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ELATIVIZANDO

RELATIVIZANDO UMA INTRODUÇÃO


Em várias décadas de atividade ininterrupta, À ANTROPOLOGIA SOCIAL
Roberto DaMatta se firmou como um dos ex­
poentes máximos da Antropologia no Brasil.
Relativizando sintetiza sua visão originitl de
uma ciência em constante mutação, cujos
conceitos, segundo o autor, não deveriam ser
encarados como cristalizados. Anti-manual
por excelência, este livro represent� uma
preciosa introdução à Antropologia Social.
Abordando os aspectos mais relevantes de
um conjunto de normas que visam aprofun­
dar o conhecimento do homem pelo homem,
a obra de DaMatta resgata seu passado e evo­
lução, redimensiona a importância de pes­
quisa de campo, destaca alguns de seus equí­
vocos mais freqüentes e analisa problemas
decorrentes do contato entre pesquisador e

aberto
objeto. Oferece, enfim, valiosa contribuição
ao estudo e debate de uma disco ..
xa, mas fascinante.

DoMotto
3� EOIÇÃC
grupo num certo período de tempo, tendem a mmlmlzar o sobre as razões que motivam as relações profundas entre
papel dos objetos materiais que o grupo cristaliza em sua credos científicos supostamente eruditos e divorciados da
trajetória, objetos que concretizam sua história e o modo realidade social e as ideologias vasadas na experiência con­
pelo qual ele pode se perpetuar enquanto coletividade. Daí, creta do dia-a-dia. Observo, então, nesta parte, como o nosso
como estamos vendo, a importância dos dois conceitos que, sistema hierarquizado está plenamente de acordo com os de­
tudo indica, exprimem aspectos fundamentais da vida social terminismos que acabam por apresentar o todo como algo
das coletividades humanas e nos ajudam a perceber sua concreto, fornecendo um lugar para cada coisa e colocando,
especificidade. complementarmente, cada coisa em seu lugar. Mas é preciso
começar do começo.
CP Digressão : AFábula das Três Raças,
E o começo aqui é a perspectiva de senso comum rela­
tivamente à Antropologia. Tomando tal posição como ponto
ou o Problema do Racismo à Brasileira
de partida, assinalo minha convicção segundo a quàl é sempre
menor do que supomos a famosa distância que deve separar
Termino esta parte com uma digressão para revelar ao leitor
como a perspectiva sociológica encontra resistências no ce­ as teorias eruditas (ou científicas) da ideologia e valores
nário social brasileiro. De fato, ela tem sido sistematica­ difundidos pelo corpo social, idéias que, como sabemos, for­
mente relegada a um plano secundário, dado que são as mam O que podemos denominar de «ideologia abrangente»
doutrinas deterministas que sempre lhe tomam a frente. porque estão disseminadas por todas as camadas, permeando
Destas, vale destacar o nosso racismo contido na «fábula das os seus espaços sociais. Por tudo, isso, gostaria de começar
três raças» que, do final do século passado até os nossos rememorando uma experiência sodal corriqueira para o pro­
dias, floresceu tanto no campo erudito ( das chamadas teo­ fissional de Antropologia.
rias científicas) , quanto no campo popular. Mas o nosso Quando alguém descobre que somos «antropólogos» -
pendor para determinismos não se esgota nisso, pois logo e os amigos, observo, dizem isso pronunciando a palavra como
depois do «racismo» abraçamos o determinismo dado pelas se ela fosse uma fórmula, posto que é, na maioria das vezes,
teorias positivistas de Augusto Comte, teorias básicas para desconhecida, supondo uma atividade misteriosa - a primei­
muitos movimentos sociais abraçados por nossas elites, en­ ra pergunta é sempre dirigida ao nosso trabalho com ossos,
quanto que modernamente assistimos ao surgimento do mar­ crânios, túmulos e esqueletos fósseis.)(Outra indagação fre­
xismo vulgar como a moldura pela qual se pode orientar qüente pode igualmente surgir no conjunto de perguntas
muito da vida social, política e cultural do país. Estamos, sobre as «raças formadoras do Brasil», com todas aquelas
pois, novamente às voltas com um outro determinismo, agora indagações j á conhecidas desde o tempo da escola primária,
fundado numa definição abrangente do «econômico» e das mas que misteriosamente persistE,m no nosso cenário ideoló­
«forças produtivas», e temos outra vez a possibilidade de gico, perguntas que dizem respeito a uma confirmação cien­
totalizar o mundo e a vida social num tempo que não é o tífica da «preguiça do índio», .,melancolia do negro» e a
da vontade e consciência dos agentes históricos, mas em «cupidez» e estupidez do branco> lusitano, degredado e de­
forças e energias que se nutrem em outras esferas, incon­ gradado. XTais seriam ainda hoje os fatores responsáveis,
troladas pela vontade e desejos humanos. Num certo sentido, nesta visão tão errônea quanto popular, · pelo nosso atraso
retornamos a um começo, recusando a discussão aberta e econômico-social, por nossa indi:gência cultural e da nossa
generosa de nossa realidade enquanto um fato social e his­ necessidade de autoritarismo político, fator corretivo básico
tórico específico. neste universo social que, entr€llrue a si mesmo, só poderia
Nesta digressão, pois, apresento o caso do «racismo à degenerar-se)' Ouvindo tais opinii5es tantas vezes, eu sempre
brasileira» como prova desta dificuldade de pensar social­
me pergunto se o racismo do famoso Conde de Gobineau está
mente o Brasil e ainda como uma tentativa de especular realmente morto !

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A resposta de que somos antropólogos SOCIaiS (ou cul­ melhor das hipóteses, estaríamos t:ratando da pré-história, ou
turais) e que estamos interessados no estudo da vida social sej a : de um tempo situado antes do mundo social, no seu
dos grupos humanos ou, como é o meu caso, em índios de limiar. Um tempo que marca ju:stamente o surgimento da
verdade, faz o interlocutor calar-se ou então provoca o enter­ sociedade, da cultura e da história. Essa é, numa penada, a
ro do assunto com o comentário de que os índios estão sendo posição onde somos sempre colocados.
destruídos e perdendo suas terras. Mas a essa altura temos
O fato social (e ideológico) fundamental, que precisa ser
uma conversa séria, aproximando o leigo de certos problemas
discutido e denunciado, é que,� na consciência social brasilei­
políticos e econômicos atuais, questões das quais ele dese­
ra, o antro])ólogo surge na slÍa versão acabada de cientista
j a ardentemente fugir, o que conduz à decepção final de que
natural. YComo tal, tem suas unidades de estudo bem deter­
o antropólogo sociai é mais um desses especialistas em pro­
minadas : são as raças.f E o fio' que deve conduzir o seu
blemas contemporâneos. Não é aquele senhor grisalho e de
pensamento : ,é o plano de evolução destas raças.x Tem também
roupas cáqui que com seus óculos finos e capacete de explora­
o domínio no qual se faz o drama brasileiro : é o . modo pelo
dor, descobre esqueletos datados de três mil anos antes de Cris­
qual tais «raças» entram em relação para criar um povo
to em algum lugar do mundo, provavelmente no Antigo Egito.
ambíguo no seu caráter. Nesta viisão de mundo e de ciência
Do mesmo modo, ele não é também o sagaz contador de
nada há que os homens e os grupos aos quais pertençam
casos, capaz de alinhavar historietas de negros escravos,
possam realizar concretamente. Tudo é uma questão de «tem­
lendas de índios idealizados ou episódios históricos de damas,
po biológico», nunca de tempo social e historicamente deter­
duques e príncipes portugueses. na nossa graciosa fábula das
minado. Assim, o «tempo biológico» tem suas razões que o
três raças.
tempo dos homens concretos e históricos desconhece, de nada
Disto tudo, fica a imagem do antropólogo social como
valendo qualquer rebelião contra ele. Como um cientista na­
um medidor de crânios, um confirmador de teorias sobre as tural desumaniz:ldo o antropólogo social fica, nesta postura,
raças humanas ou um arqueólogo clássico, romanticamente
preso e sujeito ao estudo das coisas dadas, jamais d3;q�i1o
perdido nas misteriosas discussões das crenças iniciáticas
1 que é realizado pelo homem em sociedade. Sua «es r�a», �
egipcias, arena privilegiada onde se encontram todas as
assim, sempre corre o risco de ser ordenadamente peSSImIsta
nossas crenças na re<lncarnação, no Carma indiano e nas e indisfarçadamente elitista, embora surj a mascarada em
curas mágicas. Traços que se ligam às nossas mesas do alto
tantos livros como um grito de libertação. De fato, não é
espiritismo kardecista, aos terreiros poeirentos de Umbanda uma narrativa de possibilidades e alternativas, atitude que
e às teorias «científicas» da Parapsicologia. E tudo isso, sempre faz nascer o otimismo, mas de derrotas e fechamen­
como sabemos bem, faz parte do mundo ideológico brasilei­ tos, num universo onde a vontade e o espaço para a espe­
ro dominante, generalizado e abrangente.
rança é muito reduzido.
Y. Ou seja, nos nossos valores, o lugar do antropólogo é Mas nem sempre o antropólogo surge na consciência po­
-sempre junto à Biologia (medindo caveiras ou discutindo pular como cientista natural preocupado com medidas de
raças) ou com a Arqueologia Pré-Histórica, perdido na ma­
ossos e com a biologia do homem como espécie anima1.xEle
drugada dos tempos. Ora estamos na História do Brasil
também surgL como uma espécie de economista, produzin­
vista, a meu ver, pelo seu prisma mais reacionário : como
do um discurso onde conceitos básicos como «modo de pro­
uma «história de raças» e não de homens ; ora estamos fora
dução», «sobre-trabalho», «unida,de produtiva», etc. são re­
do mundo conhecido : .no Antigo Egito, na velha Grécia ou
levantes, num conjunto quase sempre mais preocupado com
junto com os homens das cavernas. Em todo o caso, observo
a forma do que com a substância mesma destas relações
novamente, sempre com o conhecimento social sendo redu­
que os conceitos implicam diretamente. Questões tais como :
zido a algo natural como «raças», «miscigenação. e traços
de que modo se desenvolve o capitalismo no Brasil ; como se
biologicamente dados que tais «raças» seriam portadoras.). Na
dão concretamente as relações de produção e trabalho entre

