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São Carlos
2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
Programa de Pós-Graduação em Educação
São Carlos
2006
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
Ao PPGE e à UFSCar, que apesar das adversidades, ainda representam a nossa luta por um
ensino público amplo, de qualidade e comprometido com os interesses do povo brasileiro.
Ao povo brasileiro que, apesar dos golpes e adversidades, ainda financia quem nem sempre o
reconhece como seu mantenedor e fundamento maior de suas realizações.
À CAPES, mandatária do financiamento público que tornou possível este trabalho (com
concessão de bolsa no período de Maio/2003 a Abril/2006).
A todos os professores-aprendizes da Vida, que contribuíram de diversas formas para a
realização de mais esta etapa do meu contínuo processo de aprendizado, em especial ao meu
muito caro orientador e amigo, Prof. Dr. Ramón Peña Castro, aos professores de todos os
tempos, Lígia Márcia Martins, Marisa Meira Ragonesi, Elenita de Riccio Tanamachi, Adriana
Chaves, Ana Maria Daiben, Maria Salete Aranha, Salete Alberti. Aos professores membros das
bancas de qualificação e defesa que muito nos honraram com suas participações e dignificaram
este trabalho, Profª Drª Marisa Bittar (sempre presente), Prof. Dr. João dos Reis da Silva Jr.,
Prof. Dr. Celso João Ferretti, Prof. Dr. Wolfgang Leo Maar, Prof. Dr. Farid Eid e ao Prof. Dr.
Newton Duarte, a quem certamente sou devedor, como tantos outros, como intelectual e
educador. Aos amigos e interlocutores de sempre, Maria Denise Guedes, Àurea de Carvalho
Costa e Sandro Almeida, muito obrigado.
À Secretaria do PPGE, através de Rafael, Magda, Rosângela, Josiane e Maria Helena, pela
atenção sempre prestimosa e pela eficiência.
Aos funcionários da Biblioteca Comunitária, exemplares no trato com livros e pessoas.
À Alessandra, companheira e amiga, pelas contribuições, pela dedicação, pela paciência e pelos
encorajamentos pelos quais lhe serei eternamente grato.
Aos demais amigos, meus pais, Paulina e Nobelino e irmã, Luciana, que acompanharam e
contribuíram, de diversas e decisivas formas, para que minha trajetória e esta produção se
tornasse possível.
E mais uma vez, à Vida, que ostensivamente me prova “conspirar” a favor de nosso
crescimento e aprimoramento, mesmo que, em geral, disso nem sempre nos apercebamos.
A todos, enfim, a minha mais profunda gratidão e reconhecimento.
Quando a acumulação de riqueza já não for de alta importância social, haverá grandes
mudanças no código moral [...]. Estaremos então livres, afinal, para descartar todos os
costumes sociais e práticas econômicas que afetam a distribuição de riqueza e de
recompensas e penalidades econômicas, que agora mantemos a todo custo, por mais
desagradáveis e injustos que possam ser em si mesmos, por serem enormemente úteis
para a acumulação do capital [...]. Prestaremos honras àqueles que podem nos ensinar a
aproveitar a hora e o dia com virtude e bondade, as pessoas encantadoras que são
capazes de colher um gozo direto das coisas, os lírios do campo que não trabalham nem
fiam. {...] Mas cuidado! Ainda não chegou a hora para isso. Durante pelo menos outros
cem anos devemos fingir para nós mesmos e para todos os outros que o bom é ruim e o
ruim é bom, porque o ruim é útil e o bom não é. A avareza, a usura e a prudência devem
ser nossos deuses ainda por algum tempo. Somente elas podem nos tirar do túnel da
necessidade econômica para a luz do dia.
1
Cogula: termo eclesiástico; espécie de túnica larga, sem mangas, usado por certos religiosos monacais, como,
p.ex., os beneditinos.
Resumo
By the present study we investigated the production and spread of the discourse about
competence, as for its repercussions on the education as well on the work in Brazil. In order
that, we situated our attention upon the years of the Fernando Henrique Cardoso government
period from the 1990’s, pointed by many researchers like the effective implementation of
neoliberal economics, social and educational politics in Brazil and in the world. Our thesis,
considering the ultraliberals proposals of inexorable transformations to education and work at
the final of XXth century, is that these proposals reedit, by the competence discourse,
arguments and proposals equivalents to dominants discourses into circumstances of
transformation and capitalist crisis, between the XIXth to XXth transition at the industrial
society consolidation peak. That moment represented technical, scientific and administrative
developments (the model called fordism-taylorism) and the competitive worker market
establishment, circumstances that requesting a new workers category, adequate to the
newfangled organization, education and productive icons. However, despite of similarity of
both discourses in terms of mutations in the work processes and to the role attributed to
schooling with market goals, we defend in this research that the ultraliberal argue that the
problem of unemployment, social precarization and “social exclusion” are attribute to worker
disqualification or incompetence through presumed contemporary production innovations,
actually they dissimulate and legitimate, ideologically, what the own capitalism, in its
contemporary structural crisis, unavoidably create. To subside our proposal, we proceed a
comparative analysis between the two periods in question, taking as base the reflections of
Karl Marx, Antonio Gramsci and Karl Polanyi toward the economic, cultural and educational
transformations in the context of supremacy of liberal ideal of “self-regulated” market about
the wide secularized social interests, that is, when the market, factorial component of society,
transform the own society in its factorial component. After this, we will proceed, in the
context in which it is establish the trade school and the arrival of fordism on the first third
part of XXth century, reflections in which we confront analysis of contemporary authors
about the Brazilian politic-economic and educational ultra liberation phenomenon.
Considering this, the question that guide us and which we intent answer could be formulated
in this manner: the competence discourse as imperative to the actual work and education, in a
context of technological transformation and structural crisis of capital-work relation, could
be reediting discursive elements of the transformations observed at the end of XIXth century,
in way to legitimate the actual negative consequences in form of a dissimulation of reality or,
in Marxian terms, as a historical farce? The analysis of the two periods of capitalism indicate
us that the Hegelian-Marxian postulate of “historical repetition” become plausible by means
of the ultraliberal renascence observed since the end of the XXth century.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO IV
Problematização e objetivos
I
Karl Marx, na abertura de O 18 Brumário de Luis Bonaparte, ao comentar a
observação de Hegel de que os fatos e personagens mais importantes da história aconteceriam,
geralmente, por duas vezes2, faz notar que Hegel poderia ter acrescentado: “a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa” (Marx, 1852/1988, p. 7)*. E esta obra de Marx é pródiga ao
elencar fatos e personagens históricos que caracterizaram a reedição3, tanto de forma trágica
como de embuste, dos desdobramentos da Revolução Francesa que vieram desaguar no
bonapartismo.
A exemplo de Marx e Engels, assumimos aqui a história como a ciência por
excelência4 e, desse modo, ferramenta mestra para a investigação radical da realidade, seja
natural, seja humana, cujas relações são inextricáveis. Em nossos estudos temos podido observar
2
Marx remete-se à obra de G. W. Hegel (1770-1831), Princípios de Filosofia do Direito (1821).
*
Nota: procuramos, nas obras clássicas aqui utilizadas, fazer referência tanto à data da edição recente quanto à data
da publicação original, no formato “primeira publicação/edição atual”. Esse critério não é utilizado em obras cujas
datas de origem e da edição atual se aproximem em menos de 10 anos ou sejam apenas mencionadas.
3
Paul-Laurent Assoun, em sua obra Marx e a repetição da história, entende que seria mais adequado falar-se de
uma “reedição” de acontecimentos históricos, e não de “repetição” dos mesmos, uma vez que a história não pode de
fato repetir-se, mas sim, em termos marxianos, ser ideologicamente reproduzida. Daí o sentido atribuído por Marx à
observação de Hegel, de que a história [em seus grandes acontecimentos e personagens] só pode acontecer de duas
formas: a primeira como acontecimento em si (tragédia), a segunda como reprodução burlesca (ou farsa), indo, por
conseguinte, da tragœdiæ à comœdiæ (ver Assoun, 1979, p. 46, nota 5).
4
Em A Ideologia Alemã, estes autores dizem: “Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A
história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos,
contudo, não são separáveis; enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se
condicionarão reciprocamente. A história da natureza não nos interessa aqui; mas teremos que examinar a história
dos homens, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida desta história, ou a uma abstração
completa dela. A própria ideologia não é senão um dos aspectos desta história.” (Marx & Engels, 1846/1989, p. 25).
(Nota: este trecho só veio a ser incorporado ao texto original, publicado em 1932 pelo Inst. de Marxismo-Leninismo
de Moscou, como nota à edição de 1962, após a descoberta de novos fragmentos até então desconhecidos).
2
que aquele aditamento de Marx à observação de Hegel — ainda que permeado por sua típica
ironia em relação às contingências sociais e políticas de sua época e, certamente, desvinculada da
pretensão de atingir o estatuto de um enunciado —, guardava consigo a força das evidências e
fatos da própria história. Marx complementa em seguida essa sua observação com elementos
que, agora sim, nos permitem compreender o caráter hipotético-científico no qual sustenta seu
comentário. Diz ele que:
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas
e transmitidas pelo passado.” E, metaforicamente, acrescenta: “A tradição de todas as
gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando
parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu,
precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em
seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra
e as roupagens, a fim de se apresentarem nessa linguagem emprestada. (Marx, 1852/1988,
p.7 – itálicos nossos)
5
Marx e Engels indicavam essa característica do capitalismo da seguinte forma no Manifesto Comunista: “A
burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as
relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais. (...) O permanente revolucionar da produção, o
abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos, distinguem a época da
burguesia de todas as outras.” (Marx & Engels, 1848/1987c, p. 37).
3
primeira vista ambos se refiram a uma humanidade fortemente determinada por seu passado,
Hayek anuncia sua descrença na possibilidade de que a história obedeça a vontades humanas e,
portanto, sustenta a impossibilidade da mesma vir a ser apreendida ou projetada — o que, como
enfatiza, talvez “seja uma felicidade para o homem o fato de que ele jamais poderá ter
semelhante experiência e de que ignore quaisquer leis a que a história deva obedecer.”
Por sua vez, Karl Marx não só reconhece que os homens são, de fato, determinados
por seu passado histórico, como também, pelo fato de o passado ter sido feito por homens,
poderem os mesmos assumir o presente e determinar o futuro, como produtos que são de suas
próprias ações, passadas e presentes. Se os homens, entretanto, não fazem sua história como o
querem, isso se deverá, antes, ao fato de serem estes alijados, pelas condições reais e ideais que
para si próprios instauram, de se verem como agentes de si mesmos e de suas condições
existenciais vitais.
Enquanto Hayek empunha a bandeira da “liberdade” (pois que representa o mais
extremo liberalismo), e em nome dela, declara que os indivíduos humanos são livres para agirem
no presente segundo suas vontades, mas que as sociedades humanas estarão sempre sujeitas às
conseqüências imponderáveis de tais ações individuais no futuro — o que inviabiliza qualquer
tentativa de se vislumbrar o devir humano —, Marx nos fala de nossa atual condição de
escravos, mas admoesta que tal condição é determinada por nossa própria atividade sócio-
histórica, que uma vez intencionalmente apreendida (compreendida), pode ser voluntariamente
transformada em liberdade humano-genérica — uma condição que supera por incorporação a
suposta liberdade apenas particular e individual referida por Hayek.
Em outras palavras, o primeiro nos sugere que os caminhos humanos transitam “do
reino da liberdade ao reino da necessidade”, porque a medida de nossa liberdade se encontra em
nossa aptidão para respondermos adequadamente aos imperativos que as circunstâncias nos
impõem, e que esse é o princípio natural e imutável de toda a história humana. O segundo nos
diz que o humano transita, como potência, do “do reino da necessidade ao reino da liberdade”,
pois mais que nos adaptarmos a necessidades diuturnas supostamente inelutáveis, a história
humano-genérica revela-se, antes, como antítese da submissão plena a leis naturais, e que essa é,
portanto, também a possibilidade histórico-social de todo o devir humano.
A história adquire, assim, nos dois autores, sentidos antagônicos: em Hayek a
história da humanidade está subsumida à história da natureza biofísica e, portanto, é uma história
de adaptação ao meio e seus fenômenos; em Marx, a história da humanidade é um processo que
tem como base a natureza biofísica, mas que a ela transcendeu, instaurando para si atributos
próprios que representam a superação humana das determinações meramente natural-
4
6
Perry Anderson, em "As Origens da Pós-Modernidade" (1999), afirma que teria sido o espanhol Frederico de Onís,
ainda em 1930, quem se valeu do termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo conservador dentro do
próprio modernismo. Mas atribui ao filósofo francês Jean-François Lyotard, com a publicação de A Condição Pós-
Moderna (1979), a expansão do uso do conceito. David Harvey (2000), por sua vez, localiza o início de tal
movimento em princípios da década de 1970, coincidentemente ao princípio da crise capitalista que se deflagra no
período. Dermerval Saviani (1992 e 1997), reconhece, no âmbito da cultura e da educação, que as proposições pós-
modernas sejam tão-somente efeitos de uma época de “fragmentação” e “superficialidade”, um período de
“decadência da cultura”, de “esvaziamento do trabalho pedagógico na escola”, enfim, seria mais um meio ardiloso
da produção ideológica capitalista para encobrir a percepção dos homens a respeito do desenvolvimento histórico.
Fredric Jameson (1997) também identifica o pós-modernismo como apenas “um estágio do capitalismo, entendido
segundo os clássicos termos marxistas”. Para Paulo Ghiraldelli Jr, entretanto, defensor da idéia de pós-modernidade
e discípulo do neopragmatismo de Richard Rorty, parece existir nestes argumentos uma espécie de “ciúme” ou
“receio” de que “a pós-modernidade seria um suposto período onde a burguesia deixaria de ser classe revolucionária
e passaria a ser classe dominante, e, assim fazendo, voltar-se-ia contra a própria cultura pois, agora, teria que se
perpetuar no poder através, embora não exclusivamente, de mecanismos ideológicos” (Ghiraldelli Jr, 1994). Essa
discussão, embora fundamental, não será assumida em detalhes nesse trabalho, para a qual remetemos o leitor às
obras dos autores em questão, para aprofundamentos.
5
7
A pretensão de naturalização e extensão dos princípios econômicos desse modo de produção a toda a história da
humanidade, pretérita e futura, revela-se frágil diante das investigações antropológicas mais recentes sobre as
formas de sociabilidade humanas primitivas. Este modo de produção, contrariamente ao que propõe “a mitologia
ideológica do mercado, na verdade se trata de uma exceção à regra na história produtiva da humanidade” (cf.
Mészáros, 2002, p. 96; ver também: Polanyi, 1944/2000, p. 62-63).
8
Embora concordemos com Erich Fromm (1979), que nos propõe o pensamento marxista como um humanismo,
vale salientar que o processo de humanização na tradição marxista, e em especial na perspectiva histórico-cultural
que aqui adotamos, não equivale ao da filosofia humanista; na concepção antropológica da perspectiva russa em
questão, humanizar é, antes de tudo e também, hominizar (Leontiev, 1978), o que implica uma noção
historicizadora para além da esfera subjetiva particular ou existencialista, peculiares à filosofia humanista. Neste
sentido, a concepção de humanização aqui utilizada, equivale, na tradição marxista, à defendida também por
Lukács, ou seja, o processo dialético de desenvolvimento que surge no meio natural mas salta para a condição
ontológica de ser social, através da teleologia do trabalho e a apropriação de seus resultados sociais (Lukács, 1979,
p. 17). Lukács, em Existencialismo ou Marxismo (1979a), polemiza extensamente também sobre a concepção de
Jean-Paul Sartre em relação ao marxismo, exposta, sobretudo, em Crítica da razão dialética (1960).
9
O que não quer dizer que os modos de produção precedentes não tenham sido, também eles, baseados na
exploração servil de alguns poucos sobre muitos, segundo a divisão social do trabalho e de classes que lhes foram
próprias (excetuadas os modos de existência comunais primitivos). Entretanto, como nos fazem notar Marx (1988),
Polanyi (op. cit. 2000), Castel (2003), a peculiaridade do modo de produção capitalista está na instauração de
relações de mercado e salarios antes inexistentes, fundadas agora na propriedade privada e na exploração da força
de trabalho socialmente destituída (sobretudo a partir do séc. XI) de seu locus comunitário de habitação, de suas
redes de proteção, de seus recursos próprios e comunais de subsistência, bem como do conhecimento integral dos
processos de produção. Ademais, esse processo de desapropriação material e psicológica (em geral, brutal e
coercitivo) tornou possível não só o estabelecimento do trabalho alienado (cujo produto objetivado é separado de
quem o produz), como também a inversão histórica decisiva em que valores-de-uso são sobrepujados por valores-
de-troca, pressuposto essencial para a instauração não só da produção de mercadorias (e, inclusive, da mercadoria
6
trabalho) como da obtenção de mais-valia, fundamentos da acumulação capitalista (Marx, 1867/1988, vol. I).
Enfim, estes fundamentos são absolutamente novos em relação aos modos de produção anteriores.
7
10
Note-se que o princípio da competência guarda diferenças semânticas, sociais e organizacionais em relação ao que
designa o termo qualificação para o trabalho (Ramos, 2001). Voltaremos a isso no Cap. III.
11
Referimo-nos à educação enquanto processo geral de socialização de saberes, em suas diversas formas atuais
(institucionalizadas de forma pública ou privada, ou informais não-estatais, populares e midiáticas). Mas, tomamos o
ensino formal como principal referência para nossas considerações.
8
12
Estas constatações nos remeteriam a uma séria discussão sobre esta proposição, defendida por determinados
autores quanto às possibilidades propiciadas pelos avanços tecnológicos para o usufruto do ócio em larga escala.
Concordamos com Saviani, segundo o qual, embora as possibilidades de abolição do trabalho pela automação
estejam cada vez mais postas, tal “só poderá se concretizar através da socialização da apropriação, isto é, com a
abolição da propriedade privada” (Saviani, 1996, p. 182). Defendem ainda alguns que estaríamos num movimento
natural e paulatino para uma tal socialização de riquezas, posição não menos romântica ao nosso ver, já que o
capitalismo dá mostras contundentes da preservação de seus princípios individualistas, competitivos, imperialistas e
concentradores de renda, da qual o movimento neoliberal é o grande exemplo logístico e ideológico da atualidade, e
as incursões e ingerências dos organismos financeiros do capitalismo atual (e também de seus exércitos) suas
9
manifestações mais objetivas. Logo se vê que há uma confusão (deliberada e elitista) entre o sentido do trabalho
assalariado (trabalho abstrato, próprio ao modo capitalista) e o sentido do trabalho enquanto atividade vital humano-
genérica. Os discursos em voga sobre supostas mudanças na centralidade do trabalho tomam o segundo pelo
primeiro (voltaremos a essa discussão no Capítulo III).
13
É preciso salientar, contudo, que esta tendência não elimina a necessidade de trabalho vivo à produção de
riquezas e reprodução do capital, e que este venha a ser inclusive buscado onde lhe aprouver, em se tratando de
10
como intensificam ao extremo o trabalho humano, o qual, pela própria lógica de apropriação
capitalista, lhe é condição intrínseca e insuprimível.14 Logo, há lugar para cada vez menos seres
humanos no atual momento de reestruturação da produção capitalista, e a suposta necessidade de
qualificação, agora metamorfoseada em necessidade de competência, se nos revela uma primeira
evidência de um deslocamento conceitual da esfera social para a esfera individual e subjetiva da
produção e do consumo. O próprio fenômeno da “globalização”, aclamado como auge da
tendência natural do encontro mundializado dos mercados, tem se revelado, grosso modo,
também como ápice da possibilidade de deslocamento dos mercados de trabalho na busca por
mão-de-obra terceirizada, pouco instruída e barata por todo o mundo.
Quer nos parecer que, neste momento anacrônico do modo de organização e
produção da humanidade, as considerações de Marx e Gramsci se nos apresentam como
oportunas a uma análise radical dos pressupostos ultraliberais que têm orientado atualmente o
saber e o fazer humanos, no âmbito da educação e do trabalho. Isto porque, conforme
salientamos, o contexto aqui chamado de neoliberal representa, acima de tudo, o resgate e
afirmação das características mais conservadoras e degradantes da história do capitalismo, sob o
véu de discursos reformistas e modernizadores da economia, do Estado e das sociedades
humanas atuais.
Eis aqui o princípio da farsa histórica em que se faz uso da retórica do progresso, da
liberdade e da democracia para atacar de modo reacionário e retrógrado a maioria das conquistas
sociais já auferidas, sobretudo, pelas e para as camadas trabalhadoras, lançando-as à própria
sorte num dos contextos mais dramáticos de manutenção e luta pela sobrevivência promovidos
pelo capitalismo. A primeira impostura visa e atinge, portanto, frontalmente os processos de
trabalho e os trabalhadores.
A segunda impostura do movimento ultraliberal, e que se revela intrínseca ao
propósito anterior, é sua investida sobre a educação de modo geral. Esta impostura reedita a
apologia consagrada ao ensino em outros períodos do século passado, afirmando-o como
fundamental à resolução das urgências sociais e, sobretudo, dos mercados, resgatando assim
momentos já muito bem conhecidos da história e da filosofia e sociologia da educação, como o
advento da escola profissionalizante, do pragmatismo escolanovista ou do otimismo pedagógico,
da posterior teoria do capital humano e do ensino tecnicista que a acompanhou.
V
Mediante tais considerações iniciais, este estudo tem, por objetivo geral, avaliar o
obtenção de mão-de-obra barata, um dos maiores propósitos da chamada globalização da produção atual, que é,
antes, globalização do mercado capitalista de trabalho.
14
Processo analisado em detalhes por Marx em Maquinaria e grande indústria (cf. Marx, 1988, p. 5-116).
11
recente movimento neoliberal15 de reestruturação das relações entre capital, trabalho e educação
tendo por hipótese que este movimento reedita elementos ideológicos do auge da chamada
Segunda Revolução Industrial, sob condições inversas à mesma (condições negativas), contudo
sob o signo de exigências inéditas, revolucionárias e modernizadoras (condições positivas) para
conformar as relações entre capital, trabalho e educação segundo seus propósitos produtivos e
reprodutivos ao final do século XX. Defendemos que a noção psicopedagógica da competência,
relacionada ao trabalho e ao ensino, traduz-se como elemento central para a dissimulação e
legitimação dos processos de degradação social e seus reflexos sobre as esferas do trabalho e
da educação, sobretudo nos anos de 1990, na forma de uma farsa histórica, nos termos
marxianos já mencionados.
O presente estudo tem, portanto, como objetivos específicos:
1) Analisar se o discurso da competência, difundido pelo ideário empresarial e
pedagógico no Brasil, é de fato reflexo de uma realidade em que a competência haja se tornado
condição para que a classe trabalhadora possa manter-se vinculada aos processos produtivos pelo
regime assalariado e, por decorrência, “incluída” nas estruturas de proteção e sociabilidade
atuais;
2) Analisar se cabe à educação formal a função de formar trabalhadores hábeis e
competentes para o mundo do trabalho contemporâneo, mediante as atuais mutações
tecnológicas e gerenciais do modelo capitalista de produção;
3) Comparar o atual contexto do modo de produção capitalista com o analisado por
estudiosos do advento da sociedade industrial, como Karl Marx, Antonio Gramsci, Karl Polanyi,
Eric Hobsbawm e Robert Castel, em relação à chamada segunda Revolução Industrial (sobretudo
na transição entre os séculos XIX e XX), e seus reflexos sobre a educação e o mundo do trabalho
de então;
Para estes fins comparativos, centramos nosso foco sobre o impacto do discurso
pedagógico da competência no cenário brasileiro das políticas neoliberais e suas principais
repercussões sobre o mundo do trabalho e da educação. Esta delimitação espaço-temporal nos
remete, sobretudo, à década de 1990 no Brasil, e em especial aos mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, buscando também por indicativos de suas possíveis conseqüências e/ou
15
Como o leitor poderá notar, sobretudo a partir de nossas considerações preliminares sobre o chamado movimento
neoliberal (Capítulo I, item 2.3), tendemos a considerar o mesmo como um movimento oportuno dentro do processo
de crise e reestruturação material e ideológica do capitalismo contemporâneo. Embora este seja de fato o movimento
mais representativo dos percursos atuais da economia-política burguesa, consideramos temerário reduzir os atuais
movimentos do capital exclusivamente às teses neoliberais (o que não anula sua força e importância como think-tank
da reação ultraliberal a que presenciamos nos anos de 1990). Daí a razão para utilizarmos, como “palavra-forte”
para o atual contexto capitalista, também o termo “movimento ultraliberal”, do qual o neoliberalismo é certamente a
maior expressão (e objeto de delimitação contemporâneo para nosso estudo).
12
enfrentados pela burguesia em relação à educação para todos, corolário do próprio movimento
iluminista e revolucionário liberal.
O Capítulo III, Ultraliberalismo e o discurso da competência para o Séc. XXI,
tem, por objetivos gerais, evidenciar a interpenetração entre o contexto ultraliberal
contemporâneo em questão e as esferas do Trabalho e da Educação na transição para o novo
milênio. Nesse sentido, o discurso da competência se apresenta como elemento de mediação
entre estas três categorias, determinado pelos imperativos contemporâneos do próprio
capitalismo em sua manifestação “neoliberal”. Discutimos os aspectos ideológicos liberais e suas
determinações sobre as visões do mundo do trabalho e da educação contemporâneas, sobretudo
relacionadas às apologias da chamada globalização econômica e das novas tecnologias,
constituídas no e pelo capitalismo com vistas à suposta liberação do homem das exigências do
trabalho. Discutimos, em seguida, a condição contemporânea da classe trabalhadora e do
movimento trabalhista face à crise estrutural que se reflete sobre o trabalho assalariado e sua
precarização, com uma redução extrema do sentido humano-genérico da atividade do trabalho à
mera condição de trabalho alienado.
Na seção seguinte deste capítulo, discutimos a esfera complementar ao discurso da
competência para o trabalho, ou seja, a que assedia a esfera da educação. Nela apresentamos uma
análise do advento da pedagogia da competência (nos termos de Ramos, 2001) sobre o ensino,
ensino que se torna cada vez mais vinculado às exigências não só do mercado capitalista, como é
apresentado como “tábua de salvação” das próprias sociedades contemporâneas, mediante o
anacronismo social, político e econômico em que se encontram. Aqui a apologia da “sociedade do
tempo livre”, relativa à esfera do trabalho, encontra sua correspondência na apologia da
“sociedade do conhecimento”, atribuída à esfera educacional. A lógica instrumental e pragmática
imputada ao ensino, que resgata elementos do otimismo pedagógico e da escola ativa de fins do
século XIX, presta-se não somente a corroborar a submissão do ensino ao princípio pedagógico
das habilidades e competências (pressuposto este no qual se pautam explicitamente os novos
parâmetros e diretrizes curriculares nacionais, instituídos a partir da promulgação da LDBEN nº
9394/96, durante o governo de Fernando H. Cardoso), mas também a flexibilizar a escola frente à
precariedade social e cultural das populações desfavorecidas. Em seguida, apresentamos a
assimilação e difusão das políticas neoliberais, centrando nossa atenção no panorama político-
econômico brasileiro e suas conseqüências ao país, processo este deflagrado entre nós a partir do
mandato de Fernando Collor de Mello (iniciado em 1990 e interrompido em 1992), redefinido nos
bastidores do governo Itamar Franco, e efetivamente implementado nos mandatos subseqüentes
de Fernando Henrique Cardoso (1994 a 2002). Nesse sentido, em nome de uma maior
14
aproximação da escola com a chamada “realidade” social de sua demanda, a escola abandona
cada vez mais o seu papel histórico de socializadora de conhecimentos sistematizados (esfera dos
conhecimentos científicos) para assumir a função de moderadora dos efeitos da precarização e
exclusão sociais através de atividades cada vez mais relacionadas com a esfera cotidiana e
espontânea da vida dessas populações, numa supervalorização do que denominamos um papel
“lúdico-ocupacional” de arrefecimento e contenção dos efeitos da indisciplina, violência,
embrutecimento, agressividade e banalização da vida em sociedade, decorrentes do abandono
sócio-cultural e falta de perspectivas sociais, culturais e econômicas a que estão expostas as novas
gerações.
É este legado concreto que nos permite desnudar e desmistificar seus recursos
discursivos, os quais apresentam a democracia liberal, a globalização, a competitividade e, por
fim, o princípio da competência, como fenômenos “natural-evolutivos” de uma sociedade que
deve ser entendida como recompensadora das habilidades e competências individuais (ainda que
estes façam parte de um contingente restrito de indivíduos bem-aquinhoados em termos de
recursos materiais e culturais para o sucesso).
Finalmente, no Capítulo IV, que intitulamos Refutação do discurso ultraliberal da
competência, após apresentarmos os aspectos metodológicos essenciais do materialismo
histórico-dialético para a abordagem dos processos sócio-históricos humanos, com ênfase nas
categorias alienação, fetichismo e ideologia, pretendemos evidenciar que o referido caráter
utilitarista, imediatista e espontaneísta concorre, ideologicamente, para a redução dos processos
propriamente humanos à condição de fenômenos apenas natural-evolutivos, condição para a
eternização do trabalho alienado e a preeminência do mercado capitalista. Em seguida, e mediante
o quadro histórico e epistemológico levantado até aqui, procedemos a uma comparação entre o
período vivido e analisado por Antonio Gramsci (1982; 1989; 2001) em relação à educação e ao
mundo do trabalho de então, e o atual contexto de reorientação neoliberal para o capitalismo.
Nesse momento, após analisarmos o significado de drama e farsa em Marx (ou de “tragédia e
comédia”), nos concentramos na tese principal de nosso trabalho, ou seja, a possibilidade de que o
capitalismo atual, através do ideário neoliberal, esteja reeditando elementos discursivos do
passado — e, mais especificamente, muito próximos ao contexto descrito e analisado por Gramsci
—, para legitimar, ideologicamente, os efeitos sociais profundamente negativos das mudanças
impetradas ao mundo do trabalho assalariado atuais, mediante os imperativos da maximização da
mais-valia e das taxas de lucro capitalistas. Para tanto, seria o discurso da competência (aplicado à
educação e ao trabalho assalariado), um dos principais estratagemas ideológicos para a
assimilação social passiva de suas muitas e trágicas conseqüências atuais. Ademais, dedicamos
15
especial atenção aos estudos da psicologia sócio-histórica (ou histórico-cultural) marxista de Lev
S. Vigotski (Vigotski, 1993 e Vigotski et al.,1988) e Alexis Leontiev (1978), bem como à
sociologia do cotidiano de Agnes Heller (1994 e 1997), que corroboram e ampliam, ao nosso ver,
as análises gerais de Gramsci mencionadas.
Neste processo nos deparamos, contemporaneamente, com o fenômeno do
ressurgimento de um contingente de seres humanos que, para além do estado de pobreza, miséria
e formação de um exército de trabalhadores de reserva, produzido pelo modo de produção
capitalista ao longo de sua história, sugerem a condição de desfiliados, supranumerários ou
inúteis para o mundo na atualidade (Castel, 2001). Serria este o quadro social legado pelo
renascimento ultraliberal16 que, ao menos em parte, o ideário neoliberal protagoniza.
16
“Renascimento”, na medida em que o século XX testemunhou, após duas grandes guerras e uma grande depressão
econômica, o nascimento de um Estado de Bem-Estar não só fruto parco de lutas históricas de um trabalhismo que
se pretendia, até então, revolucionário, como também da necessidade de contenção da ampliação do movimento
comunista internacional, bem como a imanente destrutividade predatória do próprio capitalismo. Os “anos de ouro
do capitalismo” (circunscritos, em grande medida, aos países centrais, mas com repercussões nos países periféricos)
representaram, assim, o período do compromisso keinesiano entre capital e trabalho que, a partir da década de 1970,
entra em crise e é rompido. O Estado Social, que até então mediara e financiara os custos sociais desta “regulação”,
revela-se em crise face ao acúmulo de dívidas auferidas, o que propiciou uma oportuna reação do capital frente a
qualquer forma de controle social, decretando a falência por insolvência e incompetência do próprio Estado. Assim,
“renasce” o capitalismo em sua forma mais genuína, isto é, na acepção de Mészáros (2003, p. 106-107), na forma
de apropriação e subordinação totalitárias de todas as atividades e produções humanas, em todas as esferas da
sociedade, aos seus imperativos.
CAPÍTULO I
O paradigma neoliberal
2003; Sodré, 1996; Bianchetti, 1997; Sader & Gentili, 2000; Malaguti, Carcanholo &
Carcanholo, 2002). Até então, poder-se-ia dizer que as idéias neoliberais, embora não recentes,
figuravam como excêntricas e inoportunas por seu radicalismo num período que exigia, em todos
os sentidos, que o mundo capitalista fosse “humanizado” e a economia dirigida politicamente
após uma trágica primeira metade de século.
Ao contrário das teses de Hayek e seus seguidores, que defendiam uma incondicional
liberalização dos mercados e a supressão de qualquer intervenção ou planificação econômica
como antídotos à ameaça dos movimentos coletivistas e totalitários pelo mundo — todos,
indistintamente, considerados por Hayek como socialistas e promotores da idéia do planejamento
e estatização (cf. Hayek, 1990) —, o que se observa no momento seguinte à Segunda Guerra e à
nova configuração mundial é um consenso entre as nações capitalistas centrais da necessidade de
um compromisso entre capital e trabalho e de certo controle econômico para a recomposição e
preservação da ordem capitalista e de suas sociedades. Desse modo, serão justamente as teses
que defendiam um Estado interventor e uma economia planificada que ganharão terreno no
mundo capitalista, teses estas contra as quais Hayek lutaria por toda a vida, e por cujos esforços
viria ainda a ser reconhecido no futuro, tornando-se referência não só para o revigoramento do
capitalismo do final do século XX, como também para o processo de reconversão ideológica do
bloco socialista europeu ao capitalismo, e cuja deflagração ele ainda testemunharia antes de sua
morte (Wainwright, 1998).
Mas, devemos nos aprofundar um pouco mais nos fatores que determinam a
aceitação da “moderação” das economias capitalistas ocidentais naquela conjuntura e a rejeição
da idéia de uma economia de mercado supostamente “auto-regulada”, como defendiam os
ultraliberais. Segundo Hobsbawm (2003), em primeiro lugar, com a derrota nazi-fascista, era
agora o avanço comunista vinculado a um trabalhismo socialista internacionalizado que figurava
como desafiador ao capitalismo ocidental, comunismo que, ao mesmo tempo em que gerava
apreensão entre os liberais, atraia a atenção de todos pelo fantástico crescimento econômico e
garantias sociais que o planejamento proporcionara à União Soviética em tempo recorde. Nesse
sentido, eram então muito mais atraentes e significativas as teses defendidas por Keynes sobre a
estabilidade sócio-econômica, baseada na intervenção estatal sobre as relações econômicas, com
vistas à reversão do quadro insuportável de desemprego e miséria decorrentes de duas guerras
intercaladas por uma Grande Depressão. Era evidente que a União Soviética se revelara imune à
crise de 1929, e, graças aos seus planos qüinqüenais, sua produção passara de 5% para 18% entre
1929 e 1938 (Hobsbawm, 2003, p. 100). Estes índices causavam espanto e certa admiração às
economias capitalistas, que, exceto os EUA, cuja produção a guerra havia impulsionado, se
18
revelavam decadentes tanto em termos produtivos quanto, por decorrência, em termos sociais.
Nesse sentido, a economia planificada soviética era também um fenômeno a ser considerado por
haver conquistado um grande equilíbrio social através do impulso do emprego e o oferecimento
de uma rede de proteção social ampla. É assim que o termo “planificação” passa a integrar o
vocabulário de inúmeros economistas e políticos do mundo capitalista, como elemento
necessário à recuperação e sobrevivência de seus próprios Estados.
Ainda segundo Hobsbawm, um segundo fator teria sido decisivo para a ampla
disseminação da tese da planificação econômica nos principais Estados capitalistas. Trata-se das
duas experiências de guerras generalizadas experimentadas naquela turbulenta primeira metade
do século. Estas obrigaram a todos os envolvidos nos conflitos a adoção de economias de guerra
que revolucionaram não só a administração pública e empresarial, como o próprio sistema de
produção nesses países. A economia de guerra se apresenta, assim, desde 1914, mas acima de
tudo durante a guerra seguinte, como elemento de demonstração objetiva das vantagens do
planejamento econômico, que, se por um lado havia permitido o surgimento (e posterior
ressurgimento) de uma Alemanha industrialmente poderosa e belicista, garantira também a
organização dos países aliados para suportar o flagelo da guerra e vencer os agressores
(Hobsbawm, 2003, p. 53).
Portanto, quando conjugados com o desenvolvimento observado na União Soviética
até a deflagração da Segunda Guerra Mundial17, estes fatores resultam num espírito comum de
aceitação da planificação como inevitável e mesmo imprescindível, não havendo terreno
propício para que as teses defendidas por Hayek vingassem. Por outro lado, as décadas de
prosperidade econômica e social que sucederam ao trágico período das guerras nos países
centrais do capitalismo, pareciam confirmar, inequivocamente, as teses keynesianas.
Como salienta Perry Anderson, em seu Balanço do Neoliberalismo, as condições
para ações radicais contra o Estado de Bem-Estar do pós-guerra eram então pouco favoráveis,
uma vez que “o capitalismo avançado estava entrando numa longa fase de auge ⎯ sua idade de
ouro ⎯, apresentando o crescimento mais rápido da história, durante as décadas de 50 e 60”
(Anderson, 2000, p. 10).
Entretanto, a partir dos anos de 1970 este contexto de prosperidade começa a se
transformar, num processo descendente que perduraria até nossos dias. São as mudanças
ocorridas nesse período que darão passagem às teses há muito defendidas por Hayek. Nas
palavras Anderson:
17
Não podemos deixar de considerar que a II Guerra Mundial foi a maior tragédia da história dos povos que então
formavam a URSS. Além de contar com o maior número de vítimas da guerra (mais de 20 milhões), 25% dos bens
de capital soviéticos foram então destruídos (Hobsbawm, 2003, p. 55).
19
[...] com a chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando
todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela
primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, tudo mudou. A partir
daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e
seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de
maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação
capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária
para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais. (Anderson, 2000, idem).18
18
Aqui Hayek evidencia a contradição fundamental do próprio modo capitalista: o imperativo de que os produtores
sejam desapropriados ao máximo do resultado do trabalho e mantidos sob uma dependência crônica de venda de sua
força de trabalho. Melhores salários e proteções sociais tendem a “equilibrar” forças que necessariamente têm que
ser desiguais, uma proprietária e compradora, outra desapropriada e vendedora de si mesma — em suas variadas
formas.
19
Entretanto, como se sabe, foi mais precisamente o Chile de Pinochet, desde princípios da década de 70, o primeiro
laboratório experimental de aplicação das teses neoliberais, experiências acompanhadas de perto por Hayek
(Wainwright, 1998, p. 51).
20
Viviane Forrester questiona o que considera uma identificação mecanicista entre globalização e expansão do
20
mercado capitalista. Para esta autora, a globalização é um fenômeno, além de econômico, sobretudo histórico,
político e cultural, e próprio das sociedades humanas em toda a sua história. Assim, não se trata de um processo
deflagrado pelo capitalismo, conquanto este tenha se apropriado da gestão desse processo (gestão ultraliberal),
tornando-o sinônimo de “economia de mercado mundializado”, o que reduz a própria economia à mera esfera das
relações capitalistas de mercado (Forrester, 2001, p. 16-17).
21
Lançaremos mão, aqui, do itinerário elaborado por Gómez (2003), em sua obra Neoliberalismo globalizado:
refutación y debacle.
21
este último haja elaborado e incorporado outros pressupostos, por vezes pertencentes a matrizes
conceituais diversas do pensamento dos primeiros mentores liberais.
Em certo sentido, poderíamos entender o neoliberalismo enquanto um liberalismo
radical, que quando comparado ao liberalismo clássico o supera em extremismo em relação à
defesa da onipotência do mercado, conquanto, para isto, recorra a um princípio conflitante com a
idéia de ordem baseada na razão que fundamenta o pensamento econômico liberal do iluminismo
anglo-saxão, sistematizado por Adam Smith.
Para Frederic Jameson, modernidade é uma “palavra suspeita (...) e que está sendo
usada precisamente para acobertar a ausência de qualquer esperança ou telos social depois do
processo de descrédito do socialismo. Isso porque o capitalismo em si mesmo não tem nenhum
objetivo social. Sair usando a palavra “modernidade” a torto e a direito, em vez de capitalismo,
permite que políticos finjam que o capitalismo tem um objetivo social e que disfarcem o fato
terrível de que não tem nenhum” (Jameson, 2001, p. 33).22
Muito embora a “Modernidade” não possa ser entendida como um pensamento
unívoco — daí, inclusive, ser mais apropriado entender a existência de diversas modernidades
simultâneas —, o que caracteriza a especificidade deste período é a concepção de uma
cientificidade capaz de proporcionar acesso às verdades últimas “do mundo tal como é” (Gómez,
2003). Tal concepção está assentada na faculdade humana da razão e, por conseguinte, na
necessidade de métodos de investigação adequados à mesma e que garantam o atingimento de
tais verdades. É sobre o que se debruçarão, em especial, Galileu, Descartes, Locke, Bacon, Hume
e Leibniz, dentre outros, numa tradição que, fosse de caráter idealista, fosse de caráter empirista,
seria marcada pela racionalidade no processo de conhecimento sobre os fenômenos naturais e
humanos, e na elaboração do método científico mais eficiente para sua obtenção.
A principal sistematização do período acerca dessa ordem universal a ser decifrada
seria, pois, a apresentada por Isaac Newton nos seus Principia Mathematica (1686), o primeiro
sistema cósmico natural completo, obra esta que fundamentará, daí por diante, o paradigma
científico baseado nas leis da Física.
Essa teria sido, portanto, a “tarefa” do século XVII, segundo Gómez: elaborar uma
cosmovisão racional dos fenômenos naturais. Mas, se esta cosmovisão unificada e ordenada
entre céu e terra fora até então possível, no momento seguinte o pensamento filosófico e
científico moderno se vê diante de um outro imperativo, ou seja, o de estender seus princípios
22
Entretanto, embora a modernidade não possa ser desvinculada do advento do capitalismo, seu conceito se presta
neste trabalho para identificarmos, espaço-temporalmente, uma época histórica em que se estabelecem os principais
debates epistemológicos e metodológicos que fundaram os paradigmas filosóficos e científicos ainda hoje
predominantes e que têm, na racionalidade, independente de suas diversas acepções, sua principal característica.
22
Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de
uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem.
Ela é a conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou
propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou
seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra. (Smith,
1776/1988, p. 24 — itálicos nossos).
No caso de quase todas as outras raças de animais, cada indivíduo, ao atingir a maturidade, é
totalmente independente e, em seu estado natural, não tem a necessidade da ajuda de
nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade quase constante da
ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele
terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a auto-
estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de
que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo
que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer — esse é o significado de qualquer oferta
desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que
necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que
esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse.
(Smith, 1776/1988, p. 25 — itálicos nossos).
Notamos que Smith tende a generalizar uma condição bastante peculiar às relações
humanas para a troca de bens de uso (ou valores de uso na linguagem marxiana) para a troca de
valores em si (no caso, trocas sumamente assentadas em interesses individuais de negociação,
não mais segundo valores-de-uso, mas conforme seus valores-de-troca, em si mesmos
considerados) projetando tais relações para toda a humanidade de todos os tempos, inclusive
pretérita. Essa tendência ou propensão a trocas dos seres humanos, supostamente naturais,
espontâneas e pragmáticas, levou Adam Smith a abstrair de forma extrema a própria origem da
divisão social do trabalho, pautando-se em suposições profundamente etnocêntricas ou, em se
considerando o fato de sistematizar sua teoria no último terço do século XVIII em pleno auge do
Iluminismo europeu, apresentar um constructo substancialmente eurocêntrico. A abstração
histórico-social do mentor da Economia Política Liberal fica mais bem expressa em proposições
como a que se segue:
Assim como é por negociação, por escambo ou por compra que conseguimos uns dos outros
a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma forma é essa mesma
propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão do trabalho. Em uma
tribo de caçadores ou pastores, por exemplo, uma determinada pessoa faz arcos e flechas
com mais habilidade e rapidez do que qualquer outra. Muitas vezes troca-los-á com seus
companheiros, por gado ou por carne de caça; considera que, dessa forma, pode conseguir
mais gado e mais carne de caça do que conseguiria se ele mesmo fosse à procura deles no
campo. Partindo, pois, da consideração de seu interesse próprio (egocentrismo), resolve que
o fazer arcos e flechas será sua ocupação principal, tornando-se uma espécie de armeiro.
(Smith, 1776/1988, p. 25 — itálicos nossos).
E assim por diante, necessidade após necessidade, interesse após interesse, satisfação
24
após satisfação, especialização após especialização, negociação após negociação e, o que mais
surpreende nesta elucubração de Smith, acumulação excedente após acumulação excedente.
Essa naturalização da acumulação de produtos e da divisão social do trabalho pelo ideário liberal
é um dos tópicos ao qual já nos referimos, e que eterniza o modo capitalista, baseado no
mecanismo de produção excedente de mercadorias e, logo, de mais-trabalho com vistas a reduzir
o valor-de-uso dos produtos humanos a valores-de-troca.
A abstração de Smith em relação à origem da divisão social do trabalho (projeção do
mercado tal e qual Smith o conhece ou o projeta idealmente no tempo) sofre e permite ainda uma
outra generalização, qual seja, a naturalização do lugar social ocupado pelos homens primitivos
(silvícolas, na acepção de Smith) em função de suas posições segundo a própria divisão social do
trabalho que “assumiram” após nascerem. A mesma tese responde, também, pela posição social
ocupada pelo próprio Adam Smith, naturalmente. Ou seja, Smith compreende a divisão social de
classes como mera conseqüência da divisão social do trabalho, ou, para sermos mais fidedignos
ao seu pensamento, é a divisão social do trabalho que determina onde e em que condições
viverão os indivíduos, segundo suas habilidades — e, porque não, competências para ocupar os
vários lugares possíveis dentro da sociedade. Na verdade, toda a sua argumentação ignora o que
entenderíamos por uma divisão social de classes, que em verdade determina a divisão social do
trabalho mais do que é por ela determinada. Daí que, ocupando lugares distintos dentro da
sociedade em função de suas habilidades e especialidades, deparamos com uma dinâmica social
que se auto-ajusta por uma regulação espontânea que, por sua vez, tende ao equilíbrio segundo a
satisfação negociada das necessidades dos indivíduos. Assim, nos dirá Smith, de forma
esclarecedora:
Portanto, para o que nos importa inicialmente acerca da posição econômica liberal
25
de Adam Smith (e de seus seguidores), os seres humanos são frutos de suas ocupações, que por
sua vez ativam e mobilizam habilidades e talentos diversos. Não importa, neste ponto, adentrar
no âmbito das diferenças naturais entre diferentes pessoas, já que “a grande diferença de
habilidades que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à
maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho”.
Assim, embora as habilidades estejam tendencialmente ou potencialmente presentes desde tenra
idade, serão as experiências laborais e intelectuais de cada indivíduo que conduzirão às
diferenciações mais marcantes entre os mesmos. Sobre isso, comenta Ana Maria Lins:
compreensão das instituições sociais deve estar fundada sobre o estudo da natureza humana
empiricamente considerada. Como não é possível compreender todas as manifestações humanas
em seu conjunto, faz-se necessário centrar qualquer investigação nos elementos passíveis de
serem observados diretamente. Em se tratando das sociedades humanas, sua célula principal e
imediatamente observável passa a ser o indivíduo em particular. Este é o último pressuposto que
figurará, em termos metodológicos, como central ao pensamento liberal, ou seja, o
individualismo metodológico:
A esta relação meios-fins, subjaz, segundo Smith, uma estrutura natural. Esta estrutura
natural está composta basicamente por necessidades, paixões e sentimentos; atuo para
alcançar objetivos, tendo em conta quais são minhas necessidades; ademais, o desejo de
satisfazer essas necessidades está movido por paixões. Em muito poucos filósofos (Hume
seria um deles) que se debruçaram sobre a ética, as paixões assumem uma importância tão
decisiva como em Smith. (Gómez, 2003, p. 6)
Smith não se debruçará sobre questões genéticas acerca das paixões (suas origens
constitutivas), limitando-se a afirmar que os sentimentos humanos são moldados
contextualmente pela acumulação do que temos experimentado, o que, por sua vez, incide sobre
a forma como atuamos. Mas, estabelece uma categorização das paixões, que distingue em dois
tipos: paixões egoístas e paixões benevolentes, que podem entrar em tensão, dando assim lugar a
uma das funções fundamentais da razão, função esta essencialmente deliberativa, para Smith. A
exemplo de Hume, Smith defende que a razão é, antes, escrava das paixões. Nesse sentido, à
razão cabe instrumentalizar o indivíduo com a análise das opções disponíveis para que este atinja
o fim desejado. Todavia, a mediação da razão encerra-se em si mesma neste processo de escolha
já que, necessariamente, após uma opção a ação do indivíduo, propriamente dita, será novamente
insuflada por nova passionalidade, e assim continuamente. Dessa forma, nesta teoria da atividade
humana o processo que leva à ação terá sempre, no seu princípio e no seu fim, paixões. Podemos
notar, já aqui, qual o papel da razão nas ações humanas, e que se trata de um papel bastante
reduzido em se tratando das opções que de fato fazemos.
23
Gómez observa que este raciocínio equivale ao que a tradição da Escola de Frankfurt denomina “racionalidade
instrumental” ou racionalidade meios-fins, “à qual os economistas liberais de todo cunho vão reduzir a racionalidade
humana.” (Gómez, op. cit., p. 6).
28
Já que as paixões têm aqui tal peso, é nelas que Smith depositará sua atenção maior.
E o que são as paixões egoístas? Inicialmente, em termos individuais, são a busca por garantias à
própria sobrevivência através da autopreservação. Em termos sociais, a paixão egoísta tem na
propriedade privada o seu elemento essencial. Ora, a propriedade privada está, antes de tudo,
intrinsecamente vinculada ao objetivo de autopreservação corporal, como forma de um abrigo
seguro e livre de ameaças. Por outro lado, nos apaixonamos pela idéia de possuirmos recursos
para evitarmos a pobreza, já que esta, se levada ao extremo, implicaria na carência de elementos
essenciais à própria sobrevivência, a começar pela falta de alimento, a desnutrição, a falta de
abrigo etc.
Em se tratando dos sentimentos benevolentes, para Smith são aqueles que visam o
bem-estar, inicialmente, dos indivíduos que nos envolvem e têm grande significado na
manutenção de nossa sobrevivência, a começar pela própria família e, mais além, o grupo social.
Em relação a este último, o sentimento que nos move é a simpatia, entendida como tendência a
ser benévolo com o semelhante que não pertence ao grupo familiar imediato. Por fim, o
sentimento benevolente em seu terceiro nível seria aquele voltado para a humanidade como um
todo.
Como se vê, trata-se de um processo de ligações e necessidades que parte de um
crescente de necessidades e interesses (paixões) egocêntricos. Naturalmente, ambas as categorias
implicam em tensões entre o bem individual egoísta e o bem geral da sociedade — embora não
possamos qualificar a preocupação com o bem geral, aqui, como altruísmo, no sentido de
preocupação desinteressada para com o outro. O ponto central dessa tensão constante reflete-se
justamente na necessidade de imparcialidade, um aspecto central a essa teorização, já que,
imparcial é aquele que é capaz de uma visão global, capaz de superar paixões egoístas com
vistas ao bem de outro ser, que não são as suas próprias e, por extensão, ao bem geral. Este será
um problema controverso para o liberalismo, ou seja, a relação entre riqueza, propriedade,
fortuna individual e bem-estar geral. Um problema que, em suas tentativas de resolução ou
legitimação, “houve que apelar continuamente a teses teológicas, pressupostos metafísicos ou de
racionalidade muito discutíveis e para os quais há sempre alternativas.” (Gómez, op. cit., p. 7)
A partir desse “sistema de motivações”, para Smith há ações que são intencionadas e
cujas conseqüências estão ao nosso alcance. Entretanto, há também conseqüências involuntárias,
que, em se tratando de seu pensamento e, posteriormente, de Hayek e Friedman, assumirão uma
importância crucial dentro do liberalismo. Na visão liberal, tanto quanto involuntárias, essas
conseqüências são também inevitáveis e incontroláveis. Entra aqui o papel da moral, à qual cabe
o estudo das ações intencionais, consideradas no âmbito das atuações individuais. Logo, a moral
29
estuda as paixões que originam tais ações e suas tensões subjacentes. Em um nível posterior,
cabe à justiça se ocupar dos efeitos das ações intencionais, enquadrando-as quanto às suas
conseqüências a outrem, avaliando se são passíveis ou não de punições (a teoria da
jurisprudência que deriva do pensamento de Smith assume, pois, um caráter fortemente legalista
e punitivo). Por fim, o terceiro nível derivado do sistema desiderativo de Smith e que
complementa as esferas moral e jurídica, refere-se às ciências sociais, em seu sentido amplo.
Esta esfera, e em particular a economia, é o âmbito do estudo das ações e conseqüências
involuntárias em termos das interrelações societárias. Entretanto, e a exemplo das demais
esferas, as decisões econômicas podem ser decisões intencionadas, mas sempre terão
conseqüências incontroláveis. Evidentemente, tais interrelações societárias equivalem, noutras
palavras, ao próprio mercado, e nele e por ele se realizam.
O sistema de interrelações desiderativas de Smith implica, por conseguinte, em um
ideal ético das ações individuais em que três virtudes figuram como fundamentais: a prudência, a
benevolência e a justiça. Elevadas à sua máxima excelência, estas conduziriam à virtude
suprema do pleno autodomínio. Para Smith, caso fôssemos capazes de total autodomínio, não
necessitaríamos de benevolência, já que a benevolência é antes de tudo um bônus compensatório
que tem, por origem, a necessidade de suprir falhas em relação a sermos prudentes e justos em
termos ótimos. Smith parece recorrer a tais virtudes numa tentativa de equilibrar o sistema
egoístico das paixões, que num sistema de relações mercadológicas imperfeitas, suscita uma
constante ameaça de desestabilização de todo o sistema. Entretanto, isto não quer legitimar
qualquer interferência no mercado, baseada em tais virtudes. As virtudes são de foro íntimo,
única instância em que se pode, de fato, agir voluntariamente. Ao mercado, regido por leis
próprias inexoráveis, resulta inútil qualquer tentativa analítica baseada em pressupostos morais e
éticos.
Aqui a concepção newtoniana revela toda a sua influência, já que para Smith o
mercado é uma máquina, e a melhor metáfora para o mesmo é o mecanismo de um relógio.
Como máquina, tem suas próprias leis e, portanto, a única coisa que devemos fazer é deixá-lo
operar, já que, embora cada peça cumpra uma tarefa específica, não conhece e não pode
conhecer o funcionamento do relógio como um todo. Ora, aqui a virtude do autodomínio, em
termos sócio-econômicos, se presta justamente ao fim de que nos contenhamos frente a qualquer
inclinação de intervir no funcionamento do mercado — em outras palavras, interferir em suas
leis.
Para Gómez, portanto, na cosmópolis smithiana “o que se produz é uma mecanização
da polis mais que uma socialização do cosmos” (Gómez, 2003, p. 8), já que em seu constructo,
30
Smith promove uma cisão radical entre as ações humanas e suas conseqüências, as primeiras
podendo ser deflagradas intencionalmente, mas com conseqüências que passam a integrar uma
dimensão à parte, cujas leis não obedecem a determinações ou vontades humanas.
Nesse sentido, agir objetivamente em função dos melhores resultados em termos
individuais equivale a agir de acordo com a especificidade esperada e possível de nosso âmbito
de atuação no mercado. Ações e funções correspondentes, em última análise, ao caráter
fortemente racional-instrumental de todo o edifício teórico de Smith, fundado, como dissemos,
nas relações meios-fins.
Em A riqueza das nações, em que Smith apresenta seu tratado de economia política,
ele admite para a mesma duas grandes metas: primeiramente, gerar as condições para que os
seres humanos sejam capazes de obter riqueza em abundância e, em segundo lugar, proporcionar
ao Estado recursos suficientes para os serviços públicos. Mediante tais metas, a economia
política converte-se em ciência. O objetivo maior de Smith em seu tratado é, portanto, o de
elucidar as leis da economia política, descobrindo e explicitando o funcionamento da
“maquinaria econômica”. Sem a compreensão das leis da economia política não há como se
formular políticas adequadas que garantam o funcionamento ótimo da mesma. Mas, ora, um tal
objetivo não conflita com o pressuposto de que não podemos interferir ou prognosticar o devir
das atividades econômicas? Contudo, Smith parte na verdade do pressuposto empirista de que,
certamente, podemos, cientificamente, descobrir leis e aplicá-las, mas não modificá-las. As leis,
em si mesmas, não são produtos humanos.
Pelo princípio fisiocrático de Smith, o método das ciências naturais é aplicável à
conduta dos indivíduos. É ela a força motriz da máquina econômica, motivada pela vontade
humana de maximização da realização de interesses egoístas. No âmbito do comércio, portanto,
o elemento motivador em questão visa maximizar ganhos e, por outro lado, minimizar os custos
de nossas decisões. Quando conjugadas no âmbito do mercado as decisões e vontades
individuais como que desaparecem, tornando-se uma relação universal de oferta e demanda,
donde se originam os preços. Este jogo entre oferta e procura é o princípio do mercado livre.
