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Um discurso sobre as Ciências

na transição para uma


ciência pós-moderna
Boaventura de Sousa Santos

Estamos a doze anos do final do século uma sociedade de comunicação e


XX. Vivemos num tempo atônito que ao interativa libertada das carências e
debruçar-se sobre si próprio descobre inseguranças que ainda hoje compõem
que os seus pés são um cruzamento de os dias de muitos de nós: o século XXI
sombras, sombras que vêm do passado a começar antes de começar. Por outro
que ora pensamos já não sermos, ora lado, uma reflexão cada vez mais
pensamos não termos ainda deixado de aprofundada sobre os limites do rigor
ser, sombras que vêm do futuro que ora científico combinada com os perigos
pensamos já sermos, ora pensamos nunca cada vez mais verossímeis da catástrofe
virmos a ser. Quando, ao procurarmos ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos
analisar a situação presente das ciências temer que o século XXI termine antes de
no seu conjunto, olhamos para o passado começar.
a primeira imagem é talvez a de que os
progressos científicos dos últimos trinta Recorrendo à teoria sinergética do físico
anos são de tal ordem dramáticos que os teórico Hermann Haken, podemos dizer
séculos que nos precederam — desde o que vivemos num sistema visual muito
século XVI, onde todos nós, cientistas instável em que a mínima flutuação da
modernos, nascemos, até ao próprio nossa percepção visual provoca rupturas
século XIX — não são mais que uma na simetria do que vemos. Assim, olhando
pré-história longínqua. Mas se fecharmos a mesma figura, ora vemos um vaso
os olhos e os voltarmos a abrir, grego branco recortado sobre um fundo
verificamos com surpresa que os grandes preto, ora vemos dois rostos gregos de
cientistas que estabeleceram e perfil, frente a frente, recortados sobre
mapearam o campo teórico em que ainda um fundo branco. Qual das imagens é
hoje nos movemos viveram ou verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta
trabalharam entre o século XVIII e os a ambigüidade e a complexidade da
primeiros vinte anos do século XX, de situação do tempo presente, um tempo
Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e de transição, síncrone com muita coisa
Darwin, de Marx e Durkheim a Max que está além ou aquém dele, mas
Weber e Pareto, de Humboldt e Planck descompassado em relação a tudo o
a Poincaré e Einstein. E de tal modo é que o habita.
assim que é possível dizer que em
termos científicos vivemos ainda no Tal como noutros períodos de transição,
século XIX e que o século XX ainda não difíceis de entender e de percorrer, é
começou, nem talvez comece antes de necessário voltar às coisas simples, à
terminar. E se, em vez de no passado, capacidade de formular perguntas simples,
centrarmos o nosso olhar no futuro, do perguntas que, como Einstein costumava
mesmo modo duas imagens contraditórias dizer, só uma criança pode fazer mas que,
nos ocorrem alternadamente. Por um depois de feitas, são capazes de trazer
lado, as potencialidades da tradução uma luz nova à nossa perplexidade.
tecnológica dos conhecimentos Tenho comigo uma criança que há
acumulados fazem-nos crer no limiar de precisamente duzentos e trinta e oito

* A visita do prof. Boaventura contou com o apoio da FAPESP. As reflexões


epistemológicas deste texto estão tratadas com maior amplitude no livro Introdução
a uma Ciência Pós-Moderna, a ser publicado pela Editora Graal.
anos fez algumas perguntas simples Contudo, não o somos, em 1988, do
sobre as ciências e os cientistas. Fê-las mesmo modo que o éramos há quinze ou
no início de um ciclo de produção vinte anos. Por razões que alinho adiante,
científica que muitos de nós julgam estamos de novo perplexos, perdemos a
estar agora a chegar ao fim. Essa criança confiança epistemológica; instalou-se em
é Jean-Jacques Rousseau. No seu célebre nós uma sensação de perda irreparável
Discours sur les Sciences et les Arts (1750) tanto mais estranha quanto não sabemos
Rousseau formula várias questões ao certo o que estamos em vias de perder;
enquanto responde à que, também admitimos mesmo, noutros momentos,
razoavelmente infantil, lhe fora posta que essa sensação de perda seja apenas a
pela Academia de Dijon1. Esta última cortina de medo atrás da qual se
questão rezava assim: o progresso das escondem as novas abundancias da nossa
ciências e das artes contribuirá para vida individual e coletiva. Mas mesmo
purificar ou para corromper os nossos aí volta a perplexidade de não sabermos
costumes? Trata-se de uma pergunta o que abundará em nós nessa abundância.
elementar, ao mesmo tempo profunda e
fácil de entender. Para lhe dar resposta - Daí a ambigüidade e complexidade do
do modo eloqüente que lhe mereceu o tempo científico presente a que comecei
primeiro prêmio e algumas inimizades - por aludir. Daí também a idéia, hoje
Rousseau fez as seguintes perguntas não partilhada por muitos, de estarmos
menos elementares: há alguma relação numa fase de transição. Daí finalmente
entre a ciência e a virtude? Há alguma a urgência de dar resposta a perguntas
razão de peso para substituirmos o simples, elementares, inteligíveis. Uma
conhecimento vulgar que temos da pergunta elementar é uma pergunta que
natureza e da vida e que partilhamos atinge o magma mais profundo da nossa
com os homens e mulheres de nossa perplexidade individual e coletiva com
sociedade pelo conhecimento científico a transparência técnica de uma fisga.
produzido por poucos e inacessível à Foram assim as perguntas de Rousseau;
maioria? Contribuirá a ciência para terão de ser assim as nossas. Mais do que
diminuir o fosso crescente na nossa isso, duzentos e tal anos depois, as nossas
sociedade entre o que se é e o que se perguntas continuam a ser as de Rousseau.
aparenta ser, o saber dizer e o saber Estamos de novo regressados à
fazer, entre a teoria e a prática? Perguntas necessidade de perguntar pelas relações
simples a que Rousseau responde, de entre a ciência e a virtude, pelo valor do
modo igualmente simples, com um conhecimento dito ordinário ou vulgar
redondo não. que nós, sujeitos individuais ou
coletivos, criamos e usamos para dar
Estávamos então em meados do século sentido às nossas práticas e que a ciência
XVIII, numa altura em que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório
moderna, saída da revolução científica do e falso; e temos finalmente de perguntar
século XVI pelas mãos de Copérnico, pelo papel de todo o conhecimento
Galileu e Newton, começava a deixar os científico acumulado no enriquecimento
cálculos esotéricos dos seus cultores para ou no empobrecimento prático das nossas
se transformar no fermento de uma vidas, ou seja, pelo contributo positivo
transformação técnica e social sem ou negativo da ciência para a nossa
precedentes na história da humanidade. felicidade. A nossa diferença existencial
Uma fase de transição, pois, que deixava em relação a Rousseau é que, se as nossas
perplexos os espíritos mais atentos e os perguntas são simples, as respostas
fazia refletir sobre os fundamentos da sê-lo-ão muito menos. Estamos no fim de
sociedade em que viviam e sobre o um ciclo de hegemonia de uma certa
impacto das vibrações a que eles iam ser ordem científica. As condições
sujeitos por via da ordem científica epistêmicas das nossas perguntas estão
emergente. Hoje, duzentos anos volvidos, inscritas no avesso dos conceitos que
somos todos protagonistas e produtos utilizamos para lhes dar resposta. É
dessa nova ordem, testemunhos vivos das necessário um esforço de desvendamento
transformações que ela produziu. conduzido sobre um fio de navalha entre
l
Jean-Jacques Rousseau, Discours sur les Sciences et les Arts, in Oeuvres Completes, vol. 2,
Paris, Seuil, 1971, p. 52 e segs.
a lucidez e a ininteligibilidade da resposta. basicamente no domínio das ciências
São igualmente diferentes e muito mais naturais. Ainda que com alguns
complexas as condições sociológicas e prenúncios no século XVIII, é só no
psicológicas do nosso perguntar. É século XIX que este modelo de
muito diferente perguntar pela utilidade racionalidade se estende às ciências sociais
ou pela felicidade que o automóvel emergentes. A partir de então pode
me pode proporcionar se a pergunta é falar-se de um modelo global de
feita quando ninguém na minha racionalidade científica que admite
vizinhança tem automóvel, quando toda variedade interna mas que se distingue e
a gente tem exceto eu ou quando eu defende, por via de fronteiras ostensivas e
próprio tenho carro há mais de vinte ostensivamente policiadas, de duas formas
anos. de conhecimento não-científico (e,
portanto, irracional) potencialmente
perturbadoras e intrusas: o senso comum e
Teremos forçosamente de ser mais as chamadas humanidades ou estudos
rousseaunianos no perguntar do que no humanísticos (em que se incluíram, entre
responder. Começarei por caracterizar outros, os estudos históricos, filológicos,
sucintamente a ordem cientifica jurídicos, literários, filosóficos e
hegemônica. Analisarei depois os sinais teológicos).
da crise dessa hegemonia, distinguindo
entre as condições teóricas e as condições
sociológicas da crise. Finalmente Sendo um modelo global, a nova
especularei sobre o perfil de uma nova racionalidade científica é também um
ordem científica emergente, distinguindo modelo totalitário, na medida em que
de novo entre as condições teóricas e as nega o caráter racional a todas as formas
condições sociológicas da sua de conhecimento que se não pautarem
emergência. Este percurso analítico será pelos seus princípios epistemológicos e
balizado pelas seguintes hipóteses de pelas suas regras metodológicas. É esta
trabalho: primeiro, começa a deixar de a sua característica fundamental e a que
fazer sentido a distinção entre ciências melhor simboliza a ruptura do novo
naturais e ciências sociais; segundo, a paradigma científico com os que o
síntese que há que operar entre elas tem precedem. Está consubstanciada, com
como pólo catalisador as ciências crescente definição, na teoria heliocéntrica
sociais; terceiro, para isso, as ciências do movimento dos planetas de Copérnico,
sociais terão de recusar todas as formas nas leis de Kepler sobre as órbitas dos
de positivismo lógico ou empírico ou planetas, nas leis de Galileu sobre a queda
de mecanicismo materialista ou dos corpos, na grande síntese da ordem
idealista com a conseqüente revalorização cósmica de Newton e finalmente na
do que se convencionou chamar consciência filosófica que lhe conferem
humanidades ou estudos humanísticos; Bacon e sobretudo Descartes. Esta
quarto, esta síntese não visa uma ciência preocupação em testemunhar uma
unificada nem sequer uma teoria geral, ruptura fundante que possibilita uma e só
mas tão-só um conjunto de galerias uma forma de conhecimento verdadeiro
temáticas onde convergem linhas de água está bem patente na atitude mental dos
que até agora concebemos como protagonistas, no seu espanto perante as
objetos teóricos estanques; quinto, à próprias descobertas e a extrema e ao
medida que se der esta síntese, a distinção mesmo tempo serena arrogância com
hierárquica entre conhecimento científico que se medem com os seus
e conhecimento vulgar tenderá a O modelo de
contemporâneos. Para citar apenas dois racionalidade que
desaparecer e a prática será o fazer e o exemplos, Kepler escreve no seu livro
dizer da filosofia da prática. preside à ciência
sobre a Harmonia do Mundo publicado moderna constituiu-se a
em 1619, a propósito das harmonias partir da revolução
O Paradigma Dominante naturais que descobrira nos movimentos científica do século
celestiais: "Perdoai-me mas estou feliz; XVI e foi desenvolvido
O modelo de racionalidade que preside à se vos zangardes eu perseverarei; (...) nos séculos seguintes
ciência moderna constituiu-se a partir da O meu livro pode esperar muitos séculos basicamente no
revolução científica do século XVI e foi pelo seu leitor. Mas mesmo Deus teve de domínio das ciências
desenvolvido nos séculos seguintes esperar seis mil anos por aqueles que naturais.
pudessem contemplar o seu trabalho"2. distinções fundamentais, entre
Por outro lado, Descartes, nessa conhecimento científico e
maravilhosa autobiografia espiritual que conhecimento do senso comum, por
é o Discurso do Método e a que voltarei um lado, e entre natureza e pessoa
mais tarde, diz, referindo-se ao método humana, por outro. Ao contrário da
por si encontrado: "Porque já colhi dele ciência aristotélica, a ciência moderna
tais frutos que embora no juízo que faço desconfia sistematicamente das
de mim próprio procure sempre evidências da nossa experiência imediata.
inclinar-me mais para o lado da Tais evidências, que estão na base do
desconfiança do que para o da presunção, conhecimento vulgar, são ilusórias. Como
e embora, olhando com olhar de bem salienta Einstein no prefácio ao
filósofo as diversas ações e Diálogo sobre os Grandes Sistemas do
empreendimentos de todos os homens, Mundo, Galileu esforça-se denodadamente
não haja quase nenhuma que não me por demonstrar que a hipótese dos
pareça vã e inútil, não deixo de receber movimentos de rotação e de translação
uma extrema satisfação com o da terra não é refutada pelo fato de
progresso que julgo ter feito em busca não observarmos quaisquer efeitos
da verdade e de conceber tais esperanças mecânicos desses movimentos, ou seja,
para o futuro que, se entre as ocupações pelo fato de a terra nos parecer parada e
dos homens, puramente homens, alguma quieta 5 . Por outro lado, é total a
há que seja solidamente boa e importante, separação entre a natureza e o ser
ouso crer que é aquela que escolhi".3 humano. A natureza é tão-só extensão e
movimento; é passiva, eterna e reversível,
Para compreender esta confiança mecanismos cujos elementos se podem
epistemológica é necessário descrever, desmontar e depois relacionar sob a
ainda que sucintamente, os principais forma de leis; não tem qualquer outra
traços do novo paradigma científico. qualidade ou dignidade que nos impeça
Cientes de que o que os separa do saber de desvendar os seus mistérios,
aristotélico e medieval ainda dominante desvendamento que não é contemplativo,
não é apenas nem tanto uma melhor mas antes ativo, já que visa conhecer a
observação dos fatos como sobretudo natureza para a dominar e controlar.
uma nova visão do mundo e da vida, Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa
os protagonistas do novo paradigma humana" o senhor e o possuidor da
conduzem uma luta apaixonada contra natureza" 6 .
todas as formas de dogmatismo e de
autoridade. O caso de Galileu é Com base nestes pressupostos o
particularmente exemplar, e é ainda conhecimento científico avança pela
Descartes que afirma: "Eu não podia observação descomprometida e livre,
escolher ninguém cujas opiniões me sistemática e tanto quanto possível
parecessem dever ser preferidas às dos rigorosa dos fenômenos naturais. O
outros, e encontrava-me como que Novum Organum opõe a incerteza da
obrigado a procurar conduzir-me a razão entregue a si mesma à certeza da
mim próprio" 4 . Esta nova visão do experiência ordenada 7 . Ao contrário do
mundo e da vida reconduz-se a duas que pensa Bacon, a experiência não

