vezes lhe
tocou a mão e a sentiu cada vez mais recoberta de carne e quente, e não se voltou para trás.
Quando, porém, já apareciam no horizonte as matas, não agüentou o desejo de vê-la e virou a
cabeça para trás. Um punhado de ossos desabou diante de seus olhos (Galeano, 1990, p. 38-39).

A narrativa mítica é de uma crua beleza extraordinária, acentuada pela dimensão

trágica e incontornável da morte. E nos ensina que a morte é uma necessidade social. Os
seres humanos, tal como os demais seres vivos, reproduzem-se e morrem. Só não morreriam

se não se reproduzissem.

Os Modoc haviam sabiamente resolvido suas necessidades alimentares alternando a

exploração de dois ecossistemas, tirando proveito de ambos, pois os alimentos em um só

deles não era suficiente. O resultado foi a multiplicação do grupo e a permanência dos

mortos entre os vivos, com as mesmas necessidades destes. Rapidamente a sociedade entrou
em colapso. Foi preciso então incorporar a morte como a condição de vida dos vivos. E

justificá-la, não como maldição, mas como necessidade e dor.

Um mito muito parecido com este é narrado pelos índios de Huarochirí do Peru.

Cinco dias depois de sua morte, como era costume, os mortos retornavam ao Peru. Tomavam um
copo de aguardente e diziam: agora sou eterno. Havia gente demais no mundo. Plantava-se até
no fundo dos precipícios e na borda dos abismos, mas não havia comida para todos. Então
morreu um homem em Huarochirí. Toda a comunidade reuniu-se, no quinto dia, para recepcioná-
lo. Esperaram-no da manhã até noite alta. Esfriaram as comidas fumegantes e o sono pesou
sobre as pálpebras. E o morto não voltou.

Só apareceu no dia seguinte. Estavam todos muito furiosos. A que mais fervia de indignação era
sua mulher que saiu gritando: vadio, sempre o mesmo preguiçoso! Todos os mortos são pontuais,
menos tu. O ressuscitado gaguejou uma desculpa, porém ao mulher lhe jogou uma espiga de
milho na cabeça que o deixou estendido no chão. A alma escapuliu do corpo e fugiu voando veloz
como o zumbido de uma mosca, para nunca mais voltar. Desde esse dia, nenhum morto tornou a
juntar-se aos vivos e a disputar-lhe a comida” (Galeano, 1990, p. 39).

A narrativa, bastante semelhante à anterior, tem algumas características próprias: a

primeira delas, que se trata de uma população que abandonou completamente o nomadismo,

tem uma agricultura bem estruturada, capaz inclusive de cultivar terrenos difíceis. Revela
igualmente uma comunidade com uma vida cultural intensa, expressa aqui nos rituais de

119
EaD Din art e Belat o

culto aos mortos mediante um banquete fúnebre do qual participavam todos. Finalmente

revela, de um lado, a necessidade imprescindível da morte para o equilíbrio da comunidade

e da sua reprodução continuada e, de outro, o limite numérico de membros da comunidade

que está, por sua vez, associado ao trabalho e à terra cultivável disponível.

É notório que nas imprecações da mulher contra o marido ela o chame de vadio, pre-

guiçoso, que foge do trabalho, que vive no ócio. A comunidade não pode carregar homens
sadios em suas costas. O trabalho é aqui, para o preguiçoso, castigo. É provável que o mito

guarde indiretamente a prática de eliminar as pessoas inválidas, os que não querem traba-

lhar, e os velhos, em benefício dos que são capazes de dar continuidade física, material e

simbólica à comunidade.

c) Os humanos são feitos de comida

Nós lemos na Bíblia que uma vez ocorrida a sedentarização, que se fez acompanhar

da divisão social do trabalho entre agricultores (Caim) e pastores (Abel), era necessário

definir qual era o grupo de alimentos imprescindíveis para a sobrevivência dos homens. Nós
sabemos que, neste caso, foi a criação de gado e complementarmente, a agricultura – trigo,

lentilhas, gergelim, ricos em carboidratos e proteínas, vegetais. No caso dos povos da Amé-

rica Central, a escolha não poderia ser outra senão o milho. A centralidade do milho na

alimentação desses povos é tão enfática que ele é a matéria (e o espírito) de que são feitos os
homens e as mulheres.

Os deuses fizeram de barro os primeiros mayas-quichés. Sobreviveram por muito pouco tempo.
Eram molengos, sem força e se desmancharam antes de caminhar.

Experimentaram então a madeira. Os bonecos falaram e caminharam, mas eram secos, não
tinham sangue e substância, memória ou rumo. Não sabiam falar com os deuses e não sabiam o
que dizer-lhes.

Então, os deuses fizeram de milho os pais e as mães. E com milho amarelo e branco amassaram
sua carne.

As mulheres e os homens de milho enxergavam como os deuses. Seu olhar se estendia sobre o
mundo inteiro. Os deuses então os envolveram numa nuvem de neblina e seus olhos ficaram
nublados para sempre porque os deuses não queriam que os homens e as mulheres enxergassem
para além do horizonte (Galeano, 1990, p. 32-33).

120
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

O milho é a matéria de que são feitos os deuses e os humanos. Eis um modo de dizer

onde está a centralidade absoluta, ao redor da qual gira a sustentabilidade da reprodução

da sociedade, inclusive e, sobretudo, a condição de sua reprodução cultural, porque se só

aos deuses cabe o poder de tudo ver e tudo conhecer, aos humanos cabe o esforço de conhe-
cer os sucessivos horizontes humanos. A metáfora do horizonte é sugestiva porque se é im-

possível abarcar todo o mundo com um só olhar, é possível caminhar de um horizonte para

outro, para sempre. O mito, penso, contém e exprime a dinâmica interna da civilização

maia, indubitavelmente a mais sofisticada de quantas se desenvolveram na América.

d) os alimentos básicos e as terras férteis são feitos da carne de um filho de Deus.


Este mito peruano situa-se num momento em que a agricultura está bem organizada
e o cultivo dos alimentos básicos bem estabelecido

Pachacamac, que era filho do (deus) sol moldou um homem e uma mulher na região árida de
Lurin. Como não havia comida, o homem morreu. A mulher, enquanto estava agachada escavan-
do o chão em busca de raízes, o sol entrou nela e ela concebeu um filho. Pachacamac, ciumento,
agarrou o recém-nascido e o esquartejou. Mas logo se arrependeu temendo a ira de seu pai, o sol,
e espalhou pelo mundo os pedaços do corpo de seu irmão assassinado. Dos dentes do morto,
brotou o milho; dos ossos e das costelas nasceu a mandioca; seu sangue tornou férteis as terras e
da carne espalhada nasceram árvores frutíferas e de sombra (Galeano, 1990, p. 32).

E há muitas outras narrativas míticas como esta que ritualizam e sacralizam o uso do

tabaco:

“... Os índios suplicaram ao Avô (deus) que descesse do céu... mas ele preferiu ficar lá.

O Avô então enviou o tabaco para que ocupasse o lugar dele entre os homens. Fumando, os

índios conversam com deus” (p. 33-34).

A erva-mate, cultivada e consumida largamente pelos guaranis ao longo dos grandes rios
Paraguay, Paraná e Iguaçu e seus afluentes, tem também uma história mítica e a erva-mate é uma
doação da deusa lua. A lua desejava muito comer frutas e banhar-se nas águas de um rio. Uma
noite, as nuvens cobriram a terra e a lua pôde descer e experimentou muitas frutas e nadou
prazerosamente nas águas do rio. Foi salva duas vezes por um velho lavrador, que a livrou de um
ataque do jaguar e de morrer de fome. Levou-a à sua casa e a mulher lhe disse: te oferecemos
nossa pobreza, e lhe deu de comer algumas tortilhas de milho. O lavrador vivia numa cabana,
numa clareira da floresta com a mulher e a filha. A lua notou que nada havia mais para comer na

121
EaD Din art e Belat o

casa. Iluminou o lugar com sua melhor luminosidade e das nuvens desceu um chuvisco muito
especial. No dia seguinte do chão haviam surgido árvores desconhecidas, de folhas escuras e
flores brancas. A filha do velho lavrador nunca morreu. Ela é a dona da erva-mate e anda pelo
mundo oferecendo-a a quem queira. A erva-mate desperta os homens, corrige os vadios e pregui-
çosos e irmana as pessoas que não se conhecem” (p. 34-35).

Novamente a lua, deusa da noite, doa a uma família pobre – o mate sempre foi a
bebida dos pobres –, que o oferece a todos que queiram irmanar-se, bebendo-o. A transfigu-

ração do trabalho humano, sublimado e alienado aos deuses, é constante e demarca as


bases civilizatórias de um povo. O trabalho ganha as dimensões simbólicas que garantem e
legitimam as relações de trabalho e a distribuição social de seus resultados, bem como todas
as formas de expropriação e tributos, condição de emergência do Estado e das classes soci-
ais, bem como de uma divisão social do trabalho, que dá origem a uma sociedade mais
complexa.

