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Geografias Pós-coloniais. Ensaios de Geografia


Cultural

Book · January 2007


DOI: 10.13140/2.1.1784.9125

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6 705

3 authors, including:

João Sarmento Ramiro Pimenta


University of Minho University of Porto
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NoVOID - Ruins and vacant lands in the Portuguese cities: exploring hidden life in urban derelicts and
alternative planning proposals for the perforated city View project

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J. R. Pimenta, J. Sarmento e A. F. de Azevedo
José Ramiro Pimenta é professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto
e investigador da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. A sua investi-
gação tem-se orientado nos domínios da História e Teoria da Geografia, Geografia
Cultural, e Geografia Histórica do Conhecimento, especialmente a Geo-historio- Coordenação de
grafia da Arqueologia portuguesa. As suas principais publicações são: ‘Geografia e
Arqueologia: uma epistemologia comparada’ (Porto: Figueirinhas, 1996); ‘Arque- José Ramiro Pimenta João Sarmento Ana Francisca de Azevedo
ologia: uma introdução pós-crítica’ (Porto: Figueirinhas, 1997); ‘Arqueologia’, in
Dicionário de História de Portugal, dir. de António Barreto e Maria Filomena Mónica
(Porto: Figueirinhas, 1999); Coordenação de ‘O Instituto de Geografia da Facul-
dades de Letras do Porto’ (Porto, 2002); Coordenação, com João Sarmento e Ana
Francisca de Azevedo, ‘Ensaios de Geografia Cultural’ (Porto: Figueirinhas, 2006);
‘Geo-historiografia da Cultura Castreja’ (Porto: Figueirinhas, 2007); ‘O Lugar do
Passado em Martins Sarmento’ (Porto: Figueirinhas, no prelo).

G E O G R
João Sarmento é Professor Auxiliar com Nomeação Definitiva no Departamento de
Geografia da Universidade do Minho. Doutor em Geografia pela Universidade de
Cork, Irlanda (2001). Tem publicado nas áreas da Geografia Cultural, Geografia do
Turismo, Geografia dos Transportes, Tecnologias de Informação e Comunicação e

A F I A S
Pensamento Geográfico. Em 2004 recebeu o prémio Nacional de Geografia Orlan-
do Ribeiro, atribuído pela Associação Portuguesa de Geógrafos, pela obra ‘Repre-
sentation, Imagination and Virtual Space. Geographies of Tourism Landscapes in
West Cork and the Azores’, publicada nesse mesmo ano pela Fundação Calouste

GEOGRAFIAS PÓS-COLONIAIS 
Gulbenkian (ISBN 972-31-1072-5). Em 2006 foi co-organizador (com A. F. Azevedo
e J. R. Pimenta) do livro ‘Ensaios de Geografia Cultural’ (ISBN 9789726612049),

PÓS-CO
uma obra implicada com a reconceptualização das ideias de espaço, lugar e paisa-
gem. Foi Director do Departamento de Geografia da Universidade do Minho (2004-
2006), Director do Núcleo de Investigação em Geografia e Planeamento (2003-
2007), Director do Curso de Geografia e Planeamento (2004-2005) e Presidente do
Conselho de Cursos de Ciências Sociais da Universidade do Minho (2004-2007).

LONIAIS
É o editor principal da revista científica ‘Aurora Geography Journal’. Leccionou em
diversas universidades de países estrangeiros como Timor, Brasil, Irão, Finlândia,
Letónia, República Checa, Espanha, Suécia e Irlanda.

Ana Francisca de Azevedo é Professora no Departamento de Geografia do Instituto


de Ciências Sociais a Universidade do Minho. Tendo realizado o seu mestrado em
Educação Ambiental, no âmbito de um projecto europeu de investigação que lhe
proporcionou uma bolsa de estudo na Danish Research Academy, desenvolveu
Ensaios de Geografia Cultural
pesquisa em torno das Geografias da Infância, vindo a especializar-se em Gegrafia
Cultural e Estudos da Paisagem. Procurando a aproximação entre Geografia e
Cinema, o seu trabalho de doutoramento, que conta com um percurso de investi-
gação efectuado de 2001 a 2004 na University College London e de 2004 a 2006
na Universidade do Minho, permite a compreensão da paisagem como construção
cultural e como ideia, mostrando como esta se desenvolveu através da cultura
visual e da experiência fílmica. Ana Francisca de Azevedo tem já um conjunto
significativo de artigos publicados nacional e internacionalmente em diferentes re- Ana F de Azevedo
vistas científicas. Em 2006 foi co-organizadora de um livro intitulado ‘Ensaios sobre James D Sidaway
Geografia Cultural’, uma obra implicada com a reconceptualização do espaço, lugar João Sarmento
e paisagem, tendo subjacente a revisão crítica destas ideias.
José R Pimenta
Marcus Power
iii figueirinhas Matthew Gandy
Richard Phillips
Outras obras coordenadas pelos mesmos autores:
Ensaios de Geografia Cultural. Porto: Figueirinhas (2006), com artigos de Paul
Claval, Denis Linehan, Michael R. Curry, Ana Francisca de Azevedo, José
Ramiro Pimenta e João Sarmento. iii figueirinhas
iii
© (2007) Livraria Figueirinhas
Geografias pós-coloniais. Ensaios de Geografia Cultural

Coordenação: José Ramiro Pimenta, João Sarmento e Ana Francisca de Azevedo


Autores: Ana F. de Azevedo, James D. Sidaway, João Sarmento, José R. Pimenta,
Marcus Power, Matthew Gandy, Richard Phillips

Capa:
Fotografia: Séan (2004) Hong-Kong.
Arranjo gráfico: Cisca, Pfeffer & Séan.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob
qualquer forma sem a permissão do editor e coordenadores.

Depósito legal:
ISBN:
Coordenação de

José Ramiro Pimenta João Sarmento Ana Francisca de Azevedo

G E O G R
A F I A S
PÓS-CO
LONIAIS
Ensaios de Geografia Cultural

Ana F de Azevedo
James D Sidaway
João Sarmento
José R Pimenta
Marcus Power
Matthew Gandy
Richard Phillips

iii figueirinhas
Autores

Ana Francisca de Azevedo


Departamento de Geografia
Universidade do Minho

James D. Sidaway
School of Geography
University of Plymouth

João Sarmento
Departamento de Geografia
Universidade do Minho

José Ramiro Pimenta


Departamento de Geografia
Universidade do Porto

Marcus Power
Department of Geography
University of Durham

Matthew Gandy
Department of Geography
University College London

Richard Phillips
Department of Geography
University of Liverpool
Índice

As geografias culturais pós-coloniais.


J. R. Pimenta, J. Sarmento e A. F. de Azevedo 11-30

Geografias pós-coloniais: contestação e


renegociação dos mundos culturais
num presente pós-colonial.
Ana Francisca de Azevedo 31-70

Literaturas de viagem e cartografias da


sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton.
Richard Phillips 71-110

O modo de representação colonial na produção


científica das paisagens imaginárias do
Passado: a geo-historiografia dos ‘Belgae’
na Arqueologia oitocentista portuguesa.
José Ramiro Pimenta 111-142

As ‘lágrimas de Portugal’: império,


identidade, ‘raça’ e destino nas
narrativas geopolíticas portuguesas.
James D. Sidaway e Marcus Power 143-192

Paisagem e identidade na construção


da nação timorense.
João Sarmento 193-230

Lagos: ensinamentos da maior


metrópole da África subsaariana.
Matthew Gandy 231-254
As geografias culturais pós-coloniais

José R amiro Pimenta


João S armento
Ana Francisc a de A zevedo

Como é óbvio, não pode existir


epílogo nem ponto final para uma
estória que começa por portanto.
PEPETELA
A Geração da Utopia.

O pós-colonialismo em Geografia
O ‘pós-colonialismo’ emergiu nas últimas décadas do século
XX como problemática cultural através da qual se reorganizam as
categorias da diferença e alteridade. Dinamizando os debates em torno
das políticas de lugar e de representação, a problemática pós-colonial
decorre de uma profunda transformação nas instâncias de produção
da subjectividade bem como de movimentos político-intelectuais
implicados com a autorização de diferentes posicionalidades.
Comummente associada aos trabalhos desenvolvidos no âmbito
dos Estudos Literários e Culturais, esta problemática surge como
preocupação central para as mais diversas áreas; na Antropologia
e na Sociologia, na História e na Geografia. Sustentando uma
teoria cultural crítica que agita o mundo académico, a problemática
pós-colonial permitiu a organização de um paradigma dentro do
qual se revêem experiências de colonização e se reorganizam os
processos que resultam de diferentes momentos de descolonização
formal. Mais do que uma reflexão sobre o ‘encontro colonial’ como
elemento determinante para a constituição do sujeito do humanismo,
o paradigma pós-colonial encontra-se comprometido com “a crítica,
a exposição, a desconstrução, a contra-posição, e a transcendência
das presenças e dos legados culturais e ideológicos do imperialismo”
(Sidaway, 2002:13). As condições de debate são, por isso, complexas
Geografias pós-coloniais

e revestidas de tensões que não podem ser descoradas.


Num primeiro plano, tais condições aglutinam aspectos raciais
e de género, questões de corpo e identidade, as quais assumem
visibilidade renovada pela força das perspectivas marginais e
subalternas que forçam a reconsideração das visões situadas sobre
as quais se ergueram os domínios de um propalado conhecimento
universal. A revisão dos textos e discursos do colonialismo
configura-se como uma prática que é mais do que uma teoria, é a
experiência de autorização de novas subjectividades. Num outro
plano, as condições de debate num presente pós-colonial configuram
a emergência de espaços radicalmente novos que desafiam as
fronteiras de uma metageografia global. A amplitude da agenda
pós-colonial não é por isso susceptível de mapeamento breve. Ao
envolver uma multitude de esforços de reposicionamento, esta
agenda alerta, antes de mais, para a armadilha do Eu e do Outro,
enquanto dicotomia presa a categorias imperialistas que prevalecem
no momento presente. Trata-se, desde logo, de lançar as bases para
a afirmação de novas políticas de lugar e, por isso, a agenda pós-
colonial é intrinsecamente geográfica.
Por se encontrar profundamente implicado com as contradições do
poder imperial moderno, o discurso pós-colonial é frequentemente
orientado para a análise das feridas sócio-culturais resultantes da
‘naturalização’ de uma geografia total. Neste sentido, geógrafas
e geógrafos encontram-se hoje envolvidos em programas de
‘desnaturalização’ das modernas narrativas espaciais, ampliando
a proposta pioneira de Edward Said de recolocação do imaginário
geográfico ocidental. Mais do que engrossar um paradigma de
desenvolvimento que em grande medida surge como uma das mais
aguçadas instâncias de persistência da ideologia imperial, as geografias
pós-coloniais põem sob escrutínio textos e discursos assentes sobre
uma ontologia e uma epistemologia que veio servir para legitimar
a expansão do colonialismo europeu e a consolidação de uma
economia capitalista mundial. O modo como diversos investigadores
deitaram mão à tarefa de compreensão do colonialismo e projectos
sucessores, reflectindo as origens disciplinares do pós-colonialismo e
o poder analítico dos Estudos Literários e Culturais, indica ainda um

12
‘As geografias culturais pós-coloniais’

denunciado envolvimento com o pós-estruturalismo e com a crítica


feminista. Estão dentro destes casos os trabalhos de autoras como
Susan Smith, Bell Hooks, Iris Marion Young, Audrey Kobayashi,
entre muitos outros. Operando a desconstrução do fabrico cultural
dos textos e discursos do colonialismo, tais abordagens debruçam-se
ainda sobre a descodificação dos sistemas de signos geográficos que
sustentam imagens de um espaço uniforme e coerente. Os métodos
e técnicas desenvolvidos neste âmbito vêm ampliar uma tradição
de estudos críticos assentes sobre metodologias de investigação
qualitativa e hermenêutica ao nível de estudos mais específicos. A
um nível mais abrangente, e ainda dentro da geografia académica, as
obras de Derek Gregory e Felix Driver, Jane Jacobs e Peter Jackson,
A. Appadurai e G. Spivak, consolidaram o ponto de viragem para
o paradigma pós-colonial. Neste quadro, a revisão das teorias e das
práticas sobre as quais se alicerçou a geografia moderna, funciona
como porta de entrada para a exploração de outros paradigmas
relacionais gerados pela articulação de subjectividades críticas e
criativas. Donde a centralidade das teorias da comunicação em todo
este processo, por se tratar de uma revolução ao nível das ideias que é
retro-alimentada pelo universo das práticas vivenciadas do quotidiano.
A ênfase na perspectiva de “outros inesperados” (Trinh Minh-ha)
prende-se com a necessidade de suplantar as visões parciais dentro
das quais se ergueu o moderno retrato-mundo, catapultando as
congeminações heideggerianas para esferas alternativas do ser com
o outro. Não é já, e portanto, da captura do exótico para quadros
de inteligibilidade racional tornados manifestos por cartografias de
localização radicadas num modelo de espaço abstracto e em teorias
miméticas de representação, aquilo de que se trata. Não se trata de
adaptar identidades alternativas e de fronteira a um mapa estático
das nações e dos impérios dentro do qual localizações absolutas
e relativas justificam o entrincheiramento da tomada de decisões
sobre territórios e ‘recursos’. Trata-se, isso sim, de recolocar a
ciência como “cultura pública” (Haraway 2004) ao serviço dos
movimentos de remapeamento dos “lugares-entre” (Bhabha 2004)
que emergem pelo acto de habitação dos sujeitos pós-coloniais. À
semelhança daquilo que aconteceu em outros momentos históricos,

13
Geografias pós-coloniais

a geografia encontra-se envolvida num ‘período de reconhecimento’


(Livingstone 1992) dos mundos de experiência, ao qual as categorias
tradicionais fragilmente dão resposta. E, ainda que útil, a metáfora
da hibridação talvez não seja recurso suficiente para a compreensão
destes mundos e da terra incógnita dentro da qual nos movemos,
porque está demasiado presa a categorias formais do natural e da
natureza. A ruptura dos binómios espaço/lugar, sujeito/objecto,
natureza/cultura, natural/artificial, branco/preto, entre tantos outros,
inaugura este esforço de reconhecimento tornado tensor pelo
convencionado “exterior constitutivo”.
Irradiando das instâncias de produção do conhecimento local, as
geografias pós-coloniais são geografias corporizadas, localizadas num
tempo e lugar específico que se encontram implicadas em programas
políticos concretos. O carácter revisionista destes programas colide
com o carácter universalizante da anterior geografia colonial dentro
da qual, de uma maneira ou de outra, se procedeu ao levantamento e
sistematização dos ‘objectos’ dos impérios.

A tradição geográfica colonial


A tradição geográfica colonial portuguesa não se esgota na produção
dos investigadores e centros de investigação institucionalmente
adstritos à Universidade. Se este é o contexto privilegiado em
que nos iremos mover nos parágrafos que se seguem, tal deve-se
sobretudo à necessidade de trazer para o debate académico as etapas
de formação da ciência geográfica como projecto institucional no
seio da vida social e conjuntura política do tempo a que pertence.
Assim, no domínio das relações coloniais, não se esquece que
múltiplas instituições contribuíram decisivamente para a produção
científica da Geografia, de que os exemplos da Sociedade de
Geografia de Lisboa ou a Junta de Investigações do Ultramar não
são das menos importantes. A estas e a outras semelhantes se fará
a referência necessária quando ilustrem as relações estabelecidas
entre as faces política e intelectual dos programas de investigação
— contudo, frisamos, será sobretudo em redor das obras produzidas
em contexto académico que se desenhará o essencial deste retrato
das geografias coloniais portuguesas.

14
‘As geografias culturais pós-coloniais’

A evolução do programa de investigação colonial na Geografia


portuguesa, se apresenta algumas linhas de continuidade, deve ser
compreendido não apenas na sua dinâmica interna mas também nas
relações íntimas que estabelece quer com o pensamento geográfico
internacional, e as diversas propostas paradigmáticas que nele têm
origem, quer com a dinâmica propriamente histórica e geopolítica
que a Europa e Portugal em particular mantêm com os territórios
ultramarinos que estão sob a sua jurisdição. O século vinte é um tempo
de profundas mudanças políticas: vê despoletarem-se duas guerras
mundiais, triunfar uma revolução socialista que viria a exportar
um modelo de governação e de recolonização para quase metade
do mundo, e a ascensão do poder atlântico norte-americano como
a maior potência do Ocidente, retirando à Europa um protagonismo
indiscutido de quase cinco séculos; finalmente é o século que, na
sua parte final, verá reproduzir-se, sobretudo em África, uma vaga
independentista que a América colonial havia conhecido muito
tempo antes – porém a tentação de comparar estas duas recusas do
poder colonial europeu não resiste a uma crítica mais aprofundada
que revela serem afinal bem diferentes: a segunda atinge mais
radicalmente o magma das relações humanas internacionais.
O período de tempo que corresponde à afirmação da Geografia
colonial científica em Portugal estende-se desde os fins do século
dezanove até pelo menos o terceiro quartel do seguinte. Trata-
se de um período de tempo dilatado que vê assistir a importantes
modificações sociais, políticas e epistemológicas no contexto geral da
sociedade e em particular na Universidade e evolução paradigmática
da disciplina. Dos ímpetos racialistas (não necessariamente racistas)
das formulações ao redor do tema da aclimação colonial por parte
de Silva Telles, até à minuciosa caracterização regional das terras
altas da Huíla de Carlos Alberto Medeiros (1976) – talvez o último
grande estudo em moldes de uma propriamente chamada ‘Geografia
colonial’ (Ribeiro 1981: 125) – desdobra-se um processo interno de
evolução da relação estabelecida politicamente entre a metrópole
e os territórios sob a sua jurisdição, de que a renominação de
‘colónias’ em ‘províncias ultramarinas’ ilustra exemplarmente e, ao
mesmo tempo, uma substituição dos programas de investigação da

15
Geografias pós-coloniais

disciplina da Geografia, na qual vemos perderem predominância os


temas em redor da caracterização racial efectuados a grande escala
para vermos surgir a preferência epistemológica pelos estudos
regionais, multiformes e de proximidade.

Na segunda metade do século dezanove a metáfora darwinista


tornou-se a principal analogia interpretativa do mundo natural e social,
ainda que não com a extensão e intensidade que a história da ciência
normalmente lhe atribui. Neste contexto, fortemente impregnado
de biologismo, os conceitos de ‘raça’ e ‘meio natural’ tornaram-
se centrais nas diversas propostas interpretativas da Natureza e do
Homem, e sendo especialmente eficiente no seio das disciplinas que,
como a Geografia, se dedicavam a estudar fenémenos de intersecção
desses dois universos. Também a Geografia portuguesa haveria
de participar amplamente nesse movimento de fundo, sobretudo a
partir do momento em que, com Silva Telles, a Geografia académica
se institucionaliza em Portugal.
Silva Telles (1860-1930) foi o introdutor do ensino superior
da Geografia em Portugal, tendo ocupado a primeira cátedra de
Geografia no então Curso Superior de Letras de Lisboa, instituição
que viria a consubstanciar-se, já sob a égide da República, na
Faculdade de Letras de Lisboa; o investigador continuaria, de resto,
o seu magistério na nova instituição. Não contando com a efémera
instituição de um programa doutoral de Geografia na primitiva
Faculdade de Letras do Porto, de que seria titular A. Mendes
Correia, Silva Telles é, até à titulação de Amorim Girão, o único
geógrafo académico em Portugal a cobrir o período correspondente
às primeiras décadas do século vinte (Ribeiro 1989).
Além de professor catedrático da Faculdade de Letras, Silva
Telles era também membro efectivo da Sociedade de Geografia de
Lisboa, e é nesta dupla condição que havemos de compreender a
sua intervenção no domínio da Geografia colonial. Impulsionou e
secretariou os primeiros Congressos Coloniais patrocinados por
aquela relevante instituição, e neles apresentou a sua visão do
problema da relação da disciplina que cultivava com os problemas
específicos que a jurisdição de territórios distantes e de clima

16
‘As geografias culturais pós-coloniais’

‘impróprio para a raça branca’ impunham à organização económica


do vasto ‘império português’.
Não é este decerto o lugar para apresentar com minúcia todos os
pormenores de um programa de investigação vasado nos moldes
das teorias racialistas do tempo de Silva Telles (cf. Pimenta
2004). Contudo, basta uma leitura atenta do seu ‘Ensino colonial
universitário’, breve estudo, quase um ‘manifesto científico’,
apresentado em 1924 no 2.º Congresso Colonial, para que tenhamos
a noção exacta de duas realidades da ciência geográfica de então e do
contexto colonial da sua aplicação: por um lado, de que quase nada
se havia feito até então, no sentido de tornar efectiva uma prática
científica geográfica das zonas intertropicais; por outro lado, a mútua
interdependência das margens política e intelectual do programa de
investigação:
Em Portugal, depois dos ideais expostos no 1.º Congresso
Colonial, promovido pela Sociedade de Geografia de Lisboa,
a necessidade do ensino colonial passou a ser reconhecido
por todos. Foram criadas a Escola de Medicina Tropical e a
Escola Colonial, organizaram-se cursos especiais no Instituto
Superior de Agronomia e nas Faculdades de Direito. Foi
um movimento realmente notável de que a Sociedade de
Geografia tem todo o direito de se orgulhar. (...) Mas todo
este movimento a favor da instrução colonial tem já perto de
um quarto de século. Depois, nada mais fizemos. (...) Não
há altos estudos coloniais em Portugal, embora tenhamos
todos os elementos necessários para a sua organização. Os
altos estudos coloniais devem porém estar em simbiose
com a constituição de um quadro especial dos funcionários
coloniais. Seja qual for a profissão, seja qual for a qualidade
do emprego nas Colónias, sem uma preparação prévia feita
em escolas, continuaremos como até hoje, enviando para as
Colónias quem não tenha dado provas de saber o que elas
são. (Teles 2004: 190)
O primeiro ‘centro de interesse’ da Geografia colonial portuguesa,
e esta quase exclusivamente saída da investigação de Orlando
Ribeiro, prende-se com os estudos sobre a ‘expansão portuguesa’.1
São trabalhos de escala planetária, que dependem à vez com a

17
Geografias pós-coloniais

escassez de dados concreta no que então respeitava aos territórios


ultramarinos e com o tipo de preocupações de tom mais ‘teleológico’
da obra do autor, em estrita semelhança com os estudos que, pela
mesma altura, dedicava à ‘formação de Portugal’. 2
Desde logo, porém, foram reconhecidas as evidentes lacunas no
que respeitava aos factos materiais dos territórios ultramarinos, o
que veio a dar origem a uma Geografia colonial mais concreta, e cuja
‘difusão’ pelo mapa conceptual parece replicar as próprias etapas da
expansão portuguesa pelo mundo.
Talvez não seja de estranhar, por isso mesmo, que os primeiros
estudos dedicados a territórios não metropolitanos se venham a fixar
nas ‘avançadas insulares’ que ligam a Europa a África e à América,
gerando uma série de estudos sobre os arquipélagos atlânticos, e
de que o estudo sobre a ilha da Madeira constitui como que o seu
exemplar primeiro (Ribeiro 1949).
Segue-se-lhe aquele que virá a constituir o tema de investigação
porventura mais importante (pelo menos em termos de uma
‘tautologia’ da portugalidade) da produção da escola geográfica
ribeiriana – o Brasil. Existem, a nosso ver, duas margens conceptuais
e afectivas na Geografia colonial portuguesa, com origem nos
trabalhos de Orlando Ribeiro, e que se insinuam igualmente no
fundo mais geral da memória colectiva da cultura portuguesa, que
se prendem a uma valorização alternativa – utópica e distópica
– dos dois territórios que mais fundamente haveriam de marcar a
consciência colonial, e pós-colonial, do pensamento colectivo dos
portugueses: Brasil e Angola. Neste contexto, ambos funcionam
como ‘modelos’ de uma relação polarizada com o sucesso e com o
fracasso da relação dos Portugueses com o seu ‘império’. E ainda que
tenhamos a noção precisa que aquele investigador não fazia obedecer
a geografia concreta dos territórios, e a sua história, a preconceitos
deterministas, cremos que, ainda assim, é impossível não detectar na
sua ‘psicologia de pesquisa’, uma valorização moralmente efectiva
da relação multicultural que acreditava se poder reconhecer nas
relações entre Portugal e Brasil. 3

Quando o mundo ocidental deu conta, com horror, do modo como

18
‘As geografias culturais pós-coloniais’

os desvarios retóricos das teorias da racialidade haviam dado lugar


a programas efectivos de aniquilamento de parte da Humanidade
tendo como suporte a côr da pele ou a pertença étnica, de imediato
as ciências sociais foram abandonando progressivamente os
fundamentos biologistas da metáfora darwinista aplicada à esfera
dos fenómenos humanos. Uma vaga de espiritualismo filosófico,
que já se havia insinuado nas primeiras décadas do século, foi sendo
olhada como uma epistemologia possível de redenção. Abandona-
se a pequena escala que explicava o mundo ‘de uma só vez e
sob um único ponto de vista’ (determismo) e incide-se a atenção
prioritariamente nos espaços de proximidade, das escalas maiores,
‘topográficas’, nas quais se pode tentar compreender a relação íntima
que se tece entre todos os factores presentes na constituição de uma
‘região’.
Na Geografia portuguesa, este é o momento em que precisamente
se haveriam de estabelecer as duas grandes escolas académicas de
Geografia, a de Coimbra, sob a autoridade de Amorim Girão, e a
de Lisboa, recriada e tornada internacionalmente reconhecida pelo
esforço de investigação de Orlando Ribeiro. Se a escola coimbrã
privilegiou nos seus programas de investigação o reconhecimento
regional do Portugal metropolitano, e apenas episodicamente fez
incidir a atenção sobre os problemas coloniais, 4 a escola de Lisboa,
e muito especialmente sob a atenção e direcção do seu director,
empreenderam um programa completo e minucioso da Geografia
dos territórios ultramarinos (Amaral 1979).
Se observarmos com atenção a evolução das publicações
dedicadas a temas de Geografia colonial portuguesa, verificamos,
sem surpresa, que este programa de investigação, se contém uma
relação privilegiada com as relações políticas e administrativas que
a metrópole ia estabelecendo com os territórios distantes, revela
igualmente uma morfologia que vai variando ao longo do tempo,
ainda que algumas linhas estruturais se mantenham desde o início
até ao fim da sua existência.
Os problemas prementes que a reorganização geopolítica saída
da Segunda Guerra Mundial veio a gerar, obrigaram a uma política
efectiva de (re)ocupação dos territórios sob jurisdição portuguesa que

19
Geografias pós-coloniais

até então era, em extensas áreas, apenas nominal. É neste contexto


que se devem compreender as ‘missões geográficas’ que o poder
político outorga à Universidade, e de que são exemplos as que vão
ser levadas a cabo na Guiné e na Índia (e.g. Ribeiro 1950, 1956). De
novo ‘a cartografia da expansão’ se replica na produção académica
da Geografia, e vemos, a seguir ao ‘povoamento conceptual’ das
Ilhas Atlântidas e do ‘achamento’ do Brasil, uma política dirigida ao
‘reconhecimento territorial’, profundo, dos primeiros destinos das
viagens joaninas. Iniciar-se-ia então, um programa de pesquisa que,
com diversos graus de intensidade e percorrendo desigualmente
os territórios ultramarinos, tinha como objectivo último o
reconhecimento integral dos territórios intertropicais que constituíam
o fundamento do ‘império português’ e, subsidiariamente, de uma
Geografia colonial associada.

O programa de investigação geográfica do ‘zonalismo intertropical’


levado a cabo pela Geografia portuguesa até ao momento da
descolonização é variado, nos temas, nas abordagens e nas escalas
utilizadas (Daveau e Ribeiro 1973). Ainda assim, existem algumas
linhas de tendência mais fortes que devem ser destacadas.
Por um lado, é necessário fazer referência à ‘economia’ do
programa de investigação. A distância a vencer pelos investigadores
que se deslocavam aos territórios que queriam reconhecer podia ser
de poucas centenas de quilómetros, em Cabo Verde, até metade da
orbe terrestre, no caso de Macau e Timor. Não é, assim, de estranhar
que estes dois territórios, apesar de terem sido objecto de trabalhos
específicos no âmbito da Geografia (Brito 1964, 1971), tenham sido
preteridos em favor de territórios mais próximos. Ver-se-á, porém,
que esta geografia da distância se apoia numa outra, de ordem
geopolítica, que não é menos operante na distribuição geográfica
dos estudos coloniais.
Por outro lado, e não querendo simplificar as componentes de
um programa de investigação multiforme, no qual, por exemplo,
a Geografia urbana adquire especial importância, é significativo
o esforço que se dedica aos estudos de geomorfologia, e que não
tem paralelo em nenhum outro subdomínio da Geografia física dos

20
‘As geografias culturais pós-coloniais’

territórios ultramarinos (e devemos recordar que a climatologia havia


sido o mais importante subdomínio da Geografia física no contexto
da Geografia colonial oitocentista). 5 Não temos a intenção de
desenvolver especulações desnecessárias sobre o significado preciso
deste tipo de incidência relativa, mas dado o número de estudos que
se dedica ao problema da colonização efectiva dos territórios através
da agricultura, pensamos que não é um puro acaso.
Finalmente, detecta-se uma relação desigual, propriamente
geográfica, dos estudos aferidos aos diversos territórios que nos
parece provir das relações geopolíticas da organização metropolitana
dos territórios ultramarinos no contexto internacional. Impressiona,
pela quantidade e qualidade de estudos que lhe são dedicados, a
proeminente posição de Angola. Nenhum outro território, nem talvez
a soma de todos os outros, pode recobrir a bibliografia geográfica que
se lhe dedica. E para compreender o lugar especial que este território
cumpre na história da Geografia colonial portuguesa, talvez não
exista melhor interlocutor que o próprio Orlando Ribeiro, através do
livro que, no rescaldo da descolonização, dedica ao ‘fracasso da sua
colonização’ (Ribeiro 1981).

Para Orlando Ribeiro a geografia da relação africana, ao contrário


da que havia sido feita na América e na Índia, é a de uma colonização
‘ignara’. O poder político incipiente, a mentalidade das élites
locais, a negação sistemática aos africanos de lugares de prestígio
ou pelo menos de algum bem estar económico na pirâmide social
colonial são, para o geógrafo metropolitano, a causa principal da
desastrada descolonização e do carácter impiedoso que lhe estará
associada. Não cabe aqui uma análise minuciosa das diferenças
entre as colonizações levadas a cabo por portugueses nos diversos
continentes em que dominou terras e gentes. Mais importante do
que destacar os excessos possíveis de idealismo histórico que fazem
comparar factos com centenas de anos de permeio, e territórios com
histórias colectivas distintas, o que nos importa neste passo voltar a
sublinhar é a relação ‘afectiva’ que a Geografia (e mais vagamente
a cultura portuguesa) estabelece com este espaço distópico que é
Angola. No momento especialmente traumático da descolonização,

21
Geografias pós-coloniais

bem como na recomposição afectiva que se lhe seguiu, Angola, o


seu destino recente, o ciclo infernal da pobreza, guerra e corrupção,
funciona como um speculum da ambiguidade que Portugal e os
Portugueses estabelecem como seu próprio passado – como antes,
um futuro que fica por cumprir.
Hoje não tem sentido falar de uma Geografia colonial; uma
renovação semântica acompanha o ‘postcolonial turn’, e o nome
de ‘Geografia tropical’ recolhe no essencial os programas de
investigação que cabiam àquela tradição. A guerra que eclodiu na
maior parte dos territórios africanos, e que em alguns deles ainda se
perpetua, terá contribuído inclusivamente para fazer desaparecer os
traços materiais da presença de ‘colonizadores’ brancos em terras
africanas, e por isso, alguma dessa Geografia já só poderá um dia ser
revista ‘arqueologicamente’ (Daveau 2005: 29).
A relação entre a Europa e a África é agora de uma natureza
diferente. ‘Lá’, desapareceu a odiosa presença administrativa colonial,
a ‘permante interposição do mundo branco entre as culturas negras’
(Fanon apud Bhabha 2004: 339); outras formas menos visíveis, mas
tão ou mais insidiosas de exploração, foram constituídas. ‘Cá’, uma
imensa emigração africana, pobre e desfavorecida, refaz em sentido
inverso a dinâmica de expansão europeia dos séculos anteriores;
ela permite, apesar de tudo, um encontro profícuo de culturas, de
geografias e de mundos. Lá e cá, tem-se cada vez mais a noção de
que o problema do desenvolvimento não se resume afinal a um
problema de côr – e abandonar esta dicotomia é a condição inicial, a
primeira exigência de uma geografia pós-colonial.

Estudos pós-coloniais: uma panorâmica actual em Portugal


Seria audacioso da nossa parte tentar resumir em poucas páginas
as diversas abordagens realizadas em Portugal no campo dos estudos
pós-coloniais. Iremos assim tão-somente identificar e brevemente
comentar estruturas e instituições científicas que constituem lugares
de produção deste conhecimento científico. 6
Naturalmente começamos pelo Instituto de Investigação Científica
Tropical (IICT), Laboratório do Estado, organismo que teve origem
na Comissão de Cartografia, criada em 1883. É um Instituto que

22
‘As geografias culturais pós-coloniais’

se dedica ao Saber Tropical, desenvolvendo investigação científica


tropical nas áreas das Ciências Humanas e Naturais. Tendo uma
herança centenária de investigação tropical, e servindo actualmente
de apoio a um conjunto vasto de investigadores através do seu
Arquivo Histórico Ultramarino e do Centro de Documentação e
Informação, o IICT poderia, segundo algumas opiniões, convergir
para um centro académico agregador dos estudos pós-coloniais
realizados em Portugal (ver Hespanha, 2007).
Em Portugal, os estudos pós-coloniais, por quase se confundirem
com o pós-colonialismo ‘do espaço da língua oficial portuguesa’ e
com a lusofonia, para alguns uma invenção que tenta devolver um
espaço perdido (Margarido 2000), ou mesmo um ‘império perdido’
(Lourenço 2002), encontram-se bastante presentes nos centros de
Estudos Africanos, se bem que por vezes é difícil traçar a fronteira
entre o que é ou não estudo pós-colonial no conjunto de investigações
com temáticas sobre a cooperação e desenvolvimento, dinâmicas
religiosas, sustentabilidade e desenvolvimento rural.
Existem três centros principais de Estudos Africanos (alguns
dos quais incluem também estudos sobre outras partes do mundo,
especialmente a América Latina e a Ásia). O Centro de Estudos
Africanos (CEA) do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa (ISCTE), já com 17 anos de existência, tem uma produção
extensa, editando a revista ‘Cadernos de Estudos Africanos’ desde
2001. Entendidos os estudos pós-coloniais pela perspectiva teórica e
metodológica, e não pelo período temporal no qual são realizados ou
pelos espaço-objectos dos mesmos, é forçado indicar que a maioria
dos trabalhos produzidos são pós-coloniais. Lendo o relatório de
avaliação do financiamento plurianual de 2007 da Fundação para a
Ciência e Tecnologia (disponível em www.fct.mctes.pt), o painel de
avaliação mostrou-se “impressed by the researchers efforts to make
the indigenous voices of Africa heard over and above the noise of
eurocentric analytical concepts as well as by the implication of
African scholars in the Centre’s work.” Esta é, claramente, uma das
premissas mais fortes do projecto pós-colonial.
O Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP),
a funcionar desde 1997, realizou já sete edições do Mestrado

23
Geografias pós-coloniais

em Estudos Africanos, e publica desde 1999 a revista científica


Africana Studia (em 2006 contava com 9 números). Tem editado
ainda livros em papel e electrónicos e working papers. A revista é
eclética, convocando autores das Ciências Sociais, da História e da
Economia, que abordam diversos temas desde a identidade nacional
em Angola, Moçambique e São Tomé, à história e problemática da
escravatura no continente africano.
Dos cinco temas de investigação para 2007-2010, três relacionam-
se com o desenvolvimento – água como recurso, sustentabilidade
e cooperação, um com a História do trabalho forçado africano e
um último está implicado com a identidade e conflito na África
sub-sahariana. No âmbito dos trabalhos produzidos pelo Centro
destacamos, pela sua maior proximidade com os contornos deste
livro que apresentamos, o trabalho de Ana Frade (2007) que expõe
uma análise de duas visões literárias (Pepetela e de Mia Couto) da
corrupção nos estados pós-coloniais de Angola e Moçambique, e
o trabalho de Ana Ribeiro (1999), sobre a imagem de África na
literatura portuguesa depois de 1974.
O Centro de Estudos sobre África e o Desenvolvimento do Instituto
Superior de Economia e Gestão (ISEG) do Instituto Técnico de Lisboa
é muito mais um centro preocupado com questões de desenvolvimento
económico e social de países em desenvolvimento, com especial
relevo para a Ásia. No entanto, desenvolve presentemente o projecto
‘Nação e Narrativa Pós-colonial’, cujo objectivo se prende com os
tipos de representações/imagens da nação e das identidades que são
propostas pelas narrativas pós-coloniais angolana e moçambicana.
É assim explorado o papel da narrativa contido em várias vertentes
de escrita (romance, conto, crónica, história de vida, testemunho),
bem como a produção paratextual, na construção e desconstrução
de conceitos como nação, diáspora, migração, pós-nacionalidade,
configurando e disfigurando identidades.
Outros centros onde existe investigação de estudos pós-coloniais
são o Centro de Estudos Africanos Manuel Viegas Guerreiro, da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o Instituto Superior
de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa
(com diversos centros de investigação sobre África e Ásia), e o

24
‘As geografias culturais pós-coloniais’

Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da


Universidade Aberta.
Fora do âmbito dos centros de estudos africanos, encontramos
abundante investigação de estudos pós-coloniais no Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra (Laboratório Associado). Este
centro, liderado por Boaventura Sousa Santos, tem tido um papel de
destaque no desenvolvimento dos estudos pós-coloniais em Portugal,
e oferece inclusivamente um programa de doutoramento em ‘Pós-
colonialismos e Cidadania Global’. O projecto ‘As vozes do mundo’,
que envolveu intelectuais de seis países em quatro continentes
(Portugal, Colômbia, Brasil, Índia, Moçambique e África do Sul)
teve por um lado o objectivo de realizar uma cartografia dos novos
movimentos sociais situados fora do contexto do centro económico
e cultural capitalista, e por outro o de formular elementos de uma
nova teoria social, a partir da experiência diversa da periferia.
Os trabalhos centram-se em torno de um vasto conjunto de
experiências inéditas nos domínios das acções de democracia
participativa, gestão ecológica da biodiversidade, assentamentos de
reforma agrária, produção de conhecimento novo e sistematização
de sabedorias de culturas situadas à margem da racionalidade
ocidentalizante, etc. Este trabalho vem ajudar na construção do
que Sousa Santos apelida de ‘epistemologia do Sul’, isto é, uma
teoria crítica construída com base na experiência da realidade do
Sul, necessariamente uma experiência pós-colonial. Sousa Santos
tem desenvolvido um projecto em torno de uma necessidade do
pós-colonialismo permitir, não apenas a desconstrução e auto-
destruição do Sul enquanto imperial, mas também identificar a
profundidade da presença do colonialismo enquanto relação social
nas sociedades do Norte.
Para Sousa Santos, o pós-colonialismo deve referir-se ao “conjunto
de correntes teóricas e analíticas, com forte implantação nos estudos
culturais, mas hoje presentes em todas as ciências sociais, que têm
em comum darem primazia teórica e política às relações desiguais
entre o Norte e o Sul na explicação ou na compreensão do mundo
contemporâneo” (Santos 2004: 8). Desta forma, é significativa a
crítica que faz ao viés culturalista dos estudos pós-coloniais, que

25
Geografias pós-coloniais

segundo Sousa Santos (2004), apesar de constituir um corpus de


investigação importante, pode correr o risco de ocultar ou esquecer
a materialidade das relações sociais e políticas que tornam possível
a própria reprodução desses discursos, ideologias e práticas
simbólicas
De entre as várias ideias e trabalhos de Sousa Santos, a de
‘cosmopolitanismo subalterno’ (herdeiro em parte das ideias
de Gramsci) parece-nos ser de grande utilidade na Geografia
contemporânea, e em particular na Geografia Cultural, por incidir
sobre perspectivas que procuram identificar e analisar movimentos
de resistência a práticas hegemónicas da globalização neoliberal, às
que subjaz uma forme espacialidade.
Um outro local de produção de estudos pós-coloniais é o Centro
de Estudos de Antropologia do ISCTE, no qual uma das cinco linhas
de investigação se intitula ‘Estudos Coloniais e Póscoloniais’,
dirigida por Rosa Perez. Têm sido desenvolvidos diversos estudos
e projectos sobre migrantes timorenses e hindus residentes em
Portugal, analisando questões de identidade, etnicidade, adaptação
e transnacionalismo. O centro publica ainda a revista semestral
‘Etnográfica’ desde 1997 com 22 números.
Por fim, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa (Laboratório Associado) têm sido desenvolvidos diversos
trabalhos sobre a identidade nacional e a lusotopia. João Pina Cabral
(2005), por exemplo, discute a pós-colonialidade em Moçambique
através da análise de duas obras literárias, focando os conceitos de
‘fraternidade’, ‘alteridade’ e ‘autoctonia’.
Dos Estudos Literários, Antropologia e Sociologia têm surgido
posições que apelam a uma narrativa da diferença. Narrativa essa
que defende que o pós-colonialismo de expressão portuguesa não se
deve entender através uma arqueologia da sua nostalgia imperial e
colonizadora, mas que terá que assumir como legítimas as narrativas
que vêm das margens, e que, gritantemente, mostram que o pós-
colonial não é exclusivamente o literário, o económico, e o político,
mas é, com toda a sua contundência, o quotidiano dos que vivem,
trabalham, e alimentam o dia-a-dia do território português, numa busca
não preguiçosa de reparar os seus “pontos cegos” (Medeiros, 2007).

26
‘As geografias culturais pós-coloniais’

Conclusão
A presente publicação nasce da necessidade acusada de expandir
o debate relativamente àquilo que é ou poderá ser a Geografia em
contextos pós-coloniais. Representando algumas das problemáticas
centrais que têm vindo a desenvolver-se não só em Geografia mas
também nos Estudos Culturais, este livro reflecte o trabalhar da
teoria cultural pós-colonial por parte de geógrafas e geógrafos.
Aglutinando as tensões entre pós-colonialismo e capitalismo global,
os diferentes artigos analisam as formas materiais e discursivas de
persistência das relações de poder colonial.
Ana Francisca de Azevedo remete o leitor para questões complexas
como as que vão da organização do próprio paradigma pós-colonial
(e, malheureusement, da sua institucionalização), à tentativa de
escritas geográficas das novas e armadilhadas nações pós-coloniais.
Richard Phillips examina a cartografia da sexualidade no contexto
da sociedade vitoriana, a partir da leitura contextual do explorador
e autor de literatutura viagens, Richard Burton, que foi também o
tradutor (e introdutor) das Mil e Uma Noites e do Kamasutra na
sociedade londrina dos fins do século dezanove.
José Ramiro Pimenta defende que o modo de produção colonial
dominante durante todo o século dezanove se articula com a
representação das geografias imaginárias do passado, atribuindo às
personagens históricas atributos de oposição estrutural próprias das
relações racializadas do presente oitocentista.
James Sidaway e Marcus Power analisam as relações entre as
narrativas geopolíticas e visões de portugalidade, com especial
atenção para o período pós-1945, no contexto das relações entre o
‘colonial’ e o ‘pós-colonial’ e as articulações Este-Oeste e Norte-
Sul nos discursos geopolíticos no século XX e das manifestações
contemporâneas de imperialismo.
João Sarmento apresenta uma discussão do processo histórico e da
dinâmica actual da construção da identidade timorense, com base na
revisão do significado da religião, da língua e das múltiplas relações
com a paisagem e a terra.
Matthew Gandy analisa criticamente discursos pós-modernos
sobre o urbanismo de cidades do Sul centrando-se em Lagos, capital

27
Geografias pós-coloniais

da Nigéria, e argumentando a necessidade de contextualizar os


processos urbanos na geopolítica global.
Os coordenadores têm a noção de que este livro apresenta algumas
assimetrias de tratamento que fazem dele um conjunto de estudos
mais dirigido a modos de representação da relação pós-colonial, do
que às instâncias materiais dessa constituição. Seria desejável que
uma obra desta natureza incidisse a sua atenção igualmente sobre os
modos de produção concreta das múltiplas relações pós-coloniais,
sobretudo das expressões contemporâneas de neocolonialismo. Essa
intenção, esperam os editores, poder concretizá-la numa outra série
de estudos dedicada a este tema.
Poderiam as contribuições que compõem este livro ter tido origem
numa geografia mais alargada e, sobretudo, ter contemplado autores
oriundos de diversas regiões do mundo, dando assim origem a uma
vasta convocação de identidades e problemáticas. Ainda assim,
este livro não prescinde da sua afirmação como obra inserida na
visão pós-colonial, dentro da qual cada um de nós experimenta um
complexo processo de reposicionamento.

Este é assim o primeiro contributo a que nos propomos neste


livro — a aproximação da Geografia portuguesa a problemáticas
pós-coloniais que são já correntes quer no pensamento geográfico
internacional quer em diversas disciplinas das ciências sociais e
humanas em Portugal.

Notas
1
Os principais estudos de Orlando Ribeiro sobre o tema da expansão
portuguesa seriam reunidos em Aspectos e problemas da expansão
portuguesa (1962). 2 O primeiro dos estudos consagrado a este tema seria
a conferência proferida em Bruxelas, no Instituto de Cultura Portuguesa: La
formation du Portugal (1939). 3 O primeiro título do autor sobre o Brasil
tem a data de 1942: ‘Brasil, a terra e o homem’, Brasília, I, p. 377-397.
4
Contudo, a escola de Coimbra não deixou de desenvolver trabalho sobre
estes temas (cf. Campar de Almeida et al. (2003: 309-347). Também, um
dos nomes maiores da Geografia coimbrã e portuguesa, Fernandes Martins,
levou a cabo uma extensa investigação em Moçambique. 5 Neste contexto
é necessário referir a investigação independente de Suzanne Daveau, com

28
‘As geografias culturais pós-coloniais’

origem na tradição tropicalista da Geografia francesa e fruto de uma longa


permanência na África ocidental, que viria a associar-se aos programas
de investigação da Geografia portuguesa a partir da década de sessenta
(cf. Pélissier 1997). 6 Uma simples pesquisa bibliográfica no Sistema
Integrado das Bibliotecas da Universidade de Lisboa usando dois centros de
investigação de referência do nosso país indicam um possível desequilíbrio
existente na investigação do tema pós-colonial na Geografia e nas demais
Ciências Sociais. Assim, usando o índice de pesquisa e a palavra-chave
‘Pós-colonial’ no Centro de Estudos Geográficos e no Instituto de Ciências
Sociais, ambos da Universidade de Lisboa, nota-se uma ausência do tema
no primeiro centro e uma relativa abundância no segundo (77 entradas para
‘pós-colonial’ e 41 para ‘pós-colonialismo’).

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29
Geografias pós-coloniais

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30
Geografias pós-coloniais: contestação e
renegociação dos mundos culturais
num presente pós-colonial

Ana Francisc a de A zevedo

O acto de re-situar L’Etranger no nexo


geográfico onde emerge a sua trajectória
narrativa é interpretá-lo como forma
elevada de experiência histórica
EDWARD SAID
Culture and Imperialism

O paradigma pós-colonial

Definido por Derek Gregory1 como “uma formação político-


intelectual crítica que tem como preocupação central o impacto do
colonialismo e sua contestação nas culturas dos povos colonizados e
colonizadores do passado, bem como a reprodução e transformação
das relações coloniais, representações e práticas no presente”, o
pós-colonialismo produziu uma das mais sólidas teorias que na
actualidade agitam o mundo académico. Embora a sua relação original
com os Estudos literários e com os Estudos Culturais pela mão do
orientalista Edward Said tenha definido alguns dos traços elementares
desta formação, nomeadamente no que respeita à recuperação
do significado político de cultura, estudos informados crítica e
teoricamente sobre o colonialismo europeu moderno produzidos
nas décadas de 1950 e 1960 contribuíram significativamente para a
compreensão deste processo político, económico, cultural e sócio-
espacial. Debruçado sobre a cronologia do paradigma pós-colonial,
Anthony King2 identifica duas fases que informaram a construção
da crítica pós-colonial. Uma primeira fase, composta pela pesquisa
de autores das Ciências Sociais que nas décadas de 1950-60-70
desenvolveram trabalhos num contexto muito específico da situação
Geografias pós-coloniais

colonial com a sua particular distribuição de poder. Uma segunda


fase, que tomou corpo sensivelmente desde inícios da década de 1980,
composta pelas abordagens de investigadores das Humanidades. De
acordo com este autor, o primeiro conjunto de Estudos Pós-coloniais
orientados para a cultura, embora tivesse em conta as representações
do sujeito colonizado, debruçava-se mais sobre as instituições
e cultura do colonizador, formas de conhecimento e práticas
específicas no quadro colonial (o espaço da sociedade colonial).
Este corpo de estudos foi efectuado por uma “geração de académicos
do ‘colonialismo’”3 que era constituída por investigadores das
Ciências Sociais, na sua maioria de sexo masculino e europeus ou
norte americanos, subsidiados para trabalho de campo nas colónias.
Constituindo muitos destes trabalhos legados pioneiros para análise
e estudo pós-colonial,4 estes trabalhos configuram ainda um valioso
banco de dados sobre o discurso colonial, ajudando a clarificar
inúmeros aspectos sobre o discurso colonial e sobre “o sistema de
conhecimento e crenças sobre o mundo dentro do qual os actos de
colonização tomaram lugar.5 Sediados na academia metropolitana e
restringidos a células disciplinares específicas, estes estudos deram
lugar a uma segunda fase da crítica pós-colonial constituída por
académicos das Humanidades de proveniência diversa, “homens e
mulheres de diferentes etnias originários das antigas colónias como
da metrópole”.6 A análise crítica desenvolvida pelos autores desta
segunda fase (especificamente designada por estudos pós-coloniais),
“é informada a diversos níveis pela teoria cultural ou literária,
particularmente feminismo e pós-estruturalismo, e os objectos
de análise são primeiramente textos literários (histórias, relatos
de viagem, cartas, diários, manuais, (...), assim como (material)
gráfico, fotográfico ou cartográfico”.7 Deste modo, a teoria e a
crítica pós-colonial inclui uma variedade de práticas muitas delas
anteriores ao período em que o termo ‘pós-colonial’ começou
a tornar-se corrente. Não obstante, a adopção do paradigma pós-
colonial encontra-se associada a inúmeros movimentos sociais e a
transformações na natureza das práticas culturais dentro e fora da
academia, nomeadamente aos movimentos de independência das
antigas colónias e aos movimentos de direitos civis dos anos 60,

32
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

afirmando-se no decurso da construção ideológica resultante de uma


sociedade transcultural.
Actualmente mais orientada para a crítica do humanismo ocidental
e mais envolvida com as abordagens pós-estruturalistas, a análise
crítica do colonialismo persegue uma compreensão desse mesmo
colonialismo e dos projectos decorrentes. Em termos gerais, explica
Gregory, procura-se a compreensão desses fenómenos através
da análise das culturas e formações discursivas do colonialismo
atendendo a aspectos de construção do objecto e representação do
poder. Estas envolvem a interpretação das construções discursivas
através das quais o colonialismo é transportado do passado para o
presente, aquilo a que o autor chama de “deslocações culturais do
colonialismo no presente”.8 Busca-se, portanto, uma leitura crítica do
discurso colonial como forma de enfatizar os problemas interpretativos
que percorrem o arquivo colonial. Donde aquele geógrafo defender
que, deve “enfatizar-se o estudo das formas através das quais as
sociedades metropolitanas e coloniais são apresentadas juntas em
redes de afinidades, influência e dependência”.9 A articulação destas
preocupações na Geografia passa pela compreensão do significado
de traços culturais específicos detectados nas paisagens saturadas
do hiperespaço contemporâneo. Tentando compreender como a
diferença se torna objectivada em lugares particulares, autores como
Homi Bhabha10 e Mills11 mostram a natureza daquilo que Edward
Soja12 designa por “espacialidade existencial”, analisando aspectos
de construção de identidade e marginalidade. Tenta perceber-se
como a cultura é factor crucial na produção e reprodução do espaço,
articulando-se as expressões do local e do global, bem como aspectos
de mito e memória passíveis de exprimir a constituição dos grupos
sociais e dos indivíduos.
Emergindo do campo dos Estudos Literários e Culturais, através
do trabalho de autores como Edward Said que estabeleceram as
bases para o estudo das culturas do imperialismo, a análise do
discurso colonial tem sido recentemente alvo de grande atenção,
propagando-se pelas mais diversas disciplinas académicas. Como
salienta Jane Jacobs, integrando propostas de outros campos do saber,
este tipo de estudos debruça-se sobre o modo como as formações

33
Geografias pós-coloniais

discursivas operam “para a criação de um complexo campo de


valores, significados e práticas através dos quais o sujeito europeu
é posicionado como superior e os não-europeus são posicionados
necessariamente como um Outro inferior para a constituição desse
sujeito”.13 Neste sentido, as problemáticas pós-coloniais animaram
em seu redor um debate de carácter inerentemente transdisciplinar. A
preocupação que subjaz tais abordagens é o desenvolvimento de uma
consciência das implicações políticas da construção das narrativas
coloniais, interpretações e “histórias”, e suas repercussões para a
constituição de um presente pós-colonial.14 Explorando questões
relacionadas com a posicionalidade do sujeito e o relativismo
cultural, estas abordagens desenvolvem as propostas que Said põe
em cima da mesa com a sua obra “Orientalismo”,15 mostrando como
as geografias que nutrem o imaginário moderno são parte integrante
do próprio projecto imperialista. Ao defender que “o Oriente” não
existia mas antes que foi etnocentricamente criado pelos ocidentais,
Said apresenta o orientalismo como um processo activo de alteridade,
através do qual se justificou a subjugação e a exploração do Outro
colonial.
Como discurso que permitiu “a criação de um paradigma conceptual
geral através do qual as formas culturais das ideologias colonial e
imperial podem ser analisadas”,16 o Orientalismo mostra como se
articularam poder e conhecimento para a construção e manipulação de
uma ideia específica de Oriente; “um self subterrâneo do ocidente”.17
Como “espelho deformador”18 através do qual a Europa se definiu e
celebrou a sua superioridade, o discurso orientalista funciona como
meio através do qual o ocidente arrogou para si mesmo o poder de
transmitir (e negar) respeito cultural a outros e autorizar aquilo que
conta como verdade”.19 Evidenciando a complexa relação entre o
‘Ocidente’ e o ‘Oriente’, o discurso orientalista veicula uma geografia
imaginária percorrida por mitos e imagens que denotam ambíguas
representações do Eu e do Outro, alicerçadas sobre uma história de
proximidade e paralelamente de distância relativamente a territórios
e culturas que ocupavam o lado oriental do mapa. Como salienta
Mike Crang,20 “mais do que estar vazio, o Leste era consignado
ao passado através das representações, sendo perspectivado como

34
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

uma origem antiga e não como um rival corrente”. Estabelecendo-se


através de “formas contrastantes de ‘temporalidade’”,21 o Ocidente
definiu-se a si mesmo “como progressivo, no sentido do fazer da
história e da transformação do mundo, enquanto que o Oriente foi
definido (pelos europeus) como estático e intemporal”.22 Auto-
definindo-se como “agente da história”,23 em relação a um leste
que apenas poderia experimentar repetições, o ocidente detinha a
capacidade de modelação do futuro através da habilidade para actuar
e subordinar o Oriente.24 A construção pelo ‘autor europeu’ de um
mapa imaginário do Oriente é, portanto, trespassada por categorias
dicotómicas que serviram como base para a afirmação da sua própria
auto-imagem. Mapa que tem subjacente a tentativa de lidar com
sentimentos de medo e repulsa relativamente ao outro desconhecido,
assim como com sentimentos reprimidos de desejo que o narrador
ocidental projectava sobre o objecto de representação.
Como objecto e não como sujeito de representação, o Outro
oriental configurou-se como figura contrastante e antónima do
Eu ocidental (o Eu hiper-racional), uma figura através da qual se
sublimavam o fascínio e o desejo relativamente à ideia de uma
sexualidade incontrolada do Outro; donde as lógicas de sexualizar
e feminizar o continente asiático que percorrem as mais diversas
representações do Oriente. As aspirações de “pureza racial pela
resistência à sexualidade do Oriente”, refere Crang,25 viram-se
exponenciadas nos finais do século XIX com o incremento de poder
associado à divisão do continente africano pelas potências europeias.
Articulando complexos fluxos de significado e alteridade estruturados
em torno dos sentimentos de medo e de desejo, a construção de
categorias raciais de ordenação da identidade tem subjacente
processos bárbaros de selecção e hierarquização, nomeadamente de
acordo com a côr da pele dos sujeitos (objectos) de representação.
Categorias que, de acordo com a mentalidade colonial, assentavam
no domínio masculino do Outro, e muito particularmente do Outro
feminino como objecto sexual disponível que urgia controlar. Isto,
num contexto em que o Ocidente se encontrava imbuído da missão
de ‘iluminar’ ou de levar a Razão ao Outro subjugado, assim como
de ‘humanizar’ ou de levar a Fé ao outro ‘não humano’. Um processo

35
Geografias pós-coloniais

alicerçado sobre uma grelha antropológica que irradia do mundo


ocidental e que se afirma no período moderno pela articulação dos
mecanismos dominantes de representação em torno de binómios
como primitivismo/civilização .
Como construção cultural e estética trespassada de ressonâncias
históricas, o primitivismo remete para a ideia de um Outro não-
ocidental contra o qual o Eu ocidental se constituiu, um “Outro
inalcançável que apenas pode ser definido negativamente (como
o não-ocidental); uma esfera de marginalidade e, por associação,
beleza misteriosa e diferença exótica; uma visão sempre distante
cuja natureza bruta é mobilizada para lembrar ao mundo civilizado
aquilo que perdeu”.26 Tais construções metropolitanas do Eu e do
Outro, argumenta Jane Jacobs,27 são parte integrante das extensões
territorial, militar, política e económica do poder europeu sobre o
globo, e dos processos de imperialismo e colonialismo. Mais do que
meros exercícios mentais, tais constructos associam-se aos processos
de construção social de identidades, pelo que os significados e práticas
que geram subjazem ao desenvolvimento político-material desigual
dos mundos imperiais.28 Definido por Said29 como um conjunto de
atitudes, práticas e teorias de um centro metropolitano dominante
governando um território distante, o imperialismo manifesta-se no
presente pela acção de uma infinidade de formações discursivas que
activam a esfera de uma ‘cultura geral’. Esta, tem contaminado as
práticas políticas, ideológicas, económicas e sociais a uma esfera
macro. Aludindo à “persistência tenaz das ideologias, práticas e
economias do alto capitalismo no momento de descolonização
formal”,30 inúmeros autores pós-colonialistas remetem para um
processo de expansão cultural e económica que continuou a
verificar-se no período subsequente à independência administrativa
e territorial das antigas colónias. Deste modo, interceptam-se os
problemas decorrentes das lutas nacionalistas pela liberação nacional
no que respeita à remoção da administração colonial.31 Problemas
que, como bem mostraram os estudos pioneiros de Franz Fanon,
decorrem de uma reorganização do poder em torno de poderosas
elites nacionalistas que tomaram conta da missão pós-colonial e que
rapidamente encontraram expediente para negociar com o anterior

36
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

poder colonial.32 Donde a insistência de Said na necessidade de


distinção entre imperialismo e colonialismo, entendido este último
como articulação específica do imperialismo associada às invasões
territoriais e ao processo de assentamento.
Considerado como um estádio dentro de um processo mais vasto e
persistente de imperialismo capitalista que perdura nos nossos dias,
o colonialismo é “uma fase do imperialismo em que a expansão
das capacidades acumulativas do capitalismo foi realizada pela
conquista e possessão do território e trabalho de outros indivíduos
ao serviço do centro metropolitano”.33 Neste sentido, o colonialismo
implica o estabelecimento e a manutenção do domínio sobre um
grupo separado de indivíduos (subordinados) e dos seus territórios
(presumivelmente livres para exploração).34 Implicado com a
tarefa de lançar as bases para uma discussão e análise crítica do
imperialismo, Said considera o imperialismo como “um acto de
violência geográfica através do qual virtualmente qualquer espaço no
mundo é explorado, cartografado e, finalmente, posto sob controlo”.35
A componente espacial reveste-se de significado especial na sua
teoria, uma vez que as expansões imperiais do período colonial
estabeleceram “arranjos espaciais específicos em que as geografias
imaginativas do desejo robusteceram espacialidades materiais de
conexão política, dependência económica, imposição arquitectónica
e transformação paisagística”.36 Decorrentes das “lutas pelo controlo
do território (assim como) das “lutas pela história e pelo significado
social”, argumenta Said,37 tais espacialidades denotam o papel do
imaginário geográfico no projecto imperial. Um imaginário que
integra geografias imaginativas e imaginação geográfica.
Como representações de ‘outros’ lugares e paisagens que veiculam
estereótipos particulares sobre os indivíduos, natureza e cultura, as
“geografias imaginativas”38 reflectem os desejos, as fantasias e as
preconcepções dos seus autores, assim como as grelhas de poder que
se articulam entre estas e os sujeitos.39 Enfatizando o carácter ‘não
inocente’ destas representações e o modo como o poder se articula
através delas, Said desvela o carácter centrado dos pontos de vista dos
autores europeus e norte-americanos na sua relação com a construção
cultural de uma grelha assimétrica de visualização (uma específica