2
Consultada a edição alemã (introdução e tradução de Max Caspar), Johannes Kepler,
Welt-Harmonik. Munique, Verlag Oldenbourg, 1939, p. 280.
3
Descartes, Discurso do Método e as Paixões da Alma. Lisboa, Sá da Costa, 1984, p. 6.
4
Descartes, ob. cit.,p. 16.
5
Einstein in Galileu, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems. Berkeley, University
of California Press, 1970, p. xviii.
6
Consultada a edição espanhola (preparada e traduzida por Gallach Palés), F. Bacon, Novum
Organum. Madrid, Nueva Biblioteca Filosófica, 1933. Para Bacon "a senda que conduz o
homem ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas, sendo quase a mesma"
(p. 110). Se o objetivo da ciência é dominar a natureza não é menos verdade que "só
podemos vencer a natureza obedecendo-lhe" (p. 6, grifo meu), o que nem sempre tem
sido devidamente salientado nas interpretações da teoria de Bacon sobre a ciência.
7
Cf. A. Koyré, Considerações sobre Descartes. Lisboa, Presença, 1981, p. 30.
dispensa a teoria prévia, o pensamento pelo rigor das medições. As qualidades
dedutivo ou mesmo a especulação, mas intrínsecas do objeto são, por assim
força qualquer deles a não dispensarem, dizer, desqualificadas e em seu lugar
enquanto instância de confirmação passam a imperar as quantidades em que
última, a observação dos fatos. Galileu eventualmente se podem traduzir. O
só refuta as deduções de Aristóteles na que não é quantificável é cientificamente
medida em que as acha insustentáveis e é irrelevante. Em segundo lugar, o método
ainda Einstein quem nos chama a atenção científico assenta na redução da
para o fato de os métodos experimentais complexidade. O mundo é complicado
de Galileu serem tão imperfeitos que só e a mente humana não o pode
por via de especulações ousadas poderia compreender completamente. Conhecer
preencher as lacunas entre os dados significa dividir e classificar para depois
empíricos (basta recordar que não havia poder determinar relações sistemáticas
medições de tempo inferiores ao entre o que se separou. Já em Descartes
segundo)8. Descartes, por seu turno, uma das regras do Método consiste
vai inequivocamente das idéias para as precisamente em "dividir cada uma das
coisas e não das coisas para as idéias e dificuldades . . . em tantas parcelas
estabelece a prioridade da metafísica quanto for possível e requerido para
enquanto fundamento último da ciência. melhor as resolver" 11 . A divisão
primordial é a que distingue entre
As idéias que presidem à observação e à "condições iniciais" e "leis da natureza".
experimentação são as idéias claras e As condições iniciais são o reino da
simples a partir das quais se pode complicação, do acidente e onde é
ascender a um conhecimento mais necessário selecionar as que estabelecem
profundo e rigoroso da natureza. Essas as condições relevantes dos fatos a
idéias são as idéias matemáticas. A observar; as leis da natureza são o reino
matemática fornece à ciência moderna, da simplicidade e da regularidade onde é
não só o instrumento privilegiado de possível observar e medir com rigor.
análise, como também a lógica da Esta distinção entre condições iniciais e
investigação, como ainda o modelo de leis da natureza nada tem de "natural".
representação da própria estrutura da Como bem observa Eugene Wigner, é
matéria. Para Galileu, o livro da mesmo completamente arbitrária 12 . No
natureza está inscrito em caracteres entanto, é nela que assenta toda a ciência
geométricos9 e Einstein não pensa de moderna.
modo diferente 10 . Deste lugar central
da matemática na ciência moderna A natureza teórica do conhecimento
derivam duas conseqüências principais. científico decorre dos pressupostos
Em primeiro lugar, conhecer significa epistemológicos e das regras
quantificar. O rigor científico afere-se metodológicas já referidas. É um

8
Einstein, ob. cit., p. XIX.
9
Entre muitos outros passos do Diálogo sobre os Grandes Sistemas, cf. a seguinte fala de
Salviati: "No que respeita à compreensão intensiva e na medida em que este termo denota a
compreensão perfeita de alguma proposição, digo que a inteligência humana compreende
algumas delas perfeitamente, e que, portanto, a respeito delas tem uma certeza tão absoluta
quanto a própria natureza. Tais são as proposições das ciências matemáticas, isto é, da
geometria e da aritmética nas quais a inteligência divina conhece infinitamente mais
proposições porque as conhece todas. Mas no que respeita àquelas poucas que a inteligência
humana compreende, penso que o seu conhecimento é igual ao Divino em certeza objetiva
porque, nesses casos, consegue compreender a necessidade para além da qual não há maior
certeza". Galileu, ob. cit., p. 103.
10
A admiração de Einstein por Galileu está bem expressa no prefácio referido na nota 5. O
modo radical (e instintivo) como Einstein "vê" a natureza matemática da estrutura da
matéria explica em parte a sua longa batalha sobre a interpretação da mecânica quântica
(especialmente contra a interpretação de Copenhague). Cf. B. Hoffmann, Albert Einstein,
Creator and Rebel, Nova Iorque, New A merican Library, 19 73, p. 173 e segs.
11
Descartes, ob. cit., p. 1 7.
12
E. Wigner, Symmetries and Reflections. Scientific Essays. Cambridge, Cambridge University
Press, 19 70, p. 3.
conhecimento causal que aspira à no futuro. Segundo a mecânica
formulação de leis, à luz de regularidades newtoniana, o mundo da matéria é uma
observadas, com vista a prever o máquina cujas operações se podem
comportamento futuro dos fenômenos. determinar exatamente por meio de leis
A descoberta das leis da natureza assenta, físicas e matemáticas, um mundo
por um lado, e como já se referiu, no estático e eterno a flutuar num espaço
isolamento das condições iniciais vazio, um mundo que o racionalismo
relevantes (por exemplo, no caso da cartesiano toma cognoscível por via da
queda dos corpos, a posição inicial e a sua decomposição nos elementos que o
velocidade do corpo em queda) e, por constituem. Esta idéia do mundo-máquina
outro lado, no pressuposto de que o é de tal modo poderosa que se vai
resultado se produzirá independentemente transformar na grande hipótese universal
do lugar e do tempo em que se realizarem da época moderna, o mecanicismo. Pode
as condições iniciais. Por outras palavras, parecer surpreendente e até paradoxal
a descoberta das leis da natureza assenta que uma forma de conhecimento, assente
no princípio de que a posição absoluta numa tal visão do mundo, tenha vindo
e o tempo absoluto nunca são condições a constituir um dos pilares da idéia de
iniciais relevantes. Este principio é, progresso que ganha corpo no
segundo Wigner, o mais importante pensamento europeu a partir do século
teorema da invariância na física XVIII e que é o grande sinal intelectual
clássica 13 . da ascensão da burguesia 14. Mas a
verdade é que a ordem e a estabilidade do
As leis, enquanto categorias de mundo são a pré-condição da
inteligibilidade, repousam num conceito transformação tecnológica do real.
de causalidade escolhido, não
arbitrariamente, entre os oferecidos pela O determinismo mecanicista é o
física aristotélica. Aristóteles distingue horizonte certo de uma forma de
quatro tipos de causa: a causa material, a conhecimento que se pretende utilitário
causa formal, a causa eficiente e a causa e funcional, reconhecido menos pela
final. As leis da ciência moderna são um capacidade de compreender
O determinismo tipo de causa formal que privilegia o profundamente o real do que pela .
mecanicista é o
como funciona das coisas em detrimento capacidade de o dominar e transformar.
horizonte certo dede qual o agente ou qual o fim das coisas. No plano social, é esse também o
uma forma de É por esta via que o conhecimento horizonte cognitivo mais adequado aos
conhecimento que se científico rompe com o conhecimento do interesses da burguesia ascendente que
pretende utilitário
senso comum. É que, enquanto no via na sociedade em que começava a
e funcional,
senso comum, e portanto no dominar o estádio final da evolução da
reconhecido menos conhecimento prático em que ele se humanidade (o estado positivo de
pela capacidade detraduz, a causa e a intenção convivem Comte; a sociedade industrial de Spencer;
compreender sem problemas, na ciência a determinação a solidariedade orgânica de Durkheim).
profundamente o da causa formal obtém-se com a expulsão Daí que o prestígio de Newton e das
real do que pela
da intenção. É este tipo de causa formal leis simples a que reduzia toda a
capacidade de oque permite prever e, portanto, intervir complexidade da ordem cósmica tenham
dominar e transformar. no real e que, em última instância, convertido a ciência moderna no modelo
No plano social, é essepermite à ciência moderna responder à de racionalidade hegemônica que a pouco
também e horizonte pergunta sobre os fundamentos do seu e pouco transbordou do estudo da
cognitivo mais
rigor e da sua verdade com o elenco dos natureza para o estudo da sociedade. Tal
adequado aosseus êxitos na manipulação e na como foi possível descobrir as leis da
interesses da burguesiatransformação do real. natureza, seria igualmente possível
ascendente que via na descobrir as leis da sociedade. Bacon,
sociedade em que Um conhecimento baseado na formulação Vico e Montesquieu são os grandes
começava a dominar de leis tem como pressuposto metateórico precursores. Bacon afirma a plasticidade
o estádio final da a idéia de ordem e de estabilidade do da natureza humana e, portanto, a sua
evolução da humanidade mundo, a idéia de que o passado se repete perfectibilidade, dadas as condições

