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História do dinheiro

Alan Pauls História do dinheiro

Tradução josely vianna baptista


Assim que o dinheiro chegar, prometo que
voltarei a ser totalmente normal.
franziska zu reventlow

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Não completou quinze anos quando vê pessoalmente seu primeiro
morto. Fica um pouco surpreso de que esse homem, amigo íntimo da
família do marido de sua mãe, agora, encolhido pelas paredes muito
estreitas do caixão, ainda lhe pareça tão antipático quanto quando era
vivo. Ele o vê em seu terno, vê seu rosto rejuvenescido pela higiene
fúnebre, maquiado, a pele um pouco amarelada, com um brilho que
parece de cera, mas impecável, e sente novamente a mesma antipatia
raivosa que o assalta toda vez que deparou com ele. Aliás, sempre foi
assim, desde o dia em que o conhece, oito anos antes, num verão em
Mar del Plata, pouco antes do almoço.
Não sopra um pingo de vento, as cigarras aprontam outra ofensiva
ensurdecedora. Fugindo do calor, do calor e do tédio, ele anda à deriva
pelo casarão do início do século xx onde não consegue encontrar seu
lugar, pouco importam os sorrisos com que é recebido pelos donos da
casa assim que pisa nela pela primeira vez, nem o quarto exclusivo que
lhe destinam no primeiro andar, nem a insistência com que sua mãe lhe
garante que, mesmo recém-chegado, ele tem tanto direito ao casarão e
a tudo que há nele – incluindo a garagem com as bicicletas, as pranchas
de surfe e as de isopor, incluindo também o jardim com as tílias, o al-
pendre, os balanços de ferro e aqueles canteiros com hortênsias que o
sol chamusca e descolore até que as pétalas pareçam de papel – quanto
os outros, entendendo por outros toda a legião difusa, mas inexplica-
velmente crescente, que ele, com um desconcerto que os anos todos em
que vem escutando a expressão não conseguiram dissipar, ouve chamar

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de sua família recomposta, toda essa tropa de primos, tias e avós postiços malidade do uniforme do colégio com o qual sua mãe o obrigou a ficar,
que brotaram de um dia para o outro como verrugas, quase sempre sem a única coisa que seu guarda-roupa oferecia à altura da situação. Mas
lhe dar tempo para o básico, decorar seus nomes, por exemplo, e con- quando chega ao lado do caixão, com a esperança de que ver o morto ao
seguir associá-los aos rostos correspondentes. O calvário de quem se vê vivo – como um dia brincou com os colegas de escola com quem divide
forçado a se mover porque não se encaixa: todos os passos que dá são a mesma inexperiência em assuntos de velório – relegue a velha hosti-
em falso, cada decisão um erro. Viver é se arrepender. lidade para o subsolo onde murcham suas intolerâncias de criança, as
Numa escala de sua perambulação, aterrissa no térreo e o vê – ou vozes ao seu redor se entrelaçam num rumor confuso, o som ambiente
melhor, o surpreende – o morto, claro, quem mais seria? – esguei- se apaga e ele, incrédulo, descobre que o único som que ouve, que volta
rando-se pela sala de jantar como se andasse nas pontas dos pés, em a ouvir intacto, conservado em estado de máxima pureza, é uma coisa
atitude suspeita. Não tem a agilidade inquietante de um ladrão. Se há apenas: o crepitar insuportável dos crostines dentro da boca do morto.
uma coisa que ele não representa, rubicundo como é, de uma afetação São, de fato, dois sons alternados: o estalido que os crostines fazem ao
quase feminina, com essa pele sempre salpicada de manchas verme- serem triturados pelos dentes, nítido mas opaco, abafado pelo decoro
lhas, é uma ameaça. Tem um jeito sutil de se mover, a delicadeza de de uma boca educada para se abrir o mínimo possível enquanto mastiga,
um mímico ou de um bailarino, e dá uns saltos mudos, tão inofensi- e o estalo vivaz, regular, os lategaços ínfimos que ressoam no instante
vos quanto a missão que o levou até a sala de jantar antes que a sineta da trituração, quando os lábios se deliciam prolongando por alguns se-
anuncie oficialmente a hora do almoço: antecipar-se ao resto da família gundos o prazer de saboreá-los. Mas não: não estão no ar nem em sua
para saquear um por um, com as bicadas de seus dedos manicurados, cabeça. Não são uma alucinação nem uma lembrança. Estão lá dentro,
metódicos, os pratinhos onde acabam de servir os crostines que ele soam na própria boca do morto.
mesmo resolveu comprar essa manhã, uma marca de nome vagamente Quantas vezes volta a encontrá-lo ao longo dos anos seguintes:
estrangeiro cujas qualidades, ao que parece, está promovendo há uma dez?, trinta vezes? No entanto, nada nele persiste tanto quanto esse
semana sem que lhe deem atenção. crepitar repugnante. Vê o morto quase todo verão em Mar del Plata
Como todo mundo, ele acreditou que a morte lave essa velha apreen- e nas situações mais diversas: em traje de banho, por exemplo, com
são. Pelo menos isso, se não conseguir apagá-la. De maneira que se a pele branquíssima, salpicada de pintas, queimada de sol, encami-
aproxima do caixão, a única coisa, além da mulher do morto – a qual, nhando-se para o mar com os pés abertos em V, como um pato, ou exi-
aliás, já não vê há um bom tempo –, que o atrai nesse apartamento su- bindo suas camisas cor de salmão num conversível italiano com o qual
focante para onde sua mãe o levou sem dizer uma palavra assim que ele dizem que tentou a sorte no autódromo, ou jogando golfe e perdendo
volta da escola. Avança com o queixo fincado no peito, com o mesmo ar feio e deixando-se distrair – apenas anota com o lapisinho em seu car-
sério e ensimesmado que entristece com estranha unanimidade o rosto tão as sete tacadas grotescas que lhe exigiu o par quatro que acaba de
dos adultos e que em menos de dez minutos, só de dar uma olhada, já deixar para trás – pela cócega que diz que uma costurazinha da luva
é capaz de plagiar com perfeição, encorajado, além do mais, pela for- que acabou cedendo faz em seu punho, a ponta ligeiramente achatada

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do tee que mete entre os dentes ou a fome que começou a sentir quando exército de criadas que patrulham a toda hora o casarão de Mar del
ainda não são nem dez da manhã, ninharias que comenta em voz alta, Plata e todos os dias, no duplo turno de almoço e jantar, servem nesses
às vezes ao longo de buracos inteiros, como se fossem episódios de pratinhos de aço inoxidável espelhante os crostines que ele, depois de
um drama funesto, com o único fim de desconcertar os adversários e elogiá-los durante todo um verão, acaba por impor, destronando as
assim, talvez, superar os números adversos de seu cartão. Topa com bolachas de água e sal, e que daí em diante acompanharão todas as re-
ele também em Buenos Aires, em sua própria casa, convidado para feições da casa. O que a partir desse meio-dia de verão em Mar del Plata,
algum aniversário familiar, movendo-se com a presunção um pouco pelo menos para ele, identifica o morto de maneira imediata, como
insolente desses amigos da família que se atribuem um lugar mais ín- uma cicatriz, tão como um passe de mágica que o morto não precisa
timo que os próprios parentes, ou assinando cheques numa confeitaria mais emiti-lo para que ele o reconheça envenenando-lhe os ouvidos, é
da rua Florida, num desses salões imensos, fora de moda, com pol- o som que faz com a boca quando mastiga esses crostines de merda.
tronas capitonées e garçons de um profissionalismo carrancudo onde o Não quer espiar o caixão com receio de encontrar alguma miga-
marido de sua mãe, com o pretexto de familiarizá-lo com um modelo lha colada à comissura dos lábios dele. Seria demais. Está ali, a três
de vida adulta que sempre lhe será estranho, costuma almoçar e fechar passos, já adentrando a órbita da crocância mas pensando no que não
acordos comerciais com colegas. Uma vez o vê sob o sol numa chá- daria para estar em outro lugar – enfiado num cinema, por exemplo,
cara da província de Buenos Aires, vestido com calça branca e botas vendo um desses filmes tchecos ou húngaros que passam no cinema
de montaria e um copo longo na mão com uma bebida cor de ginja do Partido Comunista e aos quais quase ninguém quer acompanhá-
que bebe a sorvos curtos, quase aspirando-a, como se estivesse muito -lo, ou no cômodo ao lado, sem ir mais longe, clandestino, espiando
quente, enquanto um peão magérrimo, de boina, retirou-se para um de algum esconderijo ignominioso como a viúva do morto desmorona
lado e espera incomodado alguma coisa que não chega. sob o efeito de sedativos, acomoda-se na cama que transborda de casa-
Mas o que lhe resta dele nesse tempo todo não é o tom aflautado cos, estende aquelas longas pernas ossudas que ele conhece tão bem e
de sua voz, nem seus nervos frágeis, sempre em carne viva, nem os tira os sapatos de salto com a ponta dos pés –, e sente renascer nele a
ares de importância com que pega a taça de vinho pelo pé e a faz girar mesma apreensão que o assalta durante os almoços em Mar del Plata,
sobre o braço da poltrona. Não são seus óculos de sol, nem seus pulô- quando o morto, sem parar de falar, coisa que sempre faz no modo
veres claros amarrados no pescoço, nem seus mocassins de fivela, nem monólogo, ao que parece o único que conhece, enfia na boca um cros-
essa espécie de impaciência crispada que é o selo de sua relação com tine atrás do outro. Se pelo menos se limitasse a isso, a mastigá-los
os demais e com o mundo, duas coisas ou categorias de coisas cuja com essa paciência de roedor epicurista que faz do crepitar a faixa so-
existência só aceita a contragosto, como se não tivessem outra razão nora de suas perorações. Mas não: tem também que degustar com os
de ser senão fazer com que perca seu tempo, especialmente os perso- lábios o banquete que acaba de se oferecer, abrindo-os e fechando-os
nagens subalternos que de um modo ou de outro cruzam seu caminho, com uma fruição de recém-nascido. A apreensão de agora é tão intensa
peões de estância, caddies, motoristas, garçons, e acima de tudo o seleto quanto aquela, a tal ponto que tira do foco e apaga todo o resto, tudo o