37
Geografias pós-coloniais

posicionalidade do sujeito observador) mobilizada para a observação


do Outro.40 Explorando a construção cultural de uma superfície de
observação que não é puramente produto de operações cognitivas,
Said mostra como as geografias imaginativas são animadas pela
fantasia e pelo jogo do desejo por forma a emprestar aos lugares um
valor figurativo e uma particular poética. Integrando a produção da
alteridade assim como os processos de construção identitária, estes
valores figurativos não se prendem simplesmente com a replicação
de um ambiente específico mas antes fazem parte dos “imperativos
territoriais de um sistema político particular”41 empenhado na
produção de um espaço ‘conhecido’ (o dos projectos imperiais). Um
espaço profundamente nutrido pelo exercício cartográfico e pela
tarefa de mapeamento de que dependeu o processo de colonização,
“uma técnica (e uma esperança) de representar uma realidade estável
e passível de ser conhecida naquilo que eram terras desconhecidas
habitadas por gente desconhecida”.42 Neste sentido, “as geografias
imaginativas e a história ajudam a mente a intensificar o seu próprio
sentido, pela dramatização da distância e da diferença entre aquilo
que está perto e aquilo que está longe”.43 Circulando em formas
materiais, um poderoso espólio de geografias imaginativas tornou-
se com o tempo culturalmente sedimentado, formando um arquivo
internamente estruturado que se vai auto-reforçando.44 Através
delas (pintura, fotografia, mapas, relatos de viagem, colecções ou
exposições, que veiculam a ideia de paisagens específicas), inúmeras
histórias espaciais foram trazidas para o horizonte da inteligibilidade
com recurso a diversas práticas textuais.
Representando a intersecção entre espaço material e imaginário,
as geografias imaginativas usufruem paralelamente do estatuto de
ficções e de realidade concreta. O mapa, é disso exemplo, tendo-
se tornado “significante sobredeterminado da espacialidade de uma
imaginação imperial.45 Identificando uma “estrutura de citação”
que caracteriza a circulação das geografias imaginativas produzidas
sob a égide do orientalismo, Said mostra como esta funciona por
forma a legitimar atitudes e disposições, políticas e práticas da sua
audiência colectiva, ventilando “uma espécie de paradigma cultural
de ‘alteridade’”.46 Tendo subjacente uma resposta específica aos

38
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

lugares e paisagens proporcionados pelo encontro colonial, as


geografias imaginativas assentam sobre a imaginação geográfica
do Eu colonizador e, como tal, revelam uma peculiar sensibilidade
para a captação dos aspectos culturais e naturais por parte do sujeito
ocidental. A ambivalente sensibilidade que informa a imaginação
geográfica imperial e que tem subjacente o “medo do Outro, de
um envolvimento com o Outro, que produz uma distância e um
desejo de dominar por forma a manter esta distância”,47 conta com
o trabalho da representação dos espaços do Outro como modo de
espacialização do poder e como forma de exercer o controlo por
parte de um grupo social dominante.48 Como nota Said,49 “(t)al
como nenhum de nós está fora ou para além da geografia, nenhum
de nós está completamente livre da luta em torno da geografia. Esta
luta é complexa e interessante porque não é apenas sobre soldados
e canhões, mas também sobre ideias, sobre formas, sobre imagens
e imaginários”. Donde a dimensão profundamente geográfica do
seu projecto, dado o modo como se dedicou a uma reescrita das
modernas espacialidades; “(a)quilo em que me re-encontro é a
repensar a geografia (...), a cartografar as mutantes constelações de
poder, conhecimento e geografia”.50
Alicerçada sobre construções culturais de diferença e alteridade,
a imaginação geográfica imperial e respectivas espacialidades
entroncam em complexos processos de formação identitária, os
quais são afectados por imagens distorcidas ou estereotipadas que
reflectem o modo como as ‘outras’ culturas foram absorvidas e
importadas para o mundo ocidental. Como “repositório de formas
simbólicas e de experiências sociais individuais e colectivas”,51 a
cultura funciona como veículo de troca interpessoal e como médium
para a construção de significados. Através dela, misturam-se
“ambições e desejos por forma a legitimar uma ordem moral e acção
política, autoridade e o sistema económico”,52 os quais interferem
para a produção de geografias imaginativas. Os parâmetros morais
e epistémicos criados pela cultura moderna como forma de controlo
de uma determinada realidade social (assim como a difusão desses
parâmetros), são profundamente nutridos por complexas “geografias
da diferença”.53 David Sibley debruça-se sobre os processos de

39
Geografias pós-coloniais

construção das fronteiras entre o Eu e o Outro, tentando compreender


como as representações da diferença integram a constituição da
subjectividade e interferem na definição dos lugares. Desenvolvendo
a teoria da abjecção de Julia Kristeva,54 Sibley mostra como a
percepção e as “recolecções” de lugares representam parte substancial
do acto de construção de fronteiras por parte do sujeito. Associada às
imagens que coleccionamos sobre um lugar, as emoções reprimidas
constituem elemento crucial a integrar a experiência desse lugar.
Os seus múltiplos elementos combinados com outros (presentes
ou ausentes) são articulados nas nossas representações por forma
a constituir um sentimento específico sobre o lugar a partir do qual
definimos um lugar como bom ou mau.55 Desde esse ponto, que é
antes de mais cultural mas também estritamente pessoal, enunciam-
se as complexas relações entre o mundo material e o mundo social,
processo que é intimamente nutrido pelo sistema emocional e
afectivo assim como pelo inconsciente. Como salienta Karl Figlio,56
“(t)odo o acto de mapear para um espaço geométrico – todo o acto
de retratar – deixa uma abertura entre aquilo que está presente no
espaço emocional (...) e aquilo que aparece no espaço mapeado”.
O papel das emoções na construção das geografias imaginativas
é frequentemente negligenciado, iludindo-se desse modo a forma
como sentimentos como medo e ansiedade se encontram incrustados
no próprio mundo material. Mas iludem-se igualmente as dimensões
de exclusão de determinados grupos sociais, dimensões que são
evidenciadas pela separação espacial, como dimensão crucial da
própria cultura ocidental, ‘a cada um o seu lugar!’. Os espaços
reflectem hierarquias, reflectindo o imaginário geográfico as
fronteiras de mesmidade e alteridade legitimadas pelos parâmetros
morais e epistémicos da cultura moderna. Neste contexto, em que
as relações entre o mundo material e social interferem activamente
na construção das subjectividades, “o poder de controlo do espaço
(liga-se) à produção de uma comunidade homogénea e de um sentido
geral de mesmidade”.57 Isto dentro das fronteiras do sujeito. Fora
delas, na no man’s land em que o Outro constitui uma verdadeira
ameaça para a integridade do sujeito, situam-se os territórios da
abjecção mapeados por Sibley. Como objecto que o sujeito tenta

40
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

expelir mas que não é passível de ser eliminado, o abjecto faz parte
do sujeito.58 O “sujeito abjecto” e o “espaço abjecto” situam-se para
além das fronteiras do sujeito embora integrem ininterruptamente
a definição da sua própria mesmidade.59 Abjecção e purificação
configuram um ciclo inacabado através do qual as subjectividades se
produzem; o Eu (essência) e o Outro (resíduo) integram os processos
de construção da diferença e alteridade assim como a modelação do
espaço social. A construção de imagens e de imaginários aprisionados
pelo binómio essência/resíduo (ou abjecção/purificação) é pedra
angular das doutrinas de pensamento de pendor eurocêntrico. Como
refere Sibley,60 “(o)s sentimentos de abjecção são projectados
sobre populações cujas imagens estereotipadas não coincidem com
idealizações de certos corpos”. Deste modo, os sentidos de pertença
e não pertença a determinados grupos e culturas geram situações de
expulsão concreta ou metafórica, dos sujeitos com os quais não se
produz identificação, isto é, os sujeitos da diferença.
Contaminados pela inaceitação de inúmeras formas de diferença,
os processos homogeneizadores que nutriram o sistema social
imperial (nomeadamente os associados à construção dos Estado-
nação com as suas ‘comunidades coerentes’), foram sustidos por
“crus estereótipos e uma forma insuportável de divisão global”.61
Directamente associada à construção dos estereótipos culturais está
a imposição de fronteiras, as barreiras para lá das quais se colocam
os outros abjectos; “isto simplifica a questão da identidade, e a
rejeição ou exclusão dos outros é assumida como proporcionando
mais segurança”.62 Articulando inúmeras e complexas instâncias
de abjecção, a história colonial define-se com base numa política
cultural preocupada com tudo que possa ameaçar as fronteiras
do sujeito colonizador. Uma política que potenciou a exclusão,
pela desumanização do sujeito colonizado, pela ameaça que este
constituía às fronteiras do corpo (branco). Se, como evidencia
David Sibley,63 “o branco significava paralelamente pureza e ordem
e o preto significava profanação e desordem no discurso racista,
então as representações de negritude criavam ansiedades sobre as
fronteiras – do corpo, da vizinhança, da nação”, o que veio a ser
exponenciado por séculos de representações negativas do Outro

41
Geografias pós-coloniais

colonial que se erguiam no seio do sistema simbólico da cultura


ocidental em resposta às ansiedades sobre a alegada integridade do
sujeito ocidental (branco). Não obstante, a questão dos estereótipos
culturais é complexa e percorrida de ambivalências, nomeadamente
no que respeita à relação com os dois lados da abjecção e com a
determinação de estereótipos negativos e positivos.
Tentando ilustrar a problemática das fronteiras entre pureza e
abjecção, Sibley argumenta que sob o regime colonial a construção
de um espaço imaginado passou pelo recurso a uma ideia de
paisagem da qual se erradicou sistematicamente o trabalho da
cultura64. A mobilização de uma ideia de paisagem culturalmente
vazia ou de uma natureza primordial intocada permanecendo fora
de controlo aos olhos do sujeito colonizador, configura elemento
crucial das geografias imaginativas do habitante urbano ocidental.65
Para retratar esta ideia de um exterior total, incluindo nela o sujeito
colonizado, foi necessário representá-lo como “não afectado pela
civilização, existindo numa inter-relação harmoniosa com a natureza,
efectivamente como parte da natureza”.66 Neste contexto, o da
construção de uma imagem desejada e de uma espacialidade ‘não
conflituosa’ passível de retratar o encontro colonial, “(i)ndivíduos
e lugar representam algo que foi perdido pela civilização, pela
separação de cultura e natureza”.67 Desta forma, a mobilização de
estereótipos positivos relativamente ao Outro colonizado, respondia
às expectativas de autenticidade do Eu colonizador, assim como à
articulação de emoções contraditórias que irradiavam do encontro
cultural. Esta construção respondia ao “(d)esejo, de uma existência
mais terna e natural, de uma reemersão com os resíduos, (que)
é deslocada para os outros romantizados”.68 Do outro lado das
fronteiras da mesmidade (ocidental), encontram-se portanto e
também, os ‘bons’ objectos míticos que habitam os ‘outros’ lugares
- desertos, tundra, florestas equatoriais”,69 os objectos que reunem as
qualidades de uma natureza purificada. Através destes estereótipos, a
identidade dos indígenas foi idealizada e os sentimentos de ansiedade
atenuados. Se tais representações proporcionaram meio de lidar com
emoções como o medo e a ansiedade, elas funcionaram também
como modo de lidar com sentimentos ameaçadores como o desejo,

42
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

deslocando-se para o Outro imaginado as ideias de sensualidade e


prazer. Por isso, as representações do sujeito colonizado, integraram
ambiguamente o ‘outro abjecto’ e ‘outro natural’, enfatizando-se
através delas, e respectivamente, qualidades tidas como negativas
e positivas que presidiram a própria formação da subjectividade.
No seu conjunto, tais geografias imaginárias serviram como forma
de ‘confirmar’ a diferença pelo lado menos positivo, pois como
‘objectos’ que ameaçavam as fronteiras do sujeito (ocidental),
as representações do Outro colonial punham em causa o carácter
purificado e homogeneizado daquela construção.
A análise do discurso colonial, como “sistema de conhecimento
e crenças sobre o mundo dentro do qual os actos de colonização
tomaram lugar”,70 remete para construções complexas de identidade
e alteridade que se afirmaram no período moderno, tanto como efeito
de uma grelha de poder e conhecimento que irradiava dos centros
europeus metropolitanos, como das tentativas de lidar com emoções
provocadas pelo encontro colonial e que potenciavam a construção
das fronteiras entre o Eu e o Outro colonial. Neste sentido, indagar
da medida em que determinadas formações discursivas contribuíram
para a difusão de estereótipos culturais específicos associa-se também
à tentativa de compreensão das suas implicações materiais. De
facto, se discursos como o orientalismo e a tropicalidade constituem
construções culturais e políticas do ocidente que legitimavam
práticas de exclusão, estes integram uma boa parte dos mitos
coloniais. Combinados em diferentes tempos com vários níveis de
racismo e políticas de controlo social colonial, tais mitos tornaram-
se factores determinantes de influência das relações e práticas sociais
e espaciais, bem como das políticas da modernidade. Indagando
a construção europeia dos conceitos de ‘trópicos’ e do ‘tropical’,
Arnold71 enfatiza a importância das ideias científicas e da autoridade
académica para a formação destes constructos. De facto, a análise
da história das ideias de natureza tropical em geral e da geografia
tropical em particular, ajuda a compreender a razão pela qual estes
se tornaram conceitos fundacionais das geografias imaginativas do
imperialismo.72 Como constructo colonial de clima e natureza, a
ideia de trópicos decorre da “identificação das regiões temperadas do

43
Geografias pós-coloniais

norte como normais e dos trópicos como o outro – climaticamente,


geograficamente e moralmente”.73 O poder desta ideia “que continua
a modelar a produção e o consumo do conhecimento”,74 entronca
nas condições específicas da sua formação, enquanto construção
situada de conhecimento e prática orientados para os hábitos do
comportamento dos europeus ‘nos trópicos’.
Reunindo em seu redor todo um conjunto de referências dispostas
para a categorização do sujeito colonial, o discurso da tropicalidade
adquire ressonância redobrada quando se tem em conta as múltiplas
formas em que denota o sentido de abjecção e os múltiplos processos
através dos quais o sujeito colonizador tentou lidar com as sérias
ameaças sintetizadas por todo um quadro de políticas médico-
sanitárias que configuraram o espectro daquele encontro. Como
salienta Anthony King,75 a ideia de trópicos encontra-se intimamente
relacionada com a teoria miásmica que imputava as origens da
doença às “emanações do solo”.76 Efectivamente, o espectro de
doenças como a malária que informou alguns dos momentos mais
traumáticos do “psicodrama colonial”,77 veio reforçar todo um
conjunto de estereótipos negativos associados ao encontro com o
Outro colonial. Articuladas em termos discursivos, as práticas através
das quais ‘trópicos’ vieram a ser conhecidos eram frequentemente
marcadas pelo estigma da doença e pela morte. Neste sentido,
“(e)ncontrar ‘os trópicos’ tinha a ver com medo e risco, e com a
ameaça da doença e da loucura (perspectivados como) sinais de
não estar sob controlo”.78 Os desenvolvimentos da teoria miásmica
pelo contacto com os povos colonizados e com os territórios em
que habitavam, nutriram uma série de paradigmas de conhecimento
tropical como modo de lidar com os movimentos de assentamento
colonial e com as relações de apropriação do solo, isto tendo
subjacente um quadro de práticas higienistas e de desenvolvimento
urbano que se ia traçando desde os centros metropolitanos europeus.
Dentro deste quadro, as formas sócio-espaciais geradas pelos
discursos da tropicalidade remetiam para a ideia dos povos nativos
e dos seus hábitos como origem da doença, pelo que as localidades
de assentamento do ocidental se encontravam preferencialmente à
distância destas povoações, em lugares de maior altitude (distantes

44
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

do solo como ‘centro de emanações’), arejados e limpos.79 Por isso,


como enfatiza Anthony King,80 a tarefa de “fazer as colónias era
também a de refazer a natureza, não apenas em termos de acesso e
exploração económica do valor das terras colonizadas como valor
de recurso, mas também em termos de outros valores (científico) e
risco (doença)”. Objectivados como modo de lidar com um Outro
inacessível, estes discursos espaciais vieram a ser usados como forma
de obter controlo sobre as pessoas e os seus recursos, recodificando-
se através das representações a carga simbólica das geografias
imaginativas que veiculavam as ideias de continente negro ou de
natureza selvagem que urgia domesticar.
A afirmação de subjectividades revolucionárias empenhadas na
descolonização das paisagens interiores que irradiam de um passado
imperial, prende-se com a necessidade de detonar a reprodução de
relações de poder e significado que no presente activam os seus
próprios mecanismos de controlo.81 Mecanismos que irradiam das
hegemonias imperial e colonial e que estruturam uma visão do
mundo específica, baseada na superioridade cultural dos povos euro-
americanos. Esta visão do mundo que informou a Idade Moderna no
seu conjunto, é desafiada pelo paradigma pós-colonial, entendido
como parte de um projecto global de emancipação. Num quadro
de redimensionamento do sujeito pós-colonial, as críticas a toda
uma grelha antropológica que irradia do mundo ocidental voltam-
se contra os mecanismos dominantes de representação por forma a
emancipar a irredutível alteridade e a heterogeneidade dos sujeitos
que habitam as novas “geografias de contacto”.82 Se um primeiro
objectivo das abordagens desenvolvidas dentro deste paradigma
é o de mostrar como “a hegemonia ocidental se baseia em visões
parciais do resto do mundo frequentemente promovidas por razões
políticas”,83 um segundo objectivo é o de erradicar essa mesma
parcialidade com vista à emancipação. Por isso, compreender esses
‘outros mundos’ e as suas relações mútuas, é para Gregory84 o
único modo de evitar a tendência para universalizar paroquialismos
culturais. O poder das construções como raça ou nacionalidade que
longe de serem categoriais naturais são, não obstante, entendidas
como tal, tem legitimado práticas e discursos cuja posicionalidade

45
Geografias pós-coloniais

estriba normalmente em categorias definidas por ‘outros’, e em


muitos casos de uma posição de superioridade assumida.
Produto de forças históricas e geográficas especificas, tais
construções sociais saturam ainda os modos de representação
dominantes,85 permitindo uma manipulação naïve dos particularismos
e da diferença entre os indivíduos. Estratégia-chave para a sua
perpetuação é precisamente a acção das forças hegemónicas de
produção e reprodução da diferença, as quais naturalizam práticas e
discursos coloniais através de narrativas sobre o Outro. Trespassadas
por complexas experiências de lugar, tais narrativas veiculam códigos
identitários proporcionando frequentemente visões reconstituídas
das políticas de lugar e do corpo. Através delas, autores como
Jacobs86 perscrutam os interstícios das estruturas formais de poder
articuladas nas geografias imaginárias, as quais proporcionam entre
outros elementos, a análise da distribuição dos micropoderes na teia
espacial. A contestação dos traços de eurocentrismo, ou daquilo que
David Slater87 designa por “euro-americanismo”, como forma de
evidenciar um contexto de relações entre o mundo ocidental/não-
ocidental passa, para este autor, pela clarificação de três dos seus
elementos constitutivos:
uma imaginação teórica ou interpretações históricas que
enfatizam o papel civilizacional de comando do ocidente
no período moderno (a cultura ocidental como a única
cultura histórica e universal e como berço de uma teoria
democrática);

um conjunto tido como essencial de características possuídas


‘unicamente’ pelo ocidente perspectivadas como parte de um
modelo geral e independente que irradia do universo cultural
euro-americano e cuja lógica e dinamismo explicam o seu
desenvolvimento e um ethos de superioridade científica e
tecnológica (a ideia de uma lógica independente do progresso
ocidental e o estatuto soberano do pensamento europeu e da
teoria da modernização);

o desenvolvimento do ocidente no enquadramento das


filosofias e políticas euro-americanas encarado como patamar

46
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

universal de progresso para a humanidade no seu conjunto,


de acordo com modos específicos de produção e de estádios
de crescimento económico (o ocidente como espelho de
desenvolvimento).88
No quadro de essencialização positiva e negativa para cada um
dos lados do binómio ocidente/oriente explorado por Slater, as
complexidades e pluralidades de cada um destes universos são
reduzidas a um vector de significado determinante que atribui ao
ocidente papel histórico e geopolítico superior (como motor de
progresso), civilização e desenvolvimento. Associadas à propagação
do espaço (material, conceptual e simbólico) em que a conquista
colonial foi exercida, as representações unidimensionais do Outro
não-ocidental têm subjacente a legitimação do poder colonial
através de modelos, discursos e linguagem. Perspectivados como
instrumentos de uma “missão universalizante”89que implicava
a ‘conversão’ do Outro não-ocidental, modelos, discursos e
linguagem foram sendo esgrimidos como modo de cimentar uma
nova autoridade institucional. Tratava-se, portanto, de construir
todo um imaginário cultural passível de albergar o poder colonial
e de reproduzir uma complexa rede de relações, representações e
posicionalidade que marcaram o moderno encontro entre os actores
ocidentais e não-ocidentais. Dentro desse contexto, em que o Estado
moderno e uma teia de relações sociais se viram profundamente
implicados no acto de conquista do Outro não-ocidental, emerge o
sujeito da modernidade.
Nutrido por um quadro muito particular de definição de
subjectividade, razão e cultura, quadro em que busca a sua prioridade
histórica e ontológica, o sujeito moderno e soberano encontra via
de determinação suprema no cogito cartesiano (ergo sum – penso
logo existo!).90 Como salienta Enrique Dussel, a relação entre o
poder geo-político e a territorialização do pensamento encontra-se
implicada num contexto de reflexão sobre subjectividade, em que
a ideia de conquista nutriu a constituição da Europa como centro
da história mundial (em 1492 e com a invasão do Novo Mundo),
suplantando assim outros sistemas sociais regionais. A conquista
do território presumia uma territorialização baseada na separação

47
Geografias pós-coloniais

entre o Eu e o Outro, uma separação em que a constituição da


subjectividade, razão e cogito surgiam como formas de justificar
“uma contínua dialéctica de impacto e contra-impacto entre a
Europa moderna e a sua periferia”.91 Neste sentido, a colonização
reconfigurou a ideia de um mundo de identidades separadas, de
culturas e economias isoladas e auto-suficientes, promovendo uma
variedade de paradigmas que incluíssem as diferentes formas de inter-
relação entre os vários actores sociais.92 A construção de narrativas
que colocassem a Europa no centro de uma modernidade capitalista
donde se ditou a rede de relações com uma série de “‘periferias’
globais dispersas”,93 associou-se portanto à construção de uma rede
de “sistemas coloniais de significados” que articulou os silêncios
dos povos nativos e subjugados e dos ‘outros’ sujeitos e identidades
que se encontravam do lado de lá das fronteiras civilizacionais.94
Acompanhando a construção do conhecimento ocidental moderno
e o mapeamento do globo, uma “genealogia própria e uma história
ideal”95 legitimavam a afirmação do Estado-nação e das identidades
nacionais, das geografias do imperialismo e de um imaginário
colonial.
A construção de imagens de um passado do qual se excluíram
sistematicamente elementos não desejados e os vestígios de
narrativas que competiam com as modernas metanarrativas, a
construção de um “passado privilegiado e genealogicamente útil”,96
apresenta importantes consequências políticas e sociais para o
momento presente. Implicados com a indagação dos legados de
um passado colonial nas atitudes culturais do presente, diversos
autores perscrutam a rede de histórias interdependentes que emana
do ciclo imperial moderno. Neste sentido, o papel central atribuído
às questões de formação do sujeito associa-se na crítica dos Estudos
Pós-coloniais ao lugar da cultura. A este propósito, Anthony King97
salienta a importância da cultura para a compreensão do mundo
contemporâneo, identificando duas questões associadas. Primeiro, o
autor apela para a necessidade de compreensão das representações
históricas e teóricas de imperialismo, perspectivadas como cultural
e historicamente construídas. Isto, alertando para a necessidade
de perceber a sua relação com a condição global contemporânea.

48
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

Enfatizando o papel activo da cultura98 na afirmação de tais


representações, King explora a natureza deste poderoso e particular
constructo que acompanhou a expansão imperial. Perspectivada como
“uma lente ou contentor através da qual outros indivíduos se tornaram
conhecidos e reportados para o ocidente”,99 a qual que emergiu como
alternativa liberal às classificações racistas de diversidade humana,
o autor mostra como esta funciona como meio para compreensão
de diferentes e dispersos modos de vida num contexto de um alto
colonialismo.100 Segundo, King salienta que nas interpretações das
relações sociais, políticas e espaciais que presidiram o encontro
colonial, diferentes representações deram maior ou menor atenção a
fenómenos culturais específicos, a fenómenos estéticos, a fenómenos
associados às dimensões da linguagem ou religião, ou ainda a outras
práticas simbólicas e representacionais.101 O interesse nas culturas
do imperialismo e o repensar do imperialismo (europeu e euro-
americano) prende-se, portanto, com a necessidade de indagar as
representações, os imaginários, as lógicas e as práticas coloniais,
por forma a colmatar uma “amnésia histórica”102 que trespassa, entre
outros domínios, a disciplina de geografia.

A problemática da moderna geografia imperial


Implicada num processo de colonização cultural que encontra
nas formas dominantes de conhecimento o meio de difusão por
excelência, a geografia moderna desenvolveu-se dentro de um
emaranhado de ideias e poderosas instituições interessadas na
propagação de uma específica sensibilidade geográfica e de uma
imaginação geográfica monolítica. Através dela afirmou-se uma teoria
de cognição do mundo donde imanou um sistema de classificação
para um espaço homogéneo passível de ser conhecido através de
uma medida de indexação universal. Construído através de um
processo de “difusionismo eurocêntrico”,103 um sistema geográfico
total afirmou-se com base num fluxo de processos culturais que
encontrou força para sua propagação no mito do crescimento
autónomo da Europa. Alicerçando o pensamento moderno ocidental
no que respeita às questões relacionais do espaço, este sistema veio

49
Geografias pós-coloniais

a determinar as relações entre sujeitos e lugares, entre identidade e


território. Tais relações foram sendo refractadas por uma ordem do
conhecimento, como pelas estruturas estatais e culturas nacionais,
por forma a produzir narrativas sócio-culturais geograficamente
informadas. Associada à negação da equidade cultural e cognitiva
dos diferentes grupos e indivíduos, a produção de conhecimento pelo
mundo ocidental constituiu elemento central da pulsão de domínio
ocidental.104 Considerada como uma das mais profundas omissões na
percepção pública assim como no estudo académico, a compreensão
do mundo moderno implica uma revisão das narrativas geográficas
‘coerentes’ e dos sistemas de signos que reflectem relações directas
entre sujeitos, lugares e identidades. À necessidade de revisão dos
sistemas de signos que incorporam a estrutura convencional das
narrativas geográficas, associa-se a tentativa de compreensão de
como discursos, textos e imagens modelam as nossas percepções
conscientes e inconscientes dos valores culturais. Perspectivada
paralelamente como estrutura epistémica e como sistema de
classificação, a geografia moderna funcionou como um modo de
localização e como arena de inscrição de histórias topográficas
colectivas.105 As suas práticas significantes modelaram relações
económicas e sociais, e estruturaram a constituição e a fragmentação
das identidades pois o imaginário popular e académico é tecido com
base nas suas variadas cartografias e nas diferentes visões do mundo
que veiculam. Neste sentido, analisar a relação entre o poder colonial
e as geografias do período imperial, aquilo que David Livingstone106
designa pela “tradição geográfica”, reveste-se de importância extrema
para a compreensão de um presente pós-colonial. Especializando-
se ao serviço dos interesses do imperialismo, esta tradição de
conhecimento e prática foi orientada por preocupações de aquisição
territorial, exploração económica e militarismo, acompanhando
a emergência de uma nova fase de imperialismo capitalista. Não
obstante, tal como mostra Felix Driver,107 esta empírica tradição
geográfica era mais do que uma ferramenta do capitalismo pois
envolvia a prática do domínio racial, de classes e de género. Logo,
a atenção relativamente às culturas do imperialismo deve centrar-
se para além das suas manifestações económicas. Evidenciada nos

50
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

mais diversos textos, uma amnésia histórica que suprime visões


alternativas do mundo, encontra-se manifesta “nas geografias
especulativas dos exploradores, na construção de mapas, nas
teorias científicas de clima e raça, e nas espacialidades pragmáticas
de governo e assentamento colonial”.108 O trabalho da geografia
académica no que respeita à difusão dos discursos imperialistas em
conexão com os mais diversos textos e discursos produzidos por
agentes específicos do conhecimento geográfico,109 tem merecido
atenção crítica por forma a elucidar sobre o modo como “o império
foi investido de significado geográfico através de diferentes médiuns
culturais, e ainda sobre o modo como o imperialismo se ligou ao
fabrico de insidiosos imaginários locais como ‘o Oriente’, a ‘África
negra’ e os ‘trópicos’”.110 Aquilo que se vai tornando cada vez mais
evidente, é de facto uma história particularmente espacializada da
produção do conhecimento, inflectida por questões de poder político
e social dentro da própria academia. Isto leva à necessidade de
explorar questões relativas a toda uma geografia do conhecimento
e às condições espaciais, políticas e sociais envolvidas na produção
e no consumo dos mais diversos textos imanados pela academia.
Efectivamente, a produção do conhecimento geográfico no
momento de institucionalização da geografia dependeu da natureza
das suas audiências (essencialmente metropolitanas) e da crença
do sujeito europeu como fonte privilegiada de significado.111 Aos
diversos conhecimentos locais, alude Clive Barnett,112 não se
atribuía qualquer valor epistemológico, pelo que os significados e
conhecimentos geográficos dos indígenas não detinham qualquer
validade relativamente às definições europeias de conhecimento
científico. Num quadro em que “(o) conhecimento dos sujeitos não-
europeus é representado (...) como a confusão e ruído contra o qual
a ciência europeia tomou forma e assegurou autoridade”,113 a ciência
e a razão tornaram-se vectores cúmplices de inscrição cultural,
configurando-se através deles a violência epistémica da geografia do
período imperial.114 Os legados desta geografia imperial oitocentista
e a inscrição das espacialidades do conhecimento moderno, são
manifestos nos diversos textos oficiais que tomaram conta dos
currículos escolares e que operaram através dos sistemas formais

51
Geografias pós-coloniais

de ensino como forma de orquestrar relações entre significado e


poder. De facto, se uma rede de académicos, políticos e filantropos,
entre outros actores sociais, estruturou uma grelha de autoridade
para a promoção da exploração e disseminação do conhecimento
geográfico,115 esta veio a constituir uma das mais poderosas fontes
de alimentação das geografias imaginativas concernentes ao Outro
não-ocidental. Moldada nos espaços públicos de conhecimento
como os museus e salas de exposição, assim como através dos mais
diversos relatos de viagem tornados populares e sensacionalizados
pelas ‘autoridades geográficas’ ocidentais, esta grelha através
da qual se veicularam as representações do Outro decorreu de
uma politização do trabalho de exploração e do império da qual
participou activamente a própria tradição geográfica.116 Reciclada
até ao momento presente através das mais diversas formas culturais
e por complexos sistemas de signos e estruturas significantes, a
construção geográfica do Outro foi alicerçada sobre uma retórica
científica e sobre o apelo da aventura e do exótico.117 Informando
uma espécie de espacialidade espectral que habita os imaginários
geográficos contemporâneos, as imagens de um passado imperial
veiculam subliminarmente uma ordem histórica, de civilização e
progresso, a qual assenta sobre a apropriação das representações do
Outro. Por isso, debruçados sobre a teorização crítica de um corpo
de conhecimentos geográficos que é uma ordem de conhecimento,
diversos autores indagam as questões de posicionalidade sobre
as quais assenta a geografia moderna, perseguindo o refutar das
estruturas de poder que animam as relações entre sujeitos e lugares.
Embora o empobrecimento material trazido pelo imperialismo
europeu e americano àquilo que convencionou designar-se por
Terceiro-mundo, esteja no centro das agendas político-intelectuais
dos geógrafos e geógrafas debruçados sobre a problemática da
moderna cultura imperial, estes tentam colmatar a grave omissão
que percorre a produção académica, revendo o mapeamento
teórico e cartográfico do território que subjaz a ficção ocidental da
escrita da história e os discursos filosóficos do período moderno.118
Interceptando as origens e as implicações intelectuais e materiais das
geografias imperiais, um corpo de estudos tem vindo a organizar-se

52
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

tendo como preocupação a geografia não apenas como disciplina mas


como sistema de signos e como ordem de conhecimento estabelecida
nos centros de poder metropolitano. Se esse corpo de estudos
encontra representação significativa dentro de uma área científica ou
subdisciplina convencionalmente designada por Geografia Cultural,
ele constitui-se, antes de mais, pelos contributos de autores das
mais diversas áreas implicados com a análise das relações entre o
espaço e as culturas do imperialismo. Tais contributos desenvolvem-
se tendo por base uma ênfase na imaginação geográfica pelo modo
como esta articula as práticas sociais, produções culturais e geografia
humana.119 Persegue-se, pois, a construção de uma “arqueologia dos
conhecimentos geográficos”120 que tenha em conta o modo como as
representações geográficas foram sendo mobilizadas para a produção
da opressão material.121 Neste quadro,122 a exploração de questões
de epistemologia crítica e subjectividade prende-se com a tentativa
de deslocar as problemáticas de um centro para as margens, dando-
se voz às identidades em constante processo de formação123
A atenção que tem merecido a geografia cultural do conhecimento124
geográfico encontra-se associada à tentativa de desvelar as teias
de produção da teoria, e à tentativa de perceber como a produção
do conhecimento esteve e ainda está implicada numa hegemonia
ocidental profundamente nutrida pela ideologia imperial. E isto é
manifesto, por exemplo, nas divisões e clivagens sentidas dentro da
própria academia e no modo de difusão dos diferentes conhecimentos
geográficos. Como salienta Jennifer Robinson,125 a grande distância
que separa diferentes geógrafos que trabalham em diferentes
regiões do mundo parece não se compadecer com “a circulação
de um domínio hegemónico e aparentemente não localizado da
teoria geográfica, que é de facto profundamente ditado pela sua
produção dominante na ‘terra-central’ anglo-americana do ensino
superior”. Neste sentido, os estudos geográficos respondem cada
vez mais ao desafio de elucidar posicionamentos e de documentar
o carácter situado do conhecimento, buscando os seus autores
formas alternativas de conexão transnacional como modo de romper
com a associação muito próxima entre conhecimento geográfico e
formações geopolíticas hegemónicas.126

53
Geografias pós-coloniais

Tentando dar visibilidade à diferenças e às práticas


transculturais, os desenvolvimentos do pós-colonialismo pela
Geografia contemporânea convergem para os diversos aspectos
do transnacionalismo e da globalização explorando as formações
discursivas e as manifestações materiais do imperialismo, tanto
nas potências colonizadoras como nas colonizadas. O estudo das
texturas materiais do imaginário geográfico imperial é acompanhado
do estudo das representações e paisagens simbólicas de indivíduos
e grupos e respectiva expressão nos textos coloniais tentando
assim ampliar-se as diversas e complexas vozes da diferença e
da alteridade. O impacto do pós-colonialismo nas sensibilidades
interpretativas de geógrafas e geógrafos, avalia-se pela quantidade
de trabalhos produzidos essencialmente na última década e que vão
desde o interesse na genealogia imperial da disciplina de geografia
às espacialidades do colonialismo e império, perscrutando-se
ainda as extensões do poder colonial num presente pós-colonial.
Procurando “transcender os legados culturais e ideológicos do
imperialismo”,127 os estudos geográficos orientados para a crítica
dos textos e culturas coloniais examinam o papel do espaço numa
variedade de discursos modernos (cultural, político, estético) tendo
em conta o envolvimento com as práticas materiais, os espaços
factuais e as políticas da vida quotidiana.128 Acusando a inadequação
dos discursos e das estruturas epistémicas postas à disposição pela
cultura moderna, diversos autores indagam a condição do “depois
do império”,129 empenhados na construção de um sujeito de trabalho
novo e plural. O impacto do pós-estruturalismo e das teorias pós-
modernas promoveu uma mudança no discurso moralizador de uma
‘geografia da localização’, activando toda uma tarefa de revisão dos
princípios éticos que a alicerçavam.130 Desafiando as formas estáveis
de conhecimento geográfico e explorando as conexões entre a
deslocação das subjectividades e a disrupção das narrativas colectivas
e das linguagens de significação geográfica, estas abordagens tentam
ainda contrariar um movimento de reorientação das teorias e práticas
em torno de um nova oposição binária: colonial/pós-colonial.131 A
ênfase em epistemologias que afirmem a diferença mais do que uma
verdade universal, encontra-se assim associada a uma substituição

54
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

“do ‘outro’ e de ‘outros’ lugares como objecto de estudo dos


investigadores ocidentais”132 por geografias que permitam que “as
pessoas e os lugares se representem a si mesmos nos seus próprios
termos”.133 Isto porque, se a compreensão do momento presente
acusa a perda dos princípios navegacionais que serviam de âncora
para a conceptualização de questões de formação identitária ou de
pertença,134 não seria sustentável continuar a insistir num quadro
em que se verificava forte negligência relativamente às “políticas e
realidades culturais do pós-colonialismo e colonialismo (reflectida)
nas conceptualizações de ‘globalização’ ou de ‘sistema mundial’, ou
ainda nas teorias de ‘desenvolvimento’ das últimas quatro décadas”.135
Às lógicas culturais contraditórias que convergem para a produção
de diferentes textos de pendor eurocêntrico que ainda hoje turvam o
nosso entendimento do fenómeno colonial, corresponde um espaço
histórico que urge rever e suplantar. O purgar das identidades de
“essencialismos estratégicos”136 que redimem no presente os mais
diversos textos e passados coloniais e que fazem com que muitas
vezes este mesmo presente se defina por ou contra um texto e um
passado, associa-se assim à necessidade de reflexão em torno de um
espaço híbrido emergente como deslocação do colonialismo e como
reflexo de um transnacionalismo contemporâneo.137 Nesta senda,
a insuficiência dos modelos culturais e identitários confinados
ao dualismo colonizador/colonizado é acusada por estudos que
enfatizam as complexas intersecções de múltiplos eixos de diferença
e respectivas políticas identitárias. Por isso, autores como Arjun
Appadurai138 reagem contra as teorias da globalização que têm
subjacente uma “geografia de traço ou característica” alicerçada
sobre a determinação de forças globais. Ao sugerir antes uma
“geografia de processo” implicada com a análise das formas civis
móveis e com os vários tipos de acção, interacção e movimento,
Appadurai desloca a ênfase para os fluxos e processos transculturais
e transnacionais através dos quais se desafia o carácter circunscrito
de ideias como a nação.
Como conceito que remete para “condições particulares no
mundo contemporâneo, especialmente (embora não unicamente) em
relação a assuntos como identidade, significado e consciência e, não

55
Geografias pós-coloniais

menos importante, as formas materiais e espaços em que estes são


corporizados”,139 o pós-colonialismo intercepta todo um conjunto de
“espaços caleidoscópicos de diáspora produzidos sob as mobilidades
associadas ao colonialismo e sujeitas à acção disciplinadora do
nacionalismo e decorrentes preocupações com a territorialidade e
inviolabilidade do corpo social dentro das fronteiras nacionais”.140
Como espaços híbridos, as nações pós-coloniais reconfiguram-se sob
a acção da memória de um passado imperial, uma memória gravada
na própria paisagem através dos mais diversos signos. Nelas opera-
se um complexo processo de relocalização de identidades, pelo que
o mundo pós-colonial é caracterizado pelos processos que irradiam
de um sistema de “identificação diaspórica que interrompe qualquer
tentativa de ‘retorno’ a histórias originais etnicamente fechadas e
centradas”.141 Os espaços híbridos que emergem das nações pós-
coloniais, evidenciam inúmeras tensões decorrentes da tentativa de
criar comunidades nacionais circunscritas com uma cultura comum
e um sentido de lugar, isto como parte da experiência de colonização.
Estes são, como havíamos já anteriormente mencionado, “zonas
de contacto por excelência”,142 espaços gerados pelo frémito da
mobilidade entre fronteiras e que evocam “a co-presença espacial e
temporal de sujeitos previamente separados por disjunções históricas
e geográficas, cujas trajectórias agora interceptam.143 Para Brenda
Yeoh144 a construção da nação pós-colonial, passa precisamente
“pela tentativa de territorialização e naturalização dos encontros
diaspóricos produzidos pelo colonialismo e, através deles, consolidar
formações sociais estáveis”. Isto tendo em conta a realidade
emergente dos espaços híbridos e das identidades diaspóricas em
relação com as mobilidades produzidas pelo colonialismo.
Como uma “interminável jornada através de diferentes terras”,145
a ideia de diáspora remete para o carácter ambivalente e transeunte
dos movimentos de indivíduos inseridos em redes transnacionais
que circulam sobre o planeta formando as mais variadas trajectórias.
Desses movimentos emergem os “espaços da diferença”,146 os
quais desafiam as concepções e práticas tradicionais de um espaço
homogéneo e sedentário onde se desenvolvem cultura e identidade
como construções fixas, fechadas e imutáveis. Estes espaços

56
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

reclamam uma re-escrita geográfica, configurando eles mesmos os


pontos de encaixe através dos quais emergem outras geografias.
Brenda Yeoh chama à atenção para o carácter ambivalente das
políticas que nutrem esses espaços, os espaços diaspóricos ‘do
outro’ que emergem dentro e nas fronteiras do corpo social da
nação. Elaborando a proposta de Van der Veer147 que explora a
interdependência estrutural entre a ideia de território discreto da
nação e o fenómeno transgressivo de migração, Yeoh mostra como
o Eu (disciplinado) e o Outro (transgressor) nutrem a própria base
de controlo territorial por que passa o nacionalismo, funcionando a
“diáspora dos outros” como modo de estabelecer o enraizamento da
nação. Aquilo que emana de uma série de movimentos que marcam
as dinâmicas do mundo pós-colonial é a profunda inter-penetração
das lógicas das migrações coloniais e pós-coloniais,148 apesar de uma
acusada distinção na “cultura de emigração”, argumenta Yeoh. Isto
mostra que as conexões entre os encontros colonial e pós-colonial
são profundas e que os anteriores quadros de referência estão
longe de ser suplantados na conduta da vida social contemporânea,
na qual persistem inúmeras marcas e hierarquias de um passado
imperial. Por isso, autores como Leela Gandy reclamam a liberdade
de controlo dos meios de auto-representação numa situação pós-
colonial marcada “pelo desejo de esquecer o passado e o ocidente
(...) em que o valor do pós-colonialismo reside, em parte, na sua
capacidade de elaborar memórias esquecidas”.149 O fabrico de um
verdadeiro cosmopolitanismo social multicultural passa, portanto,
pela revisão das políticas de representação, pelo repensar das teorias
e das políticas espaciais e pelo reconhecimento do carácter situado
dos discursos tendo em conta as especificidades dos sujeitos pós-
coloniais.

Os espaços das margens e de abertura radical

A afirmação de abordagens críticas às geografias coloniais e


dos impérios, bem como a afirmação de ‘outros’ posicionamentos
político-intelectuais capazes de localizar os múltiplos e diferentes
sujeitos de enunciação, integram um movimento de revisão daquilo

57
Geografias pós-coloniais

que Derek Gregory150 designa por “geografias colonizadoras”, bem


como a tarefa de recolocação da memória de um passado imperial.
Através das geografias pós-coloniais, contestam-se os discursos
epistémicos alicerçados sobre teorias de cognição em que um sujeito
conhecedor e um objecto conhecido são unificados e tornados
internamente coerentes.151 Ao assentar sobre este tipo de teorias
para verificação e legitimação, o conhecimento moderno define uma
arena de condições formais de subjectividade que encontra no sistema
objectivo de conhecimento o foco da autoridade interpretativa. O
detonar dessa arena de significação implica, para Robin Schott,152
o (re)situar das teorias de cognição na experiência vivenciada,
o que acarreta o exame da experiência de “sujeitos concretos e
qualitativos” mais do que a procura de condições transcendentais
de subjectividade. A mudança epistemológica decorrente,153
argumenta Schott, passa pela validação das percepções, sentimentos
e respostas do sujeito entendidas como cognitivamente relevantes,
nunca ignorando o contexto sócio-cultural em que este se inscreve.
Adquirida pela experiência inter-subjectiva, a modelação dessas
percepções e sentimentos depende da capacidade de as transformar
cognitivamente, de onde se processa a distribuição de poder entre
os indivíduos.154 O (re)situar da cognição através das redes de inter-
subjectividade configura-se para autores como Schott e Rogoff como
um modo específico de “articular histórias colectivas emergentes e
alternativas (...) servindo ainda para reescrever tanto a base empírica
como as relações de cognição”.155 A revisão das posicionalidades
que informam as modernas teorias de cognição,156 associa-se
assim à criação de novas relações sintagmáticas entre sujeitos,
culturas e modos de organização social. Evidenciando as fissuras
num sistema dominante de espacialidades fortemente nutrido pela
moderna cultura geográfica, a afirmação da especificidade do
sujeito corporizado configura a arena de reclamação do carácter
profundamente racializado do espaço. Decorrendo de complexas
políticas da diferença que tomam lugar num presente pós-colonial, o
trabalho de recolocação de subjectividades a que também a Geografia
deitou mão, enuncia a urgência de autorização das diferentes vozes
no que respeita à codificação das inúmeras dimensões espaciais e à

58
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

produção de ‘outras’ espacialidades. Isto tendo em conta a proposta


derrideana de mobilização de um conceito de différance com efeitos
duplos, tanto nas estruturas de significado e interpretação como nos
enquadramentos epistémicos e institucionais que os organizam. A
mobilização de tal conceito que se encontra em directa associação
com a constituição de um novo objecto de conhecimento e com a
enunciação de múltiplos sujeitos de conhecimento, passa ainda pela
aceitação da ideia de um espaço diferencial, um espaço multiforme
e diferencialmente corporizado, produzido por múltiplos sujeitos
implicados com as políticas de tradução. Um espaço cujas geografias
se desmultiplicam numa miríade de sistemas de significação, por
serem alicerçadas sobre epistemologias do posicionamento e da
situação parcial do sujeito na relação com o corpo em que habita.
Como salienta Barbara Hooper,157 “(o) espaço do corpo humano é
talvez a site mais crítica para observar a produção e reprodução de
poder (...) ela é um espaço físico concreto de carne e osso, de elementos
químicos e eléctricos; este é um espaço altamente mediado, um
espaço transformado por interpretações e representações culturais;
é um espaço vivenciado, um espaço volátil de desejos e motivações
conscientes e inconscientes – um corpo/eu, um sujeito, uma
identidade; ele é, em suma, um espaço social, uma complexidade
que envolve os trabalhos de poder e conhecimento e os trabalhos
das imprevisíveis vivenciais corporais”. Evidenciando os actos de
diferenciação que subjazem a construção das categorias formais de
corpo, Hooper salienta a importância de se ter em conta as políticas
de diferença que concorrem para a separação e circunscrição do
corpo individual e social, daquilo que designa por “corpo-cidadão”,
perspectivado como um conjunto de práticas que envolvem a
experiência vivenciada de espaços materiais e simbólicos. Isto tendo
em conta a ideia de espaço social (como prática activa), o qual não
pode continuar a ser imaginado simplesmente em termos de território
material disposto categoricamente por (e para) um sujeito soberano
da Razão.
Como arena de enunciação de múltiplas e competitivas
subjectividades (corporizadas), o espaço social incorpora as
dimensões do Terceiro-espaço, um espaço de abertura radical

59
Geografias pós-coloniais

onde se articulam as possibilidades de resistência. As capacidades


produtivas deste Terceiro-espaço de proveniência colonial ou pós-
colonial, argumenta Bhabha,158 possibilitam a entrada nos “estranhos
territórios do entre”, territórios da translação e negociação que
emancipam os significados políticos da cultura e que detonam as
políticas da polaridade. Neste quadro, as políticas da diferença
que percorrem a teoria pós-colonial, associam-se a um movimento
empenhado já não com “a descolonização dos territórios ocupados
pelos colonizadores mas com a descolonização das paisagens
coloniais do corpo e da alma”.159 Isto remete para todo um trabalho
de recolocação do sujeito que implica ter em conta o nosso próprio
estatuto de “actores situados envolvidos no trabalho político da
representação e na produção de conhecimento”.160 Mas remete
também para a necessidade de evitar a dissolução do sujeito num
conjunto de “efeitos de sujeito”,161 numa situação pós-colonial em
que as fronteiras de exclusão social e espacial são permanentemente
desafiadas e em que as posições de sujeito se encontram em
renegociação, rompidas as coordenadas da psicodinâmica
colonial. Desde aqui, revê-se toda uma retórica do conhecimento
não corporizado que estruturou as modernas construções do Eu e
do Outro, e detona-se uma espacialidade espectral que habita os
imaginários geográficos contemporâneos como reduto activo da
cultural imperial. Mas desde este ponto, que tentamos tornar claro
no decurso do texto, revêem-se ainda as manifestações materiais
de práticas espaciais comprometidas com ambíguas dinâmicas de
inclusão e exclusão, legitimadas estas por ideologias hegemónicas
implicadas no projecto da modernidade. Um projecto que nega o
papel activo de ‘outros’ grupos e indivíduos na produção do espaço,
ao ser legitimado por retóricas agressivas do outro sub-alterno em que
a distinção de raça, classe ou género fazem a diferença. É com vista
à superação deste quadro de identidades privilegiadas e subalternas
que se organizam os discursos críticos pós-coloniais. Dentro destes
discursos, o retorno, essencialmente a partir da década de 1980, a
um corpo teórico disponibilizado por Franz Fanon, associou-se a
uma tentativa de compreensão do Outro colonial, a um esforço de
subversão das “estruturas de construção da alteridade na linguagem

60
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

e representação, imagem, som e discurso, e logo, de voltar os


mecanismos fixos de significação racial contra eles próprios”.162
Como “teórico global da alteridade”,163 Fanon debruçou-se sobre as
psico-dinâmicas da administração colonial rejeitando o pressuposto
de autenticidade e estabilidade das representações e das categorias
convencionais que governavam a vida colonial. Neste sentido, Fanon
representa um paradigma dentro dos estudos que antecipam mesmo
a publicação de Orientalismo, sendo o seu trabalho decisivo para
a criação de espaços marginais de abertura radical testemunhos do
fabrico de “novas subjectividades, novas posições de enunciação e
de identificação”164 passíveis de configurar um Outro espaço. Desde
este ponto, as abordagens pós-coloniais voltam-se para o trabalho
de Fanon como forma de endereçar o trabalho das margens, assim
como a produção de novas subjectividades radicais que articulem
a ideia de diferença cultural. Tais subjectividades testemunham
o trabalho de posições de sujeito moveis e instáveis, passíveis de
demolir anteriores práticas de domínio, subjugação e exclusão que
assentavam sobre a cristalização de identidades fixas.165 Implicadas
na contestação das marcas de uma ideologia imperial que continuam
a interferir na definição do sujeito pós-colonial, tais abordagens
indagam as deslocalizações da experiência identitária que operaram
sob a experiência vivenciada do colonialismo, nomeadamente pelo
efeito de uma grelha racista de poder e significado. Neste quadro,
a (des)essencialização e a (des)naturalização operada por Fanon
ao “espelho colonial corporizado”166 cujo reflexo devolvia aos
povos colonizados a sua própria imagem como outros subalternos,
representou um modo incisivo de contestar as co-ordenadas de
opressão e repressão que articulavam medo, fantasia e desejo, assim
como identificação e abjecção, na mesma grelha.
A tentativa de abertura de um enquadramento convencional das
representações culturais de raça e etnia associa-se, nesta senda, a
uma re-exploração das ligações entre o material e metafórico para
possibilitar a afirmação de Outros espaços, espaços radicalmente
abertos, simultaneamente reais e imaginários, que emergem das
práticas espaciais de diferentes grupos sociais. Localizados muito
para além das fronteiras da imaginação geográfica convencional, tais

61
Geografias pós-coloniais

espaços abrem o domínio vivenciado dos “espaços das margens”,


perspectivados por bell hooks167 como espaços de abertura radical.
A ênfase na escolha das margens ou dos espaços de fronteira
como espaços de abertura radical, associa-se à definição de uma
perspectiva alternativa onde entroncam as políticas de localização
daqueles que se encontram implicados “na formação de uma prática
cultural contra-hegemónica passível de identificar os espaços onde
começamos o processo de revisão”168 das fronteiras estabelecidas
pelas categorias raciais de domínio. Como espaço de abertura
radical, esta ideia de margem coloca sérios desafios para o acto de
posicionamento do sujeito. Por isso, hooks defende que é necessária
a criação de comunidades de resistência que viabilizem a colocação
dos sujeitos nesse espaço de abertura radical. Esta outra forma de
habitar uma marginalidade que não é imposta exteriormente ao
sujeito por estruturas opressivas mas que é escolhida como arena de
resistência, é continuamente formada numa “cultura segregada de
oposição que é resposta crítica à dominação”.169 A transformação do
sujeito individual e colectivo que sustenta a entrada nesse “espaço
criativo radical que afirma e sustém a subjectividade”170 potencia
a criação de novas posicionalidades através das quais se articulam
outros sentidos para o mundo. Denominada por hooks, como
“localização central para a produção do discurso contra-hegemónico
que não se encontra apenas nas palavras mas nos hábitos de ser e
nos modos como vivemos”,171 a marginalidade como capacidade de
resistência configura o espaço das sensibilidades partilhadas e da
intervenção, um espaço inclusivo em que o sujeito descentrado da
cultura pós-moderna configura um desafio crucial para a criação de
esferas alternativas de conexão e significado.

Notas
D. Gregory (2000: 612). 2 A King (2004). 3 A. King (2004: 383)
1

4
Benard Cohn foi o primeiro a aplicar a perspectiva antropológica à
história do colonialismo e suas formas de conhecimento, desenvolvendo
na década de 1950 investigação pioneira debruçada sobre as questões de
representação nas sociedades coloniais. 5 A. King (2004). 6 A. King
(2004: 384). 7 A. King (2004: 386). 8 D. Gregory (2000: 613). 9 D.

62
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

Gregory (2000: 613). 10 H. Bhabha (1994). 11 Mills (1996). 12 E. Soja


(1989). 13 J. Jacobs (2002: 192). 14 J. J. Jackson-Jacobs (1996). 15 E.
Said (1978). 16 Young (2001: 33). 17 E. Said, 1978: 27). 18 E. Said,
1978: 27). 19 D. Clayton (2004: 356). 20 M. Crang (1998: 66). 21 M.
Crang (1998: 66). 22 M. Crang (1998: 66). 23 M. Crang (1998). 24 M.
Crang (1998). 25 M. Crang (1998: 68). 26 Bonnet (2000: 357-8). 27 J.
Jacobs (2002). 28 E. Said (1995). 29 E. Said (1993). 30 J. Jacobs (2002:
194). 31 S. Pile (2000). 32 S. Pile (2000). 33 J .Jacobs (2002: 193). 34 J.
Jacobs (2002). 35 E. Said (1993: 271). 36 J. Jacobs (2002: 194). 37 E. Said
(1995: 331-332). 38 E. Said (1978). 39 D. Gregory (2000). 40 A relação
entre esta grelha de visualização e os projectos europeus de exploração
teve como resultado a “naturalização” de um conjunto de representações
culturais do Eu e do Outro Ocidental. Estas tornaram-se popularizadas
através de exposições públicas, ilustrações e relatos de viagem. Neste
sentido, tanto as imagens em suporte material como a literatura de viagem
constituem um das fontes vitais de produção discursiva de geografias
imaginárias. Tornando-se profundamente sedimentadas ao longo do tempo,
as geografias imaginativas relativas às diferentes regiões mapeadas pelo
autor ocidental asseguravam a ideia de uma natureza essencial para cada
uma delas. Alicerçadas sobre a narrativização do espaço e a esteticização
da paisagem, estas geografias imaginativas foram sendo desenvolvidas até
ao ponto em que mesmo durante o século XX inúmeros autores europeus
e norte-americanos continuam a elaborar uma densa textualização do lugar
por forma a assegurar um sentido de identidade e autenticidade entre povos
e territórios. 41 Harley (1988: 278). 42 J. Jacobs (2002: 194). 43 E. Said
(1978: 55). 44 D. Gregory (2000). 45 J. Jacobs (2002: 194). 46 D. Gregory
(2000: 373). 47 G. Rose (1993: 77). 48 Como mencionamos em nota
anterior, a definição das grandes regiões político-culturais constitui um dos
aspectos mais marcados de um processo de espacialização do poder pelo
mundo ocidental. Por isso, elas funcionam como zonas de reinscrição dos
estereótipos setecentistas e oitocentistas por excelência (ex. “os trópicos”
como zona de excessos ou de uma primeira natureza, ou “o Oriente” como
zona de erotismo e transgressão). 49 E. Said (1995: 137). 50 E. Said (1995:
138). 51 Gurnah (2002: 355). 52 Gurnah (2002: 355). 53 D. Sibley (1999).
54
J. Kristeva (1982). 55 D. Sibley (1999). 56 K. Figlio (1996: 75). 57 D.
Sibley (1999: 120). 58 Grosz (1992). 59 Grosz (1992). 60 D. Sibley (1999:
121). 61 D. Sibley (1999: 123). 62 D. Sibley (Sibley, 1999: 124). 63 D.
Sibley (1999: 124). 64 Para uma análise mais aprofundada desta questão
consultar A. F. Azevedo (2007). A Ideia de Paisagem. Porto: Figueirinhas.
65
Como médium que opera para a comunicação entre pessoas mas mais

63
Geografias pós-coloniais

radicalmente ainda para a comunicação entre o humano e o não-humano, a


paisagem opera simultaneamente um trabalho de expressão de significados
e de expressão de valores. 66 D. Sibley (1999: 125). 67 D. Sibley (1999:
125). 68 D. Sibley (1999: 126). 69 D. Sibley (1999: 126). 70 Ashcroft et al.
(1998: 42). 71 Arnold (2000). 72 A. King (2004). 73 Arnold (2000: 7). 74
Arnold (2000: 7). 75 A. King (2004). 76 A. King (2004). 77 S. Pile (2000).
78
A. King (2004: 384). 79 A. King (2004). 80 A. King (2004: 384). 81 S.
Pile (2000). 82 S. Pile (2000). 83 Sharp (1993: 17). 84 D. Gregory (1994).
85
Penrose e Jackson (1993). 86 J. Jacobs (1996). 87 D. Slater (2004). 88 D.
Slater (2004). 89 Mbembe (2001). 90 E. Dussel (1998). 91 D. Slater (2004:
422). 92 Hall (1996). 93 Hall (1996). 94 Yahya (1995). 95 Devan (1999).
96
E. Said (1994). 97 A. King (2004). 98 A cultura no sentido antropológico
e como ideal intelectual e estético. 99 Clifford (1988: 234). 100 Clifford
(1988: 234). 101 A. King (2004). 102 L. Gandy (1998). 103 Blaut (1993). 104
D. Clayton (2004). 105 I. Rogoff (2000). 106 D. N. Livingstone (1992). 107 F.
Driver (1992). 108 J. Jacobs (2004: 347). 109 Aludimos aqui, e uma vez mais,
aos textos e discurso produzidos por exploradores, cartógrafos, fotógrafos
profissionais, entre outros, bem como às operações de médiuns culturais
como as narrativas de viagem, os museus ou os currículos escolares. 110
D. Clayton (2004: 354). 111 C. Barnett (1998). 112 C. Barnett (1998). 113
C. Barnett (1998: 345). 114 D. Clayton (2004: 359). 115 D. Clayton (2004).
116
F. Driver (2000). 117 F. Driver (2000). A proliferação durante o século
XX de uma cultura da viagem e do turismo deve-se em grande medida às
operações de uma retórica sobre o Outro e de uma retórica da “descoberta”,
retóricas alicerçadas sobre políticas hegemónicas de representação. 118 E.
Said (1993). 119 D. Gregory (1998). 120 F. Driver (1992). 121 Crush (1994).
122
No quadro de um corpo de estudos transdisciplinar significativamente
nutrido por geógrafos. 123 Sobre a tentativa de exploração das geografias
do sujeito heterogéneo da diferença ver: A. F. Azevedo (2006), Geografia e
Cinema. Representações de Espaço, Lugar e Paisagem na Cinematografia
Portuguesa. Braga: Universidade do Minho. 124 José Ramiro Pimenta
desenvolve o conceito de geo-historiografia como tecnologia informada para
a compreensão das complexas instâncias de produção de conhecimento.
Para uma exploração mais aprofundada da geografia cultural do
conhecimento consultar a obra do geógrafo intitulada: O Lugar do Passado
em Martins Sarmento. Geo-historiografia do programa de investigação
arqueológica da ‘Cultura Castreja’ (1876-1899), Braga: Universidade do
Minho (2007). 125 J. Robinson (2004: 400). 126 J. Robinson (2004). 127 J.
Sidaway (2000: 594). 128 C. Barnett (1997). 129 A. King (2004). 130 O turno
cultural nas Humanidades e Ciências Sociais e o desenvolvimento de

64
‘Geografias pós-coloniais: contestação e renegociação
dos mundos culturais num presente pós-colonial’

estudos sobre a cultura científica produziram um significativo impacto na


Geografia pelo modo como permitem a compreensão da construção cultural
de natureza e paisagem, do Eu e do Outro, do sujeito e do objecto. 131
McClintock (1992). 132 J. Robinson (1999: 210). 133 A. King (2004). 134
Aludimos aqui ao eclodir de uma crise de representações que advém das
suspeitas relativamente às ‘estruturas’ concebidas pelo realismo na sua
tentativa de distanciação do essencialismo. Como temos vindo a mostrar
esta veio pôr em causa os constructos alicerçados sobre o realismo científico
e respectivas metodologias. 135 A. King (2004: 383). 136 B. Yeoh (2004).
137
A obra Hybrid Geographies (2002) de Sarah Whatmore representa um
dos esforços mais significativos operados recentemente no sentido de
devolver o carácter híbrido do espaço intersticial da naturezacultura. 138 A.
Appadurai (2000). 139 A. King (1999: 101). 140 B. Yeoh (2004: 370).
141
Hall (1996: 250). 142 G. Pratt (1992). 143 G. Pratt (1992: 7). 144 B. Yeoh
(2004: 374). 145 Lie (1995: 304). 146 Mackie (2002). 147 V. der Veer (1995).
148
No sentido de uma profunda conexão entre a produção da diáspora, o
colonialismo e o neo-colonialismo. 149 L. Gandy (1998: 17). 150 D. Gregory
(1998). 151 R. Schott (1988). A problemática das relações entre sujeito
(conhecedor) e objecto (conhecido) informa a presente dissertação pelo
modo como se encontra conectada com a problemática da paisagem. Não
obstante, é no capítulo quarto que se torna mais explícito o seu carácter
determinante para o âmbito deste estudo. 152 R. Schott (1988). 153 Associada
à aquisição da autoridade interpretativa com base no sujeito concreto mais
do que num sistema objectivo de conhecimento. 154 R. Schott (1988). 155
R. Schott e I. Rogoff (2000, 74). 156 Posicionalidades legitimadas por
padrões universais de acção humana e que articulam sistemas de significado
que traduzem as dinâmicas das relações de poder assim como das realidades
político-materiais que justificaram as relações entre colonização, exploração
e domínio do “outro subalterno”. 157 B. Hooper (199: 114). 158 H. Bhabha
(1994). 159 S. Pile (2000: 266). 160 Katz (1992: 496). 161 Ortner (1995). 162
Hall (1996: 19). 163 Gates (1991). 164 Hall (1996: 19). 165 S. Pile (2000).
166
C. Philo (2000). 167 b. hooks (1990). 168 b. hooks (1990: 15). 169 b. hooks
(1990: 153). 170 b. hooks (1990: 153). 171 b. hooks (1990: 152).

