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Profª Cássia Virginia Moreira de Alcântara – e-mail: cassia.alcantara@uol.com.

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TRANSTORNOS GLOBAIS
DO DESENVOLVIMENTO
NO PROCESSO EDUCATIVO

Profª Dra. Cássia Virginia Moreira de Alcântara

Maio/2018
Profª Cássia Virginia Moreira de Alcântara – e-mail: cassia.alcantara@uol.com.br

Texto 1

www.psicologia.pt
ISSN 1646-6977
Documento produzido em 02.08.2017

O PROCESSO DE INCLUSÃO DE PORTADORES

DO TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

2015

Clara Miranda Ferraz Zauza


Graduanda do curso de Psicologia- FAMINAS
Ana Lúcia Barros
Psicóloga Clínica e da Secretaria de Educação do município de Santo Antônio de Pádua
Luciana Xavier Senra

E-mail de contato:
claraferraz4@gmail.com

RESUMO
O artigo apresenta breve revisão bibliográfica e pesquisa qualitativa sobre o Transtorno do
Espectro Autista e o processo de inclusão escolar. Inicialmente, apresenta-se uma
introdução sobre os fatores relacionados ao transtorno, suas especificidades e mudanças nos
critérios diagnósticos pelo DSM-5. Discute-se sobre tratamentos e processo de adesão;
linguagem, interação Social e comportamento; histórico escolar e percepção dos pais,
destacando a importância de tratamento multidisciplinar e métodos psicoeducacionais.
Percebeu-se que o diagnóstico é consolidado antes dos dois anos e o tratamento é
multiprofissional. Ocorre uma diversidade em relação às escolas, algumas crianças são bem
orientadas, outras desprovidas de condições adequadas para uma inclusão satisfatória.

Palavras-chave: Transtorno do espectro autista, inclusão escolar, tratamentos.

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INTRODUÇÃO

O Autismo é considerado uma doença multifatorial, tendo sua etiologia ligada a


fatores genéticos, ambientais, imunológicos e neurológicos. Seu diagnóstico pode
ser dificultado por não apresentar os mesmos sinais em todos os quadros e pela
aparição destes nos primeiros anos de vida. Considerado como um transtorno
comportamental, compromete a interação social, comunicação e apresenta
padrões repetitivos e estereotipados de comportamento, além de interesse restrito
por atividades (CANUT et al 2014).
Em 1943, o psiquiatra infantil Leo Kanner utilizou a palavra autismo pela
primeira vez. O termo autismo vem do grego: autos, que quer dizer “em si
mesmo”. Kanner, em sua atuação profissional, percebeu que um grupo de
crianças se diferenciava das outras pela incapacidade de se relacionar com as
pessoas e pela forte resistência a mudanças (SANTOS, 2008).
Inicialmente o psiquiatra descreveu “distúrbios autísticos do contato afetivo” o
quadro que era caracterizado por obsessividade, estereotipias e ecolalia. Esses
sinais foram definidos como uma doença do tipo esquizofrênica (JUNIOR;
PIMENTEL, 2000).
De acordo com o DSM-IV, os Transtornos Globais do Desenvolvimento se
classificam em Transtorno Autista, Transtorno de Asperger, Transtorno
Desintegrativo da Infância, Síndrome de Rett e Transtorno Global do
Desenvolvimento Sem Outra Especificação (TGD-SOE). O DSM-IV e a CID-10
classificam o autismo na categoria de Transtornos Globais de Desenvolvimento
(TGD) ou Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. (MECCA et al. 2011).
No ano de 2013, foi publicado o DSM 5 que trouxe consideráveis mudanças nos
critérios diagnósticos de autismo, adotando o termo TEA (Transtorno do
Espectro Autista) como categoria diagnóstica. Os transtornos incluídos no TEA
foram: Transtorno Autista, Transtorno Desintegrativo da Infância, Transtorno de
Asperger e Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outra Especificação.
Essas categorias passaram a ser consideradas no mesmo espectro do autismo e
não mais em condições diferentes. A Síndrome de Rett, que antes fazia parte,

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passa a ser considerada uma doença distinta, não fazendo parte do TEA.
(KHOURY et al. 2014).
De acordo com o DSM 5, a Síndrome de Rett se adequa aos critérios do
Transtorno do Espectro Autista (TEA) quando durante a fase regressiva dessa
síndrome acontece uma pausa na interação social. Após esse período (entre 1 e 4
anos de idade), a criança melhora as habilidades de comunicação social, não se
encaixando nos critérios para o diagnóstico de TEA, no qual deve ser
considerado quando afetado por todos os sinais e sintomas.
Com o objetivo de discutir sobre a criança com Transtorno do Espectro Autista
inserida em um contexto onde possam conviver com outras crianças e como
acontece a aceitação e funcionamento deste determinado contexto ao receber esta
criança, o presente trabalho pretendeu discutir sobre o Transtorno do Espectro
Autista e a inclusão escolar, por meio de revisões de literaturas atuais a respeito
das características dessa deficiência, das dificuldades para os indivíduos que
possuem TEA se manterem em uma escola regular, sobre como a escola deve
trabalhar a inclusão e a respeito de algumas intervenções psicoeducacionais que
auxiliam no desenvolvimento da criança com este transtorno. Além disso, o
trabalho objetiva também apresentar como ocorre a inclusão de forma geral,
como a escola lida com o aluno com TEA, como ela deve considerar as
peculiaridades do Transtorno do Espectro Autista para que seja efetivada uma
inclusão de sucesso e como os pais e/ou responsáveis percebem tal processo.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter observacional e abordagem
transversal realizada em duas etapas. A primeira dessas etapas consistiu em uma
breve pesquisa bibliográfica realizada por meio de uma busca eletrônica na base
de dados do Google Acadêmico com os termos “autismo inclusão”; “autismo
adesão ao tratamento”; “autismo escola regular”; com vistas a levantar artigos
científicos publicados entre os anos de 2010 e 2015. O objetivo dessa pesquisa
bibliográfica foi, sobretudo, classificar definições do transtorno, estratégias de
assistência e intervenção e aspectos relacionados à inclusão no ensino regular.
A segunda etapa da pesquisa envolveu a realização de entrevistas com pais e ou
responsáveis de crianças e/ou adolescentes com Transtorno do Espectro Autista-

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TEA matriculados em escolas da rede pública e privada, os quais foram


selecionados não probabilisticamente e que aceitaram participar como
voluntários desde que assinassem o termo livre e esclarecido. A pesquisa utilizou
entrevistas abertas com 12 perguntas norteadoras abarcando as seguintes
temáticas: diagnóstico; idade de inserção na escola; visão dos pais e/ou
responsáveis em relação ao processo de inclusão; conhecimento do professor;
maiores dificuldades da criança; tratamentos.
Os dados recolhidos foram analisados nas 2 etapas por meio da técnica de análise
de conteúdo de Bardin (2010), a qual abrange: (a) leitura flutuante de textos e
transcrições de entrevistas para conhecimento do conteúdo; (b) delimitação de
eixos temáticos de análise dos conteúdos apurados; (c) nomeação de categorias
de análise conforme o objetivo da pesquisa e (d) tratamento, interpretação e
inferência dos conteúdos.
RESULTADOS
Os resultados foram obtidos por meio de análise de conteúdo das entrevistas realizadas com
seis pais de crianças que possuem o Transtorno do Espectro Autista – TEA (Bardin, 2010).
Através dessa técnica foi possível realizar: (a) pré-análise dos conteúdos envolvendo leitura
flutuante da transcrição das entrevistas para escolha daqueles que explicitassem os
indicadores relativos à variável do estudo: a percepção dos pais sobre o TEA; e preparação
de material de análise, ou seja, levantamento e identificação das principais variáveis que
caracterizam a variável ressaltada nos relatos dos pais (fase I). Além disso, na fase II, foi
feita uma nomeação de categorias para tratamento. Após a enumeração das categorias (1)
Percepção, diagnóstico e medidas de tratamento; (2) Linguagem, Interação Social e
Comportamento Repetitivo; (3) Resposta e Adesão ao Tratamento; (4) Histórico
Escolar/Acadêmico; e (5) Percepção dos Pais sobre a vida escolar, foi possível delinear a
inferência dos resultados.

DISCUSSÃO

Através das revisões de literaturas atuais, considera-se que para o autismo não existe cura,
mas são possíveis tratamentos específicos que amenizam alguns comportamentos e
facilitam lidar com essas crianças. Cada criança apresenta um desenvolvimento diferente,

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assim como o nível de comprometimento intelectual, linguagem e comunicação, fazendo


com que alguns métodos sejam eficazes para umas e para outras, não. Podem ser usados
medicamentos em casos de hiperatividade, crianças irrequietas, com distúrbios do sono ou
comportamentos autolesivos. Ainda no que se refere a tratamentos, a psicoterapia
comportamental também é muito indicada para autistas e o processo de condicionamento
facilita lidar com essas crianças, mas isso não as torna menos autistas e sim mais
organizadas e bem estruturadas (Santos, 2008).
De acordo com Santos (2008), o diagnóstico do autismo é clínico, pois ainda não existem
exames que possam contribuir significativamente para o diagnóstico, apesar de já haverem
estudos que apontam no sentido de algumas anormalidades em determinados cromossomos
indicarem uma ligação com o autismo, mas isto ainda não é utilizado para uma confirmação
de diagnóstico.
Em relação à categoria “Percepção, diagnóstico e medidas de tratamento”, os sujeitos
entrevistados receberam diagnóstico de seus filhos antes dos dois anos e entre as seis
famílias, cinco delas iniciaram tratamento multiprofissional logo após o diagnóstico.
Laznik (2004, apud FOLLADOR et al, 2014) considera que quando o tratamento é iniciado
antes dos três anos, são alcançados melhores resultados, uma vez que é possível fazer um
diagnóstico decisivo. Essa questão é considerada, pois, primordial entre os profissionais
que tratam de crianças autistas para melhor desenvolvimento do tratamento.
Para Vasconcelos (2009, apud FOLLADOR et al, 2014) no que se refere ao
desenvolvimento da criança, a melhor medida a ser tomada é a intervenção precoce, porém
considera que é raro acontecer o diagnóstico na fase pré-escolar pelo fato de não haver
informação sobre o desenvolvimento psíquico, físico e motor da criança.
Nesse sentido, os tratamentos realizados com essas crianças são basicamente realizados por
meio de reabilitação, sendo esses a psicoterapia, terapia ocupacional, fisioterapia,
musicoterapia, fonoaudiologia, etc (ALVES et al 2010).
A psicoterapia pode auxiliar na aprendizagem e a interpretar linguagem corporal e a
comunicação não verbal, como também emoções e interações sociais. Esse procedimento
consiste na aproximação e interação social que previne o isolamento. As abordagens
psicoterapêuticas baseada na terapia comportamental são mais eficazes que as terapias
centradas na emoção, pois essas podem ser estressantes e desconfortáveis para crianças
autistas, podendo desestruturá-las (TEIXEIRA, 2005).

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Por sua vez, o tratamento proporcionado pelo fonoaudiólogo deve olhar além dos sintomas
característicos da criança, devendo dar sentido e interpretação a qualquer outro sinal. A
linguagem deve ser considerada em seu sentido mais amplo, sendo a forma que a criança
encontra para ação e interação com os outros e o ambiente (CAMPELO et al. 2011).
As crianças portadoras de Transtorno do Espectro Autista- TEA em geral possuem
características como falta de comunicação; pouco ou nenhum contato visual; são retraídos,
apáticos e, por vezes demonstram desinteresse pelo ambiente que os rodeiam (COELHO;
ESPÍRITO SANTO, 2006).
Cabrera (2005 apud PAREDES, 2012) menciona que a musicoterapia em crianças com
perturbações do espectro autista pode desfazer o isolamento social e desenvolver aspecto
sócio emocionais; incentivar comportamento verbal e não verbal; diminuir os problemas
resultantes de percepção e função motora, tornando melhor o desenvolvimento dessas
áreas, como também promover sua satisfação emocional.
Santos (2008) afirma que outras características podem ser destacadas como a ausência de
sorriso; desinteresse por brinquedos e jogos; dificuldade nas relações interpessoais;
distúrbios na fala e linguagem, sendo estas totalmente comprometidas (linguagem oral,
gestual, receptiva e expressão facial).
Na atual pesquisa, o que mais se destacou foi o comprometimento na linguagem, podendo
ser considerado dificuldades na interação social. A falta de capacidade nessas duas áreas
dificultam uma comunicação adequada, na qual a pessoa não interpreta sinais e expressões
faciais, possuem fala ecolálica e podem ficar, na maioria das vezes isolados e sozinhos.
Os sujeitos entrevistados relataram ter buscado tratamentos multiprofissionais para seus
filhos, incluindo fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta ocupacional, musicoterapeuta e
auxílio do programa TEACCH. Entre os tratamentos psicológicos e revisando algumas
literaturas (Silva, et. al. (2007); MATSUKURA (2010); Oliveira (2014) e Andrade et. al.
(2011)) sobre tratamentos, foi possível constatar que os profissionais notaram significativo
desenvolvimento principalmente no comportamento, linguagem, atenção e comunicação se
comparando ao início das intervenções.
Silva et. al. (2007), relata um estudo de caso de uma criança autista de 24 meses, na qual
foram realizadas intervenções fonoaudiológicas. A queixa principal era ausência de fala e
comportamento agitado. A terapia se baseava na Análise Aplicada do Comportamento
(ABA), que pode também ser aplicada à fonoaudiologia. O terapeuta trabalhava com

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estímulos visuais, auditivos, estimulava a criança a ter atenção a seus movimentos e imitar
ações, como também a vocalizações e esta era recompensada ao realizar as atividades.
Durante os nove meses de intervenção, foi notada evolução no brincar simbólico e uso da
linguagem, respondeu aos princípios do ABA como contato ocular, atenção comunicativa e
linguagem oral com função de comunicar-se.
No que se refere à Terapia Ocupacional, Matsukura (2010) discute sobre as contribuições
no tratamento de crianças autistas. Foi analisada a intervenção feita com uma criança de
oito anos durante um ano e seis meses, na qual não se utilizava de regras fixas e a criança
poderia escolher a atividade a ser desenvolvida. Foram utilizadas categorias como olhar
para o objeto e terapeuta, sorrir e contato da criança com o objeto e terapeuta. Foi notado,
durante todo tratamento que a criança conseguiu estar em contato com o outro e com os
objetos e considerado a importância do vínculo com o terapeuta como também a
recuperação dos aspectos afetivos e cognitivos. A criança já possuía a fala e foi notado
maior desenvolvimento durante as terapias.
A musicoterapia tem uma contribuição positiva no tratamento de crianças com Transtorno
do Espectro Autista. Uma pesquisa realizada por Oliveira (2015) relata que é possível
trabalhar a capacidade emocional de lidar com a falta de acertos nas tarefas, trabalhar
emoções em relação à raiva, tristeza e empatia ao próximo. Essa pesquisa foi feita com uma
criança de nove anos e terapeuta e criança ora tocavam juntos, ora deixava a criança
acompanhar com outros instrumentos. Ao final do tratamento a mãe da criança pode
considerar melhoras no comportamento, além de estar mais tranquila e focar melhor a
atenção. Mudanças positivas nas respostas a estímulos, diminuição da irritabilidade, melhor
interação com os colegas.
A psicoterapia com crianças com transtorno do espectro autista acarreta considerável
desenvolvimento principalmente quando se é utilizado a ludoterapia. Em sua pesquisa,
Andrade et. al. (2011) relata o atendimento a uma criança de cinco anos que participava de
um grupo de apoio a crianças, com atendimento individual e com os pais. O atendimento
acontecia em uma sala lúdica na qual eram realizadas atividades livres e algumas
direcionadas como desenhos, pinturas, bingo e boliche. No início das sessões não havia
empatia com a psicóloga e a criança não atendia ao que era pedido. Através de estímulos
por meio de atividades lúdicas, foi incentivado o contato com os colegas do grupo e após

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alguns meses a criança apresentou uma sequência nas atividades e boa comunicação com a
equipe.
Na presente pesquisa realizada com os pais, estes relataram que as crianças respondem bem
às terapias, tem adesão favorável ao tratamento principalmente no que se refere à interação,
comunicação, coordenação motora e interesse por aprender.
As crianças analisadas na pesquisa frequentam ensino regular (inclusão escolar) e são
acompanhadas por mediador, professor itinerante ou professor apoio, considerando
algumas mudanças de escola e passagem pela APAE (Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais).
A Inclusão Escolar, na atualidade, está mais relacionada à preocupação de que todas as
crianças portadoras de deficiência estejam inseridas na escola regular, do que ações que
orientem como a inclusão deverá ser realizada. Quando se fala em inclusão, não se deve
pensar somente no aluno portador de deficiência e sim na própria escola lidando com o que
é diferente, ou seja, diferente de um padrão antes já definido (SUPLINO, 2009).

Uma escola ou turma considerada inclusiva precisa ser, mais do que um


espaço para convivência, um ambiente onde ele aprenda os conteúdos
socialmente valorizados para todos os alunos da mesma faixa etária. O
objetivo desta proposta é a possibilidade de ingresso e permanência do
aluno na escola com sucesso acadêmico, e isso só poderá se dar a partir da
atenção às suas peculiaridades de aprendizagem e desenvolvimento
(BLANCO, GLAT, 2007, P. 17).

Fernandes (2007) destaca alguns pontos importantes na inserção do aluno autista na escola
regular, como preparar os profissionais antes da chegada desse aluno com atividades e
palestras de orientação, necessidade do professor conhecer e colocar em prática métodos de
comunicação alternativa quando o aluno não faz uso de linguagem oral e usar meios de
prevenir comportamentos inadequados, direcionando-o para outras atividades ou
comportamentos.
Silva et.al. (2012), caracteriza o TEACCH como um programa que adequa diversos
materiais concretos e visuais, para que as crianças estruturem seu ambiente e sua rotina. É
um modelo de intervenção que através de uma estrutura externa permite que os autistas
consigam se organizar e obter o máximo de autonomia na idade adulta.

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Em contrapartida, o PECS é um sistema de comunicação que se baseia na troca de figuras e


pode ser usado pela própria família ou equipe técnica em casa, na escola ou em lugares que
a criança frequenta e tem como objetivo ajudar autistas a desenvolverem habilidades de
comunicação. Consiste na troca de figuras para estabelecer a comunicação em autistas que
não se comunicam ou que utilizam a comunicação com baixa frequência. NUNES (2003
apud VILHENA; SERRA, 2010).
O método ABA- Análise Aplicada do Comportamento tem como objetivo reforçar os
comportamentos adequados à convivência social e eliminar os indesejáveis. Para a
aplicação, é necessário que o ambiente seja parecido com o natural, afim de que a criança
generalize a aprendizagem; a aplicação deve ser contínua; os horários precisam ser
constantes; os objetivos que se pretende alcançar devem ser bem definidos e claros e a
família pode ser terapeuta no processo educacional de seus filhos (VILHENA; SERRA,
2010).
Em relação aos dados encontrados sobre a percepção dos pais sobre a vida escolar,
considera-se que a escola e professores tem conhecimento e oferecem apoio à inclusão,
destacando a boa relação entre pares e pouca interação família-escola.
Sendo assim, Dias (1999) considera que a família e a escola são as mais importantes na
socialização ao longo da vida do indivíduo, e a colaboração entre esses é fundamental para
o desenvolvimento positivo de qualquer criança (SILVA, 2007).
O trabalho conjunto entre família e escola é de suma importância, pelo fato do
comportamento destas crianças variarem de contexto para contexto, ou seja, habilidades
adquiridas num determinado contexto, pode não acontecer do mesmo modo em outro, a não
ser que se atue da mesma forma, seguindo as mesmas regras e manejo. Essa relação nem
sempre é tão fácil assim, uma vez que existem cobranças por parte dos pais sobre os
educadores e/ou pais produzirem mudanças no comportamento dos filhos por sentirem-se
desencorajados, negligenciando o trabalho na família. (PEREIRA, 1998).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebeu-se que o diagnóstico de TEA tem se consolidado até dois anos de idade e que o
tratamento na maioria dos casos tem sido multiprofissional, embora não haja uma
concordância em relação ao tipo de tratamento mais especificamente. De um modo geral, as

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crianças apresentam boa adesão ao tratamento, embora não se possa identificar claramente
qual abordagem é mais indicada. Algumas crianças passaram por várias escolas, outras por
uma escola somente. Na percepção dos pais, ocorre bastante diversidade em relação às
escolas, algumas possuem orientação sistemática, professores com capacitação e
implicados, enquanto outras são desprovidas de condições adequadas para atendimento às
crianças com TEA. O relacionamento entre as crianças é satisfatório na percepção de todos
os pais envolvidos nessa pesquisa e em relação às áreas mais comprometidas na criança
com TEA, há diversidade, algumas têm maiores dificuldades na interação social, outras na
linguagem e comunicação.
O transtorno do espectro autista (TEA/DSM5) tem chamado a atenção tanto da comunidade
científica quanto das escolas, cujo objetivo tem sido facilitar a inserção dessas crianças na
escola regular. Embora essa pequena amostra demonstre a inserção e permanência dessas
crianças na escola regular, observa-se que não existe ainda concordância em relação ao
método utilizado, conhecimento dos professores sobre o transtorno e aceitação e busca de
tratamento pelos familiares. Essa pesquisa não se esgota, principalmente levando em
consideração o tamanho reduzido da amostra, mas abre a possibilidade de maiores
reflexões sobre o Transtorno do Espectro Autista e a inserção dessas crianças na escola.