É nesta etapa que se acelera a urbanização dos que são liberados da produção de
alimentos, aí concentrando a burocracia civil, religiosa e militar, bem como toda a espécie
de artesãos e trabalhadores que produzem bens para os deuses, para a guerra e para o rei. O
tamanho da produção de excedentes alimentares das sociedades agrárias nos dá a medida
de sua amplidão civilizatória.

Sob este aspecto, as civilizações agrárias do Egito, Mesopotâmia e China são estrutu-
ralmente semelhantes às civilizações agrárias da América: incas, astecas e maias e dos de-
mais povos da América.

3.2.2 – OS SISTEMAS ALIMENTARES DOS ÍNDIOS BRASILEIROS:


a civilização emerge na Amazônia

[...] Já morando na aldeia, o mutum passou a levantar de madrugada para conversar com os
cunhados; com o pessoal todo do coeme (seu sogro). Dizia que era preciso que trabalhassem
bastante, abrissem roças grandes, porque sem roça não se pode viver. Trabalhar, trabalhar todos
os dias, para poder viver melhor. Todas as tardes e madrugadas o mutum e o sogro dele saíam
para a praça da aldeia a fim de aconselhar e ensinar o pessoal. O mutum era muito trabalhador,
tinha muitas roças e plantava todas as coisas: milho, mandioca, cará, batata (doce), algodão,
tudo ele cultivava...” (Villas Boas; Villas Boas, 1976, p. 144-145).

122
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Mazoyer e Roudart, como vimos, nos ensinam que, quando grupos humanos põem em

andamento a produção sistemática de alimentos ricos em proteínas e carboidratos e dis-

põem de fibras para a tecelagem, estão dando o primeiro grande passo para a sedentarização

definitiva e podem, a partir daí, construir relações sociais cada vez mais complexas. Os
índios brasileiros são todos neolíticos, eram exímios agricultores e tinham à sua disposição,

para cultivo, plantas por eles domesticadas que lhes forneciam a ração alimentar básica.

Esses povos não dispensavam ainda nem a caça, nem a coleta, mas essas atividades se

tornavam cada vez mais complementares e dependentes da agricultura.

Para ilustrar este item, pois é impossível dar conta da diversidade dos sistemas agríco-

las e alimentares dos indígenas brasileiros, escolho uma área para a análise e alguns povos
indígenas da Amazônia. Apoio-me nos textos recolhidos pela Suma Etnológica Brasileira,

volume 1, intitulado Etnobiologia, nos estudos de Warwick E. Kerr, Darrell A-Posey, Claude

Lèvi-Strauss, entre outros (apud Ribeiro, 1986a).

a) O trabalho de domesticação de plantas pelos índios da Amazônia

A Amazônia é a região do planeta de maior biodiversidade. As populações indígenas,

há milênios, vivem dessa biodiversidade, seja como coletores, seja como sujeitos ativos na
escolha e seleção das plantas que melhor atendam suas necessidades alimentares, fibras

para tecelagem e trançado de cestaria, madeiras para seus instrumentos de trabalho e cons-
trução de habitações. Conheciam detalhadamente a diversidade dos nichos ecológicos e o
modo como estes se constituem e operam. Como observa Kerr: “um dos aspectos mais

assinaláveis da agronomia e da botânica indígena é sua pre ocupação em manter a


heterogeneidade genética das plantas, tal como ocorre na natureza” (Kerr, 1986, p. 160).

O autor descreve em que consiste esta heterogeneidade genética, como os índios nela
intervinham deliberadamente com vista à obtenção de resultados esperados:

Como se sabe, uma alta freqüência – mais de 50% – das espécies botânicas da Amazônia tem
fecundação cruzada obrigatória: dióicas (macho e fêmea) ou com mecanismos de auto-esterili-
dade, inclusive monóicas e hermafroditas. Isto indica a importância da produção de enormes
quantidades de genótipos para ocupar, em competição inter e intra– específica, um elevado número
de nichos ecológicos. Ao lado desse mecanismo diversificador e inovador existe um outro, alta-

123
EaD Din art e Belat o

mente conservador: a reprodução vegetativa, por meio de rizomas (ariá), brotamento do caule
(pau-rosa, pupunha, açaí), brotamento das raízes (araçá-peva, bacuri e muitas outras espécies),
brotamento de manívas (mandioca, cupá) e bulbos. Essa aliança proporciona às plantas o máxi-
mo de possibilidades de preservação da espécie: por meio de sementes, distribuindo amplamente
milhares de combinações genéticas diferentes por ano, e vegetativamente, reproduzindo a planta
do mesmo local em que o antigo genótipo fora bem-sucedido (Kerr, 1986, p. 160).

O milho, a mandioca e a abóbora são plantas vindas da América do Norte e da Améri-

ca Central. Os índios as adaptaram aos diversos ecossistemas, reproduzindo-os e multipli-

cando suas variedades que, a partir de poucos exemplares, se contam às centenas.

De todas elas os índios guardavam o germoplasma, cultivando-as em suas roças. E

observa Kerr (1986, p. 160): “O maior número de cultivares que encontrei numa tribo foi o

de mandioca. Isso se deve ao fato de exercerem os agricultores índios, nessa espécie, um

perfeito controle da reprodução assexuada”. E acrescenta Kerr, mostrando como os índios

operavam a seleção e, portanto, a domesticação da mandioca:

Observando as roças dos Kayapó, Yamamadí, Paumarí, Tukúna, Desana e Galibí, verifiquei que
cada variedade é plantada, na quantidade desejada, em terrenos separados por troncos de árvo-
res. Não obstante isso, elas participam, na floração, de um mesmo conjunto gênico e, conseqüen-
temente, há produção de novo clone em cada semente produzida (1986, p. 160).

O sistema agrícola indígena como um todo obedece a duas lógicas básicas: o conheci-

mento e o manejo do ecossistema existente e a intervenção deliberada sobre o ecossistema

existente para o controle da reprodução das espécies básicas para provimento da alimenta-

ção da comunidade.

Tomemos o exemplo dos Kayapó, agricultores-produtores de milho, mandioca, batata-

doce e uma variada fruticultura. Os Kayapó estudados por Kerr vivem no sul do Pará. Eles

cultivam 11 variedades de milho. O método de cultivo deste germoplasma é muito cuidado-

so: “Os Kayapó escolhem, em geral, as 20 melhores espigas para semente de cada espécie. O

terço mediano dessas espigas é seco ao sol e guardado numa cabaça (porongo) tapada com

cera. Esse depósito é colocado sobre o fogão, no interior da casa, para evitar o ataque de

caruncho”.

124
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

E acrescenta Kerr: “Os Kayapó demonstram grande interesse por sementes de tribos
vizinhas...” (1986, p. 160).

Antes do plantio das sementes os Kayapó aplicam-lhes um tratamento com os bulbos


macerados de “costos warmingi”, uma planta aparentada ao gengibre, que protege e fortifi-
ca as sementes.

A batata-doce é, para muitos povos da Amazônia e do Cerrado, seu alimento básico.


Os Timbira e os Kayapó cultivam 22 variedades de batata-doce. E multiplicam suas varieda-
des mantendo as batateiras por até quatro anos, algumas apresentando flores. Esta circuns-
tância e mutações somáticas explicam o aparecimento de novas variedades. No sistema de
plantio os índios inventaram um método eficiente para eliminar os vírus que atacam a bata-
ta: enterram a batata no solo entre 9 e 15 cm e a seguir põem fogo na roça. Hoje os agrôno-
mos recomendam aos cultivadores de batatas-doces que as submetam a 48ºC durante 45 a
60 minutos. O calor destrói os vírus que atacarão as ramas e os frutos. O efeito é o mesmo
daquele obtido pelos índios com seu método.

A mandioca, outro alimento básico dos índios da Amazônia, se distingue pela grande quan-
tidade de variedades que são simultaneamente cultivadas. Os índios Desana cultivam 40 varieda-
des; os Kayapó 21; os Yamamadí 17; os Polikur, Qalibi, Tukuna 14 e os Paumari 12. Algumas
variedades recebem, entre os Desana, nomes curiosos: mandioca não-tem-pai; estrume-de-abe-
lha; tatu; gato-branco; de paca; de tucunaré; ovo-de-tartaruga, etc. (Kerr, 1986, p. 167).

O cará é também muito cultivado pelos índios, que dele selecionaram 21 variedades. A
prática de seleção dos índios consiste em plantar duas variedades em cada cova, promoven-
do a competição entre elas, da qual resulta a seleção continuada e permanente das melho-
res variedades e boa produtividade. Cultivam e selecionam também o ariá, um bulbo da
espécie das marantáceas, de elevado teor de proteína (6,6 %) e de amido (13%), rico igual-
mente em metionina e ácido glutâmico.

