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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
LINHA: CULTURA E PODER

CONTO DE CEM RÉIS


Por: Laércio Teodoro da Silva

Trabalho apresentado à disciplina Tópico Especial


em História e Cultura – Cidade e Modernidade:
trajetórias e registros do amor e da solidão.
Professor: Dr. Antônio Paulo de M. Rezende.

Recife – fevereiro de 2015


Conto de Cem Réis

O som que anunciava a chegada do bonde surpreendeu a todos que o


esperavam no ponto. Não eram os sons dos cascos dos burros, nem das rodas, que na
maioria das vezes pecavam pela falta de lubrificação e já tornava tão familiar aos
ouvidos o som de suas voltas a deslizar pelos trilhos. Sons que até o dia anterior
anunciavam mais um momento do desenrolar cotidiano na cidade da Parahyba do Norte
e que despertava o sentimento de que as coisas, até aquele momento, estavam no seu
devido lugar e tendiam continuar até o final do dia. Mas aquele 14 de fevereiro de 1914
anunciava transformações e os sentidos da cidade haveriam de se acostumar com mais
essa novidade.
O arranhado das rodas nos trilhos se misturava com os estalidos de pequenas
descargas elétricas. À medida que o som aumentava, crescia junto a expectativa dos
assíduos passageiros da Linha Trincheiras e daqueles que estavam ali cedo da manhã
apenas pela novidade anunciada: o início dos serviços do bonde elétrico da Empreza
Ferro-Carril da Parahyba. Olavo foi despertado de súbito pelo apito. Desde que chegara
ao ponto se colocou a lançar um olhar minucioso sobre os trilhos. Ele podia apontar com
toda certeza quantos centímetros e metros de trilhos haviam sido substituídos.
Analisava os postes que conduziam a rede de fiação elétrica que alimentaria o novo
bonde da capital – eletricidade ainda era uma novidade, a rede havia sido implantada
há apenas dois anos e nem havia chegado a todos os pontos da cidade.
Novamente o apito; e o bonde parou no ponto. Os passageiros, incluindo Olavo,
olharam com todo o cuidado para o bonde parado. Olhavam para o condutor e para os
dois passageiros que já se encontravam sentados. O condutor anunciou a partida
obrigando-os a subir. Olavo subiu e tomou seu lugar, percebendo que era o mesmo que
costumava sentar no antigo bonde. O bonde começou a andar. O estalido e o apito
assustou alguns e tirou alguns risos acanhados dos passageiros e dos curiosos que
ficaram no ponto a acenar para os que partiam.
Olavo gostava do bonde e da convivência que ele proporcionava. Principalmente
naquela hora da manhã quando ia ao trabalho. Lamentava-se por não ter ido estudar
Direito no Recife, mas não reclamava de seu cargo de funcionário público. Para ele, sair
de casa àquela hora proporcionava assistir o despertar da cidade. Costumava acordar
cedo, antes das luzes dos postes se apagarem e antes dos trabalhadores das feiras,
dos matadouros e do porto começarem a perambular pelas ruas. Saía à janela quando
escutava ao longe o cantar do leiteiro.
Neste dia fez tudo como era de habitual, mas apressou-se um pouco mais para
chegar ao ponto do bonde. Olavo sempre era pontual, ao contrário do bonde que muitas
vezes seguia o horário conforme o humor dos burros – uma das justificativas para a
substituição desse serviço pelo de tração elétrica. A promessa era de que não haveria
atrasos a partir daquele dia. Pelo menos naquele não houve e Olavo seguia viagem,
que muitas vezes duravam vinte minutos.
Olavo tinha o costume de ir escrevendo suas ideias sobre a cidade nas linhas
dos trilhos, nas fiações, no meio-fio e no perfilar das habitações. Também costumava
observar os transeuntes, os trabalhadores. Gostava de observar as senhoras que
voltavam das velhas fontes com as latas respigando água pelo caminho. Prestava
atenção no que permanecia e no que ia mudando na cidade. Hoje essa escrita pelo