13
E. Wigner, ob. cit., p. 226.
14
Cf., entre muitos, S. Pollard, The Idea of Progress. Londres, Penguin, 1971, p. 39.
sociais, jurídicas e políticas adequadas, liberta dele, e qualquer delas
condições que é possível determinar com reivindicando o monopólio do
rigor15. Viço sugere a existência de leis conhecimento científico-social.
que governam deterministicamente a Apresentarei adiante uma interpretação
evolução das sociedades e tornam possível diferente, mas para já caracterizarei
prever os resultados das ações coletivas. sucintamente cada uma destas variantes.
Com extraordinária premonição Vico
identifica e resolve a contradição entre a A primeira variante — cujo compromisso
liberdade e a imprevisibilidade da ação epistemológico está bem simbolizado no
humana individual e a determinação e nome de "física social" com que
previsibilidade da ação coletiva16. inicialmente se designaram os estudos
Montesquieu pode ser considerado um científicos da sociedade — parte do
precursor da sociologia do direito ao pressuposto que as ciências naturais são
estabelecer a relação entre as leis do uma aplicação ou concretização de um
sistema jurídico, feitas pelo homem, e as modelo de conhecimento universalmente
leis inescapáveis da natureza17. válido e, de resto, o único válido.
Portanto, por maiores que sejam as
No século XVIII este espírito precursor diferenças entre os fenômenos naturais e
é ampliado e aprofundado e o fermento os fenômenos sociais é sempre possível
intelectual que daí resulta, as luzes, vai estudar os últimos como se fossem os
criar as condições para a emergência das primeiros. Reconhece-se que essas
ciências sociais no século XIX. A diferenças atuam contra os fenômenos
consciência filosófica da ciência moderna, sociais, ou seja, tornam mais difícil o
que tivera no racionalismo cartesiano e no cumprimento do cânone
empirismo baconiano as suas primeiras metodológico e menos rigoroso o
formulações, veio a condensar-se no conhecimento a que se chega, mas não
positivismo oitocentista. Dado que, há diferenças qualitativas entre o
segundo este, só há duas formas de processo científico neste domínio e o
conhecimento científico — as disciplinas que preside ao estudo dos fenômenos
formais da lógica e da matemática e as naturais. Para estudar os fenômenos
ciências empíricas segundo o modelo sociais como se fossem fenômenos
mecanicista das ciências naturais — as naturais, ou seja, para conceber os
ciências sociais nasceram para ser fatos sociais, como coisas, como
empíricas. O modo como o modelo pretendia Durkheim18, o fundador da
mecanicista foi assumido foi, no entanto, sociologia acadêmica, é necessário
diverso. Distingo duas vertentes reduzir os fatos sociais às suas
principais: a primeira, sem dúvida dimensões externas, observáveis e
dominante, consistiu em aplicar, na mensuráveis. As causas do aumento da
medida do possível, ao estudo da taxa de suicídio na Europa do virar do
sociedade todos os princípios século não são procuradas nos motivos
epistemológicos e metodológicos que invocados pelos suicidas e deixados em
presidiam ao estudo da natureza desde o cartas, como é costume, mas antes a
século XVI; a segunda, durante muito partir da verificação de regularidades em
tempo marginal mas hoje cada vez mais função de condições tais como o sexo,
seguida, consistiu em reivindicar para as o estado civil, a existência ou não de
ciências sociais um estatuto filhos, a religião dos suicidas19.
epistemológico e metodológico próprio,
com base na especificidade do ser Porque essa redução nem sempre é fácil
humano e sua distinção polar em relação e nem sempre se consegue sem distorcer
à natureza. Estas duas concepções têm grosseiramente os fatos ou sem os
sido consideradas antagônicas, a primeira, reduzir à quase irrelevância, as ciências
sujeita ao jugo positivista, a segunda, sociais têm um longo caminho a percorrer
15
Bacon, ob. cit.
16
Vico, Scienza Nuova, in Opere. Milão Riccardi, 1953.
17
Montesquieu, L'Esprit des Lois. Paris, Les Belles-Lettres, 1950.
18
19
E. Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Lisboa, Presença, 1980.
E. Durkheim, O Suicídio. Lisboa, Presença, 1973.
no sentido de se compatibilizarem com os sim, paradigmáticas. Enquanto, nas
critérios de cientificidade das ciências ciências naturais, o desenvolvimento
naturais. Os obstáculos são enormes mas do conhecimento tornou possível a
não são insuperáveis. Ernest Nagel, em formulação de um conjunto de
The Structure of Science, simboliza bem princípios e de teorias sobre a estrutura
o esforço desenvolvido nesta variante da matéria que são aceites sem
para identificar os obstáculos e apontar discussão por toda a comunidade
as vias da sua superação. Eis alguns dos científica, conjunto esse que designa
principais obstáculos: as ciências sociais por paradigma, nas ciências sociais não
não dispõem de teorias explicativas há consenso paradigmático, pelo que o
que lhes permitam abstrair do real para debate tende a atravessar verticalmente
depois buscar nele, de modo toda a espessura do conhecimento
metodológicamente controlado, a prova adquirido. O esforço e o desperdício
adequada; as ciências sociais não podem que isso acarreta é simultaneamente
estabelecer leis universais porque os causa e efeito do atraso das ciências
fenômenos sociais são historicamente sociais.
condicionados e culturalmente
determinados; as ciências sociais não A segunda vertente reivindica para as
podem produzir previsões fiáveis porque ciências sociais um estatuto metodológico
os seres humanos modificam o seu próprio. Os obstáculos que há pouco
comportamento em função do enunciei são, segundo esta vertente,
conhecimento que sobre ele se adquire; intransponíveis. Para alguns, é
os fenômenos sociais são de natureza a própria idéia de ciência da sociedade
subjetiva e como tal não se deixam que está em causa, para outros trata-se
captar pela objetividade do tão-só de empreender uma ciência
comportamento; as ciências sociais não diferente. O argumento fundamental é
são objetivas porque o cientista social que a ação humana é radicalmente
não pode libertar-se, no ato de subjetiva. O comportamento humano,
observação, dos valores que informam ao contrário dos fenômenos naturais,
a sua prática em geral e, portanto, não pode ser descrito e muito menos
também a sua prática de cientista 20 . explicado com base nas suas
características exteriores e objetiváveis,
Em relação a cada um destes obstáculos, uma vez que o mesmo ato externo
Nagel tenta demonstrar que a oposição pode corresponder a sentidos de ação
entre as ciências sociais e as ciências muito diferentes. A ciência social será
naturais não é tão linear quanto se sempre uma ciência subjetiva e não
julga e que, na medida em que há objetiva como as ciências naturais;
diferenças, elas são superáveis ou tem de compreender os fenômenos
negligenciáveis. Reconhece, no entanto, sociais a partir das atitudes mentais e do
que a superação dos obstáculos nem sentido que os agentes conferem às suas
sempre é fácil e que essa é a razão ações, para o que é necessário utilizar
principal do atraso das ciências sociais métodos de investigação e mesmo
em relação às ciências naturais. A idéia critérios epistemológicos diferentes dos
do atraso das ciências sociais é a idéia correntes nas ciências naturais, métodos
central da argumentação metodológica qualitativos em vez de quantitativos, com
nesta variante, e, com ela, a idéia de que vista à obtenção de um conhecimento
esse atraso, com tempo e dinheiro, intersubjetivo, descritivo e compreensivo,
poderá vir a ser reduzido ou mesmo em vez de um conhecimento objetivo,
eliminado. explicativo e nomotético.

Na teoria das revoluções científicas de Esta concepção de ciência social


Thomas Kuhn o atraso das ciências reconhece-se numa postura antipositivista
sociais é dado pelo caráter e assenta na tradição filosófica da
pré-paradigmático destas ciências, ao fenomenologia e nela convergem
contrário das ciências naturais, essas diferentes variantes, desde as mais

