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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


Programa de Pós-Graduação em Educação

O discurso da competência para o trabalho e a


educação em tempos neoliberais: a história
reeditada como farsa?

MARCOS FREISLEBEN ZORZAL

São Carlos

2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
Programa de Pós-Graduação em Educação

O discurso da competência para o trabalho e a


educação em tempos neoliberais: a história
reeditada como farsa?

MARCOS FREISLEBEN ZORZAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Educação do Centro de Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Carlos, como parte dos
requisitos para para a obtenção do título de Doutor
em Educação (Área: Fundamentos da Educação).

São Carlos

2006
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar

Zorzal, Marcos Freisleben.


Z88dc O discurso da competência para o trabalho e a educação
em tempos neoliberais: a historia reeditada como farsa? /
Marcos Freisleben Zorzal. -- São Carlos : UFSCar, 2006.
309 p.

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,


2006.

1. Educação. 2. Pedagogia das competências. 3.


Neoliberalismo. 4. Trabalho e educação. 5. Psicologia
histórico-cultural. I. Título.

CDD: 370 (20a)


BANCA EXAMINADORA

Prof. Df. Ramón Pena Castro

Profl Dtt Marisa Bittar

Prof. Df. João dos Reis Silva Junior

Prof. Df. Newton Duarte


..
I Prof. Df.Celso João Ferretti
A todos aqueles que sabem, e lutam por fazer saber, que o
processo educativo pode nos libertar das “frias cadeias” em
que nos prendem as “ilusões”, e formar seres cada vez mais
vivos e concretamente humanos. A estes dedico, com o meu mais
profundo respeito, esta modesta produção.
Agradecimentos

Ao PPGE e à UFSCar, que apesar das adversidades, ainda representam a nossa luta por um
ensino público amplo, de qualidade e comprometido com os interesses do povo brasileiro.
Ao povo brasileiro que, apesar dos golpes e adversidades, ainda financia quem nem sempre o
reconhece como seu mantenedor e fundamento maior de suas realizações.
À CAPES, mandatária do financiamento público que tornou possível este trabalho (com
concessão de bolsa no período de Maio/2003 a Abril/2006).
A todos os professores-aprendizes da Vida, que contribuíram de diversas formas para a
realização de mais esta etapa do meu contínuo processo de aprendizado, em especial ao meu
muito caro orientador e amigo, Prof. Dr. Ramón Peña Castro, aos professores de todos os
tempos, Lígia Márcia Martins, Marisa Meira Ragonesi, Elenita de Riccio Tanamachi, Adriana
Chaves, Ana Maria Daiben, Maria Salete Aranha, Salete Alberti. Aos professores membros das
bancas de qualificação e defesa que muito nos honraram com suas participações e dignificaram
este trabalho, Profª Drª Marisa Bittar (sempre presente), Prof. Dr. João dos Reis da Silva Jr.,
Prof. Dr. Celso João Ferretti, Prof. Dr. Wolfgang Leo Maar, Prof. Dr. Farid Eid e ao Prof. Dr.
Newton Duarte, a quem certamente sou devedor, como tantos outros, como intelectual e
educador. Aos amigos e interlocutores de sempre, Maria Denise Guedes, Àurea de Carvalho
Costa e Sandro Almeida, muito obrigado.
À Secretaria do PPGE, através de Rafael, Magda, Rosângela, Josiane e Maria Helena, pela
atenção sempre prestimosa e pela eficiência.
Aos funcionários da Biblioteca Comunitária, exemplares no trato com livros e pessoas.
À Alessandra, companheira e amiga, pelas contribuições, pela dedicação, pela paciência e pelos
encorajamentos pelos quais lhe serei eternamente grato.
Aos demais amigos, meus pais, Paulina e Nobelino e irmã, Luciana, que acompanharam e
contribuíram, de diversas e decisivas formas, para que minha trajetória e esta produção se
tornasse possível.
E mais uma vez, à Vida, que ostensivamente me prova “conspirar” a favor de nosso
crescimento e aprimoramento, mesmo que, em geral, disso nem sempre nos apercebamos.
A todos, enfim, a minha mais profunda gratidão e reconhecimento.

São Carlos, Outono de 2006.


Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula1
beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e
extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século.[...] A doutrina era a
que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque,
acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada. Clamava ele que as
virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram naturais e legítimas. A
soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que
declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era
robusta, e a filha esgalgada.
Machado de Assis, A Igreja do Diabo (1870).

Quando a acumulação de riqueza já não for de alta importância social, haverá grandes
mudanças no código moral [...]. Estaremos então livres, afinal, para descartar todos os
costumes sociais e práticas econômicas que afetam a distribuição de riqueza e de
recompensas e penalidades econômicas, que agora mantemos a todo custo, por mais
desagradáveis e injustos que possam ser em si mesmos, por serem enormemente úteis
para a acumulação do capital [...]. Prestaremos honras àqueles que podem nos ensinar a
aproveitar a hora e o dia com virtude e bondade, as pessoas encantadoras que são
capazes de colher um gozo direto das coisas, os lírios do campo que não trabalham nem
fiam. {...] Mas cuidado! Ainda não chegou a hora para isso. Durante pelo menos outros
cem anos devemos fingir para nós mesmos e para todos os outros que o bom é ruim e o
ruim é bom, porque o ruim é útil e o bom não é. A avareza, a usura e a prudência devem
ser nossos deuses ainda por algum tempo. Somente elas podem nos tirar do túnel da
necessidade econômica para a luz do dia.

John Maynard Keynes, Essays in persuasion (1925)

1
Cogula: termo eclesiástico; espécie de túnica larga, sem mangas, usado por certos religiosos monacais, como,
p.ex., os beneditinos.
Resumo

Pelo presente estudo investigamos o contexto de produção e difusão do discurso da


competência, em termos de suas repercussões sobre a educação e o mundo do trabalho no
país. Para isso, situamos nossa atenção, sobretudo, nos anos de 1990, especialmente nos
mandatos de Fernando Henrique Cardoso, período este apontado por diversos estudiosos como
de implementação efetiva de políticas econômicas, sociais e educacionais neoliberais no Brasil
e no mundo. Nossa tese, ao considerarmos as proposições ultraliberais de transformações
inexoráveis para as esferas da educação e do trabalho ao final do séc. XX, é de que estas
reeditam, pelo elemento discursivo da competência, argumentos e propósitos equivalentes aos
discursos dominantes nas circunstâncias de transformação e crise capitalistas da transição
entre os séculos XIX e XX, auge de consolidação da sociedade industrial desenvolvida, em
que os avanços técnico-científicos e gerenciais da produção (o chamado modelo fordista-
taylorista) e a consolidação de um mercado de trabalho assalariado competitivo,
demandavam uma categoria de trabalhadores diferenciada da existente até então
(eminentemente originária da manufatura simples), adequada aos novos ícones organizativos,
educacionais e produtivos daquele período. Entretanto, embora ambos os discursos sejam
muito similares em termos das mutações nos processos de trabalho e ao papel atribuído à
escolarização para fins de mercadológicos, defendemos neste trabalho que a argumentação
ultraliberal de que o problema do desemprego, precarização e “exclusão” sociais sejam
atribuíveis à desqualificação ou incompetência dos próprios trabalhadores mediante supostas
inovações produtivas contemporâneas, na verdade dissimulam e buscam legitimar,
ideologicamente, o que o próprio capitalismo, em sua crise estrutural contemporânea,
inevitavelmente gera. Para subsidiarmos nossa proposição, procedemos a uma análise
comparativa entre os dois períodos em questão, tomando como base as reflexões de Antônio
Gramsci e de Karl Polanyi sobre as transformações econômicas, culturais e educacionais no
contexto de supremacia do ideal liberal dos mercados “auto-reguláveis” sobre os interesses
sociais secularizados mais amplos — ou seja, quando o mercado, de componente fatorial da
sociedade, transforma a própria sociedade em um componente fatorial seu. Procedemos, a
seguir, neste contexto em que se instaura a escola profissionalizante e do advento do fordismo
no primeiro terço do século XX, a reflexões que confrontamos com análises de autores
contemporâneos sobre o fenômeno da ultraliberalização político-econômica e educacional
brasileira. A questão que nos guia e que pretendemos responder, portanto, pode ser assim
formulada: o discurso da competência como imperativo para o trabalho e a educação atuais,
num contexto de transformações tecnológicas e de crise estrutural da relação capital-trabalho,
poderia estar reeditando elementos discursivos do contexto de transformações observadas em
fins do século XIX, de modo a legitimar suas conseqüências negativas atuais na forma de uma
dissimulação da realidade ou, em termos marxianos, de uma farsa histórica? A análise dos
dois períodos do capitalismo nos indicaram que o postulado hegeliano-marxiano da “repetição
histórica” torna-se plausível mediante o renascimento ultraliberal observado a partir de fins do
século XX.
Abstract

By the present study we investigated the production and spread of the discourse about
competence, as for its repercussions on the education as well on the work in Brazil. In order
that, we situated our attention upon the years of the Fernando Henrique Cardoso government
period from the 1990’s, pointed by many researchers like the effective implementation of
neoliberal economics, social and educational politics in Brazil and in the world. Our thesis,
considering the ultraliberals proposals of inexorable transformations to education and work at
the final of XXth century, is that these proposals reedit, by the competence discourse,
arguments and proposals equivalents to dominants discourses into circumstances of
transformation and capitalist crisis, between the XIXth to XXth transition at the industrial
society consolidation peak. That moment represented technical, scientific and administrative
developments (the model called fordism-taylorism) and the competitive worker market
establishment, circumstances that requesting a new workers category, adequate to the
newfangled organization, education and productive icons. However, despite of similarity of
both discourses in terms of mutations in the work processes and to the role attributed to
schooling with market goals, we defend in this research that the ultraliberal argue that the
problem of unemployment, social precarization and “social exclusion” are attribute to worker
disqualification or incompetence through presumed contemporary production innovations,
actually they dissimulate and legitimate, ideologically, what the own capitalism, in its
contemporary structural crisis, unavoidably create. To subside our proposal, we proceed a
comparative analysis between the two periods in question, taking as base the reflections of
Karl Marx, Antonio Gramsci and Karl Polanyi toward the economic, cultural and educational
transformations in the context of supremacy of liberal ideal of “self-regulated” market about
the wide secularized social interests, that is, when the market, factorial component of society,
transform the own society in its factorial component. After this, we will proceed, in the
context in which it is establish the trade school and the arrival of fordism on the first third
part of XXth century, reflections in which we confront analysis of contemporary authors
about the Brazilian politic-economic and educational ultra liberation phenomenon.
Considering this, the question that guide us and which we intent answer could be formulated
in this manner: the competence discourse as imperative to the actual work and education, in a
context of technological transformation and structural crisis of capital-work relation, could
be reediting discursive elements of the transformations observed at the end of XIXth century,
in way to legitimate the actual negative consequences in form of a dissimulation of reality or,
in Marxian terms, as a historical farce? The analysis of the two periods of capitalism indicate
us that the Hegelian-Marxian postulate of “historical repetition” become plausible by means
of the ultraliberal renascence observed since the end of the XXth century.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Problematização e objetivos ...................................................................................................................... 1

CAPÍTULO I

O paradigma neoliberal .......................................................................................................................16

1. PANORAMA HISTÓRICO DO NEOLIBERALISMO ........................................................................................16


2. PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS NEOLIBERAIS ..................................................................................20
2.1. Adam Smith, liberalismo e a chamada “Modernidade” .....................................................................20
2.2. Crítica epistemológica aos postulados de Adam Smith.......................................................................25
2.3. Hayek, Friedman e Popper: o manifesto ultraliberal em três frentes ..................................................33
2.3.1. O pensamento de Friedrich Von Hayek ...........................................................................................34
1. As (im)possibilidades da razão......................................................................................................34
2. Economia e sociedade de mercado................................................................................................36
3. Direito natural, desigualdades e justiça social .............................................................................43
2.3.2. O pensamento de Milton Friedman..................................................................................................48
1. O papel do Estado numa “sociedade livre”..................................................................................49
2. Na contramão do keynesianismo ..................................................................................................54
3. Posições sobre a educação liberal ...............................................................................................62
2.2.3. O pensamento de Karl Popper .........................................................................................................65
2.3. Algumas considerações preliminares sobre o ideário neoliberal.........................................................70
2.3.1. John Maynard Keynes: menos liberal que os outros? .....................................................................75

CAPÍTULO II

Liberalismo, sociedade industrial e o discurso da escolarização para o Século XX .............. 80

1. A EVOLUÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL E DO TRABALHO ASSALARIADO: DO ESTADO TUTELAR AO ESTADO


SOCIAL DE DIREITO .................................................................................................................................... 82
1.1. Trabalho, expropriação e indigência ................................................................................................... 82
1.2. A constituição do proletariado “moderno”.......................................................................................... 94
1.3. A invenção da economia de mercado ............................................................................................... 100
1.4. A regulação como condição dos mercados “livres”: a constituição do mercado de trabalho .......... 122
2. A EDUCAÇÃO PARA TODOS: O DILEMA E OS PARADOXOS DA EDUCAÇÃO LIBERAL ............................. 128
3. FORDISMO E TAYLORISMO: A GESTÃO CIENTÍFICA E DISCIPLINADORA DA CLASSE OPERÁRIA ............ 137
4. O PRINCÍPIO EDUCATIVO DO TRABALHO SEGUNDO GRAMSCI: O DISCURSO DOMINANTE DA SOCIEDADE
INDUSTRIAL PARA O ENSINO DESVELADO ................................................................................................ 144
4.1. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932): a escola para todos no contexto do
desenvolvimento capitalista industrial no Brasil ...................................................................................... 149
4.1.1. O Manifesto .................................................................................................................................... 150
CAPÍTULO III

Ultraliberalismo e o discurso da competência para o Séc. XXI ................................................ 165

1. O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DO TRABALHO E DO CONHECIMENTO .................................................... 166


1.1. Trabalho na sociedade do conhecimento........................................................................................... 166
1.2. A educação na “sociedade do conhecimento”: “aprendendo a aprender”......................................... 175
2. O DISCURSO IDEOLÓGICO DA COMPETÊNCIA ....................................................................................... 182
2.1 A “competência” como princípio educativo ultraliberal para o trabalho e a educação...................... 183
2.2. O Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI............. 186
2.3. “Habilidades e competências” a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº
9.394/96.................................................................................................................................................... 193
2.4. Do discurso da qualificação ao discurso da competência: revendo os conceitos e os contextos
históricos de suas produções .................................................................................................................... 198
3. O DISCURSO DA COMPETÊNCIA PARA O TRABALHO E A EDUCAÇÃO NO BRASIL ................................. 204
3.1. Antecedentes políticos e econômicos imediatos (1986-1992) .......................................................... 204
3.1.1. José Sarney..................................................................................................................................... 205
3.1.2. Fernando Collor de Mello.............................................................................................................. 206
3.1.3. Itamar Franco ................................................................................................................................ 208
3.2. O Brasil Neoliberal: Fernando Henrique Cardoso e as palavras ....................................................... 209
3.3. Conseqüências das políticas ultraliberais no Brasil: para além das palavras, dados. ........................ 216
4. DESDOBRAMENTOS E IMPLICAÇÕES DO IDEÁRIO NEOLIBERAL: APONTAMENTOS PARA O GOVERNO DE
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA ................................................................................................................... 219

CAPÍTULO IV

Refutação do discurso ultraliberal da competência .................................................................... 224

1. O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO COMO ABORDAGEM METODOLÓGICA............................... 225


1.1. A apreensão prático-sensível da realidade ou “imediaticidade versus concreticidade” .................... 227
1.2. Do desenvolvimento da consciência humana à alienação e reificação ............................................ 230
1.3. Trabalho alienado, apropriação privada e divisão social de classes: revisitando Karl Marx ............ 237
1.3.1. A ontologia humano-genérica da atividade vital do trabalho em Marx ....................................... 238
1.3.2. Conseqüências da alienação ao processo genérico de humanização......................................243
2. SOBRE A REPETIÇÃO DA HISTÓRIA OU, SOBRE “TRAGÉDIA E FARSA” EM MARX .................................. 249
2.1. A crise do capitalismo ao final do séc. XX e o capitalismo do séc. XIX: paralelos e contradi-
ções........................................................................................................................................................... 254
2.2. O discurso da “inclusão” e a legitimação da precarização ultraliberal: a estratégia da transferência,
por subjetivação, das conseqüências da crise capitalista contemporânea à população trabalhadora ....... 263
3. A ATIVIDADE VITAL DO TRABALHO E O PAPEL DA EDUCAÇÃO NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
HUMANO-GENÉRICO ................................................................................................................................. 267
3.1. O papel do ensino formal no processo de apropriação de conhecimentos humano-genéricos.......... 268
3.1.1. Pensamento cotidiano e não-cotidiano e a especificidade do ensino formal................................. 274
3.2. A refutação do espontaneísmo naturalista para as relações entre ensino e desenvolvimento humano:
contribuições da psicologia histórico-cultural marxista ........................................................................... 278

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................. 293


BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 302
INTRODUÇÃO

Os acontecimentos contemporâneos diferem dos históricos porque desconhecemos os


resultados que irão produzir.(...) Quão diferentes as coisas nos pareceriam, quão
importantes e até mesmo alarmantes se nos afigurariam mudanças que agora mal notamos!
Talvez seja uma felicidade para o homem o fato de que ele jamais poderá ter semelhante
experiência e de que ignore quaisquer leis a que a história deva obedecer. Contudo, embora
a história nunca se repita em condições idênticas, e exatamente porque o seu desenrolar
nunca é inevitável, podemos de certo modo aprender do passado a evitar a repetição de um
mesmo processo.

Friedrich August Von Hayek - O caminho da Servidão

Problematização e objetivos
I
Karl Marx, na abertura de O 18 Brumário de Luis Bonaparte, ao comentar a
observação de Hegel de que os fatos e personagens mais importantes da história aconteceriam,
geralmente, por duas vezes2, faz notar que Hegel poderia ter acrescentado: “a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa” (Marx, 1852/1988, p. 7)*. E esta obra de Marx é pródiga ao
elencar fatos e personagens históricos que caracterizaram a reedição3, tanto de forma trágica
como de embuste, dos desdobramentos da Revolução Francesa que vieram desaguar no
bonapartismo.
A exemplo de Marx e Engels, assumimos aqui a história como a ciência por
excelência4 e, desse modo, ferramenta mestra para a investigação radical da realidade, seja
natural, seja humana, cujas relações são inextricáveis. Em nossos estudos temos podido observar

2
Marx remete-se à obra de G. W. Hegel (1770-1831), Princípios de Filosofia do Direito (1821).
*
Nota: procuramos, nas obras clássicas aqui utilizadas, fazer referência tanto à data da edição recente quanto à data
da publicação original, no formato “primeira publicação/edição atual”. Esse critério não é utilizado em obras cujas
datas de origem e da edição atual se aproximem em menos de 10 anos ou sejam apenas mencionadas.
3
Paul-Laurent Assoun, em sua obra Marx e a repetição da história, entende que seria mais adequado falar-se de
uma “reedição” de acontecimentos históricos, e não de “repetição” dos mesmos, uma vez que a história não pode de
fato repetir-se, mas sim, em termos marxianos, ser ideologicamente reproduzida. Daí o sentido atribuído por Marx à
observação de Hegel, de que a história [em seus grandes acontecimentos e personagens] só pode acontecer de duas
formas: a primeira como acontecimento em si (tragédia), a segunda como reprodução burlesca (ou farsa), indo, por
conseguinte, da tragœdiæ à comœdiæ (ver Assoun, 1979, p. 46, nota 5).
4
Em A Ideologia Alemã, estes autores dizem: “Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A
história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos,
contudo, não são separáveis; enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se
condicionarão reciprocamente. A história da natureza não nos interessa aqui; mas teremos que examinar a história
dos homens, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida desta história, ou a uma abstração
completa dela. A própria ideologia não é senão um dos aspectos desta história.” (Marx & Engels, 1846/1989, p. 25).
(Nota: este trecho só veio a ser incorporado ao texto original, publicado em 1932 pelo Inst. de Marxismo-Leninismo
de Moscou, como nota à edição de 1962, após a descoberta de novos fragmentos até então desconhecidos).
2

que aquele aditamento de Marx à observação de Hegel — ainda que permeado por sua típica
ironia em relação às contingências sociais e políticas de sua época e, certamente, desvinculada da
pretensão de atingir o estatuto de um enunciado —, guardava consigo a força das evidências e
fatos da própria história. Marx complementa em seguida essa sua observação com elementos
que, agora sim, nos permitem compreender o caráter hipotético-científico no qual sustenta seu
comentário. Diz ele que:

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas
e transmitidas pelo passado.” E, metaforicamente, acrescenta: “A tradição de todas as
gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando
parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu,
precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em
seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra
e as roupagens, a fim de se apresentarem nessa linguagem emprestada. (Marx, 1852/1988,
p.7 – itálicos nossos)

Assim, embora os acontecimentos históricos não possam se repetir, já esta segunda


asserção ganha o poder de um enunciado, qual seja, o de que os homens são, antes e de fato,
determinados (ou multideterminados) pelos legados de seus antepassados, possivelmente a ponto
não apenas de incorporá-los (e possivelmente transformá-los), mas, e também, reproduzi-los
deliberadamente, mesmo que lhes conferindo, por vezes, um caráter inaudito. Portanto,
encontramos neste postulado marxiano e em seu preâmbulo (geralmente considerado um
exemplo anedótico de um pensamento incidental de Karl Marx) elementos que nos chamam a
atenção quanto ao modus de manutenção da organização capitalista burguesa, isto é, de
reproduzir-se através de “inovações e transformações”5 ideologicamente apresentadas como
revolucionárias, mas que se prestam em geral à preservação e legitimação de seu sistema. Estas
verdadeiras “revoluções conservadoras” só podem se dar através da ocultação e dissimulação da
realidade concreta, o que Marx sugere ao enfatizar o suposto “esquecimento” de Hegel sobre o
fato de que, quando acontecimentos e personagens históricos parecem repetir-se, isto só é
possível pelo expediente da farsa.
Aqui as frases iniciais que apresentamos, presentes em O caminho da servidão, de
autoria de Friedrich Von Hayek (1944/1990, p. 31), pensador maior do chamado movimento
neoliberal, exprimem uma aparente e intrigante similaridade em relação às palavras de Karl
Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Contudo, embora os objetos sejam coincidentes, e à

5
Marx e Engels indicavam essa característica do capitalismo da seguinte forma no Manifesto Comunista: “A
burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as
relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais. (...) O permanente revolucionar da produção, o
abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos, distinguem a época da
burguesia de todas as outras.” (Marx & Engels, 1848/1987c, p. 37).
3

primeira vista ambos se refiram a uma humanidade fortemente determinada por seu passado,
Hayek anuncia sua descrença na possibilidade de que a história obedeça a vontades humanas e,
portanto, sustenta a impossibilidade da mesma vir a ser apreendida ou projetada — o que, como
enfatiza, talvez “seja uma felicidade para o homem o fato de que ele jamais poderá ter
semelhante experiência e de que ignore quaisquer leis a que a história deva obedecer.”
Por sua vez, Karl Marx não só reconhece que os homens são, de fato, determinados
por seu passado histórico, como também, pelo fato de o passado ter sido feito por homens,
poderem os mesmos assumir o presente e determinar o futuro, como produtos que são de suas
próprias ações, passadas e presentes. Se os homens, entretanto, não fazem sua história como o
querem, isso se deverá, antes, ao fato de serem estes alijados, pelas condições reais e ideais que
para si próprios instauram, de se verem como agentes de si mesmos e de suas condições
existenciais vitais.
Enquanto Hayek empunha a bandeira da “liberdade” (pois que representa o mais
extremo liberalismo), e em nome dela, declara que os indivíduos humanos são livres para agirem
no presente segundo suas vontades, mas que as sociedades humanas estarão sempre sujeitas às
conseqüências imponderáveis de tais ações individuais no futuro — o que inviabiliza qualquer
tentativa de se vislumbrar o devir humano —, Marx nos fala de nossa atual condição de
escravos, mas admoesta que tal condição é determinada por nossa própria atividade sócio-
histórica, que uma vez intencionalmente apreendida (compreendida), pode ser voluntariamente
transformada em liberdade humano-genérica — uma condição que supera por incorporação a
suposta liberdade apenas particular e individual referida por Hayek.
Em outras palavras, o primeiro nos sugere que os caminhos humanos transitam “do
reino da liberdade ao reino da necessidade”, porque a medida de nossa liberdade se encontra em
nossa aptidão para respondermos adequadamente aos imperativos que as circunstâncias nos
impõem, e que esse é o princípio natural e imutável de toda a história humana. O segundo nos
diz que o humano transita, como potência, do “do reino da necessidade ao reino da liberdade”,
pois mais que nos adaptarmos a necessidades diuturnas supostamente inelutáveis, a história
humano-genérica revela-se, antes, como antítese da submissão plena a leis naturais, e que essa é,
portanto, também a possibilidade histórico-social de todo o devir humano.
A história adquire, assim, nos dois autores, sentidos antagônicos: em Hayek a
história da humanidade está subsumida à história da natureza biofísica e, portanto, é uma história
de adaptação ao meio e seus fenômenos; em Marx, a história da humanidade é um processo que
tem como base a natureza biofísica, mas que a ela transcendeu, instaurando para si atributos
próprios que representam a superação humana das determinações meramente natural-
4

adaptativas, em termos evolutivos e ambientais.


II
Essas reflexões iniciais são os elementos instigadores do presente estudo. Estamos no
princípio de um século amplamente anunciado pelo ideário hegemônico contemporâneo como
um período de “transformações revolucionárias”, seja em termos de inovações técnicas e
científicas, seja em termos comunicacionais, que supostamente deslocam a centralidade da
produção industrial “tradicional” para o âmbito da informação ou, como querem seus
divulgadores, para o âmbito do conhecimento. Por esta perspectiva, o novo século inaugura uma
nova ordem mundial marcada pelo “fim” da sociedade industrial, o “fim” das barreiras
geopolíticas, o “fim” das restrições comerciais mundiais, o “fim” das ideologias, o “fim” da
chamada Modernidade e, com ela, o “fim” das pretensões da razão. Por conseguinte, o “fim” da
própria história, uma vez que, supostamente, o capitalismo teria liquidado, durante o século XX,
todos os seus antagonistas ou possíveis formas alternativas de sociabilidade. Estas novas
“condições” culturais, políticas e econômicas, representariam uma nova ordem para as esferas do
trabalho, do conhecimento e da sociabilidade humanas, em geral compreendidas como pós-
industrialistas, pós-estruturalistas mas, sobretudo, em sua expressão mais radical, condição pós-
moderna. Nesse sentido, a década de 1990 contou com uma imensa produção destinada a
“revisar”, impiedosamente, em alguns casos, a racionalidade da chamada modernidade e “seus
produtos”: uma socidade rígida e inflexível, apegada a noções de “verdade e progresso”
questionáveis ou mesmo inverossímil (veja-se, p. ex., Rorty, 1991a, 1991b e 1999; Geuras, 2002;
Vattino, 2001; Lyotard, 1979/1990; Morin, 1992 e 2000; Bauman, 1997 e 1999; Ghiraldelli Jr,
1994).6 Em termos epistemológicos, contudo, em nosso entendimento este movimento se revela
rapidamente como uma das principais expressões da materialidade da própria crise do
capitalismo, prestando-se também à legitimação ideológica do anacronismo que a acompanha —

6
Perry Anderson, em "As Origens da Pós-Modernidade" (1999), afirma que teria sido o espanhol Frederico de Onís,
ainda em 1930, quem se valeu do termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo conservador dentro do
próprio modernismo. Mas atribui ao filósofo francês Jean-François Lyotard, com a publicação de A Condição Pós-
Moderna (1979), a expansão do uso do conceito. David Harvey (2000), por sua vez, localiza o início de tal
movimento em princípios da década de 1970, coincidentemente ao princípio da crise capitalista que se deflagra no
período. Dermerval Saviani (1992 e 1997), reconhece, no âmbito da cultura e da educação, que as proposições pós-
modernas sejam tão-somente efeitos de uma época de “fragmentação” e “superficialidade”, um período de
“decadência da cultura”, de “esvaziamento do trabalho pedagógico na escola”, enfim, seria mais um meio ardiloso
da produção ideológica capitalista para encobrir a percepção dos homens a respeito do desenvolvimento histórico.
Fredric Jameson (1997) também identifica o pós-modernismo como apenas “um estágio do capitalismo, entendido
segundo os clássicos termos marxistas”. Para Paulo Ghiraldelli Jr, entretanto, defensor da idéia de pós-modernidade
e discípulo do neopragmatismo de Richard Rorty, parece existir nestes argumentos uma espécie de “ciúme” ou
“receio” de que “a pós-modernidade seria um suposto período onde a burguesia deixaria de ser classe revolucionária
e passaria a ser classe dominante, e, assim fazendo, voltar-se-ia contra a própria cultura pois, agora, teria que se
perpetuar no poder através, embora não exclusivamente, de mecanismos ideológicos” (Ghiraldelli Jr, 1994). Essa
discussão, embora fundamental, não será assumida em detalhes nesse trabalho, para a qual remetemos o leitor às
obras dos autores em questão, para aprofundamentos.
5

daí a afirmação de estarmos diante de uma crise e mudanças paradigmáticas, relacionadas às


esferas do “conhecimento”, da “razão” e da “cientificidade”, obsoletas diante das questões da
“existência real”, ou da “vida tal como ela é”: incoerente e inabordável objetivamente.
Enfim, o sistema baseado na apropriação privada do que é produzido socialmente
tem sido aclamado por seus ideólogos como o modelo culminante de uma evolução em que os
indivíduos e grupos mais aptos estabeleceram seu predomínio jusnatural em nossas sociedades.
Em linhas gerais, estas proposições, tão apologéticas quanto apocalípticas em relação à
hegemonia capitalista, difundidas, sobretudo, na transição dos séculos XX e XXI, têm, no
movimento denominado neoliberal, sua principal base de sustentação ideológica, política e
econômica. Nesse aspecto, o principal componente epistemológico em que se sustenta esse
movimento é afirmação do mercado como uma entidade essencialmente natural-evolutiva7,
inexorável e imponderável. A nosso ver, essa tentativa de naturalização do sistema e de seu
suposto motor, as relações de livre-mercado competitivo, se prestam à função de legitimar o que,
historicamente, não encontra sustentação científica em termos antropológicos, contradizendo
todo o processo sócio-histórico de humanização8 de nossas sociedades. Queremos dizer com isso
que, embora esse modo de produção tenha, até aqui, incrementado avanços tecnológicos e
produtivos inegáveis, o fenômeno da apropriação privada dos meios de produção e de seus
resultados sociais dissimula e oculta o princípio de socialização e cooperação em que
historicamente se fundamenta toda a atividade produtiva humana.9

7
A pretensão de naturalização e extensão dos princípios econômicos desse modo de produção a toda a história da
humanidade, pretérita e futura, revela-se frágil diante das investigações antropológicas mais recentes sobre as
formas de sociabilidade humanas primitivas. Este modo de produção, contrariamente ao que propõe “a mitologia
ideológica do mercado, na verdade se trata de uma exceção à regra na história produtiva da humanidade” (cf.
Mészáros, 2002, p. 96; ver também: Polanyi, 1944/2000, p. 62-63).
8
Embora concordemos com Erich Fromm (1979), que nos propõe o pensamento marxista como um humanismo,
vale salientar que o processo de humanização na tradição marxista, e em especial na perspectiva histórico-cultural
que aqui adotamos, não equivale ao da filosofia humanista; na concepção antropológica da perspectiva russa em
questão, humanizar é, antes de tudo e também, hominizar (Leontiev, 1978), o que implica uma noção
historicizadora para além da esfera subjetiva particular ou existencialista, peculiares à filosofia humanista. Neste
sentido, a concepção de humanização aqui utilizada, equivale, na tradição marxista, à defendida também por
Lukács, ou seja, o processo dialético de desenvolvimento que surge no meio natural mas salta para a condição
ontológica de ser social, através da teleologia do trabalho e a apropriação de seus resultados sociais (Lukács, 1979,
p. 17). Lukács, em Existencialismo ou Marxismo (1979a), polemiza extensamente também sobre a concepção de
Jean-Paul Sartre em relação ao marxismo, exposta, sobretudo, em Crítica da razão dialética (1960).
9
O que não quer dizer que os modos de produção precedentes não tenham sido, também eles, baseados na
exploração servil de alguns poucos sobre muitos, segundo a divisão social do trabalho e de classes que lhes foram
próprias (excetuadas os modos de existência comunais primitivos). Entretanto, como nos fazem notar Marx (1988),
Polanyi (op. cit. 2000), Castel (2003), a peculiaridade do modo de produção capitalista está na instauração de
relações de mercado e salarios antes inexistentes, fundadas agora na propriedade privada e na exploração da força
de trabalho socialmente destituída (sobretudo a partir do séc. XI) de seu locus comunitário de habitação, de suas
redes de proteção, de seus recursos próprios e comunais de subsistência, bem como do conhecimento integral dos
processos de produção. Ademais, esse processo de desapropriação material e psicológica (em geral, brutal e
coercitivo) tornou possível não só o estabelecimento do trabalho alienado (cujo produto objetivado é separado de
quem o produz), como também a inversão histórica decisiva em que valores-de-uso são sobrepujados por valores-
de-troca, pressuposto essencial para a instauração não só da produção de mercadorias (e, inclusive, da mercadoria
6

Somos testemunhas, nesse exato momento histórico, e conforme têm argumentado e


demonstrado inúmeros pesquisadores sociais críticos, de que o processo de desenvolvimento do
referido modo de produção não só tem coincidido como também provocado conflitos cada vez
mais acentuados entre os interesses privados dominantes e o bem estar comum da maioria das
populações humanas, ainda que tais conflitos não nos sejam, por vezes, imediatamente visíveis
em toda a sua magnitude. Estamos precisamente no princípio de um novo século e há, a nosso
ver, tragédias e farsas a nos envolverem, reeditando elementos do passado sob o signo do
ineditismo. E o que é anunciado é uma evolução, ou mesmo revolução, tão natural quanto
inexorável (e, portanto, inquestionável) para o progresso e modernização de nossas sociedades,
sob a regência perene do sistema capitalista, auge de um processo histórico-natural
pretensamente milenar e definitivo. Nesse sentido, o movimento denominado “neoliberal” tem
sido entendido como o grande difusor ou mediador das “revoluções” em curso, a começar pelo
âmbito da economia política por ele defendida e aplicada desde os anos de 1980 pelo mundo, e
que atingiu seu apogeu na década de 1990.
Temos evidências, por autores e estudos variados, que o movimento neoliberal se
caracteriza como protagonista de um revigoramento intransigente dos fundamentos do
liberalismo de mercado, principalmente de sua fase clássica, cujo expoente foi Adam Smith (cf.,
p. ex.: Gómez, 2003; Sader & Gentilli, 2000a; Bianchetti, 1996; Malagutti, Carcanholo &
Carcanholo, 2000; Passet, 2002; Wainwright, 1998 — dentre outros autores). Do mesmo modo,
os críticos do neoliberalismo são unânimes quanto às implicações sociais negativas dos
implementos identificados como neoliberalizantes, que no Brasil teriam sido deflagrados a partir
da década de 1990, sobretudo nos mandatos do governo Fernando Henrique Cardoso, no âmbito
das políticas econômicas e sociais conduzidas no país por aquele governo.
Até aqui, contudo, pouco há de novo e que já não tenha sido devidamente
demonstrado por diversos autores, no que concerne aos desdobramentos das políticas ultraliberais
não só nos países centrais, mas, principalmente, nos países periféricos do capitalismo mundial, no
qual se insere o Brasil (ver, p. ex., Beinstein, 2001; Benjamin, 2002; Borón, 2001; Lesbaupin &
Mineiro, 2002; Fiori, 1997; Sader & Gentilli, 2000a e 2000b; Bianchetti, 1996; Pochmann, 1999 e
2001; Malagutti, Carcanholo & Carcanholo, 2000; dentre outros). Entretanto, e com o intuito de
contribuir para com o debate e objetivos de desvelamento não só dos pressupostos e reais
propósitos desse ideário, mas também em relação às conseqüências dos mesmos à atualidade e
futuro de nossas sociedades — ou seja, um retrocesso e acentuação da precarização e

trabalho) como da obtenção de mais-valia, fundamentos da acumulação capitalista (Marx, 1867/1988, vol. I).
Enfim, estes fundamentos são absolutamente novos em relação aos modos de produção anteriores.
7

vulnerabilidade sociais, nos termos de Robert Castel (2003), ou de barbarização e ameaça à


sobrevivência da própria humanidade, como argumenta István Mészáros (2002a; 2002b) —,
levantamos nesse estudo algumas questões e hipóteses que nos sugerem a validade da proposição
de K. Marx, relativa à reedição de elementos do passado que se prestam à dissimulação da
realidade presente, perpetuando uma história de domínio e exploração de alguns indivíduos e
grupos sobre as populações majoritárias.
III
Nesse contexto, é no discurso ideológico da competência, tão largamente difundido
pelo ideário empresarial e pedagógico liberal em relação ao mundo do trabalho e da educação,
que nos debruçamos neste trabalho. Entendemos que as atividades do trabalho e da educação
formal foram e estão sendo estrategicamente apropriadas e manipuladas pelo discurso neoliberal,
de modo que o movimento de reorientação do capitalismo internacional e suas conseqüências
negativas sejam devidamente assimilados por nossas sociedades como naturais, inevitáveis e até
mesmo desejáveis, ainda que representem uma ampliação sem precedentes da degradação das
condições humanas e ambientais de sobrevivência no planeta.
No que se refere às esferas do trabalho e da educação, portanto, consideramos que
estas acabaram assumindo o que entendemos como uma dupla condição e função, econômica e
ideologicamente interdependentes, a saber:
a) Por um lado, a educação é requisitada como o lugar por excelência de preparação
de homens e mulheres trabalhadores, em conformidade com as condições que os atuais processos
produtivos exigiriam, ou seja, de trabalhadores mais flexíveis do ponto de vista cognitivo e de
suas habilidades individuais. Em nome deste melhor preparo (o que até período recente, fora
definido como qualificação10, mas que permanece em uso pelo marketing empresarial),
instaurou-se e difundiu-se como nunca o preceito da competência como princípio educativo de
todo e qualquer processo de ensino-aprendizagem, apresentado, a seu turno, como locus natural
de formação de homens e mulheres para o mundo da produção e do mercado;
b) Por outro lado, se no primeiro caso é conferida tal função e responsabilidade à
educação11 e a seus agentes — ao mesmo tempo em que se lhes reduzem os propósitos ao
pragmático universo do saber-fazer ou do aprender a aprender (a se adequarem, diga-se, ao
mundo contingencial da produção e do consumo do mercado competitivo) —, por decorrência
lhes serão também imputadas as responsabilidades por suas faltas de êxito, na medida em que

10
Note-se que o princípio da competência guarda diferenças semânticas, sociais e organizacionais em relação ao que
designa o termo qualificação para o trabalho (Ramos, 2001). Voltaremos a isso no Cap. III.
11
Referimo-nos à educação enquanto processo geral de socialização de saberes, em suas diversas formas atuais
(institucionalizadas de forma pública ou privada, ou informais não-estatais, populares e midiáticas). Mas, tomamos o
ensino formal como principal referência para nossas considerações.
8

não formar cidadãos trabalhadores competentes reflete a própria ineficiência e/ou


incompetência do processo de ensino. Para tanto, o ensino e seus agentes deverão renovar-se em
termos curriculares, de propósitos, atividades e métodos, de modo a tornarem-se condizentes
com o que os porta-vozes da nova racionalidade produtiva e pedagógica apresentam como
inovador, moderno e, enfim, adequado às exigências de um mundo do trabalho em irrevogável
mudança, dados os aperfeiçoamentos do modo de produção (a chamada revolução tecnológica) e
os desígnios de um onipotente mercado, agora fundamentado numa “sociedade do
conhecimento” (a chamada revolução informática).
Consideramos que as novas determinações do movimento capitalista, lançadas sobre
a educação sob o imperativo categórico de uma insuspeita pedagogia das competências, em
verdade dissimulam o que corresponderia, de fato, à legitimação de um processo de precarização
cada vez mais acentuado da maioria dos indivíduos da classe trabalhadora — processo este
sempre vinculado à maximização da exploração do trabalho humano pelo capital, e inerente ao
mesmo —, através de estratégias de segregação e desqualificação da mesma enquanto classe, e
que visam sua fragilização e desvalorização dentro da lógica de mercado contemporânea.
Encontra-se velado, nesse processo, o que consideramos ser o principal estratagema ultraliberal
de legitimação ideológica da precarização e “exclusão” sociais geradas pelo capitalismo atual: a
transferência, por subjetivação, das responsabilidades de não-alocação e insucesso no mundo
societário e do trabalho, apresentados como fenômenos decorrentes da incompetência ou
inadequação dos próprios precarizados ou “excluídos” de nossas sociedades.
Indissociavelmente, o referido discurso defende que seria na escola e pela escola que
as pretendidas habilidades e competências para o mundo do trabalho e societário deveriam ser
instauradas, estimuladas e supostamente atingidas. Nesse sentido, o discurso da competência
passa a ser crucial não só para a sustentação ideológica de um processo apontado como
inexorável e superior de modernização tecnológica, descentralização e maximização produtiva,
como também para a explicação da existência de um número cada vez maior de indivíduos
postos à margem do mesmo — condição esta entendida, por visionários da ideologia dominante,
como efeito inevitável da tendência do capitalismo para liberar o homem do trabalho mecânico12.

12
Estas constatações nos remeteriam a uma séria discussão sobre esta proposição, defendida por determinados
autores quanto às possibilidades propiciadas pelos avanços tecnológicos para o usufruto do ócio em larga escala.
Concordamos com Saviani, segundo o qual, embora as possibilidades de abolição do trabalho pela automação
estejam cada vez mais postas, tal “só poderá se concretizar através da socialização da apropriação, isto é, com a
abolição da propriedade privada” (Saviani, 1996, p. 182). Defendem ainda alguns que estaríamos num movimento
natural e paulatino para uma tal socialização de riquezas, posição não menos romântica ao nosso ver, já que o
capitalismo dá mostras contundentes da preservação de seus princípios individualistas, competitivos, imperialistas e
concentradores de renda, da qual o movimento neoliberal é o grande exemplo logístico e ideológico da atualidade, e
as incursões e ingerências dos organismos financeiros do capitalismo atual (e também de seus exércitos) suas
9

Ao final deste processo de desqualificação, ao não lograrem meios adequados para


garantirem suas existências pela tradicional inserção na produção pelo trabalho assalariado, tais
indivíduos acabam destituídos também do estatuto de consumidores — que o paradigma
neoliberal fez suplantar o conceito clássico de cidadania —, e que se tornou condição sine qua
non para a chamada inclusão social (Gentilli, 2002, p.20).
IV
Originalmente, esse assédio ideológico sobre o trabalho e a educação foi muito bem
identificado e analisado por Antonio Gramsci, ainda na Europa de princípios do século XX, nas
circunstâncias do auge da chamada Segunda Revolução Industrial. Já naquele período, Gramsci
(1932/1982) ao discutir o trabalho como princípio educativo, analisa e demonstra com sólidos
argumentos as contradições das propostas então utilizadas em relação à escola e seu pretendido
papel de formadora, antes de tudo, de indivíduos que respondessem, pragmaticamente, às
exigências do mundo produtivo e cotidiano de então: o mundo do fazer através da escola
profissionalizante, em detrimento do mundo do saber, próprio à escola clássica (pejorativamente
denominada por seus antagonistas como “escola tradicional”). Seria esse o papel precípuo da
escola? Segundo as reflexões de Gramsci, a priori, não. A escola, segundo ele, tem antes um
papel histórico ligado ao próprio processo genérico de humanização, através da socialização dos
conhecimentos universais humanos (universo cultural, científico e filosófico, entendido como
clássico), e não ao de formação ou adestramento de indivíduos para a esfera exclusiva da
produção, segundo exigências qualificadoras de mercado (âmbito da realização do trabalho
abstrato, trabalho em geral, do qual se serve a lógica de acumulação de riquezas capitalista).
As observações de Gramsci se prestam, ao nosso ver, como parâmetros de
comparação para a atual conjuntura ultraliberal (ou neoliberal) em relação ao papel do trabalho e
da educação através do discurso das habilidades e competências que, em nosso entendimento,
reedita os desiderativos produtivistas e de classe analisados por Gramsci no primeiro terço do
século XX, bem como inúmeros dos argumentos pedagógicos presentes à época. Entretanto, ao
contrário do que verificamos nas fases precedentes do capitalismo industrial, os processos
produtivos atuais (altamente avançados e pelos quais se acentua a tendência à substituição do
trabalho vivo por trabalho morto para a maximização da obtenção de mais-valia) certamente
possibilitam prescindir cada vez mais de postos de trabalho locais, antes indispensáveis13, assim

manifestações mais objetivas. Logo se vê que há uma confusão (deliberada e elitista) entre o sentido do trabalho
assalariado (trabalho abstrato, próprio ao modo capitalista) e o sentido do trabalho enquanto atividade vital humano-
genérica. Os discursos em voga sobre supostas mudanças na centralidade do trabalho tomam o segundo pelo
primeiro (voltaremos a essa discussão no Capítulo III).
13
É preciso salientar, contudo, que esta tendência não elimina a necessidade de trabalho vivo à produção de
riquezas e reprodução do capital, e que este venha a ser inclusive buscado onde lhe aprouver, em se tratando de
10

como intensificam ao extremo o trabalho humano, o qual, pela própria lógica de apropriação
capitalista, lhe é condição intrínseca e insuprimível.14 Logo, há lugar para cada vez menos seres
humanos no atual momento de reestruturação da produção capitalista, e a suposta necessidade de
qualificação, agora metamorfoseada em necessidade de competência, se nos revela uma primeira
evidência de um deslocamento conceitual da esfera social para a esfera individual e subjetiva da
produção e do consumo. O próprio fenômeno da “globalização”, aclamado como auge da
tendência natural do encontro mundializado dos mercados, tem se revelado, grosso modo,
também como ápice da possibilidade de deslocamento dos mercados de trabalho na busca por
mão-de-obra terceirizada, pouco instruída e barata por todo o mundo.
Quer nos parecer que, neste momento anacrônico do modo de organização e
produção da humanidade, as considerações de Marx e Gramsci se nos apresentam como
oportunas a uma análise radical dos pressupostos ultraliberais que têm orientado atualmente o
saber e o fazer humanos, no âmbito da educação e do trabalho. Isto porque, conforme
salientamos, o contexto aqui chamado de neoliberal representa, acima de tudo, o resgate e
afirmação das características mais conservadoras e degradantes da história do capitalismo, sob o
véu de discursos reformistas e modernizadores da economia, do Estado e das sociedades
humanas atuais.
Eis aqui o princípio da farsa histórica em que se faz uso da retórica do progresso, da
liberdade e da democracia para atacar de modo reacionário e retrógrado a maioria das conquistas
sociais já auferidas, sobretudo, pelas e para as camadas trabalhadoras, lançando-as à própria
sorte num dos contextos mais dramáticos de manutenção e luta pela sobrevivência promovidos
pelo capitalismo. A primeira impostura visa e atinge, portanto, frontalmente os processos de
trabalho e os trabalhadores.
A segunda impostura do movimento ultraliberal, e que se revela intrínseca ao
propósito anterior, é sua investida sobre a educação de modo geral. Esta impostura reedita a
apologia consagrada ao ensino em outros períodos do século passado, afirmando-o como
fundamental à resolução das urgências sociais e, sobretudo, dos mercados, resgatando assim
momentos já muito bem conhecidos da história e da filosofia e sociologia da educação, como o
advento da escola profissionalizante, do pragmatismo escolanovista ou do otimismo pedagógico,
da posterior teoria do capital humano e do ensino tecnicista que a acompanhou.
V
Mediante tais considerações iniciais, este estudo tem, por objetivo geral, avaliar o

obtenção de mão-de-obra barata, um dos maiores propósitos da chamada globalização da produção atual, que é,
antes, globalização do mercado capitalista de trabalho.
14
Processo analisado em detalhes por Marx em Maquinaria e grande indústria (cf. Marx, 1988, p. 5-116).
11

recente movimento neoliberal15 de reestruturação das relações entre capital, trabalho e educação
tendo por hipótese que este movimento reedita elementos ideológicos do auge da chamada
Segunda Revolução Industrial, sob condições inversas à mesma (condições negativas), contudo
sob o signo de exigências inéditas, revolucionárias e modernizadoras (condições positivas) para
conformar as relações entre capital, trabalho e educação segundo seus propósitos produtivos e
reprodutivos ao final do século XX. Defendemos que a noção psicopedagógica da competência,
relacionada ao trabalho e ao ensino, traduz-se como elemento central para a dissimulação e
legitimação dos processos de degradação social e seus reflexos sobre as esferas do trabalho e
da educação, sobretudo nos anos de 1990, na forma de uma farsa histórica, nos termos
marxianos já mencionados.
O presente estudo tem, portanto, como objetivos específicos:
1) Analisar se o discurso da competência, difundido pelo ideário empresarial e
pedagógico no Brasil, é de fato reflexo de uma realidade em que a competência haja se tornado
condição para que a classe trabalhadora possa manter-se vinculada aos processos produtivos pelo
regime assalariado e, por decorrência, “incluída” nas estruturas de proteção e sociabilidade
atuais;
2) Analisar se cabe à educação formal a função de formar trabalhadores hábeis e
competentes para o mundo do trabalho contemporâneo, mediante as atuais mutações
tecnológicas e gerenciais do modelo capitalista de produção;
3) Comparar o atual contexto do modo de produção capitalista com o analisado por
estudiosos do advento da sociedade industrial, como Karl Marx, Antonio Gramsci, Karl Polanyi,
Eric Hobsbawm e Robert Castel, em relação à chamada segunda Revolução Industrial (sobretudo
na transição entre os séculos XIX e XX), e seus reflexos sobre a educação e o mundo do trabalho
de então;
Para estes fins comparativos, centramos nosso foco sobre o impacto do discurso
pedagógico da competência no cenário brasileiro das políticas neoliberais e suas principais
repercussões sobre o mundo do trabalho e da educação. Esta delimitação espaço-temporal nos
remete, sobretudo, à década de 1990 no Brasil, e em especial aos mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, buscando também por indicativos de suas possíveis conseqüências e/ou

15
Como o leitor poderá notar, sobretudo a partir de nossas considerações preliminares sobre o chamado movimento
neoliberal (Capítulo I, item 2.3), tendemos a considerar o mesmo como um movimento oportuno dentro do processo
de crise e reestruturação material e ideológica do capitalismo contemporâneo. Embora este seja de fato o movimento
mais representativo dos percursos atuais da economia-política burguesa, consideramos temerário reduzir os atuais
movimentos do capital exclusivamente às teses neoliberais (o que não anula sua força e importância como think-tank
da reação ultraliberal a que presenciamos nos anos de 1990). Daí a razão para utilizarmos, como “palavra-forte”
para o atual contexto capitalista, também o termo “movimento ultraliberal”, do qual o neoliberalismo é certamente a
maior expressão (e objeto de delimitação contemporâneo para nosso estudo).
12

desdobramentos no governo subseqüente de Luiz Inácio Lula da Silva.


Desse modo, no Capítulo I, O Paradigma Neoliberal, apresentamos os principais
elementos históricos da constituição do paradigma neoliberal, em termos dos eventos coetâneos
ao seu advento quanto em termos de suas matrizes epistemológicas e ideológicas, fundadas no
liberalismo de mercado desde os filósofos da chamada economia política clássica, sobretudo,
Adam Smith. Centramos nossa atenção, aqui, nos postulados de suas três principais referências no
âmbito político-econômico e científico, ou seja, Friedrich Von Hayek, Milton Friedman e Karl
Popper. Neste capítulo fazemos menção também a John Maynard Keynes, uma das figuras
centrais nos ataques dos teóricos neoliberais, de modo a demonstrar que embora Keynes tenha
sido a referência teórica para o “pacto” entre capital e trabalho que vigorou no ocidente capitalista
do pós-II Guerra Mundial até princípio da década de 1970, como liberal Keynes pouco se afastava
dos ideais capitalistas defendidos pelos liberais mais conservadores. Por fim, abordamos algumas
questões e controvérsias apontadas por críticos do neoliberalismo, que põem em dúvida a
legitimidade da dimensão atribuída a este movimento (em si considerado) mediante os
movimentos do próprio capitalismo a partir da década de 1990, e que colocariam em dúvida sua
organicidade e o alcance de suas propostas. Ou seja, embora o movimento não possa ser
subestimado, estaríamos antes diante de um movimento mais amplo e anacrônico, o que diminui o
papel dos neoliberais nos caminhos do capital, ao mesmo tempo em que amplia o extremismo das
práticas capitalistas a partir deste período. Desse modo, para além de um movimento coeso,
denominado neoliberal, estaríamos na verdade diante de um momento maior, disforme e sem
controle do capitalismo contemporâneo, “ultrarradical” ou, como preferimos, ultraliberal.
No Capítulo II, Liberalismo, sociedade industrial e o discurso da escolarização
para o Século XX, uma vez que tenhamos estabelecido uma visão geral dos princípios
epistemológicos, históricos e das contingências próprias ao advento do movimento neoliberal,
procuramos resgatar as relações históricas existentes entre o modo de produção capitalista em
sua fase de consolidação, isto é, sua fase industrial de princípios do séc. XX e suas relações ou
conseqüências sobre o trabalho e a educação. Retomamos a trajetória histórica das questões
sociais e institucionais relacionadas com o surgimento e mutações do modo de produção
capitalista e do mundo do trabalho assalariado, a formação de uma economia de mercado em
detrimento de uma economia social secularizada, bem como a dramática constituição de uma
classe trabalhadora supostamente livre e assalariada, subsumida a um mercado competitivo de
trabalho. Por fim, retomamos os processos instaurados pela sociedade capitalista industrial sobre
o disciplinamento e/ou adestramento da nova classe, o que nos remete ao advento do fordismo e
da gestão científica dos processos de produção de caráter taylorista, e aos dilemas e paradoxos
13

enfrentados pela burguesia em relação à educação para todos, corolário do próprio movimento
iluminista e revolucionário liberal.
O Capítulo III, Ultraliberalismo e o discurso da competência para o Séc. XXI,
tem, por objetivos gerais, evidenciar a interpenetração entre o contexto ultraliberal
contemporâneo em questão e as esferas do Trabalho e da Educação na transição para o novo
milênio. Nesse sentido, o discurso da competência se apresenta como elemento de mediação
entre estas três categorias, determinado pelos imperativos contemporâneos do próprio
capitalismo em sua manifestação “neoliberal”. Discutimos os aspectos ideológicos liberais e suas
determinações sobre as visões do mundo do trabalho e da educação contemporâneas, sobretudo
relacionadas às apologias da chamada globalização econômica e das novas tecnologias,
constituídas no e pelo capitalismo com vistas à suposta liberação do homem das exigências do
trabalho. Discutimos, em seguida, a condição contemporânea da classe trabalhadora e do
movimento trabalhista face à crise estrutural que se reflete sobre o trabalho assalariado e sua
precarização, com uma redução extrema do sentido humano-genérico da atividade do trabalho à
mera condição de trabalho alienado.
Na seção seguinte deste capítulo, discutimos a esfera complementar ao discurso da
competência para o trabalho, ou seja, a que assedia a esfera da educação. Nela apresentamos uma
análise do advento da pedagogia da competência (nos termos de Ramos, 2001) sobre o ensino,
ensino que se torna cada vez mais vinculado às exigências não só do mercado capitalista, como é
apresentado como “tábua de salvação” das próprias sociedades contemporâneas, mediante o
anacronismo social, político e econômico em que se encontram. Aqui a apologia da “sociedade do
tempo livre”, relativa à esfera do trabalho, encontra sua correspondência na apologia da
“sociedade do conhecimento”, atribuída à esfera educacional. A lógica instrumental e pragmática
imputada ao ensino, que resgata elementos do otimismo pedagógico e da escola ativa de fins do
século XIX, presta-se não somente a corroborar a submissão do ensino ao princípio pedagógico
das habilidades e competências (pressuposto este no qual se pautam explicitamente os novos
parâmetros e diretrizes curriculares nacionais, instituídos a partir da promulgação da LDBEN nº
9394/96, durante o governo de Fernando H. Cardoso), mas também a flexibilizar a escola frente à
precariedade social e cultural das populações desfavorecidas. Em seguida, apresentamos a
assimilação e difusão das políticas neoliberais, centrando nossa atenção no panorama político-
econômico brasileiro e suas conseqüências ao país, processo este deflagrado entre nós a partir do
mandato de Fernando Collor de Mello (iniciado em 1990 e interrompido em 1992), redefinido nos
bastidores do governo Itamar Franco, e efetivamente implementado nos mandatos subseqüentes
de Fernando Henrique Cardoso (1994 a 2002). Nesse sentido, em nome de uma maior
14

aproximação da escola com a chamada “realidade” social de sua demanda, a escola abandona
cada vez mais o seu papel histórico de socializadora de conhecimentos sistematizados (esfera dos
conhecimentos científicos) para assumir a função de moderadora dos efeitos da precarização e
exclusão sociais através de atividades cada vez mais relacionadas com a esfera cotidiana e
espontânea da vida dessas populações, numa supervalorização do que denominamos um papel
“lúdico-ocupacional” de arrefecimento e contenção dos efeitos da indisciplina, violência,
embrutecimento, agressividade e banalização da vida em sociedade, decorrentes do abandono
sócio-cultural e falta de perspectivas sociais, culturais e econômicas a que estão expostas as novas
gerações.
É este legado concreto que nos permite desnudar e desmistificar seus recursos
discursivos, os quais apresentam a democracia liberal, a globalização, a competitividade e, por
fim, o princípio da competência, como fenômenos “natural-evolutivos” de uma sociedade que
deve ser entendida como recompensadora das habilidades e competências individuais (ainda que
estes façam parte de um contingente restrito de indivíduos bem-aquinhoados em termos de
recursos materiais e culturais para o sucesso).
Finalmente, no Capítulo IV, que intitulamos Refutação do discurso ultraliberal da
competência, após apresentarmos os aspectos metodológicos essenciais do materialismo
histórico-dialético para a abordagem dos processos sócio-históricos humanos, com ênfase nas
categorias alienação, fetichismo e ideologia, pretendemos evidenciar que o referido caráter
utilitarista, imediatista e espontaneísta concorre, ideologicamente, para a redução dos processos
propriamente humanos à condição de fenômenos apenas natural-evolutivos, condição para a
eternização do trabalho alienado e a preeminência do mercado capitalista. Em seguida, e mediante
o quadro histórico e epistemológico levantado até aqui, procedemos a uma comparação entre o
período vivido e analisado por Antonio Gramsci (1982; 1989; 2001) em relação à educação e ao
mundo do trabalho de então, e o atual contexto de reorientação neoliberal para o capitalismo.
Nesse momento, após analisarmos o significado de drama e farsa em Marx (ou de “tragédia e
comédia”), nos concentramos na tese principal de nosso trabalho, ou seja, a possibilidade de que o
capitalismo atual, através do ideário neoliberal, esteja reeditando elementos discursivos do
passado — e, mais especificamente, muito próximos ao contexto descrito e analisado por Gramsci
—, para legitimar, ideologicamente, os efeitos sociais profundamente negativos das mudanças
impetradas ao mundo do trabalho assalariado atuais, mediante os imperativos da maximização da
mais-valia e das taxas de lucro capitalistas. Para tanto, seria o discurso da competência (aplicado à
educação e ao trabalho assalariado), um dos principais estratagemas ideológicos para a
assimilação social passiva de suas muitas e trágicas conseqüências atuais. Ademais, dedicamos
15

especial atenção aos estudos da psicologia sócio-histórica (ou histórico-cultural) marxista de Lev
S. Vigotski (Vigotski, 1993 e Vigotski et al.,1988) e Alexis Leontiev (1978), bem como à
sociologia do cotidiano de Agnes Heller (1994 e 1997), que corroboram e ampliam, ao nosso ver,
as análises gerais de Gramsci mencionadas.
Neste processo nos deparamos, contemporaneamente, com o fenômeno do
ressurgimento de um contingente de seres humanos que, para além do estado de pobreza, miséria
e formação de um exército de trabalhadores de reserva, produzido pelo modo de produção
capitalista ao longo de sua história, sugerem a condição de desfiliados, supranumerários ou
inúteis para o mundo na atualidade (Castel, 2001). Serria este o quadro social legado pelo
renascimento ultraliberal16 que, ao menos em parte, o ideário neoliberal protagoniza.

16
“Renascimento”, na medida em que o século XX testemunhou, após duas grandes guerras e uma grande depressão
econômica, o nascimento de um Estado de Bem-Estar não só fruto parco de lutas históricas de um trabalhismo que
se pretendia, até então, revolucionário, como também da necessidade de contenção da ampliação do movimento
comunista internacional, bem como a imanente destrutividade predatória do próprio capitalismo. Os “anos de ouro
do capitalismo” (circunscritos, em grande medida, aos países centrais, mas com repercussões nos países periféricos)
representaram, assim, o período do compromisso keinesiano entre capital e trabalho que, a partir da década de 1970,
entra em crise e é rompido. O Estado Social, que até então mediara e financiara os custos sociais desta “regulação”,
revela-se em crise face ao acúmulo de dívidas auferidas, o que propiciou uma oportuna reação do capital frente a
qualquer forma de controle social, decretando a falência por insolvência e incompetência do próprio Estado. Assim,
“renasce” o capitalismo em sua forma mais genuína, isto é, na acepção de Mészáros (2003, p. 106-107), na forma
de apropriação e subordinação totalitárias de todas as atividades e produções humanas, em todas as esferas da
sociedade, aos seus imperativos.
CAPÍTULO I
O paradigma neoliberal

1. PANORAMA HISTÓRICO DO NEOLIBERALISMO

Os estudiosos da história do pensamento contemporâneo apontam que as raízes


teóricas mais remotas do neoliberalismo encontram-se na chamada escola austríaca, reconhecida
por sua ortodoxia no campo do pensamento econômico, que se centralizou em torno do
catedrático da Faculdade de Economia de Viena, Friedrich Von Wieser (1851-1926), ainda na
segunda metade do século XIX, conhecido por seus trabalhos sobre a estabilidade da moeda,
especialmente o intitulado O Valor Natural (1889) e, posteriormente, na continuidade dada a seu
pensamento por Ludwig Von Mises (1881–1973), também notabilizado pela obra Ação Humana:
um tratado de economia (1949). Considera-se, entretanto, que o neoliberalismo tenha sido de
fato instaurado como movimento a partir de 1947, sob a liderança de Friedrich Von Hayek
(1899-1992), a partir do célebre encontro de intelectuais conservadores promovido pelo mesmo
em Mont Pèlerin, na Suíça, onde formaram uma seleta sociedade de ativistas contra as políticas
do chamado Estado de Bem-Estar Social e os pressupostos econômicos de John Maynard
Keynes (1883-1946), nos quais tais políticas se sustentavam teoricamente. A outra vertente do
movimento teve como reduto os Estados Unidos, e concentrou-se na chamada escola de Chicago,
coordenada por Milton Friedman (1912-), defensor intransigente do monetarismo e da liberdade
plena do mercado. A exemplo de Hayek, combatia as políticas de Estado do New Deal de
Franklin Delano Roosevelt, consideradas intervencionistas e pró-sindicatos, e representativa do
welfare state nos EUA. As obras O Caminho da Servidão (1944) e The constitution of liberty
(1960), ambas de Hayek, e Capitalismo e Liberdade (1962), de Friedman (com a colaboração de
sua esposa, Rose Friedman), são considerados os marcos teóricos do movimento (cf. Schilling,
1998). O terceiro expoente do neoliberalismo foi, sem dúvida, o filósofo da ciência Karl Popper
(1902-1994), cujas obras mais célebres foram A lógica da descoberta científica (1934) e
Conjecturas e refutações (1963).
Contudo, embora defendidas desde a Segunda Guerra Mundial, as chamadas
políticas econômicas neoliberais (ou ultraliberais) só viriam a ser efetivamente suscitadas no
meio político e econômico a partir de meados da década de 1970, por países centrais do
capitalismo mundial (a começar pelos signatários de Bretton Woods, cujos acordos do pós-guerra
entre as potências ocidentais assegurou aos EUA a plena supremacia definidora das agendas do
capitalismo mundial) e difundidas por seus organismos financeiros internacionais (cf. Gómez,
17

2003; Sodré, 1996; Bianchetti, 1997; Sader & Gentili, 2000; Malaguti, Carcanholo &
Carcanholo, 2002). Até então, poder-se-ia dizer que as idéias neoliberais, embora não recentes,
figuravam como excêntricas e inoportunas por seu radicalismo num período que exigia, em todos
os sentidos, que o mundo capitalista fosse “humanizado” e a economia dirigida politicamente
após uma trágica primeira metade de século.
Ao contrário das teses de Hayek e seus seguidores, que defendiam uma incondicional
liberalização dos mercados e a supressão de qualquer intervenção ou planificação econômica
como antídotos à ameaça dos movimentos coletivistas e totalitários pelo mundo — todos,
indistintamente, considerados por Hayek como socialistas e promotores da idéia do planejamento
e estatização (cf. Hayek, 1990) —, o que se observa no momento seguinte à Segunda Guerra e à
nova configuração mundial é um consenso entre as nações capitalistas centrais da necessidade de
um compromisso entre capital e trabalho e de certo controle econômico para a recomposição e
preservação da ordem capitalista e de suas sociedades. Desse modo, serão justamente as teses
que defendiam um Estado interventor e uma economia planificada que ganharão terreno no
mundo capitalista, teses estas contra as quais Hayek lutaria por toda a vida, e por cujos esforços
viria ainda a ser reconhecido no futuro, tornando-se referência não só para o revigoramento do
capitalismo do final do século XX, como também para o processo de reconversão ideológica do
bloco socialista europeu ao capitalismo, e cuja deflagração ele ainda testemunharia antes de sua
morte (Wainwright, 1998).
Mas, devemos nos aprofundar um pouco mais nos fatores que determinam a
aceitação da “moderação” das economias capitalistas ocidentais naquela conjuntura e a rejeição
da idéia de uma economia de mercado supostamente “auto-regulada”, como defendiam os
ultraliberais. Segundo Hobsbawm (2003), em primeiro lugar, com a derrota nazi-fascista, era
agora o avanço comunista vinculado a um trabalhismo socialista internacionalizado que figurava
como desafiador ao capitalismo ocidental, comunismo que, ao mesmo tempo em que gerava
apreensão entre os liberais, atraia a atenção de todos pelo fantástico crescimento econômico e
garantias sociais que o planejamento proporcionara à União Soviética em tempo recorde. Nesse
sentido, eram então muito mais atraentes e significativas as teses defendidas por Keynes sobre a
estabilidade sócio-econômica, baseada na intervenção estatal sobre as relações econômicas, com
vistas à reversão do quadro insuportável de desemprego e miséria decorrentes de duas guerras
intercaladas por uma Grande Depressão. Era evidente que a União Soviética se revelara imune à
crise de 1929, e, graças aos seus planos qüinqüenais, sua produção passara de 5% para 18% entre
1929 e 1938 (Hobsbawm, 2003, p. 100). Estes índices causavam espanto e certa admiração às
economias capitalistas, que, exceto os EUA, cuja produção a guerra havia impulsionado, se
18

revelavam decadentes tanto em termos produtivos quanto, por decorrência, em termos sociais.
Nesse sentido, a economia planificada soviética era também um fenômeno a ser considerado por
haver conquistado um grande equilíbrio social através do impulso do emprego e o oferecimento
de uma rede de proteção social ampla. É assim que o termo “planificação” passa a integrar o
vocabulário de inúmeros economistas e políticos do mundo capitalista, como elemento
necessário à recuperação e sobrevivência de seus próprios Estados.
Ainda segundo Hobsbawm, um segundo fator teria sido decisivo para a ampla
disseminação da tese da planificação econômica nos principais Estados capitalistas. Trata-se das
duas experiências de guerras generalizadas experimentadas naquela turbulenta primeira metade
do século. Estas obrigaram a todos os envolvidos nos conflitos a adoção de economias de guerra
que revolucionaram não só a administração pública e empresarial, como o próprio sistema de
produção nesses países. A economia de guerra se apresenta, assim, desde 1914, mas acima de
tudo durante a guerra seguinte, como elemento de demonstração objetiva das vantagens do
planejamento econômico, que, se por um lado havia permitido o surgimento (e posterior
ressurgimento) de uma Alemanha industrialmente poderosa e belicista, garantira também a
organização dos países aliados para suportar o flagelo da guerra e vencer os agressores
(Hobsbawm, 2003, p. 53).
Portanto, quando conjugados com o desenvolvimento observado na União Soviética
até a deflagração da Segunda Guerra Mundial17, estes fatores resultam num espírito comum de
aceitação da planificação como inevitável e mesmo imprescindível, não havendo terreno
propício para que as teses defendidas por Hayek vingassem. Por outro lado, as décadas de
prosperidade econômica e social que sucederam ao trágico período das guerras nos países
centrais do capitalismo, pareciam confirmar, inequivocamente, as teses keynesianas.
Como salienta Perry Anderson, em seu Balanço do Neoliberalismo, as condições
para ações radicais contra o Estado de Bem-Estar do pós-guerra eram então pouco favoráveis,
uma vez que “o capitalismo avançado estava entrando numa longa fase de auge ⎯ sua idade de
ouro ⎯, apresentando o crescimento mais rápido da história, durante as décadas de 50 e 60”
(Anderson, 2000, p. 10).
Entretanto, a partir dos anos de 1970 este contexto de prosperidade começa a se
transformar, num processo descendente que perduraria até nossos dias. São as mudanças
ocorridas nesse período que darão passagem às teses há muito defendidas por Hayek. Nas
palavras Anderson:

17
Não podemos deixar de considerar que a II Guerra Mundial foi a maior tragédia da história dos povos que então
formavam a URSS. Além de contar com o maior número de vítimas da guerra (mais de 20 milhões), 25% dos bens
de capital soviéticos foram então destruídos (Hobsbawm, 2003, p. 55).
19

[...] com a chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando
todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela
primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, tudo mudou. A partir
daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e
seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de
maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação
capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária
para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais. (Anderson, 2000, idem).18

A partir de então, as teses ultraliberais, não só do livre mercado de Hayek como


também do monetarismo de Friedman, passam a ganhar notoriedade no cenário político-
econômico mundial, principalmente durante os anos 80 em países centrais do capitalismo, a
começar pela Inglaterra da era Thatcher e os Estados Unidos da era Reagan19 e, durante os anos
90, em um número expressivo de países periféricos, incluindo-se aí, com a derrocada da
experiência soviética e do bloco socialista, um grande número de países do leste europeu, a
começar pela Polônia e própria Rússia.
Ou seja, a crise do modelo keynesiano e a decomposição da experiência burocrática
soviética, serão as condições para o ressurgimento das teses neoliberais, que passam a fornecer
subsídios ideológicos para a legitimação de medidas econômicas anti-sociais que resgatam o
capitalismo em suas formas historicamente mais agressivas e predatórias.
As teses baseadas no resgate da ortodoxia liberalizante neoclássica, caracterizada
pela defesa intransigente do primado dos mercados livres sobre quaisquer formas de
regulamentações públicas, serão também conjugadas com a consolidação de processos altamente
técnicos de produção, bem como por uma busca feroz do aumento da permeabilidade das
barreiras político-geográficas dos Estados nacionais à produção e fluxo de capitais e
mercadorias, fatores que tornaram quase ilimitadas as possibilidades de o capital internacional
poder eleger seus mercados financeiros, de produção e de consumo segundo custos operacionais
e de mão-de-obra, capitalização e concessões governamentais circunstancialmente mais
vantajosas por todo o globo (cf. Sodré, 1997; Antunes, 1998; Sader & Gentili, 2000; Malagutti,
Carcanholo & Carcanholo, 2002).
Estas condições gerais correspondem ao que se convencionou denominar processo
de globalização da economia20 mundial, que na verdade corresponderia, segundo seus críticos,

18
Aqui Hayek evidencia a contradição fundamental do próprio modo capitalista: o imperativo de que os produtores
sejam desapropriados ao máximo do resultado do trabalho e mantidos sob uma dependência crônica de venda de sua
força de trabalho. Melhores salários e proteções sociais tendem a “equilibrar” forças que necessariamente têm que
ser desiguais, uma proprietária e compradora, outra desapropriada e vendedora de si mesma — em suas variadas
formas.
19
Entretanto, como se sabe, foi mais precisamente o Chile de Pinochet, desde princípios da década de 70, o primeiro
laboratório experimental de aplicação das teses neoliberais, experiências acompanhadas de perto por Hayek
(Wainwright, 1998, p. 51).
20
Viviane Forrester questiona o que considera uma identificação mecanicista entre globalização e expansão do
20

eufemisticamente apenas ao acirramento do avanço e consolidação do processo de


internacionalização do capital, fenômeno em nada novo na história do capitalismo (cf. Chesnais,
1996; Castro, 1999). Por fim, julgamos oportunas também as observações de Katz & Coggiola
(1995), que nos indicam uma superestimação do impacto e influências do ideário dito neoliberal
na conjuntura capitalista atual. Partilhamos, com esses autores, a percepção de que certamente o
atual momento de crise econômica do modo capitalista concorre para o ressurgimento e
acirramento de teses liberais, mas questionamos se seria possível reduzir-se o movimento de
ataque ultraliberal a um ideário supostamente coerente e responsável pela reorganização do
capitalismo contemporâneo. Por esta perspectiva, as características neoliberais do capitalismo
atual são antes efeito do que causa de uma suposta reordenação do mesmo. Em outras palavras, o
anacronismo com que se caracteriza o atual estágio capitalista, embora certamente propício às
referidas teses ultraliberais (inerentes ao capitalismo), não nos permite concluir que tal estágio
esteja subsumido em um movimento único e coeso, sendo por ele determinado.
Como veremos ao retomarmos esta questão mais adiante, as próprias relações do
capitalismo atual com o chamado ideário neoliberal indicam contradições bastante significativas
entre si. Contudo, não é nosso objetivo, aqui, nos determos sobre esta questão com a finalidade
de a desvelarmos. Seja como for, a insubordinação do capitalismo a qualquer teoria não invalida
as teorias que o pretendem legitimar. Nesse sentido, o movimento neoliberal sem dúvida alguma
aparece como o grande protagonista ideológico do atual momento de crise e busca de
sustentação do capitalismo mundial.

2. PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS NEOLIBERAIS

2.1. Adam Smith, liberalismo e a chamada “Modernidade”

Para compreendermos o advento do neoliberalismo em seus pressupostos


epistemológicos, devemos antes compreender a evolução histórica do próprio pensamento liberal
e suas relações com o que chamamos modernidade21. Inaugurada a partir do século XVII e
consolidada durante o século XVIII, é dela e por ela que se origina o pensamento de Adam
Smith (1723-1790), cujo legado determinaria toda a evolução teórica futura da economia política
liberal e, portanto, do próprio movimento neoliberal dela derivado — ainda que, como veremos,

mercado capitalista. Para esta autora, a globalização é um fenômeno, além de econômico, sobretudo histórico,
político e cultural, e próprio das sociedades humanas em toda a sua história. Assim, não se trata de um processo
deflagrado pelo capitalismo, conquanto este tenha se apropriado da gestão desse processo (gestão ultraliberal),
tornando-o sinônimo de “economia de mercado mundializado”, o que reduz a própria economia à mera esfera das
relações capitalistas de mercado (Forrester, 2001, p. 16-17).
21
Lançaremos mão, aqui, do itinerário elaborado por Gómez (2003), em sua obra Neoliberalismo globalizado:
refutación y debacle.
21

este último haja elaborado e incorporado outros pressupostos, por vezes pertencentes a matrizes
conceituais diversas do pensamento dos primeiros mentores liberais.
Em certo sentido, poderíamos entender o neoliberalismo enquanto um liberalismo
radical, que quando comparado ao liberalismo clássico o supera em extremismo em relação à
defesa da onipotência do mercado, conquanto, para isto, recorra a um princípio conflitante com a
idéia de ordem baseada na razão que fundamenta o pensamento econômico liberal do iluminismo
anglo-saxão, sistematizado por Adam Smith.
Para Frederic Jameson, modernidade é uma “palavra suspeita (...) e que está sendo
usada precisamente para acobertar a ausência de qualquer esperança ou telos social depois do
processo de descrédito do socialismo. Isso porque o capitalismo em si mesmo não tem nenhum
objetivo social. Sair usando a palavra “modernidade” a torto e a direito, em vez de capitalismo,
permite que políticos finjam que o capitalismo tem um objetivo social e que disfarcem o fato
terrível de que não tem nenhum” (Jameson, 2001, p. 33).22
Muito embora a “Modernidade” não possa ser entendida como um pensamento
unívoco — daí, inclusive, ser mais apropriado entender a existência de diversas modernidades
simultâneas —, o que caracteriza a especificidade deste período é a concepção de uma
cientificidade capaz de proporcionar acesso às verdades últimas “do mundo tal como é” (Gómez,
2003). Tal concepção está assentada na faculdade humana da razão e, por conseguinte, na
necessidade de métodos de investigação adequados à mesma e que garantam o atingimento de
tais verdades. É sobre o que se debruçarão, em especial, Galileu, Descartes, Locke, Bacon, Hume
e Leibniz, dentre outros, numa tradição que, fosse de caráter idealista, fosse de caráter empirista,
seria marcada pela racionalidade no processo de conhecimento sobre os fenômenos naturais e
humanos, e na elaboração do método científico mais eficiente para sua obtenção.
A principal sistematização do período acerca dessa ordem universal a ser decifrada
seria, pois, a apresentada por Isaac Newton nos seus Principia Mathematica (1686), o primeiro
sistema cósmico natural completo, obra esta que fundamentará, daí por diante, o paradigma
científico baseado nas leis da Física.

Essa teria sido, portanto, a “tarefa” do século XVII, segundo Gómez: elaborar uma
cosmovisão racional dos fenômenos naturais. Mas, se esta cosmovisão unificada e ordenada
entre céu e terra fora até então possível, no momento seguinte o pensamento filosófico e
científico moderno se vê diante de um outro imperativo, ou seja, o de estender seus princípios

22
Entretanto, embora a modernidade não possa ser desvinculada do advento do capitalismo, seu conceito se presta
neste trabalho para identificarmos, espaço-temporalmente, uma época histórica em que se estabelecem os principais
debates epistemológicos e metodológicos que fundaram os paradigmas filosóficos e científicos ainda hoje
predominantes e que têm, na racionalidade, independente de suas diversas acepções, sua principal característica.
22

também à compreensão do funcionamento da sociedade. Em suas palavras:

[...] no âmbito do social, a realização deste programa significou a realização de uma


perspectiva unificadora de uma sociedade também governada por leis, que também seriam
confiáveis, e que permitiriam, de alguma maneira, manipular em certo sentido o
desenvolvimento social, assim como manipulamos a natureza. Buscava-se, também, uma
ciência social que nos permitisse progredir no conhecimento da sociedade, do mesmo modo
que se pudera, usando a física de Newton, progredir no conhecimento da natureza. (Gómez,
2003, p. 2).

Dito de outro modo, se ao século XVII coubera o estabelecimento de uma visão e


ordenação do cosmos, cabia agora ao século XVIII a tarefa de estabelecer uma compreensão da
ordem e funcionamento da polis. Portanto, a partir de meados do século XVIII e até os
momentos que antecedem a Revolução Francesa, já há uma grande cosmópolis dos fenômenos
naturais, integrando o universo e o lugar dos homens.
É precisamente nesse contexto que se insere Adam Smith (1723-1790), nele
ocupando um lugar de especial importância. Smith considerava com entusiasmo a maravilhosa
“ordem newtoniana da natureza” e a sociedade comercial e mercantil na qual habitava, e que
acreditava ter também a uma ordem correspondente, cujo desvelamento ele assumiria como
tarefa. Portanto, foi Isaac Newton a figura mais importante na conformação do pensamento de
Adam Smith e a base de fundamentação do liberalismo clássico. Mas haveria também uma
grande influência de David Hume (1711-1776), e a Riqueza das Nações (1776) de Smith,
evidencia passagens em que este estabelece um grande diálogo com o Tratado da Natureza
Humana (1736) de Hume.
Para além dessas influências conceituais, Smith seria fortemente motivado por dois
grandes debates ainda presentes em sua época, no âmbito da elaboração de uma cosmovisão. O
primeiro dizia respeito à gênese das sociedades humanas, ainda que esta busca de entendimento
se debruçasse mais especificamente sobre o desenvolvimento de uma sociedade especificamente
mercantil. Neste debate encontraremos duas visões distintas, uma contratualista (que teve em
Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau dois de seus principais expoentes), e que tomava a
racionalização das relações sociais como pressuposto necessário ao seu equilíbrio, e outra,
naturalista, baseada na crença de uma evolução natural e espontânea das relações sociais, e à
qual Smith se vincularia.
O segundo debate, não menos importante, diria respeito ao âmbito econômico
propriamente dito. Neste, teremos o embate entre idéias mercantilistas e fisiocratas, no qual
Smith se inclina a uma posição fisiocrata, coerente com sua visão naturalista acerca da evolução
da sociedade. Ao discutir o “Princípio que dá origem à divisão do trabalho” no capítulo II de
sua obra maior, A Riqueza das Nações, Smith deixa claro seu ponto-de-vista naturalista:
23

Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de
uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem.
Ela é a conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou
propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou
seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra. (Smith,
1776/1988, p. 24 — itálicos nossos).

Na seqüência, Smith adentra o próprio campo sócio-antropológico para expor sua


compreensão da natureza das relações humanas:

No caso de quase todas as outras raças de animais, cada indivíduo, ao atingir a maturidade, é
totalmente independente e, em seu estado natural, não tem a necessidade da ajuda de
nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade quase constante da
ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele
terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a auto-
estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de
que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo
que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer — esse é o significado de qualquer oferta
desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que
necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que
esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse.
(Smith, 1776/1988, p. 25 — itálicos nossos).

Notamos que Smith tende a generalizar uma condição bastante peculiar às relações
humanas para a troca de bens de uso (ou valores de uso na linguagem marxiana) para a troca de
valores em si (no caso, trocas sumamente assentadas em interesses individuais de negociação,
não mais segundo valores-de-uso, mas conforme seus valores-de-troca, em si mesmos
considerados) projetando tais relações para toda a humanidade de todos os tempos, inclusive
pretérita. Essa tendência ou propensão a trocas dos seres humanos, supostamente naturais,
espontâneas e pragmáticas, levou Adam Smith a abstrair de forma extrema a própria origem da
divisão social do trabalho, pautando-se em suposições profundamente etnocêntricas ou, em se
considerando o fato de sistematizar sua teoria no último terço do século XVIII em pleno auge do
Iluminismo europeu, apresentar um constructo substancialmente eurocêntrico. A abstração
histórico-social do mentor da Economia Política Liberal fica mais bem expressa em proposições
como a que se segue:

Assim como é por negociação, por escambo ou por compra que conseguimos uns dos outros
a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma forma é essa mesma
propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão do trabalho. Em uma
tribo de caçadores ou pastores, por exemplo, uma determinada pessoa faz arcos e flechas
com mais habilidade e rapidez do que qualquer outra. Muitas vezes troca-los-á com seus
companheiros, por gado ou por carne de caça; considera que, dessa forma, pode conseguir
mais gado e mais carne de caça do que conseguiria se ele mesmo fosse à procura deles no
campo. Partindo, pois, da consideração de seu interesse próprio (egocentrismo), resolve que
o fazer arcos e flechas será sua ocupação principal, tornando-se uma espécie de armeiro.
(Smith, 1776/1988, p. 25 — itálicos nossos).

E assim por diante, necessidade após necessidade, interesse após interesse, satisfação
24

após satisfação, especialização após especialização, negociação após negociação e, o que mais
surpreende nesta elucubração de Smith, acumulação excedente após acumulação excedente.
Essa naturalização da acumulação de produtos e da divisão social do trabalho pelo ideário liberal
é um dos tópicos ao qual já nos referimos, e que eterniza o modo capitalista, baseado no
mecanismo de produção excedente de mercadorias e, logo, de mais-trabalho com vistas a reduzir
o valor-de-uso dos produtos humanos a valores-de-troca.
A abstração de Smith em relação à origem da divisão social do trabalho (projeção do
mercado tal e qual Smith o conhece ou o projeta idealmente no tempo) sofre e permite ainda uma
outra generalização, qual seja, a naturalização do lugar social ocupado pelos homens primitivos
(silvícolas, na acepção de Smith) em função de suas posições segundo a própria divisão social do
trabalho que “assumiram” após nascerem. A mesma tese responde, também, pela posição social
ocupada pelo próprio Adam Smith, naturalmente. Ou seja, Smith compreende a divisão social de
classes como mera conseqüência da divisão social do trabalho, ou, para sermos mais fidedignos
ao seu pensamento, é a divisão social do trabalho que determina onde e em que condições
viverão os indivíduos, segundo suas habilidades — e, porque não, competências para ocupar os
vários lugares possíveis dentro da sociedade. Na verdade, toda a sua argumentação ignora o que
entenderíamos por uma divisão social de classes, que em verdade determina a divisão social do
trabalho mais do que é por ela determinada. Daí que, ocupando lugares distintos dentro da
sociedade em função de suas habilidades e especialidades, deparamos com uma dinâmica social
que se auto-ajusta por uma regulação espontânea que, por sua vez, tende ao equilíbrio segundo a
satisfação negociada das necessidades dos indivíduos. Assim, nos dirá Smith, de forma
esclarecedora:

Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que


pensamos; a grande diferença de habilidades que distingue entre si pessoas de diferentes
profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o
efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre um
filósofo e um carregador comum de rua, por exemplo, parece não provir tanto da natureza,
mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante
os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem
seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença
notável. Em torno dessa idade, ou logo depois, começam a engajar-se em ocupações muito
diferentes. Começa-se então a perceber a diferença de talentos, sendo que esta diferenciação
vai-se ampliando gradualmente, até que, ao final, o filósofo dificilmente se disporá a
reconhecer qualquer semelhança. Mas, sem a propensão à barganha, ao escambo e à troca,
cada pessoa precisa ter conseguido para si mesma tudo o que lhe era necessário ou
conveniente para a vida que desejava. Todos devem ter tido as mesmas obrigações a
cumprir, e o mesmo trabalho a executar, e não pode ter havido uma tal diferença de
ocupações que por si fosse suficiente para produzir uma diferença tão grande de talentos.
(Smith, 1776/1988, p. 26 — itálicos nossos).

Portanto, para o que nos importa inicialmente acerca da posição econômica liberal
25

de Adam Smith (e de seus seguidores), os seres humanos são frutos de suas ocupações, que por
sua vez ativam e mobilizam habilidades e talentos diversos. Não importa, neste ponto, adentrar
no âmbito das diferenças naturais entre diferentes pessoas, já que “a grande diferença de
habilidades que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à
maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho”.
Assim, embora as habilidades estejam tendencialmente ou potencialmente presentes desde tenra
idade, serão as experiências laborais e intelectuais de cada indivíduo que conduzirão às
diferenciações mais marcantes entre os mesmos. Sobre isso, comenta Ana Maria Lins:

A força do capital manifesta-se em tais proporções, que transforma a desigualdade natural


entre os homens em igualdade natural, assim como transforma a igualdade natural em
desigualdades sociais. Isso só é possível a partir do momento em que se aprofundam as
relações de troca e, portanto, a divisão do trabalho. (Lins, 2003, p. 23).

2.2. Crítica epistemológica aos postulados de Adam Smith

Como notamos, o empirismo de Adam Smith não somente adentra o campo da


sociologia (da antropologia, ainda que étnica e eurocêntricamente), como também o campo de
uma outra futura ciência, a psicologia (e, mais especificamente, o campo da psicologia do
desenvolvimento ou psicologia evolutiva). Entretanto, essa notável antecipação ou aproximação
a tais áreas de estudos evidentemente aparece como marginal ao universo econômico de Adam
Smith. Nada mais natural em se tratando da conjugação suprema de pressupostos metodológicos
empiristas e pragmáticos nos tempos áureos da sistematização de uma economia liberal.
Nesse sentido, em termos epistemológicos o pensamento fisiocrata de Adam Smith
parte de alguns pressupostos básicos que devem ser mencionados. O primeiro refere-se à crença
na possibilidade da certeza epistemológica, ou seja, na possibilidade de uma ciência exata tanto
da natureza quanto do homem. O segundo pressuposto daí derivado, é o de que, do mesmo modo
como Newton havia demonstrado a ordem e leis dos fenômenos naturais como estes
objetivamente são, uma ciência do homem deveria também revelar objetivamente o que o
homem é, e não o que este poderia vir a ser. Este seria o princípio de uma verdadeira ciência
positiva do ser humano e da sociedade. Por conseguinte, a terceira proposição é a de que esta
ciência do homem só pode estar assentada em bases empíricas, já que os fenômenos naturais e,
por extensão, humanos, só podem ser apreendidos a partir de suas manifestações imediatamente
observáveis. Daí a importância inegável do empirismo, sobretudo nos termos de Hume, ao
sistema erigido por Smith para a economia política.
Deste princípio deriva uma quarta noção fundamental, ou seja, a de que a
26

compreensão das instituições sociais deve estar fundada sobre o estudo da natureza humana
empiricamente considerada. Como não é possível compreender todas as manifestações humanas
em seu conjunto, faz-se necessário centrar qualquer investigação nos elementos passíveis de
serem observados diretamente. Em se tratando das sociedades humanas, sua célula principal e
imediatamente observável passa a ser o indivíduo em particular. Este é o último pressuposto que
figurará, em termos metodológicos, como central ao pensamento liberal, ou seja, o
individualismo metodológico:

Como estudamos as instituições? Observando os grupos sociais. Como estudamos os grupos


sociais? Nos centrando nos indivíduos que os compõem, ou seja, investigando a natureza
destes indivíduos. Logo, se conhecemos bem o que é um indivíduo humano, todo o restante
poderá ser conhecido por mera agregação ou por meras associações e relações entre
indivíduos. (Gómez, 2003, p. 4).

Destes pressupostos derivam cinco aspectos principais do pensamento de Adam


Smith. Em primeiro lugar, a crença na possibilidade de aplicação do método newtoniano ao
estudo do ser humano. Em segundo, ser possível estudar o ser humano individual a partir da
psicologia das sensações (prenúncio de uma psicologia comportamental e de uma epistemologia
genética, diga-se), da qual poderíamos chegar a certas generalizações sobre o conhecimento
humano. Em terceiro lugar, a crença de que o homem e suas instituições se fazem a si mesmos
num longo e lento processo histórico-natural, determinado por necessidades de subsistência dos
indivíduos e das sociedades. Em quarto lugar teríamos a chamada lei das conseqüências
involuntárias, pela qual, embora Smith defenda que todo acontecimento histórico seja o resultado
de decisões humanas, toda decisão ou ação deliberada redundam em conseqüências
involuntárias, que sempre escaparão a qualquer intenção de controle sobre a progressão dos
fenômenos humanos em seu conjunto. Disso decorre o postulado da história enquanto resultado
de ações que jamais poderão ser previstas em suas conseqüências, o que invalidaria, portanto,
qualquer pretensão de se poder projetá-la. Enfim, a história não é mais do que a acumulação e o
manejo de processos involuntários derivados de nossas decisões particulares. A tese das
conseqüências involuntárias, como veremos, será um dos pilares do credo neoliberal, e não
menos cara a um dos seus mais importantes representantes, o filósofo da ciência Karl Popper,
que se propôs também ao objetivo de estudar esta categoria em termos de como podemos lidar
cientificamente com a imprevisibilidade de eventos futuros deflagrados por nossas ações
presentes.
O quinto e último credo está, por fim, estreitamente relacionado ao anterior. Trata-se
da tese de que os seres humanos, em não sendo oniscientes (questão derivada de um tema
preponderante no século XVIII, ou seja, o dos limites e possibilidades do conhecimento
27

humano), serão sempre incapazes de realizar qualquer planificação do funcionamento de suas


sociedades. Uma planificação exitosa, nos dirá posteriormente Hayek, só poderia ser uma
planificação total. Como não dispomos de meios e conhecimentos totais, pois que não somos
oniscientes, o planejamento amplo torna-se impossível (cf. Hayek, 1990, p. 55-74).
Entretanto, embora essa impossibilidade no âmbito social-universal limite de modo
inquestionável intenções prognosticadoras, por outro lado Smith defenderá que ao ser humano
individual, particular, a liberdade de ação, por sua vez, é totalmente possível (desde que não
sofra interferências de quaisquer naturezas). Essa possível liberdade encontra seu lugar perfeito
somente no mercado, lugar, por excelência, de toda atividade livre humana.
Destes princípios resulta todo um constructo moral e ético. Para Smith, os seres
humanos atuam sempre visando atingir determinados fins. A atuação humana ótima, por
conseguinte, seria aquela que maximiza as possibilidades de se atingir seus fins a partir da
escolha dos meios mais adequados.23 Nas palavras de Gómez:

A esta relação meios-fins, subjaz, segundo Smith, uma estrutura natural. Esta estrutura
natural está composta basicamente por necessidades, paixões e sentimentos; atuo para
alcançar objetivos, tendo em conta quais são minhas necessidades; ademais, o desejo de
satisfazer essas necessidades está movido por paixões. Em muito poucos filósofos (Hume
seria um deles) que se debruçaram sobre a ética, as paixões assumem uma importância tão
decisiva como em Smith. (Gómez, 2003, p. 6)

Smith não se debruçará sobre questões genéticas acerca das paixões (suas origens
constitutivas), limitando-se a afirmar que os sentimentos humanos são moldados
contextualmente pela acumulação do que temos experimentado, o que, por sua vez, incide sobre
a forma como atuamos. Mas, estabelece uma categorização das paixões, que distingue em dois
tipos: paixões egoístas e paixões benevolentes, que podem entrar em tensão, dando assim lugar a
uma das funções fundamentais da razão, função esta essencialmente deliberativa, para Smith. A
exemplo de Hume, Smith defende que a razão é, antes, escrava das paixões. Nesse sentido, à
razão cabe instrumentalizar o indivíduo com a análise das opções disponíveis para que este atinja
o fim desejado. Todavia, a mediação da razão encerra-se em si mesma neste processo de escolha
já que, necessariamente, após uma opção a ação do indivíduo, propriamente dita, será novamente
insuflada por nova passionalidade, e assim continuamente. Dessa forma, nesta teoria da atividade
humana o processo que leva à ação terá sempre, no seu princípio e no seu fim, paixões. Podemos
notar, já aqui, qual o papel da razão nas ações humanas, e que se trata de um papel bastante
reduzido em se tratando das opções que de fato fazemos.

23
Gómez observa que este raciocínio equivale ao que a tradição da Escola de Frankfurt denomina “racionalidade
instrumental” ou racionalidade meios-fins, “à qual os economistas liberais de todo cunho vão reduzir a racionalidade
humana.” (Gómez, op. cit., p. 6).
28

Já que as paixões têm aqui tal peso, é nelas que Smith depositará sua atenção maior.
E o que são as paixões egoístas? Inicialmente, em termos individuais, são a busca por garantias à
própria sobrevivência através da autopreservação. Em termos sociais, a paixão egoísta tem na
propriedade privada o seu elemento essencial. Ora, a propriedade privada está, antes de tudo,
intrinsecamente vinculada ao objetivo de autopreservação corporal, como forma de um abrigo
seguro e livre de ameaças. Por outro lado, nos apaixonamos pela idéia de possuirmos recursos
para evitarmos a pobreza, já que esta, se levada ao extremo, implicaria na carência de elementos
essenciais à própria sobrevivência, a começar pela falta de alimento, a desnutrição, a falta de
abrigo etc.
Em se tratando dos sentimentos benevolentes, para Smith são aqueles que visam o
bem-estar, inicialmente, dos indivíduos que nos envolvem e têm grande significado na
manutenção de nossa sobrevivência, a começar pela própria família e, mais além, o grupo social.
Em relação a este último, o sentimento que nos move é a simpatia, entendida como tendência a
ser benévolo com o semelhante que não pertence ao grupo familiar imediato. Por fim, o
sentimento benevolente em seu terceiro nível seria aquele voltado para a humanidade como um
todo.
Como se vê, trata-se de um processo de ligações e necessidades que parte de um
crescente de necessidades e interesses (paixões) egocêntricos. Naturalmente, ambas as categorias
implicam em tensões entre o bem individual egoísta e o bem geral da sociedade — embora não
possamos qualificar a preocupação com o bem geral, aqui, como altruísmo, no sentido de
preocupação desinteressada para com o outro. O ponto central dessa tensão constante reflete-se
justamente na necessidade de imparcialidade, um aspecto central a essa teorização, já que,
imparcial é aquele que é capaz de uma visão global, capaz de superar paixões egoístas com
vistas ao bem de outro ser, que não são as suas próprias e, por extensão, ao bem geral. Este será
um problema controverso para o liberalismo, ou seja, a relação entre riqueza, propriedade,
fortuna individual e bem-estar geral. Um problema que, em suas tentativas de resolução ou
legitimação, “houve que apelar continuamente a teses teológicas, pressupostos metafísicos ou de
racionalidade muito discutíveis e para os quais há sempre alternativas.” (Gómez, op. cit., p. 7)
A partir desse “sistema de motivações”, para Smith há ações que são intencionadas e
cujas conseqüências estão ao nosso alcance. Entretanto, há também conseqüências involuntárias,
que, em se tratando de seu pensamento e, posteriormente, de Hayek e Friedman, assumirão uma
importância crucial dentro do liberalismo. Na visão liberal, tanto quanto involuntárias, essas
conseqüências são também inevitáveis e incontroláveis. Entra aqui o papel da moral, à qual cabe
o estudo das ações intencionais, consideradas no âmbito das atuações individuais. Logo, a moral
29

estuda as paixões que originam tais ações e suas tensões subjacentes. Em um nível posterior,
cabe à justiça se ocupar dos efeitos das ações intencionais, enquadrando-as quanto às suas
conseqüências a outrem, avaliando se são passíveis ou não de punições (a teoria da
jurisprudência que deriva do pensamento de Smith assume, pois, um caráter fortemente legalista
e punitivo). Por fim, o terceiro nível derivado do sistema desiderativo de Smith e que
complementa as esferas moral e jurídica, refere-se às ciências sociais, em seu sentido amplo.
Esta esfera, e em particular a economia, é o âmbito do estudo das ações e conseqüências
involuntárias em termos das interrelações societárias. Entretanto, e a exemplo das demais
esferas, as decisões econômicas podem ser decisões intencionadas, mas sempre terão
conseqüências incontroláveis. Evidentemente, tais interrelações societárias equivalem, noutras
palavras, ao próprio mercado, e nele e por ele se realizam.
O sistema de interrelações desiderativas de Smith implica, por conseguinte, em um
ideal ético das ações individuais em que três virtudes figuram como fundamentais: a prudência, a
benevolência e a justiça. Elevadas à sua máxima excelência, estas conduziriam à virtude
suprema do pleno autodomínio. Para Smith, caso fôssemos capazes de total autodomínio, não
necessitaríamos de benevolência, já que a benevolência é antes de tudo um bônus compensatório
que tem, por origem, a necessidade de suprir falhas em relação a sermos prudentes e justos em
termos ótimos. Smith parece recorrer a tais virtudes numa tentativa de equilibrar o sistema
egoístico das paixões, que num sistema de relações mercadológicas imperfeitas, suscita uma
constante ameaça de desestabilização de todo o sistema. Entretanto, isto não quer legitimar
qualquer interferência no mercado, baseada em tais virtudes. As virtudes são de foro íntimo,
única instância em que se pode, de fato, agir voluntariamente. Ao mercado, regido por leis
próprias inexoráveis, resulta inútil qualquer tentativa analítica baseada em pressupostos morais e
éticos.
Aqui a concepção newtoniana revela toda a sua influência, já que para Smith o
mercado é uma máquina, e a melhor metáfora para o mesmo é o mecanismo de um relógio.
Como máquina, tem suas próprias leis e, portanto, a única coisa que devemos fazer é deixá-lo
operar, já que, embora cada peça cumpra uma tarefa específica, não conhece e não pode
conhecer o funcionamento do relógio como um todo. Ora, aqui a virtude do autodomínio, em
termos sócio-econômicos, se presta justamente ao fim de que nos contenhamos frente a qualquer
inclinação de intervir no funcionamento do mercado — em outras palavras, interferir em suas
leis.
Para Gómez, portanto, na cosmópolis smithiana “o que se produz é uma mecanização
da polis mais que uma socialização do cosmos” (Gómez, 2003, p. 8), já que em seu constructo,
30

Smith promove uma cisão radical entre as ações humanas e suas conseqüências, as primeiras
podendo ser deflagradas intencionalmente, mas com conseqüências que passam a integrar uma
dimensão à parte, cujas leis não obedecem a determinações ou vontades humanas.
Nesse sentido, agir objetivamente em função dos melhores resultados em termos
individuais equivale a agir de acordo com a especificidade esperada e possível de nosso âmbito
de atuação no mercado. Ações e funções correspondentes, em última análise, ao caráter
fortemente racional-instrumental de todo o edifício teórico de Smith, fundado, como dissemos,
nas relações meios-fins.
Em A riqueza das nações, em que Smith apresenta seu tratado de economia política,
ele admite para a mesma duas grandes metas: primeiramente, gerar as condições para que os
seres humanos sejam capazes de obter riqueza em abundância e, em segundo lugar, proporcionar
ao Estado recursos suficientes para os serviços públicos. Mediante tais metas, a economia
política converte-se em ciência. O objetivo maior de Smith em seu tratado é, portanto, o de
elucidar as leis da economia política, descobrindo e explicitando o funcionamento da
“maquinaria econômica”. Sem a compreensão das leis da economia política não há como se
formular políticas adequadas que garantam o funcionamento ótimo da mesma. Mas, ora, um tal
objetivo não conflita com o pressuposto de que não podemos interferir ou prognosticar o devir
das atividades econômicas? Contudo, Smith parte na verdade do pressuposto empirista de que,
certamente, podemos, cientificamente, descobrir leis e aplicá-las, mas não modificá-las. As leis,
em si mesmas, não são produtos humanos.
Pelo princípio fisiocrático de Smith, o método das ciências naturais é aplicável à
conduta dos indivíduos. É ela a força motriz da máquina econômica, motivada pela vontade
humana de maximização da realização de interesses egoístas. No âmbito do comércio, portanto,
o elemento motivador em questão visa maximizar ganhos e, por outro lado, minimizar os custos
de nossas decisões. Quando conjugadas no âmbito do mercado as decisões e vontades
individuais como que desaparecem, tornando-se uma relação universal de oferta e demanda,
donde se originam os preços. Este jogo entre oferta e procura é o princípio do mercado livre.
Aqui deparamos não só com o elemento primordial das teses liberais, como também
o aspecto que revela profundas contradições. Segundo Gómez, “quando alguém se detém no
modo não só como Smith, mas também Hayek concebem o mercado, este surge como uma
entidade com uma autonomia e um funcionamento de acordo com leis que são independentes do
que os agentes individuais promovam nele. O mercado revela-se, assim, como a postulação de
uma entidade, ainda que eles o neguem. Hayek diz, explicitamente: o mercado não atua, o que
atua são os agentes individuais” (Gómez, op. cit., p. 11-12). Notamos aqui uma contradição que,
31

a despeito da objetividade empírica a que Smith se propõe, revela em si um idealismo extremo:


se os indivíduos atuam sob seu livre arbítrio no mercado, mas o mercado possui leis naturais
próprias que o tornam imprevisível, como é possível que ele se torne tão distinto de sua força
causal, as ações intencionais humanas?

Esta maneira de falar abre a suspeita se não estamos na presença, aqui, de uma sorte de
entidade autônoma, diferente da dos agentes individuais. Pode ser uma mera maneira de
falar, algo que tenha suas próprias leis? Em nenhum momento eles nos dizem que estas leis
sejam meramente lingüísticas. São leis objetivas, tão objetivas como as leis da física, que se
referem a regularidades que se dão na realidade. Ademais, os maiores autores neoliberais
falam do mercado como o locus da racionalidade. Textualmente, é o locus da liberdade
natural, segundo Smith. (Gómez, idem, p. 12).

Quer nos parecer que a cisão teoricamente promovida entre as forças eficientes do
mercado (ações humanas) e as conseqüências delas provenientes, invalida qualquer tentativa de
racionalização econômica24 de seu funcionamento. Para os clássicos da economia política, enfim,
isso é resolvido propondo-se que a esfera das ações individuais respondem a leis econômicas de
natureza distinta das leis da esfera do mercado em geral, não sendo possível relacioná-las
enquanto processos inter-relacionados, mas apenas contíguos. Recorrendo a um tal raciocínio,
suprime-se, deliberadamente, a noção de relações mediadas que conformam o que entendemos,
grosso modo, por relações sociais. Somente a aceitação de mediações sociais entre a esfera
individual e o chamado mercado permitiria a compreensão de que na verdade trata-se de esferas
complementares de um mesmo processo. Entretanto, a noção de mediações sociais é
deliberadamente suprimida. A principal conseqüência desse procedimento “metodológico” é,
evidentemente, a naturalização de todos os processos sociais, que passam a figurar como
relações apenas de intercâmbios (ou negociações) entre desideratos individuais que
inevitavelmente não determinam, mas antes, são determinados por leis naturais espontâneas e
imutáveis. Ademais, e seguindo no mesmo espírito, o social (e todas as suas designações) passa a
corresponder à esfera do direito, isto é, como esfera de mediações das interações individuais no
mercado. Em outras palavras, o social torna-se sinonímia de interacionismo coletivo regido por
leis que assegurem a preservação de seu mais pleno funcionamento. Contudo, entenda-se bem, as
leis que regem esses intercâmbios visam a garantir, através da igualdade formal, que os desiguais

24
Entretanto, devemos ter claro que o que chamamos racionalidade neoliberal não se identifica, necessariamente,
com racionalismo (em termos epistemológicos, por oposição a irracionalismo). O racionalismo, enquanto
perspectiva filosófica e a despeito de suas várias vertentes, considera que o real é, em última análise, passível de ser
conhecido pela razão, e que pode assim chegar à verdade sobre a natureza das coisas (“Aquilo que é racional é real e
o que é real é racional” – Hegel, Filosofia do Direito) - (cf. Japiassu & Marcondes, 1998, p. 228-229). Entendemos
que a racionalidade neoliberal pode ser entendida como uma racionalização, mas não pode ser identificada como
um racionalismo, em termos epistemológicos, dado o seu ceticismo quanto ao alcance da razão (a impossibilidade
da verdade), seu imediatismo e individualismo metodológico (a-historicização e particularização dos processos
humanos) e pragmatismo axiológico (valor-utilidade das ações humanas). Assim, a racionalização neoliberal, em
seu ethos, reúne inúmeros elementos que a caracterizam como uma racionalidade unicamente instrumental.
32

de fato possam realizar plenamente suas desiguais potencialidades. Vale também dizer que
“potencialidade”, que a priori designa possibilidade ou potência latente e, portanto, que é
virtual e ainda não se realizou, é amplamente difundida, por esse ideário, como nas metonímias
“capacidade, habilidade, aptidão...” ou, por extensão, “competência para”. Assim, a acepção de
potencialidade, nesse ideário, apropria-se, a posteriori, do que poderíamos semanticamente
entender por condição de ou para realizarmos algo, uma ação ou atividade, em termos concretos.
Em outras palavras, potencialidade, que corresponde a uma condição virtual, ainda não
objetivada, se presta a legitimar desigualdades objetivas, em que desigualdades humanas reais
são derivadas de potencialidades humanas ideais. Uma conseqüência imediata do sentido de
potencialidade difundido pelo ideário liberal é que este concorre para que desigualdades de
condições socialmente determinadas possam ser entendidas como resultado de potencialidades
diferenciais inatas que definem o sucesso ou fracasso, seja de indivíduos, seja de grupos de
indivíduos, no jogo de aptidões que define a dinâmica do conjunto da sociedade para o
liberalismo — entendido, sobretudo, como dinâmica de mercado.
Assim, o corolário da igualdade liberal, ao contrário do sentido que imediatamente
sugere, não se refere a um suposto objetivo de equacionamento de disparidades socialmente
produzidas por relações desiguais ou de exploração, mas ao recurso da igualdade de direitos para
que as desigualdades naturais possam ser plenamente manifestadas. Evidentemente, este
pressuposto se presta à dupla função de relacionar a igualdade formal com uma liberdade
generalizada para se agir na sociedade (identificada com democracia), garantindo, por outro
lado, que as disparidades concretas resultantes da “relação de igualdade entre desiguais” sejam
socialmente introjectadas como legítimas e naturais. O mesmo raciocínio, ainda em Smith, se
presta tanto a explicar a existência das sociedades de classes como a própria divisão social do
trabalho, entendidas como resultados naturais da livre (ainda que conflitiva) relação entre
indivíduos e grupos naturalmente desiguais. Por extensão, tal raciocínio estará na base de
sustentação do princípio elementar do modo capitalista de produção: a prerrogativa da
propriedade privada como resultado meritocrático. Entretanto, o argumento da meritocracia,
assinalado pelo pensamento liberal como conseqüência da desigualdade potencial natural de cada
indivíduo e que, portanto, deveria se encerrar nos feitos e produções ao longo da vida de cada
individualidade particular, nas sociedades de hegemonia burguesa (e na história da divisão social
de classes) os resultados das apropriações desses indivíduos (e grupos) supostamente mais aptos,
e que se consubstanciam na forma de propriedade (material e intelectual), tornam-se
33

transferíveis a seus herdeiros.25 Evidentemente, uma vez que este processo não se dá por via
natural, nos deparamos aqui com a necessidade de que seja garantido por via formal, ou seja, por
força de leis que não são naturais e que tampouco se fundamentam no princípio do mérito.
De qualquer forma, a desigualdade natural é, em síntese, o pressuposto ontológico da
filosofia liberal smithiana para o entendimento e legitimação de toda a ordem social humana —
ainda que esta concepção de sociedade traga consigo um viés etnocêntrico e de classe. O
arcabouço jurídico e o próprio Estado Moderno ocidental se nos revelam, por fim, como
elementos imprescindíveis à manutenção dessa “ordem natural”, em que garantias formais de
igualdade ideal se prestam a garantir o funcionamento, manutenção e reprodução de processos
sociais e econômicos que implicam e reproduzem desigualdades reais. E, como declarará Karl
Popper em A sociedade aberta e seus inimigos (uma obra apologética da tolerância democrática
no liberalismo), “nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade” (Popper, op. cit., apud
Gómez, 2003, p. 14-15). Enfim, os inimigos da liberdade são os inimigos da liberdade de
mercado.
Estes princípios, por fim, constituem a matriz epistemológica do pensamento
ultraliberal contemporâneo, em seus representantes que aqui mais nos interessam (Hayek,
Friedman e Popper), ainda que estes procedam a uma atualização dos postulados smithianos,
bem como à inclusão ou exclusão de elementos que tornam o pensamento neoliberal também
peculiar em relação às suas origens neoclássicas.

2.3. Hayek, Friedman e Popper: o manifesto ultraliberal em três frentes

Embora o movimento neoliberal possa ser entendido como um retorno ideológico


radical aos fundamentos clássicos do liberalismo, enquanto movimento contemporâneo
entendemos ser possível compreendê-lo como atuante em três dimensões a partir de
especificidades próprias aos objetos e métodos dos quais se ocupam seus três principais
expoentes, Friedrich Von Hayek, Milton Friedman (ambos laureados com o Prêmio Nobel de
Ciências Econômicas em 1974 e 1976, respectivamente) e Karl Popper (1902-1994). Enquanto
Hayek se ocupa eminentemente do resgate ideológico da economia política liberal em seus

25
Cremos que Pierre Bourdieu (juntamente com Jean-Claude Passeron) desenvolveu um dos mais relevantes estudos
acerca dos mecanismos e implicações sociais e econômicas dos processos de transmissão, por via da herança
familiar, econômica e cultural, do que denominou capital cultural, fator determinante para o papel e lugar sociais
dos indivíduos e grupos segundo sua descendência ou vínculos sócio-econômicos e de classe social (ver, p. ex.:
Bourdieu & Passeron, Les héritiers: les étudiants et la culture. Paris: Minuit, 1977; Bourdieu, A economia das
trocas simbólicas. Tradução de Sergio Miceli, Silvia de Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São
Paulo: Perspectiva, 1987).
.
34

aspectos, sobretudo, filosóficos, Friedman, mentor maior da chamada Escola de Chicago, se


ocupa de aspectos que, embora certamente afinados com as idéias de Hayek, caracterizam-se por
uma certa objetividade histórica, factual e política em seus argumentos em defesa da liberdade
econômica. Por outro lado, Milton Friedman é reconhecidamente o defensor de políticas
monetárias e fiscais (o chamado monetarismo), que dentre outras coisas, visam à maior restrição
possível dos gastos públicos pelo Estado. Compete ao mercado, em sua opinião, o atendimento
ou provisão de bens e serviços desejados pela sociedade. Sua defesa intransigente do livre
mercado de capitais implica ainda na proposta de supressão de quaisquer subsídios e incentivos
fiscais estatais, assim como programas assistenciais como os de previdência e seguridade social,
programas de habitação, salário mínimo etc. (Colasuonno, 1984, p. XVII-XXII) o que o coloca
no front da guerra político-ideológica que o neoliberalismo declarou ao keynesianismo e ao new
deal de Franklin Delano Roosevelt, nos EUA a partir da II Guerra Mundial. Por fim, na tríade de
expoentes do movimento teremos Karl Popper, considerado dos mais importantes teóricos no
âmbito da filosofia da ciência do século XX, que em termos gerais se ocupou da questão do
método em ciências, e em especial, das ciências sociais. Além do seu conhecido método de
refutações ou de falseabilidade, Popper foi responsável por erigir todo um constructo
epistemológico em que propõe que só há um método objetivo para as ciências sociais, que por
sua vez se baseia no que denominou lógica da situação, perspectiva esta que privilegia o
individualismo metodológico (Gómez, 2003, p. 49). Suas proposições epistemológicas
completam o ideário neoliberal, seja em termos de sua possível (suposta?) racionalidade, seja em
termos de uma metodologia para o estudo dos fenômenos relacionados à economia de mercado.
Estas especificidades, entretanto, não querem significar diferenciações entre as
posições dos respectivos pensadores, mas sim, sua complementaridade com vistas a um mesmo
pensamento, ou o que entendemos aqui como dimensões de um movimento comprometido em
ser unívoco, uma vez que estes pensadores refletem no todo de suas obras e discursos
particulares, elementos epistemológicos, ontológicos, axiológicos e, enfim, ideológicos, muito
comuns e até mesmo redundantes entre si.

