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Quarta-feira

Insulto, logo existo

No momento em que eu apenas uso o rótulo, perco a chance de ver engenho e arte

A crítica e o contraditório são fundamentais. Grande parte do avanço em liberdades individuais e nas ciências nasceu do questionamento
de paradigmas. Sociedades abertas crescem mais do que sociedades fechadas. A base da democracia é a liberdade de expressão. Sem
oposição, não existe liberdade.
Uma crítica bem fundamentada destaca dados que um autor não percebeu. Um juízo ponderado é excelente. Mais de uma vez percebi
que um olhar externo via melhor do que eu. Inexiste ser humano que não possa ser alvo de questionamento. Horácio garantia, com certa
indignação, que até o hábil Homero poderia cochilar (Quandoque bonus dormitat Homerus - Ars Poetica, 359). A crítica pode nos
despertar.
Como saber se a avaliação é boa? Primeiro: ela mira no aperfeiçoamento do conhecimento e não em um ataque pessoal. A boa crítica
indica aperfeiçoamento. Notamos, no arguidor sincero, uma diminuição da passionalidade. Refulgem argumentos e dados. Mínguam
questões subjetivas. Há mais substantivos e menos adjetivos. Não digo o que eu faria ou o que eu sou. Indico apenas como algo pode ser
melhor e a partir de quais critérios. Que argumentos estão bem fundamentados e quais poderiam ser revistos. Objetividade é um campo
complexo em filosofia, mas, certamente, alguém babando e adjetivando foge um pouco do perfil objetivo.
Duas coisas ajudam na empreitada. A primeira é conhecimento. Há um mínimo de formação. Não me refiro a títulos, mas à energia
despendida em absorver conceitos. Nada posso dizer sobre aquilo do qual nada sei. Pouco posso dizer sobre o que escassamente
domino. A segunda é a busca da impessoalidade. Critico não por causa da minha dor, da minha inveja, do meu espelho. Examino a obra
em si, não a obra que eu gostaria de ter feito ou a que me incomoda pelo simples sucesso da sua existência. Critico o defeito e não a luz.
Cheguei a essas conclusões por já ter errado. Arrependo-me de críticas passionais. Tomei consciência de que dois ou três temas mexem
tanto comigo, que a objetividade tende a diminuir. Questões ligadas ao racismo, à violência contra mulheres e à educação implicam uma
carga emotiva forte para mim. Hoje, quando vejo que o debate roça nisso, submeto-me a redobrada atenção para evitar fazer aquilo que
estou reclamando em outros.
Reconhecida minha imperfeição, reafirmo: assusta-me a virulência da internet. Há pessoas que querem fazer sucesso a qualquer preço e
cimentam a estrada com palavrões. Acreditam que agressões com palavras vulgares e apelidos sejam um grande impacto. Estão
corretos: causam impacto, mas vulgaridade é simples concussão.
Suponho que alguns apresentem sintomas ligados à chamada síndrome de Tourette. Georges Gilles de la Tourette (1857-1904)
descreveu pacientes que tinham compulsão de enunciarem palavrões, especialmente referências a fezes. A coprolalia, este fluxo de
temas fesceninos e agressivos, escapa ao controle.
Além de uma síndrome generalizada de Tourette, noto a vontade de classificar mais do que entender. Definido se o autor é X ou Y,
encerra-se a discussão. Basta dizer que ele é, por exemplo, conservador ou socialista. Nada mais preciso pensar da obra.
É preciso reforçar que o talento e a criatividade têm pouca exclusividade política ou biográfica. Portinari e Jorge Amado eram gênios na
pintura e na escrita. Também foram devotados comunistas. Jorge Luis Borges mudou a maneira de pensar a literatura mundial. Era racista
e achava a ditadura de Francisco Franco muito boa. Oscar Niemeyer mudou a noção de arquitetura do século 20. Era adepto do
marxismo. Shakespeare, do ponto de vista político, era bastante conservador e desconfiava da participação popular. Descartes e Pascal
eram religiosos; Bertrand Russel e Diderot, ateus. Picasso e Hemingway eram sedutores quase agressivos de mulheres. Nelson
Rodrigues não era, exatamente, um feminista. O pintor Francis Bacon, o músico Schubert e o economista J. Keynes tinham vida ou
desejo homoeróticos. O que eu quero dizer: no momento em que eu apenas uso o rótulo, perco a chance de ver engenho e arte. Fixar-se
no estereótipo parece ser um recurso de certa estreiteza analítica. Tanto a maestria pode estar presente num indivíduo detestável como a
mediocridade pode aflorar no mais engajado lutador dos direitos dos filhotes de foca.
Respondo raramente a críticos agressivos. Basicamente por falta de tempo e também por acreditar ser um direito de todos a
manifestação com liberdade, dentro dos limites da lei. Internet funciona como terapia para muitos. Sempre recomendei que as pessoas
fossem comedidas não por humildade, porém por vaidade, já que atacando alguém eu falo tanto de mim e dos meus medos que a
prudência impõe certo silêncio obsequioso. Poucas coisas desnudam tanto minha alma como o ataque. Podemos sempre evitar o texto de
quem discordamos. O impossível é evitar a nós mesmos.
Eis fevereiro entre nós. Hoje, chego ao meu verão de número 54. Nunca havia percebido a vida tão fascinante como agora. Melhorei
muito porque tive bons críticos ao longo dos anos. Ajudaram-me a superar mazelas e lacunas. Agradeço a eles. Desejo paz aos outros
julgadores. Estou com pouco tempo para odiar.