20
Ernest Nagel, The Structure of Science. Problems in the Logic of Scientific Explanation. Nova
Iorque, Harcourt, Brace & World, 1961, p. 447 e segs.
moderadas (como a de Max Weber)21 até pode afirmar com segurança que
às mais extremistas (como a de colapsarão as distinções básicas em que
Peter Winch)22. Contudo, numa reflexão assenta o paradigma dominante e a que
mais aprofundada, esta concepção, tal aludi na seção precedente.
como tem vindo a ser elaborada, revela-se A crise do paradigma dominante é o
mais subsidiária do modelo de resultado interativo de uma pluralidade
racionalidade das ciências naturais do de condições. Distingo entre condições
que parece. Partilha com este modelo a sociais e condições teóricas. Darei mais
distinção natureza/ser humano e tal atenção às condições teóricas e por elas
como ele tem da natureza uma visão começo. A primeira observação, que •
mecanicista à qual contrapõe, com não é tão trivial quanto parece, é que a
evidência esperada, a especificidade do identificação dos limites, das
ser humano. A esta distinção, primordial insuficiências estruturais do paradigma
na revolução científica do século XVI, científico moderno é o resultado do
vão-se sobrepor nos séculos seguintes grande avanço no conhecimento que
outras, tal como a distinção natureza/ ele propiciou. O aprofundamento do
cultura e a distinção ser humano/ conhecimento permitiu ver a fragilidade
animal, para no século XVIII se poder dos pilares em que se funda.
celebrar o caráter único de ser
humano. A fronteira que então se Einstein constitui o primeiro rombo
estabelece entre o estudo do ser humano no paradigma da ciência moderna, um
e o estudo da natureza não deixa de ser rombo, aliás, mais importante do que o
prisioneira do reconhecimento da que Einstein foi subjetivamente capaz
prioridade cognitiva das ciências naturais, de admitir. Um dos pensamentos mais
pois, se, por um lado, se recusam os profundos de Einstein é o da
condicionantes biológicos do relatividade da simultaneidade. Einstein
comportamento humano, pelo outro distingue entre a simultaneidade de
usam-se argumentos biológicos para acontecimentos presentes no mesmo lugar
fixar a especificidade do ser humano. e a simultaneidade de acontecimentos
Pode, pois, concluir-se que ambas as distantes, em particular de acontecimentos
concepções de ciência social a que separados por distâncias astronômicas.
aludi pertencem ao paradigma da Em relação a estes últimos, o problema
ciência moderna, ainda que a concepção lógico a resolver é o seguinte: como é
mencionada em segundo lugar represente, que o observador estabelece a ordem A crise do paradigma
dentro deste paradigma, um sinal de temporal de acontecimentos no
espaço? Certamente por medições da dominante é o
crise e contenha alguns dos componentes resultado interativo de
da transição para um outro paradigma velocidade da luz, partindo do
pressuposto, que é fundamental à uma pluralidade de
científico. condições. Distingo
teoria de Einstein, que não há na
natureza velocidade superior à da luz. No entre condições sociais
A Crise do Paradigma Dominante e condições
entanto, ao medir a velocidade numa
São hoje muitos e fortes os sinais de que direção única (de A a B), Einstein teóricas. ( . . . )
o modelo de racionalidade científica defronta-se com um círculo vicioso: a fim a identificação dos
que acabo de descrever em alguns dos de determinar a simultaneidade dos limites, das
seus traços principais atravessa uma acontecimentos distantes é necessário insuficiências
profunda crise. Defenderei nesta seção: . conhecer a velocidade; mas para estruturais do
primeiro, que essa crise é não só medir a velocidade é necessário paradigma científico
profunda como irreversível; segundo, que conhecer a simultaneidade dos moderno é o resultado
estamos a viver um período de revolução acontecimentos. Com um golpe de do grande avanço no
científica que se iniciou com Einstein e a gênio, Einstein rompe com este conhecimento que
mecânica quântica e não se sabe ainda círculo, demonstrando que a ele propiciou. O
quando acabará; terceiro, que os sinais simultaneidade de acontecimentos aprofundamento do
nos permitem tão-só .especular acerca.do distantes não pode ser verificada, conhecimento permitiu
paradigma que emergirá deste período pode tão-só ser definida. É, portanto, ver a fragilidade dos
revolucionário mas que, desde já, se arbitrária e daí que, como salienta pilares em que se funda.
21
Max Weber, Methodologischen Schriften. Frankfurt, Fischer, 1968.
22
Peter Winch, The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy. Londres, Routledge
e Kegan Paul, 1970.
Reichenbach, quando fazemos princípio da incerteza de Heisenberg: não
medições não pode haver contradições se podem reduzir simultaneamente os
nos resultados uma vez que estes nos erros da medição da velocidade e da
devolverão a simultaneidade que posição das partículas; o que for feito
nós introduzimos por definição no para reduzir o erro de uma das medições
sistema de medição 23 . Esta teoria aumenta o erro da outra 26 . Este
veio revolucionar as nossas concepções princípio, e, portanto, a demonstração
de espaço e de tempo. Não havendo da interferência estrutural do sujeito
simultaneidade universal, o tempo e o no objeto observado, tem implicações
espaço absolutos de Newton deixam de vulto. Por um lado, sendo
de existir. Dois acontecimentos estruturalmente limitado o rigor do
simultâneos num sistema de referência nosso conhecimento, só podemos
não são simultâneos noutro sistema de aspirar a resultados aproximados e por
referência. As leis da física e da geometria isso as leis da física são tão-só
assentam em medições locais. "Os probabilísticas. Por outro lado, a
instrumentos de medida, sejam relógios hipótese do determinismo mecanicista é
ou metros, não têm magnitudes inviabilizada uma vez que a totalidade
independentes, ajustam-se ao campo do real não se reduz à soma das partes
métrico do espaço, a estrutura do qual em que a dividimos para observar e
se manifesta mais claramente nos medir. Por último, a distinção sujeito/
raios de luz" 24 . objeto é muito mais complexa do que à
O caráter local das medições e, portanto, primeira vista pode parecer. A distinção
do rigor do conhecimento que com base perde os seus contornos dicotômicos e
nelas se obtém, vai inspirar o surgimento assume a forma de um continuum.
da segunda condição teórica da crise do O rigor da medição posto em causa pela
paradigma dominante, a mecânica mecânica quântica será ainda mais
quântica. Se Einstein relativizou o rigor profundamente abalado se se questionar o
das leis de Newton no domínio da rigor do veículo formal em que a medição
astrofísica, a mecânica quântica fê-lo é expressa, ou seja, o rigor da matemática.
no domínio da microfísica. Heisenberg É isso o que sucede com as investigações
e Bohr demonstram que não é possível de Godel e que por essa razão considero
observar ou medir um objeto sem serem a terceira condição da crise do
interferir nele, sem o alterar, e a tal paradigma. O teorema da incompletude
ponto que o objeto que sai de um (ou do não-completamento) e os
processo de medição não é o mesmo que teoremas sobre a impossibilidade, em
lá entrou. Como ilustra Wigner, "a certas circunstâncias, de encontrar
medição da curvatura do espaço causada dentro de um dado sistema formal a
por uma partícula não pode ser levada prova da sua consistência vieram mostrar
a cabo sem criar novos campos que são que, mesmo seguindo à risca as regras da
bilhões de vezes maiores que o campo lógica matemática, é possível formular
sob investigação"25. A idéia de que não proposições indecidíveis, proposições que
conhecemos do real senão o que nele se não podem demonstrar nem refutar,
introduzimos, ou seja, que não sendo que uma dessas proposições é
conhecemos do real senão a nossa precisamente a que postula o caráter
intervenção nele, está bem expressa no não-contraditório do sistema 27 . Se as
23
H. Reichenbach, From Copernicus to Einstein, Nova Iorque, Dover Publications, 1970, p. 60.
24
H. Reichenbach, ob. cit., p. 68.
25
E. Wigner, ob. cit., p. 7.
26
W. Heisenberg, A Imagem da Natureza na Física Moderna. Lisboa, Livros do Brasil, s. d.;
W. Heisenberg, Physics and Beyond. Londres, Allen and Unwin, 1971.
27
O impacto dos teoremas de Godel na filosofia da ciência tem sido diversamente avaliado.
Cf., por exemplo, J. Ladrière, "Les Limites de la Formalization ", in J. Piaget (org),
Logique et Connaissance Scientifique. París, Gallimard, 1967, p. 312 e segs.; R. Jones,
Physics as Metaphor. Nova Iorque, New American Library, 1982, p. 158; J. Parain-Vial,
Philosophic des Sciences de la Nature. Tendances Nouvelles. Paris, Klincksieck, 1983, p. 52 e
segs.; R. Thom, Parábolas e Catástrofes. Lisboa, D. Quixote, 1985, p. 36; J. Briggs e F. D.
Peat, Looking Glass Universe. The Emerging Science of Wholeness. Londres, Fontana,
1985, p. 22.
leis da natureza fundamentam o seu rigor segundo uma lógica de auto-organização
no rigor das formalizações matemáticas numa situação de não-equilíbrio. A
em que se expressam, as investigações situação de bifurcação, ou seja, o ponto
de Godel vêm demonstrar que o rigor da crítico em que a mínima flutuação de
matemática carece ele próprio de energia pode conduzir a um novo estado,
fundamento. A partir daqui é possível representa a potencialidade do sistema
não só questionar o rigor da matemática em ser atraído para um novo estado de
como também redefini-lo enquanto forma menor entropia. Deste modo a
de rigor que se opõe a outras formas de irreversibilidade nos sistemas abertos
rigor alternativo, uma forma de rigor cujas significa que estes são produto da sua
condições de êxito na ciência moderna historiais.
não podem continuar a ser concebidas A importância desta teoria está na nova
como naturais e óbvias. A própria filosofia concepção da matéria e da natureza que
da matemática, sobretudo a que incide propõe, uma concepção dificilmente
sobre a experiência matemática, tem compaginada com a que herdamos da
vindo a problematizar criativamente estes física clássica. Em vez da eternidade, a
temas e reconhece hoje que o rigor história; em vez do determinismo, a
matemático, como qualquer outra forma imprevisibilidade; em vez do mecanicismo,
de rigor, assenta num critério de a interpenetração, a espontaneidade e a
seletividade e que, como tal, tem um lado auto-organização; em vez da
construtivo e um lado destrutivo. reversibilidade, a irreversibilidade e a
A quarta condição teórica da crise do evolução; em vez da ordem, a desordem;
paradigma newtoniano é constituída em vez da necessidade, a criatividade e o
pelos avanços do conhecimento nos acidente. A teoria de Prigogine recupera
domínios da microfísica, da química e inclusivamente conceitos aristotélicos
da biologia nos últimos vinte anos. A tais como os conceitos de potencialidade
título de exemplo, menciono as e virtualidade que a revolução científica
investigações do físico-químico Ilya do século XVI parecia ter atirado
Prigogine. A teoria das estruturas definitivamente para o lixo da história.
dissipativas e o princípio da "ordem
através de flutuações"' estabelecem que Mas a importância maior desta teoria
em sistemas abertos, ou seja, em está em que ela não é um fenômeno
sistemas que funcionam nas margens da isolado. Faz parte de um movimento
estabilidade, a evolução explica-se por convergente, pujante sobretudo a partir
flutuações de energia que em da última década, que atravessa as
determinados momentos, nunca várias ciências da natureza e até as .
inteiramente previsíveis, desencadeiam ciências sociais, um movimento de
espontaneamente reações que, por via vocação transdisciplinar que Jantsch
de mecanismos não-lineares, pressionam o designa por paradigma da
sistema para além de um limite máximo auto-organização e que tem aflorações,
de instabilidade e o conduzem a um entre outras, na teoria de Prigogine, na
novo estado macroscópico. Esta sinergética de Haken 29 , no conceito de
transformação irreversível e hiperciclo e na teoria da origem da vida
termodinâmica é o resultado da de Eigen 30 , no conceito de autopoiesis
interação de processos microscópicos de Maturana e Varela 31 , na teoria das
28
I. Prigogine el. Stengers, La Nouvelle Alliance. Metamorphose de la Science. Paris,
Gallimard, 1979; I. Prigogine, From Being to Becoming. 5. Francisco, Freeman, 1980;
I. Prigogine, "Time, Irreversibuity and Randomness", in E. Jantsch (orgj, The Evolutionary
Vision. Boulder, Westview Press, p. 73 e segs.
29
H. Han/en, Synergetics: an introduction. Heidelberg, Springer 19 77; H. Haken, "Synergetics -
An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization", Geoforum 16 (1985),
205.
30
M. Eigen e P. Schuster, The Hypercyde: a principle of natural self-organization. Heidelberg,
Springer, 1979.
31
H. R. Maturana e F. J. Varela, De Maquinas y Seres Vivos. Santiago do Chile, Editorial
Universitária, 1973; H. R. Maturana e J. F. Varela, Autopoietic Systems. Urbana, Biological
Computer Laboratory University of Illinois, 1975. Cf., também, F. Benseler, P. Hejl e W.
Koch (orgs.), Autopoiesis. Communication and Society. The Theory of Autopoietic Systems
in the Social Sciences. Frankfurt, Campus, 1980.
catástrofes de Thorn 32 , na teoria da principais. Em primeiro lugar, são
evolução de Jantsch33, na teoria da questionados o conceito de lei e o
"ordem implicada" de David Bohm34 conceito de causalidade que lhe está
ou na.teoria da matriz-S de Geoffrey associado. A formulação das leis da
Chew e na filosofia do "bootstrap" natureza funda-se na idéia de que os
que lhe subjaz35. Este movimento fenômenos observados independem de
científico e as demais inovações teóricas tudo exceto de um conjunto
que atrás defini como outras tantas razoavelmente pequeno de condições
condições teóricas da crise do paradigma (as condições iniciais) cuja interferência
dominante têm vindo a propiciar uma é observada e medida. Esta idéia,
profunda reflexão epistemológica sobre reconhece-se hoje, obriga a separações
o conhecimento científico, uma reflexão grosseiras entre os fenômenos,
de tal modo rica e diversificada que, separações que, aliás, são sempre
melhor do que qualquer outra provisórias e precárias uma vez que a
circunstância, caracteriza exemplarmente verificação da não-interferência de
a situação intelectual do tempo presente. certos fatores é sempre produto de
Mas acima de tudo, a Esta reflexão apresenta duas facetas um conhecimento imperfeito, por
simplicidade das leis sociológicas importantes. Em primeiro mais perfeito que seja. As leis têm
constitui uma lugar, a reflexão é levada a cabo assim um caráter probabilístico,
simplificação predominantemente pelo próprios aproximativo e provisório, bem
arbitrária da realidade cientistas, por cientistas que adquiriram expresso no princípio da falsificabilidade
que nos confina a um uma competência e um interesse de Popper. Mas acima de tudo, a
horizonte mínimo filosóficos para problematizar a sua simplicidade das leis constitui uma
para além do qual prática científica. Não é arriscado simplificação arbitrária da realidade que
outros conhecimentos dizer que nunca houve tantos nos confina a um horizonte mínimo
da natureza, cientistas-filósofos como atualmente, e para além do qual outros conhecimentos
provavelmente mais isso não se deve a uma evolução da natureza, provavelmente mais ricos
ricos e com mais arbitrária do interesse intelectual. Depois e com mais interesse humano, ficam por
interesse humano, da euforia cientista do século XIX e da conhecer. Na biologia, onde as
ficam por conhecer. conseqüente aversão à reflexão filosófica, interações entre fenômenos e formas
Na biologia, onde as bem simbolizada pelo positivismo, de auto-organização em totalidades
interações entre chegamos a finais do século XX possuídos não-mecânicas são mais visíveis, mas
fenômenos e pelo desejo quase desesperado de também nas demais ciências, a noção de
formas de complementarmos o conhecimento das lei tem vindo a ser parcial e sucessivamente
auto-organização em coisas com o conhecimento do substituída pelas noções de sistema, de
totalidades conhecimento das coisas, isto é, com o estrutura, de modelo e, por último, pela
não-mecânicas são conhecimento de nós próprios. A noção de processo. O declínio da
mais visíveis, mas segunda faceta desta reflexão é que ela hegemonia da legalidade é concomitante
também nas demais abrange questões que antes eram deixadas do declínio da hegemonia da
ciências, a noção de aos sociólogos. A análise das condições causalidade. O questionamento da
lei tem vindo a ser sociais, dos contextos culturais, dos causalidade nos tempos modernos vem
parcial e modelos organizacionais da investigação de longe, pelo menos desde David Hume
sucessivamente científica, antes acantonada no campo e do positivismo lógico. A reflexão
substituída pelas separado e estanque da sociologia da crítica tem incidido tanto no problema
noções de sistema, ciência, passou a ocupar papel de relevo ontológico da causalidade (quais as
de estrutura, de na reflexão epistemológica. características do nexo causal?; esse
modelo e, por último, nexo existe na realidade?) como sobre o
pela noção de Do conteúdo desta reflexão respigarei, problema metodológico da causalidade
processo. a título ilustrativo, alguns dos temas (quais os critérios de causalidade?; como
32
R. Thom, ob. cit., p. 85 e segs.
33
E. Jantsch, The Self-Organizing Universe: scientific and human implications of the emerging
paradigm of evolution. Oxford, Pergamon, 1980; E. Jantsch. "Unifying Principles of
Evolution" E. Jantsch (org), The Evolutionary Vision, cit., p. 83 e segs.
34
D. Bohm, Wholeness and the Implicate Order. Londres, Ark Paperbacks, 1984.
35
G. Chew, "Bootstraps scientific idea?", Science 167 (1968), p. 762 e segs;G. Chew, "Hardon
bootstrap: triumph or frustration?", Physics Today, 23 (1970) p. 23 e segs; f. Capra, "Quark
physics without quarks: a review of recent developments in S-matrix theory", American
Journal of Physics, 47 (1979), p. 11 e segs.
reconhecer um nexo causal ou testar rigor que, ao afirmar a personalidade
uma hipótese causal?). Hoje, a do cientista, destrói a personalidade da
relativização do conceito de causa parte natureza. Nestes termos, o conhecimento
sobretudo do reconhecimento de que o ganha em rigor o que perde em riqueza
lugar central que ele tem ocupado na e a retumbância dos êxitos da intervenção
ciência moderna se explica menos por tecnológica esconde os limites da nossa
razões ontológicas ou metodológicas compreensão do mundo e reprime a
do que por razões pragmáticas. O pergunta pelo valor humano do afã
conceito de causalidade adequa-se bem a científico assim concebido. Esta pergunta
uma ciência que visa intervir no real está, no entanto, inscrita na própria
e que mede o seu êxito pelo âmbito relação sujeito/objeto que preside
dessa intervenção. Afinal, causa é tudo à ciência moderna, uma relação que
aquilo sobre que se pode agir. Mesmo os interioriza o sujeito à custa da
defensores da causalidade, como Mario exteriorização do objeto, tornando-os
Bunge, reconhecem que ela é apenas estanques e incomunicáveis.
uma das formas do determinismo e que
por isso tem um lugar limitado, ainda que
insubstituível, no conhecimento Os limites deste tipo de conhecimento
científico36. A verdade é que, sob a são, assim, qualitativos, não são
égide da biologia e também da microfísica, superáveis com maiores quantidades de
o causalismo, enquanto categoria de investigação ou maior precisão dos
inteligibilidade do real, tem vindo a instrumentos. Aliás, a própria precisão
perder terreno em favor do finalismo. quantitativa do conhecimento é
estruturalmente limitada. Por exemplo,
O segundo grande tema de reflexão no domínio das teorias da informação o
epistemológica versa mais sobre o teorema de Brillouin demonstra que a
conteúdo do conhecimento científico do informação não é gratuita 38 . Qualquer
que sobre a sua forma. Sendo um observação efetuada sobre um sistema
conhecimento mínimo que fecha as físico aumenta a entropia do sistema no
portas a muitos outros saberes sobre o laboratório, O rendimento de uma dada
mundo, o conhecimento científico experiência deve assim ser definido
moderno é um conhecimento pela relação entre a informação obtida
desencantado e triste que transforma a e o aumento concomitante da entropia.
natureza num autômato, ou, como Ora, segundo Brillouin, esse rendimento
diz Prigogine, num interlocutor é sempre inferior à unidade e só em
terrivelmente estúpido 37 . Este casos raros é próximo dela. Nestes
aviltamento da natureza acaba por termos, a experiência rigorosa é
aviltar o próprio cientista na medida irrealizável pois que exigiria um dispendio
em que reduz o suposto diálogo infinito de atividades humanas. Por
experimental ao exercício de uma último, a precisão é limitada porque, se é
prepotência sobre a natureza. O rigor verdade que o conhecimento só sabe
científico, porque fundado no rigor avançar pela via da progressiva
matemático, é um rigor que quantifica parcelização do objeto, bem
e que, ao quantificar, desqualifica, um representada nas crescentes
rigor que, ao objetivar os fenômenos, especializações da ciência, é
os objetualiza e os degrada, que, ao exatamente por essa via que melhor se
caracterizar os fenômenos, os caricaturiza. confirma a irredutibilidade das
É, em suma e finalmente, uma forma de totalidades orgânicas ou inorgânicas às