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que diferencia este instante daqueles e escora esse mundo abafado, um marcha, às cegas mas seguros, e vão planando paralelos sobre a toalha
pouco submarino, que é a sociedade do luto: o rangido do parquê sob até parar ao lado do pratinho de aço inoxidável, onde pescam a ponta
seus passos de intruso, a doce emanação que as coroas de flores exa- do primeiro crostine da pilha e o levam à boca. A operação tem uma
lam, a penumbra cheia de soluços e até a pergunta que, como um se- elegância aérea, meio caligráfica, que o morto, porém, só alcança de-
gredo de polichinelo, não para de circular desde a madrugada em que pois de dias de aprendizado. Além de crocante, a massa dos crostines
a equipe de mergulhadores da prefeitura encontra o morto no fundo é excepcionalmente fina, e os poros pelos quais respiram lhe dão uma
do rio San Antonio: onde está o dinheiro? Mas o que a velha apreensão fragilidade vertiginosa. Qualquer coisa pode quebrá-la, e quebrada ela
apaga nele é, antes de mais nada, a evidência atroz de que o degusta- não vale nada. Quantas vezes, no começo, quando ainda não conse-
dor de crostines está morto, rígido e mudo como todo morto, e que o gue avaliar direito a consistência dos crostines, o próprio morto, que
sabor dessas torradas que em vida o enlouquecem de prazer lhe é agora brande o milagre de delicadeza que eles são para revelar a rusticidade
tão inacessível quanto tudo o que faz parte deste mundo, como, para grosseira das bolachas de água e sal, esmigalha-os assim que rasga o
encurtar a conversa, seus dois filhos, o mais velho, que é mantido na celofane em que vêm envoltos, ou os esmigalha ao levá-los à boca, ou
cozinha, subornado por um copo de achocolatado que se nega a provar, os despedaça bem na hora de mordê-los, de tal forma que uma hora e
o caçula, de meses, que dorme num quarto sob os cuidados de uma meia depois, quando o almoço termina e ele finalmente se levanta da
empregada, e a viúva, com seus olhos negros, seus lábios sempre um mesa, a proporção que conseguiu enfiar no estômago é ridícula, com-
pouco crestados, sua pele de leite constelada de sardas. parada aos escombros que atapetam seu setor da toalha.
Pensando bem, o que volta de mãos dadas com a apreensão é todo Às vezes, vendo-o assim, falando e mastigando sem parar, não sabe
um ritual de classe. A hora do almoço é a tribuna que o morto usa para o que o segura, que força formidável o impede de reagir, de subir na
fazer política, o que, em seu caso, obcecado que está pelo único drama cadeira, de manchar com seus tênis enlameados o veludo vermelho do
injusto para o qual parece ter alguma sensibilidade – a luta desigual estofado e, saltando sobre a mesa posta, pisoteando travessas, pratos
entre a vulgaridade e o bom gosto –, se reduz a denunciar o laranja ber- fumegantes, a toalha de linho branco recém-chegada da lavanderia,
rante com que inventaram de pintar as cadeiras de vime do balneário, lançar-se num salto suicida sobre o morto e obrigá-lo a se calar pondo
tradicionalmente brancas, ou as alamedas inundadas de música para uma faca em sua garganta, e quebrar seus dentes, e cortar sua língua.
empregadas, ou a impudência plebeia que infecta o título das peças de No entanto, sempre fica quieto em sua cadeira, os braços caídos dos
teatro que estreiam durante o verão. Menos por deferência que pelo de- lados, os olhos pregados no prato que mal provará, enquanto a voz do
sejo de convencer, o morto baixa a lenha, olhando seus interlocutores morto e o ranger dos crostines continuam tecendo ao redor dele sua
nos olhos. Passa de um para o outro com naturalidade, empenhado em selva odiosa. O que mais poderia fazer, na sua idade e nesse território
ganhá-los para uma causa que os demais talvez subscrevam mas à qual inimigo onde nem mesmo sua mãe consegue tocar o fundo – sua mãe,
mais cedo ou mais tarde devem renunciar, afligidos por uma ênfase que é quem o leva e o deixa lá, jurando de pés juntos que ele não tem
que lhes é difícil compartilhar. E enquanto fala seus dedos se põem em nada a temer. Jejuar: esse é todo o seu protesto. Jejuar e, duas horas

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mais tarde, em plena sesta, descer faminto até a cozinha, roubar de conversível italiano freando diante do portão fechado, é esse que se
assalto uma boa provisão de bolachas de água e sal e devorá-las com impõe a ele sempre que chega do colégio e descobre espalhados pela
rodelas de queijo fresco sozinho em seu quarto, com a persiana abai- casa, suficientes para que decida tomar o rumo de seu quarto, que sabe
xada e o abajur cuspindo seu solitário cone de luz sobre uma revista que o poupará de encontrá-lo, os sinais que denunciam sua presença:
em quadrinhos. Jejuar e esperar em silêncio, com a mala feita em sua o blazer azul com seu escudo bordado em ouro pendurado no encosto
cabeça e o coração palpitante, que 1o de fevereiro chegue de uma vez e de uma cadeira, o maço de cigarros com o Dupont de prata maciça em
seu pai o leve de férias para longe, bem longe, para qualquer lugar. cima, e a pasta de couro marrom avermelhado com suas iniciais marca-
Como se fosse possível. Porque não há como manter distância, das a fogo, no estilo de um ferrete, que leva sempre consigo, que dizem
nem no espaço nem no tempo. A prova é que, oito anos depois, quando que leva consigo até mesmo na manhã em que embarca no helicóptero
o degustador de crostines jaz de cara para o teto com as mãos cruza- rumo a Villa Constitución e da qual não há nenhum sinal quando os
das sobre o peito e ele tem catorze anos, todos os hormônios em pé quatro mergulhadores da Prefeitura, depois de rastrear meio delta, dão
de guerra e nenhuma obrigação, agora, de sentar-se a nenhuma mesa por fim com o helicóptero e os corpos no fundo do rio San Antonio.
em nenhum território inimigo, a única música que soa em seus ouvi- Volatilizada, feita fumaça, como, aliás, tudo o que se supõe que leva
dos não são os trompetes grandiloquentes de “Jerusalém”, o tema que dentro, papéis, documentação, planilhas, talões de cheques e, prin-
abre o disco de Emerson, Lake & Palmer que ele passa horas escutando cipalmente, o pacote de dinheiro que o encarregaram naquela manhã
trancado no quarto, mas o velho crepitar das mandíbulas do morto ir- de transportar até a fábrica de Zárate, dinheiro sujo, é óbvio, conside-
ritando-o com aqueles velhos crostines de merda. É de fato ao redor rando os objetivos mais ou menos turvos a que está destinado, cuja
desse som magnético, que poderia detectar e reconhecer em qualquer presença na pasta, no entanto, é confirmada à meia-voz por um par de
lugar, como um epiléptico detecta a condição peculiar da atmosfera empregados da poderosa companhia siderúrgica para a qual trabalha,
que prefigura uma crise, que ele foi incorporando e organizando ao atingida há mais de três semanas por um conflito sindical e agora en-
longo dos anos tudo o que sabe, pessoalmente ou que lhe chega por curralada pelas demissões-relâmpago da produção, a eleição por maio-
intermédio de outros, sobre o morto, coisas às quais pode ser que só ria absoluta de uma comissão interna mais vermelha que o sangue que
preste atenção e que só consiga reter porque lhe chegam associadas, logo correrá, a ameaça de tomar a fábrica por tempo indeterminado e
soldadas de uma vez por todas ao som do crepitar, e o crepitar, por sua a morte em circunstâncias meio obscuras de uma das figuras-chave do
vez, à rajada de apreensão que o invade indefectivelmente, e depois ao conflito, a única capaz de resolvê-lo ou de fazê-lo estourar.
impulso de se levantar da cadeira, de pular sobre a mesa, de enfiar uma É incrível como demoram a passar estes últimos dias de janeiro! Às
faca na garganta do morto etc. É esse som que se apresenta quando vezes, quando era bem pequeno, intrigado pela forma como quinze mi-
alguém solta o nome do morto numa conversa e o que dissipa todos nutos de relógio podem passar em câmara lenta ou como um suspiro,
os outros, incluída a estridência das cigarras, quando vai até a janela conforme o momento do dia, as circunstâncias, as pessoas com quem
de seu quarto no casarão de Mar del Plata e vê a tromba do famoso está, o clima, a luz, o estado de espírito, os afazeres que o esperam ou

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que deixou para trás, dá de pensar que o tempo talvez não seja absolu- refeições e vestimentas, o avanço do sol sobre a pele, os corpos banha-
tamente universal, mas o cúmulo do específico, uma espécie de bem dos, o cansaço dos rostos, todo esse tempo que parece avançar, arras-
endêmico que cada família e cada casa e até cada pessoa produzem à tado pela métrica mais ou menos regular dos dias, reduziu-se a mera
sua maneira, com métodos, critérios, instrumentos próprios, e produ- formalidade, uma ficção destinada a dissimular a paralisação das coisas.
zem no sentido mais literal da palavra, investindo força física, trabalho, A única coisa que pode aliviá-lo é o salvo-conduto que vai tirá-lo
matérias-primas, tudo o que a consistência evanescente do tempo pa- dali. As duas passagens de ônibus: a sua e a de seu pai. Ele mesmo tê-
receria, antes, tornar desnecessário, como se fosse mais um artesanato -las, em suas próprias mãos. Não pode esperar. Nem sequer o consola
doméstico do que esse transcorrer esquivo que todos repetem que é. que seu pai as compre e as leve consigo quando passa para buscá-lo
Mal se entra na última semana de janeiro e o mundo ganha peso, as na frente do casarão de Mar del Plata a cada 1o de fevereiro, segundo
horas se arrastam agonizando, como se escalassem uma encosta sem o calendário equânime – janeiro para ela, fevereiro para ele – que seus
fim. Em vez de levar ao dia seguinte, cada dia é o obstáculo que o retarda pais definem para as temporadas de verão alguns meses depois de
e vela. Chega um momento em que o tempo estanca – o tempo real, que separados, de comum acordo, segundo dizem, se é lícito chamar de
ele só reconhece que passa pela forma como vê se aproximar a única comum o acordo orquestrado pelo advogado de uma só das partes, a
coisa que deseja no mundo, ir embora de uma vez de Mar del Plata e dela, segundo o qual sua mãe, demonstrando uma integridade e uma
deixar para trás o crepitar dos crostines na boca do morto, o casarão, a convicção que não tem, estabelece a política a ser adotada e que seu pai
obrigação de fazer silêncio na hora da sesta, o tédio desses almoços e acata sem fazer objeção, acovardado pelo mesmo misto de saturação,
jantares em que permanece invariavelmente mudo, quase imóvel, inti- incompetência e culpa com que deixa, na ocasião, a casa da família,
midado pelas regras de uma etiqueta que ignora e pela variedade extrava- a ponto de renunciar ao direito de ter advogado, a sua parte no Auto
gante de talheres disposta dos lados do prato, que ele não saberia como Unión azul modelo 57 e a sua porcentagem do segundo apartamento
nem quando usar, embora mais de uma vez, no auge do torpor, movido sem elevador onde conviveram durante pouco mais de dois anos de
pelo impulso de fazer alguma coisa, qualquer coisa, que dissipe essa pesadelo – presentes de casamento, ambos, de seu sogro –, mas não ao
nuvem de modorra, de repente começa a classificá-los, reordena-os por dinheiro com que o sogro o convence a deixar a casa da família, de que
tamanho, cor, brilho, usa-os para fazer riscas na toalha de linho branco, necessita, ao que parece, para pagar dívidas acumuladas.
até que alguém da mesa – nunca sua mãe, que em matéria de litígios de É tomado de impaciência. Aproxima-se a data da partida – é mu-
direito familiar toma desde o início a decisão de fazer de conta que não dança de quinzena – e teme que as passagens se acabem e eles se vejam
ouve, e sim algum membro de sua chamada família recomposta, uma obrigados a adiar a viagem. De modo que ele mesmo vai comprá-las,
avó, um tio, até mesmo aquele primo postiço que, apenas um ou dois pessoalmente, com uma antecedência exagerada, no terminal rodoviá-
anos mais velho, fala com ele com uma autoridade incontestável, como rio de Mar del Plata. No começo vai acompanhado da mãe. Já tem idade
um tenente fala com um soldado raso – lá da outra ponta da mesa o re- para compreender perfeitamente, e em ordem, toda a sequência – pai,
preende. Porque o outro, o tempo que marcam o relógio, a sucessão de ir embora, viajar, ônibus, passagem, comprar –, mas continua tão pe-