Quinta-feira

A felicidade de cada um
Somos, entre tantas coisas – animais predadores, meio obtusos, às vezes gloriosos –, uns eternos buscadores. Deve ser uma das molas de nossa
vida, mais até do que sexo e poder. Essa busca meio indeterminada que nos faz sair da cama, tomar café, ver notícias no jornal e na TV (porque
nos julgamos de ferro), ir para o trabalho ou a escola ou simplesmente ficar em casa. Buscamos eternamente, eu sei, essa estranhíssima coisa
chamada felicidade: tão diferente em diferentes fases e até diversos lugares.menina, felicidade era segurança amorosa: os pais ali perto, o
irmãozinho, as funcionárias que cuidavam de nós, o jardineiro conversando com plantas, a chuva na vidraça, o vento nas árvores, a lareira ou a
perspectiva da praia, um dia de feriado para não ter de ir à escola (não, não fui boa aluna...). Sobretudo, estar ali em nossa casa, no meu quarto, a
cama embutida em prateleiras cheias dos meus melhores amigos. Décadas depois, alguém me contou que ao visitar meu pai, em seu escritório
em casa, e admirar as prateleiras de livros forrando as paredes, meu pai fez um gesto simples e disse: "Esses são os meus amigos".
No curso da vida, a gente faz umas descobertas engraçadas sobre si mesmo, como certa vez quando, falando com jornalistas antes de uma
palestra em São Paulo, um deles, muito jovem, disparou a pergunta que nunca tinham me feito: "Qual é o seu sonho de consumo?". Parei, sorri,
surpreendida, e sem precisar pensar respondi: "Meu sonho de consumo? Ficar quieta". Era uma longa fase de muitas viagens para palestras e
lançamentos. Era bom curtir o afeto dos leitores, era bom promover um livro.
No avião, voltando para casa, fui monologando coisas como: "Ora, se eu quero mesmo ficar mais quieta, por que não faço isso? Por que não
diminuo esse giro de viagens e encontros e não curto mais o sossego que me falta?". Sem muito programar, que sou mais de impulsos, comecei a
aprender a arte de recusar – nada fácil. Os convites mais simpáticos (quase todos são assim) tiveram de ser reduzidos, e como fazer essa seleção?
Sempre havia uma razão verdadeira: estar preparando um novo livro, atender alguma coisa na família ou simplesmente estar cansada. "E se um
dia não te convidarem para mais nada?". Bom, aí eu também não vou gostar nada! O jeito é dosar.
Fiquei bem mais feliz assim. Certa vez, perguntaram para minha filha onde seria mais fácil encontrar a mãe, e ela respondeu: "Em casa". Há quem
estranhe: "Você quase não tem vida social, não frequenta os mais novos restaurantes, nem clubes, nem grupos...". Nada contra, mas para mim foi
uma conquista. Uma obediência ao meu mais antigo e honrado desejo. Quando estou nessa falsa vagabundagem lírica, talvez de livro na mão até
sem ler nem pensar nada especial, é que as coisas "se fazem" dentro de mim: futuros personagens, tramas, poemas, ou só encantamentos
fugazes. Pode ser que nesta fase da vida eu mereça estar assim, com família, amigos, cachorrinhas, paisagem linda, o refúgio na Serra, música,
livros, e tantos ótimos programas que – apesar dos protestos – a boa televisão oferece: agora, um concerto de Mozart para piano, tocado na TV por
um Barenboim jovem.
(E ainda por cima, neste momento, começa a chover mansinho.)