Aqui deparamos não só com o elemento primordial das teses liberais, como também
o aspecto que revela profundas contradições. Segundo Gómez, “quando alguém se detém no
modo não só como Smith, mas também Hayek concebem o mercado, este surge como uma
entidade com uma autonomia e um funcionamento de acordo com leis que são independentes do
que os agentes individuais promovam nele. O mercado revela-se, assim, como a postulação de
uma entidade, ainda que eles o neguem. Hayek diz, explicitamente: o mercado não atua, o que
atua são os agentes individuais” (Gómez, op. cit., p. 11-12). Notamos aqui uma contradição que,
31
Esta maneira de falar abre a suspeita se não estamos na presença, aqui, de uma sorte de
entidade autônoma, diferente da dos agentes individuais. Pode ser uma mera maneira de
falar, algo que tenha suas próprias leis? Em nenhum momento eles nos dizem que estas leis
sejam meramente lingüísticas. São leis objetivas, tão objetivas como as leis da física, que se
referem a regularidades que se dão na realidade. Ademais, os maiores autores neoliberais
falam do mercado como o locus da racionalidade. Textualmente, é o locus da liberdade
natural, segundo Smith. (Gómez, idem, p. 12).
Quer nos parecer que a cisão teoricamente promovida entre as forças eficientes do
mercado (ações humanas) e as conseqüências delas provenientes, invalida qualquer tentativa de
racionalização econômica24 de seu funcionamento. Para os clássicos da economia política, enfim,
isso é resolvido propondo-se que a esfera das ações individuais respondem a leis econômicas de
natureza distinta das leis da esfera do mercado em geral, não sendo possível relacioná-las
enquanto processos inter-relacionados, mas apenas contíguos. Recorrendo a um tal raciocínio,
suprime-se, deliberadamente, a noção de relações mediadas que conformam o que entendemos,
grosso modo, por relações sociais. Somente a aceitação de mediações sociais entre a esfera
individual e o chamado mercado permitiria a compreensão de que na verdade trata-se de esferas
complementares de um mesmo processo. Entretanto, a noção de mediações sociais é
deliberadamente suprimida. A principal conseqüência desse procedimento “metodológico” é,
evidentemente, a naturalização de todos os processos sociais, que passam a figurar como
relações apenas de intercâmbios (ou negociações) entre desideratos individuais que
inevitavelmente não determinam, mas antes, são determinados por leis naturais espontâneas e
imutáveis. Ademais, e seguindo no mesmo espírito, o social (e todas as suas designações) passa a
corresponder à esfera do direito, isto é, como esfera de mediações das interações individuais no
mercado. Em outras palavras, o social torna-se sinonímia de interacionismo coletivo regido por
leis que assegurem a preservação de seu mais pleno funcionamento. Contudo, entenda-se bem, as
leis que regem esses intercâmbios visam a garantir, através da igualdade formal, que os desiguais
24
Entretanto, devemos ter claro que o que chamamos racionalidade neoliberal não se identifica, necessariamente,
com racionalismo (em termos epistemológicos, por oposição a irracionalismo). O racionalismo, enquanto
perspectiva filosófica e a despeito de suas várias vertentes, considera que o real é, em última análise, passível de ser
conhecido pela razão, e que pode assim chegar à verdade sobre a natureza das coisas (“Aquilo que é racional é real e
o que é real é racional” – Hegel, Filosofia do Direito) - (cf. Japiassu & Marcondes, 1998, p. 228-229). Entendemos
que a racionalidade neoliberal pode ser entendida como uma racionalização, mas não pode ser identificada como
um racionalismo, em termos epistemológicos, dado o seu ceticismo quanto ao alcance da razão (a impossibilidade
da verdade), seu imediatismo e individualismo metodológico (a-historicização e particularização dos processos
humanos) e pragmatismo axiológico (valor-utilidade das ações humanas). Assim, a racionalização neoliberal, em
seu ethos, reúne inúmeros elementos que a caracterizam como uma racionalidade unicamente instrumental.
32
de fato possam realizar plenamente suas desiguais potencialidades. Vale também dizer que
“potencialidade”, que a priori designa possibilidade ou potência latente e, portanto, que é
virtual e ainda não se realizou, é amplamente difundida, por esse ideário, como nas metonímias
“capacidade, habilidade, aptidão...” ou, por extensão, “competência para”. Assim, a acepção de
potencialidade, nesse ideário, apropria-se, a posteriori, do que poderíamos semanticamente
entender por condição de ou para realizarmos algo, uma ação ou atividade, em termos concretos.
Em outras palavras, potencialidade, que corresponde a uma condição virtual, ainda não
objetivada, se presta a legitimar desigualdades objetivas, em que desigualdades humanas reais
são derivadas de potencialidades humanas ideais. Uma conseqüência imediata do sentido de
potencialidade difundido pelo ideário liberal é que este concorre para que desigualdades de
condições socialmente determinadas possam ser entendidas como resultado de potencialidades
diferenciais inatas que definem o sucesso ou fracasso, seja de indivíduos, seja de grupos de
indivíduos, no jogo de aptidões que define a dinâmica do conjunto da sociedade para o
liberalismo — entendido, sobretudo, como dinâmica de mercado.
Assim, o corolário da igualdade liberal, ao contrário do sentido que imediatamente
sugere, não se refere a um suposto objetivo de equacionamento de disparidades socialmente
produzidas por relações desiguais ou de exploração, mas ao recurso da igualdade de direitos para
que as desigualdades naturais possam ser plenamente manifestadas. Evidentemente, este
pressuposto se presta à dupla função de relacionar a igualdade formal com uma liberdade
generalizada para se agir na sociedade (identificada com democracia), garantindo, por outro
lado, que as disparidades concretas resultantes da “relação de igualdade entre desiguais” sejam
socialmente introjectadas como legítimas e naturais. O mesmo raciocínio, ainda em Smith, se
presta tanto a explicar a existência das sociedades de classes como a própria divisão social do
trabalho, entendidas como resultados naturais da livre (ainda que conflitiva) relação entre
indivíduos e grupos naturalmente desiguais. Por extensão, tal raciocínio estará na base de
sustentação do princípio elementar do modo capitalista de produção: a prerrogativa da
propriedade privada como resultado meritocrático. Entretanto, o argumento da meritocracia,
assinalado pelo pensamento liberal como conseqüência da desigualdade potencial natural de cada
indivíduo e que, portanto, deveria se encerrar nos feitos e produções ao longo da vida de cada
individualidade particular, nas sociedades de hegemonia burguesa (e na história da divisão social
de classes) os resultados das apropriações desses indivíduos (e grupos) supostamente mais aptos,
e que se consubstanciam na forma de propriedade (material e intelectual), tornam-se
33
transferíveis a seus herdeiros.25 Evidentemente, uma vez que este processo não se dá por via
natural, nos deparamos aqui com a necessidade de que seja garantido por via formal, ou seja, por
força de leis que não são naturais e que tampouco se fundamentam no princípio do mérito.
De qualquer forma, a desigualdade natural é, em síntese, o pressuposto ontológico da
filosofia liberal smithiana para o entendimento e legitimação de toda a ordem social humana —
ainda que esta concepção de sociedade traga consigo um viés etnocêntrico e de classe. O
arcabouço jurídico e o próprio Estado Moderno ocidental se nos revelam, por fim, como
elementos imprescindíveis à manutenção dessa “ordem natural”, em que garantias formais de
igualdade ideal se prestam a garantir o funcionamento, manutenção e reprodução de processos
sociais e econômicos que implicam e reproduzem desigualdades reais. E, como declarará Karl
Popper em A sociedade aberta e seus inimigos (uma obra apologética da tolerância democrática
no liberalismo), “nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade” (Popper, op. cit., apud
Gómez, 2003, p. 14-15). Enfim, os inimigos da liberdade são os inimigos da liberdade de
mercado.
Estes princípios, por fim, constituem a matriz epistemológica do pensamento
ultraliberal contemporâneo, em seus representantes que aqui mais nos interessam (Hayek,
Friedman e Popper), ainda que estes procedam a uma atualização dos postulados smithianos,
bem como à inclusão ou exclusão de elementos que tornam o pensamento neoliberal também
peculiar em relação às suas origens neoclássicas.
25
Cremos que Pierre Bourdieu (juntamente com Jean-Claude Passeron) desenvolveu um dos mais relevantes estudos
acerca dos mecanismos e implicações sociais e econômicas dos processos de transmissão, por via da herança
familiar, econômica e cultural, do que denominou capital cultural, fator determinante para o papel e lugar sociais
dos indivíduos e grupos segundo sua descendência ou vínculos sócio-econômicos e de classe social (ver, p. ex.:
Bourdieu & Passeron, Les héritiers: les étudiants et la culture. Paris: Minuit, 1977; Bourdieu, A economia das
trocas simbólicas. Tradução de Sergio Miceli, Silvia de Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São
Paulo: Perspectiva, 1987).
.
34
1. As (im)possibilidades da razão
Hayek fez parte da escola austríaca de economia, escola esta formada não só por
renomados economistas como também por brilhantes matemáticos, e que teve em Ludwig Von
Mises seu grande expoente. Esta escola manteve, por principal característica, a busca incessante
35
pelo rigor científico, fosse pelo imperativo da matematização, fosse também pela busca de uma
generalizada neutralidade axiológica, aspecto este que se tornará marcante em Hayek (Gómez,
2003, p. 17). Por fim, uma terceira característica desta escola fora a busca científica pelo
descobrimento e estabelecimento de regularidades, tendências e mesmo leis (segundo os diversos
autores que a compunham) que possibilitassem a antecipação possível do funcionamento das
condutas econômicas e, sobretudo, que esclarecessem o funcionamento do mercado.
Conquanto Hayek revelará fortes influências do empirismo inglês de Hume, e em
termos econômicos, da obra de Smith, poder-se-ia afirmar que a obra hayekiana procederá a uma
radicalização dos postulados dos pensadores precedentes. Primeiramente, embora não negue o
papel da razão em ciências e se diga não ser um “antirracionalista”, Hayek se revelará um
inimigo declarado do que chama “construtivismo racionalista”, cujos modelos arquetípicos
seriam o cartesianismo e o positivismo lógico. A razão não é geradora de certezas, não
permitindo constructos de verdades das quais poderíamos estar certos. Assim, a razão em Hayek
adquire um caráter apenas deliberativo:
A razão não tem poder para organizar a sociedade. As sociedades não se organizam através
de um processo racional deliberado. Elas são o resultado espontâneo de longos processos
históricos, que vão gerando uma sorte de tradição dentro da qual as sociedades se organizam
e dentro da qual se constituem as instituições pertinentes a cada tradição. (Gómez, 2003,
idem).
Por outro lado, para Hayek a previsibilidade científica preconizada pelo positivismo
lógico é utópica. Não havendo previsibilidade, toda tentativa de planificação é inalcançável. A
atividade racional é, em Hayek como em Smith, a atividade de se eleger os melhores meios para
alcançar-se determinados fins. Tanto os limites de nossos sucessos como a possibilidade de se
planejar a atividade racional são, portanto, discutíveis.
Surge-nos aqui, sem dúvida, o elemento central das críticas hayekianas, qual seja, a
tentativa de planificar-se qualquer economia. Como vimos na introdução deste capítulo, esta
oposição de Hayek e seu grupo à planificação toma como referência de análise as sociedades
ditas planificadoras e autoritárias conhecidas de sua época, isto é, as sociedades que se
pretendiam socialistas, desde a Alemanha e Itália nazi-fascistas até as sociedades do Leste
Europeu, consideradas comunistas, centralizadoras, totalitárias etc. Assim, em O caminho da
servidão, ele nos dirá:
Assim, o que motiva Hayek a produzir uma obra mais político-ideológica que
econômica (caso explícito de O Caminho da Servidão, certamente seu texto mais difundido e
aclamado pelos liberais) é a busca pelos neoliberais de Mont Pèlerin de interferir politicamente
nas ameaças socializantes e de controle dos mercados pelo fortalecimento do trabalhismo
internacional e suas influências sobre os Estados centrais do capitalismo.
Este objetivo Hayek explicita logo no Prefácio à Edição Inglesa de 1944 de O
Caminho da Servidão, nos seguintes termos:
Quando um estudioso das questões sociais escreve um livro político, seu primeiro dever é
declará-lo francamente. Este é um livro político. Não quero disfarçar tal fato atribuindo-lhe
— como talvez pudesse ter feito — o nome mais elegante e ambicioso de ensaio de filosofia
social. Mas, seja sob que rótulo for, permanece a questão central de que tudo o que deverei
dizer deriva de determinados valores fundamentais. Espero ter cumprido no próprio livro
uma segunda e não menos importante obrigação: deixar claro, acima de qualquer dúvida,
quais são esse valores fundamentais de que depende toda a argumentação.
E complementa:
Há, no entanto, algo que desejaria acrescentar. Embora este seja um livro político, tenho a
máxima certeza de que as convicções que nele se expressam não são ditadas por meus
interesses pessoais. Não consigo descobrir nenhuma razão para que o tipo de sociedade que
me parece desejável deva oferecer maiores vantagens a mim do que à grande maioria do
povo deste país. (Hayek, 1944/1990, Prefácio à 1ª. Edição Inglesa, p. 7).
Quando Hayek discute sobre o tema vital das preferências, nos diz que não há o que se
confundir. Aqui não perguntamos aos agentes individuais os motivos ou razões porque
preferem A sobre B, senão que a única pergunta é “A sobre B ou B sobre A?” As razões
pelas quais eles prefiram um ao outro são irrelevantes para a teoria econômica. E a razão
fundamental é, novamente, que o subjetivo é desconfiável porque está carregado de valores
individuais. (Gómez, 2003, p. 23).26
26
Percebemos aqui uma notável proximidade dos pressupostos epistemológicos de Hayek com os do behaviorismo
em psicologia. Do mesmo modo que Hayek, Watson sustentou, em 1913, a irrelevância da busca de acesso a
conteúdos psicológicos pela esfera da subjetividade: “A Psicologia, da maneira como é vista pelo
38
comportamentalista, constitui um ramo puramente objetivo da Ciência Natural. Seu objetivo teórico é a predição e o
controle do comportamento. A introspecção não é parte essencial de seus métodos...” (J.B.Watson, “Psychology as
the behaviorist views it”. Psycological Review. 20:158-177, 1913, p. 158). E, em seu behaviorismo radical, Skinner
dirá: “Para o momento devemos nos contentar, como insiste o behaviorismo metodológico, com a história genética e
ambiental da pessoa. O que se observa introspectivamente são certos produtos colaterais destas histórias. (...) Desta
maneira, reparamos o maior dano produzido pelo mentalismo. Quando o que uma pessoa faz se atribui ao que
sucede dentro dela, põe-se um ponto final à investigação. Para que ‘explicar a explicação’? Durante vinte e cinco
séculos nos temos preocupado com sentimentos e a vida mental, mas só muito recentemente se tem mostrado algum
interesse por uma análise precisa do papel do ambiente. A ignorância deste papel tem conduzido, em primeiro lugar,
a ficções mentais que se tem perpetuado pela prática explicativa a que dá lugar.”(B.F. Skinner, “Las causas del
comportamiento”. In: Sobre el conductismo. Barcelona: Fontanella, 1972, p. 8-9). Em outros termos, são as ações
humanas que revelam, enquanto comportamentos, o que é cientificamente relevante: os comportamentos
observáveis e as probabilidades de suas ocorrências.
39
Ditos cálculos são parte, portanto, de um grande jogo e cada indivíduo deve tratar de jogá-lo
tão bem como seja possível. O êxito de cada ajuste individual às ações dos outros é medido
em curto prazo pelo êxito econômico de sua ação específica; em longo prazo, por sua
sobrevida e o desenvolvimento de si mesmo e do grupo a que pertence, digamos, da
instituição, e da sociedade como um todo. (Gómez, 2003, p. 22).
Como se produz este ajuste [de preços]? Porque se produz esse ajuste? Tudo parece suceder
pela ação de uma mão invisível... Contudo, agora é uma mão invisível, mas não é de Deus,
nem de nada. Tudo se dispõe como se houvesse sido feito de acordo com um plano único
produzido por uma omnisciência oculta no preço, ainda que nada, na verdade, o haja
planejado. Soa paradoxal que Hayek sustente, por um lado, que não há omnisciência
humana, mas sim, que esta exista nos preços. Isto é, quiçá, o cúmulo do misterioso. Mais
paradoxal ainda é que, para Hayek, o intento de resolver tal mistério é pretender ser
omniciente. (Gómez, 2003, p. 22 – itálicos nossos).
Dito de modo mais claro, a omnisciência aparece quando se fala dos preços, pois só
existe omnisciência no mercado como um todo, mas desaparece quando se fala dos seres
humanos, de acordo como isso se apresente conveniente ao enfoque de Hayek. As leis da
40
Mas quem pretende a planificação total? Que queremos dizer com planificação total?
Ademais, que tipo de conhecimento se requer para planificar? Requer um conhecimento total
da realidade para a qual se queira estabelecer um determinado plano? Não temos que
planificá-lo totalmente. Temos meramente que saber o que é relevante dentro do todo. Se o
relevante requer um número infinito de variáveis ou de um número finito, mas dificilmente
manipulável de variáveis, algumas das quais estariam muito inter-relacionadas entre si, então
poderíamos tomar como verdadeiro que o argumento da não-omnisciência seria importante.
(Gómez, 2003, p. 23-24).
E acrescenta:
41
Creio que aqui há um uso ambíguo da linguagem na qual haveria que se perguntar o que
queremos significar por planificação total, de tal maneira que a resposta não seja trivialmente
ridícula. O importante é que já que não somos omniscientes, devemos saber quais são os
limites de nosso conhecimento e se esses limites nos impedem de planificar nossas
satisfações. É aqui onde os grandes sistemas econômicos, capitalismo e comunismo, diferem.
Os economistas soviéticos das décadas de 1950 e 60 criam que se poderia realizar certo tipo
de planificação, muito geral, mas não total no ridículo sentido hayekiano-popperiano, donde
o grande problema foi justamente a eleição das variáveis relevantes e a possibilidade de
manipulação efetiva dessas variáveis. Mais claramente: quando se fala de planificação
global, não se pretende planificar tudo em seus mínimos detalhes, o que requereria um
conhecimento total. Trata-se de não permitir que seja o mercado, por si mesmo, o que
coordene tudo, pois que, se aduz, ele leva a desigualdades, à pobreza extrema de muitos, ao
enriquecimento de alguns poucos, em suma, à injustiça social. (Gómez, 2003, idem).
27
Entendemos que Habermas não se posiciona contra a racionalidade instrumental da ciência e da técnica em si
mesmas, na medida em que essas são necessárias a autoconservação humana (um entendimento próximo ao que
Heller [1997, p. 17-41] propõe ao conceituar a categoria de vida cotidiana — comparativamente à dimensão da vida
não-cotidiana —, como espontânea e prático-utilitária por tratar-se da dimensão da consecução da própria vida, em
termos individuais e coletivos). Habermas considera que o trabalho, pela sua essência de dominar a natureza para
pô-la a serviço do homem, possui uma racionalidade do mesmo tipo que a racionalidade da ciência e da técnica, isto
é, uma racionalidade que consiste na organização e na escolha adequada de meios para atingir determinados fins.
Para ele, a ciência e a técnica ampliam as possibilidades humanas, libertando o homem do jugo das necessidades
materiais, sendo o desenvolvimento da espécie humana resultado de um processo histórico de desenvolvimento
tecnológico, institucional e cultural, processos que são interdependentes. Entretanto, Habermas se posicionará
radicalmente contra a universalização da racionalidade da ciência e da técnica, isto é, contra a penetração da
racionalidade científica, instrumental, restrita aos meios-fins, em esferas de decisão onde deveria imperar um outro
tipo de racionalidade: a racionalidade comunicativa (HABERMAS, 1987). Entendemos, ainda, que Habermas fornece
pistas convergentes para com o entendimento do processo de reificação (cf. LUKÁCS, 1974, p. 97-126), ao salientar
a inversão do sentido meios-fins para a humanização em meios-fins para a produtividade.
.
42
28
Voltaremos a este tema ao tratarmos mais especificamente das transformações sociais ocorridas na civilização
ocidental, a partir da revolução industrial e a instauração do regime assalariado, e suas implicações e
desdobramentos na organização social a partir da produção capitalista industrial.
45
espécies e a seleção natural (1859)29. Nesse sentido, o princípio da seleção natural como
determinante do processo evolutivo das espécies animais forneceram subsídios que marcaram
profundamente o liberalismo contemporâneo, a exemplo do que se daria com todas as chamadas
ciências humanas modernas.
Nessa concepção, a sociedade (entenda-se: sociedade capitalista) tal como existe
hoje, seria o resultado evolutivo dos processos naturais humanos e, enquanto tal, deve ser aceita
incondicionalmente como é, “seja no plano do ser, seja no plano do dever ser” (Gómez, 2003, p.
26). Por sua vez, o mercado é o resultado máximo desse processo evolutivo, e como tal, uma
organização natural. Este conceito naturalista aparece, segundo Gómez, quando, por exemplo,
uma noção valorativa se fundamenta em termos de conceitos naturais e/ou científicos:
Quando um economista nos diz: o bom em economia é um crescimento de 2,3% ao ano, está
cometendo uma falácia naturalista. Está identificando uma noção axiológica como “o bom”
com uma noção proposta a partir de uma certa disciplina científica. Há falácia naturalista se
estabelecemos tal identificação e não abrimos a questão, ou seja, não discutimos porque
fazemos tal identificação.
29
Originalmente, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favored races in the
struggle for life. London: John Murray, 1859.
30
O texto primorosamente irônico de Voltaire, uma crítica típica sua à condescendência medieval européia quanto à
providência divina, não o redime de suas claras posições conservadoras em relação às classes e pobreza então
existentes, como digno representante de uma classe revolucionária burguesa que já se considera superior na
hierarquia social. É ilustrativa a manifestação de Diderot a Voltaire quanto ao papel que desempenham, na defesa da
ilustração, contra o pensamento medieval: "Nossa divisa é: sem quartel aos supersticiosos, aos fanáticos, aos
ignorantes, aos loucos, aos perversos e aos tiranos... será que nos chamamos de filósofos para nada?" - (Carta de
Diderot a Voltaire, em 29 de setembro de 1762.)
46
31
F. Hayek, La constitución de la liberdad, Madrid, União Editorial, 1991, p. 127 (citado por GÓMEZ, 2003, p. 32).
47
32
Herbert Spencer, Essays, Oxford: Oxford University Press, 1891 (citado por GÓMEZ, 2003, p. 34).
33
Charles Darwin, The descent of man, p. 68, Londres: Murray, 1871 – citado por GÓMEZ, 2003, idem).
Enfatizemos que Darwin não recorre aqui a um argumento que possa ser atribuído à sua conhecida posição religiosa
e moral cristã. Não se trata de um argumento religioso, mas sim, antropológico.
48
34
Contudo, evidentemente não podemos aqui nos limitar a uma leitura benevolente e ingênua acerca das teses
ultraliberais em relação ao endividamento dos Estados, como se o movimento, com sua característica feição de
austeridade, estivesse comprometido com o restabelecimento das funções vitais de Estados moribundos. Pelo
contrário, o movimento vem, por todas as vias, para decretar a suposta falência do Estado (mas não sua extinção,
pois que a existência do Estado é condição para a existência da própria ordem capitalista) e para ressuscitar a idéia
de que fora do mercado livre, não há salvação.
49
Pelo fato de vivermos em uma sociedade, em grande medida, livre, tendemos a esquecer o
limitado espaço de tempo e a parte do globo na qual surgiu o que se chama de liberdade
50
E, mais adiante:
A História somente sugere que o capitalismo é uma condição necessária para a liberdade
política, mas, evidentemente, não é uma condição suficiente. A Itália fascista e a Espanha
fascista, a Alemanha em diversas ocasiões nos últimos setenta anos, o Japão antes da
Primeira e da Segunda Guerra Mundial e a Rússia czarista nas décadas anteriores à Primeira
Guerra Mundial, constituem claramente sociedades que não podem, de modo algum, ser
consideradas como politicamente livres. Entretanto, em cada uma delas, a empresa privada
era a forma dominante da organização econômica. É, portanto, claramente possível haver
uma organização econômica fundamentalmente capitalista e uma organização política que
não seja livre. (Friedman, 1984, p. 19).
liberdade política, a história revelaria que esta condição poderia ser levada a extremos em
diversos países em que foram instauradas ditaduras políticas que garantiram o predomínio da
economia de mercado. De fato, o princípio defendido por Friedman e seus companheiros de que
a liberdade econômica de mercado pode prescindir da liberdade política, independentemente do
regime adotado, tornou-se tragicamente notória nas diversas ditaduras instauradas pela América
Latina, África e Ásia, a partir dos anos de 1960, sob os auspícios e patrocínios, nem sempre
velados, das grandes nações capitalistas, sobretudo dos EUA.
Eticamente, o princípio defendido por neoliberais como Friedman, de que o Estado é
inevitável e seu principal papel deveria ser o de garantir as liberdades individuais e de mercado,
revelam aqui uma séria contradição: a liberdade de mercado deve ser priorizada em relação à
própria liberdade dos indivíduos, uma vez que as liberdades individuais (liberdades políticas)
possam vir a ameaçar a liberdade do próprio mercado. Eis uma mostra do entendimento
neoliberal a esse respeito:
Esses são, pois, os papéis básicos do governo numa sociedade livre — prover os meios para
modificar as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das
regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas. A necessidade do governo
nesta área surge porque a liberdade absoluta é impossível. Por mais atraente que possa o
anarquismo parecer como filosofia, ele não é praticável num mundo de homens imperfeitos.
As liberdades dos homens podem entrar em conflito e quando isso acontece a liberdade de
uns deve ser limitada para preservar a de outros — como está ilustrado por uma frase de um
juiz da Suprema Corte de Justiça [americana]: “Minha liberdade de mover meu punho deve
ser limitada pela proximidade de seu queixo.” (Friedman, 1984, p. 31-32).
Há aqui, ao que nos parece, uma mutação do pensamento neoliberal em relação ao
pensamento liberal secular, que sai das raias de um idealismo clássico para o reconhecimento
contemporâneo de que, objetivamente, não há unanimidade e, pelo contrário, há inúmeros
descontentamentos onde a chamada liberdade econômica capitalista impera. Daí o
reconhecimento de que a liberdade absoluta é impossível e, em sendo os homens imperfeitos e
suas liberdades podendo entrar em conflito, “quando isso acontece, a liberdade de uns deve ser
limitada para preservar a de outros.”
Mas a liberdade de quem deverá ser mantida e de quem deverá ser limitada, e sob
que critérios? Pergunta óbvia, talvez, cuja resposta fornecida pela própria história demonstra que
as limitações de liberdade sempre recaíram sobre aqueles que se revelassem ameaçadores ao
próprio modelo que alguns defendiam, ou seja, o do livre mercado capitalista, ainda que estes
alguns (que deverão ter garantia de liberdade e integridade pelo Estado), possam ser
minoritários. Entretanto, Friedman jamais discutirá o aspecto quantitativo dos
descontentamentos, quanto mais em termos de conflitos entre interesses que são, na verdade, de
classe. Portanto, o direito natural que se expressa nas leis formais, sob a ótica neoliberal são o
princípio da própria democracia, que por sua vez só é legítima numa sociedade capitalista
52
Uma das características de uma sociedade livre é certamente a liberdade dos indivíduos de
desejar e propor abertamente uma mudança radical na estrutura da sociedade — desde que
tal empresa se adstrinja à persuasão e não inclua a força ou outra forma de coerção. Constitui
uma indicação da liberdade política de uma sociedade capitalista que seus membros possam
abertamente propor e trabalhar pelo socialismo. Do mesmo modo, a liberdade política numa
sociedade socialista exige que seus membros possam propor a introdução do capitalismo.
Como poderia a liberdade de propor o capitalismo ser preservada e protegida numa
sociedade socialista?” (Friedman, 1984, p. 25 — itálicos nossos).
35
Seguindo as trilhas dos pensadores do socialismo científico, clássicos e contemporâneos, cremos que as
possibilidades do socialismo são proporcionais às possibilidades e impossibilidades do próprio capitalismo, que cada
vez mais revela seu caráter predatório para com a humanidade e o planeta. Isso não quer significar que creiamos
numa evolução natural ao socialismo. Uma tal transformação implica em que nos debrucemos, filosófica e
cientificamente, sobre o que pode a praxis socialista mediante a pragmática capitalista ainda hegemônica.
54
2. Na contramão do keynesianismo
Se agora minhas idéias são um senso comum, quando elas foram publicadas, destoavam
tanto da corrente geral que nenhum grande jornal ou revista da época — The New York
Times, Chicago Tribune, Time ou Newsweek — ousou publicar uma resenha de Capitalismo
e Liberdade, lembra. Aliás, em 1965, quem estava na capa da Time, 20 anos depois da sua
morte, era John Maynard Keynes.
Nos anos 50, acredite você, a ortodoxia keynesiana dava pouca atenção à questão monetária,
à quantidade de dinheiro. Para eles, era a política fiscal que importava. Há 40 anos, em
Capitalismo e Liberdade, eu já argumentava que a ênfase, antes essencialmente fiscal dos
governos, deveria se tornar essencialmente monetária. Muitos afirmam que, por causa disso,
eu fui o economista vencedor do século XX. Recuso-me a comentar isso, mas não posso
negar que o mercado ganhou importância e, agora, é visto como o termômetro adequado para
a economia. Não digo: eu acertei. Foram os fatos que geraram as mudanças, e essas
mudanças ocorreram na direção apontada por mim. (Friedman, 2003, p. 16)
Friedman sustenta suas teses acerca da distribuição, das desigualdades sociais, das
vantagens do capitalismo competitivo e das desvantagens do Estado “assistencialista”,
sobretudo, em pressupostos relacionados ao que chama de resultados de curto e de longo prazo.
Nesse sentido, há dois tipos de desigualdades para Friedman, uma que se revela em curto prazo e
que é típica das sociedades com alto grau de mobilidade social, e outra, que se revela em longo
prazo, por sua vez típica das sociedades estáticas. Friedman compartilha integralmente do
princípio liberal de Hayek de que deve haver um trato desigual entre os desiguais, que sintetizou
na frase “a cada indivíduo de acordo com o que ele — e os instrumentos que possua — produz”.
(Friedman, apud. Gómez, 2003, p. 42). Assim como Hayek, reconhece que há desigualdades e
55
que estas são geradas pelo sistema, mas isto não é o mesmo que reconhecer que o sistema seja
injusto. Não cabe, segundo ele, analisar o sistema em termos de justiça, já que o mesmo está para
além da esfera dos juízos de valor (o sistema é o que é e não necessariamente o que queiramos
que o seja — corolário de toda argumentação liberal).
As desigualdades, sob o ponto de vista de Friedman, são inevitáveis, mas obviamente
as desigualdades de curto prazo são preferíveis às desigualdades de longo prazo. As primeiras
seriam as desigualdades próprias do mercado, porque uma parte do mercado sempre pode
corrigir a si mesma e, por outro lado, a desigualdade é o motor da própria ascensão social, já que
impulsiona os indivíduos a moverem-se e melhorarem-se. Ainda que as desigualdades
permaneçam no curto prazo, no longo prazo haverá uma melhora significativa na distribuição
para a sociedade dos benefícios auferidos pelos indivíduos que atuaram livremente no mercado.
(Gómez, 2003, p. 43).
Para Friedman, o sucesso das políticas centradas no controle por Estados fortes
observado na segunda metade do século XX, que objetivaram a atenuação de desvios e
desigualdades, por conquistarem resultados notados mais rapidamente no curto prazo, tornaram
sedutoras e aparentemente convincentes propostas intervencionistas de caráter keynesiano, caso,
por exemplo, do new deal promovido por Roosevelt nos EUA. No longo prazo, contudo, a
tendência será sempre oposta e o Estado haverá de colher, como conseqüências, endividamentos
e comprometimentos insolúveis, com aumento provável das desigualdades. Várias referências a
este tom profético de Friedman, profecia que de certo modo pareceu encontrar sua realização
ainda na década de 1980, com a crise dos Estados de Bem-Estar, o aumento dos endividamentos
em todos os quadrantes do globo e a explosão inflacionária registrada em diversas economias
importantes, concorreram certamente a que os neoliberais conquistassem um terreno valioso para
cultivarem e difundir suas teses.
Esta seqüência de processos desencadeados no referido período, convergiram
oportunamente para com as leituras e teses ultraliberais proclamadas por economistas como
Friedman. Os argumentos neoliberais baseados na relação entre curto e longo prazo legitimaram
a investida do capital sobre o Estado e o patrimônio público como ato final e inquestionável da
supremacia da lógica de mercado (agora sinônimo de modernidade) frente à falência do
paradigma do bem e do valor públicos (agora sinônimos de arcaísmo, despotismo e ineficiência).
Neste contexto, ao contrário dos efeitos de curto prazo que se esperaria em Estados
intervencionistas, Friedman argumenta que as políticas que defende só poderiam revelar seus
resultados positivos no longo prazo. Esse argumento se tornou emblemático o suficiente para
impingir um torpor inercial a qualquer menção de reação ou contestação social às medidas
56
Isto é, outra vez, remeter o problema ad infinitum, porque a pergunta que se lhe pode fazer é:
o que é o longo prazo? Porque quando ele implementa uma política que fracassa e eu lhe
digo “fracassou”, ele diz “até agora, o prazo foi muito curto”. “Como um prazo muito curto?
Faz quatro anos que esta política aí está e não funciona bem.” — “Ah, sim, mas, esperemos.”
Se eu digo à equipe econômica da Argentina: “10 anos, senhores, e vamos de mal a pior!”, a
resposta é: “demos tempo ao tempo.” Esta diferença entre curto e longo prazo legitima tudo.
Nunca o curto prazo é o suficientemente longo para se poder dizer: “agora isso pode ser
refutado”. (Gómez, 2003, p. 44-45).
Mas há também uma outra argumentação, talvez a mais preferida pelos neoliberais.
Trata-se da afirmação, quando os chamados “ajustes” e “reformas” favoráveis ao mercado
evidenciam seu fracasso, de que se as políticas falharam isto se deve ao fato de não terem sido
totalmente implementadas. O programa neoliberalizante justifica-se e exime seus próprios
implementadores acerca de seus fracassos. Nunca há excesso de medidas neoliberais, e sim,
falta.
Para Friedman, economistas ou pré-economistas como Adam Smith, David Ricardo e
John Stuart Mill (assim como seu grande ídolo, o presidente americano Thomas Jefferson, para
quem, "o governo é melhor quando governa o mínimo"), em geral, viam o Estado como um mero
provedor de paz e de meios para o mercado funcionar. Veio, entretanto, a Grande Depressão de
1930, e o mercado livre teria sido considerado, indevidamente, um vilão que deveria ser
controlado pelo governo para evitar novas tragédias.
Sempre favorável a soluções laissez-faire para problemas econômicos, tornou-se um
fervoroso opositor às idéias keynesianas, que preconizavam que os governos podem aliviar os
ciclos econômicos recessivos aumentando o déficit do Estado, de modo a estimular a demanda
nos momentos de baixa, aumentando as taxas de juros para reduzir demandas quando a inflação
se tornasse ameaçadora.
Assim, combateu a visão de um “governo benevolente que age em nome e para o
bem da sociedade” com instrumental matemático e estatístico. Segundo ele, os consumidores não
mudavam seus hábitos de consumo instantaneamente em função de variações na sua renda
disponível. Chegou a contestar uma visão, sagrada para a história econômica, das reais razões da
Grande Depressão, lida então como uma falha do capitalismo. Em Uma história monetária dos
57
Estados Unidos, escrito com Anna Schwartz em 1972, afirmou que a culpa do massacre
econômico havia sido do Federal Reserve System, que teria sido então responsável pela queda de
um terço da quantidade de dinheiro em circulação entre 1929 e 1933, o que teria causado o
desemprego intenso, a queda dos preços e o crescimento econômico negativo.
Não posso apresentar aqui a evidência em questão.36 Entretanto, devido à importância que a
Grande Depressão de 1929-1933 teve na formação – ou, diria, deformação — da atitude
geral com relação ao papel do governo nos assuntos econômicos, talvez seja útil indicar para
tal episódio o tipo de interpretação que a evidência sugere.
[...] uma das maiores razões para a criação do Federal Reserve System [precursor do atual
Federal Reserve] foi a de resolver tais situações. Foi-lhe dado, por isso, o poder de criar mais
dinheiro se viesse a surgir uma demanda generalizada por parte do público e também os
meios de tornar o dinheiro disponível aos bancos, com a garantia do ativo de cada banco.
Desse modo, esperava-se que qualquer ameaça de pânico pudesse ser controlada; que não
houvesse a necessidade de suspender a conversão de depósitos em dinheiro; e que os efeitos
depressivos de crises monetárias pudessem, assim, ser inteiramente evitados. (...) O Reserve
36
Friedman remete o leitor às suas obras A program for monetary stability (1959) e Monetary history of the United
States, 1867-1960 (1972).
58
System falhou tristemente. Fez muito pouco ou nada para fornecer liquidez aos bancos,
considerando aparentemente o fechamento de bancos como pouco importante. É conveniente
enfatizar, contudo, que o fracasso do System foi um fracasso de vontade, e não de poder.
Nessa ocasião, como em outras, o System tinha amplos poderes para fornecer aos bancos o
dinheiro que seus depositantes reclamavam. Se isto tivesse sido feito, o fechamento dos
bancos teria sido evitado e a débâcle monetária não ocorreria. (Friedman, 1984, p. 52).
Nos seis meses que decorreram de agosto de 1931 a janeiro de 1932, um entre dez bancos
existentes suspendeu as operações, e os depósitos totais em bancos comerciais caíram 15%.”
(...) “Uma mudança temporária de política em 1932 envolvendo a compra de um bilhão de
dólares em títulos do governo atenuou um pouco o ritmo do declínio. Se esta medida tivesse
sido tomada em 1931, teria, quase certamente, evitado a débâcle aqui descrita. Em 1932 já
era tarde demais, e a medida funcionou como mero paliativo; e, quando o System voltou à
passividade, a melhora temporária foi seguida de mais um colapso terminando no Banking
Holiday de 1933 — quando todos os bancos dos EUA foram oficialmente fechados por mais
de uma semana. (Friedman, 1984, p. 52-53).
Em resumo, de julho de 1929 a março de 1933, o estoque de dinheiro nos EUA caiu de um
terço, e mais de dois terços do declínio teve lugar após a Inglaterra sair do padrão ouro. Se se
tivesse evitado a queda do estoque de dinheiro, como era claramente possível, a crise teria
sido bem menos longa e bem mais suave. Ainda poderia ser considerada como relativamente
severa em termos de padrões históricos. Mas é totalmente inconcebível que, no decorrer de
quatro anos, a renda monetária pudesse ter declinado mais de 50% e os preços, mais de 30%,
não fosse a diminuição no estoque de dinheiro. Não conheço nenhuma depressão severa em
qualquer país ou em qualquer época que não tenha sido acompanhada por um declínio
agudo no estoque de dinheiro; e nenhum declínio agudo no estoque de dinheiro que não
tenha sido acompanhado por uma grave depressão. (Friedman, 1984, p. 53)
Esta última frase de Friedman tornou-se legendária para a defesa de suas propostas
político-monetárias. Friedman fecha seu raciocínio sobre o episódio da Grande Depressão com
uma conclusão incondicional e que sintetiza sua posição, enquanto neoliberal:
A Grande Depressão nos EUA, longe de ser um sinal da instabilidade inerente do sistema de
59
empresa privada, constitui testemunho de quanto mal pode ser causado por erros de um
pequeno grupo de homens — quando dispõem de vastos poderes sobre o sistema monetário
de um país. (Friedman, 1984, p. 53).
Para Friedman, qualquer sistema que dê tão amplos poderes a um grupo de homens
cujos erros podem ter efeitos drásticos e amplos, é simplesmente um mau sistema. Este é
principal argumento para Friedman ser contrário à existência de qualquer controle monetário
centrado em decisões arbitrárias:
Erros, compreensíveis ou não, não podem ser evitados em sistemas que dispersam a
responsabilidade, mas dão poderes amplos a um pequeno grupo de homens e, portanto,
tornam ações políticas importantes altamente dependentes de acidentes de personalidade. É
este o argumento-chave técnico contra a existência de um banco central “independente”.
Parafraseando Clemenceau, dinheiro é coisa importante demais para ser deixado aos
banqueiros centrais. (Friedman, 1984, p. 54).
Se não podemos alcançar nossos objetivos nem por meio de um padrão ouro inteiramente
automático nem por meio da ação livre de autoridades independentes — como poderemos
estabelecer um sistema monetário estável e ao mesmo tempo livre da influência
irresponsável do governo, um sistema capaz de fornecer a estrutura monetária indispensável
a uma economia de livre empresa e que não possa ser usada como fonte de poder para
ameaçar a liberdade econômica e política?
O único meio já sugerido e que parece promissor é tentar estabelecer um governo de lei, em
vez de um governo de homens, por meio da legislação de normas para a direção da política
monetária, a qual teria o efeito de permitir ao público exercer o controle da política
monetária por meio das autoridades políticas e, ao mesmo tempo, evitaria que a política
monetária fosse vítima dos caprichos das autoridades políticas. (Friedman, 1984, p. 54 –
itálicos nossos).
O sistema funciona com lucros e prejuízos, e esses últimos são tão importantes quanto os
primeiros. Para que tenhamos uma sociedade dinâmica, as pessoas têm de assumir riscos.
Alguns rendem frutos, outros não. O fato de que certas empresas entrem em falência e outras
prosperem mostra como o sistema está saudável e funciona. (Friedman, 2003, p. 16)
60
Ele, entretanto, procura ser cauteloso a ponto de não se revelar um crente ingênuo no
capital: "Acredito, apesar do meu otimismo, que exista um impulso suicida na comunidade de
negócios. Há uma crença burra de que quem está a favor do mercado livre está a favor de tudo o
que os agentes desse mercado fazem. Não defendo isso. Há, por exemplo, organizações
individuais e homens de negócio que, em suas ações, acabam minando o mercado livre. Todo
mundo se acha especialista em economia, e essa é uma área em que se erra muito. O que mais
me impressiona nela é que, na maioria das vezes, o que é verdade em casos individuais não é
verdade para a comunidade do mundo dos negócios." (Friedman, 2003, idem).
Atualmente, ele defende a extinção do Federal Reserve (Banco Central dos EUA) e
do Fundo Monetário Internacional porque suas equivocadas políticas monetárias têm causado
enormes danos à economia dos EUA e mundial:
O FMI deveria ser abolido. Veja esse empréstimo imenso feito ao Brasil no ano passado, um
absurdo. Acho que o seu país precisa solucionar sozinho os seus problemas. O Brasil não
será beneficiado por uma ajuda que permitirá ao país apenas adiar a solução de suas mazelas
econômicas. Financiar gastos internos com moedas estrangeiras é uma péssima política para
vocês. Isso ocorreu na Argentina e foi a receita do desastre. (Friedman, 2003, p.16).
Nem o câmbio fixo nem o flutuante resolvem os problemas fiscais internos. Não há soluções
fáceis. O Brasil tem de pôr sua casa fiscal em ordem: ou corta fortemente os gastos
governamentais ou aumenta fortemente a receita governamental. Não há outro caminho. Ah,
tem outra saída: imprimir dinheiro. Mas isso levaria inevitavelmente à inflação. No caso do
Brasil, a inflação voltou porque o governo não tem mais crédito para tomar emprestado o
necessário para cobrir o déficit. O déficit fiscal brasileiro é muito grande e isso tem de ser
resolvido. Mexer no câmbio ou qualquer coisa parecida é apenas um paliativo. (Instituto
Liberal, 2004, s/ pág.).
Nessa mesma entrevista também ressaltou que o problema dos juros elevados deveria
ser solucionado pelo mercado, não pelo governo. Este último (o governo) é, aliás, sempre a causa
dos problemas.
Friedman, em 1962, já se referia aos problemas das previdências sociais de vários
países, afirmando que a compra de um plano de aposentadoria, seja de seguradores privados ou
públicos, deveria ser um ato voluntário, não uma aquisição compulsória de um plano do sistema
previdenciário social dos governos. "Daí, meu conselho ao governo brasileiro: gastos reduzidos,
proteção garantida à propriedade privada e menor intervenção possível no mercado, permitindo
que ele funcione, possibilitando que as pessoas se dediquem à atividade de sua preferência."
(Friedman, 2003, p. 16-17). Recomendações seguidas ao máximo, desde os anos de 1990, ao que
nos parece.
61
Durante a hiperinflação alemã após a Primeira Guerra Mundial, a moeda manual aumentou à
taxa média de mais de 300% ao mês por mais de um ano, o mesmo acontecendo com os
preços. Durante a hiperinflação húngara após a Segunda Guerra Mundial, a moeda manual
aumentou à taxa média de 12.000% ao mês, por um ano, e os preços à taxa ainda mais alta
de quase 20.000% ao mês.
Durante a inflação moderada nos Estados Unidos, de 1969 a 1979, a quantidade de moeda
aumentou à taxa média de 9% ao ano, e os preços, à taxa média de 7%.” E conclui seu
raciocínio: “Como mostram esses exemplos, o que acontece com a quantidade de moeda
tende a tornar menor o que acontece com a produção: daí a nossa referência à inflação como
um fenômeno monetário, sem acrescentar qualquer ressalva quanto à produção. (Friedman,
1994, p. 182)
62
O primeiro diz respeito aos “efeitos laterais”, isto é, circunstâncias sob as quais a ação de um
indivíduo impõe custos significativos a outros indivíduos pelos quais não é possível forçar
uma compensação, ou produz ganhos substanciais pelos quais também não é possível forçar
uma compensação – circunstâncias estas que tornam a troca voluntária impossível. O
segundo é o interesse paternalista pelas crianças e por outros indivíduos irresponsáveis.
(Friedman, 1984, p. 83).
mercadorias. Contudo, não admite que esse processo extrapole os limites usufruídos nessa
sociedade, considerados estritamente como um substancial “efeito lateral”, defendendo que,
apenas relativamente, o ganho social é maior para os níveis mais baixos da instrução onde o
governo poderia apresentar subsídios temporários e focalizados, para não gerar prejuízos aos
demais indivíduos (Gómez, 2003, p. 43).
Quanto à instrução primária, defende que o subsídio governamental deva ser
aplicado apenas em situações justificadas, como no caso de famílias necessitadas, para que com
isso não interfira intensamente no próprio mercado, prejudicando a ação voluntária individual.
Friedman vislumbra, portanto, que a solução para a exigência de um mínimo de instrução e o
correspondente subsídio governamental deveria romper com o que denomina de nacionalização
das instituições educacionais pelo governo, pois isso afeta as empresas privadas que atuam nessa
área:
O governo poderia exigir um nível mínimo de instrução financiada dando aos pais uma
determinada soma máxima anual por filho, a ser utilizada em serviços educacionais
“aprovados”. Os pais poderiam usar essa soma e qualquer outra adicional acrescentada por
eles próprios na compra de serviços educacionais numa instituição “aprovada” de sua própria
escolha. Os serviços educacionais poderiam ser fornecidos por empresas privadas operando
com fins lucrativos ou por instituições sem finalidade lucrativa. (Friedman, 1984, p. 86).
Os pais que quiserem mandar os filhos para escolas privadas receberiam uma importância
igual ao custo estimado de educar uma criança numa escola pública, desde que tal
importância fosse utilizada em educação numa escola aprovada. Essa solução satisfaria as
partes válidas do argumento do monopólio técnico. E também resolveria o problema das
justas reclamações dos pais quando dizem que, se mandarem os filhos para escolas privadas,
pagam duas vezes pela educação – uma vez sob a forma de impostos e outra diretamente.
(...) E ainda ofereceria o benefício adicional de tornar os salários dos professores sensíveis à
demanda de mercado. (Friedman, 1984, p. 89).
escolas para atraírem a sua clientela. Estaria estabelecida, assim, uma relação de melhor oferta de
ensino para a livre procura dos interessados.
Se nos níveis primário e secundário a subvenção de um sistema público de ensino
poderia ainda encontrar algumas justificativas, o mesmo não se daria, em absoluto, para com a
instrução de nível superior. Friedman justifica sua posição afirmando que se nos níveis
elementares de instrução há pouco ou quase nenhum conflito quanto à necessidade de um
conteúdo programático relativamente uniforme, em nível nacional, para todos os cidadãos, o
mesmo não ocorre em relação ao ensino superior, cuja falta de concordâncias não justificaria “a
imposição dos pontos de vista de uma maioria, e muito menos de uma pluralidade. A falta de
concordância é tal, nesta área, que já permite levantar dúvidas sobre a conveniência da
subvenção à instrução neste nível; e é bastante grande para impedir qualquer tentativa de defesa
da nacionalização na base da criação de um conjunto comum de valores” (Friedman, 1984, p.
93). Por outro lado, alega que a maioria dos colleges e universidades estatais e municipais
cobram anuidades muito inferiores que as instituições privadas, o que caracteriza uma
“concorrência desonesta” para com as últimas.
Interessante notar que esta alegação de Friedman inverte o seu princípio em relação
às desigualdades, situando seu objeto de análise na desigualdade existente entre instituições
públicas e privadas, e não sobre a desigualdade de acesso entre indivíduos àquelas. A suposta
desigualdade concorrencial entre instituições é mais importante que o que ela possibilita na
prática, ou seja, que indivíduos em condições desiguais possam, em igualdade de oportunidades,
aspirar ao ensino superior de acordo com suas possibilidades sócio-econômicas (princípio do
tratamento desigual entre desiguais, que aqui, estranhamente, parece não se aplicar).
Evidentemente, a “racionalidade” demonstrada por Friedman se aplica, antes de tudo,
ao mercado empresarial capitalista e à defesa de sua livre competitividade. Em segundo lugar, os
indivíduos, sem exceções, devem conquistar seus espaços segundo suas condições e aptidões,
arcando com o preço vigente no mercado. Para Friedman, as subvenções estatais de acesso ao
ensino implicam em que aqueles que pagam por seu próprio ensino estejam financiando também
o ensino de outros, o que seria uma distorção do sistema educacional norte-americano. Assim,
em sua opinião:
Qualquer subvenção deve ser passada aos indivíduos, para ser utilizada em instituições de
sua própria escolha, com a única condição de que sejam do tipo e natureza convenientes. As
escolas governamentais que continuarem em funcionamento deveriam cobrar anuidades que
cobrissem os custos educacionais. (Friedman, 1984, p. 94).
O investimento em seres humanos não pode ser financiado nos mesmos termos ou com a
mesma facilidade do investimento em capital físico. A produtividade do capital físico não
depende em geral da cooperação do que tomou emprestado. A produtividade do ser humano
está evidentemente presa a essa dependência. (Friedman, 1984, p. 96).
mais influentes do século XX. Foi também filósofo social e político de considerável
envergadura, e um reconhecido defensor da democracia liberal, oponente implacável do
“totalitarismo”. Nascido em Viena numa família de classe média de origem judaica, formou-se
pela Universidade de Viena, onde concluiu o doutoramento em filosofia em 1928, e onde
ensinou numa escola secundária entre 1930 e 1936. Em 1937, com a ascensão do nazismo,
emigra para a Nova Zelândia, onde tornou-se professor de filosofia no Canterbury University
College, na cidade de Christchurch. Em 1946, vai para a Inglaterra, tornando-se assistente de
lógica e de método científico na London School of Economics, sendo nomeado professor em
1949. Foi também nomeado cavaleiro pela Rainha Elisabeth II em 1965, e eleito para a Royal
Society em 1976. Aposentou-se da vida acadêmica em 1969, apesar de ter permanecido ativo
intelectual e politicamente até sua morte, em 1994. Popper recebeu ainda vários títulos em seu
campo, incluindo o prêmio Lippincott, da Associação Americana de Ciência Política, o prêmio
Sonning e o estatuto de membro da Sociedade Real da Academia Britânica, da London School of
Economics, do Kings College de Londres e do Darwin College de Cambridge.
Popper cunhou o termo racionalismo crítico para denominar a sua filosofia, cuja
designação é significativa quanto à sua rejeição ao chamado “empirismo clássico” e do
“observacionalismo-indutivista” em ciência. Apesar disso, filósofos da ciência e estudiosos do
pensamento popperiano, como Ernest Gellner (1925-1995) defendem que Popper, embora não se
haja considerado um “positivista”, se encontra claramente mais próximo desta perspectiva do
que de uma tradição metafísica ou dedutiva.
Popper defendeu intensamente que a teoria científica será sempre conjectural e
provisória. Não seria, portanto, possível confirmar a veracidade de uma teoria pela simples
constatação de que os resultados de uma previsão com base na mesma tenham sido verificados.
Essa teoria deverá gozar apenas do estatuto de uma teoria que, a princípio, apenas não foi
contrariada pelos fatos. Daí Popper estabelecer, como principal postulado de sua teoria da
ciência, que a experiência e as observações do mundo real podem e devem buscar por provas da
falsidade da referida teoria, e não por sua confirmação. Este processo de confronto da teoria com
as observações poderá provar a falsidade da teoria em questão. Nesse caso há que se eliminar a
teoria que se provou falsa, e procurar uma outra teoria para explicar o fenômeno considerado.
Este princípio ficaria conhecido como princípio de falseabilidade e, muito provavelmente, seja
um dos elementos mais difundidos de sua teoria da ciência.
Este será um aspecto fundamental para sua definição de ciência. Científico é apenas
aquilo que se sujeita a este confronto com os fatos. Ou seja: só é científica a teoria que possa
sujeitar-se a ser “falseável” (refutável). Uma afirmação que não possa ser confrontada com a sua
67
veracidade pelo confronto com a realidade não é científica. Trata-se de mera especulação
metafísica. Nos diz Popper:
Começo, regra geral, as minhas lições sobre Método Científico dizendo aos meus alunos que
o método científico não existe. Acrescento que tenho obrigação de saber isso, tendo eu sido,
durante algum tempo, pelo menos, o único professor desse inexistente assunto em toda a
Comunidade Britânica.
[...] Tendo, então, explicado aos meus alunos que não há essa coisa que seria o método
científico, apresso-me a começar o meu discurso, e ficamos ocupadíssimos. Pois um ano mal
chega para roçar a superfície mesmo de um assunto inexistente. (Popper, 1987, Prefácio)
Para Popper a verdade é uma quimera inalcançável, sendo o estatuto atual das
ciências sempre provisório. Ao depararmos com uma teoria ainda não refutada pelos fatos e
observações, deveríamos, pois, nos dedicarmos a demonstrar a possibilidade de sua falsidade.
Einstein, segundo Popper, teria sido o melhor exemplo de um cientista que rompeu com as
teorias da Física estabelecidas, demonstrando suas limitações e apresentando possibilidades que
as ultrapassaram. Isso equivaleria ao falseamento de teorias tomadas como universais e
incontestes até então (Mesquita Filho, 2006, s/p)
Popper debruçou-se intensamente sobre a teoria marxista e com a filosofia que lhe
foi subjacente, de Hegel, retirando-lhes qualquer estatuto científico. O mesmo em relação à
psicanálise, cujas teorias subjacentes, em sua opinião, não são falseáveis, isto é, não se permitem
confrontar com os fatos.
Mas o que distinguiria o falseamento de Popper da tradicional verificabilidade
própria ao empirismo tradicional? Ernest Gellner, comparando o método científico de Karl
Popper com a visão baconiana da ciência, afirma, em "Relativism and the social sciences" que:
[...] a definição do método científico de Popper difere da versão baconiana de empirismo por
sua ênfase na eliminação em vez da ênfase na verificação. No entanto eles têm em comum
um determinado ponto: quer nós verifiquemos ou refutemos, de qualquer forma fazêmo-lo
com a ajuda de duas ferramentas e apenas duas: a lógica e a confrontação com os factos.
As teorias são julgadas por dois juízes: consistência lógica e conformidade com os factos. A
diferença entre os dois modelos situa-se apenas em saber se os factos condenam os
pecadores ou canonizam os santos. Para o jovem Popper havia alguns pecadores
apropriadamente certificados, mas nunca santos definitivamente canonizados. (Gellner,
1987, p. 157 – itálicos nossos)
Uma boa teoria ou lei científica é falseável justamente porque faz afirmações
definidas acerca do mundo. Uma boa teoria será aquela que faz afirmações de amplo alcance
acerca do mundo e que, ao ser testada, resista à falsificação. As teorias que tenham sido
falsificadas têm que ser rejeitadas, visto que, como afirma Popper, ao descobrirmos que a nossa
conjectura era falsa, aprendemos muito sobre a verdade e chegaremos mais perto dela.
Aprendemos com os nossos erros e acertos. Esta atitude de "vida ou de morte" choca com a
68
precaução recomendada pelo indutivista ingênuo. Segundo este, só as teorias que se podem
demonstrar é que são verdadeiras ou provavelmente verdadeiras e só essas devem ser admitidas
na ciência. O falsificacionista, em contraposição, reconhece as limitações da indução e a
subordinação da observação à teoria. Os segredos da natureza somente podem ser descobertos
com a ajuda de teorias engenhosas e perspicazes. Quanto maior for o número de teorias
conjecturadas que procuram enfrentar a realidade e quanto menor for o seu nível especulativo,
maiores serão as oportunidades de realizarmos importantes avanços na ciência. Não existirá o
perigo de assistirmos a uma proliferação das teorias especulativas, na medida em que aquelas
que representam descrições inadequadas do mundo podem ser eliminadas drasticamente em
função do resultado da observação ou de outras provas. A exigência da falsificabilidade das
teorias teria, por decorrência, que as teorias sejam estabelecidas e precisadas com clareza. No
dizer de Popper:
[...] só há um caminho para a ciência: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-
se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte os separe – a não ser que obtenhamos
uma solução. Mas, mesmo que obtenhamos uma solução, poderemos então descobrir, para
nosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que
talvez difíceis, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com um sentido, até ao fim dos
nossos dias. (Popper, s/d., p. 3).