olhar se tornava mais acelerada e lhe causava angústia. Mal conseguia concluir uma
“frase” e o bonde já dobrava a esquina. Mal podia fixar o olhar na dama que passava
sustentando sua sobrinha de renda ou na lavadeira carregando a trouxa de roupa e o
bonde já tomava outra rua.
Também observava discretamente os passageiros, com alguns dos quais
costumava conversar sobre política, literatura e sobre amenidades. Captava trocas de
olhares entre moças e rapazes. E não poder observar a rua como de costume, ao seu
tempo, ou ao tempo do antigo bonde, o fez voltar a atenção aos demais passageiros.
Alguns já conhecidos de outras viagens, outros sempre novos. Ele gostava da
alternância dos rostos, dos tipos humanos e sociais que se alternavam dia a dia, turno
a turno.
Tinha o senhor que a cada minuto tirava seu relógio do bolso para conferir as
horas. Ele pensava ser ou uma insanidade ou um costume adquirido pelas viagens no
antigo bonde que seguia conforme a vontade dos burros e a viagem lenta fazia muitas
vezes o bonde atrasar e muitos dos passageiros se atrasarem para seus compromissos.
Tinha também o dono de um dos secos e molhados da Rua do Comércio que sempre
fazia questão de anunciar os seus produtos, entre outros tipos que chamavam a sua
atenção.
Para ele, os corpos, seja pelas posturas, sejam pelas vestes, denunciavam o
lugar social de cada passageiro. Sabia quem seguia para o Liceu, para o grupo escolar,
quem era advogado, na senhora que ia para a missa, na “pessoa comum”. Causava-lhe
admiração esses contatos. Reparou que nesse dia alguns estavam mais arrumados que
o habitual. Pensou que talvez fosse por conta da primeira viagem no novo bonde.
Percebia, e sentia, o calor tomando conta do dia. As mulheres se abanavam. Os
homens, e o próprio Olavo, tiravam seus lenços do bolso para enxugar o suor no rosto
e manter a pose, mas, apesar disso, todos traziam a pele com o brilho comum a um dia
quente e úmido.
Costumava também prestar atenção nas conversas alheias. Acabava sabendo
de pormenores da política, dos casos da justiça ou das famílias abastadas, seja
escutando as conversas, seja puxando assunto com o condutor, que, para ele, era o
homem que mais sabia sobre a vida e os segredos da cidade, a quem sempre se
reportava para medir o que estava por vir na política, nas novas transações comerciais
e nos fuxicos.
O bonde era, por excelência, um lugar de sociabilidade e Olavo gostava disso.
Amizades foram feitas entre viagens. Achava também que sempre cruzar com novos
rostos ou conversar com estranhos eram marcas de novos tempos. Nesse dia ele bem
que tentou reproduzir alguns de seus hábitos. Ele costumava intercalar conversas com
o condutor ou com algum passageiro ou ler algum livro. Algumas vezes lia para os
demais passageiros, para os que não eram afeitos às letras, mas manifestavam
curiosidade pelos livros ou pelas notícias dos jornais que ele sempre carregava à
tiracolo. Mas nesse dia não houve espaço ou tempo para leitura e as conversas entre
condutor e passageiros e entre os próprios passageiros se resumiam à novidade que
era o próprio bonde. A verdade é que todos ou estavam interessados nas minúcias do
funcionamento do novo bonde ou apreensivos para que tudo desse certo nessa viagem.
O condutor também era novo, veio direto de Recife para o trabalho e mal conversava.
Nesse dia Olavo sentiu falta do antigo condutor, que até o dia anterior era responsável
por aquela linha.
O bonde seguia. Chacoalhava. Vacilava nos trilhos. Mas nada fora do que já
estavam acostumados. Parava. Mas dessa vez era para o condutor remexer com uma
vara nas hastes para reestabelecer contato com os fios. O bonde voltava a seguir
viagem e com a promessa de não haver atrasos.
A sensação que ele acreditara sentir, de que o tempo andava mais rápido,
pareceu se concretizar no andar do novo bonde, que seguia depressa. Apesar da