O cupá é um cipó da família das vitáceas, domesticado pelos índios há cerca de mil
anos. É conhecido também como mandioca aérea. Os frutos da variedade selvagem não ultra-
passam 1 cm de diâmetro, já melhorada e selecionada pelos Kayapó, Xerente e Timbira alcan-
ça até 8 cm de diâmetro. Contém 1,2% de proteína, 18% de carboidratos e 1% de gordura.

125
EaD Din art e Belat o

Cultivam também o amendoim que, juntamente com a castanha-do-pará, é a fonte


principal de proteína e gordura vegetal. Cultivam em suas hortas uma variedade grande de
vegetais: três variedades de fava e diversos temperos, como: pimentas, gengibre, seis varie-
dades de urucu e uma de algodão.

Cultivam e consomem o tabaco, mas, segundo Kerr

... é menos tóxico que o dos brancos. Isto porque além de ser fumado através de um pito (cigarro)
longo, é feito de folhas de pelo menos cinco espécies: de fumo, de amendoim, de gengibre, de
guando e de casca de uma planta da família das canáceas... Para melhorar o odor misturam ao
tabaco sementes de cumaru (1986, p. 170).

O pomar das tribos de índios agricultores-horticultores é extenso e resultou de um


secular processo de seleção e adaptação. Todas as espécies e variedades cultivadas tiveram
como efeito da intervenção humana o aumento do tamanho dos frutos, de sua polpa e de
suas qualidades organolépticas. Examinemos algumas dessas plantas, a partir dos dados do
etnobiólogo Kerr (1986).

O abiu (Pouteria Caimito) selvagem tem frutos que pesam cerca de 30 gramas. As
árvores selecionadas pelos índios produzem frutos que chegam a pesar até 1.800 gramas.

O mapati selvagem (também conhecido pelos nomes de puramã, cucura ou uvilha)


tem frutos em cachos, como a uva. Na natureza são pequenos e a espécie é pouco produti-
va. Os índios Tukuna e Tukano selecionaram variedades que chegam a produzir, com frutos
maiores, até 1.200 cachos.

A sapota, domesticada pelos índios Tukuna do Alto Solimões é um caso certamente


espetacular:

A planta selvagem produz frutos medindo apenas 9 a 12 cm de comprimento por 3 a 5 cm de diâmetro.


As seleções feitas pelos índios Tukuna, produziram árvores carregadas com 3.000 a 8.000 frutos, quase
esféricos, de 10 a 15 cm de diâmetro, pesando entre 700 e 1300 gramas (Kerr, 1986, p. 162-163).

A pupunha é uma árvore tão importante quanto a mandioca para muitas tribos, entre

elas os Yanomami, May-ongong, Tukano, Desana e várias outras.

126
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Sua utilização para a alimentação humana depende de um rigoroso processo de seleção

com vistas a obter frutos sem espinhos, não fibrosos, frutos em baixa altura, precocidade,

facilidade de descascar, bem como dotados de alto valor nutricional: vitamina A, proteínas,

gordura. O método de seleção adotado pelos índios Desana obedece aos seguintes procedi-
mentos para a obtenção dos caracteres desejados das plantas: número de cachos, tamanho do

fruto, eliminação das plantas que produzem frutos com manchas pretas ou rachaduras.

Já os índios Tukuna adotam um método quase cartesiano de seleção da pupunha: para se obter
uma planta sem espinho deve-se colher só sementes sem espinho; entre as árvores que produzem
2, 3, 4 cachos e as que produzem 10, 11, 16, escolhe-se as últimas; o tamanho do fruto deve ser
levado em conta; plantas cujos frutos caem do cacho não devem ter seus frutos plantados; plan-
tas que apresentam frutos podres devem ser desprezadas (Kerr, 1986, p. 163-164).

Os Kaiapó e outros povos indígenas da região cultivam e submetem a métodos de

seleção a banana, o mamão, a castanheira, graviola, araticum, beribá, pequi, tucumã,


bacaba, babaçu, inajá, cajá, taperibá, uxi, cajuí e marmelo (Kerr, 1986, p. 161-166).

Esta amostra de um grupo muito pequeno e localizado de povos indígenas da Amazônia nos
revela um poderoso e secular processo civilizatório, aqui expresso na complexa atividade de
seleção de plantas, de sua identificação, de seus ecossistemas e da conseqüente organização
social. Os antropobiólogos que contataram com as comunidades que mantinham intactas suas
estruturas sociais nunca viram ninguém desnutrido ou faminto. A floresta é superabundante de
alimentos, mas elas só são tais pela ação ininterrupta do trabalho humano.

No entanto, observa Kerr,

... na medida em que os grupos tribais entram em contato com a sociedade nacional diminui, às
vezes de maneira dramática, a diversidade e a qualidade dos alimentos (p. 170), e perdem-se os
conhecimentos agronômicos, botânicos e zoológicos acumulados ao longo de milênios.

E acrescenta Kerr:

Os agentes da civilização ao destruírem os mitos e as crenças religiosas indígenas, afetam tam-


bé m a qu el as vi ncula da s a o r ema ne jo d a na t ur eza , uma v ez qu e a mba s se e nt r os am
indissoluvelmente (1986, p. 170).

127
EaD Din art e Belat o

E ainda;

A etnobiologia (Posey, 1985, p.16) não nos dá tão-somente uma visão clara do modo como os
povos indígenas proviam seus alimentos. A botânica, a etnobotânica, nos ensina também como
os povos indígenas utilizavam os recursos vegetais para fins místicos e inebriantes. Entre estes, o
mais importante é o tabaco, do qual cultivavam muitas espécies, todas elas pertencentes ao
gênero nicotiana. E o utilizavam para fins místicos, curativos, para aguçar a sensibilidade, para
estabelecer acordos, etc. Era consumido puro ou misturado em inúmeras fórmulas com semen-
tes, folhas, cascas e raízes de outras plantas. Fumado em cachimbos, cigarros, charutos, ou
aspirado, sob a forma de rapé. Fortemente marcado por um caráter místico-cerimonial, seu uso
implicava um severo controle social (Cooper, 1986, p. 101ss).

Desta forma:

O consumo de bebidas alcoólicas entre os povos indígenas é menos difundido do que o uso do
tabaco. As bebidas eram obtidas a partir da fermentação do milho, da mandioca, do suco das
frutas, seiva ou fruto de várias espécies de palmeira, sendo as mais conhecidas a chicha, o
massato, o caxiri, o cauin, o vinho de palmeira, de abacaxi e de banana. Os indígenas conheci-
am e manejavam adequadamente a fermentação dos amidos e açúcares e sua transformação
em álcool. A regra para a escolha da planta para fabricar a bebida mais consumida era da
planta de maior consumo na alimentação local e, certamente, quando houvessem excedentes
dela (p. 108ss).

Duas outras bebidas estimulantes foram selecionadas e domesticadas pelos índios: o

mate, a Ilex paraguariensis, e o guaraná, também conhecido como yoco ou cupana, cujo

princípio ativo é a cafeína. De ambas os índios selecionaram, entre muitas espécies, as plan-

tas que até hoje são cultivadas.

Segundo Cooper (1986, p. 117), o hábito de consumir bebidas alcoólicas só está pre-

sente em povos agricultores. Povos nômades caçadores e coletores não podem ter semelhan-

te hábito por falta de matéria-prima para elaborar as bebidas. É preciso cultivar o milho, a

mandioca, o abacaxi ou qualquer outro fruto ou cereal para fabricar o álcool e é preciso ter

deles excedentes para que possam ser usados para esse fim. Não se conhecem casos em que

esses povos tenham bebido sua comida. Bebidas alcoólicas e fumo são, sem dúvida, os dois

inebriantes mais consumidos pelos povos da América do Sul.

128
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Os índios igualmente conheciam grandes quantidades de plantas que utilizavam para tratar de
doenças que incidiam normalmente na população, tais como disenterias, febre, malária, picadas
de insetos, tosse, infecção ocular, lesões da pele, reumatismo, inflamações diversas, dor de gargan-
ta, fungos da pele, lesões de leishmaniose, vermes, queimaduras. Conheciam também contraceptivos
através dos quais controlavam os nascimentos em cada família (Prance, 1986, p. 124-125).

As tecnologias de pesca dos povos amazônicos, grandes consumidores de peixes, além


de anzóis, compunham-se de redes, arcos e flechas, cestos, armadilhas e plantas venenosas
para imobilizar os peixes. O princípio ativo de muitas dessas plantas venenosas, segundo
Prance, são as retenonas, que também são usadas como inseticidas (Prance, 1986, p. 130).
A retenona produz baixa toxidez em organismos de sangue quente, mas é muito tóxica para
peixes e insetos. Intoxica por contato e ingestão.

Se voltássemos ao Egito, à Mesopotamia e à China – grandes centros de domesticação


de plantas e animais – 4 ou 5 mil anos antes de Cristo, descobriríamos povos ativamente
selecionando as plantas dos respectivos ecossistemas em grande número e delas se alimen-
tando, produzindo cervejas e vinhos e bebendo-os, como fez Noé, cultivando plantas medi-
cinais e inebriantes e depois construindo grandes civilizações.