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69
Literaturas de Viagem e Cartografias de Sexualidade.
A Sotadic Zone de Richard Burton

R ichard Phillips

After much wandering, we are


almost tempted to believe
the bad doctrine that morality
is a matter of geography.
RICHARD BURTON
Lake Regions of Central Africa

A visão que os Europeus detinham da sexualidade sofreu uma


transformação profunda na segunda metade do século dezanove. Esta
visão foi activamente construída e modificada através de uma série de
práticas materiais e discursivas, incluindo os sistemas hegemónicos
do direito, medicina e religião que Michel Foucault examinou no
primeiro volume da sua História da Sexualidade, e também muitos
outros discursos, desde a arte à pornografia, da antropologia à
literatura de viagem.1 Este artigo, que incide a atenção no últimos
destes discursos, pretende mostrar como os autores de literatura de
viagem contribuíram para cartografar territórios imaginários nos
quais novas representações de sexualidade – homo e hetero – foram
construídas e também contestadas.
Poucos autores de livros de viagens demonstraram um tão grande
interesse em temas de sexo como Sir Francis Richard Burton
(1821-1890), e a nenhum coube um papel tão importante na tarefa
de cartografar e discutir a sexualidade.2 Autor de livros de viagens,
além de famoso geógrafo, que se identificava a si próprio, nas obras
impressas, como ‘Fellow’ e mais tarde ‘Golden Medal’ da Royal
Geographical Society, Burton ficaria igualmente reconhecido
como um pioneiro da sexologia. Nele, a viagem e a ‘tradução’, a
geografia e a sexologia, tudo estava intimamente relacionado.
Em particular, Burton cartografou uma ‘Sotadic Zone’, área em
Geografias pós-coloniais

que, segundo afirmou, a pederastia era comum. Neste contexto, o


de natureza mais explicitamente sexual na sua prática geográfica,
Burton pôde conceptualizar uma forma de sexualidade de homem-
-para-homem, que desafiava as construções hegemónicas de
sexualidade, organizadas ao redor do binário homossexualidade
e heterossexualidade. Gostaria de defender que Burton usou as
viagens, e especificamente a geografia da viagem, como um meio
de pôr em questão as construções contemporâneas da sexualidade, e
contestar a legislação sexual que delas partia. Especificamente, pôs
em questão a construção e intensa regulamentação de um novo tipo
de sujeito de sexualidade: o homossexual.
Podem traçar-se alguns paralelos instrutivos entre as intervenções
de Burton no Grã-Bretanha da época victoriana e algumas tentativas
mais recentes de incluir a sexualidade em lugares e em debates onde
não tinha estado presente. Tais debates são, porém, relativamente
recentes em muitas das disciplinas académicas do mundo de língua
inglesa. Ali, a experiência de introduzir o tema da sexualidade
foi muitas vezes controversa. Não se havia escrito muito sobre
sexualidade até o final dos anos oitenta, quando um certo número
de geógrafos radicais, que trabalhavam sob o axioma feminista de
que ‘o que é pessoal é político’, e em resposta ao ‘mantra’ da SIDA
de que ‘silêncio=morte’, tomaram de assalto o muro de silêncio da
sexualidade.3 Num periódico de referência, David Bell descreveu
a censura de um artigo que havia submetido aos coordenadores da
conferência anual da Association of American Geographers: o artigo,
intitulado ‘FUCKING GEOGRAPHY’ fora modificado pelo editor do
programa da conferência para ‘[Screw]ING GEOGRAPHY’.4 Desde
essa conferência, os debates sobre sexualidade e espaço proliferaram
e amadureceram, e os geógrafos foram acostumando-se a pensar e
falar sobre sexo, sempre que esses pensamentos e conversações se
justifiquem.5 Porém, a recordação de como a primeira menção do
tema perturbou a disciplina, surgindo agressiva e embaraçosa para
muitos, pode ajudar a compreender o modo como Burton pôde ter sido
recebido na Grã-Bretanha tardo-victoriana, e talvez também sobre o
modo como estes debates possam ser recebidos em certos contextos
académicos, nos quais são ainda muito recentes. Tal como Bell,

72
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

Burton escreveu como geógrafo, e escreveu directa e abertamente


sobre sexo. Tal como Bell, Burton defendeu um estilo combativo
e queixou-se de censura. Tal como Bell, Burton afirmou que a sua
abordagem franca, heterodoxa e dissidente, poderia ameçar a sua
carreira e o seu emprego. E, tal como Bell, declarou a sua intenção
de se distinguir e de provocar a autoridade vigente. Na verdade,
poucos podiam pensar provocar e ofender a ordem instituída tão
extensamente como Burton, que se tornou persona non grata nos
corredores do poder do Foreign Office e da Royal Geographical
Society (RGS). De facto, poucos podiam pensar, ou pretender, ser
tão ofensivos como frequentemente Burton o foi. Os geógrafos
actuais que trabalham sobre sexo e sexualidade não podem deixar de
manter uma relação de ambiguidade com uma figura em cuja política
de sexualidade misturava anti-semitismo, negrofobia, francofobia,
misoginia, sadismo (não inteiramente consensual) e um aparente
entusiasmo imperialista. A geografia sexual de Burton não deixa,
porém, de levantar e explorar um número importante de questões
acerca da relação entre geografia e sexualidade: sobre a questão
(disciplinarmente) paroquial sobre como os geógrafos deveriam
preocupar-se com a sexualidade; onde incluir o sexo na ‘agenda’
geográfica. Mais importante, é uma questão sobre a importância
que detém o espaço no sexo e nas sexualidades. Esta é uma versão
da questão fundamental e permanente da Geografia humana: a de
saber como é que as relações sociais são espacialmente constituídas
e questionadas.6 Burton levanta e responde a algumas questões sobre
como as sexualidades são espacialmente constituídas e contestadas:
como são cartografadas num mapa.
A cartografia, sobretudo se metafórica, pode ser enganadoramente
ilusória.7 Os mapas parecem-nos ser constituídos por imagens
objectivas, impessoais, puramente mecânicas. Transmitem aquilo
a que Svetlana Alpers8 apelida de ‘aura de conhecimento’. Eles
‘descrevem’, como diz Neil Smith, ‘o mundo como ele “realmente
é”; como o autor se desvanece no mapa, este emana autoridade’.9
A informação dos mapas, sendo naturalizada como ‘factos’, é
inteiramente recebida com plena confiança. Os que activamente
e conscientemente pretendem ‘ler nas entrelinhas do mapa’, ao

73
Geografias pós-coloniais

longo dos princípios defendidos pelo crítico de cartografia Brian


Harley,10 são provavelmente uma minoria crítica e intelectual. Os
mapas constroem mundos ‘aceites-como-tal’, nas quais a geografia
e a identidade se naturalizam. Aparentemente providenciam um
terreno sólido no qual podemos fixar os pés, um sentimento de
segurança para todos aqueles que gostam de saber em que pé é que
estão. Porém, os mapas são mais ambivalentes do que isso, mais
abertos. Como em qualquer outro texto, os seus significados não são
únicos nem definitivamente fixados. Podem ser instáveis, no sentido
proposto por Deleuze e Guattari:
Um mapa está aberto e relacionável em todas as suas
dimensões; é decomponível, reversível e susceptível de uma
constante transformção. Pode ser estilhaçado, invertido,
adaptado a qualquer tipo de montagem, reelaborado por um
grupo individual ou por uma formação social…11
Um mapa asssim considerado abre mais perspectivas do que
as encerra, é um ponto de partida mais do que um fim em si
mesmo. Uma ‘geografia literária crítica’, nas palavras de Andrew
Thacker, deve inquirir o significado teórico e político dos mapas, e
compreender como os mapas estão incrustados em lutas e relações
de poder. Neste contexto, dever-se-ia ‘acentuar a divergência entre a
simples cartografia das paisagens representadas nos textos literários,
e levantar questões mais complexas acerca do espaço e do poder,
de como o espaço e a geografia afectam as formas e os estilos
literários’.12 Os ‘mapas sexuais’ de Burton devem ser vistos dentro
deste espírito, escavando por baixo da sua superfície aparentemente
ortodoxa—autoritária e objectiva, factual e estática, delimitada e
dividida—para revelar uma política de sexualidade contestada e
mais complexa, profundamente enraizada na perspectiva viajante de
Burton. Ostensivamente apresentada como conservadora e sólida, a
geografia de Burton é um mero ponto de partida para explorações e
contestações da sexualidade.
O discurso sexual mais sustentado de Burton, no qual cartografou
a ‘Sotadic Zone’,i surgiu nos contos traduzidos, notas e ‘Ensaio
Final’ do seu Plain and Literal Translation of the Arabian Nights’
Entertainments or The Book of a Thousand Nights and a Night

74
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

(1885-6).13 Publicado em idade avançada, as suas ‘Mil e Uma Noites’


confirmaram a reputação de Burton enquanto tradutor, embora já
tivesse produzido um número importante de outras traduções, em
que se incluíam o Kama Sutra of Vatsayana (1883) e o Aranga-
Ranga or the Hindu Art of Love (1885). Nos primeiros anos da sua
vida, Burton era sobretudo reconhecido como um escritor de livros
de viagem, o autor da Personal Narrative of a Pilgrimage to El-
Medinah and Meccah (1855-6), First Footsteps in East Africa; or,
An Exploration of Harar (1856), e The Lake Regions of Central
Africa, A Picture of Exploration (1860).14 A credibilidade de Burton
como geógrafo sofreu um revés após a sua expedição em busca das
nascentes do Nilo, quando se envolveu numa pouco digna disputa
pública com o seu companheiro de viagem, John Hanning Speke,
disputa que aparentemente daria origem ao suicídio de Speke,
e que levou Burton a proferir algumas opiniões implausíveis,
extravagantes e polemicamente combativas sobre a geografia de
África.15 A sua carreira como explorador e cientista, que havia
recebido o apoio da Royal Geographical Society e sido exposta
na Royal Society, recebeu um duro golpe. Teve início, então, um
período em que Burton rascunha, experimenta, bebe e passa o tempo
numa série de entrepostos diplomáticos, onde viveria virtualmente
exilado, sozinho ou acompanhado pela sua mulher Isabel. Será
apenas após sofrer uma ataque de coração, já no fim da sua vida,
que Burton se reabilitou, então reconhecido como tradutor. Por toda
a sua vida, Burton manteve-se um geógrafo e um especialista em
erotismo, embora o equilíbrio tenha sido deslocado no sentido da
geografia para o erotismo, entre o tempo das suas primeiras viagens
e das últimas traduções. Nas suas narrativas de viagem, Burton
surge-nos como um geógrafo erudito. Nas traduções, mais como um
sexólogo geográfico. Nas narrativas literárias, o autor permitiu-se
ser censurado pelos editores,16 e relegou o sexo para as margens da
obra. Nas traduções, permitiu-se alguma liberdade com a geografia,
e trouxe o sexo para o plano principal da obra que publicou sem
qualquer interferência dos revisores ou das casas editoras.
A geografia das traduções de Burton, especialmente das Mil e
Uma Noites, é primordialmente imaginativa e literária, mais do que

75
Geografias pós-coloniais

realista ou literal. Embora Burton tenha afirmado que iria descrever


o ‘verdadeiro Leste’,17 e justificado o seu trabalho, aos putativos
censores e críticos, como uma simples descrição do Oriente, necessária
à suposta leitura por parte de conquistadores e administradores
britânicos, o Leste e o Oeste eram principalmente veículos da sua
imaginação sexual. A ‘Sotadic Zone’ pode ter sido uma tentativa de
contar ‘a verdade acerca de sexo’ (uma frase que Foucault usou na
História da Sexualidade) e, talvez, da própria sexualidade do autor,
mas nunca se aproximou de facto da ‘verdade’ acerca do Leste –
apesar da insistência de Burton em afirmar o contrário. Um espaço
material de encontros sexuais concretos18 decerto existiu, porém, tal
como Burton, irei incidir a atenção sobre a sua contraparte, imaginada
e metafórica. Tenho bem a noção, ainda assim, como Edward Said,
Rana Kabbani e outros demonstraram nos seus trabalhos sobre o
Orientalismo sexualizado, e Michael Brown no seu sobre geografias
do ‘armário’, que as instâncias material e metafórica estão sempre
relacionadas.19 Esta relação tem implicações nos espaços materiais
correspondentes à ‘Sotadic Zone’, assim como nas sexualidades que
ali são imaginadas.20

Richard e Isabel Burton


Antes de considerarmos detalhadamemte a tradução de Burton das
Mil e Uma Noites e a sua atenção sobre a sexualidade, é importante
fazer notar que este trabalho e o impacto que ele teve não foi obra
de uma só pessoa, mas de uma associação entre Richard e a sua
mulher Isabel.21 Ao longo do tempo em que viveram juntos, os
Burton colaboraram na autoria e produção de livros. Além de obras
publicadas sob o seu nome, Isabel contribuiu para obras publicadas
sob o nome de Richard. Por exemplo, Isabel contribuiu com mais
de cem páginas para a descrição geográfica de Unexplored Syria
(atribuída a Richard Burton e Charles Tyrwhitt-Drake, 1871).22
Editou e co-traduziu outras obras atribuídas a Richard, incluindo
Explorations of the Highlands of Brazil (1869) e Os Lusíadas (The
Luciads, 1880). Inversamente, algumas das obras atribuídas a Isabel
foram em parte ou totalmente trabalho de Richard, e Isabel atribuiu
algumas das suas obras a Richard. Por exemplo, Isabel afirmava que

76
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

teria sido Richard a ditar o ensaio pró-missionário ‘Christianity in


Syria’, que apareceu em The Inner Life (não é uma atribuição muito
convincente, dado que o ensaio exprime pontos de vista usualmente
associados a Isabel, e não a Richard).23 Isabel geralmente afirmava
que ‘escrevia sempre com e para o seu marido, sob a sua orientação’,
embora ela própria retribuísse a ‘orientação’ de Richard.24 Isabel não
‘ajudava’ simplesmente o seu marido, antes dirigia a sua carreira
literária e diplomática, a que ela se sentia justificada em chamar a
‘nossa carreira’.25
Aquela associação tornou-se, porém, bastante tensa, sobretudo
quando os Burton se posicionaram diferentemente no que diz
respeito a políticas de género e de sexualidade. Richard era tolerante,
opondo-se às restrições e regulações morais que eram exigidas
de um modo cada vez mais forte e efectivo, nos anos de 1879 e
1880, pelos activistas e organizações em favor da decência social,
tais como a National Vigilance Association (NVA), que Isabel
apoiava. As suas diferentes posições face às questões morais e de
políticas de género e sexualidade produziram uma tensão que era
frequentemente explícita nas versões finais dos seus trabalhos, na sua
publicação e divulgação. Porém, em 1885, enquanto outros activistas
puritanos faziam uma campanha vigorosa em defesa de uma nova
regulamentação moral sob a forma de uma proposta de emenda à
lei criminal (‘Criminal Law Amendment Bill’), Isabel apareceria a
ajudar o marido a publicar uma série de volumes que se opunham ao
espírto e à lei dessa legislação. Richard solicitara o auxílio de Isabel
no que viria a transformar-se num ‘joint affair’.26 Isabel ‘volunteered
to work the financial part of it’ e enviou 34.000 circulares para
potenciais subscritores.27 Assegurou-se de que a edição limitada a
1000 conjuntos de dez volumes, com seis volumes suplementares,
fosse inteiramente subscrita. As Mil e Uma Noites obtiveram um
enorme lucro inicial de 10.000£, seguido dos pagamentos da Library
Edition, para a qual Isabel dispôs dos direitos. O projecto deu origem
à controvérsia que o seu principal editor havia querido encorajar.
Entre os críticos mais estridentes estavam os defensores e moralistas
puritanos. Num panfleto sobre ‘Pernicious Literature’ o NVA citaria
um Membro do Parlamento:

77
Geografias pós-coloniais

He was told there was also a very expensive class of


abominable literature now published in London, and that
there was a society devoted to the publication of this depraved
and lascivious literature. There was also one book which had
recently been published at 10 guineas. Many members would
know the book to which he referred. It contained the most
abominable suggestions, and there was so large a run upon it
at the present time that copies were being sold at 26 guineas
each. The author, he believed, was on the point of bringing
out five additional volumes. He was told that nothing more
loathsome had ever been printed; but he supposed there were
men of such depraved mind who were only too eager to
regale themselves with such filth.28
Este era precisamente o tipo de reacção por que Richard ansiava e
Isabel receava. Após a morte de seu marido, Isabel iria suprimir as
Mil e Uma Noites não censuradas, mas ao longo da sua vida deixou
de lado as suas própria objecções, de modo a ajudar a garantir o seu
sucesso.

A cartografar a sexualidade: as ‘Mil e


Uma Noites’ e a ‘Sotadic Zone’

As Mil e Uma Noites de Burton podem ser lidas como uma


polémica cartografia da sexualidade: uma intervenção velada na
política de sexualidade. Apesar do pouco ortodoxo objecto material,
Burton faz com que pareça um mapa ortodoxo. Ali estão zonas com
regiões cuidadosamente definidas e com limites precisos. Estas
fronteiras polarizam a geografia e a sexualidade, ao separar o Oriente
e o Ocidente, e ao distinguir e distanciar culturas que praticam e
toleram comportamentos homossexuais daquelas que o não fazem.
O autor, enquanto modesto intérprete e estudioso, distancia-se do
texto, fazendo com que pareça objectivo, mecânico e verosímil. O
efeito resulta em conter, distanciar e marginalizar as sexualidades
associadas ao Oriente.
Ao traduzir as Mil e Uma Noites, Burton sexualiza uma recolha
de contos que era já um clássico apreciado em Inglaterra e França.29
Como ele próprio o diz, oferece aos seus leitores uma versão ‘não

78
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

castrada’30 das histórias que vinham sofrendo às mãos da censura


de intérpretes, tradutores, compiladores e editores. Burton afirmava
traduzir sem preconceitos, resistindo à tentação – que contaminara
tantos dos seus predecessores – de higienizar e censurar a tradução.
Por outro lado, teve a oportunidade de adicionar detalhes de natureza
sexual ou outra, em notas de rodapé, extensas e muitas vezes apenas
vagamente relacionadas. Ainda, adicionou dois ensaios de fôlego,
‘Pornography’ e ‘Pederasty’, no décimo do que vieram a ser os
dezasseis volumes da obra.31 Burton conseguiu que a sua obra
fosse impressa por si próprio, pelo que não sofreu qualquer tipo
de ingerência ou censura por parte dos editores, além de que pôde
eximir-se às repercussões que poderiam surgir de ser um responsável
formal (para além da mera impressão) de dar à estampa uma obra
erótica. A tradução de Burton era a mais competente, mas porque em
parte veio na companhia de uma outra versão, a bem apresentada e
mais literária tradução de John Payne,32 ficou sobretudo conotada
com o conteúdo sexual explícito.
A geografia sexual das Mil e Uma Noites de Burton é mais
explicitamente apresentada no ensaio final sobre ‘Pederasty’.
Pederastia foi recentemente definida como uma ‘sexual activity with
pubertal boys’.33 No tempo de Burton, o termo era usado num âmbito
mais lato, para referir relacionamentos (não envolvendo qualquer
acto sexual específico) de homens mais velhos com mais novos.
Embora cerca de cinquenta páginas sejam dedicadas ao discurso
sobre o tema, os pontos principais podem facilmente resumir-se do
seguinte modo:
1. Existe uma zona a que eu chamo ‘Sotadic’, limitada
ao Oeste pela linha de costa setentrional (Lat. 43º N) e
meridional (Lat. 30º N) do Mediterrâneo. Assim a extensão
seria de 780 a 800 milhas, e incluiria a França meridional, a
Península Ibérica, Itália e Grécia, e as regiões costeiras da
África, desde Marrocos ao Egipto.

2. Caminhando para leste a ‘Sotadic Zone’ estreita, abraça a


Ásia Menor, a Mesopotâmia e Caldeia, Afeganistão, Sind, o
Punjab e o Kashmir.

79
Geografias pós-coloniais

3. Na Indo-China, a faixa aumenta de largura, contendo a


China, o Japão e o Turquestão.

4. A partir daí contorna as ilhas dos Mares do Sul e o Novo


Mundo onde, com algumas excepções, o amor sotádico era,
com algumas excepções, uma instituição racial estabelecida.

5. Dentro desta zona o Vício é popular e endémico, visto


no máximo como sendo um mero ‘pecadillo’, enquanto
que ao Norte e ao Sul dos limites aqui definidos, é apenas
esporadicamente praticado, entre o opróbrio dos conterrâneos
que, como regra, são fisicamente incapazes de o praticar, e
que o vêem com intensa repugnância.34
A ‘Sotadic Zone’ é justamente limitada com paredes imaginárias
que como que passam a conter dentro de si a pederastia e reprimir
outros desejos e actividades sexuais desviantes. Os limites estão
justamente cartografados, atribuídos a latitudes específicas e a
fronteiras nacionais. Represam as formas de desejo que aparentemente
florescem em plenitude no seu interior. Tal como os muros de um
jardim zoológico, contêm todos os tipos de paixões animais tão
fascinantes quanto perigosas. Entre estas conta-se a pederastia, a
que Burton se refere como ‘Le Vice contre nature’, ou ‘Le Vice’, e
à contraparte feminina (mas não equivalente), ‘Tribadism’.35 Existe
também ‘debauchery’ e ‘temptation’, ‘erotic perversion’36 e ‘evil’.37
A lista de ‘abominations’38 e ‘corruptions’39 é extensa. A pederastia
é praticada juntamente com infanticídio e canibalismo, prostituição
e bestialidade.40 Burton, podemos vê-lo às vezes estimulado
agradavelmente, em outras vezes repugnado, usualmente pejorativo.
Aparentemente, podemos ver aqui a demonstração da afirmação de
Isabel de que (para parafrasear) o seu marido partilhava e aprovava a
repugnância dos seus conterrâneos em relação à homossexualidade,
e que quebrou tabus discursivos não apenas para condenar mas para
trazer os desviantes aos olhos da lei e da medicina.41 Existem, como
tentarei explicar, fundamentos para leituras totalmente diferentes
de Burton. Porém, é claro que foi possível, e é-o ainda, ler Burton
desde este ponto de vista. Burton parecia reproduzir uma velha
fantasia orientalista – a de uma geografia imaginativa sexualmente

80
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

estimulante, perigosa e ameaçadora – e inscrevê-la num tempo e


espaço concretos.42
No interior da ‘Sotadic Zone’, existe uma área no Mediterrâneo
central, da Grécia ao Egipto, que forma como que um centro de
gravidade, um núcleo histórico, de onde tem origem o desejo que
se expande, ameaçando as áreas circundantes. Tal como um amante
apaixonado e agressivo, esta zona ‘abraça’ a Ásia e o Pacífico Sul,
‘engolfando’ nações inteiras nos seus braços, e ameaçando a Europa
com as suas perigosas paixões. Burton localiza as origens e difusão
de formas específicas de pederastia, desde a Grécia até Roma, e
desde Roma ao Norte de África, por exemplo, em qualquer dos casos
representando a pederastia como algo a que as nações poderosas
obrigam as nações mais fracas que se lhes submetem. A pederastia
é uma ameaça constante.43 A pederastia é uma ameaça constante,
contra a qual as nações têm de se defender. A Inglaterra, em particular,
deve proteger-se das ameaças de pederastia que têm origem nas
suas cidades e fronteiras; Burton menciona surtos ‘esporádicos’
de pederastia em Londres e pederastia endémica entre os Celtas.44
Apesar desta dinâmica, a pederastia parece ser contida pelos limites
traçados no mapa de Burton. O seu confinamento geográfico permite
defini-la como discreta e reprimível manifestação de sexualidade.
A ‘Sotadic Zone’ está distanciada da Inglaterra e geográfica e
sexualmente desligada. Burton emprega uma série de estratagemas
de distanciação. De uma forma tangível, reproduz a distância
imaginativa e geográfica entre as construções contemporâneas do
Ocidente e do Oriente, fixando mais ou menos nesta última a sua
‘Sotadic Zone’. Informa o leitor que a geografia das Mil e Uma
Noites, e mais genericamente a ‘Sotadic Zone’, é uma região que
se adivinha muito distante. Diz que lhe surgiu no espírito quando
estava nos ‘luxuriant and deadly deserts of West Africa’, ou nas ‘dull
and dreary half-clearings of Brazil’, lugares em que passou muitos
anos de ‘official banishment’, ocupado com tarefas diplomáticas
menores, e em que se refugiou a sonhar acordado sobre o Oriente e
em traduções.45
From my dull and commonplace and ‘respectable’
surroundings, the Jinn bore me at once to the land of my

81
Geografias pós-coloniais

predeliction, Arabia, a region so familiar to my mind that


even at first sight, it seemed a reminiscence of some by-gone
metempsychic life in the distant past.46
Do mesmo modo, Burton distancia-se intimamente da ‘Sotadic Zone’
e das histórias que aí têm lugar, ao assumir o papel aparentemente
passivo de tradutor, de quem apenas reproduz as histórias que lê. No
seu ‘Terminal Essay’, Burton distancia-se também na linguagem,
detalhes e contornos, ao citar enfaticamente outros autores, deste
modo renunciando um pouco ao seu próprio texto. Pederastia, por
exemplo, é ‘Le Vice’ – um termo cunhado por alguém, e que Burton
usa informalmente, até com ironia. Assim, Burton insere uma
distanciação ambígua entre si mesmo e a pederastia.
O distanciamento que Burton estabelece com a ‘Sotadic Zone’ é
reforçado através de uma série de imagens e metáforas visuais. O seu
enquadramento cartográfico, que situa a ‘Sotadic Zone’ num mapa-
mundo imaginário, providencia a primeira abstracção visual, dando-
lhe no entanto uma aparência factual. Noutras metáforas visuais,
Burton afirma mostrar ‘a landscape of magnificent prospects whose
vistas are adorned with every charm of nature and art’ (sublinhados
meus).47 O seu olhar é o de quem se situa numa posição fixa e elevada.
A sua visão é panorâmica, um vasto olhar através da geografia
e da história. Por isso, ele ‘glanc[es] over the myriad pictures of
this panorama’, com um olhar que é ao mesmo tempo reservado e
voyeurista. Mesmo as cenas de violação são encaradas com uma
indiferença ligeira e distante. No ‘Terminal Essay’, por exemplo
A favourite Persian punishment for strangers caught in the
Harem or Gymnæceum is to strip and throw them and expose
them to the embraces of the grooms and the negro slaves.
I once asked a Shirazi how penetration was possible if the
patient resisted with all the force of the sphincter muscle: he
smiled and said, “Ah, we Persians know a trick to get over
that; we apply a sharpened tent-peg to the crupper-bone (os
coccygis) and knock till he opens”.48
O distanciamento visual é produzido, também, pelas metáforas
gráficas de Burton. Aqui o autor faz eco do ‘narrador oriental’ que,
segundo o autor, vê tudo e tudo narra, introduzindo o leitor em todas

82
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

as situações, até na ‘câmara nupcial’, onde descreve ‘everything he


sees and hears’ (sublinhados meus).49 O efeito cumulativo é o de
mostrar o sexo, a sexualidade e uma geografia sexual que sejam ao
mesmo tempo realistas e remotas.
O tom realista, autoral e sexualmente explícito dos ensaios e
comentário de Burton é acreditado e amplificado pelo estilo de
investigação que o autor cultiva. As imagens sexuais explícitas são
justificadas com o argumento do seu interesse clínico e geográfico. Os
habitantes da ‘Sotadic Zone’ são apresentados, tal como os pacientes
em face de um médico, numa ‘decente nudez’. Burton, que utilizou
o disfarce de médico em algumas das suas viagens pelo Oriente,
assumiu igualmente a mesma pose – um sexologista – em Inglaterra.
Como médico, fez questão de observar atenta e abundantemente
muita da referida ‘nudez decente’, e sentiu o prazer de poder
escrever livremente sobre ela. Prazer que igualmente lhe adveio da
possibilidade de, enquanto geógrafo profissional, poder estabelecer
um discurso sexual. Esta possibilidade foi por si aproveitada e
largamente assumida, tanto nas instituições científicas como nas
revistas que ajudou a fundar, para providenciar arenas de ‘learned
debauchery’ e etnologia sexual explícita,50 e também nas notas e
ensaios de teor geográfico e antropológico com que comentou as
Mil e Uma Noites. Enquanto investigador, Burton afirmou escrever
para ‘estudiosos’, e insistia que ‘nothing could be more repugnant
than the idea of [the Nights] being placed in any other hands than
the class for whose especial use it has been prepared’.51 Deste modo
afirmava a autoridade que detinha em falar profissionalmente sobre
sexo, com uma liberalidade que seria impossível de conceber num
tipo de literatura mais ‘popular’,52 e aproveitou a oportunidade de
cartografar algo que se podia assemelhar, formalmente, a um mapa
académico.
Em todo o caso, através de um distanciamento prudente e de
uma credibilização académica, Burton cartografou uma região
que parece ser-lhe excêntrica, uma região que é, ainda assim, um
reflexo da sua desirabilidade colonialista. Por outras palavras, o
investigador desenha tipicamente um mapa colonial. A sua função,
de tradutor e investigador, é menos passiva do que o que aparenta.

83
Geografias pós-coloniais

Selecciona os contos, procura outras informações, e decide o modo


como apresenta, narra, traduz e comenta.53 E, apesar da sua intenção
afirmada de restaurar a versão original das Mil e Uma Noites, de facto
Burton procede à sua censura. Como Boone demonstrou, quando
Burton deveria situar-se a si próprio como um leitor, e assim tornar-
se parte do quadro que vai pintando, ‘he finds himself restoring the
“fig-leaf” beneath which he has previously declared himself willing
to glimpse’.54 Ao impedir-se a si mesmo de figurar na composição
que cria, Burton exime-se à questão de qual o tipo de desejo e de
sexualidade que está a cartografar. Implicitamente afirma que o
desejo sexual é universal; o homem está sempre em busca de sexo,
sempre que e onde este lhe pareça estar disponível. Para Burton, o
império apenas parece ter como consequência uma expansão das
soluções possíveis, ao providenciar diversas arenas sexuais. Esta
leitura do império e sexualidade é largamente replicada por Ronald
Hyam,55 o mais compreensivo e moderno cronista de sexo no
Império Britânico. Contudo, as concepções de Burton sobre desejo
e sexualidade são social, geográfica e historicamente específicas. O
observador distanciado, o prescrutador e investigador das Mil e Uma
Noites de Burton é, como o autor o enuncia, uma pequena parte
do público britânico. Ao contrário da tradição oral, de que Burton
partiu, o livro era atribuído a um autor masculino e dirigia-se a um
leitor masculino. Às mulheres era sugerido que não o lessem, e
mesmo Isabel – responsável por uma ‘Household Edition’ censurada
– afirmaria não ter lido nunca o original completo.56 O leitor da obra
de Burton era, mais a mais, restringido àqueles que podia suportar os
custos da sua subscrição (um guinea por cada um dos dez volumes).57
Como o autor, o leitor típico das Mil e Uma Noites seria um Inglês
de classe média-alta. A perspectiva que deteria sobre a ‘Sotadic
Zone’ era a tipicamente masculina e colonial, e o seu próprio poder
reflectido naquilo que no império podia vislumbrar. O sexo, nunca
recíproco, era encarado da perspectiva do homem poderoso e
dominante. Daqui o interesse de Burton na pederastia, em que um
dos parceiros é dominador, mais do que na homossexualidade, que
pode ter uma natureza mais recíproca.58 Daqui a tendência do autor
em falar em ‘use of boys’,59 mais do que de mulheres, em algumas

84
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

culturas. Assim, o poder realizado do desejo sobre ‘rapazes’. Apesar


da convicção de Burton de que o desejo precede o poder, as relações
de poder colonial estão incrustadas no sexo que descreve e na
geografia sexual que cartografa.
Nas Mil e Uma Noites, então, Burton parece construir uma
mapa tipicamente colonial sobre um tópico nada ortodoxo. O
autor corajosamente chega onde muito poucos tiveram a coragem
de se aventurar, explorando, figurativa e metaforicamente, a terra
incognita do sexo marginal. Mas depois, aparentemente, o autor
condena aquilo que encontra. Nesta ‘Sotadic Zone’ geograficamente
marginal, o autor marginaliza a pederastia, fazendo-a conter-se nos
limites de uma geografia estática e divisiva. Aparentemente, sublinho,
porque as fronteiras rígidas da geografia de Burton dão origem, se a
observarmos com atenção, a um mapa bem menos ortodoxo, aberto
e fluido, como a cartografia antecipada por Deleuze e Guattari, a
quem antes me referi. As pistas, essas podemos descobri-las na
identidade de Burton como explorador, e na sua carreira de escritor
de viagens.

Geografias de viagem e sexualidades itinerantes


As superfícies compactas, a topografia estática e as fronteiras
rígidas da ‘Sotadic Zone’ de Burton são um facto, mas guiam o
leitor para uma geografia sexual muito mais aberta e fluida. Terreno
ostensivamente firme e familiar, constitui-se como ponto tangível de
partida para construções de ilusória instabilidade e comparativamente
sofisticadas de sexualidade. Instáveis e fluidas, estas formas de
sexualidade reflectem a identidade do explorador – incluindo a
infamante ambivalência sexual60 – e o estilo e a geografia das suas
narrativas de viagem.
Apesar da aparente divisão entre a sua carreira de escritor de
viagens e de tradutor, respectivamente da sua juventude e idade
avançada, os escritos e as traduções de Burton estão intimamente
ligadas. As Mil e Uma Noites são para Burton o ponto de entrada no
Oriente, e um modo de observar a terra e as gentes. Burton narra os
contos das Mil e Uma Noites a companheiros de viagem, em redor
das fogueiras que à noite se acendem nos acampamentos. Ao fazê-lo,

85
Geografias pós-coloniais

procede à identificação de tópicos morais e sexuais, aos quais voltará


mais tarde na sua vida. No seu First Footsteps in East Africa,
When Arabs are present, I usually read out a tale from “The
Thousand and One Nights,” that wonderful work, so often
translated, so much turned over, and so little understood at
home. The most familiar of books in England, next to The
Bible, it is one of the least known, the reason being that
about one-fifth is utterly unfit for translation; and the most
sanguine Orientalist would not dare to render literally more
than three quarters of the remainder.62
De igual modo, no prefácio das Mil e Uma Noites, recorda-se
como assumiu este papel de narrador, no tempo em que viajava com
as tribos árabes.
The Shaykhs and “white-beards” of the tribe gravely take
their places, sitting with outspread skirts like hillocks on the
plain, as the Arabs say, around the camp-fire, whilst I reward
their hospitality and secure its continuance by reading or
reciting a few pages of their favourite tales. The women and
children stand motionless as silouettes outside the ring; and
all are breathless with attention; they seem to drink in the
words with eyes and mouths as well as with ears.62
De um modo menos tangível, as Mil e Uma Noites propiciarão
a Burton um ponto de vista sobre o mundo árabe, no momento
em que nele viajava. James Duncan demonstrou como os textos
providenciam modos de ler a paisagem.63 As Mil e Uma Noites, de
um modo talvez mais nítido do que em qualquer outro texto oriental
ou orientalista, providenciou a Burton e a outros exploradores
ocidentais um modo de ler as paisagens da Arábia, paisagens que de
outro modo poderiam tornar-se para eles ilegíveis. Derek Gregory
refere-se a um ‘repertoire [of Orientalist] categories, codes, and
conventions’ que os exploradores recriam e os escritores de viagens
reinscrevem.64 Demonstra, por exemplo, como os viajantes ingleses
e franceses no Egipto levavam frequentemente com eles livros de
outros autores mais que os haviam ali precedido, e os iam lendo ao
longo do caminho. Apercebem-se das suas próprias jornadas através
da lente de outros livros, que de um modo variado vão revivificando

86
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

e usando como pontos de referência. Assim, estabelece-se uma


continuidade entre os livros e as experiências de viagem, tornando
indistintos os limites entre as viagens concretas e imaginárias, entre
geografias materiais e textuais. Um ensaio sobre o Cairo, de Jan
Morris, providencia-nos uma ilustração inusualmente expressiva
de como os viajantes europeus, firmados nas Mil e Uma Noites,
leriam as paisagens do Oriente. Nesse artigo, que se publicou no
jornal britânico Guardian, Morris evoca uma rua próxima do ‘great
bazaar quarter’ do Cairo, uma rua que o autor interpreta como ‘the
true locale of the Thousand and One Nights – ostensibly set in
Baghdad but really a reflection of this tremendous oriental capital’.65
Similarmente, ainda que não de um modo tão explícito, as pessoas
e os lugares que surgem nas narrativas de Burton parecem ter saído
directamente das Mil e Uma Noites. Fatma Moussa-Mahmoud
descobre a origem das Mil e Uma Noites de algumas personagens
da literatura de viagem europeia sobre o Oriente. Por exemplo, um
companheiro de viagem de Burton na sua Personal Narrative of a
Pilgrimmage, Omar Effendia, o robusto homem solteiro de 28 anos,
é comparado a Kamer al-Zaman das Mil e Uma Noites, enquanto
que duas das cozinheiras dos First Footsteps são alcunhadas de
Sheherazade e Deenarzade. As Mil e Uma Noites – ‘part of the
furniture of his mind’ – anteciparam a Burton alguns exemplos de
dramatis personae, que lhe serviram de companheiros de viagem e
de modelos para os seus próprios disfarces.66
Se as Mil e Uma Noites ajudaram a formatar a geografia das
viagens de Burton, é igualmente verdade que as viagens de Burton
formataram as suas Mil e Uma Noites.
Sabemos pelas suas próprias palavras, no prefácio (acima citado),
que o narrador das Mil e Uma Noites de Burton era o explorador que
contava as histórias ao redor de uma fogueira, e não o distanciado
sonhador de gabinete – o diplomata de baixa patente ou o homem
já encanecido no seu estúdio. Burton sublinha este ponto, ao afirmar
ter concebido e iniciado a tradução do livro em Aden, lugar em que
(assim o diz) passou o Inverno de 1852 com um companheiro de
viagem, o Dr. Steinhauser.67 Recorda como as Mil e Uma Noites
eram um conforto para quem, como ele, estava sempre na estrada,

87
Geografias pós-coloniais

e mesmo no momento das peripécias. Por exemplo, ‘[t]hroughout a


difficult and dangerous march across the murderous Somali country’
[…] ‘[t]he Nights rendered [him] the best of service’.68 Nas notas
e ensaios com que comenta as Mil e Umas Noites, Burton reitera
e desenvolve algumas linhas de raciocínio que haviam surgido
antes nos seus livros de viagens, bem como os pensamentos de
um explorador. Em First Footsteps, Burton apresenta o que vem
a ser a sua tese principal das Mil e Uma Noites, reflectindo ‘[a]fter
much wandering [that] morality is a matter of geography’.69 Nas Mil
e Uma Noites, Burton refere-se frequentemente às suas viagens e
observações em primeira mão, incluindo as que faz aos bordéis de
rapazes em Karachi, e remete directamente os seus leitores para os
seus livros de viagens publicados.70 Atribui o seu domínio da língua
árabe e o seu deslumbramento pelo Oriente a uma ‘succession of
journeys and long visits […] an exploration’.71 Referindo-se às suas
viagens, Burton estabelece as credenciais de bona fide como tradutor
e orientalista, dá credibilidade a algumas das suas proposições
específicas, e justifica o seu interesse na pederastia. Do mesmo modo,
insere nas Mil e Uma Noites as suas viagens e especificamente a si
póprio como explorador. Ao publicar o trabalho sob o seu próprio
nome – o nome de um reputado explorador – correndo o risco de ser
notificado por conduta obscena, Burton está de facto a convidar os
leitores a estabelecerem directamente uma conexão entre a geografia
das Mil e Uma Noites e a geografia das suas viagens.
As narrativas de viagem de Burton, ao contrário das suas traduções
e ensaios, são histórias de aventuras – demandas vigorosas e heróicas
na terra incognita. São apresentadas e em alguns casos subtituladas
como aventuras, tipicamente como relatos de uma ‘aventura pessoal’.72
Contêm elementos de uma história de aventuras, identificados por
Northrop Frye como ‘the agon or conflict, the pathos or death-
struggle, and the anagnorisis or discovery, the recognition of the
hero, who has clearly proved himself’.73 Burton é o herói e o narrador.
Ao contrário do distanciamento modesto do tradutor e investigador
das Mil e Uma Noites, está aqui no centro da narrativa. No seu The
Lake Regions, por exemplo, Burton explica que ele não tentou evitar
‘intruding matters of a private and personal nature upon the reader; it

88
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

would have been impossible to avoid egotism in a purely egotistical


narrative’.74 Burton comunica o prazer, a excitação e o perigo das suas
aventuras. Sente-se que está comprometido, que é parte da pintura
que nos descreve. Ao disfarçar-se, vestindo as roupas de um viajante
da Pérsia, pintando a pele da cor da de um oriental (escurecida com
suco de noz), falando as linguagens e dialectos respectivos, Burton
funde-se com o Oriente que ele próprio constrói. Este não é o espaço
cartográfico, circunscrito, da geografia formal, antes a mise en scène
dramática da aventura. Fluida, como as paisagens da exploração
que Paul Carter analisa no seu Road to Botany Bay, a geografia das
viagens de Burton consiste não em lugares fixos, absolutos, mas
em momentos ao longo de um trajecto. Burton descreve a visão da
estrada, as perspectivas antes e depois da sua passagem, e cartografa
uma geografia fluida, linear, itinerária. Aqui, as fronteiras são para
ser cruzadas, as regiões para serem atravessadas – como um nome de
uma área, que Burton traduz como ‘put down!’ (no sentido de uma
bagagem)75, deixa bem entender. Este espaço de viagem e aventura
parece ser muito diferente da geografia das Mil e Uma Noites, ainda
que entre os dois se desenhe uma similitude, uma conexão.
A geografia das Mil e Uma Noites, não a região cincunscrita em si
mesma que é apresentada, é o lugar de aventura de um Inglês. Burton
identifica as Mil e Uma Noites como um clássico das histórias de
aventuras inglesas, afirmando que ‘Sheherazade [was] as familiar to
the home reader as Prospero, Robinson Crusoe, Lemuel Gulliver and
Dr. Primrose’.76 Sendo um palco de aventuras, a Arábia de Burton
é um lugar mágico, visitada por um tempo, ou talvez só imaginada.
Burton apresenta a cena, logo no começo, num lampejo de fantasia.
Again I stood under the diaphanous skies, in air glorious as
aether, whose every breath raises men’s spirits like sparkling
wine. Once more I saw the evening star hanging like a
solitaire from the pure front of the western firmament; and
the after-glow transfiguring and transforming, as by magic,
the homely and rugged features of the scene into a fairy-land
lit with a light which never shines on other soils or seas.
Dificilmente um guia para um funcionário público no Oriente,
este é antes o palco de uma aventura, reminiscência do que Joseph

89
Geografias pós-coloniais

Campbell apelida de ‘região desconhecida’ dos mitos venturosos.


This fateful region of both treasure and danger may be
variously represented: as a distant land, a forest, a kingdom
underground, beneath the waves, or above the sky, a secret
island, lofty mountaintop, or profound dream state; but it is
always a place of strangely fluid and polymorphous beings,
unimaginable torments, superhuman deeds, and impossible
delight.77
Um explorador heróico convencional e um cartógrafo, Burton
cartografou a ‘Sotadic Zone’, a qual, segundo afirmou, seria
uma verdadeira terra incognita, mantendo-se fiel à sua imagem
nietzscheana de aventureiro, e seguindo o conselho do filósofo: ‘live
dangerously! [and] send your ships into uncharted seas’,78 Burton
gostava de ser visto como indo a regiões desconhecidas que outros
não tinham coragem de atravessar. Desde muito cedo, havia viajado
por terrae incognitae geográficas, partidas da África e Arábia que
desenhavam imensos vazios nos mapas.79 No fim da sua vida, viajou
por terrae incognitae metafóricas, confrontando silêncios e vazios
de outra natureza – silenciamentos do discurso sexual. Silêncios
eram, apesar da proliferação do discurso sexual, que Michel
Foucault identificou, e apesar do carácter pervasivo e popular dos
mitos eróticos do Oriente.80 Quando médicos, magistrados, guias
religiosos e promotores puritanos81 deram largas ao discurso sexual
na década de 1880, fizeram-no com a intenção de especificar o
que ‘Não farás’. Trouxeram a sexualidade entre homens para o
centro da atenção pública, e conduziram aqueles que a praticavam
para tribunais e cárceres.82 Quando Burton quebrou o seu longo,
ainda que não absoluto silêncio, para escrever e publicar trabalhos
credíveis sobre o tema, a sua voz não foi tanto uma corajosa incursão
numa terra incognita, mas antes um assalto a um território já então
conquistado pela autoridade pública. Burton, ainda assim, desenhou
um terreno discursivo eficiente para efeitos de resistência, e a sua
coragem pode ser medida pelo escândalo com que foi recebido por
muita da imprensa (sobretudo o Pall Mall Gazette), assim como pela
censura e cortes das edições posteriores do seu Mil e Uma Noites,83
bem como a destruição de alguns dos seus próprios manuscritos,

90
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

acima de tudo por Isabel (como referido acima).


A terra incognita na qual Burton cartografou a sua ‘Sotadic Zone’
era também figurativa, concretamente geográfica – o contexto de
uma aventura especificamente utópica/distópica. Quando explicita
que a ‘História pinta ou tenta pintar a vida como ela é’, e a ‘Ficção
mostra ou deve mostrar como a vida deveria ser, inteligentemente
ordenada e disposta em contornos nítidos’,84 é às dimensões ficcionais
e utópicas da sua narrativa que Burton se remete. Estabelece uma
conexão directa entre ele próprio, como narrador e herói, e o famoso
aventureiro da utopia Lemuel Gulliver. Menciona, num sugestivo
comentário de rodapé, que ‘Some years ago I was asked by my
landlady if ever in the course of my travels I had come across Captain
Gulliver.’85 Como Gulliver, Burton viaja num espaço utópico/
distópico, exterior ao mapa; no prefácio, informa-nos de como foi
transportado da prosaica vizinhança da sua casa em Inglaterra para
o ambiente mágico das Mil e Uma Noites, o contexto maleável de
uma aventura utópica. Envolvendo muito do Oriente, a geografia das
Mil e Uma Noites não era, claro está, um vazio absoluto. Existiam,
ainda assim, vastas áreas sem informação, que Burton foi capaz de
preencher. Em primeiro lugar, os vazios deixados por geógrafos,
antropólogos, tradutores e outros que negligenciariam a inclusão
de tópicos sobre sexo e outros temas interditos nas suas descrições.
Em segundo lugar, uma geografia aparentemente desprovida de
espaço e tempo no interior da ‘Sotadic Zone’, no coração das Mil
e Uma Noites: o deserto. É no deserto que Burton se sente mais
livre, não apenas a liberdade de errar num mundo de homens e de
aventuras, mas também a de imaginar, de sonhar com o passado e
com o futuro. Edward Said observou que para os orientalistas como
Burton o deserto ‘appears historically as barren and retarded as it is
geographically; the Arabian desert is thus considered to be a locale
about which one can made statements regarding the past in exactly
the same form (and with the same content) that one makes them
regarding the present’.86 Claro que os escritores utópicos estão em
última análise preocupados com o futuro. Na sua Personal Narrative,
Burton escreveu que as visões do deserto ‘appeal to the Future, not
to the Past: they arouse because they are by no means memorial’.87

91
Geografias pós-coloniais

Um espaço sem tempo, vazio, aquiescente, metafórica e literalmente


fluido, o deserto pareceria o lugar perfeito para as suas aventuras
utópicas. Numa terra incognita como esta, que existe sobretudo na
imaginação geográfica e na escrita de Burton, uma ‘Sotadic Zone’
pode ser cartografada, e deter plausibilidade.
A descrição da ‘Sotadic Zone’ por Burton, reminescente das
quatro regiões que Gulliver percorrera, não é uma região estática,
mas uma sequência linear de utopias e distopias. A narrativa é,
naturalmente, linear, enquanto a geografia é superficial, mas tal não
explica inteiramente a estrutura narrativa da descrição que Burton
faz da ‘Sotadic Zone’. Burton opta por representar a ‘Sotadic Zone’
não a duas mas a uma dimensão. Uma vez que é capaz de especificar
coordenadas geográficas e traçado de fronteiras com uma impressiva
precisão, é de notar o facto de que Burton negligencia fixar a ‘Sotadic
Zone’ num mapa gráfico e não textual. A sua descrição é uma
viagem imaginária. Começa na Arábia e na Grécia antiga e procede
para outras variadas regiões utópicas e distópicas – movendo-se
através de Roma e do norte de África, e prosseguindo na direcção do
Oriente. ‘Proceeding Eastward we reach Egypt, that classical region
of all abominations’;88 ‘Resuming our way Eastward we find the
Sikhs and the Moslems of the Panjab much addicted to Le Vice’;89
‘Passing over to America we find that the Sotadic Zone contains the
whole hemisphere’,90 e assim sucessivamente. Deste modo, Burton,
que à primeira vista parece recolher todas as manifestações sexuais
marginais dentro da ‘Sotadic Zone’, de facto distingue vários tipos,
e inscreve contornos entre as que são boas e más. De um modo geral,
distingue três tipos de pederastiaii – a divertida, a cruel e a prudente,91
embora possa descer no detalhe em subtis variações geográficas.
Defendendo que o amor por rapazes possa ter um lado nobre e
ideal,92 idealiza algumas formas de pederastia entre os Gregos e os
Árabes, e admite a importância religiosa das relações homossexuais
no Egipto, mas critica a pederastia entre os Romanos e escarnece,
por exemplo, a ‘systematic bestiality with ducks, goats and other
animals’93 que afirma serem comuns na China. Ao distinguir
entre utopias e distopias, e entre diferentes tipos sexuais, Burton
estabelece a proposição radical de que a relação homossexual não é

92
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

necessariamente algo de terrível.


Com a sua imagética sexual explícita, as superfícies abstractas de
carne viva, que remetem o leitor não apenas para os compêndios
de Medicina mas também para a literatura pornográfica, a geografia
largamente utópica de Burton é um exemplo do que o que Steven
Marcus chama ‘pornotopia’.94 Ao imprimir uma erótica traduzida,
Burton faz uso de muitos dos estratagemas da pornografia; publica
sob um falso nome ou anonimamente, sob a capa de instituições
forjadas, com falsos editores e tipografias.95 Foi co-fundador de
uma instituição com a função de publicar temas eróticos – a Kama
Shastra Society – sociedade de apenas duas pessoas, ele próprio e
F. F. Arbuthnot. A Kama Shastra Society produziu livros tais como
Kama Sutra e as Mil e Uma Noites com a marca de impressão forjada
de Benares. Os nomes dos tradutores foram camuflados, embora não
totalmente. O Kama Sutra foi atribuído a A. F. F e B. F. R – as
iniciais de Burton e Arbuthnot, pela ordem inversa. As Mil e Uma
Noites foram a primeira tradução erótica que Burton publicou sob o
seu próprio nome. Não é claro se os estratagemas pronográficos de
Burton eram genuínos, se apenas uma paródia humorada à indústria
florescente da indústria pornográfica britânica. Em todo o caso, tais
estratagemas permitem que se estabeleça uma associação superficial
com a pornografia, uma associação que foi reforçada pelos contactos
sociais que Burton mantinha com Monckton Milnes, Fred Hankey,
Algernon Charles Swinburne e outros famosos coleccionadores
de pornografia e erótica, e uma associação que é sustentada por
passagens dos seus próprios livros.96 O estilo é vívido, as histórias
repletas de uma imagética sensual e sexual. ‘The gorgeousness is
in the imagery not in the language; the words are weak while the
sense (…) is strong.’97 Os ambientes da Mil e Uma Noites de Burton,
tal como na literatura pornográfica, são abstracções, histórica
e geograficamente vagas. A mistura de intimidade sexual com
violência sexual – as principais obsessões98 de Burton incluíam o
espancamento, castração, mutilação genital e violação – seguem as
tendências da pornografia inglesa do seu tempo.99 Porém, o interesse
de Burton não era só voyeurístico, e não estava apenas à procura
de exaltação. Os escritores utópicos/distópicos, ao longo do tempo,

93
Geografias pós-coloniais

fizeram geralmente uso deste meio como uma forma de crítica


política, em tempos em que a liberdade de expressão era limitada, e
Burton não foi excepção, como a seguir poderemos ver.
Uma vez que a ‘Sotadic Zone’ é constituída como ambiente de
uma narrativa de viagem, ou pelo menos como um integração de
narrativas de viagem, os seus limites são permeáveis. O explorador,
que viaja da Inglaterra para a Arábia, demonstra que tais limites
podem ser atravessados. Ao viajar, sugere a possibilidade de uma
relação dialéctica entre os que estão do lado de dentro e de fora
dessas fronteiras. Tais limites são menos um muro, mas uma
ligação, uma possibilidade de relacionamento. A noção de fronteira
em Burton não parte de uma visão reaccionária e defensiva que à
primeira vista sugere, antes faz lembrar a reformulação que Doreen
Massey estabeleceu, e que é também de algum modo utópica.
‘Boundaries’ (…) are not necessary for the conceptualisation
of a place itself. Definition in this sense does not have to be
through simple counterposition to the outside; it can come,
in part, precisely through the particularity of linkage to that
‘outside’ which is therefore itself part of what constitutes the
place. This helps to get away from the common association
between penetrability and vulnerability.100
No momento em que os exploradores e aventureiros cruzam
as fronteiras, confundem a oposição entre casa e longe, centro
e periferia, colonizadores e colonizados, tornando instáveis e
impedindo a reprodução directa de tais dualismos.101
Nesta ‘região desconhecida’ da aventura de Burton, e na
fantasia da sua pornotopia, o realismo começa a diluir-se. O
terreno superficialmente sólido, que providenciara ao leitor um
ponto de partida, dá lugar a algo de menos tangível. A pornotopia,
caracteristicamente utópica, é um ‘não lugar’. Burton chama aos seus
ambientes ‘a mise-en-scène which we suspect can exist and which we
know does not’.102 Como Mason103 demonstrou, na sua hitória sobre
os comportamentos sexuais na Grã-Bretanha, os vitorianos tendiam
a dizer uma coisa e a fazer outra no que dizia respeito ao sexo, e
Burton não era excepção. Uma análise comparada dos seus pontos-
de-vista e histórias, e ao encontrar inconsistências, os seus biógrafos

94
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

apelidaram-no de ‘impostor’.104 Do mesmo modo, geógrafos e


críticos pós-coloniais acusaram Burton de falsificação.105 É certo que
apresentou imagens de um profundo realismo, que pareciam bem
verdadeiras, mas que nem sempre eram descrições de incidentes
verdadeiros. E certamente as suas afirmações sobre a geografia e
sexualidade não podem ser tomadas pelo que parecem. Ainda assim,
Burton não era nenhum impostor. Como muitos outros escritores de
aventuras, construía histórias e criava ambientes. Enriqueceu as Mil
e Uma Noites com um ‘véu de imaginação’, que, como explicou,
‘serves admirably as a foil to the absolute realism of the picture in
general’.106 O jornal The Saturday Review concluía uma ambígua
recensão sobre as Mil e Uma Noites, concedendo que
Viewed as a tout ensemble in full and complete form, they
are a drama of Eastern life, and a Dance of Death made
sublime by faith and the highest emotions… They form a
phantasmagoria in which archangels and angels, devils and
goblins, men of air, of gire, of water, naturally mingle with
men of earth; where flying horses and talking fishes are
utterly realistic.107
Este comentador aprecebe-se que a ‘fantasmagoria’ de Burton
é mais do que um conjunto de mentiras, ainda que não consiga
compreender exactamente o que sejam, ou em que direcção Burton
se move. Burton não deixa claro qual o sentido do seu movimento.
Como muitos outros autores utópicos, guia o leitor por uma agradável
jornada para um determinado destino, mas acaba por não revelar
que destino final da viagem é esse, e constrói assim um espaço não
inteiramente fechado. Burton admite que as Mil e Uma Noites contêm
‘fantastic flights of fancy, the wildest improbabilities [and] the most
impossible of impossibilities’.108 Isto é verdade não apenas para os
contos que traduz mas também para as notas e ensaios de comentário.
A ‘Sotadic Zone’, que desde logo se apresenta como sendo real, não
resiste a uma crítica sustentada; o seu realismo começa a diluir-se.
Ao seguir Burton até ao interior da ‘Sotadic Zone’, o leitor fica
desorientado, e obrigado a descobrir o seu próprio caminho. É neste
ponto que o mapa ortodoxo realmente cede o lugar ao tipo de mapa
descrito por Deleuze e Guattari.