Sexta-feira

Vale a pena
Viver é andar de conflito em conflito, buscando a harmonia que nos dê sossego ao coração sempre agitado, em raras ocasiões ancorado num
momento tranquilo. Na vida pessoal ou profissional, lutamos. Buscamos. Perseguimos. Achamos, perdemos, realizamos, fracassamos, às vezes
desacreditamos ou pensamos desacreditar de tudo: "Eu não acredito em mais nada", me pego afirmando – era mentirinha. Porque, afinal, vivemos
de acreditar: que teremos comida na mesa, teto sobre a cabeça, alguém amado perto, porta para entrar e para sair, alguma ocupação e, mais do
que tudo, alguma importância... ainda que para uma só pessoa."Com as perdas, só há um jeito, perdê-las" – escrevi certa vez, não lembro onde.
Acredito nisso. Há que se persistir por algum tempo, mas há que se ter a sabedoria, ainda que rara e rala, de saber quando é hora de deixar que a
corrente da vida carregue o que não pôde (ou não pode mais) ser nosso.
Alguns andam desanimados, e não é para menos. Além dos horrores da coisa pública, quando se tem algumas décadas de vida, amigos adoecem
ou se vão em definitivo. Talvez a pior coisa do tempo passando seja perder amados e amigos, alguns de uma vida inteira. Mas os que ainda
sobram, não apenas sobram: eles vivem, se agitam, pelo menos em emoção e pensamento, leem seus livros, veem sua televisão, convocam seus
filhos, amam seus netos, lembram as amizades e telefonam ou, em geral – viva eles –, comunicam-se no WhatsApp.
E ainda conseguem ter os seus conflitos: briguinhas, fofocas indevidas, curiosidades infantis, reclamar do açougueiro, do cabeleireiro, do jornal, da
TV, do filho que demora a ligar, dos netos que, vibrando em suas idades magníficas, não se lembram de que alguém, ali, vai adorar ver suas belas
carinhas e se divertir com suas conversas que às vezes nem entendem. Surpreendo-me pedindo aos netos e netas que falem mais devagar ou
mais alto, "porque a vovozinha aqui tá meio surda", e todos achamos graça. Brincadeira minha, e a velocidade dessas jovens e belas vidas me livra
de qualquer tédio. Aliás, ando cada vez mais contemplativa. Feliz olhando a paisagem, feliz ouvindo a chuva, feliz lendo esse novo livro bastante
difícil, feliz porque ainda consigo pintar nuvens e mar e até começar a escrever um novo livro... Feliz porque daqui a pouco a chave na porta de
entrada anunciará que o maridão chega do trabalho.
Incrível como, a certa altura, se não formos do tipo lamuriento e resmungão, as coisas mínimas nos dão prazer: não precisamos mais visitar as ilhas
gregas, andar na bela Londres, percorrer de carro a amada Itália, visitar os mais espetaculares museus, voltar aos jardins de Giverny aspirando
Monet, um de meus prediletos. Ao menos, não sofremos por isso.
Ficar quieto (não demais) também é bom: curtindo o tesouro acumulado na alma – porque o que se perdeu continua ali, se a gente souber ver: os
afetos, as memórias, as descobertas, as alegrias e a capacidade de novas alegrias –, por que não? Então, mesmo que o mundo ande confuso e
ameaçador e estejamos quase todos mais pobres, se a gente não bobear, toda a conturbada, fascinante, assustadora, intrigante vida humana
continuará se desenrolando diante de nós.