36
M. Bunge, Causality and Modem Science. Nova Iorque, Dover Publications, 3a edição, 1979,
p. 353: "The causal principle is, in short, neither a panacea nor a myth; it is a general
hypothesis subsumed under the universal principle of determinacy, and having an
approximate validity in its proper domain". Em Portugal é justo salientar neste domínio a
notável obra teórica de Armando Castro. Cf. Teoria do Conhecimento Científico, vols. I-IV,
Porto Limiar, 1975, 1978, 1980, 1982; vol V, Porto, Afrontamento, 1987.
37
I. Prigogine e I. Stengers, ob. cit., p. 13.
38
L. Brillouin, La Science et la Theorie de l'Information. Paris, Masson, 1959. Cf., também,
Parain-Vial, ob. cit., p. 122 e segs.
partes que as constituem e, portanto, o "A ciência e a tecnologia têm vindo
caráter distorsivo do conhecimento a revelar-se as duas faces de um processo
centrado na observação destas últimas. histórico em que os interesses militares
Os fatos observados têm vindo a e os interesses econômicos vão
escapar ao regime de isolamento prisional convergindo até quase à indistinção"40.
a que a ciência os sujeita. Os objetos têm No domínio da organização do trabalho
fronteiras cada vez menos definidas; são científico, a industrialização da ciência
constituídos por anéis que se entrecruzam produziu dois efeitos principais. Por um
em teias complexas com os dos restantes lado, a comunidade científica
objetos, a tal ponto que os objetos em estratificou-se, as relações de poder entre
si são menos reais que as relações entre cientistas tornaram-se mais autoritárias
eles. e desiguais e a esmagadora maioria dos
cientistas foi submetida a um processo
Ficou dito no início desta parte que a de proletarização no interior dos
crise do paradigma da ciência moderna laboratórios e dos centros de
se explica por condições teóricas, que investigação. Por outro lado, a
acabei ilustrativamente de apontar, e investigação capital-intensiva (assente em
por condições sociais. Estas últimas não instrumentos caros e raros) tornou
podem ter aqui tratamento detalhado59. impossível o livre acesso ao equipamento,
Referirei tão-só que, quaisquer que sejam o que contribuiu para o aprofundamento
os limites estruturais de rigor científico, do fosso, em termos de desenvolvimento
não restam dúvidas que o que a ciência científico e tecnológico, entre os países
ganhou em rigor nos últimos quarenta centrais e os países periféricos.
ou cinqüenta anos perdeu em capacidade
de auto-regulação. As idéias da autonomia Pautada pelas condições teóricas e sociais
da ciência e do desinteresse do que acabei de referir, a crise do
conhecimento científico, que durante paradigma da ciência moderna não
muito tempo constituíram a ideologia constitui um pântano cinzento de
espontânea dos cientistas, colapsaram ceticismo ou de irracionalismo. É antes
perante o fenômeno global da o retrato de uma família intelectual
industrialização da ciência a partir numerosa e instável, mas também
sobretudo das décadas de trinta e criativa e fascinante, no momento de se
quarenta. Tanto nas sociedades despedir, com alguma dor, dos lugares
capitalistas como nas sociedades conceituais, teóricos c epistemológicos,
socialistas de Estado do leste europeu, a ancestrais e íntimos, mas não mais
industrialização da ciência acarretou o convincentes e securizantes, uma
compromisso desta com os centros de despedida em busca de uma vida melhor a
poder econômico, social e político, os caminho doutras paragens onde o
As idéias da autonomia otimismo seja mais fundado e a
quais passaram a ter um papel decisivo
da ciência e do racionalidade mais plural e onde
na definição das prioridades científicas.
desinteresse do finalmente o conhecimento volte a ser
conhecimento A industrialização da ciência uma aventura encantada. A
científico, que manifestou-se tanto ao nível das caracterização da crise do paradigma
durante muito aplicações da ciência como ao nível da dominante traz consigo o perfil do
tempo constituíram a organização da investigação científica. paradigma emergente. É esse o perfil
ideologia espontânea Quanto às aplicações, as bombas de que procurarei desenhar a seguir.
dos cientistas, Hiroshima e Nagasaki foram um sinal
colapsaram perante o trágico, a princípio visto como acidental O Paradigma Emergente
fenômeno global da e fortuito, mas hoje, perante a catástrofe
industrialização da ecológica e o perigo do holocausto A configuração do paradigma que se
ciência a partir nuclear, cada vez mais visto como anuncia no horizonte só pode obter-se
sobretudo das manifestação de um modo de produção por via especulativa. Uma especulação
décadas de trinta e da ciência inclinado a transformar fundada nos sinais que a crise do
quarenta. acidentes em ocorrências sistemáticas. paradigma atual emite mas nunca por

39
Sobre este tema cf. Boaventura de Sousa Santos, "Da Sociologia da Ciência à Política
Científica", Revista Crítica de Ciências Sociais, l (1978), p. 11 e segs.
40
Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 26.
eles determinada. Aliás, como diz René da matéria e da natureza a que contrapõe,
Poirier e antes dele disseram Hegel e com pressuposta evidência, os conceitos
Heidegger, "a coerência global das de ser humano, cultura e sociedade. Os
nossas verdades físicas e metafísicas só avanços recentes da física e da biologia
se conhece retrospectivamente"41. Por põem em causa a distinção entre o
isso, ao falarmos do futuro, mesmo que orgânico e o inorgânico, entre seres vivos
seja de um futuro que já nos sentimos e matéria inerte e mesmo entre o humano
a percorrer, o que dele dissermos é e o não-humano. As características da
sempre o produto de uma síntese pessoal auto-organização, do metabolismo e da
embebida na imaginação, no meu caso auto-reprodução, antes consideradas
na imaginação sociológica. Não espanta, específicas dos seres vivos, são hoje
pois, que ainda que com alguns pontos atribuídas aos sistemas pré-celulares de
de convergência, sejam diferentes as moléculas. E quer num quer noutros
sínteses até agora apresentadas. Ilya reconhecem-se propriedades e
Prigogine, por exemplo, fala da nova comportamentos antes considerados
aliança e da metamorfose da ciência42. específicos dos seres humanos e das
Fritjof Capra fala da "nova física" e do relações sociais. A teoria das estruturas
Taoísmo da física43, Eugene Wigner dissipativas de Prigogine, ou a teoria
de "mudanças do segundo tipo"44, sinergética de Haken já citadas, mas
Erich Jantsch do paradigma da auto- também a teoria da ordem implicada
organização45, Daniel Bell da sociedade de David Bohm, a teoria da matriz-S de
pos-industrial46, Habermas da sociedade Geoffrey Chew e a filosofia do
comunicativa47. Eu falarei, por agora, do "bootstrap" que lhe subjaz e ainda a
paradigma de um conhecimento prudente teoria do encontro entre a física
para uma vida decente. Com esta contemporânea e o misticismo oriental
designação quero significar que a natureza de Fritjof Capra, todas elas de vocação
da revolução científica que atravessamos holística e algumas especificamente
é estruturalmente diferente da que orientadas para superar as inconsistências
ocorreu no século XVI. Sendo uma entre a mecânica quântica e a teoria da
revolução científica que ocorre numa relatividade de Einstein, todas estas
sociedade ela própria revolucionada pela teorias introduzem na matéria os
ciência, o paradigma a emergir dela não conceitos de historicidade e de processo,
pode ser apenas um paradigma científico de liberdade, de auto-determinação e até
(o paradigma de um conhecimento de consciência que antes o homem e a
prudente), tem de ser também um mulher tinham reservado para si. É como A distinção dicotômica
paradigma social (o paradigma de uma se o homem e a mulher se tivessem entre ciências naturais
vida decente). Apresentarei o lançado na aventura de conhecer os e ciências sociais
paradigma emergente através de um objetos mais distantes e diferentes de começa a deixar
conjunto de teses seguidas de justificação. si próprios, para, uma vez aí chegados, de ter sentido e
se descobrirem refletidos como num utilidade. Esta distinção
espelho. Já no princípio da década de assenta numa concepção
Todo o conhecimento sessenta e extrapolando a partir da mecanicista da matéria
científico-natural é científico-social mecânica quântica, Eugene Wigner e da natureza a que
considerava que o inanimado não era uma contrapõe, com
A distinção dicotômica entre ciências qualidade diferente mas apenas um caso- pressuposta evidência,
naturais e ciências sociais começa a deixar limite, que a distinção corpo/alma deixara os conceitos de ser
de ter sentido e utilidade. Esta distinção de ter sentido e que a física e a psicologia humano, cultura e
assenta numa concepção mecanicista acabariam por se fundir numa única sociedade.