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nós ; como todo esse edifício é percebido pelos que nele estão da identidade social, como foi o caso brasileiro. Mas, devo
envolvidos e muitas outras são raramente realizadas1'-Respon­ lembrar, não foi o caso norte-americano, mexicano e de
der a essas questões seria fundamental para perceber aquilo muitos outros países da América do Sul e Central, onde -
que Marx denominou de «éter» das relações sO<!iais ; ou sej a : sabemos bem - branco colonizador, índio e n�gro f9rmavam
os valores e as motivações que - como cultura e ideologia elementos _yisíveis
- -
empiricamente. ~as
-
em muit� outras so-
- - "
cledades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, o recorte
',-

_ emolduram e dão sentido às próprias relações sociais e de

produção. Deste modo, quando deixamos de perceber quando social da realidade empiricamente dada foi inteiramente di­
as idéias passam a ser atores em certas situações sO<!iais, verso, com negros e índios sendo situados nos pólos infe­
seja porque atuam para desencadear a ação, sej a para im­ riores de uma espécie de linha social perpendicular, a qual
pedir certas condutas, deixamos de penetrar no mundo so­ sempre situava os brancos acima. Naquele país, como tem
cial propriamente dito e, assim fazendo, corremos o risco demonstrado sistematicamente muitos especialistas, não há
de cair na postura teórico-formal e, com ela, no plano abstra­ escalas entre elementos étnicos : ou você é índio ou negro
to das determinações. Sej am as de caráter biológico, sej am as ou não é ! O sistema não admite gradações que possam pôr
de caráter econômico que hoje tendem a substituir essas deter­ em risco aqueles que têm o pleno direito à igualdade. Em
minações mais antigas, fornecendo o quadro que permite outras palavras, nos Estados Unidos não temos um «triân­
encontrar novamente uma totalidade abrangente e superior gulo de raças» e me parece sumamente importante considerar
que tudo submete e explica, enquanto esconde as possibili­ como esse triângulo foi mantido como um dado fundamen­
dades de resgatar o humano dentro do social,x j á que ele taI na compreensão do Brasil pelos brasileiros.xE mais, como
j amais pode ser contido em «leis», <<fórmulas», «regras» ou essa triangulação étnica, pela qual se arma geometricamente
determinações, a menos que o jogo das forças sociais assim a fábula das três raças, tornou-se uma ideologia dominan­
o desej e.><O ponto destas reflexões é fundamental e terei que te, abrangente, capaz de permear a visão do povo, dos inte­
retomá-lo mais adiante, sob pena de ser acusado de super­ lectuais, dos poiíticos e dos acadêmieos de esquerda e de di­
ficialidade ou ignorância. Agora, porém, é preciso prossegnir reita, uns e outros gritando pela m"stiçagem e se utilizando
na especulação do sentido psicológico da nossa fáb\lla das do «branco», do <megro» e do «ÍndÍ<l» como as unidades bá­
ir_ês_ ��.a� e de suas implicações para uma antropõlôgia: bra: - sicas através das quais se realiza a exploração ou a reden­
sileira que se desej a realmente libertadora. ção das massas. 1-.
Tomemos esse plano como ponto focal de nossas inda­ O que parece ter ocorrido no caso brasileiro foi uma
gações. Essa fábula é importante porque, entre outras coisas, j unção ideológica básica entre um sistema hierarquizado real,
ela permite j untar as pontas do popular e do elaborado (ou concreto e historicamente dado e a sua legitimação ideoló­
erudito ) , essas duas pontas de nossa cultura. Ela também gica num plano muito profundo. Observo que as hierarquias
permite especular, por outro lado, sobre as relações entre o sociais do «antigo regime», isto é, o regime anterior à Re­
( que é freqüentemente o que chamamos de popular e o volução Francesa, eram ideologicamente fundadas nas leis
que nele está contido) e o concebido (o erudito ou o cien­ de Deus e da Igrej a. Era o fato de Deus ter armado uma
- - -
tífico - aquilo que impõe a distâ�cià e as intermediações) . pirâmide social com os nobres lá "m cima e com o Impe­
rador e o Papa legitimando seus poderes no plano temporal
:É impressionante também observar a profundidade histó­
e espiritual que respondia às questões neste sistema. x No
rica desta fábula das três raças.leQue os três elementos sociais
caso brasileiro, a justificativa funda.da na Igreja e num Ca­
- branco, negro e indígena - tenham sido importantes entre
tolicismo formalista, que chegou aqui com a colonização por­
nós é óbvio, constituindo-se sua afirmativa ou descoberta quase
tuguesa, foi o que deu direito à exploração da terra e à escra­
que numa banalidade empírica. :É claro que foram ! Mas há
uma distância significativa entre a presença empírica dos vIzação de índios e negros . No nosso caso, tal legitimação
estava fundada numa poderosa j uuc;ão de iuteresses religio-
elementos e seu uso como recursos ideológicos na construção

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....