empolgação com a novidade, dentro dele essa velocidade causava certo incômodo. Ele
já havia programado, cronometrado, os seus afazeres do dia, já que era um homem
metódico. A velocidade daquele bonde, de certa forma, o desconsertou. Possivelmente
chegaria adiantado. Teria mais tempo livre. Mas para quê? Talvez para perambular, algo
que gostava de fazer. Incomodava essa incerteza. Mas perceber que o bonde tomava
um novo trajeto o despertou. A linha não estava obedecendo como um todo o percurso
do antigo bonde.
“Um novo trajeto para um novo bonde. Uma nova cidade para o novo bonde?”
Esses pensamentos o empolgavam novamente.
De fato, os novos trechos eram, de certa forma, novidade para ele. As ruas de
pedra tinindo de nova, exclusivamente para os trilhos do novo bonde, chamavam
atenção. Era como veias que faziam uma nova cidade pulsar. E, de fato, as novas
artérias que iam sendo formadas atendiam a uma nova lógica de cidade. Retas, largas.
E ao longo dela iam se erguendo casas que deviam seguir a ordem que se anunciava.
Porém, a viagem rápida não fez com que deixasse de reparar nos trabalhadores
que caiavam o meio-fio e algumas casas mais antigas que resistiam pelas vias que o
bonde passava. Ele se perguntava se ainda estavam derrubando as palhoças próximo
à tal rua nova.
Também pôde reparar que todos que estavam na rua paravam para olhar o
bonde. O senhores tiravam o chapéu e cumprimentavam aqueles que seguiam viagem.
As crianças acenavam. Algumas ousavam subir, mas logo eram espantadas. Mulheres
saiam à janela, outras paravam o varrer das calçadas. Em alguns trechos os homens
corriam para tirar os cavalos, jumentos, porcos, cabras e outros animais do caminho.
Havia a proibição de animais em vias públicas, mas tal “costume” permanecia em várias
partes da cidade. Olavo pensou consigo que o novo bonde logo trataria de ajudar no
trabalho dos fiscais da municipalidade em espantar e apreender esses animais e dar à
cidade um ar menos rural.
O tapete de pedras e os trilhos iam abrindo caminho para o bonde, mas também
para uma cidade pouco conhecida para muitos. Para Olavo, a cidade parecia alinhar-se
aos trilhos, não só ao tal do “meio fio” e às calçadas. Mas também as casas que iam
sendo construídas seguiam um traçado homogêneo, pouco se diferenciavam uma das
outras. Vez ou outra aparecia um palacete “intruso”. Ele sabia que os verdadeiros
palacetes ficavam distantes dali, para os lados da Linha do Tambiá.
Cada vez que o novo bonde se aproximava do ponto final não se viam palhoças,
nem tantos animais nas ruas. Cada vez mais carros cruzavam o caminho; os
passageiros não contaram as vezes que se assustaram quando um carro cruzava o
caminho do bonde de surpresa.
No ponto do Passeio Público, que ficava em frente ao Liceu Paraibano e ao
palácio do governo, os estudantes que desciam, junto com os que já se encontravam
em frente ao Liceu, faziam festa e saudavam o bonde, que não tardou em seguir viagem.
Por onde passava o bonde espantava os transeuntes que eram pegos de súbito
na rua e em cada parada Olavo não deixava de reparar na apreensão daqueles que
subiam no bonde. Alguns até desistiam. Mas outros ousavam subir no bonde ainda em
movimento e não escondiam o orgulho pelo feito. Um desses passageiros fez questão
de falar o quanto já estava acostumado a andar nesses bondes, pois conhecia muito
bem o Rio de Janeiro e que lá era o que mais tinha. Seguiu viagem por ainda dois ou
três pontos e não se cansava de falar das modernidades da capital federal e tecer
comparações com a Parahyba. Olavo achava aquelas comparações descabidas e ainda
ensaiou uma discussão, mas não teve tempo de proferir o que pensava.
Olavo seguiu viagem pensando no que poderia ter dito, mas não tardou e
escutou o grito do condutor:
- Olha o Ponto de Cem Réis! Olha o Ponto de Cem Réis!