Na América, a partir de 3 ou 4 mil anos antes de Cristo, povos do México, Guatemala,


Peru e Bolívia repetiram a mesma trajetória e as pirâmides, templos e palácios que ergueram
continuam em pé. Há dois ou três milênios do presente, índios da Amazônia, do Cerrado e
do litoral iniciaram uma trajetória de domesticação de plantas de seus ecossistemas e cria-
ram uma sólida base alimentar para suas populações, domesticando inúmeras espécies e
variedades de cereais, leguminosas, tubérculos e raízes.

Possuíam sofisticadas tecnologias de construção de casas e viviam em aldeias que


podiam chegar a mais de mil habitantes. Desenvolveram tecnologias de caça e pesca e ela-
borada arte cerâmica utilitária e ritual, bem como um vasto repertório da arte de tecelagem
de fios e fibras e a arte de trançado da cestaria.

Se a essas civilizações indígenas, terrivelmente impactadas pela chegada dos euro-


peus no século 16, pudéssemos conceder um ou dois milênios, teriam fundado civilizações
do porte do Egito ou Mesopotâmia. Embora a hipótese não mais possa ser verificada, ela
serve para visualizar os povos indígenas na América no momento universal da construção
das civilizações.

129
EaD Din art e Belat o

130
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Unidade 4

AS CIVILIZAÇÕES AVANÇADAS DA AMÉRICA

OBJETIVOS DESTA UNIDADE

• Aprofundar nossos conhecimentos da história das civilizações avançadas da América.

• Estudar a grande contribuição civilizatória dos povos americanos para o mundo.

AS SEÇÕES DESTA UNIDADE

Seção 4.1 – A Geografia do Império Inca

Seção 4.2 – Os Deuses e Divindades

Seção 4.3 – A Polêmica da Escravidão no Império Inca

Seção 4.4 – Códigos e Regulações

Incas, astecas e maias são grupos étnicos que por meio da força militar, das alianças

políticas com outros grupos étnicos e aproveitando-se dos avanços civilizatórios alcançados

e acumulados até então, impuseram aos demais agrupamentos étnicos seu poder e a auto-
ridade de um Estado teocrático e fortemente centralizado, sob muitos pontos de vista seme-

lhante aos antigos Estados despóticos do Oriente Médio.

Sob muitos outros aspectos, porém, eram muito diferentes. Na América, como vimos, não

havia animais de carga: asnos, burros, mulas, cavalos, camelos, elefantes, nem barcos para

navegação a distância. O transporte era todo ele feito às costas, e impedia o desenvolvimento

das trocas entre as três civilizações e mesmo entre as unidades político-administrativas dos
Estados. Os índios do Peru domesticaram o lhama, um camelídeo incapaz de transportar mais

de 50 quilos. Maias e astecas não contavam sequer com um animal de carga tão modesto.

131
EaD Din art e Belat o

A metalurgia igualmente era apenas medíocre e eram raros os instrumentos de traba-

lho em bronze. Desconheciam o ferro. Não conheciam a enxada, nem o arado. Mazoyer e

Roudart (2001, p. 194) destacou que:

Os instrumentos de trabalho de que a sociedade inca dispunha são rudimentares e pouco poten-
tes: pau de cavar melhorado, maço para partir os torrões, enxadinhas de sachar (de madeira),
para fazer regos ou escavar canais, facas para ceifar, cestos para os homens transportarem os
gêneros às costas, albarda (selas) de transporte para os lhamas, cerâmicas diversas, etc... Essas
ferramentas correspondem de fato ao final da época neolítica e a princípios da idade do bronze.
A sociedade inca desconhecia a roda, a atrelagem e o ferro.

A ausência de animais de carga e tiro não impôs a necessidade da descoberta da roda

ou a teria retardado em vários séculos. O artesanato da cerâmica, do qual a roda é um

componente dinamizador e produtivo, era todo executado à mão e moldado com os dedos.

As sociedades asteca, maia e inca, por força dessa composição tecnológica ainda pouco

desenvolvida, apresentavam baixos índices de produtividade do trabalho agrícola. Mazoyer e

Roudart (2001, p.194) nos informam que “... a superfície cultivada por trabalhador é inferior a

um hectare de cultura pluvial (irrigada por chuva) e inferior a meio hectare de cultura irrigada”.

E acrescentam: “... os rendimentos não ultrapassam vinte quintais (2.000 kg) de equi-

valente-cereal de cultura irrigada e estrumada e não atingem dez quintais (1.000 kg) de

cultura pluvial...”

A ausência de animais de carga obrigava os camponeses a gastarem muito tempo e

energia no transporte às costas da produção. Em razão disso, “...a produção agrícola não

podia exceder muito às necessidades dos produtores e das suas famílias” (Mazoyer; Roudart,

2001, p. 194).

Esta fraqueza relativa da agricultura num império agrícola é certamente paradoxal se

levarmos em conta que a administração de tal unidade política requeria recursos de grande

vulto. A originalidade do império inca está no fato de não cobrar qualquer tipo de imposto,

taxa, requisição em espécie ou em dinheiro, ou seja, não há impostos ou tributos no império

inca. O principio básico de tal política é: “não tocar na cozinha do camponês”.

132
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

O Estado então organizou uma “economia paralela” para prover os recursos alimen-

tares de que necessitava e a execução das obras e empreendimentos de infra-estrutura: es-

tradas, canais e represas para irrigação, cidades, palácios, templos, fortificações, minera-

ção, defesa, exército e burocracia civil e religiosa. Para tais empreendimentos e para produ-

zir os alimentos e outros bens necessários, o Estado requisitava o trabalho dos membros da

comunidade camponesa. Trata-se de tributo em trabalho e exclusivamente em trabalho. Este

tributo denomina-se mita.

E o que executava ou prestava este tipo de trabalho chamava-se mitaio. Todos os con-

vocados para a mita e enquanto prestam o trabalho são mantidos com os recursos próprios

do Estado. A peculiaridade do sistema está em que o trabalho circula e não, ou em menor

medida, a produção. O tributo, se se quiser a imagem, é semovente. E considerando que a

população camponesa é o objeto mesmo do tributo, o governo exercia sobre ela um controle

detalhado e preciso, de baixo para cima, permitindo, desta forma, mobilizar rapidamente

grandes contingentes de pessoas. A população masculina e feminina é, para tal fim, classi-

ficada em dez categorias:

[...] bebês de berço; crianças de 1 a 5 anos que ainda brincam; crianças de 5 a 9 anos empregadas
em tarefas acessórias; crianças de 9 a 12 anos encarregadas de afugentar as aves dos campos
cultivados; os adolescentes de 12 a 18 anos que conduzem os lhamas ou aprendem a lidar com
eles; jovens de 18 a 25 anos, que colaboram com os seus pais em todos os trabalhos; adultos de 25
a 50 anos, que trabalham, sujeitos a corvéias e ao recrutamento para serviço militar; homens de
50 a 60 anos, que prestam ainda serviços; velhos trôpegos (sic) de mais de 60 anos que realizam
ainda pequenos trabalhos e dão conselhos; finalmente, os doentes e os enfermos, incapazes de
trabalhar (Mazoyer; Roudart, 2001, p. 197).

O império inca, portanto, se funda sobre os excedentes de trabalho das comunidades

nos diversos empreendimentos do Estado, distribuídos sobre o território. A articulação entre

as unidades sociais e econômicas, que antes do império constituíam reinos independentes,

é operada por uma rede de estradas que unifica o império – que em língua guechua, a língua

dos incas, se chama Tahuantinsuyo – a partir de Cuzco, a capital, nos quatro quadrantes,

chamados de Suyos (ou províncias em língua latina), que por sua vez se desdobravam em

comunidades aldeãs chamados aylus.

133
EaD Din art e Belat o

Fonte: Disponível em: <http://www.europress.pt/LerOSangue/LerOSangue_mapa.jpg>.


Acesso em: 23 jan. 2009.

Tanto nas províncias quanto nos aylus os incas cooptavam a antiga classe dirigente e

a mantinham no poder, seja concedendo-lhe privilégios, seja promovendo casamentos com


mulheres incas. Só nas províncias ou regiões rebeldes é que o Estado impunha uma nova
classe dirigente. Dependendo, porém, do grau de perigo que a região ou grupo étnico repre-
sentavam, populações inteiras rebeladas podiam ser deportadas para outras regiões e/ou
punidas com pena de morte de seus chefes:

[...] se algum senhor étnico – esta era a designação que davam aos antigos chefes tribais ou de
clãs e que foram mantidos no poder pelos incas – tentasse opor-se e rebelar-se, eles (os incas) o
matavam e a toda a sua linhagem, de modo que não restasse ninguém... (Murra, 1998, p. 87).