95
Geografias pós-coloniais

Intervenções em política sexual


Burton cartografa uma geografia sexual ambivalente – geografia
ambivalente e sexualidade ambivalente – enquanto expressa um ponto
de vista político específico. Afirma o seu antagonismo a uma certa
cultura e jurisprudência do seu tempo. Declara o desdém pelo ‘Mrs
Grundyism of Victorian society’.109 E, de um modo mais específico,
fala abertamente sobre o tema de sexo entre homens. Embora muitas
alegações – de afectação, frieza, e de desconhecimento generalizado
ou repugnância em relação ao próprio corpo – atribuídas aos vitorianos
não resistam ao escrutínio da História, não restam dúvidas de que
a Inglaterra vitoriana era – em linguagem actual – uma sociedade
fortemente homofóbica. Michael Mason, que geralmente defende a
mentalidade sexual vitoriana face às caricaturas que dela se fazem,
na sua história sobre os comportamentos sexuais vitorianos, concede
que ‘Of the leading prohibitions in the Victorian sexual code only that
on homosexuality is not almost universal among other cultures.’110
Uma vaga crescente de oposição do desejo e práticas homossexuais
culminaria numa nova legislação, publicada em 1885, que daria
origem a uma série de julgamentos e perseguições de pessoas
de relevo ao longo da década de 1890, muito particularmente o
famoso julgamento de Oscar Wilde. O ‘Criminal Law Amendment
Act’ (1885) continha uma cláusula, conhecida como ‘Labouchere
Amendment’, que estipulava que
Any male person who, in public or private, commits, or
is party to the commission of, or procures or attempts to
procure the commission by any male person of, any act of
gross indecency with another male person, shall be guilty of
a misdemeanour, and being convicted thereof shall be liable
at the discretion of the court to be imprisoned for any term
not exceeding two years, with or without hard labour.111
Esta adenda era um desenvolvimento um pouco misterioso –
proposta por um político liberal que lhe daria o nome, e sem ter sido
directamente requerida pelos activistas puritanos – mas consistente
com a deriva histórica deste domínio da legislação.112 Previamente,
penalizações extremamente severas podiam ser aplicadas a homens
acusados de sodomia (com homens ou com mulheres), embora na

96
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

prática tais acusações dificilmente fossem levadas a julgamento: a


prova era inefável, e tanto a polícia como os juízes sentiam relutância
em fazer aplicar as penas severas disponíveis. A lei ‘Offences Against
the Persons’ (1861) substituiria a pena de morte aplicável à sodomia
por uma reclusão de dez anos, mas viria a adicionar novos crimes
para actos mais moderados de relacionamento como carícias ou
beijos trocados entre homens.113 A lei ‘Criminial Law Amendment
Act’ (1885) daria mais um passo em frente, ao introduzir uma
sentença mais leve de dois anos de reclusão para os actos sexuais
mais moderados.
Burton não se referiu directamente a esta legislação, mas abordou
genericamente o tema afirmando que os homens que mantinham
relações sexuais com outros homens ‘deserve, not prosecution but
the pitiful care of the physician and the study of the psychologist’,114
e avançou com uma análise críptica da proibição generalizada da
homossexualidade masculina. O veículo desta tomada de posição,
como se explicou, seria a geografia sexual estruturada em redor
das distintas culturas e atitudes sobre sexualidade que se tornariam
os fundamentos de um relativismo moral. Apesar de a ‘Sotadic
Zone’ pintar da mesma forma todas as expressões de ‘debauchery’
e ‘temptation’,115 ‘erotic perversion’116 e ‘evil’,117 ‘abominations’118
e ‘corruptions’,119 um olhar mais de perto revela distintas visões
comportamentais e éticas. Ao distinguir entre vários tipos de
pederastia – entre ‘the funny, the grim and the wise’,120 entre as várias
expressões, nobre, espiritual e rude, de pederastia na Grécia antiga,
Egipto e Roma – Burton aludia a uma distinção entre expressões
boas e más de sexualidade entre homens. Ao mover-se através de
uma série de culturas de sexualidade, ao desenhar uma imagem de
diversidade, Burton reunia argumentos contra o universalismo moral
do seu tempo. A sua manobra política era críptica mas evidente, como
Isabel admitiu quando afirmou, implicitamente contra o seu marido,
de que ‘society must draw a line, make laws for the preservation of
morality and punish those who break them’.121 Nesse sentido, Isabel
colaborou com a NVA a seguir à morte de Richard, destruindo 362
cópias não vendidas das Mil e Uma Noites,122 e autorizou também
uma edição resumida das Mil e Uma Noites na qual o ofensivo ensaio

97
Geografias pós-coloniais

final seria reduzido a algumas linhas, com a seguinte explicação:


‘It has been deemed necessary to omit from this volume the Article
on Pederasty.’123 Isabel, mais do que Richard, estava no campo
vitorioso desta batalha. Incapaz de evitar a nova legislação, Richard
pôde pelo menos afirmar a sua oposição a ela e aos seus promotores,
nomeadamente a NVA. No tomo final das Supplemantal Nights,
Burton adicionaria uma longa e combativa resposta aos censores e
à imprensa, particularmente ao Pall Mall Gazette e ao seu director
William T. Stead. Stead era uma figura de proa na National Vigilance
Association, que apoiava a nova legislação sexual, e que Burton
desdenhosamente apelidava de ‘a troop of busybodies’.124 O seu
ponto de vista seria partilhado por críticos seus contemporâneos, tais
como Edward Carpenter,125 e actuais simpatizantes como Kenneth
Walker, um membro do Royal College of Surgeons que aprovou a
nova edição das obras de Burton, usando o momento para defender
que ‘homosexuals should be the responsibility of the doctor and not
of the judge’.126
Burton interveio também a um nível mais profundo, não apenas
para contestar o modo como as diversas sexualidades eram reguladas,
mas fundamentalmente para dar conta do modo como aquelas eram
compreendidas. Elementos específicos da legislação de Inglaterra e
colonial devem ser compreendidos no contexto de uma política de
sexualidade mais abrangente. De acordo com Foucault, e como já
se referiu, o ‘homossexual’ emerge como uma ‘espécie’ na Europa
à volta de 1870.127 Actos homossexuais, previamente olhados
como acidentais ou pecaminosos, passaram a ser encarados como
sintomáticos de uma orientação sexual coerente. Vários sexólogos,
fazendo uso de diferentes vocabulários, convergiram num novo
pensamento ao longo das décadas de 1860 e 1870.128 Karl Heinrich
Ulrichs incidiu a atenção sobre a distinção entre formas normais
anormais de sujeitos e práticas sexuais.129 Publicado em alemão em
1869,130 e com uma tradução inglesa em 1892,131 Ulrichs distinguia
entre o que deu o nome de ‘Urnings’ e ‘Dionings’, que correspondem
aproximadamente a homossexuais e heterossexuais.132 Para alguns
dos contemporâneos de Burton, a nova sexologia parecia ser
emancipadora. Circulava e era aclamada por homens que sentiam

98
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

que ela descrevia, explicava e legitimava a sua própria condição, e


abria o caminho para a educação comunitária e acção política.133
Foi particularmente apreciado o argumento de Ulrich de que a
orientação sexual era naturalmente herdada, e assim insusceptível
de condenação ou correcção.134 Para outros, porém, as novas ideias
eram menos atractivas. Rudi Bleys135 sugere que muitos viajantes,
comerciantes, missionários e etnógrafos de gabinete se mantiveram
presos a uma linguagem sexual arcaica porque eram ignorantes
da nova sexologia. Porém, a extensão limitada da transformação
sofrida, a adopção limitada das novas ideias e do novo vocabulário,
não podem ser explicadas apenas num contexto de conhecimento
e ignorância. Especificamente, a referência de Burton à pederastia
não pode ser facilmente esquecida. Burton não subscreveu as novas
ideias e não aceitou as suas implicações, particularmente em relação à
legislação que erigia e policiava as novas fronteiras entre normalidade
e anormalidade, com proibições em relação ao sexo entre homens e
o escrutínio daqueles que se consideravam ‘homossexuais’. Burton
fez uso de um vocabulário sexual arcaico porque se recusava a usar
o novo. Este ponto ajuda talvez a compreender por que razão, para
sexólogos contemporâenos como Havelock Ellis e J. A. Symonds,
a teorização sexual de Burton pareceria incoerente e superficial,
confundida por contradições acerca dos tipos e causas que regem o
desejo homossexual.136
Esta intervenção de Burton em oposição à sexologia categorizadora
emergente e à legislação a que esta deu origem prende-se com a
sua própia sexualidade, e está bem expressa nas geografias que
escreveu. A sexualidade que Burton vive e descreve é tão fluida
como as geografias que cartografou, com fronteiras que existem
para serem cruzadas, lugares para serem palmilhados. Apesar de
ter sido caracterizado como um ‘dual man’,137 Burton rejeitava o
dualismo. Quando os biógrafos e historiadores da sexualidade
insistiam no debate sobre se Burton seria homo ou heterossexual
– William Archer defendia que seria um homossexual reprimido,
Robert Aldrich que ‘he may have been homosexual’, Frank McLynn
que seria heterossexual – todos passam ao lado do ponto de vista
de Burton e impõe categorias históricas inapropriadas.138 Podem

99
Geografias pós-coloniais

existir vantagens em aplicar termos a pessoas que poderiam não


os aceitar nem se reconhecer neles – como Robert Aldrich faz em
Colonialism and Homosexuality, por exemplo – mas este tipo de
estratégia essencialista tem um custo: o de potencialmente deturpar o
modo como as categorias associadas são apresentadas e contestadas.
A geografia sexual de Burton não distinguia homossexuais de
heterossexuais, nem a homossexualidade da heterossexualidade.
Não era tão pouco um espaço de bissexuais ou de bissexualidade.139
Burton estava para lá de uma linguagem deste género. Embora
os seus biógrafos o apelidem de ‘dual man’,140 Burton rejeitava o
dualismo. As concepções que detinha sobre a sexualidade e geografia
eram dinâmicas e abertas. Burton não parte de pontos fixos, entre
os quais se possa mover; antes cartografa uma geografia dinâmica,
exploradora. A decisão de Burton de usar a narrativa geográfica
como um meio de referir a sexualidade incia-se com a sua rejeição de
absolutos morais. No seu modo de ver, até a Bíblia seria um código
moral histórica e geograficamente específico, não absoluto.141 O uso
que faz da viagem, mais particularmente, exprime o desdém pelo
absolutismo da fixidez dos pontos e da rigidez dos limites. A sua
geografia sexual não é a de um mundo em que ‘vale tudo’, mas é
a de um mundo em que muitas das regras são matizadas, e alguns
regulamentos especificamente revogados.

Conclusão
Ao escrever geograficamente, Burton estava em posição de assumir
a voz de um investigador profissional com um ostensivo interesse
científico em – e com autoridade para o abordar – sexo. Era também
capaz de desenvolver um tema sem deixar de o manter dentro do
seu domínio. As geografias, descobriu, providenciavam uma lente
através da qual podia observar, como que de longe, os objectos
sexuais; as geografias providenciavam-lhe também um sentimento de
dominação e liberdade imaginária. Através de geografias domináveis,
abstractas, abertas, imaginativas, era possível contemplar a ordem
sócio-sexual em ‘voo de pássaro’, uma larga escala sobre a qual se
poderia imaginar e exigir uma transformação.
Burton foi acusado de reporduzir estereótipos orientalistas.

100
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

Kabbani considera irónico que ‘someone with the linguistic and


intellectual capacities of Burton should, in the end, have helped only
to further confirm the myth of the erotic East’.142 A autora defende
que Burton, como muitos outros viajantes ocidentais ‘hardly saw
anything at all of the details before them’,143 e conclui dizendo que
‘The East became codified and static in ways that were final; no deeper
perception was permissable, nor indeed possible given the weighty
heritage of prejudice.’144 De acordo com este ponto de vista, Burtin,
orientalista primário, reproduziria construções estereotipadas do aqui
e do além, do nós e dos outros. Said generalizaria, dizendo que ‘the
details of Oriental life serve merely to reassert the Orientalness of
the subject and the Westernness of the observer’.145 Contudo, eu aqui
demonstro que Burton nunca se contentou em repetir ideias, nem
em reproduzir construções hegemónicas de geografia e identidade.
Sobre o império, Burton não se reduziu nunca a reproduzir, antes
pretendia construir um império mais forte, mais extenso, com o uso
da força se para tal fosse necessário. Tal, claramente, não faz dele
um rebelde, antes pelo contrário. Mas em relação ao tema do sexo,
Burton fazia questão de se opor à mundividência do seu tempo,
ainda que, neste domínio, para trilhar uma linha radicalmente
permissiva. Burton não pode conter, naturalmente, a vaga crescente
de legislação inglesa sobre sexo entre homens, nem tão pouco a
intolerância que a acompanhava. Porém, neste clima opressivo, as
suas geografias sexuais insistiam na ideia de que (e fazendo uso de
um grito de batalha de um movimento mais recente) ‘another world
is possible’.146

Agradecimentos
Gostava de agradecer a José Ramiro Pimenta, João Sarmento e
Ana Francisca de Azevedo, coordenadores deste livro, por me
terem convidado a contribuir com um artigo, e por me incluirem
num diálogo académico verdadeiramente internacional que é
representado por este volume e pela colecção de que faz parte. Este
artigo baseia-se e desenvolve elementos de dois estudos anteriores:
‘Writing travel and mapping sexuality: Richard Burton’s Sotadic
Zone,’ in J. Duncan e D. Gregory (eds.), Writes of Passage: Reading

101
Geografias pós-coloniais

Travel Writing, (London, Routledge, 2000), p. 70-91; Sex, Politics


and Empire: A Postcolonial Geography (Manchester: Manchester
University Press, 2006): capítulo 6, ‘Drawing distinctions: Richard
Burton’s interventions on sex between men’.

Notas
1
M. Foucault (1978). 2 R. Phillips (2004a, 2006a). 3 G. Rose (1993); M.
Brown (2000). 4 D. Bell (1995) 5 D. Bell e G. Valentine (1995); R. Phillips
(2004b). 6 D. Massey (2005). 7 R. Phillips (1996). 8 S. Alpers (1983:
133). 9 N. Smith (1994: 499). 10 J. B. Harley (1992: 233). 11 G. Deleuze
e F. Guattari (1988: 12). 12 A. Thacker (2006: 60). 13 A página de título
continua: ‘With Introduction, Explanatory Notes on the Manners and
Customs of Moslem Men and a Terminal Essay upon the History of the
Nights. Printed by the Kama-shastra Society For Private Subscribers Only.
10 vols.’ 14 Burton era autor de mais de quarenta livros publicados, embora
estes, presentes entre os seus primeiros trabalhos, fossem os seus livros de
maior sucesso. Foram reeditados quase continuamente. O livro de Burton
Pilgrimmage to El-Medinah and Meccah, por exemplo, foi reimpresso em
pelo menos cinco diferentes edições entre 1855 e 1893, data em que Isabel
Burton fez editar uma ‘Edição Comemorativa’. Ver N. Penzer (1923).
15
Ver F. M. Brodie (1967). Como afirma Brodie (p. 224), Burton era
‘acusado de […] escrever uma geografia irresponsável’. 16 O anexo de
Burton ao livro First Footsteps in East Africa, intitulado, ‘Brief Description
of Certain Peculiar Customs’, que descrevia actos de adultério e posições
sexuais dos Somalis, revelou-se demasiado para o editor, que ordenou que
fosse eliminado (Brodie 1967: 110). 17 R. F. Burton (1885-1886: 1.xiii).
18
Este tema foi explorado por vários autores, notavelmente por Robert
Aldrich (1993; 2003). 19 Brown (2000). 20 R. Phillips (2002). 21 R. Phillips
(1999). 22 R. F. Burton and C. F. T. Drake (1871). 23 I. Burton (1875). 24 I.
Burton (1875: vii). 25 I. Burton (1987: 2.525). 26 I. Burton (1897: 2.678).
27
I. Burton (1893: 2.274). 28 W. Coote (1889: 9). 29 P. L. Caracciolo (ed.
1988). 30 R. F. Burton (1885-1886: 1.ix). 31 Originalmente em dez volumes,
seguidos por seis ‘Noites’ suplementares, que mais tarde foram divididas
em sete volumes. Penzer (1923: 135) apresenta uma lista de edições
subsequentes, incluindo a de Lady Burton (6 volumes, 1886-8), de Smither
(12 e 13 volumes, 1897 e 1897), a Dever Burton Society (16 volumes,
1900-1), a Burton Club (17 volumes, 1903-4) e a Burton Club “Catch
word” (17 volumes, 1905-20). 32 Burton participou na tradução de Payne,
que foi publicada numa edição de quinhentas cópias por subscrição, e

102
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

dedicou um volume da sua própria versão a Payne. 33 R. Hyam (1990:


226). 34 R. F. Burton (1885-1886: 10.206–207). 35 Embora, como Burton
explicita num comentário de rodapé: ‘As this feminine perversion is only
glanced at in the Nights I need hardly enlarge upon the subject.’ (R. F.
Burton (1885-1886: 10.209). 36 R. F. Burton (1885-1886: 10.222). 37 R. F.
Burton (1885-1886: 10.233). 38 R. F. Burton (1885-1886: 10.224). 39 R. F.
Burton (1885-1886: 10.233. 40 R. F. Burton (1885-1886: 10.240). 41 F. M.
Brodie (1967: 329). 42 A fantasia erótica identificada por Kabbani, com
uma dimensão homoerótica explorada por Boone (1995). Ver R. Kabbani
(1986). 43 R. F. Burton (1885-1886: 10.218-22). 44 R. F. Burton (1885-
1886: 10.246, 222). 45 R. F. Burton (1885-1886: 1.vii). 46 R. F. Burton
(1885-1886: 1.vii). 47 R. F. Burton (1885-1886: 10.254). 48 R. F. Burton
(1885-1886: 10.235). 49 R. F. Burton (1885-1886: 1.xvi). 50 Burton foi
co-fundador do Cannibal Club (1863) e da Anthropological Society of
London (1873), veículos de uma ‘learned debauchery’ e etnologia sexual,
respectivamente (Brodie 1967; v. tb. W. G. Archer (ed. 1966).
51
‘Memorandum’ de uma página, não numerado, enviado com o primeiro
volume das Mil e Uma Noites de Burton. 52 R. F. Burton (1885-1886:
1.xviii). 53 Assad sugere que Burton segue fielmente o texto original das
Mil e Uma Noites, mas que adiciona muito da sua lavra nos comentários.
Para Kabbani, mesmo a tradução é uma criação. T. J. Assad (1964). 54 J.
Boone (1995: 93). 55 R Hyam (1990). 56 Numa carta para o The Academy,
datada de 6 de Março de 1886, Isabel Burton escreveu: ‘I have not read, nor
do I intend to read, my husband’s Arabian Nights’. 57 Enquanto descrevia
as Mil e Uma Noites de Payne, das quais se imprimiram 500 exemplares,
como ‘caviar para o vulgo – praticamente inatingível’, (1.xiii) Burton fez
sair 1000 exemplares da sua própria versão. 58 Burton estaria provavelmente
familiarizado com o conceito relativamente inovador de homossexualidade,
que dataria de 1869. É apontado como tendo criticado o manuscrito do
trabalho de Karl Henrich Ulrichs, da sua versão revista de The Scented
Garden, que continha uma parte extensa sobre o amor homossexual (ver
Brodie 1967). Ulrichs, como se explica postriormente, era um sexólogo
cujos conceitos analíticos e terminologia prefigurariam a concepção
moderna de homossexualidade. 59
Por exemplo, Burton (1885-1886:
1.211). 60 McLynn escreve que ‘There was a certain ambiguity in his
sexuality and an ambivalence in his study of homosexuality, prostitution,
pederasty, castration and infibulation. He dallied with Indian and Persian
mistresses, experimented with black and African women in Africa and
Asia, and whoremongered his way through the brothels of Paris.’ F. McLynn
(1990b: 8). 61 R. F. Burton (1856: 1.26). 62 R. F. Burton (1885-1886:

103
Geografias pós-coloniais

1.viii). As Mil e Uma Noites de Burton eram, originalmente, no mundo


árabe, narradas tanto a homens como a mulheres. 63 J. Duncan (1990).
64
D. Gregory (2004). 65 J. Morris (1996). 66 F. Moussa-Mahmoud (1988:
105). 67 R. F. Burton (1885-1886: 1.xi). 68 R. F. Burton (1885-1886:
6.388). 69 Burton (1860: 1.84). 70 Num típico comentário de rodapé,
escreve ‘For full details I must refer readers to my “Personal Narrative of a
Pilgrimmage to El-Medinah and Meccah” (…) I shall have often to refer to
it.’ (R. F. Burton 1885-1886: 1.28). 71 R. F. Burton (1885-1886: 6.416).
72
R. F. Burton (1860: 1.vii). 73 N Frye (1990: 187). 74 R F. Burton (1860:
1.viii). 75 R. F. Burton (1860: 1.313). 76 R. F. Burton (1885-1886: 10.95).
77
J. Campbell (1949: 58). 78 Cit. por P. Zweig (1974: 204). 79 R. F. Burton
(1856: 1.1). 80 Burton fez notar que obras literárias de Shakespeare, Swift,
Rabelais e outros autores estavam repletas de referências sexuais, que
seriam provavelmente consideradas escandalosas acaso fossem postas a
circular em jornais. Barret-Ducrocq nota que a Grã-Bretanha vitoriana ‘had
nothing to say on sexual matters but left them to the professionals: medical
specialist, pornographer and prostitute’ (F. Barret-Ducrocq 1991: 1). 81 Os
nomes principais das campanhas puritanas da década de 1880 incluem a
National Vigilance Association de William Coote, o movimento Christian
Feminist de Ellice Hopkins, e o Pall Mall Gazette de W. T. Stead. Ver R.
Phillips (2006b). 82 M. Mason (1994; 1995). 83 Por exemplo, a publicação
em doze volumes, de 1894, editada por Leonard C. Smithers (R. F. Burton
1894). Smithers faz notar que, embora ‘greater latitude is properly
allowable’ due to the book’s ‘scientific and ethnographical’ importance, the
‘extreme grossness’ of some parts render them unprintable (1.viii). Smithers
omite a maior parte do ensaio final sobre pederastia, informando apenas de
que ‘It has been deemed necessary to omit from this volume the Article on
Pederasty.’ (8.185). 84 R. F. Burton (1885-1886: 10.123). 85 R. F. Burton
(1885-1886: 10.125). 86 E. Said (1985: 235). 87 R. F. Burton (1856: 1.149).
88
R. F. Burton (1885-1886: 10.224). 89 R. F. Burton (1885-1886: 10.236).
90
R. F. Burton (1885-1886: 10.240). 91 R. F. Burton (1885-1886: 10.253).
92
R. F. Burton (1885-1886: 10.218). 93 R. F. Burton (1885-1886: 10.238).
94
Marcus (1966: 269) 95 W. G. Archer (ed. 1966). 96 Burton dedicou um
volume das Mil e Uma Noites a Monckton Milnes, um conhecido
coleccionador de erótica. Refere as bibliografias completas de Pisanus
Fraxi ou literatura sexual e de pornografia: Index Librorum Prohibitorum
(London, 1877), Centuria Librorum Absconditorum (1879) e Catena
Librorum Tacendorum (1885) (Burton 1885-1886: 10.252). Fraxi era
também conhecido como Henry Spencer Ashby (Marcus). A Burton
atribui-se o facto de bater no poeta Swinburne, em inúmeras ocasiões, com

104
‘Literaturas de Viagem e Cartografias de
Sexualidade. A ‘Sotadic Zone’ de Richard Burton’

o seu entusiástico beneplácito. 97 R. F. Burton (1885-1886: 10.170).


98
Burton manteve a sua obsessão por estes temas ao longo de toda a sua
carreira de escritor. Algumas das suas obras, tal como A Mission to Gelele
King of Dahome (1864) são quase inteiramente dedicadas a eles. 99 Marcus
identifica a flagelação como uma obsessão da pornografia da Inglaterra
vitoriana. 100 D. Massey (1994: 155). 101 I. Chambers (ed. 1994). 102 R. F.
Burton (1885-1886: 10.124). 103 M. Mason (1995: 43) sublinha o facto
antropológico comum de que ‘a considerable discrepancy between sexual
codes and sexual activities is common in human societies’, e não vê que a
Inglaterra vitoriana seja uma excepção. 104 F. M. Brodie (1967: 25, 53).
105
R. Kabbani (1986: 10), generaliza que todos os viajantes ocidentais
deram uma imagem distorcida do Oriente. 106 R. F. Burton (1885-1886:
10.124). 107 R. F. Burton (1885-1886: 6.409). 108 R. F. Burton (1885-1886:
1.viii). 109 McLynn (1990b: 176). 110 M. Mason (1995: 4). 111 Criminal
Law Amendment Act (48 & 49 Vic., Cap. 69). F. B. Smith (1976: 165); J.
Weeks (1977). 112 Em ‘Labouchere’s Amendment’, (1976: 170), Smith
afirma: ‘Male homosexuality was not reported as having been mentioned at
any of the mass meetings called by the Purity Leaguers, before or after the
adoption of the clause.’ 113 R. Aldrich (2003: 221); Offences against the
Person Act of 1861 (24 & 25 Vic., Cap. 100); F. B. Smith (1976: 165).
114
R. F. Burton (1885-1886: 10.209). 115 R. F. Burton (1885-1886: 10.222).
116
R. F. Burton (1885-1886: 10.222). 117 R. F. Burton (1885-1886: 10.233).
118
R. F. Burton (1885-1886: 10.224). 119 R. F. Burton (1885-1886: 10.233).
120
R. F. Burton (1885-1886: 10.253). 121 I. Burton (1875: 132). 122 No 9.º
relatório anual da NVA (1892-1894), por exemplo, são referidas as
contribuições financeiras e práticas de Isabel: Women’s Library, Londres
(WL, a partir daqui), National Vigilance Association Annual Report
(1894).38; ver também W. A. Coote e A. Baker (1916). 123 R. F. Burton
(1894: 8.185. 124 R. F. Burton (1885-1886: 6.400). 125 E. Carpenter (1984:
257, 260). 126 K. Walker (ed. 1964: 20). 127 M. Foucault (1978: 1.43).
128
M. Foucault (1978: 1.43). 129 J. Bristow (1997: 20–21). 130 D. M.
Halperin (2002: 131). 131 J. Bristow (1997: 4). 132 J. A. Symonds (1896:
88). Estes dois grupos eram subdivididos em numerosos subgrupos em
razão das suas preferências sexuais e identidades de género. 133 J. Bristow
(1997: 20-21). 134 J. A. Symonds (1896: 85). 135 R. C. Bleys (1996: 189).
136
Norman Penzer reproduziu extractos das obras de Havelock Ellis e John
Addington Symonds. Mostram que o último destes nomes, autor de uma
temporã e favorável crítica às Mil e Uma Noites, estava mais impressionado
com as traduções e comentários de Burton do que com as suas teorias e
pensamentos mais gerais (N. Penzer, ed. s.d.; J. A. Symonds 1896: 80).

105
Geografias pós-coloniais

Para a resposta de Burton a Symonds, ver Supplemental Nights, 6, p. 406-


412. 137 F. McLynn (1990a: 2); F. M. Brodie (1967: 175). 138 F. McLynn
(1990a; 1990b); W. G. Archer (ed. 1966: 19); R. Aldrich (1993: 173). 139 A
linguagem da bissexualidade está fora de contexto no mundo árabe, embora
os ocidentais persistam em utilizá-la. Ver F. Gollain (1996: 58-61). 140 Por
exemplo, F. McLynn (1990b: 2); F. M. Brodie (1967: 175). 141 R. F. Burton
(1885-1886: 10.228). 142 R. Kabbani (1986: 66). 143 R. Kabbani (1986:
66). 144 R. Kabbani (1986: 139). 145 E. Said (1985: 247). 146 Activistas
anticapitalismo e antiglobalização uniram-se sob o slogan ‘Another World
is Possible’ no World Social Forum.

Notas de tradução
Artigo original em língua inglesa: “Writing Travel and Mapping Sexuality:
Richard Burton’s Sotadic Zone”. Tradução de José Ramiro Pimenta em
2007, com revisão do autor.
i
‘Sotadic’ é uma palavra derivada do nome de Sótades, poeta grego famoso
pelos temas lascivos das suas composições. Optou-se por não traduzir esta
palavra, uma vez que se trata de uma expressão típica do discurso de Burton
e que parece ser inteiramente desconhecida em português.
ii
Equivalentes às seguintes expressões em inglês: ‘funny’, ‘grim’ e ‘wise’.

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109
O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado:
a geo-historiografia dos Belgae na Arqueologia
oitocentista portuguesa

José R amiro Pimenta

Uma das proezas dos Celtas, o saque de


Roma e o assédio do Capitólio, data a primeira
manifestação do ódio que ainda hoje separa
as chamadas raça latina e a raça germânica.
F. MARTINS SARMENTO
Ora Maritima

Uma teoria, qualquer que ela seja, é a expressão de espacialidades


e temporalidades várias que ‘paradigmaticamente’ são estruturadas
por uma sociologia de pesquisa com base em relações e práticas
sociais e espaciais determinadas, e que produzem e reproduzem
representações ‘regionais’ da confrontação geopolítica do tempo em
que vêm a ser produzidas:
Everything from styles of patronage, pedagogic traditions,
and conduits of intellectual tradition to networks of
communication, patterns of social organization, and
expressions of religious devotion has conditioned local
practices of scientific enquiry and the reception of scientific
knowledge. Such regional features, moreover, are not to
be thought of as ‘simply’ external to scientific enquiry, as
merely the context within which ‘universal sicence’ is carried
out. To the contrary. They have profoundly influenced the
doing of science in particular regional environments and the
knowledge claims that practicioners have made.1
O lugar teórico que os Belgas detêm na teoria etnogénica de
Martins Sarmento é disso um exemplo claro. Uma pequena região
da Europa ocidental, a Bélgica reúne ainda assim vários atributos
Geografias pós-coloniais

que fazem dela um lugar especial na confrontação entre teoria


interpretativas da pré-história europeia no contexto da historiografia
internacional da época.
Como já defendemos antes,2 cremos ser possível uma análise
paradigmática da história da Ciência (de qualquer ciência, mas
muito mais adequadamente da ciência histórica) que tenha em
consideração não apenas as marcas do ‘tempo em que vive’, mas
identifique também as ‘do espaço em que habita’.3

Os Celtas ‘puros’
A área do Báltico à Bélgica detém uma importância específica na
geo-historiografia de Martins Sarmento: corresponde à área da Europa
em que, apesar de totalmente expulsos os Lígures que ali viviam,
ainda podem ser vistas as ruínas materiais da sua antiga presença:
os dólmens. No contexto mais vasto do ‘problema do celtismo’, os
Belgas opõem-se duplamente a outros ‘Celtas da história’: por um
lado, aos ‘Gálatas’ (no sentido mais lato dos Celtas do nascente),
que ocupam a área em que os povos ‘do ferro’ expulsaram o povo
lígure e dizimaram os seus vestígios materiais; por outro lado, aos
Gauleses, que ocupam uma região em que a invasão germânica não
conseguiu sequer expulsar o povo, apenas impor os seus ‘cavaleiros’
a uma sociedade cuja ‘civilização’ se manteve na mão do druidismo
lígure.
O lugar que os Belgas podem ocupar na geo-historiografia de
Martins Sarmento fica bem manifesto nas suas próprias palavras:
Para nós é de fé que nem Tácito nem César sabem distinguir
os celtas (belgas) dos germanos, por não terem por onde; e
a ignorância que ambos mostram do íntimo parentesco entre
os belgas e os celtas do sul, permitindo-lhes fazer as suas
observações com a máxima despreocupação, dá um dobrado
peso às suas informações. Estas singelas afirmativas na boca
de uma testemunha ocular, como César: – pela língua, pelas
instituições, pelas leis, os belgas diferençam-se dos gauleses;
os belgas são oriundos dos germanos – se não querem dizer
do modo mais terminante que a língua, instituições e leis dos
celtas (belgas) são análogas à língua, instituições e leis dos

112
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

germanos, eu não sei de que fontes escritas nos há-de vir a


certeza histórica.4
As fontes históricas que o autor se refere serão, adequadamente,
César e Tácito.5 Do primeiro recolhe a informação que diz
directamente respeito à caracterização germânica dos Belgas; do
segundo utilizará sobretudo a descrição da invasão da Inglaterra,
em que defenderá uma oposição entre povos germânicos e povos
ligúricos, confinados respectivamente ao oriente e ocidente da ilha.
O mapa seguinte permitirá acompanhar os elementos da análise que
iremos efectuar.
Martins Sarmento irá propor uma interpretação dos textos de
César sobre os Belgas, com a intenção final, muito clara, de construir

Figura 1 – Os ‘Belgas’ na Geo-historiografia de Martins Sarmento

um quadro cultural de oposição etnográfica relativa entre Celtas


e Gauleses, por um lado, e em termos absolutos, entre Celtas e os
povos da Câmbria (Gales), por outro. A intenção é a de ‘desceltizar’
o que une estes dois conjuntos de povos, os povos gauleses e os
neo-célticos, de modo a poder reivindicar uma origem comum para
ambos, a que chama ‘ligúrica’, e a que considera que pertenceriam
também os povos do NW da Península Ibérica.

113
Geografias pós-coloniais

Para esse efeito é fundamental atribuir aos Belgas o atributo de


‘celticidade pura’:
É pois na Bélgica que a questão céltica pode ser estudada com
vantagem, porque não se trata agora desses celtas ambíguos
[s.n.], que representam aqui e além o papel de parasitas [s.n.]
dos outros povos e que os romanos chamavam falsamente
gauleses, antes de conhecerem os genuínos gauleses; mas
trata-se de um povo, formando uma confederação, com
instituições e leis suas, e uma raça perfeitamente definida.
Notemos que os belgas são celtas tão puros como os volcae
(variante: bolcae, belcae) tectosages e os volcae arecomices
do sul da Gália, como os tectosages do bosque Hircínio e da
Galátia, como os boios (tolisto-boii) da Galátia, do bosque
Hircínio, do vale do Pó, como os gesatas de ao pé do Ródano,
enfim como os mais legítimos celtas da história, segundo se
prova pela identidade de nomes, de usos e de hábitos entre
todas estas tribos.6
Admitida a premissa de que os Belgas são povos celtas ‘puros’,
vemos que o teorema de Martins Sarmento se desenvolve em
algumas direcções bem definidas.

Celtas e Germanos
É no contexto da apreciação da descrição dos Belgas por César,
que Martins Sarmento faz uma observação que será central na sua
argumentação:
Mas uma particularidade, que se tem explorado em todos
os sentidos, menos no verdadeiro, se não estamos em erro,
uma particularidade que temos por muito significativa, é que
César chama aos belgas germanos (…).7
Martins Sarmento tem a noção plena de que uma interpretação
‘geográfica’ e não ‘étnica’ do qualificativo de ‘germano’ na frase
de César é a que justamente pode pôr em causa a sua teoria, pelo
que de imediato toma a ofensiva: ‘Para alguns intérpretes, que esta
frase incomoda, César queria dizer que os belgas vieram dalém do
Reno, da Germânia!’ É pois a sua intenção de subsumir os ‘celtas
puros’ que são os Belgas, à sua teoria mais vasta do germanismo

114
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

dos Celtas.8
Os Celtas dos autores antigos, na opinião de Martins Sarmento,
teriam sido sempre identificados com a ‘raça dos belgas’, i.e., com
um tipo físico nórdico, ‘altos e louros’, como os que César identifica
não só entre os Belgas, como, e essa identificação deterá um papel
importante na sua geo-historiografia, com os Gauleses com, que na
‘opinião de Estrabão, os Belgas se assemelhavam de tal sorte, tanto
física como politicamente, que ambos podiam passar por irmãos’.9 É
com esta identificação que começa a ganhar consistência, no seio da
teoria interpretativa de Martins Sarmento, a ideia de que os Gauleses
poderiam ser constituídos por ‘raças’ distintas, a que corresponderiam
duas classes na estruturação social. Esta distinção viria a ser
absolutamente essencial na teoria etnogénica do investigador, e não
só replica manobras teóricas equivalentes que se vinham efectuadas
na historiografia internacional, como será acompanhada por idênticas
tentativas no seio da historiografia portuguesa.10
Em seu favor, Martins Sarmento podia ainda apresentar os
testemunhos de César de que existiam povos ‘germanos’ que
pertenciam à confederação dos Belgas, que contudo, eram por ele
denominados por ‘celtas’. Segundo informação dos Remos, povo dos
primeiros que se interpõem entre a marcha de César e a confederação
belga, ‘todos os povos da Bélgica são germânicos’. Dentre as várias
tribos que compunham a confederação dos Belgas, César identifica
várias tribos a que correspondem povos germânicos propriamente
ditos, nomeadamente, os ‘condrusos, os eburões, os caerasos, os
paemanos’. Eram-no igualmente, os Segnos e os Ubios.11 Também
os Aduáticos explicitamante se consideravam um ramo dos Cimbros,
que Martins Sarmento considera germanos. A autoridade de César
seria ainda reforçada pela de Tácito que transmite a informação de
que alguns dos povos da confederação dos Belgas, nomeadamente
os Nérvios e os Tréviros, ‘levavam até à afectação as suas pretensões
de germanismo’.12
No intuito de caracterizar a língua dos Belgas, Martins Sarmento
recorre igualmente aos testemunhos de César, nomeadamente à
informação de que entre Belgas e Gauleses, tudo era distinto: ‘língua
e instituições’, sublinhando com especial energia o facto de dessa

115
Geografias pós-coloniais

distinção ser descrita de um modo tão afirmativo que não podia


questionar-se.13
A identificação de uma distinção linguística entre Belgas e Gauleses
é, para Martins Sarmento o alicerce mais profundo da caracterização
que vai fazer dos Gauleses, por poder referir a cada uma das classes
sociais que estruturam a sociedade gaulesa, uma da cada das ‘raças’
presentes: a germânica e a ligúrica.
A distinção de ‘língua e instituições’ tem mesmo, quando
consideradas no contexto da distinção feita entre Celtas (belgas)
e Celtas (gauleses) uma importãncia acrescida se comparada com
a não distinção do tipo físico, com que entra aparentemente em
contradição. Se César considerava os Belgas como ‘germanos’, tal
se deveria preferencialmente a estas duas características, língua e
instituições, e ‘não ao tipo físico dos Belgas’, ‘visto que fisicamente
tão parecidos aos germanos, deviam ser os “Equites” gauleses, aos
quais César nunca se lembrou de qualificar de germanos’. Para
Martins Sarmento, não existe pois dúvida de que a língua dos Celtas
seria uma língua germânica, a língua ‘dos gálatas (celtas puros)’ que
‘diz S. Jerónimo, é “quase a mesma” que a dos Tréviros’, povo da
Bélgica de origem germânica’.14
A língua dos Belgas é distinta da da Gália Central, que Martins
Sarmento consideraria não germânica por razões que adiante se
indicarão, e da Câmbria, por equivalência de razões, pois seria a
mesma língua falada na Gália Central. É, por isso, retoricamente
intencional a questão que Martins Sarmento faz aos seus leitores: se
os Belgas ‘não falavam uma língua germânica’ e se não falavam ‘a
língua da Gália, como expressamente nos diz César’ também ‘não
podiam ter uma língua idêntica ao câmbrico. Que língua era então
a sua?’.15 É para responder a esta questão, a que, sem hesitações,
responde com a afirmação de que a língua dos Belgas é germânica,
que Martins Sarmento introduz o problema interpretação ‘relativa’
de alguns investigadores quanto à relação entre a língua de uns e de
outros que poderia deduzir-se do testemunho de César.
Configurando uma oposição propriamente ‘paradigmática’ entre
diversas interpretações, a frase de César de que a ‘língua’ dos Belgas
era distinta dos Gauleses, será, para os ‘celtistas’ uma referência

116
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

a uma distinção apenas ‘dialectal’,16 enquanto que para Martins


Sarmento ela diz respeito a uma diferença profunda entre línguas
inteiramente diferentes: uma língua belga (germânica) e uma língua
gaulesa, equivalente à câmbrica, o ‘chamado céltico’, que continha
algumas semelhanças com a onomástica lusitana, e que é afinal, para
o investigador, a língua dos ‘Lígures’.17
A língua a que Martins Sarmento chama, ironicamente, ‘gloriosa
língua céltica’, ‘morreu no continente sem deixar um único
representante’ e deixou ‘nada menos de quatro nas Ilhas Britânicas’.
A língua ‘lígure’, que era a dos Gauleses e é ainda a dos povos
‘neo-célticos’ das Ilhas Britânicas, é que é para Martins Sarmento
a língua que os celtistas chamam céltica, mas que a impossibilidade
de identificação com a dos ‘Celtas’ belgas torna imposível que seja
céltica, tanto mais que, nas Ilhas Britânicas, elas não aparecem na
parte conquistada pelos Belgas, mas em Gales, na Cornualha, na
Ilha de Man, na Escócia, lugares ‘onde os Celtas não puseram o
pé’.18 É este o papel teórico que os Belgas cumprem na narrativa
paradigmática de Martins Sarmento – contribuem decisivamente
para a ‘desceltização’ da língua dos Gauleses, indirectamente das
línguas ‘neo-célticas’, e, finalmente, e este é o interesse mais claro
da teoria interpretativa da pré-história europeia de Martins Sarmento,
da língua da Lusitânia.

Martins Sarmento tem, porém, um intuito mais específico do que


simplesmente demonstrar o germanismo da língua ou das instituições
dos Belgas. Como já dissemos em outras ocasiões, a ‘ardente’ teoria
do ‘germanismo dos Celtas’, que o autor, sem dúvida perfilha, é
apenas trazida para o interior da sua teoria como elemento teórico,
alicerçado numa confrontação ‘paradigmática’ com evidentes
ressonâncias geopolíticas, de modo a poder confrontar as opiniões
dominantes dos ‘celtistas’ e poder assim ganhar visibilidade
‘autorizada’ para a sua teoria ‘ligúrica’ da civilização do ocidente.19
No domínio da linguística, os Belgas detêm um papel propriamente
geopolítico muito relevante na geo-historiografia de Martins
Sarmento. No passado como no presente a região belga é uma área
de especial ‘tensão’ entre as ‘áreas culturais’ germânica e românica,

117
Geografias pós-coloniais

a que o presente linguístico dá uma espécie de aprovação posterior.


É na Bélgica que se pode traçar, e dentro de uma mesma unidade
política nacional, a linha de distinção entre a língua francesa e
neerlandesa.
A geo-historiografia de Martins Sarmento irá, assim, inserir-se
numa confrontação geopolítica mais vasta entre várias interpretações
paradigmáticas que as historiografia europeia produzia nessa data,
no contexto da oposição entre ‘germanistas’ e ‘celtistas’.
A informação de César sobre a existência de diferenças dialectais
entre Celtas do norte (Belgas) e da Gália Central (Gauleses) vai
naturalmente ser apresentada como uma marca de influência
germânica em territórios atribuídos aos Celtas. É caso de Brandes20
para quem essa diferença dialectal entre Gauleses e Belgas ‘implica
necessariamente a existência de numerosos Germanos na Bélgica’.
Esta posição atribui aos Belgas um carácter ‘de transição’ que os
distingue não só dos Gauleses, mas também dos Germanos de além-
-Reno. É esta posição em tudo ‘intersticial’ que interessa a esta parte
de caracterização mais ‘geopolítica’ da regionalização teórica da
historiografia de Martins Sarmento.
Martins Sarmento fará uso da informação de Brandes para
concluir uma pervivência na região dos Belgas de uma distinção
que vem de tempos imemoriais. O facto de a Bélgica do presente
(do autor) apresentar duas línguas distintas na sua parte setentrional
e meridional, respectivamente germânica e românica, associado
ao facto de ser ‘sabido que os Belgas se conservaram até hoje nas
conquistas que desde o princípio fizeram aquém Reno’, permitir-lhe-
-á concluir que em nenhum tempo houve ali uma língua céltica.
Os linguistas, que atribuem aos Belgas uma língua diferente da
germânica, a céltica-câmbrica, são forçados a admitir que eles
abandonaram a sua língua nacional, os do norte pela germânica,
os do sul pela latina. Razão não a dão, nem é fácil descobri-la.21
A interprtetação ‘celtista’ identifica os Belgae como célticos,
aproximando-os etnicamente dos Gauleses e opondo-os aos
Germanos de além-Reno. A Bélgica, nesta interpretação, será vista
como uma área que pertence culturalmente à Gália, e em cuja parte
setentrional terá sofrido alguma influência de povos germânicos

118
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

que atravessam o Reno e aí se instalam ou pelo menos difundem


elementos da sua cultura, nomeadamente ‘raciais’ e linguísticos.
No seio desta interpretação a fronteira mais importante está
materializada no rio Reno, fronteira durável entre Germanos e
Celtas (Gauleses ou Belgas), sendo a fronteria linguística interior
da Bélgica desvalorizada e relativizada face àquela, como limite
da área de transição e eventual dominância dos primeiros face aos
segundos.
Outra interpretação considerará os Belgae como uma entidade
étnica relativamente autónoma, quer dos seus vizinhos germanos,
quer dos gauleses. Neste contexto, a região da Bélgica seria
considerada como participando das duas áreas culturais vizinhas, a
gaulesa e a germânica, sem que, no entanto, pertença inteiramente
a qualquer das duas. Esta é uma interpretação de que resulta uma
menorização evidente da fronteira linguística interior da Bélgica
face ao fortalecimento das fronteiras da etnia belga face a Gauleses
e Germanos. É, enfim, aquela que melhor corresponde aos interesses
nacionalistas de constituição de uma nação bilingue como viria a ser
a Bélgica independente.22
Estas duas interpretações têm em comum o facto de considerarem
a influência germânica entre os Belgas como circunstancial e sempre
se operando entre povos de diferentes famílias étnicas. Em qualquer
um dos casos ficariam os Belgae como detendo a possibilidade de
serem ‘célticos’ e assim de poder transportar a sua língua para as
Ilhas Britânicas e comprometer o ligurismo da língua dos Lusitanos.
Por isso mesmo Martins Sarmento tratará de contrariar o argumento
natural de que ‘carácter germânico’ dos Belgas fosse apenas
resultado de influências de vizinhança e proximidade.23 Para que a
consistência da sua própria teoria não fosse posta em causa, tornava-
-se absolutamente necessário que os Celtas (os Belgas) fossem um
povo germânico.
Uma terceira versão interpretativa, viria a considerar os Belgas, ou
a sua área de influência e pervivência, como uma região internamente
fracturada no contexto de oposição das extensas ‘áreas culturais’
entre as quais se encontra intercalada: os Gauleses e os Germanos.
No contexto desta interpretação, a fronteira linguística interior da

119
Geografias pós-coloniais

Bélgica é apresentada como a mais relevante, atribuindo assim cada


uma das ‘metades’, setentrional e meridional da Bélgica, às esferas
culturais com que se avizinham. A fronteira linguística e cultural do
Reno, a fronteira cultural e simbólica entre Germanos e Gauleses
(como o será depois entre Germanos e Romanos e entre Alemães e
Franceses) é continuada, não pelo tramo final daquele rio mas pelo
limite linguístico que divide internamente a Bélgica entre a Flandres
e a Valónia. Esta interpretação, ‘germanicamente’ mais expansiva,
é que será a escolhida por Martins Sarmento para integrar a sua
teoria interpretativa do passado pré-histórico da Europa. As ‘duas’
Bélgicas são afinal para Martins Sarmento a expressão local da
oposição ‘continental’ entre a ‘barbárie’ e a ‘civilização’.
A Bélgica setentrional é claramente composta por povos
germânicos, em tudo idênticos aos de além-Reno, e com quem
de resto César e Tácito puderam recolher ainda informações de
contactos constantes e familiares.
Se se admite, como nós admitimos, que a Bélgica setentrional
era a região donde os Belgas, segundo a afirmativa de César,
expulsaram os povos anteriores e ficou exclusivamente
ocupada por Celtas, que falavam uma língua germânica,
enquanto na Bélgica meridional, o elemento céltico era uma
grande minoria, como na Gália central, e como nesta a grande
maioria ligúrica, e enigma decifra-se com certa facilidade.24
A influência romana na região mais não faria que reforçar esta
interpretação. Uma vez que se desenvolveu activamente na Bélgica,
mas não para além do Reno, não ‘causaria espanto que uma língua
românica obliterasse a indígena’ o que de facto veio a acontecer na
parte meridional, ‘onde provavelmente começava a mistura de Celtas
e Lígures [s.n.]’. Porém, na parte setentrional, onde se encontram ‘os
Celtas mais puros’, com o fim da dominação romana assiste-se ao
reaparecimento não da língua céltica, mas sim da ‘língua germânica,
com exclusão de qualquer outra’.25
Que esta questão toma uma expressão da mais evidente
confrontação ‘paradigmática’ com uma regionalização teórica de
fundo geopolítico, nota-se no modo como o mesmo argumento pode
ser brandido pelas duas parte em confronto: se Thierry (Amedée),

120
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

nome incontornável do ‘celtismo’, pôde sustentar que certos povos


(Cimbros) eram célticos, porque outros povos célticos (Belgas)
os reconheciam como tal, Martins Sarmento, exactamente com os
mesmo argumentos, defenderá que esses mesmos Belgas são povos
germânicos por que reconhecem como germânicos o povo dos
Cimbros.26
A Bélgica é, para Martins Sarmento, enquanto fronteira com o
mundo ligúrico, uma das áreas em que o ‘império céltico’ demonstra
a sua fragilidade civilizacional. É a margem ‘gaulesa’ de resistência
à ‘barbárie’ dos povos do ferro, e o início de uma realidade cultural
– os Gauleses – que se irá caracterizar por uma ‘miscigenação’ dos
dois mundos em confronto. Ou, o que é o mesmo, no contexto desta
narrativa bipolar de Martins Sarmento, uma região que, tendo em
tempos anteriores pertencido à ‘civilização’, aos Lígures do Báltico,
foi por esta invasão, dos Celtas da Escandinávia, desorganizada e
destruída. 27
Da Bélgica para ocidente e para sul, já ‘se deu um caso muito
diferente [s.n.]. Já os invasores da Gália Central transigem com
os povos conquistados e perfilham a sua civilização’. É a margem
‘gaulesa’ de resistência ao ‘aluvião’ celta, e que será replicado em
muitas outras áreas da Europa: a Aquitânia, a Cisalpina, e sobretudo
a Espanha. Este modelo de resistência à invasão céltica tem, na geo-
-histriografia de Martins Sarmento, a intenção de ‘impedir’ que a
onda céltica atinja a Lusitânia. Todos estes modelos de margens de
resistência, pretendem dar visibilidade a um pormenor entre todos
mais importante: a inferioridade ‘civilizacional’ dos povos do ferro
sobre os do bronze, e a necessidade que os povos celtas tiveram,
quando contactaram com os povos ligúricos mais civilizados, de os
escravizar ou de a eles se associarem, sempre na convicção de que
nunca os poderiam propriamente ‘aculturar’.
A fronteira que detém a força expansiva dos Celtas é constituída
por esses povos, que, ou a eles se opõem terminantemente numa
linha de absoluta separação, como é o caso na Câmbria e no
Danúbio, ou que, de uma forma superficial e momentânea,28 com
eles são obrigados a transigir: destes últimos, os mais notáveis pela
história são naturalmente os Gauleses e os Celtiberos. Para além

121
Geografias pós-coloniais

deste enorme território de relativa resistência ligúrica, estendem-


-se as regiões que, pela sua posição, estão defendidas, por aqueles
mesmos, da perturbação céltica, lugares a que se os Celtas chegam,
fazem-no já enfraquecidos e sem outra possibilidade que não seja a
de se sumirem na forte realidade etnogénica pervivente; territórios
que assim mantêm intocada a sua identidade anterior à perturbação
céltica; povos que, no NW da Península Ibérica tomam o nome de
Lusitanos.

A Lusitânia

A visibilidade geo-historiográfica que Martins Sarmento permite


aos Belgas no contexto da sua teoria interpretativa do passado, e
especificamente do ‘problema do celtismo’ da Lusitânia, prende-se
com o reconhecimento de alguns atributos que os tornam únicos na
‘geografia cultural’ da pré-história europeia: em primeiro lugar, para
Martins Sarmento, os Belgas são celtas puros,29 e por isso todas as
suas características antropológicas e etnográficas podem servir de
paradigma de uma definição dos atributos propriamente ‘célticos’
com que possa aferir da celticidade de todos os outros grupos étnicos,
especificamente os Gauleses, peça central na teoria histórica do autor;
em segundo lugar ocupam uma área com vestígios dolménicos que
serão, no seio na mesma teoria interpretativa, atribuídos a um povo
‘do bronze’ que os precedeu nas margens do Báltico, os Lígures;
finalmente, porque foram responsáveis pela invasão ‘germânica’
da Grã Bretanha, e assim potenciaram, entre os povos das Ilhas
Britânicas, movimentações cujos efeitos se vieram a sentir no NW
da Península Ibérica (a Lusitânia ‘primitiva’ de Estrabão).

A área da Escandinávia até à Bélgica é, no contexto da teoria


interpretativa de Martins Sarmento, a primeira que recebe o choque
da invasão céltica desde logo que este povo surge nas vizinhanças do
Báltico, vindo da Escandinávia. Sendo assim, a região dos Belgas,
nomeadamente a da sua parte setentrional, no modo como se seguia
à área que de que os Lígures haviam sido expulsos, nada mais que a
‘barbárie’ poderia ser encontrada:

122
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

O mesmo [não encontrar nada] (...) senão a barbárie


germânica, (...) sucedia desde a Bélgica até ao Báltico; mas
sabemos também pelo périplo fenício do século VI que os
Celtas, descidos da Escandinávia, se estrearam na cena
histórica, promovendo pelas suas ferozes devastações a
emigração em massa dos Lígures da margem do Báltico, mal
podendo duvidar-se que desde o Báltico até à Bélgica, os
Celtas e os Germanos, que se lhes seguem, se substituíram
aos Lígures da geografia fenícia.30
É a estes ‘Lígures da geografia fenícia’ a que, no entender de
Martins Sarmento, se deve atribuir a construção dos monumentos
megalíticos que se estendem por toda a região considerada. Os
‘dólmens’ eram considerados como pertencendo a essa ‘civilização
micénica’ que se estendia desde a Ásia Menor até ao ocidente da
Europa, e que punha directamente em contacto as descobertas de
Micenas e Sabroso ou Briteiros. De nenhum modo poderiam ser
obra de ‘Celtas’, povo do ferrro e sem ‘civilização’ suficiente para
tal.
Assim, se a arqueologia pode recolher monumentos do ‘povo
dos dólmens’ em áreas habitadas por povos de origem céltica e
germânica, isso apenas significa que a força das armas falou mais
alto que o requinte da civilização. O que para Martins Sarmento
é de todo inadmissível é que tais monumentos possam ser senão
ligúricos, como bem o demonstra a sua existência, nas Ilhas
Britânicas, justamente em áreas em que os Celtas ‘nunca entraram’.
São indiscutivelmente ‘memórias dum mundo extinto e sobre o qual
se alastrou a barbárie dos seus destruidores’.31

Existe porém um facto que gostaríamos de sublinhar na teoria


interpretativa de Matins Sarmento. Trata-se de uma característica
que o autor atribui aos povos ‘do ferro’ ecolhendo sempre os
mesmos caminhos de migração, algo a que poderíamos dar o nome
de ‘facilitação geográfica’. Este termo pretende dar conta do facto
de, para Martins Sarmento, o elemento geográfico presente na rota
das migrações dos povos mais setentrionais ser um elemento de
identificação étnica. As vagas de migrantes ir-se-iam sucedendo
aproveitando o caminho e a presença dos povos da mesma

123
Geografias pós-coloniais

‘civilização’ que os haviam antecedido. Quase não é necessário


chamar a atenção para o profundo idealismo que dá sentido a esta
proposição. É mais uma manifestação da temporalidade a-histórica
que se pode constatar em variadas passagens da obra de Martins
Sarmento.
Em termos concretos, de interpretação histórica, em que consiste
pois esta ‘facilitação geográfica’? Para Martins Sarmento, os
Belgas são apenas ‘mais uma vaga’ dos inúmeros povos que o norte
germânico derrama sobre o ocidente ‘ligúrico’ e o sul ‘mediterrâneo’,
estes dois sendo considerados como representantes da civilização
ariana que inicialmente cobria todo o território da Europa:
[T]empos depois [de os Celtas terem expulsado os Lígures do
Báltico], talvez não muito posteriormente aos do anónimo,
outras hordas com o nome de Belgas atravessam o Reno,
expulsam daí os povos pré-existentes, e tal era a sua cultura
e tal a sua maneira de compreender a civilização, que nem
comerciantes admitiam nos seus novos domínios.32
Deste suposto ‘reconhecimento’ e ‘familiaridade’ entre os povos
que se sucedem em vagas migratórias, e escolhendo os mesmos
caminhos, conclui-se a unidade étnica de povos que podem estar
separados por longos períodos de tempo na cronologia histórica, ou
separados por extensos territórios na distribuição territorial. Este não
é, porém, um elemento de teoria histórica exclusivo nem inovador
em Martins Sarmento: de facto, ele próprio refere que ‘alguns factos
da invasão címbrica, tais como a facilidade com que os Teutões e
Cimbros se entenderam [s.n.] com os Belgas e com os Volcos da
Aquitânia, que muitos têm como um ramo dos Belgas, concluía
Thierry que só a identidade de raça e da língua podia racionalmente
explicar esta rápida fraternização [s.n.].’33

Existe contudo uma distinção importante entre os movimentos


migratórios do século sétimo, em que os Celtas expulsam os Lígures
do Báltico, e as correspondentes migrações dos Belgas, um par
de séculos mais tarde. É que ao contrário dos primeiros, estes vão
atravessar o canal em frente à Morínia, e internar-se definitivamente
nas Ilhas Britânicas, e de um modo especial no seu lado oriental.