sos, políticos e comerCllUS, numa ligadura que era ao mesmo significativa e diferenciada, sempre :foi por meio de leis alta­
tempo moral, econômica, politica e social e que tendia a mente generalizadoras, dentro do formalismo jurídico que é
mexer-se como uma totalidade,'"Não temos companhias par­ a pedra de toque das sociedades hierarquizadas modernas.
ticulares explorando a terra com o olho apenas na atividade Em outras palavras, o nosso sistema colonial estava fun­
produtiva e com leis individualizadas, semi-independentes da dado numa «hierarquia moderna», sistema cujos pés eram o
Coroa, como aconteceu nos Estados Unidos, Mas, ao contrário, comércio mundial, os braços eram as leis e uma administra­
era a Coroa portuguesa que, legitimada pela religião, pela ção colonial baseada numa larga experiência mundial, o corpo
política e pelos seus interesses econômicos, explorava sobe­ era uma sociedade ideologicamente muito bem estruturada
ranamente o nosso território com sua gente, fauna e flora, internamente, com seus «estados sociais., e a cabeça era o
O jogo político estava submetido ao comerciál - mas até Rei. Aliás, vale a pena abrir um parêntesis para mostrar
um certo ponto, pois no fundo era básico que o Rei tivesse como as hierarquias sociais se daval!p. em Portugal, sobretudo
todo o controle moral sobre os empreendimentos coloniais e porque temos uma imagem de Portugal como um país ima­
tal «controle moral» era o motor que impulsionava a cons­ ginário, atrasado, onde não existe uma sociedade. ' Na rea­
ciência da colonização portuguesa, estando motivado pela re­ lidade, porém, a sociedade portuguesa à época da colonização
ligião e pela política civilizatória. �Em outras palavras, as do Brasil é um todo social altamente hierarquizado, com
atividades comerciais logo dominavam o mundo colonial por­ muitas camadas ou «estados» sociais diferenciados e comple­
tuguês e estavam por trás de sua arrancada colonizadora, mentares. Tão hierarquizada que até as formas nominais de
mas o suporte consciente deste empreend1mento - era ã fé ' e tratamento, isto é, o modo de uma pessoa se dirigir a outra,
o império. Era na religião que Portugal encontrava a mol­ estavam reguladas em lei desde 15'97 e foram reguladas no­
dura através da qual podia justificar o seu movimento vamente em lei de 1739. Como nos diz Magalhães Godinho,
expansionista. {- «proibia-se não só dar o tratamento, como mesmo aceitá-lo,
Tais favores, que podem ser lidos com o vagar que me­ às pessoas a que não era devido». \-Ou seja, a igualdade está
recem na obra de Raymundo Faoro (1975) e de Vitorino rigorosamente proibida. \ E continua Godinho : «o alvará de
Magalhães Godinho ( 1971 ) , entre outros, fortaleceram aqui 29 de janeiro de 1739 reserva a Excelência aos Grandes,
o sistema vigente em Portugal, realizando um perfeito trans­ tanto eclesiásticos como seculares, ao Senado de Lisboa e
plante de ideologias de classificação social, técnicas juridicas às damas do Paço ; a Senhoria pertence aos bispos e cônegos,
e administrativas de modo a tornar a colônia exatamente aos viscondes e barões, aos gentis-homens de Câmara e moços
igual em estrutura à Metrópole. )'Deste modo, em que pese fidalgos do Paço, abaixo, há só direito a Vossa Mercê» (Go­
as especulações sobre nossa formação social (tingida, como dinho, 1971 : 73) . Tais formas de tratamento altamente re­
desejam os noSSOS ideólogos, pelo sangue negro e indígena) , guladas dão-nos uma idéia dos «estados» sociais de um
o fato social crítico e socialmente significativo é que era corpo social altamen.te complexo, E:ociedade onde «as pessoas
Portugal quem nos dominava, abrangia e totalizava. Em inscrevem-se imediatamente em ca1tegorias que as distinguem
outras palavras, a Colônia brasileira nunca foi um campo pelo nome, pela forma de tratamento, pelo traje e pelas penas
para experiências sociais ou políticas inovadoras, onde se pu­ a que estão sujeitas. (cf. Godinho, 1971 : 74) . E continua
dessem implementar a fundo diferenças radicais e individua­ nosso Autor, agora especificando as divisões internas de Por­
lidades. Muito pelo contrário, apesar das diferenças regio­ tugal : «na Crônica de D. João I enumeram-se quatro esta­
nais, de clima, de desenvolvimento econômico e experiência dos do reino : prelados, fidalgos, letrados, cidadãos - abaixo
política, todo o nosso território foi sempre fortemente cen­ dos cidadãos, ou povo no sentido político (homens bons) , há
tralizado e governado por meio de decretos e leis univer­ a grande massa, sem representação em cortes. O Rei, quando
salizantes, ditadas na sede do Governo. �Nosso modo de Se dirige às categorias sociais-jurídicas, escreve por ordem :
expressão como sociedade, como uma totalidade socialmente juízes e oficiais (é a categoria dos letrados) , fidalgos, cava-

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leiros escudeiros ' homens bons e, por derradeiro, o povo» rar numa classe social horizontaliizada, com forte consciên­
(Godinho, 1971 : 74-75) . Do me�mo mod�, h� ?ma ordem cia de sua individualidade (consciência de classe, no senti­
.
rígida de aparecimento nos rItuaIs ou cerlmomalS, onde em do clássico que Marx empresta a. este termo) e interesses
primeiro lugar surgem os prelados (que emolduram e to­ vis-à-vis o Rei e a nobreza dona da terra e de outros pri­
talizam a festividade ligitimando a ocasião perante a ordem vilégios tradicionais, funciona como uma categoria social.
Divina) , depois os «grandes senhores de título» que são se­ Como uma camada complementar aos nobres e ao Rei, inte­
guidos de outros fidalgos que, por sua vez, antecedem os grada nas hierarquias sociais do sistema. Temos, pois, em
cidadãos e o povo em último lugar. A cada uma dessas ca­ portugal (e, diríamos, também no Brasil) , a figura ímpa.r
tegorias sociais correspondem direitos . e dev?res be.m marca­ do aristocrata-comerciante ou fidalgo-burguês, personagem
_
dos, inclusive direitos de terem pumçao dIferencIada p�ra de um drama social e político ambíguo, cujo sistema de
seus crimes. Nesta sociedade, cujo modelo nos é faml\Jar, vida sempre esteve fundado nos ideais da hierarquia e da
ninguém é mesmo igual perante a lei ! 3 igualdade, na espada e no dinheiro.
.", Temos em Portugal uma sociedade complexa, ou me\hor, Nesta sociedade dominada pelas hierarquias sociais abran­
complicada. Sua economia é mercantilista e portanto mode.r­ gentes tudo tem um lugar. A categorização social é geral,
na. Estava fundada num mercado e em trocas come�c�als. incluindo obviamente grupos étnicos diferenciados, sobretu­
Mas toda ela era controlada por leis e decretos que rigIda­ do mouros e judeus. Não se sustenta a tese de Gilberto
mente impediam que o «econômico» se estabelecesse como Freyre ( apresentada sistematicamente em Casa G1"ande &
atividade dominantelNo dizer de Godinho, tínhamos em Por­
Senzala) , segundo
• a qual o contato com o mouro ( e com a
tugal um Estado mercantil - com uma economi� �od�rna
_ mulher moura) havia predisposto o «caráter nacional» do
operando em escala mundial, mas sem as su� l � s�ltUl�oes
lusitano a uma interação aberta e igualitária com índios e
concomitantes : uma burguesia comercial com mdlvlduahda­
negros. Muito ao contrário, o que se sabe de comunidades
de e interesses próprios (cf. Godinho, 1971 : 93) . Ao con­
mouras e judias em Portugal, p"rmite dizer que o contro­
trário em Portugal havia um sistema onde imperava o mer­ le social e político de etnias alienígenas era agudo, senão
cantilismo mas sem uma mentalidade burguesa, isto é, sem
brutal, como foi o caso dos judeus. Temos aqui uma socie­
uma class� comercial com idéias igualitárias, individualistas
dade j á familiarizada com formas de segregação social, cuja
e acreditando no poder definidor total do mercado e do di­
legitimidade seria marcada, na expressão de Godinho, pela
nheiro. Temos ' pois uma sociedade singular neste portugal origem «rácica» e religiosa. Fica, assim, demonstrado que o
moderno. Um siste�a onde as hierarquias tradicionais são
português colonizador não chegou ao Brasil como um indiví­
mantidas o todo sempre prevalece (na forma da Coroa, do
duo degredado e degradado. Como um elo solto de uma cor­
Catolicis�o, da Igrej a e do Rei) sobre as partes, e é o pró­
rente que ele próprio era incapaz de reconstruir. Muito ao
prio Rei que é o principal capitalista. Se o Rei não con­
contrário, as engrenagens do Império Colonial Português
trola totalmente o comércio, ele - por outro lado - tam­
eram muito complexas e se mexiam com extrema eficiência,
bém não deixa que o grupo que tem nesta atividade sua
considerando sua extensão, div<lrsidade e dificuldades de
principal meta desenvolva um plano de valores a ela ade­
transporte. Reconstruiu-se aqui, obedecendo-se naturalmente
quado. Deste modo, o comerciante português em vez de ope-
às características históricas dos povos indígenas que habita­
vam nossas praias, a sociedade portuguesa original.
S. Elaborei este mesmo ponto, embora partindo de outros dominios SO?,iais Quando E tal
analisei a expressão brallileira, "Você Babe com Quem está falando? no meu reconstrução foi tanto mais fácil, quanto maior e mais abran­
CCrrtaVai8' Malandros 6 Heróis' Rio: Zahar, 1979. Neste contexto, vale recordar Que
Portugal conhecia muito bem a instituição da escravidão negra e moura, como o prov:a gente foi o comando dos colonizadores relativamente aos na­
uma citação de Clenardo, referida por Wilson Martins na sua monumental HIStÓT14 ,
da lntelig�ncia Brasi[eir4. 1: conveniente citar o texto em pauta: .,Os escravos pul am.
� tivos. Assim, a colonização do Brasil não foi uma empresa
realizada por meros criminosos, indivíduos sem eira, beira
diz Clenardo. por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros catlvOB.
Portugal está a abarroUu- com essa raça de gente. Estou QUase a crer que �6 em
Lisboa hi mais escravos e escravas do Que portugueses hvres . .