Esse grito anunciava a chegada no Largo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário


dos Pretos, ponto final das três linhas de bondes que cobriam a cidade: do Comércio,
do Tambiá e das Trincheiras. E lembrava aos passageiros a ter em mãos a moeda de
cem Réis, que era o preço da passagem.
No Ponto de Cem Réis houve muita festa para receber os bondes durante toda
a manhã. Bandinhas, autoridades e convidados, alguns que faziam questão de chegar
de bonde, se cotovelavam para proferir discursos que enfatizavam que o bonde era um
gigantesco “passo” da Parahyba do Norte rumo ao progresso. E todos faziam questão
de se dizerem responsáveis por trazer esse serviço que dava ares modernos à cidade.
O bonde se inseria, de fato, numa série de transformações que a cidade
experimentara nesse início de década e que se enquadravam num movimento que
pretendia uma cidade a partir de um ideário moderno, de disciplina e embelezamento,
principalmente sob os preceitos da reforma higienista. Tais mudanças se faziam ver nos
equipamentos ditos modernos, como o abastecimento d’água encanada, no sistema de
esgoto e na energia elétrica. Se dava também a partir de um remodelamento e
reordenamento dos espaços, como praças, passeios e a abertura de novas vias e
remodelamento, alinhamento e nivelamento de antigas vias para transportes.
Olavo experimentava mais essa mudança. Naquele momento incômoda, mas,
principalmente, surpreendente. Procurava decifrar aquelas falas das autoridades e
dimensionar o que ainda se acenava.
Inquieto, seguiu para o trabalho. Continuaria não sendo um dia comum, e mal
conseguia se concentrar nos serviços. O assunto na repartição era a novidade. A
poucos quarteirões ficava o Ponto de Cem Réis e as ruas próximas reproduziam o agito
que se encenava por lá, o que tornava o trabalho cansativo e aumentava a ansiedade
por terminar o expediente e fazer o que mais gostava.
Terminado o seu turno, saiu apressado para encontrar os amigos com quem
costumava debater política e os mais diversos assuntos. O ponto de encontro deles e
de boa parte da intelectualidade parahybana era o Café Chic, que ficava a alguns
quarteirões de onde trabalhava e a alguns metros do Ponto de Cem Réis, na rua Duque
de Caxias.
Olavo ansiava chegar ao encontro dos amigos e saber de suas impressões sobre
o novo bonde. Ao chegar sentou na mesa onde eles já se encontravam e não demorou
a perceber que o assunto nessa, e em outras mesas, era o bonde.
Depois de praticamente fazerem um relatório da experiência com o novo bonde
e o que estaria por vir ainda de novidades, Olavo teve que falar sobre o sujeito que
ironizou a novidade.
- Encontrei com um tal tipo no bonde que danou-se a maldizer horrores da
capital. O engomado empavonava-se por ter vindo do Rio e ria do espanto das pessoas
com o passar do bonde elétrico. Teve o despautério de dizer que o bonde iria afundar
nas lamas do Tiriri junto com toda a cidade.

- E você, calou-se?

- Apenas tive tempo de esboçar reação, logo o tipo saltou do bonde. Mas...

Um dos presentes na mesa interrompeu.

- Desculpe, meu caro, por mais que tenhamos pela cidade a mais extremada
simpatia, tenho que concordar em partes com este patife. Tiraram os burros do bonde,
mas o cheiro de bosta ainda vai pairar por anos nessa província. Não fazem dois anos
e a cidade vivia às escuras por falta de querosene. Agora os senhores deputados
bradam que a modernidade enfim chegara com a luz elétrica, com as águas nos canos
e hoje com esse novo bonde. Tão lá fazendo discursos no Cem Réis, mas voltam para
os seus palacetes em seus automóveis, e olha ali, lá vai a velha Ana levando mais uma
lata d’água para sua palhoça. E esse café? De chic só o nome!

- Mas não vês a cidade mais radiosa? Enfim sobre esses velhos trilhos passa o
progresso...

- Só a vejo radiosa em parcos dias de festa. Minha senhora precisa esperar a


Festa das Neves para comprar um sortimento de fazendas para as roupas de todos da
casa, caso contrário, se faz preciso ir até Recife nos prover desses e de variados artigos
que não chegam até aqui.