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queno que nem ficando na ponta dos pés consegue pôr a cabeça no tosas e previsíveis consequências – e a se torrar usando calça comprida
campo visual do funcionário do guichê de passagens. Mais tarde vai com trinta e cinco graus à sombra, obrigado a olhar a água de longe.
sozinho, de bicicleta, feliz, já que assim, sem testemunhas, a ideia de Chega até a dormir com as passagens, mas evita colocá-las no bolso do
fugir de Mar del Plata ganha uma estimulante cota de ilegitimidade –, pijama, de onde poderiam cair ou ser roubadas por alguém, sorrateiro,
mesmo sendo sua mãe quem paga as passagens e escolhe o horário durante a noite. Fica com elas apertadas num punho, como um talismã,
do ônibus que deverão pegar –, mas também com o coração na mão, a tal ponto que quando chega o dia as passagens foram dobradas e des-
timoneando a bicicleta com uma das mãos e usando a outra, enfiada dobradas tantas vezes, embutidas tão profundamente no bolso, sub-
bem no fundo do bolso, para contar duas ou três vezes por quadra as metidas a tantos toques e manuseios, escondidas em tantos refúgios
passagens e confirmar que não perdeu nenhuma. inexpugnáveis, que a data e a hora da viagem e os números das poltro-
Guarda e vigia as passagens recém-compradas como se fossem um nas que lhes couberam e até o nome da viação de ônibus só conseguem
segredo. Leva-as consigo a toda parte, praça, cinema, percursos de bi- ser lidos a duras penas. Estão supergastas na tarde em que cruza, por
cicleta, expedições a terrenos baldios, até mesmo a esses restaurantes fim, carregando sua malinha azul-marinho, a porta do casarão de Mar
do porto aonde vai de vez em quando com sua família postiça, proto- del Plata – sozinho, como insiste sempre com sua mãe que quer sair,
parques temáticos que, com um par de âncoras, umas boias misérri- não tanto por um desejo de autonomia, mas para negar-lhe esses vinte
mas, umas redes de pesca suspensas do teto e dois ou três calibrados últimos metros que ela, se os percorresse junto com ele, usaria, acre-
marinheiros de papel machê supervisionando os salões, querem com- dita ele, para tentar dissuadi-lo de partir, coisa que ela está muito longe
pendiar o mundo marinho que desmerecem em seus cardápios, redu- de querer fazer, animada que está com a ideia de descansar um mês
zidos sempre ao mesmo punhado de opções, mexilhões à provençal, inteiro do trabalho de ser mãe –, percorre o longo caminho de cascalho
linguado meunière, lagostas, e onde o morto aproveita para continuar que leva até a rua, sobe com a malinha no muro de pedra que nasce do
fazendo das suas, posto que nem terminou de sentar e já joga na cara portão de entrada e se instala para esperar a chegada do pai.
dos garçons o escândalo de uma cestinha de pão que está cheia de pãe- É um desses dias radiantes, sem nuvens nem vento, perfeitamente
zinhos franceses, pãezinhos integrais, grissini, bolacha de marinheiro, idílicos, que justificam a existência do verão e que ninguém gostaria
mas continua ignorando seus crostines favoritos, uma negligência de perder. Não é o seu caso, e ele não lamenta. Uma alegria cega enche
que leva para o lado pessoal, como uma provocação direta contra ele, seu peito e o deixa sem fôlego. Vê passar rumo à praia as caravanas de
e justifica que inclua o estabelecimento em sua cada vez mais extensa famílias carregando guarda-sóis, cadeiras dobráveis, isopores, felizes
lista negra de restaurantes. Contra a vontade da mãe, que acha que não pelas horas de sol que têm pela frente, e nota o olhar contristado que
há melhor lugar para perdê-las, leva as passagens até mesmo à praia, lhe dedicam ao descobri-lo esperando junto ao portão, vestido dos pés
mesmo que isso o obrigue a renunciar ao calção de banho – em cujos à cabeça, com sua roupa de sair e sua mala, como se fosse um órfão ou
bolsos poderia guardá-las e, em algum momento, vítima de uma dis- algum tipo de doente proibido de ir à praia. Despreza-os em silêncio.
tração, esquecer que estão ali e entrar no mar com elas, com as espan- Compara a felicidade que sente ao pensar que em apenas meia hora

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estará com o pai a bordo do ônibus para Villa Gesell com o entusiasmo encontrar se voltar agora para casa (a compreensão da mãe, aquela so-
banal desses rostos que em duas ou três horas voltarão calcinados pelo lidariedade misericordiosa, como de freira, com que abre os braços lhe
sol, e tem a impressão de ser a pessoa mais privilegiada da terra. Mas oferecendo abrigo e, um pouco adiante, as fases sucessivas do transe
se passam quinze minutos, depois vinte, depois outros vinte e cinco, e que o espera: o portão, o caminho de cascalho, e a casa, e seu quarto
com um ligeiro estremecimento compreende que esgotou os passatem- exclusivo no primeiro andar, cujo papel de parede – salva-vidas com
pos com os quais ia distraindo sua impaciência. Já massacrou a coluna âncoras, nós de marinheiro, um símio vestido de marinheiro, versão
de formigas que tentavam escalar sua coxa nua para levar até o outro infantil, em tons pastel, dos motivos que ambientam os restaurantes
lado seu carregamento de folhas. Praticamente podou, de tanto brincar do porto – conhece de cor e odeia –, procura as passagens, desdobra-
com as folhas, o ligustro que coroa o muro de pedra. Cantou, contou – -as sobre a coxa e tenta localizar a hora da viagem nesse hieróglifo de
carros com placas par e ímpar, bicicletas, vira-latas, segundos –, raspou dados e números que as passagens sempre foram mas que ele só per-
o nariz das melecas que foi colando às cegas, como o especialista que é, cebe agora, quando mais necessitaria que fossem limpas e claras, e por
no muro, selando o desnível levemente côncavo que separa entre si os um momento só tem olhos para procurar o que o aliviaria, qualquer
blocos de pedra. Passa-se meia hora: nem sinal de seu pai. número superior a quatro, não importa que seja a data ou o número da
Em certo momento ele se vira e olha para trás, em direção à casa, e passagem ou o telefone da companhia ou a hora de chegada. Mas dá
depois de se certificar de que a mãe não o vigia posicionada em alguma por fim com a hora de saída, dá com a expressão hora de saída e lê quatro
janela, pula do muro, e sempre agarrado a sua mala, aproxima-se da e sente-se morrer.
beira da calçada e olha ao longe a rua em declive pela qual seu pai tem o Sente-se morrer. Tudo ao seu redor se suspende, como um líquido
costume de aparecer todo verão, sempre lentamente, como um desses que depois de entrar em efervescência se aquieta num repouso sólido,
sobreviventes que emergem acabados, mas altivos, de algum abismo, eterno. Ainda virado para a rua que desce, onde uma bola, cuspida do
primeiro a cabeça, calva, queimada, reluzente, com suas duas áreas de jardim de uma casa vizinha, começa a descer quicando, não vê o casa-
cabelo crespo crescendo com descuido dos lados, depois os ombros, rão mas o intui, adivinha as formas da varanda, o contorno levemente
depois o tronco vestindo camisas recém-lavadas. Mas o que vê, pro- denteado da fachada. Pensa em fugir. Qualquer coisa, pensa, antes que
jetando o olhar ao longo de toda uma quadra de vibrante visibilidade retroceder. Então ouve a voz da mãe chamando-o do outro lado do por-
calcinada, é o conclave íntimo de dois sorveteiros que cruzaram as bu- tão: “Deve ter havido algum problema”, diz a ele em tom displicente,
zinas de seus triciclos em pleno sol, contam o dinheiro feito ao longo fingindo não dar muita importância ao fato: “Ele já vai chegar. Venha,
daquele dia esplêndido e lamentam, talvez, ter ficado sem mercadoria vamos esperar lá dentro”. Ele se vira e começa a voltar. A mãe abre o
tão cedo, quando ainda são apenas quatro e cinco e restariam no mí- portão para que ele passe, e o rangido das dobradiças enferrujadas soa
nimo duas ou três boas horas de venda. em seus ouvidos como os degraus que levam ao patíbulo. Quando pisa
Com uma pontada de desespero, sem parar de olhar para a rua outra vez a superfície instável e familiar do cascalho, não se contém e
deserta, porque não há nada que mais tema do que aquilo que pode cai no choro. A mãe passa a mão em seus ombros, mão suave, empe-