124
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

Este facto terá algumas influências históricas concretas na etnogenia


da Península Ibérica, ainda que não ponham em risco a natureza
‘ariana’ das suas populações, assim como será um contexto
específico da elaboração ‘paradigmática’ da teoria interpretativa
de Martins Sarmento, pela oposição que será necessário fazer aos
‘celtistas’ sobre a natureza e extensão da inlfuência céltica naquelas
Ilhas. Uma vez que toda a questão linguística se desenvolve em
redor da filiação étnica dos dialectos ‘neo-célticos’, quase se torna
desnecessário sublinhar o relevo que tais factos virão a deter na geo-
-historiografia do autor.
O tipo físico das populações do oriente das Ilhas Britânicas, infere-
-o Martins Sarmento a partir da descrição dos Caledónios feita por
Tácito, ‘de cabelo ruivo, alta estatura, denunciando uma origem
germânica’34, e em oposição a estes, a raça que a população que
aproximava aos Sílures35 da península de Gales, a quem o mesmo
historiador atribuía um tipo ‘ibérico’.36 Para Martins Sarmento, a
atenção que o facto merece a Tácito é a demonstração clara de que
‘o contraste das raças era mais do que acentuado’.37 Veremos que
será a partir justamente desta ‘autorização’ de Tácito, o historiador
grave e respeitado pela crítica contemporânea do autor, que Martins
Sarmento justificará o ‘limite civilizacional’ entre as culturas
‘germânica’ do ferro e a ocidental do ‘bronze’.38
Martins Sarmento, com o intuito de demonstrar que a Câmbria é
a região por excelência de dilucidação dos problemas que o opõem
aos ‘celtistas’, sente a necessidade de justificar ‘positivamente’ que
a invasão céltica das Ilhas Britânicas não ultrapassou a parte oriental
da Inglaterra. Esta demonstração é sumamente necessária na sua
teoria interpretativa do passado porque se tornava fundamental poder
atribuir à peninsula de Gales uma tripla qualidade: que possuísse uma
língua chamada ‘neo-céltica’, que interpretava os vestígios da língua
da Gália, no que todos, celtistas ou não celtistas, estavam de acordo;
em que não existisse o tipo racial nórdico, ‘da raça setentrional, de
olhos azuis, cabelos louros ou ruivos, corpulência pouco vulgar’,39
no que se auxiliará com a descrição de Tácito; e finalmente, um povo
em que o druidismo fosse uma realidade incontestável. Ora os Belgas,
funcionarão, no contexto desta manobra teórica, e especificamente

125
Geografias pós-coloniais

no quadro da invasão das Ilhas Britânicas, como o oposto de todos


estes atributos:
Não me posso furtar a um último reparo. É óbvio que, se
a civilização céltica tivesse sobre os povos meridionais, já
mais ou menos cultos, uma tão prodigiosa influência que os
transformou moralmente, por força de maior razão havia
de transformar os bárbaros Germanos, e tanto mais que a
sujeição em que muitos deles viveram por séculos debaixo
do governo dos Celtas é admitida por autoridades insuspeitas.
A civilização e língua célticas devia portanto criar raízes
profundas tanto na Bélgica, como da Bélgica para o norte.
Não é isso que se vê; antes pelo contrário.40
A intenção mais óbvia de Martins Sarmento ao referir-se a estes
povos ‘célticos’ nas Ilhas Britânicas é o de recolher a autoridade
dos historiadores romanos que testemunharam a confrontação
e distribuição geográfica entre dois povos antropologicamente
distintos, ‘de modo a não permitir dúvidas sobre as profundas
diferenças fisiológicas que as separavam’.41
No contexto da etnografia da época, os povos de origem céltica que
habitavam nas Ilhas Britânicas seriam os Caledónios e os Belgas.42
Nesta identificação está Martins Sarmento de acordo, mais a mais
porque reconhece na espada de ferro utilizada pelos Caledónios43
aquela que usavam os celtas do sul, e que tanta fama havia ganho
entre os romanos.44
A cronologia de tal ocupação não é segura, pois se César parece
recolher da memória local elementos que caracterizavam uma relação
continuamente reforçada, o uso da palavra antiquitus, permite a
Martins Sarmento atribuir a alguns séculos antes o momento de
tal invasão. Todavia, uma vez que a informação do anónimo, que
narra, sob a voz de Avieno, o périplo da Ora maritima, não conhece
nenhum celtas nas Ilhas Britânicas, Martins Sarmento conclui não se
poder fazer remontar essa invasão a momentos anteriores ao século
sexto.45
O que porém é certo para Martins Sarmento é a solidez do argumento
que lhe garante que a linha de divisão entre Belgas e Caledónios,
por um lado, e povos pré-célticos, descendentes dos Lígures que os

126
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

celtas do século sexto haviam expulsado para Inglaterra.46


São vários os elementos ‘factuais’ com que Martins Sarmento
justifica a oposição geográfica entre as duas culturas ‘céltica’ e
‘ligúrica’. Nomes tipicamente ‘célticos’, i.e., que podiam também
detectar-se em povos considerados célticos da Europa continental,
como os nomes terminados em ‘-rix’, se se encontram nas Ilhas
Britânicas, fazem-no apenas na metade ocidental da Inglaterra,
justamente a área que é ocupada pelos Belgas invasores vindos do
continente, estando completamente ausentes na área oriental em que
habitavam os Sílures e demais povos ‘neo-célticos’.47
Por outro lado, e como já foi feito referência, a distinção das raças
que, na descrição de Tácito, havia impressionado tão vivamente
Martins Sarmento, mostrava uma raça ‘céltica’ a oriente – os Belgas
que ‘em tempos recentes tinham conquistado o sudeste da ilha’ – e
uma raça totalmente diferente, a ocidente, em Cornualha e península
de Gales, de que o historiador romano justamente faz destacar o tipo
‘ibérico’. Martins Sarmento é muito claro em acentuar que neste
caso, e ao contrário do que possa ter ocorrido na área continental, o
‘contraste dos dois grupos era de tal sorte saliente, que o historiador
romano o acentua muito intencionalmente.48 Esta diferenciação
estremada dos dois povos, a partir das diferenças profundas
notadas entre os tipos físicos correspondentes, feita a partir dos
testemunhos autorizados dos historiadores romanos César e Tácito,
não tinha outra intenção que não fosse, de facto, a de apresentar
os Sílures, Demetes, Ordovices e Dumnónios, isto é, os povos ‘neo-
-célticos’ da Inglaterra como povos indubitavelmente ‘pré-célticos’.
Nesta manobra conceptual – a transição de ‘neo’ a ‘pré-célticos’
– reside toda a estratégia de Martins Sarmento quanto à etnogenia
da Câmbria e ao papel nela jogado pelos Belgas. Pela figura da
oposição estrutural, os ‘Celtas puros’ (os Belgas) garantem aos
povos da Câmbria necessária pré-celticidade que a teoria etnogénica
de Martins Sarmento exigia.49
Finalmente, se a diferença de tipo físico e de língua não fossem
ainda argumentos suficientes,50 faz notar Martins Sarmento um
outro mais que garante aos Sílures e demais povos da Câmbria uma
diferença abissal dos Belgas, reforçando assim a sua distinção e

127
Geografias pós-coloniais

mesmo oposição estrutural. O druidismo era considerado como uma


característica dos povos célticos, estando largamente reconhecido
entre os Gauleses e os povos da Câmbria. Desta coincidência
retiravam os ‘celtistas’ a argumentação de que uns e outros eram
da mesma família étnica, e especificamente céltica. O instrumento
retórico utilizado por Martins Sarmento replica o utilizado para a
distinção entre o tipo físico ou a língua, apenas com uma distinção
importante, que é a da precedência do elemento étnico considerado.
Em primeiro lugar, como fez nos casos anteriores, trata de retirar
credibilidade à filiação ‘céltica’ do druidismo, fazendo notar que
esta instituição, tão importante e estruturante da civilização céltica,
não se encontrava entre aqueles Celtas que justamente mais puros
se podiam considerar: os Gálatas e sobretudo os Belgas. Estando
já anteriormente retirada a qualidade céltica aos Gauleses, só a
migração de povos belgas poderia levar o druidismo até às Ilhas
Britânicas, e especificamente a Inglaterra. Ora ‘É claro que os
Sílures não podiam copiar dos Belgas, únicos celtas de Inglaterra,
repito, instituições que estes não tinham’, afirma Martins Sarmento,
remetendo a perenidade de tal proposição à invulgar pervivência do
celtismo no seio das teorias interpretativas da pré-história europeia.51
É claro que nesta proposição, o papel de possível celticidade que os
Gauleses podiam operar tinha sido adequadamente ‘esvaziado’ por
Martins Sarmento. Só pela invisibização conceptual a que o autor
obriga os Gauleses a passar, pode esta oposição estrutural entre
Câmbrios e Belgas funcionar devidamente. Em segundo lugar, e
muito significativamente, Martins Sarmento não deixará de recordar
que o druidismo da Gália era subsidiário do dos Sílures, pois era
aqui que se situavam as escolas onde os druídas da Gália viriam
aprender o seu ofício. Com esta hierarquização da classe ‘culta’,
mais não faz do que atribuir uma primazia civilizacional aos Lígures
‘puros’ das Ilhas Britânicas quando comparados com os Lígures já
‘miscigenados’ da Gália.52
Existe ainda uma presença quase directa dos Belgas na narrativa
da teoria etnogénica da Lusitânia. Os Belgas são mais um dos povos
que o norte ‘tinha de vomitar’ contra o sul.53
Os primeiros, os Celtas do périplo, ficaram na posse de todo o tracto

128
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

de terra que se entendia entre a Escandinávia e o Reno, expulsando


definitivamente dessas paragens os povos ligúricos que haviam
consolidado a civilização do bronze. Uma vez essa estrada aberta,
por ele foram descendo as mais diversas ‘hordas bárbaras’,54 de
cujas movimentações foi resultando o engrossamento das correntes
migratórias de povos lígures em fuga, quer para Inglaterra, se
dominassem as técnicas de navegação, quer para as áreas continentais

Figura 2 – O ‘vómito do Norte’. Note-se que os limites de ‘represamento’ da


influência céltica incluem, além do NW da Península Ibérica, os dois lugares assediados
pelos dois ‘Brennus’: o Lácio e a Grécia, filiando assim a genealogia lusitana na matriz
civilizacional das duas mais importantes manifestações culturais do Passado ocidental.

do noroeste do território francês. Dentre eles, alguns atingiram, por


qualquer uma daquelas duas origens, o NW da Península Ibérica:
chamavam-se Lígures e Draganes, e terão chegado a esta região ao
redor do século sétimo, encontando uma terra que uma ‘invasão de
serpentes’ havia deixado deserta.55
Existe porém uma singularidade dos Belgas no contexto da narrativa
etnogénica da Península Ibérica, por parte de Martins Sarmento. A
cronologia da primeira ocupação da Inglaterra, considera-a o autor
como sendo dos séculos quinto e quarto. Neste tempo já o périplo
de Avieno, que não conhecia ainda Belgas nem Celtas nas Ilhas

129
Geografias pós-coloniais

Britânicas, mas tão só Lígures, identificava já também Lígures e


Draganes no NW da Península Ibérica. Porém, o mesmo documento
referia dois povos os Saefes e os Cempses, como habitando a sul dos
anteriores. Estes povos, porém, desaparecem dos documentos de
cronologia imediatamente posterior, e em seu lugar ver-se-á aparecer
em todo o território anteriormente ocupado por eles, os Lusitanos.
É justamente esta expansão dos Lusitanos sobre os Cempses que
Martins Sarmento admite poder ter sido causada pela invasão dos
‘Celtas’ (Belgas e Caledónios) sobre os Lígures das Ilhas Britânicas,
argumentando com o facto de ser céltico o nome ‘Britânicas’ dado
àquelas ilhas por Píteas, numa cronologia não muito posterior à do
périplo, que as conhece ainda pelos nomes, para o autor ligúricos,
de Albion e Hierne.56
Aos Belgas estava, por fim, também reservado um papel activo
na etnogenia da Península Ibérica, e especificamente na Lusitânia
‘primitiva’, a região sarmentiana por excelência. Na narrativa
histórica de Martins Sarmento, as movimentações e guerras, contactos
e influências por que passam os povos de diversas e até longínquas
regiões, têm sempre uma finalidade local, uma ‘causalidade final’,
quase um desígnio, que é o de garantir pureza da árvore genealógica
na etnogenia dos Lusitanos e, desse modo, dos Portugueses.
Na ‘metafísica narrativa’ dos Belgas podem detectar-se alguns
passos que contribuem para a caracterização final da etnogenia dos
Lusitanos, e da sua relação íntima e familiar com os restantes povos
‘ligúricos’ do ocidente, nomeadamente, neste caso, com os povos da
Câmbria.
A invasão dos Belgas da Inglaterra é afinal o ‘desígnio’ cumprido
do receio dos Lígures do Báltico de que os seus invasores ‘Celtas’,
após os terem expulsado das margens do Reno, e obrigado a refugiar-
-se an Ilha da Inglaterra, os pudessem ainda perseguir no seu novo
país.57 Este receio ‘arquetípico’, pudera Martins Sarmento reconhecê-
-lo através do anónimo que, sob a voz de Avieno, o testemunhara nas
páginas da Ora maritima.58 Mas esta invasão é, sobretudo, mais um
episódio da ‘luta eterna’ entre a ‘barbárie’ e a ‘civilização’. A invasão
da Inglaterra pelos Belgas é um episódio mais da resistência do povo
‘do bronze’ às investidas do povo ‘do ferro’. A ‘perturbação’ que os

130
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

Belgas levam às Ilhas Britânicas, referida por Martins Sarmento,


é mais do que uma perturbação bélica, é a desorganização de um
mundo civilizado, com agricultura, olimpo e literatura, e a sua
substituição pela guerra, pela nomadismo, e pela irreligiosidade
– fenomenologicamente, é enfim a vitória das ‘trevas célticas’ sobre
o Agni ariano.59
A invasão da Inglaterra pelos Belgas é, por isso, não só um episódio
militar, mas a apresentação, e representação, da degradação da
civilização, por um lado (o ocidental) e a sua resistência por outro
(a oriente). Na Câmbria, onde se recolheram as tribos da Inglaterra
que os Belgas procuravam conquistar e subjugar, pôde ainda assim
a civilização ‘solar’ dos arianos, ‘salvar contra a fúria dos bárbaros
invasores, a sua independência’.60 Da defesa corajosa dos Câmbrios,
pôde a ‘linha limite’ entre a barbárie e a civilização ser detida a
meio da Ilha da Inglaterra, e assim salvaguardar, até ao presente
a legitimidade ‘ariana’ das civilizações de Gales, Cornualha e
Irlanda.61 Uma linha da mesma natureza da que será traçada por
Martins Sarmento na Península Ibérica, com o único intuito de
separar Lusitanos de Celtiberos, a expressão hispânica da civilização
e da barbárie:
No tempo de César a linha que separava o mundo celto-
-germânico do mundo ligúrico era a Bélgica; a sua expressa
afirmativa sobre o germanismo dos Belgas, a afirmativa
não menos expressa sobre a radical diferença de “língua,
instituições e leis” entre os Celtas da Gália Central e os
Celtas da Bélgica, e o facto de não se conhecer da Bélgica
para o norte outra língua, outras instituições e outras leis que
não sejem germânicas, são para mim provas irrefutáveis
desta verdade, e livram-me de transigir com o absurdo de
aceitar a hipótese de uma civilização céltica tão possante,
que transformou moralmente os povos cultos do sul, e tão
impotente contra a barbárie dos Germanos, que se deixou
transformar por ela, perdendo a sua prodigiosa cultura, língua
e tudo. Provavelmente se o povo romano se não tornasse o
campeão da civilização contra a barbárie (...) a civilização
romana que revivificou o mundo ligúrico teria morrido à
nascença, sufocada pela avalanche de bárbaros, que [o veio
a inundar] no século V da nossa era.62

131
Geografias pós-coloniais

Notas
1
Livingstone (2003: 1). Se esta estruturação regional da formulação de
teorias se admite em qualquer área do conhecimento científico, com mais
razão se amitirá que esteja presente nas áreas do saber que directamente
dizem respeito aos estudos históricos de carácter assumidaente regional ou
nacional: ‘Like nationalist history, to which it is usually closely linked, the
culture-historical approach can be usde to bolster the pride and morale of
nations or ethnic groups’ (Trigger 1991: 174-186). 2 Esta problemática da
‘localização’ da produção do conhecimento científico e a ‘geografia
histórica da ciência’ que lhe está associada, é hoje um programa de pesquisa
que conta já com bastantes publicações, algumas das quais estão
referenciadas em outro lugar (Pimenta 2006: 110), para onde remetemos.
3
‘Quanto a nós, que vimos da geografia, cremos que, justamente em razão
dessa indivisibilidade, se podem detectar nas narrativas históricas, neste
caso proto-históricas, visões alternativas que revelam o espírito de uma
época, um Zeitgeist, ao mesmo tempo que revelam um espírito de um lugar,
um genius loci’ (Pimenta 2007). Sobre a importância do anacronismo
interpretativo das historiografias do presente no estudo do passado, cf.
Grandy (2003: 246-260). 4 Sarmento (1882: 123-4) 5 É uma característica
marcante da historiografia de Martins Sarmento a autoridade que reconhece
nos historiadores clássicos, cremos por atribuir-lhes a qualidade
‘testemunhal’ que é central na sua própria maneira de fazer ciência.
Contudo, não podemos deixar de fazer aqui a usual chamada de atenção de
que a historiografia clássicas, de um modo mais ou menos estridente, têm
uma intenção fortemente panegírica (cf. Gilderhus 2003: 18-19; Gardiner
1995: 11 e Pereira 2002: 148-52), que é comum, de resto, a outras
manifestações literárias do herói clássico (Holquist 2002: 123; Bakhtin
1981: 84-110). 6 Sarmento (1882: 122). Os sublinhados pretendem fazer
notar a ‘moralidade’, implícita na teoria de Martins Sarmento, associada
aos Celtas e ao seu ‘papel’ na pré-história e história antiga da Europa. A
existência de um idioma moral-científico no anos finais do século vinte não
é um exclusivo da Arqueologia; a Etnologia e até a Climatologia irão
propor representações semelhantes do seu objecto científico (Livingstone
1992: 221-241). 7 ‘Não é evidente que a genuína civilização céltica deve
brilhar com todo o seu esplendor entre os Belgas, esses Celtas puritanos
que nem sequer se misturaram com povos doutra família?’ (Sarmento
1890-94: 391). 8 (Sarmento 1882: 122, nota 3). A passagem de César (The
Gallic War, II, 4, p. 93) aqui referida é: ‘Caesar asked them [the Remi]
what states were under arms, what was their size and their war-strength. He

132
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

discovered that most of the Belgae were of German origin, and had been
brought over the Rhine a long while ago, and had settled in their present
abode by reason of the fruitfulness of the soil, having driven out the Gauls
who inhabited the district’. 9 Sarmento (1882: 122, nota 4). 10 Em França,
a historiografia de mediados do século dezanove admitia que a França era
constituída por duas raças constituintes, os Francos, o elemento aristocrático,
e os Gauleses, o popular. Esta interpretação viria também a ser expressa no
domínio da Antropologia, quando Topinard defendeu que na população
francesa sua contemporânea se podiam distinguir dois tipos físicos distintos:
os ‘Gauleses’ e os ‘Celtas’. O antropólogo francês, ao distinguir o tipo
‘céltico’ dos historiadores do dos antropólogos, introduz igualmentre a
ideia da distinção entre o ‘povo’ e os seus ‘chefes’. Porém, para Topinard,
os chefes, de tipo físico ‘nórdico’, a que Martins Sarmento chama a ‘raça
dos Belgas’, com o intuito de os aproximar aos Germanos, é que são os
verdadeiros ‘Gauleses’; o povo, os ‘simples’ de César, a cujo tipo físico
Broca chamou ‘céltico’ e que identificou na Basse-Bretagne, são a grande
massa do povo por aqueles escravizada, e que a historiografia de Thierry
(Augustin) vê triunfar definitivamente em 1879 (Catroga 1998: 122). Em
Portugal será especialmente com a teoria ‘moçarabista’ de Teófilo Braga
(1871) que a mesma distinção racial entre classes será considerada como
elemento estruturante da própria noção de nacionalidade e argumento de
dinâmica histórica da sua afirmação. Sobre a importância na historiografia
de Teófilo Braga dos diversos elementos étnicos na constituição da
identidade portuguesa, cf.: Matos (1998: 324-32). 11 Além da passagem
antes citada, cf. as seguintes: ‘On the other side [of the Rhine] the Ubii
come nearest, a state which was once extensive and prosperous, according
to German standards. Its inhabitants are somewhat more civilisedthan the
other folk of the same race, because their borders touch the Rhine and
traders visit them frequently, and, further, because the Ubii themselves by
close neighbourhhod have grown accustomed to Gallic fashions.’ e ‘The
Segni and the Condrusi, who are of the nation and number of the Germans
and have their abode betwixt the Eburones and the Treveri, sent envoys to
Caesar to beg him not to count them among his enemies, nor to consider
that there was common cause among all the Germans on the Roman side of
the Rhine’ (The Gallic War, IV, 3, p. 183, VI, 32, p. 359). 12 ‘The Treveri
and the Nervii conversely go out of their way in their ambition to claim a
German origin, as though this illustrious ancestry delivers them from any
affinity with the indolent Gaul’ (Tacitus, Germania, XXVIII, p. 174). 13
‘[O]s celtas do norte (belgas), celtas tão sem mistura com povos gauleses
que, a ler estouvadamente um texto de César, se diria não haver sinais

133
Geografias pós-coloniais

destes na Bélgica, tinham língua e instituições diferentes das dos seus


vizinhos gauleses, o que significa pura e simplesmente que os celtas do
norte tinham uma língua e instituições propriamente suas’ (Sarmento 1882:
121). 14 Sarmento (1882: 123 e 124). 15 Sarmento (1890-94: 396-97).
16
‘[O]s celtistas interpretaram as palavras de César dum modo diferente do
que elas soam; César, mencionando a diferença da “língua, instituições e
leis” entre aqueles dois povos, não aludiria a uma diferença de línguas
propriamente dita, mas a dialectos de uma mesma língua (Sarmento 1890-
94: 396). 17 ‘É porém evidente que no texto de César a língua está na
mesma plana que as instituições e as leis. Quererá alguém provar-nos que
as instituições e as leis, constitutivas do druidismo gaulês, estavam para as
dos Belgas na relação de um dialecto para uma língua?’ (Sarmento 1890-
94: 396-97). 18 Sarmento (1890-94: 398). 19 ‘Longe de nós (…) entrar na
questão ardente do germanismo dos celtas, doutrina que se diz desacreditada
e que todavia, decerto por mau sestro nosso, perfilhamos no essencial; vê-
-se porém que somos obrigados a tocar nela para esclarecimento do nosso
estudo’ (Sarmento 1882: 123). 20 ‘Não esqueça que Brandes é um dos mais
famigerados adversários de Holtzmann [s.n.]’ (Sarmento 1890-94: 396-
97). O filólogo Adolf Holtzmann foi um enérgico defensor do germanismo
da língua céltica. 21 Sarmento (1896: 158, nota 3). E segue a explicação:
‘Pode explicar-se que um mesmo povo, igualmente romanizado,
abandonasse a sua língua pela dos Romanos, cuja civilização o fascinou;
não se explica que uma parte dela a abandonasse pela dos bárbaros
Germanos [s.n. – note-se o costumado argumento ‘civilizacional’ de
Martins Sarmento]’ (Sarmento 1896: 158, nota 3). 22 Note-se a importância
deste facto no contexto de uma independência tão recentemente conquistada
como a era da Bélgica. 23 ‘Não se pode objectar que os belgas no tempo
de César estariam de tal modo germanizados pelos povos teutónicos, já
habituados a passar o Reno, que o seu carácter primitivo se tivesse
obliterado. (…) [P]oderia inferir-se, e mal, que entre germanos e germanos
alguma diferença haveria; (…) [m]al, porque, nesta passagem [The Gallic
War,: II, 4, p. 95], germanos é um mero apelativo: ‘The Condrusi, Eburones,
Caeroesi, and Paemani (who are indiscriminately called Germans), had
promised, it was thought, some forty thousand men.’. Diferenças reais
entre diversos povos germânicos nota-as Tácito. Plínio conta entre eles
cinco raças (genera).’ (Sarmento 1882: 123 e nota 2). 24 Sarmento (1896:
158, nota 3). 25 Sarmento (1890-94: 397). 26 ‘As observações de Thierry
são perfeitamente justas; a diferença é que os cimbros são germanos para
Tácito, quere dizer, para o escritor antigo que melhor estudou os germanos’
(Sarmento 1882: 123 e 124). Esta última frase remete para uma característica

134
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

muito clara na historiografia de Martins Sarmento: a autoridade que


reconhece ao testemunho dos autores clássicos quando confrontados com a
crítica dos autores seus contemporâneos. 27 ‘A contar da Escandinávia até
à Bélgica, onde a grande massa de invasores se fixou desde o princípio até
hoje, formando ali uma segunda pátria, o mundo ligúrico ficou
completamente destruído.’ (Sarmento 1890-94: 399). Atente-se no
‘cronotope’ atemporal que podemos ver revelado nestas expressões, ‘desde
o princípio’ ou ‘completamente destruído’. Repete-se em muitas outras
proposições deste autor, e especialmente na vacua gleba do NW da
Península Ibérica que, na interpretação de Martins Sarmento da Ora
Maritima, recebeu os Lígures e Draganes vindos das Ilhas Britânicas.
28
Assim em todos esses países, desde que cessou a anarquia causada pelas
brutais invasões estrangeiras, a civilização ligúrica retomou a sua marcha e
a barbárie dos intrusos foi-se diluindo nela, do mesmo modo que a sua
raça, absorvida pela grande maioria das populações indígenas, ia
degenerando insensivelmente (Sarmento 1890-94: 399). 29
‘Mas já
notámos também que uma “civilização céltica” deve ser procurada nos
países em que estes conquistadores viveram sem mescla de povos pré-
-existentes, e que num deles, a Bélgica, donde positivamente sabemos que
os haviam expulsado, ninguém encontrou nunca senão a barbárie germânica’
(Sarmento 1890-94: 411). 30 Sarmento (1890-94: 411, s.n.). 31 E segue a
argumentação, agora na tradução moral a que permite a cultura material:
‘No domínio moral temos provas no mesmo sentido. Não se explica a falta
de instituições druídicas entre os Belgas, que expulsaram das suas
conquistas os povos anteriores, e a sua existência na Câmbria, onde os
Celtas nunca puseram o pé, e na Gália Central, onde suposto dominassem,
sabemos que conservaram a população indígena, não se explicam estes
factos, sem admitir que o druidismo era o sistema rligioso das populações
pré-célticas do norte e que desapareceu onde a conquista barbára as
exterminou, persistindo tenazmente onde elas se mantiveram, quer livres,
quer subjugadas’ (Sarmento 1890-94: 411). 32 Sarmento 1896: 74. Segundo
o testemunho de César (The Gallic War, II, 15, p. 111): ‘[W]hen Caesar
inquired as touching the nature and character of these [the Nervii], he
discovered as follows. Traders had no means of access unto them, for they
allowed no wine nor any of the other appurtenances of luxury to be
imported, because they supposed that their spirit was like to be enfeebled
and their courage relaxed thereby. Fierce men they were, of a great courage,
denouncing and accusing the rest of the Belgae for that they had surrendered
to Rome and cast away the courage of their sires. For themselves they
affirmed that they would send no deputies and accept no terms of peace’.

135
Geografias pós-coloniais

33
Apud Sarmento (1890-94: 395). ‘Não esqueça que os Cimbros e Teutões
são germanos, mesmo no entender de quase todos os celtistas
contemporâneos (...) que na sua excursão para o sul seguiram o exemplo e
o caminho dos Celtas; que escolheram a Bélgica, para aí depositarem os
seus tesouros, deixando ao mesmo tempo uma das suas tribos, os Aduáticos
[‘The tribe [of the Aduatuci] was descended from the Cimbri and the
Teutoni, who, upon their march into our Province and Italy, set down such
of their stock and stuff as they could not drive or carry with them on the
near side of the Rhine (…)’ (Caesar, The Gallic War, II, 29, p. 127)], que
ali se conservaram sempre’ (Sarmento 1890-94: 395). 34 ‘The physique of
the people presents many varieties, whence inferences are drawn: the red
hair and the large limbs of the inhabitants of Caledonia proclaim their
German origin’ (Tacitus, Agricola, 11, p. 47). 35 Martins Sarmento usa este
nome como sinédoque de todos os povos da península de Gales: ‘Sílures,
Ordovices e Demetas. Brevitatis causa só empregaremos o nome dos
primeiros’ (Sarmento 1890-94: 390, nota 1). 36 ‘[T]he swarthy faces of the
Silures, the curly quality, in general, of their hair, and the position of Spain
opposite their shores, attest the passage of Iberians in old days and the
occupation by them of these districts’ (Tacitus, Agricola, 11, p. 47). Não
esquecer que na geografia de Tácito a Península Ibérica se localizava a
oeste das Ilhas Britânicas: ‘Britain is the largest island known to Romans:
as regards its extent and situation it faces Germany on the east, Spain on
the west; on the south it is actually within sight of Gaul: its northern shores
alone have no lands opposite them, but are beaten by the wastes of open
sea’ (Tacitus, Agricola, 11, p. 43). 37 Sarmento (1882: 118). 38 A noção de
que na consituição ‘cultural’ da Europa coexistiram uma área oriental, mais
‘imperial’, e uma ocidental, mais aderida às fronteiras ‘nacionais’, estando
nesta a origem de um credo mais ‘liberal’ na evolução subsequente dos
movimentos revolucionários de todo o século: ‘Une première vague est
composée des mouvements libéraux, qui se produisent au nom de la liberté,
contre les survivances ou les retours offensifs de l’Ancien Régime. C’est le
cas de la vague insurrectionelle de 1820, des révolutions de 1830, en
Europe occidentale principalemente [s.n.]’ (Rémond 1974: II, 8). Com esta
divisão coincide também, em traços largos, mas com uma restrição
importante à sua margem setentrional, a região europeia que, num tempo
de constante confrontação e ardor revolucionário, conseguiu cumprir a
transição ‘democrática’ sob formulações relativamente tranquilas,
sobretudo quando comparadas com outras regiões da Europa: ‘C’est le
conflit entre ces forces de renouvellement et les puissances établies qui
compose l’histoire du XIXe siècle, qui explique la violence et la fréquence

136
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

des heurts. Cet affrontement entre les forces de conservation, politique,


intellectuelle, sociale, et les forces de contestation donne la clé de la plupart
des événements de l’histoire, nationalle aussi bien qu’européenne, qui,
presque toujours, tournent à l’épreuve de force, car il est exceptionnel que
l’affrontement se dénoue pacifiquement par l’application de dispositions
prévues par la constitution: ce n’est guère vrai que de la Grande-Bretagne
et de l’Europe du Nord ou de l’Ouest, les pays scandinaves ou néerlandais.
Partout ailleurs, c’est par le recours aux solutions les plus radicales, par
l’usage de la violence, que le conflit est tranché.’ (Rémond 1974: II, p. 10).
Poderia esta organização propriamente geopolítica ser reproduzida nas
teorias etnogénicas do passado? 39 Sarmento (1882: 118). 40 Martins
Sarmento refere-se especialmente a Arbois de Jubainville e Müllenhoff,
sob a autoridade do testemunho de César: ‘Now there was a time in the past
when the Gauls were superior in valour to the Germans and made aggressive
war upon them, and because of the number of their people and the lack of
land they sent colonies accross the Rhine’ (The Gallic War, VI, 24, p. 349).
41
Sarmento (1882: 118). 42 ‘Para todos os etnografistas os celtas desta ilha
[Grã-Bretanha] são representados pelos caledónios e pelos belgas’
(Sarmento 1882: 118). Os Caledónios habitavam a região da moderna
Escócia, e são na historiografia romana um dos limites que o Império não
logrou ultrapassar (materializado nas duas estruturas defensivas bem
conhecidas, os ‘muros’ de Adriano e Antonino); os Belgas, após terem
atravessado o Canal em frente à Morínia, habitavam o sudeste da Inglaterra,
onde César os identifica: ‘The inland part of Britain is inhabited by tribes
declared in their own tradition to be indigenous to the island, the maritime
part by tribes that migrated at an earlier time from Belgium to seek booty
by invasion’ (The Gallic War, V, 12, p. 249). 43 ‘The battle began with
fighting at long range; the Britons, with their long swords and short shields,
showed the determination and skill in evading or brushing aside the Roman
missiles, while on their own side they launched dense volleys of spears;
(…) the british swords, without points, did not admit of locked lines and
fighting at close quarters’ (Tacitus, Agricola, 36, p. 93). 44 Sarmento (1882:
118). Esta filiação cultural permitir-lhe-á levar o traçado da linha ‘galático-
-céltica’ de Bertrand, que é afinal a sua linha de oposição entre ‘Lígures’ e
‘Celtas’, até às Ilhas Britânicas. 45 Sarmento (1882: 118). 46 Winlow
(2001: 507-528). 47 Sarmento (1890-94: 355 e nota 3). 48 Sarmento (1890-
94: 390). 49 Sarmento (1890-94: 390). 50 Não se esqueça que da invasão
da Inglaterra pelos Belgas ‘dataria [segundo os celtistas] o predomínio da
língua dos Celtas na Inglaterra, e designadamete na Câmbria, onde se
conservou até hoje’ (Sarmento 1896: 101). 51 ‘Por Tácito sabemos que a

137
Geografias pós-coloniais

civilização dos Sílures era a druídica; e por César sabemos igualmente que
os Belgas não possuíam instituições druídicas (…). Tão claro e decisivo é
tudo isto, que chega mesmo a surpreender como o celtismo moderno tem
podido descobrir na civilização silúrica o cunho de uma civilização céltica’
(Sarmento 1890-94: 390). 52 ‘It is believed that their rule of life [of the
Druids] was discovered in Britain and transferred thene to Gaul; and to-day
those who would study the subject more accurately journey, as a rule, to
Britain to learn it’ (Caesar, The Gallic War, VI, 13, p. 337). ‘Ora [o]
druidismo (…) na Silúria [era] de tal sorte o mesmo, que os neófitos do
continente vinham aqui estudá-lo.’ (Sarmento 1890-94: 392). Seria
justamente por os Equites celtas, entre os Gauleses, se terem deixado
dominar culturalmente pela ‘cultura druídica’ que seriam objecto de desdém
por parte dos Belgas, Celtas ‘puros’: ‘Escusado é acrescentar que o nome
de celtas podia ser uma honra para a aristocracia gaulesa e um desprezo
para os seus vizinhos belgas’ (Sarmento 1882: 123). 53 Quase não é
necessário fazer referência ao poder escatológico desta expressão, e da
carga metafísica que através dela podemos identificar na estruturação da
‘filosofia da história’ de Martins Sarmento: [D]ir-se-ia que os Celtas nada
mais são que a vanguarda dessa infinidade de povos bárbaros que o norte
tinha de vomitar contra o sul, até aniquilar as civilizações mediterrâneas
(Sarmento 1880: 44). 54 ‘Já dissemos que os escritores antigos unanimemente
nos pintam estas hordas como verdadeiros bárbaros, desconhecendo ainda
todas as comodidades da vida, exclusivamente ocupados com a guerra e a
rapina, levando a devastação a toda a parte e adoptando a civilização dos
povos com que se misturaram, quando se cansaram das suas excursões de
nómadas. Há nisto alguma exageração?’ (Sarmento 1890-94: 411).
55
Sarmento (1896: 87). 56 ‘Se a ocupação do território dos cempses é
devida a uma superabundância da população lusitana, se à acessão de novas
tribos ligúricas que vieram doutra parte, é uma questão que provavelmente
nunca se resolverá. É porém muito verosímil que este facto coincida com a
invasão céltica nas ilhas britânicas.’ (Sarmento 1896: 59). 57 ‘[T]empos
depois [de os Lígures expulsos do Báltico se terem refugiado na Inglaterra]
os Belgas, que vieram após os Celtas propriamente ditos, deram razão às
antigas apreensões dos Lígures de Douvres [Dover], atravessando o canal
da Mancha e levando à famosa ilha dos Albiões uma perturbação fácil de
imaginar’ (Sarmento 1896: 101). 58 ‘Graças às numerosas lutas, as terras
foram há muito evacuadas; e os Lígures expulsos, como faz o destino a
cada passo a outros, chegaram à terra que habitam agora, quase sempre
entre densas florestas. Nesses lugares são frequentes os recifes e rígidas as
rochas; os cumes dos montes metem-se pelo céu. E foi assim que esta tribo,

138
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

fugitiva por muito tempo, viveu entre desfiladeiros rochososo, afastada das
ondas. Temia o mar em consequência dos perigos passados. Depois a
tranquilidade e o repouso, robustecida a audácia pela segurança, persuadiram-
-nos a sair dos elevados refúgios e a descer mesmo para os locais à borda
do mar’ (Avieno, Ora Maritima, v. 135-145, p. 20-21). 59 Esta oposição
entre as trevas e a luz, é tratada por Martins Sarmento no contexto de várias
lendas gregas e tradições populares portuguesas, e é quanto a nós uma das
mais profundas estruturações metafísicas da sua narrativa histórica. Vd.,
e.g., Sarmento (1894). Além das considerações propriamente mitológicas
que faz sobre as divindades solares, como Agni, Apolo ou Hélios, Martins
Sarmento utiliza os termos ‘escuros’ normalmente para os associar, não só
às divindades das ‘trevas’, como Saturno, Cronos, etc., mas também para
descrever a natureza e a localização dos povos bárbaros. É por isso que
cremos ser tão importante a origem escandinava dos povos ‘do ferro’
defendida a todo o transe por este autor. Não se trata apenas de uma questão
de geografia histórica ‘factual’; é também uma oposição estrutural, e
decerto inconsciente entre o ‘sol’ do Mediterrâneo e a ‘longa noite’ do mar
do Norte. 60 ‘Esta decadência [da vida social da ‘civilização do bronze’ nas
Ilhas Britânicas] será consideravelmente agravada, quando os Belgas,
atravessando o canal, realizarem os temores dos Lígures, subjugando-os,
bem como outras populações da parte oriental [sic; por ‘ocidental’?] da
ilha, forçando as outras a concentrar-se na Câmbria (…). Este último
desastre ainda não se tinha verificado no tempo do anónimo [‘narrador’ do
périplo de Avieno]’ (Sarmento 1896: 74). 61 ‘No entanto é fácil de provar
até à última evidência que nem os Belgas, nem algum povo céltico, dominou
nunca na Câmbria. Por César e Tácito sabemos muito bem que os Sílures,
Ordovices e Demetas, nos quais ninguém deixa de reconhecer os
antepassados dos Câmbrios actuais, tinham um tipo físico absolutamente
diferente dos Belgas invasores’ (Sarmento 1896: 101). ‘Que as coisas
deviam ter-se passado pouco mais ou menos assim, basta ver que as
instituições druídicas, inquestionavelmente pré-célticas, puderam atravessar
todas as revoluções políticas da Gália, conservando até depois da conquista
romana as suas enormes prerrogativas’ (Sarmento 1882: 120). Cf. o mapa
da invasão belga das Ilhas Britânicas reproduzido em Hubert (2001: 217).
62
Sarmento (1890-94: 399). Os sublinhados são nossos. Já antes fizemos
referência a esta metáfora ‘aluvionar’ que se pode identificar nos textos de
Martins Sarmento. Nela, os povos do Norte de Europa são sistematicamente
comparados a uma espécie de invasão descontrolada, de uma enchente
(aqui, uma avalanche) que remete para a destruição de um mundo prévio
ordenado e progressivo. Numa fenomenologia mais vasta, é afinal uma luta

139
Geografias pós-coloniais

vital do cosmos contra caos, e na qual a Lusitânia se identifica como um


dos poucos bastiões em que a civilização se pôde defender com sucesso.

Bibliografia
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Ribeiro Ferreira, 2.ª ed. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação
Científica.
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Grandy, R. E. 2003. Kuhn’s World Changes. In T. Nickles (ed.) Thomas
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140
‘O modo de representação colonial na produção
científica das paisagens imaginárias do Passado’

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Coimbra: Imprensa da Universidade, 338-415.
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Sarmento, F. M. 1933. Dispersos, Coimbra: Imprensa da Universidade.
Tácito [Tacitus]. [2000]. Agricola. Germania. Dialogus de Oratoribus.
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Winlow, H. 2001. Anthropometric cartography: constructing social identity
in the early twentieth-century. Journal of Historical Geography 27 (4):
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141
As lágrimas de Portugal : império, identidade, raça
e destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

James D. S idaway
Marc us Power

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram.
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar.1
FERNANDO PESSOA
Mensagem

Introdução: as lágrimas de Portugal?

Remapeamento do império Português

Qualquer tentativa de re(mapear) as ligações entre império e


identidade nacional portuguesa deveria começar com as obsessões
imperiais de Portugal do eminente escritor e poeta do século XX
Fernando Pessoa (1888-1935). Numa passagem de Mensagem,
Pessoa questiona o ‘mar salgado’ acerca do preço que Portugal pagou
‘para que fosses nosso, ó mar’. Em vez de procurarmos saber quanto
do mar é português (ou as lágrimas das crianças, mães e noivas
portuguesas) neste artigo tentamos explorar como a identidade
nacional portuguesa tem sido moldada por sonhos de travessias do
mar e de construção de impérios além-mar. Em particular, este artigo
é sobre a geopolítica imperial portuguesa. Queremos sugerir que o
nosso estudo crítico dos textos geopolíticos portugueses do século
XX permite reflexões vastas sobre impérios, ‘raça’, e o geopolítico.
No restante desta introdução, comporemos o cenário com um registo
Geografias pós-coloniais

da amplitude, duração, e significado do imperialismo português,


bem como uma explicação de como abordaremos conceptualizações
críticas das suas geopolíticas (secção 1.2). Na secção 2 começamos
a examinar as formas como a ditadura de direita (O Estado Novo),
se estabeleceu em Portugal no final da década de 20 do século XX
e se consolidou nos anos 30, e começou a elaborar uma geopolítica
imperial no sentido de consolidar o seu império africano e asiático no
contexto de uma proliferação alargada (através da Europa) de escritas
geopolíticas. Também merece a nossa consideração o conjunto
mais vasto de projectos arquitecturais e espectáculos de império
empreendidos pelo Estado Novo, dado que incorpora o momento
e o enquadramento no qual a geopolítica imperial portuguesa foi
formulada. Na secção 3, no entanto, centramo-nos sobre as formas
como a escrita geopolítica portuguesa foi re-trabalhada no novo
contexto global da época, após a Segunda Grande Guerra (e a
Guerra Fria). Posicionando-se como um bastião do anticomunismo
(de ‘liberdade’), a ditadura portuguesa e o seu império delapidado
sobreviveram até aos anos 70 do século XX. Neste clima fértil, a
geopolítica portuguesa atravessou algumas metamorfoses estranhas.
Primeiramente o nosso artigo analisa como esta se acomodou à
retórica ocidental da Guerra-fria de ‘liberdade’ (secção 3.1.) e traça
as manobras extraordinárias que operou, através da consideração de
ideias e reivindicações oficiais que foram feitas no Portugal imperial
acerca de uma civilização multiracial, lusotropical (Portugal nos
trópicos) única. (secção 3.2.), entre outras respostas a um crescente
anti-colonialismo e ao nascimento de movimentos de libertação
no império africano Português (secção 4). Nesta viagem julgamos
útil adaptar (bem como problematizar) as noções de Taylor2
de ‘transição geopolítica’. Ao explorarmos como a ‘transição
geopolítica’ foi erguida em Portugal, examinamos na secção 4 as
reconfigurações dos discursos geopolíticos que acompanharam a
dramática descolonização Portuguesa e a democratização após a
queda do Estado Novo em 1974. No entanto, os nossos interesses
em relacionar estes com as noções populares e oficiais da identidade
portuguesa também nos leva a considerar as continuidades e
reinscrições nas ‘narrativas geopolíticas portuguesas pós-coloniais’.

144
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

Com estas em mente, as nossas conclusões (secção 5) baseiam-se


no caso português de forma a rever as relações mais amplas entre as
tradições geopolíticas e imperialismo, incluindo algumas das suas
manifestações contemporâneas.
O exemplo português não é comummente usado nesta tarefa.
Aliás, Edward Said3 em ‘Culture and Imperialism’ defende que as
experiências imperiais Britânicas, Francesas e Norte-americanas têm
“uma coerência única e uma centralidade cultural especial” quando
comparadas com as experiências de outros impérios, incluindo os de
Espanha e Portugal. De acordo com Said4:
‘(…) a ideia de comando além-mar – saltando territórios
adjacentes para terras muito distantes – tem um estatuto
privilegiado nestas três culturas. Esta ideia relaciona-se
bastante com projecções, quer sejam na ficção ou na geografia
ou arte, e adquire uma presença contínua através da expansão,
administração, investimento e empenho propriamente ditos.
Há assim algo sistemático acerca da cultura imperial que não
é tão evidente em qualquer império como o é no Britânico ou
Francês, e de forma distinta, no Norte-americano.’
É muito possível que Said esteja errado quando considera que as
experiências imperiais estão menos centradas na cultura (e política)
metropolitana em Espanha do que em outras potências coloniais.
É certamente erróneo afirmar que estas foram menos significativas
em Portugal. Este é um Estado cujo hino nacional começa com as
palavras ‘heróis do mar, nobre povo’, cuja bandeira representa no
seu centro a esfera armilar, e cujas moedas e notas (antes de terem
sido substituídas pelas de euro) incluíam mapas do sul de África e
representavam exploradores. A companhia aérea portuguesa (ainda
estatal), refere-se à comummente designada ‘business class’ como
a ‘navigator class’, enquanto que funcionários do Estado, elites e
culturas mais populares ainda fazem inúmeras referências importantes
ao projecto nacional do império. Para além das obsessões imperiais
do ilustre escritor e poeta do século XX Pessoa, o texto clássico de
toda a tradição literária portuguesa, os Lusíadas do século XVI de
Luís de Camões, é uma história heróica de uma viagem imperial de
descoberta. Hoje Portugal é um país onde a música do fado (destino)

145
Geografias pós-coloniais

popular, o sabor a piri-piri na gastronomia nacional, e o consumo


de chá com leite e chamuças (samoosas em Indiano), têm raízes
fundamentais nas experiências recentes do império. Tudo isto, e
noções mais vastas de portugalidade, atentam o legado de império
em moldes profundos. Um livro recentemente publicado de culinária
de encontros portugueses incorpora esta globalidade portuguesa e
representa-a a uma audiência anglófona como:
‘Esta colecção fascinante de 225 receitas autênticas é o
primeiro livro de culinária a englobar todo o mundo de
língua portuguesa (…) e as suas antigas colónias (…) As
receitas vão desde os aperitivos como o ‘Pastel com o diabo
dentro’ (de Cabo Verde), passando por pratos principais
como ‘Frango à Africana’ (de Moçambique) e ‘Cuscuz de
Camarão’ (do Brasil), até às sobremesas como ‘Pudim de
coco’ (de Timor)’5.
O livro de receitas inclui menus para festas religiosas e ocasiões
festivas, um glossário, uma selecção de encomendas por correio,
uma breve história das gastronomias, e um índice bilingue, que
colectivamente pretende ‘ajudar o chefe doméstico na criação de
refeições que celebrem o legado rico, diverso e delicioso da culinária
deste império antigo’ (contracapa). Neste artigo simplesmente
experimentamos ‘a discreta se bem que persistente’ sedução do
império português e dos seus resíduos ideológicos6. Ao analisar
os impactes de tal influência sedutora no Portugal contemporâneo,
começamos também por cartografar a influência contínua que estas
narrativas exercem sobre as identidades metropolitanas (pós)coloniais
e as suas imaginações espaciais. Isto porque, apesar de algumas
disciplinas das humanidades e ciências sociais terem renovado o
seu interesse crítico nos projectos (pós)coloniais de ordem variada
desde dos anos 80 do século XX, muito do trabalho escrito em inglês
continua-se a centrar nos impérios britânico, francês e holandês, e
em grau menor ao belga e alemão, com Portugal fora do mapa, como
um género de ‘império subalterno’7. Mais ainda, os estudos pós-
coloniais têm claramente criado as suas próprias (semi)periferias;
por avassaladoramente se centrarem no império britânico e nas suas
margens8.

146
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

No início dos anos 70 do século XX Portugal ainda reivindicava


ser não apenas o primeiro, mas o império europeu além-mar perpétuo
e divinamente escolhido. Na linha do que recentemente Medina9
caracterizou como ‘guerras longas, inúteis, injustas e dispendiosas
em África entre 1961 e 1974, cerca de um milhão de militares
portugueses serviram nos conflitos nos quais quase 8000 foram
dispensados, mais de 30 000 foram feridos e mais 9000 morreram
em combate10. O financiamento dos conflitos custaram a Portugal
sensivelmente metade do seu PIB e quase levaram o Estado Novo
à falência. Um em cada cinco homens adultos serviram nas forças
armadas durante a maior parte deste período e em conflitos que, quer
em termos da sua escala relativa e certamente na sua centralidade
para a política nacional, contraíram a dimensão da intervenção
simultânea dos Estados Unidos no Vietname. Estas articulações
com a guerra colonial em África conferiram uma ferida multilateral
na consciência nacional portuguesa cujas formas continuam a
ter importantes repercussões nos significados contestados de
pertença nacional11. Depois da Guerra decorreu um período de
catarse, reflectida nas ‘literaturas terapêuticas e testemunhais’ de
romances populares que ponderam de várias formas as cicatrizes
destas articulações de Portugal além-mar com o passado africano.
Retornaremos em algumas palavras a este tema mais adiante neste
artigo.
Ao construir uma defesa para as acções de Portugal durante a guerra
colonial, o Estado Novo apoiou-se num número de mitos da ‘Africa
portuguesa’, de uma Lusitânia-paraíso tropical, e numa mitologia
de defesa da cristandade ou do mundo contra o comunismo, o que
em conjunto serviu como pretexto importante para a intervenção
geopolítica portuguesa durante as guerras de libertação africana.
Apesar de existir um vasto conjunto de textos portugueses que se
referem a ‘geopolítica’, o âmbito e profundidade deste envolvimento
português não é amplamente reconhecido12. Apesar do material de
geopolítica escrito em português ter sido alvo de escrutínio crítico, na
forma de estudos da geopolítica brasileira desenvolvida e praticada
pelo regime militar (1964-90)13, à excepção de algumas citações de
material brasileiro em texto portugueses mais recentes, estes parecem

147
Geografias pós-coloniais

operar em grande medida como esforços desligados. Certamente que


o material brasileiro circulava nos círculos conservadores e militares
que produziram a geopolítica portuguesa. É assim provável que esta
fosse uma via por onde a tradição geopolítica fluísse para Portugal.
No entanto, a falta de citações directas não nos deve surpreender,
pois o Brasil esteve ligado num projecto (póscolonial) de construção
da nação e Portugal esteve envolvido numa guerra colonial distante
e complexa e às suas manobras associadas. Onde o Brasil figura de
forma relevante na literatura portuguesa é como ponto de referência
da configuração ‘pluri-racial’ do império português, através da
chamada ‘geopolítica lusotropical’.

Uma interrogação geopolítica


A observação dos textos produzidos pelos oficiais militares
portugueses e outras figuras associadas à ideologia e política do
regime revela uma ligação explícita com a geopolítica formal,
particularmente no contexto dos dramas mais vastos da guerra
fria desde cerca de 1950 até ao início dos anos 70 do século XX.
Adicionalmente, esta ligação está longe de ser uma réplica passiva
da geopolítica alemã, italiana ou francesa anterior a 1945, ou
meramente uma versão local de uma narrativa da guerra-fria. Pelo
contrário, académicos, administrativos e oficiais, produziram uma
síntese original, certamente inspirada nas amplas tradições da
geopolítica que se desenvolveram na Europa entre as duas Guerras,
mas combinando-as com temas mais vastos da guerra-fria e narrativas
de política internacional. Neste artigo estamos especialmente
interessados em como esta síntese foi refractada através dos
discursos e tradições coloniais portugueses contemporâneos do
nacionalismo e historiografia colonial. Esta síntese de geopolítica
portuguesa será o principal foco no nosso artigo, pois tal como o
estudo de Ingram14 sobre a geopolítica contemporânea russa, a nossa
intervenção também é em parte: acautelado
‘um estudo de geopolítica formal (ou geopolítica), que
toma como objecto o pensamento geopolítico e as tradições
geopolíticas, e as relações entre intelectuais, instituições e o
contexto político e cultural como a sua problemática.’

148
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

Os anos 90 do século XX registaram uma profusão de interrogações


críticas da geopolítica, um tema que, tal como Smith15 assinalou, foi
até então: ‘ou escondido por geógrafos como um constrangimento
histórico ou protegido como o domínio privilegiado de intelectuais
de política internacional ‘realistas’’. Estas interrogações críticas
reflectem quer o sentido de uma conjuntura dinâmica global quer
o produtivo impacto teórico e político do estruturalismo. Assim, tal
como Agnew et al16 sintetizam:
‘(…) a geopolítica reapareceu na geografia política como
Critical Geopolitics: o estudo das formas como o pensamento
geopolítico entrou no entendimento prático dos políticos
e da massa pública e como a análise geopolítica formal
representa e comunica os aspectos essenciais da ‘imaginação
geopolítica moderna’.
Percebendo e abordando a geopolítica destas formas, torna-se
possível questionar um conjunto mais vasto de discursos geopolíticos,
para além da tradição formal que se designa de Geopolítica. Tal como
estabelecemos anteriormente, a nossa aplicação destas interrogações
funciona através de vários pontos de partida, se bem que um dos focos
principais é a construção e imaginação geopolítica de portugalidade.
No entanto, em primeiro lugar, as declarações propagandísticas
sobre o império e sobre o ‘lugar de Portugal no mundo’ dos regimes
autoritários de Salazar e Caetano (1926-1974) constituem um vasto
e prático discurso geopolítico. Neste sentido, temos em mente as
palavras de um dos artigos pioneiros de ‘Critical Geopolitics’17 que
reinterpretou a geopolítica como a prática discursiva através da
qual os ‘intelectuais da statecraft’ procuram ‘espacializar’ a política
internacional como um ‘mundo’ caracterizado por tipos particulares
de lugares, pessoas e dramas.
Tal como elaborações subsequentes de Critical Geopolitics, o
artigo de Ó Tuathail e Agnew chama a atenção para a forma como
os enquadramentos geopolíticos são construídos, reproduzidos
e consumidos como um processo activo por elites influentes no
contexto do aparelho do Estado e da ‘nação’ mais vasta. Assim
encontramos uma forma que auxilia a entrada na trajectória
complexa da geopolítica e império de Portugal. Para além disto, tal

149
Geografias pós-coloniais

como Campell18 tem defendido (bem como o ponto de partida de


muitas geopolíticas críticas), em parte as ‘identidades nacionais’ são
constituídas através das representações populares e do consumo de
massas da política ‘internacional’. Adiciona-se então outro estrato
(imagi-nação geopolítica) à ideia de nação como ‘comunidade
imaginada’19: isto é, as ‘imaginações’ nacionais também são
mediadas através de mundos imaginados que estão para além e
expressam as fronteiras nacionais. Com isto em mente, queremos
defender o valor de questionar criticamente as imagi-nações
geopolíticas de Portugal e de re-mapear a forma como a geopolítica
se tem articulado com império e identidade nacional em Portugal.
Como é que a portugalidade se tem centrado em torno de um mundo
de lugares, pessoas e dramas imperiais e quais são as lições mais
vastas que se podem retirar da nossa interrogação crítica desta
abundante portugalidade? Tal como noutras tradições imperiais e
nacionais e em reformulações conservadoras de geopolítica20, em
Portugal tudo isto se tornou profundamente mesclado com ‘raça’.
Consequentemente, o nosso estudo de caso português levanta mais
questões sobre a forma como as formações raciais e a ‘observação
racial’21 foram centrais para a enunciação de teorias biopolíticas
e governamentais de espaços imperiais e como estas formaram
uma parte crucial das condições de possibilidade para os discursos
geopolíticos do século XX.

A geopolítica do Estado Novo

Uma reapreciação do ‘labirinto dos mitos’


O regime do Estado Novo em Portugal foi estabelecido no final
dos anos 20 do século XX após um golpe militar que provocou
a queda da cronicamente instável república portuguesa (1991-
1926). Quase cinquenta anos mais tarde o regime estabelecido
pelo Estado Novo caiu devido a um golpe de estado em Abril de
1974. Os acontecimentos de 25 de Abril de 1974 em Lisboa têm
sido bem documentados22 e são anualmente comemorados como
um dos feriados portugueses mais significativos. O golpe realizado

150
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

nesse dia por um grupo de jovens oficiais militares pertencentes ao


‘Movimento das Forças Armadas’ iria ter inevitáveis consequências
globais – independentemente do que representasse para Portugal,
para a conjuntura na vizinha Espanha (naquele que se revelou ser o
último ano da longa ditadura de Franco), para a Europa e no âmbito
mais alargado das narrativas Este-Oeste da guerra fria, e em parte
foi consequência da frustração dos militares portugueses com a
incapacidade do antigo regime encontrar soluções políticas para as
guerras de sublevação anticolonial que surgira no império português
de África.
Para Portugal e o seu império além-mar, o 25 de Abril assinalou
o fim de mais de 40 anos de domínio de direita. O antigo regime
não colocou qualquer resistência expressiva. Esta foi também a
primeira intervenção militar com sucesso desde a queda da primeira
república em 1926. Pouco tempo depois desta data a figura de
destaque do regime, António de Oliveira Salazar, que ocupou o
posto de primeiro-ministro desde 1932 até à sua reforma forçada, foi
sucedido por Marcello Caetano em 1968. A personalidade e regime
de Salazar foram características fundamentais do século XX em
Portugal. É no entanto agora reconhecido que a análise do seu regime
e do Estado Novo que ele estabeleceu tem sofrido frequentemente
do uso de ‘categorias políticas inapropriadas’23. Quaisquer que
sejam as caracterizações que melhor capturam a sua estrutura e
ideologia24 o regime era certamente representado em primeiro
lugar pela preponderância de Salazar, que continuou até aos anos
60, em segundo plano pela hegemonia dos latifundiários de capital
industrial e comercial, em terceiro pela ideologia dos elementos
mais reaccionários de um Catolicismo eclesiástico conservador, e
em quarto lugar pelo notório repudiável desrespeito pelas liberdades
civis associado a um desprezo pelo pluralismo político. No entanto,
tal como Newitt25 apontou:
‘O verdadeiro indício para a ideologia do regime não é
que este fosse católico, fascista ou multi-racial [rótulos
associados pelos seus apoiantes e críticos], mas que este
fosse intensamente nacionalista.’
No entanto, significativamente, este nacionalismo expressou-se e

151
Geografias pós-coloniais

disseminou-se de múltiplas formas por via de um império. Aliás, para


alguns observadores, a cultura política portuguesa da era republicana
foi marcada por um ‘nacionalismo imperialista’, no qual nacional
e colonial se coligavam. Desta forma, as expressões de identidade
nacional portuguesa do século XX têm raízes coloniais profundas,
através das quais o império permite a imaginação da identidade
nacional, enquadrando uma visão de portugalidade e demarcando
a noção de centro metropolitano26. Tal como Robertson27 destaca
na sua análise de literatura da guerra colonial em Portugal, desde o
início da guerra anticolonial, a África ‘torna-se um espelho no qual
a face muda e sem dissimulação de Portugal é reflectida’. Uma outra
forma de pensar esta questão de contraste e reflexão no processo
da formação de identidade é reconhecer que ‘as imagens do centro
construídas por Portugal são sempre perseguidas pela periferia’28.
Elas são perseguidas ao ponto de em última análise o Estado Novo
não ter podido democratizar sem algum tipo de descolonização, e não
ter podido descolonizar enquanto permanecesse não democrático,
com a sua ideologia imperial intacta – pelo menos sem existir
alguma espécie de fractura profunda no regime, ou na ideologia
nacional-colonialista e no seu sistema político, ou em ambas. Tal
como o ditador Salazar ‘congelou’ a política portuguesa após a
Segunda Guerra Mundial (na qual Portugal permaneceu oficialmente
neutro), o regime apoiou-se crescentemente num número de temas
históricos e imperiais numa tentativa de fortalecer a sua hegemonia e
legitimidade: o que observadores críticos designam de ‘labirinto dos
mitos’29 ou se têm referido como a ‘metafísica do colonialismo’30.
Esta mitologia oficial ou metafísica celebrou a missão de civilização
de Portugal, através da construção de um enquadramento geopolítico
particular – uma amálgama vigorosa de temas históricos, religiosos e
geográficos e metáforas que inscreviam Portugal como base essencial
de civilização com uma grande missão e, adicionalmente, como uma
grande potência. Apesar destes re-incorporarem expressões anteriores
de missão (e messianismo), crescentemente o Estado Novo teve ao
seu dispor os aparelhos modernos ideológicos do estado como os
meios de comunicação social e a educação (bem como os modos
mais tradicionais da religião). Estes contribuíram para um aumento

152
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

na capacidade administrativa do estado para codificar e disseminar


uma geopolítica imperial, perpetuando a lenda de Portugal como
um centro da história mundial. O Estado Novo, em particular, foi
capaz de beneficiar (a partir do início dos anos 30) de um serviço
de transmissão imperial que por seu turno se espelhava de perto e se
articulava com redes de transmissão específica ‘locais’ estabelecidas
nas colónias31.
A própria Lisboa (apesar da tremenda pobreza de muitos dos seus
residentes) era energicamente promovida como a grande capital
do império32. Um exemplo emblemático disto mesmo é a série
de conferências, exposições e espectáculos que tiveram lugar em
Lisboa e no Porto nos anos 30 e 40. A uma escala mais abrangente
estes eventos liderados pelo Secretariado da Propaganda Nacional,
estavam associados a programas de renovação urbana que pretendiam
reabilitar infraestruturas locais nas áreas onde aconteciam, deixando
um legado físico duradouro que ainda hoje molda as paisagens
culturais urbanas de Portugal e que ainda são em grande medida uma
parte da economia da sua ‘cultura visual’33. Esta herança encerra
os motivos decorativos que ornam o interior e exterior de muitos
edifícios públicos, a totalidade de bairros construídos durante os
impulsos fascistas deste período, e as muitas estátuas, parques
públicos, jardins, castelos, palácios e igrejas cuidadosamente
restaurados pelo regime. Todos estes elementos testemunham as
tentativas do Estado Novo de enraizar e entalhar (no contexto das
políticas populares e imaginação cultural dos cidadãos portugueses)
no império um sentido de destino histórico de Portugal e continuam
a ilustrar como as práticas culturais salazaristas ainda moldam a
imaginação nacional do que significa ser português.
O culminar desta extraordinária década de propaganda imperial foi
em 1940 – o ano em que a maior parte da Europa tinha sido rendida
ao fascismo – com a organização em Belém da Exposição do Mundo
Português. Belém (Bethlehem em português) significa nascimento,
origens, e reivindica um destino divinamente predeterminado. Este
subúrbio de Lisboa nas margens do Tejo tornou-se desde então um
local (e vista) turístico fundamental para os visitantes que chegam
a Lisboa. Contém uma extraordinária concentração de ícones da

153
Geografias pós-coloniais

exploração e descobertas portuguesas: um Padrão/Monumento dos


Descobrimentos Portugueses de meados do século XX (figura 1), o
Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém ambos do século XV,
construídos em estilo clássico, conhecido por género arquitectónico
Manuelino (devido a D. Manuel I, 1445-1521), rico em motivos
coloniais tais como cordame náutico, palmeiras tropicais, velas e
sextantes. Um novo centro de convenções - construído para albergar
um encontro da União Europeia – e um memorial nostálgico aos
mortos da guerra colonial que reforça o sentido de que este lugar
incorpora a missão histórica mundial de Portugal.
Outras exposições coloniais têm sido alvo de vários estudos
críticos34. Em comum com estes outros exemplos, as exposições
portuguesas partilham (embora reclamando sempre uma
singularidade portuguesa) características universais como caricaturar
grosseiramente as ‘culturas’ exibidas, incluindo a exposição de
pessoas. Dom António, por exemplo, ‘um rei do Congo [sic]’ e a
sua família foram exibidos às multidões na Exposição do Mundo
Português.35
Tal como em Espanha, as exposições apresentavam uma ‘narrativa
mitificada da história imperial36, ou representavam articulações
espectaculares da modernidade colonial. Ao glorificarem o
progresso tecnológico do capitalismo nos territórios além-mar,
muitas delas também podem ser entendidas como ‘fantasmagorias
populares de patriotismo e consumismo’37. No entanto, enquanto
que o resto da Europa estava a ser arrastada para o princípio da
Segunda Grande Guerra, em Portugal celebrava-se a abertura de
uma série de exposições sobre o mundo português e a sua história
imperial singular. Nestas exposições e conferências, determinados
idiomas dominavam a representação de culturas não europeias,
sem existir qualquer correspondência com a realidade da vida nas
colónias. No decurso de muitos destes acontecimentos públicos, o
Jardim do Ultramar em Lisboa bem como outros espaços públicos
e parques na capital eram palco de cocktails de gentes africanas,
juntas e apresentadas nos seus habitats ‘autênticos’ e ‘originais’,
por forma a disseminar uma visão de Portugal e do seu povo como
parte de um espaço protegido, no centro do império, ocupando

154
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

uma posição privilegiada a partir da qual se imagina e define o


sentido de identidade e pertença nacional. Para Salazar, o império

Figura 1 - O Padrão/Monumento dos descobrimentos Portugueses,


construído em 1961 em Lisboa para comemorar o aniversário dos cinco
séculos da morte do Infante D. Henrique.

era uma arma na arena diplomática, uma fórmula mágica para lidar
com as questões políticas complexas pelo menos até ele ter ficado

155
Geografias pós-coloniais

‘prisioneiro no labirinto por ele próprio construído’38.