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Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, v. 1, n.2, p. 163-176, 2010.
Disponível em:
<www.periodicos.ufc.br/index.php/psicologiaufc/article/view/66/65> . Acesso
em: 29/03/2015.

Recebido em 20 de fevereiro de 2008


Aceito em 18 de agosto de 2008
Revisado em 9 de setembro de 2008

Notas

1. A Pesquisa Multicêntrica de Indicadores de Risco para o Desenvolvimento


Infantil vem sendo realizada desde 1999 pelo Grupo Nacional de Pesquisa
(Kupfer et al., 2003), Grupo de experts formado para propor os instrumentos da
pesquisa o - IRDI e a AP3 -, bem como para realizar a sua aplicação no Brasil, no
período 2000-2008, do qual as autoras fazem parte, a Professora Dra. Maria
Cristina Machado Kupfer como coordenadora nacional e a Professora Dra. Leda
Mariza Fischer Bernardino como coordenadora regional.
2. Jerusalinsky, A. Considerações sobre a avaliação psicanalítica de crianças
de zero a três anos. Texto inédito.
3. Entrevista concedida ao jornal argentino La Nación. Disponível em:
www.lanacion.com.ar/edicionimpresa/suplementos/Revista/index.asp? Domingo,
3 de junho de 2007.

© 2011 Universidade de Fortaleza


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malestar@unifor.br

BERNARDINO, Leda Mariza Fischer; KUPFER, Maria Cristina Machado. A criança como
mestre do gozo da família atual: desdobramentos da "pesquisa de indicadores clínicos de
risco para o desenvolvimento infantil". Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza, v. 8, n. 3, set.
2008 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-
61482008000300005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 13 out. 2011.

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Texto 2

CARACTERIZAÇÃO DA SÍNDROME AUTISTA

RESUMO

Um dos prejuízos nos transtornos globais do desenvolvimento (TGD) é a interação social.


Estudos que investigam os movimentos oculares nos TGD têm demonstrado que é possível
quantificar e definir o fenótipo social dessa desordem. O objetivo do estudo foi verificar se
pessoas com TGD diferem dos controles no padrão de percepção de figuras sociais (rostos
de pessoas) e não sociais. Participaram 11 indivíduos do sexo masculino com TGD,
pareados por idade, sexo e nível intelectual com grupo-controle. Os movimentos oculares
foram registrados pelo equipamento computadorizado Tobii® 1750. Os sujeitos com TGD
apresentaram mais padrões de omissão do que os controles (t[20] = 2,362; p = 0,028) e
usaram menos estratégias de rastreamento organizado (t[20] = 4,249; p < 0,000). Análise
do padrão de rastreamento revelou que participantes com TGD tenderam a explorar as
figuras de maneira menos organizada, ocasionando a omissão de figuras e não percepção
de estímulos. Esse padrão é importante para entendermos a percepção social nos TGD.

Palavras-chave: Autismo, Movimento ocular, Fenótipo, Cognição social, Percepção.

ABSTRACT

One of the main difficulties in children with Pervasive Developmental Disorder (PDD) is
social interaction. Eye tracking research in PDD population has shown the possibility of
quantifying their social phenotype. The objective of the present paper is to access
differences on perception of social pictures (faces) and non-social pictures (objects) for
people with PPD and people with normal development. The research included eleven male
individuals with PDD that were age, gender and intectually pared with a control group.
Tobii® 1750 was the computerized equipment used to register the eye tracking movements.
The perceptual pattern of individuals with PDD had more omissions (t [20] = 2,362; p =
0.028) and less use of organized tracking strategies (t [20] = 4,249; p < 0.000). Analysis of
the tracking pattern revealed that PDD subjects tended to be less organized when exploring
the pictures leading to perception omissions. These patterns are important to understand
social patterns in persons with PDD.

Keywords: Autism, Eye tracking, Phenotype, Social cognition, Perception.

RESUMEN

Una de las pérdidas en los Trastornos Generalizados del Desarrollo (TGD) es la interacción
social. Estudios de investigación de los movimientos oculares en el TGD han demostrado
que es posible cuantificar y definir el fenotipo social de este trastorno. El objetivo de este
estudio fue determinar si las personas con TGD difieren de los controles en las
características de las figuras sociales percibidas (caras de las personas) y no social. Los
participantes del estudio fueron 11 sujetos varones con TGD, emparejados por edad, género

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y nivel intelectual con el grupo control. Los movimientos oculares fueron grabadas por el
equipo informático Tobii ® 1750. Los sujetos con TGD habían más patrones de omisión
que los controles (t [20] = 2,362, p = 0,028) y utiliza estrategias de detección menos
organizados (t [20] = 4,249, p <0,000). Análisis de los patrones de seguimiento reveló que
los pacientes con TGD tienden a explorar las cifras de una manera menos organizada, lo
que lleva a la omisión de las figuras y la no percepción de los estímulos. Este patrón es
importante comprender la percepción social en TGD.

Palabras clave: Autismo, El movimiento del ojo, Fenotipo, La cognición social, La


percepción.

Introdução

Atualmente, o diagnóstico do autismo infantil é feito somente de acordo com uma avaliação
do quadro clínico do paciente, sem que exista um marcador biológico único que possa
caracterizá-lo (BAIRD; CASS; SLONIMS, 2003). Existe a necessidade de critérios
diagnósticos mais específicos que possam caracterizar mais precisamente esse quadro.
Como se trata de um modelo complexo, qualquer tentativa para compreendê-lo requer uma
análise em muitos níveis diferentes, como do comportamento à cognição, da neurobiologia
à genética (KLIN; MERCADANTE, 2006). Portanto, a falta de instrumentos padronizados
e a heterogeneidade do quadro mostram a importância do desenvolvimento de novos
procedimentos de avaliação. Dessa forma, a análise dos movimentos oculares ante
estímulos sociais, como faces humanas, em oposição a estímulos neutros, como imagens de
objetos, paisagens, animais e alimentos, pode ser importante na determinação de
endofenótipos e na investigação dos aspectos cognitivos no autismo.
Assim, o objetivo do presente estudo foi analisar os padrões perceptuais de participantes
com TGD e com desenvolvimento normal. Isso foi feito analisando a preferência por
estímulos sociais e não sociais por meio da análise dos movimentos sacádicos e das
fixações.

Revisão teórica
Os transtornos globais do desenvolvimento (TGD) são definidos, de acordo com o Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM IV-TR), como déficits qualitativos
em três grandes domínios: interação social, comunicação e comportamentos restritos,
repetitivos e estereotipados (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1999). Nessa

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categoria, incluem-se transtorno desintegrativo da infância, síndrome de Rett, transtorno


autista, síndrome de Asperger e transtornos globais do desenvolvimento sem outra
especificação.
Segundo Klin e Mercadante (2006), o autismo e os TGD referem-se a distúrbios da
socialização que têm início na infância e que provocam um impacto no desenvolvimento da
subjetividade e das relações pessoais. Os prejuízos na interação social e a dificuldade de
compreensão de pistas sociais, como a atenção seletiva para faces humanas, podem ser
caracterizados como endofenótipos no autismo.
Os déficits na interação e comunicação estão relacionados à cognição definida como
habilidade de interpretar adequadamente os signos sociais e responder de maneira
apropriada a eles (BUTMAN; ALLEGRI, 2001). Segundo Adolphs (1999), a cognição
social corresponde ao processo cognitivo que elabora a conduta adequada em resposta a
outros indivíduos da mesma espécie, especificamente aqueles processos cognitivos
superiores que sustentam as condutas sociais que são extremamente diversas e flexíveis.
Os TGD apresentam uma disfunção na cognição social e emocional (ADOLPHS; SEARS;
PIVEN, 2001). De acordo com esses autores, pesquisas realizadas chegaram à hipótese de
que uma disfunção na amígdala pode ser a explicação para alguns prejuízos citados,
especificamente as dificuldades no processamento de informações faciais que nos dão
pistas sociais relevantes para a vida cotidiana. A amígdala é uma estrutura do sistema
límbico que está relacionada à regulação das emoções (KOLB; WHISHAW, 2002) e
intervém na elaboração de uma avaliação cognitiva do conteúdo emocional de estímulos
perceptivos complexos (BUTMAN; ALLEGRI, 2001).
Outros estudos também reconhecem a relação do funcionamento da amígdala ao
reconhecimento de faces e revelam um padrão atípico na ativação desta região cerebral de
autistas, principalmente na região na amígdala, durante o processamento visual de faces
humanas (ADOLPHS; SEARS; PIVEN, 2001; PELPHREY et al., 2007; SPEZIO et al.,
2007; DALTON et al., 2007; ASHWINA et al., 2007; GOLARAI; GRILL-SPECTOR;
REISS, 2006; SCHULTZ, 2005; TIRAPU-USTÁRROZ et al., 2007). Assim, apontam essa
estrutura como tendo papel importante na sociabilidade, especificamente na relação com
outras pessoas e na conduta social, e o envolvimento de áreas frontais (VALDIZÁN, 2008).
De acordo com Boraston e Blakemore (2007), por muitas décadas, o rastreamento ocular
tem sido utilizado para investigar o comportamento de olhar em indivíduos normais. E

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estudos recentes têm expandido a utilização do rastreamento ocular para indivíduos com
transtorno do espectro autista. Tais trabalhos envolvem imagens e vídeos de pessoas ou
simplesmente faces humanas.
Estudos de análise dos movimentos oculares em indivíduos com autismo demonstram que é
possível quantificar e definir o fenótipo social dessa categoria diagnóstica. Duas vertentes
na pesquisa de movimento ocular com população autista vêm sendo exploradas. A primeira
verifica o padrão de fixações em relação a figuras sociais, para clarificação de como o
autista explora seu ambiente. A segunda vertente analisa propriedades dinâmicas dos
movimentos sacádicos em diferentes tipos de tarefas (SWEENEY et al., 2004). Pesquisas
que analisam os movimentos sacádicos demonstram dificuldades executivas na população
com TGD caracterizadas, principalmente por falta de regulação da atenção voluntária,
dificuldade em inibir um comportamento e direcioná-lo ao objetivo proposto na tarefa,
alteração no planejamento de ação e dificuldade para iniciação de resposta; enfim,
dificuldades executivas (MINSHEW; LUNA; SWEENEY, 1999; LUNA et al., 2007;
ORSATI et al., 2008). Já a vertente que estuda a percepção de estímulos sociais parte da
possibilidade de se investigar, de forma quantitativa, a disfunção social como fenótipo
presente no espectro autista por meio do monitoramento do padrão rastreio ocular desses
indivíduos (KLIN et al., 2002).
Segundo Geest et al. (2002a), o comportamento visual incomum de crianças autistas para as
faces humanas, como pode ser observado em situações da vida cotidiana, é investigado em
estudos do tempo de fixação do olhar dessas crianças. Segundo esses pesquisadores, as
faces humanas são estímulos significativos e especiais para indivíduos com
desenvolvimento normal, e isso pode não ser o caso de indivíduos com autismo. Com base
nisso, foi realizado um estudo com indivíduos autistas de alto funcionamento (incluindo
aqueles com TGD-SOE) e indivíduos normais com o objetivo de comparar, em fotografias,
o tempo de fixação visual em faces humanas como um todo e também em elementos
parciais dos rostos. Utilizaram-se fotografias de faces humanas com expressões
relacionadas a emoções e faces neutras, de cabeça para baixo e em posição normal. Os
resultados da pesquisa mostraram que o comportamento de fixação de crianças autistas é o
mesmo de crianças normais para as faces que estavam em posição normal, tanto para
expressões emocionais como para expressões neutras. Porém, com relação às faces de
cabeça para baixo, as crianças normais tiveram o tempo de fixação diminuído se comparado

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ao tempo de fixação para a posição normal dos rostos, o que já não ocorreu em crianças
autista. O tempo de fixação foi o mesmo para as duas disposições das faces. No entanto, os
autores reconhecem que esses achados limitam a generalização para a vida diária, pois
acreditam que a anormalidade no processamento visual de faces humanas não se deve ao
estímulo em si, mas sim à exigência requerida numa interação social (GEEST et al.,
2002b).
Segundo Spezio et al. (2007), a exploração visual alterada de faces humanas pode ser
atribuída aos déficits na cognição social. Esses autores, ao investigarem a relação entre
cognição social no autismo e o olhar para faces, mediram a fixação do olhar nas faces e
como as diferentes regiões faciais foram realmente exploradas durante o julgamento de
emoções. Pareados por quociente de inteligência (QI), nove crianças autistas de alto
funcionamento e nove controles foram testados. Notou-se que os autistas não utilizavam a
informação da região dos olhos para fazer julgamentos, focando muito mais tempo a região
da boca. Os resultados encontrados sobre a forma como os autistas fazem julgamentos de
expressões faciais fornecem uma nova maneira de avaliação quantitativa dos aspectos
cognitivos.
Um estudo realizado por Mercadante et al. (2006) teve como objetivo verificar as
diferenças nas estratégias de varredura visual de indivíduos com TGD, comparados a
controles normais na observação de figuras sociais e não sociais. Os sujeitos observaram,
por cinco segundos, nove figuras de seres humanos e três figuras de objetos. Os resultados
obtidos mostraram que o número de fixações e a maior duração de movimentos sacádicos
dos sujeitos com TGD revelam uma estratégia diferente para a exploração das figuras
humanas, e o padrão de investigação não foi modificado diante da observação de uma
figura humana que rompia com o estímulo esperado como apresentação da face humana,
omissão dos olhos.
Outro estudo também comparou o desempenho de crianças e adolescentes com TGD com
sujeitos normais no rastreio ocular de faces humanas. Foi observada diferença significativa
para o tempo de fixação na face inteira, e o grupo-controle despendeu maior tempo ao
rastrear as faces. Quando se manipulou a presença dos olhos nas faces, observou-se que o
grupo-controle apresentava mais fixações nessa região nas figuras em que os olhos haviam
sido removidos, no entanto, essa diferença não foi encontrada no grupo TGD. Tais achados
apontam para uma dificuldade da percepção do rosto como um todo pelos membros do

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grupo com TGD, pois se detiveram menos tempo nas faces e não perceberam que os olhos
haviam sido removidos, o que tem grande impacto para a cognição social (ORSATI, 2007).
Enfim, os estudos de rastreamento ocular no processamento de pistas sociais caracterizam-
se como uma linha promissora de pesquisa no autismo (KLIN et al., 2002).

Método
Foram avaliados 11 indivíduos com TGD, com idades entre 8 e 14 anos, pareados por sexo,
idade e quociente de inteligência com o grupo-controle. A amostra foi constituída por
indivíduos apenas do sexo masculino. Dentre os TGD, incluíram-se somente as desordens
do espectro autista: autismo, síndrome de Asperger e transtorno global do desenvolvimento
sem outra especificação. Excluíram-se sujeitos com comorbidades psiquiátricas ou
neurológicas associadas.
O diagnóstico clínico de TGD foi dado por um profissional experiente e como critério de
avaliação utilizou-se o autism screening questionnaire (ASQ). Uma escala de 40 itens
relacionados a comportamentos, comunicação e interação social com efetiva descriminação
para essa categoria diagnóstica foi traduzida e validada para a população brasileira
(BERUMENT et al., 1999; SATO et al., 2009). Para avaliação da inteligência, utilizou-se o
teste Wisc III (FIGUEIREDO, 2001).
A tarefa de rastreamento ocular consistiu em cinco telas compostas por quatro figuras cada
uma. As figuras são fotos coloridas com 9,5 cm de altura por 9,5 cm de largura, em
resolução de 300 dpi. As quatro figuras foram apresentadas simultaneamente em cada tela,
dispostas nos quatro cantos dela, equidistantes do centro e com espaço de 3 cm entre elas.
As quatro figuras foram classificadas como sociais (pessoas) e não sociais (natureza, objeto
e comidas). Cada tela era apresentada de forma automática por 10 segundos. Entre uma tela
e outra, apresentava-se, por 2 segundos, uma tela em branco com um ponto no centro, a fim
de garantir que os sujeitos sempre olhassem a tela subsequente a partir do mesmo ponto
central.
Foi utilizado o equipamento computadorizado Tobii® 1750 (Tobii Technology) para o
registro do padrão de movimentos oculares. O equipamento consiste em um monitor de 17
polegadas com resolução de 1280 x 1024 pixels, que tem embutida, em sua parte inferior,
duas câmeras de alta resolução com um amplo campo de captura necessária para a captação
dos movimentos oculares. Diodos embutidos geram raios infravermelhos necessários para

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gerar luminosidade e reflexão dos olhos do sujeito que possibilitam a identificação da


direção do olhar. O rastreio foi binocular, permitindo uma maior tolerância de movimento
da cabeça sem que se perca a calibração ou a precisão. O equipamento registra o
movimento ocular e possibilita a análise do padrão dos movimentos oculares com
informações sobre duração, localização e números das fixações e dos movimentos
sacádicos.
Os sujeitos foram posicionados a uma distância de 50 cm da tela do computador. O
equipamento foi calibrado para cada sujeito em função do tamanho da pupila e da curvatura
da córnea. Os parâmetros analisados nas tarefas de movimentos oculares foram: número de
fixações, tempo de fixação nas figuras e padrão de rastreamento ocular.
A análise dos padrões de rastreamento ocular foi feita com base no julgamento de dois
observadores que deveriam classificar os traçados da seguinte forma:
• Rastreamento organizado: caracterizado por traçados que representavam um padrão
organizado de exploração das quatro figuras.
• Rastreamento disperso: caracterizado por traçados que representavam padrão
desorganizado de exploração das quatro figuras.
• Rastreamento com omissões: os traçados revelam que uma, duas ou três figuras não foram
exploradas visualmente.

Resultados e discussão
Os resultados foram analisados com o programa estatístico SPSS, versão 13.0, conduzindo-
se teste t de amostras independentes para comparação dos resultados entre os grupos. O
intervalo de confiança adotado foi de 95% e nível de significância de 5% (p < 0,05). As
médias de idade e de inteligência avaliada por meio de QI mostraram-se semelhantes entre
os participantes com TGD e controle, como pode ser observado na Tabela 1.

Os participantes diagnosticados com TGD obtiveram pontuação média de 25 pontos no


ASQ. Todos os participantes com TGD pontuaram de acordo com os critérios diagnósticos

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do transtorno, distribuídos da seguinte forma: quatro participantes com sintomas mais leves
(pontuação entre 16 e 21) e sete com sintomas mais severos (pontuação acima de 22). As
diferenças encontradas na pontuação dessa escala refletem a heterogeneidade em relação ao
grau de comprometimento desses indivíduos. Isso é esperado, pois os TGD caracterizam-se
como um distúrbio complexo apresentando diferentes graus de severidade (GADIA;
TUCHMAN; ROTTA, 2004).
A fim de avaliar se os participantes com TGD diferiam dos controles na preferência por
escolha por algum tipo de figura, o número e a duração das fixações foram computados
para cada um dos tipos de figuras sociais (pessoas) e não sociais (natureza, objetos e
comidas). O número de fixações dos participantes com TGD nas figuras de natureza foi
menor que o dos controles. Não se observaram diferenças significativas entre os dois
grupos para os demais tipos de figuras: objetos, pessoas e alimentos. A análise do tempo de
fixação revelou que os sujeitos com TGD despenderam menos tempo explorando
visualmente as figuras de natureza, quando comparados com os demais participantes. Nas
demais figuras, não foram observadas diferenças significativas. Os valores de número e
tempo das fixações, bem como os níveis de significância, estão descritos na Tabela 2.