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nhada em passar despercebida. Tem o tato de não abraçá-lo. Sabe que continua ali, sorrindo para um fotógrafo invisível, de braços abertos,
ele não suportaria. Mas mesmo assim ele se esquiva do braço e avança, atribuindo-se ainda os direitos sobre ele que acaba de perder, em pri-
e avança chorando. E quando vê a imensa massa do casarão defronte, meiro lugar o direito de olhá-lo e fazer contato imediato com ele, como
quase caindo em cima dele, ouve às suas costas uma voz inconfundível se nada os separasse, nem ar, nem sombras de árvores, nem reflexos
gritando seu nome. de sol que ofuscam, nem essa poeirinha que o vento às vezes levanta
Vira-se e olha para o pai com espanto. Não o reconhece. Não sabe quando redemoinha na entrada do casarão, e naturalmente sem passar
quem ele é, por que sorri para ele daquela maneira, o que o leva a lar- por sua mãe, para a qual não olha e a quem quase não se dirige desde
gar a bolsa de couro no chão e abrir os braços e estendê-los para ele, que chegou, nem mesmo para lembrar os detalhes técnicos de praxe –
convidando-o a correr ao seu encontro e abraçá-lo. Já são mais de qua- a data em que o devolverá, as precauções a tomar com o sol, a comida,
tro da tarde e seu pai não tem mais razão de ser. Perderam o ônibus, a a escova de dentes, a conveniência de tomar banho com alguma regu-
viagem deu em nada e seu pai – como tudo o que lhe estava associado laridade –, detalhes que o pai, aliás, sempre deixa para considerar no
nesse mundo possível que sua falta de pontualidade acaba de botar a último momento, quando já está com um pé no ônibus, e sempre meio
perder: as dunas da praia norte, as defecações apoteóticas nos bosques apático, como se ao considerá-los se dobrasse à vontade dessa mulher
de pinheiros, as maratonas noturnas de flíper, pebolim e kartismo no que, mesmo que não o tolere, mesmo que lhe custe pronunciar seu
Combo Park da avenida Três – não pode deixar de se esfumar também, nome e que o tenha proibido de subir quando passa para pegá-lo no
irremediavelmente. A ideia de que, abortada uma primeira possibili- apartamento da Ortega y Gasset, todo dia 1o de fevereiro se empenha em
dade, surja uma segunda capaz de substituí-la, é uma conquista tardia segurá-lo e atrasar sua partida. E não só continua ali como, com seu me-
da imaginação. Ele ainda não cruzou esse umbral. Para ele, uma possi- lhor tom de pretensão, sorrindo, diz a ele que não fique assim, que não
bilidade sempre é uma possibilidade, uma só: basta que deixe de existir tem por que “fazer drama”. Que sim, que de fato perderam o ônibus das
como possibilidade para que o mundo que a acompanhava também quatro, mas que isso não tem a menor importância. Também podem
deixe de existir, inteiro, para sempre. perder o próximo, o das quatro e meia, e também o seguinte, e cinco,
De modo que não tem mais pai. Não o terá até trinta segundos mais vinte, mais cem ônibus, todos os que houver no terminal rodoviário de
tarde, um lapso de tempo em que se dedica a imaginar, a fazer uma Mar del Plata e em todos os terminais rodoviários do mundo. Porque
ideia de como será sua vida dali para a frente, não só sua vida imediata, eles, ele – aponta-o com o indicador, o mesmo com que alguns anos
sem dúvida condenada novamente às quatro paredes do casarão de Mar antes, num sábado de manhã, tira uma linha de espuma do rosto e a põe
del Plata, mas tudo o que virá depois, a volta às aulas, o reencontro com na ponta do nariz dele, que o observa barbear-se a seu lado, em contra-
os colegas, todos intactos e ele cem por cento mudado, e o momento, -plongée – e ele – e aponta o mesmo dedo para o próprio peito, bem no
que agora vislumbrava com uma excitação quase dolorosa, em que vai centro do V que formam as duas laterais de sua camisa desabotoada –,
se dar ao luxo de soltar num recreio a grande frase-bomba: não tenho eles podem ir para Villa Gesell quando quiserem, quando resolverem,
mais pai. Mas trinta segundos depois, apesar de tudo, aquele homem quando acharem conveniente. Agora mesmo, se quiserem: põem um

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pé na rua e pronto, já estão saindo, já estão de viagem. Porque eles, diz, o primeiro táxi (que freia com a mesma precisão de sempre, com a
não vão para Villa Gesell de ônibus. Vão de táxi. maçaneta da porta traseira dada de bandeja para sua mão), empurra o
Cento e três quilômetros de estrada. Ele não sabe disso, claro. Não filho para o banco de trás, e depois de amontoar a bagagem no banco
nesses termos, pelo menos. Mas tudo o que ignora em matéria de me- da frente se acomoda a seu lado. E acalorado, abrindo a janela a toda a
didas convencionais é compensado por certa consciência das propor- velocidade, ordena: “Para Villa Gesell”.
ções, e ele sabe que todo trajeto que se percorra num ônibus de longa Em 1966, na Argentina, as únicas pessoas que fazem, de táxi, cento
distância, por mais detonado que ele esteja, por mais devagar que vá, e três quilômetros de uma estrada interbalneária esburacada, sem acos-
por mais vezes que pare no caminho, é inabarcável para qualquer outro tamento nem posto de gasolina, com os caminhos transversais cheios
meio de transporte sobre rodas – qualquer um que não seja um carro de bicicletas, motos sem luz, caminhonetes com a coluna de direção
particular, e carro particular, que ele saiba, seu pai não tem, não voltou em estado deplorável e outras ameaças mortais, são donos de táxi em
a ter desde que renunciou ao Auto Unión azul cujo motor encatarrado férias, foragidos da polícia e jogadores compulsivos que se exibem,
ainda tem a impressão de ouvir às vezes em sonhos, e não pretende ter bêbados de euforia, depois de uma noite de cassino inesperadamente
um de novo, como costuma jurar, sempre em voz alta, com a convicção próspera. Seu pai, que até onde ele sabe não é nenhuma dessas coisas,
enfática de um militante, que acredita que seu desprezo bastará para pelo menos não no momento, no futuro, veremos, mergulha de cabeça
quebrar a indústria automotiva inteira, e de fato não volta a ter um se- naquele Rambler que ferve sob o sol do dia mais perfeito do verão sem
não dois ou três anos mais tarde, quando a necessidade de agradar uma perguntar nada, nem mesmo se fazer a viagem que acaba de ordenar
namorada que não suporta viajar de férias em transporte público o leva é de fato possível, se o motorista do táxi aceitará ou não, e principal-
a comprar um Fiat 600 usado de cor creme. Entre um ônibus e um táxi mente se terá dinheiro suficiente para pagar a corrida. Dá o fato por
há para ele a mesma relação, ou melhor, a mesma falta de relação, a consumado, como se já tivesse acontecido. Na verdade, ninguém de-
mesma portentosa incomensurabilidade que há entre um avião e uma dica uma só palavra a debater o assunto durante a viagem. Seu pai sem
bicicleta, por exemplo, ou entre um transatlântico e os colchonetes in- dúvida não, interessado que está, agora, depois de um mês inteiro sem
fláveis nos quais gosta de viajar de um extremo ao outro das piscinas, ver o filho, em recuperar o tempo perdido e inteirar-se de tudo o que ele
muito lentamente, entrecerrando os olhos. fez durante sua ausência. Ele também não, nem uma palavra. O mesmo
Numa fração de segundo tudo se inverte e se acelera. Vai até a mãe, prodígio de temeridade que um minuto antes o fascinou agora o deixa
recupera a mala com um puxão enquanto lhe dá um beijo rápido, corre amedrontado. Acha que se disser alguma coisa, que se voltar sobre o
para o pai e segura a mão dele – deixa o abraço para mais tarde, para que acaba de acontecer, nem que seja para confirmar que efetivamente
quando o pai tiver voltado realmente a ser seu pai – e descem para a rua aconteceu e reviver a exaltação que experimentou enquanto acontecia,
juntos, correndo. Enquanto caminha para trás, na mesma direção que o que aconteceu pode deixar de acontecer, a história pode dar marcha
os carros que avançam, mas enfrentando-os, como se não estivesse dis- a ré e tudo se esfumar e voltar à estaca zero. E mesmo assim, enquanto
posto a perder mais nenhum segundo, seu pai estende o braço, chama ouve sua voz recapitulando os pormenores de seu verão e congelando

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a imagem no morto, em seu apego desenfreado pelos crostines e prin- tude de dinheiro de que tem consciência, ou a primeira vez que tem
cipalmente no ruído repulsivo que faz enquanto mastiga – um detalhe consciência de que o dinheiro pode ser uma magnitude. Até então é
que o pai festeja às gargalhadas, menos porque aprecie de fato ou se di- algo pequeno, portátil, uma coisa entre outras, só que tocada por uma
virta com aquilo que por vaidade, a tal ponto se orgulha de que ele, aos espécie de varinha mágica muito arcaica – tão arcaica que os poucos
seis anos, e no cerne de sua família postiça, ponha em prática esse dom que a viram em ação estão mortos –, que é a que lhe confere essa capa-
para a observação microscópica que, a seu ver, sempre caracterizou a cidade de se apoderar das outras coisas, de comê-las, a mesma que têm
estirpe masculina da família, e isso embora um membro importante suas peças em relação às peças inimigas e vice-versa, como descobre
dessa estirpe, seu próprio pai, tenha usado esse dom, no qual parece tempos mais tarde diante de um tabuleiro de xadrez, no refeitório do
ter sido brilhante, para fazer da vida do próprio filho um verdadeiro pe- hotel dos croatas com o qual sonha enquanto roda de táxi para Villa
sadelo –, toda a sua atenção tende a se desviar, atraída pelo tique-taque Gesell. De táxi para Villa Gesell, enquanto lá fora o mundo continua
do taxímetro no qual as fichas começaram a cair, caem, cairão, pensa, sua marcha estúpida, indiferente à proeza.
durante muito tempo, durante essa eternidade desconhecida chamada Mas que relação há entre esse dinheiro capaz de comer uma barra
cento e três quilômetros, e continuarão caindo, quem sabe, até chegar de chocolate ao leite, um pacote de figurinhas, uma borracha, a passa-
a quanto? gem de ônibus para Villa Gesell que agora agoniza no fundo do bolso
Não faz a menor ideia. Agora, com a cara do morto tão próxima, de sua calça, e o dinheiro que seria preciso reunir para comer alguma
alcançado outra vez pela onda expansiva do crepitar dos crostines, não coisa invisível, alguma coisa tão fora de escala quanto esses cento e
pode deixar de se perguntar quanto dinheiro há, de verdade, na pasta três quilômetros de estrada até Villa Gesell? Já viu dinheiro, é claro. Aos
da qual não se tem notícia quando os mergulhadores da Prefeitura en- seis anos, inclusive, já emprestou dinheiro. Tem o que ele chama de
contram o helicóptero e os corpos no fundo do rio, quanto e sobretudo minha caixa, um velho estojo de primeiros socorros com a tampa meio
por que encarregaram o morto de levar em pessoa esse dinheiro até a solta e a cruz vermelha descascada onde guarda seu capital, moedas,
fábrica de Zárate, se para pagar o extra que a polícia pretende cobrar notas pequenas ou rasgadas, os trocos com que sua mãe ou o marido
por baixo do pano para executar a ordem de repressão que o sindicato de sua mãe ou até mesmo seu pai lhe permitem ficar às vezes. É a ele e
patronal acerta com as autoridades locais da força pública, ou para a sua caixa – onde o dinheiro, enquanto dorme, vai se impregnando do
agradar os operários com um aumento que os distraia das reivindica- cheiro de atadura, de esparadrapo, de mertiolate – que sua mãe recorre
ções radicais a que são levados pela fração vermelha da liderança sindi- quando precisa de trocado para dar uma gorjeta ou pagar alguma des-
cal, que aposta tudo ou nada, ou até mesmo, sem meias palavras, para pesa pequena, o que acontece com mais frequência do que ela gostaria,
subornar a fração vermelha da liderança e resolver o assunto poupando mas sempre a pega de surpresa – revirar a bolsa no último momento,
banhos de sangue. Mas o que ele na verdade gostaria de fazer agora é com o porteiro, o homem da banca de jornal ou o entregador do ar-
poder lembrar quanto custa a viagem de táxi até Villa Gesell. E não tem mazém esperando, e não encontrar nada, nunca, nem uma moeda –,
jeito: o branco é total. Sabe, contudo, que é a primeira grande magni- enchendo-a de dramática contrariedade. Sua caixa: como valoriza