41
R. Poirier, prefácio a Parain-Vial, ob. cit.,p. 10.
42
L Prigogine, obs. cits.
43
F. Capra, The Tao of Physics, Nova Iorque, Bantam Books, (1976), 1984; F. Capra, The
Turning Point. Nova Iorque, Bantam Books, 1983.
44
E. Wigner, ob. cit., p.215 e segs.
45
E. Jantsch, obs. cits.
46
D. Bell, The Coming Crisis of Post-Industrial Society. Nova Iorque, Basic Books, 1976.
47
J. Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns, 2 vols. Frankfut, Suhrkamp, 1982.
ciência48. Hoje é possível ir muito além interdependentes sem, no entanto,
da mecânica quântica. Enquanto esta estarem ligadas por nexo de causalidade.
introduziu a consciência no ato do São antes duas projeções, mutuamente
conhecimento, nós temos hoje de a envolventes, de uma realidade mais alta
introduzir no próprio objeto do que não é nem matéria nem consciência.
conhecimento, sabendo que, com isso, a O conhecimento do paradigma emergente
distinção sujeito/objeto sofrerá uma tende assim a ser um conhecimento não-
transformação radical. Num certo dualista, um conhecimento que se funda
regresso ao pan-psiquismo leibniziano, na superação das distinções tão familiares
começa hoje a reconhecer-se uma e óbvias que até há pouco considerávamos
dimensão psíquica na natureza, "a mente insubstituíveis, tais como natureza/
mais ampla" de que fala Bateson, da qual cultura, natural/artificial, vivo/inanimado,
a mente humana é apenas uma parte, uma mente/matéria, observador/observado,
mente imanente ao sistema social global subjetivo/objetivo, coletivo/individual,
e à ecologia planetária que alguns animal/pessoa. Este relativo colapso das
chamam Deus49. Geoffrey Chew postula distinções dicotômicas repercute-se nas
a existência de consciência na natureza disciplinas científicas que sobre elas se
como um elemento necessário à fundaram. Aliás, sempre houve ciências
autoconsistência desta última e, se que se reconheceram mal nestas
assim for, as futuras teorias da matéria distinções e tanto que se tiveram de
terão de incluir o estudo da consciência fraturar internamente para se lhes
humana. Convergentemente, assiste-se a adequarem minimamente. Refiro-me à
um renovado interesse pelo "inconsciente antropologia, à geografia e também à
coletivo", imanente à humanidade no psicologia. Condensaram-se nelas
seu todo, de Jung. Aliás, Capra pretende privilegiadamente as contradições da
ver as idéias de Jung — sobretudo a idéia separação ciências naturais/ciências
da sincronicidade para explicar a relação sociais. Daí que, num período de
entre a realidade exterior e a realidade transição entre paradigmas, seja
interior — confirmadas pelos recentes particularmente importante, do ponto de
conceitos de interações locais e não- vista epistemológico, observar o que se
locais na física das partículas 50 . Tal passa nessas ciências.
como na sincronia jungiana, as
interações não-locais são instantâneas Não basta, porém, apontar a tendência
e não podem ser previstas em termos para a superação da distinção entre
matemáticos precisos. Não são, pois, ciências naturais e ciências sociais, é
produzidas por causas locais e, quando preciso conhecer o sentido e conteúdo
muito, poder-se-á falar da causalidade dessa superação. Recorrendo de novo à
estatística. Capra vê em Jung uma das física, trata-se de saber qual será o
alternativas teóricas às concepções "parâmetro de ordem", segundo Haken,
mecanicistas de Freud e Bateson afirma ou o "atractor", segundo Prigogine,
que enquanto Freud ampliou o dessa superação, se as ciências naturais,
conceito de mente para dentro se as ciências sociais. Precisamente
(permitindo-nos abranger o porque vivemos um estado de
subsconsciente e o inconsciente) é turbulência, as vibrações do novo
necessário agora ampliá-lo para fora paradigma repercutem-se desigualmente
(reconhecendo a existência de fenômenos nas várias regiões do paradigma vigente
mentais para além dos individuais e e por isso os sinais do futuro são
humanos). Semelhantemente, a teoria da ambíguos. Alguns lêem neles a
ordem implicada, que, segundo o seu emergência de um novo naturalismo
autor, David Bohm, pode constituir uma centrado no privilegiamento dos
base comum tanto à teoria quântica como pressupostos biológicos do
à teoria da relatividade, concebe a comportamento humano. Assim
consciência e a matéria como Konrad Lorenz ou a sociobiologia. Para
48
E. Wigner, ob. cit., p. 271.
49
G. Bateson, Mind and Nature, Londres, Fontana, 1985.
50
Cf. também M. Bowen, "The Ecology of Knowledge: linking the natural and social sciences",
Geoforum 16 (1985), p. 213 e segs.
estes, a superação da dicotomia ciências nas últimas décadas prova-se, além do
naturais/ciências sociais ocorre sob a mais, pela facilidade com que as teorias
égide das ciências naturais. Contra esta físico-naturais, uma vez formuladas no
posição pode objetar-se que ela tem seu domínio específico, se aplicam ou
do futuro a mesma concepção com que aspiram aplicar-se no domínio social.
as ciências naturais autojustificam, no Assim, por exemplo, Peter Allen, um dos
seio do paradigma dominante, o seu mais estreitos colaboradores de Prigogine,
prestígio científico, social e político e, tem vindo a aplicar a teoria das estruturas
por isso, só vê do futuro aquilo em que dissipativas aos processos econômicos e
ele repete o presente. Se, pelo contrário, à evolução das cidades e das regiões52.
numa reflexão mais aprofundada, E Haken salienta as potencialidades da
atentarmos no conteúdo teórico das sinergética para explicar situações
ciências que mais têm progredido no revolucionárias na sociedade53. É como
conhecimento da matéria, verificamos se o dito de Durkheim se tivesse invertido
que a emergente inteligibilidade da e em vez de serem os fenômenos sociais
natureza é presidida por conceitos, a ser estudados como se fossem
teorias, metáforas e analogias das fenômenos naturais, são os fenômenos
ciências sociais. Para não irmos mais naturais estudados como se fossem
longe, quer a teoria das estruturas fenômenos sociais.
dissipativas de Prigogine quer a teoria
sinergética de Haken explicam o O fato de a superação da dicotomia
comportamento das partículas através ciências naturais/ciências sociais ocorrer
dos conceitos de revolução social, sob a égide das ciências sociais não é,
violência, escravatura, dominação, contudo, suficiente para caracterizar o
democracia nuclear, todos eles modelo de conhecimento no
originários das ciências sociais (da paradigma emergente. É que, como
sociologia, da ciência política, da história, disse atrás, as próprias ciências sociais
etc.). O mesmo sucede, ainda no campo constituíram-se no século XIX segundo
da física teórica, com as teorias de os modelos de racionalidade das ciências
Capra sobre a relação entre física e naturais clássicas e, assim, a égide das
psicanálise, os padrões da matéria e os ciências sociais, afirmada sem mais, pode
padrões da mente concebidos como revelar-se ilusória. Referi contudo que a
reflexos uns dos outros. Apesar de constituição das ciências sociais teve
estas teorias diluírem as fronteiras lugar segundo duas vertentes: uma mais
entre os objetos da física e os diretamente vinculada à epistemologia
objetos da biologia, foi sem dúvida no e à metodologia positivistas das ciências
domínio desta última que os modelos naturais, e outra, de vocação
explicativos das ciências sociais mais antipositivista, caldeada numa tradição
se enraizaram nas décadas recentes. Os filosófica complexa, fenomenológica,
conceitos de teleomorfismo, autopoiesis, interacionista, mito-simbólica,
auto-organização, potencialidade hermenêutica, existencialista, pragmática,
organizada, originalidade, individualidade, reivindicando a especificidade do estudo
historicidade, atribuem à natureza um da sociedade mas tendo de, para isso,
comportamento humano. Lovelock, em pressupor uma concepção mecanicista
livro recente sobre as ciências da vida, da natureza. A pujança desta segunda
afirma que os nossos corpos são vertente nas duas últimas décadas é
constituídos por cooperativas de indicativa de ser ela o modelo de
células 51 . ciências sociais que, numa época de
revolução científica, transporta a marca
Que os modelos explicativos das ciências pós-moderna do paradigma emergente.
sociais vêm subjazendo ao Trata-se, como referi também, de um
desenvolvimento das ciências naturais modelo de transição, uma vez que define
51
J. E. Lovelock, Gaia: a New Look at Life on Earth. Oxford, Oxford University Press.
52
P. Allen, "The Evolutionary Paradigm of Dissipative Structures", in E. Jantsch (org),
The Evolutionary Vision, cit., p. 25 e segs.
53 H. Haken, "Synergetics — An Interdisciplinary Approach to Phenomena of Self-Organization",
Geoforum 16 (1985), p. 205 e segs.
a especificidade do humano por preferido a compreensão do mundo à
contraposição a uma concepção da manipulação do mundo. Este núcleo
natureza que as ciências naturais hoje genuíno foi, no entanto, envolvido num
consideram ultrapassada, mas é um anel de preocupações mistificatórias (o
modelo em que aquilo que o prende ao esoterismo nefelibata e a erudição
passado é menos forte do que aquilo balofa). O ghetto a que as humanidades
que o prende ao futuro. Em resumo, à se remeteram foi em parte uma estratégia
medida que as ciências naturais se defensiva contra o assédio das ciências
aproximam das ciências sociais estas sociais, armadas do viés cientista
aproximam-se das humanidades. O triunfalmente brandido. Mas foi também
sujeito, que a ciência moderna lançara o produto do esvaziamento que sofreram
na diáspora do conhecimento irracional, em face da ocupação do seu espaço pelo
regressa investido da tarefa de fazer modelo cientista. Foi assim nos estudos
erguer sobre si uma nova ordem históricos com a história quantitativa,
científica. nos estudos jurídicos com a ciência pura
Que este é o sentido global da revolução do direito e a dogmática jurídica, nos
científica que vivemos, é também estudos filológicos, literários e
sugerido pela reconceptualização em curso lingüísticos com o estruturalismo. Há
das condições epistemológicas e que recuperar esse núcleo genuíno e
metodológicas do conhecimento científico pô-lo ao serviço de uma reflexão global
social. Referi acima alguns dos obstáculos à sobre o mundo. O texto sobre que sempre
cientificidade das ciências sociais, os se debruçou a filologia é uma das
quais, segundo o paradigma ainda analogias matriciais com que se construirá
dominante, seriam responsáveis pelo no paradigma emergente o conhecimento
atraso das ciências sociais em relação sobre a sociedade e a natureza.
às ciências naturais. Sucede contudo que,
também como referi, o avanço do A concepção humanística das ciências
conhecimento das ciências naturais e a sociais enquanto agente catalisador da
reflexão epistemológica que ele tem progressiva fusão das ciências naturais e
suscitado têm vindo a mostrar que os ciências sociais coloca a pessoa, enquanto
obstáculos ao conhecimento científico autor e sujeito do mundo, no centro do
da sociedade e da cultura são de fato conhecimento, mas, ao contrário das
A concepção condições do conhecimento em geral, humanidades tradicionais, coloca o que
humanística das tanto científico-social como científico- hoje designamos por natureza no centro
ciências sociais natural. Ou seja, o que antes era a causa da pessoa. Não há natureza humana
enquanto agente do maior atraso das ciências sociais é porque toda a natureza é humana. É pois
catalisador da hoje o resultado do maior avanço das necessário descobrir categorias de
progressiva fusão das ciências naturais. Daí também que a inteligibilidade globais, conceitos quentes
ciências naturais e concepção de Thomas Kuhn sobre o que derretam as fronteiras em que a
ciências sociais coloca caráter pré-paradigmático (isto é, ciência moderna dividiu e encerrou a
a pessoa, enquanto menos desenvolvido) das ciências realidade. A ciência pós-moderna é uma
autor e sujeito do sociais54, que eu, aliás, subscrevi e ciência assumidamente analógica que
mundo, no centro do reformulei noutros escritos55, tenha de conhece o que conhece pior através do
conhecimento, mas, ser abandonada ou profundamente que conhece melhor. Já mencionei a
ao contrário das revista. analogia textual e julgo que tanto a
humanidades analogia lúdica como a analogia
tradicionais, coloca A superação da dicotomia ciências dramática, como ainda a analogia
o que hoje designamos naturais/ciências sociais tende assim a biográfica, figurarão entre as categorias
por natureza no revalorizar os estudos humanísticos. Mas matriciais do paradigma emergente: o
centro da pessoa. esta revalorização não ocorrerá sem que mundo, que hoje é natural ou social e
Não há natureza as humanidades sejam, elas também, amanhã será ambos, visto como um
humana porque toda profundamente transformadas. O que texto, como um jogo, como um palco
a natureza é há nelas de futuro é o terem resistido à ou ainda como autobiografia. Clifford
humana. separação sujeito/objeto e o terem Geertz refere algumas destas analogias