Embora tenha sido descrito na literatura que pessoas diagnosticadas com TGD apresentam
preferência para inspecionar visualmente figuras não sociais, como objetos, em detrimento
de estímulos sociais (KLIN et al., 2002), essa diferença não foi significativa no presente
estudo. Isso significa que, embora as pessoas com TGD tenham apresentado mais fixações
e com maior duração nas figuras de objetos, essa diferença não foi significativa. Essa
ausência de efeito pode ser explicada com base no que foi proposto por Geest et al.
(2002b). Esses autores relatam não haver nenhuma indicação de anormalidade no padrão de

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rastreamento visual quando se comparam pacientes com TGD e controles durante


visualização de objetos. Assim, sugerem que a alteração de padrões observada no padrão do
olhar em situações da vida cotidiana não estaria relacionada à natureza dos estímulos
visuais em si, mas com outros fatores, tais como: a interação social e organização da
observação. Esses fatores podem desempenhar um papel decisivo na apreensão de
estímulos visuais (GEEST et al., 2002b).
Em relação à duração das fixações para as diferentes figuras, tanto o grupo-controle como
os sujeitos com TGD não diferiram com relação ao tempo despendido na exploração visual
de figuras sociais. Tal ausência de efeito contrasta com o estudo de Mercadante et al.
(2006), em que os participantes com TGD gastaram mais tempo fazendo movimentos
sacádicos durante a exploração visual de figuras humanas, quando comparados com o
grupo-controle. No entanto, no referido estudo, as figuras foram apresentadas
separadamente, ou seja, um estímulo por tela, ao passo que, no presente estudo,
apresentaram-se quatro figuras simultaneamente. Essa diferença de procedimento pode
explicar os resultados aparentemente contraditórios, pois explorar quatro figuras demanda
maior complexidade de organização visuoperceptual. Assim, dado o fato de que foram
apresentadas várias figuras simultaneamente por tela e que cada uma delas poderia ter
efeito diferencial na determinação da atenção, os números de fixações para cada uma das
telas foram analisados separadamente.
A tela 1 era formada pelas seguintes figuras: rosto de uma mulher, doces de chocolate, um
trem e um cavalo-marinho. Não foram observadas diferenças significativas entre os dois
grupos para nenhuma das figuras. Assim, do total de fixações, observou-se uma
distribuição de aproximadamente 25% para cada uma das figuras. Embora os participantes
com TGD tenham apresentado uma porcentagem um pouco maior de fixações na figura de
um trem, essa diferença não foi significativa.
A tela 2 era composta pelas figuras: menina, panqueca, bicicleta e peixe. Análises revelam
que a figura da bicicleta foi a que chamou maior atenção tanto do grupo TGD (36%) quanto
do grupo-controle (48%), mas não se observou diferença significativa entre os dois grupos
(t[20] = 1,842; p = 0,080). Tais resultados podem estar relacionados com o fato de a figura
apresentada ser a de uma bicicleta. Esse objeto tipicamente desperta interesse de meninos
nessa faixa etária.

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Já a tela 3 era formada pelas seguintes figuras: mulher, pudim, piano e tucano. Análises
estatísticas revelam que o número de fixações na figura do piano foi significativamente
maior nos participantes com TGD do que nos controles (t[20] = 2,222; p = 0,038). Na
figura do tucano, observou-se uma tendência de os controles olharem mais para ela do que
os TGD (t[20] = 1,798; p = 0,087). O perfil da distribuição das fixações na tela 3 foi
semelhante ao da tela 1.
A tela 4 era formada pelas figuras: homem, sanduíche, chave e sol. A distribuição das
fixações nas figuras foi semelhante nos dois grupos. De modo geral, observou-se que a
figura do sanduíche chamou mais atenção dos participantes do que as demais. O padrão de
distribuição das fixações da tela 4 foi semelhante ao da tela 3.
Por fim, a tela 5 era formada pelas seguintes figuras: menino, bolo, ônibus e lago. Análises
estatísticas revelam que os participantes com TGD apresentaram padrão oposto aos
controles durante a inspeção visual da figura de lago e de ônibus. Dessa forma,
participantes com TGD apresentaram menos fixações na figura de lago do que os controles
(t[20] = 3,418; p = 0,003). A média de fixações no ônibus, embora tenha sido maior para os
participantes com TGD, não demonstrou uma diferença significativa.
Em suma, os participantes com TGD olharam mais para as figuras de objetos (piano e
ônibus) do que os controles em duas das cinco telas do estudo. Observou-se também que os
controles olharam mais para a figura de lago do que os participantes com TGD. De modo
geral, não foi possível observar diferenças significativas quanto ao número de fixação em
relação às preferências por figuras entre grupos.
A fim de melhor compreender os padrões de rastreamento ocular durante a inspeção das
telas, decidiu-se analisar os traçados oculares dos participantes em cada uma das telas. Para
isso, um pesquisador analisou qualitativamente os traçados produzidos e identificou três
padrões de rastreamento: organizado, disperso e com omissão de figuras. O rastreamento
organizado caracteriza-se pela ocorrência de fixações e movimentos sacádicos em todas as
quatro figuras da tela. A Figura 1 (esquerda) ilustra as fixações (círculos) e os movimentos
sacádicos (linhas retas) produzidos por um participante durante a exploração visual da tela
5. O rastreamento disperso caracteriza-se pela exploração visual das quatro figuras, mas
com mais de três alternâncias entre as figuras ou com fixações fora da região das figuras. A
Figura 1 (centro) ilustra as fixações e os movimentos sacádicos produzidos por um
participante com padrão de rastreamento disperso durante a exploração visual da tela 1. O

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padrão de omissão de figuras caracteriza-se pela omissão de fixações em pelo menos uma
das 4 figuras. A Figura 1 (direita) ilustra as fixações e os movimentos sacádicos de um
padrão de rastreamento com omissão.

Após a identificação dos três padrões de rastreamento visual, outro pesquisador fez o
julgamento dos traçados de acordo com os padrões. Foram observados altos índices de
concordância, sendo considerado um bom critério de julgamento. A análise dos resultados
indicou que o padrão de rastreamento organizado foi significativamente maior do que o
disperso (t[21] = 5,449; p < 0,000) e de omissões (t[21] = 4,407; p < 0,000) para todos os
participantes. Não foram observadas diferenças significativas entre os padrões de
rastreamento disperso e omissão. A fim de analisar o efeito da condição, o teste t de
amostras independentes foi conduzido comparando participantes com TGD e controles. Os
resultados indicaram que os sujeitos com TGD apresentaram mais padrões de omissão do
que os controles (t[20] = 2,362; p = 0,028). Além disso, os participantes com TGD usaram
menos estratégias de rastreamento organizado do que os controles (t[20] = 4,249; p <
0,000). A Tabela 3 apresenta os valores absolutos de utilização de cada um dos tipos de
rastreamento, tanto para os participantes com TGD quanto para os controles.

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Os resultados obtidos com base na análise dos padrões de rastreamento ocular indicam que
os participantes dos dois grupos são capazes de observar todas as telas apresentadas, ainda
que com padrões diferentes. O fato de os participantes com TGD apresentarem mais
padrões de omissão pode explicar o prejuízo na atenção dada ao estímulo e por
consequência o input de informações do ambiente. Tal dificuldade pode acarretar, por
exemplo, prejuízo na compreensão do ambiente e, por consequência, na atuação nele. Além
disso, a alta frequência desse padrão pode se relacionar com dificuldade de organização,
regulação da atenção e habilidades executivas. Essas omissões poderiam ser explicadas
como dificuldades no planejamento e inibição do olhar em direção a algumas figuras e
direcioná-lo para outras. O fato de os participantes com TGD apresentarem menos padrões
de rastreamento organizados corrobora os achados de dificuldades visuoperceptuais,
atencionais e executivas nesse grupo. Assim, tais características parecem corroborar os
prejuízos encontrados em crianças com TGD na execução de atividades na vida cotidiana
(PENNINGTON; OZONOFF, 1996; HILL, 2004; ORSATI et al., 2008), ou seja, na
cognição social, que é definida como habilidade de interpretar adequadamente os signos
sociais e, consequentemente, responder de maneira apropriada a eles (BUTMAN;
ALLEGRI, 2001).
A possibilidade de melhoria nos métodos para quantificar e medir o fenótipo social no
autismo requer técnicas experimentais mais sensíveis que recriem no laboratório demandas
naturais presentes na vida cotidiana. Hipotetiza-se que a tarefa utilizada tenha baixa
validade ecológica pelo fato de a situação experimental usar estímulos fora de contextos.
Essa característica do delineamento do estudo pode explicar a ausência de efeito, sendo o
perfil dos sujeitos com TGD semelhante ao de sujeitos normais. Isso pode significar que as
diferenças entre crianças e jovens com TGD e normais são sutis, e pesquisas devem
promover estímulos naturais para observar diferença nos padrões de movimentos oculares e
realizar análises qualitativas dos tipos de padrões de rastreamento.

Conclusão
Os resultados obtidos no presente estudo indicam padrão semelhante na percepção visual de
figuras sociais e não sociais por participantes com TGD e controles. Embora os sujeitos
com TGD tenham observado mais figuras de objetos do que as de pessoa, natureza ou
alimento, essa diferença não foi significativa. Ainda que o padrão de rastreamento visual

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mais frequente dos sujeitos do grupo TGD tenha sido o do tipo organizado, observa-se alta
frequência de ocorrência dos padrões desorganizados e com omissão de figuras.

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Endereço para correspondência

Elizeu Coutinho de Macedo


Rua da Consolação, 896 – 6o andar (sala 62)
Consolação – São Paulo – SP
CEP 01302-907
e-mail: elizeumacedo@uol.com.br ; feorsati@terra.com.br

Tramitação
Recebido em outubro de 2009
Aceito em dezembro de 2009

1
Este estudo contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e do Fundo Mackenzie de Pesquisa (MackPesquisa).

Rua Itambé, 45 - Edifício 14 - 1º andar


São Paulo - SP
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fone: (11) 3236-8142
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revistapsico@mackenzie.com.br
ORSATI, Fernanda Tebexreni et al . Padrões perceptuais nos transtornos globais do desenvolvimento:
rastreamento ocular em figuras sociais e não sociais. Psicol. teor. prat., São Paulo , v. 11, n. 3, p. 131-142,
2009 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
36872009000300011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 09 maio 2018.

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Texto 3

Transtornos globais do desenvolvimento e escolarização: o conhecimento


em perspectiva

Carla K. Vasques; Claudio Roberto Baptista


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS - Brasil

RESUMO

O presente artigo aborda a escolarização de sujeitos com Transtornos Globais do


Desenvolvimento (TGD) a partir de 107 teses e dissertações produzidas no período entre
2000-2012, das diretrizes inclusivas e da hermenêutica-filosófica. Considerando os temas
abordados, as questões recorrentes, as lacunas e as epistemologias, são analisadas as
concepções de TGD, de escola e escolarização. Como resultados: o incremento dos
estudos; a proliferação dos sentidos sobre estes alunos e as possibilidades escolares; a
atualização de antigos impasses perante o novo, o diferente. Se, no âmbito dos princípios,
são reconhecidas a igualdade e as diferenças, no âmbito das pesquisas ainda persiste a
noção do diferente como desigual.

Palavras-chave: Educação Especial. Escolarização. Transtornos Globais do


Desenvolvimento. Estado do Conhecimento.

O ímpio afirma que o contrassenso é normal na Biblioteca, e


que o razoável (ou mesmo a humilde e pura coerência) é uma
miraculosa exceção.
Jorge Luis Borges. A Biblioteca de Babel

A inclusão, compreendida a partir do movimento que defende a universalização dos direitos


humanos, desponta como perspectiva norteadora das políticas públicas, das propostas de
atendimento e de formação profissional em diferentes áreas do conhecimento e setores
sociais1. Nas últimas décadas, a educação especial tem contemplado os influxos dessa
discussão no que se refere ao acesso de alunos com deficiências no ensino comum e,
sobretudo, ao pertencimento a estes espaços a partir do reconhecimento da alteridade. Tais
preposições suscitaram um grande número de debates e produções voltados, dentre outros,
para o atendimento educacional especializado, a implementação das políticas, a formação
de professores, o currículo e a gestão. Apesar desses movimentos, é ainda amplo o

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desconhecimento sobre a educação escolar frente às demandas inclusivas (Baptista; Caiado;


Jesus, 2008).
A fim de construir um horizonte compreensivo que tenha como pressuposto a valorização
dos processos de escolarização, percorreremos os caminhos da produção científico-
acadêmica brasileira, teses e dissertações. Diferentes autores justificam a importância de
inventariar e sistematizar determinadas áreas e temáticas no sentido de compreender os
movimentos, a amplitude, as tendências teóricas e metodológicas. Além de contribuir para
o avanço do conhecimento, tal esforço, afirmam, é capaz de incidir no âmbito das práticas
docentes e dos processos de democratização e qualificação da escola e da educação
(Ferreira, 2002; Sander, 2007). Compartilhamos estas apostas tendo por foco as pesquisas
produzidas no período de 2000-2012, o campo dos Transtornos Globais do
Desenvolvimento (TGD) e as lentes da hermenêutica filosófica.
Hans-Georg Gadamer (1900-2002), filósofo alemão, discute, em Verdade e Método, obra
de 1960, o acontecer da compreensão. O compreender por meio da interpretação. O diálogo
entre a tradição e o intérprete; os aspectos linguísticos da compreensão versus a
impossibilidade de uma interpretação objetiva.
A compreensão é uma pré-condição para a existência do homem. A consciência de que ele
próprio e o mundo existem. O objetivo não é validar uma interpretação e compor uma
verdade unitária. Trata-se, antes, de renunciar à busca de um fundamento último do qual
emanam certezas absolutas; questionar modelos cristalizados que objetivam e naturalizam a
condição humana; defender a historicidade dos conceitos, que precisam de constantes
interpretações.
Nesse processo, Gadamer (2007) afirma a centralidade da lingua-gem nas produções
humanas. Escrevemos aquilo que compreendemos. E não compreendemos aquilo que a
linguagem não consegue descrever, construir, inscrever. Morada do ser, o sujeito e o
mundo são seres da linguagem. Existe, contudo, um resto que a palavra, a letra, não
recobre. Um impossível, um vazio de essência e determinação a partir do qual se constrói
um saber sempre contingencial. Ao esvaziar a condição humana de uma substancialidade
prévia, seu pensamento permite pensar o estar no mundo como uma posição enunciativa
construída na relação com a cultura, com o simbólico, com o outro.
Como se compreende? Trata-se de um ato carregado de preconceitos e pressuposições. Daí
a importância de um movimento contínuo de autoesclarecimento acerca dos nossos juízos e

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pressupostos. O processo reflexivo sobre as bases do proceder é fundamental, pois o não


esclarecimento leva à desresponsabilização (Hermann, 2002).
Em uma pesquisa do tipo bibliográfico, tais pressupostos transcendem a convencionalidade
da leitura, do fichamento ou da utilização mecânica das informações. A potência não reside
no mapeamento de informações, apesar de esta constituir-se como uma etapa fundamental
do processo, mas nas inúmeras possibilidades advindas do ato de interpretar. Da interação
entre o texto e o leitor, despontam múltiplas tonalidades compreensivas. Arte de ler o
invisível, de olhar mais além e de reparar. Artes que se fazem por meio de uma outra arte, a
do diálogo. Diálogo a ser estabelecido no sentido de abertura ao outro, apostando na
produtividade de se expor e assumir uma postura reflexiva. Não se trata, porém, de um
esforço tradutor ou conciliador, mas do de oferecer visibilidade às diferenças e, quem sabe,
criar redes de inteligibilidade entre elas.
Com os fios da teoria, das normativas legais que dão borda à experiência da vida e das
pesquisas inventariadas, tramamos as perguntas que orientam nossa reflexão sob a
inspiração do ensaio (Adorno, 2003), oferecendo consistência aos argumentos pela tessitura
dos fios, e não pela busca de uma definição.

Do Inventário Enciclopédico à Construção do Acervo: gestos de leitura


Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o
que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para
começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase
como respirar, é nossa função essencial.
Alberto Manguel, Uma história da leitura.
O ponto de partida desta investigação foi à valorização das perguntas: quais os
conhecimentos produzidos, entre os anos de 2000 e 2012, nos programas de pós-graduação
brasileiros sobre sujeitos com Transtornos Globais do Desenvolvimento?2 Quais as áreas
envolvidas? Qual o lugar conferido à escolarização?
As bases de dados utilizadas para o levantamento das fontes documentais foram o Portal
Capes (Teses e Dissertações) e a BDTD (Biblioteca Digital de Teses e Dissertações).
Como categorias de busca, palavras-chave, utilizamos nomenclaturas referendadas pelos
diferentes campos teóricos que abordam esse tema: autismo; autismo infantil; psicose
infantil; distúrbios globais do desenvolvimento; transtornos invasivos do desenvolvimento;

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transtornos globais do desenvolvimento; asperger; espectro autístico; condutas típicas. Em


um segundo momento, cruzamos tais termos com os seguintes buscadores: educação;
escolarização; atendimento educacional especializado; inclusão escolar.
Identificamos 366 produções acadêmicas distribuídas entre os anos de 2000 e 2012. As
referências foram acessadas integralmente, constituindo o acervo ou corpus documental da
pesquisa. Quanto aos procedimentos analíticos, lemos, inicialmente, todos os resumos.
Posteriormente, organizamos um banco de dados com as seguintes categorias: áreas do
conhecimento; instituições de ensino superior e regiões geográficas; periodicidade dos
estudos; níveis de mestrado e doutorado; objetos de investigação e metodologias3. Deste
primeiro gesto de leitura, obtivemos um panorama da produção discente. Posteriormente, os
trabalhos que faziam menção, direta ou indiretamente, à escolarização foram lidos
integralmente.
O campo dos Transtornos Globais do Desenvolvimento, do autismo e das psicoses infantis
têm uma história recente e complexa. Desconhecidos, inicialmente, como entidade, faziam
parte do grande grupo das idiotias, categoria nosográfica vigente até o século XIX que
englobava um conjunto de problemas deficitários.
O processo de transformação desses conceitos ocorreu a partir do século XX e pode ser
subdividido em dois grandes momentos. O primeiro deles corresponde aos primeiros 40
anos, quando o movimento inicial - e essencial - foi o de aceitação da existência de
psicopatologias na infância. O segundo momento caracteriza-se pela revolução na história
das psicopatologias, o que ocorreu a partir de 1943, com as publicações de Leo Kanner.
Mais importante do que a descrição de um novo quadro nosológico - o Distúrbio Autístico
do Contato Afetivo -, seu ato definiu uma psicopatologia própria da infância e da criança
(Berquez, 1991).
O quadro descrito por Kanner foi amplamente difundido entre os profissionais. Tornou-se,
contudo, evidente que nem todas as crianças apresentavam características similares às
identificadas inicialmente. Criaram-se, desse modo, inúmeras investigações sobre os
problemas do desenvolvimento e, sobretudo, intensificaram-se as controvérsias ligadas à
terminologia e à etiologia.
Analisando-se as fontes documentais, observamos a continuidade dos embates teóricos e
conceituais. As opiniões e as perspectivas são díspares e polêmicas, não havendo consenso
em relação a quem são esses sujeitos, quais as suas possibilidades subjetivas, sociais,

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educacionais e quais as estratégias ou recursos que podem favorecer (ou não) o seu
desenvolvimento, constituição, escolarização etc.
Tamanha complexidade convocou 248 pesquisadores das Ciências Humanas (67,8%), 80
das Ciências da Saúde (21,9%), 24 da Linguística, Letras e Artes (6,5%), 10 das Ciências
Biológicas (2,8%), dois das Engenharias (0,5%), um das Ciências da Computação (0,25%)
e um das Ciências Exatas (0,25%). Considerando as áreas, na psicologia encontramos a
maior concentração de pesquisas (175 = 71%), seguida pela educação com 73 documentos
(29%).
Identificamos cinco grandes eixos temáticos: escolarização (107 = 29,3%), terapêuticas e
terapias (101 = 27,6%); avaliação, escalas e testa-gens (90 = 24,6%); diagnóstico/etiologia
(51 = 13,9%); inclusão social (17 = 4,6%).
De forma geral, o acervo manifesta o frágil e recente interesse dos poderes públicos na
construção de dispositivos legais que permitam maior agilidade e qualidade assistencial,
escolar e clínica; os processos relacionados à avaliação (escalas e testagens), às terapêuticas
e terapias e, sobretudo, à escolarização como temáticas privilegiadas pelos auto-res e
teorias; o diálogo ainda incipiente entre as disciplinas. Há também alguns consensos: certa
unidade em relação à multiplicidade de expressões clínicas e subjetivas, a precariedade dos
serviços oferecidos e a provisoriedade dos conhecimentos até então construídos.
Em meio a tantas verdades, o acervo pode ser considerado como lugar de contiguidade e
ruptura. Continuidade com o discurso científico moderno, com o prestígio do pensamento
matemático como medida de todas as ciências e da própria filosofia; com a crença da razão
como forma única de conhecer a verdade, suspeitando-se de todo o conhecimento, intuitivo,
estético etc.; com a liberdade incondicional do homem para reger seu destino; com ideias e
ideais de sujeito e autonomia; com a convicção de que se pode ignorar a tradição,
dedicando-se inteiramente ao futuro (Chauí, 2005; Hermann, 2002).
Manguel (2006) afirma que, frente a essa leitura clara, diurna, sistemática e estruturada,
podemos construir outra forma de ler: noturna, adúltera, com limites e certezas borrados.
Nesse sentido, o acervo pode ser lido também como questionamento desse ideal científico e
da racionalidade técnica que lhe é característico; do método como única forma válida de
construção do conhecimento; das amarras epistemológicas e grades de registros. Buscam-
se, assim, rupturas capazes de abalar, perturbar, a familiaridade do nosso pensamento, das
nossas formas de ler, perceber e interpretar.