O progresso da ciência exige que as teorias sejam cada vez mais falsificáveis e em
conseqüência tenham cada vez mais informação. Isso exclui, no entanto, que se efetuem
modificações nas teorias destinadas simplesmente a protegê-las da falsificação ou de uma
falsificação ameaçadora. Essas modificações, tal como a adição de mais um postulado sem
consequências que não tenham sido já comprovadas, são denominadas de modificações ad hoc.
O falsificacionista deve rejeitar as hipóteses ad hoc e estimular a proposta de
hipóteses audazes com melhorias potenciais em relação às teorias falsificadas. As confirmações
que são conclusões conhecidas de antemão são insignificantes. Se hoje em dia confirmamos a
teoria da gravitação universal de Newton atirando uma pedra ao solo, não contribuímos com
nada de valor para o progresso da ciência. Ao contrário, se amanhã confirmamos uma teoria
especulativa que implica que a atração entre dois corpos depende das suas temperaturas,
falsificando a teoria de Newton, teremos realizado um avanço importante no conhecimento
científico.
Popper atualiza e radicaliza o raciocínio de David Hume que se ligava, apesar de
tudo, ao indutivismo, por razões de ordem prática e psicológica. Um grande número de
enunciados singulares nunca permite inferir um enunciado geral. Em contrapartida, bastaria um
único enunciado geral preexistente. Pouco importa o grande número de cisnes brancos que
tenhamos observado; não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos.
69
(para Popper, marcada pela pretensão à previsibilidade e a busca por determinações históricas),
bem como a impossibilidade de qualquer engenharia social. Já o segundo trabalho trata de uma
análise sobre todos os pensadores que, desde Platão, defenderam idéias contrárias à sociedade
aberta (sociedade esta que tolera o poder crítico das pessoas).
Em A lógica das ciências sociais, Popper afirma que é impossível reduzir a
sociologia à psicologia. Assim como Hayek, Popper é, acima de tudo, contrário a toda e qualquer
forma de subjetivismo. Lembremos que em Hayek este princípio fica claro em sua recusa em
considerar os “motivos” ou razões pessoais que levam os agentes individuais a fazerem suas
escolhas ao atuarem no mercado. Basta, portanto, que se considere apenas as preferências
objetivas de tais indivíduos. Para os neoliberais as preferências não são subjetivas, mas sim, o
resultado de uma ordenação objetiva de opções e prioridades, sendo irrelevante as determinações
particulares (motivos) de tal ordenação (Gómez, 2003, p. 49).
Ainda nesta obra, Popper propõe a lógica da situação como único método objetivo
aceitável para as ciências sociais. O objetivo do mesmo seria, pois, o de explicar as condutas
individuais a partir exclusivamente da situação de sua atuação, sem recorrer a explicações
psicológicas. Em outros termos, “isto significa que o homem é concebido como perseguindo tais
ou quais fins objetivos em função de sua situação. É um método individualista, mas não
psicológico, e no qual se substituem as escolhas psicológicas por situações objetivas” (Popper,
1990, p. 134-135).
37
Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
72
Mesmo que a globalização pareça ser tão geral e espontaneamente associada à economia, e
não ao político, não é verdadeiramente de economia que se trata, mas do mundo dos
negócios, do business reduzido à especulação. Em compensação, é exatamente uma certa
política, o ultraliberalismo, que tenta — até agora com sucesso — liberar-se de toda
preocupação econômica verdadeira, desviando o sentido do termo “economia”, até aqui
ligado à vida das populações, limitado agora a definir apenas uma corrida ao lucro.
(Forrester, 2001, p. 17 – itálicos nossos na última frase).
nos quadrantes do capitalismo recente, sobretudo nos anos 1990; uma segunda, em que julgamos
temerário, entretanto, atribuir ao movimento neoliberal derivado de Mont Pèlerin a magnitude e
identificação generalizada com os percursos do capitalismo contemporâneo, que alguns estudos e
debates, geralmente coetâneos às primeiras manifestações e conseqüências da reconfiguração
capitalista do final do século XX, contingencialmente conferiram ao pensamento neoliberal; uma
terceira premissa, por fim, em que cremos haver incoerências entre determinados postulados
neoliberais e diversas políticas atribuídas ao mesmo — como por exemplo, a posição neoliberal
contra o estabelecimento de monopólios ou quaisquer formas de corporativismo, seja
empresarial, seja trabalhista, e a importância do papel do Estado para impedir as tendências
monopolistas (Hayek, 1990) e o posicionamento contrário a existência de agências de controle
monetário e de financiamento internacional (Friedman, 1994 e 2003).
Entretanto, há que se levar também em consideração o caráter essencialmente
idealista dos postulados neoliberais, idealismo que abstrai da realidade evidências contundentes
entre a indissociabilidade do Estado para com a garantia da apropriação privada, sempre tendente
à concentração, e não a uma distribuição generalizada de riquezas.38 A ascensão dos trustes e, na
fase presente, de verdadeiros oligopólios não se dissocia da lógica de acumulação e muito menos
do importante papel dos Estados capitalistas para sua consolidação. Hoje, Estados, oligopólios e
imperialismo fazem parte de um mesmo e único processo, como resultado de tendências do
modo capitalista há muito já descritas (ver Marx, 1867/1988a, p. 276-291; Lênin, 1919/2000a;
1917/ 2000b).39
Evidentemente, esse nosso posicionamento é totalmente tributário de todos os
debates e estudos em questão, valendo-se, portanto, da confortável posição daqueles que
usufruem os esforços interpretativos a posteriori dos fatos, em termos de suas contingências
históricas.
38
Lênin, por exemplo, em seu texto O Estado (1916) diz: “As formas de dominação do Estado podem variar: o
capital manifesta o seu poder de um modo onde existe uma forma e de outro onde existe outra forma, mas o poder
está sempre, essencialmente, em mãos do capital, quer com a existência do voto restrito ou outros direitos, quer se
trate de uma república democrática ou não; na realidade, quanto mais democrática for, mais grosseira e cínica é a
dominação do capitalismo. Uma das repúblicas mais democráticas do mundo são os Estados Unidos da América do
Norte, e, no entanto, em nenhum outro lugar (e quem tiver estado lá após 1905 provavelmente o saiba) é tam cru e
abertamente corrompido como na América do Norte o poder do capital, o poder de um grupo de multimilionários
sobre toda a sociedade. O capital, desde que existe, domina a sociedade inteira, e nenhuma república democrática,
nenhum direito eleitoral pode mudar a essência do assunto.” (LÊNIN, 2000a, p. 10-11)
39
Em Imperialismo: etapa superior do capitalismo (1917), Lênin considera que “o resumo da história dos
monopólios é o seguinte: 1) Décadas de 1860 e 1870, o grau superior, culminante, de desenvolvimento da livre
concorrência. Os monopólios não constituem mais do que germes quase imperceptíveis. 2) Depois da crise de 1873,
longo período de desenvolvimento dos cartéis, os quais constituem ainda apenas uma exceção, não são ainda
sólidos, representando ainda um fenômeno passageiro. 3) Ascenso de fins do século XIX e crise de 1900 a 1903: os
cartéis passam a ser uma das bases de toda a vida econômica. O capitalismo transformou-se em
imperialismo.”(LÊNIN, 2000b, p. 7-8).
75
Denominei este livro A teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, dando especial
ênfase ao termo geral. O objetivo deste título é contrastar a natureza de meus argumentos e
conclusões com os da teoria clássica, na qual me formei, que domina o pensamento
econômico, tanto prático quanto teórico, dos meios acadêmicos e dirigentes desta geração,
tal como vem acontecendo nos últimos cem anos. Argumentarei que os postulados da teoria
clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso em geral, pois a situação que ela
supõe acha-se no limite das possíveis situações de equilíbrio. Ademais, as características
desse caso especial não são as da sociedade econômica em que realmente vivemos, de modo
que os ensinamentos daquela teoria seriam ilusórios e desastrosos se tentássemos aplicar as
suas conclusões aos fatos da experiência. (Keynes, 1936/1988, p. 21 – itálicos nossos)
trabalhistas, isto se deveu acima de tudo à própria ação e lutas da classe trabalhadora e dos
partidos e movimentos revolucionários durante mais de um século de entraves.
Esta observação se presta, ao mesmo tempo, para esclarecer o leitor quanto ao fato
de que em hipótese alguma, neste trabalho, nos permitimos iludir acerca do período do Estado de
Bem-Estar Social (defendido pela social-democracia européia ou, de modo mais circunstanciado,
por R. Delano Roosevelt nos Estados Unidos pela criação e estatização da proteção social
estadunidense, mais conhecido por new deal). Longe disso, e como já tratamos na introdução
deste I Capítulo, tomamos esse período como próprio às trágicas conseqüências do estado de
guerra e da grande depressão da primeira metade do século XX:
Como posso aceitar uma doutrina que estabelece como sua bíblia, acima e além de qualquer
crítica, um manual econômico obsoleto que sei que é não apenas cientificamente errôneo,
mas também sem interesse ou aplicação para o mundo moderno? Como adotar um credo
que, preferindo a lama ao peixe, exalta o proletariado rude acima da burguesia e da
intelligentsia que, com todas as suas falhas, representam a qualidade na vida e certamente
carregam as sementes de todo avanço humano? Mesmo que precisássemos de uma religião,
como poderíamos encontrá-la no desordenado lixo das livrarias vermelhas? É difícil que um
filho instruído, honrado e inteligente da Europa ocidental encontre aí seus ideais, a menos
que tenha sofrido antes um estranho e terrível processo de conversão que tenha mudado
todos os seus valores. (J. M. Keynes, “A short view of Rússia” [1925], republicado em
Essays in persuasion. Nova York: Norton & Co., 1963, p. 300 – apud Mészáros, 1988/2004,
p. 60 – itálicos no original)
Não é preciso dizer que, se um intelectual socialista agisse do mesmo modo e se aventurasse
a descrever as receitas keynesianas de manipulação monetária capitalista como “o lixo
pseudocientífico das livrarias azuis”, ele seria instantaneamente excomungado por nossos
vigilantes “estudiosos” e expulso do mundo acadêmico sem muita cerimônia. Mas Keynes
— cuja ignorância da obra de Marx só é superada por seu ilimitado senso de superioridade
em relação àqueles que produzem tudo aquilo que a “qualidade de vida” honradamente
expropria para si — não somente pode se sair com tais tiradas ponposas e grosseiramente
“não-acadêmicas” com seu alvo, como ser, ao mesmo tempo, aclamado como o grande
exemplo de “objetividade científica” e a refutação final de Marx. Obviamente, o pensamento
que identifica os próprios desejos com a realidade não tem vergonha nem limites. (Mészáros,
op. cit., p. 60).
77
Quanto à luta de classes como tal, meu patriotismo local e pessoal, como os de qualquer um,
exceto uns poucos desagradáveis entusiastas, liga-se a meu próprio ambiente. Posso ser
influenciado pelo que me parece ser a justiça e o bom senso, mas a guesrra de classes vai me
encontrar do lado da burguesia educada. (J. M. Keynes, “Am I a Liberal?” In: Essays in
persuasion, p. 324 – apud Mészáros, 1988/2004, p. 61 – itálicos no original)
Em sua opinião, se o mundo ainda continua com problemas como uma “depressão
reinante” e a anomalia do “desemprego em um mundo repleto de carências” (idem, p. 373 –
apud Mészáros, 2004, p. 62), tal seria porque:
Por enquanto, a própria rapidez dessas mudanças [na eficiência técnica] está nos causando
danos e provocando problemas difíceis de solucionar. Os países que sofrem relativamente
mais são os que não estão na vanguarda do progresso. Estamos sendo afetados por uma
nova doença [...] isto é, o desemprego tecnológico [...]. Mas esta é somente uma fase
temporária de desajuste. Tudo isso significa que, a longo prazo, a humanidade está
solucionando seu problema econômico”40 (J. M. Keynes, “Am I a Liberal? In: Essays in
persuasion, p. 364 – apud Mészáros, 1988/2004, p. 62 – itálicos no original).
Não foi o que a história econômica revelou após estas palavras de Keynes, proferidas
ainda na década de 1930, é verdade, período talvez não tão proibitivo aos prognósticos
vanguardistas de Keynes e sua crença também inabalável na eficiência tecnológica como solução
para todos os males da humanidade. Contudo, como observa Mészáros, que “o conceito de
humanidade — que se considera prestes a solucionar o problema econômico — é limitado aos
países “progressistas” e às “vanguardas do progresso” (seus codinomes para designar os países
imperialistas dominantes). Isto, na visão de Mészáros, “sublinha a total irrealidade de seu
diagnóstico ‘científico’ ” (Mészáros, 2004, p. 62). E complementa:
Além disso, de acordo com o antigo postulado da economia política burguesa, segundo o
qual a própria natureza implantara a “motivação das riquezas” em todos os seres humanos,
Keynes afirma “que fomos claramente desenvolvidos pela natureza — com todos os nossos
impulsos e instintos mais profundos — para solucionar o problema econômico. Se o
problema econômico for resolvido, a humanidade estará privada de seu propósito tradicional
(Keynes, op. cit., p. 366 – apud Mészáros, 2004, p. 62).
Nesse sentido, esclarece o próprio Keynes a mudança positiva que advirá aos
indivíduos humanos, naturalmente determinados pela natureza à resolução de seus problemas por
meio de seus impulsos e instintos:
Quando a acumulação de riqueza já não for de alta importância social, haverá grandes
mudanças no código moral [...]. Estaremos então livres, afinal, para descartar todos os
costumes sociais e práticas econômicas que afetam a distribuição de riqueza e de
40
Nota de Mészáros: “...a humanidade está solucionando seu problema econômico” foi grifado por Keynes.
78
recompensas e penalidades econômicas, que agora mantemos a todo custo, por mais
desagradáveis e injustos que possam ser em si mesmos, por serem enormemente úteis para a
acumulação do capital [...]. Prestaremos honras àqueles que podem nos ensinar a aproveitar a
hora e o dia com virtude e bondade, as pessoas encantadoras que são capazes de colher um
gozo direto das coisas, os lírios do campo que não trabalham nem fiam. (Keynes, op. cit., p.
369-370 – apud Mészáros, 2004, p. 62-63).
O comentário de Mészáros...
Visto mais detidamente, no entanto, o discurso keynesiano sobre a miraculosa conversão do
ser que, por um instinto natural, é um ganhador-de-dinheiro — conversão que, segundo ele
prevê, deveria ocorrer cerca de um século depois de 1930 — aparece como uma opinião
inteiramente gratuita. Sem qualquer base e, mais do que isso, contra os argumentos sobre a
força da “natureza” que ele próprio havia enunciado poucas linhas antes, Keynes contrapõe
com arbitrariedade o mundo impotente do “dever ser” à realidade existente do que “é”,
sublinhando sua polaridade também pelo abismo temporal que coloca entre eles.
Em todo caso, a ilusória redenção quase religiosa proposta como real não é o verdadeiro
propósito do discurso de Keynes. Ele oferece o prêmio moral-religioso da “recompensa
final” aos indivíduos — para quem a terra prometida está no além, pois em cem anos estarão
todos mortos — com a condição de que troquem a busca numa possível mudança radical
num futuro não tão distante pelo seu adiamento para além de qualquer expectativa de vida
possível, aceitando assim com sua santa resignação a ordem estabelecida das coisas.
(Mészáros, 2004, p. 63).
E, retornando por fim a Keynes, em seu Ensaio sobre a persuasão, temos a seguinte
advertência imediatamente após o elogio aos lírios do campo:
Mas cuidado! Ainda não chegou a hora para isso. Durante pelo menos outros cem anos
devemos fingir para nós mesmos e para todos os outros que o bom é ruim e o ruim é bom,
porque o ruim é útil e o bom não é. A avareza, a usura e a prudência devem ser nossos
deuses ainda por algum tempo. Somente elas podem nos tirar do túnel da necessidade
econômica para a luz do dia. (Keynes, op. cit., p. 372 – apud Mészáros, 2004, p. 63).
Supomos, por não fazer parte de nossos objetivos estabelecermos aqui uma extensa
análise das posições liberais de Keynes, que os elementos discursivos levantados por István
Mészáros e o diálogo que acaba por estabelecer com Keynes sejam por si suficientes para não só
ilustrarmos o posicionamento ideológico deste economista e sua total identificação com as fontes
mais genuínas do pensamento liberal clássico (o que o identifica suficientemente com os liberais
de Mont Pèlerin, por exemplo) como também insistir na seguinte questão, já indicada em nosso
tópico anterior (vide 2.3): Em que medida os teóricos e as teorias liberais foram ou podem ser
determinantes nos rumos do capitalismo? Podem estas produções ser compreendidas como
verdadeiros postulados científicos com poder de sistematização e ordenamento desse modo de
produção? Ou possuem, no máximo, o escopo de tentar tornar o capitalismo mais legítimo que
inteligível? Enfim, o capitalismo pode, de fato, obedecer a alguma teoria? Se assim for, e com
grande estranhamento, a fragilidade das teorias liberais às colocam à mercê do grande postulado
de Karl Popper, ou seja, elas não podem ser falseadas porque a dinâmica de seu objeto não é
metodologicamente apreensível. Logo, todas as teorias liberais tornam-se refutáveis do ponto de
79
CAPÍTULO II
influenciado e fundado. E são nossos objetos, aqui, a constituição de uma sociedade de mercado,
assentada na instituição da propriedade privada capitalista e de um mercado de trabalho
assalariado competitivo. Nosso objetivo é historicizarmos a consolidação da sociedade burguesa
fabril e os fatores que a tornaram, de fato, possível.
É sobre a evolução deste processo que nos deteremos, ainda que sinteticamente, no
primeiro item deste capítulo, isto é, sobre as condições que acompanharam a formação de uma
classe trabalhadora para o modo capitalista em suas fases pré-industrial e industrial,
propriamente ditas. Além de brutalmente baseadas na expropriação de terras, meios de trabalho e
na constituição de latifúndios, esse processo teve conseqüências sobre o que Castel (2001)
denomina “questão social” com desequilíbrios os mais variados, aos quais a historiografia liberal
em geral não faz referências.
No tópico seguinte, e de forma intrínseca, nos remeteremos à conformação dos
mercados concomitantemente aos mesmos processos constitutivos e expropriadores aos quais a
Europa ocidental assistiu dos séculos XVII ao XIX. Trata-se do que Karl Polanyi (1944/2000)
denominou The great transformation, que redundaria na inversão do estatuto milenar dos
mercados, submetidos até então à vida econômica comunitária, para o de “mercados livres”, base
econômica do capitalismo moderno e que passa a submeter a tudo e a todos aos seus desígnios,
tragados inapelavelmente pelo o que cunhou, metaforicamente, como o “grande moinho
satânico”.
Como terceiro item a ser considerado, objetivamos resgatar os principais elementos
da relação entre trabalho e educação e, mais especificamente, o início paradoxal das relações da
educação liberal com um de seus próprios corolários centrais: a educação para todos.
Analisamos, juntamente com Mariano Fernández Enguita e Mario A. Manacorda, os dilemas da
burguesia, agora no poder, acerca da pertinência e de qual educação deveria ser concedida à
população trabalhadora.
No quarto e último tópico, resgatamos a pontual crítica filosófica, política e
pedagógica de Antonio Gramsci ao assédio do capital e do pragmatismo da escola ativa na
transição dos séculos XIX e XX sobre a educação — e, mais especificamente, sobre o ensino
profissionalizante (relação, portanto, entre trabalho e educação). Procuramos evidenciar as
contradições então existentes entre a educação, enquanto processo de socialização de saberes
clássicos e históricos humanos, e os imperativos próprios à lógica produtivista e mercadológica
do capital — em que se destacam a necessidade de submissão das classes trabalhadoras à
disciplina, valores e novos ícones do mercado de trabalho assalariado, evidenciados nos tópicos
82
XVI, e teve, como condição, a abolição da forma de servidão feudal e a decadência de cidades
até então soberanas:
O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os revolucionamentos que
servem de alavanca à classe capitalista em formação; sobretudo, porém, todos os momentos
em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de
subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres como os pássaros. A
expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o
processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias
fases em seqüência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas a Inglaterra, que, por
isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica (Marx, 1988d, p. 253).
Não penso aqui o trabalho enquanto relação técnica de produção, mas como um suporte
privilegiado de inscrição [de indivíduos e grupos] na estrutura social. Existe, de fato, como
se verificará a longo prazo, uma forte correlação entre o lugar ocupado na divisão social do
trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de proteção que “cobrem”
um indivíduo diante dos acasos da existência. Donde a possibilidade de construir o que
chamarei, metaforicamente, de “zonas” de coesão social. Assim, a associação trabalho
estável-inserção relacional sólida, caracteriza uma área de integração. Inversamente, a
ausência de participação em qualquer atividade produtiva e o isolamento relacional
conjugam seus efeitos negativos para produzir a exclusão, ou melhor, como vou tentar
mostrar, a desfiliação. A vulnerabilidade social é uma zona intermediária, instável, que
conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade. (Castel,
2001, p.24 – itálicos nossos).
Castel realiza uma retrospectiva documental, com sólida riqueza de dados, de toda a
dramática ascensão do modo capitalista apoiado sobre uma força de trabalho inicialmente
cooptada sob a égide de uma relação servil e tutelar para a produção (portanto, ainda própria ao
modo feudal de dependência) até o advento do regime assalariado e contratual de trabalho,
propriamente dito. Isto nos permite incorporar ao clássico inventário de Karl Marx, um
continuum de fatos e processos que certamente enriquecem nossos conhecimentos sobre a
84
evolução das questões sociais que envolveram a consolidação da sociedade industrial capitalista
e da própria classe trabalhadora, desde os agrupamentos sociais pré-capitalistas.
Segundo o autor, “[...] no Ocidente cristão essa estrutura fechada constituiu a
organização social dominante da época feudal, marcada pela sacralização do passado, pela
preponderância da linhagem e dos laços de sangue, pelo apego a relações permanentes de
dependência e de interdependência enraizadas em comunidades territoriais restritas.” (Castel,
2001, p. 49). Assim, cada indivíduo encontra-se no interior de uma rede complexa de trocas em
função de uma estrutura de duplo sentido: a dependência em relação ao senhor eclesiástico ou
laico e a inscrição no sistema das solidariedades e das coerções da linhagem e da vizinhança.
Porém, mesmo nas sociedades mais reguladas pelas interdependências tradicionais, podem
ocorrer dificuldades nos processos de integração primária. Por exemplo, a situação de um
órfão rompe o tecido de assistência familiar, uma enfermidade ou um acidente pode tornar o
indivíduo provisória ou definitivamente incapaz de manter seu lugar no sistema regulador de
trocas que asseguram o equilíbrio do grupo ao qual pertence, ou, ainda, a indigência
completa pode colocá-lo numa situação de dependência sem interdependência.
A desfiliação, tal como a entendo, é, num primeiro sentido, uma ruptura desse tipo em
relação às redes de integração primária; um primeiro desatrelamento com respeito às
regulações dadas a partir do encaixe na família, na linhagem, no sistema de
interdependências fundadas sobre o pertencimento comunitário. Há risco de desfiliação
quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir de sua
inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é insuficiente para
reproduzir sua existência e para assegurar sua proteção. (Castel, 2001, p. 49-51).
Quando surge uma dificuldade no sistema das proteções mais próximas, a sociabilidade
primária é menos rompida do que distendida, e o sucesso das operações de recuperação
depende de sua elasticidade, que não é infinita. Podem ocorrer demissões, abandonos,
rejeições. As redes primárias de solidariedade podem ser desequilibradas por tais
sobrecargas e romper-se. Essa assistência também pode ter um preço muito alto:
superexploração, pequenas perseguições ou um desprezo pesado. A vida do idiota da aldeia,
por exemplo, tolerada e em parte sustentada por sua comunidade, nem por isso é um paraíso.
(Castel, 2001, p. 51-52).
É o universo da floresta e das charnecas, freqüentado pelo eremita, pelo cavaleiro errante,
pelos carvoeiros, pelos salteadores, mas também pelas forças mágicas e maléficas. Mas estão
86
Não é qualquer um, de qualquer modo, em qualquer lugar, que tem a responsabilidade desse
tipo de problemas mas, sim, indivíduos ou grupos mandatados, ao menos parcialmente, para
fazê-lo e identificados como tais. Por exemplo, o pároco, o fabriqueiro, um oficial
municipal... já são, à sua maneira, “funcionários” do social à medida que seu mandato é, ao
menos em parte, assegurar esse tipo de atividade especial. A delimitação de uma esfera de
41
Na acepção do autor, “sociedades sem social” na medida em que são sociedades humanas que não dispõem ou
prescindem de mecanismos institucionalizados, especializados quanto à resolução de questões globais.
87
Castel nos lembra, em seguida, que a Europa Medieval fora palco de desastres
naturais, sobretudo ligados a epidemias, que desmantelaram, sobretudo do século XIII ao XIV, o
equilíbrio societário até então existente. Somente a Grande Peste que assolou o continente por
volta de 1350, dizimou cerca de 1/3 da população européia (Castel, 2001, p. 43). Este fato teria
contribuído, em grande medida, para o desequilíbrio da rede de sociabilidade primária, que se
aplica, como vimos, às relações de dependência feudal e interdependência entre pares das aldeias
de então, sem, contudo, dependerem ainda de instituições específicas. O resultado mais imediato
de um tal fenômeno, desconsiderando-se suas conseqüências sanitárias e religiosas, fora a
escassez de trabalhadores válidos, de alimentos e o aumento da mobilidade social. É a partir daí
que pelo menos duas novas categorias (ou figuras sociais) passam a proliferar e se tornam um
88
verdadeiro flagelo entre ingleses e europeus continentais. Trata-se de um aumento das figuras do
indigente e do vagabundo.
Obviamente, a miserabilidade do ocidente cristão não é novidade até então e, para
além de se tratar de uma condição sócio-econômica, é, também, uma questão teológica, em que o
martírio do corpo e da alma é exaltado como caminho para superar-se as tentações materiais e
assegurar-se um lugar digno post-mortem. A concepção cristã medieval é sem dúvida
responsável por uma concepção sócio-antropológica da assistência, mas opera também sobre a
distinção entre “bons” e “maus” pobres. Embora os preceitos cristãos eclesiásticos valorizem a
sublimação das necessidades materiais e uma relação asceta com as necessidades do corpo com
vistas ao conforto no porvir espiritual, tais valores implicam também em classificações
discriminatórias entre os dignos e os indignos de comiseração. Logo, de caridade e assistência. A
miséria pode ocorrer por vícios e, o principal, pela preguiça. Assim, em toda a sociedade “o
pobre deve demonstrar muita humildade e exibir provas convincentes de seu infortúnio para não
ser suspeito de ser um ‘mau pobre’” (Castel, 2001, p. 84). Este processo de discriminação,
entretanto, não guarda seus fundamentos apenas na concepção cristã de pobreza, já que:
Tais práticas formam o núcleo do complexo tutelar cuja jurisdição, como se verá, ultrapassa
a assistência, visto que tenta, também, regular as relações de trabalho, e que ultrapassa
igualmente o quadro de sociedades pré-industriais, visto que inspira as diferentes formas de
paternalismo filantrópico que vão atravessar o século XIX. (Castel, 2001, p. 86).
89
Mas o critério de aptidão ou não para ao trabalho, daqui por diante, tornar-se-á cada
vez mais determinante para a classificação de auxílios. São atendidos, sobretudo, os que não
podem, por si mesmos, suprir suas necessidades, por serem incapazes de trabalhar:
Será por volta da metade do século XIV, entretanto, que a situação da mendicância,
dos indigentes, inaptos, carentes e dos indesejáveis de todos os tipos foge aos mecanismos de
assistência já operantes. Isto implica no surgimento de uma categoria cuja condição escapa ao
90
controle social, formada por indivíduos ocupam, em tal sociedade, a posição do que Castel
denomina supranumerários: “não têm nenhum lugar determinado na estrutura social nem em seu
sistema de distribuição das posições reconhecidas, nem sequer o que faz dos indigentes
assistidos uma clientela integrada. São os ancestrais dos supranumerários de hoje. Não por uma
identidade de condição, é claro, mas por uma homologia de posição.”42 (Castel, 2001, p. 98). O
que acontece, mediante tais fatos, na sociedade de meados do século XIV, é uma propensão à
mobilidade numa formação social que não estaria disposta a aceitá-la e que a ela se oporá por
todos os meios:
Essa comoção põe em primeiro plano um novo perfil de indigentes. Em 1349,
Eduardo III, rei da Inglaterra, promulga o decreto conhecido como o Estatuto dos Trabalhadores
(Statum serventibus, Statute of Labourers). Reproduzimos aqui suas principais disposições:
42
Mas não seriam estes os “socialmente excluídos” de hoje? Contudo, em relação ao tema muito em voga da
“exclusão”, Castel objeta: “Mas, se a ‘questão social’ já se apresenta antes de sua primeira formulação explícita no
século XIX, não volta também a se apresentar depois que a problemática comandada pelas peripécias da integração
da classe operária deixou de ser determinante? É verdade que essa seqüência, que se situa entre a primeira metade
do século XIX e os anos 60 do século XX, está em via de desaparecer. É verdade, também, que não há mais palavra
para dar conta da unidade da multiplicidade dos ‘problemas sociais’ que a substituíram — donde a moda da noção
de exclusão, cuja indiferenciação vem recobrir uma infinidade de situações infelizes sem tornar inteligível seu
pertencimento a um gênero comum. Realmente, que coisa partilham um homem que há muito está desempregado,
recolhido à esfera familiar, com mulher, apartamento e televisão, e o jovem cuja ocupação penosa é feita de
andanças sempre recomeçadas e de explosões de raiva abortadas? Eles não têm nem o mesmo passado, nem o
mesmo futuro, nem a mesma vivência, nem os mesmos valores. Não podem alimentar um projeto comum e não
parecem suscetíveis de superar sua angústia por meio de formas de organização coletiva. [...] São menos excluídos
do que abandonados, como se estivessem encalhados na margem, depois que a corrente das trocas produtivas se
desviou deles.”(itálicos nossos). Por esses e outros motivos, Castel prefere considerar que estaríamos diante de
“‘inúteis para o mundo’, pessoas e grupos que se tornaram supranumerários diante da atualização das competências
econômicas e sociais”. [...] “os supranumerários nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir
competências conversíveis em valores sociais. São supérfluos. [...] Assim, inauguram sem dúvida uma problemática
teórica e prática nova. Se, no sentido próprio do termo, não são mais atores porque não fazem nada de socialmente
útil, como poderiam existir socialmente?” (Castel, 2001, p. 32-33 – itálico no original). Assim sendo, Castel não
considera a noção de “exclusão social” suficiente para expressar o fenômeno que se abate nas sociedades atuais, pois
o problema não está no seu suposto antagônico, a “inclusão social”, já que simplesmente não há onde ou em quê
sejam requeridos ou incluídos. Por esse motivo são supranumerários, até mesmo em relação a um possível exército
de reserva, pois não se podem classificar sequer nesta categoria economicamente “justificável” do ponto de vista do
mercado.
91
e receberá, pelo lugar que será obrigado a ocupar, somente o pagamento em gêneros, alimento ou
salário que estava em uso durante o vigésimo ano de nosso reinado, ou durante um dos cinco ou
seis anos precedentes.
Que fique entendido que o senhor sempre será preferido a qualquer outro por seus próprios servos
e meeiros, de tal forma que estes sejam mantidos a seu serviço - mas que, entretanto, os senhores
não serão obrigados a conservá-los a seu serviço além do tempo necessário; e, se um homem
ou uma mulher, sendo assim requisitado para servir, não o fizer, este fato sendo atestado por dois
homens dignos de fé diante do xerife, do bailio, do senhor ou do preboste da cidade, ele ou ela
será imediatamente levado por esses, ou por um desses, à prisão mais próxima onde será
mantido sob rigorosa vigilância até que se tenha certeza de que servirá sob uma das formas
enunciadas acima.
Que, se um trabalhador ou serviçal deixar seu serviço antes do tempo requerido, será preso.
Que os antigos salários, sem nenhum acréscimo, serão dados aos trabalhadores.
Que, se o senhor de uma cidade ou de um domínio infringir de algum modo esta
disposição, pagará uma multa equivalente ao triplo da soma [dada].
Que, se um artesão [artificer] ou um operário receber um salário mais alto do que aquele que lhe
é devido, será preso.
Que os alimentos serão vendidos a preços razoáveis. Igualmente porque muitos mendigos
válidos [able-bodies beggars], quanto mais puderem viver de esmolas, recusam-se a trabalhar e
entregam-se à preguiça e ao vício e, às vezes, ao roubo ou a outras abominações, ninguém
poderá, sob pena de sanções, dar nada a título de piedade ou de esmola, àqueles que podem trabalhar
ou encorajá-los em suas inclinações [desires], de tal forma que sejam obrigados a trabalhar
para viver.” (J.-C. Ribton-Turner, History of Vagrants and Vagrancy, and Beggars and
Begging - citado por Castel, 2001, p. 98).
Funciona a partir de dois registros e traça uma linha divisória entre dois tipos de
trabalhadores. A todos os que estão inscritos no sistema instituído dos ofícios de artesão ou
que servem a um senhor, domésticos, empregados de casa, pessoal dos domínios
eclesiásticos e laicos, ou que, de condição livre ou servil, são ligados a uma terra de onde
retiram sua subsistência sob a dependência de um proprietário, o decreto se dirige em caráter
preventivo: que permaneçam fixos em seu local de trabalho e que se contentem com sua
condição e com a retribuição a ela vinculada. Correlativamente, o decreto condena o fluxo,
em via de formação, dos indivíduos “libertados” ou que se libertam das regulações
tradicionais, simultaneamente os que estão sem emprego e os que se situam em posição de
mobilidade quanto ao emprego. O decreto responde à constatação de que um certo tipo de
populações não encastradas nas estruturas da divisão do trabalho constitui, de agora em
92
Esta sentença, sem direito a recursos, era de aplicação imediata. A pena de morte
será o núcleo resistente da “legislação sanguinária” aplicada contra a vagabundagem no século
93
Mas a jurisdição dos prebostes, que recebiam um prêmio por cada prisão, aplicou a medida
com tal zelo, que esta suscitou um descontentamento popular intenso e foi revogada em julho
de 1722. Porém, continuou sendo uma referência freqüente até o fim do Antigo Regime para
numerosos “fazedores de projetos”, preocupados em “purgar o reino da mendicância”,
tornando os vagabundos “úteis ao Estado”. O problema nunca foi resolvido com clareza,
porque a deportação enfrentou também a dupla hostilidade dos partidários do mercantilismo
(Richelieu era um opositor), que temiam ver o “reino se despovoar”, e dos devotos, chocados
pelo fato de que a “escória do povo” fizesse o papel de propagadores da fé nas colônias.
(Castel, 2001, p.125).
Desse modo, o antigo Regime, em via de se acabar, é ainda caracterizado por um intensa
caça aos vagabundos e aos mendigos válidos. A jurisdição dos prebostes é motivada por um
prêmio de três libras para cada captura. Necker estima em 50.000 o número de prisões em
1767. Entre 1768 e 1772, 111.836 pessoas “entraram nos depósitos”, contra 1.132
condenações às galeras. São colocados em prédios insalubres, sem higiene nem cuidados
médicos. A mortalidade nesses locais é espantosa: 21.339 mortes durante os mesmos quatro
anos 1768-1772, É claro que, como no hospital geral, o trabalho é uma ficção nesses
morredouros. (Castel, 2001, p. 127).
43
Castel enfatiza sua preferência pelo termo “desconversão” em relação a outros, como “decomposição”
considerado exagerado já que o suporte da sociedade não teria ruído, ou “crise”, considerado muito vago (Castel,
2001, p. 109).
94
Na Inglaterra, desde um decreto real de 1547, há o mais radical tratamento para que
os vagabundos trabalhem. Em sendo essas pessoas consideradas ociosas ou inúteis da
comunidade e inimigas da coisa pública, Eduardo VI ordenou que se prendesse qualquer pessoa
que, sem meios de subsistência, permanecesse sem atividade por mais de três dias. Os “bons
cidadãos” eram convidados a levarem esses indivíduos à presença de juízes para serem marcados
com ferro em brasa com a letra V na testa. Após isso, o apresentador (denunciante) apossava-se
de tal pessoa tendo-a por escrava durante dois anos seguidos:
A questão que se nos apresenta, após esse retrospecto histórico, passa a ser, agora, de
caráter sociológico. Ela se resume no seguinte: quem são, de fato, os vagabundos que proliferam
em toda a Europa ocidental nesse período? (lembrando que o leste europeu, por motivos variados
que não poderemos tratar aqui, iria manter vivos a estrutura e funcionamento tipicamente feudal
até a transição do século XIX para o século XX). Assim, Castel apresenta um registro do perfil
dos indivíduos enviados ao depósito de mendicância de Soissons, que nos é bastante revelador:
Presume-se que os depósitos, como já foi dito, devam receber exclusivamente os vagabundos
e os assimilados (mendigos válidos). O de Soissons, à véspera da Revolução Francesa, tem
854 internados. Entre eles, 208 indivíduos que o diretor classifica como “muito perigosos”,
“flagelos da sociedade”, a saber, 28 vagabundos “acabados” e 32 vagabundos “sem asilo”,
cerca de 50 loucos e loucas, 20 detidos por ordem do rei, 32 militares “sem asilo ou
desertores”. Cerca de 60 “verdadeiros” vagabundos, portanto, segundo a representação da
época. Porém, sobretudo dois grandes grupos constituem mais de dois terços dos efetivos do
depósito: 256 “trabalhadores braçais”, “exceto um notário”, e 294 “trabalhadores rurais sem
recursos”. A grande maioria dos albergados do depósito é então composta, paritariamente,
por representantes de um subproletariado urbano e rural. Esses operários estão, sem
nenhuma dúvida, fora do trabalho. Serão, por isso, mendigos e vagabundos “profissionais”?
O mais provável é que a maior parte deles represente o que hoje chamaríamos de
desempregados subqualificados em busca, de modo mais ou menos convincente, de um
emprego. É claro que, para falar de desemprego stricto sensu, será preciso esperar que
estejam reunidas as condições constitutivas da relação salarial moderna, no início do século
XX. No entanto, o fato é que já existem desde antes [...] situações de não-ocupação
resultantes de uma organização do sistema produtivo baseada na atribuição do trabalho e não
na liberdade do trabalho. (Castel, 2001, p. 129).
95
Esta involução para a condição de assalariado é geral nos ofícios, como no caso da
fabricação da lã ou da seda, para as quais o capitalismo mercantil dita sua lei mais facilmente
e mais cedo. Mas muitos outros artesãos independentes correm o mesmo risco em virtude da
freqüência das crises nesse tipo de sociedade. Porque as crises de subsistência das sociedades
pré-industriais repercutem sobre a produção artesanal. A “carestia” dos preços alimentares,
provocada por uma ou várias colheitas ruins, acarreta uma queda da demanda por produtos
“industriais”. A expansão do mercado nacional e internacional é outro fator de fragilização
da posição dos produtores diretos: suas reservas são, com muita freqüência, demasiado
fracas para amortecer as flutuações desses mercados. Apesar disso, o processo de
pauperização e de colocação sob tutela não desemboca numa condição salarial franca,
porque o que o artesão arruinado vende é a mercadoria que fabricou e não sua força de
trabalho. (Castel, 2001, p. 188).
Esta situação mista apresenta vantagens para o empregador: os salários podem ser
particularmente baixos, dado que o operário dispõe de rendas anexas. Também apresenta
inconvenientes, pois o operário-camponês é menos dependente da fábrica, pode ausentar-se,
seguir seu próprio ritmo de trabalho. A docilidade do operário às exigências da produção
industrial e sua fidelidade à fábrica só se imporão tardiamente, no século XIX. (Castel, 2001,
p.193).
“A mais sagrada e a mais inviolável de todas as propriedades é a de sua própria atividade [do
trabalhador], porque está na força e na habilidade de suas mãos; e impedi-lo de empregar
esta força e esta habilidade da maneira que julgar mais conveniente, enquanto não prejudicar
ninguém, é uma violação manifesta dessa propriedade primitiva. É uma usurpação gritante
em relação à liberdade legítima, tanto do operário quanto dos que estariam dispostos a dar-
lhes trabalho.” (Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la richesse des
nations, p. 252 - citado por Castel, 2001, p. 232).
Desse modo, segundo Castel, a verdadeira descoberta que o século XVIII promove
não seria simplesmente a necessidade do trabalho, mas sim, a necessidade da liberdade de
trabalho, o que implicaria na destruição dos dois modos de organização do trabalho até então
dominantes, o trabalho regulado e o trabalho forçado. Daí o fato de o movimento iluminista se
contrapor às formas tutelares e de contenção do trabalho livre, ignorando ou dissimulando,
todavia, que essa liberdade para o trabalho pudesse ocultar uma relação de desigualdade entre
proprietários e trabalhadores, e dissimular uma estrutura que, por sua natureza de apropriação do
produto do trabalho com vistas à acumulação de riquezas (a crescente avidez por lucro), está
fundada na exploração dos despossuídos. É assim que, a partir de 1776 (data coincidente com a
Independência dos Estados Unidos e a publicação de A Riqueza das Nações de Adam Smith), a
liberdade torna-se o tema preponderante de todas as manifestações políticas e filosóficas, ainda
que, na origem, seus verdadeiros motivos sejam eminentemente econômicos. Às vésperas do
século XIX, a ideologia liberal já estabeleceu que a liberdade de trabalho deve libertar também a
iniciativa privada, o gosto pelo risco e pelo esforço, o sentido da competição:
[...] já está agindo uma comoção revolucionária que funda a necessidade de trabalhar na
natureza e não na sociedade. A liberdade do trabalho tem a legitimidade de uma lei natural,
ao passo que as formas históricas de sua organização são contingentes. Disso resulta que,
como até o presente foram colocadas sob o registro da coerção, essas formas são arbitrárias e
despóticas. A história desviou uma exigência racional, porque natural, impondo “o interesse
particular contra o interesse da sociedade”. A sociedade historicamente organizada sobre a
base de privilégios é particularista. Legitimou corpos intermediários inspirados pelo espírito
de monopólio. É urgente abolir essa herança do mundo velho para deixar as leis naturais
intervirem. O livre acesso ao trabalho e a instituição de um livre mercado do trabalho
marcam o advento de um mundo social racional por meio da destruição da ordem social
99
“Devemos, sobretudo, proteção a essa classe de homens que, tendo apenas seu trabalho
como propriedade, têm ainda mais a necessidade e o direito de utilizar em toda a sua
extensão os únicos recursos de que disponham para subsistir.
Todas as classes de cidadãos são privadas do direito de escolher os operários que gostariam
de empregar e das vantagens que lhes daria a concorrência pelo preço baixo e pela perfeição
do trabalho.” (A. R. J. Turgot, Édit portant suppression des jurandes”. p. 376 - citado por
Castel, 2001, p. 236).
“O simples operário que só tem seus braços e seu empenho não tem nada enquanto não
consegue vender a outros sua pena. Vende-se mais ou menos caro; mas o preço mais ou
menos alto não depende só dele: resulta do acordo que é feito com quem paga seu trabalho.
Este o paga o menos caro possível: como pode escolher entre um grande número de
operários, prefere quem trabalha pelo menor preço. Então os operários são obrigados a
baixar seu preço em concorrência uns com os outros. Em todos os tipos de trabalho, deve
acontecer, e de fato acontece, que o trabalho do operário se limite ao que lhe é necessário
para assegurar sua subsistência.” (A.R.J. Turgot, Formation et distribuition des richesses. p.
537 - citado por Castel, 2001, p. 272).
Segundo Castel, a economia política inglesa já havia começado uma reflexão sobre a
necessidade suscetível de subverter a idéia de natureza e de desvelar a perversidade do contrato
de trabalho. “Eliminadas as proteções tradicionais, corre-se o risco de fazer aflorar não a
racionalidade das leis naturais mas, sim, o poder biológico dos instintos: os carentes serão então
impelidos pela necessidade natural, isto é, pela fome.” (Castel, 2001, p. 273). Trata-se de, sobre
o pano de fundo da reciprocidade jurídica do contrato de trabalho, em que se põe em destaque
uma relação de “alteridade” das posições sociais dos contratantes, instaurar-se um verdadeiro
campo de batalha permanente, já que o contrato introduz uma dimensão temporal em tais
relações: o empregador pode esperar para contratar “livremente”, pois não está sob o domínio da
necessidade. O trabalhador é determinado biologicamente a vender sua força de trabalho, pois
terá sempre a urgência de, ao menos alimentar-se para não desfalecer. Torna-se, pois, uma
necessidade imediata a obtenção de seu salário para sobreviver. Por outro lado, o empregador,
sob a égide do contrato de trabalho, desvencilha-se do que antes a tutela lhe impunha: manter os
100
trabalhadores que lhe eram remetidos oficialmente, e não poder contar com o necessário
empenho de seus tutelados. A responsabilidade pela própria sobrevivência estará definitivamente
transferida, daqui por diante, ao próprio trabalhador e sua “disposição” em se manter produtivo,
tanto quanto competitivo em relação a seus concorrentes. O mecanismo do regime contratual
assalariado já é efetivamente o novo regulador das relações de trabalho da nascente sociedade
industrial, e embora vá conviver com mecanismos ainda servis e, no caso das colônias do novo
mundo, escravistas, na medida em que se consolida com o modo de produção industrial,
implicará na crescente abolição destas formas de trabalho, sempre sob o argumento do ideal
burguês da liberdade de trabalho e de mercado.
Liberdades que, por serem essencialmente abstratas, terão de ser garantidas a bem do
novo modo de organização e relações do trabalho. O Estado, que já cumpria esta tarefa em
relação à institucionalização tutelar e social “assistencial”, regulará agora as conversões
necessárias à nova organização produtiva e social. Por isso precisa ser apropriado pela nova
classe já consolidada e, para isso, deverá ser destituído dos poderes seculares que o conduziram,
isto é, a nobreza e o clero. As bases materiais para este segundo movimento do capitalismo já
existem e de modo algum podem conviver com tradições impeditivas à produção e circulação de
mercadorias, sobretudo a nova mercadoria por excelência, única capaz de produzir riqueza: o
trabalhador “livre”. A Revolução Francesa (1789) e, antes dela, a Independência dos Estados
Unidos (1776), não só foram conseqüências das novas bases materiais de produção como
tiveram a função histórica de rompimento com o estatuto do Antigo Regime, substituindo seus
códigos sociais por aqueles que agora se tornavam imperativos à liberdade, à democracia e ao
exercício de ambos, ainda que sacramentados pelo resgate do modelo republicano e do princípio
da cidadania greco-romana com seus principais adereços — fenômeno que Marx, por exemplo,
examinará criticamente em O 18 brumário de Louis Bonaparte, no que se refere aos
desencadeamentos essencialmente antidemocráticos, ditatoriais e imperialistas que se sucedem à
Revolução Francesa, após a conquista do poder pelas forças burguesas.
Denota-se, de todo o extenso processo até aqui descrito, que ao nos referirmos à
expropriação (em todos os sentidos) dos meios de subsistência das populações aldeãs, e, por
outro lado, a apropriação desses meios de subsistência pela coerção do poder exercido pela
burguesia e nobres convertidos ao modo de produção e organização social industrial capitalista,
o advento de duas novas estruturas fundamentais: primeiro, a apropriação privada dos meios de
101
no conceito do Homo economicus. Segundo Polanyi, poderia-se dizer que “nenhuma leitura
errada do passado foi tão profética do futuro”:
Na verdade, até a época de Adam Smith, essa propensão não se havia manifestado em
qualquer escala considerável na vida de qualquer comunidade pesquisada e, quando muito,
permanecia como aspecto subordinado da vida econômica. Uma centena de anos mais tarde,
porém, já estava em pleno funcionamento um sistema industrial na maior parte do planeta e,
prática e teoricamente, isto significava que a raça humana fora sacudida em todas as suas
atividades econômicas, se não também nas suas buscas políticas, intelectuais e espirituais,
por essa propensão particular. (Polanyi, 2000, p. 63).
Assim, na segunda metade do século XIX, Herbert Spencer pôde equacionar o prin-
cípio da divisão do trabalho com a barganha e a troca e, cerca de cinqüenta anos mais tarde,
Ludwig von Mises e Walter Lippmann repetiriam a mesma concepção. Nessa ocasião, não havia
necessidade de argumentos:
Uma série de escritores de economia política, história social, filosofia política e sociologia
em geral havia seguido na esteira de Smith e estabelecido o seu paradigma do selvagem
barganhador com axioma das suas respectivas ciências. Na realidade, as sugestões de Adam
Smith sobre a psicologia econômica do homem primitivo eram tão falsas como as de
Rosseau sobre a psicologia política do selvagem. A divisão do trabalho, um fenômeno tão
antigo como a sociedade, origina-se de diferenças inerentes a fatos como sexo, geografia e
capacidade individual. A alegada propensão do homem para a barganha, permuta e troca é
quase que inteiramente apócrifa. A história e a etnografia conhecem várias espécies de
economia, a maioria delas incluindo a instituição do mercado, mas elas não conhecem
nenhuma economia anterior à nossa que seja controlada e regulada por mercados, mesmo
aproximadamente. Isto tornar-se-á perfeitamente claro numa rápida visão da história dos
sistemas econômicos e mercados, apresentados separadamente. O papel desempenhado pelos
mercados na economia interna de vários países, parece, foi insignificante até época recente e
a mudança total para uma economia dominada por padrões de mercados ficará ainda mais
ressaltada. (Polanyi, 2000, p. 63).
Baseada nela, a evidência parece indicar que o homem primitivo, longe de ter uma
psicologia capitalista, tinha, na verdade, uma psicologia comunista (mais tarde também isto
foi provado como erro). Em conseqüência, os historiadores econômicos tendiam a confinar
seus interesses àquele período da história, comparativamente recente, no qual a permuta e a
troca foram encontradas em alguma escala considerável, e a economia primitiva foi relegada
à pré-história. Inconscientemente, isto levou a um peso na balança em favor de uma
psicologia de mercado pois, no período relativamente curto dos últimos séculos, tudo poderia
ser considerado como tendendo para o estabelecimento daquilo que foi eventualmente
estabelecido, e é um sistema de mercado, a despeito de outras tendências que foram
temporariamente submersas. Para corrigir essa perspectiva tão "estreita" fazia-se mister,
obviamente, ligar a história econômica à antropologia social, passo esse consistentemente
evitado. (Polanyi, 2000, p. 64).
103
Trata-se de um equívoco olhar para os últimos dez anos, assim como para o conjunto
de sociedades primitivas, como mero “prelúdio” da verdadeira história da civilização, ao qual a
publicação da Riqueza das Nações, em 1776, apresenta-se como inteiramente fora de propósito.
Mas a mesma tendência que levou a geração de Adam Smith a ver o homem primevo como
inclinado à barganha e à permuta induziu seus sucessores a descartar todo o interesse no homem
primitivo, uma vez que já se sabia que ele não se inclinava para essas paixões supostamente tão
naturais. Para Polanyi, a tradição dos economistas clássicos, que tentaram basear a lei do mer-
cado na alegada propensão do homem no seu estado natural, foi substituída por um abandono de
qualquer interesse na cultura do homem "não-civilizado" como irrelevante para se compreender
os problemas da nossa era:
Uma tal atitude de subjetivismo em relação a civilizações primitivas não deveria fazer parte
da mente científica. As diferenças que existem entre povos "civilizados" e "não-civilizados"
foram demasiado exageradas, principalmente na esfera econômica. De acordo com os
historiadores, até bem pouco tempo as formas de vida industrial na Europa agrícola não eram
muito diferentes daquelas que existiram há alguns milhares de anos. Desde o aparecimento
do arado – basicamente uma grande enxada puxada por animais — os métodos de agricultura
permaneceram substancialmente inalterados na maior parte da Europa Ocidental e Central
até o início da era moderna. Na verdade, o progresso da civilização nessas regiões foi
principalmente político, intelectual e espiritual; quanto às condições materiais, a Europa
Ocidental de 1100 d.C. ainda não havia sequer alcançado o mundo romano de milhares de
anos atrás. Mesmo mais tarde, a mudança ocorreu mais facilmente nos canais da arte de
governar, na literatura e nas artes, principalmente religiosas e de conhecimentos, do que nos
da indústria. Do ponto de vista econômico, a Europa medieval se situava no nível da Pérsia
antiga, da Índia ou da China, e certamente não podia rivalizar em riqueza e cultura com o
Novo Império do Egito, de dois mil anos atrás. (Polanyi, 2000, p. 64-65).
A descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas antropológicas [até a década
de 1950, MFZ] é que a economia do homem, como regra, está submersa em suas relações
sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens
materiais, ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu
patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus
propósitos. Nem o processo de produção, nem o de distribuição está ligado a interesses
econômicos específicos relativos à posse de bens. Cada passo desse processo está atrelado a
um certo número de interesses sociais, e são estes que asseguram a necessidade daquele
passo. É natural que esses interesses sejam muito diferentes numa pequena comunidade de
caçadores ou pescadores e numa ampla sociedade despótica, mas tanto numa como noutra o
sistema econômico será dirigido por motivações não-econômicas. (Polanyi, 2000, p. 65).
seus membros esteja sujeito à falta de alimentos ou proteção, a não ser que ela própria seja
atingida por uma catástrofe, mas nesse caso os interesses são ameaçados coletiva e não
individualmente. Por outro lado, a manutenção dos laços sociais é crucial. Primeiro porque,
infringindo o código estabelecido de comportamento, honra ou generosidade, o indivíduo se
afasta da comunidade e se torna um elemento marginal; em segundo lugar, a longo prazo, todas
as obrigações sociais são baseadas na reciprocidade, e sua observação atenderá sempre melhor
aos interesses dos próprios indivíduos. Essa situação deve exercer uma pressão contínua sobre o
indivíduo no sentido de eliminar do seu consciente o suposto “auto-interesse econômico”, a
ponto de torná-lo incapaz, em muitos casos, de compreender as implicações de suas próprias
ações em termos de um tal interesse. A atitude em questão será reforçada pela freqüência das
atividades comunais, tais como partilhar do alimento na caça comum ou participar dos resultados
de alguma outra atividade tribal.
matrilineares. O homem que sustenta sua irmã e a família dela, entregando-lhe os melhores
produtos da sua colheita, ganhará crédito principalmente pelo seu bom comportamento, porém
terá em troca muito pouco benefício material imediato. Se ele for preguiçoso, sua reputação será
a primeira a ser atingida. O princípio da reciprocidade atuará principalmente em benefício de sua
companheira e de seus filhos, compensando-o assim, economicamente, por seus atos de virtude
comunitária. A exibição cerimonial dos alimentos, tanto em sua própria horta como ante o
depósito da que recebe, é uma garantia de que todos conhecerão a elevada qualidade da sua
atividade como cultivador. O amplo princípio da reciprocidade ajuda a salvaguardar tanto a pro-
dução como a subsistência familiar. Mas há também o princípio seguinte, o da redistribuição:
O princípio da redistribuição não é menos efetivo. Uma parte substancial de toda a produção
da ilha é entregue pelo chefe da aldeia ao chefe geral, que a armazena. Entretanto, como toda
a atividade comunal se centraliza em festas, danças e outras ocasiões quando os ilhéus
entretêm uns aos outros, assim como aos vizinhos de outras ilhas (ocasião em que são
distribuídos os resultados de suas atividades em áreas distantes, presentes são entregues e
reciprocados, de acordo com as regras de etiqueta, e o chefe distribui a todos os presentes
habituais), torna-se aparente a extrema importância do sistema de armazenamento. Do ponto
de vista econômico, é parte essencial do sistema vigente de divisão do trabalho, do comércio
exterior, da taxação para finalidades públicas, das provisões de defesa. Entretanto, essas
funções de um verdadeiro sistema econômico são inteiramente absorvidas pelas experiências
intensamente vividas que oferecem uma superabundante motivação não-econômica em cada
ato executado no quadro do sistema social como um todo. (Polanyi, 2000, p. 66-67).
Todas as economias desta espécie, em grande escala, foram dirigidas com a ajuda do
princípio da redistribuição. Do reinado de Hammurabi, na Babilônia, ao Novo Império do Egito,
o que se tinha eram despotismos centralizados do tipo burocrático, todavia fundados numa
economia como essa. A casa da família patriarcal é aqui reproduzida numa escala enormemente
ampliada, enquanto a sua distribuição "comunista" era classificada, envolvendo rações
agudamente diferenciadas. Havia um grande número de armazéns prontos a receber o produto da
atividade do camponês, fosse ele criador de gado, caçador, padeiro, cervejeiro, oleiro, tecelão ou
o que quer que seja. O produto era registrado minuciosamente e, desde que não fosse consumido
no local, era transferido de pequenos para grandes armazéns até alcançar a administração central
localizada na corte do faraó. Havia armazéns especiais para tecidos, obras de arte, objetos
ornamentais, cosméticos, prataria, guarda-roupa real; havia armazéns enormes para cereais,
arsenais e adegas de vinho.
Entretanto, a redistribuição na escala praticada pelos construtores das pirâmides não
se restringia a economias que não conheciam o dinheiro. Todos os reinos arcaicos fizeram uso de
moedas metálicas para o pagamento de impostos e salários, mas, no restante, dependiam de
pagamentos em espécie dos celeiros e armazéns de todo o tipo, a partir dos quais eles distribuíam
as mais variadas mercadorias para uso e consumo comum, mas principalmente à parte não-
produtiva da população, isto é, às autoridades, aos militares, à classe ociosa. Este era o sistema
em vigor na antiga China, no império dos Incas, nos reinos da Índia e também na Babilônia.
Nestas, como em muitas outras civilizações de grande desenvolvimento econômico, foi
elaborada uma complexa divisão do trabalho por meio do mecanismo da redistribuição.