Olavo ainda retrucou citando como a cidade estava crescendo para os lados do
Tambiá, das Trincheiras e para depois da Lagoa dos Irerês. Falava dos automóveis, do
porto que estava um tanto mais movimentado e das novas companhias comerciais que
tornavam a Rua do Comércio, que andava tão movimentada quanto as das cidades mais
cosmopolitas.

Coube à um terceiro na mesa se lamentar por toda essa novidade.


- Bons eram os tempos nos quais nem precisávamos de bonde para saímos da
Cidade Baixa até a igreja de Nossa Senhora das Neves. E essa moda de mudar nome
de rua ainda vai fazer dessa cidade uma zona. É tal de nomes de fulanos e cicranos. É
pondo abaixo as igrejas para dar passagem aos bondes e às ruas novas. Hoje cheguei
aqui e nem sabia o nome do condutor. Passo na Rua do Comércio e torço para não ser
derrubado pela boiada de todo tipo de gente. Bom era o tempo das serestas na luz das
lamparinas. Ah, seu pudesse voltava aos meus tempos de rapaz...

- Seu medo é que mudem a zona de lugar e tu não a aches mais.

Olavo deu seu gole no café e findou o papeado com aqueles homens. Deixou
uns trocados sobre a mesa, tomou seu jornal debaixo do braço, pôs o chapéu e rumou
à Rua do Comércio. Havia lido nos anúncios que a Tabacaria Peixoto acabara de
receber um belo sortimento de fumo. Chegando lá, comprou uma lata da marca
Carneiro.
De volta à rua, parou e se pôs à pensar no que os amigos haviam dito e
passou a reparar na multidão que ia de um lado a outro, por vezes esbarrando em seus
ombros. Passou um senhor e o cumprimentou levantando o chapéu. Talvez o
conhecesse, ficou a pensar enquanto observava os rostos estranhos. A verdade é que,
diante do trânsito de gente, Olavo se questionou sobre se de fato conhecia a cidade que
tanto defendia. Se ela existia. Se era moderna como pensava. Olhou em volta em busca
de rostos conhecidos. Com certeza havia muitos, mas naquele momento passaram
despercebidos, pois Olavo alimentara a estranha ideia de que não mais reconhecera a
cidade, ou que deu tanta atenção às transformações que estavam em curso que não
sabia mais em que momento aquela cidade que ele buscava nas lembranças começara
a desaparecer. Mas não cultivava ressentimentos, pelo contrário, logo era tomado pelo
entusiasmo que o acompanhava, mais do que nunca, durante aquele dia.
Olavo trazia em si, com tantos questionamentos, o espírito vagabundo, cheio de
curiosidades, e uma chama incompreensível de entender a cidade, desejo que nunca
findava e era alimentado a cada atravessar de rua, a cada rosto novo que avistava, a
cada novo automóvel que chegava, a cada aparelho que era anunciado, a cada dado
novo que pedia ou ditava um novo comportamento e participava de uma educação
sensorial física e psicológica do citadino. A cidade, e uma cidade que crescia a olhos
vistos, criava esses espíritos que captavam as mudanças, os contrastes, apreendendo
tudo isso no próprio ritmo e multiplicidade dessa nova urbs. E as cidades são feitas por
essas inúmeras impressões que naquele momento mexiam com Olavo.
Sonhava em conhecer o Rio de Janeiro, Salvador, quem sabia, até Paris.
Lembrava de Recife muito pouco. Só tinha ido duas vezes quando criança. Ouvia e lia
que essas cidades eram modernas, símbolos do progresso, exemplos a serem
seguidos. Ouvia dos políticos que a Parahyba começara a respirar os ares parisienses
que já há tempos chegara àquelas cidades da República. Mas naquele momento era a
Parahyba do Norte que despertava todos os questionamentos.
A multidão se agitou. Era o bonde que pedia passagem. Dessa vez Olavo foi
quem teve que sair do caminho. O bonde passou e a multidão voltou a tomar a rua. De
cima da calçada, um pouco mais alto, Olavo reparava nas inúmeras cabeças cobertas
por chapéus e entre elas algumas sombrinhas de rendas que se destacavam. Olhou ao
seu redor. Reparava nas placas dos estabelecimentos. Tirou o lenço do bolso e enxugou
o suor do rosto. Numa esquina próxima avistou uma figura conhecida que pontualmente