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essas doações casuais quando as recebe e como parece tê-las pouco em que seu pai e ele fazem de táxi a viagem até Villa Gesell, a mesma
presentes quando, depois do quarto ou quinto empréstimo que a mãe época, se é possível dizer assim, só que no centro de Nova York, no
lhe pede – sempre carente de troco, aliás, como não poderia deixar de gueto de uns pioneiros da depredação que, mesmo pobres, mesmo
ser numa cidade e num país onde o dinheiro pequeno é e sempre será conscientes de sua irredimível mediocridade, já preveem o quanto o
um bem precioso –, delicia-se lembrando-a dos que continua sem lhe mundo começará a pertencer-lhes nos anos que se avizinham, vê sendo
devolver – todos os anteriores – e a pressiona a ficar em dia. usados por quarentões de sucesso que se vestem exatamente como o
Quanto? Gostaria de saber agora, enquanto se acomoda no banco pai, paletós de tweed xadrez, camisas brancas sempre recém-saídas
de trás do táxi e se aconchega ao pai, que abriu ao máximo a janela e da lavanderia e sapatos abotinados com fivela do lado, e que têm com
deixa para fora o desafiante antebraço que já está perfeitamente bron- os bolsos das calças a mesma cumplicidade solvente de seu pai, tanto
zeado antes de as férias começarem. Olha o taxímetro suspenso sobre que não são os bolsos que parecem ter sido desenhados para as mãos,
o console do carro e se deixa enfeitiçar pela regularidade mecânica com mas sim as mãos para os bolsos. Quantas notas haverá? Quarenta? Cin-
que os números antigos, antigos já na época, vão substituindo uns aos quenta? Dobrado em dois, com as notas maiores do lado de fora e as
outros dentro das duas janelinhas do aparelho, como candidatos que menores do lado de dentro, ordenadas sempre em rigoroso sentido
renunciaram a um papel estelar – ser o total definitivo da viagem – por decrescente (com um último lugar do lado de dentro, depois das no-
vontade própria, sem que ninguém tenha se dado ao trabalho de avaliá- tas menores, reservado para o dinheiro que é sua verdadeira fraqueza:
-los nem de rejeitá-los. Se soubesse poderia abandonar-se ao que mais moeda estrangeira, principalmente dólares, francos suíços, libras es-
tarde será um de seus passatempos favoritos (que põe em prática sempre terlinas, liras, segundo a moeda que o pai mais tenha manejado ultima-
que precisa pagar por uma mercadoria enumerável): o rateio proporcio- mente na agência de viagens onde trabalha), o maço é tão volumoso que
nal. Calcular a cifra total da viagem pelos minutos que consome, saber o pai não consegue fechar a mão quando o segura, nem mesmo unir,
quanto custam não só os cento e três quilômetros até Villa Gesell mas fechando a mão, as pontas dos dedos. E pesa, pesa como uma coisa,
cada quilômetro, ou o tempo que o Rambler leva para percorrer cada como um sólido, não como o simples monte de papéis impressos que é.
quilômetro. Mas não sabe. Não saberá até uma hora e quarenta e cinco De modo que chegaram, é hora de pagar. E ele, atingido por uma
minutos depois, quando chegarem a Villa Gesell e o táxi estacionar junto lufada de medo, começa a se encolher em seu canto do banco de trás,
do hotel dos croatas e seu pai, com aquela desenvoltura extraordinária, esse paraíso de courvin cheiroso onde viveu quase duas horas de felici-
aprendida sabe-se lá onde, que dá a seu gesto uma despreocupação pro- dade, esbaldando-se com seu descarado privilégio de pioneiro (outros
digiosa, como se o executasse num meio sem obstáculos possíveis, o cruzam o canal da Mancha a nado, ele une Mar del Plata e Villa Gesell de
ar ou a água, enfiar a mão no bolso e pegar o maço de notas para pagar. táxi), e que agora o terror transfigura neste inferno irrespirável em que
O maço o impressiona: o maço direto, de dinheiro, sem carteira, fermentam o calor, o ronronar do motor, o cheiro do diesel queimado.
também sem esses prendedores elegantes que muito tempo depois, Pensa: e se o dinheiro não der? Porque o pai pode ter calculado mal.
vendo uma série de tevê que reconstitui com um esmero insano a época Pode nem ter calculado, ansioso por reparar a decepção que causou ao

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chegar tarde e perder o ônibus. Mas logo o vê inclinar-se para a frente, anos mais tarde a inflação e o câmbio negro farão entrar na moda, as
apoiar um antebraço no encosto do assento e examinar mais de perto Galantz, as Elwic, a mf Plus de Cirilo Ayling, orgulho argentino –, pró-
o taxímetro, onde os números, agora imóveis, oferecem seu veredicto teses que representam o pior, o mais baixo escalão da claudicação e
definitivo, e a atitude frontal com que encara a situação de algum modo da dependência humanas, mas também lápis e papel e até mecanis-
o tranquiliza. Tudo acontece muito rápido. O motorista do táxi vai para mos, por assim dizer, naturais como os dedos da mão. Mas contar,
o lado, toma nota do total indicado pelo taxímetro e começa a procurar além disso, no sentido da ação física, como quando se fala em contar
seu equivalente em dinheiro numa tabela plastificada. Há outra tabela notas. É uma coisa que o impressiona desde bem pequeno, quando
igual pendurada no encosto deste lado, mas seu pai, uma vez mais, de- tem a tarde livre no colégio e acompanha o pai em seu percurso pelo
cide ignorá-lo: na hora de fazer as contas, confia mais na perícia e na microcentro da cidade, onde trabalha, e o vê descontar cheques em
rapidez de sua cabeça que no veredicto de uma planilha impressa, que bancos, pagar passagens em companhias aéreas, comprar ou vender
para piorar é elaborada a quatro mãos nesses quartéis-generais da viga- moeda estrangeira em casas de câmbio, e o impressionará sempre, até
rice que são o sindicato de motoristas de táxi e a Secretaria dos Trans- os últimos dias, quarenta e dois anos mais tarde, quando, no hospital,
portes. E neste caso em particular, além do mais, sabe muito bem que pouco antes da crise pulmonar que o condenará à máscara de oxigênio
não há tabela de tarifas de táxi que contemple uma corrida tão fora do e ao entubamento, seu pai apanha de um maço já consideravelmente
programa quanto essa, Mar del Plata-Villa Gesell. É um duelo silencioso minguado as duas notas de cinquenta pesos que decidiu dar de gor-
e patético. O dedo reumático do taxista ainda treme na selva de núme- jeta “antes que seja tarde”, como ele mesmo diz, para a enfermeira da
ros vermelhos e pretos, rastreando o número que nunca encontrará, manhã, que o surpreende ao falar com ele em alemão enquanto troca a
quando o pai anuncia o montante definitivo em voz baixa, como para sonda, aplica uma injeção ou toma sua temperatura. Ninguém mostra
si mesmo, ou para uma testemunha invisível, mas muito próxima, e esse aprumo, essa eficácia elegante e altiva que transforma o gesto de
escolhe cinco ou seis notas e as separa do maço e paga. pagar num ato de soberania e faz esquecer o caráter sempre secundário,
Ninguém conta dinheiro como seu pai. Contar no sentido de fazer de resposta, que na verdade tem. Conta dinheiro e é como se contasse
contas, o que, no caso de seu pai, formado numa escola industrial da por contar, por amor à arte, como se diz: porque é um ato belo, nunca
qual sai com um único patrimônio, um talento inusitado para isso que porque a lógica da transação o exija. Jamais uma imperícia, uma nota
ele mesmo denomina os números, o único do qual, por outro lado, aceita que adere a outra, ou se prende, ou se dobra, rasgar-se então, nem pen-
se gabar (ele, o inimigo número um de toda imodéstia), e que exibe em sar. Sempre secos – se umedece às vezes as pontas dos dedos com a
público de modo mais ou menos impudico, são contas exclusivamente língua, como, segundo ele, fazem os maus caixas de banco, os comer-
mentais, sendo proibido o uso de qualquer instrumental suplementar, ciantes sem escrúpulos e os avaros, é só para caçoar, como se caçoa
tabelas de táxi, é claro, mas sobretudo máquinas, calculadoras, ábacos, dos subterfúgios com que as pessoas suprem as qualificações de que
contadores manuais – para não falar das contadoras de notas elétri- carecem naturalmente, e sempre caricaturando o ritual com os trejeitos
cas, do tamanho de máquinas de café expresso ou bebedouros, que pomposos de um mau ator –, os dedos deslizam ágeis, sem hesitar e