Esse princípio também se manteve sob as condições feudais. Nas sociedades da
África, etnicamente estratificadas, acontece às vezes que o estrato superior consiste de criadores
de gado estabelecidos entre agricultores que ainda utilizam a pá ou a enxada. Os presentes
cobrados pelos criadores são principalmente agrícolas, como cereais, leite e cerveja, enquanto os
presentes por eles distribuídos podem ser animais, especialmente carneiros ou cabras. Nestes
casos, existe uma divisão de trabalho, embora geralmente desigual, entre os vários estratos da
sociedade: a distribuição pode às vezes implicar uma medida de exploração enquanto que, ao
107
mesmo tempo, a simbiose beneficia os padrões de ambos os estratos graças às vantagens de uma
divisão do trabalho melhorada.
Em termos sócio-políticos, tais sociedades vivem sob um regime feudal, seja o gado
ou a terra o valor privilegiado. Existem "feudos reguladores de gado na África Oriental.
Thurnwald, a quem seguimos de perto quanto ao tema da redistribuição, pôde dizer, assim, que o
feudalismo foi, em todos os lugares, um sistema de redistribuição” (Polanyi, op. cit., p. 69). Seria
somente em condições muito desenvolvidas e em circunstâncias excepcionais que esse sistema
se tornaria predominantemente político, como aconteceu na Europa Ocidental, onde a mudança
surgiu da necessidade de proteção do vassalo e onde os presentes se converteram em tributos
feudais. Evidentemente, já estamos diante de conseqüências mais avançadas derivadas da divisão
social do trabalho, de classes e, por decorrência, do poder. Mas a dualidade da interdependência
é o princípio de toda a ordem social, num sentido, diríamos, não apenas homeostático, mas
simbiótico.
Segundo Polanyi, o terceiro princípio, destinado a desempenhar um grande papel na
história, foi o princípio da domesticidade, e este consiste na produção para uso próprio. Os
gregos chamavam-no economia, étimo da palavra "economia". Entretanto, segundo os registros
etnográficos e antropológicos, não há o que nos autorize a presumir que a produção para a
própria pessoa, ou para um grupo, seja mais antiga que a reciprocidade ou a redistribuição sócio-
comunitária. Pelo contrário, tanto a tradição ortodoxa como algumas teorias mais recentes sobre
o assunto foram refutadas enfaticamente:
O selvagem individualista, que procura alimentos ou caça para si mesmo ou para sua família,
nunca existiu. Na verdade, a prática de prover as necessidades domésticas próprias tornou-se
um aspecto da vida econômica apenas em um nível mais avançado da agricultura. Mesmo
então, ela nada tinha em comum com a motivação do ganho, nem com a instituição de
mercados. O seu padrão é o grupo fechado. Tanto no caso de entidades de família muito
diferentes, como no povoamento, ou na casa senhorial, que constituíam unidades auto-
suficientes, o princípio era invariavelmente o mesmo, a saber, o de produzir e armazenar
para a satisfação das necessidades dos membros do grupo. O princípio é tão amplo na sua
aplicação como o da reciprocidade ou da redistribuição. A natureza do núcleo institucional é
indiferente: pode ser sexo, como na família patriarcal; localidade, como nas aldeias; ou poder
político, como no castelo senhorial. E também não importa a organização interna do grupo.
Pode ser tão despótica como a família romana ou tão democrática como a zadruga sul-
eslava; tão grande como os imensos domínios dos magnatas Carolíngios ou tão pequenas
como a propriedade camponesa média da Europa Ocidental. A necessidade de comércio ou
de mercados não é maior do que no caso da reciprocidade ou da redistribuição. (Polanyi,
2000, p. 69).
Quanto mais se recua na história, mais dependente aparece o indivíduo e, portanto, também o
indivíduo produtor, e mais amplo é o conjunto a que pertence. De início, este aparece de um
108
modo ainda muito natural, numa família e numa tribo, que é a família ampliada; mais tarde,
nas diversas formas de comunidade resultantes do antagonismo e da fusão das tribos. Só no
século XVIII, na “sociedade burguesa”, as diversas formas do conjunto social passaram a
apresentar-se ao indivíduo como simples meio de realizar seus fins privados, como
necessidade exterior. Todavia, a época que produz este ponto de vista, o do indivíduo isolado
é precisamente aquela na qual as relações sociais (e, deste ponto de vista, gerais) alcançaram
o mais alto grau de desenvolvimento. O homem é no sentido mais literal um zoon politikon,
não só animal social, mas animal que só pode isolar-se em sociedade. A produção do in-
divíduo isolado fora da sociedade — uma raridade, que pode muito bem acontecer a um
homem civilizado transportado por acaso a um lugar selvagem, mas levando consigo já,
dinamicamente, as forças da sociedade — é uma coisa tão absurda como o desenvolvimento
da linguagem sem indivíduos que vivam juntos e falem entre si. [...] Nem sequer seria
necessário tocar neste ponto se essa banalidade que teve sentido e razão entre os homens do
século XVIII não fosse seriamente reintroduzida na mais moderna Economia por Bastiat,
Carey, Proudhon, etc. Para Proudhon e alguns outros, parece, por certo, agradável deduzir a
origem de uma relação econômica, cuja gênese histórica ignoram, de uma maneira histórico-
filosófica, que lhes permite o recurso à mitologia, e dizer que as idéias surgiram de modo
acabado na mente de Adão ou Prometeu, e por isso em uso. Nada é mais aborrecedeor e
árido do que o locus communis (lugar comum) disfarçado. (Marx,1987, p. 4 - itálicos nossos)
Foi justamente esta situação que Aristóteles (384-322 a.C.) tentou estabelecer como
norma há mais de dois mil anos. Pesquisando o passado das atitudes rapidamente declinantes de
uma economia de mercado de caráter mundial, temos que concordar que a famosa distinção que
ele faz entre a domesticidade propriamente dita e o ato de se ganhar dinheiro, no capítulo
introdutório da sua Política, foi provavelmente o indicador mais profético jamais feito no campo
das ciências sociais. Aristóteles insiste na produção para uso, contra a produção visando lucro,
como essência da domesticidade propriamente dita. Assim, “uma produção acessória para o
mercado,” argumenta ele, “não precisa destruir a auto-suficiência doméstica, uma vez que a
colheita seja reinvestida na fazenda, para sustento, seja como gado ou cereal. A venda dos
excedentes não precisa destruir a base da domesticidade.” (Aristóteles, sd/1978, p. 33-39)
Somente um gênio do senso comum poderia afirmar, como ele o fez, nos diz Polanyi,
que o ganho era uma motivarão peculiar à produção para o mercado, e que o fator dinheiro
introduziria um novo elemento na situarão. Mas enquanto os mercados e o dinheiro fossem
meros acessórios de uma situarão doméstica auto-suficiente, o princípio da produção para uso
próprio poderia funcionar. Nesse sentido, ele estava inteiramente perto, embora deixasse de ver
como era impraticável ignorar a existência de mercados numa época em que a economia grega
tinha se tornado dependente do comércio atacadista e do capital de empréstimos. Esse foi o
século em que Delos e Rhodes se desenvolveram em empórios de seguros de fretes, empréstimos
marítimos e bancos de capital de giro, comparados aos quais a Europa Ocidental de mil anos
depois foi o próprio retrato do primitivismo. É verdade que Aristóteles não reconheceu
claramente as implicações da divisão do trabalho e sua ligação com os mercados e o dinheiro,
assim como não compreendeu as utilizações do dinheiro como crédito e capital. Evidentemente,
109
o princípio do ganho era a chave para uma civilização inteiramente diferente, cujos contornos
Aristóteles, entretanto, previu de forma acertada dois mil anos antes do seu advento, baseando-
se, para isso, nos simples rudimentos de uma economia de mercado disponível na época.
De forma mais ampla, essa proposição sustenta que todos os sistemas econômicos
conhecidos por nós, até o fim do feudalismo na Europa Ocidental, foram organizados
segundo os princípios de reciprocidade ou redistribuirão, ou domesticidade, ou alguma
combinação dos três. Esses princípios eram institucionalizados com a ajuda de uma orga-
nizarão social a qual, inter alia, fez uso dos padrões de simetria, centracidade e autarquia.
Dentro dessa estrutura, a produção ordenada e a distribuirão dos bens era assegurada através
de uma grande variedade de motivações individuais, disciplinadas por princípios gerais de
comportamento. E entre essas motivações, o lucro não ocupava lugar proeminente. Os
costumes e a lei, a magia e a religião cooperavam para induzir o indivíduo a cumprir as
regras de comportamento, as quais, eventualmente, garantiam o seu funcionamento no
sistema econômico. (Polanyi, 2000, p. 75)
Na verdade, sob o sistema mercantil, eles se tornaram a preocupação principal dos governos.
Entretanto, não havia ainda sinal de que os mercados passariam a controlar a sociedade
humana. Pelo contrário. Os regulamentos e os regimentos eram mais severos do que nunca;
estava ausente a própria idéia de um mercado auto-regulável. Para compreender a súbita
mudança para um tipo inteiramente novo da economia no século XIX, devemos nos voltar,
agora, para a história do mercado, uma instituição que praticamente negligenciamos em
nosso resumo dos sistemas econômicos do passado. (Polanyi, 2000, idem).
Na verdade, foi crucial o passo que transformou mercados isolados numa econômia
de mercado, mercados regulados num mercado autônomo. O século XIX — aclamando o fato
como o ápice da civilização ou deplorando-o ao mesmo tempo como um crescimento canceroso
— imaginava ingenuamente que um tal desenvolvimento era o resultado natural da difusão dos
mercados. Não se compreendeu que a engrenagem de mercado num sistema “auto-regulável” de
tremendo poder não foi o resultado de qualquer tendência inerente aos mercados em direção à
excrescência, e sim o efeito de estimulantes altamente artificiais administrados ao corpo social, a
fim de fazer frente a uma situação criada pelo fenômeno não menos artificial da máquina. Não
foi reconhecida a natureza limitada e não expansiva do padrão de mercado como tal; e, no
entanto, é este o fato que emerge com toda clareza da moderna pesquisa.
"Os mercados não são encontrados em todos os lugares; a sua ausência, embora
indicando um certo isolamento e uma tendência à reclusão, não está associada a qualquer
111
desenvolvimento particular, e o mesmo também pode ser auferido da sua presença." Essa frase
incolor, transcrita do Economics in Primitive Communities, de Thurnwald (1932), resume os
resultados significativos da moderna pesquisa sobre o assunto. "O simples fato de uma tribo usar
dinheiro diferencia-se muito pouco, do ponto de vista econômico, de quaisquer outras tribos do
mesmo nível cultural que não o utilizam." (R. C. Thurnwald, 1932: 147 – citado por Polanyi, op.
cit., p. 77).
Não é preciso mais do que salientar algumas das implicações mais importantes
dessas afirmativas. A presença ou a ausência de mercados ou de dinheiro não afeta
necessariamente o sistema econômico de uma sociedade primitiva. Isto refuta o mito do século
XIX de que o dinheiro foi uma invenção cujo aparecimento transformava inevitavelmente uma
sociedade, com a criação de mercados, forçando o ritmo da divisão de trabalho, liberando a
propensão natural do homem à permuta, à barganha e à troca. Com efeito, a história econômica
ortodoxa se baseou numa perspectiva imensamente exagerada do significado dos mercados,
como tais. Um "certo isolamento" ou talvez uma "tendência a reclusão" é o único traço
econômico que pode ser indeferido corretamente da ausência de mercados; no que diz respeito à
organização interna de uma economia, sua presença ou ausência não faz necessariamente
qualquer diferença:
As razões são simples. Os mercados não são instituições que funcionam principalmente
dentro de um economia, mas fora dela. Eles são locais de encontro para um comércio de
longa distância. Os mercados locais, propriamente ditos, são de pouca importância. Além
disso, nem os mercados de longa distância, nem os mercado locais são essencialmente
competitivos. Conseqüentemente, tanto num como noutro caso, é pouca a pressão para se
criar um comércio territorial, o assim chamado mercado interno ou nacional. Cada uma
dessas afirmativas choca-se com algum pressuposto axiomático dos economistas clássicos,
entretanto elas seguem muito de perto os fatos que aparecem à luz da pesquisa moderna.
(Polanyi, 2000, p. 78 – itálicos nossos).
A lógica que se apreende do até aqui exposto é quase oposta à que subentende a
doutrina clássica. Segundo o autor, o ensino ortodoxo partiu da propensão do indivíduo à
permuta; deduziu daí a necessidade de mercados locais, bem como da divisão do trabalho;
inferiu, finalmente, a necessidade do comércio, eventualmente do comércio exterior, incluindo
até mesmo o comércios de longa distância. “À luz do nosso conhecimento atual, podíamos quase
reverter a seqüência do argumento: o verdadeiro ponto de partida do comércio de longa
distância, um resultado da localização geográfica das mercadorias, e da "divisão do trabalho"
dada pela localização do comércio de longa distância, muitas vezes engendra mercados, uma
instituição que envolve atos de permuta e, se o dinheiro é utilizado, de compra e venda.
Eventualmente, porém não necessariamente, isto parece a alguns indivíduos a oportunidade de
utilizar a sua alegada propensão para a barganha e o regateio.” (Polanyi, op. cit., p. 79)
112
Parece natural presumir, como o pensamento econômico do século XVIII sugere, que
em função dos atos individuais de permuta, os mercados locais se desenvolveriam no correr do
tempo e que tais mercados, uma vez existindo, levariam naturalmente ao estabelecimento de
mercados internos ou nacionais. Entretanto, nem um nem outro aconteceu. Atos individuais de
permuta ou troca não levam, como regra, ao estabelecimento de mercados em sociedades onde
predominam outros princípios de comportamento econômico. Nos amplos sistemas antigos de
redistribuição, os atos de permuta e os mercados locais eram uma constante, porém apenas em
caráter subordinado. Do mesmo modo, o mesmo se aplica onde a reciprocidade é a regra, em que
os atos de permuta são geralmente inseridos em relações de longo alcance que implicam
aceitação e confiança, uma situação que tende a obliterar o caráter bilateral da transação. São
vários os fatores limitantes, e eles surgem de todos os pontos do compasso sociológico: o
costume e a lei, a religião e a magia contribuem igualmente para o resultado, que é restringir os
atos de troca em relação a pessoas e objetos, tempo e ocasião. Como regra, aquele que permuta
apenas entra em um tipo de transação já determinado, no qual tanto os objetos como as quantias
113
a eles equivalentes já são dados. Desse modo, aquilo que parece como o aspecto essencial da
troca para o pensamento do século XVIII, o elemento voluntário da barganha e do regateio, tão
expressivo como motivação presumida da permuta, tem realmente um objetivo muito limitado na
verdadeira transação. Mesmo que seu motivo fosse subjacente ao ato, raramente se lhe permite
atingir a superfície:
Com efeito, em face da evidência, seria audacioso afirmar que os mercados locais se
desenvolveram a partir de atos individuais de permuta. Embora seja muito obscuro o início
do mercado local, podemos afirmar com segurança que, desde o princípio, essa instituição
foi cercada por uma série de salvaguardas destinadas a proteger a organização econômica
vigente na sociedade de interferência por parte das práticas de mercado. A paz do mercado
era garantida ao preço de rituais e cerimônias que restringiam seu objetivo, enquanto
asseguravam sua capacidade de funcionar dentro dos estreitos limites dados. O resultado
mais significativo dos mercados - o nascimento de cidades e a civilização urbana - foi, de
fato, o produto de um desenvolvimento paradoxal. As cidades, as crias dos mercados, não
eram apenas as suas protetoras, mas também um meio de impedi-los de se expandirem pelo
campo e, assim, incrustarem-se na organização econômica corrente da sociedade. (Polanyi,
2000, p. 82).
A palavra "conter" possui aqui dois significados que talvez expressem melhor esta
dupla função das cidades em relação aos mercados, que elas tanto envolviam como impediam de
se desenvolver. O mercado local típico, no qual as donas de casa vão comprar algumas de suas
necessidades domésticas diárias e nos quais os agricultores de cereais ou verduras, assim como
os artesãos locais, oferecem seus artigos à venda, revelam uma impressionante indiferença
quanto a tempo e lugar. Reuniões desse tipo são não só bastante generalizadas nas sociedades
primitivas como também permanecem praticamente imutáveis até meados do século XVIII nos
países mais adiantados da Europa Ocidental. Elas constituem um acessório da existência local e
diferem muito pouco, quer façam parte da vida tribal centro-africana, que de uma cidade da
França merovíngia, ou de uma aldeia escocesa da época de Adam Smith. O que é verdadeiro em
relação à aldeia é também verdadeiro em relação à cidade. Os mercados locais são, essencial-
mente, mercados de vizinhança e, embora importantes para a vida das comunidades, em nenhum
lugar revelam indícios de reduzir o sistema econômico vigente a seus padrões. Eles não foram
pontos de partida do comércio interno ou nacional.
A cidade medieval típica não tentou evitar o perigo diminuindo o abismo entre o mercado
local controlável e as incertezas do um comércio de longa distância incontrolável, mas, ao
contrário, enfrentou o perigo reforçando com o máximo rigor aquela política de exclusão e
proteção que era o rationale da sua existência. (Polanyi, 2000, p 86).
O sistema mercantil foi, na verdade, uma resposta a vários desafios. Do ponto de vista
político, o estado centralizado era uma nova criação, estimulada pela Revolução Comercial
que mudara o centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para as costas do
Atlântico, compelindo, assim, os povos atrasados de grandes países agrários a se
organizarem para o comércio e os negócios. Na política externa, o estabelecimento de um
poder soberano era a necessidade do dia; a nova política estatal mercantilista envolvia a
disciplina dos recursos de todo território nacional para os objetos de poder nos assuntos
externos. Na política interna, a unificação de países fragmentados pelo particularismo feudal
e municipal foi o subproduto necessário a um tal empreendimento. Do ponto de vista
econômico, o instrumento de unificação foi o capital, i.e., os recursos privados disponíveis
sob a forma de dinheiro acumulado, e portanto, peculiarmente adequado para o
desenvolvimento do comércio. Finalmente, a técnica administrativa subjacente à política
econômica do governo central foi fornecida pela ampliação do sistema municipal tradicional
ao território mais amplo do estado. Na França, onde as corporações artesanais tendiam a se
tornar órgãos do estado, o sistema de guildas foi simplesmente ampliado para todo o ter-
ritório do país. Na Inglaterra, onde a decadência das cidades fortificadas havia enfraquecido
fatalmente aquele sistema, o campo foi industrializado sem a supervisão de guildas,
enquanto em ambos os países os negócios e o comércio se espalhavam por todo o território
da nação e se tornavam a forma dominante da atividade econômica. Nesta situação reside a
origem da política comercial interna do mercantilismo. (Polanyi, 2000, p. 86-87).
O que para a mente moderna pode facilmente parecer como uma imprevidente exclusão da
competição, foi, na realidade, um meio de salvaguardar o funcionamento dos mercados,
naquelas circunstâncias. Qualquer intrusão temporária de compradores ou vendedores no
mercado poderia destruir o equilíbrio e decepcionar os compradores e vendedores regulares,
e o resultado seria a cessação do funcionamento do mercado. Os fornecedores antigos
115
deixaram de oferecer suas mercadorias por não terem uma garantia de preço e o mercado,
sem suprimentos suficientes, tornar-se-ia uma presa do monopólio. (Polanyi, 2000, p. 87)
O mesmo perigo estava presente no lado da demanda, em escala menor, onde uma
queda rápida poderia ser seguida por um monopólio da demanda. Cada passo que o estado
tomava para livrar o mercado de restrições particularistas, tributos e proibições, punha em perigo
o sistema organizado de produção e distribuição, o qual se via cada vez mais ameaçado por uma
competição não regulada e pela intrusão de aventureiros que "esvaziavam" o mercado mas não
ofereciam nenhuma garantia de permanência. Ocorreu assim que, embora os novos mercados
nacionais até certo ponto fossem competitivos, inevitavelmente, o que prevalecia era o aspecto
tradicional da regulamentação e não o novo elemento de competição. (Polanyi, op. cit., idem).
A domesticidade do camponês auto-suficiente que trabalhava para sua subsistência
continuou sendo a base mais ampla do sistema econômico que agora se integrava em grandes
unidades nacionais através da formação do mercado interno. Este mercado nacional assumiu o
seu lugar ao lado dos mercados local e estrangeiro, às vezes sobrepujando-os. A agricultura era
suplementada, agora, pelo comércio interno - um sistema de mercados relativamente isolados,
inteiramente compatível com o princípio da domesticidade ainda dominante no campo.
Isto conclui nossa sinopse da história do mercado até a época da Revolução
Industrial. O estágio seguinte na história da humanidade, como sabemos, acarretou uma tentativa
de estabelecer um grande mercado auto-regulável. Nada no mercantilismo, essa política distinta
do estado-nação ocidental, deixava prever um desenvolvimento tão singular. A "libertação" do
comércio levada a efeito pelo mercantilismo apenas liberou o comércio do particularismo,
porém, ao mesmo tempo, ampliou o escopo da regulamentação. O sistema econômico estava
submerso em relações sociais gerais; os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma
estrutura institucional controlada e regulada, mais do que nunca, pela autoridade social:
Em síntese, o rápido esboço dos sistemas econômicos e dos mercados, tomados em separado,
mostra que até a nossa época os mercados nada mais eram do que acessórios da vida
econômica. Como regra, o sistema econômico era absorvido pelo sistema social e, qualquer
que fosse o princípio de comportamento predominante na economia, a presença do padrão de
mercado sempre era compatível com ele. O princípio da permuta ou troca subjacente a esse
padrão não revelava qualquer tendência de expandir-se às expensas do resto do sistema.
Mesmo quando os mercados se desenvolveram muito, como ocorreu sob o sistema mercantil,
eles tiveram que lutar sob o controle de uma administração centralizada que patrocinava a
autarquia tanto no ambiente doméstico do campesinato como em relação à vida nacional. De
fato, as regulamentações e os mercados cresceram juntos. (Polanyi, 2000, p. 89)
Para compreender inteiramente o que isto significa, vamos voltar por um momento
ao sistema mercantil e aos mercados nacionais que ele tanto concorreu para desenvolver. Sob o
feudalismo e o sistema de guildas, a terra e o trabalho formavam parte da própria organização
social (o dinheiro ainda não se tinha desenvolvido no elemento principal da indústria). A terra, o
elemento crucial da ordem feudal, era a base do sistema militar, jurídico, administrativo e
político; seu status e função eram determinados por regras legais e costumeiras. Se a posse da
terra era transferível ou não e, em caso afirmativo, a quem e sob quais restrições; quais os
direitos de propriedade implicados; de que forma podiam ser utilizados alguns tipos de terra —
todas essas questões ficavam à parte da organização de compra e venda, e sujeitas a um conjunto
inteiramente diferente de regulamentações institucionais.
O mesmo também se aplicava à organização do trabalho. Sob o sistema de guildas,
como sob qualquer outro sistema econômico na história anterior, as motivações e as
circunstâncias das atividades produtivas estavam inseridas na organização geral das sociedades.
As relações do mestre, do jornaleiro e do aprendiz; as condições do artesanato; o número de
aprendizes; os salários dos trabalhadores, tudo era regulamentado pelo costume e pelas regras da
guilda e da cidade. O que o sistema mercantil fez foi apenas unificar essas condições, quer por
meio de estatutos, como na Inglaterra, quer pela "nacionalização" das guildas, no caso da França.
Quanto à terra, seu status feudal só foi abolido naquilo que estava ligado aos privilégios
provinciais — no restante, a terra permaneceu extra commercium, tanto na Inglaterra como na
França. Até a época da Grande Revolução de 1789, a propriedade fundiária continuou sendo
fonte de privilégios sociais na França e, mesmo depois dessa época, a lei comum sobre a terra, na
Inglaterra, era basicamente medieval. O mercantilismo, com toda a sua tendência em direção à
comercialização, jamais atacou as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da
produção — trabalho e terra — e os impedia de se tornarem objetos de comércio. Na Inglaterra,
a "nacionalização" da legislação do trabalho, por meio do Statute of Artificers (Estatuto dos
Artífices - 1563) e da Poor Law (Lei dos Pobres - 1601), retirou o trabalho da zona de perigo, e a
política anti-cercamentos dos Tudors e dos primeiros Stuarts foi um protesto concreto contra o
princípio do uso lucrativo da propriedade fundiária.
O mercantilismo, por mais que tivesse insistido enfaticamente na comercialização
como política nacional, pensava a respeito dos mercados de maneira exatamente contrária à
economia de mercado, o que fica bem demonstrado pela amplitude da intervenção estatal na
indústria. Neste ponto não havia diferença entre mercantilistas e feudalistas, entre planejadores
coroados e interesses investidos, entre burocratas centralizadores e particularistas conservadores.
Eles discordavam apenas quanto aos métodos de regulamentação: as guildas, as cidades e as
118
províncias apelavam para a força dos costumes e da tradição, enquanto a nova autoridade estatal
favorecia o estatuto e as leis. Todos eles, porém, eram igualmente avessos à idéia da
comercialização do trabalho e da terra — a precondição da economia de mercado.
As guildas artesanais e os privilégios feudais só foram abolidos na França em 1790;
na Inglaterra, o Statute of Artificers só foi revogado entre 1813 e 1814 e a Poor Law elisabetana,
em 1834. O estabelecimento do mercado livre de trabalho não foi sequer discutido, em ambos os
países, antes da última década do século XVIII, e a idéia da auto-regulação da vida econômica
estava inteiramente fora de cogitação nesse período. O mercantilismo se preocupava com o
desenvolvimento dos recursos do país, inclusive o pleno emprego, através dos negócios e do
comércio — e levava em conta, como um dado certo, a organização tradicional da terra e do
trabalho. Neste ponto ele estava tão afastado dos conceitos modernos como do campo da
política, onde a sua crença nos poderes absolutos de um déspota esclarecido não continha
quaisquer traços de democracia. A transição para um sistema democrático e uma política
representativa significou a total reversão da tendência da época, e da mesma forma a mudança
de mercados regulamentados para auto-reguláveis, ao final do século XVIII, representou uma
transformação completa na estrutura da sociedade:
empiricamente como contatos reais entre compradores e vendedores. Assim, cada componente
da indústria aparece como algo produzido para a venda, pois só então pode estar sujeito ao
mecanismo da oferta e procura, com a intermediação do preço. Na prática, isto significa que
deve haver mercado para cada um dos elementos da indústria; que nesses mercados cada um
desses elementos é organizado num grupo de oferta e procura. Esses mercados, uma vez
numerosos, são interligados e constituem “um grande mercado”. “Hawtrey vê a sua função
tornando mutuamente consistente os valores relativos de mercado de todas as mercadorias". (G.
R. Hawtrey, The economic problem, 1925, p. 13 – citado por Polanyi, op. cit., p. 93)
O ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria.
Eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma
parte absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro
obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem
que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras
palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são mercadorias.
Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria vida que,
por sua vez, não é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas, e essa
atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada.
Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o
dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido mas
adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é
produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é
inteiramente fictícia. (Polanyi, 2000, p. 94)
É precisamente com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do
trabalho, da terra e do dinheiro, donde a afirmativa de Marx sobre o caráter fetichista do valor
das mercadorias (K. Marx, O Capital, s/ref. – citado por Polanyi, op. cit. p. 94). Esses elementos
são, na verdade, comprados e vendidos no mercado; sua oferta e procura são magnitudes reais, e
quaisquer medidas ou políticas que possam inibir a formação de tais mercados poriam em perigo,
ipso facto, a auto-regulação do sistema. A ficção da mercadoria, portanto, oferece um princípio
de organização vital em relação à sociedade como um todo, afetando praticamente todas as suas
instituições, nas formas mais variadas. É este o princípio de acordo com o qual não se pode
permitir qualquer entendimento ou comportamento que venha a impedir o funcionamento real do
mecanismo de mercado nas linhas de ficção da mercadoria.
Ora, em relação ao trabalho, à terra e ao dinheiro não se pode manter um tal postulado.
Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e
do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra,
resultaria no desmoronamento da sociedade. Esta suposta mercadoria, "a força de trabalho",
não pode ser impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não-utilizada, sem afetar
também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar. Ao
dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da
entidade física, psicológica e moral do "homem" ligado a essa etiqueta. (Polanyi, op. cit., p.
94-95 – itálico nosso)
120
A propósito, aquele que comprava e vendia provia também a produção - não era preciso uma
outra motivação. A criação de bens não envolvia atitudes recíprocas de ajuda mútua; não
havia a preocupação do chefe de família por aqueles cujas necessidades provia; nem o orgu-
lho do artesão no exercício da sua profissão; nem a satisfação do elogio público - nada além
do motivo simples do lucro, tão familiar ao homem cuja profissão é comprar e vender. Até o
final do século XVIII, a produção industrial na Europa Ocidental já era um mero acessório
do comércio. (Polanyi, 2000, p. 96).
121
[...]trabalho (mão-de-obra) é o termo técnico usado para os seres humanos na medida em que
não são empregadores mas empregados. Segue-se daí que a organização do trabalho mudaria
simultaneamente com a organização do sistema de mercado. Entretanto, como a organização
do trabalho é apenas um outro termo para as formas de vida do povo comum, isto significa
122
Dissemos que, como regra, o progresso é feito à custa da desarticulação social. Basta
relembrar o paralelo entre as devastações dos cercamentos na história inglesa e a catástrofe
social que se seguiu à Revolução lndustrial. Se o ritmo desse transtorno é exagerado, a comu-
nidade pode sucumbir no processo. Os Tudors e os primeiros Stuarts salvaram a Inglaterra do
destino da Espanha, regulamentando o curso da mudança de forma a torná-la suportável, e
puderam canalizar seus efeitos por caminhos menos destruidores. Nada, porém, foi feito para sal-
var o povo comum da Inglaterra do impacto da Revolução Industrial. Uma fé cega no progresso
espontâneo havia se apossado da mentalidade das pessoas e, com o fanatismo de sectários, os
mais esclarecidos pressionavam em favor de uma mudança na sociedade, sem limites nem
regulamentações. Os efeitos causados nas vidas das pessoas foram terríveis, quase indescritíveis.
A sociedade humana poderia ter sido aniquilada, de fato, não fosse a ocorrência de alguns
contramovimentos protetores que cercearam a ação desse mecanismo autodestrutivo:
A história social do século XIX foi, assim, o resultado de um duplo movimento; a ampliação
da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua
restrição em relação às mercadorias fictícias. Enquanto, de um lado, os mercados se
difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções
inacreditáveis, de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas
instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro.
Enquanto a organização dos mercados mundiais de mercadorias, dos mercados mundiais de
capitais e dos mercados mundiais de moedas, sob a égide do padrão-ouro, deu um
momentum sem paralelo ao mecanismo de mercados, surgiu um movimento bem estruturado
para resistir aos efeitos perniciosos de uma economia controlada pelo mercado. A sociedade
se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável, e este foi o
único aspecto abrangente na história desses período. (Polanyi, 2000, p. 98)
tabela que dependeria do preço do pão. Assim, ficaria assegurada ao pobre uma renda
mínima independente dos seus proventos. Isto foi feito como uma medida de emergência,
introduzida informalmente. Embora chamada comumente de lei, a própria tabela nunca foi
promulgada. Passou, porém, a vigorar como lei na maior parte do campo e, mais tarde, até
mesmo em alguns distritos manufatureiros. Na verdade, ela introduziu uma inovação social e
econômica que nada mais era que o "direito de viver" e, até ser abolida, em 1834, ela
impediu efetivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitivo. Desde
1832, dois anos antes portanto, a classe média vinha forçando seu caminho em direção ao
poder, em parte para remover esse obstáculo à nova economia capitalista. Com efeito, nada
poderia ser mais óbvio do que o fato de o sistema de salários exigir imperativamente a
abolição do "direito de viver" conforme proclamada pela Speenhamland. Naturalmente, sob
o novo regime do homem econômico, ninguém trabalharia por um salário se pudesse
sobreviver sem fazer nada. (Polanyi, 2000, p 100).
abonos salariais, suplementados ainda por abonos separados para a mulher e os filhos, e que
aumentavam ou diminuíam de acordo com o preço do pão, significavam, em relação ao trabalho,
uma renovação dramática do mesmo princípio regulador que se estava eliminando rapidamente
na vida industrial como um todo. Nenhuma outra medida, segundo Polanyi, se popularizou mais
amplamente: pais não precisavam cuidar dos filhos; filhos não dependiam mais dos pais; os
empregadores podiam reduzir os salários a bel-prazer e os trabalhadores não passavam fome,
quer fossem diligentes ou preguiçosos. “Os humanitaristas aplaudiam a medida como ato de
piedade, senão de justiça, e os egoístas se consolavam com o pensamento de que se tratava de
um gesto de caridade e não de um ato liberal. Mesmo os contribuintes dos impostos custaram a
compreender o que aconteceria a esses impostos num sistema que proclamava o "direito de
viver" quer um homem trabalhasse por um salário vivo ou não.” (H. O. Meredith, Outlines of the
Economics History of England, 1908 – citado por Polanyi, 2000, p. 102).
Apesar de algum tempo ser necessário até que o “respeito próprio do homem
comum descesse a um nível tão baixo a ponto dele preferir a assistência aos pobres ao salário”, o
fato é que esse salário, subsidiado por fundos públicos, chegou a um ponto tal que ele se viu
forçado a recorrer à assistência dos impostos. Pouco a pouco o pessoal do campo foi se
pauperizando; o adágio "uma vez por conta dos impostos, sempre por conta deles" passou a ser
uma verdade incontestável. (Polanyi, op. cit.). Seria impossível explicar a degradação humana e
social do capitalismo primitivo sem os prolongados efeitos do sistema de abonos.
Pela Speenhamland Law a sociedade se debatia entre duas influências opostas: a que
emanava do paternalismo e que protegia a mão-de-obra dos perigos de um sistema de mercado, e
a que organizava os elementos da produção, inclusive a terra, sob um sistema de mercado,
afastando a gente comum do seu status anterior, compelindo-a a ganhar a vida oferecendo seu
trabalho à venda enquanto, ao mesmo tempo, privava esse trabalho do seu valor de mercado.
Criava-se uma nova classe de empregadores, mas não se podia constituir uma classe
correspondente de empregados. Uma nova onda gigantesca de cercamentos mobilizava a terra e
produzia um proletariado rural, enquanto a "má administração da Poor Law" impedia esse
126
proletariado de ganhar a vida com o seu trabalho. Não é de admirar que os contemporâneos se
sentissem estarrecidos diante da aparente contradição entre um aumento quase miraculoso na
produção e uma quase inanição das massas. Já em 1834 havia a convicção geral de que qualquer
coisa era preferível à continuação da Speenhamland Law. Ou as máquinas teriam que ser
desmontadas, como os Ludistas tentaram fazer, ou tinha que ser criado um mercado de trabalho
regular. Assim a humanidade se viu “forçada a ingressar no caminho de uma experiência
utópica”. (Polanyi, op. cit., p. 103).
Em face do teor dessa tal lei, o "direito de viver" deveria ter acabado de vez com o
trabalho assalariado. Os salários-padrão deveriam ter baixado gradualmente até o nível zero,
ficando totalmente por conta da paróquia o pagamento dos salários. Se isto ocorresse, ficaria
patente o absurdo desse dispositivo. Esse, porém, era um período essencialmente pré-capitalista,
em que as pessoas comuns ainda pensavam de modo tradicional e ainda não pautavam seu
comportamento apenas por motivações monetárias. A grande maioria das pessoas do campo era
de posseiros-proprietários ou posseiros vitalícios que preferiam qualquer tipo de vida à situação
de indigente, ainda que esta não fosse deliberadamente sobrecarregada por limitações penosas
como aconteceria posteriormente. Se os trabalhadores tivessem a liberdade de fazer combinações
para favorecer seus interesses, o sistema de abonos talvez pudesse causar um efeito contrário no
padrão de salários: a assistência aos empregados, implícita numa administração tão liberal da
Poor Law, teria ajudado muito a ação dos sindicatos.
Se a Speenhamland significava a decomposição da imobilidade secularizada, agora o
perigo era a morte pela exposição:
Um mercado de trabalho competitivo só foi estabelecido na Inglaterra após 1834; assim, não
se pode dizer que o capitalismo industrial, como sistema social, tenha existido antes desta
data. Quase imediatamente, porém, a autoproteção da sociedade se manifestou - surgiram
leis fabris e uma legislação social, assim como a movimentação política e industrial da classe
trabalhadora. Foi justamente com essa tentativa de evitar os perigos totalmente novos do
mecanismo de mercado que a ação protetora entrou em conflito fatal com a auto-regulação
do sistema. Não é exagero dizer que a história social do século XIX foi determinada pela
lógica do sistema de mercado propriamente dito, após ter sido ele liberado pelo Poor Law
Reform Act de 1834. O ponto de partida dessa dinâmica foi a Speenhamland Law.
Se sugerimos que o estudo da Speenhamland é o estudo do nascimento da civilização do
século XIX, não temos em mente exclusivamente seus efeitos econômicos e sociais, nem
mesmo a influência determinante desses efeitos sobre a moderna história política, mas o fato
de que a nossa consciência social foi fundida nesse molde, fato esse desconhecido da atual
geração. (Polanyi, 2000, p. 106)
A figura do indigente, quase esquecida desde então, dominava uma discussão que
deixou marcas tão profundas como as dos acontecimentos mais espetaculares da história. Se a
Revolução Francesa muito deveu ao pensamento de Voltaire e Diderot, Quesnay e Rousseau, a
discussão em torno da Poor Law formou as mentes de Bentham e Burke, Godwin e Malthus,
127
Ricardo e Marx, Robert Owen e John Stuart Mill, Darwin e Spencer, que partilharam com a
Revolução Francesa a paternidade espiritual da civilização do século XIX. Durante as décadas
que se seguiram à Speenhamland e à Poor Law Reform foi que a mente do homem se voltou para
a sua própria comunidade com um nova angústia e preocupação: a “revolução” que os juízes de
Berkshire em vão tentaram frear e que a Poor Law Reform eventualmente liberou, modificara a
visão dos homens em relação a seu ser coletivo, como se a sua presença tivesse sido esquecida
até então. Descobriu-se um mundo de presença insuspeitada, o das leis que governam uma
sociedade complexa. Embora a emergência da sociedade, neste sentido novo e característico,
tenha ocorrido no campo econômico, seu referencial foi muito mais abrangente, universal.
A realidade nascente chegou à nossa consciência por intermédio da economia
política. Com efeito, suas regularidades surpreendentes e contradições assombrosas tinham que
ser enquadradas num esquema de filosofia e teologia para poderem ser assimiladas com
significados humanos. Os fatos obstinados e as leis brutais e inexoráveis que surgiram para
“abolir nossa liberdade” tinham que se reconciliar, de uma forma ou de outra, com essa mesma
liberdade. Isto se tornou a mola mestra das forças metafísicas que secretamente sustentaram os
positivistas e os utilitaristas. Com muita agudeza Polanyi irá concluir:
A resposta ambivalente da mente a essas terríveis limitações foi uma esperança irrestrita e
um desespero ilimitado, que se voltavam para as regiões ainda não-exploradas das
possibilidades humanas. Do pesadelo da população e das leis salariais destilou-se a
esperança, a visão de um possível constante aperfeiçoamento, e ela se materializou num
conceito de progresso tão inspirados que parecia justificar as enormes e dolorosas distorções
por vir, e que sempre vieram. O desespero provaria ser um agente ainda mais poderoso da
transformação. (Polanyi, op. cit., p. 107 – itálicos nossos).
Foi assim que a descoberta da sociedade integrou-se ao universo espiritual do homem. Mas,
de que forma essa nova realidade da sociedade seria traduzida em termos de vivência? Como
guias para a prática, os princípios morais da harmonia e do conflito tinham atingido seu
limite e pelejavam, dentro de um padrão de completa contradição. Dizia-se que a harmonia
era inerente à economia pois, em última instância, os interesses do indivíduo e da
comunidade eram idênticos. Todavia, uma tal auto-regulação harmoniosa exigia que o
indivíduo respeitasse a lei econômica mesmo que ela o destruísse. O conflito também parecia
inerente à economia, seja como competição entre indivíduos, seja como luta de classes —
mas esse conflito poderia transformar-se apenas no veículo de uma harmonia mais profunda,
imanente numa sociedade atual ou talvez futura. (Polanyi, 2000, p. 107).
primeiro dos surpreendentes paradoxos com os quais a sociedade industrial confrontou o homem
moderno. Este penetrara no seu novo domínio pela porta da economia e essa circunstância
fortuita envolveu o período com a sua aura materialista. Para Ricardo e Malthus nada parecia
mais real do que os bens materiais. As leis do mercado significavam para eles o limite das
possibilidades humanas.
Foi em relação ao problema da pobreza que as pessoas começaram a explorar o
significado da vida numa sociedade complexa, dominada pela economia de mercado. A
introdução da economia política no reino do universal aconteceu em duas perspectivas opostas: a
do progresso e do aperfeiçoamento, de uma lado, e a do determinismo e da perdição, do outro. A
sua tradução para a prática também foi alcançada por dois caminhos opostos: pelo princípio da
harmonia e da auto-regulação, de um lado, e da competição e do conflito, do outro. Tais
contradições moldam nossas sociedades até presentemente.
Este quadro, que de certo modo pouco se difere quanto às origens burocráticas do
que teria ocorrido aos povos do Oriente, incluiu também os aspectos religiosos das diversas
civilizações letradas do globo, o que sem dúvida também influiu decisivamente sobre a
sistematização de conhecimentos e sua difusão. Aliás, em todas as civilizações primitivas com
poderes instituídos, o próprio funcionamento das estruturas de poder era simbiótico à religião e
seus códigos e, portanto, possuíam o caráter de indiferenciação.
Outros sistemas escolares surgiram principalmente no calor das lutas estritamente
religiosas:
Isto é certo, quando menos, para os estados alemães da época da Reforma protestante — e,
como reação, para os católicos, por exemplo a expansão do ensino dos jesuítas —, para a
Escócia e para um grande número de escolas inglesas criadas como arma na luta entre as
seitas e as denominações. Em geral, para o protestantismo não há outro intermediário entre a
pessoa e Deus senão as Sagradas Escrituras, o que exige, e exigiu naquele momento, que
todos fossem capazes de lê-las. Por outro lado, os reformadores religiosos, mais que
ninguém, não ignoravam o enorme poder doutrinador da escola. (Fernandez Enguita, 1989,
p. 130).
Por sua vez, a formação dos estados nacionais modernos foi outro desencadeador da
expansão do ensino. Estes reuniram dentro de algumas fronteiras únicas, sob um poder e
algumas leis comuns e por uma só língua, povos que pouco antes não cessavam de guerrear entre
si, com costumes, leis e línguas diferentes e bastante alheios à idéia da unificação. A tarefa fora,
então, preponderantemente atribuída à escola e isto pôde ser claramente visto nos processos de
formação da nação alemã ou espanhola. No mesmo sentido, deve-se interpretar o
empreendimento de assimilação das sucessivas levas de imigrantes aos Estados Unidos da
América ou, depois da Revolução de Outubro, na União Soviética, ou, para mudar de hemisfério,
o papel da escola nas nações da África negra e do Oriente Médio (Fernandez Enguita, op. cit,
idem).
O outro imperativo fora a necessidade de dominar uma certa quantidade de
conhecimentos e destrezas para desenvolver-se em qualquer trabalho ou fora dele em uma
sociedade industrializada e urbanizada:
obra “foram o fator mais poderoso a influir nas mudanças ocorridas no sistema escolar em seu
conjunto e entre as quatro paredes da escola.” Este argumento poderia, por fim, ser ampliado
tendo-se em conta a existência do setor público nas economias nacionais capitalistas ou
assinalando as semelhanças morfológicas e funcionais entre as escolas do capitalismo ocidental e
as dos sistemas burocráticos dos países do Leste, “mas isto não acrescentaria nada de
essencialmente diferente ao que aqui se pretendeu demonstrar.” (Fernandez Enguita, op. cit.,
idem)
A questão de por que o capitalismo teria sido tão capaz de dar forma à escolarização
é algo relativamente fácil de ser compreendido:
“Ninguém está obrigado a saber tudo. O estudo das ciências em geral é assunto daqueles que
vivem confortavelmente e dispõem de tempo livre. Os que têm empregos particulares devem
entender as funções; e não é insensato exigir que pensem e raciocinem apenas sobre o que
forma sua ocupação cotidiana.” (John Locke, “On de conduct of human understanding.” In:
The works of John Locke (T. III). Londres, 1823, p. 225 - citado por Fernández Enguita,
1989, p. 111).
Evidente a ligação desse postulado com a já milenar questão da separação entre ócio
e trabalho manual segundo uma posição de classe social. Nesse sentido, Paolo Nosella nos
recorda que:
Nas grandes linhas, são bastante conhecidas as características do trabalho humano dos
escravos da Antigüidade clássica ou dos servos da Idade média. Dentro de sistemas sócio-
econômicos onde a produção material é fundamentalmente de consumo, onde a terra é a
dimensão do poder sócio-político das classes aristocráticas, onde a afirmação de que os
homens são por natureza desiguais é tida como “racional”, o trabalho humano só poderia ser
concebido como estigma fatal ou castigo. Em outras palavras, o trabalho só poderia ser
mesmo um tripalium (três paus), ou seja, um verdadeiro instrumento de tortura. (Nosella,
2002, p. 30).
parte das crianças escolarizadas foi arrancada das escolas para o trabalho, nos dias úteis, pelo
movimento das Sunday Schools, escolas dominicais sem outra pretensão que a de ensinar-lhes
moral religiosa. Os projetos de lei que pretendiam assegurar um mínimo de instrução literária
foram sistematicamente rejeitados durante grande parte do século XIX” (Fernández Enguita,
1989, p. 111).
Na França, grandes figuras do Iluminismo foram desfavoráveis à educação universal,
dentre os quais, manifestamente Mirabeau, La Chalotais, Destutt de Tracy e o “príncipe das
luzes”, Voltaire. Outros teriam sido apenas timidamente partidários ou ambíguos, a exemplo de
Condorcet, Rousseau e, na Alemanha, Kant. (Fernández Enguita, op. cit., idem). Assim, La
Chalotais demonstrava sua reprovação a que “[...] ensinassem a ler e a escrever pessoas que não
necessitavam mais que aprender a desenhar e a manejar o buril e a serra, mas que não querem
continuar fazendo-o [...]. O bem da sociedade exige que os conhecimentos do povo não se
estendam além de suas ocupações.” (La Chalotais, apud Charlot e Figeat, Histoire de la
formation des ouvriers. 1985, p. 84 - citado por Fernandez Enguita, 1989, p. 111)
Mas, evidentemente, desde a Reforma Protestante a escolarização para todos tornou-
se uma das questões centrais ao Ocidente Cristão, ainda que seus motivos fossem, na origem
pelo menos, teológicos. Assim, um dos principais elementos estratégicos à própria Contra-
Reforma, foi a apropriação pela Igreja católica da educação do povo segundo seus preceitos.
Sobre isso, dirá Manacorda:
qual, se adequadamente apropriado e conduzido, poderia tanto manter e reproduzir quanto abalar
e subverter as estruturas sociais.
Não será, portanto, essencialmente diferente o dilema subjacente aos temores da
burguesia que agora toma o poder. O que nos chama a atenção nessas colocações não é o fato de
a instrução ser interpretada apenas como pouco útil a toda uma população que não usufrui e que,
conforme os objetivos do capitalismo industrial, jamais poderá usufruir tempo livre para tornar-
se ilustrada. Há algo mais na educação que torna indesejável sua “democratização”, mesmo em
um época tão “democraticamente revolucionária”. Trata-se de seu poder de proporcionar
recursos para a própria reflexão sobre a vida e suas condições existenciais. E nesse aspecto, ela
pode ser ameaçadora aos que, sob os auspícios da hegemonia de classe, detém o poder.
Isto não significa que não haverá defensores da causa da educação popular, em maior
ou menor grau comprometidos com o ideal de um ensino laico e acessível a todos. Mas os
idealizadores da educação liberal, uma vez no poder, e mediante os imperativos do poder,
redirecionam a questão da educação do povo, uma vez admitida e reconhecida pelo próprio
Estado de Direito burguês, para outros fins. Em relação a isto, Mariano Enguita comentará que,
se a educação se revela com tais poderes, “porque, então, renunciar a um instrumento tão
poderoso?” Mais prudente e aconselhável seria empregá-lo com outros objetivos, adequados aos
propósitos da própria burguesia (Fernandez Enguita, 1989, p. 112). E Condorcet explicita esta
posição com a seguinte concessão:
“É expandindo as luzes entre o povo que se pode impedir que seus movimentos se convertam
em perigosos.”
[...] “Freqüentemente os cidadãos ofuscados por vis facínoras se levantam contra as leis;
então a justiça e a humanidade lhes clamam para empregar só a arma da razão para recordar-
lhes seus deveres; por que, então, não desejar que uma instrução bem dirigida lhes torne
difíceis de serem seduzidos mais adiante, mais dispostos a cederem à voz da verdade?”
(Condorcet, M. J. A. & Caritat, Marques de. “Sur la necessité de l’instrution publique”. In:
Oeuvres, vol. VII. Paris, 1847, p. 447 - citado por Fernandez Enguita, p. 112).
A partir de agora, devia aceitar trabalhar para outro e fazê-lo nas condições que este outro
lhe impusesse. Se os meios para dobrar os adultos iam ser a fome, o internamento ou a força,
a infância (os adultos das gerações seguintes) oferecia a vantagem de poder ser modelada
desde o princípio de acordo com as necessidades da nova ordem capitalista e industrial, com
as novas relações de produção e os novos processos de trabalho. [...] Os cercamentos, a
dissolução dos laços de dependência, a superpopulação relativa e a ruína dos pequenos
artesãos bastavam para que a força de trabalho aparecesse no mercado por seu valor de troca,
mas não asseguravam a extração de seu valor de uso. Para isso era necessário o concurso da
vontade do trabalhador e, portanto, nada mais seguro que moldá-lo desde o momento de sua
formação. (Fenandez Enguita, 1989, p. 114).
134
O instrumento idôneo seria a escola e, segundo Enguita, não porque elas tivessem
sido criadas com esse propósito, e nem que deixassem de cumprir outras funções, mas porque
elas já estavam postas e se poderia tirar bom proveito de suas existências. Assim, seu propósito
se desloca da educação religiosa e o doutrinamento ideológico, para a “disciplina material, para a
organização da experiência escolar de forma que gerasse nos jovens os hábitos, as formas de
comportamento, as disposições e os traços de caráter mais adequados para a indústria.”
(Fernandez Enguita, 1989, p. 114).
Mimerel, um grande patrão do norte da França, formulava isto da seguinte forma:
“Não, não queremos pôr limites à instrução, mas preferimos a que faz com que o homem
esteja contente com sua posição e leve-o a melhorá-la mediante a ordem e o trabalho àquela
que o faz perder em projetos de realização impossível um tempo tão útil para o bem-estar
de sua família. [O ensino] deve assegurar às crianças excelentes hábitos de ordem, de
propriedade, de trabalho e de prática religiosa que farão delas crianças mais submissas e pais
mais devotos” (Le Goff, 1985: 54 - citado por Fernandez Enguita, 1989, p. 114).
“Outro ponto da educação moral sobre o qual nunca se insistirá demasiadamente é o que
concerne à obediência e à disciplina na oficina. Porque a produção moderna não é
verdadeiramente útil e benéfica senão na medida em que se baseia em uma organização
metódica. Entretanto, na base de toda a organização não é possível substituir a autoridade
pela anarquia. E preciso, portanto, que o operário aprenda a vencer suas resistências naturais
ao dever absoluto de obedecer, e isto é o que lhe ensinaremos nas Epinettes (...). A
disciplina na oficina constitui a dignidade bem entendida do operário; a higiene e a previsão
terminam por fazer dele um homem consumado” (Chariot e Figeat, 1985: 133 - citados por
Fernandez Enguita, 1989, p. 115).
Era, pois, uma questão de tempo para que os patrões em seu conjunto
compreendessem os belos e lucrativos frutos que podia oferecer uma educação popular "bem
orientada". A respeito dos fiandeiros de linho de Westmorland afirmava-se que a educação havia
melhorado “a conduta e os hábitos de subordinação dos operários fabris em geral, o que é
claramente observável no fato de que não se emprega palavrões, na aparência limpa e asseada e
em um aumento da diligência na freqüência aos lugares de culto” (Silver, 1983: 39 – citado por
Fernandez Enguita, 1989, p. 115 – itálicos nossos).
Este panorama, especialmente no que se refere à "conduta e aos hábitos de
subordinação", impressionava de forma crescente os patrões, ao ponto de convencer os mais
recalcitrantes. Aqui, o registro de um inspetor de fábricas em 1839:
“Muitos dos proprietários de fábricas que aprovam agora a educação estavam entre aqueles
que, anteriormente, julgavam sua aplicação quase impossível e não acreditavam que fosse
provável que trouxesse o mínimo benefício.” (Silver, 1983: idem – citado por Fernandez
Enguita, 1989, p. 115)
135
É desse modo que o que inicialmente havia sido uma reação de surpresa e suspeição,
converter-se-ia em uma reivindicação ou em uma firme opinião sobre a função das escolas. Se
Mimeral "preferia" a formação de hábitos a um ensino desnecessário, os patrões esclarecidos logo
iriam compreender, por toda parte, que o papel essencial da escola podia ser esse, por mais que
fosse encoberto por outros processos.
Mas há também o outro lado da questão, e este diz respeito às iniciativas e lutas da
própria classe trabalhadora e do movimento operário em prol da própria instrução. A esse
respeito, Enguita manifesta o seguinte:
Desse modo, Harry Braverman descreveu do seguinte modo em que consistia ser um
trabalhador qualificado “antes de as hordas de Ford e Taylor irromperem na organização do
trabalho fabril”:
possibilidades, de acordo com o contexto de sua época, então não tão cingidas à escola.
(Fernandez Enguita, 1989, p. 119-120).
Até mesmo o maquinista (millwright) ordinário, como o faz notar Fairbairn, era, em
geral, "um bom aritmético, sabia algo de geometria, nivelamento e medição e, em alguns casos,
possuía conhecimento muito preciso de matemática prática. Podia calcular a velocidade,
resistência e potência das máquinas, podia desenhar em plano e em seção... Grande parte desses
"feitos e potencialidades intelectuais elevados" refletiam as abundantes oportunidades para a
educação técnica em "povoados" como Manchester, desde as academias dissidentes e sociedades
ilustradas até os conferencistas locais e visitantes, as escolas privadas "matemáticas e
comerciais", com aulas vespertinas e uma ampla circulação de manuais práticos, publicações
periódicas e enciclopédias (Landes, 1969: 63 – citado por Fernandez Enguita, 1989, p. 120).
Além desta rede formal e informal de capacitação profissional e formação técnica e
científica, devem ser acrescentadas as escolas de “iniciativa popular”, as sociedades operárias, os
ateneus, as casas do povo e toda uma gama de atividades que compunham “um considerável
movimento de auto-instrução.” Boa parte do movimento operário colocou nessa rede suas
esperanças de acompanhar o ritmo do progresso e melhorar sua posição política e social frente às
elites dominantes, inclusive a esperança de subverter radicalmente a ordem social de então.
Assim, as organizações trabalhistas de orientação marxista, centraram suas reivindicações em
uma escola para os trabalhadores financiada, mas não controlada pelo Estado, e combinada com
a incorporação dos jovens na educação. Entretanto, a escolarização estatal ou sob a égide do
Estado e a influência mais ou menos direta dos industriais, logo assumiria o controle dos
processos educacionais, fragilizando e suprimindo os movimentos de auto-instrução.
Por sua vez, Carlos Minayo Gomes (2002), ao observar os estudos mais conhecidos
referentes ao tema educação e trabalho enfatiza que, na sua grande maioria, estão destinados a
analisar o caráter dos cursos profissionalizantes. Questionam a procedência de considerá-los
como cursos de formação ou preparação para o trabalho, discutem em que medida qualificam ou
profissionalizam. Enfatizam, em suas análises, as iniciativas da relação "escola-produção", em
que o próprio trabalho constitui o elemento pedagógico-educativo por excelência. Essa ênfase
tem por base a idéia de que se forma no processo do trabalho, trabalhando, o que reforça o
training on job das empresas, sem que necessariamente seja questionado (Minayo Gomes, 2002,
p. 44).
Esses estudos põem em destaque a importância da aprendizagem teórica para
aplicação imediata dos conhecimentos, dentro da mesma lógica do próprio capital, em que esse
"saber realizado" é fonte de sustentação econômica. Henry Ford já tinha se antecipado a essas
concepções de educação e trabalho ao questionar, por exemplo, o ensino técnico:
"A escola industrial não deve ser um compromisso entre a escola superior e a primária, mas
um lugar onde se ensine às crianças a arte de ser produtivo. Se os alunos são postos a fazer
coisas sem utilidades, a fazê-las para depois desfazê-las, não podem sentir interesse pelo
ensino. E durante o curso fica improdutivo; as escolas, a não ser por caridade, não
conseguem assegurar a subsistência dos alunos" (Henry Ford, 1964: 280 – citado por Minayo
Gomes, 2002, p. 45).