2.3.1. O pensamento de Friedrich Von Hayek

1. As (im)possibilidades da razão

Hayek fez parte da escola austríaca de economia, escola esta formada não só por
renomados economistas como também por brilhantes matemáticos, e que teve em Ludwig Von
Mises seu grande expoente. Esta escola manteve, por principal característica, a busca incessante
35

pelo rigor científico, fosse pelo imperativo da matematização, fosse também pela busca de uma
generalizada neutralidade axiológica, aspecto este que se tornará marcante em Hayek (Gómez,
2003, p. 17). Por fim, uma terceira característica desta escola fora a busca científica pelo
descobrimento e estabelecimento de regularidades, tendências e mesmo leis (segundo os diversos
autores que a compunham) que possibilitassem a antecipação possível do funcionamento das
condutas econômicas e, sobretudo, que esclarecessem o funcionamento do mercado.
Conquanto Hayek revelará fortes influências do empirismo inglês de Hume, e em
termos econômicos, da obra de Smith, poder-se-ia afirmar que a obra hayekiana procederá a uma
radicalização dos postulados dos pensadores precedentes. Primeiramente, embora não negue o
papel da razão em ciências e se diga não ser um “antirracionalista”, Hayek se revelará um
inimigo declarado do que chama “construtivismo racionalista”, cujos modelos arquetípicos
seriam o cartesianismo e o positivismo lógico. A razão não é geradora de certezas, não
permitindo constructos de verdades das quais poderíamos estar certos. Assim, a razão em Hayek
adquire um caráter apenas deliberativo:

A razão não tem poder para organizar a sociedade. As sociedades não se organizam através
de um processo racional deliberado. Elas são o resultado espontâneo de longos processos
históricos, que vão gerando uma sorte de tradição dentro da qual as sociedades se organizam
e dentro da qual se constituem as instituições pertinentes a cada tradição. (Gómez, 2003,
idem).

Por outro lado, para Hayek a previsibilidade científica preconizada pelo positivismo
lógico é utópica. Não havendo previsibilidade, toda tentativa de planificação é inalcançável. A
atividade racional é, em Hayek como em Smith, a atividade de se eleger os melhores meios para
alcançar-se determinados fins. Tanto os limites de nossos sucessos como a possibilidade de se
planejar a atividade racional são, portanto, discutíveis.
Surge-nos aqui, sem dúvida, o elemento central das críticas hayekianas, qual seja, a
tentativa de planificar-se qualquer economia. Como vimos na introdução deste capítulo, esta
oposição de Hayek e seu grupo à planificação toma como referência de análise as sociedades
ditas planificadoras e autoritárias conhecidas de sua época, isto é, as sociedades que se
pretendiam socialistas, desde a Alemanha e Itália nazi-fascistas até as sociedades do Leste
Europeu, consideradas comunistas, centralizadoras, totalitárias etc. Assim, em O caminho da
servidão, ele nos dirá:

Dos vários argumentos empregados para demonstrar a inevitabilidade da planificação, o


mais usado é aquele segundo o qual as transformações tecnológicas foram tornando
impossível a concorrência em campos cada vez mais numerosos, só nos restando escolher
entre o controle da produção por monopólios privados ou o controle pelo governo. Esta idéia
provém, sobretudo, da doutrina marxista da “concentração da indústria”, embora, como
tantas idéias marxistas, seja agora cultivada em muitos círculos que a receberam de terceira
ou quarta mão e ignoram a sua origem. (Hayek, 1944/1990, p. 64).
36

Assim, o que motiva Hayek a produzir uma obra mais político-ideológica que
econômica (caso explícito de O Caminho da Servidão, certamente seu texto mais difundido e
aclamado pelos liberais) é a busca pelos neoliberais de Mont Pèlerin de interferir politicamente
nas ameaças socializantes e de controle dos mercados pelo fortalecimento do trabalhismo
internacional e suas influências sobre os Estados centrais do capitalismo.
Este objetivo Hayek explicita logo no Prefácio à Edição Inglesa de 1944 de O
Caminho da Servidão, nos seguintes termos:

Quando um estudioso das questões sociais escreve um livro político, seu primeiro dever é
declará-lo francamente. Este é um livro político. Não quero disfarçar tal fato atribuindo-lhe
— como talvez pudesse ter feito — o nome mais elegante e ambicioso de ensaio de filosofia
social. Mas, seja sob que rótulo for, permanece a questão central de que tudo o que deverei
dizer deriva de determinados valores fundamentais. Espero ter cumprido no próprio livro
uma segunda e não menos importante obrigação: deixar claro, acima de qualquer dúvida,
quais são esse valores fundamentais de que depende toda a argumentação.

E complementa:

Há, no entanto, algo que desejaria acrescentar. Embora este seja um livro político, tenho a
máxima certeza de que as convicções que nele se expressam não são ditadas por meus
interesses pessoais. Não consigo descobrir nenhuma razão para que o tipo de sociedade que
me parece desejável deva oferecer maiores vantagens a mim do que à grande maioria do
povo deste país. (Hayek, 1944/1990, Prefácio à 1ª. Edição Inglesa, p. 7).

2. Economia e sociedade de mercado

Consideramos, com Gómez, a proposta econômica de Hayek como alicerçada em


três fundamentos essenciais, quais sejam, pressupostos ontológicos, epistemológicos e morais. A
primeira tese ontológica pressupõe a sociedade moderna (industrial capitalista) como uma ordem
complexa, não homogênea, diversa e plural, que tem nos indivíduos os seus componentes
básicos. Disto implica que todos os agrupamentos, e a sociedade como um todo, na realidade não
possuem existência própria, senão como abstrações ou como entidades institucionalizadas.
Representam, na acepção de Hayek, figuras de linguagem criadas para referir-se aos indivíduos e
às relações entre indivíduos. Assim, ainda que o que chamamos “sociedade”, em toda a sua
complexidade, seja composta por milhões de indivíduos, em princípio os mesmos atuam de
modo independente uns dos outros, de modo que as interrelações entre estes diversos agentes
individuais devam, segundo Hayek, ser consideradas anonimamente, já que cada indivíduo e
todos os indivíduos agem em função da busca de satisfazerem suas necessidades e desejos
particulares. Eis aqui a presença de um pressuposto smithiano fundamental, ou seja, o de que a
sociedade na verdade é guiada pelos desiderativos individuais.
37

A primeira grande conseqüência da conjugação destes princípios é a total


impossibilidade de poder-se vir a conhecer os desejos e necessidades de todos os indivíduos,
uma vez que seus desejos pertencem à esfera da subjetividade. Desse modo qualquer tentativa de
conhecimento sobre as aspirações individuais serão sempre, no mínimo, parciais e fragmentárias.
Todas as deliberações individuais humanas, em termos objetivos, têm em conta suas
preferências, conceito este fundamental na teoria econômica liberal. Como seria possível uma
ciência econômica que pudesse acessar de modo suficiente, objetivo e relevante acerca das
atividades e opções humanas? Hayek soluciona esse problema propondo que, se não podemos
acessar os desejos e interesses de cada pessoa, podemos, entretanto, notar as preferências e
tendências desses indivíduos, pois os mesmos podem nos informar sobre estas. Em outros
termos, os três principais parâmetros para o método econômico em Hayek conjugam a avaliação
dos objetivos explícitos das ações particulares, a avaliação das preferências explícitas de acordo
com as quais os indivíduos atuam e, por fim, das oportunidades de que dispõem estes indivíduos
para alcançarem seus objetivos. Assim, os objetivos, as preferências e as oportunidades
constituem os três elementos passíveis de serem acessados concretamente (como informações
objetiváveis), de forma que destas três variáveis Hayek erige toda a sua teoria acerca da ciência
econômica. Há, todavia, um elemento adicional fundamental, agora encontrado no mercado, e
cujo acesso objetivo traduz-se na melhor informação de que podemos dispor, como reflexo das
três primeiras: o sistema de preços. Portanto, se conhecemos o sistema de preços, os objetivos
dos agentes, a lista de preferências e as oportunidades para tais, poderemos descrever e explicar
as ações dos agentes individuais de modo racional. Tornar-se-ia possível, desse modo,
estabelecermos: 1) Os desvios involuntários de condutas e as conseqüências dos mesmos; 2)
Munidos dessas informações e das leis econômicas, teríamos oportunidade de corrigir, limitar e
manipular as conseqüências involuntárias das ações individuais.
Para Gómez, a ciência econômica de Hayek, assim como as ciências sociais para
Popper, têm o objetivo de manejar resultados que surgem das conseqüências involuntárias das
decisões deliberadas dos agentes econômicos no mercado. Em suas palavras:

Quando Hayek discute sobre o tema vital das preferências, nos diz que não há o que se
confundir. Aqui não perguntamos aos agentes individuais os motivos ou razões porque
preferem A sobre B, senão que a única pergunta é “A sobre B ou B sobre A?” As razões
pelas quais eles prefiram um ao outro são irrelevantes para a teoria econômica. E a razão
fundamental é, novamente, que o subjetivo é desconfiável porque está carregado de valores
individuais. (Gómez, 2003, p. 23).26

26
Percebemos aqui uma notável proximidade dos pressupostos epistemológicos de Hayek com os do behaviorismo
em psicologia. Do mesmo modo que Hayek, Watson sustentou, em 1913, a irrelevância da busca de acesso a
conteúdos psicológicos pela esfera da subjetividade: “A Psicologia, da maneira como é vista pelo
38

Desse modo, as concepções de Hayek estarão sempre assentadas no postulado de que


a neutralidade valorativa será sempre garantia de objetividade, sem a qual não há ciência e sem a
qual não há economia como ciência.
A segunda tese ontológica é, novamente, a sociedade dita “moderna”. Hayek a
concebe como uma ordem espontânea, mas coordenada por dois fatores centrais: 1) Como um
conjunto de atos e modos morais de proceder que são o resultado de um longo processo histórico
e o qual devemos aceitar, pois que este é condição de sobrevivência da própria sociedade. Sua
manutenção é condição para que a ordem não entre, enfim, em colapso; 2) Como um sistema de
coordenação das ações econômicas a que Hayek chama mercado.
O mercado é um sistema de coordenação das ações econômicas e um sistema de
comunicação gerado pela informação através do sistema de preços (sem o qual, não há mercado).
Sua função fundamental é comunicar informações sobre preços, sem as quais torna-se impossível
que os agentes individuais atuem de forma exitosa. Como os agentes econômicos individuais têm
por característica a busca pela satisfação de suas preferências, e em sendo estas preferências
distintas entre os indivíduos, os sistemas de preferências e as ações correspondentes entram em
competição, fato pelo qual a competição é, para Hayek, um aspecto essencial e definidor do
próprio mercado.
Neste sistema coordenado de atividades competitivas individuais, os agentes
individuais são, a princípio, totalmente independentes entre si. Esta independência e a ausência
de qualquer coerção sobre as ações dos agentes individuais é o que Hayek chama de liberdade
natural do mercado. Ao mesmo tempo, o mercado é, para Hayek, um “grande jogo” em que se
torna fundamental o conhecimento e aceitação das regras de seu funcionamento, e o que
estabelece um reconhecimento tácito ou formal, entre os agentes, das possibilidades e
conseqüências recíprocas das ações promovidas na dinâmica do mercado.
Para Gómez (2003, p. 21), “a competição essencial no mercado de Hayek é, em
termos habermasianos, um jogo de racionalidade estratégica. Não basta o que Habermas chama

comportamentalista, constitui um ramo puramente objetivo da Ciência Natural. Seu objetivo teórico é a predição e o
controle do comportamento. A introspecção não é parte essencial de seus métodos...” (J.B.Watson, “Psychology as
the behaviorist views it”. Psycological Review. 20:158-177, 1913, p. 158). E, em seu behaviorismo radical, Skinner
dirá: “Para o momento devemos nos contentar, como insiste o behaviorismo metodológico, com a história genética e
ambiental da pessoa. O que se observa introspectivamente são certos produtos colaterais destas histórias. (...) Desta
maneira, reparamos o maior dano produzido pelo mentalismo. Quando o que uma pessoa faz se atribui ao que
sucede dentro dela, põe-se um ponto final à investigação. Para que ‘explicar a explicação’? Durante vinte e cinco
séculos nos temos preocupado com sentimentos e a vida mental, mas só muito recentemente se tem mostrado algum
interesse por uma análise precisa do papel do ambiente. A ignorância deste papel tem conduzido, em primeiro lugar,
a ficções mentais que se tem perpetuado pela prática explicativa a que dá lugar.”(B.F. Skinner, “Las causas del
comportamiento”. In: Sobre el conductismo. Barcelona: Fontanella, 1972, p. 8-9). Em outros termos, são as ações
humanas que revelam, enquanto comportamentos, o que é cientificamente relevante: os comportamentos
observáveis e as probabilidades de suas ocorrências.
39

de racionalidade instrumental, que sempre é puramente individual, independente dos outros


agentes individuais. A presença da competição como essencial faz com que esta racionalidade
instrumental seja estratégica e que, por requerer informação, se nutre do fluxo informacional.”
Neste “jogo”, o sistema de preços é o que promove toda a informação necessária à sua dinâmica.
O mercado gera um sistema de preços que se acomoda apenas mediante o livre jogo da oferta e
da procura, sem nenhuma decisão voluntária individual. Segundo Hayek, é dado aos
participantes do mercado a possibilidade de maior ou menor êxito em suas ações por meio de
atividades calculadas. Entretanto, como tais cálculos estarão sempre sujeitos a incertezas,
tornam-se o equivalente a meras apostas e conjecturas que jamais poderão garantir ganhos ou
perdas.

Ditos cálculos são parte, portanto, de um grande jogo e cada indivíduo deve tratar de jogá-lo
tão bem como seja possível. O êxito de cada ajuste individual às ações dos outros é medido
em curto prazo pelo êxito econômico de sua ação específica; em longo prazo, por sua
sobrevida e o desenvolvimento de si mesmo e do grupo a que pertence, digamos, da
instituição, e da sociedade como um todo. (Gómez, 2003, p. 22).

O processo de auto-regulação de preços proposto por Hayek, que redunda num


mercado capaz de coordenar-se a si e a todas as relações humanas sem, contudo, poder ser
considerado um sujeito por definição — já que, embora onipresente e onipotente, é espontâneo e
“neutro” (algo semelhante à máxima de que “a justiça é cega”, como sinal de sua suposta
“neutralidade”) —, representa, em relação à suposta coordenação do mercado pela “mão
invisível” da Providência de Smith, uma solução um tanto quanto mais plausível. O sujeito
divino de Smith, em Hayek, é o próprio sistema auto-regulador de preços originado pelo jogo da
oferta e da procura. Gómez faz notar, nesse sentido, que embora a elaboração de Hayek nos
pareça, a princípio, mais consistente que o recurso metafísico de Smith, ela na verdade revela-se
mais misteriosa que a do seu antecessor. Isso porque Smith se via obrigado a reconhecer a
necessidade de que houvesse um sujeito para o mercado, ainda que recorrendo ao sobrenatural.
Em Hayek, contudo, a solução é, no mínimo, paradoxal:

Como se produz este ajuste [de preços]? Porque se produz esse ajuste? Tudo parece suceder
pela ação de uma mão invisível... Contudo, agora é uma mão invisível, mas não é de Deus,
nem de nada. Tudo se dispõe como se houvesse sido feito de acordo com um plano único
produzido por uma omnisciência oculta no preço, ainda que nada, na verdade, o haja
planejado. Soa paradoxal que Hayek sustente, por um lado, que não há omnisciência
humana, mas sim, que esta exista nos preços. Isto é, quiçá, o cúmulo do misterioso. Mais
paradoxal ainda é que, para Hayek, o intento de resolver tal mistério é pretender ser
omniciente. (Gómez, 2003, p. 22 – itálicos nossos).

Dito de modo mais claro, a omnisciência aparece quando se fala dos preços, pois só
existe omnisciência no mercado como um todo, mas desaparece quando se fala dos seres
humanos, de acordo como isso se apresente conveniente ao enfoque de Hayek. As leis da
40

economia neoliberal pressupõem, portanto, um ajuste de preços sem, contudo, explicá-lo


(Comblin, 2001, p. 42). Assim, Hayek fala da existência de pressupostos que só se tornam
aceitáveis sob a condição de que as leis econômicas sejam integralmente observadas e cumpridas
livremente. Ou seja, o êxito no ajuste dos preços depende a priori do êxito do funcionamento do
próprio mercado. Curiosamente, um elemento não só é condição para o outro, mas ambos
revelam-se uma única e mesma coisa. Mas a explicação para a causa eficiente de seu(s) ajuste(s),
defenderá Hayek, são essencialmente incognoscíveis. Desses ajustes dependerá o equilíbrio do
mercado, verdadeira “obsessão do pensamento único” liberal, por sua vez um dos legados
newtonianos de Adam Smith para a posteridade do liberalismo, ou, nas palavras de Passet,
“palavra-chave do pensamento relojoeiro” neoliberal (Passet, 2002, p. 64).
De modo consistente com uma cosmovisão newtoniana dos fenômenos físicos
“universais” e suas leis do equilíbrio, o darwinismo será aplicado à economia e às sociedades
humanas, já que o mercado, por si mesmo, carece de finalidades propriamente racionais, de
modo que não podemos também saber para onde caminha uma vez que obedece a uma ordem
espontânea de desenvolvimento. O único fato passível de ser antecipado é sua tendência natural à
expansão, o que se revelará, inclusive, em sua crescente tendência à globalização.
Em termos epistemológicos, o primeiro pressuposto de todo o constructo teórico
neoliberal é, portanto, a impossibilidade de omnisciência, até aqui bem evidenciada. Em toda a
obra de Hayek notaremos que o homem em geral, em particular o economista que pretenda
planificar e o político que pretenda tomar uma decisão política, padecem de uma espécie de
“auto-engano”. O auto-engano consiste em tomar decisões supondo-as seguras, com grandes
chances de não se falhar e se obter êxitos. Mas, pelo pressuposto da não-omnisciência, torna-se
impossível a planificação total, já que é impossível o conhecimento total (Gómez, 2003, p.23).
Quem lê as obras de Hayek, Friedman e Popper, verá que a não-ominisciência é
sempre o contra-argumento ao que designam como incapacidade humana de planificar o todo.
Se não podemos planificar o todo, justifica-se a negação a qualquer planificação, em gênero e
grau:

Mas quem pretende a planificação total? Que queremos dizer com planificação total?
Ademais, que tipo de conhecimento se requer para planificar? Requer um conhecimento total
da realidade para a qual se queira estabelecer um determinado plano? Não temos que
planificá-lo totalmente. Temos meramente que saber o que é relevante dentro do todo. Se o
relevante requer um número infinito de variáveis ou de um número finito, mas dificilmente
manipulável de variáveis, algumas das quais estariam muito inter-relacionadas entre si, então
poderíamos tomar como verdadeiro que o argumento da não-omnisciência seria importante.
(Gómez, 2003, p. 23-24).

E acrescenta:
41

Creio que aqui há um uso ambíguo da linguagem na qual haveria que se perguntar o que
queremos significar por planificação total, de tal maneira que a resposta não seja trivialmente
ridícula. O importante é que já que não somos omniscientes, devemos saber quais são os
limites de nosso conhecimento e se esses limites nos impedem de planificar nossas
satisfações. É aqui onde os grandes sistemas econômicos, capitalismo e comunismo, diferem.
Os economistas soviéticos das décadas de 1950 e 60 criam que se poderia realizar certo tipo
de planificação, muito geral, mas não total no ridículo sentido hayekiano-popperiano, donde
o grande problema foi justamente a eleição das variáveis relevantes e a possibilidade de
manipulação efetiva dessas variáveis. Mais claramente: quando se fala de planificação
global, não se pretende planificar tudo em seus mínimos detalhes, o que requereria um
conhecimento total. Trata-se de não permitir que seja o mercado, por si mesmo, o que
coordene tudo, pois que, se aduz, ele leva a desigualdades, à pobreza extrema de muitos, ao
enriquecimento de alguns poucos, em suma, à injustiça social. (Gómez, 2003, idem).

Além do princípio da não-omnisciência, o segundo pressuposto epistemológico diz


respeito ao papel da racionalidade. Aqui, entretanto, atuar racionalmente implica em se aceitar
três pressupostos: 1) que os agentes individuais econômicos atuam racionalmente; 2) atuar
racionalmente é visar maximizar as chances de atingir nossos objetivos (no mercado, isso
significa buscar maximizar as chances de obtenção de ganhos); 3) entender o mercado como um
sistema auto-coordenado, e que, portanto, comportar-se racionalmente é agir, em última
instância, de acordo com suas leis e dinâmica.
Denota-se daqui que Hayek e os demais autores neoliberais sustentam uma versão
extrema de racionalidade instrumental. Em concordância com Habermas (1987), não
defendemos, contudo, o rechaço da chamada racionalidade instrumental, com a qual estamos
continuamente operando cotidianamente. Trata-se, isso sim, de se criticar a redução da razão à
mera racionalidade instrumental em que a racionalidade humana restringe-se apenas à razão
meios-fins.27 Mais que isso, os pensadores neoliberais proporão que os fins mesmos estão para
além do âmbito de qualquer discussão racional. Ou seja, os fins sequer são discutíveis, nem são
adotados através de argumentos. São, como diz Popper, “uma questão pré-racional e nos são
dados por tradição” (Popper, apud Gómez, 2003, p. 24).

27
Entendemos que Habermas não se posiciona contra a racionalidade instrumental da ciência e da técnica em si
mesmas, na medida em que essas são necessárias a autoconservação humana (um entendimento próximo ao que
Heller [1997, p. 17-41] propõe ao conceituar a categoria de vida cotidiana — comparativamente à dimensão da vida
não-cotidiana —, como espontânea e prático-utilitária por tratar-se da dimensão da consecução da própria vida, em
termos individuais e coletivos). Habermas considera que o trabalho, pela sua essência de dominar a natureza para
pô-la a serviço do homem, possui uma racionalidade do mesmo tipo que a racionalidade da ciência e da técnica, isto
é, uma racionalidade que consiste na organização e na escolha adequada de meios para atingir determinados fins.
Para ele, a ciência e a técnica ampliam as possibilidades humanas, libertando o homem do jugo das necessidades
materiais, sendo o desenvolvimento da espécie humana resultado de um processo histórico de desenvolvimento
tecnológico, institucional e cultural, processos que são interdependentes. Entretanto, Habermas se posicionará
radicalmente contra a universalização da racionalidade da ciência e da técnica, isto é, contra a penetração da
racionalidade científica, instrumental, restrita aos meios-fins, em esferas de decisão onde deveria imperar um outro
tipo de racionalidade: a racionalidade comunicativa (HABERMAS, 1987). Entendemos, ainda, que Habermas fornece
pistas convergentes para com o entendimento do processo de reificação (cf. LUKÁCS, 1974, p. 97-126), ao salientar
a inversão do sentido meios-fins para a humanização em meios-fins para a produtividade.
.
42

Assim, esta forma de se proceder toma toda intenção de transformação estrutural


profunda em algo irracional. É irracional pretender modificar o jogo, mas dentro do jogo se
podem fazer inovações graduais ainda que não se possam discutir racionalmente os objetivos do
“grande jogo”, que devem ser aceitos por tradição. Isto equivale a dizer que, do mesmo modo
que quando participamos de um jogo não discutimos as regras do mesmo, o sistema econômico
está para além da discussão de suas regras, e pretender discuti-lo torna-se uma pretensão
irracional. Seria o equivalente a proceder contra a natureza, porque seria proceder contra um
processo natural-evolutivo de caráter darwiniano que redundou no atual estado de coisas
(sempre o mais aprimorado possível).
Em termos científicos essa epistemologia limita a racionalidade humana em ciências
sociais e em economia a uma racionalidade que não visa e não deve discutir finalidades, mas aos
processos em-si mesmos considerados. “Por que o ganho sobre qualquer outro objetivo? Por que
o produto interno bruto e não a igualdade? Isso está fora, não se discute.” (Gómez, 2003, p.25).
Por fim, para Hayek o próprio do ser humano é não ser racional, mas sim, sociável.
A razão é, antes, um estado contingente do fato de nós, seres sociais, necessitarmos do
semelhante para sobrevivermos. Tornamo-nos, assim, racional-instrumentais por tal
necessidade, o que faz com que a racionalidade em Hayek não seja um pressuposto ontológico.
Pelo fato de o homem não ser essencialmente racional, mas prático e guiado por desejos,
depreende-se que tal racionalidade resulta de um desenvolvimento que desemboca num sistema
de divisão social do trabalho que requer, para seu melhor funcionamento, de uma atividade
guiada pela intenção de maximizar a consecução de nossos objetivos. Nesse sentido, em nenhum
âmbito isso se realiza mais plenamente que no mercado. O mercado torna-se, assim, o locus por
excelência da racionalidade (lembremos: racionalidade que para Hayek é sempre instrumental).
Proceder de acordo com essa racionalidade possibilita sobreviver e melhorar nossas condições de
vida, mas não garante isso plenamente, uma vez que o mercado é um jogo no qual, como em
qualquer jogo, ainda que se observem suas regras, pode-se perder.
Entendemos aqui porque o mercado é o lugar absoluto da racionalidade, não só
porque é o lugar de sua realização suprema, mas também porque não tem que prestar contas a
nada. Ele não só é um sistema de referência; ele é a referência de todos os sistemas.
Assim, podemos estabelecer já alguns parâmetros que caracterizam o mercado para o
ultraliberalismo:
1. Trata-se de um sistema de comunicação produzido evolutivamente, de maneira
não-intencional;
2. É uma ordem natural que se impõe ao indivíduo como condição de sobrevivência;
43

3. Trata-se de uma ordem abstrata, invisível e incognoscível em sua totalidade ou em


parte, já que...
4. Pode-se detectar nele, ainda que parcialmente, fenômenos e leis que se revelam
inexoráveis.

Eis porque Hayek se mostra cético em relação a planejamentos econômicos que


ultrapassem o âmbito das ações dos agentes individuais. Somente a microeconomia é passível de
alguma precisão científica, ainda que com inúmeras limitações.

3. Direito natural, desigualdades e justiça social

Um dos princípios que subjazem ao pensamento neoliberal é sua aceitação


incondicional das desigualdades sociais como naturais. Assim, termos como aptidões e
habilidades para se atuar de forma exitosa em um meio espontaneamente competitivo, remetem-
nos a um jusnaturalismo em tese baseado na teoria evolutiva das espécies, de Charles Darwin. E
porque não, uma vez que a sociedade de mercado, segundo os liberais, é orientada pela
competição entre indivíduos que visam não só sua melhor sobrevivência como também a melhor
reprodução do que logram obter de vantajoso para si, sua prole ou grupo? O liberalismo, embora
tenha surgido historicamente como resultado de mutações no mundo produtivo, político e
cultural de uma época na qual o termo liberal de fato se identificava com princípios libertários
então revolucionários (o que se verifica nas três grandes revoluções burguesas, a inglesa, de
1644, a norte-americana, de 1776 e a francesa, de 1789), que por sua vez não podiam ser
desvinculados do pressuposto da igualdade (ainda que contratual) entre os homens e da
implementação de uma justiça cega e imparcial, na verdade já nasceram sob a égide de uma
visão de classe (burguesa) que não implicava em modificar a essência da divisão social de
classes baseada não só na divisão social do trabalho já existente como, aprioristicamente, na
concepção da desigualdade social entre os homens como dada, fosse como graça divina, fosse
como herança biológica, manifestas objetivamente através das capacidades individuais. O que
haverá de novo no que se refere ao liberalismo burguês em relação ao Antigo Regime, e isso
desde os primórdios de sua sistematização filosófica — o que nos remete, sobretudo, a John
Locke (1632-1704) —até sua consolidação durante o séc. XVIII, com os ideólogos da ilustração
e da revolução francesa, ou da economia política liberal anglo-saxônica, é a necessidade de se
assegurar e legitimar a possibilidade de livre acesso à propriedade privada por parte da classe
burguesa em ascensão. Para isso, seria necessária uma verdadeira revolução em relação à
legitimidade até então teológica e aristocrática das classes dominantes medievais (Chaui, 1999,
p. 402-404). Ora, a descentralização revolucionária do poder se daria, mutatis mutandis, por
44

artifícios de mesma natureza, fosse em termos “teológicos” pelo o protestantismo, fosse


“ideológicos”, através do da defesa de igualdade de direitos naturais entre os homens.
De uma forma ou de outra, o que notamos é um deslocamento do paradigma
teocrático do determinismo social baseado em leis divinas, para um determinismo antropológico
baseado na razão e nas leis da natureza. Assim, questões relacionadas ao direito natural e ao
contrato social tornam-se elementos fundamentais para a ideologia burguesa em seu confronto
com o poder secular da igreja católica romana e a nobreza feudal. Desse modo, tornou-se
possível a ascensão de novos senhores ao poder, sem que isso representasse, entretanto,
mudanças significativas na estrutura hierárquica das sociedades de então. As populações mais
pobres ou despossuídas, seduzidas pelo discurso da cidadania e insufladas à adesão à rebelião
social burguesa, embora tenham sido cruciais para a derrocada das forças da aristocracia feudal
seriam, entretanto, mantidas em seus lugares e condições sociais seculararizados.28 E estas
populações, ainda que agora figurassem formalmente como cidadãs e com direito a uma inédita
representação parlamentar (ainda que restrita pelo quesito da propriedade), concretamente seriam
mantidas subalternas aos novos dominantes.
Nesse sentido, é preciso mencionar o fato histórico de que os precursores liberais dos
séculos XVII e XVIII (de John Locke a Adam Smith), embora tenham fundamentado suas teses
no reconhecimento do direito natural, assim o fizeram a partir do fato empírico da existência de
uma sociedade essencialmente desigual, tomada como natural porque estabelecida há séculos
numa divisão social de classes estruturada sobre o domínio e exploração dos despossuídos de
toda sorte, fosse pelo trabalho servil, fosse pelo trabalho escravo. Logo, essa desigualdade,
presentificada e não historicizada pelos pensadores de então, haveria de refletir-se em relação à
concepção de liberdade e igualdade própria à visão aristocêntrica da burguesia. Nessa visão de
mundo, a igualdade limita-se a assegurar direitos formais aos denominados cidadãos da
república, mas entende que os homens são naturalmente diferentes, o que torna
“compreensíveis” as desigualdades que se manifestam objetivamente.
O ultraliberalismo contemporâneo de Hayek é um legítimo herdeiro desta tradição
jusnaturalista liberal, mas, à diferença de seus antecessores, o neoliberalismo pôde valer-se de
elementos que reforçaram as idéias naturalistas em questão a partir das investigações e
conjecturas evolucionistas do século XVIII (de Lamarck a Spencer), cujos estudos são coroados
pelas descobertas de Charles Darwin (1809-1882) que vieram a público em A origem das

28
Voltaremos a este tema ao tratarmos mais especificamente das transformações sociais ocorridas na civilização
ocidental, a partir da revolução industrial e a instauração do regime assalariado, e suas implicações e
desdobramentos na organização social a partir da produção capitalista industrial.
45

espécies e a seleção natural (1859)29. Nesse sentido, o princípio da seleção natural como
determinante do processo evolutivo das espécies animais forneceram subsídios que marcaram
profundamente o liberalismo contemporâneo, a exemplo do que se daria com todas as chamadas
ciências humanas modernas.
Nessa concepção, a sociedade (entenda-se: sociedade capitalista) tal como existe
hoje, seria o resultado evolutivo dos processos naturais humanos e, enquanto tal, deve ser aceita
incondicionalmente como é, “seja no plano do ser, seja no plano do dever ser” (Gómez, 2003, p.
26). Por sua vez, o mercado é o resultado máximo desse processo evolutivo, e como tal, uma
organização natural. Este conceito naturalista aparece, segundo Gómez, quando, por exemplo,
uma noção valorativa se fundamenta em termos de conceitos naturais e/ou científicos:

Quando um economista nos diz: o bom em economia é um crescimento de 2,3% ao ano, está
cometendo uma falácia naturalista. Está identificando uma noção axiológica como “o bom”
com uma noção proposta a partir de uma certa disciplina científica. Há falácia naturalista se
estabelecemos tal identificação e não abrimos a questão, ou seja, não discutimos porque
fazemos tal identificação.

A falácia naturalista permeia as ciências sociais. Os economistas são mestres, geralmente


inconscientes, em cometê-la. Para eles tais argumentos estão mais além de toda discussão, de
toda a dúvida, quando na verdade são argumentos falaciosos; surgem como se fossem
corretos, ainda que em verdade não o sejam. (Gómez, 2003, p. 27).

Em sendo o mercado e suas leis resultantes de processos evolutivos naturais, deduz-


se que o modo de produção e a organização social que deles derivam são também e sempre o
ponto máximo desse desenvolvimento, que quanto mais for aceito em sua espontaneidade, mais
adequadamente tende a tornar-se melhor. Uma concepção que, segundo Gómez (idem), nos faria
lembrar, ainda, da figura antológica do professor Pangloss em Candido ou o otimismo (1759), de
Voltaire (1694-1778), que mesmo diante das situações humanas e naturais mais trágicas, sempre
orientava seus pupilos a crerem que todas as coisas sempre caminham, da melhor forma possível,
para o melhor dos mundos30.
Nesse aspecto, as desigualdades sociais existentes também são conseqüências
naturais, e Hayek procedeu a uma crítica feroz contra a pretensão de se estabelecer como válida
qualquer diretriz visando justiça social, já que esta pretensão interfere no processo de

29
Originalmente, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favored races in the
struggle for life. London: John Murray, 1859.
30
O texto primorosamente irônico de Voltaire, uma crítica típica sua à condescendência medieval européia quanto à
providência divina, não o redime de suas claras posições conservadoras em relação às classes e pobreza então
existentes, como digno representante de uma classe revolucionária burguesa que já se considera superior na
hierarquia social. É ilustrativa a manifestação de Diderot a Voltaire quanto ao papel que desempenham, na defesa da
ilustração, contra o pensamento medieval: "Nossa divisa é: sem quartel aos supersticiosos, aos fanáticos, aos
ignorantes, aos loucos, aos perversos e aos tiranos... será que nos chamamos de filósofos para nada?" - (Carta de
Diderot a Voltaire, em 29 de setembro de 1762.)
46

desenvolvimento e equilíbrio natural de nossas sociedades, que têm na desigualdade uma


conseqüência e condição que lhes são intrínsecas. Gómez aponta que os argumentos de Hayek a
este respeito se dão em três linhas básicas:
Uma primeira, que se detém na afirmação já mencionada da impossibilidade do
conhecimento total: como não podemos dispor de toda informação pertinente às desigualdades
entre os indivíduos, não podemos também redistribuir adequadamente benefícios e riquezas sem
sermos coercitivos, cometendo inevitavelmente erros que irão produzir novas desigualdades. A
segunda argumentação se fundamenta em que, em sendo a sociedade livre o resultado de um
processo evolucionista, os resultados de um tal processo não podem ser considerados nem como
justos nem como injustos. A terceira linha argumentativa diz respeito à tensão entre liberdade e
justiça social. Para redistribuir justamente bens e riquezas, seria necessário retirar de alguns para
que outros usufruam benefícios que não conquistaram por si mesmos, e tal coerção ameaça a
liberdade de todos os indivíduos. Para Hayek, a liberdade individual é “a independência
enfrentando a vontade arbitrária dos outros.”31 No âmbito social, a liberdade é a eliminação de
todo obstáculo à espontaneidade do mercado.
Hayek complementa assim estes argumentos: todo processo de justiça econômica
distributiva envolve uma violação da natureza desigual dos seres humanos. Assim, a justa
igualdade é tratar desigualmente aos desiguais. Para Hayek a igualdade deve limitar-se à
igualdade formal, abstrata, a igualdade ante a lei, mas o que esta igualdade formal garante é que
os desiguais tenham a retribuição correspondente às suas desigualdades.
Ao enfatizar o mercado enquanto um jogo, é natural que haja ganhadores e
perdedores e, portanto, também natural que haja desigualdades. Entretanto, o interesse sempre
presente de se ganhar no mercado, de nele se obter melhoramentos, gera interesses pela produção
de novas mercadorias, novos bens e serviços, dos quais outros desfrutarão, de forma que os
efeitos globais de todo esse processo irão atingir, cedo ou tarde, aos desiguais, beneficiando-os,
ainda que desigualmente (e isto corresponderia a uma justiça distributiva natural).
Evidentemente, os indivíduos mais bem sucedidos são livres também para assistir aos membros
da sociedade menos favorecidos, mas nunca coagidos a tal.
Por fim, e talvez este seja o argumento central ao pensamento hayekiano quanto à
justiça, quem hoje obtém êxitos no mercado certamente correu mais riscos para alcançá-los, não
havendo assim qualquer injustiça no fato desta pessoa vir a possuir o que não obtêm os que
perdem por não se arriscarem ou por não serem assertivos em suas ações.
Mas seria legítimo atribuir à teoria de Darwin a transposição dos princípios

31
F. Hayek, La constitución de la liberdad, Madrid, União Editorial, 1991, p. 127 (citado por GÓMEZ, 2003, p. 32).
47

evolucionistas ao desenvolvimento das sociedades humanas e suas dinâmicas mercadológicas?


Segundo Gómez, o darwinismo social, longe de ter sido concebido ou aceito pelo próprio
Darwin, foi elaborado na verdade por Herbert Spencer (1820-1903). A obra de Spencer,
engenheiro britânico que viria a tornar-se um filósofo auto-didata, antes mesmo que a teoria de
Darwin contida em A origem das espécies, de 1859, viesse a público, já exprimia a idéia de
evolucionismo social em sua obra Hipótese e desenvolvimento (1852). Segundo Japiassu &
Marcondes, Spencer foi responsável pela defesa da teoria geral organicista em sociologia. Para
ele, a sociedade é um organismo formado por células e órgãos, organismo este que cresce e
complexifica-se, sendo que suas partes tanto se integram quanto se diferenciam, a exemplo de
outros organismos. Sua tese acerca do evolucionismo pode ser sintetizada na afirmação de que a
evolução marcha sempre para um estado de equilíbrio dinâmico: tudo na natureza parece
procurar um estado de equilíbrio ativo ou de adaptação. Assim, sua teoria da evolução consiste
numa teoria da transformação do universo que vai de uma homogeneidade incoerente para uma
diferenciação cada vez maior. (Japiassu & Marcondes,1998, p. 252-253). Ora, este processo se
daria não só em termos biológico-naturais, como também em termos da ordem sócio-cultural, de
forma que a sociedade é concebida como um organismo e que como tal funciona. A seleção
opera em todos os níveis por igual, fazendo com que os menos adaptados sejam sempre
eliminados.32 Darwin, entretanto, sempre se recusou a aplicar sua teoria evolucionista fora do
âmbito biológico-natural à própria sociedade humana. Em sua teoria do homem, Darwin enfatiza
um paradoxo que consiste em que “a diretriz da evolução que é a seleção natural e implica a
eliminação dos menos aptos em sua luta pela vida, na humanidade seleciona uma forma de vida
social que em sua marcha para a civilização tende cada vez mais a excluir os comportamentos
eliminatórios, através do jogo entrelaçado da ética e das instituições.”33 Dito de outro modo, para
Darwin, sem que houvesse essa reversão em relação aos processos evolutivos naturais, em que a
humanidade suprime os comportamentos eliminatórios e instaura uma cultura da cooperação
social, não haveria civilização.
Esta observação de Darwin parece contrariar os intentos de atribuir-se à sua obra os
subsídios para a sustentação de um evolucionismo social baseado na seleção natural e, da mesma
forma, por sua excelência e magnitude científica, sugere cautela para com postulados como os de
Spencer e seus seguidores, que em geral insistem na redução dos processos humanos à esfera
naturalista, como o faz Hayek e os que compartilham suas idéias. Retornaremos ainda a esta

32
Herbert Spencer, Essays, Oxford: Oxford University Press, 1891 (citado por GÓMEZ, 2003, p. 34).
33
Charles Darwin, The descent of man, p. 68, Londres: Murray, 1871 – citado por GÓMEZ, 2003, idem).
Enfatizemos que Darwin não recorre aqui a um argumento que possa ser atribuído à sua conhecida posição religiosa
e moral cristã. Não se trata de um argumento religioso, mas sim, antropológico.
48

questão, ao procedermos, no Capítulo IV, a uma reflexão histórico-antropológica sobre o papel


da atividade transformadora vital do trabalho (como objetivação cultural) e da educação em
geral (como apropriação das objetivações culturais) para o desenvolvimento humano-genérico
que, para além das determinações natural-evolutivas, tornou-se ontologicamente sócio-cultural.

2.3.2. O pensamento de Milton Friedman

Milton Friedman é, presentemente, o membro ainda vivo mais antigo da Sociedade


do Mont Pèlerin. Nascido em 1912, em Nova York, Friedman foi, até se aposentar, em 1977, a
alma do chamado grupo da Universidade de Chicago, que reunia defensores ferrenhos do
liberalismo econômico, todos polêmicos pela adoração quase incondicional do capitalismo e dos
mercados. Ao longo de sua extensa vida acadêmica, cuja reputação foi conquistada à frente do
Departamento de Economia da Universidade de Chicago, EUA, Milton Friedman publicou
inúmeras obras sobre política e história econômica. Em 1976 ganhou o prêmio Nobel de
Economia (dois anos após Hayek). Outros colegas seus da Universidade de Chicago também
viriam a receber o prêmio, entre os quais George Stigler (também fundador da Sociedade de
Mont Pèlerin) e Gary Becker.
Os estudos de econometria conduziram Milton Friedman à fundação da chamada
escola monetarista que, em síntese, estabelece uma forte correlação entre a oferta de moeda e o
nível de atividade econômica. Ao longo das décadas de 60 e 70 Friedman foi uma das poucas
vozes a defender a disciplina monetária e fiscal como únicas saídas para o surto de inflação que
os governos capitalistas estavam enfrentando. Quando os EUA, ao final do governo Carter
(1980), depararam com índices inflacionários próximos aos 20% ao ano, a doutrina da disciplina
monetária defendida por Friedman passa a não encontrar mais resistências e começa a ser
difundida. Suas teses, como as demais teses neoliberais, que em boa medida já ecoavam pelo
mundo do capital e eram experimentadas no Chile de Pinochet, aos poucos assumem o estatuto
de única alternativa ao endividamento crescente dos Estados capitalistas.34 (Instituto Liberal,
2004, s/pag.). Friedman se ocuparia de forma intensa de tais questões, afirmando que o
reconhecimento de que “uma inflação elevada é sempre e em toda parte um fenômeno
monetário, é só o começo de uma compreensão da causa e da cura da inflação.” (Friedman,
1994, p. 181).

34
Contudo, evidentemente não podemos aqui nos limitar a uma leitura benevolente e ingênua acerca das teses
ultraliberais em relação ao endividamento dos Estados, como se o movimento, com sua característica feição de
austeridade, estivesse comprometido com o restabelecimento das funções vitais de Estados moribundos. Pelo
contrário, o movimento vem, por todas as vias, para decretar a suposta falência do Estado (mas não sua extinção,
pois que a existência do Estado é condição para a existência da própria ordem capitalista) e para ressuscitar a idéia
de que fora do mercado livre, não há salvação.
49

1. O papel do Estado numa “sociedade livre”

Em Capitalismo e liberdade (1963), obra de referência do pensamento de Friedman,


este estabelece como argumento central a defesa da importância social, econômica e política para
as sociedades capitalistas do exercício pleno da liberdade econômica. Assim como argumenta
Hayek (1990) em O Caminho da Servidão, essa liberdade estaria sendo ameaçada, sobretudo,
pela concentração do poder pelo Estado, que estaria se transformando, de um meio originalmente
instaurado para viabilizar e garantir as liberdades individuais, em um meio de intervenção tutelar
nas sociedades atuais. Este processo teria sido iniciado principalmente após a Grande Depressão
de 1930 e, com maior rigor, durante e após a Segunda Grande Guerra, a partir das teses de uma
personagem que se tornaria o principal alvo das críticas do grupo de Mont Pèlerin: John M.
Keynes.
Em sua obra maior, e diferentemente de Hayek, o que notamos em Friedman é a
presença de uma certa historicização desse processo “anti-liberal” que se instaurara nos Estados
capitalistas (e em especial, nos EUA) ainda que esta historização se dê, em princípio, de modo
circunscrito ao contexto histórico do próprio modo de produção em questão. Nesse sentido,
Friedman dirá em sua introdução:
Ao desenvolver-se em fins do século XVIII e princípios do século XIX, o movimento
intelectual que tomou o nome de liberalismo enfatizava a liberdade como objetivo último e o
indivíduo como a entidade principal da sociedade. O movimento apoiou o laissez-faire
internamente como uma forma de reduzir o papel do Estado nos assuntos econômicos,
ampliando assim o papel do indivíduo; e apoiou o mercado livre no exterior como um modo
de unir as nações do mundo pacífica e democraticamente. No terreno político, apoiou o
desenvolvimento do governo representativo e das instituições parlamentares, a redução do
poder arbitrário do Estado e a proteção das liberdades civis dos indivíduos.
A partir do século XIX e, especialmente, depois de 1930, nos Estados Unidos, o termo
liberalismo passou a ser associado a pontos de vista bem diferentes, especialmente em
termos de política econômica. Passou, assim, a ser associado à predisposição de contar,
principalmente, com o Estado — em vez de contar com providências privadas voluntárias —
para alcançar objetivos considerados desejáveis. As palavras-chave agora eram bem-estar e
igualdade, em vez de liberdade. (Friedman, 1984, p. 14)
Nessa obra, que alcançaria grande repercussão, Friedman recorre a uma linguagem
muito próxima a que Hayek fez uso em O caminho da servidão, o que as torna muito próximas
estilisticamente, do ponto de vista dos objetivos e forma como os conteúdos são abordados. Nela
ele estabelece como temas a relação entre liberdade econômica e liberdade política, o papel do
governo numa sociedade livre, política fiscal, educação, monopólios, distribuição de renda, bem-
estar social e combate à pobreza. Quanto ao seu tema principal (as relações entre liberdade
econômica e política) Friedman, afirmará, por exemplo:

Pelo fato de vivermos em uma sociedade, em grande medida, livre, tendemos a esquecer o
limitado espaço de tempo e a parte do globo na qual surgiu o que se chama de liberdade
50

política: o estado típico da humanidade é a tirania, servidão, miséria. O século XIX e o


começo do século XX no mundo Ocidental destacam-se como uma exceção à tendência
histórica de desenvolvimento. A liberdade política, nesse sentido, claramente surgiu com o
livre mercado e o desenvolvimento das instituições capitalistas. Da mesma maneira como a
liberdade política na era dourada da Grécia e nos primeiros dias da era Romana. (Friedman,
1984, p. 19).

Assim como em Hayek, o papel central de qualquer governo (logo, do Estado)


defendido por Friedman, é o de ser um instrumento para a preservação da liberdade individual e
o funcionamento do livre mercado. Friedman defende, sobretudo, o que chama de “capitalismo
competitivo”, cuja principal função seria a de organizar a atividade econômica em torno da
empresa privada. Segundo Gómez (2003, p. 39), a tese mais forte de Friedman sobre a liberdade
econômica é a de que ela é, simplesmente, um fim em si mesma e o fim último de toda atividade
humana. A exemplo de Popper e Hayek, Friedman também afirmará a liberdade econômica
como condição para a própria liberdade política:

A organização econômica desempenha um papel duplo na promoção de uma sociedade livre.


De um lado, a liberdade econômica é parte da liberdade entendida em sentido mais amplo e,
portanto, um fim em si própria. Em segundo lugar, a liberdade econômica é também um
instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política. (Friedman, 1984, p. 17).

E, mais adiante:

Vista como um meio para obtenção da liberdade política, a organização econômica é


importante devido ao seu efeito na concentração ou dispersão do poder. O tipo de
organização econômica que promove diretamente a liberdade econômica, isto é, o
capitalismo competitivo, também promove a liberdade política porque separa o poder
econômico do poder político e, desse modo, permite que um controle o outro. (Friedman,
1984, p. 18 – itálicos nossos).

Friedman revê também a concepção de pensadores liberais do século XVIII, como


Adam Smith e o inglês Jeremy Bentham (1748-1832), este último, pioneiro na defesa do
utilitarismo e que tomava a liberdade política como meio para a liberdade econômica, vindo a
defender o inverso de seus antecessores, ou seja, que somente a liberdade econômica pode
possibilitar a liberdade política. Um argumento de Friedman sintetiza sua concepção:

A História somente sugere que o capitalismo é uma condição necessária para a liberdade
política, mas, evidentemente, não é uma condição suficiente. A Itália fascista e a Espanha
fascista, a Alemanha em diversas ocasiões nos últimos setenta anos, o Japão antes da
Primeira e da Segunda Guerra Mundial e a Rússia czarista nas décadas anteriores à Primeira
Guerra Mundial, constituem claramente sociedades que não podem, de modo algum, ser
consideradas como politicamente livres. Entretanto, em cada uma delas, a empresa privada
era a forma dominante da organização econômica. É, portanto, claramente possível haver
uma organização econômica fundamentalmente capitalista e uma organização política que
não seja livre. (Friedman, 1984, p. 19).

Embora Friedman lance mão de exemplos de Estados reconhecidamente autoritários


para defender a idéia da possibilidade de haver liberdade econômica sem, contudo, haver
51

liberdade política, a história revelaria que esta condição poderia ser levada a extremos em
diversos países em que foram instauradas ditaduras políticas que garantiram o predomínio da
economia de mercado. De fato, o princípio defendido por Friedman e seus companheiros de que
a liberdade econômica de mercado pode prescindir da liberdade política, independentemente do
regime adotado, tornou-se tragicamente notória nas diversas ditaduras instauradas pela América
Latina, África e Ásia, a partir dos anos de 1960, sob os auspícios e patrocínios, nem sempre
velados, das grandes nações capitalistas, sobretudo dos EUA.
Eticamente, o princípio defendido por neoliberais como Friedman, de que o Estado é
inevitável e seu principal papel deveria ser o de garantir as liberdades individuais e de mercado,
revelam aqui uma séria contradição: a liberdade de mercado deve ser priorizada em relação à
própria liberdade dos indivíduos, uma vez que as liberdades individuais (liberdades políticas)
possam vir a ameaçar a liberdade do próprio mercado. Eis uma mostra do entendimento
neoliberal a esse respeito:
Esses são, pois, os papéis básicos do governo numa sociedade livre — prover os meios para
modificar as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das
regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas. A necessidade do governo
nesta área surge porque a liberdade absoluta é impossível. Por mais atraente que possa o
anarquismo parecer como filosofia, ele não é praticável num mundo de homens imperfeitos.
As liberdades dos homens podem entrar em conflito e quando isso acontece a liberdade de
uns deve ser limitada para preservar a de outros — como está ilustrado por uma frase de um
juiz da Suprema Corte de Justiça [americana]: “Minha liberdade de mover meu punho deve
ser limitada pela proximidade de seu queixo.” (Friedman, 1984, p. 31-32).
Há aqui, ao que nos parece, uma mutação do pensamento neoliberal em relação ao
pensamento liberal secular, que sai das raias de um idealismo clássico para o reconhecimento
contemporâneo de que, objetivamente, não há unanimidade e, pelo contrário, há inúmeros
descontentamentos onde a chamada liberdade econômica capitalista impera. Daí o
reconhecimento de que a liberdade absoluta é impossível e, em sendo os homens imperfeitos e
suas liberdades podendo entrar em conflito, “quando isso acontece, a liberdade de uns deve ser
limitada para preservar a de outros.”
Mas a liberdade de quem deverá ser mantida e de quem deverá ser limitada, e sob
que critérios? Pergunta óbvia, talvez, cuja resposta fornecida pela própria história demonstra que
as limitações de liberdade sempre recaíram sobre aqueles que se revelassem ameaçadores ao
próprio modelo que alguns defendiam, ou seja, o do livre mercado capitalista, ainda que estes
alguns (que deverão ter garantia de liberdade e integridade pelo Estado), possam ser
minoritários. Entretanto, Friedman jamais discutirá o aspecto quantitativo dos
descontentamentos, quanto mais em termos de conflitos entre interesses que são, na verdade, de
classe. Portanto, o direito natural que se expressa nas leis formais, sob a ótica neoliberal são o
princípio da própria democracia, que por sua vez só é legítima numa sociedade capitalista
52

(donde, capitalismo e democracia se tornam sinônimo de liberdade). Entretanto, o direito formal


burguês tem, acima de tudo, a função de preservação da ordem existente, o que não permite que
a liberdade democrática (política) possa coincidir, necessariamente, com a liberdade individual.
Embora o ideário liberal faça grande apologia da liberdade individual, esta liberdade está
subsumida à liberdade econômica. Enfim, a democracia, que a princípio é tomada como
sinônimo de liberdade política e de propriedade (e isto defendiam idealmente os liberais
clássicos), no mundo capitalista contemporâneo transmuta-se, sobretudo, em liberdade de
empreendimento e de consumo, segundo as capacidades desiguais existentes entre os indivíduos.
Democracia aqui, exclui formalmente as possibilidades de transformações sociais que possam
implicar em ameaça à tríade empreendedorismo, apropriação privada e consumo. Cabe ao Estado
capitalista liberal, acima de tudo, portanto, a preservação das leis e da ordem estabelecida.
Vejamos esta curiosa observação sobre como o mercado concorre para preservar a
liberdade política, em que Friedman estabelece uma comparação entre a sociedade capitalista e a
sociedade socialista:

Uma das características de uma sociedade livre é certamente a liberdade dos indivíduos de
desejar e propor abertamente uma mudança radical na estrutura da sociedade — desde que
tal empresa se adstrinja à persuasão e não inclua a força ou outra forma de coerção. Constitui
uma indicação da liberdade política de uma sociedade capitalista que seus membros possam
abertamente propor e trabalhar pelo socialismo. Do mesmo modo, a liberdade política numa
sociedade socialista exige que seus membros possam propor a introdução do capitalismo.
Como poderia a liberdade de propor o capitalismo ser preservada e protegida numa
sociedade socialista?” (Friedman, 1984, p. 25 — itálicos nossos).

O raciocínio um tanto capcioso de Friedman, e que revela uma tendência inerente a


todo o pensamento liberal, qual seja, a de tomar o liberalismo econômico capitalista, enquanto
modelo produtivo e de organização social, como possibilidades históricas únicas, naturais e mais
avançadas, por excelência, para a sociabilidade humana — pré-conceito que só é comparável à
estranheza etnocêntrica européia dos séculos das descobertas de outros povos e outras formas de
sociabilidade, produção e distribuição de riquezas, que não fossem baseadas no mercantilismo,
por exemplo. Ora, Friedman procede, aqui, a um raciocínio que toma o socialismo enquanto
apenas uma mera opção político-econômica (para todos os efeitos, equivocada a priori, ditatorial
e autoritária), e não como a própria antinomia do capitalismo. Em outras palavras, pretende
argumentar contra o socialismo colocando-o comparativamente em mesmas condições que o
próprio capitalismo, sabidamente hegemônico. Assim, como poderia ser avaliada em igualdade
de condições a questão que nos propõe, ou seja, “como poderia a liberdade de propor o
capitalismo ser preservada e protegida numa sociedade socialista?” Nossa conclusão, se não
nos deixarmos levar por sua retórica, é que não pode haver concessões aos mecanismos
capitalistas numa sociedade verdadeiramente socialista, simplesmente porque esta sociedade é a
53

própria antítese do capitalismo e o capitalismo, portanto, o motivo por excelência para as


elaborações teóricas e experimentais socialistas, visando à própria superação do modo de
produção em questão — sem que se perca de vista, de forma auto-crítica e científica, as
vicissitudes das chamadas experiências comunistas do século XX, por inúmeros motivos nos
quais não nos deteremos aqui, em geral fadadas ao fracasso.35
Mas Friedman pretende demonstrar, em suas argumentações, que a chamada
liberdade democrática só é possível dentro do sistema capitalista, já que nela podem se
manifestar, inclusive, os partidários do socialismo. O oposto, entretanto, se revela obviamente
impossível em sua insinuação, como equivalente à falta de liberdade política e de mercado que
verificamos nas experiências socialistas. Obviamente, ele está correto no que tenta demonstrar
pelos fatos, mas totalmente equivocado ao pretender estabelecer generalizações sobre liberdade e
democracia, a partir de um raciocínio bastante parcial.
A suposta liberdade de ser partidário do socialismo em Estados capitalistas, aliás, é
tão ilustrativa das limitações políticas, civis e das conseqüências geralmente funestas reservadas
àqueles seus defensores, quanto em qualquer regime ditatorial. A questão da dissensão, aqui, tão
amplamente defendida nos termos liberais, obviamente só é válida até o limite em que passe a
soar ameaçadora ao Estado liberal, ao qual certamente não faltarão recursos formais ou objetivos
adequados e eficazes para sua preservação. Isto fica claro nas atribuições que Friedman reserva
ao governo numa “sociedade livre”, tendo-se claro que a liberdade absoluta é, portanto,
impossível: “prover os meios para modificar as regras, regular as diferenças sobre seu
significado, e garantir o cumprimento das regras por aqueles que, de outra forma, não se
submeteriam a elas”, já que “as liberdades dos homens podem entrar em conflito e quando isso
acontece, a liberdade de uns deve ser limitada para preservar a de outros.” Novamente: a
liberdade de que “uns” deve ser limitada para preservar a liberdade de que “outros”? Friedman
trata essa questão de forma bastante objetiva adiante, ao levar a discussão para o campo da
economia política liberal:

Em suma, a organização de atividade econômica através da troca voluntária [livre] presume


que se tenha providenciado, por meio do governo, a necessidade de manter a lei e a ordem
para evitar a coerção de um indivíduo por outro; a execução de contratos voluntariamente
estabelecidos; a definição do significado de direitos de propriedade; a sua interpretação e a
sua execução; o fornecimento de uma estrutura monetária. (Friedman, 1984, p. 33).

35
Seguindo as trilhas dos pensadores do socialismo científico, clássicos e contemporâneos, cremos que as
possibilidades do socialismo são proporcionais às possibilidades e impossibilidades do próprio capitalismo, que cada
vez mais revela seu caráter predatório para com a humanidade e o planeta. Isso não quer significar que creiamos
numa evolução natural ao socialismo. Uma tal transformação implica em que nos debrucemos, filosófica e
cientificamente, sobre o que pode a praxis socialista mediante a pragmática capitalista ainda hegemônica.
54

2. Na contramão do keynesianismo

Em seu trabalho inicial, de 1957, A Theory of the consumption function, Friedman


fez o primeiro ataque a Keynes. Nele, o economista pregava que as pessoas e as empresas não
mudassem seu consumo em função da renda, mas que o consumo anual deveria ser estabelecido
em função dos ganhos esperados ao longo de suas vidas. Em Studies in the quantity theory of
money, alertava que, no curto prazo, a expansão da oferta monetária gerava empregos e
aumentava a renda; entretanto, no longo prazo, tal expansão levaria ao aumento de preços e,
conseqüentemente, à inflação, que corroeria a renda. Logo, diminuições na oferta de dinheiro
teriam efeito contrário. Ou seja, desagradáveis no curto prazo, mas positivas no longo (Haag,
2003, p.16).
Desse modo, na contramão das tendências dos anos 60, que incorporaram o ideário
keynesiano, Friedman atacou as teses do economista inglês com uma contundência maior que a
de seus colegas do monetarismo, Hayek e Mises, e foi muito contestado por isso, ou seja, pela
visão de que a estabilidade no crescimento da oferta de dinheiro é crucial como instrumento
econômico de controle da inflação e da recessão:

Se agora minhas idéias são um senso comum, quando elas foram publicadas, destoavam
tanto da corrente geral que nenhum grande jornal ou revista da época — The New York
Times, Chicago Tribune, Time ou Newsweek — ousou publicar uma resenha de Capitalismo
e Liberdade, lembra. Aliás, em 1965, quem estava na capa da Time, 20 anos depois da sua
morte, era John Maynard Keynes.

Nos anos 50, acredite você, a ortodoxia keynesiana dava pouca atenção à questão monetária,
à quantidade de dinheiro. Para eles, era a política fiscal que importava. Há 40 anos, em
Capitalismo e Liberdade, eu já argumentava que a ênfase, antes essencialmente fiscal dos
governos, deveria se tornar essencialmente monetária. Muitos afirmam que, por causa disso,
eu fui o economista vencedor do século XX. Recuso-me a comentar isso, mas não posso
negar que o mercado ganhou importância e, agora, é visto como o termômetro adequado para
a economia. Não digo: eu acertei. Foram os fatos que geraram as mudanças, e essas
mudanças ocorreram na direção apontada por mim. (Friedman, 2003, p. 16)

Friedman sustenta suas teses acerca da distribuição, das desigualdades sociais, das
vantagens do capitalismo competitivo e das desvantagens do Estado “assistencialista”,
sobretudo, em pressupostos relacionados ao que chama de resultados de curto e de longo prazo.
Nesse sentido, há dois tipos de desigualdades para Friedman, uma que se revela em curto prazo e
que é típica das sociedades com alto grau de mobilidade social, e outra, que se revela em longo
prazo, por sua vez típica das sociedades estáticas. Friedman compartilha integralmente do
princípio liberal de Hayek de que deve haver um trato desigual entre os desiguais, que sintetizou
na frase “a cada indivíduo de acordo com o que ele — e os instrumentos que possua — produz”.
(Friedman, apud. Gómez, 2003, p. 42). Assim como Hayek, reconhece que há desigualdades e
55

que estas são geradas pelo sistema, mas isto não é o mesmo que reconhecer que o sistema seja
injusto. Não cabe, segundo ele, analisar o sistema em termos de justiça, já que o mesmo está para
além da esfera dos juízos de valor (o sistema é o que é e não necessariamente o que queiramos
que o seja — corolário de toda argumentação liberal).
As desigualdades, sob o ponto de vista de Friedman, são inevitáveis, mas obviamente
as desigualdades de curto prazo são preferíveis às desigualdades de longo prazo. As primeiras
seriam as desigualdades próprias do mercado, porque uma parte do mercado sempre pode
corrigir a si mesma e, por outro lado, a desigualdade é o motor da própria ascensão social, já que
impulsiona os indivíduos a moverem-se e melhorarem-se. Ainda que as desigualdades
permaneçam no curto prazo, no longo prazo haverá uma melhora significativa na distribuição
para a sociedade dos benefícios auferidos pelos indivíduos que atuaram livremente no mercado.
(Gómez, 2003, p. 43).
Para Friedman, o sucesso das políticas centradas no controle por Estados fortes
observado na segunda metade do século XX, que objetivaram a atenuação de desvios e
desigualdades, por conquistarem resultados notados mais rapidamente no curto prazo, tornaram
sedutoras e aparentemente convincentes propostas intervencionistas de caráter keynesiano, caso,
por exemplo, do new deal promovido por Roosevelt nos EUA. No longo prazo, contudo, a
tendência será sempre oposta e o Estado haverá de colher, como conseqüências, endividamentos
e comprometimentos insolúveis, com aumento provável das desigualdades. Várias referências a
este tom profético de Friedman, profecia que de certo modo pareceu encontrar sua realização
ainda na década de 1980, com a crise dos Estados de Bem-Estar, o aumento dos endividamentos
em todos os quadrantes do globo e a explosão inflacionária registrada em diversas economias
importantes, concorreram certamente a que os neoliberais conquistassem um terreno valioso para
cultivarem e difundir suas teses.
Esta seqüência de processos desencadeados no referido período, convergiram
oportunamente para com as leituras e teses ultraliberais proclamadas por economistas como
Friedman. Os argumentos neoliberais baseados na relação entre curto e longo prazo legitimaram
a investida do capital sobre o Estado e o patrimônio público como ato final e inquestionável da
supremacia da lógica de mercado (agora sinônimo de modernidade) frente à falência do
paradigma do bem e do valor públicos (agora sinônimos de arcaísmo, despotismo e ineficiência).
Neste contexto, ao contrário dos efeitos de curto prazo que se esperaria em Estados
intervencionistas, Friedman argumenta que as políticas que defende só poderiam revelar seus
resultados positivos no longo prazo. Esse argumento se tornou emblemático o suficiente para
impingir um torpor inercial a qualquer menção de reação ou contestação social às medidas
56

ultraliberais, já que estas vinham acompanhadas de uma avalanche de recursos discursivos e


figuras de linguagem que falavam de urgências, de reformas, de ajustes, de modernização,
desenvolvimento, progresso, estabilidade, eficiência etc., que se apresentavam como imperiosas
e urgentes, mas que não revelariam suas vantagens em curto prazo. No curto prazo, aliás, o
remédio seria amargo, e como todo remédio amargo, indiscutivelmente benéfico a todos. Mas o
que seria um curto prazo e o que seria um prazo satisfatório para a recuperação do “enfermo”?
Gómez faz a seguinte observação a este respeito:

Isto é, outra vez, remeter o problema ad infinitum, porque a pergunta que se lhe pode fazer é:
o que é o longo prazo? Porque quando ele implementa uma política que fracassa e eu lhe
digo “fracassou”, ele diz “até agora, o prazo foi muito curto”. “Como um prazo muito curto?
Faz quatro anos que esta política aí está e não funciona bem.” — “Ah, sim, mas, esperemos.”
Se eu digo à equipe econômica da Argentina: “10 anos, senhores, e vamos de mal a pior!”, a
resposta é: “demos tempo ao tempo.” Esta diferença entre curto e longo prazo legitima tudo.
Nunca o curto prazo é o suficientemente longo para se poder dizer: “agora isso pode ser
refutado”. (Gómez, 2003, p. 44-45).

Mas há também uma outra argumentação, talvez a mais preferida pelos neoliberais.
Trata-se da afirmação, quando os chamados “ajustes” e “reformas” favoráveis ao mercado
evidenciam seu fracasso, de que se as políticas falharam isto se deve ao fato de não terem sido
totalmente implementadas. O programa neoliberalizante justifica-se e exime seus próprios
implementadores acerca de seus fracassos. Nunca há excesso de medidas neoliberais, e sim,
falta.
Para Friedman, economistas ou pré-economistas como Adam Smith, David Ricardo e
John Stuart Mill (assim como seu grande ídolo, o presidente americano Thomas Jefferson, para
quem, "o governo é melhor quando governa o mínimo"), em geral, viam o Estado como um mero
provedor de paz e de meios para o mercado funcionar. Veio, entretanto, a Grande Depressão de
1930, e o mercado livre teria sido considerado, indevidamente, um vilão que deveria ser
controlado pelo governo para evitar novas tragédias.
Sempre favorável a soluções laissez-faire para problemas econômicos, tornou-se um
fervoroso opositor às idéias keynesianas, que preconizavam que os governos podem aliviar os
ciclos econômicos recessivos aumentando o déficit do Estado, de modo a estimular a demanda
nos momentos de baixa, aumentando as taxas de juros para reduzir demandas quando a inflação
se tornasse ameaçadora.
Assim, combateu a visão de um “governo benevolente que age em nome e para o
bem da sociedade” com instrumental matemático e estatístico. Segundo ele, os consumidores não
mudavam seus hábitos de consumo instantaneamente em função de variações na sua renda
disponível. Chegou a contestar uma visão, sagrada para a história econômica, das reais razões da
Grande Depressão, lida então como uma falha do capitalismo. Em Uma história monetária dos
57

Estados Unidos, escrito com Anna Schwartz em 1972, afirmou que a culpa do massacre
econômico havia sido do Federal Reserve System, que teria sido então responsável pela queda de
um terço da quantidade de dinheiro em circulação entre 1929 e 1933, o que teria causado o
desemprego intenso, a queda dos preços e o crescimento econômico negativo.

Não posso apresentar aqui a evidência em questão.36 Entretanto, devido à importância que a
Grande Depressão de 1929-1933 teve na formação – ou, diria, deformação — da atitude
geral com relação ao papel do governo nos assuntos econômicos, talvez seja útil indicar para
tal episódio o tipo de interpretação que a evidência sugere.

Devido às suas características dramáticas, o colapso do mercado de ações em outubro de


1929, que pôs termos ao mercado especulador de 1928 e 1929, é freqüentemente considerado
como o início e a causa imediata da Grande Depressão. Tais suposições não são corretas. O
ponto culminante dos negócios foi alcançado em 1929, alguns meses antes do colapso. Esse
ponto pode muito bem ter sido atingido na data em que realmente ocorreu em parte devido às
condições de controle relativamente apertado do dinheiro impostas pelo Federal Reserve
System numa tentativa de dominar a “especulação” — deste modo indireto, o mercado de
ações pode ter contribuído para o aparecimento da retração. O colapso do mercado de ações,
por seu lado, teve alguns efeitos indiretos na confiança geral nos negócios e na disposição
dos indivíduos de gastar, o que exerceu influência depressiva no curso dos negócios. Mas,
por si próprios, tais efeitos não poderiam ter produzido um colapso na atividade econômica.
(Friedman, 1984, p. 50).

Friedman imputa as responsabilidades pelo colapso, em parte, ao fato de o Reserve


System haver permitido que o estoque de dinheiro tivesse um declínio em torno de 3 % entre
agosto de 1929 e outubro de 1930. Em novembro de 1930 o caráter da crise mudou de forma
drástica, quando uma série de falências de bancos levou a uma enorme corrida dos depositantes
aos demais bancos na tentativa de converterem seus depósitos em dinheiro. Essa atitude geral,
que se espalhou rapidamente por todos os EUA, teria levado à falência também o Banco dos
Estados Unidos, ainda em 1930. Por se tratar de um dos principais bancos norte-americanos, com
mais de 200 milhões de dólares em depósitos à época, e porque, embora se tratasse de um banco
comercial comum, seu nome tivesse levado muitas pessoas no país e no exterior a crerem tratar-
se de um banco oficial, o efeito em cascata tornou-se inevitável, atingindo todo o sistema
bancário norte-americano e europeu. Friedman enfatiza que o problema maior não teriam sido as
falências em questão, mas seus efeitos sobre os estoques de dinheiro nos EUA.

[...] uma das maiores razões para a criação do Federal Reserve System [precursor do atual
Federal Reserve] foi a de resolver tais situações. Foi-lhe dado, por isso, o poder de criar mais
dinheiro se viesse a surgir uma demanda generalizada por parte do público e também os
meios de tornar o dinheiro disponível aos bancos, com a garantia do ativo de cada banco.
Desse modo, esperava-se que qualquer ameaça de pânico pudesse ser controlada; que não
houvesse a necessidade de suspender a conversão de depósitos em dinheiro; e que os efeitos
depressivos de crises monetárias pudessem, assim, ser inteiramente evitados. (...) O Reserve

36
Friedman remete o leitor às suas obras A program for monetary stability (1959) e Monetary history of the United
States, 1867-1960 (1972).
58

System falhou tristemente. Fez muito pouco ou nada para fornecer liquidez aos bancos,
considerando aparentemente o fechamento de bancos como pouco importante. É conveniente
enfatizar, contudo, que o fracasso do System foi um fracasso de vontade, e não de poder.
Nessa ocasião, como em outras, o System tinha amplos poderes para fornecer aos bancos o
dinheiro que seus depositantes reclamavam. Se isto tivesse sido feito, o fechamento dos
bancos teria sido evitado e a débâcle monetária não ocorreria. (Friedman, 1984, p. 52).

Ainda em seu raciocínio, em 1931 a Grã-Bretanha abandonou o padrão ouro,


iniciativa que foi precedida e seguida por grandes retiradas de ouro dos EUA. Visando impedir a
sangria dos estoques de ouro nos EUA, o Reserve System aumentou a taxa de juros que aplicava
aos empréstimos aos bancos-membros “de forma sem precedentes na história norte-americana”
(FRIEDMAN, 1984, p. 52). Embora a medida tenha estancado a retirada de ouro, desencadeou
um novo ciclo de falências bancárias e novas corridas para retiradas dos depósitos nos demais
bancos.

Nos seis meses que decorreram de agosto de 1931 a janeiro de 1932, um entre dez bancos
existentes suspendeu as operações, e os depósitos totais em bancos comerciais caíram 15%.”
(...) “Uma mudança temporária de política em 1932 envolvendo a compra de um bilhão de
dólares em títulos do governo atenuou um pouco o ritmo do declínio. Se esta medida tivesse
sido tomada em 1931, teria, quase certamente, evitado a débâcle aqui descrita. Em 1932 já
era tarde demais, e a medida funcionou como mero paliativo; e, quando o System voltou à
passividade, a melhora temporária foi seguida de mais um colapso terminando no Banking
Holiday de 1933 — quando todos os bancos dos EUA foram oficialmente fechados por mais
de uma semana. (Friedman, 1984, p. 52-53).

Deste modo, segundo a versão de Friedman, a criação de um sistema com o objetivo


de evitar uma suspensão temporária da conversão de depósitos em dinheiro (e que anteriormente,
haveria evitado a falência de bancos), possibilitou que um terço dos bancos do país
desaparecesse, conduzindo posteriormente a uma suspensão da conversão “incomparavelmente
mais severa e extensa do que qualquer suspensão anterior” (Friedman, op. cit., p. 53). Eis,
portanto, a conclusão de Friedman acerca da Grande Depressão:

Em resumo, de julho de 1929 a março de 1933, o estoque de dinheiro nos EUA caiu de um
terço, e mais de dois terços do declínio teve lugar após a Inglaterra sair do padrão ouro. Se se
tivesse evitado a queda do estoque de dinheiro, como era claramente possível, a crise teria
sido bem menos longa e bem mais suave. Ainda poderia ser considerada como relativamente
severa em termos de padrões históricos. Mas é totalmente inconcebível que, no decorrer de
quatro anos, a renda monetária pudesse ter declinado mais de 50% e os preços, mais de 30%,
não fosse a diminuição no estoque de dinheiro. Não conheço nenhuma depressão severa em
qualquer país ou em qualquer época que não tenha sido acompanhada por um declínio
agudo no estoque de dinheiro; e nenhum declínio agudo no estoque de dinheiro que não
tenha sido acompanhado por uma grave depressão. (Friedman, 1984, p. 53)

Esta última frase de Friedman tornou-se legendária para a defesa de suas propostas
político-monetárias. Friedman fecha seu raciocínio sobre o episódio da Grande Depressão com
uma conclusão incondicional e que sintetiza sua posição, enquanto neoliberal:

A Grande Depressão nos EUA, longe de ser um sinal da instabilidade inerente do sistema de
59

empresa privada, constitui testemunho de quanto mal pode ser causado por erros de um
pequeno grupo de homens — quando dispõem de vastos poderes sobre o sistema monetário
de um país. (Friedman, 1984, p. 53).

Para Friedman, qualquer sistema que dê tão amplos poderes a um grupo de homens
cujos erros podem ter efeitos drásticos e amplos, é simplesmente um mau sistema. Este é
principal argumento para Friedman ser contrário à existência de qualquer controle monetário
centrado em decisões arbitrárias:

Erros, compreensíveis ou não, não podem ser evitados em sistemas que dispersam a
responsabilidade, mas dão poderes amplos a um pequeno grupo de homens e, portanto,
tornam ações políticas importantes altamente dependentes de acidentes de personalidade. É
este o argumento-chave técnico contra a existência de um banco central “independente”.
Parafraseando Clemenceau, dinheiro é coisa importante demais para ser deixado aos
banqueiros centrais. (Friedman, 1984, p. 54).

A solução apontada por Friedman também é ilustrativa de sua posição tipicamente


liberal (aqui, entretanto, ultraliberal) quanto ao significado magnânimo da economia de mercado
face à atuação potencialmente “ameaçadora” dos próprios homens aos livres desígnios do
sistema:

Se não podemos alcançar nossos objetivos nem por meio de um padrão ouro inteiramente
automático nem por meio da ação livre de autoridades independentes — como poderemos
estabelecer um sistema monetário estável e ao mesmo tempo livre da influência
irresponsável do governo, um sistema capaz de fornecer a estrutura monetária indispensável
a uma economia de livre empresa e que não possa ser usada como fonte de poder para
ameaçar a liberdade econômica e política?

O único meio já sugerido e que parece promissor é tentar estabelecer um governo de lei, em
vez de um governo de homens, por meio da legislação de normas para a direção da política
monetária, a qual teria o efeito de permitir ao público exercer o controle da política
monetária por meio das autoridades políticas e, ao mesmo tempo, evitaria que a política
monetária fosse vítima dos caprichos das autoridades políticas. (Friedman, 1984, p. 54 –
itálicos nossos).

Em uma entrevista concedida à Revista Primeira Leitura (2003), questionado sobre


quando as empresas “falham” ou comprometem o sistema, ele insiste: "Casos como a Enron e
outras fraudes são as exceções que confirmam a minha regra. O que mudou foi a retórica, não os
fatos. Empresas fraudulentas sempre existiram e, em geral, são desmascaradas pelo próprio
mercado. Os exemplos mais recentes, como Enron ou Worldcom, tiveram suas mazelas expostas
pelo mercado, não pelo governo. Houve grande queda nos valores de mercado de suas ações, e
essa foi a “punição” dada pelo mercado aos maus empresários.” (Friedman, 2003, p. 16-17). E
acrescenta:

O sistema funciona com lucros e prejuízos, e esses últimos são tão importantes quanto os
primeiros. Para que tenhamos uma sociedade dinâmica, as pessoas têm de assumir riscos.
Alguns rendem frutos, outros não. O fato de que certas empresas entrem em falência e outras
prosperem mostra como o sistema está saudável e funciona. (Friedman, 2003, p. 16)
60

Ele, entretanto, procura ser cauteloso a ponto de não se revelar um crente ingênuo no
capital: "Acredito, apesar do meu otimismo, que exista um impulso suicida na comunidade de
negócios. Há uma crença burra de que quem está a favor do mercado livre está a favor de tudo o
que os agentes desse mercado fazem. Não defendo isso. Há, por exemplo, organizações
individuais e homens de negócio que, em suas ações, acabam minando o mercado livre. Todo
mundo se acha especialista em economia, e essa é uma área em que se erra muito. O que mais
me impressiona nela é que, na maioria das vezes, o que é verdade em casos individuais não é
verdade para a comunidade do mundo dos negócios." (Friedman, 2003, idem).
Atualmente, ele defende a extinção do Federal Reserve (Banco Central dos EUA) e
do Fundo Monetário Internacional porque suas equivocadas políticas monetárias têm causado
enormes danos à economia dos EUA e mundial:

O FMI deveria ser abolido. Veja esse empréstimo imenso feito ao Brasil no ano passado, um
absurdo. Acho que o seu país precisa solucionar sozinho os seus problemas. O Brasil não
será beneficiado por uma ajuda que permitirá ao país apenas adiar a solução de suas mazelas
econômicas. Financiar gastos internos com moedas estrangeiras é uma péssima política para
vocês. Isso ocorreu na Argentina e foi a receita do desastre. (Friedman, 2003, p.16).

Ainda no começo de 1999, Milton Friedman abordou também o problema da crise


cambial brasileira, então em seu auge:

Nem o câmbio fixo nem o flutuante resolvem os problemas fiscais internos. Não há soluções
fáceis. O Brasil tem de pôr sua casa fiscal em ordem: ou corta fortemente os gastos
governamentais ou aumenta fortemente a receita governamental. Não há outro caminho. Ah,
tem outra saída: imprimir dinheiro. Mas isso levaria inevitavelmente à inflação. No caso do
Brasil, a inflação voltou porque o governo não tem mais crédito para tomar emprestado o
necessário para cobrir o déficit. O déficit fiscal brasileiro é muito grande e isso tem de ser
resolvido. Mexer no câmbio ou qualquer coisa parecida é apenas um paliativo. (Instituto
Liberal, 2004, s/ pág.).

Nessa mesma entrevista também ressaltou que o problema dos juros elevados deveria
ser solucionado pelo mercado, não pelo governo. Este último (o governo) é, aliás, sempre a causa
dos problemas.
Friedman, em 1962, já se referia aos problemas das previdências sociais de vários
países, afirmando que a compra de um plano de aposentadoria, seja de seguradores privados ou
públicos, deveria ser um ato voluntário, não uma aquisição compulsória de um plano do sistema
previdenciário social dos governos. "Daí, meu conselho ao governo brasileiro: gastos reduzidos,
proteção garantida à propriedade privada e menor intervenção possível no mercado, permitindo
que ele funcione, possibilitando que as pessoas se dediquem à atividade de sua preferência."
(Friedman, 2003, p. 16-17). Recomendações seguidas ao máximo, desde os anos de 1990, ao que
nos parece.
61

Sobre a inflação, a recomendação: “Ninguém discordará de mim quando digo que


toda inflação é acompanhada por um aumento rápido na quantidade de dinheiro e que toda
deflação reflete uma queda monetária abrupta. É sempre uma doença monetária. Não se enganem
sobre isso.”(Friedman, 2003, p. 17). Sua tese sobre a inflação enquanto um fenômeno monetário
e que por meio de medidas monetárias deve ser remediado, são expostas sinteticamente da
seguinte forma:

Se a quantidade de bens e serviços que estejam à venda — em suma, a produção — fosse


aumentar tão rapidamente quanto a quantidade de moeda, os preços acabariam ficando
estáveis. Os preços poderiam, até, cair gradativamente à medida que as rendas mais altas
levassem as pessoas a querer guardar uma fração maior de sua riqueza sob a forma de
moeda. A inflação ocorre quando a quantidade de moeda aumenta muito mais rapidamente
do que a produção, e quanto mais rápido o aumento da quantidade de moeda por unidade de
produção, mais alta a taxa de inflação. Talvez não exista nenhuma outra proposição, em
economia, que seja tão bem confirmada quanto esta. (Friedman, 1994, p. 182).

Segundo Friedman, a produção está sempre limitada pelos recursos físicos e


humanos disponíveis e pelo grau de conhecimento e capacidade para o uso destes recursos.
Assim, a produção só pode aumentar com uma certa lentidão. No último século, afirma ele, “a
produção nos Estados Unidos aumentou à taxa de 3% ao ano. Mesmo no auge do rapidíssimo
crescimento do Japão, após a Segunda Guerra Mundial, sua produção nunca subiu muito acima
dos 10% ao ano. A quantidade de moeda-mercadoria está sujeita a limites físicos semelhantes,
embora às vezes tenha crescido mais rapidamente do que a produção em geral, como ilustram os
exemplos da inundação de metais preciosos vindos do Novo Mundo nos séculos XVI e XVII e
do ouro no século XIX.” (Friedman, 1994, p. 182). Entretanto, em seu entendimento as modernas
formas de moeda, baseadas em papel e lançamentos contábeis, não estão sujeitas a estes limites
físicos.
Recorrendo a alguns exemplos inflacionários históricos, Friedman procura sustentar,
uma vez mais, sua posição quanto à responsabilidade dos governos, e não dos mercados, no
advento da inflação:

Durante a hiperinflação alemã após a Primeira Guerra Mundial, a moeda manual aumentou à
taxa média de mais de 300% ao mês por mais de um ano, o mesmo acontecendo com os
preços. Durante a hiperinflação húngara após a Segunda Guerra Mundial, a moeda manual
aumentou à taxa média de 12.000% ao mês, por um ano, e os preços à taxa ainda mais alta
de quase 20.000% ao mês.

Durante a inflação moderada nos Estados Unidos, de 1969 a 1979, a quantidade de moeda
aumentou à taxa média de 9% ao ano, e os preços, à taxa média de 7%.” E conclui seu
raciocínio: “Como mostram esses exemplos, o que acontece com a quantidade de moeda
tende a tornar menor o que acontece com a produção: daí a nossa referência à inflação como
um fenômeno monetário, sem acrescentar qualquer ressalva quanto à produção. (Friedman,
1994, p. 182)
62

3. Posições sobre a educação liberal

Uma outra temática assumida por Friedman desde a época de Capitalismo e


liberdade (e à qual ele se mantém dedicado até presentemente, juntamente com sua esposa Rose
Friedman, através de sua fundação nos EUA) trata-se da questão do ensino, tema que nos é
pertinente. Segundo ele, a falência do ensino público americano, que em sua opinião, consegue
conjugar péssima qualidade e altos custos, levou-o a propor um esquema de total retirada do
Estado da educação. O dinheiro “mal gasto” nos estabelecimentos públicos de ensino, deveria ser
convertido em "vouchers" ou bonificações para cada aluno, de tal forma que, com esses recursos,
seria possível aos indivíduos assumirem sua instrução através da rede privada, cabendo aos pais
a escolha livre do melhor colégio para seus filhos.
O imperativo de que o ensino seja determinado pelo mercado é óbvio para os
postulados liberais de Friedman: a competição, que supostamente se estabeleceria entre as
escolas, garantiria melhorias constantes do ensino. Os pais também passariam a interferir mais
diretamente no processo educacional, exigindo, por exemplo, melhores cursos e qualificação dos
professores, pois poderiam optar pela mudança de seus filhos de instituição em caso de
descontentamento.
Explicitando como entende o acesso à educação e à instrução, faz severas críticas à
ação do governo na oferta da educação ou instrução públicas, o que considera uma extensão
indiscriminada da responsabilidade do Estado (Friedman, 1984, p. 83). Em sua opinião a
intervenção governamental no campo da educação pode ser interpretada de dois modos, que
constituirão a base de seus pressupostos para a discussão e formulação de propostas para essa
área:

O primeiro diz respeito aos “efeitos laterais”, isto é, circunstâncias sob as quais a ação de um
indivíduo impõe custos significativos a outros indivíduos pelos quais não é possível forçar
uma compensação, ou produz ganhos substanciais pelos quais também não é possível forçar
uma compensação – circunstâncias estas que tornam a troca voluntária impossível. O
segundo é o interesse paternalista pelas crianças e por outros indivíduos irresponsáveis.
(Friedman, 1984, p. 83).

Tomando estes dois pressupostos como referências, formula proposições sobre a


instrução primária, secundária e superior. Como não poderia deixar de ser, formula decisões
políticas para a sua realização no campo liberal do mercado. Friedman entende que um mínimo
de educação geral aos cidadãos contribui de forma razoável para a aceitação de valores que
considera indispensáveis para a estabilidade de uma sociedade democrática liberal. Essa relação
de troca voluntária entre os indivíduos e o mercado necessita de uma base elementar de
conhecimentos para fazer fluir a troca entre os indivíduos e favorecer a circulação de
63

mercadorias. Contudo, não admite que esse processo extrapole os limites usufruídos nessa
sociedade, considerados estritamente como um substancial “efeito lateral”, defendendo que,
apenas relativamente, o ganho social é maior para os níveis mais baixos da instrução onde o
governo poderia apresentar subsídios temporários e focalizados, para não gerar prejuízos aos
demais indivíduos (Gómez, 2003, p. 43).
Quanto à instrução primária, defende que o subsídio governamental deva ser
aplicado apenas em situações justificadas, como no caso de famílias necessitadas, para que com
isso não interfira intensamente no próprio mercado, prejudicando a ação voluntária individual.
Friedman vislumbra, portanto, que a solução para a exigência de um mínimo de instrução e o
correspondente subsídio governamental deveria romper com o que denomina de nacionalização
das instituições educacionais pelo governo, pois isso afeta as empresas privadas que atuam nessa
área:

O governo poderia exigir um nível mínimo de instrução financiada dando aos pais uma
determinada soma máxima anual por filho, a ser utilizada em serviços educacionais
“aprovados”. Os pais poderiam usar essa soma e qualquer outra adicional acrescentada por
eles próprios na compra de serviços educacionais numa instituição “aprovada” de sua própria
escolha. Os serviços educacionais poderiam ser fornecidos por empresas privadas operando
com fins lucrativos ou por instituições sem finalidade lucrativa. (Friedman, 1984, p. 86).

Em se tratando da instrução secundária, Friedman a concebe como um valor


econômico do indivíduo. Para Friedman, considerando-se a situação apresentada,
particularmente, naquele momento, nos Estados Unidos, seria importante combinar escolas
públicas e particulares em direção à desestatização (desnacionalização) das escolas:

Os pais que quiserem mandar os filhos para escolas privadas receberiam uma importância
igual ao custo estimado de educar uma criança numa escola pública, desde que tal
importância fosse utilizada em educação numa escola aprovada. Essa solução satisfaria as
partes válidas do argumento do monopólio técnico. E também resolveria o problema das
justas reclamações dos pais quando dizem que, se mandarem os filhos para escolas privadas,
pagam duas vezes pela educação – uma vez sob a forma de impostos e outra diretamente.
(...) E ainda ofereceria o benefício adicional de tornar os salários dos professores sensíveis à
demanda de mercado. (Friedman, 1984, p. 89).

A aplicação do bônus seria fator fundamental para o processo de particularização


progressiva das escolas. A desestatização e a permanência das escolas aprovadas com padrão
mínimo imposto para o seu funcionamento e a competição entre as existentes permitiriam que as
escolas públicas fossem, por fim, vendidas às empresas privadas. As escolas deveriam ser
avaliadas por instituições independentes do Estado, inclusive para avaliação dos conteúdos das
disciplinas e dos alunos, além do desempenho docente. A contratação direta de professores e
diminuição da uniformidade salarial promoveria maior empenho dos mesmos e das próprias
64

escolas para atraírem a sua clientela. Estaria estabelecida, assim, uma relação de melhor oferta de
ensino para a livre procura dos interessados.
Se nos níveis primário e secundário a subvenção de um sistema público de ensino
poderia ainda encontrar algumas justificativas, o mesmo não se daria, em absoluto, para com a
instrução de nível superior. Friedman justifica sua posição afirmando que se nos níveis
elementares de instrução há pouco ou quase nenhum conflito quanto à necessidade de um
conteúdo programático relativamente uniforme, em nível nacional, para todos os cidadãos, o
mesmo não ocorre em relação ao ensino superior, cuja falta de concordâncias não justificaria “a
imposição dos pontos de vista de uma maioria, e muito menos de uma pluralidade. A falta de
concordância é tal, nesta área, que já permite levantar dúvidas sobre a conveniência da
subvenção à instrução neste nível; e é bastante grande para impedir qualquer tentativa de defesa
da nacionalização na base da criação de um conjunto comum de valores” (Friedman, 1984, p.
93). Por outro lado, alega que a maioria dos colleges e universidades estatais e municipais
cobram anuidades muito inferiores que as instituições privadas, o que caracteriza uma
“concorrência desonesta” para com as últimas.
Interessante notar que esta alegação de Friedman inverte o seu princípio em relação
às desigualdades, situando seu objeto de análise na desigualdade existente entre instituições
públicas e privadas, e não sobre a desigualdade de acesso entre indivíduos àquelas. A suposta
desigualdade concorrencial entre instituições é mais importante que o que ela possibilita na
prática, ou seja, que indivíduos em condições desiguais possam, em igualdade de oportunidades,
aspirar ao ensino superior de acordo com suas possibilidades sócio-econômicas (princípio do
tratamento desigual entre desiguais, que aqui, estranhamente, parece não se aplicar).
Evidentemente, a “racionalidade” demonstrada por Friedman se aplica, antes de tudo,
ao mercado empresarial capitalista e à defesa de sua livre competitividade. Em segundo lugar, os
indivíduos, sem exceções, devem conquistar seus espaços segundo suas condições e aptidões,
arcando com o preço vigente no mercado. Para Friedman, as subvenções estatais de acesso ao
ensino implicam em que aqueles que pagam por seu próprio ensino estejam financiando também
o ensino de outros, o que seria uma distorção do sistema educacional norte-americano. Assim,
em sua opinião:

Qualquer subvenção deve ser passada aos indivíduos, para ser utilizada em instituições de
sua própria escolha, com a única condição de que sejam do tipo e natureza convenientes. As
escolas governamentais que continuarem em funcionamento deveriam cobrar anuidades que
cobrissem os custos educacionais. (Friedman, 1984, p. 94).

Com relação à preparação vocacional e profissional voltada para a qualificação dos


recursos humanos, Friedman argumenta:
65

O investimento em seres humanos não pode ser financiado nos mesmos termos ou com a
mesma facilidade do investimento em capital físico. A produtividade do capital físico não
depende em geral da cooperação do que tomou emprestado. A produtividade do ser humano
está evidentemente presa a essa dependência. (Friedman, 1984, p. 96).

Friedman admite a intervenção do governo, portanto, somente em situações em que


uma imperfeição do mercado ocasionasse o subinvestimento em capital humano. Mas considera
que a única forma adotada até agora foi a subvenção dos treinamentos vocacional e profissional
financiada pelos impostos comuns, em que o indivíduo acaba por não arcar com nenhum dos
custos e no qual outros indivíduos o estarão subsidiando. Evidentemente, a visão individualista
de Friedman não admite que se avaliem os impostos como forma de redistribuição de riquezas e
possibilidades, o que em princípio levaria a ganhos que só podem ser compreendidos em termos
sociais gerais. A concepção essencialmente individual acerca da educação e formação pauta-se,
antes, no princípio meritocrático e de classe, para a ascensão social.
É particularmente notável a simplicidade com que Friedman defende a relação de
mercado para a educação, em que a possibilidade de escolhas e troca de instituições segundo a
variação da qualidade de seus produtos, torna os estabelecimentos de ensino assemelhados a
lojas. Friedman parece desconsiderar por completo que o processo de ensino é temporal antes de
ser espacial. Que é mediado antes de ser imediato. Que é subjetivo e afetivo, antes de ser
objetivo. Que é condição para a existência do próprio gênero humano, tanto quanto a água é
condição para a existência dos organismos vivos. Que a heterogeneidade, que é própria do
mercado, não é admissível para o processo de ensino, ainda que saibamos que a heterogeneidade
qualitativa e estrutural do ensino exista (notadamente como decorrência de uma sociedade
capitalista que tem na hierarquização e heteronomia social sua principal marca). Enquanto
sistema de socialização de saberes ele não pode ser reduzido à mera lógica de oferta e procura,
sob pena de consolidar as já gritantes diferenciações existentes. Enfim, se a lógica do mercado
defendida por Friedman toma os “agentes individuais” como ponto de partida e de chegada, em
se tratando do processo de ensino-aprendizagem o social está na origem e nos fins da
individualidade. Logo, vê-se que o reducionismo individualista e mercadológico de Friedman o
impede de vislumbrar a educação para além do valor instrumental e circunscrito do saber, a
exemplo do valor-utilidade que a mercadoria adquire no capitalismo. Para Friedman, a
sociedade, a história da humanidade e a própria cultura, resumem-se ao capitalismo.

2.2.3. O pensamento de Karl Popper

Karl Raimund Popper (1902-1994) foi, essencialmente, um filósofo da ciência.


Nascido na Áustria e naturalizado inglês, é considerado por muitos como um dos pensadores
66

mais influentes do século XX. Foi também filósofo social e político de considerável
envergadura, e um reconhecido defensor da democracia liberal, oponente implacável do
“totalitarismo”. Nascido em Viena numa família de classe média de origem judaica, formou-se
pela Universidade de Viena, onde concluiu o doutoramento em filosofia em 1928, e onde
ensinou numa escola secundária entre 1930 e 1936. Em 1937, com a ascensão do nazismo,
emigra para a Nova Zelândia, onde tornou-se professor de filosofia no Canterbury University
College, na cidade de Christchurch. Em 1946, vai para a Inglaterra, tornando-se assistente de
lógica e de método científico na London School of Economics, sendo nomeado professor em
1949. Foi também nomeado cavaleiro pela Rainha Elisabeth II em 1965, e eleito para a Royal
Society em 1976. Aposentou-se da vida acadêmica em 1969, apesar de ter permanecido ativo
intelectual e politicamente até sua morte, em 1994. Popper recebeu ainda vários títulos em seu
campo, incluindo o prêmio Lippincott, da Associação Americana de Ciência Política, o prêmio
Sonning e o estatuto de membro da Sociedade Real da Academia Britânica, da London School of
Economics, do Kings College de Londres e do Darwin College de Cambridge.
Popper cunhou o termo racionalismo crítico para denominar a sua filosofia, cuja
designação é significativa quanto à sua rejeição ao chamado “empirismo clássico” e do
“observacionalismo-indutivista” em ciência. Apesar disso, filósofos da ciência e estudiosos do
pensamento popperiano, como Ernest Gellner (1925-1995) defendem que Popper, embora não se
haja considerado um “positivista”, se encontra claramente mais próximo desta perspectiva do
que de uma tradição metafísica ou dedutiva.
Popper defendeu intensamente que a teoria científica será sempre conjectural e
provisória. Não seria, portanto, possível confirmar a veracidade de uma teoria pela simples
constatação de que os resultados de uma previsão com base na mesma tenham sido verificados.
Essa teoria deverá gozar apenas do estatuto de uma teoria que, a princípio, apenas não foi
contrariada pelos fatos. Daí Popper estabelecer, como principal postulado de sua teoria da
ciência, que a experiência e as observações do mundo real podem e devem buscar por provas da
falsidade da referida teoria, e não por sua confirmação. Este processo de confronto da teoria com
as observações poderá provar a falsidade da teoria em questão. Nesse caso há que se eliminar a
teoria que se provou falsa, e procurar uma outra teoria para explicar o fenômeno considerado.
Este princípio ficaria conhecido como princípio de falseabilidade e, muito provavelmente, seja
um dos elementos mais difundidos de sua teoria da ciência.
Este será um aspecto fundamental para sua definição de ciência. Científico é apenas
aquilo que se sujeita a este confronto com os fatos. Ou seja: só é científica a teoria que possa
sujeitar-se a ser “falseável” (refutável). Uma afirmação que não possa ser confrontada com a sua
67

veracidade pelo confronto com a realidade não é científica. Trata-se de mera especulação
metafísica. Nos diz Popper:

Começo, regra geral, as minhas lições sobre Método Científico dizendo aos meus alunos que
o método científico não existe. Acrescento que tenho obrigação de saber isso, tendo eu sido,
durante algum tempo, pelo menos, o único professor desse inexistente assunto em toda a
Comunidade Britânica.
[...] Tendo, então, explicado aos meus alunos que não há essa coisa que seria o método
científico, apresso-me a começar o meu discurso, e ficamos ocupadíssimos. Pois um ano mal
chega para roçar a superfície mesmo de um assunto inexistente. (Popper, 1987, Prefácio)

Para Popper a verdade é uma quimera inalcançável, sendo o estatuto atual das
ciências sempre provisório. Ao depararmos com uma teoria ainda não refutada pelos fatos e
observações, deveríamos, pois, nos dedicarmos a demonstrar a possibilidade de sua falsidade.
Einstein, segundo Popper, teria sido o melhor exemplo de um cientista que rompeu com as
teorias da Física estabelecidas, demonstrando suas limitações e apresentando possibilidades que
as ultrapassaram. Isso equivaleria ao falseamento de teorias tomadas como universais e
incontestes até então (Mesquita Filho, 2006, s/p)
Popper debruçou-se intensamente sobre a teoria marxista e com a filosofia que lhe
foi subjacente, de Hegel, retirando-lhes qualquer estatuto científico. O mesmo em relação à
psicanálise, cujas teorias subjacentes, em sua opinião, não são falseáveis, isto é, não se permitem
confrontar com os fatos.
Mas o que distinguiria o falseamento de Popper da tradicional verificabilidade
própria ao empirismo tradicional? Ernest Gellner, comparando o método científico de Karl
Popper com a visão baconiana da ciência, afirma, em "Relativism and the social sciences" que:

[...] a definição do método científico de Popper difere da versão baconiana de empirismo por
sua ênfase na eliminação em vez da ênfase na verificação. No entanto eles têm em comum
um determinado ponto: quer nós verifiquemos ou refutemos, de qualquer forma fazêmo-lo
com a ajuda de duas ferramentas e apenas duas: a lógica e a confrontação com os factos.
As teorias são julgadas por dois juízes: consistência lógica e conformidade com os factos. A
diferença entre os dois modelos situa-se apenas em saber se os factos condenam os
pecadores ou canonizam os santos. Para o jovem Popper havia alguns pecadores
apropriadamente certificados, mas nunca santos definitivamente canonizados. (Gellner,
1987, p. 157 – itálicos nossos)

Uma boa teoria ou lei científica é falseável justamente porque faz afirmações
definidas acerca do mundo. Uma boa teoria será aquela que faz afirmações de amplo alcance
acerca do mundo e que, ao ser testada, resista à falsificação. As teorias que tenham sido
falsificadas têm que ser rejeitadas, visto que, como afirma Popper, ao descobrirmos que a nossa
conjectura era falsa, aprendemos muito sobre a verdade e chegaremos mais perto dela.
Aprendemos com os nossos erros e acertos. Esta atitude de "vida ou de morte" choca com a
68

precaução recomendada pelo indutivista ingênuo. Segundo este, só as teorias que se podem
demonstrar é que são verdadeiras ou provavelmente verdadeiras e só essas devem ser admitidas
na ciência. O falsificacionista, em contraposição, reconhece as limitações da indução e a
subordinação da observação à teoria. Os segredos da natureza somente podem ser descobertos
com a ajuda de teorias engenhosas e perspicazes. Quanto maior for o número de teorias
conjecturadas que procuram enfrentar a realidade e quanto menor for o seu nível especulativo,
maiores serão as oportunidades de realizarmos importantes avanços na ciência. Não existirá o
perigo de assistirmos a uma proliferação das teorias especulativas, na medida em que aquelas
que representam descrições inadequadas do mundo podem ser eliminadas drasticamente em
função do resultado da observação ou de outras provas. A exigência da falsificabilidade das
teorias teria, por decorrência, que as teorias sejam estabelecidas e precisadas com clareza. No
dizer de Popper:

[...] só há um caminho para a ciência: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-
se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte os separe – a não ser que obtenhamos
uma solução. Mas, mesmo que obtenhamos uma solução, poderemos então descobrir, para
nosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que
talvez difíceis, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com um sentido, até ao fim dos
nossos dias. (Popper, s/d., p. 3).

O progresso da ciência exige que as teorias sejam cada vez mais falsificáveis e em
conseqüência tenham cada vez mais informação. Isso exclui, no entanto, que se efetuem
modificações nas teorias destinadas simplesmente a protegê-las da falsificação ou de uma
falsificação ameaçadora. Essas modificações, tal como a adição de mais um postulado sem
consequências que não tenham sido já comprovadas, são denominadas de modificações ad hoc.
O falsificacionista deve rejeitar as hipóteses ad hoc e estimular a proposta de
hipóteses audazes com melhorias potenciais em relação às teorias falsificadas. As confirmações
que são conclusões conhecidas de antemão são insignificantes. Se hoje em dia confirmamos a
teoria da gravitação universal de Newton atirando uma pedra ao solo, não contribuímos com
nada de valor para o progresso da ciência. Ao contrário, se amanhã confirmamos uma teoria
especulativa que implica que a atração entre dois corpos depende das suas temperaturas,
falsificando a teoria de Newton, teremos realizado um avanço importante no conhecimento
científico.
Popper atualiza e radicaliza o raciocínio de David Hume que se ligava, apesar de
tudo, ao indutivismo, por razões de ordem prática e psicológica. Um grande número de
enunciados singulares nunca permite inferir um enunciado geral. Em contrapartida, bastaria um
único enunciado geral preexistente. Pouco importa o grande número de cisnes brancos que
tenhamos observado; não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos.
69

Depois, invertendo a ordem de encadeamento criada pelos partidários do empirismo


lógico, Popper proclama a preeminência absoluta da teoria sobre a observação: em fase alguma
do desenvolvimento científico, escreve, começamos por algo que não seja semelhante a uma
teoria, uma hipótese, uma opinião preconcebida ou um problema que, em certa medida, guia as
nossas observações e nos ajuda a escolher, entre os inúmeros temas de observação, aqueles que
podem ser interessantes. A observação é sempre seletiva, não se resume nunca a sensações ou
percepções que o observador se limitaria a transcrever em relatórios escritos, é parcialmente
determinada pelas expectativas e problemas que existem no espírito do investigador e que ele
retira de um conhecimento anterior (background knowledge). Não existe observação e, de um
modo mais geral, conhecimento que não esteja, a princípio, impregnado de teoria.
O cerne do pensamento popperiano, em termos epistemológicos, se expressa na
concepção de que sobreviver é um processo contínuo de solução de problemas para qualquer ser
vivo. No que diz respeito ao homem, embora este seja capaz de elaborar hipóteses acerca de seus
problemas vitais, Popper salienta, contudo, a impossibilidade de ele vir saber se suas hipóteses
são verdadeiras ou não. Ele é capaz de testar (tentar falsear) uma teoria, e confirmá-la reiteradas
vezes. Entretanto, isso não quer significar que possa admiti-la como verdadeira. É possível,
contudo, que, a qualquer momento, alguém formule a respeito do problema novas hipóteses, ou
novas formas de se testar teorias e demonstrar se são falsas. Isso teria ocorrido, de forma
emblemática, com a teoria newtoniana que, ao longo de séculos, foi repetidas vezes corroborada,
até a formulação de novas hipóteses por parte de Einstein, que abalariam o grandioso edifício
teórico de Newton. Em outras palavras, para Popper a ciência vive de constantes conjecturas e
refutações — aliás, título de seu livro publicado em 1963.
O pensamento de Popper possui conseqüências que vão para além da filosofia da
ciência. Seu constructo certamente se prestou de maneira notável à sustentação epistemológica
dos próprios princípios do movimento neoliberal de Mont Pèlerin. Portanto, para além dos
quesitos epistemológicos, deparamos com os de natureza política e ideológica de defesa do
ideário liberal. Nesse sentido, seus postulados se prestam a sustentar a tese da imponderabilidade
do devenir, isto é, das conseqüências de nossos atos em relação ao futuro.
No final dos anos 30, Popper se viu na contingência de deixar a Europa, indo com a
esposa para a Nova Zelândia, onde reiniciou sua vida acadêmica. Nesse período, marcado pela II
Guerra Mundial, Popper publicou duas obras fundamentais, demonstrando enorme familiaridade
com as ciências humanas: A miséria do historicismo (1942) e A sociedade aberta e seus inimigos
(1945). Elas representam o que Popper denominou de sua “contribuição para o esforço de
guerra”, isto é, o primeiro livro visava, especialmente, refutar a concepção marxista da história
70

(para Popper, marcada pela pretensão à previsibilidade e a busca por determinações históricas),
bem como a impossibilidade de qualquer engenharia social. Já o segundo trabalho trata de uma
análise sobre todos os pensadores que, desde Platão, defenderam idéias contrárias à sociedade
aberta (sociedade esta que tolera o poder crítico das pessoas).
Em A lógica das ciências sociais, Popper afirma que é impossível reduzir a
sociologia à psicologia. Assim como Hayek, Popper é, acima de tudo, contrário a toda e qualquer
forma de subjetivismo. Lembremos que em Hayek este princípio fica claro em sua recusa em
considerar os “motivos” ou razões pessoais que levam os agentes individuais a fazerem suas
escolhas ao atuarem no mercado. Basta, portanto, que se considere apenas as preferências
objetivas de tais indivíduos. Para os neoliberais as preferências não são subjetivas, mas sim, o
resultado de uma ordenação objetiva de opções e prioridades, sendo irrelevante as determinações
particulares (motivos) de tal ordenação (Gómez, 2003, p. 49).
Ainda nesta obra, Popper propõe a lógica da situação como único método objetivo
aceitável para as ciências sociais. O objetivo do mesmo seria, pois, o de explicar as condutas
individuais a partir exclusivamente da situação de sua atuação, sem recorrer a explicações
psicológicas. Em outros termos, “isto significa que o homem é concebido como perseguindo tais
ou quais fins objetivos em função de sua situação. É um método individualista, mas não
psicológico, e no qual se substituem as escolhas psicológicas por situações objetivas” (Popper,
1990, p. 134-135).

2.3. Algumas considerações preliminares sobre o ideário neoliberal

Se bem que o movimento neoliberal tenha sido entendido como um movimento


coeso e suficientemente organizado para influenciar e legitimar, ideológica e politicamente, o
recrudescimento liberal que presenciamos durante os anos de 1990, o mesmo suscita também
certas incoerências e contradições para com as mudanças observadas no período, o que tem
permitido questionamentos acerca da real amplitude e intensidade de sua influência. Do mesmo
modo que inúmeras vozes se levantaram para denunciar sua presença, seus pressupostos e
conseqüências — daí resultando uma literatura científica que não pode ser negligenciada ou
subestimada —, outras vozes têm se manifestado no sentido de questionar a sua efetiva
importância. Assim, alguns autores sustentam ter havido uma superestimação do neoliberalismo
enquanto força suficiente para a “radicalização mercadológica” verificada a partir dos anos de
1980, consistindo o mesmo, antes de tudo, num álibi oportuno a dar uma suposta racionalidade a
medidas e processos que na verdade são próprios do atual estágio crítico do modo de produção
capitalista (ver Coggiola & Katz, 1995, p. 195-202). A crise capitalista atual e suas
71

conseqüências sócio-econômicas na verdade implicariam em um nível de contradições e de


desestruturação, que ao contrário de estar pautada num ethos liberal clássico ou supostamente
“neo”, não poderia ser exclusivamente identificada com os ideais e propostas da sociedade de
Mont Pèlerin. Em outros termos, os postulados neoliberais não podem ser ignorados e cabem
dentro do anacrônico momento em que se encontra o capitalismo contemporâneo, mas a atual
conjuntura capitalista não poderia ser reduzida a algum estatuto teórico em especial. Nesse
sentido, há que se levar em conta algumas incoerências entre inúmeras políticas adotadas sob
signo neoliberal e os pressupostos defendidos por seus mentores. Possivelmente, a mais evidente
diria respeito a contradições entre a tese da minimização do Estado regulador e planejador,
defendida ardorosamente pelos ideólogos neoliberais, e o crescimento da importância e papel do
mesmo Estado para a reprodução e acumulação capitalista, em detrimento da ampliação das
liberdades propriamente concorrenciais de mercado. Assim, Coggiola argumenta que:

Economicamente, e contrariamente à apregoada “ideologia de mercado”, estamos diante de


uma violenta reação anti-liberal (se é que o termo “liberalismo” conserva algum sentido
econômico) que concretiza a mais violenta intervenção estatal na economia de que se tem
memória na história do capitalismo. Apesar de todos os acordos de livre-comércio, a
realidade mundial é a de um crescimento espetacular do protecionismo, expressão da guerra
comercial entre as potências capitalistas (a tentativa de constituição de blocos econômicos
também obedece a essa tendência). Principalmente, porém, e especial e crescentemente
desde a declaração da inconvertibilidade do dólar pelo governo Nixon em 1971, o
capitalismo se sustenta graças à intervenção direta e cotidiana dos Estados nos mercados
monetário e financeiro, cujo desabamento implicaria no desabamento ulterior do comércio e
da indústria. (Coggiola, 1995, p. 197).

O mesmo autor acrescenta que são evidentes as tentativas de se “ordenar”


globalmente este intervencionismo, seja por meio do G-7 (grupo dos sete maiores países
capitalistas) ou articulações e deliberações envolvendo a OMC (Organização Mundial do
Comércio), Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, dentre outras organizações, de
modo a garantir a manutenção do processo de acumulação capitalista segundo interesses ainda
nacional-corporativos. Uma evidência de que a atuação e intervenção estatal nos principais
países capitalistas contraria a tese de sua minimização é que, apesar dos discursos e políticas
denominadas neoliberais, “os gastos sociais nos países da OCDE37 (o Primeiro Mundo) são hoje
maiores do que o eram em 1979, quando a ascensão de Thatcher deu início à ofensiva
neoliberal” (Coggiola, 1995, p. 198). Para o autor “o crescimento geométrico da intervenção
monetária e tributária do Estado não consagra o seu confinamento num setor secundário, mas a
sua presença em níveis historicamente inéditos da coerção estatal no principal mercado do
capital, cujo desenvolvimento evidencia justamente o grau de parasitismo e, sobre essa base, de

37
Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
72

crise do sistema capitalista em seu conjunto.” (Coggiola, 1995, idem).