De maneira geral os governantes incas tratavam, de todas as formas, de obter a fideli-


dade e a obediência dos chefes étnicos. O castigo mais corrente constituía na perda pessoal
do cargo, que passava para o filho mais velho e se não tivesse filhos, para o parente mais
próximo. Mesmo assim, só seria deposto depois de se ter confirmado sua incapacidade, incúria

134
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

ou desobediência em seis faltas graves: desobediência às ordens do representante do rei;

pretensão ou intenção de rebelar-se; negligência no recolhimento e remessa do que era de-

vido; não ter realizado os sacrifícios exigidos três vezes ao ano; ter desviado as tecelãs a

serviço do rei para seu próprio serviço; ter deixado de fazer ou mandar fazer coisas indispen-

sáveis para a realização de outras atividades, por exemplo, não ter mandado consertar as

represas a tempo para a coleta das águas do degelo, o que impedirá os cultivos irrigados

(Murra, 1998, p. 86).

A peculiaridade do sistema político e econômico inca nos fica mais compreensível se

descrevermos o seu sistema agrário de múltiplos ecossistemas e o modo como o sistema

inter-relaciona suas partes.

Seção 4.1

A Geografia do Império Inca

O império inca expandiu-se a partir de seu centro, Cuzco, para o norte até Quito (no

Equador), para o sul até o Chile e o pampa argentino, para o oeste até o Pacífico e para o

leste até as bordas da floresta amazônica. De norte a sul 4.000 quilômetros por 300 a 400

quilômetros de largura, em média, pondo sob seu poder e obediência 70 grupos étnicos

diferentes.

As montanhas dos Andes representam um quarto do território do império e é compos-

to, em boa parte de sua extensão, de duas cordilheiras, paralelas, com orientação nordeste/

sudoeste. A paisagem daí decorrente é muitíssimo movimentada, feita de altas montanhas

com seus planaltos frios e secos, vales profundos com suas vertentes encachoeiradas e pla-

nícies aluviais de altitude (cf. Mazoyer; Roudart, 2001, p. 184). A paisagem no interior da

cordilheira também pode ser lida pelas formações ecológicas que lhe dão origem e que, se-

gundo Mazoyer e Roudart, são os seguintes:

135
EaD Din art e Belat o

– A formação quéchua, que compreende os fundos de vales e as suas vertentes até 3.600 metros de
altitude, e a formação Suni que vai de 3.600 a 4.200m de altitude, duas formações ecológicas
cuja vegetação espontânea atual se reduz a formações herbáceas e arbustivas muito dispersas
e degradadas.

– A formação puna, acima de 4.200 metros de altitude, coberta de relvas e estepe.

– Para além de 4.900 metros estão os desertos frios e os glaciares... que chegam até seis mil
metros (p. 184).

Em cada lado da cordilheira a paisagem apresenta características contrastantes: a

oeste, a costa do Pacífico, desértica. A fixação aí de grupos humanos e a prática da agricul-

tura dependem do represamento e canalização das águas dos degelos das montanhas. A

leste estão as densas florestas da Amazônia, muito úmidas, pouco drenadas e por isso de
difícil cultivo, com clima permanentemente quente.

Esses três grandes sistemas ecológicos representam, cada um a seu modo, dificulda-
des, limitações para os cultivos e criação de animais e fixação das comunidades aldeãs.

“Trata-se de um universo agrário descontínuo, de um arquipélago composto de ilhas e ilhotas

povoadas e cultivadas, dispersas ao longo da costa e dos cursos de água andinas e amazô-

nicas ou dos vários patamares da montanha...” (p. 185).

De que modo os povos desta vasta região, antes da constituição do império, organiza-

vam sua produção? O método adotado, secular, consiste em explorar todos os nichos que
reúnam as condições de exploração, distribuídos nas várias altitudes em que se constituem

os ecossistemas, bem como a diversificação das culturas e das variedades vegetais numa

mesma parcela. Tiravam partido, desse modo, dos diferentes patamares do relevo e da diver-

sificação de culturas. Reduziam, assim, os riscos de más colheitas. Associavam também às


culturas a criação de animais que se constituíam tanto em fonte de carne, lã e esterco

(adubo) quanto em moeda de troca.

Ainda segundo Mazoyer e Roudart (2001), o sistema como um todo pode ser assim

visualizado:

– Sistemas de culturas irrigadas à base de milho, feijão e de algodão nos oásis da planície
costeira;

136
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

– Sistemas de culturas irrigadas à base de milho, feijão, tremoço e quinoa na zona quéchua
(incas);

– Sistemas de cultura à base de batata na zona suni;

– Sistemas de criação de gado pastoril na zona puna;

– Sistemas de culturas nos terrenos de florestas abatidas-queimadas, de mandioca, milho e coca


na amazônia (p. 186).

Corte Esquemático dos Sistemas de Cultura e de Criação de Gado da Costa


do Pacífico dos Andes e da Vertente Amazônica da Época Inca

Fonte: Mazoyer; Roudart (2001, p. 187).

A complementaridade entre os sistemas se dava mediante a troca de produtos: ani-


mais, agrícolas, minerais. Os produtos de cada grande ecossistema e patamar desciam ou

subiam conforme sua localização e produção típica aí dominante.

O sistema, conforme Mazoyer e Roudart, é muito antigo, antecedendo em muito a

unificação efetuada pelos incas, embora estes lhes tenham dado uma dupla dimensão: de

um lado, ampliaram a circulação dos produtos em todo o espaço do império, de outro, por

meio do trabalho imposto às comunidades, criou a infra-estrutura de estradas, açudagem,

137
EaD Din art e Belat o

construção de patamares, bem como a produção nas terras do Estado dos alimentos e bens

necessários à manutenção das burocracias civil, religiosa e militar, e da alimentação e ves-

tuário dos mitaios.

O sucesso do império inca, portanto, está em ter submetido a seu controle e unificado

um sistema diversificado, porém localmente coeso, que lhe permitiu dispor em grande quan-

tidade de trabalho, de alimentos, minérios e animais – estes dois últimos erigidos em moedas

universais de troca – tanto para a defesa e a segurança do Estado quanto de contínua

ampliação de terras agricultáveis e de obras de infra-estrutura. Percebe-se agora melhor a

função estratégica da rede de estradas.

O mapa anterior mostra o sistema e a inter-relação das partes do império, constituídas

de ecossistemas heterogêneos. O trabalho humano converteu as imensas dificuldades e em-

pecilhos em vantagens. Embora o império inca seja um Estado de tipo teocrático, centrali-

zado e despótico e sob este aspecto em nada diferente dos impérios egípcio, mesopotâmico e

persa, seus governantes, ao cobrar tributos unicamente em trabalho, não esgotaram as ener-

gias de suas populações apropriando-se de seus alimentos e dos demais bens que para si

produzia a comunidade aldeã.

Embora o império sempre tivesse seu poder e legitimidade contestados por povos sin-

gulares ou grupos deles, nunca foi seriamente ameaçado graças a seu exército e sistema de

defesa eficientes e cooptação dos chefes étnicos.

Por que, então, o império sucumbiu tão facilmente ao ataque de um minúsculo exérci-

to espanhol comandado por Pizzaro, em 1532?

O padre Bartolomeu de Las Casas, mais tarde bispo de Chiapas, contemporâneo

dos acontecimentos – ele chegou à América em 1515 – era amigo e confidente do bispo

de Charcas, frei Domingo de Santo Tomás, autor do primeiro dicionário e gramática

quéchua, que era também membro do Conselho das Índias, nos conta, bem informado,

que os espanhóis perpetraram traições, assassinatos, terrorismo e aterrorização continua-

da à população com execuções sumárias, incêndio e saques (cf. Murra, 1998, p. 80; Las

Casas, 2000, p. 3).

138
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

E mesmo que no momento da conquista estivesse em curso um conflito dinástico pelo

trono, ou que os índios por razões religiosas tivessem confundido os espanhóis, brancos,

montados a cavalo, portando armas de ferro e de fogo, com divindades, e mesmo que os

espanhóis tivessem contado com a ajuda dos índios que negavam legitimidade ao império,

mesmo que isso não tivesse acontecido, teriam derrotado o império. Mazoyer e Roudart

(2001) argumentam que: “...nessa época nenhuma sociedade da América, da África ou da

Ásia pôde resistir à cavalaria couraçada e às outras armas de fogo européias, visto todos

estarem desprovidos delas” (p. 200).

Seção 4.2

Os Deuses e Divindades

Os incas adoravam o Deus Sol, que eles consideravam o ancestral dos governantes. A

monarquia e seus reis foram divinizados e adorados. Prestavam também culto a outras di-

vindades da natureza: a lua, o trovão, a terra, o mar, as estrelas, as montanhas, fontes,

colinas, etc... A elite governante adorava um deus criador do universo chamado Vira-Cocha.

Os incas impuseram o culto e a propiciação dessas divindades, com sacrifícios, a toda a

população do império, mas não proibiram nem tentaram suprimir os deuses étnicos de cada

povo (cf. Aquino et al, 1990, p. 80).