Sábado

Ele não gosta de ler!

“Meu filho não gosta de ler.” A frase é dita com dor nos lares. Na sala de aula, o drama se repete. Você leva um texto que o seduz há anos
para a turma, fala dele e… nada. Os alunos continuam indiferentes e o tédio é entrecortado por suspiros lânguidos e consultas ao celular.
Só quem deu aulas para adolescentes sabe da cara de natureza-morta que alguns conseguem mostrar. Como fazer alguém tornar-se um
bom leitor?
Vou começar com uma aparente heresia: ler não é fundamental para ser feliz. Duvida? Recomendo uma terapia de choque: frequente
uma reunião de departamento de qualquer centro de Humanas. Lá encontrarão pessoas que fazem da leitura seu dia a dia, seu ganha-
pão e sua vocação. Examinem o ambiente e as frases por meia hora e retornem aos lares: eis uma vacina poderosa e permanente para
evitar a associação entre livros e alegria existencial. Ler não nos torna mais felizes. É interessante notar que o estereótipo da bibliotecária
em todos os filmes e romances é de uma mulher amarga, de óculos, imersa na obsessão do silêncio. Vivendo em meio a livros, ela não
deveria ser feliz?
Conhecimento é poder, reza a máxima atribuída a Francis Bacon, o afamado Chico Toicinho. A base de todo processo é a curiosidade. A
leitura é o efeito, não a causa da curiosidade.
Uma parte da elite brasileira fixou-se no saber formal de textos clássicos. Homero e Dante são impactantes e transformaram a minha vida.
Por isso me sinto livre para dizer: eles são um caminho, não o caminho. Insisto: o cerne do sucesso e da inteligência é a curiosidade, a
inquietação, a busca e a insatisfação. A Ilíada me transformou, no entanto o importante está no caminho que me levou até ela. Como
entendê-lo?
O primeiro passo para pais e professores é superar a ansiedade. Querer empurrar legumes e falar que premiará com doces é o caminho
seguro para ressaltar que o doce é bom e o vegetal, ruim. Conselhos são medidos pela minha identificação com quem os fornece e pelo
resultado que observo no conselheiro. Uma pessoa interessante, ao dizer que livros são fundamentais, terá maior chance de ser ouvida
do que outra à beira da histeria: “Você precisa ler!”.
A personalidade do leitor fala antes dele e funciona como um outdoor. É como o corpo de quem nos dá pistas sobre dieta ou suplementos
alimentares: olhamos para o físico de quem fala mais do que ouvimos. A primeira pergunta honesta a fazer a todo autor de textos do estilo
“você pode ficar rico” é saber se o autor possui o capital que imagina ensinar outros a adquirir.
Aqui uma observação complexa. Muitos pais intelectuais geram filhos com aversão à leitura. Santo Freud! Os tomos eram, para a criança,
as entidades que subtraíam seu pai e sua mãe do convívio. Livros eram inimigos! A biblioteca ou o escritório eram espaços vampirescos
que drenavam a atenção de meus pais. Como amar um concorrente desleal?
Como valorizar conhecimento se ele foi usado para constranger? Correções gramaticais ríspidas, humilhações diante de uma ignorância
tópica ou impaciência com lentidão de aprendizado vão dirigir a dor do jovem para o saber e seus usuários. Como adquirir o desejo de
aprender se o resultado é virar uma pessoa chata? Conhecimento deve libertar, ampliar horizontes, ajudar na felicidade, clarear angústias
e emocionar. Se a intenção for agredir, é mais ecológico um tapa na cara do que derrubar árvores para o papel. A propósito, isso é uma
ironia e não um conselho.
Curiosidade pode ser estimulada com boas perguntas. Elas devem ser dosadas e nunca podem parecer um artificialismo didático.
Phármakon (remédio e veneno): a diferença está na dose. O conceito vem da medicina antiga e de uma ideia de Jacques Derrida sobre o
poder da palavra. Empurre um romance árido e com questões existenciais acima da faixa etária de uma criança e estará lançada uma
fértil semente de rejeição à leitura. O lúdico sempre tem um papel central. Machado de Assis é um gênio. Imaginar que alguém de 13 anos
esteja preocupadíssimo com fidelidade conjugal como estava o taciturno Bentinho é ignorar regra básica sobre jovens. A leitura não deve
ser apenas o reforço do meu mundo e dos meus valores. Porém, para que ela possa alçar voo, a caminhada deve ser coerente. Haverá
um dia em que o leitor já experiente vai gostar exatamente do mundo que desconhece ou que o desafia. No início, o gancho é feito pela
proximidade. A um jovem que resiste à autoridade e ao conhecimento, é mais fácil indicar a identidade com Holden Caulfield, o rebelde do
romance de J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio, do que com tísicos nos Alpes de A montanha mágica, de Thomas Mann.
Posso apoiar a leitura de Harry Potter ou de Paulo Coelho? Estou convencido que sim. Podemos dar adaptações de clássicos facilitados
para jovens leitores ou as boas histórias em quadrinhos sobre Shakespeare? Nada impede. O filme sobre o livro pode ajudar? É claro!
Apenas não pode substituir.
Sempre e acima de tudo: que você mostre que os livros são bons e não um fardo. Até nas faculdades damos a bibliografia e chamamos
de “carga” de leitura, indicando, metaforicamente, peso e dor. Livros às mancheias porque são muito bons, jamais um peso. Ler é parte do
bem viver!