Martins, 1976: 19 vol.: 81).


de condlçã.O. . . (cf.
ou ideologia social. Se ela não foi obra de grupos altamen-

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ndência que,
determina�os, como .fo! o
caso da A crise que deveria ter chegado com a Indepe
te religiosos, coesos e se con stItUIu num a em- de fato, ela acabou adiand o, mas que se realizo u afinal no
também nao
América do Norte, ela Movimento Abolicionista e da Procla mação da República,
método. •
presa algo sem alvo, ou esses dois momentos criticos, parte, e parcela
de um só drama
precisão as origens do credo
:É impossível demarcar com ­ social altamente contraditório já Olue a Aboliç
ão é progre ssi­
sível assinalar seu caráter pro
racial brasileiro mas é pos logi a dest inad a a va e aberta - propugnando pela igualda de e transfo rmação
fundamente hie;arquizado, com
o uma ideo é um desfecho
das hierarOluias ; ao passo que a República
rigi dez hierárq uica que aqui se mantinha desde do a mante r o poder dos donos
substituir a fechado e reacionário, destina
sas estruturas sociais começa­ Graham
o descobrimento quando nos de terra, conforme revela , entre: outros , Richar d
guerras de Independência. O
ram a se abala; a partir das a­ (1979) .
provocou toda uma reorient
movimento de Independência fazend o O fato de a Abolição se constituir num movimento con­
uia vigentes no Brasil,
ção dos sistemas de hierarq to fina l a creto é uma terrível alDeaça ao edifício econômico e social
er tivesse como . pon
com que a estrutura de pod o do país. Deste modo, se a ideolo�ria católica e o formali
smo
, em vez de se prolongar .para
Corte do Rio de Janeiro l, ant eno rme n­ j uridico que veio com Portug al não eram mais suficientes
, ponto do qua
além-mar, na direção de Lisboa para sustentar o sistema hierárq uico, era preciso uma nova
ordens e tod os os favores. Mesmo con­
te partiam todas as ideologia. Essa ideologia, ao lado das cadeias de relações
so­
ncia foi obra dos estratos do­
siderando que nossa Independê ciais dadas pela patrona gem e q[ue se mantiv eram aparen ­
de baixo para cima, não
minantes e não um movimento a temente intactas, foi dada com o racismo. Mas é preciso
ito de ser uma alavanca par
tendo por isso mesmo o mér m�­ notar como essa ideologia surgiu de modo complexo, no bojo
profundas, ela foi básica na
transformações sociais mais e local a neceSSI ­ de dois impulsos contraditórios típicos aliás das grandes
e nac iona l
dida em que apresentou à elit ra­ crises de abertura social. Um deles, caracterizado pelo pro­
ideologias e mecanismos de
dade de criar suas próprias do país. De fato , jeto reacionário de manter o status quo, libertando o escra­
ças inte rnas
cionalização para as diferen ­ vo juridicamente, mas deixando-o sem condições de Iibertar­
-se independente,. sem a con
é impossível separar e tornar a se social e cientificamente; o outro é muito diferente : trata­
tidade - vale dIz:r: de u�
seqüente busca de uma iden ­ se de perceber como o racismo foi uma motivação poderosa
, racionalizar e .legItImar dIfe
busca no sentido de justificar pes o para investigar a realidade brasileira. Pode-gL pois, dizer
elite podia colocar todo o
renças internas. Se antes a a que a «fábula das três raças» se constitui na mais poderosã
re o Rei e a Coroa portugues
dos erros e das inj ustiças sob a que força cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar
ndência, esse peso tinh
em Lisboa a partir da Indepe idealmente sua sociedade e individualizar sua cultura. Essa
camada super!or da� hierar­
ser carreg�do aqui mesmo, pela fábula hoj e tem a força e o estatuto de uma ideologia do­
elite buscar tal IdeolOgI a?
quias sociais. Onde foi nossa minante: um sistema totalizado de idéias que interpenetra
fábula das três raças e
Creio que ela veio na forma da a maioria dos domínios explic2,tivos da cultura. Durante
ideologia que permite con­
no «racismo à brasileira», uma muitos anos forneceu e ainda hoje fornece, o mito das três
raditórios de nossa socie­
ciliar uma série de impulsos cont raças, as bases de um projeto político e social para o bra­
o para sua transformação
dade, sem que se crie um plan sileiro (através da tese do «branqueamento» como alvo a ser
pena observar, com Thomas
profunda. Neste sentido, vale a buscado) ; permite ao homem comum, ao sábio e ao ideólogo
histórico das doutrina;:s ra­
Skidmore (197 6) , que o marco c�nceber uma sociedade altamente dividida por hierarquiza­
antecede a Proclamaçao da
ciais brasileiras é o periodo que çoes como uma totalidade int.,grada por laços humanos
atura, momento de crise
República e a Abolição da Escrav dados com o sexo e os atributos «raciais» complementares ;
as hierarquias sociais.
nacional profunda, quando se abalam e, finalmente, é essa fábula que possibilita visualizar nossa
ente a leitura de Boxer, 1969. e
de Scbwarts. SOCIedade como algo singular especificidade que nos é
.(. Neste sentido, recomendo fortem
__