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num ritmo constante, e nas raríssimas vezes em que param e recome- que qualquer pai com um mínimo de senso de responsabilidade teria
çam, seja porque alguma coisa exterior os distraiu, seja porque eles pagado vinte se tivesse chegado a tempo para um encontro combinado
mesmos se perderam, zonzos com a velocidade, retomam a operação com meses de antecedência – qualquer um fica a salvo das marcas do di-
com a mesma impassibilidade com que a vinham executando, como se nheiro. E por acaso não é o que ela mesma faz anos mais tarde, quando
a contrariedade não houvesse existido, como um músico que retoma a dilapida numa veloz e faiscante década de festejos, ambição e negócios
partitura na frase que o fez tropeçar, e segue em frente. desafortunados a pequena fortuna que herda do próprio pai?
Em contraste com seus adversários na arte de contar, caixas, fun- Ele, por sua vez, toda vez que lida com dinheiro precisa lavar as mãos.
cionários de casas de câmbio ou corretores de valores, até mesmo seus Está no zoológico, por exemplo, numa dessas sessões combinadas de
próprios colegas da agência de viagens, que terminam a jornada de observação animal e desenho à mão livre que ocupam com frequência
trabalho com as pontas dos dedos pretas, como se tivessem sido cur- suas manhãs de sábado. Tem a ideia de comprar um pacote dessas bo-
tidas na pátina de gordura que lhes deixou o dinheiro manipulado ao lachinhas para animais com forma de animais que são sua perdição e
longo do dia, seu pai pode contar notas durante horas sem sujar os que costuma devorar num abrir e fechar de olhos, primeiro ursos, suas
dedos. Até os elásticos que prendem os maços de notas dobradas, que preferidas, depois macacos, antas, crocodilos, e assim até que o fundo
o pai manipula sempre com os dedos de uma única mão, malabarista do pacote se transforma num necrotério de cotos desoladores: a tromba
manco, perdem, com ele, seu poder de grudar e sujar. É como se o de um elefante, o casco de um caititu, o rabo espiralado de um leitão.
dinheiro não deixasse nenhuma marca nele. Basta-lhe pensar numa Por um momento tem a impressão de ter dado um passo de uma te-
frase para ter a impressão de que não é a primeira vez que a escuta, e meridade apavorante, como se tivesse cruzado uma fronteira definitiva
percebe que se a escuta é porque não é sua. Ouviu-a com frequência da qual não se volta mais, ou pelo menos não da mesma forma como
na boca da mãe, embora não necessariamente com o sentido que tem quando foi cruzada. Pergunta-se em que irá se transformar um me-
para ele. De fato, é a frase que a mãe repete um mês depois, quando nino alimentado à base de bolachas para animais com forma de ani-
ele volta ao apartamento da rua Ortega y Gasset de seu fevereiro em mais. E enquanto pensa nisso guarda o troco das bolachas no bolso –
Villa Gesell, tão queimado de sol que seus pés, quando levanta, des- o percurso pode mudar, assim como os animais representados, mas a
calço, e se apoia bem ereto na parede para que ela, como faz e sempre única coisa que é lei toda vez que visita o zoológico é a ideia, combinada
fará, meça os centímetros que ele ganhou enquanto estava longe dela, com seu pai, que é quem o acompanha, de que tudo o que consome no
desapareceriam na madeira escura do piso não fosse pelas unhas, que zoológico ele mesmo paga, com seu próprio dinheiro – e vira a gigan-
brilham como dez manchinhas luminosas, e, de repente, retomando o tesca folha em branco de papel Canson que acaba de desdobrar sobre
episódio do ônibus perdido e da corrida de táxi, com aquela memória a maleta onde leva seu material de desenho. Acabou de traçar no papel
inclemente, afiada, da qual a mãe se gaba toda vez que se lembra da a leve curva do lombo da zebra que está à sua frente quando é embos-
última vez que o viu antes de o pai o levar, lhe diz que assim qualquer cado por um trio de impressões digitais enegrecidas, estampadas como
um, que gastando dinheiro daquela maneira – pagando trezentos pelo um olho-d’água depravado no coração daquela brancura deslumbrante.

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Dia arruinado. Pousa o lápis, olha, desolado, para seus dedos, as pon- par de décadas mais tarde, quando não lhe cairiam nada mal, os ócu-
tas sujas pelo contato com as notas, em cuja pele um pouco grudenta los, os aparelhos auditivos e a bengala.
ficaram aderidas algumas migalhinhas isoladas, como alpinistas esque- O maço de notas, sempre. Não importa onde esteja, se na rua ou
cidos na ladeira rosada de uma montanha. De modo que rasga a folha jogando tênis, fazendo escala no aeroporto de Dacar ou levantando
com um gesto brutal, joga-se no chão cruzando os braços e se abstrai da poltrona da televisão – nos últimos anos, seu verdadeiro lugar no
num desses transes de tenebroso mau humor que podem durar horas, mundo – para receber o frango assado com batatas que encomendou
dias, e dos quais ninguém sabe como resgatá-lo. à rotisseria da esquina, seu eterno menu de solteiro, parece ter o di-
Como seu pai faz, ele não sabe, nunca saberá. É verdade que cuida nheiro sempre ao alcance da mão. Todo o seu dinheiro, o que inclui,
muito das mãos. Lava-as muitas vezes, não importa onde esteja, no es- naturalmente, as libras, os francos suíços, os dólares e as liras com
critório, principalmente, e sempre com seu próprio sabão, que guarda que costuma impressionar o entregador da rotisseria quando, quase
na segunda gaveta da escrivaninha e leva junto para o banheiro, esfre- nas fuças dele, começa a escolher no maço as notas para lhe pagar. A
gando-as com furor e deleite, e que o capricho com que lixa as unhas pergunta é como saber, dada a lei do cash, axioma único, de ferro, que
– inclusive a unha cubista, a que ganha quando jovem com a porta de rege sua economia do princípio ao fim, se seu pai é rico ou pobre. É
um arquivo de aço e que fica como um telhado de duas águas, uma uma coisa que sempre o deixa desorientado. O tamanho do maço, seu
água preta, a outra branca com um matiz rosado, partido ao meio por modo tão arrogante de avolumar-se, a diversidade de valores e cores
uma afiada linha clara – não tem nada a ver com o trato que recebem as que abarca, até mesmo o princípio que mantém em ordem as notas:
dos pés, entregues a um crescimento desenfreado que cedo ou tarde tudo parece indicar que o sinal é de riqueza e da riqueza mais rica, ri-
acaba estragando suas meias. Mas não pode ser só isso. Seria com- queza direta, imediata, que não requer tradução nem conversões nem
preensível se ele manipulasse cheques, notas promissórias, cartões instâncias intermediárias para se tornar efetiva. Mas sempre que sur-
de crédito, todos esses duplos higiênicos do dinheiro que começam preende o pai tirando o maço do bolso para pagar alguma coisa, qual-
a circular na época, tropa de choque de uma arrogante economia de quer coisa, duas entradas de cinema, um par de tênis, meio quilo de
vanguarda, e que ele mesmo vê que já manejam como uma coisa ha- sorvete, as vinte e oito noites no hotel dos croatas de Villa Gesell, tão
bitual os membros de sua família recomposta, o marido de sua mãe sublimes por outro lado, que para ele, como se diz, não têm preço, e
em primeiro lugar, cujos talões de cheque têm tatuados na própria se deixa maravilhar pela ideia de que ali, naquele maço de notas que
capa a bela inicial em maiúscula que tatua as ancas do gado que pas- o pai manipula com desenvoltura de jogador profissional, como se o
toreia em seu campo no sul da província de Buenos Aires. Mas seu pai levasse colado à mão desde o nascimento, está efetivamente todo o seu
é cash, cem por cento. Por seu trabalho, naturalmente, e porque não dinheiro, sempre há um momento em que o feitiço se congela, como
vive numa redoma, está familiarizado com todas essas formas moder- se fosse açoitado por um látego maligno, e o que aparece quando ele se
nas de pagamento, mas fica atento para não usá-las e as trata com o dissipa é seu lado negativo de dúvida e suspeita: o terror – justificado
mesmo desdém aristocrático com que condena as calculadoras e, um precisamente pela evidência de que isso que se vê ali é tudo, de que não

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há nenhum resto – de que possa acabar, acabar sem reposição possível, céu, a julgar pela foto do cartão-postal que chega à casa sem envelope,
por completo, de uma vez por todas. com o carimbo do correio estampado diretamente sobre a letra do fu-
Mas se tivesse um pingo de inteligência, como se diz, perceberia gitivo e a intolerável indignidade de sua revelação à vista, tem uma cor
que não é a quantidade que importa. Ter sempre todo o dinheiro à mão anil fosforescente, e um exército de palmeiras escolta os banhistas que
não torna o pai rico nem pobre. Torna-o alerta. É simples: o pai está tomam sol estendidos na areia.
preparado. Pode fazer o que quiser a qualquer momento, comprar o Ele nunca chega a ver esse postal que se extravia e se perde, como
que quiser, ir aonde quiser. Rico ou pobre, é livre. A ideia é abstrata tantas coisas, ou que sua avó destrói num acesso de raiva, ou que talvez
demais e até temerária para um menino de seis anos, o que talvez ex- tire de circulação e guarde trancado à chave em algum lugar secreto e
plique a espécie de percurso que faz em sua imaginação: durante anos adore em silêncio, quando todos dormem e o bairro recupera a calma
hiberna num limbo escuro e inacessível, acompanhada de outras ideias que tinha no dia em que o marido a deixou, com a mesma fidelidade
que, como ela, roçam-no vez por outra, mas nunca o tocam, como se torturada com que às vezes as vítimas adoram, confinando-a a um altar
não conseguissem julgá-lo digno delas, e ficam contemplando-o a secreto, a tragédia que continua fazendo arder suas vidas sem futuro.
certa distância, tentando-o, mas tão fora de seu alcance quanto qual- Não o vê mas conhece-o muito bem, de ouvir falar, e nem tanto pelo
quer outro prodígio do mundo adulto, barbear-se, por exemplo, ou co- que conta a mãe, que volta e meia fala dele, como se o famoso postal
nhecer todas as ruas de uma cidade. Até que um belo dia fica sabendo fosse a matriz de todos os desastres posteriores, a começar pelo próprio
que Sartre – o filósofo mais feio do mundo, como o descreve a pessoa divórcio, mas pelo pai, o primeiro a falar-lhe dele e nos termos mais
que lhe passa a informação – se gaba de levar nos bolsos do paletó ressentidos, que trinta anos depois consegue evocar com riqueza de de-
tudo de que necessita para viver, dinheiro, evidentemente, mas tam- talhes o dia perfeito de praia que brilha num de seus lados e lembrar sem
bém tabaco, uma agenda e alguma coisa para anotar, um canivete, um margem de erro quantas palmeiras há em cada fila e quantos banhistas
livro pequeno e difícil, um par de óculos de reposição, e a ideia revive e tomando sol, e de que cor eram seus trajes de banho, quantos andares já
enche sua cabeça de uma claridade ofuscante. estão construídos do edifício de apartamentos que cresce do outro lado
Livre, sim, mas livre para quê? Decerto para virar fumaça de repente, da alameda, quantas nuvens despontam, quanto o carimbo do correio
de um dia para o outro, sem avisar nem deixar rastros, como sua mãe – diz que custou enviar o postal de Torremolinos a Buenos Aires em 1956.
para acordá-lo de uma vez, segundo diz – lhe conta que fez o pai de seu Trinta anos depois, de fato, ele o encontra num sebo do centro da
pai, verdadeiro fundador da escola de escapismo familiar, que um belo cidade. Está há um tempo sujando os dedos com as lombadas em-
dia, inepto até para improvisar um pretexto minimamente original, poeiradas dos livros, talvez o único objeto capaz de juntar mais sujeira
anuncia em mangas de camisa que vai até a esquina comprar cigarros e que dinheiro. Não procura nada em especial, e essa falta de propósito
não volta mais, e só dá sinal de vida dois anos mais tarde, do hotel que agrava a decepção que lhe causam todos aqueles livrinhos de poemas,
gerencia com uma mulher espanhola num balneário ainda incipiente aquelas esquálidas edições de autor, aqueles romances idiotas, desco-
da Costa do Sol, um desses paraísos para turistas com iniciativa onde o munais, de capas berrantes, que não comprará, nem ele nem ninguém.