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Um segundo gesto de leitura deteve-se na geografia acadêmico-científica dos 107


documentos relativos ao eixo escolarização. Como o tema é abordado? Quais as questões
recorrentes, as lacunas e as tendências?
É no jogo entre o familiar e o estranho, o legível e o ilegível, que a perspectiva
gadameriana situa as possibilidades de compreender. Entre tradição, texto e intérpretes,
uma delicada trama institui e modifica sentidos, ressignifica diretrizes, alternativas,
impasses e disputas interpretativas. Não há um único sentido, tampouco se pode tudo saber,
conhecer, interpretar. Este limite permite contrapor a objetivação, a domesticação e a
tiranização do outro, do diferente, por vezes engendradas em leituras ingênuas
ou politicamente corretas.
Com tal impulso ético, propomos a conversação entre produção discente e as políticas de
educação especial. É importante sublinhar que grande parte das pesquisas sobre
escolarização não se referem aos documentos legais e normativos diretamente, há alusões,
notas de rodapé e silêncios ruidosos, principalmente quando se foca o fazer docente. É
como se a prática pedagógica, o ensinar e o aprender fossem autodeterminados. Tomamos
outra via interpretativa ao compreendermos que a letra da lei direciona, produz e inscreve
contornos importantes no estado do conhecimento. Não se trata, porém, de continuidade,
interdependência direta ou de subserviência. As políticas colocam problemas para os
sujeitos e as instituições. A teoria e o esforço intelectual permitem uma discursividade
diferente ao desvelarem, subverterem e interrogarem naturalizações e objetivações,
construindo certa alteridade em relação aos interesses políticos e a imediatismo da prática.
O texto político estabelece contornos de uma realidade cuja qualidade se joga na arena das
disputas, resistências e embates. A letra da lei não circunscreve completamente as
possibilidades do acontecimento. Como letra, implica leitura. E como leitura implica - por
mais que queira varrer o equívoco de seu enunciado - abertura aos sentidos. A leitura nunca
é linear, unívoca ou consensual.

A Escolarização entre Rupturas, Repetições e Esquecimentos: rastros de uma leitura

Porque buscamos definições de identidade nas palavras e qual é,


nessa busca, o papel de contador de histórias? Como a linguagem
determina, delimita e amplia nossa imaginação [e construção]

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do mundo? Como as histórias que contamos nos ajudam a perceber


a nós mesmos e aos outros? E, para concluir, as histórias
serão capazes de mudar quem somos e o mundo em que vivemos?
Alberto Manguel, A cidade das palavras.
À margem da agenda política do Estado, a educação especial tradicionalmente se organizou
como atendimento educacional especializado, em classes e escolas especiais, substitutivo
ao ensino comum. Espaços e propostas diferenciados para aqueles que, por suas qualidades
sociais, culturais, genéticas, comportamentais etc., diferiam da normalidade. Para as lentes
do Estado, dos professores, dos especialistas e pesquisadores, ser diferente era ser anormal,
justificando a desigualdade de escolarização, de acesso e permanência na escola.
A persistência, o crescimento e aprofundamento deste quadro, em conjunto com a
universalização da educação básica e as conferências internacionais que versam sobre os
que estão do lado de fora, introduziram no cenário político as diretrizes inclusivas. Nesse
sentido, o Brasil implementou uma série de leis, políticas e programas voltados para a
redução da desigualdade e inclusão escolar.
Nos últimos 19 anos, a educação especial acompanha tal movimento ao ressignificar-se
como área de conhecimento e modalidade de atendimento educacional. A Resolução n.
02/2001 CNE-CEB, por exemplo, avança ao prever escolarização necessariamente no
ensino comum. Nessa mesma década, percebemos uma série de iniciativas com vistas à
ampliação dos sujeitos a serem escolarizados (Baptista, 2011).
Com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de
2008, esse enfoque se adensa:
Para além de um documento orientador, a Política passa a se constituir um marco na
organização do sistema educacional inclusivo [...] fortalecendo o conceito de educação
especial que não concebe, nem em caráter extraordinário, a utilização desse atendimento
em substituição à escolarização realizada no ensino regular (Griboski, 2008, p. 57).
Neste texto e nos documentos legais que o sucederam, os sujeitos com TGD têm pela
primeira vez garantida a sua escolarização, sendo identificados como aqueles que
apresentam:
[...] quadro de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento nas
relações sociais, na comunicação, estereotipias motoras. Incluem-se nessa definição alunos

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com autismo clássico, síndrome de Asperger, síndrome de Rett, transtorno desintegrativo


da infância (psicoses) e transtornos invasivos sem outra especificação (Brasil, p. 9, 2008).
É um nascimento simbólico para essas crianças e adolescentes no campo da legislação
educacional, acompanhado pela possibilidade de questionarmos diagnósticos realizados
segundo categorizações fechadas.
As definições do público alvo devem ser contextualizadas e não se esgotam na mera
categorização e especificações atribuídas a um quadro de deficiência, transtornos,
distúrbios e aptidões. Considera-se que as pessoas se modificam continuamente
transformando o contexto no qual se inserem (Brasil, 2008).
As deficiências e os TGD são descritos não só com alterações orgânicas estruturais ou
funcionais, mas como decorrentes também das relações humanas, econômicas, sociais etc.
Na constituição do sujeito como deficiente, deficitário, ou não, sublinha-se a força dos
encontros, da cultura, das políticas como possibilitadoras ou limitadoras do humano.
O ordenamento legal transforma a escola e o incremento das matrículas é percebido nas
bases censitárias e nas pesquisas. O direito à educação garante acesso à escolarização. Os
direitos à igualdade e à diferença reorganizam os serviços, os conceitos e os profissionais
envolvidos com o contexto escolar, tencionando novos contornos também no âmbito das
pesquisas4. Reescrevem-se as agendas sociais, políticas e científico-acadêmicas.
É nesta processualidade histórica, cultural e política que compreendemos o paulatino
aumento no número de pesquisas atentas aos processos de escolarização, bem como os
temas e suas abordagens.
De acordo com o Gráfico 1, percebemos o aumento de 150% no número total de pesquisas,
entre os anos de 2000-2012. Destas, 77 (71,9%) são de mestrado e 30 (28,1%) de
doutorado.

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Temos 32 Instituições de Ensino Superior (IES), com concentração nas Regiões Sudeste e
Sul, e predominância da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (18); Universidade
Federal de São Carlos (17); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (11); Universidade
de São Paulo (8) e Universidade Católica de Brasília (7).

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Escolarização, como categoria ordenadora e classificatória, refere-se aos direitos à


educação, à igualdade e à diferença; à implementação das políticas de educação especial na
perspectiva inclusiva no âmbito dos sistemas de ensino, das salas de aula e nas formas
organizativas do trabalho pedagógico; ao ensino comum como espaço prioritário para ser
aluno; à aposta na educabilidade. Tais questionamentos, tensionamentos e
intencionalidades, conforme a Tabela 2 perpassaram diversos campos do conhecimento.

Resumir, condensar e estruturar: movimentos que, ao construírem visibilidades e luzes,


produzem, paradoxalmente, seleções, esquecimentos e sombras. No esforço de descrever e
compreender o estado do conhecimento sobre escolarização de sujeitos com TGD, cabe-
nos, novamente, ressaltar: a presença de palavras, temas e subtemas comuns não implica
compartilhar ideias e ideais. Não há uma única leitura sobre aluno, escola, educação,
inclusão escolar etc. A existência de múltiplas interpretações impede consensos em relação
aos alunos, suas possibilidades de aprendizagem e escolarização, bem como sobre a função
da escola e da educação. Tais dissonâncias, se compreendidas a partir de uma
processualidade histórico-cultural, não constituem um limite teórico-prático. Ao contrário,
a pluralidade de sentidos pode representar um primeiro passo no sentido de admitir

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soluções diferentes para as questões suscitadas no encontro com estas crianças e


adolescentes.
Classificação gera classificação, afirmam Borges (2007) e Perec (2006). Um novo gesto de
leitura arrolou as pesquisas segundo seis amplos temas (Tabela 3), desdobrados em
subtemas de acordo com as especificidades elencadas pelo autor5.

Como ensinar tais crianças e adolescentes e o que eles podem aprender? Da mensuração
das habilidades e dos perfis considerados típicos do autismo derivam processos de ensino e
aprendizagem. É preciso identificar, avaliar e descrever comportamentos a fim de definir
planos de ensino e metas de aprendizagem. Quais programas de ensino e de treinamento
estruturados? A Metodologia TEACCH - Treatment and Education of Autistic and
Communication Handicapped Children, o CFN - Currículo Funcional Natural e o PEI -
Programa de Ensino Individualizado são considerados os mais adequados para as
especificidades dos sujeitos em questão6.
Em outra perspectiva, os processos de ensino e aprendizagem são construídos no encontro
entre sujeitos e instituições. Importa refletir sobre como a aprendizagem é concebida pelo
professor; enfatizar o corpo como possibilidade de intercomunicação (gestos,
deslocamentos, olhares); compreender a dinâmica relacional desse alunado e suas
demandas para o docente. Como incidem os preconceitos, as representações sociais e os
estigmas nas formas de ensinar e aprender são perguntas que motivam pesquisas
qualitativas, estudos de caso individuais ou grupais.
Considerando as dificuldades relacionais e os problemas de fala e linguagem, é possível
pensar os recursos computacionais e tecnológicos como mediadores do ensino e da
aprendizagem? A acessibilidade ao currículo, à comunicação e à tecnologia facilita o

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desenvolvimento da interação social ao permitirem a inclusão escolar de crianças com


autismo, afirmam alguns pesquisadores.
Diferentes estudos focam o trabalho pedagógico em um contexto inclusivo: quais
didáticas, conteúdos e técnicas são mais adequados para a prática em sala de aula? Como
organizar os tempos e os espaços escolares? Como adaptar currículos, planos de ensino e de
aula? Como avaliar quem parece não aprender? Qual formação continuada, estratégias,
metodologias e conhecimentos são necessários para o desenvolvimento de didáticas e
técnicas atentas às necessidades educativas especiais dos autistas?
As pesquisas abordam diferentes e, por vezes, conflitantes perspectivas teóricas, como, por
exemplo, a Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural, o materialismo histórico, a
perspectiva sistêmica e psicanalítica a fim de sublinhar a importância de uma postura crítica
reflexiva, da docência compartilhada e da inovação pedagógica como condição de
possibilidade.
Quem são estas crianças? O que é o autismo? Como aprendem? Quais suas características,
manifestações e tipologias? Como são identificados nas escolas e nas redes de ensino? Na
categoria diagnóstico, avaliação e processos de identificação, encontramos estudos
provenientes da educação, da psicologia, da fonoaudiologia e da saúde pública. Duas
perspectivas distintas são apresentadas: uma primeira, identifica e mensura os aspectos
instrumentais das crianças com autismo (ou espectro autista) a fim de desenvolver e validar
escalas e protocolos capazes de subsidiar programas educacionais individualizados e
tratamentos psicoeducativos. Outro grupo de pesquisadores interroga os sistemas
classificatórios e seus influxos nos processos de escolarização; o modelo médico e o
esvaziamento do lugar e do professor em decorrência de uma leitura que considera os
sujeitos com TGD como deficitários e inaptos, que hipervaloriza o conhecimento dos
especialistas em detrimento do saber construído na experiência escolar. Tais pesquisas
interrogam estes temas nas redes de ensino, na escola, na sala de aula, nas publicações e
documentos especializados e acadêmico-científicos. Em busca de alternativas, muitos
apostam no modelo social de deficiência como referência capaz de construir novas
interpretações. Afirmam que a discriminação, as desvantagens e as incapacidades
associadas aos TGD decorrem de inúmeros fatores, dentre os quais as representações
sociais que banalizam o direito à educação e naturalizam as desigualdades escolares ao

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denegarem as condições sociais, políticas e econômicas na construção das


(im)possibilidades de ser e estar na escola.
Como se estabelecem as relações entre o educar e o tratar? Quais são as condições para que
o ensinar e o aprender se constituam? Partindo da função constitutiva da escola e da
educação, os pesquisadores focam as relações entre a clínica e a escola. A presença de
impasses e descompassos na convivência entre a comunidade escolar e alunos com TGD e
os sofrimentos decorrentes desse encontro são temas que atravessam a inclusão escolar.
Não se valora tampouco se considera como semelhante qualquer um e, para ocorrer tal
reconhecimento, é necessário um trabalho a fim de que a não semelhança, ou ainda, a
alteridade não se torne uma ameaça. Como o diálogo entre o tratar e o educar, entre a
clínica e a escola incide na constituição dessa possibilidade? Como sustentar estes
percursos quando se percebe uma visão que valoriza a dimensão socializadora da escola em
detrimento da sistematização dos conhecimentos formais?
Estudos abordam a leitura e a escrita como subjetivantes para tais crianças; a partir da
clínica psicopedagógica, psicanalítica e da inclusão escolar no ensino público, pesquisas
tratam as especificidades destas produções, devido ao transbordamento da subjetivação
psicótica no texto, da estranheza que tais escritas e leituras causam no espaço escolar e das
possibilidades de construção do conhecimento para estes sujeitos desde que tal
estranhamento não seja naturalizado, domesticado. Os autores defendem a necessidade de
construir espaços de reconhecimento e valoração da singularidade, a fim de que a escola
ocupe uma função constitutiva e terapêutica.
Quais os limites e possibilidades derivadas do acesso e permanência no ensino comum?
Como sustentar a inclusão escolar de alunos com TGD? Quais seus efeitos para a escola, a
gestão e o trabalho docente? Como temas a serem pesquisados, destacam-se as
significações, os impasses e as representações dos professores; os efeitos destas
representações nas relações entre escola, família e alunos; o encaminhamento para a escola
comum, o ingresso nesse espaço e as estratégias para a permanência e evolução no ensino
fundamental e na educação infantil.
Apostando na educabilidade e, principalmente, na abordagem histórico-cultural como lente
teórica e ética, pesquisas apresentam o delicado e laborioso caminho em direção à
alfabetização, ao lugar de aluno como aprendente e à possibilidade de habitar a escola em
seus múltiplos espaços e margens.

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Em outra vertente investigativa, pesquisadores focam o despreparo dos sistemas de ensino,


das famílias, dos professores e das próprias crianças frente às demandas associadas à
inclusão escolar. Com base no relato de docentes e de pais, arrolam falhas, impasses e
sofrimentos oriundos de uma escola que tem por métrica a normalidade e a produção
homogênea de fazeres e saberes.
Qual o lugar da família nos processos de escolarização? Como estabelecer relações que
permitam um trabalho cooperativo? A família pode escolher qual o espaço mais adequado
para matricular seu filho com TGD? Procurando apreender as percepções, os pontos de
vista de pais, irmãos e/ou cuidadores em relação aos tratamentos, vivências institucionais,
relacionais etc., autores ocuparam-se das relações entre escola e família no contexto do
atendimento educacional especializado, da escola especial e daquela comum.
O tema circunscreve ainda um universo de significações, representações, afetos e reações
decorrentes do convívio com a criança ou o adolescente autista no âmbito doméstico e/ou
escolar. Por meio de estudos de casos, qualitativos e quantitativos, descreve-se, mensura-se
e interpreta-se a dinâmica familiar, os estilos comunicativos e, mais recentemente, as
estratégias de coping, ou seja, os recursos utilizados pelos familiares para adaptarem-se a
circunstâncias adversas, tais como os esforços despendidos para lidar com situações
estressantes, crônicas ou agudas, advindas dos comportamentos inadequados,
estereotipados, agressivos de seus filhos ou irmãos. Capacitar o profissional da saúde e da
educação para atender tais demandas, por meio de atendimento clínico e programas
educacionais, bem como para identificar as nuances e as alterações do funcionamento
familiar para, então, propor intervenções são alguns objetivos destes pesquisadores.
Em nosso breve mapa do estado do conhecimento sobre a escolarização de sujeitos com
TGD, chama atenção à presença incipiente de estudos que tematizam o atendimento
educacional especializado como ação complementar; a recorrente pergunta pelos limites e
impossibilidades da inclusão escolar no contexto, inclusive físico, das escolas e classes
especiais; a formação de professores centradas prioritariamente nos aspectos técnicos e
instrumentais de um saber-fazer profissional; a educação infantil como lócus prioritário das
ações inclusivas.
Quais concepções de TGD, de escola e escolarização fundamentam os estudos? A fim de
ampliar nossos horizontes compreensivos, fez-se necessário colocarmos em perspectiva as
vertentes epistemológicas em relação aos temas e subtemas categorizados.

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Segundo os aportes teóricos de Sanchez Gamboa (1996) e Turato (2005), 17 (15,8%)


documentos situam-se na perspectiva empírico-analítica ou quantitativa. Esses estudos
justificam-se a partir de pressupostos positivistas, como, por exemplo, a compreensão da
ciência como atividade neutra e objetivada; a racionalidade técnica e instrumental; o sujeito
e objeto separados para garantir a imparcialidade científica etc. O objetivo principal é
estabelecer relações de causalidade entre os fenômenos considerados típicos do autismo a
fim de aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, de avaliação e trabalho pedagógico.
A avaliação e a descrição minuciosa dos comportamentos observáveis são, para tanto,
fundamentais. Com elas constroem-se distinções e fronteiras no espectro ou continuum
autístico. Por meio de pesquisas experimentais ou quase experimentais generalizam-se
percursos, didáticas, planos de ensino e programas de treinamentos.
Os procedimentos de investigação são objetivos e visam atingir medidas ou reflexões
acuradas do objeto, tidas como independentes do pesquisador. Acredita-se na possibilidade
de mensurar e predizer aspectos relacionados aos sujeitos com TGD e sua realidade.
Passíveis de quantificação e de análise estatística, esses aspectos são susceptíveis de
organizações sistemáticas, como, por exemplo, repertórios comportamentais, perfil
comunicativo, adaptativo, cognitivo etc. Estas descrições são centrais para o processo
educacional, na medida em que organizam currículos e propostas de intervenção em
contextos residenciais, escolas especiais e no ensino comum. Trata-se da educação em uma
vertente comportamentalista, voltada para o ensino e a aprendizagem de habilidades
consideradas funcionais e úteis, cujo objetivo são mudanças comportamentais e atitudinais.
Para 90 (84,2%) pesquisadores, a perspectiva fenomenológico-hermenêutica ou qualitativa
estabelece uma crítica contundente ao objetivismo científico, propondo a subjetividade
como fundante dos atos humanos e da realidade social. A partir de uma compreensão
interpretativa, foca-se a experiência humana, a complexidade e o entorno histórico, social e
cultural que a constitui. O processo interpretativo implica um movimento constante, num
diálogo entre os sujeitos, situações e objetos investigados, não havendo início e fim
absolutos (Sanchez Gamboa, 1996).
Em consonância com tal pressuposto, o propósito principal destes estudos é compreender a
dinâmica (psíquica, inconsciente, cultural, histórica, escolar etc.) dos sujeitos com autismo
e psicose infantil, bem como dos familiares, educadores e instituições. As etiologias e as
interpretações são múltiplas, de acordo com os sistemas classificatórios, as diferentes

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explicações psicanalíticas, sócio-históricas, cognitivistas ou sistêmicas. Em alguns textos,


sublinha-se a singularidade destas condições, em oposição a uma leitura atrelada aos
padrões de normalidade. A partir de estudos de caso com professores, alunos e/ou
instituições, pesquisas bibliográficas e teóricas, reflete-se sobre a inclusão escolar, as
políticas públicas educacionais, a função constitutiva da escola e do educador. Nesse
sentido, busca-se compreender as possibilidades e os limites no atual contexto escolar
brasileiro, oferecendo visibilidade aos encontros minúsculos, únicos, construídos nas
fronteiras de uma ou várias disciplinas.
Inúmeras discussões e controvérsias. Construído na encruzilhada de diversas orientações
epistemológicas e diferentes racionalidades, o eixo escolarização caracteriza-se pela
profusão de línguas e dialetos. As interpretações e lentes divergem, convergem,
multiplicam-se, sufocam-se.
Concebida a partir dos sistemas classificatórios como a CID-10 (OMS, 2000) e o DSM-IV-
R (Apa, 2002), a noção do autismo como um só quadro composto por diferentes níveis de
gravidade (dependentes, sobretudo, da linguagem e/ou inteligência) é aceita pela maioria
dos pesquisadores, independentemente da vertente epistemológica. O diagnóstico e a
psicopatologia descritivos não são, contudo, interpretados uniformemente. Alguns autores
não problematizam tais referências, tratando-as genericamente, ou seja, utilizam-nas como
forma de 'identificar' o sujeito a ser pesquisado, sem contextualizar a historicidade dos
conceitos, seus limites e implicações; outros se situam nesse referencial enquanto a
etiologia não é mais bem definida, o que temporariamente impossibilita outro tipo de
classificação; há também os que se afirmam categoricamente teóricos. No gesto que toma
nas mãos o texto que constitui esses manuais, verificam-se rasuras, ruídos na leitura,
algumas passagens sublinhadas, outras esquecidas.
Fala-se de psicose infantil, de autismo, ou de psicose e autismo como duas situações
diferenciadas. Outros dizem que nada disso existe, que o correto é referendar autismo ou
espectro autista, conforme a noção de continuum, ou seja, um mesmo quadro, com
diferentes graus de gravidade. Temos aqueles que afirmam: falamos de erros metabólicos,
de transtornos neuropsiquiátricos que, mesmo sem um marcador biológico identificado,
implicam déficits cognitivos. Outros replicam: falamos da loucura e, mais ainda, da loucura
na infância, possuidora de características diferenciadas do adulto. Aí se diz, por