lia as notícias do jornal A União em voz alta para um pequeno público que se aglomerava
próximo.
Essas figuras eram comuns em alguns pontos da cidade, que tinha uma minoria
letrada, e algumas delas já eram personagens conhecidas do imaginário citadino. Havia
o leitor que sempre ficava em frente ao Liceu. Olavo sempre que podia passava por lá
para discutir as notícias com ele, com os mestres do Liceu e com aqueles que sempre
marcavam ponto em frente ao prédio da presidência do estado à espera de conseguir
algum benefício. No Ponto de Cem Réis tinha o gazeteiro que colava as páginas dos
jornais na parede da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos para atrair os
clientes. O próprio Olavo vez ou outra lia o jornal que sempre trazia a tira colo para
alguns passageiros que seguiam viagem com ele.
Olavo ficou observando a cena e escutando o leitor por algum tempo até lembrar
que tinha coisas ainda por resolver naquela rua. Passar em uma das casas de secos e
molhados para comprar alguns artigos para a casa, passar no alfaiate e olhar as
novidades em outras lojas. Sempre que ia à Rua do Comércio arrumava as mais
diversas desculpas para passar as horas em meio aquele agito, ou ia até o porto que
ficava a alguns quarteirões dali para reparar no movimento dos navios que chegavam
com novidades ou nas sopas que chegavam e partiam para o interior do estado.
Gostava de reparar nos semblantes dos interioranos que chegavam na cidade e de ler
nas expressões os sentimentos daqueles que chegavam pela primeira vez na capital.
Ou de ser um dos primeiros a bisbilhotar o que traziam os caixeiros.
Ficava pela Rua do Comércio até as primeiras lojas fecharem as portas. Nesse
dia a deixa para seguir caminho foi uma discussão entre um agente público e um dono
de uma cabra que estava solta pelas ruas e chegara até ali. O agente argumentava que
devia cumprir seu dever e o dono se desculpava e prometia que aquilo não se repetiria.
Logo veio a lembrança do que disse o tal patife e seguiu sem ver como terminara aquela
querela.
Sempre que ia à Cidade Baixa, fazia questão de voltar a pé até o Ponto de Cem
Réis. Apesar do gosto que tinha pelo bonde, fazia questão de flanar pelas ruas
determinando o próprio caminho. Gostava de imaginar a cidade como um labirinto no
qual fazia parte se perder para poder reencontrar o caminho certo. Por vezes perdia a
noção do tempo e não chegava a tempo de tomar o último bonde, a sorte lhe soprava
quando a saída do bonde atrasava por causa de algum burro fatigado ao final do dia.
Nesse dia ele sabia que não poderia arriscar, pois havia a promessa de que os novos
bondes nunca atrasariam. Anos depois foi erguido um relógio no Ponto de Cem Réis
para prezar a tal pontualidade.
Seguiu um tanto apressado, mas o olhar não deixava de ser menos atento.
Novamente reparava nos amontoados que os pássaros faziam nas fiações elétricas,
nos automóveis que passavam, nos vendedores que empurravam seus carros de mão
e gritavam suas cantorias alertando sobre os itens que vendiam. Priorizava os caminhos
calçados, mas dessa vez reparou com atenção nas ruas e becos de terra que cruzavam
seu trajeto e nas casas de palha que ainda resistiam ao bota abaixo e as pensou como
as marcas da Parahyba que precisava ficar para trás.
Sabia o nome de cada rua ou beco pelo qual passava. Algumas traziam placas
com seus nomes, outras o nome estava na boca daqueles que faziam uso delas
cotidianamente. Mais uma vez relembrou a conversa do café e deu atenção às placas
que encontrava e refletia a cada uma que trazia os novos nomes que as ruas da cidade
iam ganhando. Sabia ele que custava à maior parte da população chamar por outro
nome algo com as quais mantinham relações praticamente íntimas. Era uma resistência
à uma escrita da história e da cidade que atendia mais aos jogos políticos que aos usos
cotidianos que são dadas às artérias urbanas. Resmungava ao ler o nome de alguém
desconhecido, mas achava que convinha mudar alguns nomes que não combinavam
com a cidade que sonhava.