A Escola Industrial Ford, fundada em 1916, teve como base esses pressupostos. Os
alunos recebiam bolsas de estudo que variavam de acordo com o seu desempenho na produção, e
a própria fábrica constituía a melhor fonte de conhecimentos:
"Realmente a fábrica oferece mais recursos para a educação prática do que a maioria das
universidades. As lições de cálculo são dadas nos problemas concretos de fabricação. As
cidades deixam de ser pontos negros nos mapas, e os continentes, páginas do atlas. Assistem
à expedição de produtos para Singapura e o desembarque de matéria-prima vinda da África
ou América do Sul, de modo que o planeta se torna para eles um mundo habitado e não um
globo colorido posto em cima da mesa do professor... A escola dispõe de uma oficina
excelentemente montada. Os rapazes vão passando de uma máquina para outra. Trabalham
apenas em artigos de que a nossa companhia se utiliza; mas as nossas necessidades são tão
grandes que a lista compreende quase tudo o que existe. O produto do trabalho escolar,
depois de examinado, é adquirido pela Ford Motor Company; o que não resiste ao exame é
lançado à conta de perdas da escola" (Henry Ford, 1964: 284 – citado por Minayo Gomes,
2002, idem).
Os pontos acima defendidos por Ford, não sem neutralidade, podem ser
compreendidos diferentemente a partir da óptica do trabalho. O privilegiamento da formação no
interior da unidade produtiva revela, além da eficiência nos aspectos práticos, a importância para
139
a) para garantir o controle, a gerência necessita se apropriar do saber-fazer que ainda possui
o trabalhador. Deve reunir esses conhecimentos práticos e "classificá-los, tabulá-los, reduzi-
los a normas, leis e fórmulas, grandemente úteis ao operário para execução de seu trabalho
diário" (Taylor, 1964: 52);
140
b) selecionar e treinar o trabalhador adequado para cada tarefa concebida pela gerência. Para
isso não é preciso achar "homens extraordinários, mas simplesmente escolher entre os
homens comuns os poucos especialmente apropriados para o tipo de trabalho em vista"
(Taylor, 1964: 76);
c) programar as operações dos trabalhadores e supervisioná-las, em função de um tempo-
padrão predeterminado: "Na tarefa é especificado o que deve ser feito e também como fazê-
lo, além do tempo exato concebido para a execução" (Taylor, 1964: 55 – a, b e c citados por
Minayo Gomes, op. cit., p. 52).
De uma maneira geral, pode-se afirmar que os princípios da gerência científica de
Taylor preconizam a apropriação do saber especializado do trabalhador, com a conseqüente
concentração desse saber na gerência e a sua utilização com fins de reduzir drasticamente a
porosidade do trabalho humano - ou seja, aumentar a produtividade, ampliando a taxa de mais-
valia relativa.
Do ponto de vista tecnológico - que não pode ser segregado do aspecto organizacional, como
será mostrado mais à frente -, coube, na verdade, a Ford o papel de revolucionar a produção
industrial, já que as proposições de Taylor não abarcavam os aspectos tecnológicos do
trabalho. (Rodrigues, 1998, p. 50).
"Embora os homens de negócio não se dêem como líderes dos movimentos, são eles na
realidade os verdadeiros chefes. Nem um só passo da atividade econômica existe — bem ou
mau — que não tenha sido ensinado ao povo pelos homens de negócio. Daí o terem mais
influência na sociedade que os políticos, professores ou sacerdotes. Seu contato com o povo
é constante e sua influência inevitável. Cada mau hábito econômico que o povo revela foi-
lhe ensinado pelos homens de negócios, e como a influência deles é assim grande, seria de
boa política que mudassem de orientação, transformando-se em ledores dos sinais dos
tempos, de modo a poderem nortear sadiamente o público" (Ford, 1964: 405).
Todas essas "novas formas de gerenciamento" das relações capital-trabalho são antes
de tudo respostas às resistências ao taylorismo dogmático. Elas são obrigadas a levar em conta os
trabalhadores como "seres pensantes", ou suas emoções e potencialidades no processo de
trabalho, embora continuem a ter a subsunção real como pano de fundo e a valorização como
meta inqüestionável. Convém observar como historicamente a psicologia, a fisiologia e a
sociologia industriais têm sido usadas para as finalidades da valorização do capital. Seja pela
análise dos comportamentos, dos tempos e dos movimentos, das motivações e das relações de
subordinação e resistência, essas disciplinas são usadas para instrumentalizar a seleção, os
treinamentos e o ajustamento dos chamados “recursos humanos”, de forma a se construir um
"trabalhador coletivo" apto ao controle de seu trabalho. Conjugados ao regime contratual
assalariado, é fora de dúvida que essas disciplinas lograram garantir a conquista da disciplina e
da produtividade (fundamentais à mais-valia) por meio do próprio auto-controle dos
trabalhadores nos processos de trabalho. É aí, sob a máscara das relações técnicas, que se forja
de modo peculiar e determinante a alienação do operário por um projeto de subordinação ao
capital. É bom repetir, no entanto, que a resistência perenemente instaurada pela força de
trabalho põe limites ao processo de alienação a que está submetida, obrigando o capital a
reinventar estratégias novas para atingir seus fins (daí as inúmeras teorias gerenciais e de
relações no trabalho, não menos munidas de propósitos mercadológicos).
Segundo Minayo Gomes, entretanto, "esta dominação nunca é estabelecida definiti-
vamente de uma vez por todas. O próprio movimento de acumulação de capital (que modifica
mercados de trabalho, processos de trabalho, distribuição geográfica da produção, produz novas
condições políticas e ideológicas da luta de classes etc.) assegura que esta dupla dominação deve
ser sempre restabelecida em novas condições" (Brighton Group, 1976 – citado por Minayo
Gomes, 2002, p. 47 – itálicos nossos). Observa, pois, que:
A premissa para o desenvolvimento do sistema capitalista como modo de produção não está,
portanto, unicamente no fato de que a força de trabalho, ao estar desprovida da propriedade e
da posse dos meios de produção, torna-se mera mercadoria. A questão está em que a união,
na estrutura econômica, entre força de trabalho-mercadoria e meios de produção, realiza, ao
mesmo tempo, um processo de produção de mercadorias e um processo de valorização sob o
controle do capital. O elemento essencial para a viabilização desses processos é a forma
social de organização do trabalho. (Minayo Gomes, 2002, p. 47)
A questão da socialização dos meios de produção não pode ser mais pensada no capitalismo
de hoje como foi pensada, talvez corretamente, pelos clássicos do século passado.
Especificamente, o ato de desapropriação dos meios de produção pelo Estado não implica
em absoluto a passagem dessa propriedade aos trabalhadores; ela implica unicamente a
substituição de administradores profissionais representantes dos proprietários capitalistas por
administradores profissionais representantes do Estado. Os trabalhadores, em princípio,
continuam tão alienados dentro dos locais de trabalho como antes. E é aí que tem que haver,
na verdade, a progressiva conquista pelos trabalhadores do domínio sobre o seu processo de
trabalho ( ... ) há que se instaurar uma efetiva gestão operária para poder se falar realmente
em uma socialização dos meios de produção. (Singer, 1998, citado por Minayo Gomes,
1996, p. 36-7)
técnicas de produção (e não apenas da finalidade de sua utilização): porque a conservação destas
faria ressurgir aquelas, através da divisão capitalista do trabalho".
Para Gramsci, contudo, o problema central de tal confronto não estaria propriamente
nos aspectos organizativos e metodológicos da escola tradicional, mas no fato de que tal
organização e programas eram na verdade a expressão de um modo tradicional de vida
intelectual e moral, pertencentes a uma tradição antiqüíssima, que estava morrendo (Gramsci,
1989, p. 81). Portanto, não adiantaria apenas mudar a organização e programas em questão, sem
que se compreendesse que eles são determinados, antes e na verdade, pelas mudanças no próprio
modo de vida dos homens.
Nesse sentido, na “velha escola” conteúdos como o estudo de línguas e da história
dos povos clássicos era um princípio educativo relacionado ao ideal humanista personificado
principalmente pela cultura grega e romana, sendo difundido e aceito em toda a sociedade
européia como essenciais (podemos pensar, aqui, na paidéia grega e na humanistas romana).
Essa educação não tinha uma finalidade prático-profissional imediata sendo, portanto,
“desinteressada”, pois que o interesse era a formação de uma personalidade plena e
universalizada pelo caráter cultural geral da civilização européia.
Em sendo assim, o que propor ou esperar para a educação de então, mediante a
chamada crise do modelo tradicional e o surgimento de um novo modo de vida, surgido com a
consolidação da sociedade industrial? Primeiramente, não seria porque havia uma crise da
cultura e da escola tradicional que esse preparo formativo mais amplo e desinteressado deveria
ser revogado. Para Gramsci era justamente isso que estaria ocorrendo com a disseminação do
modelo de escola profissional, que se encontrava em ascensão. Ora, para justificar-se a escola
profissional e ativa, disseminou-se a idéia de que ela seria sinônimo de “escola democrática”,
pois permitiria que todos pudessem ter acesso a uma profissão; em contraposição, a escola
tradicional seria oligárquica e anti-democrática, por restringir-se à formação das elites.
Para Gramsci, entretanto, haveria aí um grande erro de avaliação:
A escola tradicional era oligárquica pois era destinada à nova geração dos grupos dirigentes,
destinada por sua vez a tornar-se dirigente: mas não era oligárquica pelo seu modo de ensino.
Não é a aquisição de capacidades diretivas, não é a tendência a formar homens superiores
que dá a marca social de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada
grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes grupos uma
determinada função tradicional, diretiva ou instrumental. Se se quer destruir esta trama,
portanto, deve-se evitar a multiplicação e graduação dos tipos de escola profissional,
criando-se, ao contrário, um tipo único de escola preparatória (elementar-média) que
conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, entrementes, como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige. (Gramsci, Op.
Cit., p.87)
escolher seus dirigentes ou mesmo de se tornar também um dirigente, estariam educando apenas
para uma determinada função social específica e cristalizadora.
Chega a ser desconcertante a atualidade do problema e da análise apresentados por
Gramsci. Assim, notamos uma enorme identificação entre o que poderíamos chamar de investida
de uma proposta derivada dos desideratos econômico-produtivos sobre um modelo de escola
que, segundo propósitos contingenciais e imediatos, deve ser reformada e adequada às
“exigências do mundo moderno”. Curiosamente, têm sido comuns às referências direcionadas à
escola até aqui existente como “tradicional”, com todo o peso do sentido de “ultrapassada” e
destoante dos quesitos da atualidade. Nesse movimento, e a exemplo do modelo ativo-
profissionalizante da época histórica de Gramsci, a escola em sintonia com as necessidades de
seu tempo deveria privilegiar o desenvolvimento de habilidades e competências que tornem os
indivíduos contemporâneos mais aptos às necessidades de seu mundo. Daí as inúmeras críticas
no novo modelo das competências desfechadas aos métodos, didáticas e programas (currículos,
enfim) do modelo clássico. Estes devem, como fazem constantes referências os ideólogos da
“nova escola” a ser instaurada, contemplar a atividade prática por excelência, de modo a
propiciarem uma atividade de aprendizagem identificada com uma prontidão cognitiva constante
para novas e inusitadas situações e necessidades — pressuposto central do princípio do aprender
a aprender escolanovista, integralmente incorporado pelo construtivismo e suas vertentes.44
Mas, retornemos ainda a Gramsci e sua análise. A superação para a crise entre o
antigo e o novo por ele analisada impunha, segundo o mesmo, a necessidade de um novo tipo de
escola, que não perdesse de vista o que havia de relevante na escola tradicional, e que atendesse
às necessidades próprias de uma sociedade já revolucionada, em termos produtivos e culturais
(sociedade industrial): esta escola ele denominou Escola Unitária, uma superação por
incorporação das anteriores, em que não se perdesse o princípio humanista e humanizador da
escola clássica e sua função histórica (instruir nos rudimentos da língua falada e escrita, bem
como dos saberes clássicos e científicos), mas sem perder de vista o contexto histórico imediato,
com vistas ao próprio devir do processo de humanização de todos os membros da sociedade,
indistintamente, para a manutenção e aprimoramento constante da mesma.
Ora, em se tratando do contexto atual, percebemos, sem dúvida, uma enorme
44
Veja-se, por exemplo, a menção de Cesar Coll (1994, p. 136) a este respeito: “ Numa perspectiva construtivista, a
finalidade última da intervenção pedagógica é contribuir para que o aluno desenvolva a capacidade de realizar
aprendizagens significativas por si mesmo numa ampla gama de situações e circunstâncias, que o aluno ‘aprenda a
aprender’ ”. Reiteramos aqui não haver motivos para irmos contra um tal princípio, em si pedagogicamente válido.
O que questionamos é a evidente disseminação acrítica e aparentemente “despolitizada” de um tal princípio por
parte de inúmeros educadores da atualidade, dissimulando-se a apropriação e adequação do mesmo aos propósitos
neoliberais.
147
45
Kuenzer chega a esta conclusão a partir de pesquisas empíricas pelas quais investigou o sentido atribuído em
geral, no mundo do trabalho, à noção de competência, concluindo que não há variações significativas quanto ao
conceito (Kuenzer, 2001; 2003).
148
espontaneísta) deveria estar, também ela, condenada a ser superada pelo o que denominou
“escola criativa”, que superaria a tendência da escola profissionalizante ao mero “ativismo”
(Gramsci, 1989, p. 72).
As palavras de Gramsci convergem com a problemática do pragmatismo e ativismo
propostos pela pedagogia das competências como pressupostos para a educação contemporânea.
Supondo ainda a atualidade da problematização de Gramsci, se já em sua época nos propunha a
necessidade de a educação entrar na fase clássica, racional, encontrando nos fins a atingir a
fonte natural para elaborar os métodos e as formas de ensino, e se concordarmos que os fins a
atingir sejam de fato homens livres, conscientes, participativos e contribuintes ao aprimoramento
social, certamente concordaremos com o próprio pressuposto pedagógico proposto por este
pensador, fundado numa escola que não perca de vista o objetivo de seu papel histórico: o
próprio ser humano.
4.1. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932): a escola para todos e o
desenvolvimento capitalista no Brasil
46
Que se intitulava: “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: manifesto lançado ao povo e ao governo” cuja 1ª
edição foi publicada no ano de 1932, pela Comp. Editora Nacional, São Paulo, 1932.
150
4.1.1. O Manifesto
“ Onde se tem de procurar a causa principal desse estado antes de inorganização do que de
desorganização do aparelho escolar, é na falta, em quase todos os planos e iniciativas, da
determinação dos fins de educação (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto
técnico) dos métodos científicos aos problemas de educação. Ou, em poucas palavras, na
falta de espírito filosófico e científico, na resolução dos problemas da administração escolar.
Esse empirismo grosseiro, que tem presidido ao estudo dos problemas pedagógicos, postos e
discutidos numa atmosfera de horizontes estreitos, tem as suas origens na ausência total de
uma cultura universitária e na formação meramente literária de nossa cultura. Nunca
chegamos a possuir uma "cultura própria", nem mesmo uma "cultura geral" que nos
151
“Certo, um educador pode bem ser um filósofo e deve ter a sua filosofia de educação; mas,
trabalhando cientificamente nesse terreno, ele deve estar tão interessado na determinação dos
fins de educação, quanto também dos meios de realizá-los. O físico e o químico não terão
necessidade de saber o que está e se passa além da janela do seu laboratório. Mas o
educador, como o sociólogo, tem necessidade de uma cultura múltipla e bem diversa; as
alturas e as profundidades da vida humana e da vida social não devem estender-se além do
seu raio visual; ele deve ter o conhecimento dos homens e da sociedade em cada uma de suas
fases, para perceber, além do aparente e do efêmero, "o jogo poderoso das grandes leis que
dominam a evolução social", e a posição que tem a escola, e a função que representa, na
diversidade e pluralidade das forças sociais que cooperam na obra da civilização. Se têm essa
cultura geral, que lhe permite organizar uma doutrina de vida e ampliar o seu horizonte
mental, poderá ver o problema educacional em conjunto, de um ponto de vista mais largo,
para subordinar o problema pedagógico ou dos métodos ao problema filosófico ou dos fins
da educação; se tem um espírito científico, empregará os métodos comuns a todo gênero de
investigação científica, podendo recorrer a técnicas mais ou menos elaboradas e dominar a
situação, realizando experiências e medindo os resultados de toda e qualquer modificação
nos processos e nas técnicas, que se desenvolveram sob o impulso dos trabalhos científicos
na administração dos serviços escolares.”
Portanto, o Manifesto se apoiará nestes dois aspectos para a crítica da inconsistência
do sistema educacional no Brasil: a inexistência de parâmetros filosóficos ou, como entendemos,
pedagógicos, por um lado, e a inexistência de parâmetros científicos ou, como também o
entendemos, técnicos, por outro. O primeiro parâmetro visa à coerência conceitual e orgânica
entre o ensino e suas finalidades; o segundo diz respeito aos meios para que o ensino atinja seus
fins, de seus aspectos administrativos aos seus aspectos processuais, que deveriam estar
subordinados à cientificidade em suas ações. Já podemos denotar, segundo esses parágrafos, a
presença de dois imperativos: o primeiro implica na aproximação das finalidades da educação às
questões e exigências da própria vida (aspecto filosófico); o segundo, que estas finalidades
sejam atingidas com eficiência (aspecto técnico-científico). Todos estes quesitos visam,
sobretudo, a romper com o “empirismo grosseiro” dominante na área educacional ou, como
entendemos, romper com um ensino inorgânico e mecânico:
“À luz dessas verdades e sob a inspiração de novos ideais de educação, é que se gerou, no
Brasil, o movimento de reconstrução educacional, com que, reagindo contra o empirismo
152
[...] “Porque os nossos programas se haviam ainda de fixar nos quadros de segregação social,
em que os encerrou a república, há 43 anos, enquanto nossos meios de locomoção e os
processos de indústria centuplicaram de eficácia, em pouco mais de um quartel de século?
Porque a escola havia de permanecer, entre nós, isolada do ambiente, como uma instituição
enquistada no meio social, sem meios de influir sobre ele, quando, por toda a parte,
rompendo a barreira das tradições, a ação educativa já desbordava a escola, articulando-se
com as outras instituições sociais, para estender o seu raio de influência e de ação?”
[...] “A maioria dos espíritos, tanto da velha como da nova geração ainda se arrastam, porém,
sem convicções, através de um labirinto de idéias vagas, fora de seu alcance, e certamente,
acima de sua experiência; e, porque manejam palavras, com que já se familiarizaram,
imaginam muitos que possuem as idéias claras, o que lhes tira o desejo de adquiri-las... Era
preciso, pois, imprimir uma direção cada vez mais firme a esse movimento já agora nacional,
que arrastou consigo os educadores de mais destaque, e levá-lo a seu ponto culminante com
uma noção clara e definida de suas aspirações e suas responsabilidades. Aos que tomaram
posição na vanguarda da campanha de renovação educacional, cabia o dever de formular, em
documento público, as bases e diretrizes do movimento que souberam provocar, definindo,
perante o público e o governo, a posição que conquistaram e vêm mantendo desde o início
das hostilidades contra a escola tradicional. “ (itálicos nosos)
É preciso, pois, uma “Reforma das Reformas”, e aqui a posição dos pioneiros se nos
revela como uma “crítica” das primeiras reformas republicanas do ensino, parciais, com vistas à
instauração de uma “grande reforma” de âmbito nacional:
[...] “Em lugar dessas reformas parciais, que se sucederam, na sua quase totalidade, na
estreiteza crônica de tentativas empíricas, o nosso programa concretiza uma nova política
educacional, que nos preparará, por etapas, a grande reforma, em que palpitará, com o
ritmo acelerado dos organismos novos, o músculo central da estrutura política e social da
nação.”
“Em cada uma das reformas anteriores, em que impressiona vivamente a falta de uma visão
global do problema educativo, a força inspiradora ou a energia estimulante mudou apenas
de forma, dando soluções diferentes aos problemas particulares. Nenhuma antes desse
movimento renovador penetrou o âmago da questão, alterando os caracteres gerais e os
traços salientes das reformas que o precederam.”
“Toda a educação varia sempre em função de uma "concepção da vida", refletindo, em cada
época, a filosofia predominante que é determinada, a seu turno, pela estrutura da sociedade.
E' evidente que as diferentes camadas e grupos (classes) de uma sociedade dada terão
respectivamente opiniões diferentes sobre a "concepção do mundo", que convém fazer adotar
ao educando e sobre o que é necessário considerar como "qualidade socialmente útil". O fim
da educação não é, como bem observou G. Davy, "desenvolver de maneira anárquica as
tendências dominantes do educando; se o mestre intervém para transformar, isto implica nele
a representação de um certo ideal à imagem do qual se esforça por modelar os jovens
espíritos". Esse ideal e aspiração dos adultos torna-se mesmo mais fácil de apreender
exatamente quando assistimos à sua transmissão pela obra educacional, isto é, pelo trabalho
a que a sociedade se entrega para educar os seus filhos. A questão primordial das finalidades
da educação gira, pois, em torno de uma concepção da vida, de um ideal, a que devem
conformar-se os educandos, e que uns consideram abstrato e absoluto, e outros, concreto e
154
relativo, variável no tempo e no espaço. Mas, o exame, num longo olhar para o passado, da
evolução da educação através das diferentes civilizações, nos ensina que o "conteúdo real
desse ideal" variou sempre de acordo com a estrutura e as tendências sociais da época,
extraindo a sua vitalidade, como a sua força inspiradora, da própria natureza da realidade
social.”
“Ora, se a educação está intimamente vinculada à filosofia de cada época, que lhe define o
caráter, rasgando sempre novas perspectivas ao pensamento pedagógico, a educação nova
não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha
estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção
vencida. Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem servido, a educação perde
o "sentido aristológico", para usar a expressão de Ernesto Nelson, deixa de constituir um
privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um
"caráter biológico", com que ela se organiza para a coletividade em geral, reconhecendo a
todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais,
independente de razões de ordem econômica e social. A educação nova, alargando a sua
finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua
verdadeira função social, preparando-se para formar "a hierarquia democrática" pela
"hierarquia das capacidades", recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as
mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios
de ação durável com o fim de "dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano
em cada uma das etapas de seu crescimento", de acordo com uma certa concepção do
mundo.”
classes, mas dos indivíduos independentemente de suas origens, ao ensino, o Manifesto supõe
superar as próprias determinações classistas, como reclamaria um modelo democrático de
ensino:
[...] “É certo que é preciso fazer homens, antes de fazer instrumentos de produção. Mas, o
trabalho que foi sempre a maior escola de formação da personalidade moral, não é apenas o
método que realiza o acréscimo da produção social, é o único método susceptível de fazer
homens cultivados e úteis sob todos os aspectos. O trabalho, a solidariedade social e a
cooperação, em que repousa a ampla utilidade das experiências; a consciência social que nos
leva a compreender as necessidades do indivíduo através das da comunidade, e o espírito de
justiça, de renúncia e de disciplina, não são, aliás, grandes "valores permanentes" que elevam
a alma, enobrecem o coração e fortificam a vontade, dando expressão e valor à vida humana?
apropriado a ganhar salário e produzir resultado material num tempo dado”. Os pioneiros
parecem ter clareza a este respeito, mas procuram resolver a questão de forma abstrata, como se
moralmente se pudesse neutralizar o efeito que a própria realidade que tomam como referência
poderia infligir:
“Mas, do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre logicamente para o
Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de
seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é
chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais. A educação que é uma
das funções de que a família se vem despojando em proveito da sociedade política, rompeu
os quadros do comunismo familiar e dos grupos específicos (instituições privadas), para se
incorporar definitivamente entre as funções essenciais e primordiais do Estado.”
[...] “Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral,
cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano
geral de educação, de estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus
graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade
econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com as suas aptidões vitais.
Chega-se, por esta forma, ao princípio da escola para todos, "escola comum ou única", que,
tomado a rigor, só não ficará na contingência de sofrer quaisquer restrições, em países em
que as reformas pedagógicas estão intimamente ligadas com a reconstrução fundamental das
relações sociais.”
“Em nosso regime político, o Estado não poderá, de certo, impedir que, graças à organização
de escolas privadas de tipos diferentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos
uma educação de classe determinada; mas está no dever indeclinável de não admitir, dentro
157
do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas, a que só tenha acesso uma
minoria, por um privilegio exclusivamente econômico. Afastada a idéia do monopólio da
educação pelo Estado num país, em que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda
em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna
necessário estimular, sob sua vigilância as instituições privadas idôneas, a "escola única" se
entenderá, entre nós, não como "uma conscrição precoce", arrolando, da escola infantil à
universidade, todos os brasileiros, e submetendo-os durante o maior tempo possível a uma
formação idêntica, para ramificações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes
como a escola oficial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15, todas ao menos que, nessa
idade, sejam confiadas pelos pais à escola pública, tenham uma educação comum, igual para
todos.”
Por fim, estes princípios são revelados como cientificamente ligados a uma nova
concepção pedagógica que tem, em sua base, uma concepção de desenvolvimento psicológico e
da aprendizagem em que “a função educacional, cujos diferentes graus estão destinados a servir
às diferentes fases de seu crescimento [do indivíduo, MFZ], ‘que são partes orgânicas de um
todo que biologicamente deve ser levado à sua completa formação’". Estes princípios biológico-
evolucionistas, que visam ao desenvolvimento e seleção dos alunos nas suas aptidões naturais,
158
traz consigo a crença de que, desse modo, a escola se tornaria realmente democrática e os
indivíduos, segundo suas aptidões e inclinações, assumiriam naturalmente seus lugares ideais na
sociedade. Certamente, trata-se aqui da explicitação da concepção típica do contexto pedagógico,
sociológico e psicológico da época, e que notadamente reflete a visão caracteristicamente
burguesa de indivíduo e sociedade desde sua ascensão, e hegemônica até nossos dias:
“O desenvolvimento das ciências lançou as bases das doutrinas da nova educação, ajustando
à finalidade fundamental e aos ideais que ela deve prosseguir os processos apropriados para
realizá-los. A extensão e a riqueza que atualmente alcança por toda a parte o estudo
científico e experimental da educação, a libertaram do empirismo, dando-lhe um caráter e
um espírito nitidamente científico e organizando, em corpo de doutrina, numa série fecunda
de pesquisas e experiências, os princípios da educação nova, pressentidos e às vezes
formulados em rasgos de síntese, pela intuição luminosa de seus precursores. A nova
doutrina, que não considera a função educacional como uma função de superposição ou de
acréscimo, segundo a qual o educando é "modelado exteriormente" (escola tradicional), mas
uma função complexa de ações e reações em que o espírito cresce de "dentro para fora",
substitui o mecanismo pela vida (atividade funcional) e transfere para a criança e para o
respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da
educação. Considerando os processos mentais, como "funções vitais" e não como "processos
em si mesmos", ela os subordina à vida, como meio de utilizá-la e de satisfazer as suas
múltiplas necessidades materiais e espirituais. A escola, vista desse ângulo novo que nos dá
o conceito funcional da educação, deve oferecer à criança um meio vivo e natural, "favorável
159
ao intercâmbio de reações e experiências", em que ela, vivendo a sua vida própria, generosa
e bela de criança, seja levada "ao trabalho e à ação por meios naturais que a vida suscita
quando o trabalho e a ação convém aos seus interesses e às suas necessidades".
“Nessa nova concepção da escola, que é uma reação contra as tendências exclusivamente
passivas, intelectualistas e verbalistas da escola tradicional, a atividade que está na base de
todos os seus trabalhos, é a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das
necessidades do próprio indivíduo. Na verdadeira educação funcional deve estar, pois,
sempre presente, como elemento essencial e inerente à sua própria natureza, o problema não
só da correspondência entre os graus do ensino e as etapas da evolução intelectual fixadas
sobre a base dos interesses, como também da adaptação da atividade educativa às
necessidades psicobiológicas do momento. O que distingue da escola tradicional a escola
nova, não é, de fato, a predominância dos trabalhos de base manual e corporal, mas a
presença, em todas as suas atividades, do fator psicobiológico do interesse, que é a primeira
condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando (criança,
adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance, "graças à força de atração
das necessidades profundamente sentidas". É certo que, deslocando-se por esta forma, para a
criança e para os seus interesses, móveis e transitórios, a fonte de inspiração das atividades
escolares, quebra-se a ordem que apresentavam os programas tradicionais, do ponto de vista
da lógica formal dos adultos, para os pôr de acordo com a "lógica psicológica", isto é, com a
lógica que se baseia na natureza e no funcionamento do espírito infantil.”
“Mas, para que a escola possa fornecer aos "impulsos interiores a ocasião e o meio de
realizar-se", e abrir ao educando à sua energia de observar, experimentar e criar todas as
atividades capazes de satisfazê-la, é preciso que ela seja reorganizada como um "mundo
natural e social embrionário", um ambiente dinâmico em íntima conexão com a região e a
comunidade. A escola que tem sido um aparelho formal e rígido, sem diferenciação regional,
inteiramente desintegrado em relação ao meio social, passará a ser um organismo vivo, com
uma estrutura social, organizada à maneira de uma comunidade palpitante pelas soluções de
seus problemas. Mas, se a escola deve ser uma comunidade em miniatura, e se em toda a
comunidade as atividades manuais, motoras ou construtoras "constituem as funções
predominantes da vida", é natural que ela inicie os alunos nessas atividades, pondo-os em
contato com o ambiente e com a vida ativa que os rodeia, para que eles possam, desta forma,
possuí-la, apreciá-la e senti-la de acordo com as aptidões e possibilidades. "A vida da
sociedade, observou Paulsen, se modifica em função da sua economia, e a energia individual
e coletiva se manifesta pela sua produção material". A escola nova, que tem de obedecer a
esta lei, deve ser reorganizada de maneira que o trabalho seja seu elemento formador,
favorecendo a expansão das energias criadoras do educando, procurando estimular-lhe o
160
próprio esforço como o elemento mais eficiente em sua educação e preparando-o, com o
trabalho em grupos e todas as atividades pedagógicas e sociais, para fazê-lo penetrar na
corrente do progresso material e espiritual da sociedade de que proveio e em que vai viver e
lutar.”
“Mas, montada, na sua estrutura tradicional, para a classe média (burguesia), enquanto a
escola primária servia à classe popular, como se tivesse uma finalidade em si mesma, a
escola secundária ou do 3º grau não forma apenas o reduto dos interesses de classe, que
criaram e mantêm o dualismo dos sistemas escolares. É ainda nesse campo educativo que se
levanta a controvérsia sobre o sentido de cultura geral e se põe o problema relativo à escolha
do momento em que a matéria do ensino deve diversificar-se em ramos iniciais de
especialização. Não admira, por isto, que a escola secundária seja, nas reformas escolares, o
ponto nevrálgico da questão. Ora, a solução dada, neste plano, ao problema do ensino
secundário, levantando os obstáculos opostos pela escola tradicional à interpenetração das
classes sociais, se inspira na necessidade de adaptar essa educação à diversidade nascente de
gostos e à variedade crescente de aptidões que a observação psicológica regista nos
adolescentes e que "representam as únicas forças capazes de arrastar o espírito dos jovens à
cultura superior". A escola do passado, com seu esforço inútil de abarcar a soma geral de
161
conhecimentos, descurou a própria formação do espírito e a função que lhe cabia de conduzir
o adolescente ao limiar das profissões e da vida. Sobre a base de uma cultura geral comum,
em que importará menos a quantidade ou qualidade das matérias do que o "método de sua
aquisição", a escola moderna estabelece para isto, depois dos 15 anos, o ponto em que o
ensino se diversifica, para se adaptar já à diversidade crescente de aptidões e de gostos, já à
variedade de formas de atividade social.”
[...] “De fato, a Universidade, que se encontra no ápice de todas as instituições educativas,
está destinada, nas sociedades modernas a desenvolver um papel cada vez mais importante
na formação das elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos, e educadores, de que elas
precisam para o estudo e solução de suas questões científicas, morais, intelectuais, políticas e
econômicas. Se o problema fundamental das democracias é a educação das massas
populares, os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma
pirâmide de base imensa. Certamente, o novo conceito de educação repele as elites formadas
artificialmente "por diferenciação econômica" ou sob o critério da independência econômica,
que não é nem pode ser hoje elemento necessário para fazer parte delas. A primeira condição
para que uma elite desempenhe a sua missão e cumpra o seu dever é de ser "inteiramente
aberta" e não somente de admitir todas as capacidades novas, como também de rejeitar
implacavelmente de seu seio todos os indivíduos que não desempenham a função social que
lhes é atribuída no interesse da coletividade. Mas, não há sociedade alguma que possa
prescindir desse órgão especial e tanto mais perfeitas serão as sociedades quanto mais
pesquisada e selecionada for a sua elite, quanto maior for a riqueza e a variedade de homens,
de valor cultural substantivo, necessários para enfrentar a variedade dos problemas que põe a
complexidade das sociedades modernas. Essa seleção que se deve processar não "por
diferenciação econômica", mas "pela diferenciação de todas as capacidades", favorecida
pela educação, mediante a ação biológica e funcional, não pode, não diremos completar-se,
mas nem sequer realizar-se senão pela obra universitária que, elevando ao máximo o
desenvolvimento dos indivíduos dentro de suas aptidões naturais e selecionando os mais
capazes, lhes dá bastante força para exercer influência efetiva na sociedade e afetar, dessa
forma, a consciência social.” (itálicos nossos)."
[...] “Ora, dessa elite deve fazer parte evidentemente o professorado de todos os graus, ao
qual, escolhido como sendo um corpo de eleição, para uma função pública da mais alta
importância, não se dá, nem nunca se deu no Brasil, a educação que uma elite pode e deve
receber. A maior parte dele, entre nós, é recrutada em todas as carreiras, sem qualquer
preparação profissional, como os professores do ensino secundário e os do ensino superior
(engenharia, medicina, direito, etc.), entre os profissionais dessas carreiras, que receberam,
uns e outros, do secundário a sua educação geral. O magistério primário, preparado em
escolas especiais (escolas normais), de caráter mais propedêutico, e, as vezes misto, com
162
seus cursos geral e de especialização profissional, não recebe, por via de regra, nesses
estabelecimentos, de nível secundário, nem uma sólida preparação pedagógica, nem a
educação geral em que ela deve basear-se. [...] Todos os professores, de todos os graus, cuja
preparação geral se adquirirá nos estabelecimentos de ensino secundário, devem, no entanto,
formar o seu espírito pedagógico, conjuntamente, nos cursos universitários, em faculdades
ou escolas normais, elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades. A tradição
das hierarquias docentes, baseadas na diferenciação dos graus de ensino, e que a linguagem
fixou em denominações diferentes (mestre, professor e catedrático), é inteiramente contrária
ao princípio da unidade da função educacional, que, aplicado, às funções docentes, importa
na incorporação dos estudos do magistério às universidades, e, portanto, na libertação
espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e remuneração equivalentes
que lhe permitam manter, com a eficiência no trabalho, a dignidade e o prestígio
indispensáveis aos educadores.”
[...] “Mas, ao mesmo tempo que os progressos da psicologia aplicada à criança começaram a
dar à educação bases científicas, os estudos sociológicos, definindo a posição da escola em
face da vida, nos trouxeram uma consciência mais nítida da sua função social e da estreiteza
relativa de seu círculo de ação. Compreende-se, à luz desses estudos, que a escola, campo
específico de educação, não é um elemento estranho à sociedade humana, um elemento
separado, mas "uma instituição social", um órgão feliz e vivo, no conjunto das instituições
necessárias à vida, o lugar onde vivem a criança, a adolescência e a mocidade, de
conformidade com os interesses e as alegrias profundas de sua natureza. A educação, porém,
não se faz somente pela escola, cuja ação é favorecida ou contrariada, ampliada ou reduzida
pelo jogo de forças inumeráveis que concorrem ao movimento das sociedades modernas.
Numerosas e variadíssimas são, de fato, as influências que formam o homem através da
existência. "Há a herança que é a escola da espécie, como já se escreveu; a família que é a
escola dos pais; o ambiente social que é a escola da comunidade, e a maior de todas as
escolas, a vida, com todos os seus aspectos imponderáveis e forças incalculáveis".
deste apelo à causa da educação (e sua precarização a partir dos anos de 1990...) é sem dúvida o
projeto “Amigos da Escola”, patrocinado pela Rede Globo de Televisão e a Fundação Roberto
Marinho. O trecho a seguir ilustra a proximidade entre ambos os momentos e argumentos:
[...] “Toda a profunda renovação dos princípios que orientam a marcha dos povos precisa
acompanhar-se de profundas transformações no regime educacional: as únicas revoluções
fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação, e é só pela educação que a
doutrina democrática, utilizada como um princípio de desagregação moral e de indisciplina,
poderá transformar-se numa fonte de esforço moral, de energia criadora, de solidariedade
social e de espírito de cooperação. "O ideal da democracia que, - escrevia Gustave Belot em
1919, - parecia mecanismo político, torna-se princípio de vida moral e social, e o que parecia
coisa feita e realizada revelou-se como um caminho a seguir e como um programa de longos
deveres". Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade
de dedicação e justifica maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir
sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros
praticados se projetam mais longe nas suas conseqüências, agravando-se à medida que
recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação
que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e
realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua
comunhão íntima com a consciência humana.” 47
Estas aspirações não nos parecerão estranhas contemporaneamente. Por todas as vias
institucionalizadas, deparamos com o apelo generalizado da mídia, de políticos, de
representantes de organizações não-governamentais, de educadores e intelectuais diversos, bem
como de setores empresariais e financeiros, nacionais e estrangeiros, a preconização de que só a
47
Assinam o Manifesto: Fernando de Azevedo; Afranio Peixoto A. de Sampaio Doria; Anisio Spinola Teixeira; M.
Bergstrom; Lourenço Filho; Roquette Pinto; J. G. Frota Pessôa; Julio de Mesquita Filho; Raul Briquet; Mario
Casassanta; C. Delgado de Carvalho; A. Ferreira de Almeida Jr.; J. P. Fontenelle; Roldão Lopes de Barros; Noemy
M. da Silveira; Hermes Lima; Attilio Vivacqua; Francisco Venancio Filho; Paulo Maranhão; Cecilia Meirelles;
Edgar Sussekind de Mendonça; Armanda Alvaro Alberto; Garcia de Rezende; Nobrega da Cunha; Paschoal Lemme;
Raul Gomes.
164
educação pode mudar a sociedade, e, por extensão, a humanidade. Por este discurso
generalizado, a educação escolar é constantemente assediada pela recomendação imperiosa de
aproximar-se da cultura, dos valores e conhecimentos extra-muros, o que representaria um
contato mais concreto com a realidade social na qual se encontra inserida e da qual deve,
necessariamente, tomar parte.
Não vemos inconveniente algum num tal princípio, desde que ele não implicasse
numa fatal descaracterização da função prioritária do ensino tal como o entendemos neste
estudo, ou seja, o de locus privilegiado e historicamente encarregado de possibilitar o contato da
sociedade com conhecimentos que não poderiam ser assimilados de modo apenas espontâneo e
imediato. Esse risco certamente não deve impedir que a escola abra suas portas para que tais
conhecimentos sejam cada vez mais democraticamente socializados. Contudo, o mesmo risco
não pode implicar em que a escola se torne o bode-expiatório do entretenimento e contenção de
populações que, de outra forma, estariam incomodando ou mesmo ameaçando a tranqüilidade e a
paz social tão desejada por nossas elites.
Evidentemente, o Manifesto, nesta nossa breve análise, não pode ser visto com olhos
contemporâneos, destacado de seu contexto original. Ele guarda consigo a marca de uma época
em que os ideais republicanos e democráticos, desde a independência dos Estados Unidos e da
Revolução Francesa, já se haviam consolidado em diversos países liberais — ainda que, em
grande medida, isto não representasse a noção de sociedades verdadeiramente inclusivas e
participativas, do ponto de vista do conceito revolucionário de moderna “cidadania”, pelas
incongruências entre as “letras da Lei” (nos Estados Constitucionais de Direito) e o direito
decisório das populações majoritárias, que de imediato, excluíam de suas prerrogativas mulheres,
analfabetos e os despossuídos de toda sorte.
Entretanto, em se tratando do espírito democrático que propugnava um sistema de
ensino nacional a partir da defesa de uma escola única, obrigatória, pública e laica, o Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova se nos revela de fato audacioso e revolucionário, numa
república tardia e arcaica em relação à noção de um Estado de Direito democrático e
verdadeiramente liberal-progressista. Assim, de fato, a exemplo da Semana de Arte Moderna de
1922 em relação às artes plásticas, literatura e arquitetura no país, o Manifesto foi um divisor de
águas no âmbito das idéias e da história pedagógica da educação brasileira.
165
CAPÍTULO III
48
Estes elementos semióticos, como veremos no Capítulo III, sustentam as categorias de alienação, fetichismo e
reificação, tão dissimulados pela ideologia do capital quanto fundamentais à sua manutenção e reprodução.
167
incluem uma grande massa de descendentes de imigrantes, uma vez discriminados pela
sociedade e autoridades francesas deram início a manifestações que poderíamos considerar
atípicas para uma França sempre apontada como socialmente comedida e devidamente contida.
Os números são controversos, mas oficialmente cerca de nove mil automóveis foram
incendiados em todo o país em dois meses de conflitos, a partir de centros urbanos tão
importantes como Paris, Lyon, Toulouse e Strasbourg. (Conti, 2006, s/p).
Embora o governo e a mídia hajam insistido em atribuir os ataques a ondas de
vandalismo vindas de gangues (o que não pode ser excluído), os mais de dois mil presos são
compostos em geral por jovens desempregados, filhos e netos de imigrantes, com poucas
alternativas de trabalho e discriminados quanto às suas origens étnicas. As ações “marginais”
levaram a França, berço do Iluminismo e dos direitos universais humanos, da igualdade,
fraternidade e liberdade, à suspensão das liberdades de manifestação e associação durante dois
meses a partir de janeiro de 2005. Os prejuízos ultrapassaram 200 milhões de euros. (Conti,
2006, s/p).
Ignácio Ramonet define assim o atual quadro do país, ou como este quadro tem sido
oportunamente pintado pelas forças conservadoras no país:
Uma instituição que agoniza e deve ser reformada. Assim é a França, na opinião de um
grupo de "declinólogos" de direita, que tira proveito do temor sanitário surgido com as
ameaças de gripe aviária. Esse pessimismo de fundo foi reforçado por acontecimentos
recentes que, embora fortuitos, deram a impressão de enfraquecimento das instituições e
contribuíram para o mal-estar geral: catástrofe judiciária e naufrágio da mídia nos processos
de pedofilia de Outreau; lei de 23 de fevereiro de 2005, que afirmou o "papel positivo" do
colonialismo1; polêmica envolvendo o porta-aviões Clemenceau; insurgência nas periferias,
em novembro do ano passado; afirmação de fundamentalismos durante o caso das
caricaturas de Maomé e o assassinato odioso do jovem Ilan Halimi; privatização
descriteriosa da companhia "Gaz de France" etc. (Ramonet, 2006, Editorial, s/p)
A disputa é tanto política quanto simbólica. Após a grave derrota sofrida em junho de 2003,
quando foi votada a lei da Previdência, o movimento popular na França tenta se recuperar.
Além disso, a população acredita que aceitar o CPE, depois de ter se curvado ao CNE,
significaria uma concessão que favorece a precarização permanente do emprego e inicia o
desmantelamento completo do código de trabalho, que seria sacrificado no altar da
flexibilização. (Ramonet, 2006, idem – itálicos nossos).
Acusada pela direita de ser hoje "o órgão doente da Europa", a França é, ao contrário, um
país que resiste. Um dos poucos na Europa onde, com grande convicção, a maioria dos
assalariados rejeita uma globalização selvagem que significa a tomada do poder pelas
finanças. Uma globalização que entrega os cidadãos às empresas, enquanto o Estado se
exime de toda responsabilidade. Essa modificação radical nas relações entre poder público e
sociedade (o fim do bem-estar social) é imoral.
A solidariedade social é um traço fundamental da sociedade francesa. O CPE contribui com
a destruição dessa solidariedade. Por isso, a contestação e a revolta. (Ramonet, 2006, idem).
O desfecho dos conflitos, até o momento em que redigimos este texto, implicou em
que o governo francês retirasse o projeto do primeiro emprego, o que demonstrou que a
organização da juventude e dos desempregados franceses foram capazes de promover um
movimento de defesa de seus interesses consistente e ameaçador o suficiente para que o quadro
de institucionalização da precariedade trabalhista no país sofresse ao menos um importante revés
e revelasse que os trabalhadores, embora sindicalmente dispersos e aparentemente sem poder de
resposta ao que se lhes impõe formalmente, ainda existem e não estão dispostos a cederem mais
do que já cederam durante as décadas ultraliberais de 1980 e 1990.
169
Iniciamos este tópico com o preâmbulo acima porque ele nos parece bastante
significativo e revelador da relação entre capital e trabalho no período ultraliberal que se abateu
sobre o globo na transição do séc. XX para o séc. XXI. Essa relação, desde a crise capitalista que
se iniciou nos anos de 1970, e que atingiu seu auge na década de 1990, colocou os movimentos e
organizações trabalhadoras inicialmente na berlinda para, imediatamente após, fragilizar e
dispersar praticamente toda a organização de classe resultante de um século e meio de lutas
incessantes contra os interesses unilaterais capitalistas por todo o mundo. Este fenômeno,
econômico, político e cultural, teve seus reflexos mais imediatos não apenas na periferia do
capitalismo avançado, como também nos próprios países centrais do capitalismo mundial, de
onde emanaram teses que contribuíram para crenças e superstições quase dogmáticas e pseudo-
científicas sobre, por exemplo, o fim da centralidade do trabalho e, por extensão, o fim da classe
operária.
Tomando ainda a França como exemplo, Stéphane Beaud e Michel Pialoux (1999),
em Retour sur la condition ouvrière49 nos apresentam uma situação dos anos de 1990 bastante
sintomática acerca das representações comuns de estudantes de um curso de Ciências Sociais de
Paris, sobre a condição e significado social do operariado francês. Tomamos aqui a liberdade de
transcrevermos na íntegra o exemplo ao qual fazem referência:
49
“Retorno sobre a condição operária”, ainda sem tradução para o português (MFZ).
50
Classe preparatória para a Escola Normal Superior.
170
maneira com a qual essa desvalorização foi experimentada, sentida. (Beaud & Pialoux, 1999,
p. 15, nota 1 – tradução nossa).
O quadro acima, oferecido pelos dois sociólogos, nos parece bastante oportuno a que
possamos considerar com a adequada seriedade as condições objetivas e ideológicas que se
tornaram dominantes nos anos de 1990 acerca da população trabalhadora, notadamente sobre a
classe operária. Estaria a classe operária sendo “abolida” com os avanços tecnológicos dos meios
de produção no capitalismo contemporâneo? O trabalho estaria de fato perdendo sua
“centralidade” na sociedade dita “pós-industrial”? Estaria esta sociedade se transformando numa
sociedade do conhecimento?
Segundo Ricado Antunes, o caráter capitalista da sociedade contemporânea defende,
por meio de seus formuladores, a recusa do papel central do trabalho, tanto na sua dimensão
abstrata, que cria valores de troca — pois estes já não seriam mais decisivos hoje — quanto na
negação do papel que o trabalho concreto tem na estruturação de um mundo emancipado e em
uma vida cheia de sentido. Quer pela sua qualificação como sociedade de serviços, pós-industrial
e pós-capitalista, quer pela vigência de uma lógica institucional tripartite, vivenciada pela ação
pactuada entre o capital, os trabalhadores e o Estado, essa sociedade contemporânea, menos
mercantil e mais contratualista, não mais seria regida centralmente pela lógica do capital, mas
pela busca da alteridade dos sujeitos sociais, pela vigência de relações de civilidade fundadas na
cidadania, pela expansão crescente de "zonas de não-mercadorias", ou ainda pela disputa dos
fundos públicos (Antunes, 2000, p. 85-86). Segundo o autor:
Habermas faz a síntese mais articulada desta tese: "A utopia da sociedade do trabalho perdeu
sua força persuasiva... Acima de tudo, a utopia perdeu seu ponto de referência na realidade: a
força estruturadora e socializadora do trabalho abstrato. Claus Offe compilou convincentes
‘indicações da força objetivamente decrescente de fatores como trabalho, produção do lucro
na determinação da constituição e do desenvolvimento da sociedade em geral’. E, depois de
referir-se favoravelmente à obra de Gorz, acrescenta: "Coração da utopia, a emancipação do
trabalho heterônomo apresentou-se, porém, sob outra forma no projeto sócio-estatal. As
condições da vida emancipada e digna do homem já não devem resultar diretamente de uma
reviravolta nas condições de trabalho, isto é, de uma transformação do trabalho heterônomo
em auto-atividade" (Habermas, 1987: 106-107). Embora Habermas se refira à dimensão
abstrata do trabalho, evidencia-se, nessa vertente interpretativa, que o trabalho não tem mais
potencialidade estruturante nem no universo da sociedade contemporânea, como trabalho
abstrato, nem como fundamento de uma "utopia da sociedade do trabalho", como trabalho
concreto, pois "os acentos utópicos deslocaram-se do conceito de trabalho para o conceito de
comunicação’. ” (Habermas, idem: 114 – citado por Antunes, 2000, p. 86).
Em seu texto Adeus ao Trabalho? Ricardo Antunes (2000), defende algumas teses
que nos parecem muito pertinentes e elucidativas acerca da questão deste tópico. E, em sua
primeira tese, defende que “sem a devida incorporação desta distinção entre trabalho concreto e
abstrato, quando se diz adeus ao trabalho, comete-se um forte equívoco analítico, pois conside-
ra-se de maneira una um fenômeno que tem dupla dimensão.” E, recorrendo a Agnes Heller,
171
examina a questão insistindo que o trabalho tem que ser apreendido em seu duplo aspecto:
“como execução de um trabalho”, parte ativa da vida cotidiana, e como atividade de trabalho,
como uma “objetivação diretamente genérica”:
Marx, diz a autora, serve-se de dois termos distintos para melhor caracterizar esta dimensão
dupla do trabalho: work e labour. O primeiro (work) realiza-se como expressão do trabalho
concreto, que cria valores socialmente úteis. O segundo (labour) expressa a execução
cotidiana do trabalho, convertendo-se em sinônimo de trabalho alienado. O trabalho
entendido enquanto work expressa então uma atividade genérico-social que transcende a vida
cotidiana. É a dimensão voltada para a produção de valores de uso. É o momento da
prevalência do trabalho concreto. Em contrapartida labour exprime a realização da atividade
cotidiana, que sob o capitalismo assume a forma de atividade estranhada, fetichizada. A
desconsideração desta dupla dimensão presente no trabalho possibilita que a crise da
sociedade do trabalho abstrato seja entendida equivocamente como a crise da sociedade do
trabalho concreto. (Antunes, 2000, p. 88).
[...] a superação da sociedade do trabalho abstrato (para usarmos uma vez mais essa
expressão) e o seu trânsito para uma sociedade emancipada, fundada no trabalho concreto,
supõe a redução da jornada de trabalho e a ampliação do tempo livre, ao mesmo tempo em
que supõe também uma transformação radical do trabalho estranhado em um trabalho social
que seja fonte e base para a emancipação humana, para uma consciência omnilateral. Em
outras palavras, a recusa radical do trabalho abstrato não deve levar à recusa da possibilidade
de conceber o trabalho concreto como dimensão primária, originária, ponto de partida para a
realização das necessidades humanas e sociais. É a não aceitação desta tese que leva tantos
autores, Gorz à frente, a imaginar um trabalho sempre heterônomo, restando praticamente a
luta pelo tempo liberado. Seria a realização, esta sim utópica e romântica, do trabalho que
avilta e do tempo (fora do trabalho) que libera. Entendemos que a ação efetivamente capaz
51
O gênero para-si, em Marx e Heller, corresponde à esfera do processo de humanização histórico-social da
humanidade, humanização que não pode se dar exclusivamente pela esfera das atividades cotidianas ou meramente
empíricas do trabalho alienado, dado o seu caráter de parcialidade — embora o trabalho alienado possa ser
entendido como um substrato do trabalho concreto, forma verdadeiramente emancipadora da humanidade. Como
subentendido no trabalho como work, ele pode ser convertido em atividade realizadora para-si (por oposição à sua
mera condição, no capitalismo, de atividade alienadora em-si, no sentido de labour, a que se refere Antunes).
Retomamos essa discussão no Capítulo IV.
172
de possibilitar o salto para além do capital será aquela que incorpore as reivindicações
presentes na cotidianidade do mundo do trabalho, como a redução radical da jornada de
trabalho e a busca do "tempo livre" sob o capitalismo, desde que esta ação esteja
indissoluvelmente articulada com o fim da sociedade do trabalho abstrato e a sua conversão
em uma sociedade criadora de coisas verdadeiramente úteis. Este seria o ponto de partida
para uma organização societária que caminhe para a realização do reino das necessidades
(esfera onde o trabalho se insere) para o reino da liberdade (esfera onde o trabalho deixa de
ser determinado, como disse Marx, pela necessidade pela utilidade exteriormente imposta),
condição para um projeto fundamentado na associação livre dos indivíduos tornados
efetivamente sociais, momento de identidade entre o indivíduo e o gênero humano.
(Antunes, 2000, p. 89).
Antunes complementa que, por esses motivos, “quando o movimento de classe dos
trabalhadores se restringe e se atém exclusivamente à luta pela redução da jornada de trabalho,
configura-se aí uma posição extremamente defensiva e insuficiente.” Ora, parece-nos que ao
assim proceder, a classe trabalhadora demonstra não só sua sujeição ao regime assalariado que a
controla e conforma há quase dois séculos, quanto nos faz pensar no afastamento dos
trabalhadores de uma visão mais científica e histórica de sua própria situação na esfera do
trabalho. Há ainda alguma ligação entre os movimentos trabalhistas e uma teoria explicativa de
de sua condição de classe produtora dentro do modo capitalista de acumulação? Esta é uma
questão que nos parece inevitável e procedente.
O autor complementa essa nossa observação com a seguinte consideração: “limitada
a si mesma, esta ação situa-se no interior da sociedade produtora de mercadorias. É
imprescindível articular estas ações mais imediatas com um projeto global e alternativo de
organização societária, fundamentado numa lógica onde a produção de valores de troca não
encontre nenhuma possibilidade de se constituir como elemento estruturante.” (Antunes, 2000, p.
90).
Ainda em sua primeira tese, Antunes defende que:
[...] o tempo disponível, do ponto de vista do trabalho voltado para a produção de coisas
socialmente úteis e necessárias, propiciará a eliminação de todo o trabalho excedente
acumulado pelo capital e voltado para a produção destrutiva de valores de troca. Desse
modo, o tempo disponível controlado pelo trabalho e voltado para a produção de valores de
uso — e tendo como conseqüência o resgate da dimensão concreta do trabalho e a dissolução
da sua dimensão abstrata — poderá instaurar uma lógica societária radicalmente diferente da
sociedade produtora de mercadorias. E será capaz de, uma vez mais, evidenciar o papel
fundante do trabalho criativo — que suprime a distinção entre trabalho manual/trabalho
intelectual que fundamenta a divisão social do trabalho sob o capital - e por isso capaz de se
constituir em protoforma de uma atividade humana emancipada. (Antunes, 2000, p. 90)
Em sua segunda tese, o autor enfatizará que, “enquanto criador de valores de uso,
coisas úteis, forma de intercâmbio entre o ser social e a natureza, não parece plausível conceber-
se, no universo da sociabilidade humana, a extinção do trabalho social.” Se é possível visualizar
a eliminação da sociedade do trabalho abstrato — ação esta necessariamente articulada com o
173
Em outras palavras: uma coisa é conceber, com a eliminação do capitalismo, também o fim
do trabalho abstrato, do trabalho estranhado; outra, muito distinta, é conceber a eliminação,
no universo da sociabilidade humana, do trabalho concreto, que cria coisas socialmente úteis,
e que, ao fazê-lo, (auto)transforma o seu próprio criador. Uma vez que se conceba o trabalho
desprovido dessa sua dupla dimensão, resta identificá-lo como sinônimo de trabalho abstrato,
trabalho estranhado e fetichizado. A conseqüência que disto decorre é, então, na melhor das
hipóteses, imaginar uma sociedade do tempo livre, com algum sentido, mas que conviva com
as formas existentes de trabalho estranhado e fetichizado. (Antunes, 2000, p. 91).
Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição na
existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade
natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana.
(Marx, 1988, p. 50).
Aqui transparece uma vez mais a fragilidade maior dos críticos da sociedade do trabalho: a
desconsideração da dimensão essencial do trabalho concreto como fundamento (na medida
em que se insere na esfera das necessidades) capaz de possibilitar a base material sobre a
qual as demais esferas da atividade humana podem se desenvolver. Em verdade, essa
concepção fundamenta-se no reconhecimento e na aceitação de que o trabalho, regido pela
lógica do capital e das mercadorias, é inevitável ou até mesmo ineliminável, do que resulta
que o trabalho humano não pode converter-se numa verdadeira autoatividade. (Antunes,
2000, p. 92)
neste plano a sua base de sustentação. Antunes enfatiza, ainda com base em Marx, que neste
sentido, a automação, a robótica, a microeletrônica, enfim, a chamada revolução tecnológica têm
um evidente significado emancipatório, desde que não seja regida pela lógica destrutiva do
sistema produtor de mercadorias, mas sim pela sociedade do tempo disponível e da produção de
bens socialmente úteis e necessários. Mandel teria sintetizado da seguinte forma essas
condições:
interior de uma sociedade fetichizada, como se fosse possível vivenciar uma vida abso-
lutamente sem sentido no trabalho e cheia de sentido fora dele. Ou, repetindo o que dissemos
anteriormente, tentando compatibilizar trabalho aviltado com tempo liberado. (Antunes,
2000, p. 93-94).
52
Trabalho apresentado na Sessão Especial intitulada Habilidades e Competências: a Educação e as Ilusões da
Sociedade do Conhecimento, durante a XXIV Reunião Anual da ANPED, 8 a 11 de outubro de 2001, Caxambu,
M.G.