1979.
69
68
to indesejado e híbrido do «cruzamento» de brancos, negros
presenteada pelo encontro harmonioso das três «raças» . Se .
e llldlOS, tomados por esses «cientistas» como espécies dife­
no plano social e político o Brasil é rasgado por hierarqui­
renciadas. Apesar da diversidade das teorias «racistas» espo­
zações e motivações conflituosas, o mito das três «raças» une
sadas pelos vári?s especialistas, eles partiam de pressupostos
a sociedade num plano «biológico» e «natural» , domínio uni­ ,
no simples ; slmphcldade, al1as, <jue se constituía, como j á cha­
tário, prolongado nos ritos de Umbanda, na cordialidade,
( e da mulata) e mei atenção, numa da mais poderosas razões de seu atrativo
carnaval, na comida, na beleza da mulher
intelectual e político. Mas quais e:ram esses pressupostos ?
na música . . .
Mas é preciso falar um pouco sobre as fontes eruditas
�n: deles é o de . que cada raça ocupa um certo lugar
na hlstorl� d,,; humanidade. Não importa aqui considerar se
deste racismo brasileiro. Sabemos que ele nasceu .na EUropa
a proposlçao tlllha um ponto de partida segundo o qual todas
no século XYJU. na crise da Revolução Francesa, mas só veio
as raças saíram de um mesmo tronco comum ou de Adão
dominar o cenário intelectual europeu no século seguinte, na
e Eva (como f� i de fato t-;orizado nos séculos XVI e XVII)
forma das teorias evolucionistas cientificamente respeitadas.
ou se elas haViam SIdo Criadas de modo diferenciado desde
No século XVIII, sua apresentação carecia de força ideoló­
o começo, o fato é que, tanto na hipótese monogenista quanto
gica, pois era apenas - de acordo com Hannah Arendt
na pohgenlsta, elas eram tomadas como espécies altamente
( 1976 : capo 2) _ uma doutrina que trabalhava uma história
diferenciadas, seja no tempo, seja no espaço ou em ambas
heróica do povo francês, numa concepção segundo a qual os
as dimensões. D �í a ilação de que as dife;enças entre as
nobres formavam uma parcela alienígena forte e, assim, des­
SOCIedades e naçoes expressavam as posições bioIógicas di­
tinada pelo nascimento e origem ao poder. No século XIX,
ferenCiadas de cada �ma numa escala evolutiva. Louis Agassiz,
..
entretanto, o racismo aparece na sua forma acabada, como
por exemplo, que fOI provavelmente o maior dos poligenistas
um instrumento do imperialismo e como uma justificativa .
dos Estados Unidos, não hesitava em situar a «raça branca»
<matural» para a supremacia dos povos da Europa Ocidental como superior e, após sua famosa visita ao Brasil escrever
sobre o resto do mundo. Foi esse tipo de «racismo» que a
em seu livro o que seria uma opinião discutidíss lma sobre
elite intelectual brasileira bebeu sofregamente, tomando-o a nossa sociedade. Dizia o célebre zoólogo de Harvard : «Que
como doutrina explicativa acabada para a realidade que qualquer um que duvida dos males desta mistura de raças,
existia no país. Do mesmo modo que ocorre ainda hoj e, as teo­ e se lllclllla, por mal entendida filantropia, a botar abaixo
rias racistas produzidas por norte-americanos como Agassiz ; todas as barreiras que as separam, venha ao Brasil. Não
ou por europeus como Buckle, Gobineau e Couty, para ficar­ podera, negar a deterioração decorrente do amálgama I de
mos com os que foram os mais influentes no Brasil, são ampla­ raças, mais geral aqui do que em qualquer õutro país do
mente adotadas, tendo-se grande preocupação - como revela mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qua­
Skidmore ( 1976 : capo 2 ) - com as idéias daqueles estu­ hdades do br;anco, do �egro e d.o índio, deixando um tipo
diosos, como Buckle, Gobineau e Agassiz que fizeram refe­ .
mdeflllldo, hlbndo, defiCIente em energia física e mental»
rências expressas ao Brasil. Nelas, obviamente, noSSO futuro ( citado por Skidmore, 1976 : 47-48) . Como se observa o
surgia como altamente duvidoso, já que a sociedade brasi­ '
diagnóstico não é muito diferente: do de Gobineau .
leira se caracterizava por se constituir numa arena de con­
Um outro ponto também essencial nas doutrinas racistas
j unções raciais entre negros, brancos e índios, uniões que .
e o dete mllllsmo. Isso significa que as diferenciações bio­
eram totalmente condenadas. Assim dizia, por exemplo, o
Conde de Gobineau que levaria «menos de duzentos anos . . .
� . glCa8 : .
sao vistas como tipos acabados e que cada tipo está
etermma?o em seu comportamento e mentalidade pelos fa­
o fim dos descendentes de Costa-Cabral ( Brasil) e dos emi­ tores llltrlllsecos ao seu componente biológico. Gobineau ela­
grantes que os seguiram» (cf. Skidmore, 1976 : 46) . Ou seja, borou bem esse ponto, valendo a pena reproduzir aqui o
Gobineau colocava a tese de que a sociedade brasileira era seu esquema das «raças humanas» , pois para esse autor há
inviável porque possuía enorme população «mestiça., produ-
71
70
uma perfeita equação entre traços biológicos, psicológicos e Do mesmo modo e pela mesma lógica, quando as «propen­
posição histórica. Uma espécie de totemismo às avessas. Eis sidades animais» são fortes e o .:intelecto» é vigoroso, como
o esquema racial de Gobineau, tirado do seu A Diversidade ocorre com as « raças brancas», o resultado é uma «grande
Moral e Intelectual das Raças: expansão do sentido moral, com uma complexa e variada
organização política emergindo» (cf. Gobineau, 1856 : 96) .
Neste modelo, cuja simplicidade, determinismo e pobre­
RAÇAS HUMANAS
za noS faz hoje imaginar como foi possível levá-lo a sério
há menos de cem anos atrás, as civilizações decaíam, arrui­
Negra Amarela Branca
navam-se, eram conquistadas, nã.o se desenvolviam ou sim­
Débil Medíocre Vigoroso plesmente desapareciam porque sua «história raciai» conduzia
Intelecto
a misturas infelizes dos traços contidos em cada unidade
Propensões Muito fortes Moderadas Fortes racial. Daí, certamente, a fantástica preocupação do Conde
animais de Gobineau com o Brasil, onde (lle serviu como Embaixador.
Diante de uma realidade física de mulatos, cafusos e ma­
Manifestações Parcialmente Comparativamente Altamente melucos, diante de uma sociedade altamente variada em ter­
morais latentes desenvolvidas cultivadas mos de cor, Gobineau não teve outra alternativa senão
expressar seu pessimismo diante do futuro do país já que,
(De acordo com Gobineau, 1856 : 95, 96)
pelas suas teorias, aqui o bmnco estava perdendo suas qua­
lidades para o índio e, sobretudo, para a «raça negra».
Com o imenso prestígio qu,e circunda tudo o que vem
o esquema põe a nu não só a questão da diversidade, de fora, sobretudo da Europa e dos Estados Unidos, esta
como também a concepção da superioridade das chamadas teoria que gerou o «arianismo» e permitiu relacionar a Bio­
«raças brancas., traço que a história confirmava amplamen­ logia e a História com a moralidade foi logo aceita no
te na teoria de Gobineau. Além disso, cada «raça» tem uma Brasil. De fato, nada mais fácil para servir de «modelo
determinada tendência, havendo na base uma equação entre científico» a nossa realidade, da.ndo-lhe uma forma totaliza­
RAÇA CULTURA = NAÇÃO = TRIBO. Deste modo,
=
da e acabada, do que essa síntese arianista, nascida das
os fenícios eram mercadores ; os gregos, «professores das idéias de Gobineau. Mas isso não ocorreu ao acaso, ou por
futuras gerações» e os romanos, modeladores de governo e uma percepção empíl'ica da experiência histórica brasileira.
leis. Acrescenta ainda Gobineau, explicitando um pouco mais É claro, como indica Skidmore ( 1976) , que a experiência his­
sua visão determinista : «Estes poderes e os instintos ou tórica é básica para a adoção das teses «racistas», mas a
aspirações que surgem deles nunca mudam enquanto a raça meu ver essa experiência não é tudo.
permanece pura. Eles progridem e se desenvolvem, mas nunca Existem, como estou procurando mostrar, fatores mais
alteram sua natureza» ( 1856 : 76) . Estamos diante de um profundos relacionados à formação social, cultural e histó­
verdadeiro código natural e diante de realidades que jamais rica do Brasil que permitem especular sobre a adoção e a
podem mudar pelo ato puro e simples da vontade. Ao con­ permanência do «racismo» como ideologia e como tema de
trário, nesta perspectiva, as qualidades positivas e negativas reflexão científica, de Sílvio Rornero até os nossos dias. Con­
são dadas dt, uma vez por todas - sendo depois o destino sideremos sumariamente tais fatores :
da «raça» atualizado numa mera questão de combinações. O primeiro ponto a ser considerado é que nem todas as
Se as «propensões animais» são fortes e não contrabalan­ forma s de determinismo foram aceitas para discussão no
çadas por «manifestações morais», a «raça» estaria conde­ meio social, político e cultural brasileiro. Em outras palavras,
nada a ter uma vida coletiva deficiente e desorganizada. a discussão das teses do «determinismo geográfico» são cer-

72 73,
tamente menos estudadas e debatidas do que as oferecidas cravos em sua população . Em 181H, segundo uma estimativa
pelos «determinismos raciais», segundo os quais a unidade oficial, nenhuma região tinha menos de 27 % de escravos na
determinativa dos fatos sociais e políticos, o agente de cau­ população totai» (cf. Skidmore, 1:)76 : 59) . E isso não po­
..
salidade não é o solo, a chuva, o clima, a temperatura ou o deria ser de outro modo, dado que o sistema era governado
r�giI?e do� rios, mas fatores biológicos internos, A prefe­
t por meio de uma estrutura política, autoritária, centralizante,
.
rencla IndICa claramente a l·elação profunda existente entre onde o político e a moralidade sempre controlavam e demar­
o meio social brasileiro e as doutrinas racistas de gente como cavam de cima os impulsos econômicos.
Gobineau, Lapouge, Inginieros, Couty e ontros. Existe, pois, Em outras palavras, numa sociedade fortemente hierar­
uma relação profunda, socialmente determinada' entre as quizada, onde as pessoas se ligam entre si e essas ligações
doutrinas racistas de tipo histórico ( chamadas de «arianis­ são consideradas como fundamentais (valendo mais, na ver­
tas » ) , em seu apelo explicativo para uma sociedade concre­ dade, do que as leis universalizantes que governam as insti­
tamente dividida em segmentos, cujo poder e prestígio dife­ tuições e as coisas) , as relações entre senhores e escravos
renciai e hierarquizado correspondia, grosso modo, a dife­ podiam se realizar com muito mais intimidade, confiança e
renças de tipos físicos e origens sociais. consideração. Aqui, o senhor não se sente ameaçado ou cul­
pado por estar submetendo um outro homem ao trabalho
O segundo é que o racismo à la Gobineau tinha o mérito
escravo, mas, muito pelo contrário, ele vê o negro como seu
de inaugurar uma reflexão sobre a dinãmica das «raças»,
abrIndo a dIscussão das dinâmicas sociais. Podia-se com
complemento natural, como um outr·o que se dedica ao tra­
isso, deixar de louvar os tipos puros (sobretudo o « branco balho duro, mas complementar as suas próprias atividades
ariano» ) , passando para a especulação dos resultados dos que são as do espírito. Assim a lógica do sistema de rela­
ções sociais no Brasil é a de que pode haver intimidade
«cru: amentos» entre as «raças». Isso correspondia à situação
. entre senhores e escravos, superiores e inferiores, porque o
hlstorlca e SOCIal do Brasil, onde a escravidão estava conti­
mundo está realmente hierarquizado, tal e qual o céu da
da num sistema político antiindividualista e antiigualitário ·
Igrej a Católica, também repartido e totalizado em esferas,
um sistema totalizante e abrangente, dominado por um�
círculos, planos, todos povoados por anjos, arcanjos, queru­
m<><;lalIdade mUlto bem articulada e antiga de formalismo
bins, santos de vários méritos etc., sendo tudo consolidado
J undlco - legado da colonização portuguesa. O fato de
na Santíssima Trindade, todo e parte ao mesmo tempo ; igual­
termos constituído até o final do século passado uma socie­
dade e hierarquia dados simulta,neamente. O ponto clitico
da? e de nobres, com uma ideologia aristocrática e antiigua­
. de todo o nosso sistema é a sua profunda desigualdade.
IItarla ; dommada pela étIca do familismo, da patronagem
Ninguém é igual entre si ou perante a lei ; nem senhores
e das relações pessoais, tudo isso emoldurado por um siste­
( diferenciados pelo sangue, nome" dinheiro, títulos, proprie­
ma j urídic� formalista e totalizante, que sempre privilegia
dades, educação, relações pessoais passíveis de manipulação
o todo e nao as partes (os indivíduos e os casos concretos)
etc. ) , nem os escravos, criados ou subalternos, igualmente
deu às nossas relaç�es sociais um caráter especial. Fez , ·
diferenciados entre si por meio de vários critérios. Esse é,
exemplo, que o regIme de escravidão fosse aceito como algo
parece-me, um ponto-chave em sistemas hierarqui�antes, pois,
normal pela maior parte dos membros de nossas elites
quando se estabelecem distinções para baixo, admite-se, pela
tornando-se um sistema universal pelo fim do século XIX:
mesma lógica, uma diferenciação para cima. Todo o univer­
Em outras palavras, a escravidão brasileira não foi um fenô­
so social, então, acaba pagando o preço da sua extremada
meno social regional, altamente localizado, como ocorreu com
os Estados UnIdos, mas - pelo contrário - tornou-se uma deSIgualdade, colocando tudo em gradações.
forma dominante de exploração do trabalho. Como diz Skid­ Neste sistema, não há necessidade de segregar o mestiço,
mor';., , por volt:, do século XIX, toda região d� maior im­ o mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asse­
portânCIa : geografIc guram a superioridade do branco como grupo dominante. A
a tInha percentagem significativa de es-