Contudo, embora a argumentação do autor pretenda desmentir a tese da diminuição
do Estado, ela corrobora o fato inegável de que os interesses e intervenções manifestos pelos
Estados capitalistas na realidade não podem ser confundidos com ações que contrariam os
objetivos do capital, evidenciando que os Estados na verdade são indispensáveis à sua
manutenção. Na tradição marxista, diríamos que ambos são, na realidade, indissociáveis.
Outras análises econômicas aprofundadas sugerem de forma contundente essa
simbiose entre o papel do Estado e os interesses do capital. Nesse sentido, um dos temas centrais
abordados por Francisco de Oliveira (1998) foi o relacionado ao que de fato tenha representado o
keynesianismo e “os trinta gloriosos” anos do Estado de Bem-estar para o capitalismo do pós-
Segunda Guerra, período em que, segundo o autor, uma série de medidas e intervenções estatais
teriam permitido ao capitalismo manter suas taxas de lucro, sem, contudo, comprometer salários
e postos de trabalho, às custas de um financiamento estatal do processo de acumulação
capitalista por meio de fundos públicos que, cedo ou tarde, haveriam de tornar os próprios
Estados, em maior ou menor grau, cronicamente deficitários. Uma relação paradoxal, segundo
Oliveira, “expressão da abrangência da socialização da produção, num sistema que continua
tendo, como pedra angular, a apropriação privada dos resultados da produção social” (Oliveira,
1998, p. 25-26). Uma vez tornadas críticas as possibilidades de sangria do financiamento
público, o imperativo da apropriação privada teria que retomar as velhas fórmulas, métodos e
justificativas para a manutenção e ampliação de lucros, o que nos anos de 1980 e, sobretudo, na
década de 1990, implicou não só na busca por recursos baseados em inovação tecnológica e na
intensificação da exploração do trabalho humano visando garantir mais-valia (Katz, 1995), como
também, na grande e insidiosa investida empresarial sobre o próprio patrimônio público que
ainda não fora vilipendiado pelo capital, recurso passível de garantir ainda lucros significativos a
diversas corporações, sob a peremptória alegação da ineficiência e falência do “estatismo” e a
necessidade de sua “urgente reforma” pela gestão empresarial, cuja lógica da eficiência,
produtividade e competitividade haveria de tornar os Estados consoantes com os novos tempos.
Essa suposta necessidade estaria sendo comprovada não só pela crise do Estado Providência e da
era keynesiana, como também pela derrocada dos regimes ditos comunistas — argumentos esses
centrais às teses do neoliberalismo e indicativos de sua presença como demiurgo do reformismo
anti-estatal.
Outro flanco de análise pode ser encontrado em Forrester (2001), que por sua vez,
analisa o que considera a relação mecânica e de senso comum que se estabeleceu entre
globalização e ultraliberalismo. A autora assume a posição de relegar o movimento neoliberal,
73

em si, a um plano secundário, entendendo que o processo atualmente hegemônico de gestão do


capitalismo global não possui identidade, atuando anônima e exclusivamente em função do lucro
(Forrester, 2001, p. 16-17). E critica, por conseguinte, o credo comum no meio econômico que
tornou o mercado capitalista sinonímia da própria economia, cedendo à idéia de que esta última
haveria suplantado a importância da própria política:

Mesmo que a globalização pareça ser tão geral e espontaneamente associada à economia, e
não ao político, não é verdadeiramente de economia que se trata, mas do mundo dos
negócios, do business reduzido à especulação. Em compensação, é exatamente uma certa
política, o ultraliberalismo, que tenta — até agora com sucesso — liberar-se de toda
preocupação econômica verdadeira, desviando o sentido do termo “economia”, até aqui
ligado à vida das populações, limitado agora a definir apenas uma corrida ao lucro.
(Forrester, 2001, p. 17 – itálicos nossos na última frase).

Para Forrester, a ditadura do lucro, mesmo estando onipresente a todas as atividades


econômicas, políticas e sociais atuais, geridas pelo ultraliberalismo, permanece clandestina e
oficialmente ausente. Embora onipotente, determinante primário de praticamente todas as
atividades humanas, tornou-se uma obviedade simples e banal. Tornou-se “lícita” e assumiu uma
certa condição virtuosa e inconteste de fundamento indispensável da própria geração de riquezas
e, por decorrência, de todos os possíveis benefícios sociais, a começar pela possibilidade de
empregos e, enfim, condição para a própria subsistência humana. O lucro tornou-se sinônimo de
“criação de riquezas” e seus “criadores” são, portanto, os supostos e indispensáveis provedores
do enriquecimento das sociedades.
A gestão ultraliberal e seu real dimensionamento, em nosso entendimento,
ultrapassam as inúmeras discussões no que diz respeito ao papel e funções do Estado mediante
os imperativos do capital, o que tem implicado, pela magnitude de sua problemática, nas mais
heterogêneas interpretações críticas. Evidentemente, essa variabilidade nos indica que os
fenômenos e transformações do capitalismo contemporâneo são sumamente ubíquos,
multifacetados e contraditórios, e ainda dificilmente redutíveis a uma única tese. Estas
ambigüidades, incoerências e contradições próprias à dinâmica do capital — e cujas análises
científicas críticas certamente hão de tornar cada vez mais inteligíveis, no seu conjunto —,
ultrapassam por certo o escopo do presente estudo, recomendando-nos cautela acerca de
conclusões sobre o efetivo papel do movimento neoliberal no atual contexto do modo de
produção capitalista.
Por esse motivo, assumimos neste trabalho três premissas em relação ao movimento
neoliberal: uma primeira, em que julgamos dispor de contribuições científicas críticas e
evidências suficientes para não ignorarmos o movimento neoliberal como ideário presente e em
grande medida subsidiador do pensamento político-econômico ultraliberal que se estabeleceu
74

nos quadrantes do capitalismo recente, sobretudo nos anos 1990; uma segunda, em que julgamos
temerário, entretanto, atribuir ao movimento neoliberal derivado de Mont Pèlerin a magnitude e
identificação generalizada com os percursos do capitalismo contemporâneo, que alguns estudos e
debates, geralmente coetâneos às primeiras manifestações e conseqüências da reconfiguração
capitalista do final do século XX, contingencialmente conferiram ao pensamento neoliberal; uma
terceira premissa, por fim, em que cremos haver incoerências entre determinados postulados
neoliberais e diversas políticas atribuídas ao mesmo — como por exemplo, a posição neoliberal
contra o estabelecimento de monopólios ou quaisquer formas de corporativismo, seja
empresarial, seja trabalhista, e a importância do papel do Estado para impedir as tendências
monopolistas (Hayek, 1990) e o posicionamento contrário a existência de agências de controle
monetário e de financiamento internacional (Friedman, 1994 e 2003).
Entretanto, há que se levar também em consideração o caráter essencialmente
idealista dos postulados neoliberais, idealismo que abstrai da realidade evidências contundentes
entre a indissociabilidade do Estado para com a garantia da apropriação privada, sempre tendente
à concentração, e não a uma distribuição generalizada de riquezas.38 A ascensão dos trustes e, na
fase presente, de verdadeiros oligopólios não se dissocia da lógica de acumulação e muito menos
do importante papel dos Estados capitalistas para sua consolidação. Hoje, Estados, oligopólios e
imperialismo fazem parte de um mesmo e único processo, como resultado de tendências do
modo capitalista há muito já descritas (ver Marx, 1867/1988a, p. 276-291; Lênin, 1919/2000a;
1917/ 2000b).39
Evidentemente, esse nosso posicionamento é totalmente tributário de todos os
debates e estudos em questão, valendo-se, portanto, da confortável posição daqueles que
usufruem os esforços interpretativos a posteriori dos fatos, em termos de suas contingências
históricas.

38
Lênin, por exemplo, em seu texto O Estado (1916) diz: “As formas de dominação do Estado podem variar: o
capital manifesta o seu poder de um modo onde existe uma forma e de outro onde existe outra forma, mas o poder
está sempre, essencialmente, em mãos do capital, quer com a existência do voto restrito ou outros direitos, quer se
trate de uma república democrática ou não; na realidade, quanto mais democrática for, mais grosseira e cínica é a
dominação do capitalismo. Uma das repúblicas mais democráticas do mundo são os Estados Unidos da América do
Norte, e, no entanto, em nenhum outro lugar (e quem tiver estado lá após 1905 provavelmente o saiba) é tam cru e
abertamente corrompido como na América do Norte o poder do capital, o poder de um grupo de multimilionários
sobre toda a sociedade. O capital, desde que existe, domina a sociedade inteira, e nenhuma república democrática,
nenhum direito eleitoral pode mudar a essência do assunto.” (LÊNIN, 2000a, p. 10-11)
39
Em Imperialismo: etapa superior do capitalismo (1917), Lênin considera que “o resumo da história dos
monopólios é o seguinte: 1) Décadas de 1860 e 1870, o grau superior, culminante, de desenvolvimento da livre
concorrência. Os monopólios não constituem mais do que germes quase imperceptíveis. 2) Depois da crise de 1873,
longo período de desenvolvimento dos cartéis, os quais constituem ainda apenas uma exceção, não são ainda
sólidos, representando ainda um fenômeno passageiro. 3) Ascenso de fins do século XIX e crise de 1900 a 1903: os
cartéis passam a ser uma das bases de toda a vida econômica. O capitalismo transformou-se em
imperialismo.”(LÊNIN, 2000b, p. 7-8).
75

2.3.1. John Maynard Keynes: menos liberal que os outros?

Como sabemos, o movimento neoliberal é reconhecido como um antagonista feroz


do keynesianismo, uma vez que este último teria representado a defesa do planejamento e
controle econômico pelo Estado na Europa Ocidental e América do Norte durante quase meio
século (se considerarmos que os postulados de J. M. Keynes (1883-1946) começam a ser
difundidos ainda nos anos de 1930, tornam-se o fundamento econômico do Capitalismo
Ocidental no pós-Segunda-Guerra juntamente com o new-deal e o welfare state, e alcança seus
estertores durante os anos de 1970 (Oliveira, 1998, p. 19-32; Duménil & Lévy, 2003, p. 37-40).
Isto fora suficiente para que, a partir dos anos de 1940, os adeptos neoliberais cerrassem fogo
sobre o modelo keynesiano, sob a alegação mais que justificável de que tal modelo econômico
representava a aceitação paradoxal, dentro dos “limites” do próprio capitalismo, do
intervencionismo de mercado. Logo, um arremedo e inclinação tácitos dos modelos econômicos
das chamadas economias planificadas do Leste Europeu ou, segundo Hayek (1944/2001), do
caminho para o estabelecimento de Estados totalitários também a oeste dos modelos socialistas
do leste (Alemanha nazista, Itália fascista, URSS comunista), ou no seio dos principais guardiões
do liberalismo (Grã-Bretanha e EUA). Não para menos, já que o próprio Keynes abre o seu
clássico Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda dizendo o seguinte:

Denominei este livro A teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, dando especial
ênfase ao termo geral. O objetivo deste título é contrastar a natureza de meus argumentos e
conclusões com os da teoria clássica, na qual me formei, que domina o pensamento
econômico, tanto prático quanto teórico, dos meios acadêmicos e dirigentes desta geração,
tal como vem acontecendo nos últimos cem anos. Argumentarei que os postulados da teoria
clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso em geral, pois a situação que ela
supõe acha-se no limite das possíveis situações de equilíbrio. Ademais, as características
desse caso especial não são as da sociedade econômica em que realmente vivemos, de modo
que os ensinamentos daquela teoria seriam ilusórios e desastrosos se tentássemos aplicar as
suas conclusões aos fatos da experiência. (Keynes, 1936/1988, p. 21 – itálicos nossos)

Acerca do posicionamento político-econômico de John Maynard Keynes, certamente


o grande mentor das políticas econômicas de pleno-emprego e controle estatal da relação capital-
trabalho (o compromisso entre capital e trabalho da segunda metade do século XX), vale lembrar
que o mesmo poderia ser considerado tão radicalmente liberal quanto os liberais que o atacaram.
Surge daí a falsa impressão de que Keynes representaria posições menos conservadoras (ou até
progressistas) diante do ideário liberal. Ora, isto concorre para um desvio de atenção e um
reducionismo do contexto histórico do capitalismo no período “keynesiano” a um embate que se
daria entre “progressistas e ortodoxos” exclusivamente no terreno político-econômico e
ideológico liberal. Nesse quadro as propostas keynesianas chegam a ser sugeridas como
contempladoras dos interesses da classe trabalhadora, quando sabemos que, se houve conquistas
76

trabalhistas, isto se deveu acima de tudo à própria ação e lutas da classe trabalhadora e dos
partidos e movimentos revolucionários durante mais de um século de entraves.
Esta observação se presta, ao mesmo tempo, para esclarecer o leitor quanto ao fato
de que em hipótese alguma, neste trabalho, nos permitimos iludir acerca do período do Estado de
Bem-Estar Social (defendido pela social-democracia européia ou, de modo mais circunstanciado,
por R. Delano Roosevelt nos Estados Unidos pela criação e estatização da proteção social
estadunidense, mais conhecido por new deal). Longe disso, e como já tratamos na introdução
deste I Capítulo, tomamos esse período como próprio às trágicas conseqüências do estado de
guerra e da grande depressão da primeira metade do século XX:

Como posso aceitar uma doutrina que estabelece como sua bíblia, acima e além de qualquer
crítica, um manual econômico obsoleto que sei que é não apenas cientificamente errôneo,
mas também sem interesse ou aplicação para o mundo moderno? Como adotar um credo
que, preferindo a lama ao peixe, exalta o proletariado rude acima da burguesia e da
intelligentsia que, com todas as suas falhas, representam a qualidade na vida e certamente
carregam as sementes de todo avanço humano? Mesmo que precisássemos de uma religião,
como poderíamos encontrá-la no desordenado lixo das livrarias vermelhas? É difícil que um
filho instruído, honrado e inteligente da Europa ocidental encontre aí seus ideais, a menos
que tenha sofrido antes um estranho e terrível processo de conversão que tenha mudado
todos os seus valores. (J. M. Keynes, “A short view of Rússia” [1925], republicado em
Essays in persuasion. Nova York: Norton & Co., 1963, p. 300 – apud Mészáros, 1988/2004,
p. 60 – itálicos no original)

O problema ideológico do liberalismo de Keynes se revela, aqui, no seu mais alto


grau, explicitando, a um só tempo, sua postura preconceituosa em relação à classe trabalhadora
(ou, como prefere denominar, o “proletariado rude”), sua ignorância científica em relação à
validade do referido “manual econômico obsoleto” e “errôneo” adotado pelos vermelhos, tal
qual uma Bíblia e, portanto, fruto de uma doutrina que prefere a lama ao peixe, negando a
intelligentsia da burguesia, representante e implementadora da qualidade de vida do mundo
moderno. Mundo moderno representado pela Europa ocidental, onde seus filhos aprendem os
melhores valores pela mais honrada e ideal instrução, da qual Keynes certamente foi objeto.
Mészáros nos apresenta uma série de notáveis exemplos do posicionamento ideológico e
“científico” de Keynes. E comenta:

Não é preciso dizer que, se um intelectual socialista agisse do mesmo modo e se aventurasse
a descrever as receitas keynesianas de manipulação monetária capitalista como “o lixo
pseudocientífico das livrarias azuis”, ele seria instantaneamente excomungado por nossos
vigilantes “estudiosos” e expulso do mundo acadêmico sem muita cerimônia. Mas Keynes
— cuja ignorância da obra de Marx só é superada por seu ilimitado senso de superioridade
em relação àqueles que produzem tudo aquilo que a “qualidade de vida” honradamente
expropria para si — não somente pode se sair com tais tiradas ponposas e grosseiramente
“não-acadêmicas” com seu alvo, como ser, ao mesmo tempo, aclamado como o grande
exemplo de “objetividade científica” e a refutação final de Marx. Obviamente, o pensamento
que identifica os próprios desejos com a realidade não tem vergonha nem limites. (Mészáros,
op. cit., p. 60).
77

E Keynes não tem reservas ou hesitações ao acrescentar ao seu posicionamento


intelectual e também sua inabalável crença — patriótica, como diz — em seu lugar e opções
sociais:

Quanto à luta de classes como tal, meu patriotismo local e pessoal, como os de qualquer um,
exceto uns poucos desagradáveis entusiastas, liga-se a meu próprio ambiente. Posso ser
influenciado pelo que me parece ser a justiça e o bom senso, mas a guesrra de classes vai me
encontrar do lado da burguesia educada. (J. M. Keynes, “Am I a Liberal?” In: Essays in
persuasion, p. 324 – apud Mészáros, 1988/2004, p. 61 – itálicos no original)

Em sua opinião, se o mundo ainda continua com problemas como uma “depressão
reinante” e a anomalia do “desemprego em um mundo repleto de carências” (idem, p. 373 –
apud Mészáros, 2004, p. 62), tal seria porque:

Por enquanto, a própria rapidez dessas mudanças [na eficiência técnica] está nos causando
danos e provocando problemas difíceis de solucionar. Os países que sofrem relativamente
mais são os que não estão na vanguarda do progresso. Estamos sendo afetados por uma
nova doença [...] isto é, o desemprego tecnológico [...]. Mas esta é somente uma fase
temporária de desajuste. Tudo isso significa que, a longo prazo, a humanidade está
solucionando seu problema econômico”40 (J. M. Keynes, “Am I a Liberal? In: Essays in
persuasion, p. 364 – apud Mészáros, 1988/2004, p. 62 – itálicos no original).

Não foi o que a história econômica revelou após estas palavras de Keynes, proferidas
ainda na década de 1930, é verdade, período talvez não tão proibitivo aos prognósticos
vanguardistas de Keynes e sua crença também inabalável na eficiência tecnológica como solução
para todos os males da humanidade. Contudo, como observa Mészáros, que “o conceito de
humanidade — que se considera prestes a solucionar o problema econômico — é limitado aos
países “progressistas” e às “vanguardas do progresso” (seus codinomes para designar os países
imperialistas dominantes). Isto, na visão de Mészáros, “sublinha a total irrealidade de seu
diagnóstico ‘científico’ ” (Mészáros, 2004, p. 62). E complementa:

Além disso, de acordo com o antigo postulado da economia política burguesa, segundo o
qual a própria natureza implantara a “motivação das riquezas” em todos os seres humanos,
Keynes afirma “que fomos claramente desenvolvidos pela natureza — com todos os nossos
impulsos e instintos mais profundos — para solucionar o problema econômico. Se o
problema econômico for resolvido, a humanidade estará privada de seu propósito tradicional
(Keynes, op. cit., p. 366 – apud Mészáros, 2004, p. 62).

Nesse sentido, esclarece o próprio Keynes a mudança positiva que advirá aos
indivíduos humanos, naturalmente determinados pela natureza à resolução de seus problemas por
meio de seus impulsos e instintos:

Quando a acumulação de riqueza já não for de alta importância social, haverá grandes
mudanças no código moral [...]. Estaremos então livres, afinal, para descartar todos os
costumes sociais e práticas econômicas que afetam a distribuição de riqueza e de

40
Nota de Mészáros: “...a humanidade está solucionando seu problema econômico” foi grifado por Keynes.
78

recompensas e penalidades econômicas, que agora mantemos a todo custo, por mais
desagradáveis e injustos que possam ser em si mesmos, por serem enormemente úteis para a
acumulação do capital [...]. Prestaremos honras àqueles que podem nos ensinar a aproveitar a
hora e o dia com virtude e bondade, as pessoas encantadoras que são capazes de colher um
gozo direto das coisas, os lírios do campo que não trabalham nem fiam. (Keynes, op. cit., p.
369-370 – apud Mészáros, 2004, p. 62-63).

O comentário de Mészáros...
Visto mais detidamente, no entanto, o discurso keynesiano sobre a miraculosa conversão do
ser que, por um instinto natural, é um ganhador-de-dinheiro — conversão que, segundo ele
prevê, deveria ocorrer cerca de um século depois de 1930 — aparece como uma opinião
inteiramente gratuita. Sem qualquer base e, mais do que isso, contra os argumentos sobre a
força da “natureza” que ele próprio havia enunciado poucas linhas antes, Keynes contrapõe
com arbitrariedade o mundo impotente do “dever ser” à realidade existente do que “é”,
sublinhando sua polaridade também pelo abismo temporal que coloca entre eles.
Em todo caso, a ilusória redenção quase religiosa proposta como real não é o verdadeiro
propósito do discurso de Keynes. Ele oferece o prêmio moral-religioso da “recompensa
final” aos indivíduos — para quem a terra prometida está no além, pois em cem anos estarão
todos mortos — com a condição de que troquem a busca numa possível mudança radical
num futuro não tão distante pelo seu adiamento para além de qualquer expectativa de vida
possível, aceitando assim com sua santa resignação a ordem estabelecida das coisas.
(Mészáros, 2004, p. 63).

E, retornando por fim a Keynes, em seu Ensaio sobre a persuasão, temos a seguinte
advertência imediatamente após o elogio aos lírios do campo:

Mas cuidado! Ainda não chegou a hora para isso. Durante pelo menos outros cem anos
devemos fingir para nós mesmos e para todos os outros que o bom é ruim e o ruim é bom,
porque o ruim é útil e o bom não é. A avareza, a usura e a prudência devem ser nossos
deuses ainda por algum tempo. Somente elas podem nos tirar do túnel da necessidade
econômica para a luz do dia. (Keynes, op. cit., p. 372 – apud Mészáros, 2004, p. 63).

Supomos, por não fazer parte de nossos objetivos estabelecermos aqui uma extensa
análise das posições liberais de Keynes, que os elementos discursivos levantados por István
Mészáros e o diálogo que acaba por estabelecer com Keynes sejam por si suficientes para não só
ilustrarmos o posicionamento ideológico deste economista e sua total identificação com as fontes
mais genuínas do pensamento liberal clássico (o que o identifica suficientemente com os liberais
de Mont Pèlerin, por exemplo) como também insistir na seguinte questão, já indicada em nosso
tópico anterior (vide 2.3): Em que medida os teóricos e as teorias liberais foram ou podem ser
determinantes nos rumos do capitalismo? Podem estas produções ser compreendidas como
verdadeiros postulados científicos com poder de sistematização e ordenamento desse modo de
produção? Ou possuem, no máximo, o escopo de tentar tornar o capitalismo mais legítimo que
inteligível? Enfim, o capitalismo pode, de fato, obedecer a alguma teoria? Se assim for, e com
grande estranhamento, a fragilidade das teorias liberais às colocam à mercê do grande postulado
de Karl Popper, ou seja, elas não podem ser falseadas porque a dinâmica de seu objeto não é
metodologicamente apreensível. Logo, todas as teorias liberais tornam-se refutáveis do ponto de
79

vista de suas validades.


Uma última questão, por fim. Que teoria seria capaz de apreender o capitalismo não
somente em seus mecanismos constitutivos, mas, e sobretudo, em sua dinâmica? A resposta, ao
nosso ver, estaria em uma teoria que fosse, metodologicamente, também dinâmica, seja espaço-
temporalmente, seja na capacidade de apreender o movimento concreto desse modelo de
produção e organização de nossas sociedades contemporâneas. Mas aos liberais isso
representaria ter que realizar a “exegese” da própria bíblia dos pagãos vermelhos. E isso, ao que
nos parece, sua cientificidade azul não admitiria.
80

CAPÍTULO II

Liberalismo, sociedade industrial e o discurso da


escolarização para o Século XX
Uma vez que tenhamos estabelecido uma visão geral dos princípios epistemológicos,
históricos e das contingências próprias ao advento do movimento neoliberal, convém
resgatarmos, do mesmo modo, as relações históricas havidas entre o modo de produção
capitalista em sua fase de consolidação, isto é, sua fase industrial e suas relações ou
conseqüências sobre o trabalho e a educação.
Há algumas maneiras clássicas de nos remetermos a esta história. Poderíamos
recorrer de forma mais objetiva aos processos revolucionários que envolveram a consolidação da
sociedade burguesa, narrados por ela própria a partir dos ideais iluministas que coroaram o que
se poderia entender por “era moderna” ou “modernidade”, e das chamadas revoluções sociais,
tecnológicas e econômicas sempre atribuídas a um progresso natural de nossas sociedades
civilizadas. No âmbito da filosofia e da ciência, pautarmo-nos nas teses e hipóteses sobre a
organização da natureza e da sociedade num mundo deslocado de sua “centralidade teológica”
por Copérnico, e física e matematicamente explicado por Galileu, Newton e Descartes — a era
da “cosmovisão” a que se refere Gómez (2003, op. cit., Cap. I). No âmbito da epistemologia,
focarmos as hipóteses e os confrontos metodológicos que, além dos pensadores já citados,
envolveram John Locke, Bacon, Hume, Berkeley, Leibniz e outros. Ou, quando as nascentes
ciências humanas procuram entender ou explicar as relações entre os próprios homens em
sociedade ou numa “cosmópolis” (Gómez, 2003, op. cit., idem), avaliarmos o que nos legaram
Bentham, Maquiavel, Stuart Mill, Rousseau, Hobbes, Smith etc., acerca dos fundamentos e
funcionamento destas ciências.
Poderíamos, por outro lado, como se faz ao tomar os relatos quase “idílicos” da
origem da propriedade privada e da “riqueza das nações”, nos determos numa natural ou
metafísica origem da divisão social do trabalho, em que por aptidões naturais variadas ou por
decorrência do pecado original, a humanidade parece haver-se dividido, desproporcionalmente,
entre muitos que tirariam seu pão do próprio suor e alguns que converteram esse suor de tantos
em riquezas das quais se apropriaram continuamente. (Marx, 1867/1988d, p. 251).
Mas em se tratando de nossos objetos e objetivos para este capítulo, optaremos
sobretudo, pelos fatos, em geral presentes em documentos e leis pouco referidas pelos grandes
pensadores da modernidade ilustrada, embora, em grande medida estes mesmos às tenham
81

influenciado e fundado. E são nossos objetos, aqui, a constituição de uma sociedade de mercado,
assentada na instituição da propriedade privada capitalista e de um mercado de trabalho
assalariado competitivo. Nosso objetivo é historicizarmos a consolidação da sociedade burguesa
fabril e os fatores que a tornaram, de fato, possível.
É sobre a evolução deste processo que nos deteremos, ainda que sinteticamente, no
primeiro item deste capítulo, isto é, sobre as condições que acompanharam a formação de uma
classe trabalhadora para o modo capitalista em suas fases pré-industrial e industrial,
propriamente ditas. Além de brutalmente baseadas na expropriação de terras, meios de trabalho e
na constituição de latifúndios, esse processo teve conseqüências sobre o que Castel (2001)
denomina “questão social” com desequilíbrios os mais variados, aos quais a historiografia liberal
em geral não faz referências.
No tópico seguinte, e de forma intrínseca, nos remeteremos à conformação dos
mercados concomitantemente aos mesmos processos constitutivos e expropriadores aos quais a
Europa ocidental assistiu dos séculos XVII ao XIX. Trata-se do que Karl Polanyi (1944/2000)
denominou The great transformation, que redundaria na inversão do estatuto milenar dos
mercados, submetidos até então à vida econômica comunitária, para o de “mercados livres”, base
econômica do capitalismo moderno e que passa a submeter a tudo e a todos aos seus desígnios,
tragados inapelavelmente pelo o que cunhou, metaforicamente, como o “grande moinho
satânico”.
Como terceiro item a ser considerado, objetivamos resgatar os principais elementos
da relação entre trabalho e educação e, mais especificamente, o início paradoxal das relações da
educação liberal com um de seus próprios corolários centrais: a educação para todos.
Analisamos, juntamente com Mariano Fernández Enguita e Mario A. Manacorda, os dilemas da
burguesia, agora no poder, acerca da pertinência e de qual educação deveria ser concedida à
população trabalhadora.
No quarto e último tópico, resgatamos a pontual crítica filosófica, política e
pedagógica de Antonio Gramsci ao assédio do capital e do pragmatismo da escola ativa na
transição dos séculos XIX e XX sobre a educação — e, mais especificamente, sobre o ensino
profissionalizante (relação, portanto, entre trabalho e educação). Procuramos evidenciar as
contradições então existentes entre a educação, enquanto processo de socialização de saberes
clássicos e históricos humanos, e os imperativos próprios à lógica produtivista e mercadológica
do capital — em que se destacam a necessidade de submissão das classes trabalhadoras à
disciplina, valores e novos ícones do mercado de trabalho assalariado, evidenciados nos tópicos
82

precedentes, no alvorecer do fordismo e da gestão “científica” dos processos produtivos


sistematizada por Frederick Taylor.
Por fim, no quinto e último item a ser tratado, adentramos no caso brasileiro da
relação entre capitalismo, trabalho e educação, país onde, guardadas as suas peculiaridades
históricas, econômicas e sócio-culturais, também observamos fenômenos similares ao europeu,
ainda que notadamente mais identificados com o modelo pragmático norte-americano de ideal
pedagógico e desenvolvimentista.

1. A EVOLUÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL E DO TRABALHO ASSALARIADO: DO ESTADO


TUTELAR AO ESTADO SOCIAL DE DIREITO

A pobreza vestia apenas um velho saco estreito, miseravelmente remendado; era,


ao mesmo tempo, seu casaco e seu saião; era só o que tinha para se cobrir; por
isso, tremia freqüentemente. Um pouco afastada dos outros, estava agachada e
encolhida como um cachorro triste e envergonhado. Maldita a hora em que o
pobre foi concebido, porque ele nunca será bem alimentado, nem bem vestido,
nem bem calçado! Também não será amado, nem educado.

Guillaume de Lorris, Roman de la Rose (1237)

1.1. Trabalho, expropriação e indigência

Karl Marx, ao investigar os fatos e fatores que estiveram na origem do


estabelecimento da nova ordem produtiva e social capitalista nos estertores do modo feudal de
produção, referiu-se aos mesmos da seguinte forma:

A estrutura econômica da sociedade capitalista proveio da estrutura econômica da sociedade


feudal. A decomposição desta liberou os elementos daquela.
O produtor direto, o trabalhador, somente pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de
estar vinculado à gleba e de ser servo ou dependente de outra pessoa. Para tornar-se livre
vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar onde houver
mercado para ela, ele precisava ainda ter escapado do domínio das corporações, de seus
regulamentos para aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Assim, o
movimento histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados, aparece,
por um lado, como sua libertação da servidão e da coação corporativa; e esse aspecto é o
único que existe para nossos escribas burgueses da História. Por outro lado, porém, esses
recém-libertados só se tornam vendedores de si mesmos depois que todos os seus meios de
produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais,
lhes foram roubados. E a história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da
humanidade com traços de sangue e fogo (Marx, 1988d, p. 252).

O período de mudanças mais radicais para o alvorecer da nova era do capitalismo,


diz Marx em “A assim chamada acumulação primitiva”, ocorreu, sobretudo, a partir do século
83

XVI, e teve, como condição, a abolição da forma de servidão feudal e a decadência de cidades
até então soberanas:

O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os revolucionamentos que
servem de alavanca à classe capitalista em formação; sobretudo, porém, todos os momentos
em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de
subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres como os pássaros. A
expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o
processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias
fases em seqüência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas a Inglaterra, que, por
isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica (Marx, 1988d, p. 253).

Robert Castel (2001), em sua obra As metamorfoses da questão social, procurou


investigar, a exemplo de Marx, os impactos das mudanças sociais observadas, sobretudo na
Inglaterra e França (a primeira representando o berço dos processos de formação da propriedade
capitalista e dos trabalhadores “expropriados”; a segunda representando pari passu as condições
diferenciadas da Europa continental, ainda em processo de desconversão do feudalismo), a partir
de como estes Estados e o capitalismo pungente lidaram com a questão do pauperismo social e
dele dependeram para se estabelecerem como sistemas institucionalizados. Não por acaso, em
sua longa investigação Castel se depara com uma variável contínua deflagrada ainda no século
XIV, mas que acompanha a evolução do modo de produção e organização social burguês até
nossos dias, isto é, a formação de uma categoria social dependente do regime assalariado. Daí o
subtítulo de seu estudo: “uma crônica do salário”. E nos diz ele:

Não penso aqui o trabalho enquanto relação técnica de produção, mas como um suporte
privilegiado de inscrição [de indivíduos e grupos] na estrutura social. Existe, de fato, como
se verificará a longo prazo, uma forte correlação entre o lugar ocupado na divisão social do
trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de proteção que “cobrem”
um indivíduo diante dos acasos da existência. Donde a possibilidade de construir o que
chamarei, metaforicamente, de “zonas” de coesão social. Assim, a associação trabalho
estável-inserção relacional sólida, caracteriza uma área de integração. Inversamente, a
ausência de participação em qualquer atividade produtiva e o isolamento relacional
conjugam seus efeitos negativos para produzir a exclusão, ou melhor, como vou tentar
mostrar, a desfiliação. A vulnerabilidade social é uma zona intermediária, instável, que
conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade. (Castel,
2001, p.24 – itálicos nossos).

Castel realiza uma retrospectiva documental, com sólida riqueza de dados, de toda a
dramática ascensão do modo capitalista apoiado sobre uma força de trabalho inicialmente
cooptada sob a égide de uma relação servil e tutelar para a produção (portanto, ainda própria ao
modo feudal de dependência) até o advento do regime assalariado e contratual de trabalho,
propriamente dito. Isto nos permite incorporar ao clássico inventário de Karl Marx, um
continuum de fatos e processos que certamente enriquecem nossos conhecimentos sobre a
84

evolução das questões sociais que envolveram a consolidação da sociedade industrial capitalista
e da própria classe trabalhadora, desde os agrupamentos sociais pré-capitalistas.
Segundo o autor, “[...] no Ocidente cristão essa estrutura fechada constituiu a
organização social dominante da época feudal, marcada pela sacralização do passado, pela
preponderância da linhagem e dos laços de sangue, pelo apego a relações permanentes de
dependência e de interdependência enraizadas em comunidades territoriais restritas.” (Castel,
2001, p. 49). Assim, cada indivíduo encontra-se no interior de uma rede complexa de trocas em
função de uma estrutura de duplo sentido: a dependência em relação ao senhor eclesiástico ou
laico e a inscrição no sistema das solidariedades e das coerções da linhagem e da vizinhança.

Porém, mesmo nas sociedades mais reguladas pelas interdependências tradicionais, podem
ocorrer dificuldades nos processos de integração primária. Por exemplo, a situação de um
órfão rompe o tecido de assistência familiar, uma enfermidade ou um acidente pode tornar o
indivíduo provisória ou definitivamente incapaz de manter seu lugar no sistema regulador de
trocas que asseguram o equilíbrio do grupo ao qual pertence, ou, ainda, a indigência
completa pode colocá-lo numa situação de dependência sem interdependência.
A desfiliação, tal como a entendo, é, num primeiro sentido, uma ruptura desse tipo em
relação às redes de integração primária; um primeiro desatrelamento com respeito às
regulações dadas a partir do encaixe na família, na linhagem, no sistema de
interdependências fundadas sobre o pertencimento comunitário. Há risco de desfiliação
quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir de sua
inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é insuficiente para
reproduzir sua existência e para assegurar sua proteção. (Castel, 2001, p. 49-51).

A passagem supra é de grande importância para se compreender o caráter de


sociabilidade então existente, e o conceito de desfiliação a que Castel faz uma primeira
referência, e que nos será caro ao final de seu raciocínio, ao atingirmos as sociedades capitalistas
contemporâneas. E complementa essa primeira descrição com o que se segue:

Entretanto, as comunidades muito estruturadas podem, sob certas condições, remediar de um


modo incompleto os fracassados da sociabilidade primária, mobilizando as potencialidades
desta mesma sociabilidade. Agregam de novo os indivíduos desestabilizados, solicitando os
recursos econômicos e relacionais do meio familiar e/ou social. Assim, o órfão será
assumido pela família ampliada, o inválido ou o indigente terão um mínimo de solidariedade
“natural” na comunidade de aldeia.
Desse modo foi possível falar, metaforicamente pelo menos, de “família-providência”. Além
da família, a comunidade territorial pode, mesmo na ausência de instituições especializadas,
assegurar algumas regulações coletivas, como se deu na Idade Média quanto à utilização das
terras comunais, à divisão da corvéia e de certas sujeições feudais. Também pode cuidar para
que os membros mais carentes da comunidade se beneficiem de uma assistência mínima, na
medida em que seu abandono total abalaria a coesão do grupo. (Castel, 2001, p. 51).

Tais comunidades tendiam a funcionar, portanto, como “sistemas auto-regulados”,


homeostáticos, que recompunham seu equilíbrio mobilizando seus próprios recursos. A
integração ou “inscrição” na comunidade se processa sem alterar-se o quadro de referência da
própria comunidade ou grupo, e se dá sobre uma “base territorial” e no quadro de
85

interdependências fornecidas por tais relações de inscrições (forma de reconhecimento da


filiação dos indivíduos na comunidade).

Quando surge uma dificuldade no sistema das proteções mais próximas, a sociabilidade
primária é menos rompida do que distendida, e o sucesso das operações de recuperação
depende de sua elasticidade, que não é infinita. Podem ocorrer demissões, abandonos,
rejeições. As redes primárias de solidariedade podem ser desequilibradas por tais
sobrecargas e romper-se. Essa assistência também pode ter um preço muito alto:
superexploração, pequenas perseguições ou um desprezo pesado. A vida do idiota da aldeia,
por exemplo, tolerada e em parte sustentada por sua comunidade, nem por isso é um paraíso.
(Castel, 2001, p. 51-52).

Assim, os documentos e testemunhos de etnólogos sobre a presença, nessas


sociedades, de indivíduos em situação perturbadora, em geral reconhecem o costume comum do
isolamento social. Segundo Castel, “essa estrutura social já conhece tal perfil de indivíduos que
serão qualificados como supranumerários. Mas não pode preparar-lhes nenhum tratamento.”
(Castel, 2001, idem). E, citando Georges Duby a esse respeito:

Todos os documentos da época (polípticos, censuários, costumeiros) descrevem uma


sociedade camponesa certamente, e muito hierarquizada, mas uma sociedade enquadrada,
assegurada, provida. Disso resulta um sentimento de segurança econômica” (G. Duby, “Les
pauvres des campagnes dans l’Occident médiéval juqu’au XIIIe siècle”. Revue d’histoire de
l’Église en France, t. LII, 1966, p. 25 - citado por Castel, 2001, p. 53).

Evidentemente, trata-se de comunidades que convivem com a miséria, períodos de


fome, sujeitas às intempéries e conseqüências de guerras, agressões e saques. A instabilidade
geralmente vem, portanto, de fora. Entretanto, seu metabolismo social intrínseco é relativamente
estável e seguro. Esta estabilidade característica às comunidades camponesas é o que nos
permitirá compreender, a seu turno, como nessas sociedades a pobreza pudesse ser imensa e
generalizada e, contudo, insuficiente para a criação do que Castel denomina “questão social”. Ou
seja, os mais carentes não representavam um fator de desestabilização interna a essas formações
sociais, que controlavam os riscos de desfiliação maciça graças à rigidez de sua própria estrutura.
A precariedade existencial é condição de todos e não rompe, portanto, o sentimento de
pertencimento comunitário. Eram sociedades cristalizadas e que dificilmente aceitavam a
novidade e a mobilidade.
Contudo, isto de modo algum implica a inexistência de andarilhos e indivíduos
isolados neste cenário histórico. Estes são comuns, conquanto guardem consigo a condição de
seres à parte, não pertencentes aos agrupamentos sociais domesticados. Fazem parte de um
mundo onde o homem é raro e os núcleos de moradia são rarefeitos, deixando amplos espaços às
andanças:

É o universo da floresta e das charnecas, freqüentado pelo eremita, pelo cavaleiro errante,
pelos carvoeiros, pelos salteadores, mas também pelas forças mágicas e maléficas. Mas estão
86

fora das fronteiras e, falando em termos exatos, excluídos do mundo organizado. A


representação do vagabundo será sobredeterminada pela reminiscência dessas figuras
ameaçadoras. Entretanto, como se verá, o vagabundo representa um outro tipo de
estrangeiro. Tornou-se outro, desfiliado em relação a uma ordem social a que havia
pertencido anteriormente. Em sentido estrito, a figura do vagabundo só pode aparecer em um
mundo estruturado do qual se desatrelou. [...] Religiosos e estudantes podem igualmente
encontrar-se em situação, provisória ou definitiva, de mobilidade geográfica e social. Porém,
ele, o vagabundo, pertence à massa dos “pobres” que só podem viver do trabalho de seus
braços. Seu destino também será específico: está submetido à dupla coerção de ter que
trabalhar e de não o poder fazer. (Castel, 2001, p. 56).

Esse modelo comunitário de rara mobilidade e auto-regulado que Castel chama de


“sociedades sem social”41 predominou durante a maior parte da Idade Média e somente à medida
da “desconversão” do modelo feudal é que teria surgido a problematização moderna do social.
Assim, este primeiro modelo de sociedades que “fazem economia do social permite, ao
contrário, caracterizar um primeiro tipo de intervenções especiais constitutivas do social-
assistencial. Seja porque os laços da sociabilidade primária se tornam mais frouxos, seja porque
a estrutura da sociedade se torna mais complexa, a ponto de impossibilitar esse tipo de resposta
global e pouco diferenciada, o atendimento aos carentes constitui objeto de práticas
especializadas.” (Castel, 2001, p. 56-57). Enfim, o surgimento de tais instituições sociais
especializadas (hospitais, orfanatos, a distribuição organizada de suprimentos e esmolas etc.)
torna-se decorrência de problemas que em sociedades menos diferenciadas eram de fato
assumidos, sem mediações, pela própria comunidade. A institucionalização do social-assistencial
implica, segundo Castel, a presença de certas características formais que ele destaca:
1) São entidades sociais que constituem um conjunto de práticas com função
protetora e integradora (e, mas tarde, preventiva):

Entendo, quanto a isso, que o social-assistencial resulta de uma intervenção da sociedade


sobre si mesma, diferentemente das instituições que existem em nome da tradição e do
costume. A esse respeito seria possível falar, pelo menos analogamente, de sociabilidade
secundária, pois se trata de sistemas relacionais deslocados em relação aos grupos de
pertencimento familiar, de vizinhança, de trabalho. A partir desse desatrelamento, vão se
desenvolver montagens cada vez mais complexas que originam a estruturas de atendimento
assistencial cada vez mais sofisticadas. (Castel, 2001, p. 57).

2) Tais práticas apresentam ao menos esboços de especialização, núcleos de uma


profissionalização futura:

Não é qualquer um, de qualquer modo, em qualquer lugar, que tem a responsabilidade desse
tipo de problemas mas, sim, indivíduos ou grupos mandatados, ao menos parcialmente, para
fazê-lo e identificados como tais. Por exemplo, o pároco, o fabriqueiro, um oficial
municipal... já são, à sua maneira, “funcionários” do social à medida que seu mandato é, ao
menos em parte, assegurar esse tipo de atividade especial. A delimitação de uma esfera de

41
Na acepção do autor, “sociedades sem social” na medida em que são sociedades humanas que não dispõem ou
prescindem de mecanismos institucionalizados, especializados quanto à resolução de questões globais.
87

intervenção social suscita, assim, a emergência de um pessoal específico para


instrumentalizá-la. É o esboço da profissionalização do setor social” (Castel, 2001, p. 58).

3) Há a presença de uma tecnização mínima em tais funções:

Mesmo na ausência de uma especialização exclusiva e, a fortiori, de uma formação


profissional específica, o mandatado é obrigado a avaliar as situações em relação às quais
deve intervir ou não, a selecionar os que merecem auxílio, a definir categorias, ainda que
grosseiras, para orientação de sua ação. [...] Não há prática social sem um núcleo, ainda que
mínimo, de conhecimentos sobre as populações concernidas e sobre os modos de assisti-las
ou, ao contrário, de excluí-las do atendimento. (Castel, 2001, idem)

4) A localização dessas práticas apresenta-se de imediato e faz surgir em seguida


uma clivagem entre práticas “intra-institucionais” e “extra-institucionais”, e por fim, a
demarcação de lugares específicos a seus fins (prédios públicos, oficinas, orfanatos, igrejas,
casas de misericórdia, locais de detenção e confinamento etc.):

A razão da intervenção, como já foi dito, é uma dificuldade na sociabilidade primária. É


tentador, e geralmente mais econômico em todos os sentidos da palavra, reparar no próprio
local; por exemplo, prestar atendimento a domicílio. Mas a natureza do problema pode
impedir isso, e há, então, desterritorialização-reterritorialização, quer dizer, tratamento num
local institucional especializado (por exemplo, tratar no hospital). Essa tensão representa
uma linha de força importante para o desenvolvimento do assistencial-social e já é
identificada através das formas muito rudimentares de organização dos socorros. (Castel,
2001, p. 59)

5) Dentre as populações sem recursos, algumas serão rejeitadas e outras atendidas:

Desenham-se dois critérios: o do pertencimento ao comunitário – a assistência se vincula, de


preferência, aos membros do grupo e rejeita os estrangeiros [...]; o da inaptidão para o
trabalho – a assistência acolhe preferencialmente os que são carentes, porque, como o órfão
sozinho ou o idoso impotente, são incapazes de suprir suas necessidade através do trabalho
(mas, também aqui, deve-se precisar o critério através da análise das práticas e das
regulamentações que o definem). Essa distinção [...] circunscreve o campo do social-
assistencial em sua diferença quanto às outras formas de intervenção social, voltadas para às
populações capazes de trabalhar. (Castel, 2001, idem).

Castel nos lembra, em seguida, que a Europa Medieval fora palco de desastres
naturais, sobretudo ligados a epidemias, que desmantelaram, sobretudo do século XIII ao XIV, o
equilíbrio societário até então existente. Somente a Grande Peste que assolou o continente por
volta de 1350, dizimou cerca de 1/3 da população européia (Castel, 2001, p. 43). Este fato teria
contribuído, em grande medida, para o desequilíbrio da rede de sociabilidade primária, que se
aplica, como vimos, às relações de dependência feudal e interdependência entre pares das aldeias
de então, sem, contudo, dependerem ainda de instituições específicas. O resultado mais imediato
de um tal fenômeno, desconsiderando-se suas conseqüências sanitárias e religiosas, fora a
escassez de trabalhadores válidos, de alimentos e o aumento da mobilidade social. É a partir daí
que pelo menos duas novas categorias (ou figuras sociais) passam a proliferar e se tornam um
88

verdadeiro flagelo entre ingleses e europeus continentais. Trata-se de um aumento das figuras do
indigente e do vagabundo.
Obviamente, a miserabilidade do ocidente cristão não é novidade até então e, para
além de se tratar de uma condição sócio-econômica, é, também, uma questão teológica, em que o
martírio do corpo e da alma é exaltado como caminho para superar-se as tentações materiais e
assegurar-se um lugar digno post-mortem. A concepção cristã medieval é sem dúvida
responsável por uma concepção sócio-antropológica da assistência, mas opera também sobre a
distinção entre “bons” e “maus” pobres. Embora os preceitos cristãos eclesiásticos valorizem a
sublimação das necessidades materiais e uma relação asceta com as necessidades do corpo com
vistas ao conforto no porvir espiritual, tais valores implicam também em classificações
discriminatórias entre os dignos e os indignos de comiseração. Logo, de caridade e assistência. A
miséria pode ocorrer por vícios e, o principal, pela preguiça. Assim, em toda a sociedade “o
pobre deve demonstrar muita humildade e exibir provas convincentes de seu infortúnio para não
ser suspeito de ser um ‘mau pobre’” (Castel, 2001, p. 84). Este processo de discriminação,
entretanto, não guarda seus fundamentos apenas na concepção cristã de pobreza, já que:

Por outro lado, os progressos da urbanização, o fortalecimento de um poder central, o


refinamento dos dispositivos institucionais e das técnicas de intervenção introduzem mais do
que nuanças nesses desenvolvimentos. Assim, a sistematização da organização dos auxílios a
partir de uma base municipal no início do século XVI, o intervencionismo crescente do
poder da realeza diante da mendicância, esta ‘lepra do reino’, da qual se suspeita, cada vez
mais, de que seja suscetível de criar um problema social grave, marcaram etapas do social-
assistencial. Apesar disso, o conjunto dessas práticas continua dominado por dois vetores
fundamentais: de um lado, a relação de proximidade entre os que assistem e os que são
assistidos; de outro, a incapacidade para trabalhar. (Castel, 2001, p. 85).

Estar em situação de indigência é o efeito de uma primeira ruptura em relação às


solidariedades mais imediatas e espontâneas que a família, a vizinhança, os grupos primários de
pertencimento propiciam. A assistência surge como imperativo para se tentar atenuar as
privações, combatendo o risco permanente de desfiliação e procurando reativar essa espécie de
“contrato social” implícito que mantém unidos os membros de uma comunidade a partir de seu
pertencimento territorial. Evidentemente, tais ações, crescentemente estruturadas
institucionalmente, visam também a evitar o flagelo de uma mobilidade indigente totalmente
indesejável e impertinente.

Tais práticas formam o núcleo do complexo tutelar cuja jurisdição, como se verá, ultrapassa
a assistência, visto que tenta, também, regular as relações de trabalho, e que ultrapassa
igualmente o quadro de sociedades pré-industriais, visto que inspira as diferentes formas de
paternalismo filantrópico que vão atravessar o século XIX. (Castel, 2001, p. 86).
89

Mas o critério de aptidão ou não para ao trabalho, daqui por diante, tornar-se-á cada
vez mais determinante para a classificação de auxílios. São atendidos, sobretudo, os que não
podem, por si mesmos, suprir suas necessidades, por serem incapazes de trabalhar:

A desvantagem, em sentido amplo (enfermidade, doença, mas também a velhice, infância


abandonada, viuvez com pesadas cargas familiares etc.), pode remeter a uma “causa”
familiar ou social, a uma ruptura acidental das redes primárias de assistência, assim como a
uma deficiência física ou psíquica. Mas, além dessas ocorrências, um critério discriminante
essencial para ser assistido é, realmente, o reconhecimento de uma incapacidade para
trabalhar. (Castel, 2001, idem).

Por decorrência, um grande número de estratagemas são criados pelos mendicantes


com a finalidade de obtenção de assistência, o que envolve uma série de simulações de invalidez
e o surgimento de falsos cegos, falsos estropiados, falsos feridos, falsos deficientes, assim como
estratégias para se despertar piedade, por vezes levadas ao extremo de mutilações infligidas
sobre si mesmos ou a crianças. Assim, simular a inaptidão para o trabalho torna-se o objetivo por
excelência dos que passam a ser denominados “falsos indigentes” em contraposição à categoria
dos “indigentes inválidos” e, por fim, dos “indigentes válidos” (que podem trabalhar). Outra
condição de precariedade também é aceita como passível dos auxílios e diz respeito ao chamados
“pobres envergonhados”, formados por pessoas que outrora receberam boa educação ou lugar de
prestígio, mas caíram em ruína. “Sua emergência está ligada ao desenvolvimento de uma
sociedade urbana que, aumentando a diferenciação e a estratificação sociais, acarreta também
uma mobilidade descendente.” Estes em geral receberão tratamento diferenciado, sendo
considerados honestos e de boa linhagem, e pelos quais a paróquia ou cidade se sente
especialmente responsável. E conclui Castel:

Tal benevolência para com os “pobres envergonhados” demonstra, em primeiro lugar, o


desprezo em que são tidos os trabalhos braçais: uma pessoa de condições, mesmo reduzida à
miséria, está dispensada de se entregar a essas tarefas degradantes. Confirma também a
violência negativa geralmente relacionada com a pobreza: o pobre “envergonhado” é
envergonhado por mostrar que está pobre, porque conservou sua dignidade e porque a
pobreza é indigna para um homem de qualidade. [...] Conhecidos e reconhecidos por terem
ocupado uma posição de prestígio, conservam um capital de respeitabilidade, cujos
dividendos recebem agora, sob a forma de auxílio. Esse forte coeficiente de participação
social chega a compensar a desvantagem paradoxal que representa, para ser ajudado, o fato
de poder trabalhar.
Essa aparente exceção à regra do trabalho não refuta, pois, sua importância. De um lado,
porque o pobre envergonhado não está dispensado da obrigação do trabalho enquanto tal,
mas, sim, de um trabalho servil que seria indigno de sua condição: a obrigação do trabalho
braçal só pesa sobre a plebe. (Castel, 2001, p. 89-90).

Será por volta da metade do século XIV, entretanto, que a situação da mendicância,
dos indigentes, inaptos, carentes e dos indesejáveis de todos os tipos foge aos mecanismos de
assistência já operantes. Isto implica no surgimento de uma categoria cuja condição escapa ao
90

controle social, formada por indivíduos ocupam, em tal sociedade, a posição do que Castel
denomina supranumerários: “não têm nenhum lugar determinado na estrutura social nem em seu
sistema de distribuição das posições reconhecidas, nem sequer o que faz dos indigentes
assistidos uma clientela integrada. São os ancestrais dos supranumerários de hoje. Não por uma
identidade de condição, é claro, mas por uma homologia de posição.”42 (Castel, 2001, p. 98). O
que acontece, mediante tais fatos, na sociedade de meados do século XIV, é uma propensão à
mobilidade numa formação social que não estaria disposta a aceitá-la e que a ela se oporá por
todos os meios:
Essa comoção põe em primeiro plano um novo perfil de indigentes. Em 1349,
Eduardo III, rei da Inglaterra, promulga o decreto conhecido como o Estatuto dos Trabalhadores
(Statum serventibus, Statute of Labourers). Reproduzimos aqui suas principais disposições:

“Dado que uma parte importante da população, especialmente entre os trabalhadores


[workmen] e os serviçais [servants], foi, recentemente, vitima da peste, muitos, vendo a
necessidade em que se encontram os senhores e a grande penúria de serviçais, não querem
mais servir [to serve], a não ser que ganhem salários [wages] excessivos, e alguns preferem
mendigar na ociosidade a ganhar sua vida trabalhando. Nós, considerando os graves
inconvenientes que, a partir de agora, uma penúria desse tipo provoca, após deliberação e de
acordo com os nobres, os prelados e as pessoas instruídas que nos assistem, com seu consen-
timento, ordenamos:
Que cada súdito, homem ou mulher, de nosso reino da Inglaterra, qualquer que seja sua
condição, livre ou servil [bord], que seja válido, com menos de sessenta anos de idade, que não
viva do comércio [not living in merchandise] ou que não exerça ofício de artesão [craft], que
não possua bens dos quais possa viver, nem terras a cuja cultura possa dedicar-se, e que não
esteja a serviço de ninguém [not serving any other], se for requisitado para servir de um
modo que corresponda a seu estado, será obrigado a servir àquele que assim o tiver requisitado;

42
Mas não seriam estes os “socialmente excluídos” de hoje? Contudo, em relação ao tema muito em voga da
“exclusão”, Castel objeta: “Mas, se a ‘questão social’ já se apresenta antes de sua primeira formulação explícita no
século XIX, não volta também a se apresentar depois que a problemática comandada pelas peripécias da integração
da classe operária deixou de ser determinante? É verdade que essa seqüência, que se situa entre a primeira metade
do século XIX e os anos 60 do século XX, está em via de desaparecer. É verdade, também, que não há mais palavra
para dar conta da unidade da multiplicidade dos ‘problemas sociais’ que a substituíram — donde a moda da noção
de exclusão, cuja indiferenciação vem recobrir uma infinidade de situações infelizes sem tornar inteligível seu
pertencimento a um gênero comum. Realmente, que coisa partilham um homem que há muito está desempregado,
recolhido à esfera familiar, com mulher, apartamento e televisão, e o jovem cuja ocupação penosa é feita de
andanças sempre recomeçadas e de explosões de raiva abortadas? Eles não têm nem o mesmo passado, nem o
mesmo futuro, nem a mesma vivência, nem os mesmos valores. Não podem alimentar um projeto comum e não
parecem suscetíveis de superar sua angústia por meio de formas de organização coletiva. [...] São menos excluídos
do que abandonados, como se estivessem encalhados na margem, depois que a corrente das trocas produtivas se
desviou deles.”(itálicos nossos). Por esses e outros motivos, Castel prefere considerar que estaríamos diante de
“‘inúteis para o mundo’, pessoas e grupos que se tornaram supranumerários diante da atualização das competências
econômicas e sociais”. [...] “os supranumerários nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir
competências conversíveis em valores sociais. São supérfluos. [...] Assim, inauguram sem dúvida uma problemática
teórica e prática nova. Se, no sentido próprio do termo, não são mais atores porque não fazem nada de socialmente
útil, como poderiam existir socialmente?” (Castel, 2001, p. 32-33 – itálico no original). Assim sendo, Castel não
considera a noção de “exclusão social” suficiente para expressar o fenômeno que se abate nas sociedades atuais, pois
o problema não está no seu suposto antagônico, a “inclusão social”, já que simplesmente não há onde ou em quê
sejam requeridos ou incluídos. Por esse motivo são supranumerários, até mesmo em relação a um possível exército
de reserva, pois não se podem classificar sequer nesta categoria economicamente “justificável” do ponto de vista do
mercado.
91

e receberá, pelo lugar que será obrigado a ocupar, somente o pagamento em gêneros, alimento ou
salário que estava em uso durante o vigésimo ano de nosso reinado, ou durante um dos cinco ou
seis anos precedentes.
Que fique entendido que o senhor sempre será preferido a qualquer outro por seus próprios servos
e meeiros, de tal forma que estes sejam mantidos a seu serviço - mas que, entretanto, os senhores
não serão obrigados a conservá-los a seu serviço além do tempo necessário; e, se um homem
ou uma mulher, sendo assim requisitado para servir, não o fizer, este fato sendo atestado por dois
homens dignos de fé diante do xerife, do bailio, do senhor ou do preboste da cidade, ele ou ela
será imediatamente levado por esses, ou por um desses, à prisão mais próxima onde será
mantido sob rigorosa vigilância até que se tenha certeza de que servirá sob uma das formas
enunciadas acima.
Que, se um trabalhador ou serviçal deixar seu serviço antes do tempo requerido, será preso.
Que os antigos salários, sem nenhum acréscimo, serão dados aos trabalhadores.
Que, se o senhor de uma cidade ou de um domínio infringir de algum modo esta
disposição, pagará uma multa equivalente ao triplo da soma [dada].
Que, se um artesão [artificer] ou um operário receber um salário mais alto do que aquele que lhe
é devido, será preso.
Que os alimentos serão vendidos a preços razoáveis. Igualmente porque muitos mendigos
válidos [able-bodies beggars], quanto mais puderem viver de esmolas, recusam-se a trabalhar e
entregam-se à preguiça e ao vício e, às vezes, ao roubo ou a outras abominações, ninguém
poderá, sob pena de sanções, dar nada a título de piedade ou de esmola, àqueles que podem trabalhar
ou encorajá-los em suas inclinações [desires], de tal forma que sejam obrigados a trabalhar
para viver.” (J.-C. Ribton-Turner, History of Vagrants and Vagrancy, and Beggars and
Begging - citado por Castel, 2001, p. 98).

Tomamos a liberdade de reproduzir todo o conteúdo mencionado por Castel, haja


vista sua significância para o entendimento das condições sociais em que se promulga tal edito.
Além disso, e a exemplo das demais leis que se seguirão com o mesmo propósito, o decreto em
questão é um marco que registra o primeiro ato de um Estado mediante as profundas e
anacrônicas mudanças sociais que se instalariam, daí por diante, permanentemente entre os
europeus. Uma era em que, verdadeiramente, a sociabilidade implica ou transmuta-se,
concretamente, em uma “questão social” que reclama não só por novas institucionalizações
como também por interferências legais. Por fim, estas disposições representam, segundo Castel,
“um verdadeiro código geral do trabalho” para todos os que estão submetidos à condição de
ganhar sua vida trabalhando. Além disso, segundo o autor, o referido código...

Funciona a partir de dois registros e traça uma linha divisória entre dois tipos de
trabalhadores. A todos os que estão inscritos no sistema instituído dos ofícios de artesão ou
que servem a um senhor, domésticos, empregados de casa, pessoal dos domínios
eclesiásticos e laicos, ou que, de condição livre ou servil, são ligados a uma terra de onde
retiram sua subsistência sob a dependência de um proprietário, o decreto se dirige em caráter
preventivo: que permaneçam fixos em seu local de trabalho e que se contentem com sua
condição e com a retribuição a ela vinculada. Correlativamente, o decreto condena o fluxo,
em via de formação, dos indivíduos “libertados” ou que se libertam das regulações
tradicionais, simultaneamente os que estão sem emprego e os que se situam em posição de
mobilidade quanto ao emprego. O decreto responde à constatação de que um certo tipo de
populações não encastradas nas estruturas da divisão do trabalho constitui, de agora em
92

diante, um problema. Ao mesmo tempo, impõe um solução: erradicar a mobilidade, bloquear


seu fluxo na fonte e reinscrever à força, em estruturas fixas, todos os que desatrelaram.
(Castel, 2001, p. 99).

Acrescente-se ainda que o código proíbe a possibilidade tradicional de se recorrer à


assistência para sobreviver, caso os indivíduos possuam condições para trabalhar. Logo, ele é
formulado em oposição explicita aos códigos da assistência primária. Está constituída, dessa
forma, a primeira grande questão social do ocidente, e embora já haja elementos suficientes para
se falar em organizações e leis institucionais criadas a partir de seu surgimento, estas instâncias
não estarão destinadas à sua equação e resolução, funcionando, antes, como mecanismos de
contenção social.
O edito de Eduardo III, por exemplo, será reiterado diversas vezes até o final do
século XIV com esta finalidade. Assim, por exemplo, as leis se tornam cada vez mais austeras
quando Ricardo II acrescenta que os empregados (servants) que deixem seus postos devem estar
munidos de atestados emitidos pela autoridade de seu distrito, sob pena de, caso encontrados
vagando (wandering) sem os mesmos, serem presos até que retornem a seus serviços. Outra
cláusula proibia que trabalhadores com mais de doze anos vinculados à agricultura mudassem de
trabalho ou aprendizagem. Por fim, todo e qualquer mendigo válido é igualado aos vagabundos
que circulam sem atestado de permissão, estando sujeitos a serem presos. Mendigos inválidos,
por sua vez, são tolerados desde que permaneçam onde estão e desde que os habitantes locais os
aceitem; do contrário, deveriam ser deslocados até cidades com asilos ou para seus locais de
nascimento, onde deveriam permanecer até a morte.
Assim, leis de mesma natureza serão disseminadas por toda a Europa continental
com finalidades idênticas: conter a mobilidade e obrigar a todos os que se encontrem em situação
de indigência a se submeterem a uma atividade útil, ou sofrerem sanções por vezes insuportáveis
ou mesmo tão extremas como a pena capital. Esta última viria a ser decretada, como último
lenitivo quando, por exemplo, na França de 1556, passa-se a reconhecer a pouca validade das
medidas de banimento até então em prática:

O banimento representa o desaparecimento do vagabundo no plano da fantasia, mas não o


realiza. A execução da pena capital, em contrapartida, realiza em ato a morte social que o
banimento já constitui. A condenação desse parasita à morte representa a verdadeira solução
final par a questão da vagabundagem. Foi efetivamente aplicada aos vagabundos. Na França,
a declaração de Henrique II, de 18 de abril de 1556 [...], manda que sejam “levados à prisão
do Châtelet para, pelo dito tenente encarregado de crimes e oficiais do Châtelet, serem
condenados à pena de morte se tiverem infringido nossa presente ordem e escrito, sobre esse
fato” (Castel, 2001, p. 122).

Esta sentença, sem direito a recursos, era de aplicação imediata. A pena de morte
será o núcleo resistente da “legislação sanguinária” aplicada contra a vagabundagem no século
93

XVI na Inglaterra. O Conselho do Rei era encarregado de nomear funcionários especializados


em caçar os vagabundos e que dispunham do direito de mandar enforcá-los. Assim, cerca de
12.000 vagabundos teriam sido enforcados sob o reinado de Henrique VIII, e 400 ao ano durante
o reinado de Elisabeth. (Castel, 2001, p.124).
Outras penas consistiam em se utilizar os vagabundos presos em trabalhos públicos,
como desentupir fossas ou consertar fortificações na França, desde 1367, “acorrentados dois a
dois” conforme a determinação de Francisco I, de 1516, ou ainda serem enviados para servir nas
galeras, prática iniciada por Jacques Coeur para atender a suas empresas. Por fim, a deportação
para as colônias européias pelo mundo, para a execução de trabalhos forçados, data de 1719:

Mas a jurisdição dos prebostes, que recebiam um prêmio por cada prisão, aplicou a medida
com tal zelo, que esta suscitou um descontentamento popular intenso e foi revogada em julho
de 1722. Porém, continuou sendo uma referência freqüente até o fim do Antigo Regime para
numerosos “fazedores de projetos”, preocupados em “purgar o reino da mendicância”,
tornando os vagabundos “úteis ao Estado”. O problema nunca foi resolvido com clareza,
porque a deportação enfrentou também a dupla hostilidade dos partidários do mercantilismo
(Richelieu era um opositor), que temiam ver o “reino se despovoar”, e dos devotos, chocados
pelo fato de que a “escória do povo” fizesse o papel de propagadores da fé nas colônias.
(Castel, 2001, p.125).

As sociedades doravante estarão não só “cadastradas” como inapelavelmente


policiadas e governadas. É o processo de desconversão43 das sociedades feudais que está em
andamento, ainda que elas resistam ao recorrerem à manutenção da imobilidade e do servilismo.
Situação paradoxal diante das mudanças expressivas no modo de governabilidade, especialmente
na esfera da organização do trabalho.
Mediante as crescentes dificuldades das contenções e encaminhamentos dados à
vagabundagem, entretanto, entre os séculos XVII e XVIII a indigência passa também a sofrer
com reclusões em massa em prédios denominados “celeiros” para a execução de atividades
supostamente oficinais e ocupacionais. Inúmeras instituições fechadas são criadas, onde se
amontoam desde de vagabundos, indigentes, inválidos, criminosos e loucos:

Desse modo, o antigo Regime, em via de se acabar, é ainda caracterizado por um intensa
caça aos vagabundos e aos mendigos válidos. A jurisdição dos prebostes é motivada por um
prêmio de três libras para cada captura. Necker estima em 50.000 o número de prisões em
1767. Entre 1768 e 1772, 111.836 pessoas “entraram nos depósitos”, contra 1.132
condenações às galeras. São colocados em prédios insalubres, sem higiene nem cuidados
médicos. A mortalidade nesses locais é espantosa: 21.339 mortes durante os mesmos quatro
anos 1768-1772, É claro que, como no hospital geral, o trabalho é uma ficção nesses
morredouros. (Castel, 2001, p. 127).

43
Castel enfatiza sua preferência pelo termo “desconversão” em relação a outros, como “decomposição”
considerado exagerado já que o suporte da sociedade não teria ruído, ou “crise”, considerado muito vago (Castel,
2001, p. 109).
94

Na Inglaterra, desde um decreto real de 1547, há o mais radical tratamento para que
os vagabundos trabalhem. Em sendo essas pessoas consideradas ociosas ou inúteis da
comunidade e inimigas da coisa pública, Eduardo VI ordenou que se prendesse qualquer pessoa
que, sem meios de subsistência, permanecesse sem atividade por mais de três dias. Os “bons
cidadãos” eram convidados a levarem esses indivíduos à presença de juízes para serem marcados
com ferro em brasa com a letra V na testa. Após isso, o apresentador (denunciante) apossava-se
de tal pessoa tendo-a por escrava durante dois anos seguidos:

Em pleno Renascimento, a legislação sobre a vagabundagem reinstaura, assim, a escravidão


no reino da Inglaterra. Passível de ser condenado à talha da corvéia, o vagabundo pode ser
chicoteado, acorrentado, preso, alugado por seu proprietário e, no caso de morte deste, ser
transmitido como um bem aos herdeiros. Se a vítima fugir uma primeira vez, a pena será
transformada em escravidão para o resto da vida e, se houver a segundo tentativa de fuga, em
pena de morte. (Castel, 2001, p. 128).

1.2. A constituição do proletariado e do Estado “modernos”

A questão que se nos apresenta, após esse retrospecto histórico, passa a ser, agora, de
caráter sociológico. Ela se resume no seguinte: quem são, de fato, os vagabundos que proliferam
em toda a Europa ocidental nesse período? (lembrando que o leste europeu, por motivos variados
que não poderemos tratar aqui, iria manter vivos a estrutura e funcionamento tipicamente feudal
até a transição do século XIX para o século XX). Assim, Castel apresenta um registro do perfil
dos indivíduos enviados ao depósito de mendicância de Soissons, que nos é bastante revelador:

Presume-se que os depósitos, como já foi dito, devam receber exclusivamente os vagabundos
e os assimilados (mendigos válidos). O de Soissons, à véspera da Revolução Francesa, tem
854 internados. Entre eles, 208 indivíduos que o diretor classifica como “muito perigosos”,
“flagelos da sociedade”, a saber, 28 vagabundos “acabados” e 32 vagabundos “sem asilo”,
cerca de 50 loucos e loucas, 20 detidos por ordem do rei, 32 militares “sem asilo ou
desertores”. Cerca de 60 “verdadeiros” vagabundos, portanto, segundo a representação da
época. Porém, sobretudo dois grandes grupos constituem mais de dois terços dos efetivos do
depósito: 256 “trabalhadores braçais”, “exceto um notário”, e 294 “trabalhadores rurais sem
recursos”. A grande maioria dos albergados do depósito é então composta, paritariamente,
por representantes de um subproletariado urbano e rural. Esses operários estão, sem
nenhuma dúvida, fora do trabalho. Serão, por isso, mendigos e vagabundos “profissionais”?
O mais provável é que a maior parte deles represente o que hoje chamaríamos de
desempregados subqualificados em busca, de modo mais ou menos convincente, de um
emprego. É claro que, para falar de desemprego stricto sensu, será preciso esperar que
estejam reunidas as condições constitutivas da relação salarial moderna, no início do século
XX. No entanto, o fato é que já existem desde antes [...] situações de não-ocupação
resultantes de uma organização do sistema produtivo baseada na atribuição do trabalho e não
na liberdade do trabalho. (Castel, 2001, p. 129).
95

Evidentemente, podemos questionar a comparação entre inserção no sistema


produtivo de Castel, baseada na atribuição compulsória do trabalho ao final do Ancien Regime e
uma liberdade para o trabalho nas condições do século XX, o que implica numa visão
eminentemente progressista da história até o regime assalariado do Estado de Direito burguês,
sem que se estabeleça a devida crítica à concepção de liberdade para ocupar-se postos de
trabalho da qual os trabalhadores do século XX passariam a usufruir, ao que ele fará referência
adiante, mas não com a devida profundidade. Temos motivos suficientes para crer que essa
liberdade, se existente, só pode ser atribuída aos empregadores e teríamos que retomar a falsa
discussão da igualdade entre trabalhadores e proprietários ao se defrontarem num suposto livre
mercado de trabalho. O autor reconhece a evidente falsa igualdade liberal, como veremos a
seguir; contudo, em sua tese o trabalho assalariado foi uma evolução das relações de trabalho, da
condição servil do Estado Tutelar para uma condição, embora desigual, amplamente favorável e
superior aos trabalhadores no Estado de Direito Social. Isso é particularmente verdadeiro se se
tomar como base a evolução da questão social tal como ele a apresenta, isto é, dentro de um
processo dramático e desumano, mas de aprimoramentos e conquistas paulatinas e regulares.
Dentro de uma tradição investigativa eminentemente foucaultiana e mesmo weberiana, Castel
não foge à regra de se evitar o questionamento axiológico das origens dos fatos, como por
exemplo, quanto ao problema histórico da divisão social de classes e do trabalho. Isso não deixa
de possibilitar ao leitor o acesso a elementos que permitam um entendimento crítico dos
acontecimentos. Mas tão pouco pretende oferecer elementos suficientes a uma teorização acerca
da realidade concreta relatada. Sua opção metodológica se reflete, sobretudo, em suas opiniões
geralmente pontuais e sociologicamente bastante localizadas nos fenômenos em si.
Mas sua contribuição é inegável e significativa quanto à constatação do
aparecimento e instalação de toda uma questão social a partir da necessidade vital de inserção no
mundo do trabalho assalariado. Portanto, quanto à nossa questão levantada, e conforme o que
nos revelam os dados históricos que Castel nos fornece, a grande maioria dos vagabundos que
proliferam na alta Idade Média são aqueles que já foram despojados ou descendem das
populações expropriadas de seus meios básicos e tradicionais de subsistência.
Nas zonas urbanas, já há toda uma diversificação de relações de trabalho, e é
crescente a opção pelo regime assalariado, ainda que seu núcleo mais estável fosse formado
pelos “companheiros dos ofícios”, que Castel classifica como uma espécie de “aristocracia
operária” por terem sido melhor preparados e serem especializados no que fazem. Essa elite,
contudo, vive sua decadência e já ocorre a situação dos mestres artesãos rebaixados ou
96

arruinados se verem obrigados a se submeterem à condição crescente de assalariados de


terceiros:

Esta involução para a condição de assalariado é geral nos ofícios, como no caso da
fabricação da lã ou da seda, para as quais o capitalismo mercantil dita sua lei mais facilmente
e mais cedo. Mas muitos outros artesãos independentes correm o mesmo risco em virtude da
freqüência das crises nesse tipo de sociedade. Porque as crises de subsistência das sociedades
pré-industriais repercutem sobre a produção artesanal. A “carestia” dos preços alimentares,
provocada por uma ou várias colheitas ruins, acarreta uma queda da demanda por produtos
“industriais”. A expansão do mercado nacional e internacional é outro fator de fragilização
da posição dos produtores diretos: suas reservas são, com muita freqüência, demasiado
fracas para amortecer as flutuações desses mercados. Apesar disso, o processo de
pauperização e de colocação sob tutela não desemboca numa condição salarial franca,
porque o que o artesão arruinado vende é a mercadoria que fabricou e não sua força de
trabalho. (Castel, 2001, p. 188).

Na França, em que diferentemente do que ocorre na Inglaterra, a industrialização


caminha a passos lentos e se convive, ainda, com um campesinato não expropriado de suas terras
e meios de subsistência, os esboços de sua “proto-indústria”, concentrações industriais, minas,
forjas, fábricas de papel etc., em sendo em geral implantada no campo, cria uma condição
ambígua de “camponeses-operários”. Em parte porque esse semi-proletariado continua com
fortes ligações com a terra, sobretudo na época de cultivo e colheitas. Em parte porque
simultaneamente se submetem a trabalhos nas fábricas crescentes.

Esta situação mista apresenta vantagens para o empregador: os salários podem ser
particularmente baixos, dado que o operário dispõe de rendas anexas. Também apresenta
inconvenientes, pois o operário-camponês é menos dependente da fábrica, pode ausentar-se,
seguir seu próprio ritmo de trabalho. A docilidade do operário às exigências da produção
industrial e sua fidelidade à fábrica só se imporão tardiamente, no século XIX. (Castel, 2001,
p.193).

Na Inglaterra, por sua vez o berço de um processo acelerado de industrialização,


observamos que a instituição da propriedade privada na forma de latifúndios impostos à força de
leis e de coerção, e onde pastagens e criação de ovelhas para o processamento de lã
verdadeiramente expropriam uma massa de camponeses sem precedentes desde o século XV,
articulam-se a um só tempo, a evasão rural e o favorecimento servil nas fábricas. Desde o
primeiro edito sobre a vagabundagem e a indigência, datado do século XIV, o reino assistiria, daí
por diante, à manutenção e renovação de leis exclusivamente destinadas aos pobres (as poor
laws, como se tornaram conhecidas), que desproveram seus recursos de subsistência e proteção
comunais e disponibilizaram às manufaturas uma população sem alternativas de sobrevivência,
senão pela servidão compulsória às fábricas nascentes. De um modo geral, após a revolução
industrial, a condição de assalariado é pensada espontaneamente a partir do modelo da
“liberdade” e do “contrato”. Mas, nos diz ainda Castel:
97

Ainda que se denuncie o caráter leonino do contrato e a ficção da liberdade de um


trabalhador que, com freqüência, é pressionado pela necessidade de vender sua força de
trabalho, admite-se que o mercado de trabalho põe em presença duas pessoas independentes,
do ponto de vista jurídico, e que a relação social, que estabelecem através dessa transação,
pode ser rompida por qualquer uma das partes. Essa concepção liberal da condição de
assalariado representa, no entanto, uma extraordinária revolução no que se refere às formas
que historicamente a precederam e que vão se perpetuar após sua abolição formal. Para
compreender o caráter tardio do advento de uma condição moderna de assalariado, os longos
tateamentos que a acompanharam e também as dificuldades que vai encontrar para se impor,
gostaríamos de sugerir que o estado de assalariado não nasceu da liberdade ou do contrato,
mas da tutela. (Castel, 2001, p. 198).

A tutela, termo deveras atenuante em relação à arbitrariedade que de fato


representou, legado direto do modo de relação senhorial com sua vassalagem, quando transferido
às relações produtivas industriais envolvendo, por um lado, não mais vassalos protegidos numa
relação de regulação e interdependência entre as partes (entre senhores e servos), diz respeito
agora a uma situação unilateral de domínio dos proprietários sobre os despossuídos. Os
proprietários das novas manufaturas urbanas contam não só com uma população totalmente à sua
disposição como também deliberadamente coagida a se submeter à sua guarda e determinações.
A coação dos miseráveis atingirá o ponto de impor aos mesmos, para além das obrigações
perante seus beneficiários, a condição de só poderem se ver livres de seus postos sob a emissão
de autorizações expressas, oficialmente reconhecidas, fornecidas pelo empregador. Em caso de
fuga, serão tratados como criminosos comuns, recolhidos às work-houses inglesas, “albergues”
ou depósitos de indigentes (independentemente de suas designações formais). Assim, as próprias
fábricas se revelam verdadeiros depósitos de contenção da indigência, sob a chancela da tutela,
da beneficência e da caridade.
Esta situação há de ser questionada por inúmeros humanistas e utópicos do trabalho,
sobretudo por aqueles que fomentam a causa liberal iluminista. Contudo, a defesa da libertação
de tais populações da coerção em nome da dignidade da livre opção ou liberdade filosófica de
escolha para todos os homens, não se dará por acaso. Se por um lado há que se sustentar o
discurso da liberdade e emancipação dos cidadãos que precisam viver de sua própria força de
trabalho, por outro a defesa dos direitos dos indivíduos criam um novo baluarte de argumentos
essencialmente conservadores da condição da pobreza e legitimação da mercantilização de seus
corpos pelo trabalho prestado a outrem. Isso implica uma mudança na própria concepção de
trabalho, uma vez que filósofos e economistas descobrem ser ele a própria fonte de toda riqueza
e prosperidade. E isso, como vimos, é essencialmente defendido por Adam Smith, o economista
do iluminismo escocês e britânico:

Adam Smith faz da quantidade do trabalho o fundamento do valor de troca de um produto,


sem chegar a dizer, como o fará Marx, que essa quantidade de trabalho constitui
verdadeiramente e exclusivamente o valor de todo produto. Mas é que — assim como Locke
98

se interessa menos pelo trabalho em si do que pelo fundamento da propriedade privada —


Smith quer fundar a existência de um mercado, permitindo a livre circulação das
mercadorias e a acumulação ilimitada das riquezas. Para constituir semelhante mercado, é
necessário que os produtos do trabalho aí sejam trocados em função de seu custo.
A troca promove então o justo equilíbrio dos interesses entre os parceiros, deixa de ser uma
troca desigual em que um deve levar a melhor sobre o outro. Mas com a condição de que
seja um mercado livre em que os produtos sejam trocados em função de seu valor-trabalho,
produzido, ele próprio, por um trabalho livre. (Castel, 2001, p. 231)

Se Adam Smith pretende fundar a economia política na liberdade de troca no


mercado, a realização dessa liberdade de troca supõe a liberdade do próprio trabalho e, portanto,
a liberalização do próprio trabalho operário. E dirá ele:

“A mais sagrada e a mais inviolável de todas as propriedades é a de sua própria atividade [do
trabalhador], porque está na força e na habilidade de suas mãos; e impedi-lo de empregar
esta força e esta habilidade da maneira que julgar mais conveniente, enquanto não prejudicar
ninguém, é uma violação manifesta dessa propriedade primitiva. É uma usurpação gritante
em relação à liberdade legítima, tanto do operário quanto dos que estariam dispostos a dar-
lhes trabalho.” (Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la richesse des
nations, p. 252 - citado por Castel, 2001, p. 232).

Desse modo, segundo Castel, a verdadeira descoberta que o século XVIII promove
não seria simplesmente a necessidade do trabalho, mas sim, a necessidade da liberdade de
trabalho, o que implicaria na destruição dos dois modos de organização do trabalho até então
dominantes, o trabalho regulado e o trabalho forçado. Daí o fato de o movimento iluminista se
contrapor às formas tutelares e de contenção do trabalho livre, ignorando ou dissimulando,
todavia, que essa liberdade para o trabalho pudesse ocultar uma relação de desigualdade entre
proprietários e trabalhadores, e dissimular uma estrutura que, por sua natureza de apropriação do
produto do trabalho com vistas à acumulação de riquezas (a crescente avidez por lucro), está
fundada na exploração dos despossuídos. É assim que, a partir de 1776 (data coincidente com a
Independência dos Estados Unidos e a publicação de A Riqueza das Nações de Adam Smith), a
liberdade torna-se o tema preponderante de todas as manifestações políticas e filosóficas, ainda
que, na origem, seus verdadeiros motivos sejam eminentemente econômicos. Às vésperas do
século XIX, a ideologia liberal já estabeleceu que a liberdade de trabalho deve libertar também a
iniciativa privada, o gosto pelo risco e pelo esforço, o sentido da competição:

[...] já está agindo uma comoção revolucionária que funda a necessidade de trabalhar na
natureza e não na sociedade. A liberdade do trabalho tem a legitimidade de uma lei natural,
ao passo que as formas históricas de sua organização são contingentes. Disso resulta que,
como até o presente foram colocadas sob o registro da coerção, essas formas são arbitrárias e
despóticas. A história desviou uma exigência racional, porque natural, impondo “o interesse
particular contra o interesse da sociedade”. A sociedade historicamente organizada sobre a
base de privilégios é particularista. Legitimou corpos intermediários inspirados pelo espírito
de monopólio. É urgente abolir essa herança do mundo velho para deixar as leis naturais
intervirem. O livre acesso ao trabalho e a instituição de um livre mercado do trabalho
marcam o advento de um mundo social racional por meio da destruição da ordem social
99

arbitrária da antiga sociedade. (Castel, 2001, p.235).

A constituição da liberdade fundada no direito natural recoloca as categorias de


empregadores e empregados sob supostas novas bases, que antes de se revelarem antagônicas e
coercitivas, aparecem agora como munidos de interesses complementares. Assim dirá Turgot, a
esse respeito:

“Devemos, sobretudo, proteção a essa classe de homens que, tendo apenas seu trabalho
como propriedade, têm ainda mais a necessidade e o direito de utilizar em toda a sua
extensão os únicos recursos de que disponham para subsistir.

E em relação aos empregadores:

Todas as classes de cidadãos são privadas do direito de escolher os operários que gostariam
de empregar e das vantagens que lhes daria a concorrência pelo preço baixo e pela perfeição
do trabalho.” (A. R. J. Turgot, Édit portant suppression des jurandes”. p. 376 - citado por
Castel, 2001, p. 236).

E Turgot antecipará, menos premonitoriamente do que mediante as contingências


que já se verificam na segunda metade do século XVIII, as prerrogativas reguladoras (e
desiguais) do regime salarial e o surgimento do exército de reserva industrial:

“O simples operário que só tem seus braços e seu empenho não tem nada enquanto não
consegue vender a outros sua pena. Vende-se mais ou menos caro; mas o preço mais ou
menos alto não depende só dele: resulta do acordo que é feito com quem paga seu trabalho.
Este o paga o menos caro possível: como pode escolher entre um grande número de
operários, prefere quem trabalha pelo menor preço. Então os operários são obrigados a
baixar seu preço em concorrência uns com os outros. Em todos os tipos de trabalho, deve
acontecer, e de fato acontece, que o trabalho do operário se limite ao que lhe é necessário
para assegurar sua subsistência.” (A.R.J. Turgot, Formation et distribuition des richesses. p.
537 - citado por Castel, 2001, p. 272).

Segundo Castel, a economia política inglesa já havia começado uma reflexão sobre a
necessidade suscetível de subverter a idéia de natureza e de desvelar a perversidade do contrato
de trabalho. “Eliminadas as proteções tradicionais, corre-se o risco de fazer aflorar não a
racionalidade das leis naturais mas, sim, o poder biológico dos instintos: os carentes serão então
impelidos pela necessidade natural, isto é, pela fome.” (Castel, 2001, p. 273). Trata-se de, sobre
o pano de fundo da reciprocidade jurídica do contrato de trabalho, em que se põe em destaque
uma relação de “alteridade” das posições sociais dos contratantes, instaurar-se um verdadeiro
campo de batalha permanente, já que o contrato introduz uma dimensão temporal em tais
relações: o empregador pode esperar para contratar “livremente”, pois não está sob o domínio da
necessidade. O trabalhador é determinado biologicamente a vender sua força de trabalho, pois
terá sempre a urgência de, ao menos alimentar-se para não desfalecer. Torna-se, pois, uma
necessidade imediata a obtenção de seu salário para sobreviver. Por outro lado, o empregador,
sob a égide do contrato de trabalho, desvencilha-se do que antes a tutela lhe impunha: manter os
100

trabalhadores que lhe eram remetidos oficialmente, e não poder contar com o necessário
empenho de seus tutelados. A responsabilidade pela própria sobrevivência estará definitivamente
transferida, daqui por diante, ao próprio trabalhador e sua “disposição” em se manter produtivo,
tanto quanto competitivo em relação a seus concorrentes. O mecanismo do regime contratual
assalariado já é efetivamente o novo regulador das relações de trabalho da nascente sociedade
industrial, e embora vá conviver com mecanismos ainda servis e, no caso das colônias do novo
mundo, escravistas, na medida em que se consolida com o modo de produção industrial,
implicará na crescente abolição destas formas de trabalho, sempre sob o argumento do ideal
burguês da liberdade de trabalho e de mercado.
Liberdades que, por serem essencialmente abstratas, terão de ser garantidas a bem do
novo modo de organização e relações do trabalho. O Estado, que já cumpria esta tarefa em
relação à institucionalização tutelar e social “assistencial”, regulará agora as conversões
necessárias à nova organização produtiva e social. Por isso precisa ser apropriado pela nova
classe já consolidada e, para isso, deverá ser destituído dos poderes seculares que o conduziram,
isto é, a nobreza e o clero. As bases materiais para este segundo movimento do capitalismo já
existem e de modo algum podem conviver com tradições impeditivas à produção e circulação de
mercadorias, sobretudo a nova mercadoria por excelência, única capaz de produzir riqueza: o
trabalhador “livre”. A Revolução Francesa (1789) e, antes dela, a Independência dos Estados
Unidos (1776), não só foram conseqüências das novas bases materiais de produção como
tiveram a função histórica de rompimento com o estatuto do Antigo Regime, substituindo seus
códigos sociais por aqueles que agora se tornavam imperativos à liberdade, à democracia e ao
exercício de ambos, ainda que sacramentados pelo resgate do modelo republicano e do princípio
da cidadania greco-romana com seus principais adereços — fenômeno que Marx, por exemplo,
examinará criticamente em O 18 brumário de Louis Bonaparte, no que se refere aos
desencadeamentos essencialmente antidemocráticos, ditatoriais e imperialistas que se sucedem à
Revolução Francesa, após a conquista do poder pelas forças burguesas.

1.3. A invenção da “economia de mercado” e o papel do Estado

Denota-se, de todo o extenso processo até aqui descrito, que ao nos referirmos à
expropriação (em todos os sentidos) dos meios de subsistência das populações aldeãs, e, por
outro lado, a apropriação desses meios de subsistência pela coerção do poder exercido pela
burguesia e nobres convertidos ao modo de produção e organização social industrial capitalista,
o advento de duas novas estruturas fundamentais: primeiro, a apropriação privada dos meios de
101

produção e subsistência; segundo, a necessidade complementar de que o que antes figurava


como relações de troca de uma variedade de bens ligados à subistência das comunidades,
converta-se em relações dependentes de valores de troca.
Como nos lembra Karl Polanyi (1944/2000), as relações econômicas e mercados
sempre existiram. Entretanto, estiveram sempre submetidos às necessidades sociais. O que muda
com a expropriação dos meios de subsistência a partir da propriedade da própria terra, é a
necessidade de que tanto homens quanto seus bens de sobrevivência, transformem-se em
mercadorias a serem, doravante, negociadas segundo seus valores de troca, e não mais segundo
seus valores de uso. Está constituída, assim, a condição para que o mercado se amplie a tal ponto
de a tudo e a todos submeter. Desse modo, a própria civilização ocidental capitalista converte-se
num imenso campo de trocas, subsumida a leis inexpugnáveis do ponto de vista de sua
materialidade e hegemonia ideológica. Estamos diante da instituição da lógica do mercado
supostamente livre, porque sem controle social. Sua principal mercadoria será o próprio trabalho,
ou, como é justo sempre lembrar, os próprios homens que, despojados de seus próprios recursos,
necessitam vender suas próprias vontades e corpos. Os principais usufruidores desse processo
monumental e sem precedentes, serão os proprietários dos recursos destinados à produção do
que, doravante, assume a mera condição de valores-de-troca: as mercadorias.
Mas quais foram os mecanismos subjacentes à economia de mercado, como os que o
século XIX articulou com sucesso? Para respondermos adequadamente a esta questão, faz-se
necessário que explicitemos os extraordinários pressupostos de um tal sistema. Sobre isso, nos
dirá Polanyi:

Uma economia de mercado significa um sistema auto-regulável de mercados; em termos


ligeiramente mais técnicos, é uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além
dos preços do mercado. Um tal sistema, capaz de organizar a totalidade da vida econômica
sem qualquer ajuda ou interferência externa, certamente mereceria ser chamado “auto-
regulável”. Essas condições preliminares devem ser suficientes para revelar a natureza
inteiramente sem precedentes de um tal acontecimento na história da raça humana.
Vamos tornar mais preciso o que queremos dizer. Nenhuma sociedade poderia sobreviver
durante qualquer período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de
alguma espécie. Acontece, porém, que, anteriormente à nossa época, nenhuma economia
existiu, mesmo em princípio, que fosse controlada por mercados. Apesar da quantidade de
fórmulas cabalísticas acadêmicas, tão persistentes no século XIX, o ganho e o lucro feitos
nas trocas jamais desempenharam um papel importante na economia humana. Embora a
instituição do mercado fosse bastante comum desde a Idade da Pedra, seu papel era apenas
incidental na vida econômica. (Polanyi, 2000, p. 62).

Um pensador da estatura de Adam Smith sugeriu que a divisão do trabalho na


sociedade dependia da existência de uma tendência ou, como ele colocou, da "propensão do
homem de barganhar, permutar e trocar uma coisa pela outra", frase que resultaria, mais tarde,
102

no conceito do Homo economicus. Segundo Polanyi, poderia-se dizer que “nenhuma leitura
errada do passado foi tão profética do futuro”:

Na verdade, até a época de Adam Smith, essa propensão não se havia manifestado em
qualquer escala considerável na vida de qualquer comunidade pesquisada e, quando muito,
permanecia como aspecto subordinado da vida econômica. Uma centena de anos mais tarde,
porém, já estava em pleno funcionamento um sistema industrial na maior parte do planeta e,
prática e teoricamente, isto significava que a raça humana fora sacudida em todas as suas
atividades econômicas, se não também nas suas buscas políticas, intelectuais e espirituais,
por essa propensão particular. (Polanyi, 2000, p. 63).

Assim, na segunda metade do século XIX, Herbert Spencer pôde equacionar o prin-
cípio da divisão do trabalho com a barganha e a troca e, cerca de cinqüenta anos mais tarde,
Ludwig von Mises e Walter Lippmann repetiriam a mesma concepção. Nessa ocasião, não havia
necessidade de argumentos:

Uma série de escritores de economia política, história social, filosofia política e sociologia
em geral havia seguido na esteira de Smith e estabelecido o seu paradigma do selvagem
barganhador com axioma das suas respectivas ciências. Na realidade, as sugestões de Adam
Smith sobre a psicologia econômica do homem primitivo eram tão falsas como as de
Rosseau sobre a psicologia política do selvagem. A divisão do trabalho, um fenômeno tão
antigo como a sociedade, origina-se de diferenças inerentes a fatos como sexo, geografia e
capacidade individual. A alegada propensão do homem para a barganha, permuta e troca é
quase que inteiramente apócrifa. A história e a etnografia conhecem várias espécies de
economia, a maioria delas incluindo a instituição do mercado, mas elas não conhecem
nenhuma economia anterior à nossa que seja controlada e regulada por mercados, mesmo
aproximadamente. Isto tornar-se-á perfeitamente claro numa rápida visão da história dos
sistemas econômicos e mercados, apresentados separadamente. O papel desempenhado pelos
mercados na economia interna de vários países, parece, foi insignificante até época recente e
a mudança total para uma economia dominada por padrões de mercados ficará ainda mais
ressaltada. (Polanyi, 2000, p. 63).

Segundo o autor, é preciso colocar de lado alguns preconceitos etnocêntricos do


século XIX, que sustentavam a hipótese de Adam Smith sobre a alegada “predileção” do homem
primitivo por “ocupações lucrativas” e, uma vez que seu axioma foi “muito mais relevante para o
futuro imediato” do que para “o passado obscuro”, ele logrou induzir seus seguidores a uma
atitude estranha em relação à história primitiva do homem:

Baseada nela, a evidência parece indicar que o homem primitivo, longe de ter uma
psicologia capitalista, tinha, na verdade, uma psicologia comunista (mais tarde também isto
foi provado como erro). Em conseqüência, os historiadores econômicos tendiam a confinar
seus interesses àquele período da história, comparativamente recente, no qual a permuta e a
troca foram encontradas em alguma escala considerável, e a economia primitiva foi relegada
à pré-história. Inconscientemente, isto levou a um peso na balança em favor de uma
psicologia de mercado pois, no período relativamente curto dos últimos séculos, tudo poderia
ser considerado como tendendo para o estabelecimento daquilo que foi eventualmente
estabelecido, e é um sistema de mercado, a despeito de outras tendências que foram
temporariamente submersas. Para corrigir essa perspectiva tão "estreita" fazia-se mister,
obviamente, ligar a história econômica à antropologia social, passo esse consistentemente
evitado. (Polanyi, 2000, p. 64).
103

Trata-se de um equívoco olhar para os últimos dez anos, assim como para o conjunto
de sociedades primitivas, como mero “prelúdio” da verdadeira história da civilização, ao qual a
publicação da Riqueza das Nações, em 1776, apresenta-se como inteiramente fora de propósito.
Mas a mesma tendência que levou a geração de Adam Smith a ver o homem primevo como
inclinado à barganha e à permuta induziu seus sucessores a descartar todo o interesse no homem
primitivo, uma vez que já se sabia que ele não se inclinava para essas paixões supostamente tão
naturais. Para Polanyi, a tradição dos economistas clássicos, que tentaram basear a lei do mer-
cado na alegada propensão do homem no seu estado natural, foi substituída por um abandono de
qualquer interesse na cultura do homem "não-civilizado" como irrelevante para se compreender
os problemas da nossa era:

Uma tal atitude de subjetivismo em relação a civilizações primitivas não deveria fazer parte
da mente científica. As diferenças que existem entre povos "civilizados" e "não-civilizados"
foram demasiado exageradas, principalmente na esfera econômica. De acordo com os
historiadores, até bem pouco tempo as formas de vida industrial na Europa agrícola não eram
muito diferentes daquelas que existiram há alguns milhares de anos. Desde o aparecimento
do arado – basicamente uma grande enxada puxada por animais — os métodos de agricultura
permaneceram substancialmente inalterados na maior parte da Europa Ocidental e Central
até o início da era moderna. Na verdade, o progresso da civilização nessas regiões foi
principalmente político, intelectual e espiritual; quanto às condições materiais, a Europa
Ocidental de 1100 d.C. ainda não havia sequer alcançado o mundo romano de milhares de
anos atrás. Mesmo mais tarde, a mudança ocorreu mais facilmente nos canais da arte de
governar, na literatura e nas artes, principalmente religiosas e de conhecimentos, do que nos
da indústria. Do ponto de vista econômico, a Europa medieval se situava no nível da Pérsia
antiga, da Índia ou da China, e certamente não podia rivalizar em riqueza e cultura com o
Novo Império do Egito, de dois mil anos atrás. (Polanyi, 2000, p. 64-65).

Após as críticas de Max Weber ao fato de as ciências econômicas ignorarem as


economias primitivas, tomadas como irrelevantes para a questão das motivações e mecanismos
das sociedades civilizadas, o trabalho subseqüente da antropologia social comprovaria que ele
estava correto: acima de qualquer conclusão que se puder ter no estudo recente das sociedades
primitivas, é justamente a não-modificação do homem como ser social que se revela como regra:

A descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas antropológicas [até a década
de 1950, MFZ] é que a economia do homem, como regra, está submersa em suas relações
sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens
materiais, ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu
patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus
propósitos. Nem o processo de produção, nem o de distribuição está ligado a interesses
econômicos específicos relativos à posse de bens. Cada passo desse processo está atrelado a
um certo número de interesses sociais, e são estes que asseguram a necessidade daquele
passo. É natural que esses interesses sejam muito diferentes numa pequena comunidade de
caçadores ou pescadores e numa ampla sociedade despótica, mas tanto numa como noutra o
sistema econômico será dirigido por motivações não-econômicas. (Polanyi, 2000, p. 65).

No sentido da garantia de sobrevivência, no caso de uma sociedade tribal, o interesse


econômico individual só raramente é predominante, pois a comunidade vela para que nenhum de
104

seus membros esteja sujeito à falta de alimentos ou proteção, a não ser que ela própria seja
atingida por uma catástrofe, mas nesse caso os interesses são ameaçados coletiva e não
individualmente. Por outro lado, a manutenção dos laços sociais é crucial. Primeiro porque,
infringindo o código estabelecido de comportamento, honra ou generosidade, o indivíduo se
afasta da comunidade e se torna um elemento marginal; em segundo lugar, a longo prazo, todas
as obrigações sociais são baseadas na reciprocidade, e sua observação atenderá sempre melhor
aos interesses dos próprios indivíduos. Essa situação deve exercer uma pressão contínua sobre o
indivíduo no sentido de eliminar do seu consciente o suposto “auto-interesse econômico”, a
ponto de torná-lo incapaz, em muitos casos, de compreender as implicações de suas próprias
ações em termos de um tal interesse. A atitude em questão será reforçada pela freqüência das
atividades comunais, tais como partilhar do alimento na caça comum ou participar dos resultados
de alguma outra atividade tribal.

O prêmio estipulado para a generosidade é tão importante, quando medido em termos de


prestígio social, que não compensa ter outro comportamento senão o de esquecimento
próprio. O caráter pessoal nada tem a ver com o assunto. O homem pode ser tão bom ou
mau, sociável ou insociável, avaro ou generoso a respeito de um conjunto de valores como a
respeito de outro. Na verdade, não permitir a ninguém ter motivos de ciúme é um princípio
aceito da distribuição cerimonial, da mesma forma como é importante elogiar publicamente
um hortelão diligente, habilidoso tão bem-sucedido (a menos que ele seja demasiado bem-
sucedido, em cujo caso pode-se permitir que ele definhe sob a ilusão de ser vítima de magia
negra). As paixões humanas, boas ou más, são apenas dirigidas para finalidades não-
econômicas. A exibição cerimonial só serve para incentivar a emulação até o máximo
possível, e o costume do trabalho comunal tende a elevar ao máximo ambos os padrões,
quantitativo e qualitativo. (Polanyi, 2000, p. 65).

Neste esboço dos traços gerais característicos de uma comunidade primitiva da


Melanésia Ocidental, no qual o autor se baseia, advertindo não estar levando em conta a sua
organização sexual e territorial, pois, em relação a estas o costume, a lei, a magia e a religião
exercem sua própria influência, se revela a maneira pela qual as assim chamadas motivações
econômicas se originam no contexto da vida social. É nesse ponto que os etnógrafos modernos
concordam: a ausência da motivação de lucro; a ausência do princípio de trabalhar por uma
remuneração; a presença do princípio do menor esforço; e, especialmente, a ausência de qualquer
instituição separada e distinta baseada em motivações econômicas.
A ordem na produção e na distribuição é garantida, em sua maior parte, por dois
princípios não associados basicamente à economia: reciprocidade e redistribuição. Portanto, para
os habitantes de Trobriand, na Melanésia Ocidental, a reciprocidade atua principalmente em
relação à organização sexual da sociedade, isto é, família e o parentesco. A redistribuição é
importante principalmente em relação àqueles que têm uma chefia em comum e têm, assim, um
caráter territorial. A subsistência da família — a mulher e os filhos — é tarefa de seus parentes
105

matrilineares. O homem que sustenta sua irmã e a família dela, entregando-lhe os melhores
produtos da sua colheita, ganhará crédito principalmente pelo seu bom comportamento, porém
terá em troca muito pouco benefício material imediato. Se ele for preguiçoso, sua reputação será
a primeira a ser atingida. O princípio da reciprocidade atuará principalmente em benefício de sua
companheira e de seus filhos, compensando-o assim, economicamente, por seus atos de virtude
comunitária. A exibição cerimonial dos alimentos, tanto em sua própria horta como ante o
depósito da que recebe, é uma garantia de que todos conhecerão a elevada qualidade da sua
atividade como cultivador. O amplo princípio da reciprocidade ajuda a salvaguardar tanto a pro-
dução como a subsistência familiar. Mas há também o princípio seguinte, o da redistribuição:

O princípio da redistribuição não é menos efetivo. Uma parte substancial de toda a produção
da ilha é entregue pelo chefe da aldeia ao chefe geral, que a armazena. Entretanto, como toda
a atividade comunal se centraliza em festas, danças e outras ocasiões quando os ilhéus
entretêm uns aos outros, assim como aos vizinhos de outras ilhas (ocasião em que são
distribuídos os resultados de suas atividades em áreas distantes, presentes são entregues e
reciprocados, de acordo com as regras de etiqueta, e o chefe distribui a todos os presentes
habituais), torna-se aparente a extrema importância do sistema de armazenamento. Do ponto
de vista econômico, é parte essencial do sistema vigente de divisão do trabalho, do comércio
exterior, da taxação para finalidades públicas, das provisões de defesa. Entretanto, essas
funções de um verdadeiro sistema econômico são inteiramente absorvidas pelas experiências
intensamente vividas que oferecem uma superabundante motivação não-econômica em cada
ato executado no quadro do sistema social como um todo. (Polanyi, 2000, p. 66-67).

A reciprocidade e a redistribuição são capazes de assegurar o funcionamento de um


sistema econômico sem a ajuda de registros escritos e de uma complexa administração apenas
porque a organização das sociedades em questão cumpre as exigências de uma tal solução com a
ajuda de padrões tais como a simetria e a centralidade.
Desse modo, a reciprocidade é enormemente facilitada pelo padrão institucional da
simetria, um aspecto freqüente da organização social entre os povos iletrados. A marcante
"dualidade" que encontramos em subdivisões tribais colabora para a união de relações
individuais, ajudando assim o tomar-e-dar de bens e serviços na ausência de registros
permanentes. As metades da sociedade selvagem, que tendem a criar um pendant em cada
subdivisão, acabam resultando de, e ajudando a, executar os atos de reciprocidade sobre os quais
o sistema repousa. Pouco se conhece a respeito da origem da "dualidade", porém cada aldeia da
costa nas Ilhas Trobriand parece ter a sua contrapartida numa aldeia do interior, de forma que a
importante troca de fruta-pão e peixe, embora disfarçada sob a forma de distribuição recíproca de
presentes e na verdade deslocada no tempo, pode ser perfeitamente organizada. Também no
comércio de Kula cada indivíduo tem o seu parceiro em uma outra ilha, personalizando assim,
numa extensão marcante, a relação da reciprocidade.

A simetria e a centralidade vão ao encontro, na metade do caminho, às necessidades da


106

reciprocidade e da redistribuição; os padrões institucionais e os princípios de comportamento


se ajustam mutuamente. Enquanto a organização social segue a sua rotina normal, não há
razão para a interferência de qualquer motivação econômica individual; não é preciso temer
qualquer evasão do esforço pessoal; a divisão do trabalho fica assegurada automaticamente;
as obrigações econômicas serão devidamente desempenhadas e, acima de tudo, estão assegu-
rados os meios materiais para uma exibição exuberante de abundância em todos os festivais
públicos. Numa tal comunidade, é vedada a idéia do lucro; as disputas e os regateios são
desacreditados; o dar graciosamente é considerado como virtude; não aparece a suposta
propensão à barganha, à permuta e à troca. Na verdade, o sistema econômico é mera função
da organização social. (Polanyi, 2000, p. 69).

Todas as economias desta espécie, em grande escala, foram dirigidas com a ajuda do
princípio da redistribuição. Do reinado de Hammurabi, na Babilônia, ao Novo Império do Egito,
o que se tinha eram despotismos centralizados do tipo burocrático, todavia fundados numa
economia como essa. A casa da família patriarcal é aqui reproduzida numa escala enormemente
ampliada, enquanto a sua distribuição "comunista" era classificada, envolvendo rações
agudamente diferenciadas. Havia um grande número de armazéns prontos a receber o produto da
atividade do camponês, fosse ele criador de gado, caçador, padeiro, cervejeiro, oleiro, tecelão ou
o que quer que seja. O produto era registrado minuciosamente e, desde que não fosse consumido
no local, era transferido de pequenos para grandes armazéns até alcançar a administração central
localizada na corte do faraó. Havia armazéns especiais para tecidos, obras de arte, objetos
ornamentais, cosméticos, prataria, guarda-roupa real; havia armazéns enormes para cereais,
arsenais e adegas de vinho.
Entretanto, a redistribuição na escala praticada pelos construtores das pirâmides não
se restringia a economias que não conheciam o dinheiro. Todos os reinos arcaicos fizeram uso de
moedas metálicas para o pagamento de impostos e salários, mas, no restante, dependiam de
pagamentos em espécie dos celeiros e armazéns de todo o tipo, a partir dos quais eles distribuíam
as mais variadas mercadorias para uso e consumo comum, mas principalmente à parte não-
produtiva da população, isto é, às autoridades, aos militares, à classe ociosa. Este era o sistema
em vigor na antiga China, no império dos Incas, nos reinos da Índia e também na Babilônia.
Nestas, como em muitas outras civilizações de grande desenvolvimento econômico, foi
elaborada uma complexa divisão do trabalho por meio do mecanismo da redistribuição.
Esse princípio também se manteve sob as condições feudais. Nas sociedades da
África, etnicamente estratificadas, acontece às vezes que o estrato superior consiste de criadores
de gado estabelecidos entre agricultores que ainda utilizam a pá ou a enxada. Os presentes
cobrados pelos criadores são principalmente agrícolas, como cereais, leite e cerveja, enquanto os
presentes por eles distribuídos podem ser animais, especialmente carneiros ou cabras. Nestes
casos, existe uma divisão de trabalho, embora geralmente desigual, entre os vários estratos da
sociedade: a distribuição pode às vezes implicar uma medida de exploração enquanto que, ao
107

mesmo tempo, a simbiose beneficia os padrões de ambos os estratos graças às vantagens de uma
divisão do trabalho melhorada.
Em termos sócio-políticos, tais sociedades vivem sob um regime feudal, seja o gado
ou a terra o valor privilegiado. Existem "feudos reguladores de gado na África Oriental.
Thurnwald, a quem seguimos de perto quanto ao tema da redistribuição, pôde dizer, assim, que o
feudalismo foi, em todos os lugares, um sistema de redistribuição” (Polanyi, op. cit., p. 69). Seria
somente em condições muito desenvolvidas e em circunstâncias excepcionais que esse sistema
se tornaria predominantemente político, como aconteceu na Europa Ocidental, onde a mudança
surgiu da necessidade de proteção do vassalo e onde os presentes se converteram em tributos
feudais. Evidentemente, já estamos diante de conseqüências mais avançadas derivadas da divisão
social do trabalho, de classes e, por decorrência, do poder. Mas a dualidade da interdependência
é o princípio de toda a ordem social, num sentido, diríamos, não apenas homeostático, mas
simbiótico.
Segundo Polanyi, o terceiro princípio, destinado a desempenhar um grande papel na
história, foi o princípio da domesticidade, e este consiste na produção para uso próprio. Os
gregos chamavam-no economia, étimo da palavra "economia". Entretanto, segundo os registros
etnográficos e antropológicos, não há o que nos autorize a presumir que a produção para a
própria pessoa, ou para um grupo, seja mais antiga que a reciprocidade ou a redistribuição sócio-
comunitária. Pelo contrário, tanto a tradição ortodoxa como algumas teorias mais recentes sobre
o assunto foram refutadas enfaticamente:

O selvagem individualista, que procura alimentos ou caça para si mesmo ou para sua família,
nunca existiu. Na verdade, a prática de prover as necessidades domésticas próprias tornou-se
um aspecto da vida econômica apenas em um nível mais avançado da agricultura. Mesmo
então, ela nada tinha em comum com a motivação do ganho, nem com a instituição de
mercados. O seu padrão é o grupo fechado. Tanto no caso de entidades de família muito
diferentes, como no povoamento, ou na casa senhorial, que constituíam unidades auto-
suficientes, o princípio era invariavelmente o mesmo, a saber, o de produzir e armazenar
para a satisfação das necessidades dos membros do grupo. O princípio é tão amplo na sua
aplicação como o da reciprocidade ou da redistribuição. A natureza do núcleo institucional é
indiferente: pode ser sexo, como na família patriarcal; localidade, como nas aldeias; ou poder
político, como no castelo senhorial. E também não importa a organização interna do grupo.
Pode ser tão despótica como a família romana ou tão democrática como a zadruga sul-
eslava; tão grande como os imensos domínios dos magnatas Carolíngios ou tão pequenas
como a propriedade camponesa média da Europa Ocidental. A necessidade de comércio ou
de mercados não é maior do que no caso da reciprocidade ou da redistribuição. (Polanyi,
2000, p. 69).

O mesmo concluirão Karl Marx e Friedrich Engels, sobretudo em A ideologia alemã


e particularmente Marx, em os Grundrisse:

Quanto mais se recua na história, mais dependente aparece o indivíduo e, portanto, também o
indivíduo produtor, e mais amplo é o conjunto a que pertence. De início, este aparece de um
108

modo ainda muito natural, numa família e numa tribo, que é a família ampliada; mais tarde,
nas diversas formas de comunidade resultantes do antagonismo e da fusão das tribos. Só no
século XVIII, na “sociedade burguesa”, as diversas formas do conjunto social passaram a
apresentar-se ao indivíduo como simples meio de realizar seus fins privados, como
necessidade exterior. Todavia, a época que produz este ponto de vista, o do indivíduo isolado
é precisamente aquela na qual as relações sociais (e, deste ponto de vista, gerais) alcançaram
o mais alto grau de desenvolvimento. O homem é no sentido mais literal um zoon politikon,
não só animal social, mas animal que só pode isolar-se em sociedade. A produção do in-
divíduo isolado fora da sociedade — uma raridade, que pode muito bem acontecer a um
homem civilizado transportado por acaso a um lugar selvagem, mas levando consigo já,
dinamicamente, as forças da sociedade — é uma coisa tão absurda como o desenvolvimento
da linguagem sem indivíduos que vivam juntos e falem entre si. [...] Nem sequer seria
necessário tocar neste ponto se essa banalidade que teve sentido e razão entre os homens do
século XVIII não fosse seriamente reintroduzida na mais moderna Economia por Bastiat,
Carey, Proudhon, etc. Para Proudhon e alguns outros, parece, por certo, agradável deduzir a
origem de uma relação econômica, cuja gênese histórica ignoram, de uma maneira histórico-
filosófica, que lhes permite o recurso à mitologia, e dizer que as idéias surgiram de modo
acabado na mente de Adão ou Prometeu, e por isso em uso. Nada é mais aborrecedeor e
árido do que o locus communis (lugar comum) disfarçado. (Marx,1987, p. 4 - itálicos nossos)

Foi justamente esta situação que Aristóteles (384-322 a.C.) tentou estabelecer como
norma há mais de dois mil anos. Pesquisando o passado das atitudes rapidamente declinantes de
uma economia de mercado de caráter mundial, temos que concordar que a famosa distinção que
ele faz entre a domesticidade propriamente dita e o ato de se ganhar dinheiro, no capítulo
introdutório da sua Política, foi provavelmente o indicador mais profético jamais feito no campo
das ciências sociais. Aristóteles insiste na produção para uso, contra a produção visando lucro,
como essência da domesticidade propriamente dita. Assim, “uma produção acessória para o
mercado,” argumenta ele, “não precisa destruir a auto-suficiência doméstica, uma vez que a
colheita seja reinvestida na fazenda, para sustento, seja como gado ou cereal. A venda dos
excedentes não precisa destruir a base da domesticidade.” (Aristóteles, sd/1978, p. 33-39)
Somente um gênio do senso comum poderia afirmar, como ele o fez, nos diz Polanyi,
que o ganho era uma motivarão peculiar à produção para o mercado, e que o fator dinheiro
introduziria um novo elemento na situarão. Mas enquanto os mercados e o dinheiro fossem
meros acessórios de uma situarão doméstica auto-suficiente, o princípio da produção para uso
próprio poderia funcionar. Nesse sentido, ele estava inteiramente perto, embora deixasse de ver
como era impraticável ignorar a existência de mercados numa época em que a economia grega
tinha se tornado dependente do comércio atacadista e do capital de empréstimos. Esse foi o
século em que Delos e Rhodes se desenvolveram em empórios de seguros de fretes, empréstimos
marítimos e bancos de capital de giro, comparados aos quais a Europa Ocidental de mil anos
depois foi o próprio retrato do primitivismo. É verdade que Aristóteles não reconheceu
claramente as implicações da divisão do trabalho e sua ligação com os mercados e o dinheiro,
assim como não compreendeu as utilizações do dinheiro como crédito e capital. Evidentemente,
109

o princípio do ganho era a chave para uma civilização inteiramente diferente, cujos contornos
Aristóteles, entretanto, previu de forma acertada dois mil anos antes do seu advento, baseando-
se, para isso, nos simples rudimentos de uma economia de mercado disponível na época.