54
T. Kuhn, The Structureof Scientific Revolutions. Chicago, University of Chicago Press,
1962, passim.
55
Boaventura de Sousa Santos, ob. cit., p. 29 e segs.
humanísticas e restringe o seu uso às especializado e que isso acarreta efeitos
ciências sociais, enquanto eu as concebo negativos. Esses efeitos são sobretudo
como categorias de inteligibilidade visíveis no domínio das ciências aplicadas.
universais56. Não virá longe o dia em que As tecnologias preocupam-se hoje com o
a física das partículas nos fale do jogo seu impacto destrutivo nos ecossistemas;
entre as partículas, ou a biologia nos a medicina verifica que a
fale do teatro molecular ou a astrofísica hiperespecialização do saber médico
do texto celestial, ou ainda a química transformou o doente numa quadrícula
da biografía das reações químicas. Cada sem sentido quando, de fato, nunca
uma destas analogias desvela uma ponta estamos doentes senão em geral; a
do mundo. A nudez total, que será farmácia descobre o lado destrutivo dos
sempre a de quem se vê no que vê, medicamentos, tanto mais destrutivos
resultará das configurações de analogias quanto mais específicos, e procura uma
que soubermos imaginar: afinal, o jogo nova lógica de combinação química
pressupõe um palco, o palco exercita-se atenta aos equilibrios orgânicos; o direito,
com um texto e o texto é a autobiografia que reduziu a complexidade da vida
do seu autor. Jogo, palco, texto ou jurídica à secura da dogmática,
biografia, o mundo é comunicação e redescobre o mundo filosófico e
por isso a lógica existencial da ciência sociológico em busca da prudência
pós-moderna é promover a "situação perdida; a economia, que legitimara o
comunicativa" tal como Habermas a reducionismo quantitativo e tecnocrático
concebe. Nessa situação confluem com o pretendido êxito das previsões
sentidos e constelações de sentido econômicas, é forçada a reconhecer,
vindos, tal qual rios, das nascentes das perante a pobreza dos resultados, que a
nossas práticas locais e arrastando qualidade humana e sociológica dos
consigo as areias dos nossos percursos agentes e processos econômicos entra
moleculares, individuais, comunitários, pela janela depois de ter sido expulsa pela
sociais e planetários. Não se trata de porta; para grangear o reconhecimento
uma amálgama de sentido (que não dos utentes (que, públicos ou privados,
seria sentido mas ruído), mas antes de institucionais ou individuais, sempre
interações e de intertextualidades estiveram numa posição de poder em
organizadas em torno de projetos relação aos analisados) a psicologia
locais de conhecimento indiviso. Daqui aplicada privilegiou instrumentos
decorre a segunda característica do expeditos e facilmente manuseáveis,
conhecimento científico pós-moderno. como sejam os testes, que reduziram a
riqueza da personalidade às exigências
Todo o conhecimento é local e total funcionais de instituições unidimensionais.

Na ciência moderna o conhecimento Os males desta parcelização do


avança pela especialização. O conhecimento e do reducionismo
conhecimento é tanto mais rigoroso arbitrário que transporta consigo são
quanto mais restrito é o objeto sobre hoje reconhecidos, mas as medidas
que incide. Nisso reside, aliás, o que hoje propostas para os corrigir acabam em
se reconhece ser o dilema básico da geral por os reproduzir sob outra forma.
ciência moderna: o seu rigor aumenta Criam-se novas disciplinas para resolver
na proporção direta da arbitrariedade os problemas produzidos pelas antigas e
com que espartilha o real. Sendo um por essa via reproduz-se o mesmo modelo
conhecimento disciplinar, tende a ser um de cientificidade. Apenas para dar um
conhecimento disciplinado, isto é, segrega exemplo, o médico generalista, cuja
uma organização do saber orientada para ressurreição visou compensar a
policiar as fronteiras entre as disciplinas hiperespecialização médica, corre o risco
e reprimir os que as quiserem transpor. de ser convertido num especialista ao
É hoje reconhecido que a excessiva lado dos demais. Este efeito perverso
parcelização e disciplinarização do saber revela que não há solução para este
científico faz do cientista um ignorante problema no seio do paradigma
56
C. Geertz, Local Knowledge. Further Essays in Interpretative Anthropology. Nova Iorque,
Basic Books, 1983, p. 19 e segs.
dominante e precisamente porque este lugar, manter um espaço verde, construir
último é que constitui o verdadeiro um computador adequado às necessidades
problema de que decorrem todos os locais, fazer baixar a taxa de mortalidade
outros. infantil, inventar um novo instrumento
musical, erradicar uma doença, etc., etc.
A fragmentação pós-moderna não é
No paradigma emergente o disciplinar e sim temática. Os temas são
conhecimento é total, tem como galerias por onde os conhecimentos
horizonte a totalidade universal de que progridem ao encontro uns dos outros.
fala Wigner ou a totalidade indivisa de Ao contrário do que sucede no paradigma
que fala Bohm. Mas sendo total, é atual, o conhecimento avança à medida
também local. Constitui-se em redor que o seu objeto se amplia, ampliação
de temas que em dado momento são que, como a da árvore, procede pela
adotados por comunidades interpretativas diferenciação e pelo alastramento das
concretas como projetos de vida.locais, raízes em busca de novas e mais variadas
sejam eles reconstituir a história de um
Mas sendo local, o conhecimento por exemplo, fazer a análise filológica
pós-moderno é também total porque de um traçado urbano, entrevistar um
reconstitui os projetos cognitivos pássaro ou fazer observação participante
locais, salientando-lhes a sua entre computadores.
exemplaridade, e por essa via
transforma-os em pensamento total A transgressão metodológica repercute-se
ilustrado. A ciência do paradigma nos estilos e gêneros literários que
emergente, sendo, como deixei dito presidem à escrita científica. A ciência
acima, assumidamente analógica, é pós-moderna não segue um estilo
também assumidamente tradutora, ou unidimensional, facilmente identificável;
seja, incentiva os conceitos e as teorias o seu estilo é uma configuração de estilos
desenvolvidos localmente a emigrarem construída segundo o critério e a
para outros lugares cognitivos, de modo imaginação pessoal do cientista. A
a poderem ser utilizados fora do seu tolerância discursiva é o outro lado da
contexto de origem. Este procedimento, pluralidade metodológica. Na fase de
que é reprimido por uma forma de transição em que nos encontramos são
conhecimento que concebe através da já visíveis fortes sinais deste processo
operacionalização e generaliza através de fusão de estilos, de interpenetrações
da quantidade e da uniformização, será entre cânones de escrita. Clifford
normal numa forma de conhecimento Geertz estuda o fenômeno nas ciências
que concebe através da imaginação e sociais e apresenta alguns exemplos:
generaliza através da qualidade e da investigação filosófica parecendo crítica
exemplaridade. literária no estudo de Sartre sobre
Flaubert; fantasias barrocas sob a forma
O conhecimento pós-moderno, sendo de observações empíricas (a obra de
total, não é determinístico, sendo local, Jorge Luis Borges); parábolas
não é descritivista. É um conhecimento apresentadas como investigações
sobre as condições de possibilidade. As etnográficas (Carlos Castañeda); estudos
condições de possibilidade da ação epistemológicos sob a forma de textos
humana projetada no mundo a partir políticos (a obra Against Method de
de um espaço-tempo local. Um Paul Feyerabend)58. E como Geertz,
conhecimento deste tipo é relativamente podemos perguntar se Foucault é
imetódico, constitui-se a partir de uma historiador, filósofo, sociólogo ou
pluralidade metodológica. Cada método cientista político. A composição
é uma linguagem e a realidade responde transdisciplinar e individualizada para
na língua em que é perguntada. Só uma que estes exemplos apontam sugerem
constelação de métodos pode captar o um movimento no sentido da maior
silêncio que persiste entre cada língua personalização do trabalho científico.
que pergunta. Numa fase de revolução Isto conduz à terceira característica do
científica como a que atravessamos, conhecimento científico no paradigma
essa pluralidade de métodos só é emergente.
possível mediante transgressão
metodológica57. Sendo certo que cada Todo o conhecimento é
método só esclarece o que lhe convém autoconhecimento
e quando esclarece fá-lo sem surpresas
de maior, a inovação científica consiste A ciência moderna consagrou o homem
em inventar contextos persuasivos que enquanto sujeito epistêmico mas
conduzam à aplicação dos métodos expulsou-o, tal como a Deus, enquanto
fora do seu habitat natural. Dado que a sujeito empírico. Um conhecimento
aproximação entre ciências naturais e objetivo, fatual e rigoroso não tolerava
ciências sociais se fará no sentido destas a interferência dos valores humanos ou
últimas, caberá especular se é possível, religiosos. Foi nesta base que se construiu