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exemplo, das mães geladeiras, culpadas pelas fortalezas vazias em que se transformaram
seus filhos. Ou das psicoses e do autismo infantil como posições subjetivas.
O diálogo com os sistemas diagnósticos e as lógicas classificatórias é intenso, porém nem
sempre suficientemente esclarecido. O ponto crucial da ausência de reflexão sobre os
determinantes históricos e das concepções de sujeito presentes na elaboração dos
diagnósticos está no fato de que diferentes entendimentos imprimem percursos escolares
também diversos, cifrando destinos distintos.
O lugar de sujeito, do professor e de aluno, fica subtraído, economizado, por uma
causalidade que se impõe antes mesmo de qualquer ato que cada um deles possa inscrever.
Uma causalidade que não se constrói a partir dos efeitos das práticas e dos encontros, mas
que chega antes - antes dos próprios sujeitos -, retira da cena a responsabilidade (Rickes,
2004, p. 12).
Inscritos nas margens e nas entrelinhas de um conjunto significativo das pesquisas,
percebemos o autismo, a psicose infantil e/ou TGD como fenômenos estritamente
individuais, vinculados às noções de desvio e anormalidade. O apego descritivo às
síndromes e 'constelações de sintomas' permanece furtivo e não esclarecido. A realidade do
autista lhe é natural; sendo explicada pela ciência e explicitada por meio do diagnóstico,
das classificações e avaliações. O fracasso ou limites dos processos de escolarização, nesta
perspectiva, decorrem do aluno autista - em função de seus genes, alterações
comportamentais, desequilíbrios neurológicos, afetivos etc. O diferente feito desigual é
responsável pela desigualdade escolar. Para Arroyo (2010), essa perspectiva tem raízes
profundas na cultura escolar brasileira.
Outro sentido recorrente supõe, mesmo com referência ao Estado e às políticas, a
culpabilização do professor diante dos impasses escolares e inclusivos. Há uma
incapacidade técnica do professor para atender sujeitos com tamanhas necessidades
educativas especiais. Da lógica tecnicista derivam como soluções programas adaptados e
individualizados, de cunho comportamental ou cognitivista, em escolas comuns e especiais.
Alguns poucos estudos procuram entender o encontro entre esses alunos, seus professores e
escolas tramado entre os enunciados políticos e os ditames diagnósticos, econômicos e
históricos, um espaço entre. Ao ampliarem os horizontes compreensivos, complexificam-se
as perguntas e as possíveis respostas, entendidas como parciais e provisórias. Toda fronteira
inclui e exclui ao mesmo tempo e, na situação educativa, permanecerão aspectos

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imprevisíveis e zonas de sombra. A escolarização de alunos com TGD exige um trabalho a


ser desenvolvido no coletivo, bem como a construção de um estilo próprio de ensinar e a
responsabilização por um processo a ser sustentado em diferentes instâncias.
Do inventário enciclopédico à invenção de uma leitura, compreendemos que experiência da
escolarização envolve uma construção compartilhada. Termos como autismo, psicoses
infantis, TGD, escola, escolarização, inclusão escolar etc. referem-se a conceitos,
construções linguísticas, oriundos de diferentes racionalidades e epistemologias. Sistemas
mais ou menos fechados que armam determinadas perspectivas. A interpretação ocorre a
partir dos horizontes compreensivos. Trata-se da historicidade, das racionalidades, das
condições de produção dos textos, dos sentidos hegemônicos que amalgamam determinadas
perspectivas. Há sempre o risco de essencializarou naturalizar nossas lentes e concepções,
sobretudo se generalizamos ou desconsideramos os limites do conhecimento, se
despolitizamos seu conteúdo. Daí a necessidade do autoesclarecimento constante, da
reflexão sobre as bases do nosso proceder.

Sujeitos com TGD em Direção à Escola e ao Aprender: um horizonte em construção


O que importa não é somente escutar coisas uns dos outros,
senão escutar uns aos outros.
Unicamente isso é compreender.
Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método
Compreender é uma aventura perigosa e impossível em sua plenitude. Perguntar sobre a
escolarização de sujeitos com Transtornos Globais do Desenvolvimento considerando as
possíveis relações, diálogos e percalços constitutivos da produção discente brasileira, no
período de 2000-2012, surpreendeu-nos a cada página. Constatamos os contatos mais
íntimos entre as disciplinas, os desconhecimentos recíprocos mais totais e até mesmo mais
depreciativos, os silêncios mais ruidosos e constrangedores. Em busca das múltiplas
relações que se entrecruzam no acervo, percebemos que os textos, perfilados, lado a lado,
contavam uma história que nenhum deles poderia contar sozinho. Oferecer visibilidade e
voz a tal polifonia, contribuindo para multiplicar e matizar o olhar para e com estes sujeitos
e suas possibilidades escolares, foi o principal desafio do presente artigo.
Na construção destas possibilidades, parece-nos urgente questionar a concepção de aluno e
ensino ideal; de segurança e controle sobre o processo de ensino e aprendizagem; de sujeito

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como essência a ser desvelada, mensurada, rotulada. A experiência escolar envolve uma
construção compartilhada a partir dos pressupostos a respeito de escola, educação,
sociedade etc. O texto político - suas linhas, margens e entrelinhas - oferece uma primeira
mirada, estabelece as bordas de uma arena onde se dá o balé dos significantes que, ao se
articularem, engendram sentidos singulares. Quais as possíveis significações?
Responder a essa pergunta não constituiu o objetivo desse ensaio, mas antes esteve em
nossa mira situar a necessariedade de sua colocação em cena. Consoantes com a inspiração
ensaística, não buscamos começar "[...] com Adão e Eva, mas com aquilo que se deseja
falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde
nada mais resta a dizer [...]" (Adorno, 2003, p. 16-17).
Com as diretrizes educacionais de caráter decisivamente inclusivas, um novo capítulo na
educação especial e na agenda acadêmico-científica se inscreve. O direito à educação
garante acesso irrestrito à escolarização. Os direitos à igualdade e à diferença reorganizam
os serviços, os conceitos, a geografia das pesquisas, seus relevos, fronteiras e lacunas. Em
que medida tais movimentos desconstroem sentidos que relacionam diferença à
desigualdade, à anormalidade e à ineducabilidade?
Para Arroyo (2010), pela polarização que estabelecem, dentro-fora, incluído-excluído, as
diretrizes inclusivas enfraquecem os ideais de superação das desigualdades na medida em
que deslocam o foco para questões de pertencimento ou não aos espaços universais. Nesse
sentido, correm sempre o risco de, ao invés de desconstruírem, reforçarem sentidos que
relacionam diferença à desigualdade, inferioridade e não pertencimento. Perigo iminente
que, para ser transposto, exige um trabalho articulado no cotidiano dos pesquisadores e
profissionais das escolas, porque da letra da lei à atualização na vida há um longo caminho
a percorrer. A letra abre espaço à produção de um sentido, mas não garante o vetor em que
ele se inscreverá.
Considerando nosso acervo, são múltiplos os temas e temáticas abordadas, as formas de
interpretar a política, de produzir e reproduzir sentidos relacionados à diferença pelo viés da
desigualdade e/ou da identidade. Se, no âmbito dos princípios, são reconhecidas a
igualdade e as diferenças, na pesquisa ainda persiste a noção do diferente como desigual.
Equaciona-se o diferente à anormalidade e acaba-se por reproduzir (e justificar) a
desigualdade. Nesse contexto, o fascinante e eficaz conhecimento científico, oferecido
pelos manuais classificatórios, justifica compreensões e trajetórias escolares empobrecidas

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e objetivadoras. A eficácia e fascinação derivam da forma: um modelo descritivo,


classificatório, no qual tudo está organizado, contemplado. O fechamento harmônico entre
o que há e o que não há, o que é e o que não é. A representação de algo considerado claro,
concluso, conhecido. Quais os efeitos desta equação harmoniosa frente às desmesuras do
humano? Um saber totalizante que limita o universo do dito: os transtornos passam a ser
fenômenos a priori, independentes do laço social que lhes dá existência. A escolarização de
alunos com TGD é pautada pela impossibilidade, pela culpabilização dos sujeitos, sejam as
crianças e/ou os professores.
Dessa posição enunciativa resulta um sentido com profundas raízes na cultura escolar: as
práticas pedagógicas existem independentemente do contexto, das interpretações e das
políticas. As diferenças orgânicas, sociais, psíquicas, comportamentais são equacionadas
como identidades. Destas identidades derivam currículos e intervenções que justificam,
inclusive, as desigualdades escolares. O autista! Deste estado, em que se é todos e não se é
ninguém, a singularidade é subsumida pela repetição do idêntico. Gadamer afirma que a
noção de identidade é nefasta para a justiça social. Em nome de uma diferença lida como
identidade, retira-se de cena a alteridade, a diferença como condição de ser. Trata-se do não
reconhecimento do outro, do seu apagamento.
O diferente como diferente. Em meio às nuances do compreender, no encontro com o outro,
o plural, talvez seja possível reajustar focos, construir novos outros, ampliando e, talvez,
modificando os horizontes compreensivos. A experiência hermenêutica advoga a
disponibilidade para abertura, para o imprevisível. Aposta no diálogo; contudo, seu
acontecimento requer ouvir o outro como um outro, mantendo sua alteridade. Esse é o
desafio. Um desafio a ser sustentando por políticas de pertencimento, e não pelo "[...] ideal
de unicidade como sinônimo de igualdade de direitos. Educação (em abstrato), direito (em
abstrato) de todo cidadão (abstrato). Sem rostos" (Arroyo, 2010, p. 1386).
Na tentativa de articular igualdade e diferença, parece fundamental compreender o papel
específico do sistema escolar e do campo acadêmico-científico na produção dos sujeitos
diferentes em inferiores, anormais, ineducáveis ou (in)suportáveis. Considerando os alunos
com TGD, tradicionalmente apartados dos processos escolares, muitas vezes reproduzimos
essas formas históricas de pensá-los. As tentativas de reconhecer o diferente têm-se
efetivado por meio da violenta abstração e, para afirmar o direito universal à educação,
temos excluído o estranho, o outro, o diferente.

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Há uma única compreensão deste movimento? Estabelecer um significado inflexível é


acreditar que as políticas e as pesquisas podem existir independentemente do contexto e dos
professores, alunos, escolas e pesquisadores; dos tempos e condições de leitura. O mundo
valora os objetos/sujeitos da maneira como se relaciona com eles. Assim como esse valorar,
o relacionar se modifica. A mesma transição ocorre com a percepção dos intérpretes. O
texto/aluno assume um sentido para cada leitor/professor em cada momento que estabelece
contato. A canção só pode existir, ser apreciada e compreendida se alguém a interpretar.
Cada artista interpreta a mesma música, a mesma melodia, com o seu estilo, influenciado
pelo momento histórico em que está inserido. Assim, não existe uma música em si, uma
versão definitiva. Também não existe uma interpretação que soe como a definitiva,
imutável daquela melodia. Educação, pesquisa e arte partilham a condição de, em sua
atualização, sempre guardarem um lugar para o novo.

Notas
1 Compreendemos a temática da inclusão e exclusão em relação aos direitos à educação, à
igualdade e à diferença.
2 O presente trabalho amplia pesquisa do tipo estado da arte sobre o tema escolarização de
alunos com TGD (Vasques, 2008; 2009). Nesse contexto, o recorte temporal 2000-2012
justifica-se pela estabilidade das bases de dados nacionais e possibilidade de acesso integral
aos documentos pesquisados.
3 No presente artigo, há uma impossibilidade de referendar todos os documentos que
compõem nosso acervo ou, ainda, as fontes documentais de nossa pesquisa. A intenção é
divulgar o banco de dados o mais brevemente possível.
4 Em estudo anterior, sobre a produção discente brasileira no período entre 1987 e 2006,
percebemos que as pesquisas tinham por foco principal o âmbito diagnóstico-clínico
(Vasques, 2008; 2009).
5 As seis categorias apresentam o tema principal discutido pelos autores e foram
contabilizadas uma única vez. As obras foram listadas em mais de um subtema.
6 O Método TEACCH é compreendido por alguns autores como uma das principais
abordagens educacionais e clínicas. Parte da premissa de que os autistas aprendem melhor
por visualização, apreciam rotinas e não são favoráveis a surpresas. Por isso, valoriza o
aprendizado estruturado, dá importância à rotina e à informação visual. Segundo essa
proposta, é necessário organizar e simplificar o ambiente, apresentando poucos estímulos
sensoriais concomitantes. Isso facilita focar a atenção nos detalhes relevantes. A criança é
avaliada individualmente. O objetivo básico é aumentar o funcionamento independente. O
Currículo Natural Funcional (CNF) e o Programa de Ensino Individualizado (PEI)
caracterizam-se por selecionar procedimentos de ensino compatíveis com as capacidades
de alunos severamente prejudicados, objetivando torná-los independentes e produtivos. De
maneira geral, tais propostas baseiam-se na funcionalidade das habilidades a serem
adquiridas e na manutenção destas através de contingências naturais de aprendizagem
(Assumpção JR., 2003). Na totalidade das pesquisas analisadas, estas concepções teóricas e

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práticas de atendimento educacional são amplamente reconhecidas pelas diferentes áreas


do conhecimento, constituindo a principal recomendação no plano terapêutico e
educacional.

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Profª Cássia Virginia Moreira de Alcântara – e-mail: cassia.alcantara@uol.com.br

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ago. 2013. [ Links ]

Recebido em 24 de março de 2014


Aprovado em 10 de maio de 2014

Carla K. Vasques é psicóloga, com formação em psicanálise. Doutora em


Educação/UFRGS. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFRGS. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação
e Cultura, NUPPEC/UFRGS. Desenvolve pesquisas sobre sujeitos da educação especial e
processos de escolarização. E-mail: k.recuero@gmail.com
Claudio Roberto Baptista é doutor em Educação pela Università di Bologna. Professor da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS.
Coordena o NEPIE-Núcleo de Estudos em Políticas de Inclusão Escolar da UFRGS.
Desenvolve pesquisas sobre os processos de inclusão escolar e sobre a educação especial.
E-mail: baptistacaronti@yahoo.com.br
All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed
under a Creative Commons Attribution License
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educreal@ufrgs.br

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VASQUES, Carla K.; BAPTISTA, Claudio Roberto. Transtornos globais do


desenvolvimento e escolarização: o conhecimento em perspectiva. Educ. Real., Porto
Alegre , v. 39, n. 3, p. 665-685, Sept. 2014 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-
62362014000300003&lng=en&nrm=iso>. access on 09 May 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S2175-62362014000300003.

Texto 4

NOTAS SOBRE O DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DA PSICOSE E


DO AUTISMO NA INFÂNCIA
M. Cristina M. Kupfer1
Instituto de Psicologia – USP

O artigo aborda a discussão em torno do diagnóstico diferencial da psicose e do autismo


infantis, mostrando a falta de concordância entre os autores psicanalistas. Busca, em
seguida, delinear um diagnóstico diferencial a partir da proposição de que no autismo
falha a função materna e na psicose infantil falha a função paterna.
Descritores: Diagnóstico. Crianças autístas. Psicose infantil. Relações mãe-criança.
Relações pai criança. Psicanálise. Linguagem.

Um dos principais entraves ao avanço dos estudos sobre a psicose infantil e o autismo está
na disputa diagnóstica. A falta de concordância entre profissionais impede, logo de saída,
qualquer estudo epidemiológico, e dificulta enormemente as trocas científicas, já que os
pesquisadores não estão falando do mesmo objeto de pesquisa - o autista do neurologista
não é o autista do psicanalista.
Tampouco entre os psicanalistas há um consenso. Sob a rubrica "psicose e autismo
infantil," que designa o diagnóstico dos transtornos graves dentro do referencial
psicanalítico, encontram-se estudos de autores como Klein (1921-1945/1970, 1932) e
Tustin (1984). Na esteira do pensamento de Jacques Lacan, situam-se Mannoni (1977,
1979, 1987), Dolto (1972, 1985), Rosine e Robert Lefort (1984). No entanto, tal profusão
ainda não é suficiente para que se tenha uma definição precisa das diferentes manifestações
dessas patologias. Mais do que isso, não há um consenso sobre o que sejam

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verdadeiramente uma psicose infantil ou um autismo infantil, e tampouco sobre a sua


etiologia.
Na tentativa de produzir uma uniformidade diagnóstica, a Associação Americana de
Psiquiatria passou, desde 1994, a colocar dentro de uma mesma categoria as crianças que
eram anteriormente classificadas como psicóticas e autistas, não importando as causas
admitidas, em sua quarta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios
Mentais (DSM-IV). Às crianças desta ampla categoria foi atribuído o nome de "portadores
de distúrbios globais do desenvolvimento."
Embora tal classificação possa facilitar as trocas entre os profissionais da área, ela não
produziu contudo um avanço real na compreensão desses quadros, já que deles fornece
apenas uma descrição. Assim, os psicanalistas prosseguem utilizando-se dos diagnósticos
de psicose infantil e de autismo.
Os diagnósticos de psicose infantil e autismo têm uma história recente. Até o início deste
século, o olhar médico ainda não havia subtraído, do grupo das crianças deficientes
mentais, aquelas que apresentavam bizarrices, alheamentos, auto-agressões ou desconexões
significativas ao lado do rebaixamento intelectual. Para a sociedade, todas eram deficientes,
e todas votadas ao cruel destino dos adultos doentes mentais: o recolhimento em asilo e a
alienação.
Essas crianças, porém, sempre existiram. Temos notícias delas através de lendas
tradicionais ou através de obras literárias tais como Niliouchka, de Gorki (citado por
Rosenberg, 1991)
Dentre os inúmeros problemas a serem enfrentados, há a discordância sobre as diferenças
entre a psicose infantil e o autismo, que ocorre mesmo entre psicanalistas de diferentes
filiações teóricas.
Mahler (citado por Ledoux, 1989), por exemplo, incluía o autismo dentro do quadro geral
das psicoses infantis. De acordo com Ledoux, Mahler, inicialmente, estabeleceu uma
distinção nítida entre o que ela chamou de psicose autística e psicose simbiótica. Na
primeira, a mãe parece não ser percebida como elemento externo, e não é investida
libidinalmente, o que aproxima essa categoria com a clássica de autismo. Na psicose
simbiótica, a representação psíquica da mãe existe, mas fusionada ao self; essa segunda
categoria aproxima-a da psicose infantil clássica. Após 1951, essa nitidez desaparece, já

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que, para Mahler, podemos encontrar um largo espectro de traços autísticos e simbióticos
no interior da síndrome psicótica infantil.
Melanie Klein, ainda de acordo com Ledoux, diagnosticou como esquizofrênico o célebre
pequeno Dick, quando, de acordo com sua descrição, ele talvez recebesse hoje o
diagnóstico de autismo. Isto mostra o desacordo em que se encontravam e ainda se
encontram os psicanalistas a respeito dessas diferenças diagnósticas.
"Há evidentemente diferenças radicais," afirma Ledoux (1989):
... entre o autismo infantil precoce e outras formas menos severas de psicoses. Diferenças
no nível do funcionamento mental, dos mecanismos em jogo. Alguns hesitam em colocar o
autismo precoce severo sob a mesma rubrica estrutural que outras formas de psicose, e
podemos nos perguntar também se, no plano etiopatogênico, estamos lidando com a mesma
coisa, com os mesmos "fatores." Para outros, não há sentido em isolar o autismo infantil.
(pp. 333-334)
Rocha (1997) e seu grupo de trabalho preferiram abordar todas as patologias infantis sob a
rubrica de "autismos." Ela explica:
Durante muito tempo utilizávamos, no Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem
(CPPL), o termo psicose infantil precoce englobando autismo e psicose simbiótica. Neste
trabalho [referindo-se aqui ao livro que o CPPL publicou em 1997] usaremos o termo
autismo para denominar estas duas patologias, à medida que se distinguem de todas as
outras patologias da infância. (p. 16)
Atualmente, os esforços dos psicanalistas vêm se concentrando na direção de definir dois
quadros distintos para o autismo e a psicose.
Jerusalinsky (1993) marca radicalmente a diferença, e propõe que se entenda o autismo
como uma quarta estrutura clínica, ao lado das três outras – psicose, neurose e perversão –
propostas por Lacan. Em entrevista concedida à revista da Associação Psicanalítica de
Porto Alegre, Jerusalinsky responde do seguinte modo quando indagado se a psicose e o
autismo são ou não estruturas diferentes:
No que se refere à lógica que articula a posição do sujeito a respeito do significante, eu
diria que entre psicose e autismo não há nenhuma identidade de estrutura, porque num caso
se trata da forclusão e no outro se trata da exclusão. É evidente que no campo lacaniano não
há unanimidade neste ponto, porque há quem considere (segundo a lógica que tome como
referente) a exclusão como um caso particular da forclusão, mas esse não é o meu ponto de