De forma mais ampla, essa proposição sustenta que todos os sistemas econômicos
conhecidos por nós, até o fim do feudalismo na Europa Ocidental, foram organizados
segundo os princípios de reciprocidade ou redistribuirão, ou domesticidade, ou alguma
combinação dos três. Esses princípios eram institucionalizados com a ajuda de uma orga-
nizarão social a qual, inter alia, fez uso dos padrões de simetria, centracidade e autarquia.
Dentro dessa estrutura, a produção ordenada e a distribuirão dos bens era assegurada através
de uma grande variedade de motivações individuais, disciplinadas por princípios gerais de
comportamento. E entre essas motivações, o lucro não ocupava lugar proeminente. Os
costumes e a lei, a magia e a religião cooperavam para induzir o indivíduo a cumprir as
regras de comportamento, as quais, eventualmente, garantiam o seu funcionamento no
sistema econômico. (Polanyi, 2000, p. 75)

No que diz respeito ao período greco-romano, este, a despeito do seu conteúdo


altamente desenvolvido, não representou qualquer ruptura nesse sentido. Ele se caracterizou pela
redistribuição de cereais, em grande escala, feita pela administrarão romana numa economia em
tudo doméstica, e ele não se constituiu em exceção à regra vigente de que até o final da Idade
Média os mercados não desempenharam papel importante no sistema econômico — prevaleciam
outros padrões institucionais.
Somente a partir do século XVI os mercados passaram a ser mais numerosos e
importantes:

Na verdade, sob o sistema mercantil, eles se tornaram a preocupação principal dos governos.
Entretanto, não havia ainda sinal de que os mercados passariam a controlar a sociedade
humana. Pelo contrário. Os regulamentos e os regimentos eram mais severos do que nunca;
estava ausente a própria idéia de um mercado auto-regulável. Para compreender a súbita
mudança para um tipo inteiramente novo da economia no século XIX, devemos nos voltar,
agora, para a história do mercado, uma instituição que praticamente negligenciamos em
nosso resumo dos sistemas econômicos do passado. (Polanyi, 2000, idem).

Se queremos deixar de lado as superstições econômicas do século XIX, a parte


dominante desempenhada pelos mercados na economia capitalista, o significado básico do
princípio de permuta ou troca nessa economia exige uma pesquisa cuidadosa da natureza e
origem dos mercados.

A permuta, a barganha e a troca constituem um princípio de comportamento econômico que


depende do padrão de mercado para sua efetivação. Um mercado é um local de encontro
para a finalidade da permuta ou da compra e venda. A menos que este padrão esteja presente,
pelo menos em parte, a propensão à permuta não terá escopo suficiente: ela não poderá
produzir preços. Assim como a reciprocidade é auxiliada por um padrão simétrico de
organização, a redistribuição é facilitada por alguma medida de centralização e a
domesticidade tem que ser baseada na autarquia, assim também o princípio da permuta
depende, para sua efetivação, do padrão de mercado. Todavia, da mesma forma como tanto a
reciprocidade como a redistribuição, ou a domesticidade, podem ocorrer numa sociedade
sem nela ocupar um lugar primordial, o princípio da permuta também pode ocupar um lugar
110

subordinado numa sociedade na qual os outros princípios estão em ascendência. (Polanyi,


2000, p. 77).

Em alguns outros sentidos, porém, o princípio da permuta não está em paridade


estrita com os três outros princípios. O padrão de mercado, com o qual ele está associado, é mais
específico do que a simetria, a centralidade ou a autarquia — os quais, em contraste com o
padrão de mercado, são meros "traços" e não criam instituições designadas para uma função
apenas. A simetria nada mais é do que um arranjo sociológico que não dá origem a instituições
isoladas, mas apenas padroniza as já existentes (se uma tribo ou uma aldeia é ou não
simetricamente padronizada, isto não envolve qualquer instituição distinta). A centralidade,
embora crie freqüentemente instituições distintas, não implica motivação que particularizaria a
instituição resultante para uma função específica única (o chefe de uma aldeia ou qualquer outra
autoridade central pode assumir, por exemplo, uma série de funções: política, militar, religiosa
ou econômica, indiscriminadamente). Finalmente, a autarquia econômica é apenas um traço
acessório de um grupo fechada existente.

[...] o padrão de mercado, relacionando-se a um motivo peculiar próprio, o motivo da


barganha ou da permuta, é capaz de criar uma instituição específica, a saber, o mercado. Em
última instância, é por isto que o controle do sistema econômico pelo mercado é
conseqüência fundamental para toda a organização da sociedade: significa, nada menos,
dirigir a sociedade como se fosse um acessório de mercado. Em vez de a economia estar
embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema
econômico. A importância vital do fator econômico para a existência da sociedade antecede
qualquer outro resultado. Desta vez, o sistema econômico organizado em instituições
separadas, baseado em motivos específicos e concedendo um status especial. A sociedade
tem que ser modelada de maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as
suas próprias leis. Este é o significado da afirmação familiar de que uma economia de
mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado. (Polanyi, 2000, idem).

Na verdade, foi crucial o passo que transformou mercados isolados numa econômia
de mercado, mercados regulados num mercado autônomo. O século XIX — aclamando o fato
como o ápice da civilização ou deplorando-o ao mesmo tempo como um crescimento canceroso
— imaginava ingenuamente que um tal desenvolvimento era o resultado natural da difusão dos
mercados. Não se compreendeu que a engrenagem de mercado num sistema “auto-regulável” de
tremendo poder não foi o resultado de qualquer tendência inerente aos mercados em direção à
excrescência, e sim o efeito de estimulantes altamente artificiais administrados ao corpo social, a
fim de fazer frente a uma situação criada pelo fenômeno não menos artificial da máquina. Não
foi reconhecida a natureza limitada e não expansiva do padrão de mercado como tal; e, no
entanto, é este o fato que emerge com toda clareza da moderna pesquisa.
"Os mercados não são encontrados em todos os lugares; a sua ausência, embora
indicando um certo isolamento e uma tendência à reclusão, não está associada a qualquer
111

desenvolvimento particular, e o mesmo também pode ser auferido da sua presença." Essa frase
incolor, transcrita do Economics in Primitive Communities, de Thurnwald (1932), resume os
resultados significativos da moderna pesquisa sobre o assunto. "O simples fato de uma tribo usar
dinheiro diferencia-se muito pouco, do ponto de vista econômico, de quaisquer outras tribos do
mesmo nível cultural que não o utilizam." (R. C. Thurnwald, 1932: 147 – citado por Polanyi, op.
cit., p. 77).
Não é preciso mais do que salientar algumas das implicações mais importantes
dessas afirmativas. A presença ou a ausência de mercados ou de dinheiro não afeta
necessariamente o sistema econômico de uma sociedade primitiva. Isto refuta o mito do século
XIX de que o dinheiro foi uma invenção cujo aparecimento transformava inevitavelmente uma
sociedade, com a criação de mercados, forçando o ritmo da divisão de trabalho, liberando a
propensão natural do homem à permuta, à barganha e à troca. Com efeito, a história econômica
ortodoxa se baseou numa perspectiva imensamente exagerada do significado dos mercados,
como tais. Um "certo isolamento" ou talvez uma "tendência a reclusão" é o único traço
econômico que pode ser indeferido corretamente da ausência de mercados; no que diz respeito à
organização interna de uma economia, sua presença ou ausência não faz necessariamente
qualquer diferença:

As razões são simples. Os mercados não são instituições que funcionam principalmente
dentro de um economia, mas fora dela. Eles são locais de encontro para um comércio de
longa distância. Os mercados locais, propriamente ditos, são de pouca importância. Além
disso, nem os mercados de longa distância, nem os mercado locais são essencialmente
competitivos. Conseqüentemente, tanto num como noutro caso, é pouca a pressão para se
criar um comércio territorial, o assim chamado mercado interno ou nacional. Cada uma
dessas afirmativas choca-se com algum pressuposto axiomático dos economistas clássicos,
entretanto elas seguem muito de perto os fatos que aparecem à luz da pesquisa moderna.
(Polanyi, 2000, p. 78 – itálicos nossos).

A lógica que se apreende do até aqui exposto é quase oposta à que subentende a
doutrina clássica. Segundo o autor, o ensino ortodoxo partiu da propensão do indivíduo à
permuta; deduziu daí a necessidade de mercados locais, bem como da divisão do trabalho;
inferiu, finalmente, a necessidade do comércio, eventualmente do comércio exterior, incluindo
até mesmo o comércios de longa distância. “À luz do nosso conhecimento atual, podíamos quase
reverter a seqüência do argumento: o verdadeiro ponto de partida do comércio de longa
distância, um resultado da localização geográfica das mercadorias, e da "divisão do trabalho"
dada pela localização do comércio de longa distância, muitas vezes engendra mercados, uma
instituição que envolve atos de permuta e, se o dinheiro é utilizado, de compra e venda.
Eventualmente, porém não necessariamente, isto parece a alguns indivíduos a oportunidade de
utilizar a sua alegada propensão para a barganha e o regateio.” (Polanyi, op. cit., p. 79)
112

O aspecto dominante desta doutrina é a origem do comércio em esfera externa, não


relacionada com a organização interna da economia: "A aplicação dos princípios observados na
caça para obter bens encontrados fora dos limites do distrito levou a certas formas de tal forma
que nos pareceram, mais tarde, como comércio".(Polanyi, 2000, p. 79). Chegamos à conclusão,
assim, de que embora as comunidades humanas nunca tenham deixado de lado, inteiramente, o
comércio exterior, esse comércio nem sempre envolvia mercados, necessariamente.
Originalmente, o comércio exterior sempre esteve mais ligado à aventura, exploração, caça,
pirataria e guerra do que à permuta. Ele pode implicar tanto em paz como em bilateralidade,
porém, mesmo quando implica em ambos, ele é baseado, habitualmente, no princípio da
reciprocidade, e não da permuta:

Num estágio posterior os mercados se tornaram predominantes na organização do comércio


exterior. Entretanto, do ponto de vista econômico, os mercados externos são algo
inteiramente diferente, tanto dos mercados locais quanto dos mercados internos. Eles não
diferem apenas em tamanho; são instituições de função e origem diferentes. O mercado
externo é uma transação; a questão é a ausência de alguns tipos de mercadorias naquela
região. A troca de lãs inglesas por vinhos portugueses constitui um exemplo. O comércio
local é limitado às mercadorias da região, as quais não compensa transportar porque são
demasiado pesadas, volumosas ou perecíveis. Assim, tanto o comércio exterior quanto o
local são relativos à distância geográfica, sendo um confinado às mercadorias que não
podem superá-la e o outro às que podem fazê-lo. Um comércio desse tipo é descrito cor-
retamente como complementar. A troca local entre cidade e campo e o comércio exterior
entre diferentes zonas climáticas baseiam-se neste princípio. Um tal comércio não implica
competição necessariamente, e se a competição levasse à desorganização do comércio não
haveria contradição em eliminá-la. Em contraste com o comércio externo e o local, o
comércio interno, por seu lado, é essencialmente competitivo. (Polanyi, 2000, p. 80).

Parece natural presumir, como o pensamento econômico do século XVIII sugere, que
em função dos atos individuais de permuta, os mercados locais se desenvolveriam no correr do
tempo e que tais mercados, uma vez existindo, levariam naturalmente ao estabelecimento de
mercados internos ou nacionais. Entretanto, nem um nem outro aconteceu. Atos individuais de
permuta ou troca não levam, como regra, ao estabelecimento de mercados em sociedades onde
predominam outros princípios de comportamento econômico. Nos amplos sistemas antigos de
redistribuição, os atos de permuta e os mercados locais eram uma constante, porém apenas em
caráter subordinado. Do mesmo modo, o mesmo se aplica onde a reciprocidade é a regra, em que
os atos de permuta são geralmente inseridos em relações de longo alcance que implicam
aceitação e confiança, uma situação que tende a obliterar o caráter bilateral da transação. São
vários os fatores limitantes, e eles surgem de todos os pontos do compasso sociológico: o
costume e a lei, a religião e a magia contribuem igualmente para o resultado, que é restringir os
atos de troca em relação a pessoas e objetos, tempo e ocasião. Como regra, aquele que permuta
apenas entra em um tipo de transação já determinado, no qual tanto os objetos como as quantias
113

a eles equivalentes já são dados. Desse modo, aquilo que parece como o aspecto essencial da
troca para o pensamento do século XVIII, o elemento voluntário da barganha e do regateio, tão
expressivo como motivação presumida da permuta, tem realmente um objetivo muito limitado na
verdadeira transação. Mesmo que seu motivo fosse subjacente ao ato, raramente se lhe permite
atingir a superfície:

Com efeito, em face da evidência, seria audacioso afirmar que os mercados locais se
desenvolveram a partir de atos individuais de permuta. Embora seja muito obscuro o início
do mercado local, podemos afirmar com segurança que, desde o princípio, essa instituição
foi cercada por uma série de salvaguardas destinadas a proteger a organização econômica
vigente na sociedade de interferência por parte das práticas de mercado. A paz do mercado
era garantida ao preço de rituais e cerimônias que restringiam seu objetivo, enquanto
asseguravam sua capacidade de funcionar dentro dos estreitos limites dados. O resultado
mais significativo dos mercados - o nascimento de cidades e a civilização urbana - foi, de
fato, o produto de um desenvolvimento paradoxal. As cidades, as crias dos mercados, não
eram apenas as suas protetoras, mas também um meio de impedi-los de se expandirem pelo
campo e, assim, incrustarem-se na organização econômica corrente da sociedade. (Polanyi,
2000, p. 82).

A palavra "conter" possui aqui dois significados que talvez expressem melhor esta
dupla função das cidades em relação aos mercados, que elas tanto envolviam como impediam de
se desenvolver. O mercado local típico, no qual as donas de casa vão comprar algumas de suas
necessidades domésticas diárias e nos quais os agricultores de cereais ou verduras, assim como
os artesãos locais, oferecem seus artigos à venda, revelam uma impressionante indiferença
quanto a tempo e lugar. Reuniões desse tipo são não só bastante generalizadas nas sociedades
primitivas como também permanecem praticamente imutáveis até meados do século XVIII nos
países mais adiantados da Europa Ocidental. Elas constituem um acessório da existência local e
diferem muito pouco, quer façam parte da vida tribal centro-africana, que de uma cidade da
França merovíngia, ou de uma aldeia escocesa da época de Adam Smith. O que é verdadeiro em
relação à aldeia é também verdadeiro em relação à cidade. Os mercados locais são, essencial-
mente, mercados de vizinhança e, embora importantes para a vida das comunidades, em nenhum
lugar revelam indícios de reduzir o sistema econômico vigente a seus padrões. Eles não foram
pontos de partida do comércio interno ou nacional.

A cidade medieval típica não tentou evitar o perigo diminuindo o abismo entre o mercado
local controlável e as incertezas do um comércio de longa distância incontrolável, mas, ao
contrário, enfrentou o perigo reforçando com o máximo rigor aquela política de exclusão e
proteção que era o rationale da sua existência. (Polanyi, 2000, p 86).

Objetivamente, isto significa que as cidades levantaram todos os obstáculos possíveis


à formação daquele mercado nacional ou interno pelo qual pressionava o atacadista capitalista.
Mantendo o princípio de um comércio local não-competitivo e um comércio a longa distância
igualmente não-competitivo, levado a efeito de cidade a cidade, os burgueses dificultaram, por
114

todos os meios a seu dispor, a inclusão do campo no compasso do comércio e a abertura de um


comércio indiscriminado entre as cidades e o campo. Foi esse desenvolvimento que forçou o
estado territorial a se projetar como instrumento da "nacionalização" do mercado e criador do
comércio interno.
A ação deliberada do estado nos séculos XV e XVI impingiu o sistema mercantil às
cidades e às municipalidades ferrenhamente protecionistas. O mercantilismo destruiu o
particularismo desgastado do comércio local e intermunicipal, eliminando as barreiras que
separavam esses dois tipos de comércio não-competitivo e, assim, abrindo caminho para um
mercado nacional que passou a ignorar, cada vez mais, a distinção entre cidade e campo, assim
como as que existiam entre as várias cidades e províncias.

O sistema mercantil foi, na verdade, uma resposta a vários desafios. Do ponto de vista
político, o estado centralizado era uma nova criação, estimulada pela Revolução Comercial
que mudara o centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para as costas do
Atlântico, compelindo, assim, os povos atrasados de grandes países agrários a se
organizarem para o comércio e os negócios. Na política externa, o estabelecimento de um
poder soberano era a necessidade do dia; a nova política estatal mercantilista envolvia a
disciplina dos recursos de todo território nacional para os objetos de poder nos assuntos
externos. Na política interna, a unificação de países fragmentados pelo particularismo feudal
e municipal foi o subproduto necessário a um tal empreendimento. Do ponto de vista
econômico, o instrumento de unificação foi o capital, i.e., os recursos privados disponíveis
sob a forma de dinheiro acumulado, e portanto, peculiarmente adequado para o
desenvolvimento do comércio. Finalmente, a técnica administrativa subjacente à política
econômica do governo central foi fornecida pela ampliação do sistema municipal tradicional
ao território mais amplo do estado. Na França, onde as corporações artesanais tendiam a se
tornar órgãos do estado, o sistema de guildas foi simplesmente ampliado para todo o ter-
ritório do país. Na Inglaterra, onde a decadência das cidades fortificadas havia enfraquecido
fatalmente aquele sistema, o campo foi industrializado sem a supervisão de guildas,
enquanto em ambos os países os negócios e o comércio se espalhavam por todo o território
da nação e se tornavam a forma dominante da atividade econômica. Nesta situação reside a
origem da política comercial interna do mercantilismo. (Polanyi, 2000, p. 86-87).

Já se compreendia, naquela época, que a competição levaria, em última instância, ao


monopólio, mas o monopólio era ainda mais temido do que posteriormente, pois ele muitas
vezes estava ligado às necessidades da vida, e, portanto, podia tornar-se facilmente um perigo
para a comunidade. A intervenção estatal, que havia liberado o comércio dos limites da cidade
privilegiada, era agora chamada a lidar com dois perigos estreitamente ligados, os quais a cidade
havia contornado com sucesso, a saber, o monopólio e a competição. A solução encontrada foi a
total regulamentação da vida econômica, só que agora em escala nacional e não mais apenas
municipal.

O que para a mente moderna pode facilmente parecer como uma imprevidente exclusão da
competição, foi, na realidade, um meio de salvaguardar o funcionamento dos mercados,
naquelas circunstâncias. Qualquer intrusão temporária de compradores ou vendedores no
mercado poderia destruir o equilíbrio e decepcionar os compradores e vendedores regulares,
e o resultado seria a cessação do funcionamento do mercado. Os fornecedores antigos
115

deixaram de oferecer suas mercadorias por não terem uma garantia de preço e o mercado,
sem suprimentos suficientes, tornar-se-ia uma presa do monopólio. (Polanyi, 2000, p. 87)

O mesmo perigo estava presente no lado da demanda, em escala menor, onde uma
queda rápida poderia ser seguida por um monopólio da demanda. Cada passo que o estado
tomava para livrar o mercado de restrições particularistas, tributos e proibições, punha em perigo
o sistema organizado de produção e distribuição, o qual se via cada vez mais ameaçado por uma
competição não regulada e pela intrusão de aventureiros que "esvaziavam" o mercado mas não
ofereciam nenhuma garantia de permanência. Ocorreu assim que, embora os novos mercados
nacionais até certo ponto fossem competitivos, inevitavelmente, o que prevalecia era o aspecto
tradicional da regulamentação e não o novo elemento de competição. (Polanyi, op. cit., idem).
A domesticidade do camponês auto-suficiente que trabalhava para sua subsistência
continuou sendo a base mais ampla do sistema econômico que agora se integrava em grandes
unidades nacionais através da formação do mercado interno. Este mercado nacional assumiu o
seu lugar ao lado dos mercados local e estrangeiro, às vezes sobrepujando-os. A agricultura era
suplementada, agora, pelo comércio interno - um sistema de mercados relativamente isolados,
inteiramente compatível com o princípio da domesticidade ainda dominante no campo.
Isto conclui nossa sinopse da história do mercado até a época da Revolução
Industrial. O estágio seguinte na história da humanidade, como sabemos, acarretou uma tentativa
de estabelecer um grande mercado auto-regulável. Nada no mercantilismo, essa política distinta
do estado-nação ocidental, deixava prever um desenvolvimento tão singular. A "libertação" do
comércio levada a efeito pelo mercantilismo apenas liberou o comércio do particularismo,
porém, ao mesmo tempo, ampliou o escopo da regulamentação. O sistema econômico estava
submerso em relações sociais gerais; os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma
estrutura institucional controlada e regulada, mais do que nunca, pela autoridade social:

Em síntese, o rápido esboço dos sistemas econômicos e dos mercados, tomados em separado,
mostra que até a nossa época os mercados nada mais eram do que acessórios da vida
econômica. Como regra, o sistema econômico era absorvido pelo sistema social e, qualquer
que fosse o princípio de comportamento predominante na economia, a presença do padrão de
mercado sempre era compatível com ele. O princípio da permuta ou troca subjacente a esse
padrão não revelava qualquer tendência de expandir-se às expensas do resto do sistema.
Mesmo quando os mercados se desenvolveram muito, como ocorreu sob o sistema mercantil,
eles tiveram que lutar sob o controle de uma administração centralizada que patrocinava a
autarquia tanto no ambiente doméstico do campesinato como em relação à vida nacional. De
fato, as regulamentações e os mercados cresceram juntos. (Polanyi, 2000, p. 89)

O mercado auto-regulável era desconhecido e a emergência da idéia da auto-


regulação se constituiu numa inversão completa da tendência do desenvolvimento. Assim,
somente à luz desses fatos é que podem ser inteiramente compreendidos os extraordinários
pressupostos subjacentes à economia de mercado.
116

Uma economia de mercado é um sistema econômico controlado, regulado e dirigido


apenas por mercados; a ordem na produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo
“auto-regulável”. Uma economia desse tipo se origina da expectativa de que os seres humanos se
comportem de maneira tal a atingir o máximo de ganhos monetários. Ela pressupõe mercados
nos quais o fornecimento dos bens disponíveis (incluindo serviços) a um preço definido
igualarão a demanda a esse mesmo preço. Pressupõe também a presença do dinheiro, que fun-
ciona como poder de compra nas mãos de seus possuidores. A produção será, então, controlada
pelos preços, pois os lucros daqueles que dirigem a produção dependerão dos preços, os quais
formam rendimentos, e é com a ajuda desses rendimentos que os bens produzidos são
distribuídos entre os membros da sociedade. Partindo desses pressupostos, a ordem na produção
e na distribuição de bens seria assegurada apenas pelos preços.
A auto-regulação significa que toda a produção é para venda no mercado, e que todos
os rendimentos derivam de tais vendas. Por conseguinte, há mercados para todos os componentes
da indústria, não apenas para os bens (sempre incluindo serviços), mas também para o trabalho, a
terra e o dinheiro, sendo seus preços chamados, respectivamente, preços de mercadorias,
salários, aluguel e juros. Os próprios termos indicam que os preços formam rendas: juro é o
preço para o uso do dinheiro e constitui a renda daqueles que estão em posição de fornecê-lo.
Aluguel é o preço para o uso da terra e constitui a renda daqueles que a fornecem. Salários são os
preços para o uso da força de trabalho, que constitui a renda daqueles que a vendem. Finalmente,
os preços das mercadorias contribuem para a renda daqueles que vendem seus serviços
empresariais, sendo a renda chamada de lucro — na verdade, a diferença entre dois conjuntos de
preços, o preço dos bens produzidos e seus custos, isto é, o preço dos bens necessários para
produzi-los. Se essas condições são preenchidas, todas as rendas derivarão das vendas no
mercado, e as rendas serão apenas suficientes para comprar todos os bens produzidos.
Segue-se um outro conjunto de pressupostos em relação ao Estado e à sua política: a
formação dos mercados não deve ser inibida por nada, e os rendimentos não poderão ser
formados de outra maneira a não ser através das vendas. Não deve existir, ainda, qualquer
interferência no ajustamento dos preços às mudanças das condições do mercado — quer sejam
preços de bens, trabalho, terra ou dinheiro. Assim, é preciso que existam não apenas mercados
para todos os elementos da indústria, como também não deve ser adotada qualquer medida ou
política que possa influenciar a ação desses mercados. Nem os preços, nem a demanda devem ser
fixados ou regulados; só terão validades as políticas e as medidas que ajudem a assegurar a auto-
regulação do mercado, criando condições para fazer do mercado o único poder organizador na
esfera econômica.
117

Para compreender inteiramente o que isto significa, vamos voltar por um momento
ao sistema mercantil e aos mercados nacionais que ele tanto concorreu para desenvolver. Sob o
feudalismo e o sistema de guildas, a terra e o trabalho formavam parte da própria organização
social (o dinheiro ainda não se tinha desenvolvido no elemento principal da indústria). A terra, o
elemento crucial da ordem feudal, era a base do sistema militar, jurídico, administrativo e
político; seu status e função eram determinados por regras legais e costumeiras. Se a posse da
terra era transferível ou não e, em caso afirmativo, a quem e sob quais restrições; quais os
direitos de propriedade implicados; de que forma podiam ser utilizados alguns tipos de terra —
todas essas questões ficavam à parte da organização de compra e venda, e sujeitas a um conjunto
inteiramente diferente de regulamentações institucionais.
O mesmo também se aplicava à organização do trabalho. Sob o sistema de guildas,
como sob qualquer outro sistema econômico na história anterior, as motivações e as
circunstâncias das atividades produtivas estavam inseridas na organização geral das sociedades.
As relações do mestre, do jornaleiro e do aprendiz; as condições do artesanato; o número de
aprendizes; os salários dos trabalhadores, tudo era regulamentado pelo costume e pelas regras da
guilda e da cidade. O que o sistema mercantil fez foi apenas unificar essas condições, quer por
meio de estatutos, como na Inglaterra, quer pela "nacionalização" das guildas, no caso da França.
Quanto à terra, seu status feudal só foi abolido naquilo que estava ligado aos privilégios
provinciais — no restante, a terra permaneceu extra commercium, tanto na Inglaterra como na
França. Até a época da Grande Revolução de 1789, a propriedade fundiária continuou sendo
fonte de privilégios sociais na França e, mesmo depois dessa época, a lei comum sobre a terra, na
Inglaterra, era basicamente medieval. O mercantilismo, com toda a sua tendência em direção à
comercialização, jamais atacou as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da
produção — trabalho e terra — e os impedia de se tornarem objetos de comércio. Na Inglaterra,
a "nacionalização" da legislação do trabalho, por meio do Statute of Artificers (Estatuto dos
Artífices - 1563) e da Poor Law (Lei dos Pobres - 1601), retirou o trabalho da zona de perigo, e a
política anti-cercamentos dos Tudors e dos primeiros Stuarts foi um protesto concreto contra o
princípio do uso lucrativo da propriedade fundiária.
O mercantilismo, por mais que tivesse insistido enfaticamente na comercialização
como política nacional, pensava a respeito dos mercados de maneira exatamente contrária à
economia de mercado, o que fica bem demonstrado pela amplitude da intervenção estatal na
indústria. Neste ponto não havia diferença entre mercantilistas e feudalistas, entre planejadores
coroados e interesses investidos, entre burocratas centralizadores e particularistas conservadores.
Eles discordavam apenas quanto aos métodos de regulamentação: as guildas, as cidades e as
118

províncias apelavam para a força dos costumes e da tradição, enquanto a nova autoridade estatal
favorecia o estatuto e as leis. Todos eles, porém, eram igualmente avessos à idéia da
comercialização do trabalho e da terra — a precondição da economia de mercado.
As guildas artesanais e os privilégios feudais só foram abolidos na França em 1790;
na Inglaterra, o Statute of Artificers só foi revogado entre 1813 e 1814 e a Poor Law elisabetana,
em 1834. O estabelecimento do mercado livre de trabalho não foi sequer discutido, em ambos os
países, antes da última década do século XVIII, e a idéia da auto-regulação da vida econômica
estava inteiramente fora de cogitação nesse período. O mercantilismo se preocupava com o
desenvolvimento dos recursos do país, inclusive o pleno emprego, através dos negócios e do
comércio — e levava em conta, como um dado certo, a organização tradicional da terra e do
trabalho. Neste ponto ele estava tão afastado dos conceitos modernos como do campo da
política, onde a sua crença nos poderes absolutos de um déspota esclarecido não continha
quaisquer traços de democracia. A transição para um sistema democrático e uma política
representativa significou a total reversão da tendência da época, e da mesma forma a mudança
de mercados regulamentados para auto-reguláveis, ao final do século XVIII, representou uma
transformação completa na estrutura da sociedade:

Um mercado auto-regulável exige, no mínimo, a separação institucional da sociedade em


esferas econômica e política. Do ponto de vista da sociedade como um todo, uma tal
dicotomia é, com efeito, apenas um reforço da existência de um mercado auto-regulável.
Pode-se argumentar que a separação dessas duas esferas ocorra em todos os tipos de
sociedade, em todos os tempos. Uma tal inferência, porém, seria baseada numa falácia. É
verdade que nenhuma sociedade pode existir sem algum tipo de sistema que assegure a
ordem na produção e distribuição de bens. Entretanto, isto não implica a existência de
instituições econômicas separadas. Normalmente a ordem econômica é apenas uma função
da sociedade, na qual ela está inserida. Como já demonstramos, não havia um sistema
econômico separado na sociedade, seja sob condições tribais, feudais ou mercantis. A
sociedade do século XIX revelou-se, de fato, um ponto de partida singular, no qual a
atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta. (Polanyi,
2000, p. 92-93)

Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado. Chegamos a


esta conclusão, de uma maneira geral, em nossa análise do padrão de mercado. Podemos
especificar agora as razões desta nossa afirmativa. Uma economia de mercado deve compreender
todos os componentes da indústria, incluindo trabalho, terra e dinheiro. Acontece, porém, que o
trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as
sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado
significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado.
É com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo do mercado se engrena
aos vários elementos da vida industrial. As mercadorias são aqui definidas, empiricamente, como
objetos produzidos para a venda no mercado; por outro lado, os mercados são definidos
119

empiricamente como contatos reais entre compradores e vendedores. Assim, cada componente
da indústria aparece como algo produzido para a venda, pois só então pode estar sujeito ao
mecanismo da oferta e procura, com a intermediação do preço. Na prática, isto significa que
deve haver mercado para cada um dos elementos da indústria; que nesses mercados cada um
desses elementos é organizado num grupo de oferta e procura. Esses mercados, uma vez
numerosos, são interligados e constituem “um grande mercado”. “Hawtrey vê a sua função
tornando mutuamente consistente os valores relativos de mercado de todas as mercadorias". (G.
R. Hawtrey, The economic problem, 1925, p. 13 – citado por Polanyi, op. cit., p. 93)

O ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria.
Eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma
parte absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro
obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem
que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras
palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são mercadorias.
Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria vida que,
por sua vez, não é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas, e essa
atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada.
Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o
dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido mas
adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é
produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é
inteiramente fictícia. (Polanyi, 2000, p. 94)

É precisamente com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do
trabalho, da terra e do dinheiro, donde a afirmativa de Marx sobre o caráter fetichista do valor
das mercadorias (K. Marx, O Capital, s/ref. – citado por Polanyi, op. cit. p. 94). Esses elementos
são, na verdade, comprados e vendidos no mercado; sua oferta e procura são magnitudes reais, e
quaisquer medidas ou políticas que possam inibir a formação de tais mercados poriam em perigo,
ipso facto, a auto-regulação do sistema. A ficção da mercadoria, portanto, oferece um princípio
de organização vital em relação à sociedade como um todo, afetando praticamente todas as suas
instituições, nas formas mais variadas. É este o princípio de acordo com o qual não se pode
permitir qualquer entendimento ou comportamento que venha a impedir o funcionamento real do
mecanismo de mercado nas linhas de ficção da mercadoria.

Ora, em relação ao trabalho, à terra e ao dinheiro não se pode manter um tal postulado.
Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e
do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra,
resultaria no desmoronamento da sociedade. Esta suposta mercadoria, "a força de trabalho",
não pode ser impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não-utilizada, sem afetar
também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar. Ao
dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da
entidade física, psicológica e moral do "homem" ligado a essa etiqueta. (Polanyi, op. cit., p.
94-95 – itálico nosso)
120

Uma vez despojados da cobertura protetora das instituições culturais, os seres


humanos sucumbiriam sob os efeitos do abandono social. A natureza seria reduzida a seus
elementos mínimos, conspurcadas as paisagens e os arredores, poluídos os rios, a segurança
militar ameaçada e destruído o poder de produzir alimentos e matérias-primas. Por fim, a
administração do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas periodicamente,
pois as faltas e os excessos de dinheiro seriam tão desastrosos para os negócios como as
enchentes e as secas nas sociedades primitivas. Os mercados de trabalho, terra e dinheiro são,
sem dúvida, essenciais para uma economia de mercado. Entretanto, nenhuma sociedade
suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções, mesmo por um período de tempo
muito curto, a menos que a sua substância humana natural, assim como a sua organização de
negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico (Polanyi, op. cit., p. 95). A
artificialidade da economia de mercado está enraizada no fato de o próprio processo de produção
ser obtido sob a forma de compra e venda. Em sociedades comerciais, não é possível outra forma
de organizar a produção para o mercado.
Durante a Idade Média, a produção industrial para exportação foi organizada por bur-
gueses ricos e levada a efeito sob sua supervisão direta, em sua cidade natal. Mais tarde, na
sociedade mercantil, a produção foi organizada por mercadores e não se restringia mais às
cidades. Esta foi a época dos deslocamentos, quando a indústria doméstica era provida de
matérias-primas pelo capitalista mercador, o qual controlava o processo de produção como uma
empresa puramente comercial. Foi nessa ocasião que a produção industrial se colocou
definitivamente, e em grande escala, sob a liderança organizadora do mercador. Ele conhecia o
mercado, o volume e a qualidade da demanda, e podia se encarregar também dos suprimentos
que, incidentalmente, consistiam apenas em lã, tinturas e, às vezes, molduras ou teares usados
pela indústria doméstica. Se não houvesse suprimentos, o aldeão era o mais prejudicado, pois
perdia seu emprego durante algum tempo. O caso não envolvia nenhuma fábrica dispendiosa e o
mercador não incorria em risco sério ao assumir a responsabilidade da produção. Durante
séculos esse sistema cresceu em poder e objetivo até que finalmente, num país como a Inglaterra,
a indústria da lã, produto básico nacional, atingiu grandes setores do país onde a produção era
organizada pelo negociante de tecidos.

A propósito, aquele que comprava e vendia provia também a produção - não era preciso uma
outra motivação. A criação de bens não envolvia atitudes recíprocas de ajuda mútua; não
havia a preocupação do chefe de família por aqueles cujas necessidades provia; nem o orgu-
lho do artesão no exercício da sua profissão; nem a satisfação do elogio público - nada além
do motivo simples do lucro, tão familiar ao homem cuja profissão é comprar e vender. Até o
final do século XVIII, a produção industrial na Europa Ocidental já era um mero acessório
do comércio. (Polanyi, 2000, p. 96).
121

Enquanto a máquina foi uma ferramenta barata e não-qualificada, não houve


qualquer mudança nesta situação. O simples fato do tecelão doméstico poder produzir
quantidades maiores do que antes, no mesmo espaço de tempo, poderia induzi-lo a usar
máquinas para aumentar seus ganhos, porém este fato em si mesmo não afetava,
necessariamente, a organização da profissão. O fluxo de bens raramente se expandia; a
dificuldade maior continuava a ser o fornecimento de matérias-primas, às vezes inevitavelmente
interrompido. Mesmo em tais casos, o prejuízo do mercador proprietário das máquinas não era
substancial.

Não foi o aparecimento da máquina em si mas a invenção de maquinarias e fábricas


complexas e, portanto, especializadas, que mudou completamente a relação do mercador
com a produção. Embora a nova organização produtiva tenha sido introduzida pelo mercador
- fato esse que determinou todo o curso da transformação -, a utilização de maquinarias e
fábricas especializadas implicou o desenvolvimento do sistema fabril e, com ele, ocorreu
uma alteração decisiva na importância relativa do comércio e da indústria, em favor dessa
última. A produção industrial deixou de ser um acessório do comércio organizado pelo
mercador como proposição de compra e venda; ela envolvia agora investimentos a longo
prazo, com os riscos correspondentes, e a menos que a continuidade da produção fosse
garantida, com certa margem de segurança, um tal risco não seria suportável. (Polanyi, 2000,
idem).

De acordo com a complexificação da produção industrial, mais numerosos passaram


a ser os elementos da indústria que exigiam garantia de fornecimento e três deles eram de
importância fundamental: o trabalho, a terra e o dinheiro. Numa sociedade comercial esse
fornecimento só podia ser organizado de uma forma: tornando-os disponíveis à compra. Agora
eles tinham que ser organizados para a venda no mercado, ou seja, em outras palavras, se
transformarem em mercadorias. A ampliação do mecanismo de mercado aos componentes da
indústria — o trabalho, a terra e o dinheiro — foi a conseqüência inevitável da introdução do
sistema fabril numa sociedade comercial.
De certo, isto estava de acordo com a exigência de um sistema de mercado. Sabemos
que num sistema como esse os lucros só podem ser assegurados se se garante a auto-regulação
através de mercados competitivos interdependentes. Como o desenvolvimento do sistema fabril
se organizara como parte de um processo de compra e venda, o trabalho, a terra e o dinheiro
também tiveram que se transformar em mercadorias para manter a produção em andamento. É
verdade que eles não puderam ser transformados em mercadorias reais, pois não eram produzi-
dos para venda no mercado. Entretanto, a ficção de serem assim produzidos tornou-se o princípio
organizador da sociedade. Dos três elementos, um se destaca mais:

[...]trabalho (mão-de-obra) é o termo técnico usado para os seres humanos na medida em que
não são empregadores mas empregados. Segue-se daí que a organização do trabalho mudaria
simultaneamente com a organização do sistema de mercado. Entretanto, como a organização
do trabalho é apenas um outro termo para as formas de vida do povo comum, isto significa
122

que o desenvolvimento do sistema de mercado seria acompanhado de uma mudança na


organização da própria sociedade. Seguindo este raciocínio, a sociedade humana tornara-se
um acessório do sistema econômico. (Polanyi, 2000, p. 97).

Dissemos que, como regra, o progresso é feito à custa da desarticulação social. Basta
relembrar o paralelo entre as devastações dos cercamentos na história inglesa e a catástrofe
social que se seguiu à Revolução lndustrial. Se o ritmo desse transtorno é exagerado, a comu-
nidade pode sucumbir no processo. Os Tudors e os primeiros Stuarts salvaram a Inglaterra do
destino da Espanha, regulamentando o curso da mudança de forma a torná-la suportável, e
puderam canalizar seus efeitos por caminhos menos destruidores. Nada, porém, foi feito para sal-
var o povo comum da Inglaterra do impacto da Revolução Industrial. Uma fé cega no progresso
espontâneo havia se apossado da mentalidade das pessoas e, com o fanatismo de sectários, os
mais esclarecidos pressionavam em favor de uma mudança na sociedade, sem limites nem
regulamentações. Os efeitos causados nas vidas das pessoas foram terríveis, quase indescritíveis.
A sociedade humana poderia ter sido aniquilada, de fato, não fosse a ocorrência de alguns
contramovimentos protetores que cercearam a ação desse mecanismo autodestrutivo:

A história social do século XIX foi, assim, o resultado de um duplo movimento; a ampliação
da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua
restrição em relação às mercadorias fictícias. Enquanto, de um lado, os mercados se
difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções
inacreditáveis, de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas
instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro.
Enquanto a organização dos mercados mundiais de mercadorias, dos mercados mundiais de
capitais e dos mercados mundiais de moedas, sob a égide do padrão-ouro, deu um
momentum sem paralelo ao mecanismo de mercados, surgiu um movimento bem estruturado
para resistir aos efeitos perniciosos de uma economia controlada pelo mercado. A sociedade
se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável, e este foi o
único aspecto abrangente na história desses período. (Polanyi, 2000, p. 98)

1.4. A regulação como condição dos mercados “livres”: a constituição do mercado de


trabalho
Embora, como vimos, desde os ideólogos da liberdade burguesa (de propriedade e
dos mercados “auto-regulados”), a suposição da evolução natural dos mercados livres haja sido
um dos seus princípios mais ardentemente defendidos, o estabelecimento de uma economia de
mercado no Ocidente capitalista teria, paradoxalmente como condição, o intervencionismo e a
contenção da própria liberdade de mercado. Fosse por seu caráter totalmente estranho à
economia de sociedades fundamentadas na interdependência e reciprocidade, onde o trabalho, a
terra e o dinheiro jamais se justificavam como “mercadorias”, fosse pelo caráter eminentemente
predatório e desumanizador do novo sistema que se impunha por um oportunismo arbitrário e
123

expropriador, a implantação de uma economia de mercado esteve longe de representar uma


evolução tão “natural” quanto o termo “progresso” pretendesse caracterizá-la.
Desse modo, a sociedade do século XVIII resistiu, ainda que inconscientemente, a
qualquer tentativa de transformá-la em mero apêndice do mercado. Não era concebível uma
economia de mercado que não incluísse um mercado de trabalho, mas estabelecê-lo,
especialmente na civilização rural da Inglaterra, significava nada menos do que destruir
totalmente o tecido tradicional da sociedade. Mesmo durante o período mais ativo da Revolução
Industrial, de 1795 a 1834, impediu-se a criação de um mercado de trabalho na Inglaterra através
da Speenhamland Law.
O mercado de trabalho foi o último dos mercados a ser organizado sob o novo
sistema industrial, e esse passo final só foi tomado quando a economia de mercado foi posta em
marcha e a ausência de um mercado de trabalho provou ser um mal ainda maior para o próprio
povo comum do que as calamidades que acompanhariam a sua introdução. No final, o mercado
livre de trabalho, a despeito dos métodos desumanos empregados na sua criação, provou ser
financeiramente benéfico para todas as partes envolvidas, uma vez que uma economia de
mercado, sem um mercado de trabalho, implicaria no perecimento da maioria da população da
qual ele ao mesmo tempo dependeria, estrutural ou “organicamente”, para poder existir.
E agora surgia o problema crucial: as vantagens econômicas de um mercado livre de
trabalho não podiam compensar a destruição social que ele acarretaria. Tiveram que ser
introduzidas regulamentações de um novo tipo para mais uma vez proteger o trabalho, só que,
agora, contra o funcionamento do próprio mecanismo de mercado. Embora as novas instituições

protetoras — sindicatos e leis fabris — fossem adaptadas, tanto quanto possível, às


exigências do mecanismo econômico, elas interferiam com a sua auto-regulação e finalmente
destruíram o sistema.
Na ampla lógica desse desenvolvimento, a Speenhamland Law ocupou uma posição
estratégica. Na Inglaterra, tanto a terra como o dinheiro foram mobilizados antes do trabalho.
Este se viu impedido de formar um mercado nacional pelas restrições estritamente legais
impostas à sua mobilidade física: o trabalhador estava praticamente restrito à sua paróquia.

O Act of Settlement (Decreto de Domicílio) de 1662, que estabeleceu as regras da assim


chamada servidão paroquial, só foi abrandado em 1795. Esse passo tornaria possível o
estabelecimento de um mercado nacional de trabalho se não tivesse surgido, no mesmo ano,
a Speenhamland Law ou "sistema de abonos". A intenção dessa lei tinha um sentido oposto,
isto é, o de reforçar poderosamente o sistema paternalista da organização de trabalho, nos
moldes herdados dos Tudors e dos Stuarts. Os juízes de Berkshire, num encontro no Pelikan
Inn, em Speenhamland, próximo a Newbury, em 6 de maio de 1795, numa época de grande
perturbação, decidiram conceder abonos, em aditamento aos salários, de acordo com uma
124

tabela que dependeria do preço do pão. Assim, ficaria assegurada ao pobre uma renda
mínima independente dos seus proventos. Isto foi feito como uma medida de emergência,
introduzida informalmente. Embora chamada comumente de lei, a própria tabela nunca foi
promulgada. Passou, porém, a vigorar como lei na maior parte do campo e, mais tarde, até
mesmo em alguns distritos manufatureiros. Na verdade, ela introduziu uma inovação social e
econômica que nada mais era que o "direito de viver" e, até ser abolida, em 1834, ela
impediu efetivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitivo. Desde
1832, dois anos antes portanto, a classe média vinha forçando seu caminho em direção ao
poder, em parte para remover esse obstáculo à nova economia capitalista. Com efeito, nada
poderia ser mais óbvio do que o fato de o sistema de salários exigir imperativamente a
abolição do "direito de viver" conforme proclamada pela Speenhamland. Naturalmente, sob
o novo regime do homem econômico, ninguém trabalharia por um salário se pudesse
sobreviver sem fazer nada. (Polanyi, 2000, p 100).

Outro aspecto da anulação do método Speenhamland revelou-se menos óbvio para a


maioria dos escritores do século XIX, a saber, que o sistema de salários teria que se tornar
universal no interesse dos próprios assalariados, embora isto significasse privá-los da sua
direito legal à subsistência. O "direito de viver" provara ser uma armadilha mortal. Com a
Speenhamland pretendia-se que a Poor Law fosse administrada liberalmente, porém, ela se
transformou de fato no oposto do seu intento original. Como vimos em Castel (2002), pela lei
elisabetana os pobres eram forçados a trabalhar com qualquer salário que pudessem conseguir e
somente aqueles que não conseguiam trabalho tinham direito a assistência social. Nunca se
pretendeu e nem se concedeu qualquer assistência sob a forma de abono salarial. Durante a
vigência da Speenhamland Law, o indivíduo recebia assistência mesmo quando empregado, se
seu salário fosse menor do que a renda familiar estabelecida pela tabela. Ora, nenhum
trabalhador tinha qualquer interesse material em satisfazer seu empregador, uma vez que a sua
renda era a mesma qualquer que fosse o seu salário. A situação era diferente apenas no caso dos
salários-padrão, isto é, quando os salários pagos excediam a tabela, ocorrência esta muito pouco
comum no campo, uma vez que o empregador podia conseguir trabalhadores a qualquer preço.
Por menos que ele pagasse, o subsídio auferido por meio dos impostos sempre elevava a renda
do trabalhador até o nível determinado pela tabela. Assim, em poucos anos a produtividade do
trabalho começou a declinar até o nível do trabalho indigente, oferecendo aos empregadores
mais um motivo para não elevar os salários além da tabela.
Depois que a intensidade do trabalho, o cuidado e a eficiência com o qual era execu-
tado caíram abaixo de um nível definido, ele chegou quase à "inutilidade". Apesar de o trabalho
ainda ser obrigatório em princípio, na prática a assistência externa se tornou geral, e mesmo
quando prestada nos asilos de indigentes dificilmente se poderia chamar de trabalho a ocupação
obrigatória a que se entregavam os seus internos.
Isto resultou no abandono da legislação Tudor, não em nome de um menor
paternalismo, mas de um ainda maior. A ampliação da assistência externa, a introdução de
125

abonos salariais, suplementados ainda por abonos separados para a mulher e os filhos, e que
aumentavam ou diminuíam de acordo com o preço do pão, significavam, em relação ao trabalho,
uma renovação dramática do mesmo princípio regulador que se estava eliminando rapidamente
na vida industrial como um todo. Nenhuma outra medida, segundo Polanyi, se popularizou mais
amplamente: pais não precisavam cuidar dos filhos; filhos não dependiam mais dos pais; os
empregadores podiam reduzir os salários a bel-prazer e os trabalhadores não passavam fome,
quer fossem diligentes ou preguiçosos. “Os humanitaristas aplaudiam a medida como ato de
piedade, senão de justiça, e os egoístas se consolavam com o pensamento de que se tratava de
um gesto de caridade e não de um ato liberal. Mesmo os contribuintes dos impostos custaram a
compreender o que aconteceria a esses impostos num sistema que proclamava o "direito de
viver" quer um homem trabalhasse por um salário vivo ou não.” (H. O. Meredith, Outlines of the
Economics History of England, 1908 – citado por Polanyi, 2000, p. 102).
Apesar de algum tempo ser necessário até que o “respeito próprio do homem
comum descesse a um nível tão baixo a ponto dele preferir a assistência aos pobres ao salário”, o
fato é que esse salário, subsidiado por fundos públicos, chegou a um ponto tal que ele se viu
forçado a recorrer à assistência dos impostos. Pouco a pouco o pessoal do campo foi se
pauperizando; o adágio "uma vez por conta dos impostos, sempre por conta deles" passou a ser
uma verdade incontestável. (Polanyi, op. cit.). Seria impossível explicar a degradação humana e
social do capitalismo primitivo sem os prolongados efeitos do sistema de abonos.

O episódio de Speenhamland revelou ao povo do principal país do século a verdadeira


natureza da aventura social na qual estavam embarcando. Dirigentes e dirigidos jamais
esqueceram a lição daquele paraíso de todos. Se o Reform Bill (Reforma dos Impostos) de
1832 e a Poor Law Amendment (Emenda da Lei dos Pobres) de 1834 foram vistos como
pontos de partida do capitalismo moderno, é porque puseram um ponto final no domínio do
latifundiário benevolente e seu sistema de abono. A tentativa de criar uma ordem capitalista
sem um mercado de trabalho falhara e as leis que governavam uma tal ordem já se haviam
afirmado e manifestavam seu antagonismo radical ao princípio do paternalismo. Seu rigor
era visível e sua violação acarretava sanções cruéis contra aqueles que a tentavam. (Polanyi,
2000, p. 102).

Pela Speenhamland Law a sociedade se debatia entre duas influências opostas: a que
emanava do paternalismo e que protegia a mão-de-obra dos perigos de um sistema de mercado, e
a que organizava os elementos da produção, inclusive a terra, sob um sistema de mercado,
afastando a gente comum do seu status anterior, compelindo-a a ganhar a vida oferecendo seu
trabalho à venda enquanto, ao mesmo tempo, privava esse trabalho do seu valor de mercado.
Criava-se uma nova classe de empregadores, mas não se podia constituir uma classe
correspondente de empregados. Uma nova onda gigantesca de cercamentos mobilizava a terra e
produzia um proletariado rural, enquanto a "má administração da Poor Law" impedia esse
126

proletariado de ganhar a vida com o seu trabalho. Não é de admirar que os contemporâneos se
sentissem estarrecidos diante da aparente contradição entre um aumento quase miraculoso na
produção e uma quase inanição das massas. Já em 1834 havia a convicção geral de que qualquer
coisa era preferível à continuação da Speenhamland Law. Ou as máquinas teriam que ser
desmontadas, como os Ludistas tentaram fazer, ou tinha que ser criado um mercado de trabalho
regular. Assim a humanidade se viu “forçada a ingressar no caminho de uma experiência
utópica”. (Polanyi, op. cit., p. 103).
Em face do teor dessa tal lei, o "direito de viver" deveria ter acabado de vez com o
trabalho assalariado. Os salários-padrão deveriam ter baixado gradualmente até o nível zero,
ficando totalmente por conta da paróquia o pagamento dos salários. Se isto ocorresse, ficaria
patente o absurdo desse dispositivo. Esse, porém, era um período essencialmente pré-capitalista,
em que as pessoas comuns ainda pensavam de modo tradicional e ainda não pautavam seu
comportamento apenas por motivações monetárias. A grande maioria das pessoas do campo era
de posseiros-proprietários ou posseiros vitalícios que preferiam qualquer tipo de vida à situação
de indigente, ainda que esta não fosse deliberadamente sobrecarregada por limitações penosas
como aconteceria posteriormente. Se os trabalhadores tivessem a liberdade de fazer combinações
para favorecer seus interesses, o sistema de abonos talvez pudesse causar um efeito contrário no
padrão de salários: a assistência aos empregados, implícita numa administração tão liberal da
Poor Law, teria ajudado muito a ação dos sindicatos.
Se a Speenhamland significava a decomposição da imobilidade secularizada, agora o
perigo era a morte pela exposição:

Um mercado de trabalho competitivo só foi estabelecido na Inglaterra após 1834; assim, não
se pode dizer que o capitalismo industrial, como sistema social, tenha existido antes desta
data. Quase imediatamente, porém, a autoproteção da sociedade se manifestou - surgiram
leis fabris e uma legislação social, assim como a movimentação política e industrial da classe
trabalhadora. Foi justamente com essa tentativa de evitar os perigos totalmente novos do
mecanismo de mercado que a ação protetora entrou em conflito fatal com a auto-regulação
do sistema. Não é exagero dizer que a história social do século XIX foi determinada pela
lógica do sistema de mercado propriamente dito, após ter sido ele liberado pelo Poor Law
Reform Act de 1834. O ponto de partida dessa dinâmica foi a Speenhamland Law.
Se sugerimos que o estudo da Speenhamland é o estudo do nascimento da civilização do
século XIX, não temos em mente exclusivamente seus efeitos econômicos e sociais, nem
mesmo a influência determinante desses efeitos sobre a moderna história política, mas o fato
de que a nossa consciência social foi fundida nesse molde, fato esse desconhecido da atual
geração. (Polanyi, 2000, p. 106)

A figura do indigente, quase esquecida desde então, dominava uma discussão que
deixou marcas tão profundas como as dos acontecimentos mais espetaculares da história. Se a
Revolução Francesa muito deveu ao pensamento de Voltaire e Diderot, Quesnay e Rousseau, a
discussão em torno da Poor Law formou as mentes de Bentham e Burke, Godwin e Malthus,
127

Ricardo e Marx, Robert Owen e John Stuart Mill, Darwin e Spencer, que partilharam com a
Revolução Francesa a paternidade espiritual da civilização do século XIX. Durante as décadas
que se seguiram à Speenhamland e à Poor Law Reform foi que a mente do homem se voltou para
a sua própria comunidade com um nova angústia e preocupação: a “revolução” que os juízes de
Berkshire em vão tentaram frear e que a Poor Law Reform eventualmente liberou, modificara a
visão dos homens em relação a seu ser coletivo, como se a sua presença tivesse sido esquecida
até então. Descobriu-se um mundo de presença insuspeitada, o das leis que governam uma
sociedade complexa. Embora a emergência da sociedade, neste sentido novo e característico,
tenha ocorrido no campo econômico, seu referencial foi muito mais abrangente, universal.
A realidade nascente chegou à nossa consciência por intermédio da economia
política. Com efeito, suas regularidades surpreendentes e contradições assombrosas tinham que
ser enquadradas num esquema de filosofia e teologia para poderem ser assimiladas com
significados humanos. Os fatos obstinados e as leis brutais e inexoráveis que surgiram para
“abolir nossa liberdade” tinham que se reconciliar, de uma forma ou de outra, com essa mesma
liberdade. Isto se tornou a mola mestra das forças metafísicas que secretamente sustentaram os
positivistas e os utilitaristas. Com muita agudeza Polanyi irá concluir:

A resposta ambivalente da mente a essas terríveis limitações foi uma esperança irrestrita e
um desespero ilimitado, que se voltavam para as regiões ainda não-exploradas das
possibilidades humanas. Do pesadelo da população e das leis salariais destilou-se a
esperança, a visão de um possível constante aperfeiçoamento, e ela se materializou num
conceito de progresso tão inspirados que parecia justificar as enormes e dolorosas distorções
por vir, e que sempre vieram. O desespero provaria ser um agente ainda mais poderoso da
transformação. (Polanyi, op. cit., p. 107 – itálicos nossos).

Daí o fato do ideal de progresso, sempre prospectivo, devidamente apropriado


ideologicamente pelo liberalismo econômico. Tudo o que há de desesperador hoje, é o efeito
colateral da cura para todo mal, que o próprio progresso trará.

Foi assim que a descoberta da sociedade integrou-se ao universo espiritual do homem. Mas,
de que forma essa nova realidade da sociedade seria traduzida em termos de vivência? Como
guias para a prática, os princípios morais da harmonia e do conflito tinham atingido seu
limite e pelejavam, dentro de um padrão de completa contradição. Dizia-se que a harmonia
era inerente à economia pois, em última instância, os interesses do indivíduo e da
comunidade eram idênticos. Todavia, uma tal auto-regulação harmoniosa exigia que o
indivíduo respeitasse a lei econômica mesmo que ela o destruísse. O conflito também parecia
inerente à economia, seja como competição entre indivíduos, seja como luta de classes —
mas esse conflito poderia transformar-se apenas no veículo de uma harmonia mais profunda,
imanente numa sociedade atual ou talvez futura. (Polanyi, 2000, p. 107).

Assim, a questão do pauperismo, a economia política e a descoberta da sociedade


estiveram sempre estreitamente interligados. O pauperismo fixou a atenção no fato
incompreensível de que a pobreza parecia acompanhar a abundância. Este, porém, foi apenas o
128

primeiro dos surpreendentes paradoxos com os quais a sociedade industrial confrontou o homem
moderno. Este penetrara no seu novo domínio pela porta da economia e essa circunstância
fortuita envolveu o período com a sua aura materialista. Para Ricardo e Malthus nada parecia
mais real do que os bens materiais. As leis do mercado significavam para eles o limite das
possibilidades humanas.
Foi em relação ao problema da pobreza que as pessoas começaram a explorar o
significado da vida numa sociedade complexa, dominada pela economia de mercado. A
introdução da economia política no reino do universal aconteceu em duas perspectivas opostas: a
do progresso e do aperfeiçoamento, de uma lado, e a do determinismo e da perdição, do outro. A
sua tradução para a prática também foi alcançada por dois caminhos opostos: pelo princípio da
harmonia e da auto-regulação, de um lado, e da competição e do conflito, do outro. Tais
contradições moldam nossas sociedades até presentemente.

2. A EDUCAÇÃO PARA TODOS: O DILEMA E OS PARADOXOS DA EDUCAÇÃO LIBERAL

Os primeiros sistemas escolares que surgem na história do Ocidente tiveram pouco a


ver com a economia, sendo concernentes, antes de tudo, a fatores e fins políticos, religiosos ou
militares (Fernandez Enguita, 1989). Como vimos, esta afirmação não deve nos surpreender,
uma vez que, em primeiro lugar, a economia estava subsumida à vida comunitária, sobretudo no
que se refere aos mercados. Em segundo lugar, porque até a consolidação da sociedade industrial
capitalista, quase todas as pessoas aprendiam seu trabalho fazendo-o:

A grande maioria, os camponeses, aprendiam sem necessidade sequer de sair da esfera


doméstica, constituída por unidades econômicas quase auto-suficientes. E uma pequena
minoria por caminhos de um alcance um pouco maior, como os candidatos a artesãos em seu
périplo como aprendizes e oficiais, mas sem necessidade de recorrer a mecanismos alheios
às próprias instituições produtivas, embora transcendessem a unidade doméstica de origem.
(Fernandez Enguita, 1989, p. 129).

Para Enguita, os primeiros anúncios de sistema escolar no caso ocidental foram


produto dos impérios, do Baixo Império Romano e do Império Carolíngeo. Mas esta necessidade
se originava do fato de serem impérios burocráticos que não podiam prescindir de um corpo de
funcionários instruídos para a função de escribas, indivíduos conhecedores, pelo menos, da
leitura e da escrita e dos rudimentos da matemática e das leis vigentes. Um sistema estatal, seja
em qual época for, estava sempre ligado à burocracia, que por sua vez deve sua função e
legitimação ao monopólio de determinados saberes, e, portanto, necessita de um sistema escolar
para poder se reproduzir.
129

Este quadro, que de certo modo pouco se difere quanto às origens burocráticas do
que teria ocorrido aos povos do Oriente, incluiu também os aspectos religiosos das diversas
civilizações letradas do globo, o que sem dúvida também influiu decisivamente sobre a
sistematização de conhecimentos e sua difusão. Aliás, em todas as civilizações primitivas com
poderes instituídos, o próprio funcionamento das estruturas de poder era simbiótico à religião e
seus códigos e, portanto, possuíam o caráter de indiferenciação.
Outros sistemas escolares surgiram principalmente no calor das lutas estritamente
religiosas:

Isto é certo, quando menos, para os estados alemães da época da Reforma protestante — e,
como reação, para os católicos, por exemplo a expansão do ensino dos jesuítas —, para a
Escócia e para um grande número de escolas inglesas criadas como arma na luta entre as
seitas e as denominações. Em geral, para o protestantismo não há outro intermediário entre a
pessoa e Deus senão as Sagradas Escrituras, o que exige, e exigiu naquele momento, que
todos fossem capazes de lê-las. Por outro lado, os reformadores religiosos, mais que
ninguém, não ignoravam o enorme poder doutrinador da escola. (Fernandez Enguita, 1989,
p. 130).

Por sua vez, a formação dos estados nacionais modernos foi outro desencadeador da
expansão do ensino. Estes reuniram dentro de algumas fronteiras únicas, sob um poder e
algumas leis comuns e por uma só língua, povos que pouco antes não cessavam de guerrear entre
si, com costumes, leis e línguas diferentes e bastante alheios à idéia da unificação. A tarefa fora,
então, preponderantemente atribuída à escola e isto pôde ser claramente visto nos processos de
formação da nação alemã ou espanhola. No mesmo sentido, deve-se interpretar o
empreendimento de assimilação das sucessivas levas de imigrantes aos Estados Unidos da
América ou, depois da Revolução de Outubro, na União Soviética, ou, para mudar de hemisfério,
o papel da escola nas nações da África negra e do Oriente Médio (Fernandez Enguita, op. cit,
idem).
O outro imperativo fora a necessidade de dominar uma certa quantidade de
conhecimentos e destrezas para desenvolver-se em qualquer trabalho ou fora dele em uma
sociedade industrializada e urbanizada:

Efetivamente, desde o momento em que a aprendizagem do trabalho e da vida social já não


se revela possível diretamente ou, ao menos, exclusivamente, no próprio local de trabalho —
sobretudo a primeira — é preciso voltar-se para a escola (mas também para outras
instituições, velhas ou novas, como a família e os meios chamados de comunicação de
massas) para que desempenhe tal função. (Fernandez Enguita, 1989, p. 130).

Deste modo, torna-se claro que as escolas antecederam o capitalismo e a indústria e


continuaram a se desenvolver com eles, mas por razões a eles alheias. Entretanto, diz-nos
Enguita, pode-se afirmar que, desde um certo momento de desenvolvimento do capitalismo
(processo que seria tão difícil quanto “ocioso” datar), as necessidades deste em termos de mão de
130

obra “foram o fator mais poderoso a influir nas mudanças ocorridas no sistema escolar em seu
conjunto e entre as quatro paredes da escola.” Este argumento poderia, por fim, ser ampliado
tendo-se em conta a existência do setor público nas economias nacionais capitalistas ou
assinalando as semelhanças morfológicas e funcionais entre as escolas do capitalismo ocidental e
as dos sistemas burocráticos dos países do Leste, “mas isto não acrescentaria nada de
essencialmente diferente ao que aqui se pretendeu demonstrar.” (Fernandez Enguita, op. cit.,
idem)
A questão de por que o capitalismo teria sido tão capaz de dar forma à escolarização
é algo relativamente fácil de ser compreendido:

1) Em primeiro lugar, as grandes empresas capitalistas sempre exerceram uma grande


influência sobre o poder político, quando não foram capazes de instrumentalizá-lo
abertamente.
2) Em segundo lugar, além das autoridades públicas foram apenas os "filantropos"
recrutados ou auto-recrutados entre as fileiras do capital os que puderam prover de fundos
um grande número de iniciativas privadas e, de preferência, como é lógico, as que mais se
ajustavam a seus desejos e necessidades.
3) Em terceiro lugar, os supostos beneficiários das escolas ou os que atuavam em seu nome
sempre viram estas, essencialmente ou em grande medida, como um caminho para o trabalho
e, sobretudo, para o trabalho assalariado, aceitando, por conseguinte, de boa ou má vontade,
sua subordinação às demandas das empresas.
4) Em quarto lugar, as escolas, como organizações que são, têm elementos em comum com
as empresas que facilitam o emprego das primeiras como campo de treinamento para as
segundas.
5) Em quinto lugar, as empresas sempre apareceram na sociedade capitalista como o
paradigma da eficiência e gozaram sempre de uma grande legitimidade social, seja como
instituições desejáveis eu como instituições inevitáveis — exceto em alguns períodos de
agitação social, os mesmos em que também se viram questionadas as escolas convertendo-se
assim em um modelo a imitar para as autoridades educacionais.
6) E, em último lugar, mas não por sua importância, convém recordar que as escolas de hoje
não são o resultado de uma evolução não conflitiva e baseada em consensos generalizados,
mas o produto provisório de uma longa cadeia de conflitos ideológicos, organizativos e, em
um sentido amplo, sociais. (Fernandez Enguita, 1989, p.131 – itálico nosso).

Entretanto, a maior parte da historiografia da escola, elaborada geralmente por


escolares “já crescidos” mas que raramente saíram dos claustros da instituição, tendeu a basear-
se na mera análise da evolução do discurso pedagógico, da sucessão de escolas modelares
através das épocas ou da evolução de cifras agregadas que agrupavam sob epígrafes comuns
realidades não acumuláveis nem comparáveis. Por outro lado, é bem sabido que a história é
acima de tudo escrita pelos vencedores, “sendo sempre mais conveniente apresentar a história
da escola como um longo e frutífero caminho desde as presumidas misérias de ontem até as
supostas glórias de hoje ou de amanhã que, por exemplo, como um processo de domesticação da
131

humanidade a serviço dos poderosos. A verdade, dizia Hegel, é revolucionária.” (Fernández


Enguita, 1989, p. 131).
Como se sabe, um dos corolários do iluminismo e da burguesia em ascensão fora a
defesa da educação para o povo. Segundo Enguita, se por um lado necessitavam recorrer a ela
para preparar e garantir seu poder mediante o da igreja e lograr a aceitação da nova ordem, por
outro temiam as conseqüências de se “ilustrar demasiadamente aqueles que, ao fim e ao cabo,
iam continuar ocupando os níveis mais baixos da sociedade, pois isto poderia alimentar neles
ambições indesejáveis” (Enguita, 1989, p. 110). Assim, desde de John Locke, freqüentemente
tomado como um dos principais inspiradores da educação liberal, este dilema já é filosófica e
politicamente abordado. Em uma de suas manifestações a este respeito, diz Locke:

“Ninguém está obrigado a saber tudo. O estudo das ciências em geral é assunto daqueles que
vivem confortavelmente e dispõem de tempo livre. Os que têm empregos particulares devem
entender as funções; e não é insensato exigir que pensem e raciocinem apenas sobre o que
forma sua ocupação cotidiana.” (John Locke, “On de conduct of human understanding.” In:
The works of John Locke (T. III). Londres, 1823, p. 225 - citado por Fernández Enguita,
1989, p. 111).

Evidente a ligação desse postulado com a já milenar questão da separação entre ócio
e trabalho manual segundo uma posição de classe social. Nesse sentido, Paolo Nosella nos
recorda que:

Nas grandes linhas, são bastante conhecidas as características do trabalho humano dos
escravos da Antigüidade clássica ou dos servos da Idade média. Dentro de sistemas sócio-
econômicos onde a produção material é fundamentalmente de consumo, onde a terra é a
dimensão do poder sócio-político das classes aristocráticas, onde a afirmação de que os
homens são por natureza desiguais é tida como “racional”, o trabalho humano só poderia ser
concebido como estigma fatal ou castigo. Em outras palavras, o trabalho só poderia ser
mesmo um tripalium (três paus), ou seja, um verdadeiro instrumento de tortura. (Nosella,
2002, p. 30).

E as escolas anglicanas de Hannah More, na Inglaterra da revolução industrial,


embora resultantes de aspirações favoráveis à educação do povo desde Cromwell, Mulcaster,
Wase, Forrest, Hartlib e outros, eram, entretanto, conduzidas em maior sintonia com os temores
de figuras tão ilustres quanto Francis Bacon, Chamberlayne ou Howell, que a elas se opuseram.
Hanna More, em princípios do século XIX declarava: “Não permito que se ensine a escrever os
pobres, pois meu objetivo não é convertê-los em fanáticos, mas formar os baixos estamentos
para a indústria e a piedade” (Hannah More, In: Vaughan e Archer, Social conflict and
educational change in England and France, 1789-1848. Londres, 1971, p. 37 - citados por
Fernández Enguita, 1989, p. 111).
Contudo, sequer tais escolas mantiveram por muito tempo o acesso e permanência
das populações destinadas ao trabalho. Segundo Enguita, pode-se afirmar, inclusive, “que uma
132

parte das crianças escolarizadas foi arrancada das escolas para o trabalho, nos dias úteis, pelo
movimento das Sunday Schools, escolas dominicais sem outra pretensão que a de ensinar-lhes
moral religiosa. Os projetos de lei que pretendiam assegurar um mínimo de instrução literária
foram sistematicamente rejeitados durante grande parte do século XIX” (Fernández Enguita,
1989, p. 111).
Na França, grandes figuras do Iluminismo foram desfavoráveis à educação universal,
dentre os quais, manifestamente Mirabeau, La Chalotais, Destutt de Tracy e o “príncipe das
luzes”, Voltaire. Outros teriam sido apenas timidamente partidários ou ambíguos, a exemplo de
Condorcet, Rousseau e, na Alemanha, Kant. (Fernández Enguita, op. cit., idem). Assim, La
Chalotais demonstrava sua reprovação a que “[...] ensinassem a ler e a escrever pessoas que não
necessitavam mais que aprender a desenhar e a manejar o buril e a serra, mas que não querem
continuar fazendo-o [...]. O bem da sociedade exige que os conhecimentos do povo não se
estendam além de suas ocupações.” (La Chalotais, apud Charlot e Figeat, Histoire de la
formation des ouvriers. 1985, p. 84 - citado por Fernandez Enguita, 1989, p. 111)
Mas, evidentemente, desde a Reforma Protestante a escolarização para todos tornou-
se uma das questões centrais ao Ocidente Cristão, ainda que seus motivos fossem, na origem
pelo menos, teológicos. Assim, um dos principais elementos estratégicos à própria Contra-
Reforma, foi a apropriação pela Igreja católica da educação do povo segundo seus preceitos.
Sobre isso, dirá Manacorda:

Talvez a melhor medida do quanto a iniciativa educativa já se passara para os países


reformados sejam as intervenções papais, mais ou menos contemporâneas da Dieta de
Augusta. Isto não significa que falte, na parte católica, uma intensa e multiforme atividade
educativa. Ao contrário. Mas, no seu conjunto, o espírito da Contra-Reforma católica (nome
discutível para um fenômeno tão complexo, mas convém conservá-lo) é caracterizado por
uma defesa tão intransigente da prerrogativa da Igreja católica sobre a educação, que acaba
envolvendo na condenação tanto as iniciativas alheias à extensão da instrução às classes
populares como toda inovação cultural. Basta lembrar a resistência, compreensível dentro da
polêmica sobre o livre-arbítrio, contra a difusão do conhecimento das Sagradas Escrituras
entre as classes populares. Seria profundamente errado subestimar o grande esforço
educativo realizado nos países católicos e, em particular, pela Igreja católica nesse período; é
preciso, porém, reconhecer que os caminhos do futuro são bem diferentes daqueles trilhados
por eles. [...] A orientação educativa da Igreja católica, como resposta ao protestantismo, foi
fixada no Concílio de Trento (1545-1564). (Manacorda, 1995, p. 200).

Assim, desde de Comênio (1592-1670) e sua elaboração de uma verdadeira


pedagogia da Reforma com sua Didactica Magna (1632), ao movimento contra-reformista, cujo
principal protagonista na educação seria o movimento jesuíta com seu Ratio Studiorum (1599)
— uma pedagogia que, apesar de manter elementos clássicos e humanistas, visava à disciplina e
manutenção rígida da fé católica —, a educação escolar já se revela detentora de um poder o
133

qual, se adequadamente apropriado e conduzido, poderia tanto manter e reproduzir quanto abalar
e subverter as estruturas sociais.
Não será, portanto, essencialmente diferente o dilema subjacente aos temores da
burguesia que agora toma o poder. O que nos chama a atenção nessas colocações não é o fato de
a instrução ser interpretada apenas como pouco útil a toda uma população que não usufrui e que,
conforme os objetivos do capitalismo industrial, jamais poderá usufruir tempo livre para tornar-
se ilustrada. Há algo mais na educação que torna indesejável sua “democratização”, mesmo em
um época tão “democraticamente revolucionária”. Trata-se de seu poder de proporcionar
recursos para a própria reflexão sobre a vida e suas condições existenciais. E nesse aspecto, ela
pode ser ameaçadora aos que, sob os auspícios da hegemonia de classe, detém o poder.
Isto não significa que não haverá defensores da causa da educação popular, em maior
ou menor grau comprometidos com o ideal de um ensino laico e acessível a todos. Mas os
idealizadores da educação liberal, uma vez no poder, e mediante os imperativos do poder,
redirecionam a questão da educação do povo, uma vez admitida e reconhecida pelo próprio
Estado de Direito burguês, para outros fins. Em relação a isto, Mariano Enguita comentará que,
se a educação se revela com tais poderes, “porque, então, renunciar a um instrumento tão
poderoso?” Mais prudente e aconselhável seria empregá-lo com outros objetivos, adequados aos
propósitos da própria burguesia (Fernandez Enguita, 1989, p. 112). E Condorcet explicita esta
posição com a seguinte concessão:

“É expandindo as luzes entre o povo que se pode impedir que seus movimentos se convertam
em perigosos.”
[...] “Freqüentemente os cidadãos ofuscados por vis facínoras se levantam contra as leis;
então a justiça e a humanidade lhes clamam para empregar só a arma da razão para recordar-
lhes seus deveres; por que, então, não desejar que uma instrução bem dirigida lhes torne
difíceis de serem seduzidos mais adiante, mais dispostos a cederem à voz da verdade?”
(Condorcet, M. J. A. & Caritat, Marques de. “Sur la necessité de l’instrution publique”. In:
Oeuvres, vol. VII. Paris, 1847, p. 447 - citado por Fernandez Enguita, p. 112).

De qualquer forma, a proliferação da indústria exigiria um novo tipo de trabalhador,


que não se limitasse a ser religioso e resignado, ainda que isso se mantivesse conveniente e fosse
estritamente necessário:

A partir de agora, devia aceitar trabalhar para outro e fazê-lo nas condições que este outro
lhe impusesse. Se os meios para dobrar os adultos iam ser a fome, o internamento ou a força,
a infância (os adultos das gerações seguintes) oferecia a vantagem de poder ser modelada
desde o princípio de acordo com as necessidades da nova ordem capitalista e industrial, com
as novas relações de produção e os novos processos de trabalho. [...] Os cercamentos, a
dissolução dos laços de dependência, a superpopulação relativa e a ruína dos pequenos
artesãos bastavam para que a força de trabalho aparecesse no mercado por seu valor de troca,
mas não asseguravam a extração de seu valor de uso. Para isso era necessário o concurso da
vontade do trabalhador e, portanto, nada mais seguro que moldá-lo desde o momento de sua
formação. (Fenandez Enguita, 1989, p. 114).
134

O instrumento idôneo seria a escola e, segundo Enguita, não porque elas tivessem
sido criadas com esse propósito, e nem que deixassem de cumprir outras funções, mas porque
elas já estavam postas e se poderia tirar bom proveito de suas existências. Assim, seu propósito
se desloca da educação religiosa e o doutrinamento ideológico, para a “disciplina material, para a
organização da experiência escolar de forma que gerasse nos jovens os hábitos, as formas de
comportamento, as disposições e os traços de caráter mais adequados para a indústria.”
(Fernandez Enguita, 1989, p. 114).
Mimerel, um grande patrão do norte da França, formulava isto da seguinte forma:
“Não, não queremos pôr limites à instrução, mas preferimos a que faz com que o homem
esteja contente com sua posição e leve-o a melhorá-la mediante a ordem e o trabalho àquela
que o faz perder em projetos de realização impossível um tempo tão útil para o bem-estar
de sua família. [O ensino] deve assegurar às crianças excelentes hábitos de ordem, de
propriedade, de trabalho e de prática religiosa que farão delas crianças mais submissas e pais
mais devotos” (Le Goff, 1985: 54 - citado por Fernandez Enguita, 1989, p. 114).

O empresário Kula, em lugar de esperar que se instalassem escolas com esse


propósito, fundou ele próprio uma escola na rue des Epinettes, em Paris, com o objetivo de
nela formar bons operários. E, conforme seu chefe de oficina, Pradillon:

“Outro ponto da educação moral sobre o qual nunca se insistirá demasiadamente é o que
concerne à obediência e à disciplina na oficina. Porque a produção moderna não é
verdadeiramente útil e benéfica senão na medida em que se baseia em uma organização
metódica. Entretanto, na base de toda a organização não é possível substituir a autoridade
pela anarquia. E preciso, portanto, que o operário aprenda a vencer suas resistências naturais
ao dever absoluto de obedecer, e isto é o que lhe ensinaremos nas Epinettes (...). A
disciplina na oficina constitui a dignidade bem entendida do operário; a higiene e a previsão
terminam por fazer dele um homem consumado” (Chariot e Figeat, 1985: 133 - citados por
Fernandez Enguita, 1989, p. 115).
Era, pois, uma questão de tempo para que os patrões em seu conjunto
compreendessem os belos e lucrativos frutos que podia oferecer uma educação popular "bem
orientada". A respeito dos fiandeiros de linho de Westmorland afirmava-se que a educação havia
melhorado “a conduta e os hábitos de subordinação dos operários fabris em geral, o que é
claramente observável no fato de que não se emprega palavrões, na aparência limpa e asseada e
em um aumento da diligência na freqüência aos lugares de culto” (Silver, 1983: 39 – citado por
Fernandez Enguita, 1989, p. 115 – itálicos nossos).
Este panorama, especialmente no que se refere à "conduta e aos hábitos de
subordinação", impressionava de forma crescente os patrões, ao ponto de convencer os mais
recalcitrantes. Aqui, o registro de um inspetor de fábricas em 1839:
“Muitos dos proprietários de fábricas que aprovam agora a educação estavam entre aqueles
que, anteriormente, julgavam sua aplicação quase impossível e não acreditavam que fosse
provável que trouxesse o mínimo benefício.” (Silver, 1983: idem – citado por Fernandez
Enguita, 1989, p. 115)
135

É desse modo que o que inicialmente havia sido uma reação de surpresa e suspeição,
converter-se-ia em uma reivindicação ou em uma firme opinião sobre a função das escolas. Se
Mimeral "preferia" a formação de hábitos a um ensino desnecessário, os patrões esclarecidos logo
iriam compreender, por toda parte, que o papel essencial da escola podia ser esse, por mais que
fosse encoberto por outros processos.
Mas há também o outro lado da questão, e este diz respeito às iniciativas e lutas da
própria classe trabalhadora e do movimento operário em prol da própria instrução. A esse
respeito, Enguita manifesta o seguinte:

Infelizmente, a historiografia existente é obra, em sua maior parte, de autores que


identificam, no fundamental, a escola com o progresso social, o que provavelmente lhes
levou não apenas a uma interpretação enviesada, mas também a uma seleção igualmente
enviesada dos dados históricos. Assim, o que normalmente sabemos ou lemos do movimento
operário diante da educação é que sempre pediu mais escolas, maior acesso às escolas
existentes, etc. Entretanto, há informação suficiente para levar a pensar que, antes da
identificação da classe operária com a escola como instrumento de melhoria social, houve
um amplo movimento de auto-instrução. (Enguita, 1989, p. 116)

Desse modo, Harry Braverman descreveu do seguinte modo em que consistia ser um
trabalhador qualificado “antes de as hordas de Ford e Taylor irromperem na organização do
trabalho fabril”:

“O artesão ativo (the working craftsman) estava ligado ao conhecimento técnico e


científico de seu tempo na prática diária de seu ofício. A aprendizagem incluía geralmente o
treinamento em matemática, compreendidas a álgebra, a geometria e a trigonometria, nas
propriedades e procedência dos materiais comuns no ofício, nas ciências físicas e no desenho
industrial. As relações de aprendizagem bem administradas proporcionavam assinaturas das
revistas técnicas e econômicas que afetavam o ofício, de forma que os aprendizes pudessem
seguir os avanços. Mas, mais importante que o treinamento formal ou informal, era fato de
que o ofício proporcionava um vínculo cotidiano entre a ciência e trabalho, posto que o
artesão se via constantemente obrigado a utilizar em sua prática os conhecimentos científicos
rudimentares, a matemática, o desenho, etc. Estes artesãos eram uma parte importante do
público científico de sua época e, como norma, mostravam um interesse pela ciência e pela
cultura que ia além do diretamente relacionado com seu trabalho. Os florescentes Institutos
Mecânicos, que na Grã Bretanha chegaram a uns 1.200 e tiveram mais de 200.000 membros,
estavam em grande medida dedicados a satisfazer este interesse por meio de conferências e
bibliotecas (Braverman, 1974: 133-4 – citado por Fernandez Enguita, 1989, p. 129-130).

Os mestres artesãos, oficiais e os trabalhadores em geral qualificados levavam seu


“afã cultural” para além dos limites do ofício. Tomavam parte de forma plena das inquietudes
culturais e educacionais de sua época, uma era deslumbrada com as potencialidades do saber e
do progresso, em rápido desenvolvimento. Eram capazes de assimilar e se apropriar da cultura de
outros grupos sociais, bem como irradiar eles mesmos os seus saberes para o exterior de seu
próprio grupo. O próprio domínio de seu ofício conduzia-os para além de suas habilidades
práticas, possibilitando que desenvolvessem seus conhecimentos teóricos na medida de suas
136

possibilidades, de acordo com o contexto de sua época, então não tão cingidas à escola.
(Fernandez Enguita, 1989, p. 119-120).
Até mesmo o maquinista (millwright) ordinário, como o faz notar Fairbairn, era, em
geral, "um bom aritmético, sabia algo de geometria, nivelamento e medição e, em alguns casos,
possuía conhecimento muito preciso de matemática prática. Podia calcular a velocidade,
resistência e potência das máquinas, podia desenhar em plano e em seção... Grande parte desses
"feitos e potencialidades intelectuais elevados" refletiam as abundantes oportunidades para a
educação técnica em "povoados" como Manchester, desde as academias dissidentes e sociedades
ilustradas até os conferencistas locais e visitantes, as escolas privadas "matemáticas e
comerciais", com aulas vespertinas e uma ampla circulação de manuais práticos, publicações
periódicas e enciclopédias (Landes, 1969: 63 – citado por Fernandez Enguita, 1989, p. 120).
Além desta rede formal e informal de capacitação profissional e formação técnica e
científica, devem ser acrescentadas as escolas de “iniciativa popular”, as sociedades operárias, os
ateneus, as casas do povo e toda uma gama de atividades que compunham “um considerável
movimento de auto-instrução.” Boa parte do movimento operário colocou nessa rede suas
esperanças de acompanhar o ritmo do progresso e melhorar sua posição política e social frente às
elites dominantes, inclusive a esperança de subverter radicalmente a ordem social de então.
Assim, as organizações trabalhistas de orientação marxista, centraram suas reivindicações em
uma escola para os trabalhadores financiada, mas não controlada pelo Estado, e combinada com
a incorporação dos jovens na educação. Entretanto, a escolarização estatal ou sob a égide do
Estado e a influência mais ou menos direta dos industriais, logo assumiria o controle dos
processos educacionais, fragilizando e suprimindo os movimentos de auto-instrução.

Na Inglaterra, a derrota do cartismo acarretou a desaparição das iniciativas operárias no


campo da educação, durante as décadas de 1830 e 1840. Na França, as leis Ferry eliminaram
qualquer espaço para possíveis alternativas (Ligue Communiste Révolutionnaire, 1974: 54).
Na Espanha, este movimento teve sempre uma vida não muito animada e sofreu sua maior
derrota como corolário da Semana Trágica (Solá, 1976). Fator importante dessa substituição
foi, sem dúvida, a ingênua confiança do movimento operário nas virtudes reformadoras e
progressistas da educação em geral. (Fernandez Enguita, 1989, p. 115).

Entrementes, a classe trabalhadora jamais poderia ser subestimada quanto à


constituição e defesa do ensino escolar para o povo. Embora sempre acuada, manipulada e
desestabilizada pelo poder dominante, nem por isso o movimento operário malogrou totalmente,
conquistando importantes vitórias políticas e garantias sociais, no jogo desigual de poder do
Estado de Direito burguês. Mas, evidentemente, falamos aqui de uma exceção à “regra” na luta
histórica substancialmente desigual para com as categorias sociais hegemônicas.
137

3. FORDISMO E TAYLORISMO: A GESTÃO CIENTÍFICA E DISCIPLINADORA DA CLASSE


OPERÁRIA

Antonio Gramsci escreveu em seu Caderno 22 a seguinte nota conceitual sobre o


americanismo e o fordismo: "Pode-se dizer, de modo genérico, que o americanismo e o fordismo
resultam da necessidade imanente de chegar à organização de uma economia programática e que
os diversos problemas examinados deveriam ser os elos da cadeia que marcam precisamente a
passagem do velho individualismo econômico para a economia programática [...]" (Gramsci,
1934/2001, p. 241).
Com a produção do Modelo T, a partir de 1908, Ford estabeleceria os pilares da
moderna produção em massa, geralmente atribuída tão somente à invenção da linha de
montagem em movimento contínuo, ou seja, à esteira transportadora o papel de peça chave da
produção em massa. Entretanto, para além disso, o aspecto central não estava apenas no controle
do movimento, mas na fragmentação-simplificação do processo de trabalho por meio de peças
capazes de serem encaixadas perfeita e rapidamente. Isso implicou na possibilidade de que a
força de trabalho empregada não executasse mais que movimentos simples e repetitivos,
originando assim a idéia de montadores, mais que de operários fabricantes (Rodrigues, 1998, p.
51). Entretanto, a linha de produção de Ford não se iniciou com o processo de montagem em
movimento, uma vez que os operários é que se deslocavam entre os automóveis, e ainda que seu
trabalho não ultrapassasse os limites de tarefas simples e repetidas (sempre as mesmas).
Ford percebeu que o operário poderia permanecer parado realizando sua tarefa,
enquanto os automóveis, estes sim, deslocavam-se até o trabalhador. Nasce, assim, em 1913, a
linha de montagem de fluxo contínuo. Depois de 1913, o operário da Ford resumia-se a um
montador; sua tarefa consistia apenas em ajustar "duas porcas em dois parafusos". Aliás, "o fato
de talvez sequer falar ele a mesma língua de seus colegas de montagem [...] era irrelevante para o
sucesso do sistema Ford." (Rodrigues, op. cit., p. 51). Este mecanismo, embora implicasse em
um aparato mais complexo que permitisse o fluxo contínuo, impedia que os trabalhadores
estabelecessem o ritmo do processo. Agora, era o processo que estabelecia o ritmo do operário.
Por outro lado, isso implicava num processo repetitivo que obrigava os operários a uma maior
concentração e acuidade, o que tornou a linha de montagem capaz de aumentar o ritmo de
produção a níveis nunca antes imaginados:

A magnitude da fragmentação-simplificação das tarefas na fábrica fordista produziu, em


contraponto, outros postos de trabalho responsáveis pela rearticulação do esfacelado
processo de trabalho. De uma maneira geral, dado o alto grau de especialização e
simplificação dos postos de trabalho, a qualificação profissional dos operários montadores
reduziu-se a alguns minutos de treinamento na linha de montagem.
A intercambialidade das peças e dos trabalhadores foi sustentada pela ultraespecialização das
138

ferramentas de produção. As máquinas-ferramentas de Henry Ford eram altamente precisas,


em grande parte automatizadas, e altamente 'dedicadas', ou seja, especializadas em produzir,
em massa, um único item, sem nenhuma variação de tamanho ou desenho. Ford introduziu a
indústria na era da automação rígida. (Rodrigues, 1998, p. 51).

Por sua vez, Carlos Minayo Gomes (2002), ao observar os estudos mais conhecidos
referentes ao tema educação e trabalho enfatiza que, na sua grande maioria, estão destinados a
analisar o caráter dos cursos profissionalizantes. Questionam a procedência de considerá-los
como cursos de formação ou preparação para o trabalho, discutem em que medida qualificam ou
profissionalizam. Enfatizam, em suas análises, as iniciativas da relação "escola-produção", em
que o próprio trabalho constitui o elemento pedagógico-educativo por excelência. Essa ênfase
tem por base a idéia de que se forma no processo do trabalho, trabalhando, o que reforça o
training on job das empresas, sem que necessariamente seja questionado (Minayo Gomes, 2002,
p. 44).
Esses estudos põem em destaque a importância da aprendizagem teórica para
aplicação imediata dos conhecimentos, dentro da mesma lógica do próprio capital, em que esse
"saber realizado" é fonte de sustentação econômica. Henry Ford já tinha se antecipado a essas
concepções de educação e trabalho ao questionar, por exemplo, o ensino técnico:

"A escola industrial não deve ser um compromisso entre a escola superior e a primária, mas
um lugar onde se ensine às crianças a arte de ser produtivo. Se os alunos são postos a fazer
coisas sem utilidades, a fazê-las para depois desfazê-las, não podem sentir interesse pelo
ensino. E durante o curso fica improdutivo; as escolas, a não ser por caridade, não
conseguem assegurar a subsistência dos alunos" (Henry Ford, 1964: 280 – citado por Minayo
Gomes, 2002, p. 45).

A Escola Industrial Ford, fundada em 1916, teve como base esses pressupostos. Os
alunos recebiam bolsas de estudo que variavam de acordo com o seu desempenho na produção, e
a própria fábrica constituía a melhor fonte de conhecimentos:

"Realmente a fábrica oferece mais recursos para a educação prática do que a maioria das
universidades. As lições de cálculo são dadas nos problemas concretos de fabricação. As
cidades deixam de ser pontos negros nos mapas, e os continentes, páginas do atlas. Assistem
à expedição de produtos para Singapura e o desembarque de matéria-prima vinda da África
ou América do Sul, de modo que o planeta se torna para eles um mundo habitado e não um
globo colorido posto em cima da mesa do professor... A escola dispõe de uma oficina
excelentemente montada. Os rapazes vão passando de uma máquina para outra. Trabalham
apenas em artigos de que a nossa companhia se utiliza; mas as nossas necessidades são tão
grandes que a lista compreende quase tudo o que existe. O produto do trabalho escolar,
depois de examinado, é adquirido pela Ford Motor Company; o que não resiste ao exame é
lançado à conta de perdas da escola" (Henry Ford, 1964: 284 – citado por Minayo Gomes,
2002, idem).

Os pontos acima defendidos por Ford, não sem neutralidade, podem ser
compreendidos diferentemente a partir da óptica do trabalho. O privilegiamento da formação no
interior da unidade produtiva revela, além da eficiência nos aspectos práticos, a importância para
139

o capital da criação de uma relação de dependência entre patrões e empregados. As


manifestações desse tipo de cumplicidade e a sua utilização pelo capital são estudadas por Maria
Cecília Minayo (1986) em relação aos trabalhadores da mineração em Itabira. A Companhia
Vale do Rio Doce detém, aí, 85% da força de trabalho, provenientes do que a autora denomina
"mercado primário", isto é, formado pela própria empresa. Essa situação assegura alta
produtividade, disciplina e subordinação a partir da relação de "favores" que se estabelece entre
os empregados e a indústria. O seguinte depoimento de um torneiro-mecânico, aluno da Escola
do Sindicato Metalúrgico do Rio de Janeiro, desvenda com brilho as estratégias de formação das
empresas: "O empregado que foi aprender alguma coisa na empresa geralmente fica subserviente
aos patrões. Não tem iniciativa própria. Quando o patrão ganha o corpo, ganha a mente também.
Se o empresário descobrir isso, ele fará todos os funcionários submissos a ele. Aí todos os
empresários vão querer ter muitos centros de treinamentos dentro das empresas". (Minayo, 1986,
s/pg – citado por Minayo Gomes, 2002, p. 46).
O que podemos perceber é que esse primeiro grupo de estudos sobre educação e
trabalho não leva em conta os meandros da dominação exercida pelo capital sobre o trabalho.
Pelo contrário, tem por dadas as relações sociais de produção tais como se manifestam. São
quase sempre abordagens embasadas em teorias funcionalistas que se limitam a compreender o
sistema existente e propõem seu melhor desempenho.
Outros estudos têm por objeto o processo de expropriação do saber dos trabalhadores
por parte do capital. Analisam algumas conseqüências do taylorismo, da relação qualificação-
desqualificação presente nela, da relatividade da divisão entre trabalho intelectual e manual,
assim como formas de resistência dos trabalhadores a entregar seu conhecimento e a submeter-se
totalmente ao controle do capital.
As novas formas de relações sociais próprias da produção capitalista industrial de
larga escala têm sua história e seus intérpretes. No século XVIII se desenvolveram princípios de
organização do trabalho, ou melhor, de controle do trabalho pelo capital. O nome de Taylor,
porém, internacionalmente conhecido como o pai da "administração científica", marca uma etapa
na história das relações capital versus trabalho. Ele soube dar corpo e vida a várias idéias e expe-
riências de submissão dos operários, estabelecendo assim as bases necessárias para ajustar o
trabalho ao processo de acumulação do capital no último século. Seus princípios, que resumimos
a seguir, são suficientemente transparentes para dispensar comentários adicionais:

a) para garantir o controle, a gerência necessita se apropriar do saber-fazer que ainda possui
o trabalhador. Deve reunir esses conhecimentos práticos e "classificá-los, tabulá-los, reduzi-
los a normas, leis e fórmulas, grandemente úteis ao operário para execução de seu trabalho
diário" (Taylor, 1964: 52);
140

b) selecionar e treinar o trabalhador adequado para cada tarefa concebida pela gerência. Para
isso não é preciso achar "homens extraordinários, mas simplesmente escolher entre os
homens comuns os poucos especialmente apropriados para o tipo de trabalho em vista"
(Taylor, 1964: 76);
c) programar as operações dos trabalhadores e supervisioná-las, em função de um tempo-
padrão predeterminado: "Na tarefa é especificado o que deve ser feito e também como fazê-
lo, além do tempo exato concebido para a execução" (Taylor, 1964: 55 – a, b e c citados por
Minayo Gomes, op. cit., p. 52).
De uma maneira geral, pode-se afirmar que os princípios da gerência científica de
Taylor preconizam a apropriação do saber especializado do trabalhador, com a conseqüente
concentração desse saber na gerência e a sua utilização com fins de reduzir drasticamente a
porosidade do trabalho humano - ou seja, aumentar a produtividade, ampliando a taxa de mais-
valia relativa.

Do ponto de vista tecnológico - que não pode ser segregado do aspecto organizacional, como
será mostrado mais à frente -, coube, na verdade, a Ford o papel de revolucionar a produção
industrial, já que as proposições de Taylor não abarcavam os aspectos tecnológicos do
trabalho. (Rodrigues, 1998, p. 50).

Ford aplica e adapta de maneira eficiente esses princípios. Introduz a linha de


montagem, o que significa um grande avanço no controle do trabalho. Ao mesmo tempo,
preconiza a necessidade de se "produzir" um novo homem, que responda à nova organização do
trabalho. Recorre à persuasão, ao aumentar os salários, o que, sem dúvida, repercute na mudança
dos padrões de consumo (e, portanto, redunda em benefício de outros setores produtivos), e apela
para que os novos capitalistas se tornem atores reais na direção da sociedade:

"Embora os homens de negócio não se dêem como líderes dos movimentos, são eles na
realidade os verdadeiros chefes. Nem um só passo da atividade econômica existe — bem ou
mau — que não tenha sido ensinado ao povo pelos homens de negócio. Daí o terem mais
influência na sociedade que os políticos, professores ou sacerdotes. Seu contato com o povo
é constante e sua influência inevitável. Cada mau hábito econômico que o povo revela foi-
lhe ensinado pelos homens de negócios, e como a influência deles é assim grande, seria de
boa política que mudassem de orientação, transformando-se em ledores dos sinais dos
tempos, de modo a poderem nortear sadiamente o público" (Ford, 1964: 405).

Posteriormente, a escola das relações humanas contribuirá para a incorporação de


dimensões psicológicas e sociais tendentes a reduzir resistências individuais ou grupais dos
trabalhadores geradas no interior do processo produtivo.

A partir da década de 60 surgem dois novos modelos de organização do trabalho: o


"enriquecimento de cargos" e os "grupos semi-autônomos". O primeiro admite que as
necessidades individuais possam ser satisfeitas em cargos isolados e as necessidades sociais
satisfeitas por relações de amizade no ambiente de trabalho. Já o esquema de grupos 'semi-
autônomos' assume que as relações sociais têm de ser sustentadas por relações de trabalho
num esforço cooperativo. [...] Recentemente, foi implantada uma série de novidades no
mundo da produção, novas estratégias ganham corpo: círculos de controle de qualidade
(CCQ), automação, kanban, just in time, entre outras, "que procuram introduzir uma
participação tipicamente gerencialista" (Salerno, 1985: 202 – cit. por Minayo Gomes, p. 53).
141

Todas essas "novas formas de gerenciamento" das relações capital-trabalho são antes
de tudo respostas às resistências ao taylorismo dogmático. Elas são obrigadas a levar em conta os
trabalhadores como "seres pensantes", ou suas emoções e potencialidades no processo de
trabalho, embora continuem a ter a subsunção real como pano de fundo e a valorização como
meta inqüestionável. Convém observar como historicamente a psicologia, a fisiologia e a
sociologia industriais têm sido usadas para as finalidades da valorização do capital. Seja pela
análise dos comportamentos, dos tempos e dos movimentos, das motivações e das relações de
subordinação e resistência, essas disciplinas são usadas para instrumentalizar a seleção, os
treinamentos e o ajustamento dos chamados “recursos humanos”, de forma a se construir um
"trabalhador coletivo" apto ao controle de seu trabalho. Conjugados ao regime contratual
assalariado, é fora de dúvida que essas disciplinas lograram garantir a conquista da disciplina e
da produtividade (fundamentais à mais-valia) por meio do próprio auto-controle dos
trabalhadores nos processos de trabalho. É aí, sob a máscara das relações técnicas, que se forja
de modo peculiar e determinante a alienação do operário por um projeto de subordinação ao
capital. É bom repetir, no entanto, que a resistência perenemente instaurada pela força de
trabalho põe limites ao processo de alienação a que está submetida, obrigando o capital a
reinventar estratégias novas para atingir seus fins (daí as inúmeras teorias gerenciais e de
relações no trabalho, não menos munidas de propósitos mercadológicos).
Segundo Minayo Gomes, entretanto, "esta dominação nunca é estabelecida definiti-
vamente de uma vez por todas. O próprio movimento de acumulação de capital (que modifica
mercados de trabalho, processos de trabalho, distribuição geográfica da produção, produz novas
condições políticas e ideológicas da luta de classes etc.) assegura que esta dupla dominação deve
ser sempre restabelecida em novas condições" (Brighton Group, 1976 – citado por Minayo
Gomes, 2002, p. 47 – itálicos nossos). Observa, pois, que:

A premissa para o desenvolvimento do sistema capitalista como modo de produção não está,
portanto, unicamente no fato de que a força de trabalho, ao estar desprovida da propriedade e
da posse dos meios de produção, torna-se mera mercadoria. A questão está em que a união,
na estrutura econômica, entre força de trabalho-mercadoria e meios de produção, realiza, ao
mesmo tempo, um processo de produção de mercadorias e um processo de valorização sob o
controle do capital. O elemento essencial para a viabilização desses processos é a forma
social de organização do trabalho. (Minayo Gomes, 2002, p. 47)

Essas relações, como vimos, se realizam e viabilizam pela hierarquização do


trabalhador coletivo, do controle de seu tempo e espaço, da expropriação de seu saber e de seus
instrumentos de trabalho. A história do capitalismo é, de fato, a história da transformação do
trabalhador em força de trabalho e do assalariamento como condição de reprodução do trabalho e
do capital.
142

Em termos do avanço das forças produtivas, a apropriação da mais-valia pode variar,


ser mais ou menos efetiva, como mais-valia relativa, como mais-valia absoluta. Mas, da
manufatura à informática, o capital não fará outra coisa que expropriar o saber, o conhecimento
do trabalhador, para transformá-lo moto continuum em trabalho fixo — máquinas e
equipamentos que ao fim e ao cabo, garantem a própria reprodução do processo histórico de
expropriação e controle do trabalhador, ou, mais exatamente, o aprofundamento de sua
alienação:

Isso se traduz na passagem da subsunção formal à subsunção real, em que o processo de


produção artesanal cede lugar à produção em larga escala, mediada pela maquinaria, pela
produção industrial. Mas não é apenas em relação às mudanças no processo de trabalho que
o capital revoluciona. É também ao nível da concordância entre as áreas financeira, industrial
e comercial, internacionalizando e tendo sempre em mira visível o parâmetro da acumulação
e da valorização. (Minayo Gomes, 2002, p. 48)

As exigências que se transformam em ganância de lucro mostram como fetiche a


percepção da tendência ao avanço técnico como necessidade social. Na verdade, não há um
determinismo tecnológico, isto é, as relações de produção não são determinadas pela maquinaria
e avanços técnico-científicos. Pelo contrário, o motor da história capitalista não é nem o
desenvolvimento autônomo das forças produtivas e muito menos a tecnologia, mas sim a luta de
classes.
Os condicionantes ideológicos deste processo constituem um vasto campo de estudos
a ser desenvolvido em relação à longa e trágica história do adestramento social, baseado no
dualismo da divisão social do trabalho (trabalho intelectual/trabalho manual). Nesse sentido e
dentro do conceito dialético de totalidade, é bom lembrar que todas as instituições de nossa
sociedade capitalista (a família, a escola, a igreja, a política, a economia etc.) contribuem para
reproduzir a dominação. Por isso, criam hábitos de comportamento, de ação, de pensamento
apropriados ao nosso tipo de inserção no modo de produção. A educação aí se realiza pelas
relações sociais e é tanto mais estimulada e enfatizada quanto mais corresponda à lógica
capitalista.
A referência máxima da alienação operária se encontra nos limites da subsunção real.
Nela se realiza a alienação pela expropriação do trabalhador, dos seus instrumentos de trabalho
do processo produtivo e do produto. Ela efetiva a apropriação pelo capital do saber operário e de
seu controle. Ainda que a subsunção real nunca se realize em plenitude, por causa da resistência
da força de trabalho, ela significa uma revolução em termos capitalistas, em relação à subsunção
formal própria às formas artesanais de produção. Aqui é o trabalhador que detém o saber e seus
instrumentos de trabalho, mesmo quando está submetido ao capital pelo assalariamento.
143

As colocações anteriores nos levam ao interior da problemática que hoje se introduz


no campo da reflexão sobre educação e trabalho, qual seja, o trabalho como mercadoria. Ela
parte do princípio de que o trabalho, na sociedade industrial capitalista, se transformou em
mercadoria. Como conseqüência, o homem voltaria a ser livre quando fosse dono de seu
trabalho, quando retornassem a suas mãos seus próprios instrumentos de trabalho, enfim, quando
controlasse o que produz e para que produz. A incorporação de tal tema no âmbito da educação
constitui indiscutível avanço em relação ao que tem sido estudado até hoje. Ele remete ao
próprio projeto histórico da classe trabalhadora de ter nas suas mãos, de coletivizar e controlar os
meios de produção. Esse projeto tem a perspectiva de um processo revolucionário, de luta
política, de mudança radical das bases do poder na sociedade.
Permanece, no entanto, em questão as formas em que se dá o processo de trabalho
(em continuidade com o sistema capitalista) naquelas sociedades onde teve lugar a coletivização
dos meios de produção. Como afirma Singer:

A questão da socialização dos meios de produção não pode ser mais pensada no capitalismo
de hoje como foi pensada, talvez corretamente, pelos clássicos do século passado.
Especificamente, o ato de desapropriação dos meios de produção pelo Estado não implica
em absoluto a passagem dessa propriedade aos trabalhadores; ela implica unicamente a
substituição de administradores profissionais representantes dos proprietários capitalistas por
administradores profissionais representantes do Estado. Os trabalhadores, em princípio,
continuam tão alienados dentro dos locais de trabalho como antes. E é aí que tem que haver,
na verdade, a progressiva conquista pelos trabalhadores do domínio sobre o seu processo de
trabalho ( ... ) há que se instaurar uma efetiva gestão operária para poder se falar realmente
em uma socialização dos meios de produção. (Singer, 1998, citado por Minayo Gomes,
1996, p. 36-7)

As idéias ilusórias de que o ato de desapropriação dos meios de produção pelo


Estado e a sua socialização levariam à desalienação dos trabalhadores têm suas bases nas teses
defendidas pelos partidos comunistas europeus até a década de 60. Para eles, o socialismo, ao
eliminar as superestruturas do Estado e as relações sociais capitalistas, poderia libertar
subitamente um potencial gigantesco de expansão e desenvolvimento econômico e social até
então neutralizado. O socialismo saberia utilizar bem não só todo o avanço tecnológico herdado,
como as capacidades humanas de trabalho para benefício de toda a sociedade, enquanto o
capitalismo as utilizaria de forma predatória e parasitária.
Esse tipo de concepção tem implícita a hipótese de que a organização, a divisão do
trabalho e as técnicas de produção, na transição ao socialismo, devem ser preservadas na sua
forma, e orientadas para fins sociais e de toda a coletividade. Noutras palavras, a organização -
social do trabalho em termos capitalistas seria, assim, considerada recuperável e o processo de
trabalho, um campo neutro. Gorz (1974, p. 172) chama atenção para o fato de que "toda a
tentativa para revolucionar as relações de produção exige uma mudança radical dos meios e
144

técnicas de produção (e não apenas da finalidade de sua utilização): porque a conservação destas
faria ressurgir aquelas, através da divisão capitalista do trabalho".

4. O PRINCÍPIO EDUCATIVO DO TRABALHO SEGUNDO GRAMSCI: O DISCURSO


DOMINANTE DA SOCIEDADE INDUSTRIAL PARA O ENSINO DESVELADO

Qual o papel da escola mediante as mutações contingenciais do modo de produção


capitalista contemporâneo? E, mais que isso, em que medida a escola poderá estar subsumida a
determinações históricas contingenciais sem, contudo, perder seu papel histórico-cultural de
mediadora de conhecimentos clássicos e universais? Cabe aqui que problematizemos, portanto, o
pragmatismo da atual pedagogia das competências e a redução do papel da escola à mera
atividade prática. Para tanto, consideramos oportuno concluir ser possivelmente do interesse de
nosso debate resgatarmos aqui algumas reflexões de Antonio Gramsci.
Acreditamos estarmos novamente diante de um problema com o qual Gramsci se
deparou ainda no primeiro terço do Século XX, o que nos faz ver que o próprio problema não é
novo, tendo apenas se metamorfoseado em seus aspectos mais aparentes. Portanto, gostaríamos
de estabelecer este paralelo da atual investida do que entendemos como uma epistemologia
pedagógica neoliberal da competência sobre a epistemologia da escola formal clássica, não
exatamente na forma de fenômenos similares, mas pelo fato de tratar-se essencialmente da
continuidade do mesmo processo, identificado e abordado por Gramsci em 1932.
Em seu caderno de número doze, Gramsci desenvolve a tese de ser o princípio
educativo imanente à escola elementar o conceito e a atividade do trabalho, já que a ordem
social e estatal é introduzida na ordem natural pelo trabalho (Gramsci, 1989, p. 77). Lembremos
que a conjuntura de análise de Gramsci era então a crise envolvendo o modelo tradicional de
escola e o surgimento de um novo modelo, que aspirava para si a condição de moderno e
consoante com as necessidades de um mundo industrial em franca mutação, e que parece então
se contrapor ao anterior, negando-o veementemente.
O movimento em questão remetia seus questionamentos e criticas à escola
tradicional em dois aspectos principais: primeiramente, nos aspectos organizativos e
programáticos da educação tradicional, pondo-se em questão se a escola tradicional seria ou não
de fato “educativa”, e insinuando-a desde já como essencialmente especulativa e intelectualista;
em segundo lugar, atacando os aspectos didáticos e metodológicos da escola tradicional, em que
se criticava a presença de procedimentos mecanicistas nos processos de formação. Como fica
evidente, o novo movimento pedagógico era aquele identificado com a instauração de uma
escola ativa, vinculada às necessidades de um mundo industrial dinâmico e em franca expansão.
145

Para Gramsci, contudo, o problema central de tal confronto não estaria propriamente
nos aspectos organizativos e metodológicos da escola tradicional, mas no fato de que tal
organização e programas eram na verdade a expressão de um modo tradicional de vida
intelectual e moral, pertencentes a uma tradição antiqüíssima, que estava morrendo (Gramsci,
1989, p. 81). Portanto, não adiantaria apenas mudar a organização e programas em questão, sem
que se compreendesse que eles são determinados, antes e na verdade, pelas mudanças no próprio
modo de vida dos homens.
Nesse sentido, na “velha escola” conteúdos como o estudo de línguas e da história
dos povos clássicos era um princípio educativo relacionado ao ideal humanista personificado
principalmente pela cultura grega e romana, sendo difundido e aceito em toda a sociedade
européia como essenciais (podemos pensar, aqui, na paidéia grega e na humanistas romana).
Essa educação não tinha uma finalidade prático-profissional imediata sendo, portanto,
“desinteressada”, pois que o interesse era a formação de uma personalidade plena e
universalizada pelo caráter cultural geral da civilização européia.
Em sendo assim, o que propor ou esperar para a educação de então, mediante a
chamada crise do modelo tradicional e o surgimento de um novo modo de vida, surgido com a
consolidação da sociedade industrial? Primeiramente, não seria porque havia uma crise da
cultura e da escola tradicional que esse preparo formativo mais amplo e desinteressado deveria
ser revogado. Para Gramsci era justamente isso que estaria ocorrendo com a disseminação do
modelo de escola profissional, que se encontrava em ascensão. Ora, para justificar-se a escola
profissional e ativa, disseminou-se a idéia de que ela seria sinônimo de “escola democrática”,
pois permitiria que todos pudessem ter acesso a uma profissão; em contraposição, a escola
tradicional seria oligárquica e anti-democrática, por restringir-se à formação das elites.
Para Gramsci, entretanto, haveria aí um grande erro de avaliação:

A escola tradicional era oligárquica pois era destinada à nova geração dos grupos dirigentes,
destinada por sua vez a tornar-se dirigente: mas não era oligárquica pelo seu modo de ensino.
Não é a aquisição de capacidades diretivas, não é a tendência a formar homens superiores
que dá a marca social de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada
grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes grupos uma
determinada função tradicional, diretiva ou instrumental. Se se quer destruir esta trama,
portanto, deve-se evitar a multiplicação e graduação dos tipos de escola profissional,
criando-se, ao contrário, um tipo único de escola preparatória (elementar-média) que
conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, entrementes, como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige. (Gramsci, Op.
Cit., p.87)

Gramsci conclui que as escolas profissionalizantes, sobretudo quando destinadas à


formação inicial da juventude, nada mais estariam fazendo que perpetuar as estratificações
sociais: ao invés de tornarem o educando um ser capaz de pensar e se tornar em condições de
146

escolher seus dirigentes ou mesmo de se tornar também um dirigente, estariam educando apenas
para uma determinada função social específica e cristalizadora.
Chega a ser desconcertante a atualidade do problema e da análise apresentados por
Gramsci. Assim, notamos uma enorme identificação entre o que poderíamos chamar de investida
de uma proposta derivada dos desideratos econômico-produtivos sobre um modelo de escola
que, segundo propósitos contingenciais e imediatos, deve ser reformada e adequada às
“exigências do mundo moderno”. Curiosamente, têm sido comuns às referências direcionadas à
escola até aqui existente como “tradicional”, com todo o peso do sentido de “ultrapassada” e
destoante dos quesitos da atualidade. Nesse movimento, e a exemplo do modelo ativo-
profissionalizante da época histórica de Gramsci, a escola em sintonia com as necessidades de
seu tempo deveria privilegiar o desenvolvimento de habilidades e competências que tornem os
indivíduos contemporâneos mais aptos às necessidades de seu mundo. Daí as inúmeras críticas
no novo modelo das competências desfechadas aos métodos, didáticas e programas (currículos,
enfim) do modelo clássico. Estes devem, como fazem constantes referências os ideólogos da
“nova escola” a ser instaurada, contemplar a atividade prática por excelência, de modo a
propiciarem uma atividade de aprendizagem identificada com uma prontidão cognitiva constante
para novas e inusitadas situações e necessidades — pressuposto central do princípio do aprender
a aprender escolanovista, integralmente incorporado pelo construtivismo e suas vertentes.44
Mas, retornemos ainda a Gramsci e sua análise. A superação para a crise entre o
antigo e o novo por ele analisada impunha, segundo o mesmo, a necessidade de um novo tipo de
escola, que não perdesse de vista o que havia de relevante na escola tradicional, e que atendesse
às necessidades próprias de uma sociedade já revolucionada, em termos produtivos e culturais
(sociedade industrial): esta escola ele denominou Escola Unitária, uma superação por
incorporação das anteriores, em que não se perdesse o princípio humanista e humanizador da
escola clássica e sua função histórica (instruir nos rudimentos da língua falada e escrita, bem
como dos saberes clássicos e científicos), mas sem perder de vista o contexto histórico imediato,
com vistas ao próprio devir do processo de humanização de todos os membros da sociedade,
indistintamente, para a manutenção e aprimoramento constante da mesma.
Ora, em se tratando do contexto atual, percebemos, sem dúvida, uma enorme

44
Veja-se, por exemplo, a menção de Cesar Coll (1994, p. 136) a este respeito: “ Numa perspectiva construtivista, a
finalidade última da intervenção pedagógica é contribuir para que o aluno desenvolva a capacidade de realizar
aprendizagens significativas por si mesmo numa ampla gama de situações e circunstâncias, que o aluno ‘aprenda a
aprender’ ”. Reiteramos aqui não haver motivos para irmos contra um tal princípio, em si pedagogicamente válido.
O que questionamos é a evidente disseminação acrítica e aparentemente “despolitizada” de um tal princípio por
parte de inúmeros educadores da atualidade, dissimulando-se a apropriação e adequação do mesmo aos propósitos
neoliberais.
147

complexificação de tais questões, com o estabelecimento de sutilezas e nuanças às mais variadas


em relação ao contexto da abordagem de Gramsci. Mas defendemos que seus elementos centrais
encontram-se novamente (ou ainda) presentes, e, portanto, também a validade de sua reveladora
análise dos meandros da crise pedagógica de sua época. Crise educacional que se estende até
nossos dias, e que, sob nossa óptica, apenas refletem a crise e contradições sempre presentes
entre o modo de produção capitalista e o próprio sentido do trabalho humano segundo seus
imperativos. Ora, já sabemos que para o capital a noção de trabalho não pode ultrapassar o
mesmo enquanto apenas processo de produção de valor ou, em última análise, produção de mais-
valor, excedente de valor expropriado dos produtores diretos (trabalhadores) com vistas à
acumulação de riquezas. Portanto, é condição para a sustentação do próprio sistema produtivo
capitalista a separação entre produtor e produção, entre processo de produção e o que seja
produzido e porquê, entre os meios de produção e os próprios trabalhadores, entre o saber e o
fazer, entre teoria e prática, entre o sentido histórico da atividade humana do trabalho e seu
objetivo imediato e mecânico no capitalismo.
Neste momento, recorremos uma vez mais a Kuenzer, que ao nosso ver situou de
forma muitíssimo adequada a questão aqui abordada, em seus termos atuais, ao discutir, a partir
dos pressupostos da teoria da práxis em Marx, o problema da dicotomização da relação
necessária entre conhecimento e prática a que, sob novos emblemas, se vê submetida a escola e a
educação formal contemporâneas.
Atualmente, no entender dessa autora, dois grandes equívocos têm sido cometidos
em relação à pedagogia das competências e sua abordagem conceitual:
● no campo dos debates acerca do tema, um primeiro, relativo a uma tendência
polissemicizadora do conceito de competência, quando na realidade, segundo a autora, não há
motivos para se crer que tal conceito possa ser definido como algo mais que “saber-fazer de
modo adequado”45; portanto, a análise do problema não deve ser quanto à natureza polissêmica
do conceito, mas sim, quanto ao polimorfismo alcançado pelo mesmo, pois que não é o sentido
do termo que varia, e sim, as apropriações atualmente realizadas, na esfera das exigências dos
processos produtivos capitalistas, do referido conceito. Ou seja, o capitalismo está “formatando”
e se apropriando do conceito segundo seus propósitos, sem que isso implique uma necessária
“ressignificação” do conceito, campo a que têm se reduzido as discussões sobre a temática
(Kuenzer, 2003);
● um segundo, derivado do primeiro, relativo à formatação da própria função da

45
Kuenzer chega a esta conclusão a partir de pesquisas empíricas pelas quais investigou o sentido atribuído em
geral, no mundo do trabalho, à noção de competência, concluindo que não há variações significativas quanto ao
conceito (Kuenzer, 2001; 2003).
148

escola segundo os mesmos propósitos de adequação produtiva, através do morfismo do conceito


de competência em termos pedagógicos. É a transmissão dos princípios de flexibilização e
produtividade multitarefa, derivadas do toyotismo, à própria escola e seus atores (travestidos ou
viabilizados por princípios como os de transversalização e interdisciplinaridade, por exemplo) -
(Kuenzer, 1999; 2003)
● deste último, a autora conclui, a exemplo de Gramsci, uma séria contradição entre
o papel histórico da escola e o imperativo capitalista de que a mesma assuma a função de formar
indivíduos competentes para o mercado de trabalho, por meio de pressupostos pragmatistas que
pretendem a mutação radical do seu papel, de transmissora histórica por excelência de saberes
científicos e filosóficos, para o de implementadora de capacidades ou habilidades para o mundo
produtivo (Kuenzer, op. cit.).
Segundo a autora, este papel só pode caber ao próprio mundo produtivo do trabalho,
já que o princípio da competência diria respeito, antes, à união entre conhecimentos
sistematizados abstratos (teoria) e a própria atividade transformadora humana (trabalho prático).
Resgatando, portanto, a própria noção marxiana de práxis, Kuenzer habilmente atribui, à própria
escola, o papel fundamental do primeiro componente da mesma, o contato com a teoria, à
escola, e a reunião deste com seu componente complementar, a atividade prática, ao mundo
produtivo do trabalho.
Recolocadas estas questões nestes termos, poderíamos talvez concluir erroneamente
que a resolução proposta por Kuenzer parece contrariar o próprio princípio da politecnia de
Marx, expressa certamente por Gramsci em sua proposta de uma Escola Unitária. Esta é uma
discussão equivocada, entretanto, pois correspondem a momentos complementares e, portanto,
não necessariamente unívocos e concomitantes.
O princípio da escola unitária é, segundo o próprio Gramsci, uma passagem
adequada da quantidade (idade, disciplina e aprendizado pelo hábito e seguimento de normas,
cujos elementos gerais são próprios da pedagogia tradicional) à qualidade (maturidade e
autonomia intelectual e moral, e liberdade para a escolha profissional), que se estabelece a partir
da conquista da autonomia da consciência. Esta só é possível pela aquisição de saberes
científicos e clássicos (humanistas), o que nos remete, por fim, ao papel histórico fundamental
da própria escola. Nesse sentido, Gramsci aponta para a necessidade de se superar a fase
romântica da escola ativa, na qual os elementos de luta contra a escola tradicional mecânica e
jesuítica de até então, teriam segundo ele, se dilatado de forma mórbida: era necessário entrar na
fase clássica, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e
as formas de ensino. Desse modo, a própria pedagogia da escola ativa (pragmática e
149

espontaneísta) deveria estar, também ela, condenada a ser superada pelo o que denominou
“escola criativa”, que superaria a tendência da escola profissionalizante ao mero “ativismo”
(Gramsci, 1989, p. 72).
As palavras de Gramsci convergem com a problemática do pragmatismo e ativismo
propostos pela pedagogia das competências como pressupostos para a educação contemporânea.
Supondo ainda a atualidade da problematização de Gramsci, se já em sua época nos propunha a
necessidade de a educação entrar na fase clássica, racional, encontrando nos fins a atingir a
fonte natural para elaborar os métodos e as formas de ensino, e se concordarmos que os fins a
atingir sejam de fato homens livres, conscientes, participativos e contribuintes ao aprimoramento
social, certamente concordaremos com o próprio pressuposto pedagógico proposto por este
pensador, fundado numa escola que não perca de vista o objetivo de seu papel histórico: o
próprio ser humano.