176
Philippe Perrenoud, em seu livro Construir as Competências Desde a Escola, afirma que “a
abordagem por competências junta-se às exigências da focalização sobre o aluno, da
pedagogia diferenciada e dos métodos ativos” (Perrenoud, 1999: 53). Convém lembrar que a
expressão métodos ativos é utilizada como referência às idéias pedagógicas que tiveram sua
origem no movimento escolanovista. Alguns parágrafos mais adiante, nesse mesmo livro,
Perrenoud afirma que “a formação de competências exige uma pequena ‘revolução cultural’
para passar de uma lógica do ensino para uma lógica do treinamento (coaching), baseada
em um postulado relativamente simples: constroem-se as competências exercitando-se em
situações complexas” (Perrenoud, 1999: 54). Esse aprender a aprender é, portanto, também
um aprender fazendo, isto é, learning by doing, na clássica formulação da pedagogia de John
Dewey. (Duarte, 2001, p. 35).
Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por problemas e projetos,
propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar seus conhecimentos e,
em certa medida, completá-los. Isso pressupõe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para
a cidade ou para o bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de pensar
que dar aulas é o cerne da profissão. Ensinar, hoje, deveria consistir em conceber, encaixar e
regular situações de aprendizagem seguindo os princípios pedagógicos ativos e
construtivistas. Para os professores adeptos de uma visão construtivista e interacionista de
aprendizagem trabalhar no desenvolvimento de competências não é uma ruptura. (Perrenoud,
2000 – citado por Duarte, 2001, idem).
Duarte, referindo-se então às investigações que tem realizado em relação aos objetos
já mencionados, esclarece suas hipóteses e relações apreendidas por seus estudos sobre os
mesmos:
(Duarte, 2000). Nesse livro analisei a presença do lema “Aprender a Aprender” em dois
documentos da área educacional: o primeiro, relativo à educação em âmbito mundial, é o
relatório da comissão internacional da UNESCO, conhecido como Relatório Jacques Delors,
presidente da comissão (Delors, 1998); o segundo, o capítulo “Princípios e Fundamentos dos
Parâmetros Curriculares Nacionais”, do volume I, “Introdução”, dos PCN das séries iniciais
do Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, p. 33-55). Nesta apresentação não poderei,
entretanto, deter-me nos detalhes dessa análise. Focalizarei apenas quatro posicionamentos
valorativos contidos no lema “aprender a aprender”. (Duarte, 2001, p. 36).
53
O significado de para-si é o mesmo que mencionamos no item anterior, referente à concepção de Marx e à
sistematização de Agnes Heller (MFZ).
178
dos séculos XIX e XX, e assumidos pelo movimento escolanovista brasileiro, em que o como e o
onde se aprende se tornam mais relevantes que o quê se aprende e para quê:
O segundo posicionamento valorativo contido no lema “aprender a aprender” pode ser assim
formulado: é mais importante o aluno desenvolver um método de aquisição, elaboração,
descoberta, construção de conhecimentos, do que esse aluno aprender os conhecimentos que
foram descobertos e elaborados por outras pessoas. É mais importante adquirir o método
científico do que o conhecimento científico já existente. Esse segundo posicionamento
valorativo não pode ser separado do primeiro, pois o indivíduo só poderia adquirir o método
de investigação, só poderia “aprender a aprender” através de uma atividade autônoma.
Piaget, numa conferência proferida em 1947, intitulada “O Desenvolvimento Moral do
Adolescente em Dois Tipos de Sociedade: Sociedade Primitiva e Sociedade ‘Moderna’”,
defendeu essa idéia ao contrapor a transmissão de conhecimentos existentes ao oferecimento
de condições que permitam ao aluno construir suas próprias verdades:
Denota-se dos dois postulados piagetianos que a pedagogia que propõe, “dos quais
toda educação inspirada pela psicologia não poderia se afastar”, uma concepção sobre “verdade”
como algo estritamente próprio a cada indivíduo. Logo, que qualquer noção de verdade só é
válida no âmbito da individualidade, segundo sua compreensão da realidade (o que torna a
verdade um princípio intrinsecamente relativista). Assim sendo, o método de aprendizagem
confunde-se também com o método científico. Mas o método científico em questão deve estar a
serviço do aprendizado em-si mesmo considerado. Logo, em termos de uma sociologia do
conhecimento, Piaget, ele mesmo um psicólogo experimental, presume que a experimentação
ativa seja o método científico por excelência para a aprendizagem. Isso enseja o espontaneísmo
naturalista e a-histórico, que aliás marcaram profundamente as próprios estudos piagetianos,
realizados, amiúde, em laboratório com crianças de etnia européia e em maior ou menor grau
pertencentes a estratos sócio-culturais determinados. Por fim, o posicionamento epistemológico
de Piaget desconsidera os conhecimentos como social e historicamente produzidos e
sistematizados. Isto propicia, a seu turno, uma visão imediatista da sociedade, seu funcionamento
e seus valores, o que, certamente, seu método acaba por prescrever às próprias novas gerações
em processo de aprendizagem. Isto fatalmente nos remete à presença de um pragmatismo
179
imediatista que, a posteriori, nos indica que a noção de verdade, a exemplo do que prescrevia
William James, estará diretamente relacionada à sua utilidade imediata. E acrescenta Duarte:
Uma versão contemporânea desse posicionamento aparece no livro do autor português Vitor
da Fonseca, intitulado “Aprender a Aprender: a educabilidade cognitiva”. Ao abordar as
mudanças na economia global e suas implicações para uma formação de recursos humanos
que esteja à altura dos desafios do século XXI, esse autor afirma o seguinte :
Aos educadores caberia conhecer a realidade social não para fazer a crítica a essa realidade e
construir uma educação comprometida com as lutas por uma transformação social radical,
mas sim para saber melhor quais competências a realidade social está exigindo dos
indivíduos. Quando educadores e psicólogos apresentam o “aprender a aprender” como
síntese de uma educação destinada a formar indivíduos criativos, é importante atentar para
181
um detalhe fundamental: essa criatividade não deve ser confundida com busca de
transformações radicais na realidade social, busca de superação radical da sociedade
capitalista, mas sim criatividade em termos de capacidade de encontrar novas formas de ação
que permitam melhor adaptação aos ditames da sociedade capitalista. (Duarte, 2001, p. 38).
Primeira Ilusão:
“O conhecimento nunca esteve tão acessível como hoje, isto é, vivemos numa sociedade na
qual o acesso ao conhecimento foi amplamente democratizado pelos meios de comunicação,
pela informática, pela Internet etc.”
Segunda Ilusão:
“A capacidade para lidar de forma criativa com situações singulares no cotidiano ou, como
diria Perrenoud, a habilidade de mobilizar conhecimentos, é muito mais importante que a
aquisição de conhecimentos teóricos, especialmente nos dias de hoje, quando já estariam
superadas as teorias pautadas em metanarrativas, isto é, estariam superadas as tentativas
de elaboração de grandes sínteses teóricas sobre a história, a sociedade e o ser humano.”
Terceira Ilusão:
Quarta Ilusão:
“Os conhecimentos têm todos o mesmo valor, não havendo entre eles hierarquia quanto à
sua qualidade ou quanto ao seu poder explicativo da realidade natural e social.”
Quinta Ilusão:
“O apelo à consciência dos indivíduos, seja através das palavras, seja através dos bons
exemplos dados por outros indivíduos ou por comunidades, constitui o caminho para a
superação dos grandes problemas da humanidade.”
Sexta Ilusão:
“Essa ilusão contém uma outra, qual seja, a de que esses grandes problemas existem como
conseqüência de determinadas mentalidades. As concepções idealistas da educação apóiam-
se todas nessa ilusão. É nessa direção que são tão difundidas atualmente, pela mídia, certas
experiências educativas tidas como aquelas que estariam criando um futuro melhor por
meio da preparação das novas gerações. Assim, acabar com as guerras seria algo possível
através de experiências educativas que cultivem a tolerância entre crianças e jovens. A
guerra é vista como conseqüência de processos primariamente subjetivos ou, no máximo
inter-subjetivos. Nessa direção, a guerra entre EUA e Afeganistão, por exemplo, é vista
como conseqüência do despreparo das pessoas para conviverem com as diferenças
culturais, como conseqüência da intolerância, do fanatismo religioso. Deixa-se de lado toda
uma complexa realidade política e econômica gerada pelo imperialismo norte-americano e
multiplicam-se os apelos românticos ao cultivo do respeito às diferenças culturais.”
182
[...] “Essas idéias, acima apresentadas na forma de seis ilusões, têm sido tão amplamente
aceitas, têm exercido um tal fascínio sobre grande parcela dos intelectuais dos dias de hoje,
que o simples fato de questionar a veracidade das mesmas talvez já produza um efeito
positivo, qual seja, o de fazer com que a adesão a essas idéias ou a crítica às mesmas deixe o
terreno das emoções que sustentam o fascínio e a sedução e passem ao terreno da análise
propriamente intelectual.” (Duarte, 2001, p. 39-40)
É preciso, porém, estar atento para não cair na armadilha idealista que consiste em acreditar
que o combate às ilusões pode, por si mesmo, transformar a realidade que produz essas
ilusões. Como escreveu Marx: “conclamar as pessoas a acabarem com as ilusões acerca de
uma situação é conclamá-las a acabarem com uma situação que precisa de ilusões”. (Duarte,
2001, p. 40).
contrapor-se aos tradicionais e rígidos modelos de ciência, literatura e estética, que seriam
próprios à modernidade. No cerne deste movimento heterogêneo, cujo espectro abrangeria tanto o
abandono sarcástico de alguns pensadores do protótipo de civilização ilustrada, até
posicionamentos supostamente epistemológicos, que remetiam críticas aos modelos positivistas e
marxistas, um elemento comum: o ataque à premissa iluminista do poder da razão e, por
extensão, do estabelecimento de verdades no plano do conhecimento.
Por fim, a consolidação do construtivismo piagetiano como fundamento
psicopedagógico para a educação formal. Por sua estreita vinculação com os modelos
pedagógicos ativos, cujo expoente encontramos no movimento escolanovista, após décadas de
experimentações explicitamente tecnicistas e focadas na aprendizagem hierarquizada de
conteúdos escolares, o construtivismo se difunde como alternativa revolucionária para as crises
de uma educação sempre defendida como tábua de salvação para as crises sociais. Os postulados
construtivistas são rápida e universalmente assimilados mediante as supostas incoerências do
chamado “ensino tradicional” para com a cotidianidade e realidade da vida em sociedade. Seus
pressupostos anti-conceituais e que diminuem o papel tradicionalmente atribuído aos professores
e aumentam a importância dos conhecimentos tácitos dos alunos, seduzem tanto professores
sobrecarregados e desvalorizados, quanto aos alunos, cujas vivências passam a ser
sobrevalorizadas.
Resta-nos, após estas observações gerais, adentrarmos agora nas questões
propriamente relacionadas à noção de competência, aqui defendida como princípio educativo
ultraliberal para o trabalho e a educação do século XXI. Contudo, é importante enfatizar, em
última análise este princípio pedagógico continua intrinsecamente relacionado ao princípio
educativo do trabalho, já discutido por Antonio Gramsci. Portanto, como entender seu advento?
Porque a noção de qualificação, tradicionalmente ligada e fornecida pelas próprias profissões e
seus certificados desde princípios do século XX, é substituída, a partir dos anos de 1990, pela
noção de competência para o século XXI? O presente capítulo tem, por objetivos centrais,
analisar tais questões, que ao nosso ver, estão menos relacionadas às supostas inovações do
capitalismo atual que a verdadeiras involuções em sua estruturação como um todo. Assim, novos
argumentos, discursos, exigências e mecanismos ideológicos se tornam necessários a que o
capitalismo mantenha-se, idealmente ao menos, legítimado.
Após estas incursões sobre o panorama das transformações nas esferas da produção
material e ideológica dos últimos 15 anos, nos debruçamos agora sobre o que tomamos neste estudo
como objeto de nossas considerações, ou seja, o discurso da competência para o trabalho e sua
184
extensão à esfera educacional através do que Ramos (2001) denomina como uma pedagogia das
competências.
Diante das relações inextricáveis que consideramos haver entre os produtos sociais do
trabalho e a socialização dos saberes daí resultantes (dialeticamente, relações entre objetivações e
apropriações histórico-sociais humanas), tomamos como pressuposto que, independentemente das
variadas formas como a atividade do trabalho tenha até aqui sido determinada nos e pelos modos
produtivos já conhecidos, a produção material e a acumulação social de saberes tendem sempre a se
influenciarem mutuamente, em maior ou menor grau. Em se tratando do modo de produção capitalista,
parece-nos claro que, em termos históricos, essas relações tenham sido até aqui contraditórias,
sobredeterminadas pela divisão social do trabalho e pela divisão social de classes, fenômenos estes
fundamentados na exploração, alienação e apropriação privada dos processos e resultados do trabalho
humano.
Contudo, em sendo um dos motores do capitalismo a necessidade de constante inovação54
e exploração de novas possibilidades produtivas e mercadológicas — o que, necessariamente, implica
em uma ampliação e diversificação constante também de conhecimentos —, os saberes que se tornam
condição para a própria manutenção e aprimoramento dos recursos e relações produtivas requerem a
adequação dos trabalhadores necessários aos imperativos daí decorrentes (sejam imperativos técnico-
instrumentais, organizacionais, comportamentais, morais etc, estreitamente ligados ao ethos
hegemônico). Não poderíamos de modo algum negligenciar a complexidade e variabilidade de um tal
processo, em suas relações e determinações, para a atividade vital do trabalho e para o ensino. Em
diferentes níveis e lugares, não menos de acordo com a hierarquização das relações sociais de produção
e organização capitalistas, o ensino certamente refletirá sempre as relações sociais de produção através
dos tempos.55
No atual contexto de reordenação produtiva, torna-se evidente que a educação se
apresente como instância estratégica à consecução não só dos aprendizados necessários à manutenção
da produção e dos mercados pretendidos (exigências produtivas e mercadológicas através de recursos
humanos de produção e de consumo necessários), como também à disseminação dos ideários
subjacentes à assimilação de seus princípios norteadores (exigências ideológicas, com os elementos que
54
Marx e Engels já indicavam essa característica do capitalismo em 1848: “Foi ela” [a burguesia] “quem primeiro
demonstrou o que a atividade dos homens pode conseguir. Realizou maravilhas completamente diferentes das
pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas; levou a cabo expedições completamente
diferentes das antigas migrações de povos e das cruzadas. A burguesia não pode existir sem revolucionar
permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção, por conseguinte todas as
relações sociais. [...] O permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a
incerteza e o movimento eternos, distinguem a época da burguesia de todas as outras.” (Marx & Engels, 1987c, p.
37).
55
Remetemos o leitor, a título de exemplo, ao clássico trabalho de Mariano F. Enguita a esse respeito, A face oculta
da escola (ver Enguita, 1989).
185
como condição sine qua non para uma boa colocação no mundo do trabalho, a escolarização passa a
figurar como instrumento maior para a contenção e reversão do fenômeno da pobreza (Leher, 1998),
ignorando-se ou camuflando-se os fatores objetivos que realmente estão na origem da pauperização,
marginalização e, por fim, da exclusão social efetiva. Segundo Kuenzer:
Mudadas as bases materiais de produção, é preciso capacitar o trabalhador novo, para que
atenda às demandas de um processo produtivo cada vez mais esvaziado, no qual a
polarização das competências se coloca de forma muito mais dramática... (...) É preciso que
o trabalhador se submeta ao capital, compreendendo sua própria alienação como resultante
de sua prática pessoal “inadequada”, para o que contribuem os processos de persuasão e
coerção constitutivos da hegemonia capitalista. (Kuenzer, 2002, p.80 – itálicos nossos).
2.2. O Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século
XXI
conhecer melhor enquanto pessoas para compreender melhor a nós e aos outros, e assim,
podermos contribuir para melhorar as relações entre pares e para com o mundo, de forma
solidária e democrática.
A análise dos avanços em altas tecnologias que se instauram na modernidade
(afirmados como inevitáveis) é bastante superficial, no sentido de que ao mesmo tempo em que
mencionam variáveis problemáticas, inclina-se a um otimismo em relação ao futuro que dispersa
ou diminui qualquer contingência mais séria do presente. Senão, vejamos:
Muito embora os efeitos da extensão das redes informáticas sejam ainda limitados, por serem
ainda relativamente poucos os que possuem as novas tecnologias e dominam o modo de
utilizá-las, tudo leva a crer que se trata de uma revolução inevitável que permitirá a
transmissão de uma quantidade cada vez maior de informação num lapso de tempo cada vez
mais curto. Observa-se, igualmente, uma crescente penetração destas novas tecnologias em
todos os níveis da sociedade, facilitada pelo baixo custo dos materiais, o que os torna cada
vez mais acessíveis. (Delors et. al., 1996/2003, p. 64 – itálicos nossos).
A colaboração das ciências sociais e humanas é, sob este ponto de vista, essencial, na medida
em que abordam tanto a existência em si mesma, como os fatos sociais. Será preciso
acrescentar que esta pesquisa pluridisciplinar deverá contar com a participação da história e
da filosofia? A filosofia, porque desenvolve o espírito crítico indispensável ao
funcionamento da democracia; a história porque é insubstituível na sua função de ampliar os
horizontes do indivíduo e de fazer com que tome consciência das identidades coletivas. O
seu ensino deve, contudo, ultrapassar o contexto nacional e incluir uma dimensão social e
cultural, de tal modo que o conhecimento do passado permita melhor compreender e julgar o
presente. Abre-se, aqui, um novo espaço para os responsáveis pelas grandes orientações da
política educativa e pela elaboração de programas. Esta perspectiva tende a integrar as
aquisições das ciências sociais numa visão global, permitindo uma ampla compreensão dos
fatos passados e presentes. (Delors et. al., 2003, p. 60 – itálicos nossos).
Note-se o grau de superficialidade com que o trecho faz referência às disciplinas das
ciências humanas mencionadas. Coerente com a recomendação de que a educação deva eximir-
se de atividades que privilegiem a abstração, o relatório não descarta as disciplinas que envolvam
processos de abstração, mas apropria-se das mesmas, “re-significando” a noção de conteúdos
científicos, de modo a adequá-los a se prestarem à função instrumental de adequação dos
indivíduos ao seu meio através da cidadanização e pelo convívio democrático, participativo e
comunitário responsável. Numa tal perspectiva permanece embotado o real sentido de “espírito
crítico indispensável ao funcionamento da democracia.” De qual democracia? O que se quer
dizer com “estudar-se a existência em si mesma, como fatos sociais”? O que se quer dizer com
“tomar-se consciência das identidades coletivas” através da história? E, do mesmo modo, com
“ampliar-se os horizontes do indivíduo” em relação a tais identidades coletivas? Parece-nos que
a menção à importância das disciplinas ditas científicas e abstratas é muito mais vaga e menos
esclarecedora que a recomendação de que o verdadeiro ensino abstenha-se de atividades
abstratas e/ou conceituais (retomaremos esta questão no Capítulo IV, onde pretendemos desvelar
a crença equivocada do pragmatismo escolanovista em relação a conceitos e à faculdade humana
da abstração).
As escolas passam, assim, a serem esvaziadas de sua função histórica de promover o
contato dessas populações com conhecimentos clássicos, conceitos científicos ou não-cotidianos,
limitando-se a se adequar às aspirações da cotidianidade e da dimensão desiderativa dos
indivíduos em questão — e, enfatizamos, o relatório manifesta constantemente sua preocupação
e foco na educação destinada às populações mais pobres, denominadas “minoritárias” e com
inclinação à inadaptação, abandono e fracasso escolar.
191
3) Aprender a fazer: que para a Comissão implica em, além da aprendizagem de uma
profissão, adquirir competência ampla, “que prepare o indivíduo para enfrentar numerosas
situações, muitas delas imprevisíveis, e que facilite o trabalho em equipe, dimensão atualmente
muito negligenciada pelos métodos pedagógicos. Estas competências e qualificações tornam-se,
muitas vezes, mais acessíveis se quem estuda tiver possibilidade de se pôr à prova e de se
enriquecer, tomando parte em atividades profissionais e sociais, em paralelo com os estudos.
Daqui a necessidade de atribuir cada vez maior importância às diferentes formas de alternância
entre escola e trabalho.” (Delors et. al., 2003, p. 20). Deste terceiro mandamento, denota-se já
que os indivíduos possivelmente incluídos no mercado de trabalho devam viver para aprender a
nele se manter.
4) Aprender a ser: haja vista que “o século XXI exigirá de todos nós grande
capacidade de autonomia e de discernimento, juntamente com o reforço da responsabilidade
pessoal, na realização de um destino coletivo. E, ainda, por causa de outra exigência para a qual
o relatório chama a atenção: não deixar por explorar nenhum dos talentos que constituem como
que tesouros escondidos no interior de cada ser humano. Memória, raciocínio, imaginação,
capacidades físicas, sentido estético, facilidade de comunicação com os outros, carisma natural
para animador (sic!), ...e não pretendemos ser exaustivos. O que só vem confirmar a necessidade
de cada um se conhecer e compreender melhor.” (Delors et. al., 2003, p. 19).
Entendemos que, além da função da escola contida no discurso da competência que
visa a atividades práticas no âmbito das individualidades, deparamos também com o
travestimento da escola numa válvula de escape às tensões sociais, pelo qual esta também se
adequado ao cotidiano das camadas marginalizadas.
Uma vez que a sociedade capitalista está em crise (econômica, ética, moral, cultural,
sanitária etc.), seus imperativos relativos à exploração do trabalho, maximização da produção e
de lucros, consumismo, alienação, fetichização etc., exacerbam e provocam conflitos e
contradições insolúveis do ponto de vista de sua própria lógica. O anacronismo social ameaça as
classes dominantes através da pobreza, violência, criminalidade, desemprego etc. Numa visão
essencialmente classista, e diante do fato de não visualizar saída para uma sociedade em crise e
que é entendida como o mundo que nos é possível, a proposta da classe hegemônica é a da
adequação da humanidade despreviligiada ao problema, e não sua solução (já que sua solução
certamente implicaria na dissolução do próprio modo capitalista de produção e organização
social).
A grande estratégia notada no relatório é o de incumbir à educação as
responsabilidades por adequar os resíduos humanos do capitalismo à sua lógica reprodutivista,
193
56
Com base na noção de capital cultural de Pierre Bourdieu (ver Pierre Bourdieu, A economia das trocas
simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004).
194
9394/96, a ponto de serem literalmente reproduzidos, por exemplo, na Introdução dos referidos
PCN’s. Senão, vejamos:
• Embora parte da humanidade esteja mais consciente das ameaças que pesam sobre o
ambiente natural e da utilização irracional dos recursos naturais, que conduz a uma
degradação acelerada do meio ambiente que atinge a todos, ainda não há meios eficientes
para solucionar esses problemas; além disso, a crença de que o crescimento econômico
pudesse beneficiar a todos e permitisse conciliar progresso material e eqüidade, o respeito da
condição humana e o respeito à natureza, nem sempre é exercido.
A tensão entre o global e o local, ou seja, entre tornar-se pouco a pouco cidadão do mundo
sem perder suas raízes, participando ativamente da vida de sua nação e de sua comunidade.
Num mundo marcado por um processo de mundialização cultural e globalização econômica,
os fóruns políticos internacionais assumem crescente importância. No entanto, as
transformações em curso não parecem apontar para o esvaziamento dos Estados/Nação. Pelo
contrário, a busca de uma sociedade integrada no ambiente em que se encontra o “outro”
mais imediato, na comunidade mais próxima e na própria nação, surge como necessidade
para chegar à integração da humanidade como um todo. É cada vez mais forte o
reconhecimento de que a diversidade étnica, regional e cultural continuam a exercer um
papel crucial e de que é no âmbito do Estado/Nação que a cidadania pode ser exercida.
A necessidade de que a educação trabalhe a formação ética dos alunos é cada vez
mais defendida. A escola deve assumir-se como um espaço de vivência e de discussão dos
referenciais éticos, não como instância normativa e normatizadora, mas um “local social”
privilegiado de construção dos “significados éticos” necessários e constitutivos de toda e
qualquer ação de “cidadania”, promovendo discussões sobre a “dignidade do ser humano”,
igualdade de direitos, recusa de “formas de discriminação”, com ênfase na importância da
solidariedade, respeito às diferenças e observância das leis estabelecidas.
Além da análise da conjuntura mundial, os documentos também apresentam as
seguintes recomendações:
- aprender a ser, para melhor desenvolver sua personalidade e poder agir com autonomia,
expressando opiniões e assumindo as responsabilidades pessoais.” (Brasil, MEC/Secretaria
de Educação Fundamental, PCN´s, p. 15-17)
196
No âmbito mais específico da educação para o trabalho, uma noção essencial que passa a
figurar nos documentos oficiais é o de polivalência, que assim seria descrito no Parecer CNE/CEB, nº
16/99:
Contudo, uma vez feita referência a tais aspectos incontornáveis do ponto de vista
dos fatos concretos, o Parecer imediatamente retoma seu caráter eminentemente abstrato:
Para que possamos nos situar melhor em relação ao advento do discurso da competência e
sua estreita relação com o movimento ultraliberal atual, parece-nos fundamental compreendermos os
contextos de produção dos princípios relacionados à qualificação e a posterior evolução do conceito
atual de competência. Estes dois conceitos não são em absoluto mutuamente excludentes, mas
tampouco se revelam completamente identificáveis.
Nossa reflexão necessariamente parte da noção de profissionalização para o trabalho, que
durante o período de consolidação da sociedade industrial presumia a formação adequada de
especialistas segundo habilitações e classificações profissionais relativamente lineares e socialmente
bem definidas57, por sua vez certificadas por diplomas, o que atingia, sobretudo, os trabalhadores
encarregados pela gestão orgânica das atividades produtivas. 58
Segundo Zarifian (2001) — reconhecido estudioso de tais processos do ponto de vista de
sua evolução em termos da gestão empresarial —, em oposição às formas de organização ancoradas
nos postos de trabalho, as novas formas de organização apresentam-se sob conceitos que indicam
mudanças no conteúdo do trabalho e requerem um novo perfil do trabalhador que possibilite viabilizar
estratégias inovadoras de produtividade, quais sejam, o de evento, comunicação e serviço. Esses
conceitos, para o autor, encontrar-se-iam interligados, uma vez que enfrentar um evento é resolver
problemas inesperados que perturbam o desenvolvimento normal da produção de modo a se buscar
estratégias inovadoras, o que pressupõe um exercício reflexivo e interativo do sujeito com sua equipe
de trabalho. A necessidade da comunicação seria condição essencial para a interação dos grupos de
trabalho, bem como o oferecimento de um serviço de qualidade ao cliente, influiriam nas alterações e
adaptações mediante a ocorrência de eventos. Nessa perspectiva, Zarifian acredita que “o trabalho
reverte-se ao trabalhador. O trabalho torna-se prolongamento direto da competência pessoal que o
indivíduo mobiliza diante de uma atuação profissional.” (Zarifian, 2001, p. 56)
De acordo com essa abordagem, o indivíduo (trabalhador) estaria no centro do processo
57
Evidentemente, não nos referimos aqui a uma formação generalizada da classe trabalhadora. Não podemos
confundir aqui “formação tecnicamente especializada” dos quadros superiores (ligados à organização e concepção
dos processos de trabalho) com “adestramento e disciplina” dos quadros operários (força de trabalho ou executores
do processo de trabalho). Neste aspecto, dizia o próprio Taylor em The Principles of Scientific Management
(1911/2004), “it is also clear that in most cases one type of man is needed to plan ahead and an entirely different
type to execute the work” (é também claro que na maioria dos casos um tipo de homem é necessário para planejar e
um tipo inteiramente diferente para executar o trabalho).
58
Na acepção dos franceses, por exemplo, para além dos assalariados manuais ou ouvriers, há também os employés
ou funcionários técnico-administrativos pertencentes a um nível hierárquico intermediário e geralmente burocrático,
e, por fim, os cadres, pertencentes a um nível hierárquico superior e que gerenciam e arbitram o funcionamento da
própria unidade de produção.
199
[...] a qualificação diz respeito à capacidade de realização das tarefas requeridas pela
tecnologia capitalista. Nessa perspectiva, diria, é qualificada aquela força de trabalho capaz
de realizar as tarefas recorrentes de um determinado patamar tecnológico e de uma forma de
organização do processo de trabalho. Isso já confere ao termo temporalidade e relativiza seu
conteúdo, à medida em que cada estágio de desenvolvimento social e tecnológico e em cada
forma de organização do trabalho novos atributos são agregados à qualificação e novas
hierarquizações são esclarecidas entre eles. (Bruno, 1996, p. 92)
A riqueza da noção de qualificação foi ressaltada por esses últimos estudiosos, que
salientaram a sua multidimensionalidade: qualificação do emprego, definida pela empresa a
partir das exigências do posto de trabalho, e que serve de base ao sistema de classificações
200
Desse modo, a noção de competência ainda que não se opusesse à noção de qualificação
em alguns aspectos, ao contemplar o desenvolvimento de características comportamentais indiretas em
um contexto de trabalho flexível e sem considerar a dimensão contraditória que envolve a relação
capital/trabalho, na qual o capital tende a expropriar todas as potencialidades do trabalhador em seu
favor, constitui-se em uma noção produzida e fiel à ótica empresarial.
Outra vertente de análises, que entendemos como historicizadora e crítica, baseia suas
análises não só no enfoque das necessidades estritamente empresariais que têm sido lançadas sob o
eufemismo da necessidade de trabalhadores (individualmente considerados) supostamente mais
competentes como resultado de um processo de mutação ocorrido no bojo da própria noção de
qualificação. Ou seja, saímos agora de uma perspectiva ligada ao contexto próprio da gestão
empresarial para uma perspectiva que tem no trabalhador (como conjunto de indivíduos pertencentes a
uma classe social) o seu principal aspecto.
Foi na década de 1980, e mais especificamente a partir de sua primeira metade, que uma
série de mudanças tendenciais na esfera produtiva nas nações de capitalismo avançado dão início a um
processo de “desespecialização” profissional. Segundo Ramos (2001, p. 37-38), estas mudanças
tiveram, como principais características, o fenômeno da flexibilização da produção e reestruturação das
ocupações; a integração de setores da produção; a multifuncionalidade e polivalência dos
trabalhadores; e uma valorização dos saberes dos trabalhadores não ligados ao trabalho prescrito ou ao
conhecimento formalizado. Para esta mesma autora, este quadro de mudanças deflagrou debates quanto
à validade das teses da desqualificação tendencial do trabalho nas organizações capitalistas, centrados,
sobretudo, nas teses de polarização das qualificações e de requalificação.
Neste contexto, surgiram ainda estudos e debates acerca também da precarização do
trabalho em decorrência à desregulamentação e flexibilização crescentes das regras de acesso e
permanência no mercado de trabalho, assim como sobre a própria desespecialização, em grande
medida voltada para os conteúdos do trabalho uma vez que se ampliava a tendência à incorporação dos
saberes dos trabalhadores por sistemas computacionais (Ramos, 2001, p. 38). Em termos “sócio-
empíricos” (expressão da autora), surge o questionamento acerca da adequação e suficiência do
conceito de qualificação como estruturante das relações de produção e dos códigos de acesso e
permanência no mercado de trabalho. Segundo Ramos:
Isto pelo fato de esse conceito apresentar uma dimensão societária determinada pela cultura
do trabalho constituída nas décadas precedentes, expressando mais a capacidade potencial do
trabalhador que sua capacidade real para o trabalho. Simultaneamente, estes debates e
tendências se contemporizam com o questionamento da “validade das trajetórias formais e
lineares da formação profissional e, até mesmo, a validade ou suficiência dos diplomas.
(Ramos, 2001, p. 38).
subjetivos dos trabalhadores, uma vez que os mesmos, ao se verem diante de uma organização da
atividade do trabalho supostamente “mais integrada e flexível”, motivam-se pela também suposta
possibilidade de poderem resgatar suas autonomias e de reintegrarem a si mesmos os saberes
relacionados à organização e ao processo de trabalho. Entretanto, Antunes (1998) avalia que longe de
significar uma oportunidade de reintegração de saberes pelos trabalhadores em relação ao processo de
trabalho “total”, a chamada flexibilização não tardou a revelar seu real significado:
Apesar de o debate acerca da qualificação persistir, a autora faz notar que este é um
conceito originário da sociologia, eminentemente relacionado à organização das relações formais de
trabalho e às práticas educativas que subsidiavam e legitimavam o estatuto do trabalho qualificado. Por
sua vez, a noção de competência, originária das ciências cognitivas, “surge com uma marca fortemente
psicológica para interrogar e ordenar as práticas sociais” (Ramos, 1998, p. 39).
O surgimento do conceito de competência deflagra discussões, a partir de então, sobre as
relações entre o advento desta noção e o conceito tradicional de qualificação, discussões estas que
redundam em entendimentos e proposições diferenciadas e não consensuais, sobretudo relacionadas à
existência ou não de um deslocamento da noção de qualificação para o de competência. Enquanto a
tendência mais imediata foi a de se considerar a noção de competência como uma atualização do
conceito de qualificação, de modo a torná-lo adequado às novas formas de organização do capital com
o objetivo de “obter-se maior e mais rápida valorização” (Ferretti, 1997, citado por Ramos, 1998, p.
203
40), outras posições propõem o surgimento da noção de competência como uma atualização ou
“rejuvenescimento da teoria do capital humano” 59 (Frigotto, 1995 — citado por Ramos, op. cit., idem).
Ramos, entretanto, defende que na verdade teria havido um deslocamento conceitual entre
estas noções:
Segundo a autora, esta seria a razão para discordar da tese da atualização do conceito de
qualificação, uma vez que, se assim fosse, não se justificaria a emergência de um novo signo. Por outro
lado, porque o conceito de qualificação já vem sendo atualizado, em conformidade com as mudanças
nos processos produtivos. Assim, enfatiza que o conceito de qualificação como relação social é
absolutamente atual, expressando em si as contradições das relações de produção (Ramos, 1998, p. 41).
A autora também não reconhece este fenômeno como uma metamorfose do primeiro conceito,
defendendo que, “se assim fosse, teríamos a competência como um novo signo mas não com outro
significado, pelo menos na essência”. E conclui:
Mas a noção de competência não somente se apresenta como um novo signo, como também
possui significados diferentes ao do conceito de qualificação. Portanto, tanto na perspectiva
teórico-filosófica quanto sócio-empírica, a forma como explicitamos o fenômeno, ajudados
pelas palavras, é definindo-o como um deslocamento conceitual da qualificação à
competência. (Ramos, 1998, p. 41).
59
Há uma tendência a se identificar o discurso da competência com a teoria do capital humano. Entretanto, apesar
de ambos terem a mesma matriz pragmatista (afinal, são discursos fundamentados na escolarização como
“investimento” para a produção), tomar o discurso da competência como “reedição” do primeiro fenômeno
(FRIGOTTO, 2000) não abarca o significado de ambas as teorias mediante seus contextos históricos. A teoria do
capital humano, proposta por Theodore Schultz (1902-1998) a partir de sua obra “The Economic Value of
Education” (1963), é ao nosso ver própria do contexto iniciado com o new deal norte-americano a partir da Grande
Depressão dos anos 30, reeditado por F.D. Roosevelt a partir da Segunda Guerra, e que durante os “30 anos
gloriosos” do pós-guerra conclamava o Estado a investimentos maciços em educação (a educação é, então, um fator
econômico de massa e um bem comum — e, assim como o conceito de qualificação profissional, “exógeno” aos
indivíduos). Por sua vez, o discurso da competência é dirigido não mais ao Estado, cujo papel social se pretende
“minimizado” nos anos de 1980/90, mas aos indivíduos em particular, fenômeno ideológico de uma sociedade agora
assumidamente desigual, competitiva e segregadora. Portanto, seria mais adequado considerarmos o sentido dos dois
movimentos como distintos, o primeiro próprio ao contexto do welfare state nos países centrais (os títulos de outras
duas obras de Schultz, Agriculture in an Unstable Economy [1945] e Production and Welfare of Agriculture [1949],
são, em si, reveladores a esse respeito); o segundo, como próprio ao contexto de particularização e subjetivação
ultraliberais atuais (retomaremos essa importante questão no Capítulo III).
204
militar, João Batista de Figueiredo (1918-1999), preocupou-se com a eleição de seu sucessor. O
partido do governo, agora denominado PDS, realizou uma série de manobras para permanecer no
poder e tentar contrariar o movimento social pelas eleições diretas que se organizava desde o
final de 1983. A última grande manobra foi a rejeição da Emenda Constitucional do deputado
Dante de Oliveira que introduziria no país a eleição direta para Presidente da República. O
primeiro presidente civil da República, depois do regime militar, Tancredo de Almeida Neves
(1910-1985), também foi eleito indiretamente e teve seu mandato cumprido pelo vice, José
Sarney. O Brasil teve ainda mais um presidente não eleito diretamente, Itamar Franco, que
assumiu a presidência dentro dos preceitos constitucionais, dado o processo de impeachment de
Fernando Collor de Mello (1992).
fornecedores passam a cobrar ágio e a inflação volta a subir. O governo mantém o congelamento
até as eleições, tentando extrair possíveis dividendos políticos do Plano. A estratégia eleitoral
atinge então seu objetivo e o PMDB, partido para o qual Sarney migrara, vence nos principais
Estados do país. A economia, no entanto, torna-se anacrônica e a inflação novamente dispara.
O Plano Cruzado II foi adotado logo após as eleições de 1986, e em 21 de novembro
daquele ano esse Plano descongela os preços de produtos e serviços, libera os preços dos
aluguéis para serem negociados entre proprietários e inquilinos, e altera o cálculo da inflação,
que passa a ser medida com base nos gastos das famílias com renda de até cinco salários
mínimos. O Plano provoca um aumento generalizado de preços. Bebidas sobem 100%;
automóveis, 80%; combustíveis, 60,16%. A inflação dispara e a população perde a confiança no
governo. Cinco meses após sua edição, o ministro da Fazenda Dilson Funaro é substituído por
Luís Carlos Bresser Pereira.
Luís Carlos Bresser Pereira assume o Ministério da Fazenda em 29 de abril de 1987.
A inflação do mês seguinte chega a 23,26%. Em junho Sarney decreta novo congelamento de
preços, aluguéis e salários por três meses. Para conter o déficit público, elimina o subsídio ao
trigo e adia grandes obras públicas já planejadas, como a ferrovia Norte-sul, o pólo petroquímico
do Rio de Janeiro e o trem-bala entre São Paulo e Rio de Janeiro. O plano, denominado Plano
Bresser, não obtém resultados e a inflação anual chega aos 366%. Em 6 de janeiro de 1988 o
ministro Bresser Pereira é substituído por Maílson da Nóbrega.
Maílson da Nóbrega assume o Ministério da Fazenda propondo-se a realizar uma
política econômica sem adotar medidas drásticas, mas apenas ajustes localizados para evitar a
hiperinflação. A inflação passa dos 366% de 1987 para 933% no final de 1988.
Em 15 de janeiro de 1989 Maílson da Nóbrega apresenta um novo plano econômico:
cria o cruzado novo; impõe outro congelamento geral; acaba com a correção monetária; propõe a
privatização de diversas estatais e anuncia vários cortes nos gastos públicos, como a exoneração
dos funcionários contratados sem concurso nos últimos cinco anos. Os cortes não são feitos, o
plano fracassa e a inflação dispara. De fevereiro de 1989 a fevereiro de 1990, chega a 2.751%.
(IBGE, 1991).
Fernando Collor de Mello chega ao poder anunciando que poria fim à ciranda
inflacionária e ao desperdício do dinheiro público. A inflação acumulada entre março de 1989 e
março de 1990 é de 4.853%. No dia 15 de março, logo após sua posse, Collor anuncia um pacote
207
econômico, o Plano Brasil Novo ou, como ficaria popularmente conhecido, Plano Collor. Com
ele, pretende acabar com a crise, promover um amplo reajuste da economia e elevar o país do
terceiro para o Primeiro Mundo. Collor reintroduz o cruzeiro em substituição ao cruzado novo,
bloqueia por 18 meses os saldos das contas correntes, cadernetas de poupança e demais
investimentos superiores a Cr$ 50.000,00. Os preços são tabelados e gradualmente liberados. Os
salários são pré-fixados e depois negociados entre patrões e empregados. Aumenta impostos e
tarifas, criando novos tributos e suspendendo incentivos fiscais não garantidos pela Constituição.
Anuncia corte nos gastos públicos e redução da máquina do Estado pela demissão de
funcionários e privatização de empresas estatais. O plano também prevê a abertura do mercado
interno, com a redução gradativa das alíquotas de importação.
As empresas, pegas de surpresa pelo plano, ficam sem liquidez e pressionam o
governo. Zélia Cardoso de Mello, ministra da Economia, dá início à chamada "operação
torneirinha": permite a liberação dos cruzados retidos para pagamento de taxas e impostos
federais, estaduais e municipais, contribuições previdenciárias e folhas de pagamento. Assim, os
grandes grupos empresariais conseguem liberar seus investimentos e apenas os poupadores
individuais ficam com seu dinheiro retido.
O Plano Collor mergulha o país em um processo recessivo. O nível de produção cai
drasticamente e, em abril de 1990, já é 26% inferior ao de abril de 1989. As empresas reduzem a
jornada de trabalho e os salários ou simplesmente demitem funcionários. Em São Paulo ocorrem
mais de 170 mil demissões nos primeiros seis meses de 1990, número recorde desde a crise do
início da década de 80. O Produto Interno Bruto cai de US$ 453 bilhões em 1989 para US$ 433
bilhões em 1990.
O Programa Nacional de Desestatização previsto no Plano Collor é regulamentado
em 16 de agosto de 1990. A primeira estatal privatizada é a Usiminas, em leilão realizado em
outubro de 1991. Até o final de 1993, já no governo de Itamar Franco, 25 estatais estão
privatizadas, com transferências patrimoniais consideráveis do setor público para o setor privado.
O processo de privatização dos setores siderúrgico e petroquímico já está praticamente
concluído. Começam as negociações para o setor de telecomunicações e, no setor elétrico, há
uma tentativa de limitar as privatizações à construção de grandes obras e à abertura do capital
das estatais, sem que o Estado perca seu controle acionário.
A inflação volta a subir em meados de 1990. Em dezembro o índice mensal é de
19,39% e a inflação acumulada durante o ano chega a 1.198%. Em 31 de janeiro de 1991 é
decretado o Plano Collor 2. Para controlar a ciranda financeira, acaba com as operações de
overnight e cria o Fundo de Aplicações Financeiras (FAF) para centralizar todas as operações de
208
curto prazo; extingue o BTNf (Bônus do Tesouro Nacional fiscal), usado pelo mercado para
indexar preços, adota a TRD (Taxa Referencial Diária) com juros prefixados e aumenta o IOF
(Imposto sobre Operações Financeiras). Adota uma política de juros altos e tenta desindexar a
economia com novo congelamento de salários e preços. Cria também um deflator para contratos
com vencimento após 1º de fevereiro. Para incentivar a concorrência no setor industrial, dá início
ao cronograma de redução das tarifas de importação. A inflação de 1991 baixa para 481%
(IBGE, 2005).
A economia começa a se recuperar no final de 1992, depois de um grande processo
de reestruturação interna das indústrias. A abertura do mercado para produtos importados
promovida por Collor obriga as empresas brasileiras a investir na melhoria da qualidade de seus
produtos e na modernização dos processos de produção. Há uma tendência generalizada de
revisão dos métodos administrativos e da organização, com a redução dos custos de
gerenciamento, concentração de atividades e terceirizações. Com isso, cresce a automação
industrial, a hierarquia interna das empresas fica reduzida e aumenta a produtividade. Em
contrapartida, aumenta o desemprego. Na Grande São Paulo, por exemplo, a região mais
industrializada do país, o número de desempregados em 1993 chega a 1,2, milhão de pessoas,
apesar de a produção das empresas ter aumentado.
de 1993, o governo anuncia cortes de gastos, inclusive em áreas essenciais, como educação e
saúde, e na folha de pagamentos do funcionalismo. Divulga também um plano de reforma
administrativa com o propósito de reduzir a “máquina do Estado” e, com a finalidade de ampliar
a arrecadação, aumenta todos os impostos federais em 5%.
O censo do IBGE (1991) indica que a renda per capta dos brasileiros caiu 5,6% em
relação a 1980. A política de salários vigente no país contribui para a multiplicação da pobreza.
Dados do IBGE (1990) mostram que das 67,2 milhões de pessoas com mais de dez anos que
trabalham, apenas 5,8% ganham acima de dez salários mínimos. A maioria dos trabalhadores,
63%, recebe até três salários mínimos, sendo que 29,5% ganha, no máximo, um salário. Um dos
reflexos dessa situação é o aumento da população favelada nas grandes cidades. Há 20 anos,
apenas 1% da população paulistana vivia em favelas. No início dos anos 90, a população em
favelas das cidades sobe para 20% e representa cerca de 2 milhões de pessoas.
60
O verbete em português e sua datação em 1970 constam do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (1ª. Ed.,
Editora Objetiva, 2002), que define o mesmo como “1. doutrina proposta por economistas franceses, alemães e
norte-americanos, na primeira metade do século XX, voltada para a adaptação dos princípios do liberalismo clássico
às exigências de um Estado regulador e assistencialista, que deveria controlar parcialmente o funcionamento do
mercado;” e “2. doutrina, desenvolvida a partir da década de 1970, que defende a absoluta liberdade de mercado e
uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda
assim num grau mínimo. Já o Nouveau Dictionnaire Petit Robert de la Langue Française (2002), data sua origem
em 1844, sem, contudo, precisar algo sobre seu uso, mas definido como “forma de liberalismo que admite uma
intervenção limitada de Estado”. O American Heritage Dictionary (4th Ed., 2000), define o verbete como
“movimento político iniciado nos anos 1960 que combina a tradição liberal no que concerne à justiça social com
ênfase no crescimento econômico”, tendo o termo “neoliberal” por adjetivo.
210
visando-se, assim, limitar sua atuação a de mediador e provedor das necessidades sociais61; a
prevalência do monetarismo como princípio econômico-financeiro, que privilegia a esfera fiscal
e de fluxos de capitais, em detrimento da produção industrial; a aceitação incondicional da
transnacionalização dos mercados produtivos e de capitais, denominada globalização, aceita e
difundida como sinônimo da inexorabilidade da lógica de mercado; a outorga das atividades
sociais e assistenciais a organizações não-governamentais e o estímulo ao espírito assistencialista
e voluntarista do governo e da sociedade civil, dentre outros aspectos (com base em Gentilli,
2002, p.19-20; Lesbaupin, 1999, p. 7-13; Malagutti, Carcanholo & Carcanholo, 2002, p. 15-35 e
59-76; Bianchetti, 1996, p. 70-101).
Ainda na tendência da negação de suas reais orientações, Fernando Henrique lançou
mão, constantemente, de eufemismos que velaram o caráter neoliberal das ações de seu governo,
e buscaram neutralizar as críticas às mesmas, pelo argumento da modernização do aparato
institucional, visando tornar o Estado “mais ágil e mais apto a responder aos desafios do mundo
atual” (conforme trecho da entrevista já citada). Esses desafios, entretanto, são apresentados
como imposições inquestionáveis de um movimento natural-evolutivo dos mercados
internacionais ⎯ logo, do capitalismo ⎯, que têm, como decorrência, também o imperativo de
uma adesão consensual universal aos seus desideratos.
Contudo, parece-nos patente que em seus inúmeros discursos e ações, o governo de
Fernando Henrique haja evidenciado uma aceitação clara dos referidos pressupostos. Assim,
FHC parece explicitar essa convergência, por exemplo, em seu discurso no ato de assinatura das
concessões da malha ferroviária à iniciativa privada, em 28/08/1996. Devemos notar que, ao
mesmo tempo, há uma tendência constante em suas manifestações de diminuir a importância da
política partidária, o que posteriormente iria se tornar uma verdadeira marca de seu governo, ou
seja, a tentativa de anular todos discursos oposicionistas sustentando serem os mesmos arcaicos,
empecilhos ideológicos à “reforma e modernização” do país. Este seria um dos elementos que
muitos caracterizariam como ideologicamente estratégicos para a tentativa de implantar um
pensamento único no país:
É um novo Brasil, um Brasil confiante nele próprio, confiante na iniciativa privada, que sabe
que nada disso poderá ser feito sem muita clareza, sem que o Congresso esteja atento aos
procedimentos, sem que haja entrosamento de governadores com o Governo Federal,
independentemente de partidos (Cardoso, 2002, p. 192).
61
Paradoxalmente, o que verificamos é uma tendência justamente oposta, em que o Estado passa a se ocupar muito
mais das questões político-econômicas para garantir privatizações, concessões e o “ajuste” econômico do país às
diretrizes do capital internacional, enquanto suprime suas ações sociais com a diminuição ostensiva de seus gastos e
presença pública.
212
uníssono no país, apenas fez repercutir, entre nós, o que se passava de forma avassaladora com o
pensamento hegemônico do capital mundial, sob o signo da chamada globalização:
[...] nós todos sabemos que estamos enfrentando uma transformação muito profunda no
sistema produtivo, em nível mundial, na distribuição dos recursos globais, na concentração
do saber em certas áreas. E esse processo todo, que, para simplificar, se costuma chamar de
globalização, não implica que os paises não definam as suas políticas. Pelo contrário: ele
requer que exista uma atitude mais sensível e mais determinada por parte dos países, para
que possam, efetivamente, entrar num processo que é de ampla competição, competição
científica, competição tecnológica e competição econômica. (discurso na instalação do
Conselho Nac. de Ciência e Tecnologia, Brasília, 17/08/1996 - Cardoso, 2002, p. 158).
Quem não perceber que o mundo mudou e que, nesse novo mundo, as nações que não se
organizarem para ter uma atitude bastante ativa ficarão excluídas, se equivoca. Ninguém
quer a exclusão, nem a nossa e nem, se possível, de nenhum outro povo. Mas nós temos que
cuidar do nosso. E, para cuidar do nosso, temos que nos organizar. Isso implica uma
profunda reorganização do Estado brasileiro, da sociedade brasileira, das empresas
brasileiras, da universidade brasileira e do modo pelo qual nos preparamos para essa nova
etapa — eu diria até com certa força de expressão — da Humanidade. (discurso na instalação
do Conselho Nac. de Ciência e Tecnologia, Brasília, 17/08/1996. Cardoso, 2002, p. 158 –
itálicos nossos).
O papel da iniciativa privada, para além das concessões e privatizações do aparato estatal,
também para atividades de pesquisa necessárias à ampliação do conhecimento — notadamente em
termos técnico-científicos — justifica-se pela escassez de recursos do Estado para este fim, bem como
pelo já anunciado problema do “déficit fiscal”, justificativa não só para o retraimento da participação
do Estado em ciência e tecnologia (o que se verificaria no literal abandono governamental às
universidades públicas federais), como também as chamadas “políticas de ajustes fiscais” exigidas
pelos organismos financeiros internacionais:
Só presido dois conselhos, este e o de política externa de defesa nacional; são os únicos
conselhos que o Presidente da República preside diretamente — o que mostra que,
realmente, há um interesse direto da Presidência da República na área de ciência e
tecnologia, e há um interesse direto, pessoal, meu, de tal maneira que, para mim é um
prazer poder participar dessas discussões. Mas os senhores compreenderão que a agenda
presidencial, mesmo nos sábados, é definida não pelos prazeres do Presidente, mas pelos
imperativos da rotina presidencial. (discurso na instalação do Conselho Nac. de Ciência e
Tecnologia, Brasília, 17/08/1996. Cardoso, 2002, p. 165 – itálicos nossos).
Por outro lado, a cruzada desestatizante assumida por seu governo, foi legitimada por
Fernando Henrique pelo argumento da quebra de monopólios — o que nos remete a uma das teses
mais presentes no ideário neoliberal em Hayek e Friedman, como forma de assegurar-se a suposta
“livre concorrência” —, seguido da promessa de que, em se desincumbindo das empresas estatais (pois
empresas são mais bem geridas por empresários) o Estado poderia ocupar-se, enfim, das questões
sociais:
Nós estamos longe daquela situação em que os pensadores imaginavam que a sociedade de
massas ia ser uma sociedade de homogeneização. É o oposto: nós estamos vivendo numa
sociedade em que temos a diferenciação. Não é a fragmentação no sentido antigo da
dispersão, mas é a valorização das individualidades, das especificidades, das singularidades”
(discurso na solenidade de lançamento dos projetos estratégicos do Programa Brasileiro da
Qualidade e Produtividade – PBQP/1996-1998, Brasília, 17/09/1996. Cardoso, 2002, p. 291).
62
Fernando Henrique refere-se à instalação da fábrica de motores da Volkswagen em São Carlos, SP.
215
chapliniana dos Tempos Modernos.” Enfim, uma vez que a crise estrutural da relação capital-trabalho
tem relações diretas com as buscas, pelo capital, de maximização da obtenção de mais-valia e
ampliação das taxas de lucros por quaisquer meios, e uma vez que os mercados financeiros se tornaram
sumamente hegemônicos na busca da lucratividade — ambos os fatores implicando em declínios em
investimentos produtivos e uma redução exponencial de postos de trabalho —, o discurso de Fernando
Henrique sinaliza e procura legitimar, a um só tempo, a redução dos postos de trabalho, apresentada
como decorrência da evolução tecnológica da produção e da conseqüente necessidade de trabalhadores
individualmente capazes de atuar de modo autônomo nas atividades produtivas (e também de serviços)
que agora se concentram cada vez mais em um reduzido número de trabalhadores. Esta retórica insinua
que o pretendido “novo trabalhador” deva ser singularmente adequado e flexível para assumir
atividades diversas simultaneamente, e de modo eficiente (inteligente e responsável). Logo, este
trabalhador multifuncional e cujo trabalho na verdade é hiperintensificado, é ideologicamente exaltado
como sinônimo de trabalhador altamente qualificado e diferenciado dos demais. Assim, o discurso de
Fernando Henrique já expressa a mudança radical na noção de qualificação que se consolida nos anos
de 1990. Uma vez que o discurso da qualificação profissional haja se revelado cada vez mais
inverossímil frente às mudanças nos processos de trabalho, o discurso individualista de FHC, prenuncia
a transmutação do conceito de qualificação profissional (tradicionalmente relacionada a certificações
profissionais) para o de competência (por sua vez, supostamente assentada nos conhecimentos e
habilidades tácitos dos trabalhadores).
Entretanto, mesmo que a aquisição da competência na verdade diga respeito a experiências
adquiridas sob circunstâncias imponderáveis, envolvendo aspectos subjetivos e singulares, é imperioso
fazer com que a sociedade creia que a competência possa ser adquirida e desenvolvida, o que
dependerá do empenho individual dos candidatos ao trabalho para a aquisição das habilidades e
competências que o mercado passou a exigir. Nesse sentido, caberá justamente à instituição do ensino,
em todos os seu níveis, a incumbência pela oportunidade de formar o novo indivíduo social de acordo
com as necessidades que o “novo mundo” mencionado por FHC, passou a exigir.
Parece-nos oportuno, portanto, que voltemos ao dia que antecedeu este pronunciamento de
Fernando Henrique, ou, mais especificamente, à ocasião de sua visita à moderníssima fábrica de
motores da Volkswagen, na cidade de São Carlos:
Há uma grande certeza no mundo: é que mudou o modo de produzir. Essa mudança no modo
de produzir — que implica valorização do trabalhador, numa espécie de reumanização do
trabalho na fábrica, e o fim do fordismo e do taylorismo — é essencial.” [...] “Quem não
entender que o modo de produzir, na ponta, pelo menos, já é outro, não entende o que está
acontecendo no mundo e vai ficar chorando, o tempo todo, pelos empregos do passado, sem
olhar os do futuro. Aqui, nós já estamos vendo o futuro. Esse futuro implica escolaridade.
Daí São Carlos, para fazer motores. Daí os 110 cursos. Daí o fato de existir, em São Carlos,
duas universidades.” [...] “O trabalhador, hoje, tem que assumir o controle. Não é a máquina
216
que o controla. Acabou o tempo do Charles Chaplin. Os Tempos Modernos já eram. Agora,
são os tempos contemporâneos, diferentes. E é um novo mundo. E esse novo mundo está
aqui, ao nosso alcance. Nós estamos construindo esse novo mundo. (discurso da cerimônia
de entrega do primeiro motor produzido pela unidade da Volkswagen, São Carlos, SP,
16/09/1996. Cardoso, 2002, p. 280).
Nesse mesmo ano, em 20/12/1996, foi sancionada a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, nº 9.394/96. Embora a nova LDBEN não explicite em seu texto os elementos aos
quais os discursos do referido presidente se remetem, foi a partir dela que a noção psicopedagógica das
habilidades e competências passou a figurar como princípio educativo formal da educação brasileira,
fosse nos principais documentos e pareceres sobre a educação profissional, nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (os PCN´s) e em grande parte das Diretrizes Curriculares para os cursos de
graduação, agora cooptados a se adaptarem aos paradigmas construtivistas e pragmatistas.
3.3. Conseqüências das políticas ultraliberais no Brasil: para além das palavras, dados.
Ainda que e em seus discursos Fernando Henrique Cardoso insistisse em negar qualquer
identificação com pressupostos de natureza neoliberais, o que observamos posteriormente, na prática, o
contradizem, comprometendo também os inúmeros dados favoráveis ao país nos quais este presidente
e seu governo sempre se apoiaram.