John Murra (1998, p. 84) observa que Cuzco, além de centro político-administrativo,

era também

...um centro cerimonial, onde eram sacrificadas, diariamente, uma centena de peças de roupas
finas e um grande número de sacerdotes jejuava enquanto observava, de seus observatórios-
palácios, os movimentos do sol. Seus calendários oficiais não são tão bem compreendidos quan-
to os dos maias, porque os resultados das observações não foram registrados em pedra, mas
muito provavelmente tecidos em material têxtil, perecível (p. 84).

139
EaD Din art e Belat o

Guaman Poma de Ayala (1987), 70 anos após a conquista, transcreve dois calendári-

os, um religioso e outro de trabalho. Ele não conservou o sistema de meses utilizado pelos

incas, adaptou as práticas religiosas e econômicas dos incas ao calendário cristão. De mi-

nha parte, que fiz a tradução dos textos, fundi os dois calendários para ter deles uma visão
de conjunto. As ilustrações de cada mês são do próprio Ayala (Belato, 2000, p. 14-22).

140
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

141
EaD Din art e Belat o

142
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

143
EaD Din art e Belat o

144
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

145
EaD Din art e Belat o

146
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

147
EaD Din art e Belat o

Fonte: Belato (2000, p. 14-22).

148
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Seção 4.3

A Polêmica da Escravidão no Império Inca

Mazoyer e Roudart (2001, p. 196-197) afirmam que:

[...] as comunidades camponesas fornecem à administração servidores perpétuos, os yanaconas,


espécie de servos utilizados como domésticos, como pastores ou operários pelo Inca, pelos no-
bres e por alguns curacas (antigo chefe local que foi mantido em seu cargo pelos incas).

E acrescentam: “Essa forma de trabalho servil estava pouco espalhada na véspera da

colonização, mas desenvolveu-se muito mais tarde”.

John Murra (1998, p. 97) nos informa, de forma detalhada, que os yanaconas ou yanas

eram os homens – as mulheres eram chamadas aclas, as escolhidas –, que, removidos de suas

aldeias de origem pelas autoridades, passavam a viver em comunidades sob a supervisão


direta do poder central. Podiam casar e ter família, contrariamente às mulheres, que não

podiam fazê-lo. E trabalhavam, em tempo integral, nos negócios do rei como artesãos, pas-

tores e agricultores. As mulheres, as Aclas, dedicavam-se em tempo integral à tecelagem nos

teares do Estado.

Os incas, conforme a tradição oral dinástica, afirmavam que o sistema de trabalho de


yanas e aclas fora inovação sua. Isso parece não ser verdade, porque há registros orais da

prática muito tempo antes do império inca. E não há provas convincentes que a condição

de yana fosse hereditária. Relatos antigos e confiáveis, segundo Murra, afirmam que o filho

(mais velho) do yana, se fosse apto, poderia suceder ao pai.

É muito difícil, portanto, provar a condição escrava dos yanas. Eram antes funcioná-

rios públicos especializados, contratados de forma permanente, na execução de tarefas liga-


das à agricultura ou ao artesanato. Murra acrescenta que aclas, vem de aclai, que significa

escolher, selecionar. Yanas, por sua vez, é uma palavra oriunda de yanahay que significa,

em quéchua, assistir completamente, ajudar alguém sem qualquer cálculo de retribuição.

Yanas e aclas inseriam-se num sistema produtivo de deveres mútuos, próximo portanto de

149
EaD Din art e Belat o

relações de reciprocidade. Murra defende que o crescimento desse tipo de trabalhador, que

não mais guarda relações de parentesco e de pertencimento étnico ao seu grupo de origem,

dá lugar ao nascimento de uma categoria de trabalhadores de tempo integral a serviço do

governo. Essa tendência, não fora o império destruído pelos espanhóis, teria desvinculado
todo o trabalho do império dos senhores étnicos e talvez do tributo em trabalho das comuni-

dades (1998, p. 98-99).

Certamente havia escravos, mas estes, como nas demais sociedades desse tipo, eram

prisioneiros de guerra. Em duas ou três gerações acabavam absorvidos na população

local.

Seção 4.4

Códigos e Regulações

Guaman Poma de Ayala recolheu um conjunto bastante significativo de “leis e orde-

nações” que revelam, ao menos em parte, aspectos importantes dos códigos civil, religioso,

social, político e econômico (Ayala, 1987, p.176-184).

Aqui, como em sociedades antigas do Oriente e do Egito, a pena de morte e castigos

corporais severos são recursos do poder com vistas a dissuadir e coibir práticas que atentem

contra a ordem estabelecida e o Estado. Eis o texto:

a) Prólogo:

Topa(tupac) Inca Yupanqui, os demais príncipes, grandes senhores, dignatários do reino, (mem-
bros do) conselho assim dizem: ordenamos e mandamos neste reinos e senhorios que se guarde
e que se cumpra, e sejam condenados à morte os que não cumpram, eles e seus filhos e descen-
dentes porque serão castigados e serão mortos e condenados à morte e se acabará toda a sua
geração e serão queimados seus povoados e se semeará neles e virarão animais: veados da
montanha, pumas, raposas, gatos monteses, condores e falcões... Para estes crimes não haverá
apelação (p. 176).

150
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

b) Estabelece-se o ordenamento sacerdotal do império:

Ordeno e mando (que) nesta grande cidade, cabeça destes reinos (Cuzco) haja um pontífice
feiticeiro maior, (bem como haja sacerdote em cada província) um no Chinchay– Suyo, outro no
Anti-Suyo, outro no Cola-Suyo e outro no Conti-Suyo” (p. 177).

Ayala informa que havia sacerdotes no templo do (Deus) Sol e em muitos templos e
santuários existentes no reino. Diz também que a hierarquia sacerdotal se assemelhava à

católica: havia sacerdotes como bispos, cônegos, sacristãos, que exerciam as funções de

confessores, enterravam os mortos. E que esses sacerdotes estavam nos templos e lugares

sagrados de todo o reino.

c) Estabalece-se a estrutura dos cargos e funções administrativas e de governo:

Ordeno e mando que nesta cidade haja um conselho real (assim composto): dois incas (um do)
Hanan Cuzco e (outro de) Lurim Cuzco e mais quatro grandes representantes ( da província de)
Chinchay-Suyo, dois do Anti-Suyo, quatro de Cola-Suyo e dois de Conti-Suyo.

E acrescenta: “A estes lhes chamaram de Conselho do Tuanty-Suyo, isto é, conselho do

reino” (p. 177).

d) A seguir são definidos os demais cargos do reino e das províncias:

“Mando que haja um assessor” (grande senhor que fala em nome do inca, seu porta-voz).

“Mando que haja (um) vice-rei que seja a segunda pessoa do reino”. Ayala explica
que ele representava o inca em suas viagens às províncias e recebia as mesmas honrarias do
inca. Chamavam-no yancap-rantin, aquele que vai em lugar do inca (p. 177).

“Mandamos que haja em cada província um corregedor para que se administre a boa
justiça (do inca)”. Este cargo estava reservado à etnia inca de Cuzco e Lurin (p. 177).

“Mandamos que haja alcaides da corte, que sejam anta-inca (da etnia inca) para
prender os principais (dignatários) e capitães e grandes senhores e cavaleiros deste reino”.
Estes, segundo Ayala, executavam a prisão de membros da elite a mando do inca (p. 177).

151
EaD Din art e Belat o

“Mandamos que haja uma alcaide ordinário em cada repartição”. Estes são chamados

de “aqueles que ouvem os mandatos, ordens do inca”. E as executam.

“Mandamos que hajam regedores”. Ayala explica que se chamavam também adminis-

tradores-despenseiros; provavelmente encarregados da gestão dos recursos alimentares do

reino e sua distribuição (p. 178).

“Mandamos que haja um alguacil maior e menor (oficial inferior de justiça)”.

“Mandamos que haja um secretário do Inca”. Trata-se do “contador ” do inca. O cargo

equivale ao de ministro da economia (p. 178).

“Mandamos que haja um secretário do Conselho real”, cuja função era a de ministro

da economia do Conselho.

Os incas nomeavam para o governo dos muitos grupos étnicos que compunham o

império os governantes tradicionais destes povos, a não ser, como vimos, quando ocorres-
sem rebeliões. Completa-se deste modo a estrutura da burocracia civil e religiosa do império.