4.1. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932): a escola para todos e o
desenvolvimento capitalista no Brasil

O Manifesto dos Pioneiros de Educação Nova consolida a visão de um segmento da


elite intelectual brasileira que, embora com diferentes posições ideológicas, vislumbrava a
possibilidade de interferir na organização da sociedade brasileira a partir de mudanças na
educação. Redigido por Fernando de Azevedo em 1932, é assinado por 26 intelectuais, entre os
quais Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho,
Hermes Lima e Cecília Meirelles.
Ao ser lançado, em meio ao processo de reordenação política resultante da
Revolução de 1930, o documento se torna o marco inaugural do projeto de renovação
educacional do país. Além de enfatizar a desorganização do aparelho escolar, propõe que o
Estado organize um plano geral de educação e defende uma escola pública, laica, obrigatória e
gratuita, no que é fortemente criticado pelos setores conservadores e pela Igreja católica.
Tomamos a liberdade de analisarmos de forma minuciosa o presente manifesto46 pelo
fato de o julgarmos como manifestação brasileira em similitude política, filosófica, pedagógica e
econômica com os manifestos da escola ativa na Europa analisada por Antonio Gramsci.

46
Que se intitulava: “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: manifesto lançado ao povo e ao governo” cuja 1ª
edição foi publicada no ano de 1932, pela Comp. Editora Nacional, São Paulo, 1932.
150

4.1.1. O Manifesto

Certamente, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (Azevedo et al.,


1932/2005) representou um marco de importância ímpar para o desenvolvimento da instituição
escolar brasileira. O próprio Manifesto, em suas linhas iniciais, aponta sua demarcação: as
promessas e expectativas surgidas com as aspirações republicanas em relação à educação, que
entretanto não se haviam cumprido:

“Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao


da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos
de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um país
depende de suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças econômicas ou
de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à
invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma
sociedade”.
“No entanto, se depois de 43 anos de regime republicano, se der um balanço ao estado atual
da educação pública, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre as reformas
econômicas e educacionais, que era indispensável entrelaçar e encadear, dirigindo-as no
mesmo sentido, todos os nossos esforços, sem unidade de plano e sem espírito de
continuidade, não lograram ainda criar um sistema de organização escolar, à altura das
necessidades modernas e das necessidades do país. Tudo fragmentário e desarticulado. A
situação atual, criada pela sucessão periódica de reformas parciais e freqüentemente
arbitrárias, lançadas sem solidez econômica e sem uma visão global do problema, em todos
os seus aspectos, nos deixa antes a impressão desoladora de construções isoladas, algumas já
em ruína, outras abandonadas em seus alicerces, e as melhores, ainda não em termos de
serem despojadas de seus andaimes...”

As escassas e ineficientes iniciativas destinadas ao problema educacional são


apontadas como resultantes de uma “inorganicidade” na conjugação dos fins da educação e seus
aspectos técnicos, que denunciavam a falta de fundamentos conceituais e científicos para que,
conjugados, fornecessem bases sólidas a um verdadeiro sistema de ensino no país. O
provincianismo brasileiro nesta questão é denunciado como originário da própria inexistência de
uma cultura acadêmica genuinamente nacional. Isso implicava num processo rudimentar de
“tentativas e erros” na resolução dos problemas da educação, traduzido como um empirismo
grosseiro que exprimia a falta de consistência conceitual entre os objetivos, os meios e os fins a
serem atingidos. Assim, no aspecto de uma filosofia da educação, dirão os pioneiros:

“ Onde se tem de procurar a causa principal desse estado antes de inorganização do que de
desorganização do aparelho escolar, é na falta, em quase todos os planos e iniciativas, da
determinação dos fins de educação (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto
técnico) dos métodos científicos aos problemas de educação. Ou, em poucas palavras, na
falta de espírito filosófico e científico, na resolução dos problemas da administração escolar.
Esse empirismo grosseiro, que tem presidido ao estudo dos problemas pedagógicos, postos e
discutidos numa atmosfera de horizontes estreitos, tem as suas origens na ausência total de
uma cultura universitária e na formação meramente literária de nossa cultura. Nunca
chegamos a possuir uma "cultura própria", nem mesmo uma "cultura geral" que nos
151

convencesse da "existência de um problema sobre objetivos e fins da educação". Não se


podia encontrar, por isto, unidade e continuidade de pensamento em planos de reformas, nos
quais as instituições escolares, esparsas, não traziam, para atraí-las e orientá-las para uma
direção, o pólo magnético de uma concepção da vida, nem se submetiam, na sua organização
e no seu funcionamento, a medidas objetivas com que o tratamento científico dos problemas
da administração escolar nos ajuda a descobrir, à luz dos fins estabelecidos, os processos
mais eficazes para a realização da obra educacional.”

Complementarmente, remetem-se, então, ao papel de uma atitude fundamentada


cientificamente, o que se refletiria numa organicidade e funcionalidade não somente para a
implementação dos princípios filosóficos relacionados ao conhecimento necessário e desejável,
mas na estruturação e funcionalidade da própria atividade institucional do ensino:

“Certo, um educador pode bem ser um filósofo e deve ter a sua filosofia de educação; mas,
trabalhando cientificamente nesse terreno, ele deve estar tão interessado na determinação dos
fins de educação, quanto também dos meios de realizá-los. O físico e o químico não terão
necessidade de saber o que está e se passa além da janela do seu laboratório. Mas o
educador, como o sociólogo, tem necessidade de uma cultura múltipla e bem diversa; as
alturas e as profundidades da vida humana e da vida social não devem estender-se além do
seu raio visual; ele deve ter o conhecimento dos homens e da sociedade em cada uma de suas
fases, para perceber, além do aparente e do efêmero, "o jogo poderoso das grandes leis que
dominam a evolução social", e a posição que tem a escola, e a função que representa, na
diversidade e pluralidade das forças sociais que cooperam na obra da civilização. Se têm essa
cultura geral, que lhe permite organizar uma doutrina de vida e ampliar o seu horizonte
mental, poderá ver o problema educacional em conjunto, de um ponto de vista mais largo,
para subordinar o problema pedagógico ou dos métodos ao problema filosófico ou dos fins
da educação; se tem um espírito científico, empregará os métodos comuns a todo gênero de
investigação científica, podendo recorrer a técnicas mais ou menos elaboradas e dominar a
situação, realizando experiências e medindo os resultados de toda e qualquer modificação
nos processos e nas técnicas, que se desenvolveram sob o impulso dos trabalhos científicos
na administração dos serviços escolares.”
Portanto, o Manifesto se apoiará nestes dois aspectos para a crítica da inconsistência
do sistema educacional no Brasil: a inexistência de parâmetros filosóficos ou, como entendemos,
pedagógicos, por um lado, e a inexistência de parâmetros científicos ou, como também o
entendemos, técnicos, por outro. O primeiro parâmetro visa à coerência conceitual e orgânica
entre o ensino e suas finalidades; o segundo diz respeito aos meios para que o ensino atinja seus
fins, de seus aspectos administrativos aos seus aspectos processuais, que deveriam estar
subordinados à cientificidade em suas ações. Já podemos denotar, segundo esses parágrafos, a
presença de dois imperativos: o primeiro implica na aproximação das finalidades da educação às
questões e exigências da própria vida (aspecto filosófico); o segundo, que estas finalidades
sejam atingidas com eficiência (aspecto técnico-científico). Todos estes quesitos visam,
sobretudo, a romper com o “empirismo grosseiro” dominante na área educacional ou, como
entendemos, romper com um ensino inorgânico e mecânico:

“À luz dessas verdades e sob a inspiração de novos ideais de educação, é que se gerou, no
Brasil, o movimento de reconstrução educacional, com que, reagindo contra o empirismo
152

dominante, pretendeu um grupo de educadores, nestes últimos doze anos, transferir do


terreno administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares. Não
foram ataques injustos que abalaram o prestígio das instituições antigas; foram essas
instituições criações artificiais ou deformadas pelo egoísmo e pela rotina, a que serviram de
abrigo, que tornaram inevitáveis os ataques contra elas.”

Por outro lado, questiona-se o descompasso entre os desenvolvimentos alcançados no


país na área produtiva e industrial desde a proclamação da república, e a permanência da escola
num estágio cristalizado na sociedade brasileira. Enquanto em outros países o ensino assumia
cada vez mais importância para o desenvolvimento sócio-econômico, a educação no Brasil
permanecia arcaica, presa a tradições e divorciada do ambiente social maior:

[...] “Porque os nossos programas se haviam ainda de fixar nos quadros de segregação social,
em que os encerrou a república, há 43 anos, enquanto nossos meios de locomoção e os
processos de indústria centuplicaram de eficácia, em pouco mais de um quartel de século?
Porque a escola havia de permanecer, entre nós, isolada do ambiente, como uma instituição
enquistada no meio social, sem meios de influir sobre ele, quando, por toda a parte,
rompendo a barreira das tradições, a ação educativa já desbordava a escola, articulando-se
com as outras instituições sociais, para estender o seu raio de influência e de ação?”

O documento faz referência, a seguir, às iniciativas, ainda que isoladas e sem


diretrizes adequadas, tomadas pelo movimento renovador em alguns estados nacionais —
subentendendo-se as reformas implementadas por Caetano de Campos e Rangel Pestana, com o
estabelecimento da Escola Normal e as escolas “modelo” de São Paulo (1890) visando o preparo
pedagógico de professores para a realidade brasileira (Reis Filho, 1995, p. 76-78), que
culminaria na reforma do ensino paulista de 1892, o qual criaria, também, os grupos escolares do
estado; a criação dos grupos escolares de Curitiba, PR (1903), a reforma do ensino em Minas
Gerais (1906), a reforma no Estado da Paraíba, do Rio Grande do Norte e de Vitória, ES (1908),
seguidas pela criação do primeiro grupo escolar de Santa Catarina (1911). E se nota a referência
ao entusiasmo com que a educação passa a ser vista pelos intelectuais imbuídos do espírito
renovador:

“Embora, a princípio, sem diretrizes definidas, esse movimento francamente renovador


inaugurou uma série fecunda de combates de idéias, agitando o ambiente para as primeiras
reformas impelidas para urna nova direção. Multiplicaram-se as associações e iniciativas
escolares, em que esses debates testemunhavam a curiosidade dos espíritos, pondo em
circulação novas idéias e transmitindo aspirações novas com um caloroso entusiasmo.”
[...] Os trabalhos científicos no ramo da educação já nos faziam sentir, em toda a sua força
reconstrutora, o axioma de que se pode ser tão científico no estudo e na resolução dos
problemas educativos, como nos da engenharia e das finanças. Não tardaram a surgir, no
Distrito Federal e em três ou quatro Estados as reformas e, com elas, as realizações, com
espírito científico, e inspiradas por um ideal que, modelado à imagem da vida, já lhe refletia
a complexidade. Contra ou a favor, todo o mundo se agitou. Esse movimento é hoje uma
idéia em marcha, apoiando-se sobre duas forças que se completam: a força das idéias e a
irradiação dos fatos.”
153

Os argumentos pela necessidade de Diretrizes são então lançados, em contraposição


às visões antiquadas e desarticuladas em relação ao ensino, ainda muito presentes, e que os
manifestantes pretendem superar. Aqui temos a primeira menção clara sobre a recusa da
chamada “escola tradicional”:

[...] “A maioria dos espíritos, tanto da velha como da nova geração ainda se arrastam, porém,
sem convicções, através de um labirinto de idéias vagas, fora de seu alcance, e certamente,
acima de sua experiência; e, porque manejam palavras, com que já se familiarizaram,
imaginam muitos que possuem as idéias claras, o que lhes tira o desejo de adquiri-las... Era
preciso, pois, imprimir uma direção cada vez mais firme a esse movimento já agora nacional,
que arrastou consigo os educadores de mais destaque, e levá-lo a seu ponto culminante com
uma noção clara e definida de suas aspirações e suas responsabilidades. Aos que tomaram
posição na vanguarda da campanha de renovação educacional, cabia o dever de formular, em
documento público, as bases e diretrizes do movimento que souberam provocar, definindo,
perante o público e o governo, a posição que conquistaram e vêm mantendo desde o início
das hostilidades contra a escola tradicional. “ (itálicos nosos)

É preciso, pois, uma “Reforma das Reformas”, e aqui a posição dos pioneiros se nos
revela como uma “crítica” das primeiras reformas republicanas do ensino, parciais, com vistas à
instauração de uma “grande reforma” de âmbito nacional:

[...] “Em lugar dessas reformas parciais, que se sucederam, na sua quase totalidade, na
estreiteza crônica de tentativas empíricas, o nosso programa concretiza uma nova política
educacional, que nos preparará, por etapas, a grande reforma, em que palpitará, com o
ritmo acelerado dos organismos novos, o músculo central da estrutura política e social da
nação.”
“Em cada uma das reformas anteriores, em que impressiona vivamente a falta de uma visão
global do problema educativo, a força inspiradora ou a energia estimulante mudou apenas
de forma, dando soluções diferentes aos problemas particulares. Nenhuma antes desse
movimento renovador penetrou o âmago da questão, alterando os caracteres gerais e os
traços salientes das reformas que o precederam.”

São expostas, então, as idéias acerca da função da escola e suas finalidades.


Interessante notar a referência à ligação histórica do formato e fins da educação segundo as
concepções filosóficas e de vida dos diferentes períodos das sociedades. Logo, que a educação e
seus fins sempre foram reflexos da realidade de cada sociedade, em suas diferentes épocas:

“Toda a educação varia sempre em função de uma "concepção da vida", refletindo, em cada
época, a filosofia predominante que é determinada, a seu turno, pela estrutura da sociedade.
E' evidente que as diferentes camadas e grupos (classes) de uma sociedade dada terão
respectivamente opiniões diferentes sobre a "concepção do mundo", que convém fazer adotar
ao educando e sobre o que é necessário considerar como "qualidade socialmente útil". O fim
da educação não é, como bem observou G. Davy, "desenvolver de maneira anárquica as
tendências dominantes do educando; se o mestre intervém para transformar, isto implica nele
a representação de um certo ideal à imagem do qual se esforça por modelar os jovens
espíritos". Esse ideal e aspiração dos adultos torna-se mesmo mais fácil de apreender
exatamente quando assistimos à sua transmissão pela obra educacional, isto é, pelo trabalho
a que a sociedade se entrega para educar os seus filhos. A questão primordial das finalidades
da educação gira, pois, em torno de uma concepção da vida, de um ideal, a que devem
conformar-se os educandos, e que uns consideram abstrato e absoluto, e outros, concreto e
154

relativo, variável no tempo e no espaço. Mas, o exame, num longo olhar para o passado, da
evolução da educação através das diferentes civilizações, nos ensina que o "conteúdo real
desse ideal" variou sempre de acordo com a estrutura e as tendências sociais da época,
extraindo a sua vitalidade, como a sua força inspiradora, da própria natureza da realidade
social.”

Ou seja, nesse ponto o texto evidencia os seus próprios pressupostos filosóficos em


relação ao papel do ensino: do mesmo modo que o ensino sempre refletiu a natureza da realidade
social de cada época e sociedade, o mesmo princípio é aplicável à sociedade brasileira em seu
processo de mutação atual. As novas mudanças às quais a nova realidade da sociedade brasileira
reclama, implicam em uma nova concepção para o ensino. Portanto, novos conteúdos e métodos
pedagógicos. Dentro da nova concepção defendida, surge a primeira referência a uma educação
que respeite o direito natural de cada indivíduo de ser educado segundo suas aspirações também
naturais, ou seja, segundo suas inclinações e aptidões. O fundamento dessa concepção natural
estará apoiado, portanto, justamente numa visão biológica do papel do ensino: proporcionar o
desenvolvimento das capacidades naturais de cada indivíduo, sem privilégios de classe:

“Ora, se a educação está intimamente vinculada à filosofia de cada época, que lhe define o
caráter, rasgando sempre novas perspectivas ao pensamento pedagógico, a educação nova
não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha
estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção
vencida. Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem servido, a educação perde
o "sentido aristológico", para usar a expressão de Ernesto Nelson, deixa de constituir um
privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um
"caráter biológico", com que ela se organiza para a coletividade em geral, reconhecendo a
todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais,
independente de razões de ordem econômica e social. A educação nova, alargando a sua
finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua
verdadeira função social, preparando-se para formar "a hierarquia democrática" pela
"hierarquia das capacidades", recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as
mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios
de ação durável com o fim de "dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano
em cada uma das etapas de seu crescimento", de acordo com uma certa concepção do
mundo.”

Mas esta explicitação filosófica, que remete à idéia de democracia e igualdade de


oportunidades — o que nos permite um interessante paralelo com os argumentos discutidos por
Gramsci no tópico anterior —, ao ser aprofundada no texto revela também a aceitação tácita da
existência de diferenças entre os indivíduos (elegantemente entendidas como “reflexo da
diversidade social”), que por sua vez são reconhecidas como provenientes, em parte, das
diferenças entre classes, o que, por conseguinte, redunda na valorização da “qualidade
socialmente útil” dos conteúdos segundo os conceitos das classes e grupos sociais. Assumindo-se
como “certamente pragmática”, a educação nova enfatiza, entretanto, não estar a serviço dos
interesses de classes, “mas aos interesses dos indivíduos”. Possibilitando o acesso não das
155

classes, mas dos indivíduos independentemente de suas origens, ao ensino, o Manifesto supõe
superar as próprias determinações classistas, como reclamaria um modelo democrático de
ensino:

“A diversidade de conceitos da vida provém, em parte, das diferenças de classes e, em parte,


da variedade de conteúdo na noção de "qualidade socialmente útil", conforme o ângulo
visual de cada uma das classes ou grupos sociais. A educação nova que, certamente
pragmática, se propõe ao fim de servir não aos interesses de classes, mas aos interesses do
indivíduo, e que se funda sobre o princípio da vinculação da escola com o meio social, tem o
seu ideal condicionado pela vida social atual, mas profundamente humano, de solidariedade,
de serviço social e cooperação. A escola tradicional, instalada para uma concepção burguesa,
vinha mantendo o indivíduo na sua autonomia isolada e estéril, resultante da doutrina do
individualismo libertário, que teve aliás o seu papel na formação das democracias e sem cujo
assalto não se teriam quebrado os quadros rígidos da vida social.”

Estariam, assim, lançadas as bases de uma educação socializada e democrática,


pragmaticamente ligada à realidade social e suas demandas. Nesse sentido, a escola socializada
toma a atividade do trabalho como o fundamento da própria sociedade, e, portanto, essa escola
nova deve ser “reconstituída sobre a base da atividade e da produção” — o que nos remete ao
elemento principal das análises realizadas por Antonio Gramsci, baseadas no princípio educativo
do trabalho em seus dois sentidos: um, contingencial e ligado aos imperativos da sociedade
industrial capitalista, outro, genérico, ligado à formação clássica e desinteressada de
individualidades omnilaterais. No caso do Manifesto, a preocupação pragmática e utilitarista que
o perpassa torna suas premissas claramente identificadas com o primeiro caso, ou seja, o vínculo
necessário com as demandas do trabalho como processo produtivo:

“A escola socializada, reconstituída sobre a base da atividade e da produção, em que se


considera o trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade em geral (aquisição ativa
da cultura) e a melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da
sociedade humana, se organizou para remontar a corrente e restabelecer, entre os homens, o
espírito de disciplina, solidariedade e cooperação, por uma profunda obra social que
ultrapassa largamente o quadro estreito dos interesses de classes.”

E, mais adiante, a reafirmação mais explícita do princípio do trabalho como método


por excelência da educação renovada:

[...] “É certo que é preciso fazer homens, antes de fazer instrumentos de produção. Mas, o
trabalho que foi sempre a maior escola de formação da personalidade moral, não é apenas o
método que realiza o acréscimo da produção social, é o único método susceptível de fazer
homens cultivados e úteis sob todos os aspectos. O trabalho, a solidariedade social e a
cooperação, em que repousa a ampla utilidade das experiências; a consciência social que nos
leva a compreender as necessidades do indivíduo através das da comunidade, e o espírito de
justiça, de renúncia e de disciplina, não são, aliás, grandes "valores permanentes" que elevam
a alma, enobrecem o coração e fortificam a vontade, dando expressão e valor à vida humana?

A seguir, entretanto, a ponderação moral em relação à possiblidade de uma escola do


trabalho correr o risco de “fazer do homem uma máquina, um instrumento exclusivamente
156

apropriado a ganhar salário e produzir resultado material num tempo dado”. Os pioneiros
parecem ter clareza a este respeito, mas procuram resolver a questão de forma abstrata, como se
moralmente se pudesse neutralizar o efeito que a própria realidade que tomam como referência
poderia infligir:

[...] “Certo, a doutrina de educação, que se apóia no respeito da personalidade humana,


considerada não mais como meio, mas como fim em si mesmo, não poderia ser acusada de
tentar, com a escola do trabalho, fazer do homem uma máquina, um instrumento
exclusivamente apropriado a ganhar o salário e a produzir um resultado material num tempo
dado. "A alma tem uma potência de milhões de cavalos, que levanta mais peso do que o
vapor. Se todas as verdades matemáticas se perdessem, escreveu Lamartine, defendendo a
causa da educação integral, o mundo industrial, o mundo material, sofreria sem duvida um
detrimento imenso e um dano irreparável; mas, se o homem perdesse uma só das suas
verdades morais, seria o próprio homem, seria a humanidade inteira que pereceria". Mas, a
escola socializada não se organizou como um meio essencialmente social senão para
transferir do plano da abstração ao da vida escolar em todas as suas manifestações, vivendo-
as intensamente, essas virtudes e verdades morais, que contribuem para harmonizar os
interesses individuais e os interesses coletivos. "Nós não somos antes homens e depois seres
sociais, lembra-nos a voz insuspeita de Paul Bureau; somos seres sociais, por isto mesmo
que somos homens, e a verdade está antes em que não há ato, pensamento, desejo, atitude,
resolução, que tenham em nós sós seu princípio e seu termo e que realizem em nós somente
a totalidade de seus efeitos".

Em relação ao papel do Estado em face da educação, a defesa de uma escola pública


e única são aspectos dos mais relevantes no Manifesto. Estes são postos como direito de cada
indivíduo e obrigação do Estado:

“Mas, do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre logicamente para o
Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de
seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é
chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais. A educação que é uma
das funções de que a família se vem despojando em proveito da sociedade política, rompeu
os quadros do comunismo familiar e dos grupos específicos (instituições privadas), para se
incorporar definitivamente entre as funções essenciais e primordiais do Estado.”
[...] “Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral,
cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano
geral de educação, de estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus
graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade
econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com as suas aptidões vitais.
Chega-se, por esta forma, ao princípio da escola para todos, "escola comum ou única", que,
tomado a rigor, só não ficará na contingência de sofrer quaisquer restrições, em países em
que as reformas pedagógicas estão intimamente ligadas com a reconstrução fundamental das
relações sociais.”

Mas... há também a questão do ensino privado. Desse modo, conforme o manifesto,


o Estado não poderá impedir que as classes mais privilegiadas optem por um ensino diferenciado
e livremente organizado, que assegurem a seus filhos uma “educação de classe determinada”:

“Em nosso regime político, o Estado não poderá, de certo, impedir que, graças à organização
de escolas privadas de tipos diferentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos
uma educação de classe determinada; mas está no dever indeclinável de não admitir, dentro
157

do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas, a que só tenha acesso uma
minoria, por um privilegio exclusivamente econômico. Afastada a idéia do monopólio da
educação pelo Estado num país, em que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda
em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna
necessário estimular, sob sua vigilância as instituições privadas idôneas, a "escola única" se
entenderá, entre nós, não como "uma conscrição precoce", arrolando, da escola infantil à
universidade, todos os brasileiros, e submetendo-os durante o maior tempo possível a uma
formação idêntica, para ramificações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes
como a escola oficial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa
idade, sejam confiadas pelos pais à escola pública, tenham uma educação comum, igual para
todos.”

Uma vez mais, o problema é resolvido a partir de considerações abstratas por um


lado e a admissão do não-monopólio da educação pelo Estado pelo reconhecimento de que “o
Estado brasileiro ainda não se encontra, financeiramente, em condições de assumir a educação
como sua responsabilidade exclusiva”.
Certamente, os demais aspectos fundamentais do Manifesto estão na defesa inédita
da laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e unicidade do sistema, ainda que pautados em uma
noção natural-biologicista (ou ambientalista) de ensino:

“A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação são outros tantos princípios em que


assenta a escola unificada e que decorrem tanto da subordinação à finalidade biológica da
educação de todos os fins particulares e parciais (de classes, grupos ou crenças), como do
reconhecimento do direito biológico que cada ser humano tem à educação. A laicidade, que
coloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo
sectário, subtrai o educando, respeitando-lhe a integridade da personalidade em formação, à
pressão perturbadora da escola quando utilizada como instrumento de propaganda de seitas e
doutrinas. A gratuidade extensiva a todas as instituições oficiais de educação é um princípio
igualitário que torna a educação, em qualquer de seus graus, acessível não a uma minoria,
por um privilégio econômico, mas a todos os cidadãos que tenham vontade e estejam em
condições de recebê-la. Aliás o Estado não pode tornar o ensino obrigatório, sem torná-lo
gratuito. A obrigatoriedade que, por falta de escolas, ainda não passou do papel, nem em
relação ao ensino primário, e se deve estender progressivamente até uma idade conciliável
com o trabalho produtor, isto é, até aos 18 anos, é mais necessária ainda "na sociedade
moderna em que o industrialismo e o desejo de exploração humana sacrificam e violentam a
criança e o jovem", cuja educação é freqüentemente impedida ou mutilada pela ignorância
dos pais ou responsáveis e pelas contingências econômicas. A escola unificada não permite
ainda, entre alunos de um e outro sexo outras separações que não sejam as que aconselham
as suas aptidões psicológicas e profissionais, estabelecendo em todas as instituições "a
educação em comum" ou coeducação, que, pondo-os no mesmo pé de igualdade e
envolvendo todo o processo educacional, torna mais econômica a organização da obra
escolar e mais fácil a sua graduação.”

Por fim, estes princípios são revelados como cientificamente ligados a uma nova
concepção pedagógica que tem, em sua base, uma concepção de desenvolvimento psicológico e
da aprendizagem em que “a função educacional, cujos diferentes graus estão destinados a servir
às diferentes fases de seu crescimento [do indivíduo, MFZ], ‘que são partes orgânicas de um
todo que biologicamente deve ser levado à sua completa formação’". Estes princípios biológico-
evolucionistas, que visam ao desenvolvimento e seleção dos alunos nas suas aptidões naturais,
158

traz consigo a crença de que, desse modo, a escola se tornaria realmente democrática e os
indivíduos, segundo suas aptidões e inclinações, assumiriam naturalmente seus lugares ideais na
sociedade. Certamente, trata-se aqui da explicitação da concepção típica do contexto pedagógico,
sociológico e psicológico da época, e que notadamente reflete a visão caracteristicamente
burguesa de indivíduo e sociedade desde sua ascensão, e hegemônica até nossos dias:

“A consciência desses princípios fundamentais da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade,


consagrados na legislação universal, já penetrou profundamente os espíritos, como condições
essenciais à organização de um regime escolar, lançado, em harmonia com os direitos do
indivíduo, sobre as bases da unificação do ensino, com todas as suas conseqüências. De fato,
se a educação se propõe, antes de tudo, a desenvolver ao máximo a capacidade vital do ser
humano, deve ser considerada "uma só" a função educacional, cujos diferentes graus estão
destinados a servir às diferentes fases de seu crescimento, "que são partes orgânicas de um
todo que biologicamente deve ser levado à sua completa formação". Nenhum outro princípio
poderia oferecer ao panorama das instituições escolares perspectivas mais largas, mais
salutares e mais fecundas em conseqüências do que esse que decorre logicamente da
finalidade biológica da educação. A seleção dos alunos nas suas aptidões naturais, a
supressão de instituições criadoras de diferenças sobre base econômica, a incorporação dos
estudos do magistério à universidade, a equiparação de mestres e professores em
remuneração e trabalho, a correlação e a continuidade do ensino em todos os seus graus e a
reação contra tudo que lhe quebra a coerência interna e a unidade vital, constituem o
programa de uma política educacional, fundada sobre a aplicação do princípio unificador que
modifica profundamente a estrutura intima e a organização dos elementos constitutivos do
ensino e dos sistemas escolares.”

Em termos da gestão e sustenção do sistema escolar, dois outros aspectos


importantes são assinalados: a autonomia da função educacional e sua descentralização. Ambos
os mecanismos organizativos visariam a manter o sistema escolar fora do alcance de crises e
influências negativas externas à sua manutenção e administração. Em seguida, são abordados o
“conceito e os fundamentos da educação nova”. Nela são novamente enfatizados a importância
dos progressos científicos, agora explicitamente utilizados para se argumentar contra o
artificialismo, o mecanicismo e o externalismo próprios à educação tradicional:

“O desenvolvimento das ciências lançou as bases das doutrinas da nova educação, ajustando
à finalidade fundamental e aos ideais que ela deve prosseguir os processos apropriados para
realizá-los. A extensão e a riqueza que atualmente alcança por toda a parte o estudo
científico e experimental da educação, a libertaram do empirismo, dando-lhe um caráter e
um espírito nitidamente científico e organizando, em corpo de doutrina, numa série fecunda
de pesquisas e experiências, os princípios da educação nova, pressentidos e às vezes
formulados em rasgos de síntese, pela intuição luminosa de seus precursores. A nova
doutrina, que não considera a função educacional como uma função de superposição ou de
acréscimo, segundo a qual o educando é "modelado exteriormente" (escola tradicional), mas
uma função complexa de ações e reações em que o espírito cresce de "dentro para fora",
substitui o mecanismo pela vida (atividade funcional) e transfere para a criança e para o
respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da
educação. Considerando os processos mentais, como "funções vitais" e não como "processos
em si mesmos", ela os subordina à vida, como meio de utilizá-la e de satisfazer as suas
múltiplas necessidades materiais e espirituais. A escola, vista desse ângulo novo que nos dá
o conceito funcional da educação, deve oferecer à criança um meio vivo e natural, "favorável
159

ao intercâmbio de reações e experiências", em que ela, vivendo a sua vida própria, generosa
e bela de criança, seja levada "ao trabalho e à ação por meios naturais que a vida suscita
quando o trabalho e a ação convém aos seus interesses e às suas necessidades".

Os princípios de uma escola ativa, espontânea, alegre e fecunda, se contrapõem à


passividade, ao intelectualismo e verbalismo próprio da “escola tradicional”. Na base dessa nova
escola estão os princípios de uma concepção psicobiológica do desenvolvimento humano,
notadamente vinculado às premissas da psicologia e filosofia da educação norte-americana, de
caráter pragmaticista, cujos representantes máximos foram William James (1842-1910), Charles
Sanders Peirce (1839-1914) e John Dewey (1859-1952), e consoantes também com a difusão da
escola ativa européia, que tivera, dentre seus defensores, Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e
Freidrich Fröebel (1782-1852), Edouard Claparède (1873-1940), Decroly (1871-1932) e
Adolphe Ferrière (1879-1960), dentre outros. O espontaneísmo e o ativismo defendidos por estes
movimentos, como vimos, são elementos também presentes na crítica formulada por Gramsci
que expusemos:

“Nessa nova concepção da escola, que é uma reação contra as tendências exclusivamente
passivas, intelectualistas e verbalistas da escola tradicional, a atividade que está na base de
todos os seus trabalhos, é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das
necessidades do próprio indivíduo. Na verdadeira educação funcional deve estar, pois,
sempre presente, como elemento essencial e inerente à sua própria natureza, o problema não
só da correspondência entre os graus do ensino e as etapas da evolução intelectual fixadas
sobre a base dos interesses, como também da adaptação da atividade educativa às
necessidades psicobiológicas do momento. O que distingue da escola tradicional a escola
nova, não é, de fato, a predominância dos trabalhos de base manual e corporal, mas a
presença, em todas as suas atividades, do fator psicobiológico do interesse, que é a primeira
condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando (criança,
adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance, "graças à força de atração
das necessidades profundamente sentidas". É certo que, deslocando-se por esta forma, para a
criança e para os seus interesses, móveis e transitórios, a fonte de inspiração das atividades
escolares, quebra-se a ordem que apresentavam os programas tradicionais, do ponto de vista
da lógica formal dos adultos, para os pôr de acordo com a "lógica psicológica", isto é, com a
lógica que se baseia na natureza e no funcionamento do espírito infantil.”
“Mas, para que a escola possa fornecer aos "impulsos interiores a ocasião e o meio de
realizar-se", e abrir ao educando à sua energia de observar, experimentar e criar todas as
atividades capazes de satisfazê-la, é preciso que ela seja reorganizada como um "mundo
natural e social embrionário", um ambiente dinâmico em íntima conexão com a região e a
comunidade. A escola que tem sido um aparelho formal e rígido, sem diferenciação regional,
inteiramente desintegrado em relação ao meio social, passará a ser um organismo vivo, com
uma estrutura social, organizada à maneira de uma comunidade palpitante pelas soluções de
seus problemas. Mas, se a escola deve ser uma comunidade em miniatura, e se em toda a
comunidade as atividades manuais, motoras ou construtoras "constituem as funções
predominantes da vida", é natural que ela inicie os alunos nessas atividades, pondo-os em
contato com o ambiente e com a vida ativa que os rodeia, para que eles possam, desta forma,
possuí-la, apreciá-la e senti-la de acordo com as aptidões e possibilidades. "A vida da
sociedade, observou Paulsen, se modifica em função da sua economia, e a energia individual
e coletiva se manifesta pela sua produção material". A escola nova, que tem de obedecer a
esta lei, deve ser reorganizada de maneira que o trabalho seja seu elemento formador,
favorecendo a expansão das energias criadoras do educando, procurando estimular-lhe o
160

próprio esforço como o elemento mais eficiente em sua educação e preparando-o, com o
trabalho em grupos e todas as atividades pedagógicas e sociais, para fazê-lo penetrar na
corrente do progresso material e espiritual da sociedade de que proveio e em que vai viver e
lutar.”

No bojo do caráter político, filosófico e pedagógico do Movimento dos Pioneiros da


Escola Nova no Brasil, seria também apresentado um “plano de reconstrução educacional”.
Nesse plano são esboçados e justificados a estrutura e o funcionamento do sistema de ensino
preconizado, e que se revela estreitamente identificado com as necessidades de desenvolvimento
social e econômico da sociedade brasileira:

“A estrutura do plano educacional corresponde, na hierarquia de suas instituições escolares


(escola infantil ou pré-primária; primária; secundária e superior ou universitária) aos quatro
grandes períodos que apresenta o desenvolvimento natural do ser humano. É uma reforma
integral da organização e dos métodos de toda a educação nacional, dentro do mesmo
espírito que substitui o conceito estático do ensino por um conceito dinâmico, fazendo um
apelo, dos jardins de infância à Universidade, não à receptividade mas à atividade criadora
do aluno. A partir da escola infantil (4 a 6 anos) à Universidade, com escala pela educação
primária (7 a 12) e pela secundária (l2 a 18 anos), a "continuação ininterrupta de esforços
criadores" deve levar à formação da personalidade integral do aluno e ao desenvolvimento de
sua faculdade produtora e de seu poder criador, pela aplicação, na escola, para a aquisição
ativa de conhecimentos, dos mesmos métodos (observação, pesquisa, e experiência), que
segue o espírito maduro, nas investigações científicas. A escola secundária, unificada para se
evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais, terá uma sólida base comum
de cultura geral (3 anos), para a posterior bifurcação (dos 15 aos 18), em seção de
preponderância intelectual (com os 3 ciclos de humanidades modernas; ciências físicas e
matemáticas; e ciências químicas e biológicas), e em seção de preferência manual,
ramificada por sua vez, em ciclos, escolas ou cursos destinados à preparação às atividades
profissionais, decorrentes da extração de matérias primas (escolas agrícolas, de mineração e
de pesca) da elaboração das matérias primas (industriais e profissionais) e da distribuição dos
produtos elaborados (transportes, comunicações e comércio).”

Interessante notar, na passagem a seguir, argumentos essencialmente identificados


com os apontados por Gramsci em sua avaliação dos discursos da escola nova na Europa. Dentre
os principais, podemos destacar a insistência no fato de que a escola deve estar acima das
questões de classe e do dualismo escolar, de modo a democratizar o ensino e garantir
oportunidades sem restrições à classe popular:

“Mas, montada, na sua estrutura tradicional, para a classe média (burguesia), enquanto a
escola primária servia à classe popular, como se tivesse uma finalidade em si mesma, a
escola secundária ou do 3º grau não forma apenas o reduto dos interesses de classe, que
criaram e mantêm o dualismo dos sistemas escolares. É ainda nesse campo educativo que se
levanta a controvérsia sobre o sentido de cultura geral e se põe o problema relativo à escolha
do momento em que a matéria do ensino deve diversificar-se em ramos iniciais de
especialização. Não admira, por isto, que a escola secundária seja, nas reformas escolares, o
ponto nevrálgico da questão. Ora, a solução dada, neste plano, ao problema do ensino
secundário, levantando os obstáculos opostos pela escola tradicional à interpenetração das
classes sociais, se inspira na necessidade de adaptar essa educação à diversidade nascente de
gostos e à variedade crescente de aptidões que a observação psicológica regista nos
adolescentes e que "representam as únicas forças capazes de arrastar o espírito dos jovens à
cultura superior". A escola do passado, com seu esforço inútil de abarcar a soma geral de
161

conhecimentos, descurou a própria formação do espírito e a função que lhe cabia de conduzir
o adolescente ao limiar das profissões e da vida. Sobre a base de uma cultura geral comum,
em que importará menos a quantidade ou qualidade das matérias do que o "método de sua
aquisição", a escola moderna estabelece para isto, depois dos 15 anos, o ponto em que o
ensino se diversifica, para se adaptar já à diversidade crescente de aptidões e de gostos, já à
variedade de formas de atividade social.”

Ao discorrer detidamente sobre o problema das universidades no país, o documento


chega a uma questão inevitável: o problema da diferenciação, entendido como o “problema dos
melhores”. Aqui, novamente ressurge o problema das diferenças, que se por um lado o
documento rejeita na dimensão política e econômica da estratificação de classes, ele dissimula e
aceita na forma de resultado de uma seleção natural entre os mais aptos:

[...] “De fato, a Universidade, que se encontra no ápice de todas as instituições educativas,
está destinada, nas sociedades modernas a desenvolver um papel cada vez mais importante
na formação das elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos, e educadores, de que elas
precisam para o estudo e solução de suas questões científicas, morais, intelectuais, políticas e
econômicas. Se o problema fundamental das democracias é a educação das massas
populares, os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma
pirâmide de base imensa. Certamente, o novo conceito de educação repele as elites formadas
artificialmente "por diferenciação econômica" ou sob o critério da independência econômica,
que não é nem pode ser hoje elemento necessário para fazer parte delas. A primeira condição
para que uma elite desempenhe a sua missão e cumpra o seu dever é de ser "inteiramente
aberta" e não somente de admitir todas as capacidades novas, como também de rejeitar
implacavelmente de seu seio todos os indivíduos que não desempenham a função social que
lhes é atribuída no interesse da coletividade. Mas, não há sociedade alguma que possa
prescindir desse órgão especial e tanto mais perfeitas serão as sociedades quanto mais
pesquisada e selecionada for a sua elite, quanto maior for a riqueza e a variedade de homens,
de valor cultural substantivo, necessários para enfrentar a variedade dos problemas que põe a
complexidade das sociedades modernas. Essa seleção que se deve processar não "por
diferenciação econômica", mas "pela diferenciação de todas as capacidades", favorecida
pela educação, mediante a ação biológica e funcional, não pode, não diremos completar-se,
mas nem sequer realizar-se senão pela obra universitária que, elevando ao máximo o
desenvolvimento dos indivíduos dentro de suas aptidões naturais e selecionando os mais
capazes, lhes dá bastante força para exercer influência efetiva na sociedade e afetar, dessa
forma, a consciência social.” (itálicos nossos)."

O Manifesto prosseguirá remetendo-se a outros tópicos e quesitos de grande


importância para seu propósito de uma reconstrução da educação no país. Temas como a
unidade de formação de professores (relacionado por sua vez a uma “unidade de espírito”), que
implica no tratamento digno da elite mais apta ao ensino da qual esses professores seriam
provenientes, ou seja, das universidades.

[...] “Ora, dessa elite deve fazer parte evidentemente o professorado de todos os graus, ao
qual, escolhido como sendo um corpo de eleição, para uma função pública da mais alta
importância, não se dá, nem nunca se deu no Brasil, a educação que uma elite pode e deve
receber. A maior parte dele, entre nós, é recrutada em todas as carreiras, sem qualquer
preparação profissional, como os professores do ensino secundário e os do ensino superior
(engenharia, medicina, direito, etc.), entre os profissionais dessas carreiras, que receberam,
uns e outros, do secundário a sua educação geral. O magistério primário, preparado em
escolas especiais (escolas normais), de caráter mais propedêutico, e, as vezes misto, com
162

seus cursos geral e de especialização profissional, não recebe, por via de regra, nesses
estabelecimentos, de nível secundário, nem uma sólida preparação pedagógica, nem a
educação geral em que ela deve basear-se. [...] Todos os professores, de todos os graus, cuja
preparação geral se adquirirá nos estabelecimentos de ensino secundário, devem, no entanto,
formar o seu espírito pedagógico, conjuntamente, nos cursos universitários, em faculdades
ou escolas normais, elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades. A tradição
das hierarquias docentes, baseadas na diferenciação dos graus de ensino, e que a linguagem
fixou em denominações diferentes (mestre, professor e catedrático), é inteiramente contrária
ao princípio da unidade da função educacional, que, aplicado, às funções docentes, importa
na incorporação dos estudos do magistério às universidades, e, portanto, na libertação
espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e remuneração equivalentes
que lhe permitam manter, com a eficiência no trabalho, a dignidade e o prestígio
indispensáveis aos educadores.”

Em “o papel da escola na vida e a sua função social”, o documento também enfatiza


a necessidade de que a escola transcenda seu espaço tradicional e assimile, como um órgão
social que é, as demais dimensões da vida em comunidade, seus valores, suas vivências, suas
instituições, seus ambientes etc.

[...] “Mas, ao mesmo tempo que os progressos da psicologia aplicada à criança começaram a
dar à educação bases científicas, os estudos sociológicos, definindo a posição da escola em
face da vida, nos trouxeram uma consciência mais nítida da sua função social e da estreiteza
relativa de seu círculo de ação. Compreende-se, à luz desses estudos, que a escola, campo
específico de educação, não é um elemento estranho à sociedade humana, um elemento
separado, mas "uma instituição social", um órgão feliz e vivo, no conjunto das instituições
necessárias à vida, o lugar onde vivem a criança, a adolescência e a mocidade, de
conformidade com os interesses e as alegrias profundas de sua natureza. A educação, porém,
não se faz somente pela escola, cuja ação é favorecida ou contrariada, ampliada ou reduzida
pelo jogo de forças inumeráveis que concorrem ao movimento das sociedades modernas.
Numerosas e variadíssimas são, de fato, as influências que formam o homem através da
existência. "Há a herança que é a escola da espécie, como já se escreveu; a família que é a
escola dos pais; o ambiente social que é a escola da comunidade, e a maior de todas as
escolas, a vida, com todos os seus aspectos imponderáveis e forças incalculáveis".

Curioso notar a similaridade entre estes comentários, que propõem a aproximação da


escola com a comunidade, com os discursos contemporâneos relativos não só à aproximação da
escola em relação à comunidade e sua “realidade”, como também à conclamação da comunidade
a “participar” da vida escolar e de sua “realidade”. Embora este chamamento seja permeado
pelos mesmos elementos apresentados pelo discurso escolanovista de 1932, em que se destaca a
preocupação com a identificação da instituição escolar e seus propósitos com a formação de
indivíduos pertencentes ao ambiente social “real”, o discurso contemporâneo põe em relevo a
necessidade de a comunidade contribuir, sobretudo por apelos ao voluntarismo, para um
processo de “ensino participante”, em que membros da comunidade participem não só com
elementos supostamente educacionais (cursos, palestras, encontros, histórias de vida etc.) como
também com recursos e formas de obtenção de recursos, materiais, humanos e financeiros para a
manutenção da escola em seus aspectos estruturais e mesmo funcionais. Um grande exemplo
163

deste apelo à causa da educação (e sua precarização a partir dos anos de 1990...) é sem dúvida o
projeto “Amigos da Escola”, patrocinado pela Rede Globo de Televisão e a Fundação Roberto
Marinho. O trecho a seguir ilustra a proximidade entre ambos os momentos e argumentos:

“[...] As instituições periescolares e pós-escolares, de caráter educativo ou de assistência


social, devem ser incorporadas em todos os sistemas de organização escolar para corrigirem
essa insuficiência social, cada vez maior, das instituições educacionais. Essas instituições de
educação e cultura, dos jardins de infância às escolas superiores, não exercem a ação intensa,
larga e fecunda que são chamadas a desenvolver e não podem exercer senão por esse
conjunto sistemático de medidas de projeção social da obra educativa além dos muros
escolares. Cada escola, seja qual for o seu grau, dos jardins às universidades, deve, pois,
reunir em torno de si as famílias dos alunos, estimulando e aproveitando as iniciativas dos
pais em favor da educação; constituindo sociedades de ex-alunos que mantenham relação
constante com as escolas; utilizando, em seu proveito, os valiosos e múltiplos elementos
materiais e espirituais da coletividade e despertando e desenvolvendo o poder de iniciativa e
o espírito de cooperação social entre os pais, os professores, a imprensa e todas as demais
instituições diretamente interessadas na obra da educação.”

Por fim, o apelo e a defesa da democracia, que os signatários do Manifesto entendem


como “um programa de longos deveres”, e que deve ser observado e aplicado por uma sociedade
que se pretendia republicana:

[...] “Toda a profunda renovação dos princípios que orientam a marcha dos povos precisa
acompanhar-se de profundas transformações no regime educacional: as únicas revoluções
fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação, e é só pela educação que a
doutrina democrática, utilizada como um princípio de desagregação moral e de indisciplina,
poderá transformar-se numa fonte de esforço moral, de energia criadora, de solidariedade
social e de espírito de cooperação. "O ideal da democracia que, - escrevia Gustave Belot em
1919, - parecia mecanismo político, torna-se princípio de vida moral e social, e o que parecia
coisa feita e realizada revelou-se como um caminho a seguir e como um programa de longos
deveres". Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade
de dedicação e justifica maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir
sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros
praticados se projetam mais longe nas suas conseqüências, agravando-se à medida que
recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação
que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e
realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua
comunhão íntima com a consciência humana.” 47

Estas aspirações não nos parecerão estranhas contemporaneamente. Por todas as vias
institucionalizadas, deparamos com o apelo generalizado da mídia, de políticos, de
representantes de organizações não-governamentais, de educadores e intelectuais diversos, bem
como de setores empresariais e financeiros, nacionais e estrangeiros, a preconização de que só a

47
Assinam o Manifesto: Fernando de Azevedo; Afranio Peixoto A. de Sampaio Doria; Anisio Spinola Teixeira; M.
Bergstrom; Lourenço Filho; Roquette Pinto; J. G. Frota Pessôa; Julio de Mesquita Filho; Raul Briquet; Mario
Casassanta; C. Delgado de Carvalho; A. Ferreira de Almeida Jr.; J. P. Fontenelle; Roldão Lopes de Barros; Noemy
M. da Silveira; Hermes Lima; Attilio Vivacqua; Francisco Venancio Filho; Paulo Maranhão; Cecilia Meirelles;
Edgar Sussekind de Mendonça; Armanda Alvaro Alberto; Garcia de Rezende; Nobrega da Cunha; Paschoal Lemme;
Raul Gomes.
164

educação pode mudar a sociedade, e, por extensão, a humanidade. Por este discurso
generalizado, a educação escolar é constantemente assediada pela recomendação imperiosa de
aproximar-se da cultura, dos valores e conhecimentos extra-muros, o que representaria um
contato mais concreto com a realidade social na qual se encontra inserida e da qual deve,
necessariamente, tomar parte.
Não vemos inconveniente algum num tal princípio, desde que ele não implicasse
numa fatal descaracterização da função prioritária do ensino tal como o entendemos neste
estudo, ou seja, o de locus privilegiado e historicamente encarregado de possibilitar o contato da
sociedade com conhecimentos que não poderiam ser assimilados de modo apenas espontâneo e
imediato. Esse risco certamente não deve impedir que a escola abra suas portas para que tais
conhecimentos sejam cada vez mais democraticamente socializados. Contudo, o mesmo risco
não pode implicar em que a escola se torne o bode-expiatório do entretenimento e contenção de
populações que, de outra forma, estariam incomodando ou mesmo ameaçando a tranqüilidade e a
paz social tão desejada por nossas elites.
Evidentemente, o Manifesto, nesta nossa breve análise, não pode ser visto com olhos
contemporâneos, destacado de seu contexto original. Ele guarda consigo a marca de uma época
em que os ideais republicanos e democráticos, desde a independência dos Estados Unidos e da
Revolução Francesa, já se haviam consolidado em diversos países liberais — ainda que, em
grande medida, isto não representasse a noção de sociedades verdadeiramente inclusivas e
participativas, do ponto de vista do conceito revolucionário de moderna “cidadania”, pelas
incongruências entre as “letras da Lei” (nos Estados Constitucionais de Direito) e o direito
decisório das populações majoritárias, que de imediato, excluíam de suas prerrogativas mulheres,
analfabetos e os despossuídos de toda sorte.
Entretanto, em se tratando do espírito democrático que propugnava um sistema de
ensino nacional a partir da defesa de uma escola única, obrigatória, pública e laica, o Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova se nos revela de fato audacioso e revolucionário, numa
república tardia e arcaica em relação à noção de um Estado de Direito democrático e
verdadeiramente liberal-progressista. Assim, de fato, a exemplo da Semana de Arte Moderna de
1922 em relação às artes plásticas, literatura e arquitetura no país, o Manifesto foi um divisor de
águas no âmbito das idéias e da história pedagógica da educação brasileira.
165

CAPÍTULO III

Ultraliberalismo e o discurso da competência


para o Séc. XXI

No capítulo anterior fizemos uma incursão pelos elementos históricos,


epistemológicos e discursivos que conformaram o movimento ultraliberal no século XX. Fora
nosso objetivo caracterizar os aspectos ideológicos desse movimento, dando ênfase, portanto, à
sua “racionalidade” e apontando, também, algumas das suas principais contradições,
incoerências e conseqüências. Mas não é possível apreendermos a ascensão do movimento
neoliberal de Mont Pèlerin apenas como fenômeno “em si”, ou seja, separado do seu contexto
amplo de produção e de algumas apologias muito significativas que o acompanharam e/ou
complementaram, mais objetivamente, a partir dos anos de 1980.
O presente capítulo tem, por objetivos gerais, evidenciar a interpenetração entre o
contexto ultraliberal contemporâneo e as esferas do Trabalho e da Educação. Nesse sentido, o
discurso da competência se apresenta como elemento de mediação entre estas três esferas (esfera
política, do trabalho e da educação), determinado pelos imperativos contemporâneos do próprio
capitalismo em sua manifestação “neoliberal”.
Estas mediações, a seu turno, encontram em outras manifestações contemporâneas,
não imediatamente identificáveis entre si, mas concomitantemente difundidas, o que
entendemos, juntamente com outros pesquisadores, como possuidoras de uma mesma origem
e/ou complementaridades, com fortes ou oportunas convergências, relacionadas às mudanças
impetradas pelo capital ao metabolismo de toda a sociedade desde a década de 1970. Destas
manifestações destacamos como principais: a) o movimento pós-moderno, particularmente em
relação às ciências e à filosofia; b) as apologias aos avanços técnico-científicos, ao fim da
centralidade do trabalho e ao advento de uma “sociedade do conhecimento”, fundamentada na
informação e no tempo livre; c) as apologias à globalização do livre mercado; d) a apologia ao
novo perfil de trabalhador necessário, mediante as mudanças promulgadas pelo modelo de
produção flexível, ou seja, o “trabalhador inteligente” e supostamente “politécnico” (mas que
na prática não representam mais que a figura de um trabalhador competitivo, polivalente ou
“multifuncional”).
Este contexto apologético possui, como elementos comuns, uma supervalorização do
conhecimento e de suas prováveis aplicações. A supervalorização do conhecimento tem, por
166

suposto elemento concatenador e provedor a educação em suas variadas formas (e de certo


modo, até mesmo independente de formas ou modelos, dado que o discurso para a educação visa
ao seu valor-utilidade para os mais variados contextos). As aplicações do conhecimento, por sua
vez, encontram nas atividades produtivas humanas o seu elemento de realização, ou seja, a
esfera do trabalho.
Temos, deste modo, a relação “supervalorização do conhecimento, pela educação
(instrução, escolarização), aplicado ao trabalho (processo, utilidade)” como o mote de uma
noção de competência para uma pedagogia ultraliberal, a qual, a exemplo da noção de
qualificação que a precedeu (e ainda não tem motivos para ser considerada “morta”, pois que o
sistema de certificações permanece como principal sustentáculo de todo um mercado
educacional, supostamente qualificador para as novas exigências da sociedade produtora de
mercadorias), sistematiza e legitima, no âmbito da individualidade particular humana, os
imperativos educacionais, ideológicos e objetiváveis do capital em sua fase atual.
Todas as apologias acima mencionadas, por suas relações diretas ou indiretas com as
esferas do trabalho e da educação, possuem, portanto, como elementos mediadores, os discursos
relacionados a habilidades e competências para se saber viver (ou a adaptar-se para sobreviver)
no período “hipermoderno” do “ultraliberalismo”. Entrementes, toda esta rede de apologias,
explícita ou veladamente subsumida aos desiderativos do capital, evidencia uma grande
capacidade de sustentação por via de um único e mesmo mecanismo, ou seja, a fomentação da
abstração de elementos concretos da existência humana através de recursos subjetivos, sejam
virtuais, volitivos, desiderativos, imagéticos, cognitivos etc.. Enfim, recursos que idealmente
dissimulam e velam a realidade concreta presente, prometendo e postergando soluções sempre
para um futuro incerto ou que jamais chega a se realizar, outorgada a iniciativas e capacidades
individuais e localizadas — e que, certamente, não se prestam para a imensa maioria das
populações do globo.48

1. O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DO TRABALHO E DO CONHECIMENTO

1.1. Trabalho na sociedade do conhecimento

A França foi, desde novembro de 2005, palco de conflitos sociais envolvendo


jovens moradores dos guetos em que se transformaram as moradias populares destinadas às
comunidades mais pobres do país. Esses jovens franceses, que em geral não são brancos e

48
Estes elementos semióticos, como veremos no Capítulo III, sustentam as categorias de alienação, fetichismo e
reificação, tão dissimulados pela ideologia do capital quanto fundamentais à sua manutenção e reprodução.
167

incluem uma grande massa de descendentes de imigrantes, uma vez discriminados pela
sociedade e autoridades francesas deram início a manifestações que poderíamos considerar
atípicas para uma França sempre apontada como socialmente comedida e devidamente contida.
Os números são controversos, mas oficialmente cerca de nove mil automóveis foram
incendiados em todo o país em dois meses de conflitos, a partir de centros urbanos tão
importantes como Paris, Lyon, Toulouse e Strasbourg. (Conti, 2006, s/p).
Embora o governo e a mídia hajam insistido em atribuir os ataques a ondas de
vandalismo vindas de gangues (o que não pode ser excluído), os mais de dois mil presos são
compostos em geral por jovens desempregados, filhos e netos de imigrantes, com poucas
alternativas de trabalho e discriminados quanto às suas origens étnicas. As ações “marginais”
levaram a França, berço do Iluminismo e dos direitos universais humanos, da igualdade,
fraternidade e liberdade, à suspensão das liberdades de manifestação e associação durante dois
meses a partir de janeiro de 2005. Os prejuízos ultrapassaram 200 milhões de euros. (Conti,
2006, s/p).
Ignácio Ramonet define assim o atual quadro do país, ou como este quadro tem sido
oportunamente pintado pelas forças conservadoras no país:

Uma instituição que agoniza e deve ser reformada. Assim é a França, na opinião de um
grupo de "declinólogos" de direita, que tira proveito do temor sanitário surgido com as
ameaças de gripe aviária. Esse pessimismo de fundo foi reforçado por acontecimentos
recentes que, embora fortuitos, deram a impressão de enfraquecimento das instituições e
contribuíram para o mal-estar geral: catástrofe judiciária e naufrágio da mídia nos processos
de pedofilia de Outreau; lei de 23 de fevereiro de 2005, que afirmou o "papel positivo" do
colonialismo1; polêmica envolvendo o porta-aviões Clemenceau; insurgência nas periferias,
em novembro do ano passado; afirmação de fundamentalismos durante o caso das
caricaturas de Maomé e o assassinato odioso do jovem Ilan Halimi; privatização
descriteriosa da companhia "Gaz de France" etc. (Ramonet, 2006, Editorial, s/p)

O protesto dos jovens, segundo Ramonet, é o repúdio manifesto à globalização


selvagem, à tomada do poder pelas finanças e à precarização do trabalho. Neste contexto, cabe
um olhar mais detido sobre os encaminhamentos políticos e econômicos (e, por conseguinte,
sociais) ocorridos na França desde a ascensão do primeiro-ministro francês Dominique de
Villepin:
Nesse contexto alarmista, pressionado pelos partidários da ruptura, acusado de estar "em pé
diante de Bush, mas rendido à CGT" (Confederação Geral dos Trabalhadores), o primeiro-
ministro Dominique de Villepin teria decidido acabar com "a ansiedade da elite" e fazer a
esperada reforma do emprego.
No verão de 2005, ele conseguiu votar a toque de caixa o Contrato para o Novo Emprego
(CNE), em vigor desde setembro de 2005, para as empresas com menos de 20 empregados,
categoria onde se incluem dois terços das companhias francesas. A principal inovação é o
tipo de ruptura possível, neste novo contrato de trabalho. Como afirma o fiscal do trabalho
Gérard Filoche "trata-se essencialmente de um novo 'direito de rescisão contratual'. Podemos
colocar na rua quem quisermos e quando quisermos, sem motivos, sem regras e sem direito a
168

recurso." (Ramonet, 2006, idem).

Como a resistência ao projeto do CNE, que atende perfeitamente às reivindicações


do patronato, foi considerada moderada, o premier Villepin e seu ministério consideraram que se
pudesse aprovar em 8 de fevereiro de 2006, sem um verdadeiro debate público, o Contrato para
o Primeiro Emprego (CPE), que se transformou na pedra de toque de novas manifestações
populares. Por sua vez, esta modalidade contratual destinar-se-ia às empresas com mais de 20
funcionários e é exclusivamente dirigida a jovens com menos de 26 anos. Nela, o empregador
teria a possibilidade de rescindir o contrato sem necessidade de justificativa escrita durante os
dois primeiros anos de trabalho. (Ramonet, 2006, idem).
O primeiro-ministro tentou justificar a estranha natureza do CPE com o pretexto de
que, após os problemas ocorridos nas periferias em novembro de 2005, seria urgente facilitar a
contratação de jovens sem formação. O argumento não se revelou convincente, e rapidamente a
oposição ao CPE nas universidades e entre os desempregados, com o apoio dos principais
sindicatos, tomou uma dimensão considerável. E, segundo Ramonet:

A disputa é tanto política quanto simbólica. Após a grave derrota sofrida em junho de 2003,
quando foi votada a lei da Previdência, o movimento popular na França tenta se recuperar.
Além disso, a população acredita que aceitar o CPE, depois de ter se curvado ao CNE,
significaria uma concessão que favorece a precarização permanente do emprego e inicia o
desmantelamento completo do código de trabalho, que seria sacrificado no altar da
flexibilização. (Ramonet, 2006, idem – itálicos nossos).

E conclui suas reflexões da seguinte maneira:

Acusada pela direita de ser hoje "o órgão doente da Europa", a França é, ao contrário, um
país que resiste. Um dos poucos na Europa onde, com grande convicção, a maioria dos
assalariados rejeita uma globalização selvagem que significa a tomada do poder pelas
finanças. Uma globalização que entrega os cidadãos às empresas, enquanto o Estado se
exime de toda responsabilidade. Essa modificação radical nas relações entre poder público e
sociedade (o fim do bem-estar social) é imoral.
A solidariedade social é um traço fundamental da sociedade francesa. O CPE contribui com
a destruição dessa solidariedade. Por isso, a contestação e a revolta. (Ramonet, 2006, idem).

O desfecho dos conflitos, até o momento em que redigimos este texto, implicou em
que o governo francês retirasse o projeto do primeiro emprego, o que demonstrou que a
organização da juventude e dos desempregados franceses foram capazes de promover um
movimento de defesa de seus interesses consistente e ameaçador o suficiente para que o quadro
de institucionalização da precariedade trabalhista no país sofresse ao menos um importante revés
e revelasse que os trabalhadores, embora sindicalmente dispersos e aparentemente sem poder de
resposta ao que se lhes impõe formalmente, ainda existem e não estão dispostos a cederem mais
do que já cederam durante as décadas ultraliberais de 1980 e 1990.
169

Iniciamos este tópico com o preâmbulo acima porque ele nos parece bastante
significativo e revelador da relação entre capital e trabalho no período ultraliberal que se abateu
sobre o globo na transição do séc. XX para o séc. XXI. Essa relação, desde a crise capitalista que
se iniciou nos anos de 1970, e que atingiu seu auge na década de 1990, colocou os movimentos e
organizações trabalhadoras inicialmente na berlinda para, imediatamente após, fragilizar e
dispersar praticamente toda a organização de classe resultante de um século e meio de lutas
incessantes contra os interesses unilaterais capitalistas por todo o mundo. Este fenômeno,
econômico, político e cultural, teve seus reflexos mais imediatos não apenas na periferia do
capitalismo avançado, como também nos próprios países centrais do capitalismo mundial, de
onde emanaram teses que contribuíram para crenças e superstições quase dogmáticas e pseudo-
científicas sobre, por exemplo, o fim da centralidade do trabalho e, por extensão, o fim da classe
operária.
Tomando ainda a França como exemplo, Stéphane Beaud e Michel Pialoux (1999),
em Retour sur la condition ouvrière49 nos apresentam uma situação dos anos de 1990 bastante
sintomática acerca das representações comuns de estudantes de um curso de Ciências Sociais de
Paris, sobre a condição e significado social do operariado francês. Tomamos aqui a liberdade de
transcrevermos na íntegra o exemplo ao qual fazem referência:

Uma bela ilustração deste fenômeno da subestimação de sua denominação [“operários”],


notadamente pelos “jovens”. A história seguinte, que se passa numa faculdade parisiense de
sociologia é, a nosso ver, muito significativa. Num curso de licenciatura, no mês de janeiro
de 1997, após três meses de aula em que muito se falou sobre trabalho operário, achamos
necessário focar um pequeno aspecto estatístico. E propomos a seguinte questão: “Quantos
operários há na França, em termos estatísticos, segundo suas opiniões?” Após um longo
silêncio, uma corajosa estudante se coloca: “200.000”. Muitos colegas protestam: “Não, não
é só isso.” Um outro refere-se a 2 milhões. Discussão geral. Nós lembramos que se deveria
incluir também os desempregados à população ativa. Após alguns momentos de burburinho,
chega-se a 1,5 milhão. Três dias mais tarde, numa aula de ciências sociais de um nível mais
elevado (onde muitos estudantes fizeram dois ou três anos de khâgne50 e ciências políticas),
nós apresentamos os números levantados na licenciatura. Não deixamos transparecer nossas
impressões. Então, lançamos a questão: “Mas e vocês, que diriam vocês?” Mais seguros, eles
respondem com maior rapidez e confiança. Uma estudante aponta a cifra de 300.000. A
discussão se abre e outro estudante chega a 3 milhões. A discussão é confusa, mas o número
final gira em torno de 2,5 milhões. Eles tinham uma idéia relativamente precisa da população
total da França e do número da população ativa, que eles situaram entre 20 e 25 milhões. É
diante desses números que são tentados, entretanto, a rever o número de operários a que
chegaram. Eles minimizaram os números sistematicamente. E se sentem confusos assim que
lhes são dados os “verdadeiros” números, com base num recenseamento de 1990 (ou seja,
por volta de 6,5 milhões) o que os convida a refletir sobre a significação sociológica desta
subestimação e, notadamente, sobre o significado dos discursos surgidos, desde quinze ou
vinte anos, sobre a desqualificação da classe operária e sua relegação a um estado de
subserviência, sobre a desvalorização simbólica da qual a categoria foi objeto e sobre a

49
“Retorno sobre a condição operária”, ainda sem tradução para o português (MFZ).
50
Classe preparatória para a Escola Normal Superior.
170

maneira com a qual essa desvalorização foi experimentada, sentida. (Beaud & Pialoux, 1999,
p. 15, nota 1 – tradução nossa).

O quadro acima, oferecido pelos dois sociólogos, nos parece bastante oportuno a que
possamos considerar com a adequada seriedade as condições objetivas e ideológicas que se
tornaram dominantes nos anos de 1990 acerca da população trabalhadora, notadamente sobre a
classe operária. Estaria a classe operária sendo “abolida” com os avanços tecnológicos dos meios
de produção no capitalismo contemporâneo? O trabalho estaria de fato perdendo sua
“centralidade” na sociedade dita “pós-industrial”? Estaria esta sociedade se transformando numa
sociedade do conhecimento?
Segundo Ricado Antunes, o caráter capitalista da sociedade contemporânea defende,
por meio de seus formuladores, a recusa do papel central do trabalho, tanto na sua dimensão
abstrata, que cria valores de troca — pois estes já não seriam mais decisivos hoje — quanto na
negação do papel que o trabalho concreto tem na estruturação de um mundo emancipado e em
uma vida cheia de sentido. Quer pela sua qualificação como sociedade de serviços, pós-industrial
e pós-capitalista, quer pela vigência de uma lógica institucional tripartite, vivenciada pela ação
pactuada entre o capital, os trabalhadores e o Estado, essa sociedade contemporânea, menos
mercantil e mais contratualista, não mais seria regida centralmente pela lógica do capital, mas
pela busca da alteridade dos sujeitos sociais, pela vigência de relações de civilidade fundadas na
cidadania, pela expansão crescente de "zonas de não-mercadorias", ou ainda pela disputa dos
fundos públicos (Antunes, 2000, p. 85-86). Segundo o autor:

Habermas faz a síntese mais articulada desta tese: "A utopia da sociedade do trabalho perdeu
sua força persuasiva... Acima de tudo, a utopia perdeu seu ponto de referência na realidade: a
força estruturadora e socializadora do trabalho abstrato. Claus Offe compilou convincentes
‘indicações da força objetivamente decrescente de fatores como trabalho, produção do lucro
na determinação da constituição e do desenvolvimento da sociedade em geral’. E, depois de
referir-se favoravelmente à obra de Gorz, acrescenta: "Coração da utopia, a emancipação do
trabalho heterônomo apresentou-se, porém, sob outra forma no projeto sócio-estatal. As
condições da vida emancipada e digna do homem já não devem resultar diretamente de uma
reviravolta nas condições de trabalho, isto é, de uma transformação do trabalho heterônomo
em auto-atividade" (Habermas, 1987: 106-107). Embora Habermas se refira à dimensão
abstrata do trabalho, evidencia-se, nessa vertente interpretativa, que o trabalho não tem mais
potencialidade estruturante nem no universo da sociedade contemporânea, como trabalho
abstrato, nem como fundamento de uma "utopia da sociedade do trabalho", como trabalho
concreto, pois "os acentos utópicos deslocaram-se do conceito de trabalho para o conceito de
comunicação’. ” (Habermas, idem: 114 – citado por Antunes, 2000, p. 86).

Em seu texto Adeus ao Trabalho? Ricardo Antunes (2000), defende algumas teses
que nos parecem muito pertinentes e elucidativas acerca da questão deste tópico. E, em sua
primeira tese, defende que “sem a devida incorporação desta distinção entre trabalho concreto e
abstrato, quando se diz adeus ao trabalho, comete-se um forte equívoco analítico, pois conside-
ra-se de maneira una um fenômeno que tem dupla dimensão.” E, recorrendo a Agnes Heller,
171

examina a questão insistindo que o trabalho tem que ser apreendido em seu duplo aspecto:
“como execução de um trabalho”, parte ativa da vida cotidiana, e como atividade de trabalho,
como uma “objetivação diretamente genérica”:

Marx, diz a autora, serve-se de dois termos distintos para melhor caracterizar esta dimensão
dupla do trabalho: work e labour. O primeiro (work) realiza-se como expressão do trabalho
concreto, que cria valores socialmente úteis. O segundo (labour) expressa a execução
cotidiana do trabalho, convertendo-se em sinônimo de trabalho alienado. O trabalho
entendido enquanto work expressa então uma atividade genérico-social que transcende a vida
cotidiana. É a dimensão voltada para a produção de valores de uso. É o momento da
prevalência do trabalho concreto. Em contrapartida labour exprime a realização da atividade
cotidiana, que sob o capitalismo assume a forma de atividade estranhada, fetichizada. A
desconsideração desta dupla dimensão presente no trabalho possibilita que a crise da
sociedade do trabalho abstrato seja entendida equivocamente como a crise da sociedade do
trabalho concreto. (Antunes, 2000, p. 88).

A superação da sociedade do trabalho abstrato, nesses termos, requer como


condição o reconhecimento do papel central do trabalho assalariado, “da classe-que-vive-do-
trabalho como sujeito potencialmente capaz, objetiva e subjetivamente, de caminhar para além
do capital”. Portanto, avalia Antunes, “trata-se de uma crise da sociedade do trabalho abstrato
cuja superação tem na classe trabalhadora, mesmo fragmentada, heterogeneizada e
complexificada, o seu pólo central”. (Antunes, op. cit., p. 88). E há, por outro lado, outro
equívoco que a primeira distorção possibilita, ao se desconsiderar a dupla dimensão do ato
laborativo: “aquela que rechaça o papel do trabalho como protoforma da atividade humana
emancipada. Nega-se o papel do trabalho concreto como momento primeiro de efetivação de
uma individualidade omnilateral, condição sem a qual não se realiza a dimensão do gênero-
para-si.51
Antunes propõe então a seguinte questão:

[...] a superação da sociedade do trabalho abstrato (para usarmos uma vez mais essa
expressão) e o seu trânsito para uma sociedade emancipada, fundada no trabalho concreto,
supõe a redução da jornada de trabalho e a ampliação do tempo livre, ao mesmo tempo em
que supõe também uma transformação radical do trabalho estranhado em um trabalho social
que seja fonte e base para a emancipação humana, para uma consciência omnilateral. Em
outras palavras, a recusa radical do trabalho abstrato não deve levar à recusa da possibilidade
de conceber o trabalho concreto como dimensão primária, originária, ponto de partida para a
realização das necessidades humanas e sociais. É a não aceitação desta tese que leva tantos
autores, Gorz à frente, a imaginar um trabalho sempre heterônomo, restando praticamente a
luta pelo tempo liberado. Seria a realização, esta sim utópica e romântica, do trabalho que
avilta e do tempo (fora do trabalho) que libera. Entendemos que a ação efetivamente capaz

51
O gênero para-si, em Marx e Heller, corresponde à esfera do processo de humanização histórico-social da
humanidade, humanização que não pode se dar exclusivamente pela esfera das atividades cotidianas ou meramente
empíricas do trabalho alienado, dado o seu caráter de parcialidade — embora o trabalho alienado possa ser
entendido como um substrato do trabalho concreto, forma verdadeiramente emancipadora da humanidade. Como
subentendido no trabalho como work, ele pode ser convertido em atividade realizadora para-si (por oposição à sua
mera condição, no capitalismo, de atividade alienadora em-si, no sentido de labour, a que se refere Antunes).
Retomamos essa discussão no Capítulo IV.
172

de possibilitar o salto para além do capital será aquela que incorpore as reivindicações
presentes na cotidianidade do mundo do trabalho, como a redução radical da jornada de
trabalho e a busca do "tempo livre" sob o capitalismo, desde que esta ação esteja
indissoluvelmente articulada com o fim da sociedade do trabalho abstrato e a sua conversão
em uma sociedade criadora de coisas verdadeiramente úteis. Este seria o ponto de partida
para uma organização societária que caminhe para a realização do reino das necessidades
(esfera onde o trabalho se insere) para o reino da liberdade (esfera onde o trabalho deixa de
ser determinado, como disse Marx, pela necessidade pela utilidade exteriormente imposta),
condição para um projeto fundamentado na associação livre dos indivíduos tornados
efetivamente sociais, momento de identidade entre o indivíduo e o gênero humano.
(Antunes, 2000, p. 89).

Antunes complementa que, por esses motivos, “quando o movimento de classe dos
trabalhadores se restringe e se atém exclusivamente à luta pela redução da jornada de trabalho,
configura-se aí uma posição extremamente defensiva e insuficiente.” Ora, parece-nos que ao
assim proceder, a classe trabalhadora demonstra não só sua sujeição ao regime assalariado que a
controla e conforma há quase dois séculos, quanto nos faz pensar no afastamento dos
trabalhadores de uma visão mais científica e histórica de sua própria situação na esfera do
trabalho. Há ainda alguma ligação entre os movimentos trabalhistas e uma teoria explicativa de
de sua condição de classe produtora dentro do modo capitalista de acumulação? Esta é uma
questão que nos parece inevitável e procedente.
O autor complementa essa nossa observação com a seguinte consideração: “limitada
a si mesma, esta ação situa-se no interior da sociedade produtora de mercadorias. É
imprescindível articular estas ações mais imediatas com um projeto global e alternativo de
organização societária, fundamentado numa lógica onde a produção de valores de troca não
encontre nenhuma possibilidade de se constituir como elemento estruturante.” (Antunes, 2000, p.
90).
Ainda em sua primeira tese, Antunes defende que:

[...] o tempo disponível, do ponto de vista do trabalho voltado para a produção de coisas
socialmente úteis e necessárias, propiciará a eliminação de todo o trabalho excedente
acumulado pelo capital e voltado para a produção destrutiva de valores de troca. Desse
modo, o tempo disponível controlado pelo trabalho e voltado para a produção de valores de
uso — e tendo como conseqüência o resgate da dimensão concreta do trabalho e a dissolução
da sua dimensão abstrata — poderá instaurar uma lógica societária radicalmente diferente da
sociedade produtora de mercadorias. E será capaz de, uma vez mais, evidenciar o papel
fundante do trabalho criativo — que suprime a distinção entre trabalho manual/trabalho
intelectual que fundamenta a divisão social do trabalho sob o capital - e por isso capaz de se
constituir em protoforma de uma atividade humana emancipada. (Antunes, 2000, p. 90)

Em sua segunda tese, o autor enfatizará que, “enquanto criador de valores de uso,
coisas úteis, forma de intercâmbio entre o ser social e a natureza, não parece plausível conceber-
se, no universo da sociabilidade humana, a extinção do trabalho social.” Se é possível visualizar
a eliminação da sociedade do trabalho abstrato — ação esta necessariamente articulada com o
173

fim da sociedade produtora de mercadorias —, é algo ontologicamente distinto supor ou


conceber o fim do trabalho como atividade útil, como atividade vital, como elemento fundante,
protoforma de uma atividade humana:

Em outras palavras: uma coisa é conceber, com a eliminação do capitalismo, também o fim
do trabalho abstrato, do trabalho estranhado; outra, muito distinta, é conceber a eliminação,
no universo da sociabilidade humana, do trabalho concreto, que cria coisas socialmente úteis,
e que, ao fazê-lo, (auto)transforma o seu próprio criador. Uma vez que se conceba o trabalho
desprovido dessa sua dupla dimensão, resta identificá-lo como sinônimo de trabalho abstrato,
trabalho estranhado e fetichizado. A conseqüência que disto decorre é, então, na melhor das
hipóteses, imaginar uma sociedade do tempo livre, com algum sentido, mas que conviva com
as formas existentes de trabalho estranhado e fetichizado. (Antunes, 2000, p. 91).

Esta segunda tese — um desdobramento da anterior — é, portanto, decorrência da


desconsideração acerca do duplo caráter do trabalho, presente em muitos dos críticos da
chamada sociedade do trabalho. Segundo Marx:

Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição na
existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade
natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana.
(Marx, 1988, p. 50).

Assim, considerado em sua dimensão genérica, o trabalho tem um significado


essencial no universo da sociabilidade humana. O trabalho é, por isso, considerado como
"modelo", "fenômeno originário", protoforma do ser social. O simples fato de que no trabalho se
realiza uma posição teleológica, o configura como uma experiência elementar da vida cotidiana,
tornando-se, desse modo, um componente inseparável dos seres sociais. O que permite a Lukács
afirmar que a gênese do ser social, sua separação frente à sua própria base originária e também o
seu vir-a-ser, estão fundadas no trabalho, isto é, na contínua realização de posições teleológicas
(Lukács, 1981, p 19 e 24 – citado por Antunes, op. cit.).

Aqui transparece uma vez mais a fragilidade maior dos críticos da sociedade do trabalho: a
desconsideração da dimensão essencial do trabalho concreto como fundamento (na medida
em que se insere na esfera das necessidades) capaz de possibilitar a base material sobre a
qual as demais esferas da atividade humana podem se desenvolver. Em verdade, essa
concepção fundamenta-se no reconhecimento e na aceitação de que o trabalho, regido pela
lógica do capital e das mercadorias, é inevitável ou até mesmo ineliminável, do que resulta
que o trabalho humano não pode converter-se numa verdadeira autoatividade. (Antunes,
2000, p. 92)

É importante reafirmar que o trabalho, entendido como protoforma da atividade


humana, não poderá jamais ser confundido como o momento único ou totalizante; ao contrário, o
que aqui estamos procurando reter é que a esfera do trabalho concreto é ponto de partida sob o
qual se poderá instaurar uma nova sociedade. O momento da omnilateralidade humana (que tem
como formas mais elevadas a arte, a ética, a filosofia, a ciência etc.) transcende evidentemente
em muito a esfera do trabalho como dimensão da realização de necessidades, mas deve encontrar
174

neste plano a sua base de sustentação. Antunes enfatiza, ainda com base em Marx, que neste
sentido, a automação, a robótica, a microeletrônica, enfim, a chamada revolução tecnológica têm
um evidente significado emancipatório, desde que não seja regida pela lógica destrutiva do
sistema produtor de mercadorias, mas sim pela sociedade do tempo disponível e da produção de
bens socialmente úteis e necessários. Mandel teria sintetizado da seguinte forma essas
condições:

"Marx opõe o potencial emancipador da automação e da robótica, sua capacidade de


aumentar grandemente o tempo livre para o ser humano, que se refere ao tempo para
florescimento da personalidade humana em sua totalidade, frente às suas tendências
opressivas sob o capitalismo". E acrescenta: "Numa sociedade de classes, a apropriação do
sobre-produto social por uma minoria significa a possibilidade de ampliar o tempo livre
somente para esta minoria e, conseqüentemente, a reprodução sempre mais ampliada da
sociedade entre aqueles que administram e acumulam conhecimentos e aqueles que
produzem sem ter acesso aos conhecimentos, ou com um acesso muito limitado aos mesmos.
Numa sociedade sem classes, a apropriação e o controle do sobre produto social pelos
produtores associados significará, ao contrário, uma redução radical do tempo de trabalho
(do trabalho necessário) para todos, um aumento radical do tempo livre para todos e,
portanto, a desaparição da divisão social do trabalho entre administradores e produtores,
entre aqueles e aquelas que têm acesso a todos os conhecimentos e aqueles e aquelas que
estão separados da maior parte do saber". (Mandel, 1986: 17-18, citado por Antunes, 2000,
p. 93).

Evidentemente, estas colocações de Antunes se prestam a responder, ao menos em


parte, a questão que havíamos levantado quanto à tendência da classe trabalhadora a manter seu
espectro de ação reinvindicativa no âmbito de sua subsistência pela redução de jornadas e
garantias salariais, e sua alienação teórica. Naturalmente, sua alienação por meio do trabalho
abstrato é o próprio fundamento de sua condição teoricamente também alienada. Manter a classe
trabalhadora subjugada ao reino da necessidade (ou do fazer para sobreviver) através das
limitações do trabalho “prático”, a impede de acessar a esfera fundamental do saber teórico para
além dos princípios elementares que, teoricamente, subsidiam apenas tecnicamente o seu
trabalho cotidiano. Estamos, pois, diante do problema da separação entre trabalho manual e
intelectual, e a apologia à sociedade do conhecimento não se refere a outro tipo de saberes que
não estejam, racional e tecnicamente, ligados à manutenção do trabalho alienado (labour). E
conclui o autor:

Os críticos da sociedade do trabalho, com honrosas exceções, "constatam empiricamente" a


perda de relevância do trabalho abstrato na sociedade moderna, convertida em sociedade
"pós-industrial" e de "serviços" e, conseqüentemente, deduzem e generalizam, a partir
daquela constatação, o "fim da utopia da sociedade do trabalho" em seu sentido amplo e
genérico. Procuramos aqui indicar, no contraponto que estamos sugerindo, que estas
formulações padecem de enormes limitações (que resultam em grande medida do abandono
de categorias analíticas de origem marxiana), de que é o maior exemplo a desconsideração
da dupla dimensão presente no trabalho (enquanto work e labour, enquanto trabalho concreto
e trabalho abstrato). Quando a defesa da sociedade do mercado e do capital não é claramente
explicitada nestas formulações, resta a proposição utópica e romântica do tempo livre no
175

interior de uma sociedade fetichizada, como se fosse possível vivenciar uma vida abso-
lutamente sem sentido no trabalho e cheia de sentido fora dele. Ou, repetindo o que dissemos
anteriormente, tentando compatibilizar trabalho aviltado com tempo liberado. (Antunes,
2000, p. 93-94).

Estas colocações, aqui sinteticamente apresentadas, nos parecem fundamentais para a


desmistificação da apologia do fim da centralidade do trabalho e do advento de uma sociedade
do conhecimento e do tempo livre. O fim da centralidade do trabalho é impossível numa
sociedade capitalista. Esta sociedade, por outro lado, só conhece (ou reconhece) o trabalho como
forma de produção de mercadorias (trabalho alienado ou labour). Uma suposta sociedade do
conhecimento no seu sentido estritamente apologético contemporâneo, também é incompatível
com uma sociedade capitalista, uma vez que o acesso ao conhecimento também se refere ao
conhecimento dos meios e processos de produção. Daí, ao nosso ver, a própria confusão entre as
denominações comuns dos visionários desta sociedade, seja valendo-se de sociedade do
conhecimento, seja valendo-se de sociedade da informação ou, ainda, sociedade informática.
Não há nenhuma razão para acreditar-se que estes termos refiram-se a conhecimentos
que transcendam os processos de trabalho, de modo que estas denominações se prestam a
confundir tanto aos trabalhadores (pois são incitados a crerem não possuir recursos intelectuais
imperiosos numa tal sociedade) quanto a muitos intelectuais e categorias sociais mais ou menos
instruídas, mas nem por isso menos alienadas (levados por sua vez a crer que de fato o ócio é
cada vez mais uma realidade, apologia à qual se apegam justamente por sua própria condição de
classe privilegiada em relação às determinações do mundo concreto). Permeando esses processos
de velamento da realidade concreta encontraremos outras categorias sociais, minoritárias, é
verdade, mas que estão organicamente vinculadas à manutenção da hegemonia capitalista, em
geral visionários ou oportunistas que primam por oferecer, à sociedade das mercadorias e à
mídia, novos itens ideológicos e crenças que se tornem valores-de-troca, sobretudo na forma de
best sellers.

1.2. A educação na “sociedade do conhecimento”: “aprendendo a aprender”

Newton Duarte, em As Pedagogias do “aprender a aprender” e algumas ilusões da


assim chamada Sociedade do Conhecimento52 (2001), que certamente tem representado, junto a
outros intelectuais críticos da educação na contemporaneidade, um importante crítico das

52
Trabalho apresentado na Sessão Especial intitulada Habilidades e Competências: a Educação e as Ilusões da
Sociedade do Conhecimento, durante a XXIV Reunião Anual da ANPED, 8 a 11 de outubro de 2001, Caxambu,
M.G.
176

determinações ultraliberais contemporâneas, com uma fértil produção em termos pedagógicos,


filosóficos e ideológicos no que se refere à convergência epistemológica entre construtivismo,
neoliberalismo e pós-modernidade, ao tratar da natureza político-ideológica da denominada
Sociedade do Conhecimento e suas implicações sobre a educação, logrou sintetizar, ao nosso ver,
os principais pontos do discurso ideológico da sociedade do conhecimento em relação à
educação, tal como têm sido difundidos contemporaneamente. E inicia sua crítica resgatando
algumas considerações dos principais representantes do ideário da escola ativa atuais:

Philippe Perrenoud, em seu livro Construir as Competências Desde a Escola, afirma que “a
abordagem por competências junta-se às exigências da focalização sobre o aluno, da
pedagogia diferenciada e dos métodos ativos” (Perrenoud, 1999: 53). Convém lembrar que a
expressão métodos ativos é utilizada como referência às idéias pedagógicas que tiveram sua
origem no movimento escolanovista. Alguns parágrafos mais adiante, nesse mesmo livro,
Perrenoud afirma que “a formação de competências exige uma pequena ‘revolução cultural’
para passar de uma lógica do ensino para uma lógica do treinamento (coaching), baseada
em um postulado relativamente simples: constroem-se as competências exercitando-se em
situações complexas” (Perrenoud, 1999: 54). Esse aprender a aprender é, portanto, também
um aprender fazendo, isto é, learning by doing, na clássica formulação da pedagogia de John
Dewey. (Duarte, 2001, p. 35).

Em seguida, o autor apresenta algumas palavras com as quais Perrenoud expressou-


se ao caracterizar o desenvolvimento de competências na nova sociedade vislumbrada:

Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por problemas e projetos,
propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar seus conhecimentos e,
em certa medida, completá-los. Isso pressupõe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para
a cidade ou para o bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de pensar
que dar aulas é o cerne da profissão. Ensinar, hoje, deveria consistir em conceber, encaixar e
regular situações de aprendizagem seguindo os princípios pedagógicos ativos e
construtivistas. Para os professores adeptos de uma visão construtivista e interacionista de
aprendizagem trabalhar no desenvolvimento de competências não é uma ruptura. (Perrenoud,
2000 – citado por Duarte, 2001, idem).

Duarte, referindo-se então às investigações que tem realizado em relação aos objetos
já mencionados, esclarece suas hipóteses e relações apreendidas por seus estudos sobre os
mesmos:

Ao investigar em minha pesquisa as interfaces entre o Construtivismo e outros modismos


educacionais, tenho chegado ao estabelecimento de elos de ligação entre ideários
pedagógicos normalmente vistos por boa parte dos educadores brasileiros como ideários
pertencentes a universos distintos. Mas essa é uma questão para outro momento. Tendo em
vista os objetivos desta apresentação, passarei diretamente ao seu tema central, isto é, as
relações entre as Pedagogias do “Aprender a Aprender” e algumas ilusões da assim chamada
sociedade do conhecimento.

Mas para estabelecer relações entre as ilusões da sociedade do conhecimento e as pedagogias


do “aprender a aprender” é necessário que primeiramente eu analise, ainda que de forma
breve, qual a essência desse tão proclamado lema educacional. Para isso retomarei aqui
algumas das considerações que teci sobre esse tema em meu livro Vigotski e o “Aprender a
Aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana
177

(Duarte, 2000). Nesse livro analisei a presença do lema “Aprender a Aprender” em dois
documentos da área educacional: o primeiro, relativo à educação em âmbito mundial, é o
relatório da comissão internacional da UNESCO, conhecido como Relatório Jacques Delors,
presidente da comissão (Delors, 1998); o segundo, o capítulo “Princípios e Fundamentos dos
Parâmetros Curriculares Nacionais”, do volume I, “Introdução”, dos PCN das séries iniciais
do Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, p. 33-55). Nesta apresentação não poderei,
entretanto, deter-me nos detalhes dessa análise. Focalizarei apenas quatro posicionamentos
valorativos contidos no lema “aprender a aprender”. (Duarte, 2001, p. 36).

O primeiro posicionamento axiológico que define o lema “aprender a aprender”


pode, segundo o autor, ser formulado da seguinte forma: “são mais desejáveis as aprendizagens
que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais está ausente a transmissão, por outros
indivíduos, de conhecimentos e experiências.” (Duarte, op. cit. idem). A seguir, uma explicitação
apresentada por Duarte a partir de uma declaração do construtivista espanhol César Coll sobre a
designação construtivista do “aprender a aprender”:

Numa perspectiva construtivista, a finalidade última da intervenção pedagógica é contribuir


para que o aluno desenvolva a capacidade de realizar aprendizagens significativas por si
mesmo numa ampla gama de situações e circunstâncias, que o aluno “aprenda a aprender”.
(COLL, 1994:136 – citado por Duarte, 2001, p. 36).

Nessa perspectiva, aprender sozinho contribuiria para o aumento da autonomia do indivíduo,


enquanto que aprender como resultado de um processo de transmissão por outra pessoa seria
algo que não produziria a autonomia e, ao contrário, muitas vezes até seria um obstáculo
para a mesma. (Duarte, op. cit., p. 36).

O autor não discorda, a exemplo da posição que também assumimos, em relação ao


fato de ser pedagogicamente importante o desenvolvimento de métodos que tornem o
conhecimento mais acessível aos indivíduos e grupos, e, tanto quanto, que estes conhecimentos
sejam passíveis da melhor assimilação possível (no sentido de apropriação para-si53) na situação
de aprendizagem. Entretanto, não são os aspectos metodológicos de uma pedagogia do aprender
a aprender que são postos em questão pelo autor, e sim, os propósitos que lhe são subjacentes:

Não discordo da afirmação de que a educação escolar deva desenvolver no indivíduo a


capacidade e a iniciativa de buscar por si mesmo novos conhecimentos, a autonomia
intelectual, a liberdade de pensamento e de expressão. Mas o que estou aqui procurando
analisar é outra coisa: trata-se do fato de que as pedagogias do “aprender a aprender”
estabelecem uma hierarquia valorativa na qual aprender sozinho situa-se num nível mais
elevado do que a aprendizagem resultante da transmissão de conhecimentos por alguém. Ao
contrário desse princípio valorativo entendo ser possível postular uma educação que fomente
a autonomia intelectual e moral através justamente da transmissão das formas mais elevadas
e desenvolvidas do conhecimento socialmente existente. (Duarte, 2001, p. 36).

Em outros termos, os postulados construtivistas, ao se aterem ao desiderato da


autonomia individual para a aprendizagem, resgatam os princípios da escola ativa da transição

53
O significado de para-si é o mesmo que mencionamos no item anterior, referente à concepção de Marx e à
sistematização de Agnes Heller (MFZ).
178

dos séculos XIX e XX, e assumidos pelo movimento escolanovista brasileiro, em que o como e o
onde se aprende se tornam mais relevantes que o quê se aprende e para quê:

O segundo posicionamento valorativo contido no lema “aprender a aprender” pode ser assim
formulado: é mais importante o aluno desenvolver um método de aquisição, elaboração,
descoberta, construção de conhecimentos, do que esse aluno aprender os conhecimentos que
foram descobertos e elaborados por outras pessoas. É mais importante adquirir o método
científico do que o conhecimento científico já existente. Esse segundo posicionamento
valorativo não pode ser separado do primeiro, pois o indivíduo só poderia adquirir o método
de investigação, só poderia “aprender a aprender” através de uma atividade autônoma.
Piaget, numa conferência proferida em 1947, intitulada “O Desenvolvimento Moral do
Adolescente em Dois Tipos de Sociedade: Sociedade Primitiva e Sociedade ‘Moderna’”,
defendeu essa idéia ao contrapor a transmissão de conhecimentos existentes ao oferecimento
de condições que permitam ao aluno construir suas próprias verdades:

“O problema da educação internacional é, portanto, essencialmente o de direcionar o


adolescente não para soluções prontas, mas para um método que lhe permita construí-las por
conta própria. A esse respeito, existem dois princípios fundamentais e correlacionados dos
quais toda educação inspirada pela psicologia não poderia se afastar: 1) que as únicas
verdades reais são aquelas construídas livremente e não aquelas recebidas de fora; 2) que o
bem moral é essencialmente autônomo e não poderia ser prescrito. Desse duplo ponto de
vista, a educação internacional é solidária de toda a educação. Não apenas a compreensão
entre os povos que se vê prejudicada pelo ensino de mentiras históricas ou de mentiras
sociais. Também a formação humana dos indivíduos é prejudicada quando verdades, que
poderiam descobrir sozinhos, lhes são impostas de fora, mesmo que sejam evidentes ou
matemáticas: nós os privamos então de um método de pesquisa que lhes teria sido bem mais
útil para a vida que o conhecimento correspondente!” (Piaget, 1998:166, citado por Duarte,
2001, p. 37 - grifos do autor).

Denota-se dos dois postulados piagetianos que a pedagogia que propõe, “dos quais
toda educação inspirada pela psicologia não poderia se afastar”, uma concepção sobre “verdade”
como algo estritamente próprio a cada indivíduo. Logo, que qualquer noção de verdade só é
válida no âmbito da individualidade, segundo sua compreensão da realidade (o que torna a
verdade um princípio intrinsecamente relativista). Assim sendo, o método de aprendizagem
confunde-se também com o método científico. Mas o método científico em questão deve estar a
serviço do aprendizado em-si mesmo considerado. Logo, em termos de uma sociologia do
conhecimento, Piaget, ele mesmo um psicólogo experimental, presume que a experimentação
ativa seja o método científico por excelência para a aprendizagem. Isso enseja o espontaneísmo
naturalista e a-histórico, que aliás marcaram profundamente as próprios estudos piagetianos,
realizados, amiúde, em laboratório com crianças de etnia européia e em maior ou menor grau
pertencentes a estratos sócio-culturais determinados. Por fim, o posicionamento epistemológico
de Piaget desconsidera os conhecimentos como social e historicamente produzidos e
sistematizados. Isto propicia, a seu turno, uma visão imediatista da sociedade, seu funcionamento
e seus valores, o que, certamente, seu método acaba por prescrever às próprias novas gerações
em processo de aprendizagem. Isto fatalmente nos remete à presença de um pragmatismo
179

imediatista que, a posteriori, nos indica que a noção de verdade, a exemplo do que prescrevia
William James, estará diretamente relacionada à sua utilidade imediata. E acrescenta Duarte:

O terceiro posicionamento valorativo contido no lema “aprender a aprender” seria o de que a


atividade do aluno, para ser verdadeiramente educativa, deve ser impulsionada e dirigida
pelos interesses e necessidades da própria criança. A diferença entre esse terceiro
posicionamento valorativo e os dois primeiros consiste em ressaltar que além do aluno
buscar por si mesmo o conhecimento e nesse processo construir seu método de conhecer, é
preciso também que o motor desse processo seja uma necessidade inerente à própria
atividade do aluno, ou seja, é preciso que a educação esteja inserida de maneira funcional na
atividade da criança, na linha da concepção de educação funcional de Claparède (1954).
(Duarte, 2001, p. 37).

Este terceiro posicionamento construtivista nos conduz, segundo Duarte, a um


quarto, qual seja, o de que a aprendizagem tem seu valor em correspondência direta à “dinâmica”
da sociedade. Ou, nas palavras do autor:

O quarto posicionamento valorativo contido no lema “aprender a aprender” é o de que a


educação deve preparar os indivíduos para acompanharem a sociedade em acelerado
processo de mudança, ou seja, enquanto a educação tradicional seria resultante de sociedades
estáticas, nas quais a transmissão dos conhecimentos e tradições produzidos pelas gerações
passadas era suficiente para assegurar a formação das novas gerações, a nova educação deve
pautar-se no fato de que vivemos em uma sociedade dinâmica, na qual as transformações em
ritmo acelerado tornam os conhecimentos cada vez mais provisórios, pois um conhecimento
que hoje é tido como verdadeiro pode ser superado em poucos anos ou mesmo em alguns
meses. O indivíduo que não aprender a se atualizar estará condenado ao eterno anacronismo,
à eterna defasagem de seus conhecimentos. (Duarte, 2001, p. 37).

Para ilustrar este posicionamento, Duarte faz referência às palavras de Vitor da


Fonseca, autor construtivista português:

Uma versão contemporânea desse posicionamento aparece no livro do autor português Vitor
da Fonseca, intitulado “Aprender a Aprender: a educabilidade cognitiva”. Ao abordar as
mudanças na economia global e suas implicações para uma formação de recursos humanos
que esteja à altura dos desafios do século XXI, esse autor afirma o seguinte :

“A miopia gerencial e arrogante e a resistência à mudança, que paira em grande parte no


sistema produtivo, devem dar lugar à aprendizagem, ao conhecimento, ao pensar, ao refletir
e ao resolver novos desafios da atividade dinâmica que caracteriza a economia global dos
tempos modernos. Tal mundialização da economia só se identifica com uma gestão do
imprevisível e da excelência, gestão essa contra a rotina, contra a mera redução de custos e
contra a simples manutenção. Em vez de se situarem numa perspectiva de trabalho seguro e
estático, durante toda a vida, os empresários e os trabalhadores devem cada vez mais investir
no desenvolvimento do seu potencial de adaptabilidade e de empregabilidade, o que é algo
substancialmente diferente do que se tem praticado. O êxito do empresário e do trabalhador
no século XXI terá muito que ver com a maximização das suas competências cognitivas.
Cada um deles produzirá mais na razão direta de suas maior capacidade de aprender a
aprender, na medida em que o que o empresário e o trabalhador conhecem e fazem hoje não
é sinônimo de sucesso no futuro. (...) A capacidade de adaptação e de aprender a aprender e
a reaprender, tão necessária para milhares de trabalhadores que terão de ser reconvertidos
em vez de despedidos, a flexibilidade e modificabilidade para novos postos de trabalho vão
surgir cada vez com mais veemência. Com a redução dos trabalhadores agrícolas e dos
operários industriais, os postos de emprego que restam vão ser mais disputados, e tais postos
180

de trabalho terão que ser conquistados pelos trabalhadores preparados e diferenciados em


termos cognitivos.” (Fonseca, 1998: 307 – citado por Duarte, 2001, p. 37-38).

Duarte observa que este autor sintetiza as principais prospectivas às quais a


pedagogia construtivista se revela atrelada: “O autor não deixa qualquer dúvida nessa passagem
quanto ao fato do ‘aprender a aprender’ ser apresentado como uma arma na competição por
postos de trabalho, na luta contra o desemprego. O ‘aprender a aprender’ aparece assim na sua
forma mais crua, mostra assim seu verdadeiro núcleo fundamental: trata-se de um lema que
sintetiza uma concepção educacional voltada para a formação da capacidade adaptativa dos
indivíduos.” (Duarte, op. cit., p. 38). Não é demais aqui recorrer novamente àquela mencionada
entrevista dada por Perrenoud, na qual a certa altura ele afirma o seguinte:

A descrição de competências deve partir da análise de situações, da ação, e disso derivar


conhecimentos. Há uma tendência em ir rápido demais em todos os países que se lançam na
elaboração de programas sem dedicar tempo em observar as práticas sociais, identificando
situações nas quais as pessoas são e serão verdadeiramente confrontadas. O que sabemos
verdadeiramente das competências que têm necessidade, no dia-a-dia, um desempregado, um
imigrante, um portador de deficiência, uma mãe solteira, um dissidente, um jovem da
periferia? (Perrenoud, 2000 – citado por Duarte, 2001, p. 38)

Portanto, nesta rápida síntese das constatações de Duarte acerca do construtivismo,


resta-nos enfatizar que a psicobiologia de Piaget, ainda que o próprio Piaget e seus seguidores
insistam no caráter sócio-interacionista (o que corresponderia a uma visão de relação social entre
os indivíduos), é, acima de tudo, ambiental-evolucionista e, neste sentido, também ambiental-
adaptacionista. Este caráter epistemológico da cientificidade piagetiana está amplamente
explicitada em seus principais trabalhos, sobretudo no que se refere ao seus principais conceitos,
como os de assimilação, acomodação, reestruturação, equilibração, aprendizagem de
operações, fatos, ações, procedimentos práticos ou leis físicas que dependem do nível cognitivo e
morfológico do sujeito, o que significa que o grau de desenvolvimento é determinante e torna-se
inacessível uma nova aquisição a uma pessoa que não esteja capacitada para ela. Por fim, a
compreensão e resolução de problemas somente é possível no momento evolutivo adequado,
peculiar a cada indivíduo, ainda que este viva num conjunto de individuos em interação, segundo
fatores biológicos, ambientais e relacionais que o mesmo estabeleça durante seu
desenvolvimento.
Finalmente, segundo Duarte, cabe ainda ressaltar outra conseqüência político-
pedagógica das premissas construtivistas para a contemporaneidade:

Aos educadores caberia conhecer a realidade social não para fazer a crítica a essa realidade e
construir uma educação comprometida com as lutas por uma transformação social radical,
mas sim para saber melhor quais competências a realidade social está exigindo dos
indivíduos. Quando educadores e psicólogos apresentam o “aprender a aprender” como
síntese de uma educação destinada a formar indivíduos criativos, é importante atentar para
181

um detalhe fundamental: essa criatividade não deve ser confundida com busca de
transformações radicais na realidade social, busca de superação radical da sociedade
capitalista, mas sim criatividade em termos de capacidade de encontrar novas formas de ação
que permitam melhor adaptação aos ditames da sociedade capitalista. (Duarte, 2001, p. 38).

A esses elementos discursivos Duarte (2001) denominou “ilusões”, reunidos em seis


tópicos que a seguir apresentamos ao leitor:

Primeira Ilusão:
“O conhecimento nunca esteve tão acessível como hoje, isto é, vivemos numa sociedade na
qual o acesso ao conhecimento foi amplamente democratizado pelos meios de comunicação,
pela informática, pela Internet etc.”

Segunda Ilusão:

“A capacidade para lidar de forma criativa com situações singulares no cotidiano ou, como
diria Perrenoud, a habilidade de mobilizar conhecimentos, é muito mais importante que a
aquisição de conhecimentos teóricos, especialmente nos dias de hoje, quando já estariam
superadas as teorias pautadas em metanarrativas, isto é, estariam superadas as tentativas
de elaboração de grandes sínteses teóricas sobre a história, a sociedade e o ser humano.”

Terceira Ilusão:

“O conhecimento não é a apropriação da realidade pelo pensamento, mas sim, uma


construção subjetiva resultante de processos semióticos intersubjetivos nos quais ocorre
uma negociação de significados. O que confere validade ao conhecimento são os contratos
culturais, isto é, o conhecimento é uma convenção cultural.”

Quarta Ilusão:

“Os conhecimentos têm todos o mesmo valor, não havendo entre eles hierarquia quanto à
sua qualidade ou quanto ao seu poder explicativo da realidade natural e social.”

Quinta Ilusão:

“O apelo à consciência dos indivíduos, seja através das palavras, seja através dos bons
exemplos dados por outros indivíduos ou por comunidades, constitui o caminho para a
superação dos grandes problemas da humanidade.”

Sexta Ilusão:

“Essa ilusão contém uma outra, qual seja, a de que esses grandes problemas existem como
conseqüência de determinadas mentalidades. As concepções idealistas da educação apóiam-
se todas nessa ilusão. É nessa direção que são tão difundidas atualmente, pela mídia, certas
experiências educativas tidas como aquelas que estariam criando um futuro melhor por
meio da preparação das novas gerações. Assim, acabar com as guerras seria algo possível
através de experiências educativas que cultivem a tolerância entre crianças e jovens. A
guerra é vista como conseqüência de processos primariamente subjetivos ou, no máximo
inter-subjetivos. Nessa direção, a guerra entre EUA e Afeganistão, por exemplo, é vista
como conseqüência do despreparo das pessoas para conviverem com as diferenças
culturais, como conseqüência da intolerância, do fanatismo religioso. Deixa-se de lado toda
uma complexa realidade política e econômica gerada pelo imperialismo norte-americano e
multiplicam-se os apelos românticos ao cultivo do respeito às diferenças culturais.”
182

[...] “Essas idéias, acima apresentadas na forma de seis ilusões, têm sido tão amplamente
aceitas, têm exercido um tal fascínio sobre grande parcela dos intelectuais dos dias de hoje,
que o simples fato de questionar a veracidade das mesmas talvez já produza um efeito
positivo, qual seja, o de fazer com que a adesão a essas idéias ou a crítica às mesmas deixe o
terreno das emoções que sustentam o fascínio e a sedução e passem ao terreno da análise
propriamente intelectual.” (Duarte, 2001, p. 39-40)

Essas proposições de Duarte vêm ao encontro e resumem de forma significativa


nossas impressões acerca das idéias que, sobretudo a partir dos anos de 1990, passaram a ser
ostensivamente disseminadas em todas as esferas de nossas sociedades, mas, e sobretudo, entre
os intelectuais que tomam como objetos a esfera e fenômenos do mundo do trabalho e da
educação. Duarte ainda concluiria seu manifesto com as seguintes palavras, reportando-se a
Marx:

É preciso, porém, estar atento para não cair na armadilha idealista que consiste em acreditar
que o combate às ilusões pode, por si mesmo, transformar a realidade que produz essas
ilusões. Como escreveu Marx: “conclamar as pessoas a acabarem com as ilusões acerca de
uma situação é conclamá-las a acabarem com uma situação que precisa de ilusões”. (Duarte,
2001, p. 40).