O regime de Salazar construiu-se desta forma como o legítimo
herdeiro da ‘missão civilizadora’ incorporada por anteriores
exploradores como o Infante Dom Henrique e Vasco da Gama39.
Por sua vez, estas várias exposições e seminários foram geralmente
organizados por um conjunto de comissões e missões nacionais ou
‘tropicais’ (por exemplo o Secretariado da Propaganda Nacional, o
Instituto de Investigação Científica Tropical, a Agência Geral das
Colónias), todas elas sublinhando a continuidade histórica de cinco
séculos de expansão e ‘civilização’ portuguesa além-mar, apoiando-
se nos conhecimentos e arquivos da Sociedade de Geografia de
Lisboa. Estas agências procuravam dirigir a ‘lição de colonialismo’
aos povos portugueses e eram consideradas parte fundamental do
que Salazar se referia como o projecto de ‘colonização interna’ (na
discussão da ‘Exposição Colonial’ do Porto de 1934).
Em parte, podemos encontrar a génese de exposições coloniais
desta natureza na vontade de certos indivíduos e organizações chave
que agiram energicamente (manobrando entre as potências imperiais
mais vigorosas) de forma a marcar um lugar para Portugal em África
durante a inquietação que se seguiu ao Congresso de Berlim (talvez
de forma mais notável a Sociedade Geográfica de Lisboa, fundada
no último dia do ano de 187540) e a mais ampla racionalização e
crescimento do aparelho do Estado que constituiu o Estado Novo
de Salazar a partir dos anos 20. O Acto Colonial de 1930, na qual
o regime administrativo do império foi re-codificado, reorganizado
e de novo regulado nos princípios autoritários mercantilistas41, foi
um factor crítico (mais racional, mais sistematicamente explorador)
pertencente a uma vasta arquitectura de uma nova ordem no império
português. Para Salazar e os seus ideólogos, 1940 foi particularmente
importante pois os acontecimentos na Europa pareciam direccionar-
se indubitavelmente a favor do Eixo (dificultando o balancear
português), mas também porque por detrás de uma fronteira com
Espanha, segura pelo acordo de 1939, Portugal podia celebrar o
tricentenário (1640) da Restauração da Independência (de sessenta
anos de domínio castelhano), e contemplar novas glórias. A
preservação do império foi um factor importante que contribuiu para

156
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

a decisão de adoptar uma posição de neutralidade durante a Segunda


Guerra Mundial. Esta auto-preservação imperial foi tão importante
para a neutralidade portuguesa como quaisquer simpatias pró-Eixo
(que foram sempre mais pró-italianas do que pró-germânicas e
tanto geradas pelo confronto do Eixo pós-1941 com o bolchevismo
como pela empatia directa por Hitler). A neutralidade portuguesa
também serviu os aliados, dado que o Reino Unido pôde reivindicar
o tratado Anglo-português de forma a utilizar os Açores como uma
base Britânico-Americana e manter a Alemanha fora da península
Ibérica42. No início, Salazar argumentava que apenas as forças
britânicas podiam utilizar esta base, mas a impossibilidade de separar
estas forças das americanas e o seu valor como um posto intermédio
de reabastecimento e correio levou a uma pressão americana por
uma concessão. O presidente americano Roosevelt, com o apoio do
congresso e um conjunto influente dos media, autorizou o seu chefe
do estado-maior em Lisboa a negociar com Salazar. No início dos
anos 40, este era George Kennan – mais tarde colocado em Moscovo
onde se tornou famoso, em Julho de 1947, como autor de um texto
(primeiramente um ‘longo telegrama’, e de seguida um artigo em
Foreign Affairs), que alegou revelar as ‘fontes do comportamento
soviético’43. Como parte das suas negociações, Kennan concedeu
reconhecimento americano à soberania portuguesa de todo o
império. Assim, após alguns equívocos iniciais, os Açores foram
subsequentemente reconhecidos, quer por Portugal quer pelo seu
aliado Americano, como uma ligação ‘estratégica’ vital44.

A arte de não ser um Estado pequeno

O significado do império
A arte de cartografar e as telas de mapas representam uma
concentração de discursos geopolíticos, tal como mostram muitos
estudos de caso de, por exemplo, cartografias imperiais e geopolíticas
francesas, latino americanas e italianas45. Quando os mapas em
questão têm uma aparência e afirmação brilhante e perspicaz e são
expostos a audiências de massas, estas cristalizações geopolíticas

157
Geografias pós-coloniais

adquirem um significado especial. Em Portugal o processo de


propagar a mitologia geopolítica do império e de disseminar a
imagem de um centro metropolitano com dependências periféricas
teve lugar não apenas nas várias exposições coloniais, mas também
através de mostras em edifícios públicos e através das mensagens
poderosas contidas nos livros escolares. A este respeito, os livros
escolares produzidos durante o período do Estado Novo geralmente
consideravam o país e os seus líderes como posicionados no terceiro
ou quarto lugar do poder na liga das nações46.
O mapa reproduzido na figura 2 foi originalmente produzido como
parte integrante da ‘Primeira Exposição Colonial Portuguesa’ que
teve lugar no Porto em 1934. O seu subtítulo ‘Portugal não é um
país pequeno!’ reforça a expressão cartográfica e rejeita ansiedades
portuguesas sobre o lugar do país na ordem geopolítica. Ao contrário
de mapas revisionistas que apareceram na Alemanha e Japão ao
mesmo tempo – ou mapas portugueses anteriores como o Mapa Cor
de Rosa47 publicado em 1887 para reivindicar o território da África
austral do Atlântico ao Índico – tal mapa não constituía, claramente,
qualquer ameaça ou fonte de alarme para os outros poderes europeus.
Mostrava simplesmente que Portugal era já tão grande como estes
outros poderes imperiais, e ‘tão grande’ como qualquer poder da
Europa continental, não tendo necessidade de quaisquer novas
configurações ou anexações. O seu compilador, o prolífero Henrique
Galvão, estava certamente consciente do discurso geopolítico mais
vasto da Euro-África, ao qual se refere numa publicação de 1936
sobre ‘O império’, onde aponta que:
“A história de Portugal reflecte sucessivamente – com a
formação do reino (século XII) – a finalidade peninsular;
com a luta contra os Mouros – luta que assegurou à Europa
a defesa contra este elemento anti-europeu – a finalidade
europeia; e finalmente, com a nossa expansão marítima, a
finalidade mundial48.
Foi precisamente este sentido de missão e finalidade que Galvão
procurou popularizar em Portugal, escrevendo diversos textos
e monografias sobre o império e várias narrativas e romances
desenrolados em África (um dos quais recebeu o ‘prémio de

158
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

literatura colonial’). Galvão (1895-1970) era uma personagem


notável, originalmente um apoiante da ditadura do pós-1926,
ascendeu a posições de responsabilidade no aparelho do Estado Novo
– incluindo por várias vezes a governação de cidades em Angola, o

Figura 2 – “Portugal não é um país pequeno” (fonte: Henrique Galvão, 1934 ©


Arquivo Histórico Militar, Lisboa)

papel de Director da Emissora Nacional (1935-1941), a organização


da Exposição Colonial do Porto em 1934 e a co-cordenação da
‘secção colonial’ da Exposição do Mundo Português em 1940.49 No
entanto, escrevendo em 1936 – então como apologista do Estado
Novo – Galvão defendeu que Portugal representava um exemplo
de uma ‘civilização em equilíbrio’ e que o país tinha uma aptidão
especial para uma missão histórica, que ‘o nosso destino nos dá’50.
Desta forma, para Galvão, o poder imperial português resultaria em
ordem, mais ‘civilização’, e seria incutido de um espírito cristão que
via como resposta à:
“Falência da Europa face aos Estados Unidos, [que] insta
uma reorganização espiritual, política e económica, que
não pode constituir em si mesma – excepto através da

159
Geografias pós-coloniais

formação de um novo continente económico Euro-africano


para se opor ao continente económico americano. A nossa
posição geográfica e a extensão dos nossos domínios em
África, indica-nos como o lugar da revelação desta tarefa de
dimensão eminentemente europeia”.
Salazar partilhava esta posição e estava interessado em destacar
a continuidade com tradições nacionais de descoberta e exploração
anteriores e como tal, o mapa de Galvão de 1934 foi reeditado
nos anos 40 e ‘exibido prodigamente em escolas e outros serviços
públicos’51. O mapa foi também amplamente usado na Escola
Colonial, que originalmente foi criada dentro da Sociedade de
Geografia de Lisboa em 1926.
Outros oficiais militares e coloniais constataram que certos
aspectos do pensamento geopolítico de língua germânica podiam
ser útil e sistematicamente aplicados ao império português52. No
entanto, estas referências à geopolítica germânica são relativamente
insignificantes quando se considera a grandeza das codificações
geopolíticas do destino português e as meditações sobre a missão
e prática imperial53. Em suma, Portugal não teve a ‘necessidade’ de
simplesmente importar e replicar noções geopolíticas externas, da
mesma forma como (por exemplo) a escrita geopolítica alemã se
tornou influente em Itália, na Hungria, na Roménia ou em muitos
estados latino americanos. Portugal desenvolveu os seus próprios
discursos, que ao mesmo tempo pertencendo ao amplo zeitgeist
fascista e imperial, registavam uma singularidade e individualidade
considerável.
Certamente, como podia a singularidade do caso Português ser
ignorada quando o país deu existência ao mundo ao descobri-lo para
toda a humanidade? Porquanto de acordo com o estudo crítico de
Guimarães54 sobre a ideologia do Estado Novo:
‘A coerência do sistema suportava-se a si própria num
conceito geográfico muito particular, que imaginava que o
mundo só existia através da descoberta pelos portugueses.’
Assim, enquanto as elites proprietárias de terras e mercantis
continuavam a colher a maior parte dos benefícios, também Portugal
podia continuar a usar no palco mundial o seu destino único e

160
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

heróico, tendo desenvolvido um discurso geopolítico codificado


e uma prática geopolítica de império e neutralidade oficial,
manobrando (por vezes de forma precária) entre os Aliados e o Eixo:
vendendo matérias-primas essenciais a ambos55. À semelhança de
Franco, o regime de Salazar não capitulou (tal como muitas figuras
da oposição desejavam) após o eclipse do fascismo Europeu em
1945. Na verdade, Portugal foi capaz de se posicionar seguramente
(como um ‘bom’ Estado anti-comunista) na nova ordem mundial
pós-194556. Como resultado, as formulações geopolíticas imperiais
dos anos 20, 30 e 40, transformaram-se em formas novas e de certo
modo fascinantes.
Ao pensar no aparecimento de um ‘código geopolítico’ português
em desenvolvimento, é possível retirar vários temas recorrentes e
persistentes que se tornaram declaradamente evidentes nos discursos
geopolíticos portugueses do pós-1945. Possivelmente a questão
mais central e decisiva foi a concentração na preservação (na
verdade, consolidação) do império. O sentido de si próprio como o
centro histórico nevrálgico de um império marítimo remoto já tinha
constituído as bases de um centralismo rígido. No entanto, o declínio
económico relativamente longo e a ascensão de outros poderes
europeus significou que isto tinha sido afrontado. O Brasil tinha sido
perdido nos anos 20 do século XIX, quando políticas revolucionárias
europeias (na forma de ‘guerras napoleónicas’) agitaram brevemente
a ordem antiga da Península Ibérica. O que ficou foi o império
africano – a (re)partição de África no final do século XIX, que
deixou Portugal com os territórios de Angola e Moçambique na
África Austral, a Guiné na África Ocidental, e os arquipélagos de
Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe. Adicionalmente, Portugal
manteve alguns territórios relativamente pequenos na Ásia: Goa,
Damão e Diu, e ainda Macau e Timor-Leste. O código de Portugal
encerrava uma característica específica que era o ímpeto para a
integração do sistema Atlântico da NATO (Organização do Tratado
Norte Atlântico), do qual Portugal era um membro fundador.
Salazar tentou, sem sucesso, alargar a área incluída nas condições
do tratado da NATO, com vista a incluir o império português – tal
associação à NATO provocou uma série de debates nas forças

161
Geografias pós-coloniais

armadas portuguesas no que concerne o modo de integração de


Portugal na nova ordem: nenhuma das quais, no entanto, alterou a
centralidade do império na geopolítica do Estado Novo57. A pertença
à NATO também representou uma certa continuidade na orientação
portuguesa, nos termos a que se refere Teixeira58 como ‘uma aliança
permanente e privilegiada com um poder marítimo no Atlântico
que era tradicional na política externa de Portugal’, enquanto que
simultaneamente assinalava que o pólo principal desse poder se
tinha agora decididamente mudado para o outro lado do Atlântico.
Adicionalmente, a associação à NATO também colocou em marcha
uma rápida modernização técnica das forças armadas, e quando
os movimentos nacionalistas modernos começaram a contestar a
soberania portuguesa em África e em Timor (a partir do início dos
anos 60), as armas e material da NATO (e em certa medida algum
apoio diplomático) foram cruciais nas respostas portuguesas59.
No entanto, provavelmente a característica mais significativa da
estrutura geopolítica em funcionamento após 1945, é a de que a
linguagem e terminologia usada para definir ‘colónias além-mar’
foi depurada de forma a mascarar as realidades exploradoras do
império português, resultando em que estas possessões longínquas
fossem semanticamente fabricadas passando ao estatuto de serem
simplesmente ‘províncias ultramarinas’ de Portugal. Este acordo foi
formalizado em 1951, com a promulgação da revisão constitucional,
que substituiu o termo ‘colónias’ pelo de ‘províncias’. Nos moldes
do livro ‘Política Ultramarina de Portugal’, publicado uns anos mais
tarde pela Sociedade de Geografia de Lisboa60, em parte o termo foi
escolhido porque era visto como reflectindo o ‘princípio da união’
entre os vários espaços do império já há muito estabelecido, e por
isso, em concordância com a tradição e com:
‘a contracção de uma cooperação íntima entre todas as
populações que constituíam a nação e entre todas as parcelas
do território português.’
Na sua terminologia legalista peculiar, estes artigos sobre a renovada
revisão constitucional de 1951, expressam uma das reconfigurações
principais do imperialismo português depois de 1945. Esta pode ser
resumida na frase poética ‘integrar para não entregar’, repetida em

162
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

discursos oficiais a altura. De acordo com Figueiredo61, a correcção


introduzida em 1951, reinscreveu o ‘império colonial’, iniciando
uma ‘revolução’ verbal metódica, onde as palavras ‘império’ e
‘colónias’ subitamente desapareceram, o que não foi tarefa menor
dado que ‘estavam impressas em milhões de artigos de papelaria,
moedas e notas, instituições governamentais, marcas registadas e
nas nomenclaturas de interesse privados’. Figueiredo continua por
sugerir que esta revisão representou um tipo de regresso à noção
pré-republicana (pré-1911) de um império formalmente unitário:
mas um que tinha uma função contemporânea explícita. Tudo isto
queria dizer que Portugal podia mais tarde reivindicar que não era
um poder que devia (como todos os outros impérios europeus), em
última análise, ser forçado a descolonizar, porque, tal como Salazar
explicou numa entrevista em 1958:
‘Não há possessões portuguesas, mais pelo contrário pegadas
de Portugal disseminadas pelo mundo. Em Lisboa, em Cabo
Verde, em Angola, na Guiné, em Timor ou em Macau é
sempre a pátria62.’
À medida que as contestações ao colonialismo português
cresceram, este impulso de enfatizar a integração do império com
vista a evitar a sua desintegração foi-se tornando mais expressivo. Em
termos da representação de códigos e ordens geopolíticas genéricos,
este processo foi uma tentativa de deslocar a fractura geopolítica
potencial Norte-Sul em torno das questões da descolonização para
uma geopolítica Este-Oeste de anti-comunismo63. Por volta desta
altura começaram a aparecer uma série de artigos publicados em
revistas militares portuguesas, que eram escritos como parte de
programas de treino oficial para militares e oficiais da marinha.
Procuravam confrontar a questão da geopolítica portuguesa. Muitos
artigos (alguns escritos como parte de programas oficiais de treino
para militares e oficiais da marinha) apareceram em publicações
militares portuguesas neste tempo64. É difícil fazer justiça a todos estes
artigos mas é proveitoso e importante explorar o ensaio escrito por
Comprido em 1956, que re-trabalha algumas ideias antigas (a noção
da ‘Euro-África’, um ‘mundo-ilha’, e Portugal como ‘civilização
cristã’) bem como antecipa temas que também se estavam a tornar

163
Geografias pós-coloniais

características evidentes de um discurso geopolítico mais vasto


– a ideia de pontos estratégicos de estrangulamento (notavelmente
o Cabo da Boa Esperança) e de uma estratégia soviética coerente
(expansionista) para o domínio mundial, emanada do coração da
Ásia. Nestas narrativas, o destino histórico Atlântico de Portugal

Figura 3 – “Portugal ponte entre continentes”, poster preparado pelo


Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas em 1955
(Jurek Wajdowicz, Emerson Wajdowicz Sudios, Nova Iorque/UNDP).

tornou-o um centro (talvez mesmo o centro) do tratado atlântico – o


‘oceano da civilização ocidental’ tal como escritores portugueses
gostavam de designá-lo. Mais ainda, a dimensão da Euro-África

164
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

portuguesa oferecia ao Ocidente o acesso a minérios estratégicos e


escala para defesa em profundidade (caso a Europa, no pior cenário,
fosse ocupada pelos soviéticos). Comprido ainda destacou:
‘a possibilidade de mobilizar cerca de 1,5 milhões de negros
dos nossos territórios africanos, que assim que organizados
pelos oficiais e comandantes brancos constituem um potencial
humano de grande valor para fins militares’65
Finalmente, muitos destes textos geopolíticos sugerem que
Portugal controlava rotas arteriais para a Europa (através dos
Açores e da Madeira), incluindo assim um triângulo estratégico
vital no Atlântico, que compreende o poder importantíssimo do
‘mar luso-brasileiro’66 do Atlântico-Sul entre o Brasil e Angola.
O que é especialmente interessante sobre muitos destes textos é a
forma como eles inscrevem Portugal no centro deste arquipélago,
localizando o país dentro do mundo-ilha como no caso da visão de
Comprido.
Uma década mais tarde, Júnior67 podia escrever de forma idêntica
sobre a importante ‘dimensão extra-europeia de Portugal’ e sobre o
estatuto e valor estratégico global da sua ‘presença física e cultural,
integrada em quatro continentes’; tais discursos (e as variantes que
consideramos adiante na secção 3.2) continuaram a ser produzidos
pelo regime e pelos seus porta-vozes, justamente até ao colapso
de 197468. Ao olhar para trás é proveitoso contrastar estas noções
geoestratégias de arquipélago da guerra-fria, com outras escritas
subalternas do Atlântico, tal como a noção de Gilroy69 da ‘África
Negra’. Ao fazer esta revisita, Barkawi e Laffey70 exploram como
Gilroy destabiliza as narrativas geopolíticas convencionais:
‘Ao considerar o Atlântico Negro, nenhuma ligação
consistente pode ser estabelecida entre cultura, identidade
e lugar. O comércio de escravos criou uma diáspora negra
na Caraíbas, Estados Unidos e Reino Unido [e podemos
juntar Portugal, França, Bélgica e Holanda, e muitos outros
membros da União ‘Europeia’] que desenvolveram uma
variedade híbrida de culturas através da circulação de pessoas
e ideias entre as Américas, África e Europa.’
No entanto, um certo reconhecimento da natureza ‘híbrida’,

165
Geografias pós-coloniais

translocal e transatlântica da circulação de corpos, capital e culturas


foi antecipado 30 anos antes num discurso geopolítico português
de ‘lusotropicalismo’ – apesar de codificado em termos raciais e
imperiais, um discurso que Gilroy procura ultrapassar. O que surge
aqui é a noção de missão ultramarina portuguesa não racista (na
verdade anti-racista). Nos anos 60 esta ideologia adquiriu uma forma
mais desenvolvida e sexualmente explícita, em grande medida através
da promoção Estatal dos trabalhos do sociólogo brasileiro Gilberto
Freyre. No contexto da geopolítica crítica e relações internacionais,
vários académicos chamaram a atenção para o género (masculinidade
em particular) dos discursos geopolíticos71. É importante não
sobrestimar a coerência ou significado destas afirmações no caso
de Freyre. Motivos anti-comunistas mais tradicionais permaneciam
tão importantes quanto antes, especialmente depois do aparecimento
dos movimentos de resistência em Angola, Moçambique e Guiné
que se assemelharam ao apoio material dos anos 60 em Cuba, na
União Soviética (e nos seus satélites na Europa de Leste), e na China
comunista. Apesar de existirem muitos textos sobre o valor estratégico
dos territórios portugueses além-mar para a defesa do ‘ocidente
cristão’72, as ideias de Freyre permitiam uma outra oportunidade
no contexto dos discursos disponíveis ao regime português,
que se tornou particularmente importante na contra-ofensiva a
críticas liberais exteriores e ao aparecimento de movimentos anti-
colonialistas, em especial nas Nações Unidas – onde Portugal lutou
uma batalha determinada contra os radicalismo no Terceiro Mundo
e os estados comunistas.

O Lusotropicalismo: Portugal e as seduções do Império

‘Através do conhecimento directo e vivido dos trópicos, quer


no Este e em África ou na América (…) a ciência em que
[os portugueses] deram a sua contribuição como pioneiros,
tendo sido, em geral, a ciência do espaço-tempo (…) em
particular a ciência do espaço-tempo tropical (…) um novo
tipo de civilização começou para a qual uma caracterização
de lusotropical foi sugerida, em face do carácter simbiótico
singular da união do europeu com o tropical – união

166
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

que nenhum outro europeu chegou a ser tão intensa e


simbiótica.’73
No início dos anos 50 as fissuras e tensões no seio das várias leis
legislativas que codificaram e legitimaram o regime administrativo
do império estavam a começar a ser mais óbvias, existindo uma
pressão externa crescente para que o regime revogasse a Lei Colonial
de 1930 e outras peças cruciais de legislação imperial. A revisão da
constituição de 1951 reflectiu estas pressões e contradições externas
e internas. A sociedade colonial tornou-se então um espaço ‘pluri-
racial’ ou ‘pluri-continental’, reunido com o processo simultâneo
de artifício semântico que resultou em que ‘possessões coloniais’
fossem substituídas pela noção de ‘províncias ultramarinas’ de
Portugal. Foi neste contexto que o brasileiro Freyre codificou a sua
análise de ‘integração portuguesa nos trópicos’ (tal como o título
do seu livro de 1957)74, através da noção de lusotropicalismo.
Tendo introduzido o leitor à importância geopolítica dos trópicos,
especialmente em termos de determinar que potência se podia tornar
o ‘líder mundial’, Freyre explica como os portugueses já tinham
desenvolvido uma ‘civilização lusotropical’ única (o mais elevado
estádio de um alargado conjunto de ‘civilizações hispanotropicais’).
No contexto da sua visão de ‘espaços tropicais’ como possíveis
‘zonas de expansão’75 para as forças imperiais da União Soviética e
‘Anglo-americana’, Freyre76 notou que:
‘a organização das civilizações hispanotropicais num sistema
transnacional de cultura, economia e política aparece como
uma necessidade a que eu não me vou referir como geo-
política, como se as organizações resultassem de situações
chamadas naturais ou geográficas.’
No entanto a verão fortemente sexualizada da integração portuguesa
nos trópicos constituiu um texto geopolítico extraordinário, quer na
sua poética do original português, quer na tradução para inglês de
1961 – ambos produzidos sob os auspícios da Agência Geral do
Ultramar. A recomposição da ideologia colonial de Freyre apelou ao
regime numa altura em que este estava a procurar apoio filosófico para
as suas políticas e credibilidade para as mudanças constitucionais de
1951. Foi também apelativa na medida em que se agarrou a noções

167
Geografias pós-coloniais

antigas da singularidade da colonização portuguesa, representando


tudo como ‘científico’ e moderno. Tal como tem sido especificado
em trabalhos académicos de pendor crítico, as codificações de Freyre
forneceram um reportório ideológico para o regime, à medida que
este procurava ultrapassar o criticismo crescentemente sibilante de
anti-imperialistas nas Nações Unidas e noutros fora internacionais.
Também em Portugal e no ultramar proporcionou uma retórica
reconfortante para o regime e para os milhões de colonos portugueses
em África, pois os argumentos de Freyre foram usados para reforçar a
reivindicação de que Portugal estava destinado a ficar em África por
muito tempo e que o seu projecto era o de construir ‘novos Brasis’ –
novas civilizações tropicais em África baseadas nos traços especiais
portugueses de ‘mistura racial’. No entanto, a escrita de Freyre é
invulgar no que concerne ao formato específico que a construção
de género assume nos discursos geopolíticos dos seus textos. Ao
associar o estatuto semi-periférico de Portugal relativamente à
Europa (e o seu ‘atraso’ cultural e económico), e ao incutir um certo
tipo de valor civilizacional dinâmico e positivo, o lusotropicalismo
inscreveu a ilusão de permanência nos trópicos de Portugal num
vulgar conto de sedução produtiva:
‘Esta narrativa plausível de colonialismo português não
representa apenas os espaços colonizados pelos portugueses,
como tantos ‘vazios’ freudianos, como tantos ‘ventres’
queimados do sol’, mas – concomitantemente – e como
recentemente um crítico brasileiro de Freyre aludiu, todo
o processo oscila na disponibilidade sexual da ‘mulher
nativa’77.
Esta ciência de espaço-tempo tropical foi construída em torno
de uma noção de um tipo particular de simbiose racial. Para
Freyre a miscigenação era inseparável de ‘todo e qualquer esforço
português nos trópicos’78 enquanto que a civilização lusotropical
constituía ‘uma cultura comum e uma ordem social na qual homens
e grupos de diversas origens étnicas e culturais contribuem pela
interpenetração e ajuste de um certo número de uniformidades
(…) estabelecidas pela experimentação e experiência lusitanas.
Freyre foi capaz de se basear e construir uma adaptação original

168
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

nas mitologias do nacionalismo brasileiro. As suas referências


centram-se em torno da formação sócio-económica e racial do
que era o Brasil em meados do século XX e no sistema colonial
português, que ele defendia exibir alguns dos tabus ritualizados da
contaminação racial que se tinha desenvolvido em certas formas
de, por exemplo, o sul do Estados Unidos, o império britânico e a
África do Sul. Isto permitiu que Freyre projectasse alguns elementos
da sociedade colonial brasileira e portuguesa (particularmente a
extensão de relações sexuais ‘interraciais’) como uma realidade
singular e histórica com uma certa importância global. No entanto,
ao agir assim, ele coloca de lado algumas questões cruciais de
agência e poder, e evita uma ponderação cuidadosa das relações de
classe hierarquicamente racializadas, que de outros pontos de vista
(mais críticos ou subalternos) eram claramente óbvios. Reichmann79
aponta por exemplo, a forma como a discriminação racial é endémica
na sociedade brasileira ao mesmo tempo que a mistificação e
negação da diferença racial é comum, sustentada pela construção
social de uma identidade nacional brasileira super-racial. Apesar de
tudo, para Portugal, os fundamentos do lusotropicalismo tal como
identificados por Freyre (fusão cultural e hibridismo, miscigenação
e a suposta ausência de preconceitos raciais) permitiram ao regime
de Salazar uma outra forma de pensar o propósito geohistórico de
Portugal, baseado numa releitura parcial do património religioso e
cultural português e no re-centrar o país como a fonte de um campo
geopolítico e geocultural essencial: o mundo lusotropical. Tudo isto
procurou exprimir a singularidade e unidade de Portugal, ou (para
pedir emprestado um discurso mais tarde proferido por Caetano)
articular a ideia de que:
‘Nós somos um país pluri-continente e pluri-racial, com um
só espírito, um só governo e uma só bandeira.’80
Entre as demarcações ideológicas da guerra-fria, o luso-
tropicalismo foi imaginado em parte pelo Estado Novo com uma
política externa que seria primeiramente usada para defender a ideia
de um ‘bastião ibérico’ duvidoso de uma Europa democrática81. O
futuro da Europa podia apenas ser salvaguardado pela criação de
um espaço Euro-Africano, no qual Portugal era visto como tendo

169
Geografias pós-coloniais

trilhado um caminho, depondo magicamente o racismo onde quer


que as suas pegadas fossem encontradas. O Estado Novo não se
apropriava só do trabalho e ideias de Freyre; o trabalho de escritores
e poetas como António Vieira e Fernando Pessoa (que se debruça
sobre impérios e pós-impérios em construção) também era usado
pelo Estado Novo para justificar o sentido da missão imperial
de Portugal, de formas que marcam em termos culturais, a vasta
imortalidade ‘política e ideológica que silenciavam Portugal e o
seu império82. Curiosamente, Freyre83 termina o seu texto citando o
escritor modernista português Pessoa, que por seu turno recita uma
linha do ‘Os Lusíadas’, o poema épico escrito pela figura literária
portuguesa mais celebrada, o poeta-navegador do século XVI Luís
de Camões:
‘Fernando Pessoa disse que ainda estava reservado um
‘grande futuro’ para Portugal. Se por Portugal ele quis dizer
todo o complexo Lusotropical que tem nas terras portuguesas
da Europa as suas raízes principais, mas não exclusivas, a
visão do poeta apresenta alguma consistência sociológica’.
Obviamente que tudo isto sucedia numa altura em que este
supostamente agradável e alegre lusotropicalismo estava a ser
contestado por outras imaginações (nacionais) políticas, uma
contestação que em breve tomou a forma de uma guerra anti-colonial
em grande escala. O trabalho de Freyre, tal como a sua tradução
para inglês confirma, tornou-se parte de um esforço de propaganda
mais vasto e de escala considerável (inicialmente produziram-se
5000 exemplares do seu trabalho). Ocasionalmente, um conjunto
de textos para consumo doméstico84 misturou a ‘ciência’ racial
do lusotropicalismo com outras geopolíticas mais ‘clássicas’ tal
como no curso de extensão universitária produzidos por Neto bem
como em debates militares85, que eram acompanhados por vários
trabalhos publicados em inglês e destinados ao consumo externo,
especialmente nos círculos diplomáticos86.
Nestes, muitos dos mesmos temas surgem repetidamente,
formando uma espécie de intertexto geopolítico nacional-colonial.
Primeiramente, o lusotropicalismo em todos os territórios portugueses
era único, pois:

170
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

‘contrariamente ao que acontecia em muitos dos países que


se olhavam como paladinos da independência de pessoas, as
diferenças raciais ou religiosas nunca originaram qualquer
incidente ou medida discriminatória87.
Em segundo lugar, o que é indicativo nestes textos da visão
lusotropical construída por Freyre é a negação persistente que
Portugal era ‘colonialista’, incorporando várias tentativas de repelir
críticas às políticas de Portugal nas ‘Províncias ultramarinas’, através
da exploração de muitas inconsistências e contradições de outros
estados pós-coloniais. Ao proclamar vigorosamente a sua inocência
de tudo o que estava associado com a linguagem contaminada
do colonialismo, a ditadura começou gradualmente a implodir, a
voltar-se para si mesma através de uma viagem mais distante e mais
profunda pelo seu auto-elaborado labirinto de mitos.
Em terceiro lugar, vários textos que tentaram fundir geopolítica
clássica e lusotropicalogia eram caracterizados por um retrabalhar
banal de temas ligados aos espaços Euro-africanos e/ou a várias
migrações Este-Oeste/Norte-Sul, evidentes (por exemplo) na
classificação que Caetano faz da União Soviética como imperialista,
e na noção de Portugal como presente na ‘linha da frente’ contra o
imperialismo ou colonialismo soviético:
‘Hoje a segurança dos países não pode ser defendida nas
suas fronteiras. As nações estão integradas em espaços
mais vastos (…) A liberdade e independência dos países da
Europa Ocidental joga-se não apenas na Europa mas também
em África. É por isso que temos que defender a Guiné (…)
Certamente que no nosso interesse, mas também no interesse
da Europa Ocidental e dos próprios americanos.’88
A conspiração política global contra Portugal constituída pelas
resultantes guerras anti-coloniais de libertação de África, como
se para fortalecer a noção de apenas um governo e apenas uma
bandeira, foi acentuada por Caetano, que estava preocupado com
a ‘vasta organização dos países africanos, asiáticos e socialistas
[que] conspiram contra Portugal’89. Deste modo, enquanto que o
termo ‘geopolítica’ tende a ser evitado em grande parte da Europa
Ocidental e Norte América durante os anos 50 e 60, nas publicações

171
Geografias pós-coloniais

portuguesas a utilização do termo e a elaboração formal da geopolítica


era abundante. Em particular, o que aqui achamos como curioso e
importante são as formas como estes usos explícitos da geopolítica
implicavam a reprodução de certas alegorias geopolíticas anteriores à
guerra-fria – heartland, Euro-África, mundo-ilha. No entanto, aliado
a isto estão concepções novas de ‘espaços de trasnacionalidade’ pluri-
culturais90. Estas geopolíticas são articuladas com uma tendência
duradoura de nacionalismo português: a noção de um Estado
periférico com um destino marítimo global e uma ligação indelével
ao além-mar. Esta ideia antecedeu o Estado Novo, mas foi refinada
e amplificada por Salazar e os seus ideólogos. Sobre este tema o
trabalho de Madureira91 é bastante sugestivo, ao discorrer sobre a
construção da especificidade e diferença nacional e as relações com
as questões do espaço:
‘No período salazarista, as construções da ‘identidade’
portuguesa a que se adicionava um estatuto
inquestionavelmente hegemónico foram aquelas que
sublinharam uma ‘especificidade’ nacional, uma diferença
nacional específica. Esta característica de distinção da
identidade lusitana encontra a sua mais convincente expressão
no mito de que o sentido de nacionalidade dos portugueses
está (paradoxalmente) enraizado numa jornada espacial
temporalmente demarcada: as ‘viagens das descobertas’’
(itálico no original).
Uma das mais interessantes características do breve artigo de
Madureira é que, de uma forma claramente reconstruída, perdura
o enraizamento de nacionalidade em torno de império. Por outras
palavras, estas narrativas continuam a ter uma ressonância poderosa
na narração da pertença nacional portuguesa e por isso, tal como
Madureira indica, é importante reter:
‘a sedutividade discreta mas persistente que os resíduos
ideológicos do fragmentado império português exercem nas
narrativas (pós)coloniais metropolitanas.’92
Por forma a compreender como e qual o significado desta situação
para a pós-colonialidade e para a imagi-nação de Portugal, é
necessário (re)examinar o momento da fractura em 1974-75 e as

172
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

suas repercussões (geopolíticas). O golpe de 1974 foi um importante


ponto de viragem em termos de discursos da nação e identidade,
pois a disjunção dos territórios ultramarinos de Portugal destabilizou
a ideia de que Portugal era o centro a partir de onde a história se
fazia93. O período associado aos regimes de Salazar e Caetano tinha
‘criado as suas narrativas e histórias oficiais e sancionadas, que, com
o tempo, tinham adquirido um estatuto teológico; eram as escrituras
da nação94. Por forma a compreender como Portugal tem lidado com
a ausência de tais escrituras quase-teológicas, temos que abordar as
reacções complexas da fractura geopolítica do 1974-75 e as várias
reorientações que têm desde então sido produzidas.

Reacções, reorientações e
revolução: ‘a explosão total da revolta’
Reflectindo sobre a Grã-Bretanha na Irlanda, França na Argélia, e
Portugal em África, Ryan95 apontou como:
‘A integração de uma colónia no corpo político de um poder
metropolitano é inerentemente perigoso para o colonizador.
Expõe o poder colonizador a uma explosão total da revolta e
pode estimular descontentamento no resto da sociedade’.
Considerando as dificuldade que Portugal encontrou à medida
que tentou integrar as suas colónias no corpo da (geo)política
metropolitana, um ponto importante é pensar sobre a exposição
do colonizador face a estas iminentes explosões de revolta. Desta
forma, as imagens de ordem construídas por Portugal foram
novamente ‘perseguidas pela periferia’, pois as ‘províncias
ultramarinas’ abriram divisões e em última análise rebeliões
violentas, insurreições populares, e revoluções nacionalistas.
Claro está que, quando estas começaram a despontar através da
‘África portuguesa’, uma variedade complexa de lutas irrompeu,
envolvendo os povos de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo
Verde, São Tomé e Príncipe, e milhões de colonos portugueses e
recrutas. Estas histórias interligadas de resistência, colaboração e
subversão num espaço tão vasto como o do ‘Ultramar português’
são vastíssimas e, no entanto, apenas em parte estão documentadas.

173
Geografias pós-coloniais

Apesar de tudo, as escritas daqueles que viveram aspectos destas


camadas interrelacionadas de resistência, tais como Mondlane96 em
Moçambique, ou Cabral97 na Guiné, têm isto esculpido. Em resumo,
apesar da revolta de Timor em 1959 e da invasão indiana de Goa em
1961, terem certamente inquietado a visão de Salazar e dado alento
aqueles que em Portugal e nas ‘províncias ultramarinas’ procuravam
mudanças98, foi em África que os desafios mais substantivos e
manifestos emergiram. Em Moçambique por exemplo, a Frente de
Libertação de Moçambique (Frelimo), formada em 1962 no exílio
na Tanzânia, a partir de uma amálgama de grupos resistentes, lançou
uma guerra de guerrilha pela independência em 25 de Setembro de
1964. Em Angola, a sublevação nacionalista rebentou em Luanda
em 1961, ao que se seguiu uma rebelião no norte do país. Do meio
de uma miscelânea de políticas nacionalistas e divisões ideológicas
e etno-nacionais, surgiram três movimentos nacionalistas modernos:
o Movimento Popular de Libertação de Angola, a Frente Nacional
de Libertação de Angola e a União Nacional para a Independência
Total de Angola. Na Guiné, as hostilidades, lideradas pelo Partido
Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde, começaram em
1963.
O início destes conflitos contra os movimentos de libertação
anticolonial que atravessaram a África lusófona não só teve
consequências devastadoras para Portugal, mas marcou ‘as últimas
convulsões dos sonhos imperiais portugueses’99. Derradeiramente
a perda de iniciativa militar das forças armadas portuguesas
(particularmente na Guiné), teve um papel importante em estimular
o derrube do regime em Lisboa por parte do Movimento das Forças
Armadas, dada a sua posição de recusa manifesta em aprovar
mudanças que resultassem no fim da guerra. No entanto, outros
factos estiveram em jogo, pois o antagonismo à perpetuação do
projecto colonial (à luz da sua desintegração em partes de Angola,
Guiné e Moçambique) não proveio somente de forças radicais, mas
estava também presente em facções da burguesia portuguesa e de
círculos liberais – que reconheciam a contradição crescente entre
o empenho do império e a integração na Europa. Em alguma da
literatura que se debruça sobre as causas do colapso do império

174
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

português, há uma tensão persistente entre o evidenciar a guerra


colonial como apressando o fim do império e o salientar a revolução
de Abril em Portugal como trazendo o fim da opressão100. Apesar de
tudo, em certa medida estas abordagens falham o intuito, pois não são
mutuamente exclusivas, especialmente quando o regime se encobria
nas vestes do império em tal medida que a desintegração imperial
iria ter sempre consequências fatais para a própria sobrevivência da
ditadura fascista de Portugal.
Desta forma, a fractura que levou ao golpe foi um processo longo.
Iniciou-se decisivamente no começo de 1974 com a publicação de um
texto capital intitulado ‘Portugal e o Futuro’, do general Spínola101,
comandante supremo das forças armadas e veterano heróico da
guerra colonial em África que serviu principalmente na Guiné-
Bissau. O livro reconheceu os problemas de segurança do longínquo
império e propôs de forma prudente mas clara, uma solução política
para a guerra colonial. Spínola rejeitou quer a independência quer o
status quo, defendendo em vez disso a criação de uma comunidade
lusitana (sob a bandeira portuguesa, claro está), incluindo o Brasil,
mas que seria ‘baseada na autonomia progressiva das suas partes’,
uma solução federal que incluísse ‘independência’ negociada
– ideias que apesar de já discutidas em Portugal, não podiam ser
comummente veiculadas de forma tão explícita e pública102. Esta
tentativa tão clara de fazer a quadratura do círculo questionou os
mitos da missão civilizadora que os apologistas do regime produziram
tão atarefadamente durante décadas. Spínola chamou a atenção para
o facto de que o regime estava agora enclausurado no labirinto
mitológico por si próprio fabricado. Apesar de Spínola, juntamente
com o seu superior general Costa Gomes (o oficial sénior associado
mais de perto com a publicação do seu livro), estar demissionário,
defendia-se que o livro de Spínola só poderia ter sido publicado
com a anuência de Caetano. Assim, nas palavras de Bruce103, a sua
publicação era uma forma de:
‘fazer voar um papagaio (…) abrindo uma discussão sobre
o futuro das relações de Portugal com os seus territórios
ultramarinos e o seu papel no mundo ocidental’
Depois do golpe triunfador de 25 de Abril os acontecimentos

175
Geografias pós-coloniais

precipitaram-se. Portugal retirou-se rapidamente das suas possessões


ultramarinas e no final de 1975 o que tinha sido o primeiro e o
mais duradouro império além-mar europeu tinha desaparecido (à
excepção de Macau, em virtude da relutância da China em absorver
este território nesta altura, que permaneceu um colónia portuguesa
até ao final de 1999). A retirada portuguesa trouxe transformações
fundamentais para as ex-colónias. Enquanto que Timor-Leste era
ocupado pela Indonésia (quebrando resoluções das Nações Unidas),
os outros ex-territórios portugueses converteram-se em novos
membros do sistema político internacional, estabelecendo de forma
célere um amplo conjunto de alianças diplomáticas e militares.
Angola e Moçambique, por exemplo, aderiram aos frontline states
– uma vasta aliança que tentava abertamente isolar o apartheid
na África do Sul – enquanto todos eles estabeleceram relações
próximas com a União Soviética e com outros estados ‘socialistas’
da Europa de Leste e através do Terceiro Mundo. Claro está que
muitos destes alinhamentos políticos foram forjados, de modo
embrionário, durante as lutas anti-coloniais entre 1961 e 1974. Estes
(re)ajustamentos foram acompanhados, em vários graus de empenho,
por uma reorientação ideológica, bem como pela criação de novos
sistemas constitucionais na linha Marxistas-Leninistas104.
O papel internacional de Portugal também se transformou.
Após a revolução, o ‘código geopolítico’ português evidenciou
numa primeira fase um grau de fluidez que é característico das
‘transições geopolíticas’. Para começar, muitas figuras militares
(seguindo a liderança do general Spínola) defenderam uma forma de
‘commonwealth’ que conteria ligações próximas entre Portugal e a
África lusófona. Neste contexto, apareceram vários textos expondo
o tema ‘repensando Portugal’105. No entanto, o ritmo de mudança
já não era mais definido e moldado por Lisboa e deste modo as
políticas penderam para a esquerda, enquanto que a perspectiva do
golpe gerar uma ampla revolução social tornou-se plausível. Só em
1976 é que a situação estabilizou. Até então pareceu possível que
Portugal se pudesse re-estabilizar sob uma hegemonia comunista
(dado o poder e força relativa do Partido Comunista Português) e
assim tentar desenvolver um código geopolítico muito diferente

176
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

(bem como uma ordem socioeconómica). No entanto, desde então


Portugal tem seguido rapidamente um regime económico e político
liberal e firmemente pró-capitalista.
Comparativamente, nos anos 80 e 90, Portugal teve um rápido
desenvolvimento económico106, beneficiando de uma localização
próxima de um dos centros globais na Europa ocidental. Esta
proximidade e interesse mútuo foram simbolizados pela adesão de
Portugal à Comunidade Europeia em 1986 e à Zona Euro, na sua
fundação em 2002. No entanto, a adesão à União Europeia baseou-se
na reinscrição de narrativas ‘identitárias’ portuguesas. Esta revisão
está bem patente na mudança subtil mas importante do tratamento das
descobertas, cuja suposta originalidade e primazia era tão celebrada
pelo Estado Novo. Deste modo, Madureira107, centrando-se numa
série de histórias dos Descobrimentos108 que foram publicadas em
meados dos anos 80, argumenta que:
‘num período de tempo relativamente curto a especificidade
‘mítica’ da imagem de um Portugal viajante transformou-se
(leia-se europeizou-se) numa reflexão da face tranquila da
Europa (…) Com a sua ‘especificidade’ (a sua diferença)
apagada, ao projecto colonizador de Portugal acoplou-se a
identidade europeia. A sua história colonial invulgar é em
última análise trocada por uma prevalente historiografia
comum. O diferente torna-se o igual, e as ‘descobertas’
portuguesas tornam-se parte e parcela de um ‘património’
europeu íntegro (ou integrado)’ (itálico no original).
Por outras palavras, tal como alguns intelectuais portugueses
decidiram argumentar, a integração europeia não deve constituir um
desafio à portugalidade, pois os portugueses são ‘superlativamente
europeus pois já o éramos quando a Europa se definiu na história do
mundo como o continente medianeiro109.
A reinscrição ou re-articulação está longe de ser total ou exclusiva,
pois também coexiste com a revisão de narrativas sobre o papel
de ligação de Portugal e com ecos dos argumentos lusotropicais
de Freyre. Por exemplo, entre as referências previsíveis da ‘nova
ordem mundial’, ‘globalização’, e outras categorias associadas com
o campo de conhecimento conhecido como ‘relações internacionais’,

177
Geografias pós-coloniais

um manual português neste domínio podia encerrar com citações de


Pessoa e referências ao legado heróico e duradouro dos navegadores
portugueses e aos papéis chave potenciais de uma comunidade
diversa:
‘(…) não apenas dos eurolusitânios, os afrolusitânios e
o brasileiros, mas também de outros luso-partilhantes,
tais como os indo-portugueses, os sino. Portugueses, os
timorenses, e outros luso-descendentes de outras diásporas
no Sul e no Este (…).’110
É notável ainda que as movimentações para a formalização de
uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa desde meados dos
anos 90 têm sido expressas através de referências aos seus membros
principais – Portugal, Brasil, Angola e Moçambique – sobrepondo
(de forma algo complementar) a afiliação à proposta comunidade
lusófona às respectivas lealdades regionais (à União Europeia, ao
Mercosul, e à SADC111, respectivamente). A Timor-Leste também tem
sido atribuído um potencial semelhante, desde o final da lamentável
ocupação Indonésia. Portugal é assim a melhor ponte europeia para
estas regiões ‘dinâmicas’ emergentes. Deste modo, na EXPO ’98 em
Lisboa, a última exposição universal do século XX, Portugal reiterou
o seu empenho para com a Europa e para com uma Europa dinâmica
de negócios e comércio; no entanto, tudo isto foi conduzido em
parte no contexto do tema das ‘viagens de descoberta (imperial)’ dos
séculos XIV e XV (com algumas referências na diagonal ao império
mais tardio), destacando assim o papel de Portugal como ‘pioneiro’
europeu nas ligações e rotas comerciais. Uns anos mais cedo, na
conclusão de uma cimeira europeia em Belém (a propósito da qual
se construiu um novo centro de convenções ao longo dos ícones
coloniais da portugalidade), Portugal celebrou o culminar de 6 meses
de presidência das instituições europeias com o slogan ‘Capital da
Europa para seis meses, Capital do Atlântico para sempre!’.
Relativamente a estas reinscrições, a figura 3 (uma representação
do papel de Portugal nas Nações Unidas) reproduz um exemplo
admirável do reposicionamento mais vasto da portugalidade. As
velhas batalhas de oposição ao império português nas Nações Unidas
(e no terreno) desapareceram. Actualmente Portugal aparece como

178
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

parte de uma ‘ponte entre continentes’ no contexto do Programa de


Desenvolvimento das Nações Unidas. Um sextante, o conhecido
instrumento de navegação, sobrepõe-se a um mapa português antigo
da costa Atlântica da Europa, do Magreb e da África Ocidental. Para
ocidente, entre as linhas de latitude que marcam os trópicos, pode-
se entrever a costa do nordeste brasileiro. A bandeira portuguesa
com as suas esferas armilares e escudos movem-se desde o velho
continente em direcção ao ocidente. Sob o sextante está uma
fotografia Polaroid da nova ponte sobre o Tejo, financiada pela
União Europeia, que agora se encontra ao lado da velha Ponte 25 de
Abril (anteriormente Ponte Salazar). A ponte conduz-nos ao fundo
da página, que ostenta as bandeiras dos outros estados pós-coloniais
lusófonos. No entanto, uma das bandeiras (a da República Popular
de Angola) retém um emblema comunista de estilo soviético de
produção e abundância. Mais ainda, numa análise mais detalhada,
a bandeira de Moçambique representa uma AK-47 (uma arma de
assalto feita na União Soviética ou na China), o instrumento da
luta anti-colonial. Lembramo-nos então, apesar de ser através das
margens, da centralidade da violência que suporta a condição de
‘ponte’ de Portugal e as fracturas que esconde.

Conclusões: geopolítica e civilização


E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas que aqui vês
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português
PESSOA Mensagem

Este estudo do discurso geopolítico português começou com obra


de Pessoa, o mais destacado poeta modernista português112, que
serve também para liricamente nos encaminhar para as conclusões.
Numa tentativa de capturar o que designa como ‘o cânone
ocidental’, Bloom113 lista vinte e seis autores, entre os quais Pessoa.
A inclusão de Pessoa, cujo trabalho chave Mensagem – promovido
e disseminado pelos regimes de Salazar e Caetano e do qual são
retirados os excertos apresentados aqui – está, de acordo com Sousa

179
Geografias pós-coloniais

Santos114 entre ‘as mais bem conseguidas transformações estéticas


da ideia de império’ na escrita moderna. E pode assim servir para
nos recordar da importância do momento colonial na construção
mais vasta de modernidade ‘ocidental’.
Tais ‘inclusões’ de império, tão evidentes nas obras de Pessoa,
são alguns dos pontos-chave de uma posição declaradamente
póscolonial tal como elaborada nos estudos literários. Em resumo,
as teorias pós-coloniais mostraram não apenas que o conjunto de
princípios deve ser alargado de forma a incluir vozes e escritores
que até agora têm sido excluídos, mas também que a abordagem
aos princípios tradicionais deve ser substancialmente reestruturada.
Young115 expressa esta ideia sucintamente em termos históricos
amplos:
‘Não é [apenas] uma questão de remover o pensamento
colonial de um pensamento europeu, de o purificar, como
o sonho actual de suprimir o racismo. É uma questão de
reposicionar os sistemas de conhecimento europeu de forma
a demonstrar a longa história da sua operação como o efeito
do outro colonial, um reverso condensado na observação de
Fanon: ‘A Europa é literalmente uma criação do Terceiro
Mundo’’.
Desta forma, apesar do caso do discurso geopolítico português
representar um exemplo particularmente enfático e directo da
contínua existência dos motivos coloniais, uma releitura cuidada
de outras tradições geopolíticas ocidentais revela que os discursos
coloniais não têm sido menos evidentes. Em particular, algo idêntico
ao tipo de deslocação Norte – Sul / Este-Oeste, característico do
princípio geopolítico português dos anos 50-70, pode ser encontrado
a operar de forma mais vasta noutras formações ‘nacionais’
de discurso geopolítico, apesar de por vezes apenas como um
traço obstruído ou deslocado. Consideremos o caso da recusa do
império dos Estados Unidos, no qual o império dos Estado Unidos
(frequentemente informal, logo ‘escondido’) é contrastado com o
imperialismo territorial clássico das potências europeias. O nosso
argumento mais lato é que o pensamento sobre as ligações entre
imperialismo e geopolítica pode ajudar a alargar a nossa análise das

180
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

hierarquias e composições mútuas dos espaços geopolíticos e dos


processos em que:
‘(…) o imperial aponta a direcção para uma teorização mais
adequada do ‘internacional’ como um espaço distinto de
interacção social – um espaço no qual processos de constituição
mútua produzem as entidades que habitam o sistema
internacional. Tais processos históricos e contemporâneos
ocorrem geralmente no contexto de relações hierárquicas
internacionais, particularmente mas não exclusivamente no
caso das relações Norte-Sul, e é precisamente esta hierarquia
que império e imperialismo capturam. Reconfigurado desta
forma, a categoria de imperial é reveladora do carácter e
natureza da política mundial passada e presente’116.
Neste artigo, Portugal forneceu uma entrée, permitindo investigar
e especificar as relações das tradições geopolíticas, identidades e
imperialismo. De forma mais vasta, seguindo Barkawi e Laffey117,
queremos sugerir que ter uma preocupação pelo imperial pode levar
a uma compreensão mais apurada das relações de hierarquia que
estruturam os espaços políticos ‘internacionais’ ou globais. Este
momento imperial de geopolítica e codificação do que Gilroy118
apelida ‘a atracção da raça’ foi primeiramente elaborado:
‘(…) nas teorias geo-orgânicas, biopolíticas e governamentais
dos geógrafos alemães Freiderich Ratzel e Karl Haushofer e
no início do século XX pelo geopolítico sueco Rudolf Kellén
[‘primeiro’ responsável pelo uso do termo ‘geopolítica’] (…)
ajudando as [‘ciências raciais’] a reconceptualizar o Estado
como um organismo e a especificar as ligações necessárias
entre a nação e a sua área de influência. Investimos de
forma diferenciada nesta abordagem como consequência de
termos que enfrentar as suas associações históricas com as
de raciologia, bem como com o Hitlerismo e várias outras
tentativas de deduzir as formas ideais de governo a partir de
analogias orgânicas’.
No caso português (que tem as suas múltiplas associações
históricas com a ‘raciologia’), a atracção da raça tornou-se parte
de uma tentativa de codificar uma nova metafísica do colonialismo
para um regime moribundo. Presentemente, o império português

181
Geografias pós-coloniais

desapareceu do mapa, apesar da sua refulgência – tal como


ilustramos –estar viva nas narrativas identitárias contemporâneas.
Adicionalmente, entre diálogos renovados da defesa da civilização
e as guerras contemporâneas em todas as frentes, outros fantasmas
de discursos geopolíticos também estão a actuar, revivescendo a sua
origem imperial. Sem dúvida que eles estiveram em destaque em
Março de 2003 no conselho de guerra cujo anfitrião era o primeiro-
ministro português, José Manuel Durão Barroso, e os convidados
eram o trio formado pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair, o
presidente americano George W Bush e o primeiro ministro espanhol
José Maria Aznar, num encontro que o Times apelidou de ‘windswept
outpost’i 119. Os resultados deste encontro da ‘coalition of the willing’
nos Açores portugueses do meio do Atlântico parecem entoar com
uma descrição de um anterior Pacto Atlântico – o de 1949 – o qual,
de acordo com o então primeiro-ministro Salazar, estabeleceu a
NATO como ‘o símbolo e expressão de uma nova cruzada: a da
defesa da civilização ocidental e cristã’120. Esta ‘cruzada’ deu muitos
problemas a Lisboa, Londres e Washington (o Vietname, Angola,
e Aden, entre muitas outras) nos anos subsequentes. A última
reincarnação de império, ‘civilização’ e geopolítica não é menos
contraditória.

Notas
1
Fernando Pessoa (1888-1935) é reconhecido como o mais conceituado
poeta moderno português. Quintanilha (1971) fornece-nos uma antologia
sua. 2 Taylor (1990 e 1993). 3 Said (1994: xxv). 4 Said (1994: xxv-xxvi).
5
Hamilton (2000: contracapa). 6 Madureira (1995: 28). 7 Feldman-Bianco
(2001: 479). 8 Hall (1996). 9 Medina (1999: 149). 10 Borges-Coelho
(2002). 11 Power (2001), Ribeiro (2002) e Sieber (2001). 12 Existe um
artigo em inglês sobre ‘geopolítica portuguesa’ (Roucek, 1964a), mas
dificilmente se pode considerar um esforço profundo. A obra de Parker
(1985) ‘Western Geopolitical Thought in the Twentieth Century’ não faz
qualquer uso de matéria sobre Portugal. Mais recentemente, e em sintonia
com um conjunto de estudos importantes de uma variedade de abordagens
(por exemplo argentinas, francesas, italianas, japonesas) com a geopolítica,
Sidaway (2000) apresenta uma análise clara de material português e
espanhol, na qual nos baseamos. Sidaway (1999) também considera o lugar

182
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

de Portugal nos discursos de segurança dos Estados Unidos na Guerra-Fria,


e analisa as reivindicações irredentistas (e desta forma aspectos das
narrativas identitárias portuguesas) no contexto de uma disputa de limites
com Espanha que perturbou o progresso suave de integração europeia na
Península Ibérica (Sidaway 2001). Também nos baseamos no trabalho de
Power (2001) sobre a comemoração portuguesa da Guerra Colonial, que
ele – nas pegadas dos estudos de Sharp (1993; 1998) do cinema e media
americanos como narrativas de ‘geopolítica popular’ – interpreta como
formas de ‘geopolítica popular’. 13 Hepple (1986 e 1992), Kelly (1984).
14
Ingram (2001: 1032). 15 Smith (2000: 366). 16 Agnew et al (2002: 7).
17
Ó Tuathail e Agnew (1992: 191). 18 Campell (1992). 19 Anderson (1983).
20
Anderson (1983). 21 Ver Agnew 2003, Dodds e Atkinson 2000, Kearns
2003, Natter 2003 e Tesfahney 1998. 22 Gilroy (2000: 39). 23 Graham e
Wheeler (1983) e Robinson (1979), por exemplo. 24 Newitt (1981: 183).
25
Muitas destas derivam da própria propaganda do regime (ver mais
adiante), outras dos seus críticos internos e externos. No final dos anos 30
e 40 do século XX, o Estado Novo tinha uma expressão fascista singular a
este respeito, simbolizado (entre outras coisas) pelo estabelecimento de
uma Legião Portuguesa paramilitar (oficialmente uma liga anti-bolshevique)
e um movimento de juventude fascista: a Mocidade Portuguesa. Ambas
organizações tinham os seus uniformes tipicamente fascistas, saudações,
estrutura e slogans. Para uma discussão mais alargada da ideologia do
Estado Novo ver Costa-Pinto (1992), Rosas (1992) e Wheeler (1993-94).
26
Newitt (1981: 183). 27 Ribeiro (2002) e Sieber (2001). 28 Robertson
(1990: 136). 29 Ribeiro (2002: 139). 30 Guimarães (1987). 31 Figueiredo
(1975). 32 Power (2000). 33 Ver Fernandes (2003) e Ferreira (1987).
34
Sapega (2002). 35 Por exemplo Coombes (1994), Gregory (1994) e
Mitchell (1988). 36 De acordo com a descrição de Saraiva (1990), este está
longe de ter sido o único caso de ‘exibições’ humanas em Portugal; outros
sujeitos coloniais foram exibidos em parques no centro de Lisboa.
37
Gristwood (1999: 6). 38 Buck-Morss (2000: 323). 39 Ribeiro (2002:
159). 40 Ribeiro (2002). 41 Devemos deixar de parte aqui a questão das
formas como a ideologia e prática colonial portuguesa se expressaram
através do ensino e estudo da geografia. Apesar da Sociedade de Geografia
de Lisboa aparecer como um local institucional chave e de muitos geógrafos
fazerem parte do campo discursivo geopolítico mais vasto que é o centro da
nossa análise, a história mais ampla da geografia académica portuguesa do
século XX está para além da nossa esfera. No entanto, mesmo uma
familiaridade superficial dos trabalhos de Orlando Ribeiro – o decano da
geografia moderna portuguesa – revela uma fixação com a identidade e

183
Geografias pós-coloniais

integridade de Portugal (ao estilo do geógrafo francês Vidal de la Blache).