Em decorrência destas políticas, dominadas pela lógica do favorecimento dos mercados e
de diminuição do papel do Estado através de sua “reforma” ⎯ posições que durante o governo
Fernando Henrique Cardoso foram ardorosamente defendidas como sinônimo de eficiência e
modernização do Estado ⎯, temos por extensão também o pressuposto da auto-regulação dos
mecanismos de socialização e sobrevivência da própria sociedade civil, uma vez que ao Estado,
tradicionalmente com a atribuição de mantenedor da sociedade como um todo e promovedor de seu
bem-estar, caberia agora apenas o suposto papel de regulador das relações sociais e de garantidor das
liberdades de mercado. Ademais, essas são premissas fundamentais, apontadas pelos defensores do
processo de neoliberalização da economia mundial, como únicas alternativas político-econômicas e de
organização social para o atingimento de sociedades plenamente livres e harmoniosas (Hayek, 1990), o
que coincide com a premissa de uma inevitável e indiscutível “via única”, defendida por Fernando
Henrique e seus correligionários.
O tom de inexorabilidade do processo de reestruturação do capitalismo contemporâneo
refletiu-se nas constantes admoestações e ridicularizações de quaisquer posturas críticas ou de
contestação em relação à “realidade dos fatos”, expressão muito comum aos discursos daquele
presidente, e que sugeriam a inadequação daqueles que se propunham a questionar o modelo adotado.
Ainda na referida entrevista, Fernando Henrique faz a seguinte observação, que insinua essa
217
O que se está vendo no governo Lula também não é neoliberalismo. É apenas prova de que a
margem financeira de manobra no mundo atual é muito pequena para os governantes. Qual o
presidente que fica feliz em aumentar a taxa de juros? (Cardoso, 2003, idem).
Assim, para Fernando Henrique Cardoso os governos do mundo atual nada mais são que
epifenômenos de um processo de gestão mundializado, mas cujo controle, ditado pelo mercado
capitalista, está fora do alcance dos próprios governos. Entretanto, e curiosamente, como bem nos
lembra César Benjamin, são hoje os países que se colocaram na contramão das determinações
neoliberais dos organismos financeiros internacionais que mais cresceram na última década, mantendo-
se, ao menos, menos vulneráveis às chamadas “crises financeiras internacionais” (Benjamin, 2002).
Contrariamente, os países que mais fielmente seguiram as determinações foram sem
dúvida os mais prejudicados econômica e socialmente, cujo principal exemplo até recentemente foi a
vizinha Argentina, mas cujo malogro começou a ser revelado com a crise asiática. Segundo Forrester:
1994 para 229 bilhões em fez de 1998 (Lesbaupin, idem), índices que o referido governo fez questão
de vincular exclusivamente às crises internacionais, das quais as piores vítimas teriam sido os países em
desenvolvimento. Ao mesmo tempo em que Cardoso afirmava, ainda em sua entrevista, o aumento
com os gastos sociais de 11 para 14% do PIB, não revela o dado de que de 1995 a 2001, seu governo
conseguiu reduzir o referido Produto Interno Bruto de 705,6 para 504,8 bilhões de dólares — uma
variação negativa de 39,8%, que se contraposta aos 27% a que faz referência como “aumento com os
gastos sociais” relativamente ao PIB, na realidade revelam queda, e não elevação de tais investimentos
(Lesbaupin & Mineiro, 2002, p. 12). Assim, a dependência aos capitais internacionais e a política de
altos juros resultou num processo de recessão nunca antes visto, com o país crescendo em médias
anuais abaixo dos níveis mundiais, e saltando do 8º posto na economia mundial, para o 10º, no mesmo
período. Entretanto, este mesmo governo em momento algum menciona que, coincidentemente, os
países mais fragilizados e vitimados por tais crises foram justamente aqueles mais abertos à
dependência do capital estrangeiro e que abraçaram, prodigamente, o paradigma do monetarismo
financeiro, caso explícito do Brasil.
Em termos das conseqüências sociais de tais políticas econômicas, o Brasil passa a
assumir os piores postos em relação ao restante do mundo, segundo levantamentos e estudos da própria
ONU, OEA e FMI, em termos de distribuição de renda e qualidade de vida. Segundo Silva Jr. (2002, p.
205) “o absurdo das diferenças sociais tem se transformado em números nada apreciáveis: cerca de um
terço dos brasileiros vive na carência absoluta, enquanto os mais ricos (1% da população) são donos de
parte maior do que sobra para os 50% mais pobres”.
Mas, no aspecto que aqui mais nos interessa, ou seja, das implicações de tais ideários e
ações sobre a educação brasileira, pudemos constatar que apesar dos ótimos índices apontados pelo
ministro Paulo Renato Souza de atendimento da população entre 7 e 14 anos no ensino fundamental ⎯
que teria passado de 80,9% em 1980 para 96,4% em 2000, cobertura esta, segundo o INEP, “muito
próxima a de países desenvolvidos” (INEP, 2002, p. 64) ⎯, que em contrapartida a porcentagem nos
índices de conclusão do mesmo ensino fundamental não ultrapassou os 41% no ano 2000 (cf. INEP,
2002, p. 101). Isto revela um processo de decréscimo do sucesso escolar no ensino fundamental, já que
em 1995, do total de ingressantes, 51,8% concluíram as mesmas oito séries (op. cit, idem). O que há
com os índices oficiais?
Do mesmo modo, segundo o referido relatório de Eficiência e Rendimento Escolar do
INEP:
O governo Lula e o PT passam, desde há cerca de um ano e meio, por uma onda de
denúncias relacionadas a prováveis recursos financeiros levantados de forma ilícita para suas
campanhas eleitorais, sobretudo para a Presidência da República. Além disso, as denúncias
chegam também à compra de votos de congressistas pelo governo, de modo a garantir-se a
aprovação de projetos e medidas governistas. Não dispomos de espaço e nem cabe em nossos
objetivos realizar aqui uma avaliação do governo em questão, mas julgamos possível ao menos
apontar algumas de suas principais problemáticas e tendências dentro do contexto ultraliberal das
duas últimas décadas no âmbito do país.
Ricardo Antunes, em abril de 2004, fazia a seguinte retrospectiva da trajetória do PT
até sua chegada ao poder no país:
O PT parece, finalmente, completar seu ciclo e chegar à maioridade política: nascido no seio
das lutas sociais, sindicais e da esquerda do final dos anos de 1970, o jovem partido surgia,
então, sob o signo da recusa, tanto do “socialismo real” quanto da social-democracia, sem
migrar para o capitalismo. Sua força e vitalidade decorriam do forte vínculo com os
movimentos e as forças sociais do trabalho. A década de 1980, que tantos consideram “a
década perdida”, para o mundo do trabalho foi um período de criação e avanço. Bastaria
lembrar que ali floresceram, além do PT, da CUT e do MST, uma pletora de movimentos
sociais e sindicais, dos campos e das cidades, que irrompiam pela base, questionando nossa
trajetória quase prussiana, autocrática, cujos estratos “de cima” expressavam um universo
burguês ao mesmo tempo agressivo e medroso, elitista e insensível. (Antunes, 2004, p. 164 –
itálicos no original).
Nos anos de 1990, a década da desertificação neoliberal em nosso país, uma tormenta
abateu-se sobre o nosso mundo do trabalho e em seus núcleos orgânicos. Tivemos
privatização acelerada, informalidade descompensada, desindustrialização avançada e
financeirização desmesurada. (...) Se Collor foi um bonapartista aventureiro, fonte
inesgotável de irracionalidade, com FHC e sua racionalidade acentuada o país descarrilou
nos trilhos (sic!) do social-liberalismo, eufemismo designado aos socialistas e social-
democratas que praticam o neoliberalismo. (Antunes, 2004, p. 164-165 – itálicos nossos).
Quando, finalmente, Lula venceu as eleições em 2002, o país estava de cabeça para baixo.
Ao contrário da potência criadora das lutas sociais da década de 1980, o cenário era de
estancamento das forças sociais do trabalho, embaralhadas em meio a tanta desertificação
social. A eleição que levou Lula ao poder foi, por isso, uma vitória política tardia. Nem o PT,
nem o país eram mais os mesmos. O segundo estava desertificado enquanto o primeiro havia
se desvertebrado. (Antunes, 2004, p. 165 – itálicos nossos).
Como dizíamos, embora este nosso estudo obrigatoriamente nos remetesse a uma
análise também do governo em questão (a exemplo do governo anterior em que focamos nossa
tese em termos políticos, econômicos e sociológicos — mesmo porque, a abordagem científica e
filosófica que adotamos não permitiria que fosse de outra forma), encontramos algumas
dificuldades que não nos permitem estabelecer uma avaliação cientificamente consistente em
relação ao presente governo. Enumeramos a seguir alguns dos principais aspectos políticos
relacionados ao governo petista que necessariamente deveriam ser investigados:
a) Estabelecimento de uma análise das divergências entre os dois governos, o que extrapola o
espaço e os objetivos deste estudo;
b) O mesmo raciocínio se presta quanto a necessidade de buscarmos identificar paralelos entre
os dois governos, o que, uma vez mais, se o procurássemos realizar extrapolaríamos o espaço
e objetivos desse estudo;
c) As análises disponíveis são, sobretudo, de natureza político-partidária e sublinham um
possível continuísmo entre as políticas do presente governo em relação ao anterior. A grande
diferença entre ambos estaria na natureza ideológica dos discursos, isto é, enquanto FHC e
seu quadro mantinham um discurso implícita ou mesmo explicitamente alinhado com o
consenso de Washington e os programas de “ajustes” neoliberais, o governo Lula e seu
quadro mantêm um discurso que enfatiza ações “sociais” e confrontam ou desconsideram as
principais diretrizes ultraliberais;
d) Contudo, aparece como fato inegável que o atual governo venha mantendo uma política tanto
parlamentar, como econômica e social muito próxima ao do governo anterior, o que nos
conduz à formulação de uma equação do tipo “discursos diferentes, ações coincidentes”.
e) As coincidências entre ambos os governos e suas diferenças, entretanto, sugerem diversas
interpretações, que vão desde a constatação de que o governo Lula haja cedido,
decisivamente, às imposições do mercado ou às vantagens de procedimentos ilícitos e mesmo
corruptíveis, até a possibilidade de que seu governo, em nome da “governabilidade” e de
uma possível reeleição, haja até aqui mantido concessões e evitado confrontos com os
interesses do grande capital nacional e internacional.
222
f) Desse modo, e independentemente dos motivos concretos para tanto, o presente governo
manteve e ampliou inúmeros programas ditos “sociais” (bolsa-escola, bolsa-família,
programa de alfabetização solidária etc.) que mais indicam continuidade que rompimento
com as políticas precedentes;
g) As chamadas reformas realizadas ou na agenda de realizações do atual governo (Reformas da
Previdência, Reforma Tributária, Reforma Universitária e a recente proposta de Reforma
Sindical e Trabalhista, principalmente) receberam inúmeras críticas dos setores populares
organizados como também dos setores empresariais. No que se refere à educação, os
propósitos de reformas ou adequações se mostram muito próximos aos que já era praticados
pelo governo anterior, isto é, a prioridade dos fatores quantitativos em detrimento dos fatores
qualitativos do ensino no país.
Em relação à Reforma Sindical e Trabalhista, segundo Oswaldo Coggiola:
As reformas sindical e trabalhista têm sido apresentadas como necessidade para gerar
empregos. Os setores empresariais que mais se beneficiariam seriam os pequenos
empresários, que são os que têm maiores dificuldades para arcar com os custos supostamente
elevados dos encargos sociais e indenizações. Mas as dificuldades enfrentadas pelos
pequenos negócios são resultado, não dos direitos trabalhistas, mas das condições de
mercado impostas pelos grandes monopólios, que são os segmentos que demandam tais
reformas. Construiu-se uma ideologia pela qual os direitos trabalhistas seriam contrários aos
próprios interesses dos trabalhadores: a defesa de direitos trabalhistas seria contaria aos
próprios trabalhadores. A introdução da prevalência do negociado sobre o legislado na
reforma sindical pode ser uma antecipação da reforma trabalhista. Lula ressaltou que
pretende manter o diálogo com o setor industrial, e assegurou que dará o primeiro passo na
mudança das relações trabalhistas com a reforma sindical. (Coggiola, 2006, s/p)
No que se refere ainda à Educação Formal, objeto central de nosso estudo, aspecto
que chama a atenção é o fato de o atual governo não haver confrontado e mesmo questionado
inúmeras medidas do Governo FHC em relação à educação, limitando-se a apresentar projetos de
aprimoramento dos mecanismos de avaliação e financiamento existentes, sem que isso
representasse mudanças significativas aos processos pedagógicos de aprendizagem. A questão
quantitativa tornou-se de tal modo prioritária que fez com que o primeiro Ministro da Educação,
o educador Cristóvam Buarque, fosse substituído por Tarso Genro, por sua vez considerado um
hábil administrador.
Entretanto, trata-se de questões sobre as quais não podemos nos debruçar nesse
estudo. Uma possível constatação, contudo, é possível, qual seja, a de que os imperativos do
mercado mundial são de fato tão poderosos a ponto de determinar a conduta de governos por
todo o globo, seja de forma ativa e identificada, seja de forma passiva e dissimulada, ao gosto da
conivência servil ou ao contragosto de quem pretendia confrontar o mercado e os ideários
dominantes.
223
63
Remetemos o leitor ao documentário “La revolución no será transmitida”, disponível em formato .mpg na Internet
e que pode ser baixado gratuitamente por programas P2P.
64
Respectivamente: G-7: Grupo dos 7 países mais ricos; ONU: Organização das Nações Unidadas; FMI: Fundo
Monetário Internacional; BIRD: Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento; BID: Banco
Interamericano de Desenvolvimento; OIT: Organização Internacional do Trabalho; OCDE: Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico; OEA: Organização dos Estados Americanos; UNESCO: Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
224
CAPÍTULO IV
Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz é o
próprio homem.
Karl Marx, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel
Neste último capítulo nos propomos a apresentar o que se constitui no cerne de nossa
tese, ou seja, o objetivo de desvelar o discurso ultraliberal da competência para o trabalho e a
educação. Para tanto, dividimos o capítulo em duas partes essenciais.
Na primeira, discorremos sobre o método aqui adotado, rejeitando, todavia,
procedimentos meramente descritivos sobre o mesmo. Sob nosso entendimento, o materialismo
histórico-dialético traz consigo implicações que estão para além de um simples conjunto de
procedimentos e técnicas científicas. Possivelmente, a 11ª tese de Karl Marx e Friedrich Engels
sobre Feuerbach sintetize apropriadamente em que este método se diferencia dos demais, isto é,
ele não se presta apenas a interpretações acerca dos fenômenos investigados, mas a uma análise
radical dos mesmos, com vistas à compreensão e transformação concretas da realidade humana
ou, dito de modo mais simples, a contribuir para com seu processo de humanização. Apreende-
se, daí, que suas conseqüências impliquem em uma postura radical e dinâmica em termos
históricos, epistemológicos, éticos, axiológicos, sócio-políticos, econômicos etc.
Na segunda parte adentramos em nossa questão temática e seu problema,
propriamente ditos, em que procedemos a uma análise comparativa entre os processos, discursos
e conseqüências evidenciados no capítulo II, e os processos, discursos e conseqüências do
renascimento ultraliberal contemporâneo, descritos no Capítulo III. Esta análise será permeada
por considerações sobre a sustentação ou não de nossa hipótese acerca da validade da observação
de K. Marx, contida em O 18 brumário de Louis Bonaparte, sobre a repetição ou reedição de
acontecimentos históricos, como apenas possíveis na forma de farsa. Portanto, analisaremos
65
Frigotto. “Prefácio”. In: Bianchetti, R.B, Modelo Neoliberal e Políticas Educacionais. Campinas:
Autores Associados, 1996, p. 15.
225
neste tópico a possibilidade de que: 1º) Estejamos diante de um momento histórico que reedita
elementos do passado, atualizando-os discursivamente para o presente; 2º) Que apesar de
reeditados e atualizados, estes elementos ideológicos não encontram sustentação na realidade
concreta do capitalismo contemporâneo, a exemplo do capitalismo da consolidação da sociedade
industrial da transição entre os séculos XIX e XX; pelo contrário, os elementos discursivos atuais
dissimulam a crise estrutural do capitalismo em sua transição para o século XXI; 3º) Em assim
sendo, que nós estaríamos diante de uma situação de contradição e dissimulação da realidade
concreta que nos habilita a tomar, nos termos marxianos, os fenômenos atuais como um resgate
de elementos do passado sob a forma de uma indubitável farsa histórica.
Para tanto, tomamos como ponto de referência inicial algumas análises sobre
elementos próprios ao capitalismo em seu momento atual e no momento da consolidação do
capitalismo industrial (e financeiro) de fins do século XIX (Dumenil & Lévy, 2003; Gramsci,
2001; Chesnais, 2003), de modo a caracterizarmos também os diferenciais da crise estrutural
contemporânea, seus principais aspectos político-econômicos e ideológicos.
Em seguida, pautando-nos nas contribuições da psicologia russa e da pedagogia
histórico-crítica, explicitamos uma concepção pedagógica que desvela e supera a concepção
liberal de educação.
As características aqui mencionadas sobre este método nem sempre são facilmente
apreensíveis e geralmente têm por conseqüência dissensões pouco observadas em outros
métodos ou sistemas em ciências humanas. Caso comparável, talvez, ao método psicanalítico e
suas inúmeras vertentes e nuances, mas que nem por isso tornam a psicanálise uma abordagem
que se possa identificar ou complementar ao materialismo histórico, mas sim, uma vertente que
tem sido digna de mais críticas por parte deste último, seja por se pretender materialista sendo
idealista, seja por se pretender historicizadora, mas no âmbito estrito de individualidades apenas
particulares; seja ainda por relativizar tais vivências particulares em relação a concretude
multiplamente determinada de seus dramas existenciais, abstraídos de suas concreticidades sem,
contudo, considerar dialeticamente de que modo aspectos humano-sociais concretos intervêm na
existência singular concreta de indivíduos, grupos e sociedades concretos.
Mas o que entender por concretude e o que entender por abstração, enquanto esferas
dialeticamente intercambiantes para a compreensão científica da realidade, desde o ponto-de-
vista do materialismo histórico-dialético? Ora, a abstração é o meio pelo qual torna-se possível
desconstruir a esfera dos fenômenos humanos e naturais para, então, após ultrapassarmos seu
invólucro mais imediato, após historicizá-lo em suas determinações sócio-culturais, reconstruí-lo
segundo seus atributos e determinantes acessados pela mediação conceitual do intelecto. Daí, e
necessariamente, retomarmos o objeto de nossas investigações (fenômeno, acontecimento, fato,
experiência, documento etc.) após o que Kosik (1995) denominou détour, ou o que podemos
entender por desvio através de um caminho que muito exigirá do investigador em termos da
reconstituição posterior da materialidade do fenômeno investigado (ou, sua concretude), sua
historicidade (ou os seus determinantes espaço-temporais) e as relações ou complementaridades
entre as diversas dimensões dos fenômenos investigados e que lhe determinam a existência,
natural e/ou humana.
É, portanto, por esse processo mediado que rompe com a relação unilateral de uma
pesquisa meramente empírica (ainda que rigorosa), pela qual os atributos do objeto em estudo
lhes seriam essenciais; ou que rompe também com uma relação “relativista” de uma pesquisa
fenomenológica (ainda que rigorosa), pela qual a posição e considerações do sujeito-pesquisador
lhes seriam também mais determinantes aos resultados de suas buscas. Optamos aqui por uma
posição multilateral, pois que nosso objeto é resultado tanto de múltiplas determinações quanto
serão as múltiplas relações possíveis do sujeito-pesquisador para com seu objeto de estudos, e
vice-versa. Essa posição epistemológica de modo algum se apresenta, presunçosamente, como
suficiente para legitimar qualquer entendimento do referido pesquisador em relação a seu objeto
de estudos como científica. Isso porque o materialismo histórico e dialético não pode aceitar, por
227
Karel Kosik, cujas reflexões em sua Dialética do Concreto, contribuem, ao nosso ver,
para que nos aprofundemos no método materialista histórico-dialético, inicia suas considerações
a partir exatamente da noção de concretude a que Marx faz referência acima. E abre suas
considerações anunciando que:
A dialética trata da “coisa em si”66. Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente ao
66
Nota: a expressão “coisa em si” utilizada por Kosik, não deve ser confundida com o emprego, neste trabalho, da
expressão “em-si” (hifenizada). Enquanto para aquele autor a expressão é empregada como sinônimo de essência ou
concretude do fenômeno considerado, adotamos aqui a expressão “em-si” no sentido marxiano utilizado por HELLER
228
homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas
também um détour. Por este motivo o pensamento dialético distingue entre representação e
conceito da coisa, com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de
conhecimento da realidade, mas especialmente e, sobretudo, duas qualidades da práxis
humana. (Kosik, 1995, p. 13).
...como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento
surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato prático-utilitário com as coisas —
em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e
esforços para satisfazer a estas — o indivíduo “em situação” cria suas próprias
representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o
aspecto fenomênico da realidade. (Kosik, 1995, p. 13)
(1994), corresponde à apreensão imediata ou relação irrefletida para com um fenômeno (grosso modo, o equivalente
a sua “aparência”) por oposição ao termo “para-si”, que no sentido adotado por Karl Marx indica relação refletida,
mediatizada para com o fenômeno considerado.
229
certos ângulos e aspectos, no fenômeno; o que não quer dizer que o mundo fenomênico,
entretanto, constitua algo “independente e absoluto”, da mesma forma que a essência não
constitui, também ela, uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno: o
problema diz respeito, antes, a como nós, enquanto sujeitos, apreendemos as manifestações da
realidade, ou seja, geralmente de modo parcial. Captar o fenômeno de determinada coisa
significa, para Kosik, indagar e descrever como a coisa em si se manifesta em tal fenômeno; e,
logo, compreender o fenômeno é atingir a essência (Kosik, 1995, p.15-16).
Quando falamos em pseudoconcreticidade, devemos ter em conta que, nela, o
aspecto fenomênico é tomado enquanto a própria essência, desaparecendo, portanto, a diferença
existente entre esta e o fenômeno. Atingir o conceito da coisa implica em compreender a coisa e
esta compreensão significa, por sua vez, conhecer-lhe a estrutura, o que só se torna possível pela
decomposição da mesma. A constatação de que a essência não se manifesta diretamente e que o
fundamento oculto das coisas deve ser descoberto remete-nos, por fim, à atividade e objetivos
que são peculiares à ciência e à filosofia. Cumpre, de modo fundamental à filosofia, segundo
Kosik, o papel histórico de descoberta da estrutura da coisa e a coisa em si.
No que se refere à concepção dialética da realidade concreta, portanto, segundo o
autor esta pode ser entendida como “método que decompõe o todo para poder reproduzir
espiritualmente a estrutura da coisa e, portanto, compreender a coisa.” (Kosik, 1995, p. 19). O
papel da dialética é, por conseguinte, o de um pensamento crítico que se propõe a compreender a
“coisa em si”, questionando-se sistematicamente sobre como é possível chegar à compreensão da
realidade. Essa compreensão não tem, contudo, um caráter contemplativo, implicando, antes,
numa posição de método revolucionário de transformação da realidade, pois que, “para que o
mundo possa ser explicado ´criticamente`, cumpre que a explicação mesma se coloque no
terreno da ´práxis` revolucionária” (Kosik, 1995, p. 22). E acrescenta:
[...] a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que
nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é
produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em
que o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo
revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última
realidade. (Kosik, 1995, p. 22-23)
Estas reflexões nos remetem, portanto, às relações que o homem mantém com suas
próprias objetivações ou, em outros termos, com os resultados das atividades humano-sociais
pelas quais transforma a realidade. O nível de consciência que o homem logre alcançar sobre a
relação existente entre sua práxis e o mundo que se lhe apresenta, pode significar para o mesmo
tanto o desvelamento do núcleo essencial da realidade quanto a subsunção de si próprio à
pseudoconcreticidade. O fenômeno da alienação, ou o fato de o homem não se ver presente nos
resultados de sua atividade objetivadora, de sua práxis, surge-nos como conceito estreitamente
vinculado à relação existente entre senso comum e pseudoconcreticidade, tal qual expostos. É
deste fenômeno não menos humano, a alienação, que passamos a nos ocupar agora.
Como vimos, a relação entre o homem e a realidade objetiva que se lhe apresenta à
consciência, não implica, necessariamente, uma relação crítico-reflexiva deste para com os
fenômenos que o envolvem. Este fato é de particular interesse no que diz respeito à relação do
homem para com a esfera de suas objetivações genéricas (esfera dos produtos historicamente
elaborados pela humanidade). Ora, por mais estranho que pareça, tem sido regra, sobretudo no
interior das relações de produção capitalistas (as mais recentes e avançadas da história da
humanidade até o presente), que o homem não se reconheça presente em suas próprias
produções.
Parece-nos fundamental, para que nos façamos entender sobre o que designamos
aqui por consciência, uma incursão pelas propriedades e características dos processos
psicológicos presentes à relação do homem com a própria realidade. Segundo Leontiev, “reflexo
consciente” é o reflexo da realidade concreta destacada das relações existentes entre esta e o
sujeito, ou seja, “um reflexo que distingue as propriedades objetivas e estáveis da realidade.”
(Leontiev, 1978, p. 69). Em outras palavras, isso quer dizer que a imagem da realidade não se
confunde, na consciência, com a experiência vivida pelo sujeito. Ao distinguir a realidade
objetiva de seu reflexo, tornou-se possível, à consciência humana, distinguir, também, o mundo
das impressões interiores e, por decorrência, observar a si mesma.
Mas como o reflexo consciente tornou-se possível? Leontiev remonta à própria
história do desenvolvimento dos hominídeos para encontrar as condições que possibilitaram seu
231
aparecimento, advertindo que, ao referir-se à história de seu desenvolvimento, não a toma numa
perspectiva estritamente naturalista, e sim, numa concepção sócio-histórica (necessariamente
materialista, mas para além disso, social, histórica e dialética). Portanto, longe de ser um joguete
de forças da natureza (ambiental-adaptativas, genéticas etc.), o homem é simultaneamente
resultante e agente de suas relações ativas com a natureza e consigo próprio.
Os estudos antropomórficos sócio-historicistas indicam com segurança uma estreita
relação entre o processo de hominização — aqui entendido como conjunto de condições
antropomórficas da espécie que possibilitaram o estabelecimento do gênero humano —, do qual
decorre a consciência reflexiva, e o advento do trabalho. Em A ideologia alemã, Marx e Engels
referem-se do seguinte modo a esta condição peculiar dos seres humanos:
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo o que
se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a
produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal.
Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida
material (Marx & Engels, 1989, p.27).
[...] o trabalho se efetua em condições de atividade comum coletiva, de modo que o homem,
no seio deste processo, não entra apenas numa relação determinada com a natureza, mas com
outros homens, membros de uma dada sociedade. É apenas por intermédio desta relação a
outros homens que o homem se encontra em relação com a natureza (Leontiev, 1978, p. 74).
232
O “instrumento” dos animais realiza igualmente uma certa operação, mas esta última não se
fixa para ele. Logo que o pau desempenhou a sua função nas mãos do macaco, ele torna-se
para o animal um objeto qualquer, sem interesse. Não se tornou suporte permanente da
operação considerada. Razão porque os animais não fabricam instrumentos e não os
conservam. O instrumento do homem, em contrapartida, é fabricado e é procurado, é
233
conservado pelo homem e ele próprio conserva o meio de ação que realiza. (Leontiev, 1978,
p. 82).
necessidade que a move e, portanto, a coincidência entre o objeto e o motivo de sua atividade.
Esta relação direta e limitadora não se aplica, como se vê, ao homem. As atividades humanas são
tão motivadas por necessidades quanto as dos demais animais. Entretanto, a divisão de tais
atividades em ações é a primeira grande conseqüência (ao mesmo tempo em que consolidação)
da condição de não-coincidência ou descontinuidade que se opera no psiquismo humano, entre
sujeito e objeto, em que o homem passa a refletir sobre a realidade objetiva enquanto algo
distinto de si mesmo.
Evidentemente, esta não-coincidência se traduz, a princípio, em ganhos para o ser
social do homem, que se torna então capaz de realizar, através de etapas pré-definidas, atividades
que antes lhe seriam impossíveis. Basta que citemos a descoberta da produção do fogo, que só
pôde ser obtido artificialmente caso o sujeito que o objetivou dominasse as etapas básicas
necessárias à sua obtenção (como, por exemplo, apanhar gravetos, produzir faíscas através do
atrito entre pedras sobre os mesmos, alimentar a chama com mais combustível etc.). Isto
aumenta e complexifica, como observamos, incalculavelmente o poder de ação transformadora
dos homens. Em última análise, isto representa um aumento das condições de humanização da
espécie, traduzidas sob a forma de garantias de sobrevivência, ampliação de conhecimentos,
maior aproveitamento da natureza, segurança, desenvolvimento e aprimoramento de inúmeras
outras capacidades humanas etc.
A teleologia que distingue a atividade dos homens da dos demais animais é, pois,
necessariamente, a ação transformadora consciente da instrumentalidade de outras ações e suas
conseqüências possíveis, seja no âmbito de um mesmo indivíduo e os recursos socialmente
elaborados dos quais se apropriou, seja na conjugação à ação de outros indivíduos, dentro de
uma atividade dotada de significado social. A relação que é imediata entre atividade e motivo
nos animais é, no caso do homem, mediada pelo caráter instrumentalizado de sua relação
consciente com os objetos de sua realidade, sejam eles mãos, coisas, outras ações, outros
conhecimentos, mas, e principalmente, com outros homens.
Como vemos, o caso do batedor de caça primitivo, que tem como objetivo de sua
ação imediata espantar um animal, tem consciência do fim de sua ação, que se traduz na relação
objetiva desta para com a ação dos demais caçadores sob a forma de uma significação. Leontiev
assim se remete a este conceito:
A propriedade coletiva colocava os homens em relações idênticas quanto aos meios e frutos
da produção, sendo estes últimos, portanto, refletidos de maneira idêntica na consciência
individual e na consciência coletiva. O produto do trabalho coletivo tinha o sentido comum
de “bem”, por exemplo, um sentido social objetivo na vida da comunidade e um sentido
subjetivo para cada um dos seus membros. Por este fato, as significações lingüísticas
elaboradas socialmente que cristalizavam o sentido social objetivo dos fenômenos podia
igualmente constituir a forma imediata da consciência individual destes mesmos fenômenos.
(Leontiev, 1978, 114).
o produto objetivo da atividade que realiza (tecer, por exemplo) não coincide com o que o
motiva (necessidade de alimentar-se). A sua atividade de trabalho transforma-se em algo distinto
do que realmente a motiva. Seu sentido, para o operário, não coincide com sua significação
objetiva.
Evidentemente, o trabalhador nas condições da sociedade capitalista conhece o
significado social da atividade de tecer, por exemplo. Entretanto, a tecelagem não tem para ele o
sentido subjetivo de tecelagem. Nos termos de Leontiev:
O mesmo ocorre com o sentido da atividade para o capitalista, que agora, residindo
no lucro que dela tira, transforma-se em algo também estranho às propriedades do fruto da
produção e sua significação objetiva. O sentido do trabalho, tanto para o proprietário capitalista
quanto para o trabalhador assalariado é reificado pela mediação do dinheiro. O trabalho alienado
passa a ter, assim, um duplo caráter: um negativo, já que o trabalhador passa a viver em função
de um trabalho cujo sentido subjetivo não coincide com o significado concreto e social da
atividade. E um positivo, já que, enquanto meio de atividade, o trabalho constitui a riqueza real
do aspecto técnico da vida do trabalhador (conhecimentos, habilidades, o “saber-fazer” etc.).
Nas condições históricas de dominação, as significações predominantes são as
representações, as idéias que traduzem a ideologia hegemônica. O sentido real das relações
dominantes não é imediatamente “consciente”. Para se tornar consciente, deve entrar para a
consciência nas significações, elaboradas socialmente, que refletem a natureza real destas
relações (Leontiev, 1978, 133).
A consciência é condição para a consecução e consolidação da própria vida humana.
Portanto, somente com a “reintegração” da consciência humana o homem se deparará com o
desenvolvimento livre e completo de sua humanização. Contudo, esta “reintegração” não
equivale a um suposto retorno à coincidência primitiva entre sentidos pessoais e sistema de
significações sociais, o que implicaria em que retrocedêssemos a um período em que, por outro
lado, a divisão social do trabalho era, também ela, limitada. O que se presume como necessário é
o deslocamento do processo de conscientização para esferas mais variadas e profundas em
relação às significações, de que o homem deve tomar consciência para si, de modo a tornar a se
ver presente nas mesmas (Leontiev, 1978, p.139).
237
1.3. Trabalho alienado, apropriação privada e divisão social de classes: revisitando Karl
Marx
67
Entendemos como marxiano o pensamento próprio a Karl Marx, apreendido diretamente de suas obras.
Entendemos como marxistas os trabalhos provenientes de autores que se fundamentam na obra e no materialismo
histórico-dialético de Marx e Engels, isto é, que se dedicaram a oferecer contribuições ao pensamento marxiano e/ou
interpretações do mesmo, para além dos temas e contextos de históricos de Marx e Engels. Dizer-se “marxiano”,
entretanto, não revela mais que a intenção de identificação purista com o pensamento próprio a K. Marx. Enfim, seja
qual for nossa leitura de Marx e Engels, se nos apropriamos de seus pressupostos por identificação, somos marxistas
(o que não impede que haja “marxistas”, e nesses tempos pós-modernos, também “neo-marxistas” — que se
permitem ignorar inclusive a própria obra marxiana).
238
68
Embora os Manuscritos datem de 1844, vieram a público somente em 1932. Utilizamos, aqui, também a tradução
de T. B. Bottomore do original alemão, incorporada à obra Conceito marxista do homem, de autoria de Erich
Fromm, aqui utilizada como uma das referências (ver Fromm, 1979).
239
69
O estatuto de uma concepção histórico-ontológica acerca da condição humana em Marx é aqui adotada com base
nas propostas de Giörgy Lukács, que este pensador desenvolve em seu tratado Ontologia do ser social (ver Lukács,
1978).
240
70
Como nenhuma idéia é exclusivamente individual ou particular, uma vez que sua substância é necessariamente e
sempre, social e histórica.
242
71
Portanto, em termos ontológicos o termo “vital” deve ser entendido para além da esfera orgânica, sem ser
confundido com pressupostos metafísicos, como um vitalismo. O vital, no caso humano, se origina no biofísico e,
dialeticamente, a ele retorna, de forma inorgânica das produções propriamente humanas (que entenderemos, aqui,
como propõem Vigotski [1930/2001] e Leontiev [1978], por cultura). Assim, orgânico e o inorgânico, em se
tratando do gênero humano, são dimensões dialeticamente inseparáveis e mutuamente determinantes.
243
torna-se letra morta qualquer lei que proclame a chamada igualdade de oportunidades, mas não
garanta a mesma igualdade em termos de condições objetivas para a consecução de determinados
objetivos. Tomar-se este princípio como sinônimo de liberdade e possibilidades democráticas é
em si também um contra-senso, na medida em que nas sociedades capitalistas a maior parte das
liberdades (de ir e vir, de manifestação, de comunicação, de lazer etc.) são diretamente
proporcionais ao lugar que se ocupa na sociedade de classes e na produção, determinantes que
são do próprio poder de se adquirir e usufruir tais liberdades. Deste modo, poderemos até admitir
uma suposta igualdade de direitos entre um trabalhador e o proprietário da empresa para a qual
trabalha, mas dificilmente encontraremos a ambos em igualdade de condições para usufruírem a
referida igualdade de oportunidades.
Todas estas explicações buscam legitimar, por fim, o individualismo e a centralidade
determinante do eu particular nas relações humanas dentro do modo capitalista de produção (que
é francamente não só admitida como mesmo cultivada como natural). Por outro lado,
estranhamente, os aspectos sociais e culturais dos fenômenos humanos são ignorados ou
suprimidos de tais explicações. Neste sentido, o caráter eminentemente cultural e social do
gênero humano (característica fundamental do próprio processo de humanização ― não há
espécie que tenha se libertado das determinações apenas naturais como a nossa) é subitamente
substituído por um naturalismo evolucionista e determinista, pelas óbvias vantagens deste
modelo para a conservação de determinadas crenças, tomadas como naturais, irrevogáveis ou
mesmo fatais. Ou seja, as leis da biologia passam a determinar o entendimento organizativo,
constitutivo e de comportamento de uma entidade vital que não é mais apenas biologicamente
determinada, mas, na verdade, como já sabemos, culturalmente constituída.
Por essas perspectivas, o social não passa de um conjunto de indivíduos que agem
segundo seus interesses e propósitos pessoais, sendo o conjunto das relações humanas o
resultado de inúmeras e constantes negociações entre tais indivíduos particulares,
egocentricamente motivados. Desse modo, naturaliza-se e particulariza-se também o mercado,
elemento exponencial do modo de produção capitalista, suprimindo-se também o verdadeiro
caráter evolutivo do gênero humano, que é eminentemente social, cooperativo e participativo.
A compreensão marxiana da ética das relações humanas não admite essas pseudo-
explicações, dogmáticas ou cientificistas, tomando-as como essencialmente a-históricas e
forjadas a partir de condições e circunstâncias históricas específicas e transitórias, e, portanto,
perfeitamente compreensíveis, de um ponto de vista científico.
Marx, ao tomar o ser humano enquanto ontologicamente transformador de
realidades, constata que isto só se tornou possível porque a humanidade é, antes tudo,
246
antropologicamente social, para depois ser individual. Isto significa dizer que os próprios
indivíduos só se reconhecem enquanto individualidades na medida em que se apropriam do que é
social, ou seja, quando internalizam e fazem seu o que vem do outro (mas isso não no sentido
egoístico de tomar do outro, e sim, de partilhar com o outro). É assim, por exemplo, que
podemos concluir não ser possível nos entendermos enquanto individualidades senão na medida
em que nos apropriamos dos instrumentos e matérias primas sociais necessários a tal, a começar
pela linguagem simbólica e a cultura do grupo social a que pertencemos, pelos quais somente
então teremos parâmetros para identificar-nos enquanto individualidades particulares. Em outros
termos, o particular, constituído e mobilizado exclusivamente a partir de um exemplar
individual, não existe. Para Marx, é esta condição, inclusive, que também nos distingue dos
demais animais, na medida em que naquelas espécies cada indivíduo reproduz, particularmente,
as determinações genéticas de toda a espécie, ao longo de inúmeras gerações, reproduzindo-as,
sob a forma do que entendemos por instinto, o comportamento geral de todos os demais
indivíduos (todos os indivíduos são iguais e, portanto, não há o que entendemos por
individualidade, no sentido de próprio e diverso). Esse processo natural-evolutivo não ocorre
com os seres humanos, na medida em que o instrumental cultural permite que o humano
ultrapasse as determinações genéticas e meramente instintivas, libertando-se, portanto, dos
imperativos naturais a que os demais animais, em maior ou menor grau, são submetidos. Enfim,
é precisamente o instrumental cultural em questão que permitirá, a cada indivíduo humano, não
72
só pensar o mundo objetivo como, também, subjetivo . Sendo assim, pensar, comunicar, utilizar
instrumentos, reconhecer valores, beleza, significado, diferença, igualdade, só são possíveis
porque internalizamos tais valores no contato com as demais individualidades diversas de nossa
sociedade.
Os indivíduos humanos, como nos propõe Marx, carecem, portanto, uns dos outros
para além de suas determinações biológicas, ou seja, carecem uns dos outros e de tudo o que a
humanidade foi e será capaz de produzir, sempre. E nos propõe, então, uma noção revolucionária
sobre riqueza e carência, em termos do processo de humanização, que são fundamentais à
instauração de uma ética verdadeiramente inovadora. Em suas palavras:
72
Para maiores aprofundamentos, sugerimos os trabalhos de Aleksander Leontiev, sobretudo, O Desenvolvimento
do psiquismo, (ver Leontiev, 1978) e o clássico trabalho de Lev S. Vigotski, Pensamento e linguagem, cuja tradução
integral no Brasil traz por título A construção do pensamento e da linguagem (ver Vigotski, 1934/2001). Outro
trabalho, este uma síntese de extrema relevância e originalidade sobre o tema, é a obra de Newton Duarte, A
individualidade para-si (ver Duarte, 1994).
247
73
Marx e seus contemporâneos muito provavelmente não entenderiam os chamados experimentos do “socialismo
real” do século XX como “realmente socialistas”. Longe disso, tanto política como economicamente, tais
experiências tendem hoje, após seus desmoronamentos, a serem consideradas pelos socialistas “realmente
resistentes” (hoje, queremos crer, emancipados do socialismo vulgar) experiências que não lograram êxito pelo fato
de não terem superado as várias determinações históricas e contextuais do modo capitalista de produção, senão os
vestígios feudais ainda presentes no período revolucionário. Assim, fatores como uma divisão social do trabalho
tradicional, a manutenção de sua exploração (ainda que patrioticamente justificável) e uma relação público-estatal
profundamente burocrática redundaram em privilégios de classe e na corrosão do tecido social dos Estados do leste
europeu. Suas economias não foram exatamente reconvertidas a Estados capitalistas, pois não ultrapassaram os
fundamentos mesmos desse modo de produção. Entretanto, neste trabalho, infelizmente não poderemos ir além desta
nota.
249
antagonismo entre o homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante.” (Karl Marx, In:
Fromm, 1979, p. 116-117).
E, por fim, se começamos com Marx, finalizemos também com ele:
Se se pressupõe o homem como homem e sua relação com o mundo como uma relação
humana, só se pode trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. Se se quiser gozar da
arte deve-se ser um homem artisticamente educado; se se quiser exercer influência sobre
outro homem, deve-se ser um homem que atue sobre os outros de modo realmente
estimulante e incitante. Cada uma das relações com o homem - e com a natureza - deve ser
uma exteriorização determinada da vida individual efetiva que se corresponda com o objeto
da vontade. Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor, enquanto amor, não produz
amor recíproco, se mediante tua exteriorização de vida como homem amante não te
convertes em homem amado, teu amor é impotente, uma desgraça” (Marx, 1987, p. 198).
O uso habitual que se faz da fórmula de Marx toma as palavras num sentido que,
250
curiosamente, parecia evidente, enquanto reina um mistério sobre o emprego específico que
Marx faz delas, após Hegel, na concepção da história. Precisamente, que é preciso colocar
atrás de tais palavras, em sua extensão histórica? Pois é verdade que se trata de uma
verdadeira unidade de sentido teórico que Marx enquadra cada vez que se serve dessa
oposição léxica e semântica "trágico/cômico". Tal oposição tem um sentido preciso (e, como
se verá, fundamental, ainda que estranhamente ignorado até aqui) no discurso e na
racionalidade de Marx.
É a situação que vive a ideologia alemã após Hegel. É bastante significativo que a
comparação com o desmembramento do Império de Alexandre se encontre desde o início da
Dissertação de 1841 - na qual Aristóteles é denominado "o Alexandre da Macedônia da
filosofia grega" - e retorna na "introdução" de A ideologia Alemã - com a alusão ao desmem-
bramento do Império macedônio pelos Diádocos.
É o problema da decadência das grandes formas históricas que Marx apresenta desde o
princípio: é a alternativa da morte trágica ou cômica dessas grandes formas que se apresenta:
"A morte dos heróis assemelha-se ao pôr-do-sol, e não ao estouro de uma rã que inchou".
Essas formas decadentes da consciência, que são para Hegel o ceticismo, o epicurismo e o
estoicismo, são reabilitadas em 1841 por Marx (como pelos outros ideólogos alemães) como
experiências privilegiadas da negatividade da consciência de si e da fecundidade da crítica.
(Assoun, 1979, p. 82-83).
Em 1843, confronta-se Marx com o seguinte problema: uma vez a "crítica da religião...
terminada no essencial" (com Feuerbach), como "crítica do céu", como deve proceder "a
crítica da terra", que é "crítica da política"? Porquanto, na Alemanha, a crítica enfrenta um
estranho objeto: "A negação até do nosso presente político", constata Marx, "já se encontra,
como um fato poeirento, no desempenho histórico dos povos modernos". Donde a aporia da
critica, que é por definição posição de objeto atual e que se encontra em choque com um
objeto inactual. Com efeito, seu objeto, "o estado de coisas alemão", situando-se "por baixo
do nível da história" está, por isso mesmo, "por debaixo de toda crítica". É literalmente
anacrônica e ameaça de anacronismo a própria crítica que deve expô-lo. É assim que Marx é
levado, rico de sua experiência de combate político na Gazette Rhenane, a meditar sobre esse
fenômeno fundamental da defasagem entre a duração histórica alemã e a duração histórica
universal. É de tal meditação que provirá sua grande teoria da gênese da ideologia alemã de
251
Em tal esquema geral, o "caso alemão" é notável por dupla razão: de um lado, a evolução
particular que o define está em atraso em relação à evolução geral; do outro lado, e
sobretudo, a evolução particular é aberrante em relação ao esquema da evolução geral;
principalmente, o ciclo universal antigo-regime-revolução-restauração torna-se o ciclo
absurdo antigo-regime-restauração; a fase revolucionária é pura e simplesmente apagada. A
Alemanha, portanto, é mesmo um monstro histórico, tanto porque foi atingida por uma
verdadeira parada de desenvolvimento (no sentido em que se emprega o termo em
embriologia), como porque ela, não obstante, se desenvolve a partir desse princípio
patológico. (Assoun, 1979, p. 84).
É por isso que o fantasma histórico é importuno para os vivos - "os povos modernos", diz
Marx, "... são ... importunados (belüstigt) pelas reminiscências do passado". É que ele traz à
baila a identidade da modernidade manifestando no seu seio o seu oposto, a antigüidade (no
sentido de antimodernidade). É por isso que a Alemanha é também o mal-estar do mundo
moderno - o que o impede de realizar a integralização do seu conceito: "O atual regime
alemão... é um anacronismo, em flagrante contradição com axiomas universalmente
reconhecidos (allgemein anerkannte Axiome), a vaidade do antigo regime exposto aos olhos
252
Compreendamos que, enquanto o antigo regime coincidia com a forma de poder existente
universalmente, ele rejeitava o seu oposto, a liberdade, na esfera da contingência (Einfall) e
da particularidade (persönnlicher).
De modo correlato, ele se apresentava como a ordem do mundo existente - na ordem do ser -
rejeitando o mundo adverso, o mundo da liberdade (a democracia em luta) na ordem do
mundo em devir: "Ao mesmo tempo que o antigo regime se encontrava em luta, enquanto
ordem do mundo existente (als vorhandene Weltordnung), com um mundo ainda em devir
(werdenden Welt), ele por seu turno se achava um erro da história universal
(weltgeschichtlicher Irrtum), mas não um erro pessoal (persönnlicher Irrtum)". (Assoun,
1979, p. 86).
Isso significa que a contradição do antigo regime (antes de 1789 na França, por exemplo) é a
contradição generalizada e objetiva do mundo histórico: ele é a encarnação do "erro da
história universal"; sua individualidade histórica não é senão a particularização da
contradição universal. Num mundo de constrangimento universal, o antigo regime expressa
ao mesmo tempo a verdade universal - quer dizer, o dado do universo histórico - e o erro
universal. "É por isso", diz Marx, "que sua queda foi trágica." Equivale a dizer claramente
que os momentos propriamente trágicos da história são aqueles em que uma universalidade
histórica se manifesta como tal - sendo a queda o limite negativo da afirmação de tal
universalidade, sua contradição levada ao limite crítico que é também sua “verdade”.
(Assoun, 1979, p. 87).
Entendamos que, por sua vez, se havendo a liberdade tornado "a ordem do mundo
existente" (ou pelo menos dominante), a universalidade dada passou da particularidade em
direção à antiga universalidade. Invertendo-se a relação, ela se toma a exceção irrisória: "O
moderno ancien régime não passa de comediante de uma ordem do mundo cujos verdadeiros
heróis estão mortos". É o representante retardado, incongruente, num sentido extremo, de um
mundo desaparecido.
Que tal essência venha a ser abolida pela evolução - "A história", diz Marx, "é
radical (gründlich)" - como no segundo caso - e a consciência da individualidade histórica perde
seu fundamento - sua Selbst-beretchtigung. Essência e aparência se dissociam: entra-se na esfera
da ficção (Einbildung), do fingimento, da "hipocrisia" e do "sofisma" (Sophisma). A crença
(Glauben) substitui-se pela ilusão da crença, que se tenta generalizar impondo-a ao mundo: "Se
ele cresce ainda em sua própria essência, procuraria acaso ocultá-la sob a aparência de uma
essência estranha?" Assiste-se a uma desesperada tentativa de reconstituição de uma essência
histórica caduca - com a qual se sonha em todas as tentativas de Restauração, votadas a pro-
duzir artificialmente uma consciência histórica que já não corresponde a objetividade alguma,
portanto a um sobrelanço ideológico em via de suprir ilusoriamente essa falta de objetividade.
(Assoun, 1979, p. 89).
Não se deveria, porém, concluir que o trágico se opõe ao cômico tal como o real ao fictício.
A história não é feita de duas dimensões heterogêneas - a dimensão trágica, em que consis-
tiria sua realidade, sua efetividade, sua verdadeira essência, e a dimensão cômica, em que
consistiria sua irrealidade, sua facticidade, sua aparência ilusória. O cômico não é uma
duplicata falsa da história, seu avesso fantasmagórico: é um momento necessário de sua
realização. E é aí que se prepara a grande teoria de O Dezoito Brumário.
"A história é radical", diz Marx, "e ela atravessa muitas fases quando leva por terra uma
forma antiga. A última fase de uma forma da história universal é sua comédia." Assim, a
comédia histórica é um momento - o momento final - da aventura de uma forma histórica.
Ou antes, é o momento final do processo terminal de uma forma histórica. Ela não faz,
portanto, senão inaugurar a fase terminal da aventura da forma histórica, que somente a
segunda morte, a morte cômica, virá encerrar. (Assoun, 1979, p. 89).
Percebe-se a ambigüidade que define a fase cômica: ela pertence à história, mas lhe
define o limite, o intervalo entre aquilo que já não é mais (de direito) e aquilo que continua a ser
254
(de fato). A comédia é a modalidade específica segundo a qual uma forma histórica vive sua
própria morte.
Retomaremos, ainda uma vez, este assunto em nossas Considerações Finais, mas
julgamos oportuno antecipar, neste ponto, que a leitura que Marx propõe acerca da contraposição
entre tragédia (como drama, momento heróico etc.) e farsa (como comédia, momento burlesco
etc.), não admite uma leitura meramente lógico-formal, linear ou mecâneica dos acontecimentos
históricos. A história, em Marx, não é apenas sucessão de eventos, embora também a comporte;
não é também mero anacronismo, embora também o comporte. Ora, a história é, antes de mais
nada, resultado das ações humanas, e por isso, complexo de múltiplas determinações e
essencialmente contraditória. Daí a necessidade de ser apreendida em sua dinamicidade, o que
implica em reconhecer movimentos diversos e adversos, cíclicos ou contínuos, conflituosos ou
contínuos, ambíguos, fragmentados ou contíguos. Isto tampouco implica em tomarmos os
movimentos dos homens como naturalmente caóticos e espontâneos (irracionais) ou plenamente
intencionais e arbitrários (racionais).
O método dialético é, nesse aspecto, o método por excelência para apreensão das
contradições e antíteses daí oriundas. De nossa parte, no que se refere estritamente às nossas
hipóteses, lembramos que seria inexeqüível, no espaço deste estudo, apreendermos e
apresentarmos, ao leitor (que é também um investigador da realidade) toda a multiplicidade de
determinantes que de alguma forma conformam nossa proposição investigativa. Daí os objetivos
deste trabalho não terem sido estabelecidos a partir da monumental história da consolidação da
sociedade capitalista industrial, e sim, a partir de um período relativamente bem definido de
nossa contemporaneidade e, mais exclusivamente, do período neoliberal a partir da década de
1990. É esta delimitação espaço-temporal que nos remeteu ao passado da história do capital em
seus aspectos materiais e ideológicos em relação às esferas do trabalho e da educação, a ponto de
nessas relações identificarmos elementos comuns que num primeiro momento nos saltaram aos
olhos para, depois, se revelarem como possivelmente similares na forma e nos conteúdos, mas
numa razão histórica (em seus objetivos ideológicos, políticos, sócio-culturais e econômicos)
notavelmente inversa, período contraposto a período.
Esta primeira hegemonia esgotou-se por ocasião da crise de 1929, que introduziu um
novo período, denominado "compromisso keynesiano". Além do controle macroeconômico,
estatal e centralizado, calcado no crescimento e no emprego, numerosas limitações foram
impostas sobre as prerrogativas da finança: “as regulamentações da sua atividade nacional e
internacional (notadamente através dos acordos assinados em Bretton Woods em 1944), o
reconhecimento parcial do direito ao trabalho, inscrito em 1948 na legislação estadunidense, e o
desenvolvimento do Estado-providência. Mas esse compromisso durou apenas o espaço de
algumas décadas.” (Duménil & Lévy 2003, p. )
O fracasso das políticas keynesianas diante da crise estrutural iniciada nos anos 1970
teriam criado as circunstâncias favoráveis para o restabelecimento da hegemonia da finança, por
meio do monetarismo, seguido pelo neoliberalismo. Nesse contexto de crise e da da luta dos
assalariados, um novo conjunto de políticas foi imposto, cujas figuras emblemáticas foram Paul
Volcker, presidente do Federal Reserve, Ronald Reagan e Margaret Thatcher. A alta das taxas de
juros de 1979 (o golpe de 1979) foi o elemento maior do restabelecimento das prerrogativas da
finança. Este foi um processo consciente, deliberado, cuidadosamente orquestrado, e não o
resultado de um mecanismo de mercado qualquer. Esteve longe, portanto, de uma evolução
natural do sistema, tão ao gosto dos ideólogos liberais.
256
dos sistemas de proteção social. Nos Estados Unidos, a expressão "repressão financeira" é
utilizada para designar o recuo das prerrogativas da finança no período.
Não é, portanto, surpreendente que a finança (e suas rendas) tenha suportado, num primeiro
momento, uma parte do custo da crise estrutural dos anos 1970. Mas, com o advento do
neoliberalismo, a finança pôde retornar à situação que lhe era vantajosa. Sob o ponto de vista
da hegemonia financeira, pode-se falar de restabelecimento, muito mais do que de
prosseguimento de uma mesma evolução. (Duménil & Lévy 2003, p. 34)
Se faz necessário sublinhar que a distinção que nós introduzimos entre a dialética das
forças produtivas e as relações de produção, de um lado, e as lutas, de outro lado, mais enfatiza
as interdependências do que as nega. Quando sustentamos que as classes dirigentes reafirmaram
no neoliberalismo a primazia do critério de maximização da taxa de lucro (impondo uma
disciplina aos gestores, ao invés de compartilhar com eles a responsabilidade da gestão, e
fazendo regredir os obstáculos legais e regulamentares), é preciso compreender que esta ação
reforça o caráter capitalista das relações de produção.
Todavia, os autores não hesitam em falar de uma nova fase do capitalismo para
caracterizar o novo curso que ele segue desde meados dos anos de 1980. Mas é preciso,
igualmente, ressaltar as ambigüidades inerentes a uma tal afirmação. Isto é ainda mais
importante porque elas possuem um forte conteúdo ideológico:
A crise dos anos 1890 foi seguida, nos Estados Unidos, por uma transformação das
instituições do capitalismo portadora de uma revolução da técnica e da organização das
empresas. O tamanho das unidades de produção já havia aumentado e a mecanização da
produção havia conhecido novos desenvolvimentos no final do século XIX. Essa tendência
provocou uma verdadeira revolução, a revolução da gestão (managerial revolution), cuja
maturação demandou várias décadas. Mas essa revolução não teria sido possível sem uma
transformação concomitante das formas de propriedade. Ao final de uma crise da
concorrência (marcada pelo desenvolvimento de trustes e cartéis), formaram-se, no intervalo
de dois ou três anos antes e após 1900, grandes sociedades anônimas, num momento em que
259
ocorria uma vaga de fusões sem precedentes (THORELLI, 1995; PERITZ, 1996 – citados
por Duménil & Lévy, 2003). As novas leis sobre as sociedades e as holdings forneceram as
bases jurídicas dessa revolução, conhecida nos Estados Unidos como corporate revolution
(revolução das corporações). As grandes corporações contribuíram para o desenvolvimento
de vastos Estados-maior de gestores e de empregados, distribuídos em uma organização
hierárquica piramidal. (Duménil & Lévy 2003, p. 26-27).
“[...] À parte o fato de que os altos salários não representam na prática industrial de Ford
aquilo que Ford teoricamente quer que signifiquem (cf. notas sobre o significado essencial
260
dos altos salários como meio para selecionar uma mão-de-obra adequada ao fordismo, seja
como método de produção e de trabalho, seja como sistema comercial e financeiro:
necessidade de não ter interrupções no trabalho, logo open shop, etc.), deve-se notar: em
certos países de capitalismo atrasado e de composição econômica em que se equilibram a
grande indústria moderna, o artesanato, a pequena e média cultura agrícola e o latifundismo,
as massas operárias e camponesas não são consideradas como um "mercado". O mercado
para a indústria é visto como estando situado no exterior, e em países atrasados do exterior,
nos quais haja maior possibilidade de penetração política para a criação de colônias e de
zonas de influência. A indústria, com o protecionismo interno e os baixos salários, busca
mercados externos através de um verdadeiro dumping permanente.” (Gramsci, 1934/2001, p.
305).
Ora, apesar do caráter esparso das notas de Gramsci, nota-se que ele compreende o
regime programático do fordismo, que inclui salários elevados, como forma não apenas de elevar
a produção e a eficiência de seus processos, mas também assegurar o estabelecimento de um
mercado amplo para a própria produção, o que necessariamente incluiria uma classe trabalhadora
incitada e seduzida ao consumo dos bens industrializados. Senão, vejamos esta outra passagem:
Países onde existe nacionalismo, mas não uma situação "nacionalpopular", ou seja, onde as
grandes massas populares são consideradas como gado. A permanência de uma camada
artesanal industrial tão considerável em alguns países não estará ligada precisamente ao fato
de que as grandes massas camponesas não são consideradas como um mercado para a grande
indústria, que tem predominantemente um mercado externo? E o chamado renascimento ou
defesa do artesanato não expressará precisamente a vontade de conservar esta situação em
detrimento dos camponeses mais pobres, aos quais se impede qualquer progresso? (Gramsci,
1934/2001, p. 306).