57
Sobre o conceito de transgressão metodológica cf. Boaventura de Sousa Santos, "Science and
Politics: doing research in Rio's squatter settlements ", in R. Luckham (org.). Law and Social
Enquiry :case studies of research. Uppsala, Scandinavian Institute of African Studies, 1981,
p.275 e segs.
58
C. Geertz, ob. cit., p. 20.
a distinção dicotômica sujeito/objeto. sociais vieram a explodir no período
No entanto, a distinção sujeito/objeto pós-estruturalista.
nunca foi tão pacífica nas ciências sociais
quanto nas ciências naturais e a isso No domínio das ciências físico-naturais,
mesmo se atribuiu, como disseco maior o regresso do sujeito fora já anunciado
atraso das primeiras em relação às pela mecânica quântica ao demonstrar
segundas. Afinal, os objetos de estudo que o ato de conhecimento e o produto
eram homens e mulheres como os que do conhecimento eram inseparáveis. Os
os estudavam. A distinção epistemológica avanços da microfísica, da astrofísica e da
entre sujeito e objeto teve de se articular biologia das últimas décadas restituíram
metodológicamente com a distância à natureza as propriedades de que a
empírica entre sujeito e objeto. Isto ciência moderna a expropriara. O
mesmo se .torna evidente sé compararmos aprofundamento do conhecimento
as estratégias metodológicas da conduzido segundo a matriz materialista
antropologia cultural e social, por um veio a desembocar num conhecimento
lado, e da sociologia, por outro. Na idealista. A nova dignidade da natureza
antropologia, a distância empírica entre mais se consolidou quando se verificou
o sujeito e o objeto era enorme. O que o desenvolvimento tecnológico
sujeito era o antropólogo, o europeu desordenado nos tinha separado da
civilizado, o objeto era o povo natureza em vez de nos unir a ela e que
primitivo ou selvagem. Neste caso, a a exploração da natureza tinha sido o
distinção sujeito/objeto aceitou ou veículo da exploração do homem.
mesmo exigiu que a distância fosse O desconforto que a distinção sujeito/
relativamente encurtada através do uso de objeto sempre tinha provocado nas
metodologias que obrigavam a uma ciências sociais propagava-se assim às
maior intimidade com o objeto, ou ciências naturais. O sujeito regressava na
seja, o trabalho de campo etnográfico, veste dó objeto. Aliás, os conceitos de
a observação participante. Na sociologia, "mente imanente", "mente mais ampla"
ao contrário, era pequena ou mesmo nula e "mente coletiva" de Bateson e outros
a distância empírica entre o sujeito e constituem notícias dispersas de que o
objeto: eram cientistas europeus a outro foragido da ciência moderna, Deus,
estudar os seus concidadãos. Neste caso, pode estar em vias de regressar.
a distinção epistemológica obrigou a que Regressará transfigurado, sem nada de
esta distância fosse aumentada através do divino senão o nosso desejo de harmonia
uso de metodologias de distanciamento: e comunhão com a natureza que nos
por exemplo, o inquérito sociológico, rodeia e que, vemos agora, é o mais
a análise documental e a entrevista íntimo de nós. Uma nova gnose está
estruturada. em gestação.
Parafraseando Clausewitz, podemos
A antropologia, entre a descolonização afirmar hoje que o objeto é a
do pós-guerra e a guerra do Vietnam, e a continuação do sujeito por outros meios.
sociologia, a partir do final dos anos Por isso, todo o conhecimento científico
sessenta, foram levadas a questionar este é autoconhecimento. A ciência não
status quo metodológico e as noções de descobre, cria, e o ato criativo
distância social em que ele assentava. protagonizado por cada cientista e pela
De repente, os selvagens foram vistos comunidade científica no seu conjunto
dentro de nós nas nossas sociedades e a tem de se conhecer intimamente antes
sociologia passou a utilizar com mais que conheça o que com ele se conhece do
No domínio das intensidade métodos anteriormente real. Os pressupostos metafísicos, os
ciências físico-naturais, quase monopolizados pela antropologia sistemas de crenças, os juízos de valor não
o regresso do sujeito (a observação participante), ao mesmo estão antes nem depois da explicação
fora já anunciado tempo que nesta última os objetos científica da natureza ou da sociedade.
pela mecânica quântica passavam à ser concidadãos, membros São parte integrante dessa mesma
ao demonstrar que o de pleno direito da Organização das explicação. A ciência moderna não é a
ato de conhecimento Nações Unidas, e tinham de ser única explicação possível da realidade
e o produto do estudados segundo métodos sociológicos. e não há sequer qualquer razão científica
conhecimento eram As vibrações destes movimentos na para a considerar melhor que as
inseparáveis. distinção sujeito/objeto nas ciências explicações alternativas da metafísica,
da astrologia, da religião, da arte ou da autobiográfico e auto-referenciável da
poesia. A razão por que privilegiamos ciência é plenamente assumido. A ciência
hoje uma forma de conhecimento assente moderna legou-nos um conhecimento
na previsão e no controle dos fenômenos funcional do mundo que alargou
nada tem de científico. É o juízo de extraordinariamente as nossas
valor. A explicação científica dos perspectivas de sobrevivência. No futuro
fenômenos é autojustificação da ciência não se tratará tanto de sobreviver como de
enquanto fenômeno central da nossa saber viver. Para isso é necessária uma
contemporaneidade. A ciência é, assim, outra forma de conhecimento, um
autobiográfica. conhecimento compreensivo e íntimo
que não nos separe e antes nos una
A consagração da ciência moderna nestes pessoalmente ao que estudamos. A
últimos quatrocentos anos naturalizou a incerteza do conhecimento, que a
explicação do real, a ponto de não o ciência moderna sempre viu como
podermos conceber senão nos termos limitação técnica destinada a sucessivas
por ela propostos. Sem as categorias superações, transforma-se na chave do
de espaço, tempo, matéria e número — as entendimento de um mundo que mais
metáforas cardeais da física moderna, do que controlado tem de ser
segundo Roger Jones — sentimo-nos contemplado. Não se trata do espanto
incapazes de pensar, mesmo sendo já medieval perante uma realidade
hoje capazes de as pensarmos como hostil possuída do sopro da divindade,
categorias convencionais, arbitrárias, mas antes da prudência perante um
metafóricas. Este processo de mundo que, apesar de domesticado, nos
naturalização foi lento e, no início, os mostra cada dia a precaridade do sentido
protagonistas da revolução científica da nossa vida por mais segura que esteja
tiveram a noção clara que a prova íntima ao nível da sobrevivência. A ciência do
das suas convicções pessoais precedia e paradigma emergente é mais
dava coerência às provas externas que contemplativa do que ativa. A qualidade
desenvolviam. Descartes mostra melhor do conhecimento afere-se menos pelo
que ninguém o caráter autobiográfico que ele controla ou faz funcionar no
da ciência. Diz, no Discurso do Método: mundo exterior do que pela satisfação
''Gostaria de mostrar, neste Discurso, pessoal que dá a quem a ele acede e o
que caminhos segui; e de nele representar partilha.
a minha vida como num quadro, para
que cada qual a possa julgar, e para que,
sabedor das opiniões que sobre ele A dimensão estética da ciência tem
foram expendidas, um novo meio de me sido reconhecida por cientistas e
instruir se venha juntar àqueles de que filósofos da ciência, de Poincaré a
costumo servir-me"59. Hoje sabemos ou Kuhn, de Polanyi a Popper. Roger Jones
suspeitamos que as nossas trajetórias de considera que o sistema de Newton é
vida pessoais e coletivas (enquanto tanto uma obra de arte como urna obra
comunidades científicas) e os valores, as de ciência60. A criação científica no
crenças e os prejuízos que transportam paradigma emergente assume-se como
são aprova íntima do nosso conhecimento, próxima da criação literária ou artística,
sem o qual as nossas investigações porque à semelhança destas pretende que
laboratoriais ou de arquivo, os nossos a dimensão ativa da transformação do
cálculos ou os nossos trabalhos de campo real (o escultor a trabalhar a pedra) seja
constituiriam um emaranhado de subordinada à contemplação do resultado
diligências absurdas sem fio nem pavio. (a obra de arte). Por sua vez, o discurso
No entanto, este saber, suspeitado ou científico aproximar-se-á cada vez mais
insuspeitado, corre hoje do discurso da crítica literária. De algum
subterraneamente, clandestinamente, nos modo, a crítica literária anuncia a
não-ditos dos nosso trabalhos científicos. subversão da relação sujeito/objeto que
o paradigma emergente pretende
No paradigma emergente, o caráter operar. Na crítica literária, o objeto do
59
Descartes, ob. cit., p. 6.
60
R. Jones, ob. cit., p. 41.
estudo, como se diria em termos Assim ressubjetivado, o conhecimento
científicos, sempre foi, de fato, um científico ensina a viver e traduz-se num
supersujeito (um poeta, um saber prático. Daí a quarta e última
romancista , um dramaturgo) face ao qual característica da ciência pós-moderna..
o crítico não passa de um sujeito ou
autor secundário. É certo que, em tempos Todo o conhecimento científico visa
recentes, o crítico tem tentado sobressair constituir-se num novo senso comum
no confronto com o escritor estudado a
ponto de se poder falar de uma batalha Já tive ocasião de referir que o
pela supremacia travada entre ambos. fundamento do estatuto privilegiado da
Mas porque se trata de uma batalha, a racionalidade científica não é em si
relação é entre dois sujeitos e não entre mesmo científico. Sabemos hoje que a
um sujeito e um objeto. Cada um é a ciência moderna nos ensina pouco sobre
tradução do outro, ambos criadores de a nossa maneira de estar no mundo e que
textos, escritos em línguas distintas esse pouco, por mais que se amplie, será
ambas conhecidas e necessárias para sempre exíguo porque a exigüidade está
aprender a gostar das palavras e do inscrita na forma de conhecimento que
mundo. ele constitui. A ciência moderna produz
conhecimentos e desconhecimentos. Se e coisas. O senso comum é indisciplinar e
faz do dentista um ignorante imetódico; não resulta de uma prática
especializado faz do cidadão comum um especificamente orientada para o
ignorante generalizado. produzir; reproduz-se espontaneamente
no suceder quotidiano da vida. O senso
Ao contrário, a ciência pós-moderna comum aceita o que existe tal como
sabe que nenhuma forma de conhecimento existe; privilegia a ação que não produza
é, em si mesma, racional; só a rupturas significativas no real. Por
configuração de todas elas é racional. último, o senso comum é retórico e
Tenta, pois, dialogar com outras formas metafórico; não ensina, persuade.
de conhecimento deixando-se penetrar
por elas. A mais importante de todas é o À luz do que ficou dito atrás sobre o
conhecimento do senso comum, o paradigma emergente, estas
conhecimento vulgar e prático com que características do senso comum têm uma
no quotidiano orientamos as nossas virtude antecipatória. Deixado a si
ações e damos sentido à nossa vida. A mesmo, o senso comum é conservador
ciência moderna construiu-se contra o e pode legitimar prepotências, mas
senso comum que considerou superficial, interpenetrado do conhecimento
ilusório e falso. A ciência pós-moderna científico pode estar na origem de uma
procura reabilitar o senso comum por nova racionalidade. Uma racionalidade
reconhecer nesta forma de conhecimento feita de racionalidades. Para que esta
algumas virtualidades para enriquecer configuração de conhecimentos ocorra
a nossa relação com o mundo. É certo é necessário inverter a ruptura
que o conhecimento do senso comum epistemológica. Na ciência moderna a
tende a ser um conhecimento mistificado ruptura epistemológica simboliza o
e mistificador mas, apesar disso e apesar salto qualitativo do conhecimento do
de ser conservador, tem uma dimensão senso comum para o conhecimento
utópica e libertadora que pode ser científico; na ciência pós-moderna o
ampliada através do diálogo com o salto mais importante é o que é dado
conhecimento científico. Essa dimensão do conhecimento científico para o
aflora em algumas das características do conhecimento do senso comum. O
conhecimento do senso comum. conhecimento científico pós-moderno
só se realiza enquanto tal na medida
O senso comum faz coincidir causa e em que se converte em senso comum.
intenção; subjaz-lhe uma visão do Só assim será uma ciência clara que
mundo assente na ação e no princípio cumpre a sentença de Wittgenstein,
da criatividade e da responsabilidade "tudo o que se deixa dizer deixa-se
individuais. O senso comum é prático e dizer claramente"61. Só assim será
pragmático; reproduz-se colado às uma ciência transparente que faz
trajetórias e às experiências de vida de justiça ao desejo de Nietzsche ao
um dado grupo social e nessa dizer que "todo o comércio entre os
correspondência se afirma fiável e homens visa que cada um possa ler na alma
securizante. O senso comum é do outro, e a língua comum é a
transparente e evidente; desconfia da expressão sonora dessa alma
opacidade dos objetivos tecnológicos e comum"62.
do esoterismo do conhecimento que os
projeta em nome do princípio da A biência pós-moderna, ao
igualdade do acesso ao discurso, à sensocomunizar-se, não despreza o
competência cognitiva e à competência conhecimento que produz tecnologia,
lingüística. O senso comum é superficial mas entende que, tal como o
porque desdenha das estruturas que conhecimento se deve traduzir em
estão para além da consciência, mas, por autoconhecimento, o desenvolvimento
isso mesmo, é exímio em captar a tecnológico deve traduzir-se em
profundidade horizontal das relações sabedoria de vida. É esta que assinala
conscientes entre pessoas e entre pessoas os marcos da prudência à nossa aventura
61
L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus. Frankfurt, Suhrkamp, 1973, 4.116.
62
Nietzsche, "Rhetorique et Langage"; Poetique, 5 (191), p. 139.
científica. A prudência é a insegurança investigação que correspondam
assumida e controlada. Tal como inteiramente ao paradigma emergente
Descartes, no limiar da ciência moderna, que aqui delineei. E isso é assim
exerceu a dúvida em vez de a sofrer, nós, precisamente por estarmos numa fase
no limiar da ciência pós-moderna, de transição. Duvidamos suficientemente
devemos exercer a insegurança em vez do passado para imaginarmos o futuro,
de a sofrer. mas vivemos demasiadamente o presente
para podermos realizar nele o futuro.
Estamos divididos, fragmentados.
Na fase de transição e de revolução Sabemo-nos a caminho mas não
científica, esta insegurança resulta ainda exatamente onde estamos na jornada.
do fato de a nossa reflexão A condição epistemológica da ciência
epistemológica ser muito mais avançada repercute-se na condição existencial dos
e sofisticada que a nossa prática científica. cientistas. Afinal, se todo o conhecimento
Nenhum de nós pode neste momento é autoconhecimento, também todo o
visualizar projetos concretos de desconhecimento é autodesconhecimento.

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