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Sem muita esperança, só para se distrair um pouco, muda-se para a Torremolinos continua deslumbrando. Mas à medida que se afasta da
mesa da frente, onde uma série de longas caixas de papelão oferecem, livraria os detalhes da foto começam a se esfumar. A meia lua de prata
uma ao lado da outra, jornais de época, revistas velhas envoltas em ca- treme e se evapora como uma paisagem de estrada vista à distância, e
pas de plástico, fotos de filmes, lâminas de selos, cartões-postais. E a cor dos trajes de banho dos veranistas tende a desaparecer. Como ter
enquanto olha as pontas dos dedos escuras, como que calejadas pelas certeza de que era aquele, de que era o postal? Sua avó e seu pai, os úni-
camadas de pó, o livreiro, um asmático parrudo que usa suspensórios cos que poderiam confirmar o fato, estão mortos. Não voltará à livraria.
antigos e percorre o local reforçando a oferta de suas mesas, para um Nunca uma conta de banco; cheques, nem pensar; aposentadoria,
instante a seu lado e deita na caixa onde ele tem as mãos afundadas um impostos – o pai não foi feito para isso. Casou-se e divorciou-se, teve
envelope transparente cheio de postais antigos. O primeiro, o que o carros e um ou outro apartamento, renovou documentos, assinou con-
olha de frente, virado na diagonal e equilibrado sobre um dos ângulos, tratos de aluguel, trabalhou em firmas e assinou cartas comerciais em
é o postal da praia de Torremolinos. Tira o envelope da caixa e o mostra papel timbrado. Mas guarda o dinheiro em meias, em rolo, e só provi-
para o livreiro. Quer comprar aquele postal. Vendem o lote completo ou dencia o número de contribuinte com mais de sessenta e cinco anos, a
nada. Ele pergunta o preço e ouve, incrédulo: pedem-lhe cento e vinte contragosto, depois de fazer todo o possível para evitá-lo, convencido
vezes o que o avô fugitivo pagou para enviar o postal original. Mesmo por um vizinho que mora dois andares acima e se oferece para ajudá-lo
assim está disposto a comprá-lo, mas põe a mão no bolso e vê que não nos trâmites. O típico trânsfuga que o pai acompanharia a toda parte de
tem tanto dinheiro. Entrega o envelope com os postais para o livreiro olhos vendados: restam-lhe poucos dentes, diz ser contador público, vai
a fim de que o retire de venda, que não aconteça, durante sua ausên- e vem pela quadra com uma velha calça de ginástica, arrastando sandá-
cia, de alguém aparecer e querer ficar com ele, e sai atrás de um caixa lias de plástico. É torcedor fanático do San Lorenzo, como ele, e também
eletrônico. O mais próximo está fora do ar, no segundo tem fila, o ter- especialista vocacional em números, ainda que, nesse caso, seja hábil
ceiro não entrega dinheiro. Tem de caminhar mais quinze minutos até o suficiente em números turvos para entender uma coisa básica, que o
conseguir pegar dinheiro. Quando volta, a livraria já fechou. Encosta pai nunca entenderá: que ninguém pode se dar ao luxo de se dedicar aos
a testa no vidro, e fazendo viseira com as mãos reconhece o envelope números turvos sem dar nada em troca para a lei, e que o número de
na primeira fila da caixa de papelão, recostado, com ar de desdenhosa contribuinte é a coisa nenhuma nada mais inócua que pode entregar-
superioridade, no velho exemplar de um semanário político em cuja -lhe. Mas quando o contador avisa que o documento afinal chegou, o pai
capa – correm, ou melhor, voam, os primeiros anos 70 – vinte quilos passa três dias seguidos sem sair à rua, sem tomar banho nem atender
de tnt levaram pelos ares o barco modelo 73, projetado pelo estaleiro o telefone, jogado na poltrona da televisão mas de costas para o apare-
Martinolli, onde um chefe de polícia suspeito de exercer coerções ile- lho, tão deprimido pela magnitude de sua fraqueza que não tem forças
gais sobre presos políticos esperava para empreender seu passeio se- para apertar o botão e ligar o controle remoto. No entanto, quando en-
manal pelo Tigre. Eludindo o triplo filtro do envelope transparente, do contram o morto dos crostines no fundo do rio, horrivelmente inchado
vidro sujo da porta do local e da cortina de ferro, o azul anil do céu de pelos mais de três dias que passa na água, sem a pasta onde se supõe que

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leve a montanha de dólares pela qual todo mundo se pergunta, quem le- Sim, tudo tende para o turvo, para o duplo, e o que acontece de um lado
vanta o assunto do dinheiro e com alguns passes de mágica mental cal- do espelho não se sabe necessariamente do outro, mesmo quando re-
cula a quantidade que se perdeu ou que roubaram, ninguém sabe se ali percute no outro e o afeta e até o põe em perigo. Numa noite de inverno,
mesmo, no fundo do rio, quando encontram o helicóptero, ou antes, em no Hotel Glória, assumindo um papel que não assumiu nos quatro dias
algum momento desde que o helicóptero decola e vai a pique, é seu pai, em que estão de férias no Rio de Janeiro, o pai o apressa para que tome
o estouvado do seu pai, que nunca viu o morto em pessoa, e não, que eu banho, manda subir o jantar no quarto, o põe na cama e o agasalha e,
saiba, sua família recomposta, tão chegada ao morto por amizade, ne- depois de apagar todas as luzes, menos a da mesa de cabeceira, avisa-o
gócios, interesses de classe que é difícil imaginar que ignorem o papel de que nessa noite, também pela primeira vez em quatro dias, sairá
que ele desempenha no barril de pólvora de Villa Constitución, a missão sozinho, sem ele, e que é bem possível que volte tarde. Quando vol-
com que embarca naquela manhã no helicóptero e também, sem dúvida, tar quer encontrá-lo dormindo. E depois, levantando um pouco a voz,
a quantidade de dinheiro com que o enviam para cumpri-la. exagerando o tom de admoestação até quase começar a cantar, solta
Mas alguém, um deles teria de saber alguma coisa. Saber, pelo me- uma fieira de advertências e recomendações díspares, às vezes tão con-
nos, já que falar não – porque, como ouve mais de uma vez alguém trastantes entre si – não limpar o frigobar, não usar a cama como tram-
dizer na mansão de Mar del Plata, só fala de dinheiro quem não o polim, proteger-se do bando de tucanos que de repente pode invadir o
tem: os que um dia tiveram e perderam e os que o fizeram por vias quarto, sedento de vingança pela falsa comida para tucanos que lhes
tortas; ou seja, os que o fizeram sozinhos, os que o fizeram em vez deram naquela tarde quando visitavam o Jardim Botânico, na realidade
de herdá-lo. Talvez a viúva não tenha muito a dizer, mantida na igno- uns restos de torrone velho que sem saber traz de contrabando de Bue-
rância pela lógica do segredo e dos mundos paralelos que, na época, nos Aires no bolso de uma calça – que ele, coberto até o queixo, ainda
atinge os parentes diretos dos quadros da luta armada e o círculo ín- aterrorizado pela perspectiva de ficar sozinho, não consegue deixar de
timo das eminências do mercado financeiro, pessoas comuns, espo- festejar dando risada. Mas por que não pode ir com ele? Por que não
sas, maridos, filhos, irmãos, que só ficam sabendo com quem dividi- podem sair juntos, como fizeram ontem à noite quando foram àquele
ram um lar, uma cama, planos, férias, no momento em que alguém lugar de sucos à beira-mar, ou na noite anterior, quando foram ao ci-
os chama e lhes pede que passem no necrotério para reconhecer seus nema ver O dólar furado, como repete em voz bem alta quando saem, a
mortos. A mesma lógica, aliás, que começa a reger tudo, o especí- versão dublada em português de Un dólar marcado, o western com Giu-
fico e o geral, a vida de empresas como a que contrata desde sempre liano Gemma que já viram juntos em Buenos Aires meia dúzia de vezes?
os serviços do morto e a do país inteiro, com seus barcos Martinolli “É um programa de gente grande”, diz o pai, voltando a pôr debaixo
indo pelos ares, seus cinturões industriais em chamas e sua econo- do lençol a mão que ele acaba de liberar em sinal de protesto. “Preciso
mia estrábica, bifurcada numa dimensão oficial de comédia, com ver um amigo.” Agora? De noite?, pergunta ele. Poderia jurar que só
uma moeda exangue que faz cara de coroada e outra, no chamado está pedindo uma informação, uma explicação de rotina, embora um
câmbio negro, onde o vírus do dólar irradia seus vapores tóxicos. tremor leve mas incontrolável no lábio inferior lhe diga que o assunto