42
Ver Clarence-Smith (1985) e Newitt (1981). 43
Sidaway (2000).
44
Kennan [Mr. X] (1947). Ver Sidaway (2000). Por exemplo Atkinson
45 46

(1995), Basset (1994) e Dodds (1993). 47 Carvalho (1997). 48 Ver o valioso


estudo de Nowell (1982). 49 Galvão (1936: 5). 50 Apesar disto, mais tarde
nos anos 40, o seu carácter rebelde ressurgiu e envolveu-se em várias
acusações polémicas contra outros oficiais coloniais, a quem acusou de
corrupção e incompetência. Eventualmente a sua incompatibilidade levou-
o ao conflito com o regime e em 1951 foi preso por tomar parte em
conspirações contra Salazar. Escapou da prisão em 1959 e tornou-se um
personagem altamente activo da oposição, implicado em várias conspirações
anti-Salazar durante um longo exílio na Argentina, Brasil, Venezuela e
capitais da Europa ocidental (de Figueiredo 1975, Raby 1988, Ventura
1994). Galvão permaneceu até ao fim um defensor de algum tipo de
federação colonial portuguesa – tema elaborado (entre outros assuntos) no
seu livro postumamente publicado A minha luta contra o Salazarismo e
Comunismo em Portugal (Galvão 1976). 51 Galvão (1936: 8). 52 Antonio
de Figueiredo, comunicação pessoal, 2 de Agosto de 1994. 53 Costa Santa
(1944). 54 É impossível para um artigo desta natureza fazer mais do que
produzir uma revisão de uma vasta literatura. Por exemplo, o catálogo da
Sociedade de Geografia de Lisboa contém milhares de artigos, relatórios e
monografias dos anos 30, 40, 50 e 60, que definiriam a categoria. Os
discursos e argumentos de Salazar deste período podem também fornecer
numerosos exemplos. 55 Guimarães (1987: 111). 56 Figueiredo (1975).
57
Sidaway (2000). 58 Teixeira (1992). 59 Teixeira (1992: 124). 60 Crollen
(1973), Minter (1972) e Power (2001). 61 Bahia dos Santos (1955: 152-
153). 62 Figueiredo (1975: 206-207). 63 Entrevista com Serge Groussard
originalmente publicada no Le Fígaro em 2 e 3 de Setembro de 1958.
Reimpresso em português como Salazar (1960a). 64 Sidaway (2000).
65
Por exemplo Comprido (1956), Crespo (1956), Pinto (1956), Prior (1951)
e Sanches (1963). 66 Comprido (1956: 241-242). 67 Comprido (1956:
232). 68 Júnior (1969). 69 Ver Oliveira (2000). 70 Gilroy (1993). 71 Barkawi
e Laffey (2002, p.113). 72 Por exemplo Dalby (1994), Sharp (1998) e
Weber (1994). 73 Chassin (1961), Crespo (1956) e Sanches (1963), por
exemplo. 74 Freyre (1961: 41). 75 Todas as citações apresentadas vêm da
versão inglesa, que foi claramente produzida para consumo externo como
parte dos esforços mais vastos da propaganda do regime (Freyre 1961).
76
Freyre (1961: 30). 77 Freyre (1961: 31). 78 Madureira (1995: 23).
79
Freyre (1961: 47-48). 80 Reichmann (1999: 35). 81 Caetano (1973: 71).
82
Ribeiro (2002). 83 Ribeiro (2002: 167). 84 Freyre (1961: 132). 85 Neto

184
‘Lágrimas de Portugal. ’: império, identidade, ‘raça’ e
destino nas narrativas geopolíticas portuguesas

(1963), por exemplo. 86 Silva (1964), por exemplo. 87 Por exemplo


Andrade (1961), Ministério dos Negócios Estrangeiros (1970), Salazar
(1960b, 1961 e 1962). 88 Andrade (1961: 48). 89 Caetano (1973: 12).
90
Caetano (1973: 41-42). 91 Sousa Santos (1993, p.136). 92 Madureira
(1995: 18). 93 Madureira (1995, p.28). 94 Ornelas (2001). 95 Ornelas
(2002: 147). 96 Ryan (1994: 156). 97 Mondlane (1969). 98 Cabral (1973).
99
Ver Gunn (1999). 100
Medeiros (2002: 93). 101
Medeiros (2002).
102
Spínola (1974). 103
Ver Oliveira (2000). 104
Bruce (1975: 105). 105 A
natureza e importância da transição resultante para a África do Sul em
particular foram alvo de estudo de outros trabalhos (Hanlon 1986, Sidaway
1992, Sidaway e Simon 1993). 106 Por exemplo Carvalho (1974) e Serrão
(1976). 107 Baer e Leite (1992). 108 Madureira (1995: 19-20). 109 Estas
revisões também são evidentes em muitos dos itens financiados ou
disseminados pela Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos. 110
Lourenço (1978: 223). 111
Maltez (2002: 340).
112
Comunidade de Desenvolvimento do Sul de África. A SADC foi fundada
em 1979 numa ‘Conferência de Coordenação de Desenvolvimento’ e
reconstituída em 1992 como uma ‘comunidade’ que procura a integração
regional. 113 Blanco (1995). 114 Bloom (1995). 115 Sousa Santos (1992:
92). 116 Young (1990: 119). 117 Barkawi e Laffey (2002: 111). 118 Barkawi
e Laffey (2002). 119 Gilroy (2000: 39). 120 Rozenberg (2003: 16). 121 Citado
em Teixeira (1992: 121).

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Notas de tradução
Artigo publicado em Environment and Planning D: Society and
Space 2005. vol. 23, p. 527-554, com o título ‘The tears of Portugal’:
empire, identity, ‘race’, and destiny in Portuguese geopolitical
narratives.
Tradução de João Sarmento em 2007, com revisão dos autores. Todas
as traduções de documentos em português citados neste artigo, e que
foram realizadas pelos autores, foram subsequentemente traduzidas
para inglês sem recurso às fontes originais.
i
Posto avançado exposto ao vento.

Agradecimentos
Os coordenadores agradecem à editora Pion a autorização de publicar a
versão portuguesa deste artigo, e a Jurek Wajdowicz / Emerson, Wajdowicz
Studios pela reprodução da figura respectiva.

192
Paisagem e identidade na
construção da nação timorense

João S armento

Se eu pudesse
pelas frias manhãs
acordar tiritando
fustigado pela ventania
que me abre a cortina do céu
e ver, do cimo dos meus montes,
o quadro roxo
de um perturbado nascer do sol
a leste de Timor.
XANANA GUSMÃO
excerto do poema Oh! Liberdade
(escrito na cadeia de Cipinang,
Indonésia em 8 de Outubro de 1995)

Pode-se partir para uma discussão da identidade nacional de


Timor-Leste começando por um breve olhar pelas moedas da
República Democrática de Timor, que circulam no país desde
2003 (complementando as notas e moedas de dólar americano que
continua a ser a moeda oficial por decisão das Nações Unidas em
2000). Na face comum a todas estas cinco moedas está representado
um dos símbolos de poder usados pelos homens de estatuto social
elevado – o kaibauk – um diadema geralmente em ouro ou prata1,
tendo o rebordo das mesmas um crocodilo estilizado, muito comum
nos panos tradicionais locais (Tais). Na outra face das moedas
encontramos representações diversas. Na moeda de um cêntimo
observamos uma concha nautilus, um cefalópode que vive a grandes
profundidades cuja concha é recolhida no mar alto pelos pescadores;
na de 25 cêntimos vemos um barco tradicional de pesca – um beiro
– embarcação monóxila que mais não é do que uma canoa escavada
num tronco equilibrada por balanceiros ou flutuadores normalmente
Geografias pós-coloniais

de bambus, podendo ser dotada de vela de pano. Na moeda de 5


cêntimos está cunhada uma planta de arroz, e na de 50 cêntimos grãos
num ramo da planta de café. Finalmente, na moeda de 10 cêntimos
encontramos um galo de combate, símbolo de uma actividade lúdica
popular em Timor e no sudoeste asiático que representa também a
coragem, a força e a fertilidade2. As moedas foram desenhadas por
José Bandeira, gravadas por Delgado Nunes e significativamente
cunhadas a um mundo de distância de Díli, na Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, Portugal. Voltarei mais tarde às representações
das moedas para fazer alguns comentários a este respeito, mas só
depois de uma discussão sobre a identidade de Timor.
Timor-Leste é uma nação recente, frequentemente apresentada
por organizações internacionais como o primeiro país do século
XXI. Com uma longa história de opressão e domínio exterior, a
soberania foi adquirida em 2002, quando Xanana Gusmão, o líder
histórico da luta pela independência, se tornou o presidente do país.
A independência e a identidade nacional, normalmente equacionadas
como um par, não estão necessariamente ligadas de forma mecânica.
Enquanto a robustez da independência deve ser reforçada por
um esforço contínuo na construção de um sentido de identidade,
a vontade de construir sobre este estado de independência deve
estimular uma crescente participação. Este artigo analisa alguns dos
numerosos factores que contribuem para o forjar de uma consciência
nacional em Timor-Leste. Mais especificamente analisa as ideias
relacionadas com a paisagem e a terra, a religião, a língua e com um
suposto passado partilhado.
Primeiramente passo em revista a geohistória de Timor-Leste.
É importante no entanto sublinhar que as histórias de Timor, são
sobretudo construídas pelo ‘ocidente’, a história vista e percebida do
ponto de vista dos colonizadores, das potências sobretudo europeias.
Na verdade, muito pouco se sabe sobre a história de Timor-Leste de
‘dentro para fora’; as ‘vozes’ dos timorenses raramente se têm ouvido3.
Seguidamente centro a discussão em duas das componentes mais
importantes da identidade nacional: religião e língua, que no caso de
Timor estão intimamente ligadas de formas muito significativas. Por
último, questiono o papel da paisagem e da associação das pessoas

194
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

com a terra na construção da identidade timorense. Desta forma,


recorro a fontes secundárias históricas, a resultados de investigação
arqueológica, antropológica, geográfica e sociológica, e à vivência
em Timor de dois períodos de dois meses cada, em meados dos anos
2003 e 2004. As conversas informais, a observação, o calcorrear
de Timor da costa às montanhas, permitiu-me assim ter um olhar
mais próximo sobre a questão delicada que constituem as formas
como grupos de pessoas se ligam ao espaço. Nesta análise inclui-
se também uma interpretação de algumas pinturas murais de Díli
e Manatuto, que devem ser vistas como espaços de representação
destas mesmas ligações.

Uma perspectiva geo-histórica colonial


Quando os portugueses chegaram a Timor4, por volta de 1515
(logo após a conquista de Malaca), a ilha (ou as ilhas de Timor,
isto é, um vasto número de ilhas e ilhotas localizadas no extremo
oriental da Índia insular) já era visitada por marinheiros chineses,
malaios e javaneses, que iam em busca do sândalo branco (Santalum
Album L.) e de especiarias, de forma a fornecerem os mercados
chineses e indianos5; a ilha era à altura conhecida como a ilha do
sândalo. Foram precisos mais de 50 anos para que os portugueses
estabelecessem uma presença na área, na ilha de Solor, onde os
dominicanos estabeleceram um forte em 1566. Após ataques por
parte dos holandeses, a população cristã de Solor (os Topazes ou os
Swarz Portugueezen como eram conhecidos entre os holandeses),
mudou-se para a ilha das Flores e depois para Lifau, em Timor6. Os
Topazes, uma comunidade com uma identidade cultural fortemente
híbrida, mantinham alianças fortes com os nativos, e eram fluentes em
malaio, as suas próprias línguas nativas, bem como em português. De
início não estabeleceram nenhuma fortificação de registo, mas apesar
de reconhecerem a soberania do Rei de Portugal, nem sempre eram
leais para com o vice-rei de Goa. Em meados do século XVII, após
o chefe local se ter convertido ao catolicismo pelos dominicanos, os
Topazes estabeleceram um povoamento em Lifau, e fizeram diversas
incursões violentas pelo interior da ilha com o intuito de estender
o controlo nas áreas onde o sândalo crescia. Ao mesmo tempo, os

195
Geografias pós-coloniais

holandeses mudaram-se de Solor para Timor, e estabeleceram um


forte na baía de Cupão. É importante assim destacar que no final do
século XVII os portugueses não ocupavam qualquer parte de Timor,
nem registavam uma presença administrativa ou militar; só em
1702 é que o primeiro povoamento permanente foi concretizado em
Lifau, quando um pequeno forte foi construído, no que seria o centro
do ‘poder’ português no meio século seguinte, e que significou a
transferência de poder das Flores para Timor. Não obstante, de
acordo com Boxer7, em 1750 havia apenas 8 portugueses e alguns
monges dominicanos para representar a metrópole!
Ao longo do século XVIII registaram-se algumas revoltas contra
a autoridade portuguesa e diversas tentativas dos Topazes em
desalojar os holandeses de Cupão. Por esta altura, e após o contrato
de Paravicini em 1756 – mais uma partição imposta do exterior –
Timor foi dividido numa província chamada Servião – habitada por
Vaiquenos (Dawan ou Atoni), que fisionomicamente se parecem aos
melanésios, e constituída por 16 reinos – e uma província designada
por Bellum – habitada e controlada pelos Belu (ou Tetun), fisicamente
mais próximos dos malaios8, e constituída por 46 reinos de dimensão
modesta9. É indispensável mencionar aqui que esta divisão Este
– Oeste na ilha de Timor não só é relativamente recente (construída
em traços gerais em meados do século XVIII), como foi claramente
imposta do exterior, não obstante todas as diferenças que possam ter
existido na altura entre as duas ‘partes’ da ilha. Actualmente, mesmo
dentro das fronteiras de Timor-Leste, a divisão de Este – Oeste é
substancial nas discussões da identidade nacional10.
As ofensivas contra Lifau levaram, em 1769, ao estabelecimento
de um novo povoamento em Díli, mais arredado destas ameaças.
Esta mudança, há pouco mais de dois séculos, representou o fim
de um período caracterizado sobretudo pela actividade comercial
e missionária, e o início de uma fase de povoamento permanente.
No entanto, este acontecimento não trouxe uma melhoria imediata
das relações com os reinos rebeldes ou uma nova dinâmica da
organização administrativa do território11. No final do século XVIII,
o declínio do comércio de sândalo – em consequência da sua escassez
– resultou num esforço por diversificar a base da economia. Desta

196
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

forma, nos princípios do século XIX, os portugueses introduziram


o café, o algodão e a cana-de-açúcar. Somente a partir da metade
do século XIX é que o primeiro começou a dominar a economia
colonial, substituindo o sândalo como a principal comodidade de
exportação. No seu auge de produção, as 45,000 toneladas por ano
contabilizavam mais de metade das exportações portuguesas de
Timor.
Entre 1816 e 1916, Portugal e Holanda reclamavam possessões
territoriais através de documentos políticos (muitas vezes duvidosos)
frequentemente assinados por chefes locais. Enquanto as negociações
diplomáticas tinham lugar em Lisboa e Haia, as disputas entre as
Índias Orientais Holandesas e as Índias Portuguesas eram tidas
ao nível local. Sintomaticamente, em 1860, Afonso de Castro, o
governador em Díli, afirmava que ‘O nosso império nesta ilha não
é mais do que uma ficção’12, e enquanto Portugal argumentava ter
controlo sobre o território em 1912 e a Holanda em 1915, até bem
ao final do século XIX, quer os portugueses quer os holandeses
tinham muito pouca influência no interior de Timor e o seu comando
era extremamente limitado. Frequentemente expedições armadas
tinham que ser organizadas para controlar os timorenses, e apesar
do crescente processo de colonização, ainda no final do século XIX
muitas áreas se consideravam independentes.
O ‘contrair’das possessões imperiais portuguesas13 foi acompanhado
de um progresso muito lento do conhecimento geográfico da ilha de
Timor, e sempre bastante limitado e circunscrito às áreas costeiras
(bastante visível numa breve análise dos mapas topográficos da
altura). Em 1896 Timor obteve autonomia de Macau, e tornou-se a
província de Timor, dependente directamente de Lisboa. Só então,
há pouco mais de 100 anos atrás, os primeiros planos de urbanização
foram feitos, algumas estradas e casas foram construídas, algumas
escolas foram criadas, legislação sobre direitos de propriedade foi
introduzida e a agricultura foi desenvolvida14.
As relações Portugal-Timor, ou portugueses-timorenses, foram
testadas no início do século XX na rebelião de Manufahi ou
Boaventura (1911-1912), a revolta mais importante liderada pelos
régulos, ou liurais, durante o domínio português. Quer seja vista e

197
Geografias pós-coloniais

percebida somente como uma rebelião ou como a traição de lealdade


à coroa portuguesa, o exército ‘rebelde e primitivo’ foi ‘esmagado’
com severas perdas de vida por um exército colonial moderno:
aparentemente, a captura do líder rebelde – Boaventura – pôs fim
ao evento sangrento. A isto seguiram-se três medidas – a perda de
confiança no liurais hostis, a fragmentação do poder dos liurais e o
estabelecimento do suco, em vez do reino, como a principal unidade
administrativa – no sentido de construir um espaço-território mais
‘racional’, planeado e controlado.
Quando as disputas territoriais e fixação de limites entre as duas
potências colonizadoras se resolveram, viveu-se uma estabilidade
relativa até à Segunda Grande Guerra, quando (por infortúnio)
Timor assumiu uma posição estratégica importante na região da
Ásia-Pacífico. Apesar da neutralidade de Portugal, uma força aliada
composta por forças australianas e holandesas entrou em Timor
apenas dez dias depois o bombardeamento de Pearl Harbour (17 de
Dezembro de 1941)15. O objectivo de prevenir um movimento dos
japoneses para sul falhou por completo, e passados apenas dois meses
estes invadiram Timor (19 de Fevereiro de 1942), ficando por mais
de três anos (Setembro de 1945). Em grande parte devido à retirada
dos Aliados (sobretudo australianos), cerca de 60,000 timorenses
perderam a vida e o país e a sua economia ficaram em ruínas16. Ao
contrário de outras partes do sudoeste asiático, a presença japonesa
em Timor não instigou um movimento nacionalista, o que segundo
Gunn17 pode ser explicado por três factores principais: a inexistência
de uma elite educada, a presença de uma polícia secreta bem
organizada combinada com uma escassez de notícias, e a robustez
de uma identidade tribal, linguística e étnica complexa.
A reconstrução do país procedeu-se de forma lenta e em 1959 uma
revolta de grandes dimensões ocorreu em Viqueque, que rapidamente
se disseminou por Baucau e a Los Palos, constituindo de longe o
mais sério desafio à autoridade portuguesa em Timor no período
pós-guerra18. Numa altura em se registava um crescente sentimento
anti-colonial na Indonésia, a ‘Rebelião de Viqueque’, ligada a um
movimento independente contra o regime de Soekarno com base
no sul das Molucas, representou (consoante a visão política) por

198
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

um lado um movimento de resistência contra o colonialismo, e por


outro, uma percursora da integração com a Indonésia. Deste modo, a
possibilidade de ligação entre a Rebelião e os desejos integracionistas
deve fazer com que haja cuidado na análise da ideia de que antes
de 1965-66 (quando Soharto ascendeu ao poder) a Indonésia teria
pouco interesse em Timor-Leste19.
Após a revolução de 1974 em Portugal, surgiram vários partidos
políticos em Timor-Leste. Os três de maior dimensão (UDT20,
FRETILIN21 e APODETI22) foram rápidos em declarar as suas
perspectivas políticas. A UDT defendeu a continuidade da relação
com Portugal como forma de alcançar a independência total; a
FRETILIN preferiu uma independência imediata modelada em parte
nas experiências de lutas nacionais de libertação das ex-colónias
portuguesas de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau; finalmente a
APODETI advogou uma autonomia transitória da Indonésia antes
da independência23. Estas ópticas destoantes resultaram numa
contenda interna, na retirada do governo português (de Díli para
Ataúro em Agosto de 1975) e na declaração de independência de
Timor-Leste por parte da FRETILIN em 28 de Novembro de 197524.
A bandeira portuguesa foi substituída pela Timorese25, enquanto que
Xavier do Amaral e Nicolau Lobato eram escolhidos para presidente
e primeiro-ministro, respectivamente.
Após o ‘big wink’26 do governo americano a Jacarta, o exército
indonésio invadiu Timor em Dezembro de 1975, reivindicando
Timor com a sua 27ª província27. A estratégia por detrás desta
movimentação prendia-se com a necessidade de controlar uma
possível expansão do comunismo (a FRETILIN, o principal
partido político, tinha uma visão considerada como ‘demasiado à
esquerda’), bem como com a percepção de que desta forma seria
mais fácil de explorar as reservas de gás e petróleo no Mar de Timor.
Para muitos, Timor foi ‘apanhado’ no meio de dois eventos trágicos,
ainda que não interdependentes: a desintegração do colonialismo
português e a manifestação do expansionismo indonésio28. O que
se seguiu foi denominado pelo jornal Le Monde como o ‘Vietname
silencioso’, isto é, 25 anos de ocupação e cerca de 200,000 mortos
– um terço da população – associados a uma ausência quase total de

199
Geografias pós-coloniais

notícias. Chomsky29 argumenta que antes da invasão da Indonésia,


principalmente devido a preocupações com o colapso do império
português, a cobertura mediática de Timor nos Estados Unidos era
bastante alta. No entanto, e de forma notável, à medida que a agressão
e massacre apoiados pelos Estados Unidos começaram a atingir
proporções dramáticas e níveis de quase-genocídio, a cobertura
diminuiu e as notícias na imprensa nacional americana caíram para
uma ausência total30. As organizações internacionais foram banidas
e Timor-Leste ficou fechado ao mundo exterior. Notavelmente,
apesar da legitimidade da anexação nunca ter sido reconhecida por
qualquer país excepto a Austrália, as Nações Unidas sempre trataram
esta matéria como um problema interno da Indonésia.
Se é certo que o que se passava em Timor não chegava aos
‘ouvidos do mundo’, anteriormente, durante a época do colonialismo
português, especialmente nas décadas do Estado Novo, Timor
estava isolado e não ‘sabia nada do mundo’. ‘Diz-se’ que se alguém
quisesse enviar uma carta de Díli para Jacarta, esta teria que passar
primeiro por Lisboa antes de chegar à capital Indonésia. A este
respeito Carey31 refere que nem os acontecimentos dramáticos da
guerra de independência da Indonésia (1945-1949), nem a ascensão
de Suharto ao poder tiveram grande ressonância em Timor-Leste.
Até ao lançamento do jornal A Voz de Timor, nos inícios dos anos 70,
não havia qualquer jornal em Timor, e as rádios existentes, escutadas
somente por alguns, transmitiam apenas algumas notícias sobre o
Timor português ou sobre a ‘metrópole’.
Durante os 24 ‘longos’ anos de ocupação indonésia, a ‘reconstrução
de um enquadramento nacionalista para o movimento de resistência
baseou-se grandemente na recriação dos laços entre unidades
regionais, que sobreviveram devido ao seu lugar nos sistemas de
parentesco local’32. As afiliações de confiança e obrigação com
um suporte na ‘casa’, as duradouras ligações de parentesco e de
redes familiares extensas que sempre constituíram a fundação das
vizinhanças das pequenas aldeias em Timor, foram fundamentais
para o sucesso dos movimentos de resistência, e impediram em larga
medida movimentos de infiltração e corrupção33.
No entanto, em 1975, o sentido de nacionalidade timorense ainda

200
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

estava na sua infância e todo o período de ocupação indonésia


constituiu, em larga medida, o momento de definição da identidade
timorense. Neste contexto, as transformações na estratégia do
movimento de resistência em meados dos anos 80 – de uma estratégia
de guerrilha militar patrocinada por uma ideologia marxista-
leninista que rejeitava convicções conflituantes, passando pela
construção de redes clandestinas independentes de uma base fixa
de suporte territorial, e finalmente por uma resistência sustentada
(especialmente através da acção de Xanana Gusmão) numa filosofia
em que a FRETILIN teria que respeitar a liberdade de expressão com
o objectivo de criar um Estado multipartidário – foram fundamentais.
Um dos resultados do ‘choque’ entre Xanana e a FRETILIN foi a
separação das FALINTIL (o braço armado da FRETILIN) e a criação
de um movimento nacionalista não partidário: Conselho Nacional
de Resistência Maubere (CNRM). A inclusão do termo Maubere
(que genericamente significa alguém que é do povo34) significou
uma mudança do marxismo para um envolvimento mais forte com
as pessoas no processo de resistência: ‘ O mauberismo facilitou a
‘timorização’ das pessoas e a autenticação do habitante rural, e não
dos chefes tradicionais’35. Em certo sentido, ‘todos’ faziam agora
parte da resistência contra a ocupação.
Em 1991 o massacre do cemitério de Santa Cruz em Díli projectou
internacionalmente a luta timorense36. Em Portugal, a indiferença
deu lugar à compaixão quando ubíquas imagens de ‘outros’ a
serem massacrados ganharam uma proximidade surpreendente por
mostrarem uma chacina rezada em português.Alíngua metamorfoseou
o ‘outro’ omnipresente no quotidiano televisivo num ‘eu’ ou ‘quase-
eu’ que provocou a indignação. As imagens que circulavam o mundo
ocidental encorajaram protestos em massa nas principais cidades
portuguesas, onde se manifestava em silêncio a angústia e raiva em
muitos casos retida há cerca de 30 anos37. Paradoxalmente, apesar
do dia 12 de Novembro ser feriado nacional em Timor-Leste (Dia
Nacional da Juventude e aniversário do massacre no cemitério),
em Santa Cruz não existe hoje em dia qualquer placa, memorial ou
alusão evocativa dos acontecimentos de 1991, que são seguramente
um dos pontos fulcrais da internacionalização da resistência

201
Geografias pós-coloniais

timorense e da afirmação da autodeterminação do povo timorense.


As transformações da economia geopolítica global (com a
Indonésia a ter um papel diferente na crescente liberalização
económica fomentada pelos Estado Unidos) e a (inevitável?) queda
do regime de Suharto, proporcionaram um contexto mais favorável a
Timor-Leste. Em Janeiro de 1999, Habibie, promovido a Presidente
por Suharto, desafiando em larga medida os interesses dos militares,
permitiu um referendo sobre a aceitação ou rejeição de uma soberania
especial em Timor-Leste, sendo que um não indicaria um voto para
a independência. A par da indignação dos militares indonésios
(comandados pelo general Wiranto) sobre o referendo, registaram-
se milhares de mortes numa tentativa de intimidar os votantes. De
forma deplorável, como Chomsky38 sugere, o governo americano
e os seus aliados continuaram a fornecer e apoiar a Indonésia, ao
mesmo tempo que recusavam a entrada das forças internacionais de
manutenção de paz.
Após a ‘consulta popular’ dirigida pelas Nações Unidas de 30
de Agosto de 199939, seguiram-se três longas semanas da operação
militar indonésia chamada Operation Clean Sweet. O resultado
foram milhares de mortos, a deslocação forçada de praticamente um
terço da população, e cerca de 70% de todos os edifícios queimados.
Neste processo, em mais uma tentativa de atacar e apagar a base
simbólica da resistência timorense, as milícias também fizeram sentir
a sua fúria em muitas das grandes ‘casas sagradas’ – estruturas de
madeira ricamente decoradas com telhado de colmo, que funcionam
como repositórios dos valores familiares e da comunidade – das
populações rurais timorenses40.

A Identidade Nacional
A ideia de ‘nação’ é em si mesma uma ‘comunidade imaginada’41,
pois a materialização da nação ocorre num espaço no qual os
seus membros têm uma forte ligação entre si, uma ligação que
triunfa independentemente das diferenças que os possam dividir.
A identidade nacional implica a percepção da importância da
localização territorial e da história na formação de elementos que
constroem a sua identidade comum. Tal como argumenta Said42,

202
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

o processo de construção de identidade é feito através da prática


universal de mentalmente designar um espaço familiar que é
‘nosso’ e um espaço não familiar para além do nosso que é ‘deles’.
Esta dimensão imaginada afasta-se da ideia de que as nações são
o resultado natural de um povo comum e da sua relação com um
lugar particular43, e é complementada por uma variedade de práticas
e exercícios de poder através dos quais se produzem e reproduzem
vínculos territoriais.
Ao mesmo tempo, as nações e a identidade nacional são produzidas
em contextos históricos e geográficos específicos, como modos de
forjar determinados tipos de lealdade ou sentidos de pertença entre
pessoas. As fronteiras deste espaço imaginado, apesar de elásticas,
são finitas, e uma das estratégias conscientes ou inconscientes de
promover e familiarizar as pessoas com as limitações da soberana
nacional e da comunidade é através da sua representação visual em
mapas, pinturas, artesanato, etc. Os murais, tais como os encontrados
nas paredes exteriores do estádio nacional de Díli são um bom
exemplo. Transmitem não somente a mensagem de liberdade e
democracia como os pilares da nação, mas enquanto se inspiram
em valores tradicionais como os Tais e a arquitectura tradicional,
representam mapas do país como um todo, em várias cores e sempre
incluindo o enclave de Oecussi e a ilha de Jaco, mas deixando por
vezes de fora Ataúro. A identidade nacional é um conceito que inclui
múltiplas dimensões, tais como a etnia, a língua, a religião, a cultura
‘material’ como seja a arquitectura, os assentamentos rurais, a
música, etc. Neste artigo debruço-me sobre três aspectos principais:
a religião, a língua e o território. Vou analisar os dois primeiros e
concentro-me no último no resto do artigo.

Do animismo ao catolicismo
Antes da chegada dos portugueses, os timorenses eram sobretudo
animistas. A religião indígena girava em torno da Terra-mãe,
responsável pelos nascimentos e por tratar dos defuntos, enquanto
o seu equivalente masculino era o Deus do céu ou sol. A primeira
tentativa de introduzir o cristianismo em Timor foi feita pelos
dominicanos por volta de 1556, que converteram 5000 timorenses44.

203
Geografias pós-coloniais

Durante o período de colonialismo português, o catolicismo era


mais uma parte das regras coloniais do que parte das vidas locais.
Na década de 20, e após mais de 300 anos de missões, apenas 19,000
pessoas se tinham convertido ao catolicismo45.
Paradoxalmente a situação alterou-se dramaticamente com a
ocupação da Indonésia, predominantemente islâmica. Quando os
timorenses foram chamados a pronunciar o seu credo religioso (a
Indonésia estava particularmente preocupada com o ateísmo que era
percebido como um indicador de potencial comunista), a maioria
declarou-se católica46. É surpreendente notar que enquanto em 1970
cerca de 2% dos timorense eram católicos, em 1980 este número
era de aproximadamente 80%47. Presentemente, cerca de 90% dos
timorenses são cristãos e católicos (sendo os restantes budistas,
muçulmanos e protestantes). Este é sem dúvida um dos aspectos
distintos da identidade nacional timorense, por contraste com os seus
vizinhos indonésios muçulmanos e balineses budistas. O objectivo
português de converter a população ao catolicismo, que começou no
início do século XVI e não foi concretizado em mais de 460 anos,
foi atingido pela presença indonésia em menos de duas décadas.
Se é certo que se podemos relacionar a Igreja Católica com a
Resistência timorense, foi só em 1981 que numa reflexão, a igreja
transmitiu uma mensagem de solidariedade ao povo timorense. Até
então a vasta maioria dos padres e religiosos estrangeiros ausentava-
se de Timor indo para a Austrália ou Portugal sempre que algum
problema mais sério irrompia. Apenas quando a Indonésia invadiu
em 1975 e os padres e religiosos que permaneceram em Timor
não puderam sair, é que uma igreja mais indígena48 e solidária
foi estabelecida. Desde essa altura a Igreja Católica tornou-se
uma instituição vital na luta política, onde os timorenses podiam
encontrar refúgio da perseguição, e podiam estabelecer contacto
com o mundo exterior. A importância da Igreja Católica cresceu
de forma significativa, e não apenas o número de fiéis engrandeceu
dramaticamente, mas também as figuras carismáticas e de liderança
surgiram com vitalidade, como é o caso do Bispo Ximenes Belo49,
que se tornou internacionalmente reconhecido como uma voz da
luta em Timor-Leste50. Mais ainda, nos anos 80 e 90, a maioria

204
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

dos protestos expressivos contra a soberania indonésia estiveram


associados a acontecimentos religiosos.
Apesar de por detrás do catolicismo haver uma forte base animista
que é importante nas práticas quotidianas e na relação com a terra, em
grande medida, a religião coincide com a nação, dividindo Timor em
Oeste e Este. Paradoxalmente, como já foi mencionado, esta construção
recente foi sobretudo o resultado da opressão pela Indonésia. Ao
mesmo tempo, a base animista existente tem raízes semelhantes em
toda a ilha. Apesar da adoração sob a cruz da cristandade, a imagem
icónica de ‘rocha e árvore’ – um leitmotif timorense nos sacrifícios
cerimoniais e nas invocações aos antepassados, e os poderes ocultos
do divino e do espírito51, representando a união da Mãe-terra (rocha)
e Pai-céu (árvore)52 – está presente em toda a ilha formando uma
estrutura cultural simbólica muito forte.

Mosaico dinâmico de línguas


A multiplicidade de línguas em Timor-Leste é tão complexa como
qualquer outro aspecto da ilha (a fisionomia dos timorenses que
atraiu esforços precoces da Antropologia, ou a cultura material, são
outros exemplos). Presentemente, as 15 línguas indígenas faladas no
país, muitas delas inteiramente timorenses, pertencem a um de dois
grupos linguisticamente muito distintos: o Austronésio53 ou o Trans-
Nova Guiné54, se bem que ao longo do tempo influenciaram-se
mutuamente. De um ponto de vista sociolinguístico há uma diferença
significativa entre a parte oriental e ocidental da ilha de Timor, pois
em Timor ocidental apenas se falam três línguas: Dawan, Tetun e
Helong, resultado em parte do crescente domínio do Dawan a partir
do século XIX e de uma colonização distinta. Em Timor-Leste, à
excepção do Helong, todas as línguas são ainda usadas.
Quando as possessões portuguesas na região foram reduzidas à ilha
de Timor, os portugueses em Díli adoptaram uma forma simplificada
de Tétum – Tétum-Díli ou Tétum-praça) – como língua franca para o
território que controlavam. Esta é uma variante de Tétum, mesclada
com português. Até então, o malaio era a língua franca das ilhas das
Flores, Alor e Timor55, mais tarde escolhida pelos indonésios como
língua oficial (e não javanês), alterando de forma expressiva o seu

205
Geografias pós-coloniais

nome para Bahasa Indonesia (língua indonésia).


Durante os anos de colonização portuguesa, o português era
a língua da administração pública e era ensinado na escola56. No
entanto, a grande maioria das pessoas não sabia falar português, e
na verdade, durante os anos 70 as taxas de analfabetismo rondavam
os 95-99%. O discurso político dominante do regime de Salazar – o
Estado Novo (de 1926 a 1974), enfatizava a ideia de uma nação
multiracial e transcontinental que se estendia do Minho a Timor:
o império era a nação57. Esta ideia de um grande império, do luso-
tropicalismo (conceito desenvolvido por Gilberto Freyre, que
defendia que os portugueses tinham uma capacidade especial para
se misturarem com os povos colonizados, ao contrário de outras
potências coloniais), era em grande medida, parte de um projecto de
propaganda que tentava projectar uma imagem de que ‘Portugal não
era um país pequeno’58. Antropologistas como António de Almeida
(membro da ‘Escola do Porto’ criada por Mendes Correia em 1920,
e chefe da Missão Antropológica de Timor a partir de 1953-54 que
tinha como um dos seus objectivos a elaboração de uma ‘Carta
Etnolinguística de Timor’), também contribuíram para o reforço
da ideia de que os portugueses transformaram profundamente os
timorenses, ao ‘introduzirem’ uma pretensa civilização superior
como se uma missão sagrada estivesse em jogo59. Já antes, Mendes
Correia60, sendo bastante mais audacioso e ‘fantasioso’, defendia
uma teoria de formas humanas mutantes, sendo Timor um último
reduto de uma ‘raça perdida’.
O Luso-tropicalismo coloca obviamente um problema para os
‘homens’ do Estado: posiciona a civilização portuguesa como um
parceiro igual, e não como uma forma superior de cultura. No entanto,
constrangimentos financeiros e uma visão limitada de império e
de uma nação heterogénea, produziu uma ‘nação’ muito desigual
e retalhos de espaços vividos díspares. Em grande medida Timor
era gerido mais como um protectorado do que como uma colónia,
e os portugueses, especialmente sob o regime de Salazar, nunca
conceberam uma identidade timorense fora da sua própria nação.
A análise fortemente mistificada de pessoas e nação sustentada por
uma visão imperialista (com a ajuda da antropologia colonial, por

206
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

exemplo), nunca permitiu que a língua Tétum se tornasse um foco da


identidade timorense, através do seu desenvolvimento como língua
escrita.
Se até aos anos da ocupação indonésia, antes de 1975, o malaio
(rebaptizado como bahasa indonésio) não era falado em Timor-
leste61, após esta data este tornou-se a segunda língua atrás do
tétum. O português foi proibido, e talvez por causa disso mesmo,
a resistência usou-o como a forma principal de comunicar e como
língua oficial de combate. Em 1975, os cinco maiores partidos
políticos adoptaram o português como a sua língua oficial interna e
o português foi declarado (ainda que unilateralmente) língua oficial
do novo estado de Timor. Após a decisão do Vaticano em 1981
de permitir o uso do Tétum na liturgia, esta língua deixou de ser
apenas uma língua local de algumas partes do país e a língua franca,
para passar a ter um papel crescentemente importante com língua
‘nacional’62.
Mais recentemente, e para muitos surpreendentemente, o governo
timorense decidiu escolher o tétum e o português como línguas
oficiais (n.1 do artigo 13.º da Constituição da República Democrática
de Timor-Leste). Para além da existência de uma lógica linguística
que suporta esta decisão63, em grande medida esta ideia de que
a existência de uma nação significa que deve existir uma outra
contra a qual a auto definição pode ser construída, encaixa bem na
rejeição do indonésio como língua oficial de Timor-leste, e mesmo
do inglês da vizinha Austrália (ainda que por razões distintas). A
maioria dos retornados da Austrália critica esta opção do português
enquanto idioma nacional e oficial, ao passo que os que retornaram
de Moçambique ou outros PALOP a defendem64. Ao mesmo tempo,
a geração foun sente-se claramente marginalizada com esta escolha.
Estes conflitos linguísticos e educacionais em que gerações chocam,
mostram uma brecha geracional que contribui presentemente para a
existência de uma tensão onde o conhecimento de uns é negligenciado
enquanto, como afirma Carey65, é a geração de 1975 educada no
português ainda que ‘comanda as tropas’.
Concorrentemente, os acontecimentos extremamente violentos
e ainda frescos inflamam uma visão romantizada do passado, que

207
Geografias pós-coloniais

‘inventa’ memórias de amizade e cumplicidade, mergulhadas numa


ligação Portugal-Timor (figura 1). A memória de um paraíso perdido
reconstrói-se, demonizando pelo caminho a Indonésia e construindo
a nação como filha ou irmã de Portugal. Numa admirável pintura
mural em Manatuto, a Este de Díli, com um pano de fundo de
montanhas verdes e tranquilas pintalgadas de casas tradicionais
de madeira e de um mar calmo e azul, dois casais de portugueses
e timorenses dão as mãos. Estão vestidos com trajes tradicionais;

Figura 1 – Mural, Manatuto. Fonte: autor, 2004.

todos com a mesma altura e com um sorriso franco. O sol à direita


ilumina as palavras escritas em português: ‘amigos para sempre’.
Tal como Bhabha66 argumenta, qualquer resistência política ao
poder colonial tem que ser percebida não como a rejeição evidente
da população oprimida face ao legado do colonizador, mas antes
como um processo muito mais ambíguo no qual essa herança
precisa é rejeitada e simultaneamente desejada. Assim, no encalço
de Bhabha, em vez de discorrermos sobre as fronteiras que existem
entre ‘nós’ e ‘eles’, que separam o ‘self’ e o ‘other’, devemo-nos

208
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

concentrar na hibridez inevitável das identidades. Este mural, uma


representação de paisagem, ilustra a forma como as comunidades
imaginadas são produzidas e reproduzidas através das práticas das
pessoas, e estão emaranhadas na definição de nação. A questão
de quem define a nação, e de como essa definição é reproduzida
e contestada está aqui claramente presente. Ao mesmo tempo, este
espaço de representações no sentido lefebvriano, apela a inúmeras
questões. Qual a ligação entre a comunidade imaginada e a rebelião de
Viqueque (ver acima)? Tendo sido este um acontecimento importante
na história moderna de Timor-leste – não apenas pela extensão da
sublevação contra o domínio português e a ferocidade com que foi
esmagada67 mas também pela forte possibilidade de existência de
‘sementes’ de nacionalismo mais tarde desenvolvidas pela Fretilin
– como será celebrado pelos timorenses? Será institucionalizado
pelas teias burocráticas do Estado? Será parte de um processo de
montagem que trabalha no fabrico de uma consciência nacional?
Que histórias e narrativas serão formal e informalmente ensinadas
nos manuais escolares?

A ligação à terra e paisagens sagradas


A topografia da ilha de Timor contribuiu para a existência de um
território marcadamente fragmentado e para a existência de muitas e
diversas paisagens. Obviamente que ao longo do tempo, montanhas
com elevadas altitudes, vales profundos, ravinas e vertentes
íngremes, enxurradas súbitas regulares (que continuadamente
destroem caminhos, pontes e estradas), florestas tropicais amplas
(ainda que fortemente transformadas), constituíram barreiras
físicas marcantes. Apesar desta situação, o ‘isolamento’ físico
consequente tem sido sobrevalorizado por diversos académicos
e políticos, que se encontram no caminho da construção de um
discurso de separação inevitável e no encalço de uma explicação
para a perenidade de comunidades ermas e para a continuidade de
tantas quantas 15 línguas diferentes e grupos étnicos. No entanto,
McWilliam68 alerta para a existência de características linguísticas
e culturais híbridas, que em muitos aspectos dissolvem ou esbatem
a distinção conceptual implicada nos termos Austronésio e não-

209
Geografias pós-coloniais

Austronésio. A ideia de que o espaço das sociedades pré-modernas


era tão local como o lugar, e que as comunidades timorenses têm
vivido espacialmente circunscritas durante séculos, mantendo apenas
relações de hostilidade ou pactos efémeros com os ‘vizinhos’, é um
mito que perdura, bem como a ideia de que estas diferentes línguas
coexistiram em isolamento sem partilharem ou se influenciarem
mutuamente (este ponto é desenvolvido mais adiante).
Se é verdade que os laços de solidariedade com uma família
extensa, os vínculos de confiança e obrigação com uma base na
casa, ou mesmo os sistemas locais de parentesco e os mecanismos
de defesa para com os estranhos sempre existiram, e estão ainda
bem presentes, ligações entre unidades regionais, através de redes
familiares extensas que conectaram regiões distantes e fisicamente
isoladas também permaneceram de forma constante. Os contactos
inter-étnicos sempre foram importantes e frequentes, e muitos
timorenses, tal como Traube69 argumenta, eram fluentes nas línguas
faladas pelos grupos vizinhos. Segundo o trabalho de Massey70, esta
forma de imaginar o espaço tem-nos levado a conceber a geografia
e história de Timor-Leste simplesmente como um conjunto de
fenómenos ‘na’ superfície, suspensos num tempo estático como se
pessoas imobilizadas estivessem à espera da chegada do ‘Ocidente’
para dar o ‘tiro de partida’.
De forma surpreendente, apesar de séculos de colonização e
ocupação, a sociedade timorense e a sua afectividade para com a
terra não se alteraram de forma significativa71. Ao examinarmos
os esforços do governo colonial português em ter controlo sobre
a sociedade timorense, e observarmos a nomeação de uma elite
política e um redireccionamento da sua economia para prioridades
de exportação, Taylor72 conclui que ‘os efeitos concretos destas
mudanças foram limitados. O que noutras sociedades teria produzido
transformações estruturais profundas, resultou paradoxalmente
no fortalecer de aspectos básicos da sociedade timorense’. De
acordo com McWilliam73, no final, foram as ligações duradouras de
parentesco, as redes familiares e vínculos à casa, em torno das quais
muita da vida local social continuou a ser construída, que provaram
ser resistentes à infiltração e corrupção. Mais de 400 anos de tumulto,

210
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

alvoroço e revolta não foram suficientes para desorganizar os reinos


de Timor, o que sugere a ‘extraordinária capacidade de continuidade
local: a capacidade de persistir, de tolerar, e de manter ligações com
a terra’74.
Numa vista aérea é possível alegar que existem dois centros
simbólicos em Timor-Leste (e possivelmente comuns a toda a ilha).
Um é o extremo oriental da ilha, que popularmente se refere à terra
sagrada de todas as origens e ao ponto de encontro do mar e terra75.
As suas fronteiras são evasivas, mas este é um lugar que simboliza
uma fronteira e é onde o sol nasce – Loro Sa’e. Expressivamente,
a ilha de Jaco é solo sagrado; é o lugar onde os pescadores ainda
levam a cabo práticas rituais interditas aos malae76, e é um dos
‘lugares originais’ onde os antepassados Fataluku77 chegaram nos
seus barcos, no ‘primeiro’ desembarque em Timor78. A esta dimensão
tradicional, cultural e mítica, corresponde, do ponto de vista formal,
administrativo, e jurídico, uma ilha que é uma reserva protegida
onde a agricultura e a caça são proibidas79.
A importância destas paisagens ultrapassa os limites políticos
do país. Mesmo em Timor ocidental, a parte leste da ilha é
conhecida como ‘a cabeça da terra’ (pah in a nakan – ou rai-
ulun), relacionando terra com orientação80. Nas múltiplas versões
timorenses do mito do crocodilo, uma representação da terra refere-
se à ilha como um crocodilo meio submerso, com a sua cabeça para
o Este e a cauda para Ocidente. Este eixo Este-Oeste forma um
alinhamento que segue o sol (daí em tétum Este e Oeste se designarem
como Lorosae e loromunu81). É também na parte Este da ilha que se
encontra o sítio arqueológico de Lene Hara (uma gruta calcária).
Dos complexos de arte rupestre que existem em diversas ilhas do
sudoeste asiático, o de Tutuala é “(…) um dos maiores e com uma
concentração mais diversa (…)”82. As pinturas vermelhas visíveis
têm uma idade inferior a 6300 anos, existindo ainda uma lâmina de
pigmento vermelho mais antigo que indica um episódio de pintura
anterior datado entre 24,000 a 29,300 anos83. Apesar de exibirem
diversos motivos figurativos que incluem formas antropomórficas
pequenas carregando objectos (aparentemente armas), barcos e
animais (tais como peixe num estilo ‘Raio-X’), figuras zoomórficas

211
Geografias pós-coloniais

combinando configurações animais e humanas e figuras geométricas


combinadas com características humanas, os motivos mais comuns
na grutas são formas não figurativas como imagens de estrelas e do
sol, círculos e formas geométricas lineares ou cilíndricas84. A maior
parte dos motivos são pigmentos monocromáticos vermelhos, mas
também negros, amarelos (por coincidência as cores da bandeira
timorense) e castanhos. Nas grutas Ili Kere Kere, na mesma região
de Tutuala, existem também pinturas rupestres com cerca de 5000
anos, mostrando pinturas de animais, figuras dançando e símbolos
celestiais. Estes são os traços humanos mais antigos na ilha de
Timor.
Assim como existe uma configuração Este-Oeste, há uma
concepção de um eixo Norte-Sul que está associado com os
mares (tasi em tétum). Este último eixo tem uma diferenciação
de género. Enquanto que o mar setentrional Savu e os estreitos de
Wetar são comummente designados como mar feminino (tasi feto),
possivelmente devido à sua natureza calma e serena, o mar de Timor
ao sul é apontado com mar masculino (tasi mane), provavelmente
devido às suas características bravias e imprevisíveis85. Esta ideia de
género e mar aponta para a análise, ainda que breve, da importância
do mar na identidade timorense. Por um lado, não apenas as origens
de todas as línguas e religião estão ligadas à chegada por mar
(sendo que a religião católica como apontado foi crucial nos anos
de resistência), mas mais importante ainda, os lia na’in – isto é,
os mestres das palavras e do discurso, os contadores de histórias
e da história numa sociedade principalmente oral – afirmam que
em Timor-Leste é frequente baptizar as crianças com nomes de
antepassados que chegaram por mar: por barco, num tronco, num
crocodilo, numa tartaruga ou numa jangada. O mar é o lugar de
origem da vida, do nascimento. Por outro lado, há uma percepção
semeada de que os timorenses não se interessam pelo mar86. Apesar
de ser possível identificar uma relação antiga com os ambientes
costeiros em diversos assentamentos que historicamente se localizam
ao longo da costa87 (o mar representa um recurso abundante que
é explorado com técnicas de baixa tecnologia, pesca costeira e
actividades recolectoras), as deslocações e movimentos para além

212
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

das terras mais altas e das montanhas sempre foram espacialmente


limitadas e restritas. Por certo devido à história de opressão na
ilha, os timorenses viraram as suas costas ao mar, e ao contrário
de muitas outras sociedades insulares em toda a Indonésia, nunca
desenvolveram actividades comerciais marítimas ou pesca de alto
mar88.
Pela altura que os portugueses chegaram a Timor, no início do
século XVI, não havia marinha mercante ou barcos e juncos de
grande porte89. Significativamente, para os Mambai ‘(…) o mar
é uma esfera distante, misteriosa, governada pelas suas próprias
leis. Muitas pessoas nunca o vêem durante a sua vida, e a maioria
confessa uma ignorância quanto à sua natureza’90. No entanto, esta
posição dos Mambai não afasta a existência de práticas sofisticadas
de gestão e protecção dos recursos naturais marinhos, através de
rituais de proibição desenvolvidos pelas comunidades costeiras91.
Em Timor, as praias ainda são espaços de mágoa, impregnados de
dor e atrocidades. A praia da Areia Branca, uma das mais atractivas
praias dos arredores de Díli – agora fortemente publicitada como
um dos ícones de uma indústria de turismo muito incipiente, é
regularmente frequentada por estrangeiros, mas por muito poucos
timorenses. Este foi um local de massacres durante a ocupação
indonésia, que transformou as águas turquesa num mar de sangue.
Noutras praias fora das principais cidades existe uma ligação
semelhante, e os timorenses só agora estão lentamente a acostumar-
se a usar as praias como espaços de recreio. A excepção é a ilha de
Ataúro. Aqui a relação com o mar é totalmente distinta. Enquanto
a maior parte dos timorenses não sabe nadar, as crianças ataúras
aventuram-se no mar quase antes de saberem andar92. Aqui sim, podem
encontrar-se os verdadeiros pescadores timorenses, praticando-se
inclusivamente pesca submarina, com o apoio de óculos de bambu
e arpões construídos usando a borracha das câmaras-de-ar das
bicicletas.
O outro centro simbólico refere-se às altas montanhas na espinha
dorsal da ilha. Estas, à semelhança de muitas outras noutros locais93,
são vistas como sagradas. Em Timor, as tradições remotas revelam
que as montanhas são a casa dos ‘antepassados ancestrais’, do

213
Geografias pós-coloniais

primeiro avô, do ‘avô de todos os avós’. Uma vez mais este é um


lugar vago de fronteira, o lugar de encontro entre a terra e o céu94.
Algumas das montanhas mais altas, como as do Matebian ou do
Ramelau (Tatamailau)95, são destinos de peregrinação (10 e 7 de
Outubro, respectivamente). Adicionalmente, porque estes lugares
foram o terreno de refúgio físico dos timorenses durante as várias
invasões e guerras, as montanhas adquiriram um valor muito
especial de abrigo, calma e segurança. As montanhas e campos de
batalha do Tatamailau (em Mambai, o mais velho e primeiro homem)
e especialmente do Kablake, tornaram-se dos mais eloquentes
símbolos da identidade timorense, os últimos refúgios de resistência
nativa contra a ocupação portuguesa em 1912. Ao mesmo tempo, a
morte de milhares de pessoas só veio reforçar a natureza sagrada das
montanhas, que é a sua casa. Tal como Conis Santana (um dos heróis
da resistência96) refere ‘face à agressão das tropas indonésias à Pátria,
como timorense igual a outro timorense qualquer, não tive outra
solução senão subir as montanhas da Pátria e resistir à agressão’97.
Esta divisão entre mar e montanhas também pode ser encontrada
através da análise de mitos e lendas98. A maioria dos timorenses não
atribui um lugar de origem único às pessoas da ilha. Distinguem
entre os habitantes originais e autóctones – ‘insiders’ e pessoas da
terra – e invasores ancestrais que vieram por mar – ‘outsiders’ e
pessoas do mar. Mais do que uma divisão Este-Oeste dentro do país,
existe uma relação ‘insider’ – ‘outsider’.
Evidentemente que existe uma associação (e coincidência
por vezes) forte e frequente entre a ideia e espaço ‘montanha’ e
‘floresta’. De acordo com Henry Forbes, um naturalista escocês
que visitou Timor no final do século XIX, “(…) sempre que um
conjunto significativo de árvores atingem a dignidade de um
bosque, podemos ter a certeza de que essa terra é Luli – território
sagrado (…) [estes espaços sagrados estão] frequentemente nos
picos montanhosos mais altos (…)”99. Para muitas comunidades as
florestas não são apenas espaços ricos em recursos como madeira,
plantas medicinais ou animais, que complementam a vida rural e
a dieta, mas são também arquivos da sua própria história, cultura,
práticas sociais e da sua própria identidade. McWilliam100 mostra de

214
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

forma brilhante o modo expressivo que as ‘paisagens de memórias’


dos conjuntos de montanhas de Vero e Paichao assumem para as
populações residentes em Tutuala, na parte oriental de Timor.
A pintura mural representada na figura 2 (onde Jaco e Oecussi
figuram tão proeminentemente, e Ataúro fica ‘escondido’ atrás da
árvore), ilustra a ligação entre a construção da democracia – um
esforço colectivo onde cada um contribui com uma ‘letra’ e o
crescimento da árvore, com os seus muitos ramos. A árvore deve ser
sagrada – um lulic – e são as suas raízes que unem a terra, repuxando-

Figura 2 – Mural, Díli. Fonte: autor, 2004

a e fortalecendo-a numa só unidade. Tal como a floresta (e a árvore)


tem um lugar importante na mitologia da cultura e identidade
timorense, e representa um passado partilhado na consciência da
nação, o ‘Mato’ tornou-se um espaço crítico sobretudo durante os
anos de resistência. É um espaço vago, indefinido, que por vezes
se sobrepõe ao espaço floresta, e que representa segurança, abrigo
e calma relativa, por oposição aos espaços invadidos de Timor,
perigosos, desprotegidos e oprimidos. Há também um mato material,

215
Geografias pós-coloniais

que fornece recursos importantes como cocos, kilu, sagu, kunbili,


que a resistência sabe usar.
O mato é também um espaço que ‘lutou’ para não se isolar, para
se unir a uma esfera mais alargada. Por um lado, defendia a sua
ligação forte às aldeias e comunidades locais e às hortas, sustento
fundamental, empenhando-se para comunicar com outras partes
da ilha através de formas imaginativas de entregas de mensagens e
cartas, nas quais as mulheres tomaram parte fundamental. Por outro
lado, usou diversas estratégias para estabelecer pontes com o espaço
global. Usou publicidade através de fotografias da resistência dadas
a jornalistas, permitiu, apesar de perigosas, entrevistas esporádicas
com a resistência, e mais tarde, com a disponibilidade de aparelhos
de telecomunicações modernos tais como rádios por satélite, ligou-
se directamente ao mundo exterior101.
Vários factores têm contribuído para a transformação física e
simbólica da floresta e do mato. Primeiramente, com o crescimento
da população e com a existência de densidades populacionais mais
elevadas, tem havido uma pressão mais forte sobre os recursos
naturais, como sejam a lenha para aquecimento e cozinhar ou a
madeira para construção. Em segundo lugar, há uma continuidade de
práticas tradicionais, nem todas contribuindo para a sustentabilidade
da terra: a agricultura de quase subsistência e o uso cultural do
fogo e da queima como instrumento principal para limpar, caçar
e promover as pastagens. Finalmente, durante várias décadas têm
existido ‘discursos de degradação’ construídos no exterior102, que
têm cimentado a ideia de declínio ambiental e a deterioração das
condições da ecologia das florestas por toda a ilha, discursos estes
que negligenciam as valiosas práticas de gestão comunitárias e
ancestrais, especialmente nos topos das montanhas e em solos
sagrados.
A última pintura mural aqui apresentada ilustra várias das ideias
que podem compôr a base da identidade nacional de Timor-leste. A
mensagem ‘seguir a luz para ter liberdade’, a luz como sol e o caminho
como o Este, relembra as palavras do herói timorense Conis Santana
sobre o facto da liberdade estar nas montanhas, as montanhas azuis
onde os lorikus103, donos da terra continuarão a cantar o hino da

216
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

liberdade. De forma relevante, é uma mulher (e as mulheres tiveram


um papel fundamental na resistência) e uma criança (o futuro da
nação) que são os sujeitos que devem caminhar o trilho que está
agora livre de obstáculos. Completando a paisagem, não apenas
como elementos decorativos, mas como representações primordiais,
vemos a árvore à direita e uma casa tradicional à esquerda.
Esta pintura mural e estas representações do espaço precisam de
ser contextualizadas nas histórias e trajectórias particulares, bem
como nas múltiplas narrativas e heterogeneidades do espaço. É

Figura 3 – Mural, Manatuto. Fonte: autor, 2004

precisamente a diferença coexistente que tem caracterizado a história


de Timor-leste que deve ser promovida – não a diversidade negativa
mas a heterogeneidade positiva – não podendo ser reduzida apenas
a uma suposta modernização do Estado (reduzindo a coexistência
simultânea ao lugar na fila histórica das mono-narrativas).
A este respeito, o trabalho de McWilliam104 sobre os Fataluko
serve bem para capturar as ligações que ligam terra, paisagem e
identidade. McWilliam105 argumenta que ‘a divisão histórica das

217
Geografias pós-coloniais

terras dos Fatalukos e o desenvolvimento de regimes de propriedade


comum em áreas específicas são constituídos por e através de
histórias e itinerários ancestrais’. Como parte deste complexo
de convicção e prática cultural, os Fatalukos reconhecem quatro
principais categorias de ‘lugares sagrados’ que incluem uma rede
de sítios interligados. A primeira são os lugares dos antepassados,
localizados em diferentes pontos ao longo da costa, e que representam
as ‘pegadas’ (calu ia mari) originais de desembarque.106 A segunda
categoria relaciona-se com o primeiro casal de antepassados (ete
uru ha’a), e simultaneamente com o local do primeiro assentamento
do grupo107. A terceira diz respeito a uma grande variedade de
pedras tumulares de grande dimensão (calu lutur tei), que contêm
remanescentes ancestrais108. Por fim, existem casas-altar e templos
sacrificiais (aca kaka), que são mantidos para fornecer protecção
e assistência espiritual aos seus moradores. Os títulos tradicionais
da propriedade subsistem apenas nas mentes e narrativas dos mais
velhos (katuas), pois não existem mapas ou limites físicos de
propriedade, ou ainda acordos ou contratos formais estabelecidos
durante a presença dos portugueses ou indonésios. Em resposta à
criação do Parque Nacional Conis Santana (em terrenos Fataluko),
McWilliam109 argumenta que apesar de há muito ignoradas no
contexto dos regulamentos do governo, a propriedade tradicional
e as reivindicações locais das populações Fataluku falantes sobre
as zonas florestais permanecem substancialmente intactas. Estas
formam a base historicamente declarada e contestada sobre a
qual qualquer negociação e determinação de posse de terra ou
autoridade de gestão dentro do parque florestado se deve apoiar.
Ao mesmo tempo, os direitos de propriedade tradicionais não são
reconhecidos explicitamente na Constituição Timorense. Em suma,
a materialização da identidade social e cultural na paisagem e o
sentido de pertença à terra através das ligações espirituais, míticas
e históricas devem prover uma base compreensível e politicamente
forte para sustentar reivindicações de pertença. A ideia abstracta da
nação relaciona-se assim com a realidade concreta e tangível do
palco físico e territorial da nação.
O forjar oficial e burocrático de uma nação, quase que

218
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

inevitavelmente traz um desejo centralista de afirmar a soberania do


Estado sobre as suas terras e águas, e de ratificar um enquadramento
nacional comum para o reconhecimento de títulos de posse de
terra. A não ser que se identifiquem (ou até ao momento em que se
clarifiquem) os diversos valores e expressões das posses tradicionais
em Timor-leste, estes estarão invisíveis ou escondidos no quadro
legal e regulador que nega a existência e marginaliza os seus
praticantes. Inquestionavelmente um dos maiores desafios que a
nação enfrenta é a inclusão efectiva da sua diversidade cultural (e
aqui incluo as práticas ancestrais de gestão da terra) e linguística
notável, e o reconhecimento da diferença dentro de uma unidade
nacional comum. No entanto, a cartografia e compreensão dos
direitos tradicionais e da autoridade de guarda sobre terra sagrada
requer investigação geográfica e antropológica extensa e demorada
e em articulação com as comunidades locais, sendo que as agendas
de desenvolvimento e a construção da nação segundo calendários
ocidentais e de tempo global, não permite uma espera longa.

Construindo a identidade…
Num último relance pelas moedas de Timor-Leste, associando
e subscrevendo as ideias de Raento et al110 sobre a produção e
manutenção de narrativas nacionais e a legitimação das estruturas de
poder na mais fina tradição de ‘nacionalismo banal’, penso na planta
de café. As plantações de café foram desenvolvidas pelos portugueses
no século XIX segundo a fórmula clássica do colonialismo (expulsão
da terra e exploração da mão de obra, muitas vezes forçada), mais
tarde exploradas de forma ruinosa pelos indonésios e recentemente
rotuladas como ‘inviáveis’111 pela Comissão de Planeamento de
Timor de 2002. Olho para a ‘moeda do arroz’ e penso no calamitoso
estado em que se encontram os agricultores que tentam comercializar
este cereal, competindo com a produção que chega da Tailândia e do
Vietname (já mais de metade do que se consome no país). No barco
de pesca vejo um passado de pesca que nunca foi, e um futuro que
pouco é. Penso no náutilo e no galo, o primeiro talvez com sentido
se contextualizado num turismo que será difícil de desenvolver,
o segundo num jogo (de apostas ilegais e pernicioso para muitas

219
Geografias pós-coloniais

famílias timorenses) que une o sudoeste asiático112, e que é já


proibido em muitas partes do mundo. Surpreendo-me por não ver a
árvore, a rocha e a árvore, a floresta, o mato, os territórios sagrados,
o sol, as montanhas (‘o cimo dos meus montes’ do poema de Xanana
que abriu este artigo), a mulher, as crianças, a arquitectura popular,
as casas sagradas (uma lulik), o mapa de Timor-leste que está tão
omnipresente nas pinturas murais um pouco por todo o país, e a cruz
da religião que tão importante foi durante os anos da resistência e
que une praticamente todos os timorenses. Meinig113 argumentou que
‘todas as nações maduras têm as suas paisagens simbólicas. Elas são
parte da iconografia da nacionalidade, parte do conjunto partilhado de
ideias, memórias e sentimentos que unem as pessoas’. A identidade
nacional compreende as percepções dos sujeitos sobre a importância
da localização no espaço e tempo na formação de elementos que
fazem parte da sua identidade comum. A atribuição dessa mesma
importância é sempre um processo dinâmico e contestado e vital
para a renovação da identidade. Penso finalmente que talvez fossem
necessárias muitas moedas…
Um dos aspectos chave da identidade timorense reside num debate,
numa revisão, numa disputa, numa negociação dos mitos, memórias
e práticas de paisagem. A imaginação do espaço e a concepção
de lugares, pessoas e cultura não devem ser manobras inocentes,
e assim sendo deve haver lugar para que as diferentes trajectórias
timorenses existentes venham à superfície. Estas são sempre
susceptíveis de revisão, sendo continuamente re-territorializadas
de forma radical e subtil, através de uma reinterpretação do seu
passado114. Neste contexto é importante mencionar a decisão dos
timorenses em baptizar o novo centro cultural de Díli (que inclui
o museu nacional) Uma Fukun, que em tétum significa o lugar de
encontro e não Uma lulik, isto é, a casa de culto ancestral. Isto indica
a esperança de criar um lugar onde as pessoas se possam juntar para
desenvolver uma comunidade. À parte da performance económica
do país, da ajuda internacional, do papel das Nações Unidas do
território, são os timorenses que vão ter de conduzir e construir este
escrutínio. A aspiração central de Conis Santana para Timor115, foi
a auto-afirmação da cultura a servir o povo, a preservar os valores

220
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

tradicionais, conduzindo à unidade e ao respeito da independência.