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vista. A diferença entre forclusão e exclusão consiste em que, no caso da forclusão se


produz uma inscrição do sujeito numa posição tal que esta inscrição não pode ter
conseqüências na função significante. No caso da exclusão não há inscrição do sujeito; no
lugar onde a inscrição deveria se encontrar, se encontra o Real, ou seja, a ausência de
inscrição. Esta diferença radical de estrutura conduz a efeitos clínicos observáveis. (p. 63)
Para ser mais simples, pode-se propor, como o faz Jerusalinsky, uma forma de diferenciar
psicose de autismo nos seguintes termos: no autismo, falha a função materna; na psicose,
falha a função paterna.
Kanner escreveu em 1943:
Desde 1938 nossa atenção foi atraída por um certo número de crianças cujo estado difere
tão marcada e distintamente de tudo que foi descrito anteriormente, que cada caso merece –
e espero que acabe por merecer – uma consideração detalhada de suas fascinantes
peculiaridades. (1997, p. 111)
De fato, desde 1938 Kanner havia isolado, dentro do grupo maior das psicoses infantis, já
estabelecido nosograficamente tanto pela Psiquiatria Infantil como pela Psicanálise, uma
nova categoria que, segundo ele, tinha as características de uma síndrome. A ela, Kanner
deu o nome de Autismo Infantil Precoce, tomando o termo autismo de empréstimo a
Bleuler, que o havia cunhado em 1911 para designar um dos sintomas da esquizofrenia
(Postel & Quétel, 1987).
Este grupo havia chamado a sua atenção por uma série de características: os que nele se
enquadravam eram incapazes de estabelecer relações, os que tinham linguagem não a
usavam para comunicar-se, possuíam uma excelente capacidade de memorização decorada,
reagiam com horror a ruídos fortes ou objetos em movimento, tendiam à repetição, mas
eram dotados de boas potencialidades cognitivas. Finalmente, Kanner observou que todos
vinham de famílias extremamente inteligentes. Mais que isso, ousou comentar que as mães
das crianças pareciam frias e distantes, insinuando que talvez isso pudesse relacionar-se
também com os problemas de contato daquelas crianças. Ou seja, Kanner oscilou, no
transcurso de seus textos, entre considerar a dimensão do orgânico na etiologia do autismo
– uma síndrome genética – e enfatizar as relações mãe-bebê para explicá-lo.
As observações de Kanner se espalharam como um rastilho de pólvora pelo mundo do
entre-guerras, e muito particularmente no seio da cultura americana, na qual trabalhou. Em
primeiro lugar, a palavra "fascinante" não veio à toa em sua pena. O mundo já parecia estar

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preparado e mesmo aguardando o recorte que Kanner acabara de criar. E fascinou-se. O


autismo ganhou rapidamente as revistas, o cinema e, mais tarde um pouco, a literatura. A
criança autista ganhou status de "avis rara," atiçava a curiosidade, mas era ao mesmo
tempo escondida pela mãe. O autismo tornou-se uma criação moderna.
Mas Kanner não causou apenas fascínio. Provocou também o repúdio das mães de autistas,
que protestaram contra a idéia de que eram "frias." "Amamos nossos filhos," elas diziam, "e
ninguém tem o direito de dizer que somos culpadas pelo autismo de nossos filhos."
Organizaram-se em associações e puseram-se a lutar por direitos não se sabe bem do que,
como é o costume dos americanos. Kanner teve de recuar e, em 1946, escreveu Em defesa
das mães (Kanner, 1946/1974). Pareceu não saber mais o que fazer com sua observação
sobre as mães.
Para os psicanalistas, a observação sobre o lugar das mães na montagem do autismo não é
nada desprezível. Muitos deles puseram-se a buscar essas relações, mas não parecem ter
sido mais felizes que Kanner. Hoje esses psicanalistas são o alvo de ataque das mães, que
se associam em AMAS por todo o mundo e fogem deles como o diabo da cruz.
Mas é possível hoje recolocar a questão, afirmando: as mães têm razão - e Kanner também.
Para esse grupo de especialistas, não são as mães reais, com seus sentimentos, sua devoção,
sua encarnação em um papel social que exercem bem ou no qual acreditam, que estão na
base da eclosão do autismo infantil precoce. São as mães postas no exercício de uma função
que desconhecem exercer, e que cumpre descrever.
No exercício dessa função, uma mãe sustenta para seu bebê o lugar de Outro primordial.
Impelida pelo desejo, antecipará em seu bebê uma existência subjetiva que ainda não está
lá, mas que virá a instalar-se justamente porque foi suposta. Desenhará com seu olhar, seu
gesto, com as palavras, o mapa libidinal que recobrirá o corpo do bebê, cuja carne sumirá
para sempre sob a rede que ela lhe tecer.
Essa tarefa não depende de nenhum ato de volição, mas se faz em um cotidiano construído
de pequenos e imperceptíveis reconhecimentos recíprocos, dos quais escutar o choro de seu
bebê sem que ninguém mais o houvesse escutado é apenas um exemplo banal e já
conhecido. Do lado do bebê, é muitíssimo cedo que o vemos virar a cabeça, reencontrar
a gestalt do rosto materno que saíra de seu campo de visão, e lhe sorrir. Esse processo está
descrito por Lacan através da metáfora do espelho, que, segundo ele, é o primeiro tempo na

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constituição de um sujeito, inaugurado pela construção da imagem do corpo a partir do


desejo ou do olhar materno.
Quando esses atos de reconhecimento recíproco começam a falhar, e se perde a sua
constante realimentação, vemos surgir, logo por volta de seis meses de idade, os primeiros
traços autistas. O bebê não olha para ninguém, e evita especialmente o rosto materno.
Podem surgir as primeiras hipotonias: o bebê sentado não fixa a cabeça, que cai para o lado
já que não há por que olhar. Mais tarde, a boca, não erotizada, não recortada pelo trabalho
materno de fazer nascer a pulsão oral, - nisso que é pura carne, pura necessidade - estará
sempre semi-aberta, hipotônica, sem tônus: a criança exibirá uma baba constante, a deslizar
por entre seus lábios moles.
Os detratores da Psicanálise objetam: não seriam esses processos de troca entre mãe-bebê
por demais inexpressivos, e não seria um exagero imputar-lhes a responsabilidade por uma
patologia tão grave e definitiva como é o autismo?
A isso se responderá que a relação mãe-bebê opera sobre um universo de grande
complexidade, que começa com o equipamento material com o qual a criança vem ao
mundo e termina no entorno social em que mãe e bebê encontram-se mergulhados. Mas não
se deve com isso minimizar o valor do encontro mãe-bebê. Somente ele poderá permitir
que um bebê faça uso de seu equipamento, inteiramente inoperante se não houver quem o
pilote. Mais que isso, esse equipamento sequer existirá se não houver quem o construa.
Assim, poderemos estar diante de um equipamento defeituoso, que uma mãe poderá "saber"
pilotar, enquanto outras ali sucumbiriam. Poderemos estar diante de um equipamento
completamente inoperante, e uma mãe não poderá humanizá-lo de jeito nenhum, em que
pesem seus esforços. Falhou a função materna, não porque a mãe não tivesse condições de
exercê-la, mas porque seu bebê não podia absorvê-la.
Mas a razão última para o autismo continua sendo a falha da função materna. A partir do
colapso da função materna, muitos poderão ser os efeitos. Poderá ocorrer uma inoperância
radical da função e do desejo maternos, o que resultará em uma ausência de imagem do
corpo, já que o principal dessa função é a construção do mapa libidinal do corpo. Nesses
casos, estaremos diante do autismo infantil precoce. Mas poderão ocorrer falhas pontuais, a
que alguns teóricos chamam de falhas na especularização, e aí surgirão os traços autistas,
que aparecem de modo associado a outras patologias.
O melhor exemplo disso é o surgimento de traços autistas na síndrome de Down.

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Logo que a síndrome foi descrita, incluíam-se entre os seus sinais patognomônicos, isto é,
aqueles que pertencem inequivoca e estruturalmente à sindrome, os traços autistas. De fato,
em 97% dos casos eles surgiam. Jerusalinsky (1989) descreve, porém, uma pesquisa
realizada no Centro Lydia Coriat que desmente essa ligação indissociável entre Down e
autismo. Naquela pesquisa, o acompanhamento analítico precoce da relação mãe-bebê
impediu o surgimento dos traços autistas, que costumavam ocorrer após os dois anos de
idade, persistindo em apenas 1% dos casos. Como explicar esses resultados?
Para as mães das crianças Down, é muito difícil reconhecê-los como filhos. Mais que isso,
não podem reconhecer-se neles. Não podem sublinhar neles um traço imaginário que
prezam, ou de alguém com quem se identificam. Isto impede o reconhecimento recíproco e
a conseqüente inscrição em uma filiação. Quando a criança é impedida de entrar na
linguagem, surgem os traços autistas, denotando falhas na especularização, embora essa
criança ainda não possa ser considerada um autista infantil precoce típico e acabado.
Afirmou-se que, para os psicanalistas, tanto as mães como Kanner têm razão. Isto é
possível caso se adote a diferença entre os termos culpa e responsabilidade. A partir de
Kanner, duas correntes de explicação e tratamento foram se tornando cada dia mais nítidas.
De um lado, uma "medicalização," uma biologização do autismo e das psicoses, em busca,
por exemplo, de falhas nos neurotransmissores. Nessa primeira, a "desculpabilização" das
mães é absoluta. De outro lado, foi tomando vigor a corrente psicanalítica, na qual há uma
grande ênfase na psicogênese do autismo, ou seja, entendem-se esses quadros como o efeito
de uma relação patogênica mantida entre mãe e filho.
Nenhum psicanalista, em sã consciência, pode negar que um bebê seja antes de mais nada
um feixe de nervos. E acolherá como bem-vindas todas as experiências que puderem
avançar no conhecimento das bases neurológicas de todas as patologias. Um psicanalista
acredita, porém, que o corpo de um bebê jamais sairá de sua condição de organismo
biológico se não houver um outro ser que o pilote em direção ao mundo humano, que lhe
dirija os atos para além dos reflexos, e principalmente, que lhes dê sentido. Assim, de nada
adiantará um organismo absolutamente são se não houver quem o introduza no mundo do
humano, vale dizer, da linguagem.
De outro lado, acredita o psicanalista que uma criança com sérios problemas neurológicos
encontrará sérias dificuldades para encontrar um piloto capaz de fazer-lhes face. Conclusão:

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contrariamente a aquilo que se divulgou, e em que as mães das AMAS acreditam, um


psicanalista não culpa mãe alguma. Mas a responsabiliza.
Responsabilizar uma mãe significa fazê-la perguntar-se a respeito da parte que lhe cabe na
criação de seus filhos. E isto serve, diga-se de passagem, para todas as mães,
convenientemente "desculpabilizadas" e desresponsabilizadas pela sociedade de massas,
interessada em fazê-las deixarem seus filhos em creches e diante da televisão para correr
atrás de novos valores fálicos no mundo do consumo.
Responsabilizar uma mãe significa engajá-la neste movimento de resgate do que não pôde
acontecer quando seu filho era ainda um bebê, seja porque ele não facilitou as coisas por
ser, por exemplo, cego, surdo, ou hipotônico, seja porque ela vivia um momento em que se
encontrava "apagada" para o exercício da função materna.
Culpá-la, de outro lado, significa apoiar-se nos sinais imaginários que a nossa cultura
habituou-se a pensar como relevantes quando se trata da maternidade: pegar no colo,
acarinhar, amar loucamente seu bebê são sinais que, ausentes, podem fazer adoecer,
segundo os cânones de nossa cultura. E segundo os de Kanner. Uma mãe que não os exerce
pode então ser culpada: você não o ama o bastante, você o deixou abandonado aos cuidados
de uma babá, dizem em uníssono a mídia, os pediatras e muitos educadores mais severos.
Mas se pudermos deixar de lado esses sinais imaginários, então será possível encontrar, de
um lado, uma mãe "fria" – que não fica o tempo todo a agarrar e beijar seu filhinho –, que
foi capaz de exercer sua função, que pôde colocar em ação seu desejo insconsciente, e de
outro, uma mãe efusiva, amorosa, que não pôde, todavia, olhar para seu filho de modo a
fazer operar a especularização. Nenhuma delas é intencionalmente culpada, mas ambas são
responsáveis pelos destinos subjetivos de seus filhos.
Os psicanalistas que escutam as mães dessas crianças, que as deixam falar, que lhes abrem
as condições para que se dê esse corajoso enfrentamento de si, têm colhido resultados. Ao
lado dessa escuta, têm proposto novas abordagens de tratamento das crianças, inspiradas na
Psicanálise, e novas formas de reintroduzir essas crianças no mundo da cultura e da escola.
Têm acompanhado os progressos da Medicina. Resta agora esperar que também os médicos
reconheçam nossos resultados, e se sentem conosco para planejar a melhor maneira de
mudar os destinos, até agora francamente desfavoráveis, dessas crianças em nossa
sociedade.

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Ainda no âmbito da discussão diagnóstica, cabe mencionar que as crianças incluídas na


categoria nosográfica de autismo infantil precoce são em pequeno número: 4 em cada
10.000, de acordo com números americanos. Aquelas que carregam traços autistas
associados a outras patologias são, porém, em maior número. E há também as chamadas
pós-autistas, categoria cunhada por Kanner para incluir as crianças que mostravam uma
saída do autismo infantil precoce, exibindo olhar direcionado para o outro e demonstrando
que estariam se iniciando as relações com um outro localizado como tal.
Os traços autistas surgem, como já se disse, associados a outras patologias. Surgem
também na psicose infantil, já que também para eles o estágio do espelho não se estruturou
convenientemente.
Uma última questão. Mais acima, afirmou-se ser o autismo uma criação moderna. Ora, se
ele é efeito de uma falha da função materna, não deveria ser encontrado em outros
momentos históricos?
Uma primeira tese a ser examinada é a de que os autistas sempre existiram. Atestam-no as
crianças-fada das lendas irlandesas, crianças cujas almas eram furtadas por duendes e que
adquiriam os traços cuja descrição os aproxima daquilo que hoje chamamos de autistas. Na
literatura, também fizeram aparições esporádicas, de acordo com Rosenberg (1991). Não se
conhecem outros rastros dessas crianças, que provavelmente se confundiam com as débeis,
ou então eram submetidas por exemplo à eutanásia, como se fazia na Grécia Antiga com as
crianças (cf. Jerusalinsky, 1989). Talvez morressem "naturalmente," simplesmente porque,
embora o autismo seja uma particular maneira de vida sem sujeito, uma existência
dessubjetivada é quase impossível, como mostra Spitz (1996) em seus estudos sobre o
marasmo seguido de morte nas crianças institucionalizadas que não criavam vínculos com
seus cuidadores.
A segunda tese é a de que o autismo seria uma criação moderna sem precedentes na história
da humanidade. Volnovich (1993) afirma: "As contradições e paradoxos da modernidade
colocam a infância num lugar de testemunha, onde seus sintomas, incluída a loucura, falam
muito menos de um avatar psicopatológico e muito mais de uma produção conflitiva da
liberdade" (p. 33).
"Produção conflitiva de liberdade" é, para Volnovich, a expressão que resume o mal-estar
contemporâneo. É o que resulta de uma representação social da infância na sociedade
moderna, marcada por uma reafirmação narcisista e por um ocultamento do sentido da

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história do sujeito através de uma pseudo-informação oferecida pela educação. Assim, para
ele a produção da loucura tem raízes sobretudo histórico-políticas.
A terceira tese, com a qual estamos mais inclinados a concordar, afirma ser o autismo um
significante moderno que dá nome a um fenômeno estrutural na constituição do sujeito,
nome esse que o representa porém, dentro de uma particular inflexão do discurso social
contemporâneo, e que ao representá-lo, o recria.
O autista de hoje não é o mesmo que poderia ter surgido no mundo antigo, porque esse
nome moderno, criado por Kanner, recorta e cria uma nova realidade. Cria, com o poder de
criação do significante, um novo autista. Que prolifera, vai à mídia, aos filmes, que
enternece. Significa algo para a sociedade, hoje.
O autismo de Kanner nasce em estreita conexão com a culpabilização das mães. Em
movimento oposto, são desculpabilizadas pela Psiquiatria Biológica: o problema está na
falha dos neurotransmissores, dizem esses teóricos. Independentemente de que isso
efetivamente possa ocorrer - embora não se saiba se é o autismo que a provoca ou se é o
contrário - o uso que a sociedade faz disso é o seguinte: ao serem desculpabilizadas (e
precisam sê-lo, pois efetivamente não têm culpa), são pelo mesmo ato
desresponsabilizadas.
Isto é a criação moderna. Nas histórias das crianças-fada, as mães tinham de cuidar para
que seus filhos não fossem roubados. Hoje, em um típico movimento moderno do discurso
cínico, não há lugar para responsabilidades. O autista moderno da mídia e dos psiquiatras
não é filho de uma falha na responsabilidade de suas mães e, no entanto, cura-se com o
carinho e a dedicação delas. Ora, o remédio adotado não revela justamente a causa da
doença? A sociedade moderna vê no autista a denúncia de sua falha, a denúncia do modo
como está tratando suas crias. Choca tanto ou até mais do que a infância abandonada, pois
pode surgir no meio dos lares abastados.
O autista não poderá deixar de sofrer os efeitos desse lugar moderno em que está situado.
Sofre os efeitos desta significação social, carrega a exclusão da linguagem e da circulação
social, submetido a técnicas de condicionamento para permanecer aí, na borda, lugar em
que ele, de forma valente e surpreendente, se equilibra. Não significa o mesmo que
significava a criança louca de alguma aldeia medieval, para cujo núcleo social a sua
"doença" não significava nada parecido com a denúncia de falhas do funcionamento social,

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e que inquietava apenas por aquilo que ela "devolvia" a respeito da posição subjetiva de
cada um frente à linguagem.
Há, portanto, uma estrutura autista reveladora de uma especial posição subjetiva na
linguagem (ou quem sabe, de uma posição a-subjetiva na linguagem), mas há também o
significante "autismo," cunhado pelo social, que recria essa estrutura, tendo efeitos sobre o
modo como essa criança é apresentada por seus pais, e sobre o modo como é tratada e,
portanto, sobre essa criança mesma.
Psicose: falha da função paterna
Já é bem conhecida a afirmação de Lacan (1955-1956/1966) segundo a qual uma psicose se
estrutura a partir da forclusão do significante Nome-do-Pai. Dito de outra maneira: a
presença onipotente da mãe – ou, se se preferir, da língua materna – impede a operação da
função paterna, essa que poderia carregar consigo aqueles significantes capazes de
funcionar como pontos de basta, como articuladores, como pontos nodais dos feixes de
cadeias significantes necessárias à constituição e ao exercício de um sujeito.
Para cunhar o termo forclusão, Lacan baseou-se em dois textos freudianos: História de uma
neurose infantil, no qual Freud (1918/1973a) utilizou o termo Verwerfung – "rejeição" –
para se referir ao mecanismo de defesa da psicose, e A perda da realidade na neurose e na
psicose, (Freud, 1924/1973b).
A forclusão, o recalque e a recusa são reunidos como três modos de defesa em Freud;
Lacan os toma na mesma vertente e acrescenta que esses são os três modos básicos de
defesa, denominando-os estilos de obturação da falta no Outro.
A partir da noção de forclusão do Nome-do-Pai, a psicose passa a ser entendida como uma
posição subjetiva na qual o sujeito não pode responder quando uma situação-limite exige o
acionamento do Nome-do-Pai.
Para Lacan, o significante Nome-do-Pai é um significante primordial, cuja ausência
provoca um "furo" no campo das significações. Lacan acrescenta ainda que os significantes
Nome-do-Pai, excluídos da cadeia, da rede simbólica da qual emergem as significações,
não simbolizados portanto, retornam sob forma alucinatória. Desse modo, pode-se entender
o delírio do psicótico como um fato de linguagem, um modo particular da relação de um
sujeito com a linguagem.
Mannoni (1987) tem um modo bastante próprio de conceber a psicose infantil:

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O destino do psicótico se fixa a partir da maneira pela qual foi excluído por um ou por
outro dos pais de uma possibilidade de entrada numa situação triangular. É isso que o
destina a não poder jamais assumir qualquer identidade. Preso desde o seu nascimento num
quadro de palavras que o fixam reduzindo-o ao estado de objeto parcial, é preciso, para que
possa entrar um dia como sujeito no tratamento, que o sistema de linguagem no qual se
encontra aprisionado se modifique de início. É em seguida somente que vai poder ser
resolvido pela linguagem. (p. 124)
A tese central da concepção de Mannoni a respeito da psicose infantil é a de que a criança
psicótica faz parte de um mal-estar que é o efeito de um discurso coletivo. As condições
para a cura de uma criança psicótica só são operantes a partir das transformações que
deverão ocorrer no nível da palavra da criança que, alienada no discurso dos pais, precisará
se separar desse discurso.
Em relação às diferenças entre psicose no adulto e na criança, Lacan (1954-1955/1988),
no Seminário II, é enfático ao afirmar que a psicose não se dá, "de jeito nenhum," da
mesma maneira na criança e no adulto.
Assim, há autores que seguem essa direção apontada por Lacan, e buscam as
particularidades do estabelecimento da psicose infantil. Entre eles estão, por exemplo,
Calligaris (1989):
Quando falamos que a construção de uma estrutura precisa de um tempo, de fato queremos
dizer que precisa de tempos. Eu conto quatro pelo menos. Primeiro, uma disposição já
inscrita no Outro, e que por sua vez já precisa de uma sucessão de tempos lógicos para ser
eficiente. Segundo, algo relativo à primeira relação com o Outro dito "materno." Terceiro, o
tempo do Édipo. Quarto o tempo da latência e a saída na puberdade. Eu não falaria de
estruturação neurótica ou psicótica que seja, antes deste quarto tempo. Portanto, quando
falo de psicótico fora da crise, que nunca encontrou crise, quero dizer que nunca encontrou
desde este quarto tempo que sanciona a sua estrutura. Deste ponto de vista, poderíamos
dizer que só se pode falar propriamente de foraclusão da função paterna como efeito de
uma crise depois do quarto tempo. Já que o conceito mesmo de foraclusão conota um "tarde
demais", que só valeria depois do quarto tempo. (p. 67)
Jerusalinsky (1993) observa que se deve levar em conta, nessa discussão, o fato de que a
estruturação subjetiva ocorre no tempo da infância, e por isso há algo de provisório nessa
estruturação. "As psicoses infantis precocíssimas devem ser consideradas, de um modo

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geral, como não decididas," afirma ele em uma entrevista à Revista da APPOA (1993, p.
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Na psicose infantil, está em jogo uma palavra absoluta, uma palavra que oferece à criança
um sentido único, que rouba da linguagem a sua flexibilidade, sua ambiguidade, suas
múltiplas possibilidades. A criança é o falo de sua mãe, e nada mais. Seu Outro, para usar a
linguagem lacaniana, é absoluto. "A criança psicótica está, mais que qualquer outra,
prisioneira de uma palavra que dá fé e é lei; é uma palavra única, discurso a uma só voz, a
de uma mãe ou um pai" (Cordié, 1994, p. 31).
O lugar do orgânico na discussão etiológica
Sabe-se, de outro lado, que os determinantes orgânicos têm sido postos à frente do
diagnóstico com cada vez maior vigor. Mais que isso, têm sido invocados especialmente
nos diagnósticos diferenciais. A síndrome do X frágil, embora nada definitiva no que diz
respeito aos resultados de pesquisas (Schwartzman, 1995) quando confirmada em exames
de cariótipos, costuma "acalmar" profissionais e pais, que se vêem diante de um autismo
confirmado, definido, materializado em uma falha genética.
Diante da importância que tais diagnósticos médicos vêm tomando, qualquer discussão que
gire em torno dos diagnósticos da psicose e do autismo não poderá ignorar o que se vem
pesquisando nos âmbitos da Neurologia, da Genética, da Psiquiatria Infantil e da
Fonoaudiologia.
No entanto, a Psicanálise tem demarcado claramente a irredutibilidade do discurso médico
ao discurso psicanalítico. Clavreul (1983), em A ordem médica, afirma que "toda tentativa
de fazer uma reconciliação superficial entre psiché e soma não é senão denegação do que
instaurou a objetivação científica: a impossibilidade de deixar um lugar que seja para a
questão do Sujeito."
Por ocasião de um curso sobre a abordagem interdisciplinar dos problemas de
desenvolvimento na infância, Jerusalinsky (1996) discutiu as origens da fragmentação
interdisciplinar e sua relação com a questão do sujeito:
O nascimento da Ciência Moderna e contemporânea trouxe como conseqüência um
deslocamento do estatuto da verdade do sujeito para o objeto ... Nós nos dirigimos, na
busca da verdade, muito mais ao objeto do que ao sujeito ... Esta suposição de que a
verdade opera assim, ou seja, que está absolutamente colada ao objeto ... permeia a
Psicologia, e portanto permeia as diversas disciplinas que se alimentam dela. E uma vez

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que se supõe que a verdade está no objeto, quanto menor o objeto, maior o nível de certeza
que sobre ele se pode atingir. Assim é que surge a fragmentação, que vai dar nas
especializações ... É por isso que o discurso das especialidades faz resistência à
interrogação sobre a subjetividade. (p. 5)
Mais, porém, do que se posicionar criticamente em relação ao discurso da Ciência e da
Medicina, torna-se necessário levar em conta alguns avanços da área médica. Afinal de
contas, todos os profissionais dessa área conhecem os efeitos avassaladores que uma série
de síndromes pode ter não apenas sobre o desenvolvimento da criança, mas igualmente
sobre a constituição do sujeito do insconsciente. Basta lembrar que, até há bem pouco
tempo, eram tão comuns os traços autistas em crianças com síndrome de Down que esses
traços chegaram a ser considerados como patognomônicos daquela síndrome, como já foi
aqui mencionado. Atualmente, alguns psicanalistas consideram que o corpo, em sua
dimensão material, não comparece nesses casos como causa, mas como limite, e como
provocador de ressonâncias de ordem fantasmática tanto para o sujeito infantil como para
seus pais, a ponto de infletir sobre a especularização e ali se produzirem falhas,
responsáveis pelo surgimento dos traços autistas.
Levar em consideração a dimensão do corpo em sua materialidade não é, certamente, tarefa
fácil para um psicanalista, para quem o corpo é antes de mais nada corpo erógeno e
construção significante. Mais que isso, não é possível pensar em uma soma dos diferentes
tipos de diagnóstico realizados por profissionais de diferentes disciplinas. O perfil dessa
criança resultante desses diagnósticos iria parecer-se muito provavelmente com o de um
Frankenstein.
Há, no entanto, equipes interdisciplinares que vêm trabalhando na tentativa de fazer as
especialidades girarem em torno de um mesmo eixo, sem que com isso se percam suas
especificidades. E o eixo comum é uma só noção de sujeito, formulada pela Psicanálise.
Embora trabalhosa, devido ao modo como se estabeleceram as especialidades, modo esse
que as indispõe contra uma leitura do sujeito, é possível subverter essa marca de origem
histórica das especialidades e propor uma prática interdisciplinar cujo ponto de articulação
seja o sujeito posto em posição de ator fundamental.
Levin (1996) observa:
O enodamento do desenvolvimento corporal com a estrutura subjetiva é o campo
privilegiado da interdisciplina. Recordamos que o sujeito se constitui e institui; não se

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desenvolve, mas se estrutura. Em troca, o corpo se constrói e se desenvolve, matura e


cresce. A infância transita por esse inefável caminho onde o enodamento (tichè) entre a
constituição subjetiva e o desenvolvimento psicomotor marca um trajeto balizado por
particularidades, onde o sujeito infantil toma a palavra e se apropria de seu corpo.
Consideramos que é "em" e "por" estes pontos de encontro entre estrutura e
desenvolvimento que a clínica interdisciplinar tem sua origem e sua fundamentação em
nosso campo de trabalho. (p. 20)
Diante dessas questões, alguns autores vêm propondo um reordenamento do campo
diagnóstico. Os eixos não são mais as perguntas pelo orgânico ou pelo psicogênico, e sim a
indagação pela posição do sujeito no enodamento do simbólico, do imaginário e do real. A
pergunta a ser dirigida à criança, na perspectiva de um diagnóstico a realizar-se na
transferência – o que caracteriza o diagnóstico em Psicanálise em oposição ao da
Psiquiatria –, será a pergunta por sua posição subjetiva diante do Outro. Ao invés de
psicóticos, encontraremos crianças postas em variadas posições, cujo eixo comum é uma
falha no registro do simbólico, ou seja, o Outro não se estruturou como barrado,2 o que
resulta em uma variedade imensa de manifestações fenomênicas. Ao invés de autistas,
encontraremos crianças para as quais é o registro do imaginário que não se estruturou de
modo conveniente, provocando igualmente uma grande gama de manifestações
"subjetivas."
A introdução desse reordenamento diagnóstico poderá refletir-se, naturalmente, no
tratamento. Nas falhas do imaginário, uma atenção à construção da imagem corporal. Nas
falhas do simbólico, um reordenamento da relação da criança com o Outro, para barrá-lo,
ainda que de modo ortopédico.
Kupfer, M. C. M, (2000). Notes on the Diagnostic Differences Between Psychosis and
Autism in Childhood.Psicologia USP, 11 (1), 85-105.

Abstract: This paper discusses the differences between the diagnosis of the infantile
autism and the one of psychosis in infancy. It shows the lack of agreement among
psychoanalysts who have written about this theme and proposes a way of establishing the
diagnostic difference: autism can be stated as a fail in maternal function, and psychosis as a
fail in paternal function.
Index terms: Diagnosis. Autistic children. Childhood psychosis. Mother child relations.
Father child relations. Psychoanalysis. Language.

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1
Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721,
São Paulo, SP - CEP 05508-900. E-mail: mckupfer@usp.br
2
O conceito de Outro, escrito com letra maiúscula, se encontra na obra de Jacques Lacan, e
busca estabelecer uma distinção em relação à idéia de "outro." Com minúscula, designa o
semelhante, o parceiro imaginário, fonte das identificações imaginárias. Com a idéia de
Outro, o que se quer é indicar que, "além das representações do eu e também além das
identificações imaginárias, especulares, o sujeito é tomado por uma ordem radicalmente
anterior e exterior a ele, da qual depende, mesmo que pretenda dominá-la. (...)
O Outro, em seu limite, confunde-se com a ordem da linguagem" (Chemana, 1995, p. 156).
O Outro Barrado, por outro lado, é também um conceito lacaniano, que se escreve A com
uma barra transversal sobre a letra. A barra alude à castração, à falta, à submissão a uma
lei.
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under a Creative Commons Attribution License
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Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira
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revpsico@usp.br

Texto 5

A ANÁLISE COM CRIANÇAS AUTISTAS :


UMA INOVAÇÃO DO MÉTODO PSICANALÍTICO CLÁSSICO
http://www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/MariaIzabelTafuri.htm
Maria Izabel Tafuri

Este texto discute a aplicabilidade da técnica psicanalítica no tratamento de crianças


autistas a partir de um caso clínico pessoal. Começa com a discussão crítica da história da
psicanálise de crianças, em seguida a apresentação do caso clínico e posteriormente a
análise da técnica. São realizadas reflexões sobre as questões específicas da clínica com

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crianças autistas considerando as diferentes influências históricas na formação das escolas


de psicanálise.

A aplicabilidade da técnica psicanalítica no tratamento de crianças foi vislumbrada, pela


primeira vez, por Freud, no início deste século. Ao publicar, em 1909, a análise de uma
criança de cinco anos, Freud demonstrou como os sintomas fóbicos do "Pequeno Hans"
poderiam ser compreendidos, interpretados e sanados, por meio da utilização do método
psicanalítico. Hans tinha apenas 3 anos quando começou a apresentar uma fobia: o pavor de
ser mordido por cavalos. Hans não mais saía às ruas para passear e os pensamentos
relacionados aos cavalos o atormentavam sobremaneira, a ponto de imaginar que eles
poderiam mordê-lo, até mesmo dentro de casa.

O pai de Hans era um estudioso da psicanálise e procurou Freud para poder compreender a
fobia do filho. Freud aceitou o desafio e começou a analisar o caso, porém, de forma
bastante curiosa e distinta do método psicanalítico clássico. Freud não recebia o seu
pequeno paciente em sessões individuais, não o ouvia e não o observava. A relação com o
"Pequeno Hans" foi estabelecida através do pai, que sob a orientação de Freud, anotava os
sonhos, os desenhos e as associações livres do jovem garoto. O pai de Hans enviava estas
anotações a Freud, que a partir delas interpretava a linguagem dos sonhos, desenhos e
fantasias. Dessa forma, Freud estabeleceu uma relação analítica peculiar e inovadora com o
seu pequeno paciente: Hans ouvia Freud indiretamente, ou seja, por intermédio do seu pai.
Assim, Hans identificava Freud como aquele quem entendia todas as suas "bobagens" ( era
assim que Hans se expressava em relação ao medo de ser mordido por cavalos).

Hans pediu ao pai para ir ao encontro de Freud que o recebeu uma única vez, juntamente
com seu pai. Nesta sessão, Freud pôde interpretar a angustia central de Hans ao vê-lo
brincando de "cavalinho" com o pai (Hans pediu ao pai para ficar de quatro no chão e,
sentado em cima dele, começou a batê-lo com os pés). Freud concluiu que a angústia de
castração ( o pavor de ser castrado pelo pai) estava relacionada com a fobia a cavalos.

Segundo Freud, o tratamento psicanalítico de Hans fora bem sucedido por uma única razão:
a convergência entre o pai da criança e o analista em uma só pessoa. Criou-se, assim,

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um precedente curioso na história da psicanálise de crianças. Este fato encorajou muitos


analistas a analisarem seus próprios filhos e, a aplicabilidade da técnica psicanalítica em
crianças ficou marcada, desde as suas origens, por este precedente freudiano: a união "pai-
analista".

Duas questões se fazem presentes a partir do tratamento psicanalítico de Hans.

A primeira refere-se à natureza da relação de Freud com o pai do garoto. Freud respondeu
ao interesse do pai de Hans ensinando-o a compreender a linguagem do inconsciente
presente nos sonhos, desenhos e associações livres de Hans. Nesse sentido tratou-se de uma
relação pedagógica onde Freud não fez interpretações na relação transferencial entre o pai
de Hans e ele.

A segunda questão diz respeito à eficácia do método psicanalítico na ausência da


interpretação da relação transferencial entre Freud e Hans. Em suma, a interpretação da
relação transferencial entre o analista, a criança, e seus pais não foi cogitada por Freud no
caso do pequeno Hans. Esta questão será considerada posteriormente como essencial para
se definir a legitimidade de uma escola psicanalítica.

O ensino oficial psicanalítico situa a origem da análise infantil aos critérios estabelecidos
por Melanie Klein e Anna Freud, enquanto duas opções opostas de se analisar crianças: o
analítico e o pedagógico. Apesar do caso do pequeno Hans ser considerado um ilustre
precedente, este fato não serviu para minimizar a polarização dos dois modelos de análise
de criança. Ou seja, Melanie Klein e Anna Freud não discutiram a natureza da relação
estabelecida entre Freud, Hans e o pai do garoto. Melanie Klein priorizou a interpretação na
relação transferencial com a criança e desprezou a relação entre o analista e os pais da
criança. Nesse sentido, a autora rompeu com o precedente freudiano, ao considerar que a
união pai-analista era desnecessária para o trabalho psicanalítico com as crianças. Anna
Freud, por sua vez, considerou a necessidade de um período prévio, não analítico, na
relação entre o analista e a criança. Neste período inicial, o analista tomaria uma posição
pedagógica, de domínio e de sugestão, para depois empreender o verdadeiro trabalho
analítico. Segundo ela, o analista de crianças deveria acrescentar à sua atitude analítica uma

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segunda, a pedagógica. Em relação aos pais, Anna Freud relatou a necessidade de orientá-
los e estabelecer uma relação transferencial positiva.

Em síntese, duas grandes escolas de psicanálise foram constiutídas, a partir das discussões
sobre a aplicabilidade da técnica psicanalítica com crianças- a Kleiniana e a annafreudiana-
sob a marca do analítico e do pedagógico. Este último, visto como algo denegridor para a
análise. Os kleinianos foram, à época, reconhecidos como os "verdadeiros psicanalistas" e
os annafreudianos como os "não analíticos". Criou-se, a partir da década de 20, um discurso
acusatório e antagônico do que seria ou não a "verdadeira psicanálise".

Na década de 60 surgiu na França, com Françoise Dolto, Maud Mannoni, Rosine e Robert
Lefort, um novo modelo de análise de crianças, trazendo o pretenso ideal de ocupar o lugar
da escola Kleiniana- "os analistas puros". A demanda da legitimidade insistiu em retornar.
Mais uma escola de psicanálise de crianças foi criada em defesa do caráter analítico de sua
prática. O analista, segundo Dolto, deveria se abster de qualquer ação pedagógica, mesmo
aquela baseada nos princípios psicanalíticos. Ou seja, o discurso psicanalítico continuou a
responder ao antagonismo criado por Melanie Klein e Anna Freud, que se refere à
continuidade ou à ruptura com o pensamento freudiano.

Atualmente a análise com crianças autistas absorveu este questionamento, ou seja, seria
esta análise "pura e verdadeira", como os kleinianos e os lacanianos preconizaram? Alguns
analistas vêem utilizando terminologias como "psicoterapia de base analítica" ou
"psicoterapia psicanalítica" para se referir ao tratamento das crianças autistas. Ao que
parece, estas denominações, "psicoterapia de base analítica" ou "psicoterapia psicanalítica",
seriam uma forma de responder aos três modelos de psicanálise de crianças: ao de Anna
Freud, por se um tratamento que envolvem ações pedagógicas; e aos de Melanie Klein e
Françoise Dolto, por ser um tratamento que envolve também a técnica psicanalítica
clássica, a interpretação na relação transferencial.

Neste texto, são realizadas discussões a propósito da aplicabilidade do modelo psicanalítico


com crianças autistas são realizadas, a partir de uma experiência pessoal: a análise de uma
criança autista. Por meio deste caso clínico, identifico a natureza da relação transferencial

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que se estabelece entre a criança autista e o analista, a partir das interpretações. Faço
algumas reflexões acerca da influência da história da psicanálise de crianças na clínica com
crianças autistas e critico a perpetuação do modelo antagônico presente no pensar
psicanalítico em relação a este tema.

UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL : A ANÁLISE DE UMA CRIANÇA AUTISTA

O caso a ser relatado é de uma criança de três anos que me foi encaminhada com o
diagnóstico de Autismo Infantil Precoce. (1)

Quando os pais chegaram com Maria para a primeira consulta, ela entrou correndo na ponta
dos pés, sem olhar para nada. A mãe a segurou e disse para mim: "ela não fica parada tem
muita energia". Os pais se sentaram e Maria ficou correndo pela sala sem explorar os
objetos e sem nos dirigir o olhar.

Pedi aos pais para falarem de suas preocupações em relação à fiilha. A mãe se adiantou e
disse que o mais preocupante era o fato de Maria não falar, pois o resto, segundo ela, "eram
coisas de criança mesmo".

Enquanto a mãe falava, Maria emitia grunhidos e girava as mãos em frente ao seu rosto,
com muita velocidade e leveza. Ela parecia hipinotizada com o movimento das mãos. As
pontas dos pés tocavam o chão, com tal leveza e agilidade, que davam a impressão de não
carregarem o peso do corpo. (2)

A mãe se referiu aos seus passeios com Maria, ocasião em que segurava a filha pelas mãos
com o intuito de fazer as pessoas nãorepararem o movimento das mãos: "você pode ver que
ela só parece que é autista quando fica fazendo isso com as mãos ou quando começa a
gritar e bater a cabeça, mas se fica quieta, ninguém repara porque ela não tem nenhuma
marca que diga que ela é doente". Neste momento, seus olhos se encheram de lágrimas e
ela disse: "todas as noites quando vejo ela dormindo fico pensando que no outro dia ela vai
acordar me chamando de mãe. Dormindo, ela parece com uma criança normal". O pai
continuava imóvel e calado.

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Eu me sentei no chão, comecei a pegar alguns brinquedos indiscriminadamente e fiquei


tentando reproduzir os grunhidos de Maria, pois, não podia interpretá-la, como faço com as
crianças que falam e brincam desde a primeira sessão. Eu não tinha a possibilidade de
reconhecer os sentimentos de Maria, pois a relação entre nós era marcada por um
isolamento avassalador, onde não havia nenhum indício de comunicação. Ela não
demonstrava nenhuma angústia ao entrar no consultório e parecia não me ver. Os seus
olhos passavam pelos objetos sem explorá-los. Neste momento, parecia envolvida com o
movimento circular das rodas, se sentava no chão e balançava o seu corpo em torno de si
mesma.

Maria esvaziava todas as gavetas e prateleiras e os brinquedos escorregavam pelos seus


dedos. Ela andava sobre os brinquedos,que iam caindo no chão, como se nada atrapalhasse
o seu equilíbrio. Os pais estavam aflitos com a bagunça da sala e se anteciparam para por
tudo no lugar.