75
74
intimidade a consideração, o favor e a confiança, podem e assim inferiorizar, mas em _não ter relações SOCIaIS. Uma
se desenvoiver como traços e valores associados à hierarquia vez que tais relações são estabelecidas, todos ficam dentro
indiscutível que emoldura a sociedade e nunca - como supôs de um sistema totalizante e é sempre por meio dele que as
Freyre _ como um elemento do caráter nacional português. diferenças entre os grupos são resolvidas.
Tal e qual na índia, as camadas diferenciadas da sociedade Mas o que ocorre em sistemas igualitários e individua­
_ as castas - são vistas como rigorosamente complemen­ lizados, onde as hierarquias que sustentam o poder do todo
tares. Aqui no Brasil, o nosso racismo forneceu os elemen­ sobre as partes foram rompidas ?
tos de uma visão semelhante, colocado no triângulo das raças Ao responder a essa
• questão, chegamos ao centro da
quando situa o branco, o negro e o índio como . formadores diferença entre o «racismo» brasileiro e norte-americano,
de um novo padrão racial. Branco, porém, diferente dos bem como ao cerne das diferenciações raciais doutrinárias.
«arianos» europeus ou americanos do norte : algo tipicamen­ Sabemos que nos Estados Unidos e na Europa o «mestiço»
te brasileiro, singular e forte como o samba e o cal'llaval. era visto como peça indesejável do sistema de relações ra­
A falta de segregação parece ser, pois, um elemento rela­ ciais. De fato, o foco das teorias era a especulação sobre a
cionado de perto à presença de patronagem, intimidade e inferioridade básica do «mestiço», elemento híbrido, e dota­
consideração. Numa palavra, a ausência de valores iguali­ do de todas as qualidades negativas daquilo que se chamava
tários. Num meio social como o nosso, onde «cada coisa tem de «sub-raças». Numa palavra, todo o problema era que,

um lugar demarcado e, como corolário, - cada lugar tem muito embora se pudesse tomar as «raças» como tendo qua­
sua coisa», índios e negros têm uma posição demarcada num lidades positivas, colocando a «l'aça branca» como inques­
sistema de relações sociais concretas, sistema que é orien­ tionavelmente superior, o que não se podia realizar era a
tado de modo vertical : para cima e para baixo, nunca para «mistura» ou o «cruzamento» entre elas. Aqui, a doutrina
os lados . É um sistema assim que engendra os laços de pa­
.
racista deixa transparecer dois pontos muito importantes que
tronagem, permitindo conciliar num plano profundo posições a análise sociológica não deve deixar passar : um deles é
individuais e pessoais, com uma totalidade francamente di­ que as «raças humanas», embora situadas em escalas de atra·
rigida e fortemente hierarquizada. Em sociedades assim cons­ so e progresso, tinham qualidades. Seriam até mesmo dignas
tituídas, situações de discriminação (ou de segregação) só de admiração, caso não fossem jamais colocadas lado a lado.
tendem a ocorrer quando o elemento não é conhecido social­ O outro, é a condenação fundamental de suas relações. O
mente ; isto é, quando a pessoa em consideração não tem e mal nfío está nas diferenças entre as raças, diz o «racismo
não mantém relações sociais com pessoa alguma naquele meio. arianista», mas nas suas relações. Aqui temos, obviamente, o
A discriminação não é algo que se dirige apenas ao diferente, ponto-chave dos racismos «arianistas», sobretudo na sua mo­
mas ao estranho, ao indivíduo desgarrado, desconhecido e dalidade americana . E o que isso nos diz do ponto de vista
solitário : ao estrangeiro - o que, numa palavra, não está sociológico? Diz-nos claramente que o problema é considerar
integrado na rede de relações pessoais altamente estrutu­ cada «raça» em si, mas nunca estudar suas relações. E nós
radas que, por definição, não pode deixar nada de fora : sabemo s que as relações denunciam estruturas de poder di­
nem propriedade nem emoção nem relação. É claro que, nos ferenc iadas e hierarquizadas em sistemas fundados num credo
sistemas hierarquizados, pessoas de cor sofrem discriminação igualitário explícito. A elaboraçlio do «racismo científico.
com mais freqüência, mas não se pode esquecer que pessoas norte-americano correspondia muito de perto à realidade so­
pobres e até mesmo visitantes ilustres podem ser discrimi­ CIal daquele país, onde o credo igualitário, o individualismo
e o ideal da igualdade perante a lei criavam obstáculos insu­
nados pela simples razão de não terem nenhuma associação
firme com alguém da sociedade local. O maior crime entre peráveis para uniões entre pretos e brancos em outros pla­
nós, ou melhor : no seio de um sistema hierarquizado, não nos que não fosse o do trabalho. O fato, então, de o «mu­
está em ter alguma característica que permita diferenciar lato» ser tão desprezível no credo racial americano, a ponto