Domingo

A IGNORÂNCIA como forma de DOMINAÇÃO

Se não há a possibilidade de haver liberdade sem que haja a difusão do conhecimento, a falta deste implica, necessariamente, redes
visíveis e invisíveis de controle, poder e dominação. Em qualquer sociedade ditatorial apresentada, na realidade ou na ficção, um fator é
comum a todas elas: o controle sobre a informação e, consequentemente, sobre o conhecimento produzido. Na nossa ditadura microfísica
isso não é diferente, já que não é preciso que o controle seja exercido abertamente, para se perceber como os donos do poder nos mijam
enquanto dizem que chove.
A contradição, o paradoxo, a superficialidade e a mentira são elementos indispensáveis aos que se dedicam a perpetuação da ignorância,
afinal, é a ignorância de muitos que proporciona a riqueza e os privilégios de poucos. Embora essa relação seja extremamente desigual,
não devemos desconsiderar as formas de resistência e luta empreendidas pelos grupos subalternizados. Entretanto, diante da
discrepância entre os lados antagônicos, é preciso entender que há caminhos de saída e mudança, mas eles não são fáceis. Quer de ser
percebidos, quer de ser traçados.
Como fator proeminente na perpetuação da ignorância e dos desmandos que aqui ocorrem com enorme naturalidade, há o problema da
educação, que, como alertou Darcy Ribeiro, não é um problema, é um projeto. Evidentemente, falta um entendimento crítico sobre a
importância da educação no desenvolvimento humano do Brasil. Falta pensar e executar um projeto educacional que vise capacitar os
sujeitos não apenas para o mercado de trabalho, mas também para a vida em sociedade, com capacidade analítica, para compreender a
si e o seu entorno.
Essas mudanças, entretanto, soam como utopia, haja vista a complexidade histórica do Brasil e suas mazelas que insistem em ser
mantidas. Aliás, há pouquíssima reflexão crítica sobre a nossa história, sobre processos que nos marcaram a ferro e fogo, como a
escravidão e a ditadura militar. Situação que nos deixa meio que sem passado e sem uma compreensão dialética entre as nossas raízes e
as nossas folhas.
Constituição peculiar, que ajuda a manter a fábrica de mentiras do sistema funcionado a todo vapor, produzindo seus disfarces e suas
arapucas, que naturalizam o que foi socialmente edificado. E, assim, a pobreza é vista como algo natural; a fome, a miséria, a enorme
desigualdade social, a exclusão, os preconceitos, os muros que nos dividem e nos sufocam, tudo é visto como obra do acaso, sem
temporalidade e sem história. No entanto, as coisas não surgem por geração espontânea. Elas são historicamente construídas e, como
construção dos homens, podem ser também modificadas.
Embora modificáveis, quantos possuem consciência da historicidade das experiências humanas? A educação não ajuda muito nisso. Mas,
a pobreza também não. Assim como a grande mídia e os meios de comunicação, que imbricados com os coronéis do sistema financeiro,
repetem cotidianamente o espetáculo risível, mas convincente, da história oficial, de quem vence pelas ações de um destino manifesto.
E como o espetáculo não para, as mentiras de tanto repetidas se transformam em sólidas verdades. A ignorância pouco a pouco vai se
convertendo em conhecimento, o construído vai se transformando em naturalizado e a escravidão ganha tons de liberdade. A dominação
pode, então, ocorrer sem muitos inconvenientes e incômodos. Estes, entretanto, volta e meia aparecem, o que denota que por melhor que
um sistema seja, há furos em sua blindagem.
Se há a pretensão de que a blindagem do sistema seja desfeita, é preciso, portanto, apontar para os furos descobertos e incentivar a
descoberta de outros, pois por mais adversas e desesperançosas que as situações sejam, como escreveu Drummond, há sempre flores
capazes de romper o asfalto e mostrar ao mundo que por mais sufocadas que sejam, existem modos de resistir e renascer.

