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- E você, calou-se?
- Apenas tive tempo de esboçar reação, logo o tipo saltou do bonde. Mas...
- Desculpe, meu caro, por mais que tenhamos pela cidade a mais extremada
simpatia, tenho que concordar em partes com este patife. Tiraram os burros do bonde,
mas o cheiro de bosta ainda vai pairar por anos nessa província. Não fazem dois anos
e a cidade vivia às escuras por falta de querosene. Agora os senhores deputados
bradam que a modernidade enfim chegara com a luz elétrica, com as águas nos canos
e hoje com esse novo bonde. Tão lá fazendo discursos no Cem Réis, mas voltam para
os seus palacetes em seus automóveis, e olha ali, lá vai a velha Ana levando mais uma
lata d’água para sua palhoça. E esse café? De chic só o nome!
- Mas não vês a cidade mais radiosa? Enfim sobre esses velhos trilhos passa o
progresso...
Olavo ainda retrucou citando como a cidade estava crescendo para os lados do
Tambiá, das Trincheiras e para depois da Lagoa dos Irerês. Falava dos automóveis, do
porto que estava um tanto mais movimentado e das novas companhias comerciais que
tornavam a Rua do Comércio, que andava tão movimentada quanto as das cidades mais
cosmopolitas.
Olavo deu seu gole no café e findou o papeado com aqueles homens. Deixou
uns trocados sobre a mesa, tomou seu jornal debaixo do braço, pôs o chapéu e rumou
à Rua do Comércio. Havia lido nos anúncios que a Tabacaria Peixoto acabara de
receber um belo sortimento de fumo. Chegando lá, comprou uma lata da marca
Carneiro.
De volta à rua, parou e se pôs à pensar no que os amigos haviam dito e
passou a reparar na multidão que ia de um lado a outro, por vezes esbarrando em seus
ombros. Passou um senhor e o cumprimentou levantando o chapéu. Talvez o
conhecesse, ficou a pensar enquanto observava os rostos estranhos. A verdade é que,
diante do trânsito de gente, Olavo se questionou sobre se de fato conhecia a cidade que
tanto defendia. Se ela existia. Se era moderna como pensava. Olhou em volta em busca
de rostos conhecidos. Com certeza havia muitos, mas naquele momento passaram
despercebidos, pois Olavo alimentara a estranha ideia de que não mais reconhecera a
cidade, ou que deu tanta atenção às transformações que estavam em curso que não
sabia mais em que momento aquela cidade que ele buscava nas lembranças começara
a desaparecer. Mas não cultivava ressentimentos, pelo contrário, logo era tomado pelo
entusiasmo que o acompanhava, mais do que nunca, durante aquele dia.
Olavo trazia em si, com tantos questionamentos, o espírito vagabundo, cheio de
curiosidades, e uma chama incompreensível de entender a cidade, desejo que nunca
findava e era alimentado a cada atravessar de rua, a cada rosto novo que avistava, a
cada novo automóvel que chegava, a cada aparelho que era anunciado, a cada dado
novo que pedia ou ditava um novo comportamento e participava de uma educação
sensorial física e psicológica do citadino. A cidade, e uma cidade que crescia a olhos
vistos, criava esses espíritos que captavam as mudanças, os contrastes, apreendendo
tudo isso no próprio ritmo e multiplicidade dessa nova urbs. E as cidades são feitas por
essas inúmeras impressões que naquele momento mexiam com Olavo.
Sonhava em conhecer o Rio de Janeiro, Salvador, quem sabia, até Paris.
Lembrava de Recife muito pouco. Só tinha ido duas vezes quando criança. Ouvia e lia
que essas cidades eram modernas, símbolos do progresso, exemplos a serem
seguidos. Ouvia dos políticos que a Parahyba começara a respirar os ares parisienses
que já há tempos chegara àquelas cidades da República. Mas naquele momento era a
Parahyba do Norte que despertava todos os questionamentos.
A multidão se agitou. Era o bonde que pedia passagem. Dessa vez Olavo foi
quem teve que sair do caminho. O bonde passou e a multidão voltou a tomar a rua. De
cima da calçada, um pouco mais alto, Olavo reparava nas inúmeras cabeças cobertas
por chapéus e entre elas algumas sombrinhas de rendas que se destacavam. Olhou ao
seu redor. Reparava nas placas dos estabelecimentos. Tirou o lenço do bolso e enxugou
o suor do rosto. Numa esquina próxima avistou uma figura conhecida que pontualmente
lia as notícias do jornal A União em voz alta para um pequeno público que se aglomerava
próximo.