Para ele, tudo o mais era secundário.

Notas
Uma primeira versão deste artigo foi publicada com o título ‘A
Construção da Nação e Identidade Timorense’ nas Actas da Conferência
Internacional da UGI (União Geográfica Internacional) ‘The Cultural
Approach in Geography – ‘Cultural Aspects in Economic, Social and
Political Geographies’, Buenos Aires, 2007. 1 Este é também o símbolo
do partido político União Democrática Timorense (UDT). 2 Ver Almeida
Serra (2004). 3 Ver Carey (2006) sobre relatos na primeira pessoa da
‘nova’ geração - geração foun ou geração timtim: timorenses que cresceram
e foram à escola sob a ocupação indonésia. 4 A ilha de Timor tem 32,000
km² (sensivelmente a dimensão da Bélgica e ligeiramente superior à área
do Alentejo [NUT II]) e faz parte do Arquipélago Malaio das Ilhas da Sunda
Menor. Presentemente, Timor-Leste é a parte oriental da ilha de Timor e
ocupa uma área de 15,007 km² (ligeiramente maior do que o Estado de
Connecticut). Inclui ainda as ilhas de Ataúro (140 km²), localizada cerca
de 30 km ao norte da costa junto a Díli, a ilha desabitada de Jaco (8 km²),
na ponta leste da ilha, e o enclave de Oecussi (800 km²) no norte de Timor
Ocidental. 5 De acordo com descrições do século XVI – Tomé Pires
(c.1470-1527) e Duarte Barbosa (c.1480-c.1549) – as florestas da ilha de
Timor tinham sândalo branco em abundância (ver Loureiro 2001), e o
comércio começou sem a necessidade de estabelecer qualquer tipo de forte
ou fortaleza permanente. Ao mesmo tempo, se o sândalo tivesse tido a
mesma importância do cravinho, por certo os portugueses teriam
estabelecido de imediato um assentamento/fortificação mais permanente.
6
Foi desde Lifau que o sândalo foi explorado durante os 200 anos seguintes.
No início do século XVII, a produção de sândalo era sensivelmente igual
a 280 toneladas (Loureiro 2001). 7 Boxer (1968) in Costa (2002). 8 No
contexto do arquipélago da Insulíndia, a divisão entre malaio e melanésio
(ou papua) foi introduzida por observadores externos no século XIX. Na
altura, a parecença física era entendida como reveladora da cultura e mesmo
do carácter moral (ver Schouten 2001). 9 Fox (2000). Figueiredo (2003)
refere-se a 71 reinos em 1910 na parte Leste de Timor. 10 Ver Seixas (2006).
11
Costa (2002). 12 Castro (1862 in Fox 2000:16). 13 Em consequência de
um acordo não autorizado, o governador em Timor concordou em ceder a
parte oriental das Flores e ilhas vizinhas, em troca de um pagamento
imediato de dinheiro. Como resultado em 1854 foi negociado um tratado

221
Geografias pós-coloniais

de demarcação e permuta de território (ratificado em 1859 e seguido por


três convenções em 1893, 1904 e 1913). Portugal cedeu aos holandeses
todas as suas reivindicações históricas sobre as Flores, Solor, Pantar e
Alor. A demarcação de Timor foi acordada quando os holandeses cederam
Maubara e reconheceram a soberania portuguesa no enclave de Oecussi, e
quando os portugueses reconheceram a autoridade dos holandeses sobre o
enclave de Maucatar. 14 Significativamente, apesar do sândalo estar
quase extinto e não obstante proibições legais, a madeira continuou a ser
cortada e explorada ainda durante o século XX. 15 Durante este período
os Timorenses desenvolveram boas e frutíferas relações de comércio com
os holandeses e australianos que não os maltrataram (Figueiredo 2003).
16
Ver Figueiredo (2003) e Bretes (1989). 17 Gunn (2001). 18 Gunn (1999 e
2006). 19 Gunn (2006). 20 A União Democrática Timorense era dominada
pelos timorenses com uma educação portuguesa e pela elite económica,
incluindo os proprietários das grandes plantações de café, tais como a
família Carrascalão. 21 Inicialmente designada de Associação Social
Democrática Timorense (ASDT), a Frente Revolucionária para um Timor-
leste Independente era composto por algumas elites menores timorenses,
incluindo membros da administração e do exército. Ganhou apoio entre a
maioria dos Timorenses rurais em grande parte devido aos seus programas
locais de agricultura, à extensão de serviços de saúde e às campanhas de
literacia baseadas nas ideias de Paulo Freyre. 22 A Associação Popular
Democrática Timorense, apesar de ter um apoio de base pequeno entre os
chefes locais tradicionais (liurai), foi importante na medida em que foi
estabelecida com o contributo da inteligência operativa indonésia e porque
foi célere a ser reconhecida pelo governo indonésio (Glassman 2003).
23
Soares (2002). 24 Em 11 de Novembro desse mesmo ano, a MPLA em
Angola, proclamou a independência do país também de forma unilateral.
25
Actualmente, tal como consta na constituição, as cores da bandeira
significam: amarelo – os traços do colonialismo; preto – o obscurantismo
que é necessário ultrapassar; vermelho – a luta pela libertação nacional; e
branco – a paz. De forma expressiva, a bandeira da Fretilin é marcadamente
parecida. 26 Termo popularmente usado para descrever a aprovação retórica
do Presidente americano Gerald Ford e do seu Secretário de Estado Henry
Kissinger, quando visitaram Soharto na véspera da invasão. É significativo
também referir que outras potências ocidentais, nomeadamente a Austrália,
aprovaram tacitamente a invasão da Indonésia e forneceram ajuda militar
e económica. 27 A 17 de Julho de 1976 o governo de Soharto aprovou a Lei
7/76 que declarou a integração da antiga colónia portuguesa como província
da Indonésia. 28 Walker in Philpott (2006). 29 Chomsky (2000). 30

222
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

Chomsky (2000). 31 Carey (2006). 32 McWilliam (2005:35). 33 Para um


trabalho detalhado da história da Resistência entre 1975 e 1999 ver Mattoso
(2005). 34 Se é certo que o termo tem adquirido nos últimos anos uma
conotação de certa forma elogiosa enquanto memória de um povo oprimido,
Maubere é uma palavra com origem no Mambai, onde se usava como nome
próprio. Sendo originária de uma região pobre, de onde provinham, no
tempo colonial português muitos dos empregados domésticos (também
designados mainatos) dos militares de chefia e das famílias timorenses
mais abastadas, o termo associava-se também a criado e pouco educado.
Presentemente Maubere é um termo disputado e contestado, por vezes
apontado como partidarizado pela esquerda. 35 Philpott (2006: 141). 36
Max Stahl, fotojornalista da televisão regional de Yorkshire foi o responsável
pelas filmagens – o assassinato de centenas de pessoas que participavam
num funeral num espaço sagrado foi fotografado e filmado, sendo projectado
globalmente. 37
Destes protestos transpirava um ressentimento que
ilustrava em grande medida o sentimento de culpa do país face à forma
como o processo de descolonização foi conduzido em Angola, Moçambique,
Guiné, Cabo Verde, São Tomé e especialmente nesta altura, em Timor-
Leste (ver Monteiro 2002, para uma análise detalhada sobre as representações
dos media portugueses imediatamente após os eventos de 1999). 38
Chomsky (2001). 39 Uma incrível participação de 98% dos eleitores
resultou num resultado claro de 78,5% de timorenses que rejeitaram uma
autonomia dentro da Indonésia. Ver Soares 2000 para uma descrição
detalhada dos desenvolvimentos políticos que levaram ao referendo. 40
McWilliam (2005). 41 Anderson (1991). 42 Said (1978). 43 Mitchell
(2000). 44 Costa (2002). 45 Gunn (1999). 46 Konis Santana (um dos heróis
da Resistência), tal como todos os seus irmãos, foi baptizado em 1964 com
7 anos de idade (Mattoso 2005). 47 Mattoso (2005). Outras estimativas são
ainda mais acutilantes. De acordo com Boyce (1995 in McWilliam 2001),
se na altura da ocupação indonésia apenas 17% da população de Timor-
Leste era católica, este número era de cerca 90% no final dos anos 90. 48
Carey (1995). 49 Recebeu em 1996, juntamente com José Ramos Horta, o
Prémio Nobel da Paz. 50 Carey (1995) e Glassman (2003). 51 Traube
(1995) e McWilliams (2001). 52 Traube (1986). 53 Uab Meto (também
conhecido como Dawan ou Vaiqueno), Tetun, Mambai, Galoli, Tokudede,
Kemak, Waima’a or Uaima, Kairui-Midiki, Habu, Idate, Lakelei e Naueti.
54
Bunak (falado em ambos os lados da fronteira entre Timor-Leste e Oeste),
Makassae (falado no distrito de Baucau), Dagada ou Fataluku (falado na
parte oriental da ilha) e Adabe (falado em Ataúro). 55 Fox (2000). 56 É
notável que em 1916, nas 18 escolas primárias existentes, apenas 1008

223
Geografias pós-coloniais

crianças estudavam; em 1940 existiam 33 escolas e 1758 alunos; a escola


secundária apenas começou no final dos anos 30, contando na altura com
20 alunos (Figueiredo 2003). 57 Cairo (2006) e Sidaway e Power, neste
volume. 58 Ver Sidaway e Power, neste volume. 59 Ver Almeida (1961).
60
Correia (1943 e 1944). 61 Hull (2001). 62 Carey (1995). 63 Ver Hull
(2001). 64 Silva (2006). 65 Carey (2006). 66 Bhabha (1994). 67 Ver Gunn
(1999 e 2006). 68 McWilliam (2004). 69 Traube (1995). 70 Massey (2005).
71
Traube (1995) e McWilliam (2005). 72 Taylor (1991:9). 73 McWilliam
(2005). 74 Fox (2002:16). 75 Mattoso (2005:126). 76 O nome correntemente
atribuído aos estrangeiros. 77 A população indígena Fataluku falante,
presentemente contanto com cerca de 35,000 membros, forma a comunidade
linguística maior do distrito de Lautém. O Fataluku é uma das principais
línguas não-austronésicas em Timor-Leste. 78 Sandlund et al (2001). 79
McWilliam (2002). 80 McWilliam (1997). 81 Este estabelecer de duas
regiões pode estar ligada às duas grandes etnias presentes – Mambai a oeste
e Macassai a leste – ou às diferente família linguística– maioritariamente
línguas austronésias do lado oeste e línguas papuas a leste – ou diferenças
étnicas ancestrais – papuas e malaios – ou formações étnicas – Firaku e
Kaladi (ver Seixas 2006). 82 Aubert et al (2006:992). 83 Aubert et al
(2007). 84 Aubert et al (2006). 85 Ver Traube (1986). 86 McWilliam
(2002). 87 Há ainda outros numerosos assentamentos costeiros que são o
resultado de políticas de relocalização durante a ocupação indonésia da
totalidade de aldeias do interior, por razões de segurança interna, onde
consequentemente existe uma relação mais superficial face à região costeira.
(McWilliam 2002). Ao mesmo tempo as numerosas planícies de aluvião e
espaços susceptíveis de cheias relâmpago combinadas com a prevalência
de doenças tropicais em áreas húmidas (a malária por exemplo),
desencorajou os assentamentos costeiros promovendo a vida em áreas de
maior altitude. 88 Sempre existiram Pescadores em Timor-Leste. De acordo
com Pedersen & Arneberg (1999 em Sandlund et al 2001), no final dos
anos 90 existiam apenas cerca de 9000 pescadores (estando 5500 no activo
de acordo com Sanyu Consultants 2001 in McWilliam 2002), sendo que
menos de metade destes trabalhava a tempo inteiro. O número de barcos de
pesca minimamente utilizáveis rondava os 800, sendo que a maioria era
composta por canoas escavadas e não motorizadas (Sanyu Consultants
2001 in McWilliam 2002). 89 Loureiro (2001). 90 Traube (1986:234). 91
Ver McWilliam (2002). 92 Ver Duarte (1984). 93 As montanhas têm sido
vistas como o ponto de encontro entre o céu e a terra, as formações rochosas,
os rios, vales, etc. e têm feito constantemente parte da imaginação cultural
dos povos. O Monte Olimpo na Grécia clássica, o Monte Tabor na Galileia,

224
‘Paisagem e identidade na construção da nação timorense’

o Montanha de Brendan na Irlanda, o Chumalunga no Tibete/Nepal, fazem


todos parte de diferentes mitologias e cosmologias com uma fundação
similar. 94 Mattoso (2005:126). 95 Esta montanha ficou bem conhecida dos
portugueses pois durante o Estado Novo era estudada e decorada nos
bancos da escola como sendo o ponto mais alto de Portugal, da nação-
império. Já a geografia do continente português (com detalhes de serras,
principais rios, estações e apeadeiros do caminho de ferro, etc. que era
obrigatório memorizar) era ensinada pelas escolas do império – do Minho
a Timor). 96 Comandante das Falentil entre 1993 e 1998 (ver Mattoso 2006
para uma análise detalhada da sua vida e papel na resistência). 97 In Mattoso
(2005:46). 98 Ver Traube (1995). 99 Forbes in McWilliam (2001:93). 100
McWilliam (2001). 101 Mattoso (2005:261). 102 McWilliam (2001). 103
Loriku é uma ave multicor semelhante a um papagaio. 104 McWilliam
(2006). 105 McWilliam (2006:257). 106 Geralmente são identificados com
um poste-altar erguido sobre uma base de pedras planas. Esta é uma imagem
característica de lugares de sacrifício em Timor e um pouco por toda a parte
na região oriental do arquipélago indonésio. 107 Estes locais são marcados
com um casal de figuras esculpidas; supostamente, guardam o caminho dos
antepassados e colocam-se na direcção das suas origens. 108 Representam
locais importantes de culto e sacrifício, estando tipicamente situados nos
anteriores assentamentos amuralhados que se encontram em grande número
pela região. Comummente estão localizados em posições estratégicas
defensivas no topo de Colinas e penhascos. 109 McWilliam (2006:254).
110
Raento et al (2004). 111 O desmantelamento de apoios estatais, a
desregulação do sector e o excesso de produção global podem ser chamados
a explicar uma boa parte do problema. 112 Ver Clifford Greertz (1973) The
Interpretation of Cultures, para uma análise das lutas de galos em Bali. 113
Meinig (1979:164). 114 Shurmer-Smith e Hannam (1994). 115 In Mattoso
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229
Lagos: ensinamentos da maior
metrópole da África subsaariana

Matthew G andy

Depois de décadas de negligência, a maior metrópole da África


subsaariana encontra-se sob um intenso exercício de escrutínio
crítico. A nova atenção provem não tanto de especialistas das
políticas de desenvolvimento ou académicos dos Estudos Africanos
mas antes de um alto perfil de convergência entre teoria cultural e da
arquitectura com um conjunto de estudos urbanos críticos focados
em torno de grandes exibições internacionais de arte. Em tempos
conhecida como “Veneza da África ocidental”, a capital da Nigéria
– uma vasta e fumarenta superfície de cimento e bairros-de-lata
espalhando-se por km através das ilhas, canais e onshore hiterland
da Lagoa de Lagos – tornou-se tema de mega exibições como a
Century City (2001) em Londres e Africa :the Artist and the City
(2001) em Barcelona, representando-se ainda proeminentemente na
Documenta 11 em Kessel. Concomitantemente, o ‘Projecto sobre
a Cidade’ da Escola de Design de Harvard liderado pelo arquitecto
holandês Rem Koolhaas, anunciou a intensão de produzir um livro
inteiramente devotado a Lagos1.
Em parte esta ênfase resulta das iniciativas, energia e imaginação de
uma nova geração de intelectuais nigerianos. Okwui Enwezor, curador
da Documenta 2002, explicou a decisão de expandir a já substancial
exposição de Kassel através do alojar de uma série de “Plataformas”
internacionais (conferências, oficinas de arte e discussões públicas,
projectos de cinema e vídeo) no decorrer da grande exibição, um
acto com objectivos politicos e estéticos em “tempos tensos” como
os que vivemos, em que as incertezas “levantam sérios desafios
às projecções radiosas do progresso capitalista”. A Plataforma 4,
erguida em Lagos em 2002 com o apoio do Goethe Institut, foi
intitulada “Under Siege:Four African Cities”. Esta iniciativa reuniu
personalidades locais e um conjunto de investigadores africanos e
Geografias pós-coloniais

europeus num fórum de uma semana, evidenciando a preocupação


da Documenta 11 relativamente ao facto de que “o espaço da arte
contemporânea, e os mecanismos que o trazem para um domínio
público mais vasto, tem de ser radicalmente alargado e radicalmente
repensado”2. De facto, para Enwezor, as megacidades africanas
atravessadas por uma crise persistente são “centros que guardam
um grande potencial de vitalidade humana, criatividade e espírito
inventivo”3. Neste processo, Lagos tornou-se pois, paralelamente,
tanto a via como o foco de uma agenda urbana radical.

O modelo caos

Não obstante, o fluxo de interesse por Lagos experimentado no


momento presente vem mascarar modos divergentes de análise e
interpretação. Duas aproximações tem sido dominantes. A primeira
é uma evocação escatológica do apocalipse urbano: pobreza,
violência, doença, corrupção política, crescimento incontrolável e
religiosidade maníaca; uma cidade de entre, talvez, dez a quinze
milhões (não existe o meio administrativo para obter um censo
fiável), com o acesso mínimo a água corrente e saneamentos, em
que cerca de 70% são excluídos da possibilidade de fruição de
emprego regular assalariado. Nesta visão de pesadelo, a cidade está
à beira de um cataclismo trazido pela luta civil e pelo colapso infra-
estrutural. O tratamento de Lagos por Robert Kaplan na obra “The
Coming Anarchy” será um exemplo deste género; a obra de Pep
Subirós, “Lagos: Surviving Hell” e muita da cobertura pela imprensa
germânica da Documenta 11, é outro4. Nestas e noutras narrativas
contemporâneas por comentadores ocidentais, Lagos toma a allure
de um “novo Bronx”: uma zona selvagem da imaginação urbana,
um domínio de irracionalidade para lá do intento da acção humana
ou quaisquer prospectos realistas de melhoramento. Um inverso da
tese da globalização é apresentado, em que certas regiões são vistas
como totalmente excluídas do reconfigurado sistema da economia
mundial.
A segunda visão ou perspectiva, por contraste, é bastante
mais positiva enfatizando as novidades da morfologia urbana.

232
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

Exemplificada por Rem Koolhaas e o Projecto sobre a Cidade da


Escola de Design de Harvard, esta abordagem enfatiza também os
aspectos aparentemente caóticos do desenvolvimento de Lagos mas
fá-lo por forma a clarificar a complexidade homeostática de estruturas
sócio-económicas de evolução recente, com a cidade concebida como
uma série de sistemas auto-regulatórios5. Nesta perspectiva, Lagos é
vista não como uma anomalia ameaçadora mas como percursora de
um novo tipo de urbanismo, um tipo de urbanismo que é ignorado
dentro do discurso teleológico da modernidade ocidental; um tipo
de urbanismo que pode ser perfeitamente adaptado aos desafios do
século XXI.
O contributo de Koolhaas para Lagos – no volume de
Documenta 11, Under Siege, bem como na colecção franco-catalã,
Mutations – integra um projecto sobre o trabalho em curso da
Cidade no urbanismo contemporâneo. A sua missão, argumentou
Fredric Jameson, é ‘explorar uma nova realidade’, em vez de
propor soluções6. O interesse de Lagos para este projecto é variado.
Primeiro, das 33 megalopolis projectadas para existir a meados
de 2015, a vasta maioria será em países pobres; Lagos é previsto
tornar-se numa das maiores cidades mundiais, e poderá vir a ser tida
como uma espécie de arquétipo para o processo de urbanização em
curso no Sul global. Em segundo lugar, a intenção é ‘compreender
e descrever o funcionamento de uma cidade africana’, um objectivo
motivado pela realização de que:
O vocabulário e valores enraizados do discurso arquitectónico
são dolorosamente inadequados para descrever a produção
corrente da substancia urbana. Estes perpetuam uma
imagem da cidade que é essencialmente ocidental, e
subconscientemente insiste que todas as cidades, onde quer
que se encontrem, devem ser interpretadas a essa imagem;
estes sistematicamente julgam insuficiente qualquer forma
urbana que não conforme. As nossas palavras não podem
descrever as nossas cidades com qualquer precisão ou
prazer7.
Mas a questão fundamental de Lagos, aos olhos do Projecto de
Harvard, é de como poderá de facto continuar a funcionar como uma

233
Geografias pós-coloniais

cidade, dado que lhe faltam todas as amenidades e serviços públicos


tidos como essenciais nos estudos urbanos tradicionais. Grande parte
dos especialistas do planeamento ocidental afirmam que Lagos ‘não
dispõe de infra-estruturas, sistemas, ou mesmo recursos ambientais’
para suportar uma população consideravelmente acima do seu nível
corrente8.
Koolhaas chama-nos à atenção para ‘não nos angustiarmos com
os seu devir’ mas antes para celebrarmos a ‘existência continuada e
exuberante de Lagos e outras cidades como esta’, e os‘engenhosos
sistemas alternativos’ por elas gerados9. Como uma talvez desarmante
candura, Koolhaas explica como o Projecto sobre a Cidade descobriu
isto. Primeiras tentativas pelo grupo de Harvard para penetrar Lagos
não foram propícios:
O nosso envolvimento inicial com a cidade foi desde uma
posição móvel. Parcialmente sem medo, ficamos no carro.
Isto significou, em essência, que estávamos preocupados com
um primeiro plano... lagos parecia uma cidade de margens
aguçadas e ardentes. Colinas, e mesmo ruas completas surgiam
em paralelo com diques incandescentes. A uma primeira
vista, a cidade tinha uma aura de violência apocalíptica;
secções inteiras da mesma pareciam smouldering, como se
fosse um gigantesco depósito de lixo10.
Numa visita posterior, ‘aventuramo-nos para fora dos carros’
e descobrimos que havia de facto ‘uma quantidade de redes
organizacionais muito elaboradas’ a operar nos amontoados de
lixo:
A actividade que tomava lugar não era de facto um processo
de descarregamento, mas mais um processo de distribuição,
desmantelamento, reagrupamento e, potencialmente,
reciclagem. Por debaixo dos viadutos havia um esforço
contínuo para transformar o lixo descartado.
Finalmente, na terceira visita, ‘alugamos o helicóptero do
Presidente’. Isto permitiu ao grupo deslocar-se em conforto sobre
os bairros de lata da cidade, maravilhando-se com o enxame de
actividade humana lá em baixo:

234
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

Do ar, o aparente depósito de lixo incandescente transformou-


se, de facto, num burgo, um fenómeno urbano com uma
comunidade altamente organizada vivendo na sua crosta
(...) O que parecia, ao nível do chão, uma acumulação de
movimentos disfuncionais, parecia de cima um impressionante
desempenho, evidência de como tão positivamente Lagos
consegue concretizar o seu desempenho como se fosse a
terceira maior cidade do mundo11.
Vistas lá de cima, as decrépitas dilatações da grande auto-estrada
de Lagos e as esboroadas intersecções em folha de trevo assumem
nova relevância. O Projecto de Harvard proporciona documentação
vívida dos modos através dos quais as margens, muros, pilares de
suporte e vazios intersticiais destas estruturas – assim como depósitos
rodoviários, trilhos de caminho de ferro e as múltiplas linhas de
comunicação da cidade – foram ‘colonizadas por um conjunto de
industrias e serviços secundários: fabricas de blocos de cimento,
vulcanizadores, mecânicos de estrada, cabeleireiros, mercados e
por aí fora’. Perto de Jankara, o maior mercado de Lagos, quatro
rampas de saída foram retiradas como troca de reciclagem. Sob o
voo, acautelam-se lanternas dos grupos de jovens rapazes, panelas
de cozinhar e outros recipientes de metal, e ‘mesmo a super auto-
estrada de Lagos encontram-se paragens de autocarro, mercados e
fabricas semi-construídas12.
Não apenas disfuncionais infra-estruturas de transporte mas a
própria congestão de trafico tornam-se um espaço de mercado em
movimento lento, enquanto uma linha de apregoadores fazem lugar
entre os carros apanhados no interminável ‘go slows’ e ‘no-gos’,
oferecendo aos motoristas e passageiros sacos de plástico de ‘água
pura’, amendoins, óculos de sol de fancaria, cartões de telemóvel,
bijutarias variada. Grande parte do capítulo sobre ‘Lagos’ em
Mutations é desenvolvido tendo como apoio notáveis fotografias
aéreas e diagramas elegantes dos pontos de maior congestão urbana
vistos de cima. Há aqui uma forte ressonância com um gigante
Mandelbrot (?), ou, talvez, um genético algoritmo deleuziano. As
medidas são apresentadas da periferia para os vastos evangélicos
centros: a Winner’s Chapel, capacidade de 50,000, jam length 2

235
Geografias pós-coloniais

km; o Redemption Camp e a Prayer City, capacidade 400, 000, jam


length 2.4 km.
O sistema de auto-estrada de Lagos é trabalho do engenheiro
alemão Julius Berger, que cobriu a cidade com uma meada de
viadutos, pontes e complexas intersecções de transito durante o
pico de petróleo dos anos 1970: ‘a economia da Nigéria era mais
forte do que a da Coreia do Sul; Lagos tornou-se um alvo’. Mas
as explicações estruturais de Koolhaas para o desenvolvimento da
cidade parecem esgotar-se na década de 1980. O que aconteceu a
seguir? ‘Lagos foi deixado entregue aos seus próprios recursos e
depois abandonada13. O quadruplicar da população da cidade nas
duas décadas seguintes aparece como um simples acto da natureza.
Com uma lógica dúbia, o Projecto sobre a Cidade movimenta-se da
natureza assintomática das estatísticas de Lagos – qualquer gráfico
(‘uso de fontes, ‘segurança urbana’) ou explode verticalmente no
quadro ou então é quase horizontal, tendendo para o zero – para
concluir que ‘o comportamento assintomático parece indicar uma
condição terminal, um estado avançado, sugerindo que a condição
de Lagos será simplesmente vinte, cinquenta ou cem anos à frente
de outras cidades. Noutras palavras, em vez de ser Lagos a tentar
apanhar o ocidente, o ocidente poderá estar a tentar apanhar Lagos:
‘Escrever sobre a cidade africana é escrever sobre a condição
terminal de Chicago, Londres ou Los Angeles’14. Não obstante, isto
é camuflar o facto de que o próprio limite de detereorização a que
chegou Lagos no último quarto de século se encontra ligado, em
proporção inversa, à acumulação de capital de Chicago, Londres
e Los Angeles. Tratar a cidade como uma instalação de arte viva,
ou compará-la ao espaço neutro de um laboratório de pesquisa, é
paralelamente des-historicizar e des-politizar a sua experiência. A
economia informal de pobreza celebrada pelo grupo de Harvard é
resultado de um conjunto específico de políticas perseguidas pelo
sistema ditatorial militar da Nigéria nas últimas décadas sob o IMF
e a monitorização por parte do World Bank que dizimou a economia
metropolitana.

236
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

A cidade pântano
Como nota Enwezor, estudos sobre a cidade africana já há muito
reconheceram a mudança no paradigma urbano que tomou lugar
quando a antiga organização espacial colonial – desenhada para
excluir, controlar e ocupar – começou a subordinar-se às demandas
das culturas urbanas pós-coloniais15. No entanto, alguns dos
elementos da crise que confronta a região metropolitana de Lagos
reportam para a era colonial. A ilha de Oko, casa dos pescadores e
agricultores Yoruba, foi renomeada e transformada pelos portugueses
num ocupado centro de comércio de escravos e porta de saída para
o Brasil, desde o século XVI. Lagos foi governada como colónia da
Coroa por diversos anos, enquanto a United African Companie de
George Goldie estabelecia o monopólio sobre o Delta da Nigéria,
comercializando óleo de palma para o gin. Em 1884 a Conferência
de Berlim destinou o protectorado da região à Inglaterra. Em 1904,
as excursões militares de Frederick Lugard a montante do Níger
tomaram conta da ‘cintura intermédia’ e do califado do norte de
Sokoto. Lugard estabeleceu um tipo de administração assente no
governo indirecto, organizando recepções oficiais para introduzir o
retrato da rainha Victoria aos emires locais, os Hausa-Fulani. Aquele
encontrava as formas de hierárquicas de organização social destes
últimos melhor adaptadas à governação colonial indirecta do que
as estruturas de poder mais descentralizadas dos Yoruba e dos Igbo.
Em 1914 os protectorados do Norte e do Sul foram forçadamente
amalgamados por forma a permitir a criação da colónia da ‘Nigéria’,
um nome supostamente seleccionado por Flora Lugard, a mulher do
administrador colonial.
Em Lagos, a disjunção entre os modos de vida das elites coloniais
e das maiorias africanas foi sempre extrema. As vilas europeias
com largas varandas e extensos jardins contrastando com o
crescente congestionamento do ‘quarteirão africano’, bem como
o abastecimento de gás, electricidade e iluminação dos bairros
das classes altas e das suas áreas comerciais surgiam, uns como
outros, comparáveis aos das metrópoles coloniais dos centros dos
impérios. As margens de lucro do óleo de palma e do comercio de
algodão aumentaram o empenhamento dos brancos na organização

237
Geografias pós-coloniais

de um estado real, aumentando os preços da terra e instituindo


uma rede de infra-estruturas para habitação que catapultou grande
parte dos africanos para condições de excesso de ocupação de
solo e super-povoamento. Os gastos públicos em provisionamento
de água, drenagem e infra-estruturas sanitárias são evidentes. As
sucessivas administrações coloniais absolveram-se efectivamente
da responsabilidade de melhoramentos nas áreas das classes
trabalhadoras. Só um surto de peste bubónica que paralisou a
cidade de Lagos na década de 1920, promoveu a criação de uma
comissão executiva para o desenvolvimento da cidade (a LEDB –
Lagos Executive Development Board). Mas a carência acentuada de
habitação e fornecimento de água bem como os problemas causados
pela deficiência em equipamentos sanitários continuaram a piorar,
e a peste e outras doenças erradicáveis persistiram. Em meados de
1950, as funções da LEDB encontravam-se amplamente diminuídas,
esta era pouco mais do que um veículo para a especulação da terra
ao serviço da administração colonial. Por isso, a Liga veio a tornar-
se num foco de mobilização por parte do emergente movimento de
independência da Nigéria16.
Ao tempo da sua saída, em 1960, os britânicos instalaram
os rudimentos de um sistema parlamentar e municipal. Não
obstante, o seu legado mais significativo foi um grosso corpo de
oficiais treinados no deserto e na selva, o qual era dominado pelos
aristocratas muçulmanos do norte. No início de 1960, Lagos surgia
como uma atarefada capital de cerca de um milhão de habitantes,
detendo um dos mais vibrantes contextos culturais da África
subsaariana. Porém, o optimismo do momento da independência
não podia mascarar as tensões latentes aos níveis económico e
politico. O crescimento rápido em conjugação com um investimento
social mínimo enfatizou a situação de sobrepovoamento, rendas
exorbitantes e árduas distâncias de comutação, agravadas por uma
gradual deterioração nos serviços de ferroviários e rodoviários. Uma
tendência corrente crítica prendia-se com a crescente deslocação
entre oportunidades de emprego e disponibilidade na compra de
habitação. Por meados de 1960, o preço do solo no centro de Lagos
aproximava-se aos preços praticados em cidades de área similar

238
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

nos Estados Unidos da América. O pouco espaço disponível para


construção era sistematicamente transformado em condomínios
de elite de baixa densidade populacional, dando-se deste modo
continuidade às políticas habitacionais do período colonial. A nova
classe dirigente, e os seus arquitectos, engenheiros e planeadores,
geralmente educados no mundo ocidental, favoreceram projectos
de prestígio passíveis de atestar respectivas visões da modernidade
africana. Neste sentido, Lagos rapidamente foi palco de construção
de um dos primeiros arranha-céus do continente.

A ressaca de Segunda-feira
Em 1966 um atentado por parte dos jovens oficiais Igbo para tentar
resolver aquilo que viam como a vertente contra-sulista da estrutura
de comando militar, resultou numa contra-resposta por parte dos
oficiais do norte que, liquidando a tentativa de secessão dos Igbo do
sudeste numa guerra civil de trinta meses, reforçaram o seu domínio.
Na altura da rendição do Biáfra, em 1970, a desestabilização
económica da região conduziu a vagas de migrações de população
para Lagos. A guerra também exacerbou as divisões sociais do
capital, tendo contribuído para uma brutalização da vida quotidiana
dada a circulação corrente de armas e outro tipo instrumentos bélicos
provenientes da guerra que eram trocados no submundo de Lagos.
Depois dos atentados de secessão, o abarcar do supremo conselho
militar (SMC) sob a ordem do General Gowon, produziu uma
reconfiguração da federação tripartida em doze novos estados. A
cidade de Lagos era agora integrada, ao nível administrativo, com a
sua crescente zona costeira e de interior, e, com a subida dos preços
do petróleo desde 1973, esta aparecia também como fisicamente mais
integrada, à medida que as antigas áreas de da classe trabalhadora iam
sendo dizimadas para dar lugar às redes de betão (pontes, viadutos,
passadiços, etc,). Os vestígios misturados destas áreas representam
talvez a o mais impressionante legado da alta do petróleo, quando as
entradas nas finanças governamentais multiplicaram sessenta vezes.
Tais estruturas delapidadas hoje em dia circundam grande parte do
coração da cidade, lançando as suas sombras sobre as barracas e
tendas que colonizaram todos os recantos disponíveis.

239
Geografias pós-coloniais

Para muitos dos habitantes de Lagos, os anos de 1970 surgem


agora como uma idade alciónica, em que o naira valia bastante
mais do que o dólar (o seu valor é agora de menos de um cêntimo)
e em que a classe média podia viajar até Londres para um fim de
semana de compras. A canção de Fela Kuti, ‘Segunda-feira de
manhã em Lagos’ (1975), com a sua visão de uma cidade em ressaca
deslocando-se para descobrir que o seu credito se tinha banido,
foi profundamente presciente. Tal como na Venezuela durante as
mesmas décadas, a combinação da riqueza do petróleo e governo
de elite bem entrincheirado, produziu uma bolha na economia
nigeriana, com extrema polarização das entradas, hiper-inflação,
colapso de circulação monetária e aumento de pobreza e desemprego.
Paralelamente, as exportações de produtos industriais e agrícolas
eram devastadas pela sobrevalorização do naira17. De forma crítica,
para Lagos, no máximo da vaga de alta de petróleo as oligarquias
militares decidiram construir uma nova capitalno centro do país e
mais próximo da sua própria base no norte. Neste processo, centenas
de milhões de dólares foram canalizados para as resplandecentes
torres e escritórios refrigerados de Abuja.
Em 1979 a reserva federal dos Estados Unidos da América
produziu sérias alterações no comercio de petróleo que vieram
a reflectir-se na década seguinte. A Nigéria, com outros países do
Terceiro Mundo parceiros na posição de solicitação de empréstimos
à banca internacional, foi catapultada para uma espiral de crescente
de pagamento e repagamento de dívidas. O início da recessão
global em 1981 e o colapso nos preços do petróleo colocaram os
desequilíbrios da economia nigeriana em grande relevo. No decurso
da organização de amortizações e penalidades pelos pagamentos em
falta, o debito externo do país subiu de $13bn para $30bn, entre
1981 e 1989. Muitos dos programas de infra-estruturação dos anos
setenta – portos, aeroportos, ruas, pontes, refinarias de petróleo –
foram abandonados incompletos, ou deixados deteriorar a ponto
irrecuperável.
Entre 1979 e 1983 o governo civil de Shehu Shagari, um milionário
íntimo da elite militar, foi responsável por uma contradição de 8%do
GPD, fuga de capital a larga escala, e alta inflação. Os protestos

240
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

crescentes contra o congelamento de salários do governo de Shagari


foram neutralizados com o retorno do governo militar em 1983 sob
a ordem do General Buhari que aprisionou grupos de comerciantes,
jornalistas, defensores dos direitos humanos e activistas, num reino
de terror que durou dois anos. De entre as casualidades da ditadura
militar encontrave-se um plano estratégico para Lagos, completado
em 1980 mas posto de lado pelos generais porque sinal de apelo ao
governo por parte dos civis18.
A acessão do General Babangida, que substituiu Buhari num golpe
inter-militar em 1986, foi perigosamente bem recebida nas capitais
do ocidente. Babangida era genericamente visto como um ‘general
liberal’. Em contraste com a brutalidade não disfarçada de Buhari e
Abacha, o segundo no comando depois de Babangida, notoriamente
paranoide e seu eventual sucessor. No entanto, tal como um alto
oficial argumentou nos finais da década de noventa:
Babangida era ainda pior do que Abacha. Babangida fez tudo o
que pôde para corromper a sociedade. Abacha intimidava as pessoas
pelo medo. Tendo ido embora, pode recuperar-se. Mas a corrupção
mantém-se, e é extremamente nociva para a sociedade19.
Sob a tutelagem do IMF, Babangida imediatamente aderiu
num programa de ajustamento estrutural de largo espectro (SAP)
‘com características nigerianas’ – tarifas arrasadoras e subsídios à
actividade agrícola, desvalorização do naira, esvaziar o que restava
de educação pública, desregulação das finanças, venda para o exterior
de industrias estatais e tolerância para com os lucros de produtos
narcóticos a uma escala massiva. A Nigéria foi eleita como modelo
da economia africana pelo Banco Mundial e Babangida banqueteava
no palácio de Buckingham. Entretanto, as figuras de ‘pobreza
extrema’ dentro do país aumentaram de 28% em 1980 para 66% em
1996. O sector da pequena agricultura, ainda o maior empregador
da Nigéria, foi dizimado. Durante o mesmo período, a população de
Lagos dobrou em resposta aos movimentos migratórios do campo
para a cidade. Invadindo a cidade, população proveniente das
diversas partes da Nigéria foi fazendo o assentamento onde quer que
arranjasse um pé de terra. Por entre os bairros de lata em expansão
que ocupam qualquer pedaço de terra livre, os que chegam arrumam-

241
Geografias pós-coloniais

se em barracas dispostas nas margens das linhas do caminho de ferro


ou auto-estradas, ou em tendas precariamente distendidas ao longo
dos imundos canais e diques que se encontram na cidade.

Espaço dívida
Estas são as condições de vida que subjazem o desenvolvimento
da vasta economia informal de Lagos. Com os altos preços dos
produtos alimentares importados, do vestuário e outros bens
essenciais, e com ganho diário de menos de um dólar, as estratégias
quotidianas de sobrevivência de muitas famílias dependem em
grande medida da troca e improviso. As redes de vizinhança de
famílias e amigos co-operam para construir barracas e partilhar
amenidades; isto frequentemente resulta em redes de micro-
comércio, produzindo disputas em torno dos recursos ou turfa, co-
existindo com cadeias mais agressivas de exploração e controlo. O
resultado é uma mistura volátil que pode facilmente explodir em
violência entre comunidades, especialmente nas zonas de intensa
interacção tais como os espaços de mercado. Tal como acontece com
outros admiradores da economia informal, Koolhaas parece ignorar
a estrutura profundamente hierarquizada e frequentemente coerciva
deste tipo de economias, e não estabelece diferença entre pequenos
(ou mesmos maiores) empresários e comerciantes que ocupam os
seus cumes, e a massa daqueles que fragilmente sobrevivem na sua
base20.
O mercado informal possibilita uma complexa redistribuição de
recursos entre aqueles que estão situados fora do sector formal.
Mas este não conduz necessariamente a qualquer processo maior de
acumulação e crescimento, pois não pode ser abstraído do sistema
económico e do contexto político mais vasto; o desaparecimento
virtual do sector manufactureiro; a devastação das economias
locais rurais; o saque das rendas do petróleo pelas elites militares.
De acordo com um relatório oficial referido brevemente após a sua
queda, cerca de $12bn das finanças públicas estavam em falta durante
o governo de Babangida21. Thatcher, uma calorosa admiradora de
Babangida, na sua visita de 1988 motivou o lider a trocar o seu
uniforme militar por um fato de negócios, mas o general preferiu

242
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

noivar um íntimo de longa data, Moshood Abiola, um milionário


da imprensa cujos artigos deram a Babangida apoio incondicional,
como sucessor nas eleições eventualmente realizadas em 1993.
Ainda que a maioria de Abiola estivesse a ser preparada, Babangida
mudou de ideias e anulou o voto em nome da ‘unidade da Nigéria’,
movimento largamente interpretado no sul do país como uma recusa
por parte da elite do norte para permitir a tomada de posse do lugar
por um Yoruba mesmo muçulmano. Os protestos a este movimento
alastraram pela cidade de Lagos e pela região do Delta, forçando a
saída de Babangida do poder.
Substituindo o seu velho amigo Babangida em Novembro de 1993,
o General Abacha reprimiu o movimento pró-democrático atacando a
união de trabalhadores do petróleo e o Congresso do Povo de Oodua
com ferocidade particular. Nos anos que se seguiram, centenas de
manifestantes foram feridos de morte. Na prisão, tinha recusado
renunciar a sua reivindicação de que era o presidente da Nigéria
devidamente eleito apesar da pressão por parte do Secretariado Geral
da UN e do Departamento de Estado da US. Abiola tornou-se um
mártir pouco comum logo após a sua morte súbita em 1998. Quando
Abacha presidiu a captura de Ken Saro-Wiwa e mais oito activistas
Ogoni que pediam maior compensação pelo valor de centenas de
milhares de dólares de petróleo retirado do Delta como resultado
de uma empreitada conjunta de exploração liderada por generais
nigerianos e pela Royal Dutch/Shell, a Administração Clinton
rejeitou os pedidos de sanções à exploração de petróleo contra o
regime considerando-os ‘irrealistas’. Num acordo de ladrões, a Shell
e outras companhias culpabilizaram a corrupta elite local, enquanto
o governo nigeriano culpabilizou as corporações multinacionais,
pela devastação ecológica e social das regiões ricas em petróleo.
Entretanto, o desperdício do rendimento do petróleo deixou as quatro
refinarias nigerianas muito pouco funcionais. Em consequência, e
apesar dos seus recursos, o país enfrenta incessantes deficiências de
combustível tornando-se confiante nas dispendiosas importações de
produtos petroquímicos.
Pelos finais da década de 1990, a dívida externa da Nigéria subiu
para $36bn, equivalente a cerca de 75% do GDP e quase 200% dos

243
Geografias pós-coloniais

lucros das exportações. O governo gasta agora para cima de três


vezes mais no pagamento à divida do que em educação, e quinze
vezes mais do que em despesas com serviços de saúde pública, numa
nação que enfrenta problemas graves associados ao sistemático
ressurgimento da malária, meningites, tuberculose e difusão do
HIV. Estima-se que 40% do débito total provem dos empréstimos
aos sucessivos ditadores militares que foram desviados para contas
bancárias na Inglaterra, Suíça e Estados Unidos. Antes da sua morte
em 1998 e nas mãos de duas prostitutas indianas – oficialmente
de ataque cardíaco; alguns chamaram-lhe um ‘golpe dos céus’ – o
próprio Abacha estima-se ter arrecadado $4bn, dos quais apenas
uma fracção conseguiu recuperar-se22.
A eleição em 1999 do anterior General Olusegun Obasanjo,
como o presidente civil do país, foi celebrada pela imprensa
internacional como um passo em direcção à legitimidade pela
parte das oligarquias nigerianas. E isto, a despeito ainda da grande
proximidade dos militares relativamente ao centro do poder
nigeriano. O Vice-presidente de Obasanjo é o General Abubakar,
cabeça da armada sob o regime de Abacha; o seu gestor de campanha
em 1999, Aliyu Mohammed Gusau, tinha sido o anterior chefe da
estratégia militar, e Babangida era o maior doador individual da sua
campanha. Apesar de ser um Cristão Yoruba renascido, Obasanjo
fez pouco para desmantelar a antiga elite muçulmana. A despeito das
proclamações sobre limpeza e transparência, a corrupção continuou
sem resolução. O Oputa Panel, estabelecido segundo o modelo da
Comissão Sul-africana para aVerdade e Reconciliação, detinha
poderes contraditórios de intimação. O método recomendado
pelo Banco Mundial para melhoramento dos serviços sanitários de
Lagos bem como para resolução da crise de abastecimento de água
era a oferta de incentivos crescentes para os investidores no sector
privado que, supostamente, iriam dotar a cidade de infra-estruturas
sem perder de vista ‘a recuperação total dos custos económicos’23.
As condições sociais continuaram a deteriorar-se: de acordo com
os dados do Central Bank, a provisão de bancos de hospital declina
de 1 para 1, 564 pessoas em 1999 para 2,342 em 2003. O estatuto
sócio-económico de professores do ensino básico como superior

244
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

desceu severamente nas últimas décadas; o seu baixo salário e nível


de endividamento faz com que muitos tenham de socorrer-se de
outros meios de subsistência. Nestas circunstâncias, a proliferação
de ONG’s sob o regime de Obasanjo, re-eleito em 2003, só muito
tenuemente consegue produzir o alivio substancial nas condições de
vida dos pobres urbanos.
Lagos proporciona ampla evidência para o argumento de
Mike Davis de que o rápido crescimento urbano no contexto de
ajustamento estrutural, desvalorização monetária e restrições de
Estado tem sido uma ‘receita para a produção em massa de bairros
de lata’24. Desde os finais da década de 80 e através da década de
90, a guerra civil – frequentemente provocada pela disputa dos
recursos – e o desarranjo económico, exacerbado pelos negociantes
ocidentais da agro-indústria, foram responsáveis pela migração
de milhões de pessoas através da África ocidental em direcção às
cidades. Cidades que, já de si, não detinham nem infra-estruturas
nem meios ambientais para suportar a população que as ocupava.
Vastas áreas de intensa pobreza desenvolveram-se então em torno
de distritos de Lagos como Ajegunle, Ojota e Mushin. Pelos finais
da década, para cima de 200 favelas tinham assentamento na região
metropolitana de Lagos, bairros diferentes uns dos outros mas todos
eles muito sujos e pobres que se encontravam espalhados pelo
território urbano. Paralelamente, o crescimento rápido de bairros
de lata ao longo da Península de Lekki concentrou refugiados de
outros estados do ocidente africano. Tais migrantes, provenientes
em particular da Libéria e da Sierra Leoa, encontram-se totalmente
privados de direitos civis e alheados relativamente aos processos
políticos da cidade de Lagos. Estas comunidades marginais, em
que os que chegam e se instalam têm de se auto-organizar e gerir
todos os aspectos ligados às suas necessidades básicas (da água à
habitação), encontram-se em perigo constante vendo-se ameaçados
por grupos de ‘area boys’, extorcionários e redes de crime organizado
que exploram a sua vulnerabilidade25. Mas estes enfrentam ainda
a ameaça da violência de estado – os seus frágeis ancoradouros
soterrados e tornados ‘espaços livres’ de acordo com os caprichos
das autoridades militares. Todos os distritos de Lagos foram erguidos

245
Geografias pós-coloniais

forçadamente, mais notavelmente em Maroko – adjacente aos ricos


bairros da ilha de Vitoria – onde sob o o governo de Babangida as
casas de cerca de 300.000 pessoas foram destruídas para dar lugar à
lucrativa especulação estatal26.
Em Lagos, menos de um em vinte fogos usufrui dos serviços
municipais de abastecimento de água. Esta situação deixa a maioria da
população dependente de uma combinação de buracos de perfuração,
tubagens pendentes e canalizações ilegais (controladas por gangues
locais) ou do abastecimento de água fornecido a preços exorbitantes
assegurado por vendedores privados. O escoamento de águas e
esgotos é efectuado através de cursos ao ar livre que atravessam
a cidade como uma sopa mal cheirosa de resíduos líquidos. Em
diversas áreas da cidade as únicas latrinas são baldes ou buracos
abertos, pelo que a água contaminada é a maior causa de doenças
gastro-intestinais que matam todos os anos um número incontável
de crianças. Grande porção desta cidade baixa e pobremente está
sujeita a inundações. A condução de electricidade para a cidade é
notoriamente errática; geradores domésticos de privados fornecem
a sua maioria. Lâmpadas de querosene iluminam os abrigos e as
tendas do mercado onde o clangor da música compete com o rufar
do gerador. Extremos de riqueza privada e de miséria pública
co-existem. A maioria dos postos de iluminação das ruas foram
roubados ou destruídos à já alguns anos e, pela noite, as ruas estão
misteriosamente desertas, envolvidas na escuridão, excepto onde
cartazes iluminados lançam um pálido brilho sobre intersecções
não marcadas, em que sobressaem os escombros de antigas colisões
de automóveis. Durante os períodos de chuva torrencial, as ruas
praticamente impenetráveis que conduzem aos centros de escritórios
especulativos podem ser temporariamente cortadas do resto da
cidade pelo efeito de enormes caldeirões que rapidamente enchem
de água tornando-se pequenos lagos. O fumo de montes de lixo em
combustão flutua pela cidade, e, não raramente, chega mesmo a
formar-se um nevoeiro pungente que limita a visibilidade a alguns
metros. As auto-estradas estão pontuadas por patrulhas informais de
estrada em que polícias seriamente armados extorquem dinheiro dos
desafortunados condutores e passageiros.

246
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

Privadas de apoio do estado ou município as esfareladas formas de


cimento da delapidada vista urbana tem vindo a ser complementadas
por elaboradas estruturas defensivas. Não é de estranhar que nos
ricos enclaves da ilha de Victoria, Ikoyi ou Victoria Garden City
na península Lekki, coloridas carpetes de buganvília ocultem
pontiagudos gradeamentos; permanentemente guaritas-sentinela
guardadas por corpos de segurança proporcionam um barato
escudo humano que opera em ligação com os mal pagos serviços
de segurança do estado. Mas mesmos as comunidades mais pobres
tentam proteger-se da Honda de violência que atravessa a cidade;
muros de pedras leves feitas de cinza e ligante, arame farpado e
vidros partidos dissecam e fragmentam o espaço urbano em lotes
individuais, ruas e distritos, reminiscências das ‘cidades-fortaleza’
do Brasil27. O padrão celular do tradicional complexo Yoruba é
combinado com uma contemporânea arquitectura do medo28.

Cidade de Deus
Desde início de 1990 verificou-se uma explosão de religiosidade
na Nigéria. Enquanto que no Norte este movimento tomou a forma
de apoio aos shari’a contra o corrupto e semi-defunto sistema
judicial da elite muçulmana, em Lagos o movimento foi dominado
por correntes de cristianismo carismático e de Pentecostes. Símbolos
de fervente adesão aos princípios das igrejas evangélicas dominam
a cidade: cartazes anunciam a salvação, rótulos feitos de pára-
choques proclamam ‘Apenas Deus pode salvar a Nigéria’, uma
zona de vastas novas igrejas encontra-se em construção na franja
urbana. O jovem novelista Chimamanda Ngozi Adichie chamou à
atenção para a ligação entre a nova corrente evangélica do torne-se
rico rapidamente’, que conquistou largas secções da classe média, e
a supressão de alternativas políticas desde 1994:
Entre o trauma de uma eleição democrática anulada, em
face de um governo brutal e uma de sociedade civil estéril,
os nigerianos voltaram-se para uma nova vaga cristão. Foi
hilariante; intensamente focado nos progresso material com
os pastores citando as escrituras que retratam a riqueza como
virtude espiritual; e foi alto... A religião tornou-se a nossa

247
Geografias pós-coloniais

resposta para uma economia falhada. Livros cristãos e de


negócios vendem porque sustem o status quo: os primeiros
afirmando que Deus quer que ganhemos dinheiro enquanto
os segundos ensinam como consegui-lo29.
O arquitecto de Lagos Koku Konu argumentou que este surto de
religiosidade funcionou contra a resolução dos problemas sociais
da cidade porque favoreceu a ‘desconfiança étnico-religiosa’30.
Organizações como a Oodua People’s Congress, proscrita sob o
governo de Abacha, tomaram desde então crescente orientação etno-
nacionalista, promovendo a supremacia dos Yoruba e organizando
ataques violentos contra os muçulmanos e outros grupos percebidos
como ‘inimigos’ dentro da comunidade.

Urbanismo amorfo

Lagos é uma cidade que se encontra simultaneamente em


crescimento, em divisão , polarização e declínio. Para a maioria, a
área metropolitana desenvolveu-se independentemente dos esforços
dos planeadores urbanísticos, num processo que podemos designar
por ‘urbanismo amorfo’. Os serviços públicos como reparações de
estradas, recolha de lixo e abastecimento de água são tão pobres
que as taxas municipais são dificilmente justificáveis. Modos
erodidos de provisão de serviços persistem como um palimpsesto
fantasmagórico de estruturas: caixas de correio ferrugentas, restos
torcidos de parquímetros e outros equipamentos de uma modernidade
abandonada confundem a leitura da paisagem urbana. De facto,
os aspectos da natureza mais intimamente conectados com a vida
quotidiana da cidade são largamente injustos – tais como o perigoso
mosquito que sobrevoa os regos e fossas ao ar livre.
A escala da cidade, a sua extrema pobreza e a polarização étnica,
representam agora obstáculos reais para um novo fabrico do social
e do físico. Embora as redes informais e os acampamentos possam
responder às necessidades imediatas de muitos, e determinadas
formas de organização comunitária possam produzir melhorias
significativas, a resposta independente destas populações é
incapaz de assegurar a coordenação das dimensões estruturais do

248
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

desenvolvimento urbano. Se Koolhaas e seus colegas, planando


sobre a cidade, reclamam que a vista dos vendedores sôfregos sob o
helicóptero de Oshodi é ‘prova e evidência’ de que o urbanismo de
Lagos ‘resulta’, a conclusão é incontornável; na sua perspectiva, a
habilidade da cidade para suster um mercado é o único indicador da
sua riqueza. Numa passagem final em Mutations, Koolhaas e seus
colegas citam com aprovação o apelo de Robert Kaplan em The
Coming Anarchy a ‘um novo turno de “exploração” pós-colonial’
de África ocidental, com ‘diferentes intenções e uma metodologia
mais intensiva’ do que as do século XIX31. Mas quais intenções?
No século XIX, as campanhas coloniais encontravam-se implicadas
com a imposição de novas formas para as relações de poder; será
que o objectivo da exploração do século XXI é nada mais do que a
celebração dos efeitos das pré-existentes?

Notas
1 Outras exibições recentes devotadas a Lagos incluem Depth of Field

na South London Gallery em 2005 e Lagos:STAD TanSICHTen at the ifa


galleries em Berlim e Estutegarda em 2004/05. Os meus agradecimentos
a Bayo Anatola, Tunde Atere, Suma Athreye, Laurent Fourchard, Maren
Harnack, Hellen James, Koku Konu, Michael Müller-Verweyen, Gbenga
Odele, Muyiwe Odele, Ayodeji Olukoju and Ben Page. 2 O. Enwezor et
al. (2003). 3 O. Enwezor cit. in O. Uwaezuoke (2002). 4 P. Subirós (2001:
34-35). Ver também R. Kaplan (2000: 5-15); P. Richter (2002); R. Schmitz
(2002). As excepções seriam AbdouMaliq Simone (2004) e H. Rauterberg
(2002). 5 A abordagem pode aproriadamente ser descrita como neo-
organicista, em comparação com os textos organicistas clássicos do discurso
urbano. Enquanto que o último conhecidamente assenta nas metáforas da
biologia humana para esclarecer as diferentes funções da cidade (coração,
pulmões, aparelho digestivo), a perspectiva neo-organicista encontra-se antes
informada por imagens provenientes da tecnologia informática, matemática
e ciências biofísicas. Assim, na sua contribuição sobre Lagos para a colecção
Mutations, Koolhaas e seus colegas exploram a metáfora cibernética
do espaço urbano como multiplicidade de redes “em rápida expansão,
transformação, e aperfeiçoamento”, enquanto que o funcionamento da
megapolis de Lagos “ilustra a eficácia de larga escala de sistemas e agentes”
considerados como informais ou ilegais; a sua estratégia de sobrevivência
“pode ser melhor entendida como uma forma de investigação colectiva,

249
Geografias pós-coloniais

conduzida por um grupo de oito para vinte e cinco milhões”. Aqui, Koolhaas
parece ecoar a máxima de Joseph Beuys, “qualquer um pode ser artista”.
Rem Koolhaas/Harvard Project on the City , “Lagos”, in Francine Fort and
Michel Jacques (2001: 652, 719). 6 Jameson (2003: 66). Os primeiros
dois volumes da série Projecto da Cidade são Great Leap Forward, sobre
o desenvolvimento do delta do Rio Pearl, e Guide to Shopping (os dois
publicados – Cologne 2002). 7 Koolhaas (2003: 175); ver ainda O. Fort
e M. Jacques (2001: 6). 8 O. Fort e M. Jacques (2001: 718). 9 O. Fort e
M. Jacques (2001: 652). 10 R. Koolhas (2003: 177). 11 R. Koolhas (2003:
177). 12 O. Fort e M. Jacques (2001: 674, 686). 13 R. Koolhas (2003: 181,
183). 14 O. Fort e M. Jacques (2001: 719, 653). 15 O. Enwezor et al. (2003:
13). 16 Consultar Ayodeji Olukoju (2003). As respostas críticas à LEDB
por parte dos habitants de Lagos podem encontrar-se no Daily Service de
Lagos. 17 Consultar Terry Karl (1997: ch. 9); Ike Okonta e Oronto Douglas
(2003). 18 Paul Okunlola, correspondente em Lgos do Guardian em temas
urbanos e ambientais, entrevista com o author, 1 de Maio de 2003. Ver
o extraordinário plano de dois volumes – Master Plan for Metropolitan
Lagos - preparado entre 1974 e 1980 por Wilbur Smith and Associates em
colaboração com o o grupo de projecto do UNDP e o governo do estado
de Lagos. 19 M. D. Yusufu, anterior inspector geral da polícia, citado em
Karl Maier (2002: 45). 20 Empregados de escritório desempregados foram
sendo absorvidos na economia informal e trabalham na reciclagem de lixo,
transportes, serviços de segurança, produção e comércio de artesanato.
Consultar Babatunde Ahonsi (2003: 140). Em geral, a literatura académica
tem ainda que deitar mão às realidades da vida na cidade; para uma evocação
literária, ver Helon Habila (2002). 21 Relatório do Painel de Reorganização
e Reforma do Banco Central da Nigéria, (‘Panel on the Reorganization and
Reform of the Central Bank of Nigéria’), Okigbo Panel Report, September
1994. 22 Barclays, Citibank, HSBC, Merrill Lynch e cerca de uma dúzia
de outros bancos estiveram implicados na transacção de dinheiro roubado
pelo regime de Abacha e os seus cúmplices internacionais: Kwesi Owusu
(2001). Ver também Maier (2002: 4-5). 23 Não obstante, a Lagos State Water
Corporation rompeu negociações em 2002, tendo registado resultados muito
aproximados aos do desastre da privatização em Buenos Aires, Manila, e
outros pontos. Olumuyima Coker, Chief Executive Officer, Lagos State
Water Corporation, entrevista com o autor, 6 de Maio, 2003. 24 Mike Davis
(2004: 10-11). 25 Residentes no estado de Ikota, na península de Lekki, por
exemplo, testemunharam que a Lagos State Water Corporation tentou levar
canos de água até à área, mas estes foram vandalizados durante a noite pela
acção de criminosos ao serviço do comércio privado de água. Entrevistas

250
‘Lagos: ensinamentos da maior metrópole da África subsaariana’

com o autor, Maio, 2003. 26 Tunde Agbola e A. M. Jinadu (1997: 271-


88). 27 Teresa Caldeira (2000). 28 Tunde Agbola (2005). 29 Adicihie
(2005). 30 Koku Konu, arquitecto e director do dkr associates, entrevista
com o autor, 21 de Fevereiro de 2003. Sobre o significado e impacto da
religiosidade contemporânea, ver ainda Ogbu Kalu (2002); e Jeff Haynes
(1996). 31 O. Fort e M. Jacques (2001: 694, 718).

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Nota de tradução
Artigo original em língua inglesa: Learning from Lagos. In New Left
Review 33 (May-June), p. 37-52. Tradução de Ana Francisca de Azevedo
em 2007, com revisão do autor.
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