- Longe disso aqui continuar a se chamar Beco do Cacete. – Bradou ao passar


por essa travessa.

Nem ao menos se questionou sobre o nome dado popularmente ao local para o


qual se dirigia, o Ponto de Cem Réis, oficialmente Largo da igreja de Nossa Senhora do
Rosário. Jamais poderia imaginar que esse nome continuaria a ser usado mais de um
século depois reproduzindo as memórias populares da cidade e contestando uma
história oficial de supostos heróis do estado.
Andou ainda mais uns cinco minutos até chegar ao Ponto de Cem Réis. Tirou o
lenço do bolso, enxugou o suor do rosto, arrumou acanhadamente o cabelo e o chapéu
e tomou o seu bonde sentando ao lado de uma velha opulenta e de frente ao mesmo
senhor do relógio. Aguardou a partida observando os demais bondes se enchendo.
Velhos vestindo capotes, moços estudantes trajando fardamento, moçoilas
acompanhadas, advogados, funcionários públicos, conhecidos que acenavam de outros
bondes, os vários tipos iam se misturando, ou se dividindo para tomar suas linhas.
Traziam no rosto o cansaço, cabelos menos arrumados, roupas mais amassadas. Às
mãos, jornais, cestas, pacotes, sacolas, trouxas de roupas, uma galinha amarrada e
carregada pelas pernas e debatendo as asas. As vezes tentava adivinhar o que
carregavam dentro dos pacotes ou no que estavam pensando.
Não havia mais bandinhas, nem autoridades. Todos tomavam seus assentos e
aguardavam como faziam todos os dias. O bonde elétrico não parecia mais novidade,
ou então era a ânsia por chegar em casa depois de um dia agitado que era mais forte
que qualquer novo dado que teimasse em quebrar a ordem cotidiana.

- Partindo Linha Tambiá.

- Partindo Linha Comércio.

Gritavam os condutores.

Partiam os novos bondes em suas últimas viagens de seu primeiro dia, e com
eles as inúmeras histórias da urbs e de seus passageiros iam rumando pelos aranhóis
dos trilhos que iam abrindo caminhos, e novos caminhos, da província que se pretendia
moderna.

- Partindo Linha Trincheiras!

O apito e o pequeno solavanco fez Olavo despertar de sua contemplação


analítica. O senhor do relógio conferiu as horas. A velha opulenta deu um suspiro e
arrumou as compras no colo. Olavo ia sentindo o balançar e escutando o estalido.
Sentindo os cheiros da rua se misturando com os das cozinhas das casas que iam se
iluminando. Às suas costas o sol ia se pondo no Sanhauá e à sua frente os postes iam
acendendo as luzes. E a cada esquina dobrada ele ia percebendo uma cidade que já
não era a mesma de ontem, nem daquela manhã que anunciou a tal novidade. Seguia
o bonde. Seguia a história.
Referências bibliográficas

AGUIAR, Wellington. A velha Paraíba nas páginas dos jornais. João Pessoa: A União,
1999.
BILAC, Olavo. Julio Verne, O Bonde, O Burro e Outros Escritos. São Paulo: Ed.
Barcarolla, 2004.
LISPECTOR, Clarice. Amor. In: Laços de Família. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.
OLIVEIRA, José Luciano Agra de. Uma Contribuição aos Estudos Sobre a Relação
Transporte e Crescimento Urbano: O Caso de João Pessoa. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós Graduação em Engenharia Urbana. CT/UFPB. João Pessoa, 2006.
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http://www.bestiario.com.br/12_arquivos/O%20Homem%20da%20Multidao.html
(Acesso em 23 de janeiro de 2015)
Rezende, Antonio Paulo. (Des)Encantos Modernos: Histórias da Cidade do Recife na
Década de Vinte. Recife: FUNDARPE, 1997.
RIO, João do. A Alma Encantadora Das Ruas: crônicas. São Paulo: Companhia das
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SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (Org.). O fenômeno
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