2. O DISCURSO IDEOLÓGICO DA COMPETÊNCIA

O movimento ultraliberal acabou por “coincidir” com outros movimentos e eventos


significativos durante os anos de 1980 e 1990. É o caso da decadência e destruição do modelo
soviético de sociedade e a defesa da interdependência econômica global (globalização), da
difusão do movimento intelectual e artístico pós-moderno, assim como do estabelecimento do
construtivismo piagetiano como base para uma pedagogia que seria universalmente difundida, e
acrítica ou oportunamente adotada por diversos educadores em inúmeros países, dentre os quais,
o Brasil.
Nas novas teses pedagógicas e laborais que se seguem a estes eventos, o fim do
modelo soviético suscitou a opinião, muito presente nos relatórios para a educação mundial, do
fim da guerra-fria e, enfim, a possibilidade da instauração da paz e da democracia pelo mundo
(mas que os mesmos relatórios acabam por reconhecer que, por motivos “étnicos”, “religiosos” e
econômicos, não são alcançados). O fim da guerra-fria, a instauração da paz e da democracia por
todo o mundo, são o mote ideológico para a defesa da globalização econômica, eufemismo para
as ultrapassadas questões sobre “imperialismos”, “ideologias” e “barreiras econômicas e culturais
nacionais”.
O movimento pós-moderno, embora preconizado por artistas e intelectuais há
décadas, nos anos de 1980 e, sobretudo, de 1990, ganha grande difusão e notoriedade ao
183

contrapor-se aos tradicionais e rígidos modelos de ciência, literatura e estética, que seriam
próprios à modernidade. No cerne deste movimento heterogêneo, cujo espectro abrangeria tanto o
abandono sarcástico de alguns pensadores do protótipo de civilização ilustrada, até
posicionamentos supostamente epistemológicos, que remetiam críticas aos modelos positivistas e
marxistas, um elemento comum: o ataque à premissa iluminista do poder da razão e, por
extensão, do estabelecimento de verdades no plano do conhecimento.
Por fim, a consolidação do construtivismo piagetiano como fundamento
psicopedagógico para a educação formal. Por sua estreita vinculação com os modelos
pedagógicos ativos, cujo expoente encontramos no movimento escolanovista, após décadas de
experimentações explicitamente tecnicistas e focadas na aprendizagem hierarquizada de
conteúdos escolares, o construtivismo se difunde como alternativa revolucionária para as crises
de uma educação sempre defendida como tábua de salvação para as crises sociais. Os postulados
construtivistas são rápida e universalmente assimilados mediante as supostas incoerências do
chamado “ensino tradicional” para com a cotidianidade e realidade da vida em sociedade. Seus
pressupostos anti-conceituais e que diminuem o papel tradicionalmente atribuído aos professores
e aumentam a importância dos conhecimentos tácitos dos alunos, seduzem tanto professores
sobrecarregados e desvalorizados, quanto aos alunos, cujas vivências passam a ser
sobrevalorizadas.
Resta-nos, após estas observações gerais, adentrarmos agora nas questões
propriamente relacionadas à noção de competência, aqui defendida como princípio educativo
ultraliberal para o trabalho e a educação do século XXI. Contudo, é importante enfatizar, em
última análise este princípio pedagógico continua intrinsecamente relacionado ao princípio
educativo do trabalho, já discutido por Antonio Gramsci. Portanto, como entender seu advento?
Porque a noção de qualificação, tradicionalmente ligada e fornecida pelas próprias profissões e
seus certificados desde princípios do século XX, é substituída, a partir dos anos de 1990, pela
noção de competência para o século XXI? O presente capítulo tem, por objetivos centrais,
analisar tais questões, que ao nosso ver, estão menos relacionadas às supostas inovações do
capitalismo atual que a verdadeiras involuções em sua estruturação como um todo. Assim, novos
argumentos, discursos, exigências e mecanismos ideológicos se tornam necessários a que o
capitalismo mantenha-se, idealmente ao menos, legítimado.

2.1. A “competência” como princípio educativo ultraliberal para o trabalho e a educação

Após estas incursões sobre o panorama das transformações nas esferas da produção
material e ideológica dos últimos 15 anos, nos debruçamos agora sobre o que tomamos neste estudo
como objeto de nossas considerações, ou seja, o discurso da competência para o trabalho e sua
184

extensão à esfera educacional através do que Ramos (2001) denomina como uma pedagogia das
competências.
Diante das relações inextricáveis que consideramos haver entre os produtos sociais do
trabalho e a socialização dos saberes daí resultantes (dialeticamente, relações entre objetivações e
apropriações histórico-sociais humanas), tomamos como pressuposto que, independentemente das
variadas formas como a atividade do trabalho tenha até aqui sido determinada nos e pelos modos
produtivos já conhecidos, a produção material e a acumulação social de saberes tendem sempre a se
influenciarem mutuamente, em maior ou menor grau. Em se tratando do modo de produção capitalista,
parece-nos claro que, em termos históricos, essas relações tenham sido até aqui contraditórias,
sobredeterminadas pela divisão social do trabalho e pela divisão social de classes, fenômenos estes
fundamentados na exploração, alienação e apropriação privada dos processos e resultados do trabalho
humano.
Contudo, em sendo um dos motores do capitalismo a necessidade de constante inovação54
e exploração de novas possibilidades produtivas e mercadológicas — o que, necessariamente, implica
em uma ampliação e diversificação constante também de conhecimentos —, os saberes que se tornam
condição para a própria manutenção e aprimoramento dos recursos e relações produtivas requerem a
adequação dos trabalhadores necessários aos imperativos daí decorrentes (sejam imperativos técnico-
instrumentais, organizacionais, comportamentais, morais etc, estreitamente ligados ao ethos
hegemônico). Não poderíamos de modo algum negligenciar a complexidade e variabilidade de um tal
processo, em suas relações e determinações, para a atividade vital do trabalho e para o ensino. Em
diferentes níveis e lugares, não menos de acordo com a hierarquização das relações sociais de produção
e organização capitalistas, o ensino certamente refletirá sempre as relações sociais de produção através
dos tempos.55
No atual contexto de reordenação produtiva, torna-se evidente que a educação se
apresente como instância estratégica à consecução não só dos aprendizados necessários à manutenção
da produção e dos mercados pretendidos (exigências produtivas e mercadológicas através de recursos
humanos de produção e de consumo necessários), como também à disseminação dos ideários
subjacentes à assimilação de seus princípios norteadores (exigências ideológicas, com os elementos que

54
Marx e Engels já indicavam essa característica do capitalismo em 1848: “Foi ela” [a burguesia] “quem primeiro
demonstrou o que a atividade dos homens pode conseguir. Realizou maravilhas completamente diferentes das
pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas; levou a cabo expedições completamente
diferentes das antigas migrações de povos e das cruzadas. A burguesia não pode existir sem revolucionar
permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção, por conseguinte todas as
relações sociais. [...] O permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a
incerteza e o movimento eternos, distinguem a época da burguesia de todas as outras.” (Marx & Engels, 1987c, p.
37).
55
Remetemos o leitor, a título de exemplo, ao clássico trabalho de Mariano F. Enguita a esse respeito, A face oculta
da escola (ver Enguita, 1989).
185

incentivam e legitimam a manutenção e reprodução do modo capitalista junto à sociedade).


Nesse aspecto, para Silva Jr. a esfera educacional — enquanto “locus privilegiado para o
Estado de formação do ser social” e, por extensão, indispensável à construção de novos pactos sociais
(Silva Jr., 2002b, p. 208) — teve, na chamada reforma educacional promovida pelo governo Fernando
H. Cardoso, o papel estratégico de instauração “consensual” de novos ideais nacionais de
desenvolvimento. Tais ideais vinculam-se, principalmente, aos preceitos neoliberais que apregoam a
“qualificação” profissional pela escolarização como condição imperiosa para a conquista e manutenção
de postos de trabalho e estabilidade social, no contexto de acirramento da “globalização” da economia
e precarização/supressão de postos de trabalho.
Assim, foram e têm sido amplamente aclamados, como assinala Duarte (2000a), os
quesitos relacionados à promoção da “competência” e da “competitividade” como finalidades naturais
e inquestionáveis de todo processo educativo, o que se traduz, em termos pedagógicos mais efetivos,
em objetivos como o desenvolvimento de habilidades individuais para ajustar-se, a qualquer tempo, às
vertiginosas e inusitadas mutações e exigências ditadas pelos mercados. É assim, por exemplo, que o
lema “aprender a aprender”, devidamente resgatado dos pressupostos do pragmatismo escolanovista
de princípios do século XX — e, atualmente, na ordem do dia de grande parte dos atores da educação
em todo o mundo — apresenta-se como princípio oportuno e convergente para com a adaptação dos
propósitos da educação formal às características de inconstância e volubilidade dos mercados
capitalistas. Aliás, diga-se, a partir dos discursos oficiais e de educadores consulentes para este fim, é
precisamente este lema que passa a figurar nos princípios norteadores das atuais diretrizes educacionais
brasileiras, seja pela lei 9.394/96, a LDBEN, ou dos Princípios e Fundamentos dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, os PCN, seus derivados mais imediatos (cf. Duarte, 2000 - ver, em especial,
capítulo I).
Entendemos que estes dois movimentos, intrinsecamente relacionados — a saber, por um
lado, de reorientação e recomposição do capitalismo internacional pelo modelo neoliberal, e, por outro,
de disseminação dos ideais pragmáticos que atualmente têm impregnado e orientado os processos
educativos mundiais e locais, sobretudo pelo símbolo mais recente da pedagogia do aprender a
aprender, isto é, a “pedagogia das competências” —, apresentem-se como elementos confluentes em
relação ao fenômeno da crise estrutural do capitalismo contemporâneo.
Isto se dá, no caso da recomposição capitalista mundializada, pelo desemprego estrutural
e precariedades geradas, e, no caso da educação, pela sujeição dos indivíduos atingidos por estes efeitos
ao credo de que a inclusão social seja diretamente proporcional ao saber “agregado” ao trabalhador
pela escolarização (uma noção que nos lembra a teoria do capital humano dos anos setenta, mas em
contexto muito diverso), elementos estes analisados extensivamente por Kuenzer (2002). Apresentada
186

como condição sine qua non para uma boa colocação no mundo do trabalho, a escolarização passa a
figurar como instrumento maior para a contenção e reversão do fenômeno da pobreza (Leher, 1998),
ignorando-se ou camuflando-se os fatores objetivos que realmente estão na origem da pauperização,
marginalização e, por fim, da exclusão social efetiva. Segundo Kuenzer:

Mudadas as bases materiais de produção, é preciso capacitar o trabalhador novo, para que
atenda às demandas de um processo produtivo cada vez mais esvaziado, no qual a
polarização das competências se coloca de forma muito mais dramática... (...) É preciso que
o trabalhador se submeta ao capital, compreendendo sua própria alienação como resultante
de sua prática pessoal “inadequada”, para o que contribuem os processos de persuasão e
coerção constitutivos da hegemonia capitalista. (Kuenzer, 2002, p.80 – itálicos nossos).

Desse modo, pelo fato de no neoliberalismo a igualdade ser exercida no mercado


conforme as habilidades e competências de cada um (Leher, 2001, p. 161), estar incluído se revela,
imediatamente, como suposta conseqüência do desenvolvimento de competências e habilidades
particulares incrementadas pelo processo educativo, o que, em contrapartida, nos permite concluir que
ser excluído apresente-se como conseqüência não menos natural da incompetência e inaptidão
individuais, interpretações estas fundamentadas, de forma muito parcial, em princípios em geral
natural-evolunionistas. Em suma, aqui a sócio-historicidade humano-genérica é grotescamente
suprimida por um princípio biologicista elementar: só os mais aptos sobrevivem.

2.2. O Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século
XXI

Não poderíamos deixar de fazer referência à contribuição político-ideológica


constante no Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século
XXI, organizado por Jacques Delors, e que traz consigo o singelo título “Educação, um tesouro a
descobrir” (Delors et. al., 2003). Este trabalho surge como estratégico e contemporâneo aos
esforços de educadores de todo o mundo, vinculados ao Banco Mundial e às diretrizes
educacionais patrocinadas por aquele Banco e outras instituições “multilaterais”, como
UNESCO, ONU e BID, de modo a sistematizarem tais diretrizes de forma acessível aos
educadores pelo mundo, sobretudo de sua periferia econômica. Faremos uma análise mais detida
deste documento pelo fato de o considerarmos simbólico e sintomático em relação às
perspectivas neoliberais, pós-modernas e construtivistas que a década de 1990 incorporou como
alternativas inevitáveis para a humanidade.
Assumindo uma abordagem do assunto educação praticamente metafísica, esta obra é
das principais referências aos parâmetros sugeridos pelas “agências multilaterais” para a
educação. Já no prefácio do Relatório deparamos com as seguintes proposições em relação à
educação como “uma utopia necessária”:
187

Ante os múltiplos desafios do futuro, a educação surge como um trunfo indispensável à


humanidade na sua construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social. Ao
terminar os seus trabalhos a Comissão faz, pois, questão de afirmar a sua fé no papel
essencial da educação no desenvolvimento contínuo, tanto das pessoas como das sociedades.
Não como um “remédio milagroso”, não como um “abre-te sésamo” de um mundo que
atingiu a realização de todos os seus ideais mas, entre outros caminhos e para além deles,
como uma via que conduza a um desenvolvimento humano mais harmonioso, mais autêntico,
de modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as incompreensões, as opressões, as
guerras... (Delors et. al., 1996/2003, p. 11 – itálicos nossos).

E a educação, após serem levantados inúmeros dos problemas sócio-econômicos que


o mundo globalizado já enfrentava nos anos de 1990, é apontada unanimemente como a solução
para os males decorrentes dos processos de ajustes econômicos pelo mundo. O referido relatório
é apresentado, em linhas muito gerais, com base nas seguintes constatações e proposições:
Em primeiro lugar, a constatação e admissão de um contexto de crises: econômicas,
éticas, morais, políticas, societárias, ambientais etc., que têm agravado os desequilíbrios
regionais, com ameaças à paz, aumento da pobreza e exclusão social, distanciamento entre
classes sociais (“fratura social”), violência, desemprego, criminalidade, xenofobia, nacionalismo,
opressões, incompreensões, tensões entre o local e o global, guerras etc. (Delors, 2003, p.11-15).
Para o relatório, o referido contexto teria a ver com o aumento da interdependência mundial em
função da globalização econômica e técnico-científica, redefinição do papel do trabalho e o fim
das fronteiras dos Estados Nacionais, elementos estes que deflagram contrastes, contradições e
conflitos de toda natureza. Porém, trata-se de um movimento inexorável da modernidade. Ou
seja, o mundo que aí está é o único mundo até aqui possível, num resgate quase tragicômico do
Cândido, de Voltaire. O que temos a fazer é procurar conviver com os conflitos, procurando
resolvê-los através do convívio democrático, em que se valorizaria:
a) a solidariedade, a busca de equilíbrio e a participação responsável nas decisões
sociais;
b) o respeito às diferenças étnicas, de gênero, de classe, de cultura, de religião,
políticas etc.
c) a valorização tanto do particular e local quanto do comunitário e universal;
b) a preservação do direito à liberdade, desde que esta não atente contra a liberdade
do outro;
d) integração de todos os indivíduos como cidadãos, como responsáveis pelos
processos comunitários (responsáveis por seus próprios futuros, assim como da própria
humanidade);
Esses pressupostos têm um caráter essencialmente relacional (reiteradamente
chamado de “socialização”) e individual (plano das diferenças e singularidades): devemos nos
188

conhecer melhor enquanto pessoas para compreender melhor a nós e aos outros, e assim,
podermos contribuir para melhorar as relações entre pares e para com o mundo, de forma
solidária e democrática.
A análise dos avanços em altas tecnologias que se instauram na modernidade
(afirmados como inevitáveis) é bastante superficial, no sentido de que ao mesmo tempo em que
mencionam variáveis problemáticas, inclina-se a um otimismo em relação ao futuro que dispersa
ou diminui qualquer contingência mais séria do presente. Senão, vejamos:

Muito embora os efeitos da extensão das redes informáticas sejam ainda limitados, por serem
ainda relativamente poucos os que possuem as novas tecnologias e dominam o modo de
utilizá-las, tudo leva a crer que se trata de uma revolução inevitável que permitirá a
transmissão de uma quantidade cada vez maior de informação num lapso de tempo cada vez
mais curto. Observa-se, igualmente, uma crescente penetração destas novas tecnologias em
todos os níveis da sociedade, facilitada pelo baixo custo dos materiais, o que os torna cada
vez mais acessíveis. (Delors et. al., 1996/2003, p. 64 – itálicos nossos).

Embora o relatório vise essencialmente o tema Educação, esta se nos é sugerida


como uma função da realidade econômica e tecnológica, e, portanto um elemento mediador entre
indivíduos e grupos e a esfera produtiva e, por decorrência, com o mundo do trabalho, a
princípio apresentado sob a forma eufemística de redes tecnológicas e informáticas. Por outro
lado, as preocupações quanto ao impacto das novas tecnologias sobre a educação e o trabalho
são circunscritas ao âmbito de uma redefinição das identidades individuais e coletivas. Essa
redefinição tanto anuncia como reconhece a criação de novas formas de socialização e
mudanças nos significados (identidades) de coletividade (sociedade) frente à valorização do
âmbito das ações individuais:

Esta revolução tecnológica constitui, evidentemente, um elemento essencial para a


compreensão da nossa modernidade, na medida em que cria formas novas de socialização e,
até mesmo, novas definições de identidade individual e coletiva. A extensão das tecnologias
e das redes informáticas favorece a comunicação com o outro, por vezes até em escala
mundial, mas simultaneamente reforça as tendências de cada um para se fechar sobre si
mesmo e se isolar. Assim, o desenvolvimento do trabalho à distância pode perturbar os laços
de solidariedade criados no seio da empresa e assiste-se à proliferação de atividades de
lazer, que isolam o indivíduo diante do computador. A perspectiva de uma evolução deste
tipo faz surgir alguns receios: o acesso ao mundo virtual pode, segundo alguns, levar a uma
perda do sentido da realidade, e é de esperar uma certa perturbação na aprendizagem e do
acesso ao conhecimento fora dos sistemas educativos formais, com sérias conseqüências
sobre os processos de socialização das crianças e dos adolescentes. A Comissão não
pretende, no estado atual dos conhecimentos, fazer uma análise exaustiva das incidências do
mundo virtual nos comportamentos pessoais e interpessoais ou nas relações sociais. Mas a
questão existe e assume cada vez mais importância. (Delors et. al., 1996/2003, p. 64-65)

O que notamos nas passagens acima é o caráter essencialmente dúbio da posição da


referida comissão frente ao que levanta. Uma análise mais cuidadosa da construção do referido
texto nos revela estratégias que envolvem uma certa fórmula discursiva envolvendo os seguintes
189

elementos: a) um determinado contexto técnico-científico e produtivo, afirmado como


revolucionário e incognoscível em toda a sua extensão e conseqüências; b) um determinado
contexto social e de aprendizagem problemáticos atribuíveis ao primeiro contexto, mas também
inapreensíveis em toda a suas extensão e conseqüências; c) a própria comissão limita-se à
constatação de ambos os contextos e problemas, mas se abstém ou simplesmente “não pretende,
no estado atual dos conhecimentos, fazer uma análise exaustiva das incidências do mundo
virtual nos comportamentos pessoais e interpessoais ou nas relações sociais.” E limita-se à
observação de que “a questão existe e assume cada vez mais importância” (Delors, idem, trecho
acima citado).
O papel da Educação em um tal contexto é, segundo o relatório, primordialmente de
socialização, isto é, fazer com que aprendamos a conviver melhor e democraticamente,
contribuindo para o auto-conhecimento e o conhecimento de como o mundo funciona (para
aprender-se a viver melhor com ele tal e qual é). Melhorar o mundo, portanto, é aprender a viver
bem no mundo que se tem.
A Educação deve portanto se adaptar aos diferentes grupos e às particularidades dos
indivíduos (educação personalizada), eximindo-se de:

[...] privilegiar o desenvolvimento do conhecimento abstrato em detrimento de outras


qualidades humanas, como a imaginação, a aptidão para comunicar, o gosto pela animação
do trabalho em equipe, o sentido do belo, a dimensão espiritual ou a habilidade manual. De
acordo com suas aptidões e os seus gostos pessoais, que são diversos desde o nascimento,
nem todas as crianças retiram as mesmas vantagens dos recursos educativos comuns.
Podem, até, cair em situação de insucesso, por falta de adaptação da escola aos seus talentos
e às suas aspirações. (Delors et. al., 2003, p. 55).

Em uma palavra, eximir-se de se ocupar com conhecimentos teóricos ou conceituais


(abstratos). Em contrapartida, e contraditoriamente, o relatório enfatiza, como antagonistas ao
“abstracionismo” substantivos tão abstratos como imaginação, originalidade, habilidades,
espiritualidade, aptidões, gostos, talentos, aspirações, e os conhecimentos tácitos que adquirem
em seus próprios meios. Enfim, elementos que colocam em primeiro plano a vida cotidiana e a
dimensão desiderativa dos alunos; em segundo plano, e de modo instrumental à cotidianidade,
aparecem referências às habilidades e inclinações naturais dos indivíduos segundo aspirações,
gostos e talentos que lhes são “diversos desde o nascimento”. Inatismo e ambientalismo
conjugados, a um só tempo, regidos por uma concepção voltada ao valor prático-utilitário ou
instrumental das chamadas aptidões individuais. Daí o pragmatismo escolanovista ser a
abordagem pedagógica que perpassa todo o discurso da referida Comissão.
Constatamos que o referido Relatório pretende estender o valor instrumental e
pragmático da educação também à noção de disciplina científica. A passagem a seguir é
190

ilustrativa da profunda descaracterização das ciências humanas e da tentativa de identificá-las,


uma vez mais, ao contexto imediato (a cotidianidade) em que os alunos vivem:

A colaboração das ciências sociais e humanas é, sob este ponto de vista, essencial, na medida
em que abordam tanto a existência em si mesma, como os fatos sociais. Será preciso
acrescentar que esta pesquisa pluridisciplinar deverá contar com a participação da história e
da filosofia? A filosofia, porque desenvolve o espírito crítico indispensável ao
funcionamento da democracia; a história porque é insubstituível na sua função de ampliar os
horizontes do indivíduo e de fazer com que tome consciência das identidades coletivas. O
seu ensino deve, contudo, ultrapassar o contexto nacional e incluir uma dimensão social e
cultural, de tal modo que o conhecimento do passado permita melhor compreender e julgar o
presente. Abre-se, aqui, um novo espaço para os responsáveis pelas grandes orientações da
política educativa e pela elaboração de programas. Esta perspectiva tende a integrar as
aquisições das ciências sociais numa visão global, permitindo uma ampla compreensão dos
fatos passados e presentes. (Delors et. al., 2003, p. 60 – itálicos nossos).

Note-se o grau de superficialidade com que o trecho faz referência às disciplinas das
ciências humanas mencionadas. Coerente com a recomendação de que a educação deva eximir-
se de atividades que privilegiem a abstração, o relatório não descarta as disciplinas que envolvam
processos de abstração, mas apropria-se das mesmas, “re-significando” a noção de conteúdos
científicos, de modo a adequá-los a se prestarem à função instrumental de adequação dos
indivíduos ao seu meio através da cidadanização e pelo convívio democrático, participativo e
comunitário responsável. Numa tal perspectiva permanece embotado o real sentido de “espírito
crítico indispensável ao funcionamento da democracia.” De qual democracia? O que se quer
dizer com “estudar-se a existência em si mesma, como fatos sociais”? O que se quer dizer com
“tomar-se consciência das identidades coletivas” através da história? E, do mesmo modo, com
“ampliar-se os horizontes do indivíduo” em relação a tais identidades coletivas? Parece-nos que
a menção à importância das disciplinas ditas científicas e abstratas é muito mais vaga e menos
esclarecedora que a recomendação de que o verdadeiro ensino abstenha-se de atividades
abstratas e/ou conceituais (retomaremos esta questão no Capítulo IV, onde pretendemos desvelar
a crença equivocada do pragmatismo escolanovista em relação a conceitos e à faculdade humana
da abstração).
As escolas passam, assim, a serem esvaziadas de sua função histórica de promover o
contato dessas populações com conhecimentos clássicos, conceitos científicos ou não-cotidianos,
limitando-se a se adequar às aspirações da cotidianidade e da dimensão desiderativa dos
indivíduos em questão — e, enfatizamos, o relatório manifesta constantemente sua preocupação
e foco na educação destinada às populações mais pobres, denominadas “minoritárias” e com
inclinação à inadaptação, abandono e fracasso escolar.
191

Por fim, é no discurso das habilidades e competências para uma “sobrevivência


inclusiva” no que este relatório se apóia, apontando para as seguinte proposições para a
educação:

Uma primeira conclusão parece se impor: os países em desenvolvimento não devem


negligenciar nada que possa facilitar-lhes a indispensável entrada no universo da ciência e da
tecnologia, com o que isto comporta em matéria de adaptação de culturas e de
modernização de mentalidades. Considerados nesta perspectiva, os investimentos em
matéria de educação e de pesquisa constituem uma necessidade, e uma das preocupações
prioritárias da comunidade internacional deve ser o risco de marginalização total dos
excluídos do progresso, numa economia mundial em rápida transformação. Se não se fizer
um grande esforço para afastar este risco, alguns países, incapazes de participar na
competição tecnológica internacional estarão prestes a constituir bolsas de miséria, de
desespero e de violência impossíveis de reabsorver através da assistência e de ações
humanitárias. Mesmo no interior dos países desenvolvidos há grupos sociais inteiros em
risco de serem excluídos do processo de socialização constituído, até há pouco tempo, por
uma organização do trabalho de tipo industrial. Em ambos os casos, o problema essencial
continua a ser o da partilha desigual de conhecimentos e competências. (Delors et. al., 2003,
p. 74 – itálicos nossos).

Mediante este quadro, a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de


competências através da educação em um mundo em constante e rápida transformação, teriam as
seguintes finalidades:
Aprender a aprender, ou, na acepção do Relatório, fazer com que os indivíduos
desenvolvam condições de auto-educar-se continuamente (educação permanente) para lograrem
“acompanhar as inovações que ocorram tanto na vida privada como na vida profissional” (Delors
et. al., 2003, p. 19). Deste preceito, central às pedagogias ativas ou do pragmatismo
escolanovista, a Comissão depreende os seguintes princípios de aprendizagem:
1. Aprender a viver juntos: aprender a adquirir “conhecimentos acerca dos outros, de
suas histórias, tradições e espiritualidade. E a partir daí, criar um espírito novo que, graças
precisamente a esta percepção das nossas crescentes interdependências, graças a uma análise
compartilhada dos riscos e dos desafios do futuro, conduza à realização de projetos comuns ou,
então, a uma gestão inteligente e apaziguadora dos inevitáveis conflitos” (Delors et. al., 2003,
idem).
2) Aprender a conhecer: ou seja, tendo-se em vista “as rápidas alterações provocadas
pelo progresso científico e as novas formas de atividade econômica e social, há que se conciliar
uma cultura geral suficientemente vasta, com a possibilidade de dominar, profundamente, um
reduzido número de assuntos. Esta cultura geral constitui, de certa maneira, o passaporte para
uma educação permanente, na medida em que fornece o gosto e as bases para a aprendizagem ao
longo de toda a vida” (Delors et. al., 2003, p. 20);
192

3) Aprender a fazer: que para a Comissão implica em, além da aprendizagem de uma
profissão, adquirir competência ampla, “que prepare o indivíduo para enfrentar numerosas
situações, muitas delas imprevisíveis, e que facilite o trabalho em equipe, dimensão atualmente
muito negligenciada pelos métodos pedagógicos. Estas competências e qualificações tornam-se,
muitas vezes, mais acessíveis se quem estuda tiver possibilidade de se pôr à prova e de se
enriquecer, tomando parte em atividades profissionais e sociais, em paralelo com os estudos.
Daqui a necessidade de atribuir cada vez maior importância às diferentes formas de alternância
entre escola e trabalho.” (Delors et. al., 2003, p. 20). Deste terceiro mandamento, denota-se já
que os indivíduos possivelmente incluídos no mercado de trabalho devam viver para aprender a
nele se manter.
4) Aprender a ser: haja vista que “o século XXI exigirá de todos nós grande
capacidade de autonomia e de discernimento, juntamente com o reforço da responsabilidade
pessoal, na realização de um destino coletivo. E, ainda, por causa de outra exigência para a qual
o relatório chama a atenção: não deixar por explorar nenhum dos talentos que constituem como
que tesouros escondidos no interior de cada ser humano. Memória, raciocínio, imaginação,
capacidades físicas, sentido estético, facilidade de comunicação com os outros, carisma natural
para animador (sic!), ...e não pretendemos ser exaustivos. O que só vem confirmar a necessidade
de cada um se conhecer e compreender melhor.” (Delors et. al., 2003, p. 19).
Entendemos que, além da função da escola contida no discurso da competência que
visa a atividades práticas no âmbito das individualidades, deparamos também com o
travestimento da escola numa válvula de escape às tensões sociais, pelo qual esta também se
adequado ao cotidiano das camadas marginalizadas.
Uma vez que a sociedade capitalista está em crise (econômica, ética, moral, cultural,
sanitária etc.), seus imperativos relativos à exploração do trabalho, maximização da produção e
de lucros, consumismo, alienação, fetichização etc., exacerbam e provocam conflitos e
contradições insolúveis do ponto de vista de sua própria lógica. O anacronismo social ameaça as
classes dominantes através da pobreza, violência, criminalidade, desemprego etc. Numa visão
essencialmente classista, e diante do fato de não visualizar saída para uma sociedade em crise e
que é entendida como o mundo que nos é possível, a proposta da classe hegemônica é a da
adequação da humanidade despreviligiada ao problema, e não sua solução (já que sua solução
certamente implicaria na dissolução do próprio modo capitalista de produção e organização
social).
A grande estratégia notada no relatório é o de incumbir à educação as
responsabilidades por adequar os resíduos humanos do capitalismo à sua lógica reprodutivista,
193

exploradora e predatória (camadas pobres, excluídas aos imperativos da realidade capitalista). Se


a função da escola, em termos econômicos, parece ser a da racionalidade instrumental para a
flexibilização dos trabalhadores não só às mudanças vertiginosas do mundo produtivo, sempre a
exigir o máximo pelo mínimo, mas também ao próprio desemprego estrutural e inevitável, os
resíduos humanos que resultam daí são ideologicamente convencidos de que a violência e o
embrutecimento só pioram suas situações. Como a tendência dessas populações é o
embrutecimento na luta pela sobrevivência, e como por esse, dentre outros motivos, essas
populações realmente não conseguem se adequar aos pré-requisitos da educação formal clássica
(que exige um “capital cultural”, uma continência e disponibilidade que geralmente poucos
chegam a obter e usufruir56), e que resulta, amiúde, no fracasso ou abando escolar, os ideólogos
capitalistas fazem uma estratégica inversão em relação ao papel da escola: se não podemos
adequar essas populações aos moldes da educação clássica, abandonemos a educação formal
clássica (que só fracassa com a referida população) e adequemos a escola à “realidade concreta”
dessas populações. A isso chamam educação personalizada, adequada às singularidades dos
alunos, onde cada um faz o que tem talento natural para fazer (tocar instrumentos, pintar ou
grafitar, fazer consertos gerais, jardinagem, corte e costura, computação, treinar relações de
trabalho, fazer teatro, cantar, dançar, fazer capoeira etc.).
Ao mesmo tempo, ter contato com o mundo da cidadania, cidadania entendida como
ter noções de direitos e deveres, e de sua responsabilidade social (aspecto disciplinador e
amenizador das tensões sociais). O processo é de racionalização (área de direito, ética, moral,
civismo, responsabilidades sociais, liberdade) e de subjetivação (talentos, habilidades, opções,
valores pessoais, cultura, criatividade). É a função de dissimulação das questões sociais, que
esvazia a escola de sua função histórica (socialização de saberes científicos, eruditos e
conceituais), ao mesmo tempo em a transforma numa “válvula de escape” das tensões sociais.
Portanto, é clara a perspectiva unilateral, abstrata e liberal-burguesa em que se assenta a
concepção da referida Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI.

2.3. “Habilidades e competências” a partir da promulgação da nova Lei de Diretrizes e


Bases da Educação Nacional, nº 9.394/96.

Essa concepção e seus pressupostos foram integralmente assimilados pelos


Parâmetros Curriculares Nacionais brasileiros (os PCN’s), após a aprovação na nova LDBN nº

56
Com base na noção de capital cultural de Pierre Bourdieu (ver Pierre Bourdieu, A economia das trocas
simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004).
194

9394/96, a ponto de serem literalmente reproduzidos, por exemplo, na Introdução dos referidos
PCN’s. Senão, vejamos:

“A educação está na pauta das discussões mundiais. Em diferentes lugares do mundo


discute-se cada vez mais o papel essencial que ela desempenha no desenvolvimento das
pessoas e das sociedades.
Documentos de órgãos internacionais apresentam reflexões sobre a educação e fazem uma
análise prospectiva em que destacam alguns aspectos:

• Neste final de milênio, os dividendos das importantes descobertas e dos progressos


científicos da humanidade convivem com desencantamento e desesperança, alimentados por
problemas que vão do aumento do desemprego e do fenômeno da exclusão, inclusive nos
países ricos, à manutenção dos níveis de desigualdade de desenvolvimento nos diferentes
países. O aumento das interdependências entre nações e regiões contribuiu para colocar o
foco nos diferentes desequilíbrios, entre nações ricas e pobres, como também entre
“incluídos” e “excluídos” socialmente, no interior de cada país; com a extensão dos meios de
informação e de comunicação evidenciaram-se também modos de vida e de consumo de uma
parcela dos habitantes do planeta em contraposição a situações de miséria extrema.

• Embora parte da humanidade esteja mais consciente das ameaças que pesam sobre o
ambiente natural e da utilização irracional dos recursos naturais, que conduz a uma
degradação acelerada do meio ambiente que atinge a todos, ainda não há meios eficientes
para solucionar esses problemas; além disso, a crença de que o crescimento econômico
pudesse beneficiar a todos e permitisse conciliar progresso material e eqüidade, o respeito da
condição humana e o respeito à natureza, nem sempre é exercido.

• Com o fim da guerra fria, vislumbrou-se a possibilidade de um mundo pacificado. No


entanto, as tensões continuam a explodir entre nações, grupos étnicos ou a propósito de
injustiças acumuladas nos planos econômico e social.

• Num contexto mundial, marcado pela interdependência crescente entre os povos,


pressupõe-se que é preciso aprendermos a viver juntos no planeta. Mas como fazê-lo se não
formos capazes de viver em nossas comunidades naturais de pertinência: nação, região,
cidade, bairro, participando da vida em comunidade? Diante de tantas questões, muitas das
quais sem respostas definitivas, há pelo menos uma certeza: a de que as políticas para a
educação não podem deixar de se interpelar por esses desafios. Contribuindo para tal
reflexão, alguns documentos apontam tensões consideradas centrais e que merecem ser
analisadas.

A tensão entre o global e o local, ou seja, entre tornar-se pouco a pouco cidadão do mundo
sem perder suas raízes, participando ativamente da vida de sua nação e de sua comunidade.
Num mundo marcado por um processo de mundialização cultural e globalização econômica,
os fóruns políticos internacionais assumem crescente importância. No entanto, as
transformações em curso não parecem apontar para o esvaziamento dos Estados/Nação. Pelo
contrário, a busca de uma sociedade integrada no ambiente em que se encontra o “outro”
mais imediato, na comunidade mais próxima e na própria nação, surge como necessidade
para chegar à integração da humanidade como um todo. É cada vez mais forte o
reconhecimento de que a diversidade étnica, regional e cultural continuam a exercer um
papel crucial e de que é no âmbito do Estado/Nação que a cidadania pode ser exercida.

A tensão entre o universal e o singular, isto é, ao mesmo tempo em que é preciso


considerar que a mundialização da cultura se realiza progressivamente, é preciso não
esquecer das características que são únicas de cada pessoa: o direito de escolher seu caminho
na vida e de realizar suas potencialidades, na medida das possibilidades que lhes são
oferecidas, na riqueza de sua própria cultura.
195

A tensão entre a cultura local e a modernização dos processos produtivos: apropriar-se


da modernização dos processos produtivos, fruto da evolução científica e tecnológica,
assumindo papel tanto de usuário como de produtor de novas tecnologias, sem renegar os
valores e o cultivo de bens culturais locais.

A tensão entre o instantâneo/efêmero e o durável: num contexto em que uma imensa


quantidade de informações e de emoções atuam sem cessar, faltam espaços para maior
reflexão sobre os problemas e suas soluções; privilegiam-se opiniões, respostas e soluções
rápidas, muito embora, para muitos problemas sejam necessárias estratégias pacientes e
negociadas. Tal é o caso das políticas para a educação.

A tensão entre o espiritual e o material: freqüentemente, as sociedades, mesmo


envolvidas cotidianamente com as questões materiais, desejam alcançar valores que podem
ser chamados morais/espirituais; suscitar em cada um tais valores, segundo suas tradições e
convicções, é uma das tarefas para a educação.”

A necessidade de que a educação trabalhe a formação ética dos alunos é cada vez
mais defendida. A escola deve assumir-se como um espaço de vivência e de discussão dos
referenciais éticos, não como instância normativa e normatizadora, mas um “local social”
privilegiado de construção dos “significados éticos” necessários e constitutivos de toda e
qualquer ação de “cidadania”, promovendo discussões sobre a “dignidade do ser humano”,
igualdade de direitos, recusa de “formas de discriminação”, com ênfase na importância da
solidariedade, respeito às diferenças e observância das leis estabelecidas.
Além da análise da conjuntura mundial, os documentos também apresentam as
seguintes recomendações:

• as políticas educacionais devem ser suficientemente diversificadas e concebidas, de modo a


que a educação não seja um fator suplementar da exclusão social;

• os tempos e os campos da educação devem ser repensados, completar-se e interpenetrar-se,


de modo que, cada indivíduo, ao longo de sua vida, possa tirar o melhor proveito de um
ambiente educativo em constante transformação;

Essa educação, ao longo da vida estaria fundada em quatro pilares:

- aprender a conhecer, que pressupõe saber selecionar, acessar e integrar os elementos de


uma cultura geral, suficientemente extensa e básica, com o trabalho em profundidade de
alguns assuntos, com espírito investigativo e visão crítica; em resumo, significa ser capaz de
aprender a aprender ao longo de toda a vida;

- aprender a fazer, que pressupõe desenvolver a competência do saber se relacionar em


grupo, saber resolver problemas e adquirir uma qualificação profissional;

- aprender a viver com os outros, que consiste em desenvolver a compreensão do outro e a


percepção das interdependências, na realização de projetos comuns, preparando-se para gerir
conflitos, fortalecendo sua identidade e respeitando a dos outros, respeitando valores de
pluralismo, de compreensão mútua e de busca da paz;

- aprender a ser, para melhor desenvolver sua personalidade e poder agir com autonomia,
expressando opiniões e assumindo as responsabilidades pessoais.” (Brasil, MEC/Secretaria
de Educação Fundamental, PCN´s, p. 15-17)
196

No âmbito mais específico da educação para o trabalho, uma noção essencial que passa a
figurar nos documentos oficiais é o de polivalência, que assim seria descrito no Parecer CNE/CEB, nº
16/99:

Por polivalência aqui se entende o atributo de um profissional possuidor de competências


que lhe permitam superar os limites de uma ocupação ou campo circunscrito de trabalho,
para transitar para outros campos ou ocupações da mesma área profissional ou de áreas afins.
Supõe que tenha adquirido competências transferíveis, ancoradas em bases científicas e
tecnológicas, e que tenha uma perspectiva evolutiva de sua formação, seja pela ampliação,
seja pelo enriquecimento e transformação de seu trabalho. Permite ao profissional
transcender a fragmentação das tarefas e compreender o processo global de produção,
possibilitando-lhe, inclusive, influir em sua transformação. (Brasil, 1999, p. 37-38).

Estes princípios, essencialmente ideais e sem possibilidades de correspondência com


uma realidade econômica fundada no trabalho abstrato (condição inerente ao modo capitalista de
produção em que processos e produtos devem permanecer alienados dos produtores),
permanecem intangíveis não somente no texto da referida lei, mas também na mente da grande
maioria de nossos professores, educandos e trabalhadores.
Entendemos que a noção de competência vem cumprindo perfeitamente o papel de
dissimuladora das relações sociais de produção, a partir de uma mistificação ideológica profundamente
favorecida pelo subjetivismo inerente a tal noção. Dos relatórios e manuais de seus difusores aos
discursos oficiais e, daí, até as próprias diretrizes da educação nacional, o que encontramos são
conceituações acerca da noção de competência que primam pela imponderabilidade. Um breve
exercício analítico das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional, por exemplo,
pode auxiliar a esclarecer essa nossa proposição:

Um exercício profissional competente implica um efetivo preparo para enfrentar situações


esperadas e inesperadas, previsíveis e imprevisíveis, rotineiras e inusitadas, em condições de
responder aos novos desafios profissionais, propostos diariamente ao cidadão trabalhador, de
modo original e criativo, de forma inovadora, imaginativa, empreendedora, eficiente no
processo e eficaz nos resultados, que demonstre senso de responsabilidade, espírito crítico,
auto-estima compatível, autoconfiança, sociabilidade, firmeza e segurança nas decisões e
ações, capacidade de autogerenciamento com autonomia e disposição empreendedora,
honestidade e integridade ética. (Brasil, 1999, p. 48 – itálicos nossos).

O excesso de adjetivações e substantivos abstratos utilizados para tal definição, evidencia


a natureza praticamente inapreensível de seu amplíssimo espectro de predicações. O que designa a
noção de competência, afinal? Por ela, a transferência por subjetivação das responsabilidades por
sucesso ou fracasso num mundo francamente competitivo aos próprios “cidadãos trabalhadores” — e
às condições de socialização e educação dos mesmos —, propicia ao capitalismo, no processo de
recrudescimento de seus aspectos mais genuinamente predatórios e degradantes, desincumbir-se das
trágicas conseqüências por ele próprio produzidas. Senão, vejamos:

O desenvolvimento de competências profissionais deve proporcionar condições de


197

laborabilidade, de forma que o trabalhador possa manter-se em atividade produtiva e


geradora de renda em contextos socioeconômicos cambiantes e instáveis. Traduz-se pela
mobilidade entre múltiplas atividades produtivas, imprescindível numa sociedade cada vez
mais complexa e dinâmica em suas descobertas e transformações. (Brasil, 1999, p. 34 –
itálicos nossos).

Entretanto, com vistas a preservar o Parecer em questão de interpretações em contrário,


como as que aqui propomos — e que se inserem no âmbito das críticas levantadas por diversos autores
quanto ao valor instrumental do ensino e do trabalho humano, esferas orientadas de forma cada vez
mais explícita pela lógica do mercado e para o mercado (cf., p. ex., Silva Jr., 2002; Duarte, 2000;
Ramos, 2001) — o trecho acima é imediatamente complementado da seguinte forma:

Não obstante, é necessário advertir que a aquisição de competências profissionais, na


perspectiva da laboralidade, embora facilite essa mobilidade, aumentado as oportunidades de
trabalho, não pode se apontada como a solução para o problema do desemprego. Tampouco
a Educação Profissional e o próprio trabalhador devem ser responsabilizados por esse
problema, que depende fundamentalmente do desenvolvimento socioeconômico, com
adequada distribuição de renda. (Brasil, 1999, p. 34 – itálicos nossos).

Contudo, uma vez feita referência a tais aspectos incontornáveis do ponto de vista
dos fatos concretos, o Parecer imediatamente retoma seu caráter eminentemente abstrato:

A vinculação entre educação e trabalho, na perspectiva da laboralidade, é uma referência


fundamental para se entender o conceito de competência como capacidade pessoal de
articular os saberes (saber, saber fazer, saber ser e saber conviver) inerentes a situações
concretas de trabalho. O desempenho no trabalho pode ser utilizado para aferir e avaliar
competências, entendidas como um saber operativo, dinâmico e flexível, capaz de guiar
desempenhos num mundo do trabalho em constante mutação e permanente desenvolvimento
(Brasil, 1999, p. 35 – itálicos nossos).

Procuramos insistir no resgate dos elementos ideológicos do governo Fernando


Henrique Cardoso, pois julgamos imprescindível que os mecanismos que inculcaram entre
muitos de nós, noções que reduzem os propósitos educacionais, humano-genéricos e históricos, à
mera condição instrumental-adaptativa de nossos indivíduos aos imperativos parciais e
precarizadores do mercado, sejam devidamente desmistificados. A mistificação pedagógica pode
ser fartamente encontrada nas inúmeras e oportunas publicações que se destinam, desde o
advento da ideologia neoliberal entre nós, a conduzir nossos educadores/professores a uma
“compreensão crítica e reflexiva” (desde que positivamente “construtiva”) dos novos decálogos
sobre os saberes necessários a que convivamos pacificamente numa sociedade crescentemente
anacrônica e segregadora. Aos “cidadãos trabalhadores” cabe, agora, descobrirem, em termos
idiossincrásicos, sem perderem a auto-estima e com total autonomia, como serem competentemente
perfeitos para se tornarem elegíveis frente a uma eventual oportunidade de “empregabilidade”. Enfim,
a aprenderem a aprender como ser em sociedades geridas por mercados para os quais “sociedades”
possuem um sentido apenas jurídico e contábil.
198

2.4. Do discurso da qualificação ao discurso da competência: revendo os conceitos e os


contextos históricos de suas produções

Para que possamos nos situar melhor em relação ao advento do discurso da competência e
sua estreita relação com o movimento ultraliberal atual, parece-nos fundamental compreendermos os
contextos de produção dos princípios relacionados à qualificação e a posterior evolução do conceito
atual de competência. Estes dois conceitos não são em absoluto mutuamente excludentes, mas
tampouco se revelam completamente identificáveis.
Nossa reflexão necessariamente parte da noção de profissionalização para o trabalho, que
durante o período de consolidação da sociedade industrial presumia a formação adequada de
especialistas segundo habilitações e classificações profissionais relativamente lineares e socialmente
bem definidas57, por sua vez certificadas por diplomas, o que atingia, sobretudo, os trabalhadores
encarregados pela gestão orgânica das atividades produtivas. 58
Segundo Zarifian (2001) — reconhecido estudioso de tais processos do ponto de vista de
sua evolução em termos da gestão empresarial —, em oposição às formas de organização ancoradas
nos postos de trabalho, as novas formas de organização apresentam-se sob conceitos que indicam
mudanças no conteúdo do trabalho e requerem um novo perfil do trabalhador que possibilite viabilizar
estratégias inovadoras de produtividade, quais sejam, o de evento, comunicação e serviço. Esses
conceitos, para o autor, encontrar-se-iam interligados, uma vez que enfrentar um evento é resolver
problemas inesperados que perturbam o desenvolvimento normal da produção de modo a se buscar
estratégias inovadoras, o que pressupõe um exercício reflexivo e interativo do sujeito com sua equipe
de trabalho. A necessidade da comunicação seria condição essencial para a interação dos grupos de
trabalho, bem como o oferecimento de um serviço de qualidade ao cliente, influiriam nas alterações e
adaptações mediante a ocorrência de eventos. Nessa perspectiva, Zarifian acredita que “o trabalho
reverte-se ao trabalhador. O trabalho torna-se prolongamento direto da competência pessoal que o
indivíduo mobiliza diante de uma atuação profissional.” (Zarifian, 2001, p. 56)
De acordo com essa abordagem, o indivíduo (trabalhador) estaria no centro do processo

57
Evidentemente, não nos referimos aqui a uma formação generalizada da classe trabalhadora. Não podemos
confundir aqui “formação tecnicamente especializada” dos quadros superiores (ligados à organização e concepção
dos processos de trabalho) com “adestramento e disciplina” dos quadros operários (força de trabalho ou executores
do processo de trabalho). Neste aspecto, dizia o próprio Taylor em The Principles of Scientific Management
(1911/2004), “it is also clear that in most cases one type of man is needed to plan ahead and an entirely different
type to execute the work” (é também claro que na maioria dos casos um tipo de homem é necessário para planejar e
um tipo inteiramente diferente para executar o trabalho).
58
Na acepção dos franceses, por exemplo, para além dos assalariados manuais ou ouvriers, há também os employés
ou funcionários técnico-administrativos pertencentes a um nível hierárquico intermediário e geralmente burocrático,
e, por fim, os cadres, pertencentes a um nível hierárquico superior e que gerenciam e arbitram o funcionamento da
própria unidade de produção.
199

produtivo e de seu desenvolvimento no trabalho, do mesmo modo como o sucesso da organização


estaria condicionado à prioridade que a mesma tenha atribuído à inovação, não exatamente no sentido
tradicional de tecno-informatizacão, mas pautada na aquisição de competência, a qual conduziria ao
desenvolvimento intelectual e comportamental dos indivíduos (trabalhadores). A concepção de
competência abordada por autores de enfoque sócio-cognitivistas, como Zarifian e Meghinagi, pode ser
traduzida na capacidade do indivíduo mobilizar saberes adquiridos nas instituições educacionais, na
experiência do trabalho, nas diferentes trajetórias profissionais e em práticas de socialização adquiridas
durante o percurso de vida, a fim de resolver problemas emergentes da prática do trabalho e assim
transformar esses saberes, além de desenvolver comportamentos de civilidade necessários à interação
entre profissionais. (Zarifian, 2001; Meghinagi, 1997).
A noção de competência reporta-se ao processo de aquisição de conhecimentos
fundamentando suas análises na psicologia da aprendizagem (comportamental e cognitivista) embora
também utilize teorias de outras áreas do conhecimento, notadamente a lingüística e a neuro-lingüística.
Tudo indica que essa noção, ao buscar justificação científica, tende a imbuir-se de uma pretensa
neutralidade, já que centra seu foco no desenvolvimento de atitudes comportamentais e intelectuais e
desvincula a formação profissional das relações contraditórias entre capital e trabalho.
Se observarmos, entretanto, as características atribuídas à noção de competência no que se
refere ao desenvolvimento intelectual proveniente da aquisição de conhecimentos técnicos, condições
de vida, relações sociais estabelecidas no trabalho e fora dele, bem como na educação escolar,
percebemos que não há uma oposição à noção de qualificação profissional, uma vez que qualificação
não se trata de um conceito estático:

[...] a qualificação diz respeito à capacidade de realização das tarefas requeridas pela
tecnologia capitalista. Nessa perspectiva, diria, é qualificada aquela força de trabalho capaz
de realizar as tarefas recorrentes de um determinado patamar tecnológico e de uma forma de
organização do processo de trabalho. Isso já confere ao termo temporalidade e relativiza seu
conteúdo, à medida em que cada estágio de desenvolvimento social e tecnológico e em cada
forma de organização do trabalho novos atributos são agregados à qualificação e novas
hierarquizações são esclarecidas entre eles. (Bruno, 1996, p. 92)

O conceito de qualificação profissional, ao estar em constante evolução, conforme o


patamar social e tecnológico em que se encontra a sociedade, adquire um potencial explicativo e de
adaptação às mudanças ocorridas no processo de trabalho. Tratar-se-ia, assim como no caso da noção
de competência, de um conceito polissêmico que conjugaria dimensões múltiplas, não sendo redutível
ao universo técnico (educação geral e experiência no trabalho), possuindo também uma dimensão
social:

A riqueza da noção de qualificação foi ressaltada por esses últimos estudiosos, que
salientaram a sua multidimensionalidade: qualificação do emprego, definida pela empresa a
partir das exigências do posto de trabalho, e que serve de base ao sistema de classificações
200

na França; qualificação do trabalhador, mais ampla do que a primeira, por incorporar as


qualificações sociais ou tácitas que a noção de qualificação do emprego não considera essa
dimensão da noção de qualificação sendo, por sua vez, susceptível de decomposição em
“qualificação real” (conjunto de competências e habilidades, técnicas, profissionais,
escolares e sociais) e “qualificação operatória” (“potencialidades empregadas por um
operador para enfrentar uma situação de trabalho”, cf. M. Sailly, In: Lerolle, 1992, p. 7);
finalmente, a dimensão da qualificação como relação social, como o resultado, sempre
cambiante, de uma relação de forças capital-trabalho, noção que resulta da distinção mesma
entre qualificação dos empregos e qualificação dos trabalhadores. (cf. D. Kergoat, 1984, p.
27, citado por Hirata, 1994, p. 132) .

A qualificação como relação social demonstra que o conceito de qualificação profissional


refere-se também à tentativa de se resistir, ao longo da história, às determinações da sociedade
capitalista em curso. Se concebermos a qualificação profissional como “acesso do trabalhador ao saber
envolvido no processo de trabalho”, estamos salientando, além da aquisição de conhecimento técnico,
uma dimensão política, já que a aquisição desse conhecimento estaria condicionada ao grau de controle
do trabalhador sobre a produção. Ao contemplar o conteúdo político que permeia a noção de
qualificação, o desenvolvimento da lógica da competência encontrar-se-ia em razão inversa ao da
qualificação, pois na segunda abordagem as novas atitudes comportamentais e valores requeridos, estão
condicionados à integração a um processo de racionalização que emana das necessidades
eminentemente competitivas da empresa.
Podemos perceber que a técnica, entendida aqui como forma de organização da produção
e utilização de máquinas sob as determinações capitalistas, impõe-se aos assalariados de forma a
requerer um novo perfil profissional capaz de acompanhar as inovações tecnológicas e, sobretudo, com
a emergência da teoria competência, cooperar e adaptar-se aos interesses de competitividade capitalista
torna-se um fator fundamental. É nesse contexto de máxima integração do trabalhador aos interesses do
capital que se enfatiza, na teoria da competência, a aquisição de atributos cognitivos e
comportamentais. A produção capitalista, em seus interesses de acumulação, abre ao indivíduo a
possibilidade de utilizar o componente intelectual no trabalho, mas, em contrapartida, a primazia dada
aos aspectos comportamentais em relação aos aspectos técnicos, permitem a percepção da necessidade
do capital manter seu controle sobre os trabalhadores, ainda que sob variadas formas e justificativas.
Na perspectiva apontada pelos autores da abordagem sócio-cognitivista, a competência
não se oporia à qualificação, mas seria uma das dimensões da qualificação uma vez que, como
menciona Zarifian (2001, p. 193), é somente através da qualificação profissional que os indivíduos
aparecem como representativos de um grupo social, se hierarquizam socialmente e suas promoções ou
declinações são negociadas. O fator inovador da competência perante a qualificação parece estar no
apelo à individualidade e no desenvolvimento de características comportamentais que se devem
encontrar integradas, como capacidade de se comunicar, ter iniciativa e disponibilidade para mudanças
e assimilação de novos valores de qualidade, produtividade e competitividade.
201

Desse modo, a noção de competência ainda que não se opusesse à noção de qualificação
em alguns aspectos, ao contemplar o desenvolvimento de características comportamentais indiretas em
um contexto de trabalho flexível e sem considerar a dimensão contraditória que envolve a relação
capital/trabalho, na qual o capital tende a expropriar todas as potencialidades do trabalhador em seu
favor, constitui-se em uma noção produzida e fiel à ótica empresarial.
Outra vertente de análises, que entendemos como historicizadora e crítica, baseia suas
análises não só no enfoque das necessidades estritamente empresariais que têm sido lançadas sob o
eufemismo da necessidade de trabalhadores (individualmente considerados) supostamente mais
competentes como resultado de um processo de mutação ocorrido no bojo da própria noção de
qualificação. Ou seja, saímos agora de uma perspectiva ligada ao contexto próprio da gestão
empresarial para uma perspectiva que tem no trabalhador (como conjunto de indivíduos pertencentes a
uma classe social) o seu principal aspecto.
Foi na década de 1980, e mais especificamente a partir de sua primeira metade, que uma
série de mudanças tendenciais na esfera produtiva nas nações de capitalismo avançado dão início a um
processo de “desespecialização” profissional. Segundo Ramos (2001, p. 37-38), estas mudanças
tiveram, como principais características, o fenômeno da flexibilização da produção e reestruturação das
ocupações; a integração de setores da produção; a multifuncionalidade e polivalência dos
trabalhadores; e uma valorização dos saberes dos trabalhadores não ligados ao trabalho prescrito ou ao
conhecimento formalizado. Para esta mesma autora, este quadro de mudanças deflagrou debates quanto
à validade das teses da desqualificação tendencial do trabalho nas organizações capitalistas, centrados,
sobretudo, nas teses de polarização das qualificações e de requalificação.
Neste contexto, surgiram ainda estudos e debates acerca também da precarização do
trabalho em decorrência à desregulamentação e flexibilização crescentes das regras de acesso e
permanência no mercado de trabalho, assim como sobre a própria desespecialização, em grande
medida voltada para os conteúdos do trabalho uma vez que se ampliava a tendência à incorporação dos
saberes dos trabalhadores por sistemas computacionais (Ramos, 2001, p. 38). Em termos “sócio-
empíricos” (expressão da autora), surge o questionamento acerca da adequação e suficiência do
conceito de qualificação como estruturante das relações de produção e dos códigos de acesso e
permanência no mercado de trabalho. Segundo Ramos:

Isto pelo fato de esse conceito apresentar uma dimensão societária determinada pela cultura
do trabalho constituída nas décadas precedentes, expressando mais a capacidade potencial do
trabalhador que sua capacidade real para o trabalho. Simultaneamente, estes debates e
tendências se contemporizam com o questionamento da “validade das trajetórias formais e
lineares da formação profissional e, até mesmo, a validade ou suficiência dos diplomas.
(Ramos, 2001, p. 38).

Em termos teóricos e filosóficos, o período indica uma preocupação com os aspectos


202

subjetivos dos trabalhadores, uma vez que os mesmos, ao se verem diante de uma organização da
atividade do trabalho supostamente “mais integrada e flexível”, motivam-se pela também suposta
possibilidade de poderem resgatar suas autonomias e de reintegrarem a si mesmos os saberes
relacionados à organização e ao processo de trabalho. Entretanto, Antunes (1998) avalia que longe de
significar uma oportunidade de reintegração de saberes pelos trabalhadores em relação ao processo de
trabalho “total”, a chamada flexibilização não tardou a revelar seu real significado:

O estranhamento próprio do toyotismo é aquele dado pelo “envolvimento cooptado”, que


possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do trabalhador. Este, na lógica da
integração toyotista, deve pensar e agir para o capital, para a produtividade, sob a aparência
da eliminação efetiva do fosso existente entre elaboração e execução no processo de
trabalho. Aparência, porque a concepção efetiva dos produtos, a decisão do que e de como
produzir, não pertence aos trabalhadores. O resultado do processo de trabalho corporificado
no produto permanece alheio e estranho ao produtor, preservando, sob todos os aspectos, o
fetichismo da mercadoria. (Antunes, 1998, p. 42 – itálicos no original).

Mediante o contexto de debates do período de transição entre a década de 1980 e os anos


de 1990, segundo Ramos, em meio às muitas indefinições do período e cujas discussões se centravam
na qualificação como relação social, emergem as teses centradas numa nova noção, ou seja, a noção de
competência. Para a autora, esta noção visava a três propósitos:

a) reordenar conceitualmente a compreensão da relação trabalho-educação, desviando o foco


dos empregos, das ocupações e das tarefas para o trabalhador em suas implicações subjetivas
com o trabalho; b) institucionalizar novas formas de educar/formar os trabalhadores e de
gerir o trabalho internamente às organizações e no mercado de trabalho em geral, sob novos
códigos profissionais em que figuram as relações contratuais, de carreira e de salário; c)
formular padrões de identificação da capacidade real do trabalhador para determinada
ocupação, de tal modo que possa haver mobilidade entre as diversas estruturas de emprego
em nível nacional e, também, em nível regional (como entre os países da União Européia e
do Mercosul). (Ramos, 1998, p. 39).

Apesar de o debate acerca da qualificação persistir, a autora faz notar que este é um
conceito originário da sociologia, eminentemente relacionado à organização das relações formais de
trabalho e às práticas educativas que subsidiavam e legitimavam o estatuto do trabalho qualificado. Por
sua vez, a noção de competência, originária das ciências cognitivas, “surge com uma marca fortemente
psicológica para interrogar e ordenar as práticas sociais” (Ramos, 1998, p. 39).
O surgimento do conceito de competência deflagra discussões, a partir de então, sobre as
relações entre o advento desta noção e o conceito tradicional de qualificação, discussões estas que
redundam em entendimentos e proposições diferenciadas e não consensuais, sobretudo relacionadas à
existência ou não de um deslocamento da noção de qualificação para o de competência. Enquanto a
tendência mais imediata foi a de se considerar a noção de competência como uma atualização do
conceito de qualificação, de modo a torná-lo adequado às novas formas de organização do capital com
o objetivo de “obter-se maior e mais rápida valorização” (Ferretti, 1997, citado por Ramos, 1998, p.
203

40), outras posições propõem o surgimento da noção de competência como uma atualização ou
“rejuvenescimento da teoria do capital humano” 59 (Frigotto, 1995 — citado por Ramos, op. cit., idem).
Ramos, entretanto, defende que na verdade teria havido um deslocamento conceitual entre
estas noções:

O ponto de partida para se compreender o fundamento do que denominamos como


deslocamento conceitual é tomar a qualificação como um conceito central na relação
trabalho-educação. Mesmo podendo-se caracterizá-lo como um conceito polissêmico, cujos
significados encontram-se historicamente em disputa, o conceito de qualificação, no que
apresenta de mais objetivo, ordenou historicamente as relações sociais de trabalho e
educativas, frente à materialidade do mundo produtivo. Essa centralidade tende a ser
ocupada, contemporaneamente, não mais pelo conceito de qualificação, mas pela noção de
competência que, aos poucos, constitui-se como um conceito socialmente concreto. Não
obstante, a noção de competência não substitui ou supera o conceito de qualificação. Antes,
ela o nega e o afirma, simultaneamente, por negar algumas de suas dimensões e afirmar
outras. (Ramos, 1998, p. 40-41).

Segundo a autora, esta seria a razão para discordar da tese da atualização do conceito de
qualificação, uma vez que, se assim fosse, não se justificaria a emergência de um novo signo. Por outro
lado, porque o conceito de qualificação já vem sendo atualizado, em conformidade com as mudanças
nos processos produtivos. Assim, enfatiza que o conceito de qualificação como relação social é
absolutamente atual, expressando em si as contradições das relações de produção (Ramos, 1998, p. 41).
A autora também não reconhece este fenômeno como uma metamorfose do primeiro conceito,
defendendo que, “se assim fosse, teríamos a competência como um novo signo mas não com outro
significado, pelo menos na essência”. E conclui:

Mas a noção de competência não somente se apresenta como um novo signo, como também
possui significados diferentes ao do conceito de qualificação. Portanto, tanto na perspectiva
teórico-filosófica quanto sócio-empírica, a forma como explicitamos o fenômeno, ajudados
pelas palavras, é definindo-o como um deslocamento conceitual da qualificação à
competência. (Ramos, 1998, p. 41).

Em sua importante retrospectiva histórica, Ramos entende o conceito de qualificação

59
Há uma tendência a se identificar o discurso da competência com a teoria do capital humano. Entretanto, apesar
de ambos terem a mesma matriz pragmatista (afinal, são discursos fundamentados na escolarização como
“investimento” para a produção), tomar o discurso da competência como “reedição” do primeiro fenômeno
(FRIGOTTO, 2000) não abarca o significado de ambas as teorias mediante seus contextos históricos. A teoria do
capital humano, proposta por Theodore Schultz (1902-1998) a partir de sua obra “The Economic Value of
Education” (1963), é ao nosso ver própria do contexto iniciado com o new deal norte-americano a partir da Grande
Depressão dos anos 30, reeditado por F.D. Roosevelt a partir da Segunda Guerra, e que durante os “30 anos
gloriosos” do pós-guerra conclamava o Estado a investimentos maciços em educação (a educação é, então, um fator
econômico de massa e um bem comum — e, assim como o conceito de qualificação profissional, “exógeno” aos
indivíduos). Por sua vez, o discurso da competência é dirigido não mais ao Estado, cujo papel social se pretende
“minimizado” nos anos de 1980/90, mas aos indivíduos em particular, fenômeno ideológico de uma sociedade agora
assumidamente desigual, competitiva e segregadora. Portanto, seria mais adequado considerarmos o sentido dos dois
movimentos como distintos, o primeiro próprio ao contexto do welfare state nos países centrais (os títulos de outras
duas obras de Schultz, Agriculture in an Unstable Economy [1945] e Production and Welfare of Agriculture [1949],
são, em si, reveladores a esse respeito); o segundo, como próprio ao contexto de particularização e subjetivação
ultraliberais atuais (retomaremos essa importante questão no Capítulo III).
204

como próprio ao surgimento do Estado de Bem-Estar Social e a consolidação da sociedade industrial.


Este conceito teria, então, assumido o papel regulador das relações e formação para o trabalho, outrora
desempenhado pelas corporações.
Assumimos que este processo poderia ser resumido pelo seguinte esquema:
- noção de qualificação: própria ao compromisso capital-trabalho do pós-Segunda Guerra
Mundial (caráter social do mercado de trabalho) que caracterizou, sobretudo, o período hegemônico da
economia política keynesiana e do welfare-state. Este período, de cerca de 30 anos, marca não somente
o auge da organização trabalhista como várias de suas conquistas em termos de ganhos salariais e de
proteção social;
- noção de competência: resultado do rompimento do compromisso capital-trabalho
subsidiado pelas teses keynesianas que visavam o pleno emprego, próprio do Estado de Bem-Estar
Social (instauração do caráter individualista de mercado de trabalho). Essa noção individualizadora
terá, nas décadas vindouras, efeitos de desarticulação dos grupos e associações trabalhistas
(notadamente das organizações sindicais), principalmente pelo quadro de lutas individuais por garantias
por postos de trabalho, agora cada vez mais determinados pelas novas tecnologias e a
transnacionalização de parques industriais para os recantos mais generosos e menos exigentes quanto a
questões trabalhistas.
O neoliberalismo assume o papel de tentar dissimular esse deslocamento do âmbito social
para o âmbito individual apropriando-se e articulando noções sociais tão efêmeras no capitalismo como
cidadania, ética-empresarial, direitos dos consumidores, trabalhador inteligente, trabalhador flexível,
desenvolvimento sustentável, qualidade-total, inclusão social, programas de alfabetização e de
educação para todos, bolsas-família, estímulo ao voluntarismo e à criação de ONGs, e demais
estratégias amplamente proclamadas como “socializadoras” diante da desestatização e desestruturação
das instituições públicas.

3. O DISCURSO ULTRALIBERAL DA COMPETÊNCIA PARA O TRABALHO E A EDUCAÇÃO


NO BRASIL DOS ANOS DE 1990

3.1. Antecedentes políticos e econômicos imediatos (1986-1992)

Um retrospecto do período que precedeu a implementação de programas neoliberais


no Brasil deve considerar os governos “civis” que surgiram no país durante o chamado processo
de abertura política brasileira, nos estertores do longo período ditatorial militar (1964-1985),
período em que prevaleceu a política econômica de substituição de importações.
Mesmo considerado o “presidente da abertura”, o último presidente da ditadura
205

militar, João Batista de Figueiredo (1918-1999), preocupou-se com a eleição de seu sucessor. O
partido do governo, agora denominado PDS, realizou uma série de manobras para permanecer no
poder e tentar contrariar o movimento social pelas eleições diretas que se organizava desde o
final de 1983. A última grande manobra foi a rejeição da Emenda Constitucional do deputado
Dante de Oliveira que introduziria no país a eleição direta para Presidente da República. O
primeiro presidente civil da República, depois do regime militar, Tancredo de Almeida Neves
(1910-1985), também foi eleito indiretamente e teve seu mandato cumprido pelo vice, José
Sarney. O Brasil teve ainda mais um presidente não eleito diretamente, Itamar Franco, que
assumiu a presidência dentro dos preceitos constitucionais, dado o processo de impeachment de
Fernando Collor de Mello (1992).

3.1.1. José Sarney

O primeiro governo civil de transição foi eleito indiretamente através de Colégio


Eleitoral, e assume o poder a partir da composição partidária que tornou vitorioso Tancredo
Neves, candidato da oposição, falecido na véspera de sua posse. Embora pertencente à frente
liberal (que redundaria no Partido da Frente Liberal), — supostamente dissidente mas
historicamente vinculada à Arena, partido representante do governo militar —, assume a
condição de presidente da república o vice José Sarney, cujo governo foi marcado pelos altos
índices inflacionários e pelos inúmeros planos econômicos “heterodoxos” ocorridos em seu
governo. No primeiro ano do governo Sarney a inflação chega a 255,16% (IBGE, 1986). Em 1º
de março de 1986 o ministro da Fazenda, Dilson Funaro, lança o Plano Cruzado, uma reforma
monetária que corta três zeros do cruzeiro e o substitui por uma nova moeda, o cruzado. Congela
os preços por um ano e também os salários, pelo valor médio dos últimos seis meses acrescido
de um abono de 8%. Prevê, ainda, o chamado "gatilho salarial", ou seja, toda vez que a inflação
atingisse ou ultrapassasse os 20%, os assalariados teriam um reajuste automático no mesmo
valor e as diferenças negociadas nos dissídios das diferentes categorias. O Plano Cruzado
extingue a correção monetária, institui o seguro-desemprego e cria o Índice de Preços ao
Consumidor (IPC) para corrigir a poupança e aplicações financeiras superiores a um ano.
O Plano Cruzado tem o efeito momentâneo de conter a inflação e aumentar o poder
aquisitivo da população e o país é tomado por um clima de euforia. A população passa a vigiar
os preços no comércio e denunciar remarcações, movimento que ficaria conhecido como "os
fiscais do Sarney”. Cresce então o consumo em todos os extratos sociais, mas em quatro meses o
Plano começa a perder efeito, as mercadorias desaparecem do comércio varejista, os
206

fornecedores passam a cobrar ágio e a inflação volta a subir. O governo mantém o congelamento
até as eleições, tentando extrair possíveis dividendos políticos do Plano. A estratégia eleitoral
atinge então seu objetivo e o PMDB, partido para o qual Sarney migrara, vence nos principais
Estados do país. A economia, no entanto, torna-se anacrônica e a inflação novamente dispara.
O Plano Cruzado II foi adotado logo após as eleições de 1986, e em 21 de novembro
daquele ano esse Plano descongela os preços de produtos e serviços, libera os preços dos
aluguéis para serem negociados entre proprietários e inquilinos, e altera o cálculo da inflação,
que passa a ser medida com base nos gastos das famílias com renda de até cinco salários
mínimos. O Plano provoca um aumento generalizado de preços. Bebidas sobem 100%;
automóveis, 80%; combustíveis, 60,16%. A inflação dispara e a população perde a confiança no
governo. Cinco meses após sua edição, o ministro da Fazenda Dilson Funaro é substituído por
Luís Carlos Bresser Pereira.
Luís Carlos Bresser Pereira assume o Ministério da Fazenda em 29 de abril de 1987.
A inflação do mês seguinte chega a 23,26%. Em junho Sarney decreta novo congelamento de
preços, aluguéis e salários por três meses. Para conter o déficit público, elimina o subsídio ao
trigo e adia grandes obras públicas já planejadas, como a ferrovia Norte-sul, o pólo petroquímico
do Rio de Janeiro e o trem-bala entre São Paulo e Rio de Janeiro. O plano, denominado Plano
Bresser, não obtém resultados e a inflação anual chega aos 366%. Em 6 de janeiro de 1988 o
ministro Bresser Pereira é substituído por Maílson da Nóbrega.
Maílson da Nóbrega assume o Ministério da Fazenda propondo-se a realizar uma
política econômica sem adotar medidas drásticas, mas apenas ajustes localizados para evitar a
hiperinflação. A inflação passa dos 366% de 1987 para 933% no final de 1988.
Em 15 de janeiro de 1989 Maílson da Nóbrega apresenta um novo plano econômico:
cria o cruzado novo; impõe outro congelamento geral; acaba com a correção monetária; propõe a
privatização de diversas estatais e anuncia vários cortes nos gastos públicos, como a exoneração
dos funcionários contratados sem concurso nos últimos cinco anos. Os cortes não são feitos, o
plano fracassa e a inflação dispara. De fevereiro de 1989 a fevereiro de 1990, chega a 2.751%.
(IBGE, 1991).

3.1.2. Fernando Collor de Mello

Fernando Collor de Mello chega ao poder anunciando que poria fim à ciranda
inflacionária e ao desperdício do dinheiro público. A inflação acumulada entre março de 1989 e
março de 1990 é de 4.853%. No dia 15 de março, logo após sua posse, Collor anuncia um pacote
207

econômico, o Plano Brasil Novo ou, como ficaria popularmente conhecido, Plano Collor. Com
ele, pretende acabar com a crise, promover um amplo reajuste da economia e elevar o país do
terceiro para o Primeiro Mundo. Collor reintroduz o cruzeiro em substituição ao cruzado novo,
bloqueia por 18 meses os saldos das contas correntes, cadernetas de poupança e demais
investimentos superiores a Cr$ 50.000,00. Os preços são tabelados e gradualmente liberados. Os
salários são pré-fixados e depois negociados entre patrões e empregados. Aumenta impostos e
tarifas, criando novos tributos e suspendendo incentivos fiscais não garantidos pela Constituição.
Anuncia corte nos gastos públicos e redução da máquina do Estado pela demissão de
funcionários e privatização de empresas estatais. O plano também prevê a abertura do mercado
interno, com a redução gradativa das alíquotas de importação.
As empresas, pegas de surpresa pelo plano, ficam sem liquidez e pressionam o
governo. Zélia Cardoso de Mello, ministra da Economia, dá início à chamada "operação
torneirinha": permite a liberação dos cruzados retidos para pagamento de taxas e impostos
federais, estaduais e municipais, contribuições previdenciárias e folhas de pagamento. Assim, os
grandes grupos empresariais conseguem liberar seus investimentos e apenas os poupadores
individuais ficam com seu dinheiro retido.
O Plano Collor mergulha o país em um processo recessivo. O nível de produção cai
drasticamente e, em abril de 1990, já é 26% inferior ao de abril de 1989. As empresas reduzem a
jornada de trabalho e os salários ou simplesmente demitem funcionários. Em São Paulo ocorrem
mais de 170 mil demissões nos primeiros seis meses de 1990, número recorde desde a crise do
início da década de 80. O Produto Interno Bruto cai de US$ 453 bilhões em 1989 para US$ 433
bilhões em 1990.
O Programa Nacional de Desestatização previsto no Plano Collor é regulamentado
em 16 de agosto de 1990. A primeira estatal privatizada é a Usiminas, em leilão realizado em
outubro de 1991. Até o final de 1993, já no governo de Itamar Franco, 25 estatais estão
privatizadas, com transferências patrimoniais consideráveis do setor público para o setor privado.
O processo de privatização dos setores siderúrgico e petroquímico já está praticamente
concluído. Começam as negociações para o setor de telecomunicações e, no setor elétrico, há
uma tentativa de limitar as privatizações à construção de grandes obras e à abertura do capital
das estatais, sem que o Estado perca seu controle acionário.
A inflação volta a subir em meados de 1990. Em dezembro o índice mensal é de
19,39% e a inflação acumulada durante o ano chega a 1.198%. Em 31 de janeiro de 1991 é
decretado o Plano Collor 2. Para controlar a ciranda financeira, acaba com as operações de
overnight e cria o Fundo de Aplicações Financeiras (FAF) para centralizar todas as operações de
208

curto prazo; extingue o BTNf (Bônus do Tesouro Nacional fiscal), usado pelo mercado para
indexar preços, adota a TRD (Taxa Referencial Diária) com juros prefixados e aumenta o IOF
(Imposto sobre Operações Financeiras). Adota uma política de juros altos e tenta desindexar a
economia com novo congelamento de salários e preços. Cria também um deflator para contratos
com vencimento após 1º de fevereiro. Para incentivar a concorrência no setor industrial, dá início
ao cronograma de redução das tarifas de importação. A inflação de 1991 baixa para 481%
(IBGE, 2005).
A economia começa a se recuperar no final de 1992, depois de um grande processo
de reestruturação interna das indústrias. A abertura do mercado para produtos importados
promovida por Collor obriga as empresas brasileiras a investir na melhoria da qualidade de seus
produtos e na modernização dos processos de produção. Há uma tendência generalizada de
revisão dos métodos administrativos e da organização, com a redução dos custos de
gerenciamento, concentração de atividades e terceirizações. Com isso, cresce a automação
industrial, a hierarquia interna das empresas fica reduzida e aumenta a produtividade. Em
contrapartida, aumenta o desemprego. Na Grande São Paulo, por exemplo, a região mais
industrializada do país, o número de desempregados em 1993 chega a 1,2, milhão de pessoas,
apesar de a produção das empresas ter aumentado.

3.1.3. Itamar Franco

Quando Itamar Franco assume o governo, em 29 de dezembro de 1992, a inflação no


mês é de 23,7% e o total acumulado no ano é de 1.157%. As atividades econômicas, no entanto,
começam a dar sinais de recuperação. Em 1993 o PIB cresce 4,1%, depois de dois anos de
queda, e a indústria cresce 7,7%. O melhor desempenho, no entanto, é o do setor bancário:
enquanto a rentabilidade sobre o patrimônio no setor industrial é de 2,2%, entre os bancos é de
9,5% – índice que demonstra claramente quem ganha com a inflação. Em maio de 1993,
Fernando Henrique Cardoso assume o Ministério da Fazenda e elabora um plano de estabilização
da economia, anunciado em dezembro de 1993, que descarta medidas de choque. Para o novo
ministro, o combate à inflação deveria começar pelo controle imediato das despesas do governo,
um prenúncio mais claro da chegada, enfim, de medidas neoliberalizantes ao país. O controle do
déficit público, para ser eficaz, precisaria ser acompanhado de uma reforma tributária, segundo a
nova equipe econômica, única forma de garantir-se um equilíbrio estável entre as receitas e
despesas do setor público e de criar as bases necessárias para uma estratégia de endividamento
de longo prazo. Na proposta orçamentária enviada ao Congresso Nacional no final de novembro
209

de 1993, o governo anuncia cortes de gastos, inclusive em áreas essenciais, como educação e
saúde, e na folha de pagamentos do funcionalismo. Divulga também um plano de reforma
administrativa com o propósito de reduzir a “máquina do Estado” e, com a finalidade de ampliar
a arrecadação, aumenta todos os impostos federais em 5%.
O censo do IBGE (1991) indica que a renda per capta dos brasileiros caiu 5,6% em
relação a 1980. A política de salários vigente no país contribui para a multiplicação da pobreza.
Dados do IBGE (1990) mostram que das 67,2 milhões de pessoas com mais de dez anos que
trabalham, apenas 5,8% ganham acima de dez salários mínimos. A maioria dos trabalhadores,
63%, recebe até três salários mínimos, sendo que 29,5% ganha, no máximo, um salário. Um dos
reflexos dessa situação é o aumento da população favelada nas grandes cidades. Há 20 anos,
apenas 1% da população paulistana vivia em favelas. No início dos anos 90, a população em
favelas das cidades sobe para 20% e representa cerca de 2 milhões de pessoas.

3.2. O Brasil Neoliberal: Fernando Henrique Cardoso e as palavras

Falarmos de um ideário econômico como o neoliberal, a exemplo de todos os


elementos discursivos que compuseram a ideologia liberal no decorrer de sua história, não
consiste em tarefa das mais simples. Isto se deve fundamentalmente ao fato de que, apesar da
existência de pressupostos que o caracterizam, pressupostos estes que se consolidaram aos
poucos nas práticas político-econômicas de diversos países capitalistas, não há no movimento a
adoção explícita do termo “neoliberal”. Nem seus principais inspiradores assim o fizeram, sendo
o termo cunhado, antes, por seus críticos opositores. E, de fato, parece-nos inegável haver um
movimento de ressurgimento e revigoração dos princípios fundamentais do liberalismo clássico,
mas que, como vimos no capítulo anterior, cuida de atualizá-los e radicalizá-los ao extremo, o
que legitimaria, segundo seus críticos, sua distinção pelo neologismo surgido em princípios da
década de 197060.
Em parte talvez por essa origem etimológica e temporal incerta e arbitrária, uma

60
O verbete em português e sua datação em 1970 constam do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (1ª. Ed.,
Editora Objetiva, 2002), que define o mesmo como “1. doutrina proposta por economistas franceses, alemães e
norte-americanos, na primeira metade do século XX, voltada para a adaptação dos princípios do liberalismo clássico
às exigências de um Estado regulador e assistencialista, que deveria controlar parcialmente o funcionamento do
mercado;” e “2. doutrina, desenvolvida a partir da década de 1970, que defende a absoluta liberdade de mercado e
uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda
assim num grau mínimo. Já o Nouveau Dictionnaire Petit Robert de la Langue Française (2002), data sua origem
em 1844, sem, contudo, precisar algo sobre seu uso, mas definido como “forma de liberalismo que admite uma
intervenção limitada de Estado”. O American Heritage Dictionary (4th Ed., 2000), define o verbete como
“movimento político iniciado nos anos 1960 que combina a tradição liberal no que concerne à justiça social com
ênfase no crescimento econômico”, tendo o termo “neoliberal” por adjetivo.
210

característica bastante peculiar das políticas e ações neoliberais, especialmente no caso


brasileiro, tenha sido a reiterada negação, por parte de seus implementadores, de que tais ações
pudessem ser identificadas com aquele movimento. Por mais evidentes fossem os princípios
econômicos, políticos e técnicos aos quais estivessem vinculados, seus difusores em geral não
reconheciam vínculos para com a doutrina político-econômica neoliberal. Assim, por exemplo,
em entrevista à revista Veja, Fernando Henrique Cardoso ⎯ então já ex-presidente ⎯, a
exemplo do que já havia defendido em diversas ocasiões, uma vez mais afirmaria:

O que chamavam de neoliberalismo nunca existiu. O mercado nunca definiu as regras de


funcionamento da sociedade durante meus oito anos na Presidência. Os gastos sociais nunca
foram tão altos quanto no meu governo. Como proporção do PIB, os gastos sociais passaram
de 11% a 14%. O que nós fizemos foi justamente o contrário do proposto pelo que se
costumou chamar de neoliberalismo. O que fizemos foi recompor o Estado, que tentamos
fazer mais ágil e mais apto a responder aos desafios do mundo atual. (Cardoso, 2003, p. 11)

A constatação dessa negação, ao nosso ver, adquire, atualmente, um duplo


significado, em parte por ser verdadeira, em parte por ser falsa. Assim, o posicionamento de
Fernando Henrique tanto coincide com argumentos dos mentores neoliberais, em que o Estado
liberal contemporâneo seria, na verdade, anti-liberal — pois que desde Keynes e as políticas do
Estado Social, sua marca seria o intervencionismo e o assistencialismo —, como oculta, por
outro lado, a identificação das chamadas “reformas do Estado brasileiro” com políticas que
privilegiaram de forma sem precedentes, no país, os interesses do mercado local e internacional.
No capitalismo contemporâneo o uso de termos como liberdade, democracia,
igualdade de oportunidades, progresso, modernização, reformas, empreendedorismo,
competência, dentre outros, tendem a conferir a esta ideologia características progressistas e de
legitimidade ética e social. Evidentemente, a identificação, em maior ou menor grau das políticas
implementadas pelo Governo Fernando Henrique Cardoso com os princípios neoliberais pode ser
caracterizada pela aproximação das políticas de seu governo com elementos amplamente aceitos
como próprios àquele ideário político-econômico, como por exemplo: a identificação tácita do
preceito da desigualdade individual com o preceito da desigualdade social, numa perspectiva
individualista e que valoriza o espírito empreendedor, de competitividade, habilidades e aptidões
particulares como única e legítima via de relacionamentos e “sucessos” no plano social; a
identificação e travestimento, como já aludimos, do princípio moderno de cidadania, enquanto
conjunto de direitos e deveres democráticos, pelo estatuto e condição de consumidor, segundo
seu poder individual de competição, compra e defesa jurídica de seus direitos; o favorecimento
da desregulamentação dos mercados e o incremento de processos de privatização do aparato
estatal, justificados pela necessidade de diminuição da presença do Estado na economia,
211

visando-se, assim, limitar sua atuação a de mediador e provedor das necessidades sociais61; a
prevalência do monetarismo como princípio econômico-financeiro, que privilegia a esfera fiscal
e de fluxos de capitais, em detrimento da produção industrial; a aceitação incondicional da
transnacionalização dos mercados produtivos e de capitais, denominada globalização, aceita e
difundida como sinônimo da inexorabilidade da lógica de mercado; a outorga das atividades
sociais e assistenciais a organizações não-governamentais e o estímulo ao espírito assistencialista
e voluntarista do governo e da sociedade civil, dentre outros aspectos (com base em Gentilli,
2002, p.19-20; Lesbaupin, 1999, p. 7-13; Malagutti, Carcanholo & Carcanholo, 2002, p. 15-35 e
59-76; Bianchetti, 1996, p. 70-101).
Ainda na tendência da negação de suas reais orientações, Fernando Henrique lançou
mão, constantemente, de eufemismos que velaram o caráter neoliberal das ações de seu governo,
e buscaram neutralizar as críticas às mesmas, pelo argumento da modernização do aparato
institucional, visando tornar o Estado “mais ágil e mais apto a responder aos desafios do mundo
atual” (conforme trecho da entrevista já citada). Esses desafios, entretanto, são apresentados
como imposições inquestionáveis de um movimento natural-evolutivo dos mercados
internacionais ⎯ logo, do capitalismo ⎯, que têm, como decorrência, também o imperativo de
uma adesão consensual universal aos seus desideratos.
Contudo, parece-nos patente que em seus inúmeros discursos e ações, o governo de
Fernando Henrique haja evidenciado uma aceitação clara dos referidos pressupostos. Assim,
FHC parece explicitar essa convergência, por exemplo, em seu discurso no ato de assinatura das
concessões da malha ferroviária à iniciativa privada, em 28/08/1996. Devemos notar que, ao
mesmo tempo, há uma tendência constante em suas manifestações de diminuir a importância da
política partidária, o que posteriormente iria se tornar uma verdadeira marca de seu governo, ou
seja, a tentativa de anular todos discursos oposicionistas sustentando serem os mesmos arcaicos,
empecilhos ideológicos à “reforma e modernização” do país. Este seria um dos elementos que
muitos caracterizariam como ideologicamente estratégicos para a tentativa de implantar um
pensamento único no país:

É um novo Brasil, um Brasil confiante nele próprio, confiante na iniciativa privada, que sabe
que nada disso poderá ser feito sem muita clareza, sem que o Congresso esteja atento aos
procedimentos, sem que haja entrosamento de governadores com o Governo Federal,
independentemente de partidos (Cardoso, 2002, p. 192).

Certamente, esse posicionamento ideológico e a implantação de um pensamento

61
Paradoxalmente, o que verificamos é uma tendência justamente oposta, em que o Estado passa a se ocupar muito
mais das questões político-econômicas para garantir privatizações, concessões e o “ajuste” econômico do país às
diretrizes do capital internacional, enquanto suprime suas ações sociais com a diminuição ostensiva de seus gastos e
presença pública.
212

uníssono no país, apenas fez repercutir, entre nós, o que se passava de forma avassaladora com o
pensamento hegemônico do capital mundial, sob o signo da chamada globalização:

[...] nós todos sabemos que estamos enfrentando uma transformação muito profunda no
sistema produtivo, em nível mundial, na distribuição dos recursos globais, na concentração
do saber em certas áreas. E esse processo todo, que, para simplificar, se costuma chamar de
globalização, não implica que os paises não definam as suas políticas. Pelo contrário: ele
requer que exista uma atitude mais sensível e mais determinada por parte dos países, para
que possam, efetivamente, entrar num processo que é de ampla competição, competição
científica, competição tecnológica e competição econômica. (discurso na instalação do
Conselho Nac. de Ciência e Tecnologia, Brasília, 17/08/1996 - Cardoso, 2002, p. 158).

O tom de admoestação do ex-presidente aos seus antagonistas e críticos estaria sempre


calcado na tese da modernização como exigência indiscutível a todos os países que pretendam
sobreviver no atual contexto produtivo mundial. “Modernização ou exclusão”, tornou-se assim um
imperativo desconcertante para uma oposição ainda atordoada pelos fenômenos da derrocada das
experiências do “socialismo real” e a ampla silenciação ou reconversão de setores historicamente
identificados como “trabalhistas” e de “esquerda”, com o pensamento único do neoliberalismo e os
desiderativos do capital internacional. Fernando Henrique, neste sentido, já revelava uma convicta
consonância com os rumos do capitalismo e a necessidade de nos adaptarmos à “nova realidade”
mundial:

Quem não perceber que o mundo mudou e que, nesse novo mundo, as nações que não se
organizarem para ter uma atitude bastante ativa ficarão excluídas, se equivoca. Ninguém
quer a exclusão, nem a nossa e nem, se possível, de nenhum outro povo. Mas nós temos que
cuidar do nosso. E, para cuidar do nosso, temos que nos organizar. Isso implica uma
profunda reorganização do Estado brasileiro, da sociedade brasileira, das empresas
brasileiras, da universidade brasileira e do modo pelo qual nos preparamos para essa nova
etapa — eu diria até com certa força de expressão — da Humanidade. (discurso na instalação
do Conselho Nac. de Ciência e Tecnologia, Brasília, 17/08/1996. Cardoso, 2002, p. 158 –
itálicos nossos).

Quanto aos ingredientes da reforma modernizadora do Estado para a retomada do


desenvolvimento do país e uma suposta inversão da marginalização e exclusão sociais, Fernando
Henrique já lançava mão, à época, de elementos amplamente difundidos na década de 1990, dentre
eles, o da apologia do conhecimento como nova condição para as modernas sociedades:

Isso pode permitir — se definirmos uma estratégia inteligente de desenvolvimento, baseado


em conhecimento — a transição para uma sociedade mais homogênea, uma sociedade
moderna, uma sociedade aberta à competição, sem que os segmentos que hoje estão
marginalizados sofram com o aumento da sua marginalização, através da incorporação de
contingente de ex-integrados que passem à exclusão. Nós não podemos conviver com a
exclusão, nós temos que aumentar a integração, e essa integração não se fará num só
segmento nem de uma só maneira, nem através de uma só abordagem, do ponto de vista do
modelo mesmo de desenvolvimento, do ponto de vista tecnológico. (discurso na instalação
do Conselho Nac. de Ciência e Tecnologia, Brasília, 17/08/1996. Cardoso, 2002, p. 161-
162).
213

O papel da iniciativa privada, para além das concessões e privatizações do aparato estatal,
também para atividades de pesquisa necessárias à ampliação do conhecimento — notadamente em
termos técnico-científicos — justifica-se pela escassez de recursos do Estado para este fim, bem como
pelo já anunciado problema do “déficit fiscal”, justificativa não só para o retraimento da participação
do Estado em ciência e tecnologia (o que se verificaria no literal abandono governamental às
universidades públicas federais), como também as chamadas “políticas de ajustes fiscais” exigidas
pelos organismos financeiros internacionais:

Há um grande esforço do Governo no sentido de ampliar os escassos recursos, e, nesse


esforço, papel fundamental está sendo jogado pela iniciativa privada, através dos incentivos
dados pelo Governo e pela multiplicação de pesquisas com esse mecanismo que tem dado
resultados positivos. Nós precisamos aumentar a participação dos recursos para ciência e
tecnologia no produto bruto brasileiro. Mas não se pode ter a ilusão de que isso será feito
com verbas fiscais, porque temos uma profunda crise fiscal. Isso só será feito se houver uma
integração com o setor privado, uma integração que permita o aporte vultoso de recursos do
setor privado, para que ele possa também se beneficiar, mais tarde desse mecanismo. Isso
não implica retraimento do setor público. Nós vamos expandir o que for necessário, mas
temos consciência de que o setor público sozinho não será capaz de enfrentar um desafio
desse tamanho. Por isso mesmo, neste conselho nós temos pessoas com larga experiência no
setor privado e que tiveram sempre interesse também nessa integração (discurso na
instalação do Conselho Nac. de Ciência e Tecnologia, Brasília, 17/08/1996. Cardoso, 2002,
p. 164-165 – itálicos nossos).

De modo um tanto curioso, ao final do referido discurso junto ao Conselho Nacional de


Ciência e Tecnologia, Fernando Henrique revela, de forma ambígua, tanto a importância que atribui ao
Conselho como sinaliza o grau de autonomia que provavelmente os experts do setor privado teriam na
condução das políticas em ciência e tecnologia para o país:

Só presido dois conselhos, este e o de política externa de defesa nacional; são os únicos
conselhos que o Presidente da República preside diretamente — o que mostra que,
realmente, há um interesse direto da Presidência da República na área de ciência e
tecnologia, e há um interesse direto, pessoal, meu, de tal maneira que, para mim é um
prazer poder participar dessas discussões. Mas os senhores compreenderão que a agenda
presidencial, mesmo nos sábados, é definida não pelos prazeres do Presidente, mas pelos
imperativos da rotina presidencial. (discurso na instalação do Conselho Nac. de Ciência e
Tecnologia, Brasília, 17/08/1996. Cardoso, 2002, p. 165 – itálicos nossos).

Por outro lado, a cruzada desestatizante assumida por seu governo, foi legitimada por
Fernando Henrique pelo argumento da quebra de monopólios — o que nos remete a uma das teses
mais presentes no ideário neoliberal em Hayek e Friedman, como forma de assegurar-se a suposta
“livre concorrência” —, seguido da promessa de que, em se desincumbindo das empresas estatais (pois
empresas são mais bem geridas por empresários) o Estado poderia ocupar-se, enfim, das questões
sociais:

Estamos desestatizando o setor produtivo através da quebra de monopólios [monopólios


estatais] e da privatização de importantes empresas. Estamos fortalecendo o Estado brasileiro
para que seja mais eficiente em suas atribuições básicas, especialmente na saúde, na
214

educação, na defesa nacional, na política externa. E estamos promovendo as reformas que


darão sustentação, no longo prazo, às transformações em curso. (discurso de saudação ao
chanceler alemão Helmut Kohl, Brasília, 17/09/1996. Cardoso, 2002, p. 299 – itálicos
nossos).

No discurso a seguir, Fernando Henrique explicita sua compreensão acerca das


transformações sociais ao final do século, numa referência à diferença entre os utopistas que no
“passado” defenderam a idéia de sociedades equânimes e a prevalência, no contexto contemporâneo,
da diferenciação social, por sua vez justificada e alicerçada na valorização das singularidades
individuais. Por decorrência, “nesse contexto muito variado de diferenças”, Fernando Henrique faz
abstração e omite as condições sociais em que estas diferenças são produzidas, recorrendo à
necessidade do respeito às diferenças como imperativo para vivermos em sociedade. Nesse sentido,
notamos aqui a forte presença do individualismo tal como defendido pelos ideólogos neoliberais, e que,
no discurso de Fernando Henrique, parece se prestar não só à dissimulação dos conflitos sociais através
do apelo ao “respeito democrático” e fraterno às diferenças, como reduz as diferenças sociais a
diferenças meramente individuais — valendo-se de recursos discursivos tão subjetivos quanto o
conceito de “singularidade”:

Nós estamos longe daquela situação em que os pensadores imaginavam que a sociedade de
massas ia ser uma sociedade de homogeneização. É o oposto: nós estamos vivendo numa
sociedade em que temos a diferenciação. Não é a fragmentação no sentido antigo da
dispersão, mas é a valorização das individualidades, das especificidades, das singularidades”
(discurso na solenidade de lançamento dos projetos estratégicos do Programa Brasileiro da
Qualidade e Produtividade – PBQP/1996-1998, Brasília, 17/09/1996. Cardoso, 2002, p. 291).

Na seqüência do referido discurso, Fernando Henrique, ainda se remetendo à questão das


diferenças e valores individuais, torna explícitas as relações entre esta concepção e as contingências de
mudanças nos processos produtivos atuais:

Nesse contexto muito variado de diferenças, se houve a capacidade da formação de um


tecido social poroso a permitir que essas individualidades se afirmem respeitando umas às
outras, nós andamos em conjunto. Se não houve isso, não andamos. É a democracia no
sentido moderno, contemporâneo, das novas estruturas, que têm a ver com o modo de
produzir. Ainda ontem, aqui, numa solenidade simples sobre a formação de uma fábrica no
Brasil e a produção de um motor62, era visível que a própria idéia de linha de produção
começa a desaparecer e a ser substituída pela idéia do operário inteligente, responsável, que
toma decisões e que não é mais, como eu disse ontem, uma peça chapliniana dos Tempos
Modernos. (discurso na solenidade de lançamento dos projetos estratégicos do Programa
Brasileiro da Qualidade e Produtividade – PBQP/1996-1998, Brasília, 17/09/1996. Cardoso,
2002, p. 291 – itálicos nossos).”

A evolução da noção inicial das “diferenças sociais” para a noção de “diferenças


individuais” se presta, portanto, à legitimação do conceito moderno de trabalhador, agora
correspondente a operário inteligente, responsável, que toma decisões e que “não é mais uma peça

62
Fernando Henrique refere-se à instalação da fábrica de motores da Volkswagen em São Carlos, SP.
215

chapliniana dos Tempos Modernos.” Enfim, uma vez que a crise estrutural da relação capital-trabalho
tem relações diretas com as buscas, pelo capital, de maximização da obtenção de mais-valia e
ampliação das taxas de lucros por quaisquer meios, e uma vez que os mercados financeiros se tornaram
sumamente hegemônicos na busca da lucratividade — ambos os fatores implicando em declínios em
investimentos produtivos e uma redução exponencial de postos de trabalho —, o discurso de Fernando
Henrique sinaliza e procura legitimar, a um só tempo, a redução dos postos de trabalho, apresentada
como decorrência da evolução tecnológica da produção e da conseqüente necessidade de trabalhadores
individualmente capazes de atuar de modo autônomo nas atividades produtivas (e também de serviços)
que agora se concentram cada vez mais em um reduzido número de trabalhadores. Esta retórica insinua
que o pretendido “novo trabalhador” deva ser singularmente adequado e flexível para assumir
atividades diversas simultaneamente, e de modo eficiente (inteligente e responsável). Logo, este
trabalhador multifuncional e cujo trabalho na verdade é hiperintensificado, é ideologicamente exaltado
como sinônimo de trabalhador altamente qualificado e diferenciado dos demais. Assim, o discurso de
Fernando Henrique já expressa a mudança radical na noção de qualificação que se consolida nos anos
de 1990. Uma vez que o discurso da qualificação profissional haja se revelado cada vez mais
inverossímil frente às mudanças nos processos de trabalho, o discurso individualista de FHC, prenuncia
a transmutação do conceito de qualificação profissional (tradicionalmente relacionada a certificações
profissionais) para o de competência (por sua vez, supostamente assentada nos conhecimentos e
habilidades tácitos dos trabalhadores).
Entretanto, mesmo que a aquisição da competência na verdade diga respeito a experiências
adquiridas sob circunstâncias imponderáveis, envolvendo aspectos subjetivos e singulares, é imperioso
fazer com que a sociedade creia que a competência possa ser adquirida e desenvolvida, o que
dependerá do empenho individual dos candidatos ao trabalho para a aquisição das habilidades e
competências que o mercado passou a exigir. Nesse sentido, caberá justamente à instituição do ensino,
em todos os seu níveis, a incumbência pela oportunidade de formar o novo indivíduo social de acordo
com as necessidades que o “novo mundo” mencionado por FHC, passou a exigir.
Parece-nos oportuno, portanto, que voltemos ao dia que antecedeu este pronunciamento de
Fernando Henrique, ou, mais especificamente, à ocasião de sua visita à moderníssima fábrica de
motores da Volkswagen, na cidade de São Carlos:

Há uma grande certeza no mundo: é que mudou o modo de produzir. Essa mudança no modo
de produzir — que implica valorização do trabalhador, numa espécie de reumanização do
trabalho na fábrica, e o fim do fordismo e do taylorismo — é essencial.” [...] “Quem não
entender que o modo de produzir, na ponta, pelo menos, já é outro, não entende o que está
acontecendo no mundo e vai ficar chorando, o tempo todo, pelos empregos do passado, sem
olhar os do futuro. Aqui, nós já estamos vendo o futuro. Esse futuro implica escolaridade.
Daí São Carlos, para fazer motores. Daí os 110 cursos. Daí o fato de existir, em São Carlos,
duas universidades.” [...] “O trabalhador, hoje, tem que assumir o controle. Não é a máquina
216

que o controla. Acabou o tempo do Charles Chaplin. Os Tempos Modernos já eram. Agora,
são os tempos contemporâneos, diferentes. E é um novo mundo. E esse novo mundo está
aqui, ao nosso alcance. Nós estamos construindo esse novo mundo. (discurso da cerimônia
de entrega do primeiro motor produzido pela unidade da Volkswagen, São Carlos, SP,
16/09/1996. Cardoso, 2002, p. 280).

Nesse mesmo ano, em 20/12/1996, foi sancionada a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, nº 9.394/96. Embora a nova LDBEN não explicite em seu texto os elementos aos
quais os discursos do referido presidente se remetem, foi a partir dela que a noção psicopedagógica das
habilidades e competências passou a figurar como princípio educativo formal da educação brasileira,
fosse nos principais documentos e pareceres sobre a educação profissional, nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (os PCN´s) e em grande parte das Diretrizes Curriculares para os cursos de
graduação, agora cooptados a se adaptarem aos paradigmas construtivistas e pragmatistas.

3.3. Conseqüências das políticas ultraliberais no Brasil: para além das palavras, dados.

Ainda que e em seus discursos Fernando Henrique Cardoso insistisse em negar qualquer
identificação com pressupostos de natureza neoliberais, o que observamos posteriormente, na prática, o
contradizem, comprometendo também os inúmeros dados favoráveis ao país nos quais este presidente
e seu governo sempre se apoiaram.
Em decorrência destas políticas, dominadas pela lógica do favorecimento dos mercados e
de diminuição do papel do Estado através de sua “reforma” ⎯ posições que durante o governo
Fernando Henrique Cardoso foram ardorosamente defendidas como sinônimo de eficiência e
modernização do Estado ⎯, temos por extensão também o pressuposto da auto-regulação dos
mecanismos de socialização e sobrevivência da própria sociedade civil, uma vez que ao Estado,
tradicionalmente com a atribuição de mantenedor da sociedade como um todo e promovedor de seu
bem-estar, caberia agora apenas o suposto papel de regulador das relações sociais e de garantidor das
liberdades de mercado. Ademais, essas são premissas fundamentais, apontadas pelos defensores do
processo de neoliberalização da economia mundial, como únicas alternativas político-econômicas e de
organização social para o atingimento de sociedades plenamente livres e harmoniosas (Hayek, 1990), o
que coincide com a premissa de uma inevitável e indiscutível “via única”, defendida por Fernando
Henrique e seus correligionários.
O tom de inexorabilidade do processo de reestruturação do capitalismo contemporâneo
refletiu-se nas constantes admoestações e ridicularizações de quaisquer posturas críticas ou de
contestação em relação à “realidade dos fatos”, expressão muito comum aos discursos daquele
presidente, e que sugeriam a inadequação daqueles que se propunham a questionar o modelo adotado.
Ainda na referida entrevista, Fernando Henrique faz a seguinte observação, que insinua essa
217

inevitabilidade também ao governo de Luís Inácio da Silva:

O que se está vendo no governo Lula também não é neoliberalismo. É apenas prova de que a
margem financeira de manobra no mundo atual é muito pequena para os governantes. Qual o
presidente que fica feliz em aumentar a taxa de juros? (Cardoso, 2003, idem).

Assim, para Fernando Henrique Cardoso os governos do mundo atual nada mais são que
epifenômenos de um processo de gestão mundializado, mas cujo controle, ditado pelo mercado
capitalista, está fora do alcance dos próprios governos. Entretanto, e curiosamente, como bem nos
lembra César Benjamin, são hoje os países que se colocaram na contramão das determinações
neoliberais dos organismos financeiros internacionais que mais cresceram na última década, mantendo-
se, ao menos, menos vulneráveis às chamadas “crises financeiras internacionais” (Benjamin, 2002).
Contrariamente, os países que mais fielmente seguiram as determinações foram sem
dúvida os mais prejudicados econômica e socialmente, cujo principal exemplo até recentemente foi a
vizinha Argentina, mas cujo malogro começou a ser revelado com a crise asiática. Segundo Forrester:

Um exemplo de uma tal evicção da verdadeira economia e desta ineficácia arrogante é o


triunfal “milagre asiático”, tão celebrado, tão exibido como prova indiscutível da
legitimidade do ultraliberalismo. E sua falência. A conversão brutal do “milagre” em fiasco
consternador [...]. Resultado: lucros vertiginosos em tempo recorde e, também em tempo
recorde, a ruína absoluta, a derrocada lastimável dessa apoteose asiática, modelo exemplar
do sonho liberal. Sobraram as megalópoles gigantescas, vazias e arrogantes, incongruentes
nesses lugares, além do agravamento da miséria das populações, enquanto os campeões
dessa epopéia — inaptos a controlar o desastre ou mesmo a compreendê-lo, indiferentes aos
povos sacrificados — inquietam-se apenas em remendar os cursos financeiros aos caprichos
inadministráveis. E em fugir ou comprar por uma pechincha os restos desses países
quebrados. (Forrester, 2001, p. 19-20).

No que se refere ao Brasil, contraditoriamente e apesar de o governo brasileiro em questão


atribuir-se supostas melhorias nos índices sociais (eminentemente quantitativos), o país não encontra
paralelos, em sua história contemporânea, em relação aos índices de alta concentração e má
distribuição de renda, empobrecimento, marginalização e violência sociais, fenômenos estes
estreitamente vinculados ao inigualável índice histórico de desemprego desencadeado no referido
período, e da deterioração dos serviços públicos de saúde, de educação, de assistência e seguridade
social, de habitação e da queda da renda salarial média (Lesbaupin et al., 1999, p. 7) . A título de
exemplo, Pochmann (1999) demonstra que os comprometimentos da produção com as políticas
recessivas e que privilegiaram o monetarismo, provocaram, somente no primeiro mandato de Fernando
Henrique Cardoso, um aumento em mais de 100% no número de desempregados no país no período
compreendido entre 1989 e 1996, tendo o número de trabalhadores com registro diminuído então em
8% e o número dos sem registro, aumentado em 3% ⎯ 11% de provável “informalização”, portanto.
As dívidas interna e externa do país atingiram cifras recordes, tendo esta última
praticamente duplicado em menos de dez anos, passando de 149 bilhões de dólares em dezembro de
218

1994 para 229 bilhões em fez de 1998 (Lesbaupin, idem), índices que o referido governo fez questão
de vincular exclusivamente às crises internacionais, das quais as piores vítimas teriam sido os países em
desenvolvimento. Ao mesmo tempo em que Cardoso afirmava, ainda em sua entrevista, o aumento
com os gastos sociais de 11 para 14% do PIB, não revela o dado de que de 1995 a 2001, seu governo
conseguiu reduzir o referido Produto Interno Bruto de 705,6 para 504,8 bilhões de dólares — uma
variação negativa de 39,8%, que se contraposta aos 27% a que faz referência como “aumento com os
gastos sociais” relativamente ao PIB, na realidade revelam queda, e não elevação de tais investimentos
(Lesbaupin & Mineiro, 2002, p. 12). Assim, a dependência aos capitais internacionais e a política de
altos juros resultou num processo de recessão nunca antes visto, com o país crescendo em médias
anuais abaixo dos níveis mundiais, e saltando do 8º posto na economia mundial, para o 10º, no mesmo
período. Entretanto, este mesmo governo em momento algum menciona que, coincidentemente, os
países mais fragilizados e vitimados por tais crises foram justamente aqueles mais abertos à
dependência do capital estrangeiro e que abraçaram, prodigamente, o paradigma do monetarismo
financeiro, caso explícito do Brasil.
Em termos das conseqüências sociais de tais políticas econômicas, o Brasil passa a
assumir os piores postos em relação ao restante do mundo, segundo levantamentos e estudos da própria
ONU, OEA e FMI, em termos de distribuição de renda e qualidade de vida. Segundo Silva Jr. (2002, p.
205) “o absurdo das diferenças sociais tem se transformado em números nada apreciáveis: cerca de um
terço dos brasileiros vive na carência absoluta, enquanto os mais ricos (1% da população) são donos de
parte maior do que sobra para os 50% mais pobres”.
Mas, no aspecto que aqui mais nos interessa, ou seja, das implicações de tais ideários e
ações sobre a educação brasileira, pudemos constatar que apesar dos ótimos índices apontados pelo
ministro Paulo Renato Souza de atendimento da população entre 7 e 14 anos no ensino fundamental ⎯
que teria passado de 80,9% em 1980 para 96,4% em 2000, cobertura esta, segundo o INEP, “muito
próxima a de países desenvolvidos” (INEP, 2002, p. 64) ⎯, que em contrapartida a porcentagem nos
índices de conclusão do mesmo ensino fundamental não ultrapassou os 41% no ano 2000 (cf. INEP,
2002, p. 101). Isto revela um processo de decréscimo do sucesso escolar no ensino fundamental, já que
em 1995, do total de ingressantes, 51,8% concluíram as mesmas oito séries (op. cit, idem). O que há
com os índices oficiais?
Do mesmo modo, segundo o referido relatório de Eficiência e Rendimento Escolar do
INEP:

[...] se vencer o ensino fundamental e médio, separadamente, demonstra ser difícil, o


caminho da primeira série do fundamental à terceira série do médio é ainda mais árduo. Do
total de alunos que entram no nível educacional obrigatório, 40,3% concluem o ensino
médio, precisando para isso, em média, 13,9 anos. (INEP, 2002, p. 101)
219

Lembremos que o governo brasileiro, à época, recebeu menções da própria UNESCO,


tendo em vista os progressos que os indicadores para a educação anunciados pelo então ministro da
educação refletiam. Nesse aspecto, o Brasil estaria em uma situação singular dentre os países em
desenvolvimento signatários da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, e, em tempo recorde,
já no início do novo milênio, muito próximo das metas de escolarização ali mencionadas, que se
consubstanciou no Brasil sob a forma do Plano Decenal de Educação para Todos (lançado em maio de
1994, e objetivado para o decênio 1996-2006).
Estes dados, ainda muito sintéticos, apenas se prestam a uma ilustração da real dimensão
das conseqüências de tais políticas sobre o Brasil e a educação ⎯ ainda que o ex-presidente negue tais
dados, ou os alie a crises internacionais, e os organismos internacionais representativos dos países que
tanto favoreceu no processo de abertura do Brasil ao capital estrangeiro o premiem, com muitas honras,
por seus serviços prestados à causa da democracia (abertura máxima de mercado) e realizações sociais
(assistencialismo superficial e populista).

4. DESDOBRAMENTOS E IMPLICAÇÕES DO IDEÁRIO NEOLIBERAL:


APONTAMENTOS PARA O GOVERNO DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Nossa tese é contemporânea tanto do final da chamada “Era FHC” quanto da


chegada ao poder do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) através da eleição de Luiz
Inácio Lula da Silva. Como cidadão comum ou como pesquisador, contamos com o privilégio de
acompanhar tanto a ascensão e queda do Governo de Fernando Henrique Cardoso quanto a
ascensão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, do ano de 2002 até sete meses das novas
eleições para deputados federais, senadores e suplentes, presidente e vice-presidente da
República, governadores, vice-governadores e deputados estaduais, previstas para outubro de
2006.
No entanto, embora seja possível uma avaliação a posteriori do governo de FHC, não
podemos dizer o mesmo em relação ao presente governo, ainda que este esteja no final do
primeiro mandato (sem desconsiderarmos a possibilidade de que possa conquistar um segundo)
cujas ações e discursos parecem marcados por incoerências e contradições muito claras por um
lado, como também hiperdimensionadas pela grande mídia por outro. Estes fatores tornam as
análises presentes evidenciadoras de conflitos os mais variados, seja em termos internos ao
Partido dos Trabalhadores que indicaram, até presentemente, uma tendência ao conflito e
dissolução de muitas de suas principais bases políticas, sobretudo dos quadros militantes do
próprio partido.
220

O governo Lula e o PT passam, desde há cerca de um ano e meio, por uma onda de
denúncias relacionadas a prováveis recursos financeiros levantados de forma ilícita para suas
campanhas eleitorais, sobretudo para a Presidência da República. Além disso, as denúncias
chegam também à compra de votos de congressistas pelo governo, de modo a garantir-se a
aprovação de projetos e medidas governistas. Não dispomos de espaço e nem cabe em nossos
objetivos realizar aqui uma avaliação do governo em questão, mas julgamos possível ao menos
apontar algumas de suas principais problemáticas e tendências dentro do contexto ultraliberal das
duas últimas décadas no âmbito do país.
Ricardo Antunes, em abril de 2004, fazia a seguinte retrospectiva da trajetória do PT
até sua chegada ao poder no país:

O PT parece, finalmente, completar seu ciclo e chegar à maioridade política: nascido no seio
das lutas sociais, sindicais e da esquerda do final dos anos de 1970, o jovem partido surgia,
então, sob o signo da recusa, tanto do “socialismo real” quanto da social-democracia, sem
migrar para o capitalismo. Sua força e vitalidade decorriam do forte vínculo com os
movimentos e as forças sociais do trabalho. A década de 1980, que tantos consideram “a
década perdida”, para o mundo do trabalho foi um período de criação e avanço. Bastaria
lembrar que ali floresceram, além do PT, da CUT e do MST, uma pletora de movimentos
sociais e sindicais, dos campos e das cidades, que irrompiam pela base, questionando nossa
trajetória quase prussiana, autocrática, cujos estratos “de cima” expressavam um universo
burguês ao mesmo tempo agressivo e medroso, elitista e insensível. (Antunes, 2004, p. 164 –
itálicos no original).

Quanto à década de 1990 acrescentava:

Nos anos de 1990, a década da desertificação neoliberal em nosso país, uma tormenta
abateu-se sobre o nosso mundo do trabalho e em seus núcleos orgânicos. Tivemos
privatização acelerada, informalidade descompensada, desindustrialização avançada e
financeirização desmesurada. (...) Se Collor foi um bonapartista aventureiro, fonte
inesgotável de irracionalidade, com FHC e sua racionalidade acentuada o país descarrilou
nos trilhos (sic!) do social-liberalismo, eufemismo designado aos socialistas e social-
democratas que praticam o neoliberalismo. (Antunes, 2004, p. 164-165 – itálicos nossos).