Segunda-feira

Vende-se tudo
No mural do colégio da minha filha encontrei um cartaz escrito por uma mãe, avisando que estava vendendo tudo o que ela tinha em
casa, pois a família voltaria a morar nos Estados Unidos. O cartaz dava o endereço do bazar e o horário de atendimento.
Outra mãe que estava ao meu lado comentou:
– Que coisa triste ter que vender tudo que se tem.
– Não é não, respondi, já passei por isso e é uma lição de vida.
Morei uma época no Chile e, na hora de voltar ao Brasil, trouxe comigo apenas umas poucas gravuras, uns livros e uns tapetes.
O resto, eu vendi tudo, e por tudo entenda-se: fogão, camas, louça, liquidificador, sala de jantar, aparelho de som, tudo o que compõe
uma casa.
Como eu não conhecia muita gente na cidade, meu marido anunciou o bazar no seu local de trabalho e esperamos sentados que alguém
a parecesse. Sentados no chão.
O sofá foi o primeiro que se foi. Às vezes o interfone tocava às 11 da noite, era alguém que tinha ouvido comentar que ali estava se
vendendo uma estante.
Eu convidava pra subir e em dez minutos negociávamos um belo desconto. Além disso, eu sempre dava um abridor de vinho ou um
saleiro de brinde, e lá se iam meus móveis e minhas bugigangas.
Um troço maluco: estranhos entravam na minha casa e desfalcavam o meu lar, que a cada dia ficava mais nu.
No penúltimo dia, ficamos somente com o colchão no chão, a geladeira e a tevê.
No último, só com o colchão, que o zelador comprou e, compreensivo, topou esperar a gente ir embora antes de buscar. Ganhou de
brinde os travesseiros.
Guardo esses últimos dias no Chile como o momento da minha vida em que aprendi a irrelevância de quase tudo o que é
material. Nunca mais me apeguei a nada que não tivesse valor afetivo.
Deixei de lado o zelo excessivo por coisas que foram feitas apenas para se usar, e não para se amar. Hoje me desfaço com facilidade de
objetos, enquanto isto, que se torna cada vez mais difícil me afastar de pessoas que são ou foram importantes, não importa o tempo que
elas estiveram presentes na minha vida.
Desejo para essa mulher, que está vendendo suas coisas para voltar aos Estados Unidos, a mesma emoção que tive na minha última
noite no Chile. Dormimos no mesmo colchão, eu, meu marido e minha filha, que na época tinha dois anos de idade. As roupas já estavam
guardadas nas malas. Fazia muito frio.
Ao acordarmos, uma vizinha simpática nos ofereceu o café da manhã, já que não tínhamos nem uma xícara em casa.
Fomos embora carregando apenas o que havíamos vivido, levando as emoções todas: nenhuma recordação foi vendida ou entregue
como brinde.
Não pagamos excesso de bagagem e chegamos aqui com outro tipo de leveza:
“Só possuímos na vida o que dela pudermos levar ao partir”. É melhor refletir e começar a trabalhar o DESAPEGO JÁ!
Não são as coisas que possuímos ou compramos que representam riqueza, plenitude e felicidade. São os momentos especiais que não
tem preço, as pessoas que estão próximas da gente e que nos amam, a saúde, os amigos que escolhemos, a nossa paz de espírito.