Essas figuras eram comuns em alguns pontos da cidade, que tinha uma minoria
letrada, e algumas delas já eram personagens conhecidas do imaginário citadino. Havia
o leitor que sempre ficava em frente ao Liceu. Olavo sempre que podia passava por lá
para discutir as notícias com ele, com os mestres do Liceu e com aqueles que sempre
marcavam ponto em frente ao prédio da presidência do estado à espera de conseguir
algum benefício. No Ponto de Cem Réis tinha o gazeteiro que colava as páginas dos
jornais na parede da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos para atrair os
clientes. O próprio Olavo vez ou outra lia o jornal que sempre trazia a tira colo para
alguns passageiros que seguiam viagem com ele.
Olavo ficou observando a cena e escutando o leitor por algum tempo até lembrar
que tinha coisas ainda por resolver naquela rua. Passar em uma das casas de secos e
molhados para comprar alguns artigos para a casa, passar no alfaiate e olhar as
novidades em outras lojas. Sempre que ia à Rua do Comércio arrumava as mais
diversas desculpas para passar as horas em meio aquele agito, ou ia até o porto que
ficava a alguns quarteirões dali para reparar no movimento dos navios que chegavam
com novidades ou nas sopas que chegavam e partiam para o interior do estado.
Gostava de reparar nos semblantes dos interioranos que chegavam na cidade e de ler
nas expressões os sentimentos daqueles que chegavam pela primeira vez na capital.
Ou de ser um dos primeiros a bisbilhotar o que traziam os caixeiros.
Ficava pela Rua do Comércio até as primeiras lojas fecharem as portas. Nesse
dia a deixa para seguir caminho foi uma discussão entre um agente público e um dono
de uma cabra que estava solta pelas ruas e chegara até ali. O agente argumentava que
devia cumprir seu dever e o dono se desculpava e prometia que aquilo não se repetiria.
Logo veio a lembrança do que disse o tal patife e seguiu sem ver como terminara aquela
querela.
Sempre que ia à Cidade Baixa, fazia questão de voltar a pé até o Ponto de Cem
Réis. Apesar do gosto que tinha pelo bonde, fazia questão de flanar pelas ruas
determinando o próprio caminho. Gostava de imaginar a cidade como um labirinto no
qual fazia parte se perder para poder reencontrar o caminho certo. Por vezes perdia a
noção do tempo e não chegava a tempo de tomar o último bonde, a sorte lhe soprava
quando a saída do bonde atrasava por causa de algum burro fatigado ao final do dia.
Nesse dia ele sabia que não poderia arriscar, pois havia a promessa de que os novos
bondes nunca atrasariam. Anos depois foi erguido um relógio no Ponto de Cem Réis
para prezar a tal pontualidade.
Seguiu um tanto apressado, mas o olhar não deixava de ser menos atento.
Novamente reparava nos amontoados que os pássaros faziam nas fiações elétricas,
nos automóveis que passavam, nos vendedores que empurravam seus carros de mão
e gritavam suas cantorias alertando sobre os itens que vendiam. Priorizava os caminhos
calçados, mas dessa vez reparou com atenção nas ruas e becos de terra que cruzavam
seu trajeto e nas casas de palha que ainda resistiam ao bota abaixo e as pensou como
as marcas da Parahyba que precisava ficar para trás.
Sabia o nome de cada rua ou beco pelo qual passava. Algumas traziam placas
com seus nomes, outras o nome estava na boca daqueles que faziam uso delas
cotidianamente. Mais uma vez relembrou a conversa do café e deu atenção às placas
que encontrava e refletia a cada uma que trazia os novos nomes que as ruas da cidade
iam ganhando. Sabia ele que custava à maior parte da população chamar por outro
nome algo com as quais mantinham relações praticamente íntimas. Era uma resistência
à uma escrita da história e da cidade que atendia mais aos jogos políticos que aos usos
cotidianos que são dadas às artérias urbanas. Resmungava ao ler o nome de alguém
desconhecido, mas achava que convinha mudar alguns nomes que não combinavam
com a cidade que sonhava.
Gritavam os condutores.
Partiam os novos bondes em suas últimas viagens de seu primeiro dia, e com
eles as inúmeras histórias da urbs e de seus passageiros iam rumando pelos aranhóis
dos trilhos que iam abrindo caminhos, e novos caminhos, da província que se pretendia
moderna.
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(Acesso em 23 de janeiro de 2015)
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