Disse a eles para não se incomodarem e me dissessem o que estavam sentindo naquele
momento. O pai, bastante acanhado, disse que tentava educar Maria, mas não conseguia,
ela era incapaz de pegar as coisas do chão e colocar nos lugares adequados. "Eu me sinto
mal com a casa toda bagunçada", completou. A mãe falou que tentava ensiná-la a brincar,
mas ela não ficava parada e nem prestava atenção.

Disse a eles que se sentiam decepcionados por não conseguirem ensinar Maria a brincar, a
falar e a organizar os objetos. "Vocês estão também ressentidos de não entenderem as
reações de Maria e de não poderem ter com ela um relacionamento comum, previsível.
Vocês conversam entre si sobre estes ressentimentos? Perguntei.

Eles disseram que não falavam muito de si mesmos, do que sentiam, só falavam da filha
para tentarem entendê-la. Perguntei a eles o que eles mais temiam. A mãe disse que apesar
de terem o diagnóstico de autismo não queriam concordar com o médico que era muito
grave e incurável. Isto porque ela sabia que Maria se parecia muitas vezes com uma criança
normal, contudo em outros momentos era bastante estranha. O pai se referiu ao medo de

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que Maria nunca falasse e não aprendesse a cuidar de si mesma, mas que também tinha
esperanças de que a filha não fosse tão doente assim como o médico havia dito.

Os pais fizeram mais algumas perguntas e começamos assim o tratamento de Maria. O


trabalho analítico com os pais foi realizado segundo os princípios do modelo analítico
estabelecido por Fraçoise Dolto o qual foi determinante para o tratamento de Maria.
Contudo, este tema não será analisado neste trabalho por se tratar de uma outra questão.

OS PRIMEIROS SONS : SÍGNOS APRESENTATIVOS

Os sons emitidos por Maria eram muito fortes, estridentes, atonais e arítmicos. Não se
podia dizer que eram gritos de raiva ou expressão de alguma necessidade. Os sons não
surgiam associados a qualquer gesto ou mímica facial, eram totalmente anárquicos e
desprovidos de significado emocional. Contudo, eram sons que brotavam de sua boca, com
uma sonoridade específica, eram metalizados, como que congelados-uma ausência total da
sonoridade da voz humana. Neste sentido, longe de considerar os sons como meras
estereotipias, como prescreve a psiquiatria clássica, comecei a pensar na qualidade daqueles
sons, e percebi que eram de alguma forma criados por Maria. Eram individualizados e não
se pareciam com sons humanos nem com sons advindos da natureza ou dos
eletrodomésticos, por exemplo. Eram sons realmente novos, eram dela. Pensei naqueles
sons como uma criação. Por outro lado, poderia ser também uma maneira que aquela
criança encontrou de não emitir sons parecidos com os dos humanos, ou seja, um
mecanismo de defesa. Estes sons tinham também a característica de preencher o espaço,isto
é, eles eram ouvidos por ela, por mim e pelos pais.

Segundo Suzane Langer, "o jogo vocal da criança enche seu mundo de ações audíveis, os
estímulos mais próximos e mais completamente absorventes, por serem tanto internos
quanto externos, autonomamente produzidos, no entanto inesperados..."(1989:130). No
desenvolvimento normal do bebê suas vocalizações além de encherem seu universo,
provocam ecos no ambiente, resultado da repetição dos sons por parte dos pais. O bebê
parece reconhecer, gradualmente, que o som que ocorre em outro lugar é o mesmo de sua
lalação. Isto resulta um aumento de experiência: o bebê torna-se cônscio do tom, o produto

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de sua atividade que lhe absorve o interesse. Posteriormente, o bebê começa a repetir
vocábulos, como ma-ma, da-da, que são sons articulados, quando então uma difusa
consciência de vocalização cede lugar à consciência. O vocábulo passa a ser repetido
prazeirosamente pelo bebê. E ele o repete quando quiser, formando uma posse e um
produto de sua própria atividade. Trata-se de uma experiência puramente fenomenal, pois
não tem relações fixas externamente. Isto permite que o bebê use os vocábulos de forma
imaginária e emocional, e faça identificações sinestésicas e associações casuais. Para
Langer, este período da lalação "é o que há de mais pronto no mundo para converter-se
em símbolo quando um símbolo é desejado"( 1989:130). Ao ouvir e proferir um vocábulo,
o bebê pode fazer associação com o cheiro da mãe, com a voz dela, o olhar, que para ele
tem o sentido de uma presença. Pode também estar associado com o formato da mamadeira,
com o líquido que entra na sua boca, ou com qualquer outra coisa. O som reconhecível e
produzível passa a ser identificado com estas coisas. Nesse sentido o bebê, ao proferir um
som, invoca uma concepção por ele construída.

Segundo os pais de Maria, ela não passou por este período de lalação. "Ela era muito quieta
e quase nunca chorava". Na medida em que Maria começou a emitir os grunhidos, não
encontrou a possibilidade de escutar os seus sons, pois estes não foram repetidos pelos pais,
que os desconsideravam por serem muito estridentes e cansativos, além de não terem
nenhuma função comunicativa. Ela não podia, por meio dos seus sons, do seu olhar e dos
seus gestos, indicar sensações, necessidades e desejos. Os pais simplesmente queriam que
ela não gritasse daquela forma, pois incomodava bastante.

Observei que ao ouvir os sons que eu proferia, que eram parecidos com os seus, Maria pôde
vivenciá-los na relação com um outro, e a partir deste encontro fundamental, o brincar com
a voz se fez presente e ela começou a estruturar a relação interpessoal. Os sons emitidos por
Maria não admitiam tradução. Eu não podia pensar em significados conscientes ou
inconscientes, portanto não podia interpretar. Os comportamentos estereotipados, como o
de balançar as mãos e o de pular na ponta dos pés, não ofereciam tão pouco possibilidades
de conferir significado. No final da sessão, quando disse que já havíamos conversado o
suficiente, e que ela já iria embora, eu tinha em mente que o comportamento dela de pular
em frente a porta poderia ter outros sentidos , como por exemplo, a cor da porta, a

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maçaneta, o som que vinha do outro lado, em fim qualquer outro estímulo, inclusive as
sensações do seu próprio corpo. Em suma, interpretar as sensações ou traduzir as angústias
dela não foram as intervenções iniciais neste caso.

Esta atitude clínica se diferencia da relação analítica clássica, que é a da interpretação,


segundo a qual o sujeito precisaria ser atravessado pelo discurso simbólico para se
constituir como ser falante. Como nos diz Dolto, o bebê precisa receber um "banho de
linguagem". Ou seja , a mãe, além de imitar suas lalações, o interpreta em suas
necessidades e se oferece enquanto corpo apaziguador de angústias. Contudo, Maria não
estava ainda podendo ser este bebê do qual nos fala Dolto, pois ela ficava transtornada se
eu insistia em me aproximar dela. Por outro lado, eu não podia ser esta "mãe"que interpreta
as necessidades do bebê: eu não podia saber suas necessidades.

Me parece que este caso clínico deixa evidente o valor do som da linguagem, um valor pré-
simbólico. O que Maria parecia ouvirera um som, e não o som vindo de alguém. Na
realidade, eu me mantinha afastada fisicamente e olhava muito pouco para ela. Contudo, eu
ficava ansiosa para que ela me ouvisse e se aproximasse fisicamente. Em fim, por mais que
eu apenas a repetia, eu estava ali com os meus desejos e anseios. Contudo tinha que me
manter em um estado de mesmice, manobrado por ela. Assim ela se sentia tranqüila.

Ao refletir sobre a função da repetição dos sons neste caso clínico, penso que podemos
pensar nos sons de Maria como um simbolismo apresentativo que, segundo Suzane Langer,
é um "veículo normal e prevalecente de significado e amplia nossa concepção de
racionalidade para muito além das fronteiras tradicionais...onde quer que um símbolo
opere, existe um significado; e inversamente, diferentes classes de experiência-por
exemplo, razão,intuição,apreciação- correspondem a diferentes tipos de mediação
simbólica...simbolismo sem palavras, não-discursivo e intraduzível, que não admite
definições dentro de seu próprio sistema, e não pode transmitir diretamente generalidades"
(Langer,1989:104). Suzane Langer levanta a questão de haver a possibilidade de um
simbolismo não-discursivo, como por exemplo, de luz, cor ou tom, de ser formulativo da
vida impulsiva, instintiva e senciente.

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Freud(1895), no "Projeto para uma Psicologia Científica", desenvolve a noção da


percepção-consciência, em que a percepção, incapaz de reter marcas, é sem memória. As
percepções se ligam ao consciente, mas não deixam nele nenhum traço do que aconteceu.
Logo, o primeiro registro das percepções está fora da consciência e é ordenado conforme as
associações simultâneas. O segundo registro seria o do Inconsciente ordenado segundo as
relações de causalidade. O terceiro, o do Pré-consciente, ligado às representações verbais.
Segundo Freud, a condição para haver um funcionamento psíquico normal reside na
tradução destes três registros. As psiconeuroses são explicadas como a não tradução de
certos materiais. Freud insistiu em deixar a percepção separada da consciência, afirmando
que a consciência cogitativa secundária ocorre tardiamente, e está ligada à reação
alucinatória de representações verbais.

No caso de Maria a percepção dos grunhidos seriam percepções sem marcas, sem
memória? Pertenceriam a um registro fora daconsciência, ordenado por regras próprias?
Como traduzir este registro? Poderíamos dizer que os grunhidos são símbolos
apresentativos?

O PROCESSO SIMBÓLICO

O jogo da troca de sons com Maria perdurou por quase nove meses. A partir da evolução
Maria começou a balbuciar as primeiras sílabas e depois a falar . Como podemos
compreender a advento da fala a partir deste jogo de sons?

Em primeiro lugar, observou-se que Maria introduziu o fator temporal, ou seja, ela
começou a esperar pela escuta do som que vinha do outro (ela emitia um som e parava, eu a
imitava e aí ela voltava a fazê-lo). No início, a espera foi permeada por muitas crises de
angústia, ou seja, ela começava a gritar e a se debater, jogando a cabeça contra a parede,
antes e durante as minhas imitações. Nestes momentos eu parava de produzir os sons e
tentava lhe oferecer uma presença amparada para que ela pudesse voltar a produzir os sons
(3) Naqueles momentos eu só podia estar presente como um ser acolhedor, desprovido da
capacidade de compreensão das vivências inconscientes. Dessa forma, Maria foi aos

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poucos deixando de se angustiar com a troca de sons e começou a brincar com eles (ela
sorria quando ouvia minha voz, começava a pular na ponta dos pés e balançava as mãos).

Os sorrisos começaram a aparecer em seus lábios e os olhos já se atreviam a me olhar


periféricamente, através de estrabismos. Assim foi possível o surgimento de uma seqüência
de sons que se repetiam em todas as sessões, formando um contexto de mesmice, no qual
Maria me congelava no lugar de um espelho: eu só podia reproduzir. Aos poucos, ela foi
podendo me fitar e se aproximar fisicamente.

Nesta fase do tratamento foi necessária muita paciência da minha parte. Parecia que Maria
havia estacionado, se fixado naquela seqüência de sons, pensei muitas vezes que se tratava
de mecanismo de defesa e que eu precisava interpretar, por outro lado as suas
manifestações de alegria e angústia, ao repetir as seqüências, me levavam a ficar calada e
tentar ser uma "analista continente".(Bion) Era como se Maria precisasse daquele tempo
para fazer a integração de suas sensações, por meio daquelas intermináveis seqüências
sonoras.

Segundo Winnicott, o bebê não existe sem a sua mãe, e ele a cria como objeto a ser
investido libidinalmente. A mãe aprende a se organizar de acordo com o rítmo singular da
criança. Nesta relação, o bebê cria um tempo subjetivo, e começa a ser singular na maneira
de se organizar no tempo.

Ao que tudo indica, a relação de Maria comigo se estabeleceu neste sentido. Depois da fase
das repetições de sons, ela pôde encontrar o meu corpo e o dela. Deixou de fazer as
estereotipias e começou a representar as primeiras formas no papel. Ou seja,ela pôde se
organizar no tempo e no espaço, a partir do encontro com o corpo do outro.

Em uma segunda etapa, Maria introduziu o fator espacial. Assim que emitia um som, ela se
escondia pelos cantos da sala, ou em baixo da mesa. Daquele lugar ela esperava, com
prazer, ouvir a minha voz. Esta brincadeira, criada por ela mesma, tinha uma carga afetiva
intensa. Ela sorria, gritava, e pulava nas pontas dos pés, fazendo estereotipias com as mãos.
As estereotipias, como o pular nas pontas dos pés e o balançar das mãos na frente do rosto,

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passaram a surgir apenas nestas manifestações afetivas. Houve uma contextualização dos
comportamentos estereotipados que deixaram de ocorrer isoladamente. Maria se utilizava
destes comportamentos estereotipados para manifestar alegria e excitação. Isto acontecia
quando, por exemplo, ficava esperando pela minha voz. Eu também comecei a me esconder
para repetir os sons. Dessa forma ela foi começando a me procurar e a se encostar no meu
corpo. As aproximações físicas sempre foram de costas. Por exemplo, se eu estava sentada
no chão ela se sentava de costas para mim e ia se aproximando até me encostar e se sentar
em meu colo. Aos poucos ela foi podendo olhar para o meu rosto e depois começou com a
exploração do meu corpo. Ela pegava nos meus lábios, boca, nariz, garganta, como se
quisesse entrar dentro deles. Passava sua língua em meu rosto, nas minhas mãos e braços.
Não era raro haver mordidas e manifestações de angústia em meio a estas explorações
corporais.

Quanto aos brinquedos da sala, Maria imprimiu um rotina que era a seguinte: primeiro
jogava tudo no chão, depois pegava alguns objetos e os colocava de cabeça para baixo em
cima da mesa e, finalmente, continuava a andar em cima dos outros que estavam no chão.
Os brinquedos que ficavam em cima do armário começaram a ser apontados por ela, ao
mesmo tempo em que olhava para mim. Alí estava presente uma designação, a
possibilidade de apontar algo, que indica uma capacidade simbólica.

Posteriormente, ela começou a se interessar por histórias de contos de fadas, em especial,


Chapeuzinho Vermelho Primeiramente, ela me pedia para contar a história. Depois
começou a jogar com a história: ela era chapeuzinho e eu o lobo. Muitas vezes ela
interrompia a minha dramatização e perguntava onde estava a minha voz. Ela me olhava
amedrontada, como se eu tivesse desaparecido, no momento em que fazia a voz do lobo
mau. Eu parava de ser o lobo mau e dizia "eu estou aqui". Mesmo nesta fase em que Maria
já tinha o domínio da linguagem, eu não me sentia tranqüila para interpretá-la como ocorre
com outras crianças, eu me limitava em dizer que eu estava alí e que o lobo mau só iria
aparecer se agente voltasse para a história. Mais tarde, Maria já conseguia brincar de "faz
de conta", sem a presença desta angústia de aniquilamento, e ela começou a querer
aprender a jogar xadrez, lufo...etc..

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O reconhecimento do "não–eu", segundo Winnicott, constitui a criação do campo da


transicionalidade. Este tempo transicional possibilita que a criança se relacione com os
outros. No caso de Maria, o campo da transicionalidade foi constituído a partir da
brincadeira do lobo mau. Ela tinha medo que eu desaparecesse e me transformasse em lobo
mau. Esta vivência é a do não-eu, no início vivida por Maria como desestruturadora. Com o
tempo ela pôde brincar de ser má e de ser também o lobo mau. A maneira como ela
vivenciou a ação de ser má, na pele do lobo mau, foi muito importante. Ela engrossava a
voz , fazia cara de má e algumas vezes inventava outro fim para o lôbo mau. Esta
possibilidade de exprimir as emoções por meio do corpo surgiu tardiamente. Quando Maria
começou a falar, o fêz de forma inexpressiva. As palavras pareciam objetos sem vida que
saíam da sua boca. É interessante esta questão: quando ela repetia os sons ela podia trazer a
entonação de uma frase fazendo, por exemplo, hum...hum... Só depois de quase seis anos
que Maria pôde ser mais afetiva em sua fala, ou seja, pôde falar com mais sonoridade.
Durante este período a constituição do "eu" foi a condição necessária para que ela pudesse
falar de forma afetiva.

REFLEXÕES

A interpretação que o analista faz do discurso do paciente toma como base a concepção de
que o discurso é seqüencial no tempo, reporta ao aparecimento de uma palavra depois da
outra. Contudo, sugiro a possibilidade de ver o simbólico de uma outra forma, a exemplo
do conceito de sígno apresentativo elaborado por S. Langer. Uma palavra pode ser um
sígno apresentativo, que apresenta algo ao sujeito, anterior a qualquer representação, por
meio do seu son, do seu traço e singularidade.

Nesse sentido, os sons de Maria, no inicio do tratamento, podem ser considerados como
sígnos apresentativos, que não admitem tradução e nem interpretação. Eles são imediatos,
não podem ser reduzidos a uma interpretação, e não se prestam à compreensão cognitiva.
Uma clínica diferente pois coloca o analista no lugar de escutar um "discurso" não
representativo. A ação do analista deve ser então a de criar novas formas de interpretação.

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Sendo assim, sugiro a hipótese que a relação analítica existe desde o primeiro encontro. Ela
não deve ser criada, e sim estabelecida a princípio por meio de uma nova natureza de
interpretação.

Alguns psicanalistas, a exemplo de Laznik-Penot, reconhecem valor significante em toda


produção da criança, gestual ou linguageira. Segundo eles, se o analista reconhece que alí (
em qualquer produção) existe uma mensagem, a criança poderá se reconhecer a posteriori
como fonte dessa mensagem. Depois da leitura da obra de S.Langer e refletir sobre as
minhas experiências como analista de crianças autistas, estou mais inclinada a reconhecer o
primeiro encontro com a criança autista como uma experiência analítica inominável.

Tomo emprestada a crítica de Júlia Kristeva(1996) a Lacan, em seu texto "A sensação é
uma linguagem". Na crítica ela se referiu ao autor, como um cultivador de uma pressa
lógica em identificar o que é pré-linguagem e linguagem. Essa pressa essa que pode apagar
a estratificação do aparelho psíquico, isto é, pagar os estágios anteriores da linguagem, os
"quase símbolos", entre eles os gritos, as imitações e as percepções-excitações. Os "quase
símbolos’ ao serem compreendidos como significantes, reduzem as experiências
inomináveis aos "significantes puros". A capacidade perceptiva e sensorial do analista pode
desaparecer por causa a esta tendência de interpretar mensagens advindas dos significantes.

Em suma, o estabelecimento de uma relação psicanalítica com uma criança autista o


analista na posição de compreender o lapso de tempo que o sujeito não recorda. Este tempo
abrange o período de aprendizado da linguagem, um período sensorial intraduzível pelas
vias cognitivas. Nessa fase primitiva em que se encontra a criança autista, nenhuma
experiência pertence ainda a qualquer classe. As ações audíveis de Maria pareciam ser para
ela completamente absorventes, inesperados, repetitivos e para mim misteriosos. A partir
do encontro com estas ações audíveis, foi possível estabelecer uma relação analítica com
Maria. Um encontro não marcado pela ação de interpretar mas por uma escuta psicanalítca
abrangente o suficiente para experenciar fenômenos intraduzíveis da constituição do "eu".

Finalmente, considero que fazer das técnicas aqui apresentadas um fator indicador do que é
ou não psicanálise, é colocar em risco a primazia da escuta clínica tão bem fundamentada

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pelo pai da psicanálise. A questão primordial que a criança autista nos coloca é a da escuta
do inominável, como fazê-lo dentro da tradição simbólica da psicanálise?. Talvez seja
necessário pedir emprestado à filosofia alguns conceitos, assim como foi feito com a noção
de símbolo apresentativo, que nos permitam refletir sobre a questão imposta pela clínica
com a criança autista.

NOTAS

Maria já havia passado pela clínica médica onde fez todos os exames neurológicos de
praxe. Todos foram negativos e o psiquiatra lhe conferiu o diagnóstico de autismo, com a
recomendação de que ela deveria ter uma educação especial , tomar remédios para diminuir
a hiperatividade, fazer fonaudiologia e terapia comportamental. . Esta é a recomentação
prescrita no DSM IV

Segundo a psiquiatria clássica estes dois movimentos, o balançar as mãos e o andar nas
pontas dos pés, são considerados comportamentos estereotipados, sem nenhuma função de
comunicação. O tratamento médico psicológico comportamental tem como objetivo
extinguir tais comportamentos.

F. Tustin (1990) nos apresenta um convincente material clínico para demonstrar como as
crianças autistas vivenciam seu corpo, no encontro com o outro, como uma ameaça física,
uma catástrofe. Uma das crianças autistas, atendidas por ela, designou esta sensação como
um medo de cair em "um buraco negro". Outros autores designam esta ameaça como
"angústia impensada" ( Winnicott, ), "angústia

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