76 77
dele não ter ali uma poslçao socialmente reconhecida, posto entre brancos e negros no Sul, I) que certamente poderia
que é classificado como «negro», tem suas raízes, como de­ dar seqüência às estruturas hierarquizadas ali existentes,
monstrou Myrdal ( 1944) , na existência concreta de um credo mas que foram destruídas à for<;a pela Guerra Civil que
igualitário e individualista e no peso social deste credo dentro veio estabelecer a hegemonia do eredo igualitário e indivi­
do meio social norte-americano. 5 dualista por todo o sistema amerieano como um plano jurí­
Realmente, após o movimento abolicionista, a massa de dico e político socialmente básico. Esta forma de racismo
negros livres tornou-se um problema social serís�imo �os que nega ou coloca o tipo mestiç,o como indesejável surge
.
Estados Unidos. Diferentemente do BrasIl, onde haVIa varIas também como uma «solução científica» para um paradoxo
categorias de negros com posições sociais diferenciada� no social que situava brancos e negros em posições realmente
sistema ( negros escravos recentes, negros escravos antIgos, diferenciadas, e um credo nacional fortemente igualitário no
negros escravos mais longe ou mais perto. das casas-grandes, plano político-jurídico.
negros livres há muito tempo, negros lIvres rec�ntemente, Creio que são tais fatores que explicam, no caso norte­
crianças livres filhas de escravos etc. ) , naquele. paIS, .a com­ americano, o horror dos teóricos de tais doutrinas diante
binação do homem livre com o negro era mUIto . maIs rara da realidade brasileira, repleta de gradações e de «tipos ra­
e foi conseqüência de uma sangrenta guerra cIvIL Como, ciais intermediários». Sociologicamente falando. a reação que
então' manter o credo segundo o qual todos são iguais pe­ surge revestida pelo idioma biológ�ico, dizendo que o Brasil
rante a lei, se existem ex-escravos compelindo com brancos não tinha futuro porque era um país de «mestiços» e de
pobres, sobretudo num Sul derrotado ? Em outras palavr�s, «mulatos», de «sub-raças híbridas e fracas», pode ser inter­
como encontrar um lugar para negros, ex-escravos, num SIS­ pretada como um modo de rejeitar a hierarquia que permite,
tema que situava ( e ainda situa) o indivíduo e a igual­ sem ameaçar as elites dominantes, todo o tipo de encontro
.
dade como a principal razão de sua existência social ? AqUI, e de intimidades entre pretos, índios e brancos. Till. traço
a única resposta possível é a discriminação violenta, na for­ não é, como gostaria que fosse gente como Freyre e outros,
ma de segregação que, diferentemente do caso br�s�lei�o ( e uma característica cultural portug�uesa, senão um modo de
d e outros países com contingente negro e predommancla de enfrentar os dilemas do trabalho .escravo num sistema alta­
estruturas sociais hierarquizantes) , assumiu caracteristica­ mente hierarquizado, onde cada homem tem um lugar deter­
mente a forma clara e inequívoca de segregação legal, fun­ minado e onde a igualdade não existe. Se o negro e o branco
dada em leis. Assumida portanto com todas as letras e em
podiam interagir livremente no Brasil, na casa-grande e na
toda a sua integridade, a segregação racial deixa de . ser senzala, não era porque o nosso modo de colonizar foi essen­
um paradoxo historicamente dado no sistema norte-amerIca­ cialmente mais aberto ou humanitário, mas simplesmente
no. Ela de fato pode ser explicada como um modo concreto porque aqui o branco e o negro tinham um lugar certo e
e coerente de uma sociedade individualista resolver o pro­
sem ambigüidades dentro de uma totalidade hierarquizada
blema da desigualdade e de sua manutenção num sistema muito bem estabelecida.
onde um credo igualitário tem importância social deter­
Tal fato, entre outros, deu ao «racismo» brasileiro uma
minativa.
forma especial, com o foco no centro do sistema . Deste modo,
A expressão deste fato sociológico concreto no plano eru­ enquanto a leitura americana condenava a «mistura de raças»,
dito das doutrinações científicas foi a doutrina racial q.ue
. optando por uma solução radical, <.:.<miiq a....!!ª diyisão entre
desencorajava o «mulato» como tipo físico e categorIa socIal
brancos e negros, aqui no Brasil a preocupação ... e a conse­
legitimamente reconhecida, tornando assim impossível. solidi­
qüente teorização foi realizada em cima do «mestiço» e do
ficar as redes de relações pessoais efetivamente eXIstentes
mulato, ou sej a : nos espaços intermediários e interstícios do
5. Para este problema, veja-se também Dumont. 1974, e Da Matta, 1979. Para a
que percebíamos como sendo o nosso «sistema racial». Nos
sistemas "raciais" e americano, veja-se
melhor análise comparativa dos
Gari Degler. 1971.
brasileiro
pontos onde cada «tipo racial puro» encontrava o outro e

78 79
criava um elemento ambíguo, com supostas características o esquema também torna clara aquela outra distinção
dos dois. Foi com tal preocupação, correspondente à nossa essencial, já indicada por Oracy Nogueira ( 1954 ) , num tra­
maneira de resolver os problemas colocados concretamente balho clássico. Enquanto o esquema do preconceito racial
por nossa sociedade, que nasceram os racismos de Sílvio Ro­ americano é de «origem», o brasileiro é de «marca». Ou sej a :
mero e Nina Rodrigues, doutrinadores fundamentais e pa­ o sistema americano não admite gradações e tem uma forma
radigmáticos do nosso mundo intelectual. Pois se eles con­ de aplicação axiomática : uma vez que se tenha algum «san­
sideravam que o «branco ariano» era indiscutivelmente supe­ gue negro» (e isso é determinado culturalmente) , não se pode
rior ao negro e ao índio, nem por causa disso deixaram de mudar j amais de posição. Pode-s,! ser tratado idealmente
considerar o caso brasileiro como constituído de um triângulo como um «igual perante a lei», mas a diferença do «sangue.
racial. Enquanto, pois, o credo racista norte-americano situa permanecerá para sempre. Já no nosso sistema, o ponto­
as «raças» como sendo realidades individuais, isoladas e que chave é a admissão de gradações ,e nuanças. A «raça» (ou
correm de modo paralelo, j amais devendo se encontrar, no a cor da pele, o tipo de cabelos, d,! lábios, do próprio corpo
Brasil elas estão frente a frente, de modo complementar, como um todo etc. ) não é o elemento exclusivo na classi­
como os pontos de um triângulo. Num esquema : ficação social da pessoa. Existem outros critérios que podem
nuançar e modificar essa classificação pelas características
físicas ( que são definidas culturalmente) . Assim, por exem­
plo, o dinheiro ou o poder político pelmitem classificar um
E�tados Unidos Brasil
preto como mulato ou até mesmo como branco. Como se o
peso de um elemento (como o poder econõmico) pudesse apa­
Branco Branco gar o outro fator. Temos, pois, no Brasil, sistemas múltiplos

l TT /~
de classificação social ( cf. também Da Matta, 1979 : capo IV) ;
'
ao passo que nos Estados Unidos há uma tendência nítida
para a classificação única, tipo «ou tudo ou nada», direta
e dualista, tendência que me parece estar em clara corre­
Nt.'gro lndio
lação com o individualismo, o igualitarismo e, obviamente
_ como mostrou Weber - com a ética protestante ( cf.
SISTEMA UNIVERSAL DE LEIS Weber, 1967 ) .
Mas o ponto importante que desejo enfatizar aqui é
que esses «tipos de preconceito raeia:h são inteiramente coe­
O diagrama deixa ver claramente como o sistema ame­ rentes com as ideologias dominantes de cada uma dessas so­
ricano concebe a posição dos grupos diferenciados como mais ciedades, estando diretamente correlacionados com as formas
próximos ou mais distantes de uma linha de leis igualitárias, escolhidas historicamente de recorte da realidade social.
que teoricamente estão distantes de todos, não se confundindo Deste modo, os racismos americano e europeu, que partem de
com nenhum grupo. É a ideologia do dodos são iguais pe­ uma realidade social mais igualitária, temem a miscigena­
rante a lei» que, como coloquei anteriormente, irá determi­ ção porque com ela podem colocar em dúvida sua homoge­
nar o racismo na forma dualista, direta, legal como forma neidade social e política, segundo a antiga noção de que a
pervertida ( como diz Myrdal) de superação do credo iguali­ idéia de um povo contém em si o postulado básico da iden­
tário abrangente . No caso do Brasil, é a interação entre as tidade e homogeneidade física. Já entre nós, o racismo euro­
peças do triângulo que irá criar as leis e o todo nacional. peu e americano penetra a cena intelectual, mas é trans­
A ideologia é abrangente e hierarquizada em sua própria formado por meio de um cenário hierarquizado e antiiguali­
formulação. tário. Aqui ele se orienta para o s interstícios do sistema,