A burocracia militar estava sob o comando direto do inca, da qual ele era chefe e comandan-

te supremo.

e) Os códigos relativos à vida cotidiana dão conta de punir comportamentos e ações proibi-

das ou inadequadas. Eis algumas, que transcrevo em tradução livre:

– que ninguém blasfeme contra o Sol e a Lua – pai e mãe do inca –, nem contra as
estrelas, nem contra o luzeiro (Vênus), nem contra as divindades locais, nem contra
mim, o inca, nem contra a rainha;

– que não se blasfeme contra nenhuma pessoa, nem contra o conselho, os governantes e
nem contra os índios pobres;

– que nenhum pobre seja testemunha para evitar que seja subornado;

– que nenhuma árvore frutífera ou de madeira, a não ser a que se destine à lenha, seja
derrubada sem licença. Quem o fizer sem a devida licença será punido de morte e castigos;

152
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

– que é proibido caçar e matar veados, guanacos, vicunhas, gansos andinos, para que se

reproduzam e aumentem, mas devem caçar e matar o leão e a raposa pelos danos que

causam;

– que a viúva cubra seu rosto por seis meses e não saia de casa, que guarde luto por um

ano, que crie seus filhos e não case mais e que seja honesta;

– que os defuntos sejam enterrados em túmulos ou em construções funerárias e que é

proibido enterrá-los dentro de suas casas e que sejam enterrados com suas roupas,
apetrechos, comidas, bebidas;

– que as crianças e jovens desobedientes a seus pais, mães, aos velhos e anciãos, aos
senhores, e aos dignatários do reino, sejam açoitados na primeira vez, e desterrados às

minas de prata e ouro se não se emendarem:

– que os ladrões e salteadores recebam na primeira vez castigo de 500 açoites e que sejam

apedrejados e mortos na segunda e que seus corpos não sejam enterrados e sirvam de

alimento às raposas e condores;

– que quem ache um objeto perdido o devolva e que, por isso, não seja acusado de ladrão;

– que ninguém cobre as dívidas deixadas pelo morto, nem pode cobrá-las de nenhum parente

seu, se for pobre, nem mesmo quando deixou em vida testamento obrigando-se a pagar;

– que os punidos por desterro sejam obrigados a trabalhos forçados e que assim sirvam de

exemplo e paguem seus crimes;

– que é proibido o uso de veneno ou de poções, bem como as práticas de feitiçaria para

matar as pessoas. Os que assim matarem serão condenados à morte, esquartejados e


jogados despenhadeiro abaixo;

– que o crime de rebelião e traição contra o inca ou os dignatários do reino seja punido
com morte e que de sua pele se faça tambor, dos ossos se façam flautas, colares de seus

dentes e de seu crânio uma caneca para beber chicha (bebida fermentada de milho).

153
EaD Din art e Belat o

Esta é a pena dos rebeldes e traidores: que todo o assassino morra do mesmo modo

como assassinou a outrem.

f) Regulamentos e normas para as mulheres e para a família.

– que as mulheres menstruadas não entrem no templo e nem assistam ao sacrifício aos
deuses e se entrarem, sejam castigadas;

– que mulher que aborta, se for menino, seja morta, se for menina, receba 200 açoites e
seja desterrada;

– que a mulher violentada ou estuprada ou que consentiu que a violentassem ou fosse


puta (sic) que seja amarrada pelos cabelos ou pelas mãos no alto de uma pedra e que aí
morra; o que cometeu o crime de estupro receba 500 açoites e que lhe soltem do alto
uma pedra pesada nas costas. Se ambos são cúmplices, ambos devem ser enforcados;

– que a viúva não se case novamente, se tiver filho, que ele seja herdeiro de todos os bens
e casas e lavouras e se tiver filha, seja ela herdeira da metade dos bens e que o restante
seja herdado por seu pai ou sua mãe (da viúva) ou seus irmãos;

– que o número de filhos por família seja assim recompensado:

• quem tiver um filho, que seja honrado;

• quem tiver dois, que seja feita mercê (concessão gratuita de terra);

• quem tiver três filhos, que receba terra para cultivo e pasto para criar gado;

• quem tiver quatro filhos, que receba “estância”, se forem cinco filhos, que um seja o chefe
dos cinco; e se forem dez filhos, que seja senhor de terras e se forem 30 ou 40, ou 50 filhos,
que possam constituir povoados onde solicitassem e que do povoado sejam chefes.

– que os preguiçosos e sujos como porcos e que tenham suas roças, casas, pratos de
comer sujos ou que tenham a cabeça e as mãos sujas, sejam lavados e que sejam obri-

gados a tomar a água em que foram lavados.

154
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

– que sejam desterrados os que sepultarem seus mortos dentro de suas casas.

– que o número de mulheres que cada homem pode ter para seu serviço e para esposas

obedeça a um critério de chefia, hierarquizado pelo número de famílias que estão sob

seu comando. E obedeça também à velha lógica da reprodução intensiva da população,

necessária tanto para a produção básica de alimentos quanto para a contínua expan-

são do império. O poder político, militar e econômico do império se media também, e

talvez sobretudo, pelo numero de seus habitantes, que o império inca via principalmen-

te como tributo em trabalho. Chefes de muitos milhares de famílias podem ter 50 mulhe-

res; chefes de mil famílias, 30; chefe de 500 famílias, 15; chefe de 100 famílias, 8; chefe

de 50, 7; chefe de 10, 5; chefe de 5, 3; um índio pobre pode ter duas mulheres, e os

soldados de guerra (sic) conforme a vitória lhe davam mulher(es) para o aumento (da

população);

– que ninguém case com sua irmã, sua mãe, nem com sua prima-irmã, tia, sobrinha, nem

com nenhum parente, nem com sua comadre sob pena de castigo, tendo seus olhos

arrancados, seu corpo esquartejado e as partes abandonadas nas montanhas, para exem-

plo e castigo, porque só o inca pode casar com sua irmã, por lei;

– que os capitães sejam de bom sangue, boa casta e fiéis e que os soldados sejam fiéis e

não traidores, de idade entre 30 e 50 anos, que sejam índios (sic), vigorosos e fortes,

suficientes (em número) e ricos para ir à guerra e à batalha;

– que ninguém desperdice o milho, batatas, nem outros alimentos, nem os descasquem

(as batatas);

– que em tempo de epidemias ou de realização de sacrifícios (às divindades), de tempesta-

des, de tempos de carestia (fome) ou sede, ou morte do inca ou de algum senhor ou de

rebelião, não dancem, cantem, toquem instrumentos, nem toquem tambor, flautas, nem

tenham relações sexuais, nem em tempo de jejum e penitência, nem consumam sal ou

pimenta, nem carne nem frutas, nem bebidas alcoólicas (chicha), nem qualquer outra

comida à exceção de milho branco e cru;

155
EaD Din art e Belat o

– que em tempo de gelo (geadas) e de granizo ou em tempo em que o milho morre por

causa da seca peçam todos a Deus, criador do homem, água, todos cobertos de luto,

com os rostos pintados de negro..., que andem pelos montes; (junto aos santuários)

chorando e pedindo água a Deus, todos os índios adultos, homens e mulheres, rapazes,

cantando uma variante das preces da chuva:

Ai, ai, vestidos de pranto

ai, ai, vestidos de vermelho

teus filhos de orelhas furadas,

te imploramos chorando

tua água

tua água

Mande-a até nós

Mande-a a teus pobres, tua gente

mande-a ao povo que tu mesmo criaste.

Esta “prece das águas” contém dois elementos estruturais da cultura religiosa no todo

iguais às concepções egípcias, judaicas ou mesopotâmicas. Em primeiro lugar, temos a

proclamação segundo a qual os pedintes são o povo de deus, criaturas e filhos seus. Este é o

princípio das divindades étnicas, isto é, os deuses são sempre deuses de um povo e exclusi-

vos dele. Em segundo lugar, os deuses dos povos do império inca já haviam evoluído para

formas humanas, antropomórficas. Este modo de concepção e de representação da divinda-

de, que certamente indica um grau avançado de civilização, permite afirmar a filiação divi-

na dos seres humanos sob a variante pai-filho na qual, de um lado, é possível pedir ao Deus-

pai favores, bênçãos, dádivas e, de outro, o Deus-pai exigir de seus filhos dádivas, sacrifícios,

preces, penitências, reparações pelas ofensas. A “prece das águas” toma então pleno senti-

do: “Manda até nós (a água), mande-a a teus pobres, tua gente, mande-a a teu povo que tu

mesmo criaste”.

156
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

g) Divisão social do trabalho

O texto nos dá aqui uma visão muito ampla da divisão social do trabalho e de suas
correspondentes profissões, com seus deveres e, sobretudo, a imposição de uma disciplina e
zelo pelo e no trabalho, combater a preguiça e a ociosidade. Exorta para que nunca faltem
os profissionais necessários à produção múltipla dos bens de que a sociedade necessita.

– que todos os oficiais (os que exercem os ofícios) não sejam ociosos e preguiçosos; que
todos os que exercem cargos para o bem comum: governadores, pontífices, sacerdotes e
senhores grandes que mandam a terra (sic); os que são artífices como pintores, que
pintam paredes ou vasos, decoradores, e oficiais sábios; os que são carpinteiros, pedrei-
ros, oleiros, artesãos da prata, bordadores e artesãos da seda, lavradores, pastores, tece-
lões, sapateiros,... padeiras, cozinheiras, mordomos, encarregados dos depósitos dos
bens comuns (da comunidade), administradores, escrivães de quipos, de cordel, canto-
res e músicos, dançarinos, flautistas e guerreiros. Que (nunca) faltem aos ditos oficiais
neste reino porque senão serão castigados por preguiçosos e ladrões;

h) Organização do sistema alimentar do império para que os alimentos sejam abundantes

Podemos entrever aqui quais eram as bases alimentares da população, e que cuidados
tomar para que os alimentos se conservem e como se deve prover os alimentos para os po-
bres e desvalidos da comunidade.