O termo "nova economia" foi inventado por jornalistas dos Estados Unidos treinados para
encontrar elementos "novos", que são por eles batizados em sintonia com o "imaginário" de
seus leitores. A iniciativa, neste caso, coube ao semanário Business Week. Enquanto Alan
Greenspan julgava (em 1996, pois em seguida ele mudou de opinião) que o nível das
cotações em Wall Street estava associado a uma "exuberância irracional", os defensores da
"nova economia" pareciam fornecer argumentos que permitiam atribuir o vigor da expansão
261
A definição do que vem a ser a "nova economia", além de difícil de ser encontrada, é pouco
precisa. O relatório publicado sob esse título pelo Conselho de Análise Econômica, colabora
para a consolidação do mito ao considerar, de uma maneira bastante vaga, "que o mesmo
termo é utilizado para designar um setor efervescente, relacionado às indústrias de
informação e telecomunicações (as TI) e uma nova maneira de apreender a economia em seu
conjunto." (Conselho de Análise Econômica, 2000, p. 9) O estudo principal diz respeito, em
sua quase totalidade, a essa "efervescência" e o faz como se ela pudesse ser abstraída da
bolha financeira e dos grandes riscos financeiros sistêmicos. A Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por seu turno, publicou recentemente
um estudo cujo título é mais prudente, posto que formulado na interrogativa (OCDE, 2000)'.
Os autores notam que o termo nasceu e foi legitimado apenas pelos Estados Unidos. Os
trabalhos disponíveis permitem dizer no máximo que a "nova economia" poderia (a OCDE
emprega o condicional) anunciar um crescimento tendencial mais forte, uma vez que as TI
promovem modos de gestão mais eficazes das empresas e um crescimento mais forte da
produtividade multifatorial. Ela poderia ter modificado o ciclo econômico (novamente no
condicional). Enfim, e essa é a única certeza para a OCDE, ela "modificou os setores que
promovem o crescimento." (Chesnais, 2003, p. 45)
Chesnais entende que a expressão "nova economia" se mostra mais obscura que o
próprio conceito de “globalização”, revelando, portanto, uma forte conotação ideológica. Devido
à sua fluidez, “ela ofereceu àqueles que, em todo o mundo, esperavam que o capitalismo
estadunidense lhes mostrasse o futuro, uma interpretação tranqüilizadora sobre a situação
econômica dos Estados Unidos.” E, de forma contundente, afirma que “o sucesso do termo
ilustra também a maneira pela qual o campo analítico restrito da teoria padronizada coloca a
maioria dos economistas a reboque dos jornalistas.” Isto se mostra como, no mínimo,
preocupante mediante a difusão e amplitude que o termo ganharia junto a todos os organismos
financeiros e governos pelo mundo. Desse modo, retomando a questão da financeirização
econômica, para Chesnais:
Estes são os objetivos perseguidos com a criação do Acordo de Livre Comércio da América
do Norte (Nafta) no nível regional e da OMC no nível mundial. Houve fracasso no caso do
Acordo Multilateral de Investimento (AMI), mas este foi em grande parte compensado pela
presença de um quadro de disposições draconianas acerca da abertura dos mercados
públicos, como a abertura e a desregulamentação dos serviços públicos - exemplo do Acordo
Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS), no Tratado de Marrakesh. Graças a tais
instituições e a tais mecanismos, o regime de acumulação com dominância financeira é
mundializado no sentido em que ele organiza uma projeção internacional muito forte e
influência da dominação sistêmica da parte dos países capitalistas onde o regime se instituiu
primeiramente. (Chesnais, 2003, p. 53)
A "globalização" exige, de uma maneira ainda mais forte que no passado, que a
economia mundial seja apreendida "não como uma mera adição de suas unidades nacionais, mas
como uma poderosa realidade independente criada pela divisão do trabalho e pelo mercado
mundial que domina todos os mercados nacionais" (Trotski, 1985 – citado por Chesnais, 2003,
p.45).
Estas rápidas menções às colocações destes autores se prestam: 1) a demonstrar que
o período neoliberal reflete a tentativa radical de resgatar ou restabelecer o domínio do capital
(após o rompimento do compromisso keynesiano) através do monetarismo ou hegemonia das
finanças, que passam a ser controladas e ditadas pelo próprio capital, em detrimento de qualquer
controle social ou estatal, através da gestão financeira e seus agentes; 2) evidenciar que, para
além dos avanços técno-científicos ligados à gestão globalizada das finanças e da produção
263
material (insuprimível), e embora seja um fato a evolução das mesmas sobretudo através dos
meios informatizados (gestão da informação), estas mudanças são política e ideológicamente
apresentadas como determinações em si para a uma “nova” fase do capitalismo,
eufemisticamente denomina fase da “nova economia” por meio da “globalização”; 3) evidenciar,
conclusivamente, que o que é apresentado como mudança, revolução ou novidade restringe-se,
portanto, aos meios de o capital atingir suas finalidades de acumulação, finalidades estas
obscurecidas por uma série de apologias e mistificações que ocultam ou dissimulam, das
sociedades, os seus reais compromissos e objetivos.
A ocultação e mistificação dos reais compromissos e finalidades do movimento
ultraliberal contemporâneo não pode ter outra função, numa organização social e produtiva
predatória e destrutiva, que a manutenção da hegemonia dos indivíduos, grupos, corporações e
“nações-corporações” dominantes, mediante as contradições do sistema que coordenam e suas
conseqüências negativas sobre aqueles que, mistificados, seduzidos ou cooptados, contribuem
ativa ou passivamente para sua continuidade.
[...] várias estratégias para excluir o trabalhador do mercado formal, no qual ele tinha direitos
assegurados e melhores condições de trabalho e, ao mesmo tempo, são colocadas estratégias
de inclusão no mundo do trabalho, mas sob condições precárias. Assim é que trabalhadores
são desempregados e reempregados com salários mais baixos, mesmo que com carteira
assinada; ou reintegrados ao mundo do trabalho através de empresas terceirizadas, prestando
os mesmos serviços; ou prestando serviços na informalidade, de modo que o setor
reestruturado se alimenta e mantém sua competitividade através do trabalho precarizado.
(Kuenzer, 2002, p. 92 – itálicos nossos).
74
Nossa crítica quanto à exacerbação do processo de precarização no período neoliberal não quer significar, ainda
que este se apresente como opositor do Estado de Bem-Estar, a defesa da manutenção desse último. Entendemos
ambos os movimentos como oportunos às necessidades do capitalismo em diferentes contextos, o Welfare State
surgindo pela ameaça do comunismo e se consolidando pela Guerra Fria que sucede a Segunda Guerra, e o
movimento neoliberal sendo propiciado pela crise estrutural daquele e o fim das chamadas experiências
“socialistas” do século XX, no leste europeu. Assim, se no momento capitalista anterior o processo de
inclusão/exclusão fora em parte atenuado (sobretudo nos países capitalistas centrais), com o neoliberalismo não há
mais reservas e constrangimentos quanto à agudização do referido processo. Enfim, não importa com que
intensidade, a exclusão, como dissemos, é intrínseca à própria lógica do modo de produção que a instaura.
265
[...] estratégias de inclusão nos diversos níveis e modalidades da educação escolar aos quais
não correspondam os necessários padrões de qualidade que permitam a formação de
identidades autônomas intelectual e eticamente, capazes de responder e superar as demandas
do capitalismo; ou, na linguagem toyotista, homens e mulheres flexíveis, capazes de resolver
problemas novos com rapidez e eficiência, acompanhando as mudanças e educando-se
permanentemente. (Kuenzer, op. cit., p. 92-93).
Nesse aspecto, elenca uma série de estratégias que supostamente visam ampliar as
condições de qualificação para o mundo do trabalho, fundamentalmente através da educação em
seus diversos níveis e com a instauração de novas e variadas modalidades. Assim, estabelecem-
se estratégias como ciclagem, aceleração de fluxo, progressão automática, classes de aceleração,
atividades de formação supletiva etc., como fórmulas de democratização dos processos
educacionais, conquanto, de fato, destituídos justamente da dimensão qualitativa, prestam-se
apenas a uma falsa idéia de ampliação do alcance do ensino. Por outro lado, criam-se inúmeras
modalidades de formação, além das tradicionais, com certificações em geral apenas formais, que
substituem a educação em termos do que lhe seria fundamental, sob a forma de “cursos
aligeirados de formação profissional, que supostamente melhorarão as condições de
empregabilidade.” (Kunzer, op. cit., p. 93). São estas, enfim, as estratégias, segundo a autora,
que “conferem ´certificação vazia`, e por isto mesmo, constituem-se em modalidades aparentes
de inclusão que fornecerão a justificativa, pela incompetência, para a exclusão do mundo do
trabalho, dos direitos e das formas dignas de existência” (Kuenzer, op. cit., p. 93 – itálicos
nossos).
É por esse processo que o movimento neoliberal de recomposição capitalista estende
seus desígnios, finalmente e de modo efetivo, à própria educação, nela instaurando um novo
paradigma pedagógico — ou, na melhor tradição gramsciana, o que poderíamos talvez chamar
de o novo ícone do princípio educativo do trabalho: a pedagogia das competências. Em termos
de seus efeitos sobre a sociedade, deparamos, por decorrência, com uma das conseqüências mais
perversas do movimento capitalista contemporâneo (seja este entendido como “nova economia”,
“ajustamento econômico”, “globalização da economia”, “neoliberalização” etc.), o qual, ao
mesmo tempo em que gera o que poderíamos chamar de uma inclusão restritiva, produz
necessariamente a exclusão extensiva das parcelas majoritárias da população, assumindo,
entretanto, e unilateralmente, a inclusão como sua única e legítima criação. Para tornar
socialmente aceitável essa relação de discriminação, o sistema oculta e liberta-se de sua outra
criatura, a exclusão, reportando-a como oriunda de um processo independente e autógeno de
266
criação. Em outros termos, ela transfere às suas próprias criaturas a responsabilidade exclusiva
por suas existências malogradas ou marginais, seus sucessos e seus fracassos, principalmente
através da particularização individualizada de tais responsabilidades por traços tão
imponderáveis, em termos psicológicos e sociais, como aptidões, habilidades, adaptabilidade,
inclinações de caráter, graus de inteligência, assertividade, hereditariedade, competência etc.
Concordamos uma vez mais com Sawaia quando nos propõe a lógica dialética como
o grande instrumento capaz de desvelar uma tal relação contraditória, na medida em que:
...explicita a reversibilidade da relação entre subjetividade e legitimação social e revela as
filigranas do processo que liga o excluído ao resto da sociedade no processo de manutenção
da ordem social, como por exemplo, o papel central que a idéia de “nós” desempenha no
mecanismo psicológico principal da coação social nas sociedades onde prevalece o fantasma
do uno e da desigualdade, que é o de culpabilização individual. (Sawaia et alii, 2001, p. 9 -
itálicos nossos).
75
Sobretudo, Althusser, em Ideologie et appareils ideologique d’Etat (1970); Bourdieu & Passeron, em Les
héritiers (1964) e La reproduction (1970); Bowles, em Unequal education and the reproduction of the social
division of labour (1972); Bowles & Gintis, em Schoooling in Capitalist America (1976); Baudelot & Establet, em
L’ecole capitaliste en France (1971) e Snyders, em Ecole, classe et lutte des classes (1975).
267
cotidiano e não-cotidiano (cf. Heller, 1997), a esfera da reprodutividade seja condição elementar
e ineliminável da própria existência humana, é possível concluir ser a educação mediada o
processo fundamental e necessário a que a mera reprodução cotidiana possa ser confrontada,
transformada e, por fim, socialmente superada. Nesse sentido, o desvelamento do lugar e papel
do processo educativo, no atual movimento neoliberal de reorientação do capitalismo mundial,
se apresenta como potencialmente possibilitador de compreensões que possam contribuir para a
superação da concepção dicotômica atualmente em voga em nossas sociedades, acerca da relação
existente entre inclusão e exclusão social tomadas, em geral, como fenômenos apenas
coexistentes e extrínsecos, de modo que os mesmos sejam compreendidos, inversamente, como
intrínsecos, complementares e perpetrados dentro de um mesmo processo, organização e
funcionamento sociais.
A diferença entre o processo de adaptação, no sentido em que este termo é empregado para
os animais, e o processo de apropriação, é o seguinte: a adaptação biológica é um processo
de modificação das faculdades e caracteres específicos do sujeito e do seu comportamento
inato, modificação provocada pelas exigências do meio. A apropriação é um processo que
tem por resultado a reprodução, pelo indivíduo, de caracteres, faculdades e modos de
comportamento humanos, formados historicamente. Por outros termos, é o processo graças
ao qual se produz, na criança, o que, no animal, é devido à hereditariedade: a transmissão ao
indivíduo das aquisições do desenvolvimento da espécie.” Portanto, como enfatiza por fim o
autor, ... “A criança não se adapta ao mundo dos objetos e fenômenos humanos que a
rodeiam; fá-lo seu, isto é, apropria-se dele. (Leontiev, 1978, p. 320).
Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida
sobre a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, o trabalho educativo é o ato de
produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. (Saviani, 1992a, p. 21).
No sentido mais imediato e determinado, não podemos ser filósofos — isto é, ter uma
concepção do mundo criticamente coerente — sem a consciência da nossa historicidade, da
fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela está em contradição com
outras concepções ou com elementos de outras concepções. (Gramsci, 1995, p. 13, nota 2).
Este raciocínio é fundamental para que nos aprofundemos ainda mais no papel e
propósitos do ensino formal. O mundo real, concreto, é um mundo de relações determinadas por
interesses variados e conflitantes, e aos quais encontra-se submetida a instituição escolar.
Evidentemente, o mundo capitalista que se nos apresenta é um mundo marcado pela hegemonia
de determinada concepção de homem e de mundo, historicamente determinada, que se tornou
dominante, e que excetua as populações majoritárias do acesso aos saberes fundamentais a que
nos referimos. São estas populações majoritárias justamente as parcelas responsáveis pela
implementação de toda a atividade produtiva de todas as sociedades historicamente constituídas,
até nossos dias. Esta excetuação se deve, fundamentalmente, ao lugar nas atividades produtivas
reservado às classes trabalhadoras e ao legado eminentemente alienado e alienador de tais
atividades em uma sociedade fundada na divisão de classes. Absorvida essencialmente pela
venda de sua força de trabalho para subsistir, essa imensa maioria populacional vê-se excluída
das possibilidades de aquisição de saberes em igualdade de condições com as classes dirigentes,
submetendo-se aos interesses das classes dominantes através da assimilação acrítica das
concepções de homem e de mundo por elas difundidas, concepções estas que, por esta razão,
tornam-se hegemônicas, mas não correspondem aos interesses das classes subalternas. Como
assinala Saviani:
Com efeito, a concepção de mundo hegemônica é exatamente aquela que, mercê de sua
expressão universalizada e seu alto grau de elaboração, logrou obter o consenso das
diferentes camadas que integram a sociedade, vale dizer, logrou converter-se em senso
comum. É nesta forma, isto é, de modo difuso, que a concepção dominante (hegemônica)
atua sobre a mentalidade popular articulando-a em torno dos interesses populares, o que
concorre para inviabilizar a organização das camadas subalternas enquanto classe. (Saviani,
1991, p. 10).
pautarmos nos postulados apresentados por Kosik (ver item 1.1 deste Capítulo) acerca da
apreensão prático-sensível da realidade, concordaremos quanto ao fato de que a essência da
realidade não é, necessariamente, tal e qual é apreendida imediatamente pelos nossos sentidos.
Dado o caráter pragmático de nossas atitudes cotidianas para que seja possível a consecução da
própria vida humana, e que desse modo não há como apreendermos a essência mesma da
realidade, senão pela análise e pela reflexão, torna-se estranha a afirmação segundo a qual
haveria coincidência e identificação entre cotidiano e realidade. Entretanto, observamos haver se
tornado muito comum a opinião daí derivada, segundo a qual a escola pouco ou nada teria a ver
com a realidade concreta ao lidar com saberes e realizar atividades diversas daquelas com as
quais as pessoas lidam no seu dia-a-dia. Esta opinião encontra, inclusive, eco na vida diária, em
ditos populares como “mais vale a prática que a gramática” ou “as crianças aprendem apesar da
escola.” (Saviani, 1992a, p. 23).
Uma vez tomada a cotidianidade como a própria realidade, tornaram-se comuns as
posturas teóricas e práticas que procuram aproximar, ao máximo, as atividades e conteúdos
escolares da cotidianidade em geral, considerada parâmetro ideal para o trabalho educativo
formal, porque verdadeiramente corresponderia à vida concreta dos alunos.
Não há nada, ao nosso ver, que seja passível de objeções quando se trata de buscar
aproximar a escola da vida concreta da coletividade de indivíduos que esta tem por função
formar enquanto cidadãos. De modo algum supomos que à escola seja cabível um pretenso
distanciamento asséptico da vida cotidiana, fundamentado numa falsa neutralidade institucional.
É propósito da escola aqui defendida, como já dissemos, justamente a interferência político-
revolucionária na realidade que a envolve.
A questão a ser elucidada, como se torna presumível, diz respeito ao equívoco de se
tomar, em primeiro lugar, a realidade cotidiana como a realidade. Longe disto, a esfera das
atividades e saberes cotidianos tem, por principal característica, a imediaticidade e a
espontaneidade no trato com os fenômenos da realidade. E os fenômenos são manifestações da
realidade mas, não necessariamente correspondem à sua essência.
Ora, se a vida cotidiana tem, como vimos, por principais características, a
ultrageneralização, o trato pragmático-utilitário com os fenômenos humanos e naturais, a
imediaticidade e a espontaneidade nas relações com as manifestações da realidade, torna-se
paradoxal que a escola nela fundamente suas ações e conteúdos. Se o papel da escola diz
respeito, a priori, à socialização dos saberes histórica e metodicamente elaborados, seus
conteúdos e a forma como atingirá seus objetivos não podem basear-se em elementos da
cotidianidade. O cotidiano é expressão da realidade, mas não é, de forma alguma, a realidade.
277
[...] questionamos a naturalidade com que o dia-a-dia escolar é identificado com a esfera da
vida cotidiana. Em outras palavras, questionamos a aplicação à análise do dia-a-dia escolar
das mesmas categorias que são empregadas na análise da vida cotidiana e questionamos a
transferência para o âmbito do dia-a-dia escolar das mesmas preocupações teóricas relativas
ao cotidiano. (Duarte, 1993, p.36).
Importa-nos ressaltar que estas observações visam contribuir, de modo concreto, com
reflexões acerca do que se apresenta como fundamental ao processo de formação de nossos
278
educadores: ou seja, que estes, enquanto principais mediadores do processo de acesso popular à
esfera das atividades e conhecimentos humanos não-cotidianos, mantenham uma relação
consciente para com a necessidade de domínio epistemológico dos referenciais adotados para
suas práxis pedagógicas, condição pela qual esta esfera das atividades humanas necessariamente
reclama.
portanto, para os nossos propósitos finais neste trabalho, que os referidos estudos de Vigotski e
suas conclusões sejam devidamente expostos.
Uma hipótese de Vigotski em tais investigações fora a de que o desenvolvimento dos
conceitos científicos segue um caminho particular em comparação com o desenvolvimento dos
conceitos cotidianos, muito embora isso não represente que entre ambos não haja relações. Os
conceitos cotidianos tendem, segundo o autor, à generalização, e se produzem fora de um
sistema determinado. De modo distinto, os conceitos científicos remetem-se ao concreto,
conquanto sob as condições de um sistema organizado (Vigotski, 1993, p. 183). Em outras
palavras, uma das principais conclusões das investigações em questão foi a de que os conceitos
científicos são produzidos nas condições do processo de instrução, que constitui a forma mais
singular de cooperação entre adultos e crianças. Aliás, a cooperação é o principal aspecto do
processo de instrução, juntamente com os conhecimentos que são transmitidos à criança,
segundo um determinado sistema (o que conjuga métodos, conteúdos e objetivos orientados a
um fim).
Vigotski levanta, fundamentalmente, a questão de se existiriam relações entre
“processo de ensino”, “assimilação de conhecimentos” e o “processo de desenvolvimento interno
do conceito científico” (ou seja, na consciência). O processo de desenvolvimento coincidiria com
o processo de ensino ou não? Quais as implicações caso as respostas fossem positivas ou
negativas?
A chamada Psicologia Infantil teria então duas respostas para tal questão: uma
primeira, que afirmava que os conceitos científicos careceriam de história própria (ou seja, não
se submetem a qualquer processo de desenvolvimento). São simplesmente assimilados pelas
crianças, que os “absorveriam” do mundo dos adultos. Entretanto, Vigotski pôde constatar que,
na verdade, o conceito não é um simples conjunto de associações assimiladas pela memória, mas
sim o resultado de um complexo conjunto de atos do pensamento. Este processo não seria
dominado pela simples aprendizagem, exigindo que a criança na verdade elevasse, antes, o seu
desenvolvimento interno a um grau mais alto de possibilidades de conscientização. Aliás, a
formação dos conceitos científicos dependia diretamente do grau de voluntariedade atingido pela
criança (não implicando isso na simples premissa da maturação do organismo).
Estas constatações corroboraram as suspeitas de inúmeros educadores de que o
método do ensino direto e mecânico seria na verdade infrutífero. E de fato, Vigotski menciona
que já Tolstói havia se aproximado do fato essencial do insucesso de tal modelo, ao manifestar
que “quase sempre não é a palavra que é incompreensível, mas o aluno que não dispõe do
conceito a que se refere a palavra” (Vigotski, 1993, p. 186). Isto estaria correto; o erro do
280
pensamento de Tolstói, segundo Vigotski, fora julgar que o processo de desenvolvimento dos
conceitos fosse, contudo, tão complexo e misterioso que não haveria como nele interferir.
Entretanto, enfatiza Vigotski, é plenamente possível ensinar intencionalmente ao aluno novos
conceitos e formas de uma palavra, o que pode resultar no desenvolvimento superior dos
próprios conceitos de que a criança já dispõe. Eis uma proposição diversa, portanto, da
apresentada pela primeira resposta conceitual.
A segunda resposta conceitual sobre uma possível relação entre desenvolvimento e
ensino é, para Vigotski, a mais difundida de todas e propõe que o desenvolvimento dos conceitos
científicos na mente da criança que recebe instrução não se diferencia, essencialmente, do
desenvolvimento dos conceitos que se desenvolvem na mente das crianças não submetidas à
instrução (ou que se formam durante a experiência própria da criança), e que, portanto, não se
torna procedente diferenciá-los. Vigotski objeta que, entretanto, um dos erros desta posição
científica seria o de tomar, como objeto para o estudo da formação dos conceitos, os próprios
conceitos cotidianos (espontâneos), o que conduz à sua conseqüente indiferenciação dos
conceitos científicos. Contudo, ambos os conceitos não pertenciam ao mesmo gênero, guardando
entre si muitas diferenças.
Para Vigotski, Jean Piaget teria atentado tanto para a existência de tais diferenças
entre um e outro tipo de pensamento, denominando uns de “conceitos espontâneos” e os demais
de “conceitos não espontâneos”, como para o caráter ativo, por parte da criança, na assimilação
dos conceitos não espontâneos. Entretanto, Piaget estabelece que as idéias espontâneas são
próprias do pensamento infantil, sendo as não espontâneas próprias do pensamento adulto. Ao
propor esta separação,
[...] Piaget contradiz sua própria concepção correta de que a criança, quando assimila o
conceito, o transforma, refletindo nele as características próprias de seu próprio pensamento
neste processo de transformação. De fato, Piaget é partidário de atribuir esta situação
unicamente aos conceitos espontâneos e renuncia a considerar que isto é aplicável
igualmente aos conceitos não espontâneos. Esta dedução totalmente infundada encerra o
primeiro aspecto errôneo da teoria de Piaget. (Vigotski, 1993, p. 190).
Na opinião de Vigotski, esta ênfase nas diferenças das características entre ambas as
formas de pensamento fazia com que Piaget não percebesse que tais formas de pensamento são,
na realidade, mutuamente influenciáveis.
Um último equívoco, decorrente dos anteriores, seria que, para Piaget, o
desenvolvimento mental da criança se caracterizaria, na verdade, por um paulatino
desaparecimento das características particulares do pensamento infantil, sendo este substituído,
aos poucos, pelo pensamento de caráter adulto, de nível superior. Piaget centra sua proposta na
compreensão de que ambos os pensamentos são, na verdade, mutuamente excludentes, ou seja,
281
os conceitos denominados espontâneos seriam aos poucos substituídos pelos conceitos não
espontâneos, adquiridos no decorrer do processo de maturação das crianças.
Assim, o antagonismo seria a característica fundamental da relação existente entre
conceitos espontâneos e não espontâneos, de acordo com a proposta de Piaget, no decorrer do
desenvolvimento da criança. Durante o processo de socialização da criança, o egocentrismo e o
solipsismo tipicamente infantis seriam constantemente confrontados, deslocados e suprimidos,
de modo que os conceitos não espontâneos suplantariam, aos poucos, os espontâneos —
processo esse que encontra no ensino, segundo Piaget, seu principal promovedor. Seria nesse
período que, segundo o mesmo, o desenvolvimento mental da criança alcançaria seu ápice.
Para Vigotski, a teoria de Piaget é das mais sérias e importantes então existentes, mas
suas contradições tornavam necessárias investigações que visassem a superação de seus
equívocos. Para isso se orientavam seus estudos e estes acabaram por confirmar suas principais
hipóteses, diversas das conclusões a que chegou Piaget. Uma delas, a de que os conceitos
científicos não são simplesmente assimilados nem apreendidos pelas crianças, deslocando dessa
forma os preexistentes conceitos espontâneos, mas sim, se formam graças à atividade do próprio
pensamento da criança, que o tempo todo reflete a atividade com que concretamente encontra-se
envolvida.
Contrariamente à segunda proposição de Piaget, os dados das investigações
revelaram que os conceitos científicos das crianças, tanto quanto os mais puros dos seus
conceitos espontâneos, não manifestavam apenas traços contrários, mas também traços comuns.
Vigotski pôde concluir, neste caso, que antes de rígida, a fronteira entre ambos era, na verdade,
muito tênue, e mais interseccional que delimitadora. Na verdade, os conceitos científicos só se
tornavam possíveis na medida em que os conceitos espontâneos alcançassem determinado nível,
comumente próprio da idade escolar. Segundo ele,
[...] quando falamos da evolução dos conceitos, espontâneos ou científicos, nos referimos ao
desenvolvimento de um processo único de formação de conceitos, que se realiza sob
diferentes circunstâncias internas e externas, mas que é singular quanto à sua natureza, não
resultante da luta ou conflito entre duas formas de pensamento que se excluem desde o
início. A investigação experimental, se de novo não nos importa antecipar seus resultados,
também confirma plenamente esta hipótese. (Vigotski, 1993, p. 194).
deste processo (Vigotski, 1993, p. 195). Isto não quer significar, vale lembrar, que os conceitos
científicos surjam sem que as formas mais elementares de generalização já existam.
Os resultados de suas pesquisas indicaram, ainda, o fato de que a formação dos
conceitos científicos, do mesmo modo que no caso dos espontâneos, não “termina” no momento
em que a criança assimila pela primeira vez o novo significado, mas, pelo contrário, a partir daí
se inicia. Na verdade, segundo Vigotski, são seus momentos iniciais que se distinguem uns dos
outros.
Para tornar isto mais compreensível, Vigotski lança mão da analogia do aprendizado
da língua materna e de uma língua estrangeira, cujas formas, experiências e conteúdos, embora
distintos, dizem respeito a um mesmo processo: o desenvolvimento da linguagem (Vigotski,
1993, p. 197). Assim, do mesmo modo que o aprendizado de uma língua estrangeira se
fundamenta no conhecimento da língua materna, também o desenvolvimento dos conceitos
científicos se fundamenta nos conceitos espontâneos. Entretanto, note-se bem, ambos os
processos obedecem a diferentes condições e determinações contextuais, instaurando-se em
momentos diversos e sob determinadas circunstâncias. Tanto o aprendizado de uma língua
estrangeira como o desenvolvimento dos conceitos científicos encontram-se submetidos a uma
situação muito peculiar, qual seja, a de se constituírem como atividades sistematizadas. Em
outras palavras, é o contexto promovido pela instrução que fundamenta a distinção entre o
surgimento e desenvolvimento dos conceitos cotidianos (espontâneos) do surgimento e
desenvolvimento dos conceitos científicos. O contexto instrucional é, pois, a “pedra de toque”
entre o desenvolvimento de ambos os tipos de conceitos.
Essa conclusão, entretanto, não se presta a uma relação mecânica de aprendizagem,
ou por uma simples transmissão sistemática de dados conceitos. Na verdade, salienta Vigotski,
entre o ensino e a formação dos conceitos científicos existem relações mais complexas que entre
o ensino e a formação de hábitos (Vigotski, 1993, p. 200) — hábitos que, aliás, têm sustentado
algumas das principais concepções psicológicas da atualidade acerca da aprendizagem,
acrescentamos.
Além disso, Vigotski chama a atenção para o fato de que, para que os conceitos
possam tornar-se científicos, a criança deve deles se conscientizar. E como se leva a cabo,
durante a idade escolar, a transição dos conceitos não conscientes aos conscientes? — pergunta
Vigotski. E mais uma vez este se depara com o fato de que um conceito só atinge um caráter
voluntário e consciente dentro de um contexto necessariamente intencional e sistematizado. Eis
aqui, uma vez mais, o caráter fundamental do processo de instrução. É ele o protótipo do
contexto intencional e sistematizado em questão.
283
Lançando mão da célebre frase de Marx, Vigotski procura assim resgatar o sentido
mais profundo dos conceitos científicos: “Se a forma de manifestação e a essência das coisas
coincidissem, toda ciência seria supérflua”(Vigotski, 1993, p.216). De fato, conscientizamo-nos
do que antes permanecia desapercebido, oculto, velado. Se à ciência cabe levar à consciência a
essência das coisas, os conceitos científicos surgem enquanto mediadores do processo humano
de conhecer e sistematizar seus conhecimentos acerca da realidade concreta.
Vigotski passa, então, à desmistificação de inúmeras posições conceituais ao seu ver
equivocadas acerca da questão da relação entre instrução e desenvolvimento. A começar pelo
fato de que ambas vinham sendo tratadas como elementos independentes pela psicologia de seu
tempo. Por esta primeira concepção, haveriam questões devidas ao desenvolvimento e outras,
próprias do ensino. O resultado prático de uma tal premissa é a crença em que o
desenvolvimento pode seguir seu curso normal e alcançar um nível superior independentemente
da instrução, ou que as crianças que não tenham recebido instrução desenvolvam formas
superiores de pensamento em mesmo grau que as que não vão à escola.
Uma variação de um tal pensamento adota uma posição um tanto distinta, propondo
que, se por um lado o desenvolvimento cria as possibilidades, por outro o ensino as realiza.
Contudo, segundo Vigotski, essa posição não reconhece que o ensino possa, num tal processo,
incidir sobre o processo de desenvolvimento, influenciando-o. Trata-se, no final das contas, do
pressuposto de que toda instrução exige a existência de um certo grau de maturação de
determinadas funções psíquicas. Por conseguinte, a própria análise do processo psíquico acerca
da instrução se reduz a aclarar que funções são necessárias ou qual deverá ser o grau de
maturação para que a instrução seja possível:
Se estas funções estiverem suficientemente desenvolvidas na criança, se a memória houver
alcançado um nível em que este possa recordar o nome das letras do alfabeto, se sua atenção
se desenvolveu o suficiente para que seja capaz de concentrar-se durante um determinado
período de tempo em algo que não lhe ofereceria interesse, seu pensamento haverá
amadurecido para que compreenda a relação entre os sons e os signos da escrita. Se estas
funções hajam se desenvolvido o suficiente, se pode começar a ensinar-lhe a escrever.
(Vigotski, 1993, p. 218-219).
sejam superados. Contudo, essa dependência não é, segundo Vigotski, tão estreita, estando ela na
verdade subordinada a uma relação de outro nível. À instrução, por esse ponto de vista, parece
apenas caber o “recolhimento” dos frutos da maturação infantil, mas, per se, continua a não
interferir sobre o próprio desenvolvimento. Vigotski considera que essa visão, que tendeu a
dominar toda a “velha psicologia pedagógica”, encontra seu ápice na teoria de Piaget. Seu ponto
de vista é o de que “o pensamento da criança recorre obrigatoriamente a determinados estágios,
independentemente de que a criança receba ou não instrução” (Vigotski, 1993, p. 220). O papel
da instrução será, portanto, sempre externo, complementar e ocorrerá à retaguarda do processo
de desenvolvimento:
Uma segunda vertente é a que propõe, pelo contrário, uma fusão entre instrução e
desenvolvimento, havendo uma total identificação entre um e outro processo. Vigotski atribui
esta concepção principalmente a ao psicólogo americano William James. Este estudioso haveria
pretendido demonstrar que o processo de formação de associações e os hábitos serviriam de base
também à instrução e ao desenvolvimento mental, sendo, portanto, a essência de ambos os
processos idênticos. Mas, objeta Vigotski, se há de fato uma identificação total entre ambos, não
parece procedente continuar a considerá-los separadamente, diferenciando-os. Na verdade, esta
teoria fundamentar-se-ia na concepção central da chamada psicologia tradicional, ou seja, o
associacionismo, então incorporado pela reflexologia de Thorndike. Segundo Vigotski, diante da
questão sobre o que representa o processo de desenvolvimento do intelecto da criança, esta teoria
tem como resposta que o desenvolvimento é o resultado conseqüente e paulatino da acumulação
de reflexos condicionados, servindo esta resposta rigorosamente para responder também em que
consiste a instrução. E acrescenta que, para esta concepção:
Existe, por fim, um terceiro grupo teórico, cuja posição visa a superação dos
extremos dos dois pontos de vista anteriores. Mas Vigotski enfatiza que esse ponto de vista não
procura se situar acima dos anteriores, e sim, entre eles. Enfim, superam uma teoria errônea
cedendo parcialmente ante a outra, caracterizando-se, fundamentalmente, pela duplicidade de sua
posição, pois que, ao adotar uma posição entre dois pontos de vista contrapostos, acaba por unir
ambas as perspectivas. Esta seria a perspectiva defendida por Koffka, que toma por princípio a
necessidade de se distinguir o desenvolvimento enquanto maturação e enquanto instrução. Por
um lado deve-se ter em conta que os processos de desenvolvimento e de instrução são
independentes um do outro, o que Koffka propõe ao afirmar que o desenvolvimento é uma
maturação, que em suas leis não depende da instrução. Por outro, que toda instrução é
desenvolvimento. E isto implica, segundo o autor, em reconhecer a essência dos dois pontos de
vista anteriores, unindo-os. Em suas palavras:
[...] podemos dizer que, se a primeira teoria corta o nó e não o desata, a segunda o elimina ou
o evita, e a teoria de Koffka o aperta ainda mais. De fato, a posição deste investigador com
respeito às duas perspectivas teóricas contrárias não só não resolve, como também emaranha
ainda mais a questão, já que converte em princípio o que constitui o erro principal no próprio
delineamento da mesma e que deu lugar aos dois primeiros grupos de teorias. A teoria de
Koffka parte de uma interpretação basicamente dualista do próprio desenvolvimento. Este
não é um processo único, mas que existe enquanto maturação e instrução. (Vigotski, 1993, p.
222).
mesmo processo. O que se verificava eram relações profundamente complexas entre os mesmos,
mas que não tinham sido adequadamente investigadas e compreendidas, até então.
Não cabe, aqui, que adentremos nas especificidades dos experimentos então
realizados, restringindo-nos, portanto, aos seus principais achados e conclusões. O primeiro
grupo de investigações, que se referia à busca de esclarecimentos acerca das relações existentes
entre maturidade e instrução, foi realizado a partir de estudos sobre como a criança passa a se
relacionar com as atividades das disciplinas essenciais do começo de sua escolarização. A
primeira conclusão, daí advinda, foi que, contrariamente ao que se acreditava, as crianças que
superam com êxito o processo de instrução desse período não mostram o menor traço de
maturidade das premissas psicológicas que, segundo a primeira teoria, deveriam preceder o
começo da mesma. É o próprio processo de instrução e o contato com novos elementos do
conhecimento que, por suas exigências às funções psicológicas da criança, as arrastam para
outros níveis. E isto tampouco quer representar que as novas exigências possam ser tomadas
enquanto necessidades. Basta tomar o exemplo da escrita para entender isto: a linguagem escrita,
contrariamente à aquisição da fala, não é uma necessidade que possa ser interpretada como vital
ao indivíduo. Pelo contrário, ao princípio da aprendizagem da escrita a sua necessidade é
totalmente nula para a criança. É o contato com a linguagem escrita que inaugura uma etapa de
exigências ao processo de desenvolvimento da criança, o mesmo se dando com as demais
disciplinas a serem aprendidas.
Mais que isso, Vigotski se depara com um dado que deve ser tomado como fato
central de todo processo de instrução, ou seja, que este “incide fundamentalmente sobre a
tomada de consciência e a voluntariedade da criança”(Vigotski, 1993, p. 234-235). Por ela, e
sobretudo no caso da linguagem escrita, a criança toma consciência de relações que envolvem o
que até então só realizava de forma espontânea e inconsciente, a começar pelos fundamentos e
interrelações possíveis de sua própria língua. É deste modo que a criança aprende, na escola, a
tomar consciência do que faz e, portanto, a operar voluntariamente seus próprios hábitos. Assim,
“seus hábitos passam de inconscientes, do plano automático, ao plano voluntário, intencional e
consciente” (Vigotski, 1993, p. 234).
Enfim, estas constatações tornam-se básicas à perspectiva histórico-cultural, que toma
como sua primeira premissa o fato de que “o desenvolvimento do fundamento psicológico do
ensino das principais matérias não precede o começo da mesma, mas sim, tem lugar em uma
indissolúvel conexão interna com ela, no curso de seu avanço progressivo”(Vigotski, 1993, p.
235).
287
nível de desenvolvimento mental atingido pela criança. Para tanto, recorria-se sempre às tarefas
que a criança conseguiria resolver por si mesma e, por conseguinte, se já se encontraria madura
para determinadas resoluções em cada suposta etapa de seu desenvolvimento. Para o autor, era
evidente que com tal método poder-se-ia estabelecer unicamente o que já havia madurado na
criança, até então. Mas, se seus achados estivessem corretos, o desenvolvimento não se limitaria
exclusivamente à parte madura atual. E apresenta a seguinte metáfora para ilustrar a questão:
Igual ao fruticultor, que desejando determinar o estado de seu pomar, não terá razão se se
limitar a avaliar as macieiras que já tenham madurado e dado frutos, mas que deve ter em
conta também as árvores em maturação, o psicólogo, ao avaliar o estado de
desenvolvimento, deve obrigatoriamente ter em conta não somente as funções maduras,
senão também as que estão em transe de maturação. (Vigotski, 1993, p. 238).
Assim é que, quando dizemos que a instrução deve basear-se na zona de desenvolvimento
próximo, nas funções ainda imaturas, não estamos receitando nada de novo à escola, senão
que nos livremos do velho equívoco de que o desenvolvimento deve recorrer,
obrigatoriamente, a seus ciclos, preparando por completo os fundamentos sobre os quais a
instrução deve erigir-se. (...)
Antes se perguntava: a criança está madura para aprender a ler, para aprender aritmética etc.?
A questão relativa às funções maduras se mantém vigente. Devemos sempre determinar o
limite inferior da instrução. Mas a coisa não acaba aí: devemos saber estabelecer também o
limite superior da instrução. Só dentro desses dois limites pode a instrução resultar
frutífera”(Vigotski, 1993, p. 242).
Em toda a sua atividade e, sobretudo, em seus jogos, que ultrapassaram agora os estreitos
limites da manipulação dos objetos que a cercam, a criança penetra um mundo mais amplo,
assimilando-o de forma eficaz. Ela assimila o mundo objetivo como um mundo de objetos
humanos, reproduzindo ações humanas com eles. Ela guia um “carro”, aponta uma “pistola”,
embora seja realmente impossível andar em seu carro ou atirar com sua arma. Mas neste
ponto de seu desenvolvimento isto é irrelevante para ela, porque suas necessidades vitais são
satisfeitas pelos adultos, independentemente da produtividade concreta de seus
atos.(Leontiev, 1988, p. 59).
Quando se senta para preparar suas lições, a criança se sente, talvez pela primeira vez,
ocupada com um assunto muito importante. Em casa, os irmãos menores são proibidos de
incomodá-la, e mesmo os adultos, às vezes, sacrificam suas próprias ocupações para dar-lhe
a oportunidade de trabalhar. Isto é muito diferente de seus jogos e ocupações anteriores. O
próprio lugar de sua atividade na vida adulta, na vida “verdadeiramente real” que a cerca,
torna-se diferente. (Leontiev, 1988, p. 61).
Evidentemente, são inúmeros os novos fatores que passam a figurar nessa etapa do
desenvolvimento, de psicoafetivos a morfofisiológicos. A criança adquire aos poucos novas
290
feições físicas, cresce, desenvolve habilidades, exprime opiniões, participa de novas atividades
etc. O próprio tratamento que o mundo até aqui lhe reservava se altera.
Eis porque, na opinião de Leontiev, é fundamental que no estudo do
desenvolvimento da psique infantil, devamos necessariamente analisar o próprio
desenvolvimento da atividade da criança, e isto significa considerá-la em termos de como esta é
constituída nas condições concretas da vida da criança. Somente desta forma poderemos
compreender adequadamente “o papel condutor da educação e da criação operando precisamente
em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e determinando, portanto, sua psique e sua
consciência” (Leontiev, 1988, p. 63).
Entretanto, Leontiev distinguirá, em seus graus de importância, as atividades que
envolvem o desenvolvimento da criança. Em outros termos, não se refere a toda e qualquer
atividade, e esclarece que:
[...] a vida, ou a atividade como um todo, não é construída mecanicamente a partir de tipos
separados de atividades. Alguns tipos de atividade são os principais em um certo estágio, e
são da maior importância para o desenvolvimento subseqüente do indivíduo, e outros tipos
são menos importantes. Alguns representam o papel principal no desenvolvimento, e outros,
um papel subsidiário. Devemos, por isso, falar da dependência do desenvolvimento psíquico
em relação à atividade principal e não à atividade em geral. (Leontiev, 1988, p. 63 - itálicos
nossos).
romântica crença de que o papel do professor deve ser reduzido ao máximo para que as crianças
desenvolvam suas habilidades e competências o mais naturalmente e espontaneamente possível.
É provável que este credo, oriundo de pesquisas essencialmente laboratoriais realizadas na
Europa e América do Norte “cultas e abonadas”, possa em parte ser corroborado pelas condições
sociais e culturais próprias de seu contexto de produção. Mas certamente não pode ser
generalizado a partir do elitismo etnocêntrico que o produziu. Sua transferência mecânica para
países periféricos como o Brasil, em que devemos falar antes de diferenças sociais que de
diferenças individuais, têm se mostrado totalmente fictício em relação às possibilidades de sua
aplicação numa sociedade majoritariamente iletrada e relegada a condições desumanas de
sobrevivência.
Em nome de uma escola comprometida com a vida “real” dos indivíduos (o que em
geral é tomado como sinônimo de identificação com a vida cotidiana dos mesmos, um outro
elemento discursivo que seduz ainda a muitos educadores), o que presenciamos a partir da
década de 1990 foi um intenso processo de valorização de atividades espontâneas e geralmente
esvaídas quanto aos conteúdos que, como vimos, são em si fundamentais ao desenvolvimento
sócio-histórico das novas gerações. Portanto, temos motivos suficientes para crer que o recente
resgate de concepções psicopedagógicas que remontam a princípios do século XX,
caracteristicamente individualistas, subjetivistas e pragmáticas, convergem, sobremaneira, com o
ideário ultraliberal que tem orientado e “reformado” as concepções sociais acerca do mundo do
trabalho, da educação e da sociabilidade atuais. Parece-nos, enfim, que o discurso ideológico da
competência e sua inteira identificação com tais pressupostos, convergem para um mesmo
objetivo histórico: abstrair e obscurecer, através da subjetivação e idealização da realidade, os
processos que concretamente têm determinado nossas existências em sociedade no atual contexto
do modo de produção capitalista.
293
Considerações Finais
I
Como vimos no Capítulo II, os acontecimentos que envolveram a consolidação da
chamada Sociedade Capitalista Industrial, em seus dois elementos fundamentais, isto é, a
constituição do direito à apropriação fundiária e dos meios produtivos e a constituição do
mercado de trabalho competitivo assalariado, processos estes em grande medida arbitrários e
brutais, permitiram a instauração de um mercado verdadeiramente capitalista, que ascendeu da
condição secular de submissão às necessidades sócio-comunais, para a condição de apropriador e
determinante das mesmas, processo este que tende a uma ampliação universal. O auge desse
complexo processo implica no que denominamos assédio mercadológico não apenas aos
trabalhadores então necessários, mas também aos mecanismos culturais implicados na
“formatação” de uma sociedade fundada nos princípios liberais burgueses, o que implica no
assédio mercadológico também sobre a educação. Ao recorrermos, naquele capítulo, aos estudos
e considerações históricas relevantes, como as de Karl Marx, Robert Castel e Karl Polanyi sobre
o advento da propriedade capitalista e dos mercados, e de Antonio Gramsci acerca de suas
implicações políticas, filosóficas e pedagógicas sobre a educação de então, procuramos esboçar o
assédio do capital e de seus ideólogos burgueses sobre o ensino escolar e para o trabalho, até o
caso brasileiro, ilustrado pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e os apelos à reforma
da educação escolar para o século XX.
No Capítulo III, por sua vez, procuramos evidenciar os elementos discursivos e
concretos que têm permeado, contemporaneamente, o novo assédio do capital sobre o trabalho e
a educação. Desta feita, entretanto, embora se possa enfatizar que não há senão um processo de
continuidade do assédio liberal sobre a escola (o que não contradiz nossa tese), procuramos
evidenciar o surgimento de novos ícones e elementos discursivos, relacionados a novas
mudanças no modo de produção (as revoluções técnico-científicas e filosóficas relacionadas ao
mundo do trabalho e da escolarização). Os novos princípios atribuídos ao final do século XX
para uma nova sociedade e novas formas de produzir, preconizadas para o século XXI —
educação para todos, o fim da centralidade do trabalho, o advento da sociedade do conhecimento
e o fim da sociedade industrial, a globalização, a pós-modernidade, o fim das ideologias e o
próprio fim da história etc. — foram abordados com a finalidade de serem desmistificados em
seus aspectos ideológicos, seja em relação à esfera do trabalho, seja em relação à esfera da
educação, esferas e processos estes que passaram a ser mediados pela apologia ideológica da
competência e da competitividade.
294
neoliberalismo passa a se sentir mais à vontade para defender a educação para todos e utilizar
bravatas como “fora da educação não há salvação”:
y Em primeiro lugar porque a educação de qualidade nunca pôde ou foi de fato
oferecida ou permitida aos trabalhadores;
y Segundo, porque a educação tornou-se, ela mesma, um mercado de compra e
venda de títulos, mercado que almeja se estender até as instituições públicas, principalmente as
universidades;
y Terceiro, porque, diante do desemprego estrutural, a razão instrumental e
pragmática da escolaridade tornou a instrução inócua do ponto de vista da formação dos
educandos das classes subalternas que a ela têm acesso — embora não pretendamos afirmar, com
isso, a nulidade da educação escolar, o que constituiria um equívoco grosseiro e sem
fundamentação, de nossa parte;
y Quarto, que a pedagogia da escola ativa, pragmática e espontaneísta, enaltece os
métodos para uma auto-aprendizagem natural (que procuramos desmistificar com os estudos da
psicologia histórico-cultural), enquanto desfavorece os propósitos da escola enquanto
promovedora e socializadora de conhecimentos científicos e filosóficos clássicos. Logo, os
métodos se tornam um fim em si mesmos.
y Quinto, que ao fazê-lo, o construtivismo e as pedagogias ativas favorecem o
acesso, à escola, da cotidianidade em-si, sob alegação de que a realidade próxima das crianças e
das próprias crianças é que deve ser o referencial para o ensino (Duarte, 2000). Logo, por todas
estas razões a escola pode ser recomendada sem temores às classes trabalhadoras. Ela não mais
oferece riscos à manutenção da hegemonia das elites enquanto submetida a uma pedagogia
francamente espontânea e consensualista e, por outro lado, mesmo a escola que privilegia uma
formação ampliada em nossa sociedade, nunca foi sequer necessária à formação de nosso
operariado, uma vez que, em geral, os processos de trabalho tradicionais, mecânicos ou de
serviços, nunca exigiram, em seu mais “refinado” grau, mais que saber ler e contar (quando o
exigem);
y Sexto, que a escola para a classe trabalhadora se transformou numa espécie
“moderna e democrática” de depósito de crianças, a exemplo do que já se tornaram os sistemas
prisionais do país para o contingente crescente de supranumerários (Castel, 2000), criminosos e
vagabundos do contexto ultraliberal contemporâneo, que ultrapassam os limites de um até pouco
tempo imprescindível exército industrial de reserva.
297
IV
Assim, escolanovismo, pragmatismo, assédio do capital a um trabalhador e sociedade
adequados, resignados e disciplinados aos imperativos do capital, não só revelam um processo
certamente de continuidade, mas, sobretudo, de reedição de elementos e adereços muito próprios
e pontuais a um período notavelmente similar em termos de transformações e anacronismo
históricos. Atualmente, todavia, tais elementos e discursos são utilizados num contexto inverso
àquele dos quais estão sendo resgatados. Daí nossa defesa da validade da constatação de que os
diversos elementos discursivos que tiveram correspondência com a realidade dramática do
primeiro momento, não encontram a mesma correspondência na realidade contemporânea, ou
segundo momento. Ambos os períodos, sem dúvida, foram manipulados ideologicamente, com a
mesma similitude de propósitos. Mas enquanto a ideologia, no primeiro momento, era
justificável pelas transformações e explicitamente legitimadas pelos ideais progressistas e
desenvolvimentistas liberais (sem dúvida, também perversos), a reaparição ou resgate de muitos
de seus aspectos e desiderativos para o mundo do trabalho (produção) e da educação
(disciplinação, ideologização e adestramento) não são justificáveis para o atual momento. No
máximo, além de dissimularem a realidade, os discursos sobre competência se prestam a todo
um novo mercado (o marketing da conquista de empregos e salários, por exemplo, ou o
marketing ideológico relacionado a uma falsa “onipotência” da educação, da “instrução” ou do
“conhecimento”), bem como a transferir, aos trabalhadores, agora não mais em termos sócio-
coletivos, mas individuais e subjetivos, as resonsabilidades por suas próprias sobrevivências no
mercado (competentes versus incompetentes, mais aptos versus menos aptos etc.).
V
Isso nos conduz à última hipótese a ser analisada, ou seja, a validade da proposição
da repetição histórica como farsa, nos termos de Karl Marx. Em se considerando o até aqui
exposto, julgamos pertinente a aplicação daquela hipótese — à qual Assoun (1979) atribui a
condição de um verdadeiro postulado para a filosofia da história. Tomemos a liberdade de
também resgatarmos algumas palavras de Marx em seu célebre O 18 Brumário, para nele nos
ampararmos em nossas conclusões:
“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande
importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de
acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Luís Blanc por
Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E
a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito
Brumário! Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814
vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução
de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária
de 1793-1795. [...] O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de
298
“A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e
porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Coilards, Benjamm Constants e Guizots; seus
verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho
de Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na
concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos
tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos heróica que se mostre hoje esta
sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de
povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república
romana, seus gladiadores encontraram nos ideais e nas formas de arte, as ilusões de que
necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas
lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica. Do mesmo
modo, em outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês
haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões e as ilusões do Velho Testamento para
sua revolução burguesa. Uma vez alcançado o objetivo real, uma vez realizada a
transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc.” (Marx, 1987, p. 1-
3 – itálicos nossos)
hegemônicas. Ele é sustentado por homens e mulheres de todas as classes e categorias, estrutural
e superestruturalmente, que alimentam incessantemente seus “moinhos satânicos”. Suas farsas
ou ilusões lhe são absolutamente necessárias, pois do contrário, a verdade poderia coincidir com
a realidade e, por conseguinte, não haveria, para nós, a “necessidade de ser cientificamente
investigado” (o que incomoda e irrita, como sabemos, os seus elementos orgânicos). Ora, quer
nos parecer que este nosso pequeno, mas exaustivo estudo, pode contribuir, a exemplo de tantos
outros, neste propósito, absolutamente legítimo. Se há farsas e ilusões a serem desveladas, este
papel só encontra no trabalho científico criticamente subsidiado o seu grande instrumento.
VI
Mas encerraremos nossas considerações não apenas opinando em favor de nossas
conclusões. Tomaremos ainda a liberdade de apontar outras preocupações que indicam não só
temores quanto à atual configuração que assumem nossas sociedades, como possíveis e árduos
temas que nos chamam a atenção em nosso cotidiano, talvez dignos de serem investigados. São,
por hora, imagens que nos tocam e provocam cada vez mais, e nos remetem também a elementos
que julgaríamos mortos de um passado longínquo: o aumento considerável dos condomínios
fechados e policiados como os novos burgos com seus castelos e guaritas; o rompimento dos
laços institucionais e familiares, o concorrendo à desfiliação com a falta de proteção próxima; a
desestruturação e desconstrução do Estado de Direito possibilitando a aristocracia despótica do
poder público; o rompimento das redes de proteção sociais e da garantia de emprego, o que
favorece o crescimento e aprimoramento de organizações criminosas com acesso ao próprio
Estado, na forma de um verdadeiro retorno à pirataria e à pilhagem institucionalizada dos reinos
de outrora; o ressurgimento do assistencialismo, do voluntarismo e das organizações tutelares; o
estrangulamento e fratura dos sistemas de segurança pública e de justiça, conduzidos ao
descrédito social e associação ao crime organizado; a sujeição das classes populares,
trabalhadoras, a atividades informais e insuficientes de sobrevivência.
Estaríamos, para além de repetições ou reedições do passado, também diante do risco
de involuções a aspectos que lhes eram próprios e consideramos ultrapassados, em termos
civilizatórios? Em sua obra O século XXI: socialismo ou barbárie?, István Mészáros sistematiza
de forma convergente com nossa percepção o inconteste anacronismo social e econômico do
capitalismo do final do século XX em sua transição para o século XXI. Suas considerações
convergem com as condições que observamos no Brasil, sobretudo a partir da década de 1990,
com índices calamitosos de violência, criminalidade, banalização da vida e vulgarização de
todas as suas expressões, competitividade e individualismo possessivo que ao conjugarem-se
com nossas leituras e debates, resultaram por fim em nosso presente trabalho de pesquisa.
300
vigentes), por sua natureza antagônica a qualquer sociedade que se pretenda socialista. Isto
implica na conquista do que Mészáros chama de uma “igualdade substantiva” nas tomadas de
decisão numa sociedade de superação do capital (Mészáros, 2002b, p. 106).
Esse é o motivo, ao nosso ver, de Mészáros não só recolocar o tema sob a forma de
uma proposição, mas também de uma indagação: socialismo ou barbárie? Que é à barbárie que
nos tem conduzido o referido processo capitalista, já não parece a Mészáros motivo de maiores
especulações. O que era uma proposição em Marx e Rosa Luxemburgo, a história hoje confirma,
adquirindo uma urgência dramática segundo o autor. Mas há que se perguntar, após a
constatação científica da possibilidade de um concreto e dramático “fim da história”, o que nos
será possível e cabível fazer. Portanto, entramos aqui nos aspectos árduos de uma tal
possibilidade de superação do capitalismo, que independem de boas intenções e não se dão por
supostas decisões intelectuais declaradas, como se nos perguntássemos “qual será a decisão da
humanidade até o final do ano?” De que humanidade se fala? De quais formas de decisão e
transformação falamos? De que tempo falamos?
Como adverte Mészáros, os muitos problemas que teremos que enfrentar
(desemprego estrutural crônico, conflitos econômicos, políticos e militares, degradação
ecológico-ambiental etc.) exigem uma ação internacional combinada e urgente, tão urgente
quanto reclama a real possibilidade de nossa autodestruição em curto prazo. A deflagração desta
ação, como enfatiza, “talvez possa ser medida em décadas, mas certamente não em séculos”
(Mészáros, 2002b, p. 108).
Concordando com Mészáros — apesar de seu prognóstico um tanto sombrio —, o
que está em jogo é a continuidade ou extermínio da própria humanidade, e, se não houver uma
forte contenção e inversão dos processos desumanizadores sempre crescentes, “viveremos a
barbárie, se tivermos sorte” (Mészáros, 2002b).
Como a filosofia e a ciência da história indicam, as possibilidades destrutivas tanto
quanto as de superação estão dadas e o próprio capitalismo engendra não só seu possível fim,
como os recursos tecnológicos, materiais e de conhecimentos imprescindíveis à renovação
equânime de nossas sociedades. Mészáros aponta possibilidades, mas não ousa tirar conclusões.
Se a humanidade tem como inclinação “natural” o seu próprio aniquilamento, de pouco
proveito será ter razão a esse respeito. Portanto, acreditamos ser sumamente necessário
identificarmos e desvelarmos todos os mecanismos que, por obra de interesses e caprichos
unicamente particulares, naturalizam e põem em risco o futuro do gênero humano.
. . .
302
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