Terça-feira

As cracolândias da vida

Não acho graça nenhuma em drogas. Tenho, eu sei, pouca tolerância com isso. É tremendo, terrível, trágico o assunto adição, seja de drogas que
incluem o álcool, droga estimulada em propagandas e marketing. Falo em adição, não em experimentar de vez em quando, como acontece em
certas turmas e festinhas, ou mesmo a sós, para quem julga que alterado fica mais inteligente, mais sensual, mais engraçado e mais interessante.
Muitas vezes criticada, digo e escrevo o que qualquer bobo sabe: existe o traficante porque existe o consumidor. Pior: cada vez que um de nós
fuma seu cigarrinho de maconha, cheira sua fileirinha de coca ou injeta em suas veias seja lá que veneno for, está fazendo continência a um
traficante – que um dia pode mandar meter uma bala em seu filho ou em outra pessoa amada.
A Cracolândia de São Paulo existe não só por aqueles, quase lixo humano, deitados no chão entre urina, fezes e vômito, alienados, atordoados e
doentes – mas os que ali compram uns gramas de sua loucura e sua morte talvez para fazer uso dela em qualquer outro lugar, que pode até ser
caro e chique, por que não? Sei de grandes festas em que papelotes de cocaína são oferecidos em bandejas junto com champanha francês.
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Talvez o ser humano tenha desde sempre necessidade de sair do seu registro dito normal para algo mais intenso. Uma bela taça de vinho pode ter
essa motivação: relaxar, ficar mais alegrinho, menos tenso. Uma taça, não várias garrafas, e regularmente. Comidas, bebidas, substâncias,
remédios, em si, são inocentes: seu uso pode ser mortal. Visitei, anos atrás, várias vezes, uma chiquésima carésima clínica de recuperação de
drogados, em outro Estado. Lá estava a filha de conhecidos meus, que me pediam que fosse junto, a menina chamava por mim. Eram quase todos
jovens, quase todos com olhar vazio, muitos com curativos nos pulsos, muitos tendo saído e voltado muitas, muitas vezes: sem esperança, parecia
estar tatuado em sua testa.
Alguns conseguiam lá dentro a droga que quisessem, transando com um funcionário, jardineiro ou operário que consertava telhados; muitos,
voltando para casa, eram assediados por traficantes que chegavam a jogar papelotes de coca pela janela do quarto da vítima. Há quem possa usar
droga aqui e ali, sem se viciar. Muitos, muitíssimos, não conseguem. E para esses, começar, ainda que de brincadeira, ainda que com a dita
inocente maconha, é assinar seu atestado de morte prematura e horrenda.
Não é possível vigiar alguém constantemente. Sem ter receitas nem conselhos, talvez o exemplo, o afeto, a alegria, a confiança, certo
conhecimento da turma, dos locais frequentados, se for um jovenzinho, umas boas conversas nada moralistas, mas amigas, podem ajudar. Porém,
não há garantias: famílias amorosas e atentas podem ter drogados graves. Famílias doentes podem ter filhos saudáveis.
E se, apesar do amoroso cuidado, tudo der errado, então sofrem todos, então fortalecem-se as cracolândias pelo país, enriquecem os traficantes,
multiplica-se o crime, e passeia com suas longas vestes a Senhora Morte recolhendo as vítimas de uma sociedade fútil e incompetente – ou da
própria incurável condição humana.

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