– e que haja abundância de comida no reino; e que se semeiam muitíssimo milho e batatas
e ocas (tubérculo) e que façam a desidratação dos diversos tipos de batatas, e que sequem
bem o milho e a quinoa, o ullaco e a masua (tubérculos), todas as comidas, inclusive
sequem as ervas aquáticas para que tenham o que comer durante o ano; que semeiem as
roças da comunidade com milho, batatas, pimenta e verduras, algodão, flor coxan e ou-
tras folhas para delas extrair tintas para tingir tecidos finos e comuns e que prestem
contas disso e se os corregedores não o fizerem, que sejam cruelmente castigados.

i) Fiscalização periódica da produção

Recomenda-se que os fiscais façam duas visitas por ano às comunidades e às famílias
a fim de inspecionar a produção:

157
EaD Din art e Belat o

– que todas as casas, vestes, panelas, a produção que realizaram ou a criação de coelhos

e cada roça seja visitada duas vezes por ano (Ayala, 1987, p. 176-180).

Embora no conjunto da obra da qual retiro este sofisticado e abrangente corpo de leis

e ordenações contenha inúmeras outras informações que ampliam e detalham estas ordena-

ções, elas são suficientes para nos dar uma idéia de como o império inca pôde impor, à

diversidade dos povos que o constituía, um conjunto de regras que, em boa medida, refor-
çam os poderes locais exercidos pelos senhores étnicos, bem como regras comuns abrangentes

de todos os aspectos fundamentais das relações sociais. É certamente uma peça marcante

das civilizações que se desenvolveram ao longo da cordilheira dos Andes e é perfeitamente

equiparável ao Código de Hamurabi, à codificação judaica da Torá ou da “confissão nega-


tiva” dos egípcios (Belato, 2008a, p. 46-63).

158
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

Referências

AQUINO, Rubim S. de L. et al. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Ao Livro

Técnico, 1990. 486 p.

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2007. 288 p.

AYALA, Felipe Guaman Poma de. Nueva crónica y buen gobierno. Mexico: Siglo XXI, 1987.
1.384p. 3 v.

BANDINELLI, Ranucio Blanchi. Historia y civilización de los griegos. Origines y desarrollo


de la ciudad. El medioevo griego. Barcelona: Icaria Editorial, 1982a. 372 p. v. 1.

______. El arcaísmo. Barcelona: Icaria Editorial, 1982b. 486 p. v. 2.

BELATO, Dinarte. Terra. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000. 36 p.

______. Civilizações clássicas I. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008a. 90 p.

______. História da velhice. Ciclo de Estudos Sobre o Idoso: O Idoso na História. Ijuí: Ed.
Unijuí; DePe, 2006. mimeo.

______. Diálogo entre Oriente e Ocidente. Ijuí: DCS, 2008b. mimeo.

BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina. Americana Latina Colonial. São Paulo:
Edusp, 1998. 679 p. v. 1.

BLOCH, Raymond; COUSIN, Jean. Roma e o seu destino. Lisboa: Ed. Cosmos, 1964. 579 p.

BORNECQUE, Henri; MORNET, Daniel. Roma e os romanos. Literatura, História e Anti-


guidade. São Paulo: Edusp, 1976. 193 p.

BRAUDEL, Fernand. O espaço e a História no Mediterrâneo. São Paulo: Livraria Martins


Fontes, 1988.

CHAUNU, Pierre. A América e as Américas. Rio de Janeiro: Editora Cosmos, 1969. 505 p.

CÍCERO, Marco Túlio. Da República. São Paulo: Atena, 1999.

CONDORI, B. et al. Modelación del crecimiento y del desarrollo de variedades de papas en


los Andes de Bolívia. II Congresso Boliviano de Papa. Cochabamba: Redesma, 20 ago. 2008.

159
EaD Din art e Belat o

COOPER, John M. Estimulantes e narcóticos. In: BERTA, Ribeiro (Coord.). Etnobiologia.


Suma Etnológica Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 163-171. vol. 1.

DIACOV, V.; COVALEV, S. História da Antiguidade. Roma; São Paulo: Editora Fulgor, 1965.

FRANCO JÚNIOR, Hilário; CHACON, Paulo Pan. História econômica geral e do Brasil. São
Paulo: Atlas, 1980. 398 p.

GALEANO, Eduardo. Memória del fuego(I). Montevideo: Ediciones del Chanchito, 1990.
344 p.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. São Paulo: Editora Iluminurias, 2002.

HUMBERT, Michel. Institutions politiques et sociales de l’Antiquité. Paris: Dalloz, 1984. 454 p.

JARDÉ, A. A Grécia Antiga e a vida grega. São Paulo: EPU/Edusp, 1977. 259 p.

KERR, Warwick E. Agricultura e seleções genéticas de plantas. In: RIBEIRO, Berta G.


Etnobiologia. Petrópolis: Vozes, 1986. 159-171 p. v. 1.

KINDER, Hermann; HILGEMANN, Werner. Atlas histórico mundial de los origines e la


Revolución Francesa. 10. ed. Madrid: Ediciones Istmo, 1980. 311 p. v. 1.

LAS CASAS, Bartolomé de. O paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da Amé-
rica. Porto Alegre: Editora LPM, 2000. 180 p.

LEVÊQUE, Pierre. A aventura grega. Lisboa: Cosmos, 1967. 654 p.

MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. Histoire des Agricultures du Monde: du neólitique


à la crise contemporaine. Paris: Editions du Seuil, 1997.

MAZOYER, Marcel; ROUDART, Laurence. História das agriculturas do mundo; do Neolítico


à crise Contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. 520p.

MICHULIN, A. V. História da Antiguidade. Rio de Janeiro: Editora Vitória, 1963.

MINORE, Lo Zangarelli. Vocabolario della Língua Italiana. Bologna: Zanichelli, 1994.

MURRA, John. As sociedades andinas anteriores a 1532. In: BETHELL, Leslie (Org.). Ame-
ricana Latina Colonial. São Paulo: Edusp, 1998. p. 63-99. V. I.

NAQUET, Pierre Vidal; VERNANT, Jean-Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia Antiga.

Campinas: Papirus, 1989. 176 p.

160
EaD C IVILIZAÇÕES CLÁSSIC AS II

PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultura, 1997.

______. As leis. São Paulo: Edipro, 1999.

POSEY, Darrell A. Etnobiologia: teoria e prática. In: RIBEIRO, Berta G. Etnobiologia.

Petrópolis: Vozes, 1986. 15-25 p.

PRANCE, Ghillean T. Etnobotânica de algumas tribos amazônicas. In: RIBEIRO, Berta G.


Etnobiologia. Petrópolis: Vozes, 1986.

RIBEIRO, Berta G. Etnobiologia. Petrópolis: Vozes, 1986a.

______. Tecnologia indígena. Petrópolis: Vozes, 1985.

_____. Arte índia. Petrópolis: Vozes, 1986b.

SOARES, Gláucio Ary Dillon. Questão agrária na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar,

1976.

TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Imprensa

Oficial do Estado de São Paulo, 2001. p. 34-46. Livro II.

VALIGI, Cinzia. Roma e Vaticano. Terni, 1996.

VILLAS BOAS, Orlando; VILLAS BOAS, Claudio. Xingu: os índios e seus mitos. 4. ed. Rio de

Janeiro: Zahar, 1976. 211 p.

VISION. Roma antiga, como era e como é. Roma: Vision, 1996.

WACHTEL, Nathan. Los vencidos: los Indios del Peru frente a la Conquista Española. Ma-

dri: Alianza Editorial, 1976.

Internet:

Povos Indígenas – Power Point/slides da Profª Niminon Pinheiro.

Disponível em: <www.csj.g12.br/ensfun2/projetos/2007/amazonia-semana/apresentações/


povos ind%EDgenas%20-% niminon.pft>.

Pode-se acessar também pelo pesquisador Google: “povos indígenas pinheiro”.

161
EaD Din art e Belat o

FITOSSANITÁRIOS, Tratamentos Naturales de Plagas, Insecticidas. Disponível em: <http/

/www.ecoaldea.com/horticultura/fitossanitários.htm>. Acesso em: 1º nov. 2008.

BU ENO, C on stanze . Di spon í v e l em: <h ttp:// www.b ue n oe constan ze .adv.br /


index2.hhh?option=com_content1do-pdf=11d=176->. Acesso em: 20 out. 2008.

162

Potrebbero piacerti anche