Segundo o autor, o PT teria atravessado esta situação tempestuosa oscilando entre a


resistência ao desmonte e a assunção da moderação. Simultaneamente ao fato de manter-se em
luta contra as receitas e práticas neoliberais, o partido tornava-se pouco a pouco
pragmaticamente sujeito aos calendários e pesquisas eleitorais. Segundo Antunes:

De partido de esquerda contra a ordem foi, pouco a pouco, metamorfosendo-se em partido


dentro da ordem. As sucessivas derrotas eleitorais de 1994 e 1998 intensificaram seu
transformismo, enquanto o país também se modificava. No apogeu da fase da mundialização
e da financeirização do capital-dinheiro, do avanço tecnocientífico, da propriedade
intelectual, do mundo digital e quase espectral, onde o tempo e espaço se convulsionam, o
Brasil vivenciava também uma desmesurada mutação do trabalho, alterava sua polissemia,
da qual a fragmentação, individualização, informalidade, precarização e o desemprego são
expressões. Ingressamos, então, na triste simbiose resultante da era da informalização em
plena época da informatização. (Antunes, 2004, p. 165 – itálicos no original).
221

Antunes apresenta uma conclusão que consideramos importante para a compreensão


da trajetória do Partido dos Trabalhadores até tornar-se governo:

Quando, finalmente, Lula venceu as eleições em 2002, o país estava de cabeça para baixo.
Ao contrário da potência criadora das lutas sociais da década de 1980, o cenário era de
estancamento das forças sociais do trabalho, embaralhadas em meio a tanta desertificação
social. A eleição que levou Lula ao poder foi, por isso, uma vitória política tardia. Nem o PT,
nem o país eram mais os mesmos. O segundo estava desertificado enquanto o primeiro havia
se desvertebrado. (Antunes, 2004, p. 165 – itálicos nossos).

Como dizíamos, embora este nosso estudo obrigatoriamente nos remetesse a uma
análise também do governo em questão (a exemplo do governo anterior em que focamos nossa
tese em termos políticos, econômicos e sociológicos — mesmo porque, a abordagem científica e
filosófica que adotamos não permitiria que fosse de outra forma), encontramos algumas
dificuldades que não nos permitem estabelecer uma avaliação cientificamente consistente em
relação ao presente governo. Enumeramos a seguir alguns dos principais aspectos políticos
relacionados ao governo petista que necessariamente deveriam ser investigados:
a) Estabelecimento de uma análise das divergências entre os dois governos, o que extrapola o
espaço e os objetivos deste estudo;
b) O mesmo raciocínio se presta quanto a necessidade de buscarmos identificar paralelos entre
os dois governos, o que, uma vez mais, se o procurássemos realizar extrapolaríamos o espaço
e objetivos desse estudo;
c) As análises disponíveis são, sobretudo, de natureza político-partidária e sublinham um
possível continuísmo entre as políticas do presente governo em relação ao anterior. A grande
diferença entre ambos estaria na natureza ideológica dos discursos, isto é, enquanto FHC e
seu quadro mantinham um discurso implícita ou mesmo explicitamente alinhado com o
consenso de Washington e os programas de “ajustes” neoliberais, o governo Lula e seu
quadro mantêm um discurso que enfatiza ações “sociais” e confrontam ou desconsideram as
principais diretrizes ultraliberais;
d) Contudo, aparece como fato inegável que o atual governo venha mantendo uma política tanto
parlamentar, como econômica e social muito próxima ao do governo anterior, o que nos
conduz à formulação de uma equação do tipo “discursos diferentes, ações coincidentes”.
e) As coincidências entre ambos os governos e suas diferenças, entretanto, sugerem diversas
interpretações, que vão desde a constatação de que o governo Lula haja cedido,
decisivamente, às imposições do mercado ou às vantagens de procedimentos ilícitos e mesmo
corruptíveis, até a possibilidade de que seu governo, em nome da “governabilidade” e de
uma possível reeleição, haja até aqui mantido concessões e evitado confrontos com os
interesses do grande capital nacional e internacional.
222

f) Desse modo, e independentemente dos motivos concretos para tanto, o presente governo
manteve e ampliou inúmeros programas ditos “sociais” (bolsa-escola, bolsa-família,
programa de alfabetização solidária etc.) que mais indicam continuidade que rompimento
com as políticas precedentes;
g) As chamadas reformas realizadas ou na agenda de realizações do atual governo (Reformas da
Previdência, Reforma Tributária, Reforma Universitária e a recente proposta de Reforma
Sindical e Trabalhista, principalmente) receberam inúmeras críticas dos setores populares
organizados como também dos setores empresariais. No que se refere à educação, os
propósitos de reformas ou adequações se mostram muito próximos aos que já era praticados
pelo governo anterior, isto é, a prioridade dos fatores quantitativos em detrimento dos fatores
qualitativos do ensino no país.
Em relação à Reforma Sindical e Trabalhista, segundo Oswaldo Coggiola:

As reformas sindical e trabalhista têm sido apresentadas como necessidade para gerar
empregos. Os setores empresariais que mais se beneficiariam seriam os pequenos
empresários, que são os que têm maiores dificuldades para arcar com os custos supostamente
elevados dos encargos sociais e indenizações. Mas as dificuldades enfrentadas pelos
pequenos negócios são resultado, não dos direitos trabalhistas, mas das condições de
mercado impostas pelos grandes monopólios, que são os segmentos que demandam tais
reformas. Construiu-se uma ideologia pela qual os direitos trabalhistas seriam contrários aos
próprios interesses dos trabalhadores: a defesa de direitos trabalhistas seria contaria aos
próprios trabalhadores. A introdução da prevalência do negociado sobre o legislado na
reforma sindical pode ser uma antecipação da reforma trabalhista. Lula ressaltou que
pretende manter o diálogo com o setor industrial, e assegurou que dará o primeiro passo na
mudança das relações trabalhistas com a reforma sindical. (Coggiola, 2006, s/p)

No que se refere ainda à Educação Formal, objeto central de nosso estudo, aspecto
que chama a atenção é o fato de o atual governo não haver confrontado e mesmo questionado
inúmeras medidas do Governo FHC em relação à educação, limitando-se a apresentar projetos de
aprimoramento dos mecanismos de avaliação e financiamento existentes, sem que isso
representasse mudanças significativas aos processos pedagógicos de aprendizagem. A questão
quantitativa tornou-se de tal modo prioritária que fez com que o primeiro Ministro da Educação,
o educador Cristóvam Buarque, fosse substituído por Tarso Genro, por sua vez considerado um
hábil administrador.
Entretanto, trata-se de questões sobre as quais não podemos nos debruçar nesse
estudo. Uma possível constatação, contudo, é possível, qual seja, a de que os imperativos do
mercado mundial são de fato tão poderosos a ponto de determinar a conduta de governos por
todo o globo, seja de forma ativa e identificada, seja de forma passiva e dissimulada, ao gosto da
conivência servil ou ao contragosto de quem pretendia confrontar o mercado e os ideários
dominantes.
223

De um modo ou de outro, importa ressaltar que, no auge do capitalismo financeiro e


especulativo, nenhum governo que se lhe pretenda opor passará desapercebido ou ileso. Isso
pode ser constatado em relação às vitórias eleitorais, na América Latina, de forças políticas em
geral de esquerda ou de “centro-esquerda”. Esta tendência se revela uma resposta significativa
dos povos latinos às ações neoliberais dos governos precedentes. Mas ter forças antagônicas ao
capital no poder não implicada em poder interferir em suas ações e muito menos controlá-lo. Em
grande medida isto implica em correr riscos que ultrapassam variações monetárias e retirada
maciça de capitais de um país. Implica em enfrentar-se também a propaganda e as ações
ideológicas dos grupos dominantes (não raro, acompanhadas de intimidações e mesmo de ações
beligerantes). Nesse sentido, o caso da ascensão de Hugo Chavez na Venezuela e as
interferências antidemocráticas e ilegítimas da mídia e das elites venezuelanas em seu governo já
se tornaram emblemáticas.63
O fato é que esse momento do capitalismo internacional e de seus principais
representantes (sobretudo os EUA e demais componentes do G-7, além das agências
denominadas “multilaterais” como Banco Mundial, ONU, FMI, BIRD, BID, OIT, OCDE, OEA,
UNESCO etc.)64 não impede também incursões e intervenções inclusive armadas junto aos países
que se revelem como ameaças à hegemonia burguesa ou possíveis mananciais para ganhos de
capital. Ou, também, como se tornou jargão do governo de George Walker Bush, aos que
estejam compondo o “eixo do mal” sobre o globo.

63
Remetemos o leitor ao documentário “La revolución no será transmitida”, disponível em formato .mpg na Internet
e que pode ser baixado gratuitamente por programas P2P.
64
Respectivamente: G-7: Grupo dos 7 países mais ricos; ONU: Organização das Nações Unidadas; FMI: Fundo
Monetário Internacional; BIRD: Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento; BID: Banco
Interamericano de Desenvolvimento; OIT: Organização Internacional do Trabalho; OCDE: Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico; OEA: Organização dos Estados Americanos; UNESCO: Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
224

CAPÍTULO IV

Refutação do discurso ultraliberal da competência

O neoliberalismo repete a história como farsa porque reedita a velha


tragédia neoconservadora do mercado selvagem como lei humano-social
fundamental.
Galdêncio Frigotto65

Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz é o
próprio homem.
Karl Marx, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel

Neste último capítulo nos propomos a apresentar o que se constitui no cerne de nossa
tese, ou seja, o objetivo de desvelar o discurso ultraliberal da competência para o trabalho e a
educação. Para tanto, dividimos o capítulo em duas partes essenciais.
Na primeira, discorremos sobre o método aqui adotado, rejeitando, todavia,
procedimentos meramente descritivos sobre o mesmo. Sob nosso entendimento, o materialismo
histórico-dialético traz consigo implicações que estão para além de um simples conjunto de
procedimentos e técnicas científicas. Possivelmente, a 11ª tese de Karl Marx e Friedrich Engels
sobre Feuerbach sintetize apropriadamente em que este método se diferencia dos demais, isto é,
ele não se presta apenas a interpretações acerca dos fenômenos investigados, mas a uma análise
radical dos mesmos, com vistas à compreensão e transformação concretas da realidade humana
ou, dito de modo mais simples, a contribuir para com seu processo de humanização. Apreende-
se, daí, que suas conseqüências impliquem em uma postura radical e dinâmica em termos
históricos, epistemológicos, éticos, axiológicos, sócio-políticos, econômicos etc.
Na segunda parte adentramos em nossa questão temática e seu problema,
propriamente ditos, em que procedemos a uma análise comparativa entre os processos, discursos
e conseqüências evidenciados no capítulo II, e os processos, discursos e conseqüências do
renascimento ultraliberal contemporâneo, descritos no Capítulo III. Esta análise será permeada
por considerações sobre a sustentação ou não de nossa hipótese acerca da validade da observação
de K. Marx, contida em O 18 brumário de Louis Bonaparte, sobre a repetição ou reedição de
acontecimentos históricos, como apenas possíveis na forma de farsa. Portanto, analisaremos

65
Frigotto. “Prefácio”. In: Bianchetti, R.B, Modelo Neoliberal e Políticas Educacionais. Campinas:
Autores Associados, 1996, p. 15.
225

neste tópico a possibilidade de que: 1º) Estejamos diante de um momento histórico que reedita
elementos do passado, atualizando-os discursivamente para o presente; 2º) Que apesar de
reeditados e atualizados, estes elementos ideológicos não encontram sustentação na realidade
concreta do capitalismo contemporâneo, a exemplo do capitalismo da consolidação da sociedade
industrial da transição entre os séculos XIX e XX; pelo contrário, os elementos discursivos atuais
dissimulam a crise estrutural do capitalismo em sua transição para o século XXI; 3º) Em assim
sendo, que nós estaríamos diante de uma situação de contradição e dissimulação da realidade
concreta que nos habilita a tomar, nos termos marxianos, os fenômenos atuais como um resgate
de elementos do passado sob a forma de uma indubitável farsa histórica.
Para tanto, tomamos como ponto de referência inicial algumas análises sobre
elementos próprios ao capitalismo em seu momento atual e no momento da consolidação do
capitalismo industrial (e financeiro) de fins do século XIX (Dumenil & Lévy, 2003; Gramsci,
2001; Chesnais, 2003), de modo a caracterizarmos também os diferenciais da crise estrutural
contemporânea, seus principais aspectos político-econômicos e ideológicos.
Em seguida, pautando-nos nas contribuições da psicologia russa e da pedagogia
histórico-crítica, explicitamos uma concepção pedagógica que desvela e supera a concepção
liberal de educação.

1. O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO COMO ABORDAGEM METODO-


LÓGICA.

Consideramos essencial, antes de prosseguirmos com a quarta e última parte de


nosso estudo, apresentarmos aqui alguns dos aspectos fundamentais de nossa abordagem
metodológica, assim como algumas das principais categorias analíticas que, em nosso
entendimento, têm caracterizado o processo até aqui historicamente dominante do modo de
produção capitalista, em especial, a partir do século XIX.
A questão do método denominado materialismo histórico-dialético é por demais
atípica quando comparada aos demais princípios epistemológicos em ciências. Essa
diferenciação quanto às demais correntes do pensamento científico e filosófico não implica,
primeiramente, em condição de algum modo “privilegiada” em relação às mesmas na
investigação dos fenômenos humanos, mas, antes, incomodamente errática e perturbadora dos
pressupostos daquelas. Trata-se de um método historicizador sem, contudo, se submeter à
história tal como registrada e narrada. Trata-se de um método materialista sem, contudo, se
submeter à materialidade dos mecanismos apenas naturais que nos envolvem. Trata-se de um
método dialético sem, contudo, se submeter a um relativismo subjetivista dos fenômenos que
apura.
226

As características aqui mencionadas sobre este método nem sempre são facilmente
apreensíveis e geralmente têm por conseqüência dissensões pouco observadas em outros
métodos ou sistemas em ciências humanas. Caso comparável, talvez, ao método psicanalítico e
suas inúmeras vertentes e nuances, mas que nem por isso tornam a psicanálise uma abordagem
que se possa identificar ou complementar ao materialismo histórico, mas sim, uma vertente que
tem sido digna de mais críticas por parte deste último, seja por se pretender materialista sendo
idealista, seja por se pretender historicizadora, mas no âmbito estrito de individualidades apenas
particulares; seja ainda por relativizar tais vivências particulares em relação a concretude
multiplamente determinada de seus dramas existenciais, abstraídos de suas concreticidades sem,
contudo, considerar dialeticamente de que modo aspectos humano-sociais concretos intervêm na
existência singular concreta de indivíduos, grupos e sociedades concretos.
Mas o que entender por concretude e o que entender por abstração, enquanto esferas
dialeticamente intercambiantes para a compreensão científica da realidade, desde o ponto-de-
vista do materialismo histórico-dialético? Ora, a abstração é o meio pelo qual torna-se possível
desconstruir a esfera dos fenômenos humanos e naturais para, então, após ultrapassarmos seu
invólucro mais imediato, após historicizá-lo em suas determinações sócio-culturais, reconstruí-lo
segundo seus atributos e determinantes acessados pela mediação conceitual do intelecto. Daí, e
necessariamente, retomarmos o objeto de nossas investigações (fenômeno, acontecimento, fato,
experiência, documento etc.) após o que Kosik (1995) denominou détour, ou o que podemos
entender por desvio através de um caminho que muito exigirá do investigador em termos da
reconstituição posterior da materialidade do fenômeno investigado (ou, sua concretude), sua
historicidade (ou os seus determinantes espaço-temporais) e as relações ou complementaridades
entre as diversas dimensões dos fenômenos investigados e que lhe determinam a existência,
natural e/ou humana.
É, portanto, por esse processo mediado que rompe com a relação unilateral de uma
pesquisa meramente empírica (ainda que rigorosa), pela qual os atributos do objeto em estudo
lhes seriam essenciais; ou que rompe também com uma relação “relativista” de uma pesquisa
fenomenológica (ainda que rigorosa), pela qual a posição e considerações do sujeito-pesquisador
lhes seriam também mais determinantes aos resultados de suas buscas. Optamos aqui por uma
posição multilateral, pois que nosso objeto é resultado tanto de múltiplas determinações quanto
serão as múltiplas relações possíveis do sujeito-pesquisador para com seu objeto de estudos, e
vice-versa. Essa posição epistemológica de modo algum se apresenta, presunçosamente, como
suficiente para legitimar qualquer entendimento do referido pesquisador em relação a seu objeto
de estudos como científica. Isso porque o materialismo histórico e dialético não pode aceitar, por
227

princípio, que as apreensões que se faça de um determinado fenômeno estudado (e falamos de


fenômenos ou processos humanos) possam ser catalogadas como verdades cientificamente
irrefutáveis. Isto porque o próprio método, enquanto visando a concretude dos processos que
investiga, nega qualquer parcialidade na busca científica da verdade (daí, inclusive, preferir-se
concreticidade dos processos investigados ao termo verdade objetiva do que se investiga, nos
termos do método positivista). Tampouco nega a possibilidade de aproximação efetiva da
veracidade do que investiga sem, contudo, relativisá-la como exclusivamente dependente da
posição subjetiva do observador (logo, que não exista uma única verdade e sim, tantas verdades
quanto o número de observadores envolvidos com o fenômeno). Entendida como processo
multiplamente determinado, dinâmico, velado ou explícito, a verdade é possível de ser
apreendida por inúmeras aproximações e desvelamentos. A conjugação de tais procedimentos, de
desconstrução dinâmica e abstrata do fenômeno estudado e sua reconstrução também dinâmica
posterior, são o cerne do método que aqui adotamos.

1.1. A apreensão prático-sensível da realidade ou “imediaticidade versus concreticidade”

Karl Marx, em Para a Crítica da Economia Política ([1859] 1987b, p. 16-23),


explicita, ainda que em linhas gerais, o que considera ser “o método cientificamente exato” para
proceder-se a uma análise radical da realidade econômica capitalista de sua época. E apresenta,
para tanto, o seguinte raciocínio:

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso.


Por isso o concreto aparece ao pensamento como o processo da síntese, como resultado, não
como ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da
representação. No primeiro método” [referindo-se ao método clássico e “positivo” da
Economia Política] “a representação plena volatiliza-se em determinações abstratas, no
segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do
pensamento. Por isso é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do
pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto
que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto, para reproduzi-lo como
concreto pensado. Mas este não é de modo algum o processo da gênese do próprio concreto.
(Marx, 1987b, p. 16).

Karel Kosik, cujas reflexões em sua Dialética do Concreto, contribuem, ao nosso ver,
para que nos aprofundemos no método materialista histórico-dialético, inicia suas considerações
a partir exatamente da noção de concretude a que Marx faz referência acima. E abre suas
considerações anunciando que:

A dialética trata da “coisa em si”66. Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente ao

66
Nota: a expressão “coisa em si” utilizada por Kosik, não deve ser confundida com o emprego, neste trabalho, da
expressão “em-si” (hifenizada). Enquanto para aquele autor a expressão é empregada como sinônimo de essência ou
concretude do fenômeno considerado, adotamos aqui a expressão “em-si” no sentido marxiano utilizado por HELLER
228

homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas
também um détour. Por este motivo o pensamento dialético distingue entre representação e
conceito da coisa, com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de
conhecimento da realidade, mas especialmente e, sobretudo, duas qualidades da práxis
humana. (Kosik, 1995, p. 13).

Segundo Kosik, o homem não age, diante da realidade, como um sujeito


necessariamente cognoscente, isto é, uma mente pensante que examina a realidade
especulativamente, ou, por outros termos, de modo continuamente reflexivo, crítico ou
intencional. A atitude primária ou imediata do homem em face da realidade, nos diz ele, é a de
um ser que age “objetiva e praticamente” ao lidar com a natureza e com os outros homens, “com
vista à consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações
sociais.” (KOSIK, 1995, p. 13).
Para Kosik, portanto, a realidade apresenta-se, para o homem:

...como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento
surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato prático-utilitário com as coisas —
em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e
esforços para satisfazer a estas — o indivíduo “em situação” cria suas próprias
representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o
aspecto fenomênico da realidade. (Kosik, 1995, p. 13)

Contudo, assevera que “...´a existência real` e as formas fenomênicas da realidade —


que se reproduzem imediatamente na mente daqueles que realizam uma determinada práxis
histórica, como conjunto de representações ou categorias do ´pensamento comum` [...], são
diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura
da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essencial e o seu conceito correspondente”.
(Kosik, 1995, p. 13).
Por esse motivo, a prática-utilitária imediata e o senso comum a que corresponde,
possibilitam ao homem orientar-se no mundo, familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas
não proporcionam, a este mesmo homem, compreender a essência ou a concreticidade das coisas
e da realidade com as quais lida cotidianamente. Para Kosik, este caráter da relação cotidiana e
espontânea entre homens e fenômenos, a atmosfera comum da vida humana, sua regularidade,
imediatismo e evidência, assume, para os indivíduos, “um aspecto independente e natural”,
constituindo, por fim, o que denominou “mundo da pseudoconcreticidade” (Kosik, 1995, p. 14) .
O mundo da pseudoconcreticidade tem, como característica própria, o duplo sentido,
em que simultaneamente o fenômeno indica e oculta a essência da realidade a que corresponde.
E assim é pelo fato de a essência manifestar-se de modo inadequado, parcial, ou apenas sob

(1994), corresponde à apreensão imediata ou relação irrefletida para com um fenômeno (grosso modo, o equivalente
a sua “aparência”) por oposição ao termo “para-si”, que no sentido adotado por Karl Marx indica relação refletida,
mediatizada para com o fenômeno considerado.
229

certos ângulos e aspectos, no fenômeno; o que não quer dizer que o mundo fenomênico,
entretanto, constitua algo “independente e absoluto”, da mesma forma que a essência não
constitui, também ela, uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno: o
problema diz respeito, antes, a como nós, enquanto sujeitos, apreendemos as manifestações da
realidade, ou seja, geralmente de modo parcial. Captar o fenômeno de determinada coisa
significa, para Kosik, indagar e descrever como a coisa em si se manifesta em tal fenômeno; e,
logo, compreender o fenômeno é atingir a essência (Kosik, 1995, p.15-16).
Quando falamos em pseudoconcreticidade, devemos ter em conta que, nela, o
aspecto fenomênico é tomado enquanto a própria essência, desaparecendo, portanto, a diferença
existente entre esta e o fenômeno. Atingir o conceito da coisa implica em compreender a coisa e
esta compreensão significa, por sua vez, conhecer-lhe a estrutura, o que só se torna possível pela
decomposição da mesma. A constatação de que a essência não se manifesta diretamente e que o
fundamento oculto das coisas deve ser descoberto remete-nos, por fim, à atividade e objetivos
que são peculiares à ciência e à filosofia. Cumpre, de modo fundamental à filosofia, segundo
Kosik, o papel histórico de descoberta da estrutura da coisa e a coisa em si.
No que se refere à concepção dialética da realidade concreta, portanto, segundo o
autor esta pode ser entendida como “método que decompõe o todo para poder reproduzir
espiritualmente a estrutura da coisa e, portanto, compreender a coisa.” (Kosik, 1995, p. 19). O
papel da dialética é, por conseguinte, o de um pensamento crítico que se propõe a compreender a
“coisa em si”, questionando-se sistematicamente sobre como é possível chegar à compreensão da
realidade. Essa compreensão não tem, contudo, um caráter contemplativo, implicando, antes,
numa posição de método revolucionário de transformação da realidade, pois que, “para que o
mundo possa ser explicado ´criticamente`, cumpre que a explicação mesma se coloque no
terreno da ´práxis` revolucionária” (Kosik, 1995, p. 22). E acrescenta:

[...] a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que
nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é
produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em
que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo
revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última
realidade. (Kosik, 1995, p. 22-23)

O mundo real, em outros termos, embora oculto pela pseudoconcreticidade, é o


mundo da práxis humana. Compreender a realidade é compreender a realidade humano-social
como “unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura”. O mundo da
realidade não é “uma variante secularizada do paraíso”, mas sim, “um processo no curso do qual
a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade, operam a própria humanização do
homem.” (Kosik, 1995, P. 23). E conclui este autor:
230

Não podemos, por conseguinte, considerar a destruição da pseudoconcreticidade como o


rompimento de um biombo e o descobrimento de uma realidade que por trás dele se
escondia, pronta e acabada, existindo independentemente da atividade do homem. A
pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos do homem e a
redução do homem ao nível da práxis utilitária. (Kosik, 1995, p. 24).

Estas reflexões nos remetem, portanto, às relações que o homem mantém com suas
próprias objetivações ou, em outros termos, com os resultados das atividades humano-sociais
pelas quais transforma a realidade. O nível de consciência que o homem logre alcançar sobre a
relação existente entre sua práxis e o mundo que se lhe apresenta, pode significar para o mesmo
tanto o desvelamento do núcleo essencial da realidade quanto a subsunção de si próprio à
pseudoconcreticidade. O fenômeno da alienação, ou o fato de o homem não se ver presente nos
resultados de sua atividade objetivadora, de sua práxis, surge-nos como conceito estreitamente
vinculado à relação existente entre senso comum e pseudoconcreticidade, tal qual expostos. É
deste fenômeno não menos humano, a alienação, que passamos a nos ocupar agora.

1.2. Do desenvolvimento da consciência humana à alienação e reificação

Como vimos, a relação entre o homem e a realidade objetiva que se lhe apresenta à
consciência, não implica, necessariamente, uma relação crítico-reflexiva deste para com os
fenômenos que o envolvem. Este fato é de particular interesse no que diz respeito à relação do
homem para com a esfera de suas objetivações genéricas (esfera dos produtos historicamente
elaborados pela humanidade). Ora, por mais estranho que pareça, tem sido regra, sobretudo no
interior das relações de produção capitalistas (as mais recentes e avançadas da história da
humanidade até o presente), que o homem não se reconheça presente em suas próprias
produções.
Parece-nos fundamental, para que nos façamos entender sobre o que designamos
aqui por consciência, uma incursão pelas propriedades e características dos processos
psicológicos presentes à relação do homem com a própria realidade. Segundo Leontiev, “reflexo
consciente” é o reflexo da realidade concreta destacada das relações existentes entre esta e o
sujeito, ou seja, “um reflexo que distingue as propriedades objetivas e estáveis da realidade.”
(Leontiev, 1978, p. 69). Em outras palavras, isso quer dizer que a imagem da realidade não se
confunde, na consciência, com a experiência vivida pelo sujeito. Ao distinguir a realidade
objetiva de seu reflexo, tornou-se possível, à consciência humana, distinguir, também, o mundo
das impressões interiores e, por decorrência, observar a si mesma.
Mas como o reflexo consciente tornou-se possível? Leontiev remonta à própria
história do desenvolvimento dos hominídeos para encontrar as condições que possibilitaram seu
231

aparecimento, advertindo que, ao referir-se à história de seu desenvolvimento, não a toma numa
perspectiva estritamente naturalista, e sim, numa concepção sócio-histórica (necessariamente
materialista, mas para além disso, social, histórica e dialética). Portanto, longe de ser um joguete
de forças da natureza (ambiental-adaptativas, genéticas etc.), o homem é simultaneamente
resultante e agente de suas relações ativas com a natureza e consigo próprio.
Os estudos antropomórficos sócio-historicistas indicam com segurança uma estreita
relação entre o processo de hominização — aqui entendido como conjunto de condições
antropomórficas da espécie que possibilitaram o estabelecimento do gênero humano —, do qual
decorre a consciência reflexiva, e o advento do trabalho. Em A ideologia alemã, Marx e Engels
referem-se do seguinte modo a esta condição peculiar dos seres humanos:

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo o que
se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a
produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal.
Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida
material (Marx & Engels, 1989, p.27).

O trabalho é, por conseguinte, um conceito fundamental para a compreensão da


própria gênese da consciência humana pela perspectiva que aqui adotamos. Marx, em O capital,
caracteriza o trabalho da seguinte forma:

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o


homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as
forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de
apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua vida. Ao atuar, por meio desse
movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo,
sua própria natureza (Marx, 1988, p. 182).

Ao referir-se ao fato de o homem pôr em movimento as forças naturais de sua


corporalidade e que, por meio deste movimento, ao modificar a “Natureza”, o homem modifica e
cria também sua “natureza própria”, Marx nos chama a atenção para a relação dialética existente
entre a atividade humana de transformação da natureza e suas conseqüências sobre o próprio
processo de hominização.
Enfatizemos que, ao nos referirmos ao processo de trabalho e ao homem, referimo-
nos, necessariamente, ao caráter ineliminavelmente social desta relação. Ou seja, o trabalho só é
possível devido à condição humano-social que o engendra. Nas palavras de Leontiev:

[...] o trabalho se efetua em condições de atividade comum coletiva, de modo que o homem,
no seio deste processo, não entra apenas numa relação determinada com a natureza, mas com
outros homens, membros de uma dada sociedade. É apenas por intermédio desta relação a
outros homens que o homem se encontra em relação com a natureza (Leontiev, 1978, p. 74).
232

Outra condição própria do processo de trabalho é o uso de instrumentos. Embora


certos animais apresentem determinadas formas de atividade supostamente instrumental, o uso
de recursos instrumentais pelos mesmos é muito diferente, qualitativamente, do uso de
instrumentos realizado pelo homem. O objeto da atividade animal confunde-se sempre com o seu
motivo biológico (a satisfação de uma necessidade), ou seja, estes dois elementos coincidem
sempre. Este é o primeiro motivo pelo qual os animais não utilizam objetos sob a forma de
ferramentas, como ocorre aos homens. Para os homens, a realização de uma atividade não
coincide, necessariamente, com a satisfação imediata da necessidade a ela correspondente.
Atividade e motivo encontram-se espaço-temporalmente separados e são mediados por
seqüências de “ações” (Leontiev, 1978, p. 76).
Assim, uma atividade como a caça (um processo global) pode envolver ações que a
complexificam e até contrariam, imediatamente, sua finalidade última (a satisfação da fome). É o
caso, por exemplo, do batedor primitivo da atividade de caça que espanta a caça ao invés de, a
exemplo de outros animais, lançar-se sobre a mesma. Verifica-se que a ação em questão só se
torna possível diante de um processo coletivo, que envolve a presença de associações entre ações
e a divisão da atividade com a conservação do significado global da mesma. O “religamento” do
resultado da ação de espantar a caça ao seu fim (alimentar-se) é totalmente vinculado à sua
relação com a ação dos demais membros do grupo de caçadores. Isto nos permite concluir, uma
vez mais, que o que se interpõe entre a ação e o objeto, para um determinado indivíduo, é, nada
mais, nada menos, que a consciência quanto à ação de outros homens na mesma atividade. Isso
confere à ligação entre motivo e objeto da ação humana um caráter objetivamente social e
mediatizado.
Podemos retomar agora a questão do uso de instrumentos de forma distinta. Como
dissemos, todo trabalho é mediado. O “meio de trabalho”, segundo Marx, “é uma coisa ou um
complexo de coisas que o trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto de trabalho e que lhe
serve como condutor de sua atividade sobre esse objeto”(Marx, 1988, p.143). O instrumento
caracteriza e realiza, necessariamente, ações de trabalho. A fabricação e o uso de instrumentos só
é possível, portanto, na medida em que há consciência quanto ao fim da ação do trabalho. Desta
forma, o uso acessório de determinados objetos em certas atividades animais nada têm de
instrumental, uma vez que esses objetos não incorporam, em si, a operacionalização de
atividades mediadas, voltadas ao seu fim. Segundo Leontiev:

O “instrumento” dos animais realiza igualmente uma certa operação, mas esta última não se
fixa para ele. Logo que o pau desempenhou a sua função nas mãos do macaco, ele torna-se
para o animal um objeto qualquer, sem interesse. Não se tornou suporte permanente da
operação considerada. Razão porque os animais não fabricam instrumentos e não os
conservam. O instrumento do homem, em contrapartida, é fabricado e é procurado, é
233

conservado pelo homem e ele próprio conserva o meio de ação que realiza. (Leontiev, 1978,
p. 82).

Dispor de um instrumento, portanto, não significa apenas possuí-lo, mas dominar o


meio de ação de que ele é o objeto material de realização. Desta forma, um machado não se
resume a um objeto de corte com determinada forma, constituído de madeira e aço. Ele reflete,
antes, as propriedades do próprio material (objeto) para o qual será utilizado (seu fim).
O instrumento encerra em si propriedades oriundas de uma prática social, de
“experiência social de trabalho”. Toda e qualquer operação de trabalho mediada por
instrumentos, extrapola os limites da experiência dos indivíduos que a realizam (embora sejam
indivíduos, efetivamente, que a realizem; contudo, indivíduos sociais). O uso de instrumentos é,
necessariamente, uma aquisição, por tais indivíduos, da experiência histórico-social prática da
humanidade.
É desta forma que o conhecimento humano, inicialmente por meio da atividade
instrumental do trabalho, transforma-se em pensamento, definido por Leontiev como “o processo
de reflexo consciente da realidade, nas suas propriedades, ligações e relações objetivas, incluindo
mesmo os objetos inacessíveis à percepção sensível imediata” (Leontiev, 1978, p. 84).
A imagem consciente que se projeta no pensamento, a representação, o conceito,
possuem uma imagem sensível. Mas o reflexo consciente não se limita ao sentimento sensível
que se tem do objeto. Ele também envolve uma significação objetiva e estável, na forma de
“alimento”, de “instrumento”, de “árvore” etc. Desta maneira, e diferentemente do que ocorre
com o reflexo psíquico dos demais animais, deve haver uma forma particular de reflexo
consciente da realidade, no homem. Esta forma é a linguagem. Linguagem que, segundo Marx, é
a “consciência prática” dos homens. Razão por que, como salienta Leontiev, a consciência é
inseparável da linguagem. Como a consciência humana, a linguagem só aparece no processo de
trabalho e ao mesmo tempo em que ele. Ela, como a palavra, surge da necessidade de os homens
comunicarem algo uns aos outros (Leontiev, 1978, p. 85-86).
Assim, historicamente os movimentos do trabalho tiveram uma dupla função: uma,
imediatamente produtiva, e outra, comunicativa. Posteriormente essas funções se separaram e a
função comunicativa transforma-se em gesto. O gesto nada mais é que um movimento, uma ação
separada de seu resultado. Os gestos, acompanhados de sonoridade, transformam-se em
linguagem sonora e, por fim, em palavras. Uma vez que a palavra signifique, no processo de
trabalho, um dado objeto, esta o distingüe e o generaliza para a consciência individual, ou seja,
representa na consciência individual algo que é, objetivamente, uma generalização social.
Por sua vez, o animal mantém uma relação prática com a realidade objetiva. A
principal característica da atividade animal é, pois, o vínculo direto entre sua ação e a
234

necessidade que a move e, portanto, a coincidência entre o objeto e o motivo de sua atividade.
Esta relação direta e limitadora não se aplica, como se vê, ao homem. As atividades humanas são
tão motivadas por necessidades quanto as dos demais animais. Entretanto, a divisão de tais
atividades em ações é a primeira grande conseqüência (ao mesmo tempo em que consolidação)
da condição de não-coincidência ou descontinuidade que se opera no psiquismo humano, entre
sujeito e objeto, em que o homem passa a refletir sobre a realidade objetiva enquanto algo
distinto de si mesmo.
Evidentemente, esta não-coincidência se traduz, a princípio, em ganhos para o ser
social do homem, que se torna então capaz de realizar, através de etapas pré-definidas, atividades
que antes lhe seriam impossíveis. Basta que citemos a descoberta da produção do fogo, que só
pôde ser obtido artificialmente caso o sujeito que o objetivou dominasse as etapas básicas
necessárias à sua obtenção (como, por exemplo, apanhar gravetos, produzir faíscas através do
atrito entre pedras sobre os mesmos, alimentar a chama com mais combustível etc.). Isto
aumenta e complexifica, como observamos, incalculavelmente o poder de ação transformadora
dos homens. Em última análise, isto representa um aumento das condições de humanização da
espécie, traduzidas sob a forma de garantias de sobrevivência, ampliação de conhecimentos,
maior aproveitamento da natureza, segurança, desenvolvimento e aprimoramento de inúmeras
outras capacidades humanas etc.
A teleologia que distingue a atividade dos homens da dos demais animais é, pois,
necessariamente, a ação transformadora consciente da instrumentalidade de outras ações e suas
conseqüências possíveis, seja no âmbito de um mesmo indivíduo e os recursos socialmente
elaborados dos quais se apropriou, seja na conjugação à ação de outros indivíduos, dentro de
uma atividade dotada de significado social. A relação que é imediata entre atividade e motivo
nos animais é, no caso do homem, mediada pelo caráter instrumentalizado de sua relação
consciente com os objetos de sua realidade, sejam eles mãos, coisas, outras ações, outros
conhecimentos, mas, e principalmente, com outros homens.
Como vemos, o caso do batedor de caça primitivo, que tem como objetivo de sua
ação imediata espantar um animal, tem consciência do fim de sua ação, que se traduz na relação
objetiva desta para com a ação dos demais caçadores sob a forma de uma significação. Leontiev
assim se remete a este conceito:

A significação é a generalização da realidade que é cristalizada e fixada num vetor sensível,


ordinariamente a palavra ou a locução. É a forma ideal, espiritual da cristalização da
experiência e da prática sociais da humanidade. A sua esfera das representações de uma
sociedade, a sua ciência, a sua língua existem enquanto sistemas de significações
correspondentes. A significação pertence, portanto, antes de mais, ao mundo dos fenômenos
objetivamente históricos. (...) A significação é (...) a forma sob a qual um homem assimila a
235

experiência humana generalizada e refletida. (Leontiev, 1978, p.94).

A significação é o reflexo da realidade independentemente das relações individuais


particulares do homem para com ela. “O homem”, nos diz o autor, “encontra um sistema de
significações pronto, elaborado historicamente, e apropria-se dele tal como se apropria de um
instrumento, esse precursor material da significação” (Leontiev, 1978, p. 96). O fato principal na
relação entre indivíduos e as significações, é que os indivíduos venham a se apropriar ou não das
mesmas, em que grau o fazem e o que estas se tornam para os mesmos. Isto dependerá do
sentido subjetivo, pessoal, que estas significações sociais tenham para tais indivíduos. Por esta
razão, uma significação poderá ter diversos sentidos entre diversos indivíduos e coletividades.
Na aurora do desenvolvimento humano, nos diz Leontiev, a esfera das significações
coexistia com a esfera dos sentidos biológicos instintivos. Nesta etapa primitiva do
desenvolvimento humano, a consciência se encontra limitada e este estágio é,
caracteristicamente, animalizado, não havendo, portanto, uma consciência da relação entre
indivíduos e coletividade. Trata-se de uma “simples consciência gregária”, nos seus termos
(Leontiev, 1978, p.102).
A principal característica da consciência humana primitiva era, portanto, a de que o
sentido dos fenômenos reais coincidiam totalmente com as significações elaboradas socialmente
e fixadas pela linguagem. Nas palavras de Leontiev,

A propriedade coletiva colocava os homens em relações idênticas quanto aos meios e frutos
da produção, sendo estes últimos, portanto, refletidos de maneira idêntica na consciência
individual e na consciência coletiva. O produto do trabalho coletivo tinha o sentido comum
de “bem”, por exemplo, um sentido social objetivo na vida da comunidade e um sentido
subjetivo para cada um dos seus membros. Por este fato, as significações lingüísticas
elaboradas socialmente que cristalizavam o sentido social objetivo dos fenômenos podia
igualmente constituir a forma imediata da consciência individual destes mesmos fenômenos.
(Leontiev, 1978, 114).

Devido a tais características, Leontiev denomina essa estrutura da consciência de


formação primitiva integrada. Com o advento da divisão social do trabalho e das relações
calcadas na propriedade privada, esta estrutura primitiva cedeu lugar a uma de nova ordem,
caracterizada por uma “desintegração” entre sentidos e significados. Uma vez que o conteúdo
objetivo da atividade não concorde mais com o seu conteúdo subjetivo (sua importância para o
próprio homem), deparamo-nos, portanto, com o fenômeno da alienação, a discordância entre o
resultado objetivo de uma atividade e seu motivo. Retomando uma vez mais o exemplo da ação
do batedor primitivo numa atividade de caça, vimos que a atividade era subjetivamente motivada
pela parte da presa que lhe caberia no final do processo coletivo. Já na produção capitalista,
embora o trabalhador, agora assalariado, tenha por motivação a satisfação de suas necessidades,
236

o produto objetivo da atividade que realiza (tecer, por exemplo) não coincide com o que o
motiva (necessidade de alimentar-se). A sua atividade de trabalho transforma-se em algo distinto
do que realmente a motiva. Seu sentido, para o operário, não coincide com sua significação
objetiva.
Evidentemente, o trabalhador nas condições da sociedade capitalista conhece o
significado social da atividade de tecer, por exemplo. Entretanto, a tecelagem não tem para ele o
sentido subjetivo de tecelagem. Nos termos de Leontiev:

A tecelagem tem, portanto, para o operário, a significação objetiva de tecelagem, a fiação a


de fiação. Todavia, não é por aí que se caracteriza a sua consciência, mas pela relação que
existe entre estas significações e o sentido pessoal que têm para ele as suas ações de trabalho.
Sabemos que o sentido depende do motivo. Por conseqüência, o sentido da tecelagem ou da
fiação para o operário é determinado por aquilo que o incita a tecer ou a fiar. Mas são tais as
suas condições de existência que ele não fia ou não tece para corresponder às necessidades
da sociedade em fio ou em tecido, mas unicamente pelo salário; é o salário que confere ao
fio e ao tecido o seu sentido para o operário que os produziu. (Leontiev, 1978, p.123).

O mesmo ocorre com o sentido da atividade para o capitalista, que agora, residindo
no lucro que dela tira, transforma-se em algo também estranho às propriedades do fruto da
produção e sua significação objetiva. O sentido do trabalho, tanto para o proprietário capitalista
quanto para o trabalhador assalariado é reificado pela mediação do dinheiro. O trabalho alienado
passa a ter, assim, um duplo caráter: um negativo, já que o trabalhador passa a viver em função
de um trabalho cujo sentido subjetivo não coincide com o significado concreto e social da
atividade. E um positivo, já que, enquanto meio de atividade, o trabalho constitui a riqueza real
do aspecto técnico da vida do trabalhador (conhecimentos, habilidades, o “saber-fazer” etc.).
Nas condições históricas de dominação, as significações predominantes são as
representações, as idéias que traduzem a ideologia hegemônica. O sentido real das relações
dominantes não é imediatamente “consciente”. Para se tornar consciente, deve entrar para a
consciência nas significações, elaboradas socialmente, que refletem a natureza real destas
relações (Leontiev, 1978, 133).
A consciência é condição para a consecução e consolidação da própria vida humana.
Portanto, somente com a “reintegração” da consciência humana o homem se deparará com o
desenvolvimento livre e completo de sua humanização. Contudo, esta “reintegração” não
equivale a um suposto retorno à coincidência primitiva entre sentidos pessoais e sistema de
significações sociais, o que implicaria em que retrocedêssemos a um período em que, por outro
lado, a divisão social do trabalho era, também ela, limitada. O que se presume como necessário é
o deslocamento do processo de conscientização para esferas mais variadas e profundas em
relação às significações, de que o homem deve tomar consciência para si, de modo a tornar a se
ver presente nas mesmas (Leontiev, 1978, p.139).
237

O raciocínio até aqui apresentado é de fundamental importância para que


apreendamos a magnitude dos processos e conseqüências envolvidos nas relações que o homem
estabeleceu, desde suas origens primitivas, com a realidade natural e social da qual
historicamente toma parte. Entendemos que o processo de apreensão da relação real, entre
sentidos e significados, implica, antes de tudo, num constante processo de desvelamento da
realidade tal como se apresenta imediatamente à consciência. Este processo só se mostra possível
se o homem, munido de determinado método de leitura dos fenômenos que o envolve, apropriar-
se, ostensiva e conscientemente, dos conhecimentos socialmente elaborados e de suas relações e
implicações sobre seu ser e seu lugar no gênero ao qual pertence.
Entrementes, devemos considerar, ainda, que ao nos referirmos a um tal processo de
desvelamento, não queremos dizer com isso que há duas realidades essencialmente distintas e
excludentes, uma capciosamente ocultando outra. Não se trata disso mas sim de uma realidade
total, única, captada, amiúde, de modo parcial em seus aspectos mais imediatos, por diversas
características próprias à consciência humana devidas às múltiplas determinações que a
engendraram historicamente, como acabamos de ver. E o fenômeno não implica em uma
apreensão verossímil da essência própria da realidade a que corresponde.
Contudo, ao nos referirmos à captação da essência da realidade, não podemos supor,
com isso, a “execração” da vida em seus aspectos imediatos, mecânicos, habituais e mesmo
consensuais. Deles depende a própria consecução da vida, com todas as suas relações e
implicações possíveis e necessárias. Deles, em suma, depende a realização, a possibilidade da
própria vida cotidiana.

1.3. Trabalho alienado, apropriação privada e divisão social de classes: revisitando Karl
Marx

Julgamos oportuno procedermos a um resgate, neste momento, de alguns dos


postulados ontológicos do pensamento marxiano67 acerca do gênero humano, nos quais
fundamentamos nossa argumentação de refutação à naturalização dos processos humanos em que
se baseiam as teses ultraliberais.

67
Entendemos como marxiano o pensamento próprio a Karl Marx, apreendido diretamente de suas obras.
Entendemos como marxistas os trabalhos provenientes de autores que se fundamentam na obra e no materialismo
histórico-dialético de Marx e Engels, isto é, que se dedicaram a oferecer contribuições ao pensamento marxiano e/ou
interpretações do mesmo, para além dos temas e contextos de históricos de Marx e Engels. Dizer-se “marxiano”,
entretanto, não revela mais que a intenção de identificação purista com o pensamento próprio a K. Marx. Enfim, seja
qual for nossa leitura de Marx e Engels, se nos apropriamos de seus pressupostos por identificação, somos marxistas
(o que não impede que haja “marxistas”, e nesses tempos pós-modernos, também “neo-marxistas” — que se
permitem ignorar inclusive a própria obra marxiana).
238

Apesar da extensão e profundidade do pensamento de Karl Marx, lançaremos mão,


aqui, dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”68. Apesar de tais fragmentos serem considerados
pertencentes ao período do jovem Marx, e, portanto, supostamente incipientes em se tratando do
conjunto da obra desse pensador, elegemos os mesmos por os considerarmos ainda genéricos o
suficiente, do ponto de vista filosófico, para apreendermos a concepção de gênero humano que
subsidia toda a obra de Karl Marx ⎯ e, por extensão, de Friedrich Engels ⎯ e, portanto, de que
humanismo se trata. Desse modo, longe de se configurarem apenas como um conjunto de
pequenos excertos isolados, e que se prestariam exclusivamente a anunciar as bases do que viria
a ser a obra máxima O Capital, estes textos representam, ao nosso ver, e a exemplo de textos
como A Ideologia Alemã, os prenúncios das bases epistemológicas e ontológicas do conjunto de
seu pensamento e de Friedrich Engels, não só em termos econômicos, mas principalmente sobre
bases antropológicas. Por conseguinte, esses escritos são de importância fundamental para as
considerações aqui apresentadas sobre as implicações mais gerais do pensamento marxiano em
termos sócio-historicistas do desenvolvimento humano-genéricos.

1.3.1. A ontologia humano-genérica da atividade vital do trabalho em Marx

Em primeiro lugar, é necessário assinalar aqui que o cerne de todas as análises de


Karl Marx encontra-se no postulado de que a humanidade, enquanto gênero, tenha na
atividade transformadora que designamos por trabalho a sua própria gênese. Em sendo
assim, é na análise da atividade do trabalho humano nas suas diversas épocas e contextos
históricos que Marx delineia sua concepção acerca do que é o ser humano, tanto em termos
de seu passado e presente, como também ⎯ e diríamos, especialmente ⎯ em termos do que
possa vir a ser. A concepção marxiana é, portanto, uma concepção teleológica do que é
próprio ao ser humano, uma vez que o ser humano tem, em seu entendimento, por principal
característica, a faculdade de projetar intencionalmente suas ações no devir, característica
esta que fundamenta a própria atividade do trabalho. A atividade propriamente humana
(trabalho) se confunde, desse modo, com a própria essência do que é humano, e que por ser
possibilidade constante de transformação do mundo concreto (objetivo e subjetivo,
inextricavelmente), imprime ao ente humano também a condição de ser dinâmico e mutável.
É este princípio, próprio ao método dialético adotado por Marx, que nos permite afirmar que

68
Embora os Manuscritos datem de 1844, vieram a público somente em 1932. Utilizamos, aqui, também a tradução
de T. B. Bottomore do original alemão, incorporada à obra Conceito marxista do homem, de autoria de Erich
Fromm, aqui utilizada como uma das referências (ver Fromm, 1979).
239

o homem, ao mesmo tempo em que transforma o mundo, transforma também a si mesmo e,


portanto, produz sua história.
A primeira grande implicação desse raciocínio é, portanto, que o ser humano é
ontologicamente69 transformador de realidades e criador, assim, de infinitas possibilidades
para si mesmo. Poderíamos, pois, considerar ser esta a “natureza” propriamente humana, ou
seja, uma condição que surge a partir das relações primitivas e espontâneas com o universo
biofísico, mas que aos poucos se liberta de suas determinações exclusivamente naturais.
Desse modo, o ser humano, de um ser inicialmente totalmente dependente da natureza
biofísica ⎯ a exemplo das demais espécies animais ⎯, pelo advento da atividade consciente
(intencionalidade), converte e subverte tal relação, criando para si uma extensão da primeira
natureza, que embora dela derive, com ela já não se confunde. Esta natureza complementar
tem, como substância, não mais os elementos naturais em seus estados originais bio-físico-
químicos, mas o conjunto das produções e conhecimentos propriamente humanos. A
humanidade, nesse estágio, não mais se encontra determinada tão-somente pelos fenômenos
e condições naturais, mas apropria-se do mesmo e, dele, cria seu próprio universo
substantivo e fenomênico. Doravante, é esta “segunda natureza”, e não mais apenas a
primeira, que constituirá e determinará o que seja de fato humano, de tal sorte que nenhum
homem ou mulher nasce humano, mas torna-se humano na medida em que se apropria dessa
segunda condição vital (linguagem, conhecimentos, hábitos, atividades etc.). Esta nova
condição vital, embora em constante e ineliminável relação com a sua natureza material,
biofísica, não encontrará, para sua produção e reprodução, recursos nos mesmos mecanismos
apenas biológicos que ainda determinam a reprodução das demais espécies animais, isto é,
uma reprodução geneticamente determinada. Esta nova condição, por transcender a natureza
biológica que a comportava, Marx entende como natureza humano-genérica, ou genericidade
humana. Em última análise, e grosso modo, a condição humano-genérica é, portanto,
conformada pelas objetivações (produções humanas) consubstanciadas pela atividade
transformadora do trabalho. O conjunto dessas produções é o que podemos entender, nos
termos de Alexis N. Leontiev (1978), por cultura.
Por decorrência, para Marx o segredo da compreensão dos fenômenos e da condição
humana no mundo só pode residir no estudo e compreensão de como o ser humano se relaciona
concretamente com o mundo natural e, principalmente, com os demais seres humanos e o
universo das produções (objetivações) daí derivadas. Compreender a condição humana atual e

69
O estatuto de uma concepção histórico-ontológica acerca da condição humana em Marx é aqui adotada com base
nas propostas de Giörgy Lukács, que este pensador desenvolve em seu tratado Ontologia do ser social (ver Lukács,
1978).
240

suas possibilidades futuras depende, portanto, do estudo e compreensão de como o homem


produz seu universo e a si mesmo no decurso de sua história.
Entendemos melhor, agora, porque Marx se debruça, com todas as suas energias,
sobre as formas de produção humana através da história para tentar elucidar o modo de
organização e produção atual, ou seja, o modo capitalista. O interesse de Karl Marx e Friedrich
Engels sobre o modo capitalista não reside, como pensam muitos, num suposto e gratuito
antagonismo político-ideológico a este, mas sim, no resultado de uma extensa investigação de
cunho histórico, antropológico, sociológico e econômico dos diversos estágios organizativos e
produtivos da humanidade, pelo o que concluem que, embora o estágio capitalista seja o mais
avançado alcançado até presentemente, por suas inúmeras contradições e por confrontar e limitar
das mais variadas formas a própria realização da natureza humana, sobretudo ao destituir o
próprio ser humano de seus objetivos, também este estágio estaria fadado a ser superado assim
que certas condições histórico-sociais se estabelecessem nas sociedades humanas. Assim,
enquanto estágio de mais alto grau de desenvolvimento das sociedades humanas em termos
produtivos e de conhecimentos alcançados (o que corresponde ao mais alto índice de condições
para o processo de humanização e emancipação de nossos indivíduos e sociedades), este modo
de produção traz consigo também o mais agudo processo de alienação e exclusão da maioria dos
indivíduos humanos do usufruto de seus benefícios e riquezas, colocados à margem de tais
conquistas e possibilidades emancipatórias.
A pergunta que se segue a estas considerações é: como e porque se dão tais
contradições e o que podemos considerar como possível alternativa a esta realidade? Ora, se o
ser humano tem, por principal característica, o poder de criar e transformar ideal e concretamente
realidades, a realidade do modo de produção capitalista nada mais é que apenas uma possível
realidade, dentre outras (Gramsci, 1995). Se for assim, o ser humano pode transformar essa
realidade, substituindo-a por outra (ou outras). Mas, porque o atual modo de organização e
produção, que objetivamente mantém a grande maioria dos indivíduos humanos vivendo de
modo muito parcial e precário sua condição humana, subsiste e resiste a qualquer mudança
significativa quanto aos seus meios e fins? A resposta só pode ser encontrada nos meandros da
lógica do funcionamento do próprio modo de produção capitalista, que encontrou na exploração
de uma forma inusitada do trabalho humano ⎯ qual seja, a forma assalariada e abstrata ⎯, o
principal mecanismo para sua manutenção e reprodução social. E é precisamente sobre esta
forma de produção, e sua transmutação em verdadeira mercadoria, que Marx passa a debruçar-
se, cientifica e radicalmente, para desvelar tanto sua estrutura como seus mecanismos de ação e
perpetuação.
241

Segundo Marx, no modo de produção capitalista o ser humano, enquanto ser


dependente do trabalho assalariado, transforma-se em mercadoria e, nesse sentido, em uma
mercadoria das mais deploráveis. Sua constatação inicial é de que a miséria dos trabalhadores é
proporcional ao quanto produzem. Quanto mais produzem, menos possuem, logo, mais alienados
(separados) do que produziram, que não lhes retornam mais na mesma proporção e valor, e não
mais lhes pertencem.
A grande questão que lhe surge é porque o trabalhador se aliena do que produz,
voluntariamente, até o ponto de por vezes passar fome? A constatação agora é que o trabalhador
entrega a tal ponto tudo o que produz ao outro que acaba por depender totalmente desse outro
para ter pelo menos uma parte do que produziu de volta, sob a forma de dinheiro, para então
trocar pela sua sobrevivência. E assim, continuamente.
Supostamente, o poder aparente do dinheiro de tudo poder trocar lhe dá a falsa
sensação de liberdade e poder, o que se apresenta como muito sedutor. Acredita, convictamente,
que trabalha pela sua liberdade, mesmo que, matematicamente, permaneça a trabalhar pelo
dinheiro muito mais do que o dinheiro lhe proporciona em termos de aquisição de real liberdade
e usufruto do que produz. Há, na verdade, “lapsos” de liberdade, mas nunca liberdade de fato.
Enfim, libertar-se do jugo desse modelo de trabalho e do dinheiro representaria, possivelmente, a
própria morte, dentro desse modelo de produção e sociedade.
Enfim, como é possível tal condição de sujeição e, logo, de escravização passiva da
maioria dos seres humanos?
A primeira aproximação a uma resposta, segundo Marx, está no fato de que esse
modo de trabalhar e produzir rompeu com o princípio original de trabalho humano, qual seja, o
de se poder trabalhar para si mesmo e realizar-se, enquanto ser humano (o que é o cerne do
próprio processo de humanização). Ou seja, o sentido do trabalho como autoprodução através da
relação entre objetivação/apropriação sofreu tal separação e distanciamento que os seres
humanos não percebem suas relações intrínsecas, fundamentais aos seus processos de
humanização (ou, de inserção no gênero humano).
Por objetivação Marx entende a forma e o conjunto dos resultados de todas as
produções humanas (conhecimentos, bens, instrumentos, manifestações culturais etc.). Ou seja,
diz respeito à forma como os seres humanos materializam intencionalmente suas idéias70. Por
apropriação, Marx refere-se ao processo complementar à objetivação, pelo qual cada ser
humano, individualmente, pode assimilar e tornar seu o que foi objetivado por outros seres

70
Como nenhuma idéia é exclusivamente individual ou particular, uma vez que sua substância é necessariamente e
sempre, social e histórica.
242

humanos, socialmente, através da história. E é precisamente a apropriação que tornará possível


que cada ser humano possa não só reproduzir tais objetivações, como reelaborá-las,
transformando-as em novas objetivações ou, simplesmente, em novas produções. É desse modo
que o ciclo se completa, se renova e se transforma.
Este é o cerne de todo o processo de humanização, pois, para tornar-se humano, cada
ser precisará apropriar-se de objetivações humanamente preexistentes (linguagem, instrumentos,
artes, conhecimentos etc.) e, de modo a complementar o processo de humanização, poder
manifestar-se objetivamente através de suas próprias atividades e produções. Reiteramos que a
atividade que Marx designa por trabalho é muito mais que o “trabalho” em sua forma restrita de
“atividade remunerada” (trabalho assalariado a que a atividade vital humana é reduzida no
capitalismo), sendo na verdade toda e qualquer atividade de manutenção e transformação da
realidade, de forma a garantir, além da existência biológica, também a existência psicológica e
cultural propriamente humana. Portanto, trabalhamos quando aprendemos uma linguagem,
quando aprendemos a utilizar bens e instrumentos ou elaboramos um projeto, uma ação etc. E,
dentro dessa lógica, trabalhamos quando produzimos nosso alimento, ferramentas ou qualquer
bem com valor de uso concebido e objetivado humanamente.
Se o trabalho é a atividade intencional fundamental do gênero humano, poucas
seriam as atividades humanas que poderiam ser enquadradas como não-trabalho e é esta
constatação que, como já dissemos, permite a Marx concluir que o próprio gênero humano tenha
sua origem e existência fundamentada nesta atividade transformadora vital.71
Entretanto, no modo de produção atual, o processo de humanização é muitíssimo
limitado quando a existência de um trabalhador se restringe apenas a etapas mecânicas e parciais
da objetivação, enquanto outro alguém, munido de um poder que subjuga o primeiro através de
uma suposta compra “justa” de sua capacidade apenas cinética ou instrumental do processo de
objetivação ⎯ sua força de trabalho — usufrui a apropriação de tais objetivações, que no modo
de produção capitalista transmuta-se, após sua alienação do trabalhador, em mercadoria.
Assim, e de modo muito estranho, quanto mais o trabalhador produz (participa do
processo de objetivações), mais se aliena (separa-se proporcionalmente da quantidade do que
produz); por decorrência, quanto mais se aliena do que produz, mais proporciona o
enriquecimento do ser humano que se apropria unilateralmente do que foi objetivado pelo
primeiro, acumulando tais objetivações sob a forma de capital.

71
Portanto, em termos ontológicos o termo “vital” deve ser entendido para além da esfera orgânica, sem ser
confundido com pressupostos metafísicos, como um vitalismo. O vital, no caso humano, se origina no biofísico e,
dialeticamente, a ele retorna, de forma inorgânica das produções propriamente humanas (que entenderemos, aqui,
como propõem Vigotski [1930/2001] e Leontiev [1978], por cultura). Assim, orgânico e o inorgânico, em se
tratando do gênero humano, são dimensões dialeticamente inseparáveis e mutuamente determinantes.
243

Entretanto, o trabalhador não receberá, em troca de seu trabalho, o mesmo em termos


de quantidade e valor do que foi objetivado (produzido), o que também equivale a dizer que não
poderá usufruir igualmente de liberdade em mesma proporção para poder dedicar-se ao que
desejar, pois a quantidade de dinheiro que recebe é apenas suficiente para explorar muito
parcialmente suas potencialidades humanas, de lazer e usufruto de outros aprendizados e
atividades humanizadoras. Enfim, o que recebe é em geral apenas suficiente para atender às suas
necessidades vitais básicas (alimentação, vestuário, moradia, transporte, manutenção e
reprodução biológica), de modo que o trabalhador ganha apenas o suficiente para poder
continuar a viver para trabalhar.
Aqui, portanto, as primeiras conclusões acerca da alienação do trabalho humano:
a) O trabalho perdeu seu caráter de atividade transformadora humana para o
trabalhador (condição para a imensa maioria dos seres humanos que vivem de sua própria força
de trabalho), para tornar-se não mais um fim realizador em si mesmo na cadeia do processo de
humanização de todos os indivíduos, mas um meio parcial, quando não, muito precário de
subsistência para esses indivíduos.
b) Em contrapartida, o resultado do trabalho (objetivação do trabalhador) torna-se
propriedade privada de homens em particular (minoria da humanidade), proporcionando a estes,
acúmulo de riquezas e condições superiores de desenvolvimento humano, ao menos no que
respeita ao usufruto dos bens que estes indivíduos podem desfrutar (de melhores condições de
moradia, de alimentação, de instrução, de confortos variados, de lazer, de segurança e proteção
social etc.).

1.3.2. Conseqüências da alienação ao processo genérico de humanização

Como vemos, tanto o trabalhador quanto o proprietário encontram-se alienados,


pois perdem de vista o sentido originário do processo total do trabalho humano (relação entre
objetivação e apropriação). Ambos encontram-se empobrecidos em termos humanos, por só
conhecerem o processo enquanto cindido e como forma apenas de troca e exploração (seja de
dinheiro, de objetos e bens, transformados em mercadorias, seja de ordens e subserviência, de
exercício de poder e coerção, de inumanidade etc.).
Entretanto, neste processo, evidentemente, quem perde é o trabalhador, já que produz
o que não necessariamente quer e se o quer, geralmente não o pode usufruir; por outro lado,
produz de uma forma desagradável, de sujeição ao trabalho mecânico, exaustivo, desprazeroso.
Prova disso, como nos lembra Marx, é que em geral o trabalhador só se sente relativamente
244

liberto ao final do expediente de trabalho, inclinando-se, em geral, a estar em fuga de suas


“tarefas” e “obrigações”.
O trabalhador tem a intuição de que há algo errado, mas aprendeu que para subsistir
deve ser empregado de alguma forma e “dar duro”. Afinal, nenhum trabalho é fácil e todo
trabalho (aqui, reduzido apenas a trabalho remunerado) dignifica o homem. Portanto, trabalhar
para alguém é algo natural; para si, todavia, é exceção. Eis aqui a subversão do sentido
ontológico do trabalho, segundo Marx, que deixa de ser atividade transformadora vital, criadora
e humanizadora para os próprios indivíduos humanos.
O trabalhador só reconhece parcialmente este processo, limitando-o ao aspecto de
seu significado enquanto manutenção apenas vital ⎯ satisfação de necessidades básicas como
alimentação, abrigo, vestimenta, algum conforto elementar, tempo para alguma diversão mínima
e, especialmente, para a atividade sexual. Isso porque passa a só encontrar espaço para o prazer
de modo circunscrito à sua própria condição mais elementar de ser apenas biológico, e não nas
produções propriamente humanas, que não tem ou simplesmente desconhece. Reduzido à sua
condição de ser apenas orgânica, é o prazer propriamente orgânico o mais próximo e passível de
ser obtido.
Cultura, educação, conhecimento, afetividade, lazer, turismo, ócio, glamour, senso
estético, eruditismo etc., não cabem no tempo, possibilidades e oportunidades reduzidos à
manutenção vital cotidiana e experienciações de seus próprios organismos.
Evidentemente, há muitas pretensas justificativas para essas relações, na verdade
injustas e mesmo perversas, e que se apresentam profundamente questionáveis do ponto de vista
da ética e da moral, para se legitimar a alienação do trabalho e sua exploração (a exploração do
homem pelo homem em situação desigual de condições). Exemplos são as explicações místicas
(os proprietários como abonados e agraciados por uma providência divina, pois são inatamente
contemplados com vantagens, bom berço, inteligência, destino etc., e o destino ou missão de
conduzir outros seres humanos) que em geral confluem com explicações biologicistas, que
presumem a classe dos dominantes como naturalmente mais apta e superior (aspectos de
inteligência, organização, uso da razão, obstinação, destreza, determinação, força de vontade
etc.), os trabalhadores sendo, por sua vez, menos aptos, indolentes, inferiores, desorganizados,
sem objetivos e grandes metas, etc.
Do ponto de vista do direito, presume-se, nas sociedades capitalistas, e a partir de
preceitos supostamente democráticos, uma certa igualdade de oportunidades quanto a
empreendimentos ou atividades, desconsiderando-se ou mesmo distorcendo-se, entretanto, as
reais condições que tornam possíveis ou não a igualdade de oportunidades. Evidentemente,
245

torna-se letra morta qualquer lei que proclame a chamada igualdade de oportunidades, mas não
garanta a mesma igualdade em termos de condições objetivas para a consecução de determinados
objetivos. Tomar-se este princípio como sinônimo de liberdade e possibilidades democráticas é
em si também um contra-senso, na medida em que nas sociedades capitalistas a maior parte das
liberdades (de ir e vir, de manifestação, de comunicação, de lazer etc.) são diretamente
proporcionais ao lugar que se ocupa na sociedade de classes e na produção, determinantes que
são do próprio poder de se adquirir e usufruir tais liberdades. Deste modo, poderemos até admitir
uma suposta igualdade de direitos entre um trabalhador e o proprietário da empresa para a qual
trabalha, mas dificilmente encontraremos a ambos em igualdade de condições para usufruírem a
referida igualdade de oportunidades.
Todas estas explicações buscam legitimar, por fim, o individualismo e a centralidade
determinante do eu particular nas relações humanas dentro do modo capitalista de produção (que
é francamente não só admitida como mesmo cultivada como natural). Por outro lado,
estranhamente, os aspectos sociais e culturais dos fenômenos humanos são ignorados ou
suprimidos de tais explicações. Neste sentido, o caráter eminentemente cultural e social do
gênero humano (característica fundamental do próprio processo de humanização ― não há
espécie que tenha se libertado das determinações apenas naturais como a nossa) é subitamente
substituído por um naturalismo evolucionista e determinista, pelas óbvias vantagens deste
modelo para a conservação de determinadas crenças, tomadas como naturais, irrevogáveis ou
mesmo fatais. Ou seja, as leis da biologia passam a determinar o entendimento organizativo,
constitutivo e de comportamento de uma entidade vital que não é mais apenas biologicamente
determinada, mas, na verdade, como já sabemos, culturalmente constituída.
Por essas perspectivas, o social não passa de um conjunto de indivíduos que agem
segundo seus interesses e propósitos pessoais, sendo o conjunto das relações humanas o
resultado de inúmeras e constantes negociações entre tais indivíduos particulares,
egocentricamente motivados. Desse modo, naturaliza-se e particulariza-se também o mercado,
elemento exponencial do modo de produção capitalista, suprimindo-se também o verdadeiro
caráter evolutivo do gênero humano, que é eminentemente social, cooperativo e participativo.
A compreensão marxiana da ética das relações humanas não admite essas pseudo-
explicações, dogmáticas ou cientificistas, tomando-as como essencialmente a-históricas e
forjadas a partir de condições e circunstâncias históricas específicas e transitórias, e, portanto,
perfeitamente compreensíveis, de um ponto de vista científico.
Marx, ao tomar o ser humano enquanto ontologicamente transformador de
realidades, constata que isto só se tornou possível porque a humanidade é, antes tudo,
246

antropologicamente social, para depois ser individual. Isto significa dizer que os próprios
indivíduos só se reconhecem enquanto individualidades na medida em que se apropriam do que é
social, ou seja, quando internalizam e fazem seu o que vem do outro (mas isso não no sentido
egoístico de tomar do outro, e sim, de partilhar com o outro). É assim, por exemplo, que
podemos concluir não ser possível nos entendermos enquanto individualidades senão na medida
em que nos apropriamos dos instrumentos e matérias primas sociais necessários a tal, a começar
pela linguagem simbólica e a cultura do grupo social a que pertencemos, pelos quais somente
então teremos parâmetros para identificar-nos enquanto individualidades particulares. Em outros
termos, o particular, constituído e mobilizado exclusivamente a partir de um exemplar
individual, não existe. Para Marx, é esta condição, inclusive, que também nos distingue dos
demais animais, na medida em que naquelas espécies cada indivíduo reproduz, particularmente,
as determinações genéticas de toda a espécie, ao longo de inúmeras gerações, reproduzindo-as,
sob a forma do que entendemos por instinto, o comportamento geral de todos os demais
indivíduos (todos os indivíduos são iguais e, portanto, não há o que entendemos por
individualidade, no sentido de próprio e diverso). Esse processo natural-evolutivo não ocorre
com os seres humanos, na medida em que o instrumental cultural permite que o humano
ultrapasse as determinações genéticas e meramente instintivas, libertando-se, portanto, dos
imperativos naturais a que os demais animais, em maior ou menor grau, são submetidos. Enfim,
é precisamente o instrumental cultural em questão que permitirá, a cada indivíduo humano, não
72
só pensar o mundo objetivo como, também, subjetivo . Sendo assim, pensar, comunicar, utilizar
instrumentos, reconhecer valores, beleza, significado, diferença, igualdade, só são possíveis
porque internalizamos tais valores no contato com as demais individualidades diversas de nossa
sociedade.
Os indivíduos humanos, como nos propõe Marx, carecem, portanto, uns dos outros
para além de suas determinações biológicas, ou seja, carecem uns dos outros e de tudo o que a
humanidade foi e será capaz de produzir, sempre. E nos propõe, então, uma noção revolucionária
sobre riqueza e carência, em termos do processo de humanização, que são fundamentais à
instauração de uma ética verdadeiramente inovadora. Em suas palavras:

O homem rico é, ao mesmo tempo, o homem carente de uma totalidade de exteriorização de


vida humana, o homem no qual sua própria efetivação existe como necessidade
(Notwendigkeit) interna, como carência (Not). Não só a riqueza como também a pobreza do

72
Para maiores aprofundamentos, sugerimos os trabalhos de Aleksander Leontiev, sobretudo, O Desenvolvimento
do psiquismo, (ver Leontiev, 1978) e o clássico trabalho de Lev S. Vigotski, Pensamento e linguagem, cuja tradução
integral no Brasil traz por título A construção do pensamento e da linguagem (ver Vigotski, 1934/2001). Outro
trabalho, este uma síntese de extrema relevância e originalidade sobre o tema, é a obra de Newton Duarte, A
individualidade para-si (ver Duarte, 1994).
247

homem, adquirem igualmente - do ponto de vista do socialismo - um significado humano e,


por isso, social. A pobreza é o laço passivo, que faz com que o homem sinta como
carecimento a maior riqueza, ou seja, o outro homem. A dominação em mim do ser objetivo,
a explosão sensível de minha atividade essencial, é a paixão que, com isso, se converte aqui
na atividade de meu ser. (Marx, 1979, p. 125).

Como resolução desse processo de subversão da verdadeira atividade da natureza


humano-genérica e social, Marx propõe como única alternativa à eliminação da alienação, a
começar pelo fim da alienação do trabalho humano. Para Marx, a alienação não é um advento
apenas da sociedade capitalista, mas das sociedades humanas em todas as suas épocas históricas,
desde o advento da divisão social de classes, por sua vez sempre determinada pela divisão social
do próprio trabalho. Portanto, desde as remotas sociedades de classes do extremo oriente e todas
as variações do escravismo, pela servidão no feudalismo, e por todos os estágios posteriores de
exploração do trabalho do modo capitalista de produção, constata-se que a existência das classes
sociais é o principal elemento no qual se estruturam os processos de exploração indiscriminada
do trabalho humano. Para Marx, a abolição da sociedade de classes e da propriedade privada é
condição para a emancipação dos seres humanos do trabalho alienante e, por decorrência, para a
emancipação geral da própria humanidade. Por conseguinte, podemos vislumbrar uma possível
sociedade humana passível, inclusive, de suprimir a própria corrupção de seus processos, já que
não haveria porque para a acumulação de capitais, pelo simples fato de que as possibilidades de
se usufruir riquezas, atividades e conhecimentos produzidos pela sociedade, estariam dadas a
todos, indistinta e democraticamente. Além disso, as possibilidades inclusive de abolição do ser
humano de trabalhos estafantes e pesados seriam dados por recursos técnico-científicos e
robóticos cada vez mais avançados e eficientes.
Cada vez mais liberta dos processos de trabalho elementares e pesados, ou
relacionados puramente à manutenção da sobrevivência, a humanidade poderia usufruir suas
próprias produções e dedicar-se essencialmente às questões de reprodução e manutenção do
próprio gênero (saúde, educação, lazer, relações comunitárias, afetivas etc.).
A via para a conquista desta nova condição só pode se dar, para Marx, por um
movimento transformador consciente e revolucionário (que revolva e reverta o quadro geral de
exploração do homem pelo homem), entendido e defendido por Marx enquanto um movimento
verdadeiramente comunista:

O comunismo, como um naturalismo plenamente desenvolvido, é humanismo, e como


humanismo plenamente desenvolvido, é naturalismo. É resolução definitiva do antagonismo
entre o homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. É a verdadeira solução do
conflito entre existência e essência, entre objetificação e auto-afirmação, entre liberdade e
necessidade, entre indivíduo e espécie. É a solução do enigma da História e tem
conhecimento disso. (Marx, 1979, p. 116-117).
248

O movimento comunista visaria a uma comunidade planetária única e igualitária,


através inicialmente do socialismo73, cuja forma e funcionamento aboliriam as estruturas de
classes sociais e de propriedade privada conhecidas pela humanidade até aqui (o que Marx
chamou de pré-história da humanidade), através de um Estado social fortalecido e
democraticamente dirigido pela maioria dos seres humanos (até aqui, os pertencentes à classe
conhecida como trabalhadora ou operária). Abolida a apropriação privada do valor-trabalho
— e a própria classe trabalhadora —, e uma vez destituída e assimilada a classe minoritária que
o explorava, não mais haveria desigualdades arbitrariamente impostas aos seres humanos,
tornando-se todos, finalmente, iguais em termos de oportunidades e condições, mas não iguais
em suas características individuais (desejos, motivações, inclinações, propósitos etc.), princípio
este, de diversidade, que no caso da humanidade se traduz na própria riqueza de possibilidades
de criações e transformações da realidade advindas de seus indivíduos, indivíduos sociais. Em
seu estágio máximo, ou seja, no comunismo pleno (aqui ainda idealmente considerado) é fácil
supor que, em as novas gerações humanas desconhecendo a cultura de classes e de exploração do
trabalho ⎯ que em seus contextos futuros constarão apenas como figuras lendárias de um modo
de produção e organização social primitivo, já superado ⎯, uma nova condição e estágio de
humanização possam ser estabelecidos em nível global.
Evidentemente, inúmeras outras conseqüências de cunho ético e humanístico terão
necessariamente que acompanhar o novo mundo possível, principalmente a subversão da lógica
produtivista e acumulativa capitalista, que infelizmente ainda conhecemos, e que devasta e
desequilibra de forma abominável o mundo presente. Em outros termos, além da abolição da
lógica de exploração indiscriminada do trabalho humano, também a lógica de exploração
indiscriminada da natureza biofísica terá que ser abolida, o que implica, além de uma revolução
“antropoética”, também uma revolução “bioética” e, por fim, “ecoética”. Talvez, então, e só
então, de fato compreendamos e realizemos o que Marx nos diz no preâmbulo da introdução
deste texto: “o comunismo, como um naturalismo plenamente desenvolvido, é humanismo, e
como humanismo plenamente desenvolvido, é naturalismo. É resolução definitiva do

73
Marx e seus contemporâneos muito provavelmente não entenderiam os chamados experimentos do “socialismo
real” do século XX como “realmente socialistas”. Longe disso, tanto política como economicamente, tais
experiências tendem hoje, após seus desmoronamentos, a serem consideradas pelos socialistas “realmente
resistentes” (hoje, queremos crer, emancipados do socialismo vulgar) experiências que não lograram êxito pelo fato
de não terem superado as várias determinações históricas e contextuais do modo capitalista de produção, senão os
vestígios feudais ainda presentes no período revolucionário. Assim, fatores como uma divisão social do trabalho
tradicional, a manutenção de sua exploração (ainda que patrioticamente justificável) e uma relação público-estatal
profundamente burocrática redundaram em privilégios de classe e na corrosão do tecido social dos Estados do leste
europeu. Suas economias não foram exatamente reconvertidas a Estados capitalistas, pois não ultrapassaram os
fundamentos mesmos desse modo de produção. Entretanto, neste trabalho, infelizmente não poderemos ir além desta
nota.
249

antagonismo entre o homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante.” (Karl Marx, In:
Fromm, 1979, p. 116-117).
E, por fim, se começamos com Marx, finalizemos também com ele:

Se se pressupõe o homem como homem e sua relação com o mundo como uma relação
humana, só se pode trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. Se se quiser gozar da
arte deve-se ser um homem artisticamente educado; se se quiser exercer influência sobre
outro homem, deve-se ser um homem que atue sobre os outros de modo realmente
estimulante e incitante. Cada uma das relações com o homem - e com a natureza - deve ser
uma exteriorização determinada da vida individual efetiva que se corresponda com o objeto
da vontade. Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor, enquanto amor, não produz
amor recíproco, se mediante tua exteriorização de vida como homem amante não te
convertes em homem amado, teu amor é impotente, uma desgraça” (Marx, 1987, p. 198).

Ora, tais proposições marxianas denotam uma concepção não só de homem e de


mundo, sócio-coletivamente considerados, mas especialmente da possibilidade existencial de
uma nova individualidade, subjetiva ou singularmente considerada, que ultrapassa os limites
estreitos do individualismo particularizado e egocêntrico proposto pelo liberalismo em termos
ontológicos, e que com o movimento ultraliberal se nos apresenta em toda a sua radicalidade
possível. Essa individualidade, enfim, é a que supera, também por incorporação, a condição de
individualidades em si (parciais, alienadas e prático-utilitárias) na direção de individualidades
para-si, que não se realizam mais apenas no âmbito da imediaticidade, mas das relações
constantes com o processo genérico de humanização, logo, no âmbito vital das mediações
humanamente possíveis.

2. SOBRE A REPETIÇÃO DA HISTÓRIA OU, SOBRE A TRAGÉDIA E A FARSA EM MARX


Um estudo filológico de O 18 Brumário de Louis Bonaparte foi realizado com um
rigor conceitual e riqueza documental que não poderemos contemplar neste nosso trabalho.
Trata-se do estudo de Paul-Laurent Assoun, Marx e a repetição histórica (1979), com o qual nos
deparamos após a elaboração de nosso tema e hipóteses. Digno da mais criteriosa e séria
atenção, nos limitaremos, aqui, a apresentar alguns aspectos deste trabalho, que contribuiu
sobremaneira para sustentar, mais que nossas hipóteses relacionadas à repetição histórica, o
nosso próprio ânimo para insistirmos na plausibilidade de sua aplicação à nossa tese.
O enunciado da lei da duplicação histórica está, segundo Assoun, estreitamente
associado à dupla conceitual trágico/cômico. E o esclarecimento dessa relação em Marx, que
aqui faremos com objetividade e simplicidade máximas, nos parece suficientes para o
entendimento de ambos os conceitos, que se encontram no cerne da tese aqui defendida.
Segundo Assoun:

O uso habitual que se faz da fórmula de Marx toma as palavras num sentido que,
250

curiosamente, parecia evidente, enquanto reina um mistério sobre o emprego específico que
Marx faz delas, após Hegel, na concepção da história. Precisamente, que é preciso colocar
atrás de tais palavras, em sua extensão histórica? Pois é verdade que se trata de uma
verdadeira unidade de sentido teórico que Marx enquadra cada vez que se serve dessa
oposição léxica e semântica "trágico/cômico". Tal oposição tem um sentido preciso (e, como
se verá, fundamental, ainda que estranhamente ignorado até aqui) no discurso e na
racionalidade de Marx.

Inicialmente, existe de fato um determinado emprego marxista periodicamente reatualizado


dessa dupla de conceitos. Se tal oposição parece evidente na pena de Marx, em 1852, em O
Dezoito Brumário (o que justifica em parte seu aspecto lacônico), é que ela tem um passado
já bem-estabelecido. Pode-se descobri-la na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 10
anos antes: "É instrutivo para eles (os povos modernos) ver o antigo regime, que neles viveu
sua tragédia, ter sua comédia sob a forma da aparição alemã". (Assoun, 1979, p. 81-82).

Segundo o autor, é preciso considerar essa recorrência como não-fortuita: ela é de


fato o indício de que uma considerável trama teórica se desenrola sob essa metáfora precisa e
que se deve desvendar para a elucidação dessa mesma metáfora. O verdadeiro objeto da reflexão
de Marx é a passagem da forma sublime da filosofia grega, organizada como sistema em
Aristóteles, às "ideologias" tardias, epicuristas, estóicas, céticas.

É a situação que vive a ideologia alemã após Hegel. É bastante significativo que a
comparação com o desmembramento do Império de Alexandre se encontre desde o início da
Dissertação de 1841 - na qual Aristóteles é denominado "o Alexandre da Macedônia da
filosofia grega" - e retorna na "introdução" de A ideologia Alemã - com a alusão ao desmem-
bramento do Império macedônio pelos Diádocos.

É o problema da decadência das grandes formas históricas que Marx apresenta desde o
princípio: é a alternativa da morte trágica ou cômica dessas grandes formas que se apresenta:
"A morte dos heróis assemelha-se ao pôr-do-sol, e não ao estouro de uma rã que inchou".
Essas formas decadentes da consciência, que são para Hegel o ceticismo, o epicurismo e o
estoicismo, são reabilitadas em 1841 por Marx (como pelos outros ideólogos alemães) como
experiências privilegiadas da negatividade da consciência de si e da fecundidade da crítica.
(Assoun, 1979, p. 82-83).

Em 1845, a ideologia alemã parecerá, ao contrário, irrisória - os "heróis do


pensamento" serão lançados no tragicômico. O que importa, porém, é a perenidade dessa
oposição. Repete-se a idéia-mestra do cômico como modo de revelação da subjetividade, com
sua ambivalência: o cômico-liberação e o cômico irrisório.

Em 1843, confronta-se Marx com o seguinte problema: uma vez a "crítica da religião...
terminada no essencial" (com Feuerbach), como "crítica do céu", como deve proceder "a
crítica da terra", que é "crítica da política"? Porquanto, na Alemanha, a crítica enfrenta um
estranho objeto: "A negação até do nosso presente político", constata Marx, "já se encontra,
como um fato poeirento, no desempenho histórico dos povos modernos". Donde a aporia da
critica, que é por definição posição de objeto atual e que se encontra em choque com um
objeto inactual. Com efeito, seu objeto, "o estado de coisas alemão", situando-se "por baixo
do nível da história" está, por isso mesmo, "por debaixo de toda crítica". É literalmente
anacrônica e ameaça de anacronismo a própria crítica que deve expô-lo. É assim que Marx é
levado, rico de sua experiência de combate político na Gazette Rhenane, a meditar sobre esse
fenômeno fundamental da defasagem entre a duração histórica alemã e a duração histórica
universal. É de tal meditação que provirá sua grande teoria da gênese da ideologia alemã de
251

1845. (Assoun, 1979, p. 83).

A Alemanha apresenta um estágio de produção econômica e de regime político e de


organização social já ultrapassado pela maioria das grandes nações européias: ela encarna um
regime feudal, agrícola e autocrático num mundo onde a democracia, a indústria e a burguesia se
impuseram por toda parte. Mas existe algo ainda mais estranho: "Nós tomamos. .. , diz Marx,
parte nas restaurações dos povos modernos sem haver participado de suas revoluções". O caso
alemão corresponde, portanto, a um verdadeiro monstro histórico. É preciso, aliás, tomar essas
metáforas naturalistas ao pé da letra: tem-se de fazer uma espécie de transformismo histórico.
Cada nação constitui como que um organismo que participa no processo global de evolução
histórica e está sujeito a passar sucessivamente por cada uma das fases que especificam tal
processo evolutivo. O processo se impõe universalmente a cada uma das nações, sob a mesma
forma geral, ainda que em ritmos descompassados.

Em tal esquema geral, o "caso alemão" é notável por dupla razão: de um lado, a evolução
particular que o define está em atraso em relação à evolução geral; do outro lado, e
sobretudo, a evolução particular é aberrante em relação ao esquema da evolução geral;
principalmente, o ciclo universal antigo-regime-revolução-restauração torna-se o ciclo
absurdo antigo-regime-restauração; a fase revolucionária é pura e simplesmente apagada. A
Alemanha, portanto, é mesmo um monstro histórico, tanto porque foi atingida por uma
verdadeira parada de desenvolvimento (no sentido em que se emprega o termo em
embriologia), como porque ela, não obstante, se desenvolve a partir desse princípio
patológico. (Assoun, 1979, p. 84).

Em 1843, ou seja, no extremo do processo histórico que define a atualidade onde o


próprio Marx se situa, o presente alemão corresponde a uma fixação — regressão do processo
evolutivo europeu a esse estágio ultrapassado que é o "ancien régime''. Conseqüentemente, o
regime alemão corresponde à manutenção, no seio do presente, de uma fase passada. Vale dizer
que, através do caso alemão, é seu próprio passado que vem perseguir o presente: "O status quo
alemão é o vício oculto do Estado moderno. A luta contra o presente político alemão é a luta
contra o passado dos povos modernos, e estes são ainda e sempre importunados pelas
reminiscências desse passado". (Assoun, 1979, p. 84). Esta é a idéia de fantasma histórico que
Marx deseja formular seja na Crítica, seja em O Dezoito Brumário - cf. a "aparição alemã" da
Crítica", "os espíritos do passado" ou "os espectros" em O Dezoito Brumário. (Assoun, 1979,
idem).

É por isso que o fantasma histórico é importuno para os vivos - "os povos modernos", diz
Marx, "... são ... importunados (belüstigt) pelas reminiscências do passado". É que ele traz à
baila a identidade da modernidade manifestando no seu seio o seu oposto, a antigüidade (no
sentido de antimodernidade). É por isso que a Alemanha é também o mal-estar do mundo
moderno - o que o impede de realizar a integralização do seu conceito: "O atual regime
alemão... é um anacronismo, em flagrante contradição com axiomas universalmente
reconhecidos (allgemein anerkannte Axiome), a vaidade do antigo regime exposto aos olhos
252

do mundo ... ". Derrogação da universalidade moderna, a Alemanha é portanto a desonra do


mundo moderno, o que separa este último da realização do seu próprio conceito. É o dado
que agita o jogo da história, mesclando vida e morte, presente e passado; morto-vivo,
passado represenciado. Ressuscitado do entulho histórico, o caso alemão é o obstáculo do
mundo moderno. (Assoun, 1979, p. 85).

É aqui que se pode introduzir a dupla trágico/cômico e penetrar-lhe o sentido de


Marx. O trágico na Crítica é a característica de um momento histórico ou de uma entidade
histórica (no caso, o antigo regime) tomada em sua universalidade de estrutura dominante da
ordem do mundo (e, de modo correlato, a característica de seu declínio histórico); portanto, a
característica do tipo de contradição que define esse momento ou essa entidade na dialética
histórica. A história (do antigo regime), afirma Marx, era trágica, tanto quanto o era o poder
preexistente do mundo (präexistierende Gewalt der Welt) e era a liberdade, em revanche, um
capricho pessoal (persönnlicher Einfall).

Compreendamos que, enquanto o antigo regime coincidia com a forma de poder existente
universalmente, ele rejeitava o seu oposto, a liberdade, na esfera da contingência (Einfall) e
da particularidade (persönnlicher).

De modo correlato, ele se apresentava como a ordem do mundo existente - na ordem do ser -
rejeitando o mundo adverso, o mundo da liberdade (a democracia em luta) na ordem do
mundo em devir: "Ao mesmo tempo que o antigo regime se encontrava em luta, enquanto
ordem do mundo existente (als vorhandene Weltordnung), com um mundo ainda em devir
(werdenden Welt), ele por seu turno se achava um erro da história universal
(weltgeschichtlicher Irrtum), mas não um erro pessoal (persönnlicher Irrtum)". (Assoun,
1979, p. 86).

Avançando a história por uma série de contradições que convergem para


contradições fundamentais que determinam a passagem de uma fase histórica para outra, o
trágico é a característica básica da contradição histórica fundamental. Ele define a erupção de
um certo universal (antigo regime), sob o efeito da oposição a um particular em devir
(revolução) e a produção de um novo universal a partir desse particular (democracia).

Isso significa que a contradição do antigo regime (antes de 1789 na França, por exemplo) é a
contradição generalizada e objetiva do mundo histórico: ele é a encarnação do "erro da
história universal"; sua individualidade histórica não é senão a particularização da
contradição universal. Num mundo de constrangimento universal, o antigo regime expressa
ao mesmo tempo a verdade universal - quer dizer, o dado do universo histórico - e o erro
universal. "É por isso", diz Marx, "que sua queda foi trágica." Equivale a dizer claramente
que os momentos propriamente trágicos da história são aqueles em que uma universalidade
histórica se manifesta como tal - sendo a queda o limite negativo da afirmação de tal
universalidade, sua contradição levada ao limite crítico que é também sua “verdade”.
(Assoun, 1979, p. 87).

Em oposição, o cômico é a característica de um momento histórico ou de uma


entidade histórica que perdeu sua universalidade dominante; portanto, a característica da
contradição que define esse momento ou essa entidade na dialética histórica.
253

Entendamos que, por sua vez, se havendo a liberdade tornado "a ordem do mundo
existente" (ou pelo menos dominante), a universalidade dada passou da particularidade em
direção à antiga universalidade. Invertendo-se a relação, ela se toma a exceção irrisória: "O
moderno ancien régime não passa de comediante de uma ordem do mundo cujos verdadeiros
heróis estão mortos". É o representante retardado, incongruente, num sentido extremo, de um
mundo desaparecido.

Está aí a caracterização objetiva da dupla trágico/cômico no nível da natureza da contradição


histórica. Paralelamente, porém, Marx insiste sobre sua caracterização subjetiva:
corresponde a duas formas diferentes de consciência histórica, quer dizer, a duas formas
distintas do vivido (Erleben). O vivido trágico traduz-se por uma adesão da individualidade
histórica à sua própria justificação: "Sua história (trata-se do antigo regime) era trágica...
tanto que ele próprio cria e devia crer em sua própria justificação". O vivido cômico traduz-
se por uma falsa adesão à sua justificação: “Ele (o antigo regime) imagina apenas que ainda
crê em si mesmo e exige do mundo a mesma ficção”. (Assoun, 1979, p. 88).

Que tal essência venha a ser abolida pela evolução - "A história", diz Marx, "é
radical (gründlich)" - como no segundo caso - e a consciência da individualidade histórica perde
seu fundamento - sua Selbst-beretchtigung. Essência e aparência se dissociam: entra-se na esfera
da ficção (Einbildung), do fingimento, da "hipocrisia" e do "sofisma" (Sophisma). A crença
(Glauben) substitui-se pela ilusão da crença, que se tenta generalizar impondo-a ao mundo: "Se
ele cresce ainda em sua própria essência, procuraria acaso ocultá-la sob a aparência de uma
essência estranha?" Assiste-se a uma desesperada tentativa de reconstituição de uma essência
histórica caduca - com a qual se sonha em todas as tentativas de Restauração, votadas a pro-
duzir artificialmente uma consciência histórica que já não corresponde a objetividade alguma,
portanto a um sobrelanço ideológico em via de suprir ilusoriamente essa falta de objetividade.
(Assoun, 1979, p. 89).

Não se deveria, porém, concluir que o trágico se opõe ao cômico tal como o real ao fictício.
A história não é feita de duas dimensões heterogêneas - a dimensão trágica, em que consis-
tiria sua realidade, sua efetividade, sua verdadeira essência, e a dimensão cômica, em que
consistiria sua irrealidade, sua facticidade, sua aparência ilusória. O cômico não é uma
duplicata falsa da história, seu avesso fantasmagórico: é um momento necessário de sua
realização. E é aí que se prepara a grande teoria de O Dezoito Brumário.

"A história é radical", diz Marx, "e ela atravessa muitas fases quando leva por terra uma
forma antiga. A última fase de uma forma da história universal é sua comédia." Assim, a
comédia histórica é um momento - o momento final - da aventura de uma forma histórica.
Ou antes, é o momento final do processo terminal de uma forma histórica. Ela não faz,
portanto, senão inaugurar a fase terminal da aventura da forma histórica, que somente a
segunda morte, a morte cômica, virá encerrar. (Assoun, 1979, p. 89).

Percebe-se a ambigüidade que define a fase cômica: ela pertence à história, mas lhe
define o limite, o intervalo entre aquilo que já não é mais (de direito) e aquilo que continua a ser
254

(de fato). A comédia é a modalidade específica segundo a qual uma forma histórica vive sua
própria morte.
Retomaremos, ainda uma vez, este assunto em nossas Considerações Finais, mas
julgamos oportuno antecipar, neste ponto, que a leitura que Marx propõe acerca da contraposição
entre tragédia (como drama, momento heróico etc.) e farsa (como comédia, momento burlesco
etc.), não admite uma leitura meramente lógico-formal, linear ou mecâneica dos acontecimentos
históricos. A história, em Marx, não é apenas sucessão de eventos, embora também a comporte;
não é também mero anacronismo, embora também o comporte. Ora, a história é, antes de mais
nada, resultado das ações humanas, e por isso, complexo de múltiplas determinações e
essencialmente contraditória. Daí a necessidade de ser apreendida em sua dinamicidade, o que
implica em reconhecer movimentos diversos e adversos, cíclicos ou contínuos, conflituosos ou
contínuos, ambíguos, fragmentados ou contíguos. Isto tampouco implica em tomarmos os
movimentos dos homens como naturalmente caóticos e espontâneos (irracionais) ou plenamente
intencionais e arbitrários (racionais).
O método dialético é, nesse aspecto, o método por excelência para apreensão das
contradições e antíteses daí oriundas. De nossa parte, no que se refere estritamente às nossas
hipóteses, lembramos que seria inexeqüível, no espaço deste estudo, apreendermos e
apresentarmos, ao leitor (que é também um investigador da realidade) toda a multiplicidade de
determinantes que de alguma forma conformam nossa proposição investigativa. Daí os objetivos
deste trabalho não terem sido estabelecidos a partir da monumental história da consolidação da
sociedade capitalista industrial, e sim, a partir de um período relativamente bem definido de
nossa contemporaneidade e, mais exclusivamente, do período neoliberal a partir da década de
1990. É esta delimitação espaço-temporal que nos remeteu ao passado da história do capital em
seus aspectos materiais e ideológicos em relação às esferas do trabalho e da educação, a ponto de
nessas relações identificarmos elementos comuns que num primeiro momento nos saltaram aos
olhos para, depois, se revelarem como possivelmente similares na forma e nos conteúdos, mas
numa razão histórica (em seus objetivos ideológicos, políticos, sócio-culturais e econômicos)
notavelmente inversa, período contraposto a período.

2.1. A crise do capitalismo ao final do séc. XX e o capitalismo do séc. XIX: paralelos e


contradições

Iniciamos por apresentar uma discussão contemporânea sobre os possíveis paralelos


(estritamente políticos, econômicos e ideológicos) entre as duas fases capitalistas às quais nos
remetemos neste estudo. Nós já temos elementos suficientes para compreendermos a
255

consolidação da sociedade industrial capitalista e da economia de mercado (sobretudo do


trabalho) como um período socialmente traumático, de pequenas e grandes revoluções e que
implicavam na conformação de um exército de trabalhadores totalmente dependentes de um
regime assalariado. Para isso, e sempre com vistas à produtividade e ao consumo que lhe deveria
acompanhar, o capitalismo teve de estabelecer inúmeras mudanças não só nos processos,
controles e gestão da produção e das finanças, como incutir uma nova cultura da produtividade e
da utilidade, numa magnitude “pancultural”. Segundo Duménil e Lévy (2003):

Fascinados pelas inovações contemporâneas, atualmente subestimamos muito a amplitude


das transformações que afetaram o sistema monetário e financeiro no início do século XX. A
revolução técnico-organizacional do fim do século XIX e início do século XX coincidiu com
o desenvolvimento de um importante setor financeiro, cuja relação com o sistema produtivo
se transformou: a finança deixou de ser uma simples auxiliar da atividade das empresas e do
financiamento de suas transações para tornar-se, então, a encarnação do capital enquanto
propriedade, frente ao capital enquanto função. Entre 1880 e 1929, a relação entre a
quantidade de moeda (em espécie e saldos bancários) e a produção mais do que dobrou nos
Estados Unidos, passando de 30% a 70% e permanecendo nesse nível desde então. Em 1880,
os saldos das contas bancárias equivaliam a 2 vezes o montante em espécie; essa relação
passou para 11 vezes em 1929. Simultaneamente, a bolsa havia conquistado um papel crucial
no funcionamento da economia, sendo os créditos direcionados prioritariamente aos
investimentos em ações. Um edifício complexo de instituições financeiras se constituía.
(Duménil & Lévy 2003, p. 31)

Esta primeira hegemonia esgotou-se por ocasião da crise de 1929, que introduziu um
novo período, denominado "compromisso keynesiano". Além do controle macroeconômico,
estatal e centralizado, calcado no crescimento e no emprego, numerosas limitações foram
impostas sobre as prerrogativas da finança: “as regulamentações da sua atividade nacional e
internacional (notadamente através dos acordos assinados em Bretton Woods em 1944), o
reconhecimento parcial do direito ao trabalho, inscrito em 1948 na legislação estadunidense, e o
desenvolvimento do Estado-providência. Mas esse compromisso durou apenas o espaço de
algumas décadas.” (Duménil & Lévy 2003, p. )
O fracasso das políticas keynesianas diante da crise estrutural iniciada nos anos 1970
teriam criado as circunstâncias favoráveis para o restabelecimento da hegemonia da finança, por
meio do monetarismo, seguido pelo neoliberalismo. Nesse contexto de crise e da da luta dos
assalariados, um novo conjunto de políticas foi imposto, cujas figuras emblemáticas foram Paul
Volcker, presidente do Federal Reserve, Ronald Reagan e Margaret Thatcher. A alta das taxas de
juros de 1979 (o golpe de 1979) foi o elemento maior do restabelecimento das prerrogativas da
finança. Este foi um processo consciente, deliberado, cuidadosamente orquestrado, e não o
resultado de um mecanismo de mercado qualquer. Esteve longe, portanto, de uma evolução
natural do sistema, tão ao gosto dos ideólogos liberais.
256

Aquilo que havíamos apresentado no início da seção precedente como um simples


paralelo entre cadeias de acontecimentos similares, no fim do século XIX e no fim do século
XX, revelou tratar-se de processos de uma mesma natureza, que aparecem como várias etapas de
uma mesma evolução. A relação de propriedade capitalista em sua plenitude, como propriedade
dos meios de produção, incluía tradicionalmente a propriedade no sentido jurídico do termo
(abrangendo o direito de dispor dos bens e da renda que eles proporcionam) e a capacidade de
utilizar essa propriedade (ou seja, as funções daquilo que Marx chamava de "capitalista ativo").
Pela "separação da propriedade e da gestão", a propriedade assume um sentido estrito (jurídico),
e a gestão compreende as funções capitalistas delegadas. Sobre estes dois terrenos, propriedade e
gestão, a continuidade entre os acontecimentos característicos dos dois finais de século é
surpreendente, como observam Duménil & Lévy, a seguir:

A transformação da relação de propriedade e sua ambivalência, sob certo ângulo, a separação


da propriedade e da gestão, nos Estados Unidos do final do século XIX, reforçou a
propriedade capitalista através de sua financeirização e de sua institucionalização. Sob outro
ponto de vista, a distância entre o proprietário e os meios de produção aumentou considera-
velmente, afrouxando o aspecto funcional da relação de propriedade, por intermédio da
delegação da gestão. O capitalismo neoliberal, aquele das instituições financeiras
gigantescas, dos fundos de investimento, prolonga essa financeirização e essa
institucionalização, com a mesma ambigüidade: tamanho e força de um lado, distância de
outro lado. No próprio interior das instituições financeiras, sua dimensão cria a necessidade
de uma delegação de competência e de ação aos gestores assalariados, de uma forma similar
àquela a que as empresas não-financeiras haviam recorrido. Trata-se, portanto, da
continuidade da mesma evolução, fenômeno que se verifica através da sucessão das formas
jurídicas da propriedade. (Duménil & Lévy 2003, p. 33 – itálicos nossos)

A gestão das grandes empresas não-financeiras tornou-se, na passagem do século


XIX ao XX, incumbência dos gestores, amparados pelos empregados, distribuídos numa
estrutura fortemente hierárquica. No decorrer de algumas décadas, isso provocou um
considerável ganho de eficiência, que exigiu a generalização e o aperfeiçoamento dessa nova
configuração social. O progressivo esgotamento de suas potencialidades restituiu à mudança
técnica suas características tradicionais, no sentido proposto por Marx. A onda de progressos de
gestão das últimas décadas do século XX, impulsionada principalmente pelas tecnologias de
informação e comunicação, promoveu uma renovação dessas performances do progresso técnico.
Em uma grande medida, pode-se falar de uma revolução pela gestão no início do século, e de
uma revolução na gestão ao longo das últimas décadas.
Pelo o que foi exposto acima, é preciso acrescentar a sucessão das duas hegemonias
da finança: aquela do início do século XX e aquela do neoliberalismo, que reforça ainda essa
impressão de continuidade, mesmo que essas duas hegemonias tenham sido separadas (após a
crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial) pelas políticas keynesianas e pelo desenvolvimento
257

dos sistemas de proteção social. Nos Estados Unidos, a expressão "repressão financeira" é
utilizada para designar o recuo das prerrogativas da finança no período.

Não é, portanto, surpreendente que a finança (e suas rendas) tenha suportado, num primeiro
momento, uma parte do custo da crise estrutural dos anos 1970. Mas, com o advento do
neoliberalismo, a finança pôde retornar à situação que lhe era vantajosa. Sob o ponto de vista
da hegemonia financeira, pode-se falar de restabelecimento, muito mais do que de
prosseguimento de uma mesma evolução. (Duménil & Lévy 2003, p. 34)

Estas considerações nos são importantes, no âmbito de nossa comparação entre os


dois períodos, na medida em que os autores reconhecem o restabelecimento de uma condição
inaugurada no primeiro período, ainda que com novas peculiaridades e roupagens, embora,
ressaltem os autores, isto não nos autorize, numa leitura dialética, o esquecimento da totalidade
dos processos em cena:

A dinâmica histórica dessas transformações reúnem diversos elementos - forças produtivas,


relações de produção e lutas - numa rede de interdependências: É preciso evitar que se faça,
a esse respeito, leituras mecanicistas e unilaterais. Forças produtivas e relações de produção
interagem. Por exemplo, a luta entre patrões tradicionais no início do século XX tendeu a
preservar a propriedade individual diante do big business. A promulgação de leis sobre as
empresas e as holdings permitiu a difusão da nova configuração do capitalismo moderno, no
centro do qual se encontrava a finança, favorecendo as novas formas de organização e a
administração dos gestores e empregados. Nessa dialética, as formas de propriedade
aparecem, sucessiva e simultaneamente, como freio e motor. O mesmo ocorre com as
transformações dos anos 1980. Mas nem toda inovação institucional é uma garantia de
progresso; a História produz ajustamentos graduais ou violentos. Dessa forma, é muito difícil
fazer, no novo curso do capitalismo, a separação entre a ação da finança como motor do
restabelecimento de uma orientação favorável das performances da mudança técnica, e como
freio de uma superação pela proibição de vias alternativas. Diante do controle da finança
sobre a propriedade e de sua imposição como parceira inevitável, nenhuma reestruturação
maior pode-se fazer sem ela, a menos que seu poder seja questionado; ela é também geradora
de especulação e de instabilidade. (Duménil & Lévy 2003, p. 38)

Se faz necessário sublinhar que a distinção que nós introduzimos entre a dialética das
forças produtivas e as relações de produção, de um lado, e as lutas, de outro lado, mais enfatiza
as interdependências do que as nega. Quando sustentamos que as classes dirigentes reafirmaram
no neoliberalismo a primazia do critério de maximização da taxa de lucro (impondo uma
disciplina aos gestores, ao invés de compartilhar com eles a responsabilidade da gestão, e
fazendo regredir os obstáculos legais e regulamentares), é preciso compreender que esta ação
reforça o caráter capitalista das relações de produção.

É difícil privilegiar, na definição de fases do capitalismo, um ponto de vista particular (a


mudança técnica, as crises, as lutas de classes, as mudanças institucionais...). Nenhum deles
se impõe de maneira evidente. As grandes crises do final do século XIX, dos anos 1930 e dos
anos 1970 delimitam igualmente quatro períodos, embora não exatamente os mesmos, pois o
episódio da recuperação da produtividade do capital (e da taxa de lucro) se estenda através
da Segunda Guerra Mundial, para além da crise de 1929. As dominações e os compromissos
de classe desenham três períodos: a primeira hegemonia da finança, o compromisso
keynesiano e a segunda hegemonia da finança. Mas poderíamos privilegiar alguns desses
258

cortes, opondo, por exemplo, um capitalismo pré-gerencial, segundo a terminologia corrente


nos Estados Unidos — os franceses diriam um capitalismo pré-cadriste — a um capitalismo
posterior à revolução gerencial, ou um capitalismo pré-keynesiano e posterior à maturidade
da política monetária. Essas periodizações não são rigorosamente coincidentes, mas
representam várias leituras da mesma dinâmica histórica. (Duménil & Lévy 2003, p. 39).

Todavia, os autores não hesitam em falar de uma nova fase do capitalismo para
caracterizar o novo curso que ele segue desde meados dos anos de 1980. Mas é preciso,
igualmente, ressaltar as ambigüidades inerentes a uma tal afirmação. Isto é ainda mais
importante porque elas possuem um forte conteúdo ideológico:

Contrariamente ao que sugere a propaganda neoliberal, a preponderância atual da finança


não é uma condição necessária ao prosseguimento da História. Seria errôneo fazer do
neoliberalismo a nova fase do capitalismo, ainda que as transformações acima enunciadas
tenham-se produzido sob a hegemonia financeira. A finança desencadeou essas evoluções
em uma certa medida, mas muitos de seus aspectos sobreviverão à superação do
neoliberalismo. Se uma grande crise, similar à ocorrida nos anos 1930, eclodisse no centro, a
história repetir-se-ia de maneira desconcertante. Mas o neoliberalismo pode também se
extinguir gradualmente, de maneira menos espetacular. Serão as lutas de classes — das
classes dominadas e dominantes, de suas diferentes frações — que ditarão os calendários e
seus conteúdos. (Duménil & Lévy 2003, p. 40-41).

Se entendemos por mudança de curso do capitalismo a substituição de um período de


diminuição da rentabilidade do capital e de redução do crescimento por um período de
restabelecimento da rentabilidade e do crescimento, as primeiras e as últimas décadas do século
XX se parecem. Acabamos de viver uma tal reversão e ela possui um precedente. Por duas vezes,
a mudança foi comandada por crises estruturais.
O final do século XIX foi marcado, na Europa e nos Estados Unidos, pela existência
de uma crise estrutural, ainda que esta tenha assumido modalidades diferentes em cada uma
dessas regiões. Entre os anos 1880 e a crise estrutural dos anos 1890, a taxa de lucro desabou.
Uma tendência à alta da rentabilidade afirmou-se lentamente a partir da Primeira Guerra
Mundial, mediante a alta da produtividade do capital. A tendência geral do crescimento
econômico foi, igualmente, restabelecida.
A existência dessa recuperação e sua análise nos remetem à dinâmica do capitalismo.
Pode-se distinguir dois aspectos: 1) uma revolução técnico-organizacional; 2) a explosão dos
mecanismos monetários e financeiros e das rendas financeiras, e as políticas correspondentes.

A crise dos anos 1890 foi seguida, nos Estados Unidos, por uma transformação das
instituições do capitalismo portadora de uma revolução da técnica e da organização das
empresas. O tamanho das unidades de produção já havia aumentado e a mecanização da
produção havia conhecido novos desenvolvimentos no final do século XIX. Essa tendência
provocou uma verdadeira revolução, a revolução da gestão (managerial revolution), cuja
maturação demandou várias décadas. Mas essa revolução não teria sido possível sem uma
transformação concomitante das formas de propriedade. Ao final de uma crise da
concorrência (marcada pelo desenvolvimento de trustes e cartéis), formaram-se, no intervalo
de dois ou três anos antes e após 1900, grandes sociedades anônimas, num momento em que
259

ocorria uma vaga de fusões sem precedentes (THORELLI, 1995; PERITZ, 1996 – citados
por Duménil & Lévy, 2003). As novas leis sobre as sociedades e as holdings forneceram as
bases jurídicas dessa revolução, conhecida nos Estados Unidos como corporate revolution
(revolução das corporações). As grandes corporações contribuíram para o desenvolvimento
de vastos Estados-maior de gestores e de empregados, distribuídos em uma organização
hierárquica piramidal. (Duménil & Lévy 2003, p. 26-27).

A técnica e a organização das empresas viram-se metamorfoseadas. Insiste-se


freqüentemente sobre a fábrica e sua organização científica, o taylorismo. Mas essa outra
revolução atingiu todos os aspectos do funcionamento das empresas: além da organização da
produção, afetou a comercialização, a gestão dos estoques, do financiamento e da tesouraria, a
gestão do pessoal etc. O arquétipo disto é a linha de montagem. A mecanização permitia
tradicionalmente economizar trabalho e aumentar a produtividade do trabalho, mas o custo, em
termos de capital, era grande. A proporção entre capital e trabalho aumentava consi-
deravelmente. O taylorismo e a cadeia de montagem impulsionaram essa lógica de ganhos de
produtividade ao extremo mas, simultaneamente, garantiram a utilização contínua e intensa da
máquina. O capital investido nas técnicas permitia um aumento da produção superior ao que era
obtido na fábrica tradicional. A produtividade do capital, que diminuía conforme o andamento
anterior da mudança técnica, começou a crescer, desencadeando o aumento da rentabilidade do
capital. Foi esta revolução da gestão, sempre num sentido muito geral, que permitiu a inversão
da tendência da taxa de lucro — isto é, seu aumento ao invés de sua diminuição — apesar de
uma taxa de crescimento do salário real mais elevada. Foi ela que deu à nova fase em que o
capitalismo ingressou nas primeiras décadas do século XX um de seus traços fundamentais: a
eficiência.
Ao analisar o fenômeno a que denominou americanismo e fordismo, Gramsci
(1934/2001), põe em relevo que estes processos implicavam em mudanças essencialmente
programáticas para o sistema capitalista, o que certamente implica na busca da conjugação da
eficiência produtiva através de uma política de gestão apropriada. Ora, uma economia
programática estaria marcando exatamente o fim de uma economia baseada em ações
individuais, ou seja, pela quais o indivíduo ainda pode ser considerado um produtor completo.
Numa economia programática é a ação coletiva (mais que social) o que possibilita um novo
ritmo de produção eficiente:

“Pode-se dizer, de modo genérico, que o americanismo e o fordismo resultam da necessidade


imanente de chegar à organização de uma economia programática e que os diversos
problemas examinados deveriam ser os elos da cadeia que marcam precisamente a passagem
do velho individualismo econômico para a economia programática [...]" (Gramsci,
1934/2001, p. 241).

“[...] À parte o fato de que os altos salários não representam na prática industrial de Ford
aquilo que Ford teoricamente quer que signifiquem (cf. notas sobre o significado essencial
260

dos altos salários como meio para selecionar uma mão-de-obra adequada ao fordismo, seja
como método de produção e de trabalho, seja como sistema comercial e financeiro:
necessidade de não ter interrupções no trabalho, logo open shop, etc.), deve-se notar: em
certos países de capitalismo atrasado e de composição econômica em que se equilibram a
grande indústria moderna, o artesanato, a pequena e média cultura agrícola e o latifundismo,
as massas operárias e camponesas não são consideradas como um "mercado". O mercado
para a indústria é visto como estando situado no exterior, e em países atrasados do exterior,
nos quais haja maior possibilidade de penetração política para a criação de colônias e de
zonas de influência. A indústria, com o protecionismo interno e os baixos salários, busca
mercados externos através de um verdadeiro dumping permanente.” (Gramsci, 1934/2001, p.
305).

Ora, apesar do caráter esparso das notas de Gramsci, nota-se que ele compreende o
regime programático do fordismo, que inclui salários elevados, como forma não apenas de elevar
a produção e a eficiência de seus processos, mas também assegurar o estabelecimento de um
mercado amplo para a própria produção, o que necessariamente incluiria uma classe trabalhadora
incitada e seduzida ao consumo dos bens industrializados. Senão, vejamos esta outra passagem:

Países onde existe nacionalismo, mas não uma situação "nacionalpopular", ou seja, onde as
grandes massas populares são consideradas como gado. A permanência de uma camada
artesanal industrial tão considerável em alguns países não estará ligada precisamente ao fato
de que as grandes massas camponesas não são consideradas como um mercado para a grande
indústria, que tem predominantemente um mercado externo? E o chamado renascimento ou
defesa do artesanato não expressará precisamente a vontade de conservar esta situação em
detrimento dos camponeses mais pobres, aos quais se impede qualquer progresso? (Gramsci,
1934/2001, p. 306).