80 81
local onde vivem e convivem muitas categorias SOClalS inter_ triangulares (ou sej a : em três e nunca em dois, o que con­
mediárias, perfazendo uma totalidade triangulada. É preci­ duziria ao dualismo exclusivista) são parte de sua própria
samente isso, a meu ver, que permite integrar as «raças» lógica social, pois é por meio da mediação que se pode efe­
num esquema altamente coerente e abrangente, formando de tivamente propor o adiamento do conflito e do confronto.
suas diferenças e hierarquias uma totalidade integrada. Por Assim, o uso, ou melhor: a invenção do mulato como uma
outro lado, essa integração permite até hoje discutir e per­ «válvula de escape» (cf. Degler, HI76) , o sistema de precon­
ceber a acentuada miséria dos «negros» e «índios», sem per­ ceito racial de marca (em oposi\;ão ao de origem) , como
ceber suas diferenciações específicas e, sobretudo, sem co­ colocou Nogueira; e as intimidades e redes de relações pes­
locar em risco a posição de superioridade política e social soais entre negros e brancos (como coloca Gilberto Freyre) ,
dos «brancos». são todas funções de um sistema abrangente de classificaçãQ.
No nosso esquema, portanto, o branco está sempre uni­ social fundado na hierarquia. Um sistema de fato profunda­
do e em CIma, enquanto que o negro e o índio formam as mente antiigualitário, baseado na lógica do «um lugar para
duas pernas da nossa sociedade, estando sempre embaixo e cada coisa, cada coisa em seu lugar., que faz parte de nossa
sendo sistematicamente abrangidos (ou emoldurados) pelo herança portuguesa, mas que nunca foi realmente sacudido
branco. O plóprio triângulo sugere suas interações, nesta por nossas transformações sociais. De fato, um sistema tão
: a que
teoria brasileIr internalizado que, entre nós, passa despercebido.
reduz as diferenças concretas (sociais,
políticas e econômic as) em descontinuidades abstratas em Nesta sociedade há em todos os níveis essa recorrente
«raças» com uma definição semibiológica. Por isso sabemos preocupação com a intermediação e com o sincretismo, na
que o triângulo inicial pode gerar outros agora constituído síntese que vem cedo ou tarde. - impedir a luta aberta
'
_

de tipos intermediários, os «resultados» das misturas «ra­ ou o conflito pela percepção nua e crua dos mecanismos de
ciais» dos tipos puros. Assim : exploração social e política. O nosso racismo, então, especulou
sobre o «mestiço», impedindo o c.onfronto do negro (ou do
índio) com o branco colonizador ou explorador de modo di­
Branco reto. Com ele, deslocamos a ênfase e a realidade : situamos,
na biologia e na raça, relações que eram puramente polí­
ticas e econômicas. Essa é, a meu ver, a mistificação que
Mulato permitiu o nosso racismo, o que explica a sua reprodução
Mameluco
até hoje como uma ideologia científica ou popular. Do mes­
mo modo, no campo político e social, também sintetizamos
(ou conciliamos) sistematicamente as posições polares e
Negro IncHo antagônicas. Deste modo tivemos uma monarquia absolutista
quando deveríamos proclamar a república, fomos governados
por um monarca liberal diante de uma elite reacionária e
Cafuso conservadora, temos uma burguesia que deseja se aliar com
o Estado, desde que este defenda seus lucros. E, no campo
religioso, conseguimos criar religiões intersticiais, como a
Sempre temos, como se observa no esquema a possibi­ Umbanda, religiões «sincréticas»,. isto é, fundadas em ele­
;
lidade de formar triângulos. Vale dizer : de sem re interme
diar, conciliar e tornar sincréticas as posições polares
­
mentos compostos e tirados de outros credos, tudo isso neste
jogo de ideologias que se nutrem do ambíguo e da concilia­
do
sistema, pela criação de tipos intersticiais mediadores destas ção abrangente que evita a todo o custo o conflito e o
. '
posIções. Num meio social hierarquizado, tais intermed iações confronto.

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1
ernas for­
Gilberto Freyre nas suas mod
o» não foi só loca delirantemente
, entre nós, o «racism
Vemos, assim, que a pol ítica e eco­ mulações do problema
.'
alizadora da sup rem aci o ponto
uma doutrina racion ter sido deste Não é preciso dize r novamente - pois esse foi
europeu, e nem pod eria socia lmen te signi­
nômica do branco que tudo isso é
out ras ideo log ias imp ortadas desta longa digressão - tão
cismo», como as» é uma ques
modo. Aqui, o «ra deceram ao poder ficativo e que toda essa
discussã o doe «raç
e nesta modificação obe vras , dos mod os pelos
foram modificadas, social. Como a de ideologias e valores.
Em outr as pala
uíam nossa totalidade a realidade illierna para nós
mes­
das forças que constit fácil refletir quais nóS recortam os noss
zada, foi relativamente recriamos a hierarquia que
form a
sociedade era hierarqui , ponto bási­ mos. Foi neste recortE). que
rmediárias, intersticiais al e foi nele que abrimos mão
de estu ­
sobre as categorias inte se está sempre o nosSO esq]!eleto soci
existem gradações e re o estu ­
co em sistemas onde que «cada dar as relações entre as
«Taças», preferindo semp


mo do
para cada coisa», de . Isso tem atrasado ' noss a per­
buscando um «iugar do das «raças» em si mesmas
ar» . Foi isso que efe tiva n:en te � �orreu

coisa f que em seu lug
geral, perm
;
Ihu uh lIza r a cepção de nós mes mos com o uma sociedade definitivamente
e, nest uadro ideológic.o-polí1:ico . singular e cultura específica.
Por­
IVO. dotada de estrutura social
do mtensIvO e extens disc utin do
noção d raça de mo os de «Taças» e nunc a
tem um que, colocando tudo em term
o «racismo à brasileira» bioló gico se con­
A no - o de «raça» e ret udo entre suas relações, reificamos
um esquema onde o
sob
ificativo até hoje - cultural, permitindo assim
realizar
valor socia ente sign por que o nos sO funde com o soci al e o
nossa população a poss ibili dade de
as camadas médias de opé ia. En tre uma permanente miopia em
relação< à noss
eur
ial é uma variante da do social dete rmin ado por mot i­
tipo de doutrinação rac a que o abriga, autoconhecimento. Num mun
a ser, como o sistem cons ciên cias, pouc o
nós o conceito passou a etnia e vações biológicas, desconhecida
s de nossas
para nós raça é igual liber taçã o e

tot lizante. De modo que
ão cult ura l, ideo­ ou quase nada há para se faze
r em term os de
essa é uma elaboraç Mas, como vim os, toda essa dou­
cultura. É claro que de vis ta bioló­ esperança de dias melhores.
científico. Do ponto ra que a conhecemos, podemos
lógica, não tendo valor ada pta tiva de uma trina é ideo logia soci al. Ago
iação genética e antropológico como devotado
gico, a raça é uma var elab ora da no retomar o caminho do estudo
na conceituação soc ial
mesma espécie. Mas sodal é o histórico. Por isso
etn ia e ass im t m ao entendimento do social e o da
se confunde com � abeTto ao sol do futuro e
Brasil, «raça. é algo que tur no, per mIt e mesmo, pode ser modificado e
a colocação, por seu
uma dada «natureza». Ess is com plic ado s, esperança.
problemas muito ma
escapulir ainda hoj e de o uma
disc utir o noSSO «racismo» com
como o de ter que se neg a a si
, antiideológica, que
ideologia racial às avessas ism o euro­
imagem de espelho do rac
própria, mas que é uma stõe s rela tivas
aqui situamos que
peu e americano. Só que pela s três
do sistema triangu lad o
aos pontos intermediários io clar o
que fazemos um elog
raças, ao mesmo tempo em inin o)
etudo no seu âng ulo fem
e aberto da mulataria ( sobr ver 6. E concepçill.o de sociedade no fundo
padece desta

é por out ra razão que continuamos a a seu lado Darcy Ribeiro, cuja
s6cio-culturais se reduzem
a "povos"
e ao mestiço. Não Assim, para ele. a.s configu rações
mesma visão. nada mais sio
plan o "matrizes étnicas'!, porém,
Social como dentro de um e esses "povos" a "matrizes étnica.s". Tais tradição
o estudo da Antropologia
conceito de "raça". na melhor
do que um nome novo para o velho e batido numa paaeagem
; e o ant rop ólog o Conforme coloca Ribeiro,
estudo das raças de Gobineau, Silvio Romero e Nina Rodrigues.
traçado no século XIX, no
os",
testemunhos", "povos transplantad
critica, onde procura upor a te!!e dos "povos conjunção, de­
ra» apr opr iada povos-novos, oriundos da
irá, pela «mistu "povo s novos" : "Os
indigena, a
como o grande eugenista que
"pavoe emerge ntes" e
s muito dispares, como a
culturação e caldeamento de matrizes étnica
rmediá­ Observe o U80 das eJtpre8l!
ôes biol6-
e de todos os tipos inte � o, 1972: 12).
do branco, do negro, do índ io a ricana e a européia" (d. Ribeir
"dlsl,ares", a trair a idéia
- muito clara
será glcaa, "matrizes", "caldeamento" e o termo . Note
Tip o que fato superior ao Indio e ao
negro
o brasileiro».
rios, criar finalmente um «tip
no ensaio citado _ de que o "branco" é de entre n6s)
pela «raç a também a outra bâsica. (e eviden temen te errada., mas muito velha
amente abra ngid o noção
e1llropéias, africanas ou
indlgenas como
exoticamente moreno, mas obvi com o co-
de que. se pode realmente falar em " raças"

«meta-raça bra nca» , categorIas uplanat6rias.


humana » ; ou então será uma

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