Essas transformações de fato tiveram os Estados Unidos como pátria, sendo


exportadas com um certo atraso para a Europa e o Japão. Depois da Segunda Guerra Mundial, a
dianteira estadunidense era muito forte e as primeiras décadas do pós-guerra foram marcadas por
um gradual processo de recuperação dos países europeus e do Japão. As novas tecnologias que
se desenvolvem atualmente são as tecnologias da gestão, referentes à obtenção, ao tratamento e
à transmissão da informação. Esse paralelo entre as duas grandes crises e as tendências que as
precederam, bem como entre os dois períodos que as sucederam, desenha um perfil histórico que
indica uma onda (muito) longa. Mas o paralelo prossegue no que concerne ao segundo aspecto
do novo curso do capitalismo: as novas instituições financeiras e as políticas.
Este regime de acumulação com dominância financeira tem uma relação com a
"globalização" ou, mais exatamente, com a mundialização do capital, que é preciso explicitar
brevemente em seus aspectos políticos e ideológicos. Segundo François Chesnais:

O termo "nova economia" foi inventado por jornalistas dos Estados Unidos treinados para
encontrar elementos "novos", que são por eles batizados em sintonia com o "imaginário" de
seus leitores. A iniciativa, neste caso, coube ao semanário Business Week. Enquanto Alan
Greenspan julgava (em 1996, pois em seguida ele mudou de opinião) que o nível das
cotações em Wall Street estava associado a uma "exuberância irracional", os defensores da
"nova economia" pareciam fornecer argumentos que permitiam atribuir o vigor da expansão
261

cíclica a fatores enraizados na economia real. A aceleração da difusão de tecnologias de


informação e comunicação (TI) e a retomada do crescimento da produtividade do trabalho,
bem como da produtividade total dos fatores, pareciam oferecer uma explicação satisfatória
para a cotação elevada das ações. (Chesnais, 2003, p. 45)

Um levantamento de Chesnais a respeito da designação do termo, revela com maior


profundidade o quanto a referência a uma “Nova Economia” é vagamente tratado ou explicado
pelos principais organismos internacionais que a ela se remetem:

A definição do que vem a ser a "nova economia", além de difícil de ser encontrada, é pouco
precisa. O relatório publicado sob esse título pelo Conselho de Análise Econômica, colabora
para a consolidação do mito ao considerar, de uma maneira bastante vaga, "que o mesmo
termo é utilizado para designar um setor efervescente, relacionado às indústrias de
informação e telecomunicações (as TI) e uma nova maneira de apreender a economia em seu
conjunto." (Conselho de Análise Econômica, 2000, p. 9) O estudo principal diz respeito, em
sua quase totalidade, a essa "efervescência" e o faz como se ela pudesse ser abstraída da
bolha financeira e dos grandes riscos financeiros sistêmicos. A Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por seu turno, publicou recentemente
um estudo cujo título é mais prudente, posto que formulado na interrogativa (OCDE, 2000)'.
Os autores notam que o termo nasceu e foi legitimado apenas pelos Estados Unidos. Os
trabalhos disponíveis permitem dizer no máximo que a "nova economia" poderia (a OCDE
emprega o condicional) anunciar um crescimento tendencial mais forte, uma vez que as TI
promovem modos de gestão mais eficazes das empresas e um crescimento mais forte da
produtividade multifatorial. Ela poderia ter modificado o ciclo econômico (novamente no
condicional). Enfim, e essa é a única certeza para a OCDE, ela "modificou os setores que
promovem o crescimento." (Chesnais, 2003, p. 45)

Chesnais entende que a expressão "nova economia" se mostra mais obscura que o
próprio conceito de “globalização”, revelando, portanto, uma forte conotação ideológica. Devido
à sua fluidez, “ela ofereceu àqueles que, em todo o mundo, esperavam que o capitalismo
estadunidense lhes mostrasse o futuro, uma interpretação tranqüilizadora sobre a situação
econômica dos Estados Unidos.” E, de forma contundente, afirma que “o sucesso do termo
ilustra também a maneira pela qual o campo analítico restrito da teoria padronizada coloca a
maioria dos economistas a reboque dos jornalistas.” Isto se mostra como, no mínimo,
preocupante mediante a difusão e amplitude que o termo ganharia junto a todos os organismos
financeiros e governos pelo mundo. Desse modo, retomando a questão da financeirização
econômica, para Chesnais:

O regime financeirizado é uma "produção" dos países capitalistas avançados, com os


Estados Unidos e o Reino Unido à frente. Ele é indissociável das derrotas sofridas pela
classe operária ocidental, bem como da restauração capitalista na ex-União Soviética. e nas
pretensas "democracias populares". Ele não é mundializado no sentido em que englobaria o
conjunto da economia mundial numa totalidade sistêmicas. Inversamente, ele é efetivamente
mundializado no sentido em que seu funcionamento exige, a ponto de ser consubstancial à
sua existência, um grau bastante elevado de liberalização e de desregulamentação não apenas
da finança, mas também do investimento externo direto (IED) e das trocas comerciais. Essas
medidas não devem ser impostas somente nos países onde o novo regime de acumulação foi
implantado. Elas devem ser impostas em todos os lugares. Um processo de construção
institucional internacional, tanto de fato quanto de direito, conduzido pelos Estados Unidos,
262

o G-7, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (os elaboradores do


suposto "Consenso de Washington"), formalizado na Europa pelo Tratado de Maastricht e
apoiado em seguida pela Organização Mundial do Comércio (OMC), tornou a "adesão" dos
países obrigatória e reduziu sua margem de escolha quanto às formas de sua "inserção
internacional" a sua mais simples expressão". (Chesnais, 2003, p. 52)

Essa "mundialização financeira" possui, evidentemente, a função de garantir a


apropriação, em condições tão regulares e seguras quanto possível, das rendas financeiras,
através de juros e dividendos, em escala mundial. Desde as "reformas" introduzidas a partir da
crise asiática, este processo teve a finalidade de permitir a valorização de um capital de
investimento financeiro em todos os países capazes de acolher capitais de investimento
estrangeiro. Para isso, esses países foram levados a se dobrar frente às imposições da
liberalização financeira orientadas pelo FMI. Todavia, não seria suficiente ao regime de
acumulação financeirizado satisfazer-se apenas com a liberalização das finanças. Era também
preciso que a nova interpenetração entre "finança" e "indústria" exigisse que os grupos pudessem
usufruir de uma liberdade total de localização de áreas de abastecimento, de produção e de
comercialização, portanto, de uma liberalização completa do IED e das trocas, bem como da
abolição de todo o constrangimento sobre o abastecimento local, anteriormente contrangidos
pela autonomia, ainda que relativa, dos Estados Nacionais:

Estes são os objetivos perseguidos com a criação do Acordo de Livre Comércio da América
do Norte (Nafta) no nível regional e da OMC no nível mundial. Houve fracasso no caso do
Acordo Multilateral de Investimento (AMI), mas este foi em grande parte compensado pela
presença de um quadro de disposições draconianas acerca da abertura dos mercados
públicos, como a abertura e a desregulamentação dos serviços públicos - exemplo do Acordo
Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS), no Tratado de Marrakesh. Graças a tais
instituições e a tais mecanismos, o regime de acumulação com dominância financeira é
mundializado no sentido em que ele organiza uma projeção internacional muito forte e
influência da dominação sistêmica da parte dos países capitalistas onde o regime se instituiu
primeiramente. (Chesnais, 2003, p. 53)

A "globalização" exige, de uma maneira ainda mais forte que no passado, que a
economia mundial seja apreendida "não como uma mera adição de suas unidades nacionais, mas
como uma poderosa realidade independente criada pela divisão do trabalho e pelo mercado
mundial que domina todos os mercados nacionais" (Trotski, 1985 – citado por Chesnais, 2003,
p.45).
Estas rápidas menções às colocações destes autores se prestam: 1) a demonstrar que
o período neoliberal reflete a tentativa radical de resgatar ou restabelecer o domínio do capital
(após o rompimento do compromisso keynesiano) através do monetarismo ou hegemonia das
finanças, que passam a ser controladas e ditadas pelo próprio capital, em detrimento de qualquer
controle social ou estatal, através da gestão financeira e seus agentes; 2) evidenciar que, para
além dos avanços técno-científicos ligados à gestão globalizada das finanças e da produção
263

material (insuprimível), e embora seja um fato a evolução das mesmas sobretudo através dos
meios informatizados (gestão da informação), estas mudanças são política e ideológicamente
apresentadas como determinações em si para a uma “nova” fase do capitalismo,
eufemisticamente denomina fase da “nova economia” por meio da “globalização”; 3) evidenciar,
conclusivamente, que o que é apresentado como mudança, revolução ou novidade restringe-se,
portanto, aos meios de o capital atingir suas finalidades de acumulação, finalidades estas
obscurecidas por uma série de apologias e mistificações que ocultam ou dissimulam, das
sociedades, os seus reais compromissos e objetivos.
A ocultação e mistificação dos reais compromissos e finalidades do movimento
ultraliberal contemporâneo não pode ter outra função, numa organização social e produtiva
predatória e destrutiva, que a manutenção da hegemonia dos indivíduos, grupos, corporações e
“nações-corporações” dominantes, mediante as contradições do sistema que coordenam e suas
conseqüências negativas sobre aqueles que, mistificados, seduzidos ou cooptados, contribuem
ativa ou passivamente para sua continuidade.

2.2. O discurso da “inclusão” e a legitimação da precarização ultraliberal: a estratégia da


transferência, por subjetivação, das conseqüências da crise capitalista contemporânea à
população trabalhadora.

Os críticos do neoliberalismo são também unânimes quanto ao fato de que este


processo de reordenação dos princípios e práticas capitalistas, ao concorrer para uma enorme
redução da alocação de trabalhadores na estrutura produtiva, submeteu e tem submetido a
maioria dos indivíduos da classe trabalhadora a uma acentuada depauperação econômica e, desse
modo, a uma assombrosa possibilidade de marginalização, com sérias limitações quanto às
possibilidades de usufruírem os mercados de bens e serviços, cada vez mais restritivos e
exigentes quanto ao perfil e capacidades dos chamados “cidadãos” da nova economia, agora
efetivamente reduzidos à condição de consumidores.
Após praticamente 25 anos de experiências fundamentadas nos pressupostos
neoliberais em todo o mundo, e mesmo diante da atual tendência de diminuição de seu prestígio
e aceitação pública, dois fenômenos se tornaram, portanto, cada vez mais evidentes nas nações
onde os mesmos tenham sido de fato implementados: o primeiro, o da redução e concentração do
número de indivíduos incluídos no atual contexto de produção e de consumo de mercadorias,
serviços e bens sócio-culturais, nestas sociedades; o outro, o da ampliação do número de
indivíduos precarizados ou, como defendem muitos, em iminência de serem excluídos, tanto dos
processos produtivos e de consumo mencionados, essenciais às suas sobrevivências materiais,
como do usufruto dos bens sócio-culturais humanos, o que, por conseguinte, concorre a que tais
264

indivíduos estejam sujeitos a sérios comprometimentos quanto à instauração e manutenção de


seus processos humano-genéricos de socialização74 (cf. Sader & Gentili, 1999 e 2000; Gentili &
Frigotto, 2001; Antunes, 2001; Arroyo, 2001; Paiva, 2001; Freitas, 2002; Mészaros, 2002).
Segundo Bader Sawaia, embora a exclusão seja o “tema da atualidade”, sendo
utilizado nas mais diferentes áreas e contextos do conhecimento, seu conceito tem se apresentado
como pouco preciso ou mesmo dúbio, permitindo usos retóricos de diferentes qualidades, desde
a concepção de “desigualdade como resultante de deficiência ou inadaptação individual, falta de
qualquer coisa, um sinônimo do sufixo sem (less), até de injustiça e exploração social.” Um
conceito, por fim, muito abrangente, “que provoca consensos sem que se saiba ao certo o
significado que está em jogo” (Sawaia et al., 2001, p.7). Partilhamos, aqui, a posição desta autora
ao propor a substituição do termo exclusão, enquanto suposta condição em si, pela relação
dialética entre exclusão/inclusão. Por este ponto de vista, a exclusão passa a ser entendida como
processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas,
relacionais e subjetivas. Nesse sentido, é processo dialético “pois só existe em relação à inclusão
como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem
por inteiro e suas relações com os outros” (Sawaia, et alii, 2001, p. 9) Enfim, não teria uma única
forma e nem seria uma “falha do sistema”, senão, “produto do funcionamento do sistema”
(Sawaia, op. cit., idem).
Acreditamos que Acácia Kuenzer capta este movimento de dissimulação do processo
de exclusão através do paradoxo que caracterizou com a expressão exclusão includente e
inclusão excludente (Kuenzer, 2002). Nas palavras da própria autora, o processo de exclusão
includente pode ser verificado através de:

[...] várias estratégias para excluir o trabalhador do mercado formal, no qual ele tinha direitos
assegurados e melhores condições de trabalho e, ao mesmo tempo, são colocadas estratégias
de inclusão no mundo do trabalho, mas sob condições precárias. Assim é que trabalhadores
são desempregados e reempregados com salários mais baixos, mesmo que com carteira
assinada; ou reintegrados ao mundo do trabalho através de empresas terceirizadas, prestando
os mesmos serviços; ou prestando serviços na informalidade, de modo que o setor
reestruturado se alimenta e mantém sua competitividade através do trabalho precarizado.
(Kuenzer, 2002, p. 92 – itálicos nossos).

74
Nossa crítica quanto à exacerbação do processo de precarização no período neoliberal não quer significar, ainda
que este se apresente como opositor do Estado de Bem-Estar, a defesa da manutenção desse último. Entendemos
ambos os movimentos como oportunos às necessidades do capitalismo em diferentes contextos, o Welfare State
surgindo pela ameaça do comunismo e se consolidando pela Guerra Fria que sucede a Segunda Guerra, e o
movimento neoliberal sendo propiciado pela crise estrutural daquele e o fim das chamadas experiências
“socialistas” do século XX, no leste europeu. Assim, se no momento capitalista anterior o processo de
inclusão/exclusão fora em parte atenuado (sobretudo nos países capitalistas centrais), com o neoliberalismo não há
mais reservas e constrangimentos quanto à agudização do referido processo. Enfim, não importa com que
intensidade, a exclusão, como dissemos, é intrínseca à própria lógica do modo de produção que a instaura.
265

Por sua vez, o processo complementar de inclusão excludente, obedeceria, segundo a


autora, outra lógica, equivalente à primeira, mas em sentido contrário, e diretamente relacionada
ao processo educativo, que consiste em:

[...] estratégias de inclusão nos diversos níveis e modalidades da educação escolar aos quais
não correspondam os necessários padrões de qualidade que permitam a formação de
identidades autônomas intelectual e eticamente, capazes de responder e superar as demandas
do capitalismo; ou, na linguagem toyotista, homens e mulheres flexíveis, capazes de resolver
problemas novos com rapidez e eficiência, acompanhando as mudanças e educando-se
permanentemente. (Kuenzer, op. cit., p. 92-93).

Nesse aspecto, elenca uma série de estratégias que supostamente visam ampliar as
condições de qualificação para o mundo do trabalho, fundamentalmente através da educação em
seus diversos níveis e com a instauração de novas e variadas modalidades. Assim, estabelecem-
se estratégias como ciclagem, aceleração de fluxo, progressão automática, classes de aceleração,
atividades de formação supletiva etc., como fórmulas de democratização dos processos
educacionais, conquanto, de fato, destituídos justamente da dimensão qualitativa, prestam-se
apenas a uma falsa idéia de ampliação do alcance do ensino. Por outro lado, criam-se inúmeras
modalidades de formação, além das tradicionais, com certificações em geral apenas formais, que
substituem a educação em termos do que lhe seria fundamental, sob a forma de “cursos
aligeirados de formação profissional, que supostamente melhorarão as condições de
empregabilidade.” (Kunzer, op. cit., p. 93). São estas, enfim, as estratégias, segundo a autora,
que “conferem ´certificação vazia`, e por isto mesmo, constituem-se em modalidades aparentes
de inclusão que fornecerão a justificativa, pela incompetência, para a exclusão do mundo do
trabalho, dos direitos e das formas dignas de existência” (Kuenzer, op. cit., p. 93 – itálicos
nossos).
É por esse processo que o movimento neoliberal de recomposição capitalista estende
seus desígnios, finalmente e de modo efetivo, à própria educação, nela instaurando um novo
paradigma pedagógico — ou, na melhor tradição gramsciana, o que poderíamos talvez chamar
de o novo ícone do princípio educativo do trabalho: a pedagogia das competências. Em termos
de seus efeitos sobre a sociedade, deparamos, por decorrência, com uma das conseqüências mais
perversas do movimento capitalista contemporâneo (seja este entendido como “nova economia”,
“ajustamento econômico”, “globalização da economia”, “neoliberalização” etc.), o qual, ao
mesmo tempo em que gera o que poderíamos chamar de uma inclusão restritiva, produz
necessariamente a exclusão extensiva das parcelas majoritárias da população, assumindo,
entretanto, e unilateralmente, a inclusão como sua única e legítima criação. Para tornar
socialmente aceitável essa relação de discriminação, o sistema oculta e liberta-se de sua outra
criatura, a exclusão, reportando-a como oriunda de um processo independente e autógeno de
266

criação. Em outros termos, ela transfere às suas próprias criaturas a responsabilidade exclusiva
por suas existências malogradas ou marginais, seus sucessos e seus fracassos, principalmente
através da particularização individualizada de tais responsabilidades por traços tão
imponderáveis, em termos psicológicos e sociais, como aptidões, habilidades, adaptabilidade,
inclinações de caráter, graus de inteligência, assertividade, hereditariedade, competência etc.
Concordamos uma vez mais com Sawaia quando nos propõe a lógica dialética como
o grande instrumento capaz de desvelar uma tal relação contraditória, na medida em que:
...explicita a reversibilidade da relação entre subjetividade e legitimação social e revela as
filigranas do processo que liga o excluído ao resto da sociedade no processo de manutenção
da ordem social, como por exemplo, o papel central que a idéia de “nós” desempenha no
mecanismo psicológico principal da coação social nas sociedades onde prevalece o fantasma
do uno e da desigualdade, que é o de culpabilização individual. (Sawaia et alii, 2001, p. 9 -
itálicos nossos).

Portanto, dentro do modelo produtivo e de organização social atual, a educação,


enquanto elemento fundamental à socialização dos indivíduos humanos através da apropriação
dos conhecimentos imprescindíveis aos seus processos de socialização (inserção no próprio
gênero humano), apresenta-se, ao mesmo tempo, como elemento ideologicamente estratégico à
própria legitimação do seu processo oposto, ou seja, de desumanização, na medida em que se
preste a explicar, por exemplo, a dimensão excludente do processo de produção em questão pela
lógica da inaptidão e do fracasso particulares.
Verificamos aqui a dupla condição sócio-histórica da educação sistematizada dentro
das sociedades de classes contemporâneas, em que, se por um lado se nos revela enquanto
instância potencialmente promovedora de apropriações fundamentais ao processo de
desenvolvimento tecnológico e de humanização de nossos indivíduos e grupos — o que implica
o oferecimento de conhecimentos fundamentais a novas possibilidades de transformação da
realidade natural e humana —, ao mesmo tempo se nos revela também como instância de
reprodução e conservação das condições sociais estabelecidas, que confrontam e mesmo
contrariam o processo de humanização. É inevitável salientarmos, portanto, a condição histórica
da educação formal enquanto elemento fundamental na reprodução estrutural e funcional das
sociedades capitalistas, devidamente denunciada e criticada por inúmeros investigadores
sociais.75
Conquanto, como nos propõe Heller em suas análises sobre as categorias de

75
Sobretudo, Althusser, em Ideologie et appareils ideologique d’Etat (1970); Bourdieu & Passeron, em Les
héritiers (1964) e La reproduction (1970); Bowles, em Unequal education and the reproduction of the social
division of labour (1972); Bowles & Gintis, em Schoooling in Capitalist America (1976); Baudelot & Establet, em
L’ecole capitaliste en France (1971) e Snyders, em Ecole, classe et lutte des classes (1975).
267

cotidiano e não-cotidiano (cf. Heller, 1997), a esfera da reprodutividade seja condição elementar
e ineliminável da própria existência humana, é possível concluir ser a educação mediada o
processo fundamental e necessário a que a mera reprodução cotidiana possa ser confrontada,
transformada e, por fim, socialmente superada. Nesse sentido, o desvelamento do lugar e papel
do processo educativo, no atual movimento neoliberal de reorientação do capitalismo mundial,
se apresenta como potencialmente possibilitador de compreensões que possam contribuir para a
superação da concepção dicotômica atualmente em voga em nossas sociedades, acerca da relação
existente entre inclusão e exclusão social tomadas, em geral, como fenômenos apenas
coexistentes e extrínsecos, de modo que os mesmos sejam compreendidos, inversamente, como
intrínsecos, complementares e perpetrados dentro de um mesmo processo, organização e
funcionamento sociais.

3. A ATIVIDADE VITAL DO TRABALHO E O PAPEL DA EDUCAÇÃO NO PROCESSO DE


DESENVOLVIMENTO HUMANO-GENÉRICO

Nos aproximamos agora do papel complementar fundamental da educação para o


processo de consolidação do gênero humano. Como haveremos de perceber, ambos os processos
se imbricam. Pelo ensino os indivíduos e coletividades humanas se apropriam dos legados
historicamente constituídos pelas gerações precedentes e contemporâneas, o que torna possível
que o homem tanto faça parte da realidade propriamente humana como também sobre ela reflita,
nela interfira e nela promova mudanças.
Ao cumprir seu papel de mediador de apropriações humano-genéricas, o ensino
mune os indivíduos humanos de elementos fundamentais à consolidação de sua natureza
histórico-cultural, entendida como essencialmente exploradora e reelaboradora da realidade
natural e social que a conforma.
Mas não nos referimos, aqui, a qualquer forma de ensino e, tanto quanto, a quaisquer
apropriações. Conseqüentemente, necessário se faz que explicitemos o que entendemos,
inicialmente, por ensino formal, qual sua função histórica e quais devam ser seus objetivos
concretos diante da realidade que se nos apresenta. Para isso devemos considerar também o
détour proposto por Kosik (ver item 1.1 deste capítulo), com vistas a superarmos considerações
“pseudoconcretas” sobre a escola e seu papel histórico-social. Para este propósito, julgamos de
inestimável valor as reflexões e proposições derivadas do movimento pedagógico que se
denomina histórico-crítico, e é pelos elementos desta proposta pedagógica que procuramos
caracterizar, em “O papel do ensino formal no processo de apropriação de conhecimentos
humano-genéricos”, o lugar e função históricos do processo educativo formal para a socialização
268

de conhecimentos que, enquanto objetivações genéricas sistematizadas, se apresentam como


essenciais ao próprio processo de consolidação do gênero humano e da integração sócio-histórica
dos indivíduos humanos ao gênero.

3.1. O papel do ensino formal no processo de apropriação de conhecimentos humano-


genéricos

Em seu processo milenar de desenvolvimento o gênero humano passou a reproduzir,


além de suas características naturais, os incontáveis conhecimentos e produtos de suas
atividades. Assim, o homem diferenciou-se radicalmente das demais espécies na medida em que
não se limitou à reprodução tão-somente biológica de si mesmo, mas, e também, dos
conhecimentos adquiridos e acumulados sobre sua relação ativa com a natureza e consigo
mesmo. Em outras palavras, isto significou a possibilidade de reprodução do próprio gênero
humano, além da reprodução apenas filogenética da espécie.
Surge daí a importância do processo de transmissão-apropriação, para e pelas
gerações humanas, através dos tempos, de conhecimentos imprescindíveis ao seu laborioso
processo de humanização, individual e coletivo, inextricavelmente, e, tanto quanto, para
reelaborações sobre o próprio conjunto de conhecimentos já existentes, o que representa,
objetivamente, possibilidades de intervenção e transformação criadoras constantes sobre a
realidade. É por este processo de apropriação de elementos da realidade imediata e mediata, de
apropriação de objetivações históricas humanas (Leontiev, 1978, p. 320-321), que o ser humano
encontra subsídios para especular, recriar e potencialmente transformar a própria realidade que o
envolve, bem como as características de seu próprio gênero, das mais variadas formas. O ser
humano é, portanto, um ente que, no decorrer de sua história deve, necessariamente, apropriar-se
das produções humano-genéricas para inserir-se no gênero e, portanto, podemos dizer que não
nasce humano, mas sim, torna-se humano:

A diferença entre o processo de adaptação, no sentido em que este termo é empregado para
os animais, e o processo de apropriação, é o seguinte: a adaptação biológica é um processo
de modificação das faculdades e caracteres específicos do sujeito e do seu comportamento
inato, modificação provocada pelas exigências do meio. A apropriação é um processo que
tem por resultado a reprodução, pelo indivíduo, de caracteres, faculdades e modos de
comportamento humanos, formados historicamente. Por outros termos, é o processo graças
ao qual se produz, na criança, o que, no animal, é devido à hereditariedade: a transmissão ao
indivíduo das aquisições do desenvolvimento da espécie.” Portanto, como enfatiza por fim o
autor, ... “A criança não se adapta ao mundo dos objetos e fenômenos humanos que a
rodeiam; fá-lo seu, isto é, apropria-se dele. (Leontiev, 1978, p. 320).

Em nascendo, inicialmente, como seres pertencentes à espécie humana, para nos


inserirmos no gênero humano deveremos nos apropriar das objetivações que lhe são
caracteristicamente próprias e fundamentais. Neste sentido, são exemplos básicos a linguagem
269

falada e, por extensão, a linguagem escrita, elementos estes primários e mediadores


imprescindíveis para inúmeras outras apropriações pelos indivíduos humanos. Presume-se, neste
sentido, os impedimentos e prejuízos a que estão submetidos os indivíduos que não se apropriam
dos rudimentos da linguagem falada e, ademais, dos da escrita. Estes indivíduos estarão muito
sujeitos a permanecerem à margem das condições e exigências contemporaneamente elementares
para a sua própria existência enquanto seres genéricos. À margem, portanto, da condição básica
de seres humanos.
No que respeita à educação, o pressuposto do processo de apropriação nos sugere,
portanto, o ensino como lugar fundamental tanto a que elementos essenciais do conhecimento
humano sejam apropriados pelas novas gerações de forma sistematizada, como também lugar
possível à promoção de reelaborações sobre tais apropriações e objetivações a que
correspondem. A conjugação de ambos os aspectos funcionais do ensino resulta, por
conseguinte, na ampliação de possibilidades de transformações concretas e satisfatórias sobre e
para as diversas esferas da realidade humana.
Estas possibilidades de transformações, concretas e satisfatórias, vêm corresponder,
por sua vez, aos anseios de democratização da própria sociedade majoritária, seja através de
contribuições para o enriquecimento cultural de sua época, seja pela produção de novos
conhecimentos imprescindíveis para a superação dos problemas que nela se acumulam e se
complexificam, com vistas à constante conquista de uma vida em comunidade mais saudável,
eqüitativa e humanamente realizadora para seus membros.
Como percebemos, isto nos aponta, por conseguinte, uma determinada concepção
quanto à função própria do ensino formal. Sem desconsiderarmos os inúmeros determinantes que
conformam e interferem no processo educativo humano, conquanto indivíduos e gerações
possam apropriar-se de inúmeras informações e conhecimentos em momentos, lugares, formas e
condições contextuais diversas, foi especialmente através da educação formal que se tornou
possível um mais amplo e rápido acesso a conhecimentos essenciais à sobrevivência, reprodução
e desenvolvimento das comunidades humanas. Educação sistematizada que surge e se consolida,
bem claro, a partir da complexificação incessante das necessidades, produções e formas de
organização das sociedades humanas; ou seja, a partir da necessidade de que conhecimentos
historicamente elaborados e acumulados sobre a própria humanidade e a natureza que a envolve,
fossem transmitidos/assimilados pelos membros humanos para a própria manutenção,
reprodução e transformações histórico-culturais características e necessárias ao gênero, em seu
longo e constante processo de humanização. Conhecimentos e produções, portanto,
270

correspondentes a contextos e organizações sociais determinados e, tanto quanto, determinantes


dos mesmos.
Segundo Saviani, a compreensão da natureza da educação passa, necessariamente,
pela compreensão desta “natureza” humana. Como vimos, a atividade intencionalmente
transformadora da natureza é o que funda a diferença entre o homem e demais animais. Se o
trabalho fundamenta todo o mundo da cultura humana, tomar a atividade educativa como um
fenômeno humano implica em reconhecer que ela é tanto resultado como exigência do processo
de trabalho. Também ela é, enfim, um processo de trabalho (Saviani, 1992, p. 19).
O processo de produção da existência humana refere-se, antes de qualquer coisa, à
garantia de sua sobrevivência física, o que se dá através do trabalho material, portanto. Todavia,
para produzir “materialmente” é necessário que o homem antecipe idealmente os fins de sua
ação (representação mental). Essa representação diz respeito a aspectos relacionados desde as
propriedades do mundo real (respeitantes ao âmbito da ciência), passando por aspectos de
valoração (respeitantes à ética) como também aspectos simbólicos (respeitantes à arte). Estes
aspectos engendram uma categoria complementar de produção, que poderíamos denominar
“trabalho não-material” (Saviani, 1992b, p. 20). Enquadram-se aqui a produção das idéias em
geral, conceitos, valores, símbolos etc., que caracterizam, em outras palavras, o próprio saber
humano acerca da realidade.
A natureza do ensino diz respeito, sobretudo, ao trabalho não-material, conquanto
devamos ainda distingui-lo em duas formas principais, ou seja, uma primeira, em que a produção
e o consumo do produto encontram-se separados (a produção e posterior leitura de um livro, por
exemplo) e outra em que ambos, produção e consumo, encontram-se imbricados; este é o caso
específico do ensino formal. Nele, ao mesmo tempo o ato de ensinar implica necessariamente a
existência concomitante do aprendiz, que o consome. A natureza própria da educação
corresponde, portanto, a um processo de trabalho eminentemente intelectual, cuja produção e
consumo dão-se simultaneamente. Mas com que objetivo?
Se desejamos responder esta pergunta deveremos levar em consideração, desta feita,
a natureza propriamente humana. Especificamente no caso humano, o que não é fornecido pela
natureza biofísica deve, necessariamente, ser produzido pelos próprios homens. Esta produção é
o que compreende todas as atividades e produtos histórico-culturais humanos, e esta produção
histórica e cultural fundamenta o que aqui chamamos de natureza humana, ou seja, uma
natureza genérica constituída sobre a natureza biofísica, mas que a ela não se limita e que com
ela não mais se confunde espontaneamente, a exemplo do que ocorre às demais espécies. Nas
palavras de Saviani:
271

Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida
sobre a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, o trabalho educativo é o ato de
produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. (Saviani, 1992a, p. 21).

Cabe à educação, por um lado, a identificação dos elementos culturais a serem


apropriados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humano-genéricos e,
por outro, a descoberta das formas mais adequadas para se atingir tal objetivo. Em outros termos,
“a escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização dos saberes historicamente
sistematizados” (Saviani, 1992a, p. 22-23). “Sistematizados” porque não é sua função tratar de
saberes espontâneos, relacionados meramente a imediaticidade cotidiana, mas sim aos
conhecimentos metódica e historicamente constituídos. Estes saberes são aqueles que
compreendemos como científicos.
Ora, os saberes científicos são aqueles que superam a mera opinião ou a mera
experiência. Se estes dois tipos de conhecimentos encontram na espontaneidade cotidiana seu
lugar e subsídios, o mesmo não se dá com os saberes científicos, não apreensíveis
espontaneamente e que, portanto, justificam e suscitam um lugar e meios específicos para sua
difusão e apreensão. Eis, portanto, o papel fundamental cabível à instituição escolar,
historicamente compreendido.
O conhecimento historicamente elaborado e sistematizado constitui, em nosso
entendimento, o saber humano em seu mais alto e significativo grau, pois é tal saber tanto o
resultado de milenares lutas e conquistas do homem, quanto condição para o constante processo
de manutenção e consolidação do gênero humano. Em outros termos, enquanto condição de
consolidação do processo de humanização da espécie e, logo, de superação dos limites biofísicos
(naturais) a que estão submetidos todos os seres vivos.
Podemos, pois, vislumbrar, a partir do exposto, a imprescindível importância de que
estes saberes sejam, ao máximo, socializados. Entretanto, não fazemos, aqui, uma apologia
romântica do papel da instituição escolar para o processo de humanização. Quando propomos
que o papel da instituição escolar é o de mediadora possível da socialização de saberes
sistematizados, não a admitimos, passivamente, tal e qual comumente nos tem sido proposta e
sistematicamente imposta. Não será jamais suficiente que a instituição escolar apenas atenda às
exigências de difusão de saberes (o que sequer atende no Brasil), mas sim, que contribua de
modo efetivo para a superação do mero senso comum, o que implica em que os indivíduos
atinjam uma consciência filosófica acerca do mundo natural e humano. Por consciência
filosófica entendemos uma apreensão e compreensão do mundo coerente conscientemente
272

elaborada, por oposição ao caráter eminentemente fragmentário, espontâneo e incoerente do


senso comum. Entretanto, segundo Gramsci:

No sentido mais imediato e determinado, não podemos ser filósofos — isto é, ter uma
concepção do mundo criticamente coerente — sem a consciência da nossa historicidade, da
fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela está em contradição com
outras concepções ou com elementos de outras concepções. (Gramsci, 1995, p. 13, nota 2).

Este raciocínio é fundamental para que nos aprofundemos ainda mais no papel e
propósitos do ensino formal. O mundo real, concreto, é um mundo de relações determinadas por
interesses variados e conflitantes, e aos quais encontra-se submetida a instituição escolar.
Evidentemente, o mundo capitalista que se nos apresenta é um mundo marcado pela hegemonia
de determinada concepção de homem e de mundo, historicamente determinada, que se tornou
dominante, e que excetua as populações majoritárias do acesso aos saberes fundamentais a que
nos referimos. São estas populações majoritárias justamente as parcelas responsáveis pela
implementação de toda a atividade produtiva de todas as sociedades historicamente constituídas,
até nossos dias. Esta excetuação se deve, fundamentalmente, ao lugar nas atividades produtivas
reservado às classes trabalhadoras e ao legado eminentemente alienado e alienador de tais
atividades em uma sociedade fundada na divisão de classes. Absorvida essencialmente pela
venda de sua força de trabalho para subsistir, essa imensa maioria populacional vê-se excluída
das possibilidades de aquisição de saberes em igualdade de condições com as classes dirigentes,
submetendo-se aos interesses das classes dominantes através da assimilação acrítica das
concepções de homem e de mundo por elas difundidas, concepções estas que, por esta razão,
tornam-se hegemônicas, mas não correspondem aos interesses das classes subalternas. Como
assinala Saviani:

Com efeito, a concepção de mundo hegemônica é exatamente aquela que, mercê de sua
expressão universalizada e seu alto grau de elaboração, logrou obter o consenso das
diferentes camadas que integram a sociedade, vale dizer, logrou converter-se em senso
comum. É nesta forma, isto é, de modo difuso, que a concepção dominante (hegemônica)
atua sobre a mentalidade popular articulando-a em torno dos interesses populares, o que
concorre para inviabilizar a organização das camadas subalternas enquanto classe. (Saviani,
1991, p. 10).

Assim, as relações existentes entre senso comum e filosofia assumem o caráter de


uma relação de luta hegemônica. Por “luta hegemônica” entendemos um “processo de
desarticulação-rearticulação”, isto é, trata-se um processo que visa “desarticular dos interesses
dominantes aqueles elementos que estão articulados em torno deles, mas não são inerentes à
ideologia dominante e rearticulá-los em torno dos interesses populares, dando-lhes a
consistência, a coesão e a coerência de uma concepção de mundo elaborada, vale dizer, de uma
filosofia”(Saviani, 1991, p.10-11).
273

Em se considerando estarmos diante de uma luta hegemônica e que “toda relação de


´hegemonia` é necessariamente uma relação pedagógica”(Gramsci, 1995, p. 37), Saviani nos
sugere que a educação deva ser compreendida, sobretudo, como um instrumento de luta no
estabelecimento de uma nova relação hegemônica com vistas à constituição de um novo bloco
histórico, agora dirigido pela classe majoritária de nossas sociedades, a saber, o proletariado
(Saviani, 1991, p. 11) Contudo, o proletariado não pode se elevar enquanto força hegemônica
sem a elevação de seu nível cultural. Eis aqui, portanto, a importância capital da educação.
Segundo Saviani:

A forma de inserção da educação na luta hegemônica configura dois momentos simultâneos


e organicamente articulados entre si: um momento negativo que consiste na crítica da
concepção dominante (a ideologia burguesa); e um momento positivo que significa: trabalhar
o senso comum de modo a extrair o seu núcleo válido (o bom senso) e dar-lhe expressão
elaborada com vistas à formulação de uma concepção de mundo adequada aos interesses
populares. (Saviani, 1991, p. 11).

A passagem do senso comum a uma concepção de mundo conscientemente elaborada


passa, necessariamente, pelo questionamento do que temos sido e no que temos acreditado no
lugar e tempo históricos que ocupamos em nossas sociedades. Nas palavras de Gramsci:

Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e


elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido. Significa,
portanto, criticar, também, toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou
estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a
consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto
do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços
recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário.
(Gramsci, 1995, p. 12, nota 1).

A educação é elemento fundamental nesse processo e possui, como vimos, não só um


papel funcional na socialização dos conhecimentos humano-genéricos, mas, e sobretudo,
político-revolucionário para o processo de humanização de todos os indivíduos que fazem parte
de nossas sociedades contemporâneas, indiscriminadamente. Este processo é o processo que visa
à realização e consolidação do próprio homem. E “que é o homem?”, pergunta Gramsci — que
“é a primeira e principal pergunta da filosofia”, nos diz ele. O homem é um contínuo devir,
conclui, e, portanto, a questão a ser formulada deveria ser, segundo o pensador, “o que é que o
homem pode se tornar”, isto é, “se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode ´se
fazer`, se ele pode criar sua própria vida”(Gramsci, 1995, p. 38). O homem, em nosso entender, é
criador e criatura de si mesmo, a humanizar constantemente sua condição de homem tanto
quanto mais livre for para revolver e transformar realidades. Impedir a realização desta
necessidade ontológica é subverter a realização de sua própria natureza. É, em outras palavras,
desumanizá-lo.
274

3.1.1. Pensamento cotidiano e não-cotidiano e a especificidade do ensino formal.

Um tema relevante ao presente estudo assenta-se na questão das relações humanas


em termos de suas atividades, produções e concepções cotidianas e não-cotidianas, e sua relação
com o processo de transmissão-apropriação de conhecimentos para e pelas novas gerações — ou,
em outras palavras, com o papel do ensino em nossas sociedades.
Quando nos referimos ao tema do cotidiano, deparamos, comumente, com algumas
confusões no que se refere à sua correlação com o ensino, a começar pelas designações dos
termos cotidiano e não-cotidiano frente à atividade escolar. Assim, cotidiano tem sido difundido
com o sentido mais ou menos restrito de dia-a-dia, entendido este como a realização de
atividades diárias dos membros e instituições de uma sociedade. Por decorrência, o termo tem
sido ostensivamente associado à designação do âmbito real da vida humana. Assim, tornou-se
senso comum que, ao referirmo-nos ao cotidiano, estaríamos nos remetendo à realidade concreta
da vida diária humana.
Não há objeções quanto ao fato de que o cotidiano diga respeito ao conjunto de
tarefas, ações, normas e hábitos necessários à realização da vida diária em comunidade. Do
mesmo modo, também a escola possui sua cotidianidade, necessária a viabilizar seus objetivos.
Entretanto, a instituição escolar, como vimos, lida com conteúdos determinados por objetivos
que não se identificam, imediatamente, com os conteúdos e objetivos da vida cotidiana de nossas
sociedades.
Segundo as proposições de Heller, “a vida cotidiana é o conjunto de atividades que
caracterizam a reprodução dos homens particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade
da reprodução social” (Heller, 1994, p. 19), ou, pela qual, garantir-se-á a reprodução e
manutenção do próprio gênero humano (atividades que os indivíduos já incorporaram para sua
sobrevivência e que se tornaram parte imprescindível da consecução da vida diária).
O papel e propósitos que são atribuíveis à instituição escolar, se distinguem
substancialmente dos conteúdos e propósitos das atividades ligadas ao dia-a-dia e ao senso
comum de nossas vidas cotidianas. Ora, o papel da escola é, sobretudo, o de mediar a
socialização de saberes historicamente elaborados e sistematizados; estes saberes e as atividades
correspondentes à sua veiculação e aquisição conformam uma esfera de exigências e atividades
humanas distinta da que denominamos cotidiana. A esfera não-cotidiana (conquanto
indissociável da esfera cotidiana), corresponde, pois, ao conjunto de atividades relacionadas à
reprodução das características próprias das sociedades humanas, em termos sócio-históricos
(atividades relacionadas ao que não é imediatamente apreensível pela consciência, senão pela
atividade reflexiva, metodicamente orientada).
275

Assim, as produções, conhecimentos e hábitos já espontâneos e necessários para as


atividades de reprodução e manutenção humanas (características da vida cotidiana), encontram
seus exemplos mais comuns em elementos como objetos, utensílios e/ou bens materiais, no uso
da linguagem e pelos costumes estabelecidos em nossas sociedades. Estas atividades não
implicam, portanto, em uma relação intencionalmente consciente dos homens para com a
natureza das mesmas, sobretudo para com seus contextos de produção (Duarte, 1993, p. 32-33).
Em outros termos, são assimiladas como naturalmente dadas pelos indivíduos em geral.
Por sua vez, as produções e conhecimentos mediatizadores da reprodução histórica
da sociedade (conhecimentos e produções humano-genéricos) e que portanto ultrapassam o
âmbito da vida cotidiana, espontânea e imediata, constituirão a esfera não-cotidiana das
atividades humanas, tendo por principais exemplos as produções relacionadas à ciência, à arte, à
filosofia, à moral, à ética e à política, dentre outras áreas do conhecimento historicamente
conquistadas pela humanidade, no decorrer de seu desenvolvimento milenar.
Deste modo, diferentemente do que se dá com a esfera das atividades cotidianas,
caracteristicamente espontâneas e não necessariamente refletidas, o mesmo não pode se dar com
a esfera das atividades não-cotidianas, já que aos homens torna-se necessário uma relação
reflexiva com a ciência, a arte, a filosofia, a moral, a ética ou política, para que estas possam ser
efetivamente compreendidas, reproduzidas e reelaboradas no decorrer da história do gênero
(Duarte, 1996, p.33).
Por fim, ambas as dimensões influenciam-se mutuamente, o que implica, portanto,
que da esfera cotidiana das atividades humanas haja surgido a esfera não-cotidiana das mesmas
atividades e que, a seu turno, a esfera não-cotidiana haja continuamente influenciado e
transformado a esfera das atividades, produções e conhecimentos cotidianos humanos. Esta
relação não se dá, entretanto, de modo espontâneo e natural, sendo histórica e contextualmente
determinada por inúmeras variáveis sócio-culturais e econômicas. É preciso, pois, enfatizar que a
esfera não-cotidiana apresenta-se, antes de tudo, como a própria superação, por incorporação, da
esfera cotidiana das atividades e conhecimentos humanos e, portanto, com ela não mais coincide
ou se identifica.
A esfera não-cotidiana dos conhecimentos e atividades humanas corresponde,
portanto, ao conjunto de saberes que dizem respeito à natureza genérica da humanidade e, por
conseguinte, fundamentam e possibilitam o próprio pensamento elaborado acerca da realidade
(não espontâneo, metodicamente orientado).
Aqui uma primeira questão de grande importância em nossas considerações, que a
relação existente entre cotidiano e não-cotidiano suscita: o que é realidade? Entrementes, se nos
276

pautarmos nos postulados apresentados por Kosik (ver item 1.1 deste Capítulo) acerca da
apreensão prático-sensível da realidade, concordaremos quanto ao fato de que a essência da
realidade não é, necessariamente, tal e qual é apreendida imediatamente pelos nossos sentidos.
Dado o caráter pragmático de nossas atitudes cotidianas para que seja possível a consecução da
própria vida humana, e que desse modo não há como apreendermos a essência mesma da
realidade, senão pela análise e pela reflexão, torna-se estranha a afirmação segundo a qual
haveria coincidência e identificação entre cotidiano e realidade. Entretanto, observamos haver se
tornado muito comum a opinião daí derivada, segundo a qual a escola pouco ou nada teria a ver
com a realidade concreta ao lidar com saberes e realizar atividades diversas daquelas com as
quais as pessoas lidam no seu dia-a-dia. Esta opinião encontra, inclusive, eco na vida diária, em
ditos populares como “mais vale a prática que a gramática” ou “as crianças aprendem apesar da
escola.” (Saviani, 1992a, p. 23).
Uma vez tomada a cotidianidade como a própria realidade, tornaram-se comuns as
posturas teóricas e práticas que procuram aproximar, ao máximo, as atividades e conteúdos
escolares da cotidianidade em geral, considerada parâmetro ideal para o trabalho educativo
formal, porque verdadeiramente corresponderia à vida concreta dos alunos.
Não há nada, ao nosso ver, que seja passível de objeções quando se trata de buscar
aproximar a escola da vida concreta da coletividade de indivíduos que esta tem por função
formar enquanto cidadãos. De modo algum supomos que à escola seja cabível um pretenso
distanciamento asséptico da vida cotidiana, fundamentado numa falsa neutralidade institucional.
É propósito da escola aqui defendida, como já dissemos, justamente a interferência político-
revolucionária na realidade que a envolve.
A questão a ser elucidada, como se torna presumível, diz respeito ao equívoco de se
tomar, em primeiro lugar, a realidade cotidiana como a realidade. Longe disto, a esfera das
atividades e saberes cotidianos tem, por principal característica, a imediaticidade e a
espontaneidade no trato com os fenômenos da realidade. E os fenômenos são manifestações da
realidade mas, não necessariamente correspondem à sua essência.
Ora, se a vida cotidiana tem, como vimos, por principais características, a
ultrageneralização, o trato pragmático-utilitário com os fenômenos humanos e naturais, a
imediaticidade e a espontaneidade nas relações com as manifestações da realidade, torna-se
paradoxal que a escola nela fundamente suas ações e conteúdos. Se o papel da escola diz
respeito, a priori, à socialização dos saberes histórica e metodicamente elaborados, seus
conteúdos e a forma como atingirá seus objetivos não podem basear-se em elementos da
cotidianidade. O cotidiano é expressão da realidade, mas não é, de forma alguma, a realidade.
277

Por conseguinte, resta-nos resgatar o lugar da esfera não-cotidiana em nossa reflexão.


Eis que ela nos surge como o locus dos conhecimentos e atividades que, historicamente
elaborados, possibilitam, de fato, que reflitamos coerentemente sobre a realidade, de modo a
superarmos sua manifestação aparente, nos aproximando, ao máximo, de sua essência. A escola
traz consigo, portanto, também a finalidade maior de contribuir para a superação dos limites
ostensivamente impostos pela própria cotidianidade. Logo, a escola visa a não-cotidianidade
num movimento de superação dialética da vida cotidiana, ou seja, negando-a por incorporação.
Temos motivos para crer, entretanto, que tais questões têm passado desapercebidas
pelas reflexões da maioria de nossos educadores, a ponto de a escola, suas atividades e
conteúdos, verem-se constantemente ameaçados por uma variada gama de proposições, que
pouco ou nada têm a ver com seus reais fundamentos e objetivos (Saviani, 1992a, p. 19-30).
Se entendido o pensamento cotidiano como essencialmente não-refletido, espontâneo
e imediato, e o âmbito da educação formal como dimensão da organização social cujo papel deva
ser regido pela intencionalidade consciente diante do fato de lidar com conhecimentos
historicamente sistematizados, respeitantes, portanto, à esfera das atividades e produções não-
cotidianas, concluímos pela não pertinência de que concepções pautadas em representações
essencialmente cotidianas ou mesmo fundadas no senso comum venham a influir e até mesmo
conformar o pensamento daqueles responsáveis pela ação pedagógica escolar, ou seja, de nossos
educadores.
Se a busca desta clareza se nos apresenta como imprescindível à discriminação e
valorização dos conhecimentos legitimamente pertinentes ao papel do ensino, fundamental será
que os educadores também busquem superar concepções e representações que não correspondam
ao papel histórico do processo educativo formal. Em concordância com o que sugere Duarte,
tomamos como base desta nossa observação o pressuposto de que a esfera não-cotidiana da
atividade escolar e do processo de ensino-aprendizagem, estaria sofrendo interferências de
representações elaboradas no âmbito da esfera de concepções eminentemente cotidianas ou a
esta esfera pertinentes enquanto “obviedades” (caracteristicamente de senso comum ou, em
outros termos, assimiladas acriticamente pela maioria dos educadores). Nas palavras de Duarte:

[...] questionamos a naturalidade com que o dia-a-dia escolar é identificado com a esfera da
vida cotidiana. Em outras palavras, questionamos a aplicação à análise do dia-a-dia escolar
das mesmas categorias que são empregadas na análise da vida cotidiana e questionamos a
transferência para o âmbito do dia-a-dia escolar das mesmas preocupações teóricas relativas
ao cotidiano. (Duarte, 1993, p.36).

Importa-nos ressaltar que estas observações visam contribuir, de modo concreto, com
reflexões acerca do que se apresenta como fundamental ao processo de formação de nossos
278

educadores: ou seja, que estes, enquanto principais mediadores do processo de acesso popular à
esfera das atividades e conhecimentos humanos não-cotidianos, mantenham uma relação
consciente para com a necessidade de domínio epistemológico dos referenciais adotados para
suas práxis pedagógicas, condição pela qual esta esfera das atividades humanas necessariamente
reclama.

3.2. A refutação do espontaneísmo naturalista para as relações entre ensino e


desenvolvimento humano: contribuições da psicologia histórico-cultural marxista

Em seus estudos sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar,


que vieram a público, sobretudo na monumental obra Pensamento e Linguagem (Vigotski,
1993), cuja publicação russa data de 1934, Lev S. Vigotski discorre, em seu sexto capítulo,
“Estudo do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade infantil”, sobre uma série de
novas proposições acerca do processo de surgimento e estabelecimento dos conceitos entre as
crianças, enfocando, principalmente, o período de escolarização. Para tanto, parte da comparação
entre o surgimento e desenvolvimento dos conceitos que denominou cotidianos e científicos
durante esta fase. Por cotidianos Vigotski entende os conceitos (generalizações ou significados
atribuídos a palavras) que se desenvolvem assistematicamente (de modo “espontâneo”) no
decorrer do desenvolvimento infantil. Por científicos Vigotski refere-se aos conceitos que
surgem e se desenvolvem em contextos sistematizados de instrução, e que dizem respeito a um
nível superior de generalizações.
Estes estudos e as proposições em questão são de incomparável importância para que
tenhamos parâmetros científicos para uma compreensão mais profunda da real extensão do papel
do ensino para o desenvolvimento dos indivíduos humanos.
Em tais estudos, Vigotski parte das seguintes premissas: primeiro, que os conceitos
(ou significados das palavras) se desenvolvem; segundo, que os conceitos científicos também se
desenvolvem e não são assimilados, como era suposição geral à época, de “forma acabada”, pré-
definida ou imutável; terceiro, a generalização das conclusões obtidas no estudo dos conceitos
cotidianos ao campo dos conceitos científicos carecia de legitimidade; quarto, o problema, em
seu conjunto, deveria, por fim e efetivamente, ser estudado experimentalmente.
As experiências conduzidas por Vigotski levaram a uma série de constatações, que
permitiram concluir que a acumulação de conhecimentos conduz à elevação dos níveis dos tipos
de pensamento científico, o que reflete no desenvolvimento do pensamento espontâneo e
demonstra o papel determinante da instrução na evolução da criança em idade escolar. Convém,
279

portanto, para os nossos propósitos finais neste trabalho, que os referidos estudos de Vigotski e
suas conclusões sejam devidamente expostos.
Uma hipótese de Vigotski em tais investigações fora a de que o desenvolvimento dos
conceitos científicos segue um caminho particular em comparação com o desenvolvimento dos
conceitos cotidianos, muito embora isso não represente que entre ambos não haja relações. Os
conceitos cotidianos tendem, segundo o autor, à generalização, e se produzem fora de um
sistema determinado. De modo distinto, os conceitos científicos remetem-se ao concreto,
conquanto sob as condições de um sistema organizado (Vigotski, 1993, p. 183). Em outras
palavras, uma das principais conclusões das investigações em questão foi a de que os conceitos
científicos são produzidos nas condições do processo de instrução, que constitui a forma mais
singular de cooperação entre adultos e crianças. Aliás, a cooperação é o principal aspecto do
processo de instrução, juntamente com os conhecimentos que são transmitidos à criança,
segundo um determinado sistema (o que conjuga métodos, conteúdos e objetivos orientados a
um fim).
Vigotski levanta, fundamentalmente, a questão de se existiriam relações entre
“processo de ensino”, “assimilação de conhecimentos” e o “processo de desenvolvimento interno
do conceito científico” (ou seja, na consciência). O processo de desenvolvimento coincidiria com
o processo de ensino ou não? Quais as implicações caso as respostas fossem positivas ou
negativas?
A chamada Psicologia Infantil teria então duas respostas para tal questão: uma
primeira, que afirmava que os conceitos científicos careceriam de história própria (ou seja, não
se submetem a qualquer processo de desenvolvimento). São simplesmente assimilados pelas
crianças, que os “absorveriam” do mundo dos adultos. Entretanto, Vigotski pôde constatar que,
na verdade, o conceito não é um simples conjunto de associações assimiladas pela memória, mas
sim o resultado de um complexo conjunto de atos do pensamento. Este processo não seria
dominado pela simples aprendizagem, exigindo que a criança na verdade elevasse, antes, o seu
desenvolvimento interno a um grau mais alto de possibilidades de conscientização. Aliás, a
formação dos conceitos científicos dependia diretamente do grau de voluntariedade atingido pela
criança (não implicando isso na simples premissa da maturação do organismo).
Estas constatações corroboraram as suspeitas de inúmeros educadores de que o
método do ensino direto e mecânico seria na verdade infrutífero. E de fato, Vigotski menciona
que já Tolstói havia se aproximado do fato essencial do insucesso de tal modelo, ao manifestar
que “quase sempre não é a palavra que é incompreensível, mas o aluno que não dispõe do
conceito a que se refere a palavra” (Vigotski, 1993, p. 186). Isto estaria correto; o erro do
280

pensamento de Tolstói, segundo Vigotski, fora julgar que o processo de desenvolvimento dos
conceitos fosse, contudo, tão complexo e misterioso que não haveria como nele interferir.
Entretanto, enfatiza Vigotski, é plenamente possível ensinar intencionalmente ao aluno novos
conceitos e formas de uma palavra, o que pode resultar no desenvolvimento superior dos
próprios conceitos de que a criança já dispõe. Eis uma proposição diversa, portanto, da
apresentada pela primeira resposta conceitual.
A segunda resposta conceitual sobre uma possível relação entre desenvolvimento e
ensino é, para Vigotski, a mais difundida de todas e propõe que o desenvolvimento dos conceitos
científicos na mente da criança que recebe instrução não se diferencia, essencialmente, do
desenvolvimento dos conceitos que se desenvolvem na mente das crianças não submetidas à
instrução (ou que se formam durante a experiência própria da criança), e que, portanto, não se
torna procedente diferenciá-los. Vigotski objeta que, entretanto, um dos erros desta posição
científica seria o de tomar, como objeto para o estudo da formação dos conceitos, os próprios
conceitos cotidianos (espontâneos), o que conduz à sua conseqüente indiferenciação dos
conceitos científicos. Contudo, ambos os conceitos não pertenciam ao mesmo gênero, guardando
entre si muitas diferenças.
Para Vigotski, Jean Piaget teria atentado tanto para a existência de tais diferenças
entre um e outro tipo de pensamento, denominando uns de “conceitos espontâneos” e os demais
de “conceitos não espontâneos”, como para o caráter ativo, por parte da criança, na assimilação
dos conceitos não espontâneos. Entretanto, Piaget estabelece que as idéias espontâneas são
próprias do pensamento infantil, sendo as não espontâneas próprias do pensamento adulto. Ao
propor esta separação,

[...] Piaget contradiz sua própria concepção correta de que a criança, quando assimila o
conceito, o transforma, refletindo nele as características próprias de seu próprio pensamento
neste processo de transformação. De fato, Piaget é partidário de atribuir esta situação
unicamente aos conceitos espontâneos e renuncia a considerar que isto é aplicável
igualmente aos conceitos não espontâneos. Esta dedução totalmente infundada encerra o
primeiro aspecto errôneo da teoria de Piaget. (Vigotski, 1993, p. 190).

Na opinião de Vigotski, esta ênfase nas diferenças das características entre ambas as
formas de pensamento fazia com que Piaget não percebesse que tais formas de pensamento são,
na realidade, mutuamente influenciáveis.
Um último equívoco, decorrente dos anteriores, seria que, para Piaget, o
desenvolvimento mental da criança se caracterizaria, na verdade, por um paulatino
desaparecimento das características particulares do pensamento infantil, sendo este substituído,
aos poucos, pelo pensamento de caráter adulto, de nível superior. Piaget centra sua proposta na
compreensão de que ambos os pensamentos são, na verdade, mutuamente excludentes, ou seja,
281

os conceitos denominados espontâneos seriam aos poucos substituídos pelos conceitos não
espontâneos, adquiridos no decorrer do processo de maturação das crianças.
Assim, o antagonismo seria a característica fundamental da relação existente entre
conceitos espontâneos e não espontâneos, de acordo com a proposta de Piaget, no decorrer do
desenvolvimento da criança. Durante o processo de socialização da criança, o egocentrismo e o
solipsismo tipicamente infantis seriam constantemente confrontados, deslocados e suprimidos,
de modo que os conceitos não espontâneos suplantariam, aos poucos, os espontâneos —
processo esse que encontra no ensino, segundo Piaget, seu principal promovedor. Seria nesse
período que, segundo o mesmo, o desenvolvimento mental da criança alcançaria seu ápice.
Para Vigotski, a teoria de Piaget é das mais sérias e importantes então existentes, mas
suas contradições tornavam necessárias investigações que visassem a superação de seus
equívocos. Para isso se orientavam seus estudos e estes acabaram por confirmar suas principais
hipóteses, diversas das conclusões a que chegou Piaget. Uma delas, a de que os conceitos
científicos não são simplesmente assimilados nem apreendidos pelas crianças, deslocando dessa
forma os preexistentes conceitos espontâneos, mas sim, se formam graças à atividade do próprio
pensamento da criança, que o tempo todo reflete a atividade com que concretamente encontra-se
envolvida.
Contrariamente à segunda proposição de Piaget, os dados das investigações
revelaram que os conceitos científicos das crianças, tanto quanto os mais puros dos seus
conceitos espontâneos, não manifestavam apenas traços contrários, mas também traços comuns.
Vigotski pôde concluir, neste caso, que antes de rígida, a fronteira entre ambos era, na verdade,
muito tênue, e mais interseccional que delimitadora. Na verdade, os conceitos científicos só se
tornavam possíveis na medida em que os conceitos espontâneos alcançassem determinado nível,
comumente próprio da idade escolar. Segundo ele,
[...] quando falamos da evolução dos conceitos, espontâneos ou científicos, nos referimos ao
desenvolvimento de um processo único de formação de conceitos, que se realiza sob
diferentes circunstâncias internas e externas, mas que é singular quanto à sua natureza, não
resultante da luta ou conflito entre duas formas de pensamento que se excluem desde o
início. A investigação experimental, se de novo não nos importa antecipar seus resultados,
também confirma plenamente esta hipótese. (Vigotski, 1993, p. 194).

Finalmente, quanto ao terceiro equívoco de Piaget, Vigotski assevera que entre os


processos de instrução e o desenvolvimento na formação dos conceitos não deve existir
antagonismo, mas sim, relações muito mais complexas, e de caráter essencialmente positivo. E,
segundo indicavam suas investigações, o ensino deveria figurar como uma das principais fontes
de desenvolvimento dos conceitos na idade infantil, tanto quanto uma potente força organizadora
282

deste processo (Vigotski, 1993, p. 195). Isto não quer significar, vale lembrar, que os conceitos
científicos surjam sem que as formas mais elementares de generalização já existam.
Os resultados de suas pesquisas indicaram, ainda, o fato de que a formação dos
conceitos científicos, do mesmo modo que no caso dos espontâneos, não “termina” no momento
em que a criança assimila pela primeira vez o novo significado, mas, pelo contrário, a partir daí
se inicia. Na verdade, segundo Vigotski, são seus momentos iniciais que se distinguem uns dos
outros.
Para tornar isto mais compreensível, Vigotski lança mão da analogia do aprendizado
da língua materna e de uma língua estrangeira, cujas formas, experiências e conteúdos, embora
distintos, dizem respeito a um mesmo processo: o desenvolvimento da linguagem (Vigotski,
1993, p. 197). Assim, do mesmo modo que o aprendizado de uma língua estrangeira se
fundamenta no conhecimento da língua materna, também o desenvolvimento dos conceitos
científicos se fundamenta nos conceitos espontâneos. Entretanto, note-se bem, ambos os
processos obedecem a diferentes condições e determinações contextuais, instaurando-se em
momentos diversos e sob determinadas circunstâncias. Tanto o aprendizado de uma língua
estrangeira como o desenvolvimento dos conceitos científicos encontram-se submetidos a uma
situação muito peculiar, qual seja, a de se constituírem como atividades sistematizadas. Em
outras palavras, é o contexto promovido pela instrução que fundamenta a distinção entre o
surgimento e desenvolvimento dos conceitos cotidianos (espontâneos) do surgimento e
desenvolvimento dos conceitos científicos. O contexto instrucional é, pois, a “pedra de toque”
entre o desenvolvimento de ambos os tipos de conceitos.
Essa conclusão, entretanto, não se presta a uma relação mecânica de aprendizagem,
ou por uma simples transmissão sistemática de dados conceitos. Na verdade, salienta Vigotski,
entre o ensino e a formação dos conceitos científicos existem relações mais complexas que entre
o ensino e a formação de hábitos (Vigotski, 1993, p. 200) — hábitos que, aliás, têm sustentado
algumas das principais concepções psicológicas da atualidade acerca da aprendizagem,
acrescentamos.
Além disso, Vigotski chama a atenção para o fato de que, para que os conceitos
possam tornar-se científicos, a criança deve deles se conscientizar. E como se leva a cabo,
durante a idade escolar, a transição dos conceitos não conscientes aos conscientes? — pergunta
Vigotski. E mais uma vez este se depara com o fato de que um conceito só atinge um caráter
voluntário e consciente dentro de um contexto necessariamente intencional e sistematizado. Eis
aqui, uma vez mais, o caráter fundamental do processo de instrução. É ele o protótipo do
contexto intencional e sistematizado em questão.
283

Lançando mão da célebre frase de Marx, Vigotski procura assim resgatar o sentido
mais profundo dos conceitos científicos: “Se a forma de manifestação e a essência das coisas
coincidissem, toda ciência seria supérflua”(Vigotski, 1993, p.216). De fato, conscientizamo-nos
do que antes permanecia desapercebido, oculto, velado. Se à ciência cabe levar à consciência a
essência das coisas, os conceitos científicos surgem enquanto mediadores do processo humano
de conhecer e sistematizar seus conhecimentos acerca da realidade concreta.
Vigotski passa, então, à desmistificação de inúmeras posições conceituais ao seu ver
equivocadas acerca da questão da relação entre instrução e desenvolvimento. A começar pelo
fato de que ambas vinham sendo tratadas como elementos independentes pela psicologia de seu
tempo. Por esta primeira concepção, haveriam questões devidas ao desenvolvimento e outras,
próprias do ensino. O resultado prático de uma tal premissa é a crença em que o
desenvolvimento pode seguir seu curso normal e alcançar um nível superior independentemente
da instrução, ou que as crianças que não tenham recebido instrução desenvolvam formas
superiores de pensamento em mesmo grau que as que não vão à escola.
Uma variação de um tal pensamento adota uma posição um tanto distinta, propondo
que, se por um lado o desenvolvimento cria as possibilidades, por outro o ensino as realiza.
Contudo, segundo Vigotski, essa posição não reconhece que o ensino possa, num tal processo,
incidir sobre o processo de desenvolvimento, influenciando-o. Trata-se, no final das contas, do
pressuposto de que toda instrução exige a existência de um certo grau de maturação de
determinadas funções psíquicas. Por conseguinte, a própria análise do processo psíquico acerca
da instrução se reduz a aclarar que funções são necessárias ou qual deverá ser o grau de
maturação para que a instrução seja possível:
Se estas funções estiverem suficientemente desenvolvidas na criança, se a memória houver
alcançado um nível em que este possa recordar o nome das letras do alfabeto, se sua atenção
se desenvolveu o suficiente para que seja capaz de concentrar-se durante um determinado
período de tempo em algo que não lhe ofereceria interesse, seu pensamento haverá
amadurecido para que compreenda a relação entre os sons e os signos da escrita. Se estas
funções hajam se desenvolvido o suficiente, se pode começar a ensinar-lhe a escrever.
(Vigotski, 1993, p. 218-219).

Segundo Vigotski, ainda que uma tal interpretação implique no reconhecimento de


uma interdependência da instrução em relação ao desenvolvimento, esta dependência se revela
unilateral e puramente externa, negando quaisquer interrelações ou mútua penetração entre
ambos os processos.
Para o autor, uma tal teoria resolve a questão apenas em parte, pois que é de fato
inegável que o desenvolvimento obedece a determinados estágios, sem os quais a instrução se
torna impossível. A instrução depende diretamente de que certos ciclos do desenvolvimento
284

sejam superados. Contudo, essa dependência não é, segundo Vigotski, tão estreita, estando ela na
verdade subordinada a uma relação de outro nível. À instrução, por esse ponto de vista, parece
apenas caber o “recolhimento” dos frutos da maturação infantil, mas, per se, continua a não
interferir sobre o próprio desenvolvimento. Vigotski considera que essa visão, que tendeu a
dominar toda a “velha psicologia pedagógica”, encontra seu ápice na teoria de Piaget. Seu ponto
de vista é o de que “o pensamento da criança recorre obrigatoriamente a determinados estágios,
independentemente de que a criança receba ou não instrução” (Vigotski, 1993, p. 220). O papel
da instrução será, portanto, sempre externo, complementar e ocorrerá à retaguarda do processo
de desenvolvimento:

Aqui se contrapõem de forma profunda a instrução e o desenvolvimento, o conhecimento e o


pensamento. Partindo disso, Piaget propõe à criança tais perguntas que esta com toda a
segurança não pode ter o menor conhecimento do objetivo acerca do qual se lhe pergunta. E
se perguntamos à criança sobre coisas das quais pode saber algo, não obteremos os
resultados do pensamento, senão os do conhecimento. Por isso, os conceitos espontâneos que
surgem durante o processo de desenvolvimento da criança são considerados índices de seu
pensamento, e os conceitos científicos, resultantes da instrução, não possuem esse caráter
indicativo. Por isso mesmo, já que a instrução e o desenvolvimento se contrapõem desse
modo, chegamos obrigatoriamente à tese principal de Piaget, segundo a qual os conceitos
científicos deslocam os espontâneos, passando então a ocupar o seu lugar, em vez de surgir
dos mesmos, transformando-os. (Vigotski, 1993, p. 220-221).

Uma segunda vertente é a que propõe, pelo contrário, uma fusão entre instrução e
desenvolvimento, havendo uma total identificação entre um e outro processo. Vigotski atribui
esta concepção principalmente a ao psicólogo americano William James. Este estudioso haveria
pretendido demonstrar que o processo de formação de associações e os hábitos serviriam de base
também à instrução e ao desenvolvimento mental, sendo, portanto, a essência de ambos os
processos idênticos. Mas, objeta Vigotski, se há de fato uma identificação total entre ambos, não
parece procedente continuar a considerá-los separadamente, diferenciando-os. Na verdade, esta
teoria fundamentar-se-ia na concepção central da chamada psicologia tradicional, ou seja, o
associacionismo, então incorporado pela reflexologia de Thorndike. Segundo Vigotski, diante da
questão sobre o que representa o processo de desenvolvimento do intelecto da criança, esta teoria
tem como resposta que o desenvolvimento é o resultado conseqüente e paulatino da acumulação
de reflexos condicionados, servindo esta resposta rigorosamente para responder também em que
consiste a instrução. E acrescenta que, para esta concepção:

Desenvolvimento é instrução, instrução é desenvolvimento. Se na primeira teoria o vínculo


da pergunta sobre a relação entre a instrução e o desenvolvimento não se desata, e sim se
rompe, já que entre um e outro processo não se reconhece relação alguma, na segunda teoria
essa vinculação é totalmente eliminada. Não se pode propor a pergunta sobre as relações que
existem entre a instrução e o desenvolvimento sendo que um e o outro são o mesmo.
(Vigotski, 1993, p. 220-221).
285

Existe, por fim, um terceiro grupo teórico, cuja posição visa a superação dos
extremos dos dois pontos de vista anteriores. Mas Vigotski enfatiza que esse ponto de vista não
procura se situar acima dos anteriores, e sim, entre eles. Enfim, superam uma teoria errônea
cedendo parcialmente ante a outra, caracterizando-se, fundamentalmente, pela duplicidade de sua
posição, pois que, ao adotar uma posição entre dois pontos de vista contrapostos, acaba por unir
ambas as perspectivas. Esta seria a perspectiva defendida por Koffka, que toma por princípio a
necessidade de se distinguir o desenvolvimento enquanto maturação e enquanto instrução. Por
um lado deve-se ter em conta que os processos de desenvolvimento e de instrução são
independentes um do outro, o que Koffka propõe ao afirmar que o desenvolvimento é uma
maturação, que em suas leis não depende da instrução. Por outro, que toda instrução é
desenvolvimento. E isto implica, segundo o autor, em reconhecer a essência dos dois pontos de
vista anteriores, unindo-os. Em suas palavras:
[...] podemos dizer que, se a primeira teoria corta o nó e não o desata, a segunda o elimina ou
o evita, e a teoria de Koffka o aperta ainda mais. De fato, a posição deste investigador com
respeito às duas perspectivas teóricas contrárias não só não resolve, como também emaranha
ainda mais a questão, já que converte em princípio o que constitui o erro principal no próprio
delineamento da mesma e que deu lugar aos dois primeiros grupos de teorias. A teoria de
Koffka parte de uma interpretação basicamente dualista do próprio desenvolvimento. Este
não é um processo único, mas que existe enquanto maturação e instrução. (Vigotski, 1993, p.
222).

A conseqüência acertada e de grande valor do pensamento de Koffka, nos diz


Vigotski, é a que se refere ao fato de a instrução poder fazer o desenvolvimento avançar,
provocando nele novas formações. E lembra que já Herbart baseava sua doutrina da disciplina
formal em um tal postulado, ou seja, o de que determinadas disciplinas podiam promover
mudanças essenciais no desenvolvimento da criança, possibilidade contra a qual manifestou-se
de modo veemente Thorndike, posteriormente. Para Vigotski, entretanto, mantidas as devidas
cautelas para com toda a teoria de Herbart, Thorndike teria visado e atingido apenas o que
haveria de exageros e deformações na proposta de herbartiana. Generalizando os pontos
questionáveis de Herbart a toda a sua teoria, acaba por colocar à margem também seus aspectos
factíveis. Para Thorndike, toda educação não influi em todo desenvolvimento; logo, conclui
Vigotski, “nada influi em nada”. (Vigotski, 1993, p. 225).
Era importante apresentar, aqui, tais aspectos gerais do contexto da chamada
psicologia pedagógica de princípios do século para compreendermos melhor o lugar próprio em
que se instituiu a concepção histórico-cultural, uma concepção singular em meio às já citadas.
Neste sentido, Vigotski e sua equipe partiram da tese de que os processos instrução e
desenvolvimento não são independentes entre si, como também não conformam um único e
286

mesmo processo. O que se verificava eram relações profundamente complexas entre os mesmos,
mas que não tinham sido adequadamente investigadas e compreendidas, até então.
Não cabe, aqui, que adentremos nas especificidades dos experimentos então
realizados, restringindo-nos, portanto, aos seus principais achados e conclusões. O primeiro
grupo de investigações, que se referia à busca de esclarecimentos acerca das relações existentes
entre maturidade e instrução, foi realizado a partir de estudos sobre como a criança passa a se
relacionar com as atividades das disciplinas essenciais do começo de sua escolarização. A
primeira conclusão, daí advinda, foi que, contrariamente ao que se acreditava, as crianças que
superam com êxito o processo de instrução desse período não mostram o menor traço de
maturidade das premissas psicológicas que, segundo a primeira teoria, deveriam preceder o
começo da mesma. É o próprio processo de instrução e o contato com novos elementos do
conhecimento que, por suas exigências às funções psicológicas da criança, as arrastam para
outros níveis. E isto tampouco quer representar que as novas exigências possam ser tomadas
enquanto necessidades. Basta tomar o exemplo da escrita para entender isto: a linguagem escrita,
contrariamente à aquisição da fala, não é uma necessidade que possa ser interpretada como vital
ao indivíduo. Pelo contrário, ao princípio da aprendizagem da escrita a sua necessidade é
totalmente nula para a criança. É o contato com a linguagem escrita que inaugura uma etapa de
exigências ao processo de desenvolvimento da criança, o mesmo se dando com as demais
disciplinas a serem aprendidas.
Mais que isso, Vigotski se depara com um dado que deve ser tomado como fato
central de todo processo de instrução, ou seja, que este “incide fundamentalmente sobre a
tomada de consciência e a voluntariedade da criança”(Vigotski, 1993, p. 234-235). Por ela, e
sobretudo no caso da linguagem escrita, a criança toma consciência de relações que envolvem o
que até então só realizava de forma espontânea e inconsciente, a começar pelos fundamentos e
interrelações possíveis de sua própria língua. É deste modo que a criança aprende, na escola, a
tomar consciência do que faz e, portanto, a operar voluntariamente seus próprios hábitos. Assim,
“seus hábitos passam de inconscientes, do plano automático, ao plano voluntário, intencional e
consciente” (Vigotski, 1993, p. 234).
Enfim, estas constatações tornam-se básicas à perspectiva histórico-cultural, que toma
como sua primeira premissa o fato de que “o desenvolvimento do fundamento psicológico do
ensino das principais matérias não precede o começo da mesma, mas sim, tem lugar em uma
indissolúvel conexão interna com ela, no curso de seu avanço progressivo”(Vigotski, 1993, p.
235).
287

Complementarmente, a segunda série de experimentos visou esclarecer, de modo


efetivo, a questão da correlação temporal dos processos de instrução e desenvolvimento. Por tais
estudos foi possível constatar, desta feita, que os processos relacionados ao desenvolvimento
nunca coincidem com os relativos à instrução, sendo que o processo de instrução, contudo, tende
sempre a se antecipar ao desenvolvimento:

O resumo geral de nossa segunda série de investigações pode formular-se assim: no


momento de uma operação aritmética ou de um conceito científico, o desenvolvimento dessa
operação e desse conceito não finaliza, mas sim, apenas se inicia. A curva do
desenvolvimento não coincide com a do curso do programa escolar. Nestas circunstâncias, a
instrução se adianta fundamentalmente ao desenvolvimento. Vigotski, 1993, p. 236-237).

A terceira série de investigações dedicou-se a esclarecer as questões relativas à


suposta relevância das disciplinas formais, idéia defendida por Herbart e posteriormente
combatida por Thorndike. Estas investigações mostraram que disciplinas distintas atuam
reciprocamente durante o desenvolvimento, mas o desenvolvimento mental da criança não se
distribui nem se realiza de acordo com determinado sistema de matérias escolares. Dito de outro
modo, os fatos não sucedem de forma que determinada disciplina desenvolva certas funções de
maneira isolada e independente de outras. Todas as diferentes matérias acabam por possuir uma
base psíquica comum:

O pensamento abstrato da criança se desenvolve em todas as disciplinas, e seu


desenvolvimento não se decompõe de modo algum em disciplinas distintas, separadas de
acordo com todas as matérias que compõem a instrução escolar. (Vigotski, 1993, p. 237).

Esta constatação desmistificou alguns aspectos concernentes tanto às premissas de


Herbart quanto às contrárias, de Thorndike. Por um lado, reforçou uma vez mais o valor
intrínseco dos conteúdos sistematizados para o desenvolvimento, esclarecendo, entretanto, que
isto não obedece a uma ordem de importância determinada, como supunha Herbart. Por outro
lado, este fato deu sustentação à crítica de Thorndike aos exageros da doutrina de Herbart, acerca
da determinação total de determinadas disciplinas para o desenvolvimento dos indivíduos,
conquanto também tornou infundada a sua crença em que a instrução formal pouco interferiria
no desenvolvimento.
Fica claro, desta forma, que a grande contribuição de Vigotski e da perspectiva que
inaugurou com seus colaboradores, no que concerne à questão da relação entre ensino e
desenvolvimento, foi o de demonstrar a efetiva e, diríamos, decisiva influência do primeiro sobre
o segundo processo, e em que medida isso se dá. Entretanto, resta-nos ainda nos reportarmos ao
quarto e último grupo de investigações sobre o assunto em questão. Vigotski considera que, até
então, as investigações psicológicas sobre o problema do ensino se limitavam a estabelecer o
288

nível de desenvolvimento mental atingido pela criança. Para tanto, recorria-se sempre às tarefas
que a criança conseguiria resolver por si mesma e, por conseguinte, se já se encontraria madura
para determinadas resoluções em cada suposta etapa de seu desenvolvimento. Para o autor, era
evidente que com tal método poder-se-ia estabelecer unicamente o que já havia madurado na
criança, até então. Mas, se seus achados estivessem corretos, o desenvolvimento não se limitaria
exclusivamente à parte madura atual. E apresenta a seguinte metáfora para ilustrar a questão:

Igual ao fruticultor, que desejando determinar o estado de seu pomar, não terá razão se se
limitar a avaliar as macieiras que já tenham madurado e dado frutos, mas que deve ter em
conta também as árvores em maturação, o psicólogo, ao avaliar o estado de
desenvolvimento, deve obrigatoriamente ter em conta não somente as funções maduras,
senão também as que estão em transe de maturação. (Vigotski, 1993, p. 238).

A determinação deste intervalo de possibilidades encontra-se diretamente relacionada


não simplesmente ao que a criança pode resolver por si mesma, mas sim, ao que resolve com o
auxílio de adultos. A esta diferença entre o que a criança pode fazer por conta própria e em
colaboração com adultos, Vigotski denominou zona de desenvolvimento próximo.
Traduzida para o processo de ensino, o mesmo se dá com o papel da instrução, que
favorece o desenvolvimento das funções que ainda não amadureceram na criança:

Assim é que, quando dizemos que a instrução deve basear-se na zona de desenvolvimento
próximo, nas funções ainda imaturas, não estamos receitando nada de novo à escola, senão
que nos livremos do velho equívoco de que o desenvolvimento deve recorrer,
obrigatoriamente, a seus ciclos, preparando por completo os fundamentos sobre os quais a
instrução deve erigir-se. (...)
Antes se perguntava: a criança está madura para aprender a ler, para aprender aritmética etc.?
A questão relativa às funções maduras se mantém vigente. Devemos sempre determinar o
limite inferior da instrução. Mas a coisa não acaba aí: devemos saber estabelecer também o
limite superior da instrução. Só dentro desses dois limites pode a instrução resultar
frutífera”(Vigotski, 1993, p. 242).

Portanto, ao invés de limitar-se ou adequar-se ao estágio de desenvolvimento da


criança, o papel da instrução, antes, deveria ser o de movê-lo, arrastá-lo para além de seus limites
espontâneos.
A instrução, portanto, é a base do desenvolvimento dos conceitos científicos. Por esse
motivo, o problema da instrução e do desenvolvimento é central à análise da origem e da
formação dos conceitos científicos na criança.
Posteriormente, e após o devido aprofundamento em diversas questões que o curto
tempo de vida de Vigotski não lhe permitiu, outras contribuições complementares aos seus
estudos e de especial interesse para nosso raciocínio foram proporcionadas por seus
colaboradores. Destacamos aqui, em especial, as contribuições de Alexis N. Leontiev (1903-
289

1979), particularmente as que se destacam no texto “Uma contribuição à teoria do


desenvolvimento da psique infantil” (Leontiev, 1988), que a nosso ver completam esse nosso
raciocínio. O primeiro aspecto a ser observado, segundo o autor, refere-se ao fato de que durante
o desenvolvimento da criança, sob influências concretas diversas, o lugar que objetivamente esta
ocupa no seio das organizações e relações humanas se altera (Leontiev, 1988, p. 59).
Leontiev procura demonstrar este fato descrevendo os estágios reais do
desenvolvimento de uma criança segundo a perspectiva histórico-cultural. Partindo da condição
de uma criança em idade pré-escolar, assinala a importância das características próprias do
estágio de amadurecimento em que se encontra a criança, mas ressalta principalmente a
importância das condições objetivas que envolvem e orientam suas ações. É assim que este
conjunto de condições e circunstâncias proporciona à criança uma série de atividades
fundamentalmente caracterizadas pela imitação de um mundo adulto do qual a criança depende
inteiramente, e no qual ainda não desempenha papel ativo. Assim se remete Leontiev a esta
questão:

Em toda a sua atividade e, sobretudo, em seus jogos, que ultrapassaram agora os estreitos
limites da manipulação dos objetos que a cercam, a criança penetra um mundo mais amplo,
assimilando-o de forma eficaz. Ela assimila o mundo objetivo como um mundo de objetos
humanos, reproduzindo ações humanas com eles. Ela guia um “carro”, aponta uma “pistola”,
embora seja realmente impossível andar em seu carro ou atirar com sua arma. Mas neste
ponto de seu desenvolvimento isto é irrelevante para ela, porque suas necessidades vitais são
satisfeitas pelos adultos, independentemente da produtividade concreta de seus
atos.(Leontiev, 1988, p. 59).

De fato, segundo Leontiev o processo de transição deste mundo estritamente infantil


para o mundo mais amplo das relações sociais, no qual o indivíduo passa a perceber o lugar que
nela ocupa e as novas exigências que daí surgem, se dá efetivamente com o acesso da criança à
escola. Aqui todo o sistema de suas relações é reorganizado, sendo que, além de meras
obrigações e deveres para com os pais e educadores, a criança se depara agora com exigências
que dizem respeito à sua função, papel e perspectivas de vida social futura. Leontiev afirma que
a criança já possuía noções acerca destes fatos muito antes de entrar na escola. Todavia, somente
agora isso se consuma concretamente:

Quando se senta para preparar suas lições, a criança se sente, talvez pela primeira vez,
ocupada com um assunto muito importante. Em casa, os irmãos menores são proibidos de
incomodá-la, e mesmo os adultos, às vezes, sacrificam suas próprias ocupações para dar-lhe
a oportunidade de trabalhar. Isto é muito diferente de seus jogos e ocupações anteriores. O
próprio lugar de sua atividade na vida adulta, na vida “verdadeiramente real” que a cerca,
torna-se diferente. (Leontiev, 1988, p. 61).

Evidentemente, são inúmeros os novos fatores que passam a figurar nessa etapa do
desenvolvimento, de psicoafetivos a morfofisiológicos. A criança adquire aos poucos novas
290

feições físicas, cresce, desenvolve habilidades, exprime opiniões, participa de novas atividades
etc. O próprio tratamento que o mundo até aqui lhe reservava se altera.
Eis porque, na opinião de Leontiev, é fundamental que no estudo do
desenvolvimento da psique infantil, devamos necessariamente analisar o próprio
desenvolvimento da atividade da criança, e isto significa considerá-la em termos de como esta é
constituída nas condições concretas da vida da criança. Somente desta forma poderemos
compreender adequadamente “o papel condutor da educação e da criação operando precisamente
em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e determinando, portanto, sua psique e sua
consciência” (Leontiev, 1988, p. 63).
Entretanto, Leontiev distinguirá, em seus graus de importância, as atividades que
envolvem o desenvolvimento da criança. Em outros termos, não se refere a toda e qualquer
atividade, e esclarece que:

[...] a vida, ou a atividade como um todo, não é construída mecanicamente a partir de tipos
separados de atividades. Alguns tipos de atividade são os principais em um certo estágio, e
são da maior importância para o desenvolvimento subseqüente do indivíduo, e outros tipos
são menos importantes. Alguns representam o papel principal no desenvolvimento, e outros,
um papel subsidiário. Devemos, por isso, falar da dependência do desenvolvimento psíquico
em relação à atividade principal e não à atividade em geral. (Leontiev, 1988, p. 63 - itálicos
nossos).

Deste modo, cada estágio do desenvolvimento psíquico caracteriza-se por uma


relação muito própria e efetiva entre a criança e um tipo preciso e dominante de atividade. Isto é
de fundamental importância e implica em que a transição de um estágio de desenvolvimento a
outro é determinado efetivamente pela mudança da atividade principal na vida da criança.
Em linhas gerais, Leontiev assim caracteriza a atividade principal:
1. Ela é a atividade em cuja forma surgem outros tipos de atividade e dentro da qual eles são
diferenciados. Por exemplo, a instrução, no sentido mais estrito do termo, que se desenvolve
em primeiro lugar já na infância pré-escolar, surge inicialmente no brinquedo, isto é,
precisamente na atividade principal deste estágio do desenvolvimento. A criança começa a
aprender de brincadeira.
2. A atividade principal é aquela na qual processos psíquicos particulares tomam forma ou
são reorganizados. Os processos infantis da imaginação ativa, por exemplo, são inicialmente
moldados no brinquedo e os processos de pensamento abstrato, nos estudos. Daí não se
segue, porém, que a modelagem ou a reestruturação de todos os processos psíquicos só
ocorra durante a atividade principal. Certos processos psíquicos não são diretamente
modelados e reorganizados durante a própria atividade principal, mas em outras formas de
atividade geneticamente ligadas a ela. Os processos de observação e generalização das cores,
por exemplo, não são moldados, durante a infância pré-escolar, no próprio brinquedo, mas
no desenho, nos trabalhos de aplicação de cores etc.; isto é, em formas de atividades que só
estão relacionadas à atividade lúdica em suas origens.
3. A atividade principal é a atividade da qual dependem, de forma íntima, as principais
mudanças psicológicas na personalidade infantil, observadas em um certo período de
desenvolvimento. É precisamente no brinquedo que a criança, no período pré-escolar, por
exemplo, assimila as funções sociais das pessoas e os padrões apropriados de
291

comportamento (“O que é um soldado do Exército Vermelho?”, “O que fazem em uma


fábrica o diretor, o engenheiro e o operário?”), e este é um momento muito importante de
modelagem de sua personalidade. (Leontiev, 1988, p. 64-65).
Deste modo, a atividade principal deve ser compreendida como a atividade “cujo
desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços
psicológicos da personalidade da criança, em um certo estágio de seu desenvolvimento”
(Leontiev, 1988, p. 65).
Evidentemente, devemos também levar em conta os aspectos determinantes das
condições concretas nas quais se dá o processo de desenvolvimento. Dessas condições
dependerão os próprios conteúdos dos estágios de desenvolvimento (cada indivíduo pertence a
uma dada geração, em dadas condições de vida, que determinam os conteúdos de suas
atividades, lugar social etc.).
Portanto, se por um lado Vigotski lançou uma perspectiva totalmente inovadora para
a compreensão do papel real do processo de instrução sobre o desenvolvimento de suas
potencialidades cognoscitivas, Leontiev procura demonstrar que, efetivamente, a atividade
principal do ensino encontra-se inserida em um contexto sócio-histórico concreto, que incita o
indivíduo a transformar em ação o que agora já lhe é possível. Leontiev, em outras palavras,
mostra o caráter determinante da atividade principal sobre a própria personalidade em
desenvolvimento, enquanto individualidade que vislumbra uma série de novas possibilidades
para tomar parte e interferir objetivamente no mundo que a envolve. A atividade principal,
enfim, é tão determinante para o indivíduo, quanto é também delineada pelo ser em
desenvolvimento; ela é, em última instância, mediadora entre o ser particular e o mundo das
objetivações sociais humanas.
Os estudos em questão são extremamente relevantes para o nosso propósito de
questionamento e refutação dos ideários pedagógicos que contemporaneamente defendem e
difundem o princípio psicopedagógico cognitivista do aprender a aprender para o
desenvolvimento de “habilidades e competências” individuais. Fundamentado em pressupostos
essencialmente individualistas e espontaneístas, embora o lema do “aprender a aprender” tenha
exercido até aqui um fascínio e adesão pouco ou nada crítica por parte de grande parte dos
professores e pedagogos brasileiros, quer nos parecer — em concordância com as agudas
análises e críticas de Duarte acerca da assimilação de tais princípios no Brasil (ver Duarte, 1993;
1996; 2000a; 2000b e 2001) — que o referido ideário de fato tenha se mostrado oportuno para
legitimar o intenso movimento de subjetivação e esvaziamento do sentido social dos processos
de ensino. Simultaneamente, esvazia também o próprio sentido da mediação adulta no processo
de desenvolvimento das novas gerações, uma vez que o lema do “aprender a aprender” difunde a
292

romântica crença de que o papel do professor deve ser reduzido ao máximo para que as crianças
desenvolvam suas habilidades e competências o mais naturalmente e espontaneamente possível.
É provável que este credo, oriundo de pesquisas essencialmente laboratoriais realizadas na
Europa e América do Norte “cultas e abonadas”, possa em parte ser corroborado pelas condições
sociais e culturais próprias de seu contexto de produção. Mas certamente não pode ser
generalizado a partir do elitismo etnocêntrico que o produziu. Sua transferência mecânica para
países periféricos como o Brasil, em que devemos falar antes de diferenças sociais que de
diferenças individuais, têm se mostrado totalmente fictício em relação às possibilidades de sua
aplicação numa sociedade majoritariamente iletrada e relegada a condições desumanas de
sobrevivência.
Em nome de uma escola comprometida com a vida “real” dos indivíduos (o que em
geral é tomado como sinônimo de identificação com a vida cotidiana dos mesmos, um outro
elemento discursivo que seduz ainda a muitos educadores), o que presenciamos a partir da
década de 1990 foi um intenso processo de valorização de atividades espontâneas e geralmente
esvaídas quanto aos conteúdos que, como vimos, são em si fundamentais ao desenvolvimento
sócio-histórico das novas gerações. Portanto, temos motivos suficientes para crer que o recente
resgate de concepções psicopedagógicas que remontam a princípios do século XX,
caracteristicamente individualistas, subjetivistas e pragmáticas, convergem, sobremaneira, com o
ideário ultraliberal que tem orientado e “reformado” as concepções sociais acerca do mundo do
trabalho, da educação e da sociabilidade atuais. Parece-nos, enfim, que o discurso ideológico da
competência e sua inteira identificação com tais pressupostos, convergem para um mesmo
objetivo histórico: abstrair e obscurecer, através da subjetivação e idealização da realidade, os
processos que concretamente têm determinado nossas existências em sociedade no atual contexto
do modo de produção capitalista.
293

Considerações Finais

I
Como vimos no Capítulo II, os acontecimentos que envolveram a consolidação da
chamada Sociedade Capitalista Industrial, em seus dois elementos fundamentais, isto é, a
constituição do direito à apropriação fundiária e dos meios produtivos e a constituição do
mercado de trabalho competitivo assalariado, processos estes em grande medida arbitrários e
brutais, permitiram a instauração de um mercado verdadeiramente capitalista, que ascendeu da
condição secular de submissão às necessidades sócio-comunais, para a condição de apropriador e
determinante das mesmas, processo este que tende a uma ampliação universal. O auge desse
complexo processo implica no que denominamos assédio mercadológico não apenas aos
trabalhadores então necessários, mas também aos mecanismos culturais implicados na
“formatação” de uma sociedade fundada nos princípios liberais burgueses, o que implica no
assédio mercadológico também sobre a educação. Ao recorrermos, naquele capítulo, aos estudos
e considerações históricas relevantes, como as de Karl Marx, Robert Castel e Karl Polanyi sobre
o advento da propriedade capitalista e dos mercados, e de Antonio Gramsci acerca de suas
implicações políticas, filosóficas e pedagógicas sobre a educação de então, procuramos esboçar o
assédio do capital e de seus ideólogos burgueses sobre o ensino escolar e para o trabalho, até o
caso brasileiro, ilustrado pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e os apelos à reforma
da educação escolar para o século XX.
No Capítulo III, por sua vez, procuramos evidenciar os elementos discursivos e
concretos que têm permeado, contemporaneamente, o novo assédio do capital sobre o trabalho e
a educação. Desta feita, entretanto, embora se possa enfatizar que não há senão um processo de
continuidade do assédio liberal sobre a escola (o que não contradiz nossa tese), procuramos
evidenciar o surgimento de novos ícones e elementos discursivos, relacionados a novas
mudanças no modo de produção (as revoluções técnico-científicas e filosóficas relacionadas ao
mundo do trabalho e da escolarização). Os novos princípios atribuídos ao final do século XX
para uma nova sociedade e novas formas de produzir, preconizadas para o século XXI —
educação para todos, o fim da centralidade do trabalho, o advento da sociedade do conhecimento
e o fim da sociedade industrial, a globalização, a pós-modernidade, o fim das ideologias e o
próprio fim da história etc. — foram abordados com a finalidade de serem desmistificados em
seus aspectos ideológicos, seja em relação à esfera do trabalho, seja em relação à esfera da
educação, esferas e processos estes que passaram a ser mediados pela apologia ideológica da
competência e da competitividade.
294

Como anunciado, tivemos como objetivos específicos:


1) Analisar se o discurso da competência, difundido pelo ideário empresarial e
pedagógico no Brasil, seria de fato reflexo de uma realidade em que a competência haja se
tornado condição para que a classe trabalhadora possa manter-se vinculada aos processos
produtivos pelo regime assalariado e, por decorrência, “incluída” nas estruturas de proteção e
sociabilidade atuais; 2) Analisar se cabe à educação formal a função de formar trabalhadores
hábeis e competentes para o mundo do trabalho contemporâneo, mediante as atuais mutações
tecnológicas e gerenciais do modelo capitalista de produção; 3) Comparar o atual contexto do
modo de produção capitalista com o analisado por estudiosos do advento da sociedade industrial,
em relação à chamada segunda Revolução Industrial (sobretudo na transição entre os séculos
XIX e XX), e seus reflexos sobre a educação e o mundo do trabalho de então. 4) Para estes fins
comparativos, centramos nosso foco sobre o impacto do discurso pedagógico da competência no
cenário brasileiro das políticas neoliberais e suas principais repercussões sobre o mundo do
trabalho e da educação.
II
Uma vez que, como o procuramos demonstrar, o discurso ou noção de competência
revela uma trajetória ascensional que coincide não com processos de inovação técnico-científica,
mas com a crise estrutural capitalista em que a inovação nos processos de produção (processos
de trabalho) visam à supressão de postos de trabalho, e não ao aumento ou criação dos mesmos,
nossa primeira conclusão é de que os avanços técnico-produtivos do capitalismo contemporâneo
são expressão de uma crise entre capital e trabalho com vistas à garantia da continuidade de
produção e obtenção de mais-valia. Isto não ocorre apenas através dos meios tradicionais da
supressão salarial, da intensificação do ritmo de trabalho e extensão de jornadas, mas pela
própria superação e supressão técnica de postos de trabalho e lutas, no âmbito da legalidade, pela
supressão de direitos trabalhistas históricos.
Neste sentido, os crescentes níveis de desemprego estrutural não são justificáveis
pela necessidade de qualificação ou de aquisição de novas competências, nem tampouco a
escolarização ou maior nível de instrução dos trabalhadores implicariam na reversão do processo
de supressão de postos de trabalho a que assistimos a partir dos anos de 1990. Por este motivo, o
discurso das habilidades e competências, que supostamente teriam por objetivo qualificar e
habilitar os trabalhadores para se adaptarem, funcional e flexivelmente, a um sistema produtivo
em franca evolução ou “revolução” para o bem, sempre futuro, da humanidade, revela-se um
discurso sem correspondência com a realidade concreta, e, portanto, é essencialmente ideológico,
visando obscurecer os processos e objetivos do capital em seu estágio ultraliberal atual.
295

Por outro lado, os trabalhadores ainda necessários (imprescindíveis) ou são


colocados em atividades que pouco ou nada exigem em termos de maior competência, ou exigem
o máximo de competência para assumir-se múltiplas tarefas ou o controle de recursos técnicos
(geralmente informatizados) para a maximização da eficiência de gestão e dos próprios
processos de produção. Em um ou outro caso (e esta estrutura piramidal tende a ser cada vez
mais estanque em sua ponta e seus vértices cada vez mais estreitos), a noção ou pedagogia das
competências reflete apenas a dissimulação de uma realidade que pede submissão a trabalhos
precários ou de superexploração, no caso da multifuncionalidade do “trabalhador flexível”, pela
intensificação e multiplicação de tarefas atribuídas a um número cada vez mais restrito de
funcionários, operadores, operários, proletários, serviçais — ou como mais se queira designar os
que vendem sua força de trabalho para sobreviverem.
III
No bojo de um tal processo, ao procedermos a uma comparação entre o estágio
ultraliberal contemporâneo e os estágios que precederam e consolidaram o capitalismo industrial
e o mercado de trabalho assalariado pudemos notar que os dois momentos de assédio à educação
possuem elementos pedagógicos em comum. Neste aspecto, podemos notar, atualmente:
a) o resgate de postulados próprios do movimento pragmático do escolanovismo de
fins do século XIX e princípios do século XX (ou da escola ativa), protagonizados atualmente
pelo construtivismo, que por sua vez, ao subsidiar epistemologicamente o discurso atual de uma
aprendizagem psicobiológica centrada no desenvolvimento de habilidades e competências
natural-adaptativas (também denominadas aptidões, inclinações ou tendências) a partir de uma
concepção estritamente individualizante, subsidia pedagógica e ideologimente a noção de
competência aqui questionada;
b) o retorno dos debates relacionados ao pepel da educação frente às mudanças
apontadas pelo movimento ultraliberal em relação à “nova economia”, que agora passaria a
demandar por indivíduos adequados a processos “altamente” técnicos em nome da
competitividade de um mercado determinado pelo princípio da qualidade e eficiência da
produção. A defesa da educação como elemento estratégico à resolução dos problemas sociais e
de “empregabilidade” reapresentam, simultaneamente, tanto os discursos do otimismo
pedagógico de fins do séc. XIX e de princípios do séc. XX, como as discussões sobre como
democratizar a escola sobretudo para garantir-se o acesso e permanência a ela pelas populações
menos privilegiadas.
c) Quanto ao paradoxo liberal da educação para todos e sua relação com a
hegemonia burguesa em termos da divisão social de classes e do trabalho, a burguesia no
296

neoliberalismo passa a se sentir mais à vontade para defender a educação para todos e utilizar
bravatas como “fora da educação não há salvação”:
y Em primeiro lugar porque a educação de qualidade nunca pôde ou foi de fato
oferecida ou permitida aos trabalhadores;
y Segundo, porque a educação tornou-se, ela mesma, um mercado de compra e
venda de títulos, mercado que almeja se estender até as instituições públicas, principalmente as
universidades;
y Terceiro, porque, diante do desemprego estrutural, a razão instrumental e
pragmática da escolaridade tornou a instrução inócua do ponto de vista da formação dos
educandos das classes subalternas que a ela têm acesso — embora não pretendamos afirmar, com
isso, a nulidade da educação escolar, o que constituiria um equívoco grosseiro e sem
fundamentação, de nossa parte;
y Quarto, que a pedagogia da escola ativa, pragmática e espontaneísta, enaltece os
métodos para uma auto-aprendizagem natural (que procuramos desmistificar com os estudos da
psicologia histórico-cultural), enquanto desfavorece os propósitos da escola enquanto
promovedora e socializadora de conhecimentos científicos e filosóficos clássicos. Logo, os
métodos se tornam um fim em si mesmos.
y Quinto, que ao fazê-lo, o construtivismo e as pedagogias ativas favorecem o
acesso, à escola, da cotidianidade em-si, sob alegação de que a realidade próxima das crianças e
das próprias crianças é que deve ser o referencial para o ensino (Duarte, 2000). Logo, por todas
estas razões a escola pode ser recomendada sem temores às classes trabalhadoras. Ela não mais
oferece riscos à manutenção da hegemonia das elites enquanto submetida a uma pedagogia
francamente espontânea e consensualista e, por outro lado, mesmo a escola que privilegia uma
formação ampliada em nossa sociedade, nunca foi sequer necessária à formação de nosso
operariado, uma vez que, em geral, os processos de trabalho tradicionais, mecânicos ou de
serviços, nunca exigiram, em seu mais “refinado” grau, mais que saber ler e contar (quando o
exigem);
y Sexto, que a escola para a classe trabalhadora se transformou numa espécie
“moderna e democrática” de depósito de crianças, a exemplo do que já se tornaram os sistemas
prisionais do país para o contingente crescente de supranumerários (Castel, 2000), criminosos e
vagabundos do contexto ultraliberal contemporâneo, que ultrapassam os limites de um até pouco
tempo imprescindível exército industrial de reserva.
297

IV
Assim, escolanovismo, pragmatismo, assédio do capital a um trabalhador e sociedade
adequados, resignados e disciplinados aos imperativos do capital, não só revelam um processo
certamente de continuidade, mas, sobretudo, de reedição de elementos e adereços muito próprios
e pontuais a um período notavelmente similar em termos de transformações e anacronismo
históricos. Atualmente, todavia, tais elementos e discursos são utilizados num contexto inverso
àquele dos quais estão sendo resgatados. Daí nossa defesa da validade da constatação de que os
diversos elementos discursivos que tiveram correspondência com a realidade dramática do
primeiro momento, não encontram a mesma correspondência na realidade contemporânea, ou
segundo momento. Ambos os períodos, sem dúvida, foram manipulados ideologicamente, com a
mesma similitude de propósitos. Mas enquanto a ideologia, no primeiro momento, era
justificável pelas transformações e explicitamente legitimadas pelos ideais progressistas e
desenvolvimentistas liberais (sem dúvida, também perversos), a reaparição ou resgate de muitos
de seus aspectos e desiderativos para o mundo do trabalho (produção) e da educação
(disciplinação, ideologização e adestramento) não são justificáveis para o atual momento. No
máximo, além de dissimularem a realidade, os discursos sobre competência se prestam a todo
um novo mercado (o marketing da conquista de empregos e salários, por exemplo, ou o
marketing ideológico relacionado a uma falsa “onipotência” da educação, da “instrução” ou do
“conhecimento”), bem como a transferir, aos trabalhadores, agora não mais em termos sócio-
coletivos, mas individuais e subjetivos, as resonsabilidades por suas próprias sobrevivências no
mercado (competentes versus incompetentes, mais aptos versus menos aptos etc.).
V
Isso nos conduz à última hipótese a ser analisada, ou seja, a validade da proposição
da repetição histórica como farsa, nos termos de Karl Marx. Em se considerando o até aqui
exposto, julgamos pertinente a aplicação daquela hipótese — à qual Assoun (1979) atribui a
condição de um verdadeiro postulado para a filosofia da história. Tomemos a liberdade de
também resgatarmos algumas palavras de Marx em seu célebre O 18 Brumário, para nele nos
ampararmos em nossas conclusões:

“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande
importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de
acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Luís Blanc por
Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E
a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito
Brumário! Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814
vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução
de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária
de 1793-1795. [...] O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de
298

pronto uma diferença marcante. Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just,


Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, desempenharam a
tarefa de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes
romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam
as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu lado, criou na França as
condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a
propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas industriais da nação que tinham
sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda parte as instituições
feudais, na medida em que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um
ambiente adequado e atual no continente europeu. Uma vez estabelecida a nova formação
social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta — os
Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César.

“A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e
porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Coilards, Benjamm Constants e Guizots; seus
verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho
de Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na
concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos
tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos heróica que se mostre hoje esta
sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de
povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república
romana, seus gladiadores encontraram nos ideais e nas formas de arte, as ilusões de que
necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas
lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica. Do mesmo
modo, em outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês
haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões e as ilusões do Velho Testamento para
sua revolução burguesa. Uma vez alcançado o objetivo real, uma vez realizada a
transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc.” (Marx, 1987, p. 1-
3 – itálicos nossos)

Desculpando-nos já por nos permitirmos esta longa citação, apresentamo-la de forma


a ilustrar nosso entendimento quanto à reedição histórica dos elementos ideológicos, políticos,
econômicos, psicológicos, pedagógicos, sociológicos etc., que as classes dominantes e seus
ideólogos hoje “conjuram” em relação a seu próprio passado. Não deliberamos, com isto,
estabelecer um recorte e comparação mecânicos entre os dois momentos em que nos pautamos
nesta tese. Nesse sentido, o próprio Marx, acrescenta, de imediato, às frases precedentes, a
seguinte, que tomamos, aqui, como verdadeira advertência:

“A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as


novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a
cumprir, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da
revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez.” (Marx, op. cit., idem).

Entendemos que a história, enquanto continuum, é também ambígua. Nesta


ambiguidade, tragédias e farsas se conjugam constantemente. O capitalismo contemporâneo não
pode se furtar à realidade que o cerca, uma vez que é ele o demiurgo por excelência da mesma, e,
portanto, tanto de suas tragédias quanto de suas resoluções, ainda que pelo expediente da farsa;
tanto de como essa realidade se nos apresenta imediatamente, em aparência, como se nos pode
ser revelada, concretamente. O capitalismo é feito mais que por uma ou várias classes
299

hegemônicas. Ele é sustentado por homens e mulheres de todas as classes e categorias, estrutural
e superestruturalmente, que alimentam incessantemente seus “moinhos satânicos”. Suas farsas
ou ilusões lhe são absolutamente necessárias, pois do contrário, a verdade poderia coincidir com
a realidade e, por conseguinte, não haveria, para nós, a “necessidade de ser cientificamente
investigado” (o que incomoda e irrita, como sabemos, os seus elementos orgânicos). Ora, quer
nos parecer que este nosso pequeno, mas exaustivo estudo, pode contribuir, a exemplo de tantos
outros, neste propósito, absolutamente legítimo. Se há farsas e ilusões a serem desveladas, este
papel só encontra no trabalho científico criticamente subsidiado o seu grande instrumento.
VI
Mas encerraremos nossas considerações não apenas opinando em favor de nossas
conclusões. Tomaremos ainda a liberdade de apontar outras preocupações que indicam não só
temores quanto à atual configuração que assumem nossas sociedades, como possíveis e árduos
temas que nos chamam a atenção em nosso cotidiano, talvez dignos de serem investigados. São,
por hora, imagens que nos tocam e provocam cada vez mais, e nos remetem também a elementos
que julgaríamos mortos de um passado longínquo: o aumento considerável dos condomínios
fechados e policiados como os novos burgos com seus castelos e guaritas; o rompimento dos
laços institucionais e familiares, o concorrendo à desfiliação com a falta de proteção próxima; a
desestruturação e desconstrução do Estado de Direito possibilitando a aristocracia despótica do
poder público; o rompimento das redes de proteção sociais e da garantia de emprego, o que
favorece o crescimento e aprimoramento de organizações criminosas com acesso ao próprio
Estado, na forma de um verdadeiro retorno à pirataria e à pilhagem institucionalizada dos reinos
de outrora; o ressurgimento do assistencialismo, do voluntarismo e das organizações tutelares; o
estrangulamento e fratura dos sistemas de segurança pública e de justiça, conduzidos ao
descrédito social e associação ao crime organizado; a sujeição das classes populares,
trabalhadoras, a atividades informais e insuficientes de sobrevivência.
Estaríamos, para além de repetições ou reedições do passado, também diante do risco
de involuções a aspectos que lhes eram próprios e consideramos ultrapassados, em termos
civilizatórios? Em sua obra O século XXI: socialismo ou barbárie?, István Mészáros sistematiza
de forma convergente com nossa percepção o inconteste anacronismo social e econômico do
capitalismo do final do século XX em sua transição para o século XXI. Suas considerações
convergem com as condições que observamos no Brasil, sobretudo a partir da década de 1990,
com índices calamitosos de violência, criminalidade, banalização da vida e vulgarização de
todas as suas expressões, competitividade e individualismo possessivo que ao conjugarem-se
com nossas leituras e debates, resultaram por fim em nosso presente trabalho de pesquisa.
300

Pelos pressupostos do materialismo histórico e dialético, a concreta realidade do


modo capitalista de produção (e de reprodução) material e social, não deixa dúvidas quanto à sua
necessária insolubilidade quando deixado à sua própria lógica e princípios (sendo seu fim, para
essa ciência da história, apenas uma questão de tempo).
Mas há alternativas quanto à forma de seu colapso e superação, que devem ser bem
consideradas para se optar pela solução definitiva (opção em termos relativos e históricos, e que
implica no resgate do movimento socialista e histórico da classe trabalhadora). Uma primeira,
para Mészáros, e que se revelaria negativa, é a possibilidade de o capitalismo poder morrer por si
próprio, segundo sua lógica autofágica. É este o seu caminho espontâneo e que, pelo o que tudo
nos indica, implicaria, entretanto, no risco de flagelo e destruição para a própria humanidade.
O segundo caso, positivo segundo o autor, é o de que o capitalismo possa
transformar-se, metamorfosear-se, em um modo qualitativamente superior de produção e
organização social, o que representaria uma superação evolutiva e qualitativa, por si mesma, para
o socialismo. Mészáros considera esta hipótese plausível, uma vez que o trabalho não estaria
historicamente condenado a submeter-se eternamente ao jugo do capital — essa dependência é
“relativa, historicamente criada e historicamente superável” (Mészáros, 2002b, p. 105-106).
Entretanto, trata-se de uma possibilidade remota, pois que contaria com um processo espontâneo
de evolução numa transição menos perceptível para o socialismo.
Seria, pois, possível uma transição paulatina e pacífica ao socialismo? É possível
conceber-se o fim espontâneo da propriedade e da apropriação privadas? De fato, nos deparamos
aqui com hipóteses de longuíssimo prazo, que não parecem possíveis sem que antes o processo
destrutivo faça sofrer e perecer boa parte da humanidade. Espontaneísmo não combina, enfim,
com socialismo, e o próprio Mészáros demonstra seu descrédito a um processo deste gênero,
mesmo no longo prazo.
Por fim, há uma terceira possibilidade, que de modo algum se confunde com uma
cínica e impossível terceira via — pois não há terceira via, segundo o autor; há capitalismo ou
socialismo, e nesse sentido, ele próprio, ao discorrer sobre o tema, manifesta seu declarado
desdém pela posição assumida pelo trabalhismo inglês, como uma simples “variedade de
acomodação defensiva do trabalho” (Mészáros, 2002b, p. 95).
Ao contrário, esta terceira possibilidade refere-se, segundo ele, a uma “mudança
histórica na confrontação entre capital e trabalho”, que necessariamente envolvem ações
conscientes, visando propósitos absolutos em relação à superação da ditadura do capital. Desse
modo, deverão visar à superação da desigualdade hierárquica tão própria ao capitalismo
(mantidas nas experiências socialistas já fracassadas do leste europeu e suas correlatas, ainda
301

vigentes), por sua natureza antagônica a qualquer sociedade que se pretenda socialista. Isto
implica na conquista do que Mészáros chama de uma “igualdade substantiva” nas tomadas de
decisão numa sociedade de superação do capital (Mészáros, 2002b, p. 106).
Esse é o motivo, ao nosso ver, de Mészáros não só recolocar o tema sob a forma de
uma proposição, mas também de uma indagação: socialismo ou barbárie? Que é à barbárie que
nos tem conduzido o referido processo capitalista, já não parece a Mészáros motivo de maiores
especulações. O que era uma proposição em Marx e Rosa Luxemburgo, a história hoje confirma,
adquirindo uma urgência dramática segundo o autor. Mas há que se perguntar, após a
constatação científica da possibilidade de um concreto e dramático “fim da história”, o que nos
será possível e cabível fazer. Portanto, entramos aqui nos aspectos árduos de uma tal
possibilidade de superação do capitalismo, que independem de boas intenções e não se dão por
supostas decisões intelectuais declaradas, como se nos perguntássemos “qual será a decisão da
humanidade até o final do ano?” De que humanidade se fala? De quais formas de decisão e
transformação falamos? De que tempo falamos?
Como adverte Mészáros, os muitos problemas que teremos que enfrentar
(desemprego estrutural crônico, conflitos econômicos, políticos e militares, degradação
ecológico-ambiental etc.) exigem uma ação internacional combinada e urgente, tão urgente
quanto reclama a real possibilidade de nossa autodestruição em curto prazo. A deflagração desta
ação, como enfatiza, “talvez possa ser medida em décadas, mas certamente não em séculos”
(Mészáros, 2002b, p. 108).
Concordando com Mészáros — apesar de seu prognóstico um tanto sombrio —, o
que está em jogo é a continuidade ou extermínio da própria humanidade, e, se não houver uma
forte contenção e inversão dos processos desumanizadores sempre crescentes, “viveremos a
barbárie, se tivermos sorte” (Mészáros, 2002b).
Como a filosofia e a ciência da história indicam, as possibilidades destrutivas tanto
quanto as de superação estão dadas e o próprio capitalismo engendra não só seu possível fim,
como os recursos tecnológicos, materiais e de conhecimentos imprescindíveis à renovação
equânime de nossas sociedades. Mészáros aponta possibilidades, mas não ousa tirar conclusões.
Se a humanidade tem como inclinação “natural” o seu próprio aniquilamento, de pouco
proveito será ter razão a esse respeito. Portanto, acreditamos ser sumamente necessário
identificarmos e desvelarmos todos os mecanismos que, por obra de interesses e caprichos
unicamente particulares, naturalizam e põem em risco o futuro do gênero humano.

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