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é mais sério, que talvez esteja prestes a cair no choro. “É um amigo cuidado, entreabre levemente os dedos e espia, como se olhasse pelas
que me deve dinheiro”, diz o pai. E se inclina sobre ele, beija seu ca- frestas de uma persiana: salvo o blazer, pendurado no encosto de uma
belo ainda úmido e se afasta em direção à porta, vestindo o blazer azul cadeira, está com a mesma roupa que usava na noite anterior ao sair.
enquanto caminha. Ele o vê parar no hall de entrada, onde se examina A cena se repete três vezes, idêntica, ao longo da viagem, mas sua
pela última vez no espelho e com dois puxões secos resgata os punhos nuvem de incógnitas o persegue durante anos. Não consegue enten-
brancos da camisa que tinham ficado presos sob as mangas do paletó. der direito como o pai pode chamar de “amigo” alguém que lhe deve
Depois abre uma gaveta da cômoda, pega um volume escuro, que es- dinheiro. O problema não é a condição de devedor, que ele, na verdade,
tuda por alguns segundos, cabisbaixo, guarda-o no bolso e sai. não desconhece. Quantas vezes escuta o pai gritar que lhe devem di-
Ele ouve os passos que se afastam, abafados pelo tapete, e se ace- nheiro. Todos, o tempo todo, lhe devem dinheiro. É como se o mundo
leram de repente num trotezinho sobranceiro que empreende sempre se dividisse em dois: seu pai, sozinho, e uma vasta maré de devedores
que encara a descida da escada, e fecha os olhos resignado. Demora a que o martirizam. O que ele acha difícil entender é por que ele alardeia
dormir. Fica quieto na cama, na mesma posição em que o pai o deixou, isso desse modo. Há nisso um pouco de queixa (como se o dinheiro que
ignorando as tentações que espreitam na escuridão do quarto, a tevê, lhe devem fosse uma maldição que só gritando ele pode conjurar ), mas
as revistas em quadrinhos, os chocolates no frigobar, os cruzeiros que também certa vaidade desconcertante, que faz de sua condição de cre-
foi acumulando desde o começo da viagem e agora reclamam uma pri- dor um privilégio, um desses dons milagrosos – ser fértil num mundo
meira revisão contábil. Teme que, caso se mova, alguma coisa na vida esterilizado pela radiação atômica, poder falar ou raciocinar num pla-
do pai – nessa vida enigmática e perigosa que decidiu viver sem ele, neta de bestas – com que a providência abençoa os heróis dos filmes
longe dele – possa mudar, correr perigo. Assim, rígido como um morto, de apocalipse. Na verdade, o que o perturba é o próprio dinheiro. Não
como o morto que oito anos mais tarde, estendido no caixão, continua consegue fazer a amizade e o dinheiro coexistirem sem se escandalizar.
fazendo soar em sua cabeça o crepitar de crostines que o atormenta É como se, por efeito de um acidente cósmico insólito, dois reinos radi-
durante verões inteiros, assim o sono o surpreende em meio ao silên- calmente diferentes se entrecruzassem numa província inaudita da qual
cio denso do hotel, quando lá fora já começou a clarear e os primeiros sabe-se lá que espécies, que plantas aberrantes nascerão. E como não
ônibus carregados de trabalhadores rugem seus velhos escapamentos consegue entender, começa, claro, a fazer conjecturas.
carcomidos dois andares abaixo. Seu pai o acorda, como sempre, com Seu pai disse “um amigo” para tranquilizá-lo, para amenizar o efeito
a mão remexendo seu cabelo, o cabelo que o travesseiro amassou como inquietante do “me deve dinheiro”, a única parte emocionante e, portanto,
quis, ao acaso do sono, e agora, elétrico, dispara mechas carregadas de verdadeira da oração. Porém, como “um amigo” poderia compartilhar
estática em todas as direções. “De pé, dorminhoco, senão perdemos o uma sequência sensata de ações com o volume escuro que o pai tira da
café da manhã”, diz ele enquanto se levanta, vira-se de costas e esvazia gaveta e enfia no bolso nas três noites em que sai sozinho, deixando-o no
os bolsos da calça na mesinha de cabeceira. Ele cobre os olhos para olho de um furacão de presságios do qual só se liberta quando dorme? Se
que a luz que explode no quarto não o ofusque. Depois, com muito “um amigo” mal pode estar na mesma frase que “deve dinheiro”, que tipo

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de frase poderia reunir, sem corar de vergonha, “um amigo” e “um revól- todo o resto, abominável e deformado como uma série de fotogramas
ver”? Porque é isso que o pai leva toda vez que sai para ver o amigo que lhe expressionistas: o táxi, a cidade às escuras, o apartamento, a cabeça
deve dinheiro, um revólver, um desses Colt 1873 Peacemaker de seis cartu- rachada pelo gume do troféu, a poça de sangue. Quanto a mais que o
chos e empunhadura de nogueira com que Montgomery Wood, o herói de dinheiro que o morto leva no helicóptero? Quanto a menos? A mesma
O dólar furado, pretende vingar o assassinato do irmão. De modo que o pai quantia? (Para ele, e esse é um mal do qual vai se curar muito tarde,
está em perigo. Como não pensou nisso antes? É por isso, evidentemente, talvez de maneira cem por cento casual, toda soma de dinheiro cuja
que sai sozinho. Deixa o Hotel Glória, atravessa a cidade inteira dentro magnitude desconhece é, por definição, a mesma soma.) Três vezes
de um táxi, um desses bólidos enlouquecidos que são os táxis no Rio de a cena se repete e três, também, a resposta que seu pai lhe dá quando
Janeiro, e se enfia, pé ante pé, com seu Colt 1873 em riste, num aparta- ele, no dia seguinte, armando-se de coragem na mesa do café da ma-
mento que não conhece, que está na penumbra e onde tudo, da disposição nhã, aproveita o transe de beatitude idiota no qual seu pai parece entrar
dos móveis à localização do último interruptor de luz e das campainhas, com a variedade enciclopédica das frutas que o hotel oferece para lhe
tudo que poderia ser útil para seu propósito, e também para frustrá-lo, fazer a pergunta que já está macerando em sua aterrorizada imagina-
obedece à vontade de outro, do amigo que lhe deve dinheiro. Ou seja: seu ção há quanto tempo: dez, doze horas? Se afinal recebeu o dinheiro
pior inimigo, que não só não devolverá nada como aproveitará a vantagem que o amigo lhe devia. Nas três vezes a resposta é a mesma: não. Nas
de estar em seu território, surpreendendo-o e abrindo sua cabeça com a três vezes a mesma explicação: não o encontrou. Foi até a casa, tocou a
quina afiada de uma pedra ou de um troféu e o deixará jogado no chão, campainha, ninguém atendeu.
afogando-se no próprio sangue. Às vezes, anos depois – quando já faz A resposta lhe parece possível, lógica. Pode passar, pensa, en-
tempo que o enigma está resolvido e não há mais nada a temer –, volta a quanto sua pequena mão direita – muito hábil para desenhar e esculpir
representar a cena para si mesmo, mais pela inércia especial que as fic- monstros em massa de modelar e outras proezas de motricidade fina,
ções interiores apresentam do que por qualquer outra coisa, e, assaltado mas muito desajeitada nas questões de ordem prática mais elementa-
por um espanto retrospectivo muito eficaz, que só de tocar o passado res – luta para untar com manteiga uma fatia de pão preto comprida,
no mesmo instrante o falseia, perde o sono e não volta a pregar o olho vagamente ovalada, como a sola de um de seus tênis. Mas na terceira
durante horas, até que, exausto, como quando tinha onze anos, ouve os vez que a escuta fica atônito, com o pedaço de pão suspenso a meio
grasnidos desenfreados dos pássaros acabando com o silêncio da manhã. caminho entre o prato e a boca. O que foi que ele disse? Do que está
Quanto dinheiro podem estar devendo para seu pai? Que quantia se- falando? O que o escandaliza não é que mintam para ele. É a despro-
ria capaz de justificar o ritual dessas três noites sádicas: que o ponham porção selvagem que sente entre a resposta – que aliás seu pai lhe dá
para dormir daquele jeito, quase como se o trancassem num porão, à sem nem sequer pensar nela, totalmente despreocupado, enquanto
chave, e o condenem ao pesadelo da insônia; que seu pai se borrife suas mãos amontoam no prato rodelas de abacaxi e seus olhos voam
de água-de-colônia daquele jeito, que se vista e se penteie assim, com ávidos para as travessas de manga, mamão papaia, goiaba, maracujá,
esse capricho; que guarde o revólver no bolso. Isso para não falar de frutas que o deixam louco, como repete sobretudo em Buenos Aires,

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onde são impossíveis de encontrar, mas cujos nomes confunde e sem- contar para compensar o tormento que o fez sofrer? Sem dúvida, não
pre confundirá – e as três noites de calvário que o fez passar. Alguma aquela fieira de generalidades que vai desfiando, e apenas quando ele
coisa nele escurece, como quando uma nuvem arrasta sua sombra resolve interrogá-lo ao longo dos dias que lhes restam de férias. Nunca
longa e lenta sobre um terraço calcinado. Já não imagina o pai como um detalhe. As ruas não têm nome, os bairros são “lá”, “do outro lado
aquele aventureiro noturno que despista vigias, abre janelas à força e se da Lagoa”, “antes da ponte”. Nada acontece numa hora exata. Tudo o
esgueira armado em casas estranhas para exigir o que é seu, correndo que se repete – o táxi, a casa, o amigo que não atende o interfone – é
o risco de ser repelido com violência, até mesmo de morrer. E se fosse indeterminado, insípido, como um exemplo de frase de uma gramática
um covarde? Considera por um segundo a opção e a imagem que antes, para estrangeiros. Às vezes pensa detectar um matiz inesperado, uma
quando acordava e a tinha quase por certa, o enchia de felicidade – seu mudança no tom de voz, uma novidade que torna suspeita alguma ver-
pai são e salvo a seu lado, como se nada tivesse acontecido, sentado são anterior dos fatos: o bairro não fica tão longe, manda embora o
na beira de sua cama logo cedo, recrutando-o para a orgia frutívora do táxi que o leva (quando antes preferiu mandá-lo esperar), aparece uma
café da manhã –, é agora a evidência de uma desonra. Sobreviveu, o sacada iluminada com plantas onde antes só havia o quadrado negro
que significa que não teve coragem de ir fundo. Sai, chama o táxi, dá o de uma janela. Que plantas? Fícus? Samambaias? Palmeiras anãs? O
endereço, mas o tremor alarmado com que o motorista o repete em voz que se delineia ali nunca é a verdade. É, antes, a impressão de que tudo
alta o faz hesitar. Intimidam-no as ruas tenebrosas do bairro. Vê luz na o que sair da boca de seu pai é e será falso.
janela do apartamento e teme que o amigo devedor não esteja sozinho. Além disso, como lhe ocorre pensar depois, já de volta a Buenos Aires:
Chega justo quando o outro sai e percebe que não se lembrava dele se ele nunca encontra o amigo que lhe deve dinheiro, por que não volta
assim tão alto, tão corpulento, tão disposto a tudo. para o hotel? Em que gasta o resto dessas três noites? “No cassino, meu
Quanto mais pensa, mais cresce sua convicção de ter sido enga- querido”, sua mãe lhe diz. Mais que dizer, intercala a frase na garga-
nado. A essa altura, porém, depois de ter dormido três noites ao clarear lhada musical que solta quando termina de escutar sua crônica dessas
o dia e com o coração na mão, vendo-se órfão de pai num quarto de ho- três noites tétricas no Glória, em particular a frase, que ele cita em dis-
tel no Rio de Janeiro, o que poderia satisfazê-lo senão a cena que mais curso direto, como se seu pai falasse por ele, Um amigo me deve dinheiro,
teme? Assim funciona a imaginação: submetendo seus porquinhos-da- que ela acha de uma comicidade irresistível. Ele não tem, em princípio,
-índia aos desafios extremos que ela mesma desenha, mas reconhe- a intenção de contar-lhe isso. Tem onze anos. Faz oito – desde que seu
cendo-os como heróis quando sucumbem, nunca quando sobrevivem. pai, recém-saído do banho, como sempre fez em todos os momen-
Assim funciona também a época: os que voltam da morte voltam por tos decisivos de sua vida, enfia numa sacola suas camisas brancas de
serem covardes, por serem vendidos ou porque pagam, porque pac- monograma, suas revistas esportivas, suas abotoaduras, seu frasco de
tuaram com o inimigo, nunca porque foram mais fortes. O morto dos lavanda, seu pacote de cigarros importados, seus sapatos de camurça
crostines não: ele, pelo menos, vai ao fundo e não volta. Seu pai voltou; com fivela, seu pincel de barba, e deixa para sempre o apartamento
pra contar a história, como dizem. Mas que tipo de história deveria lhe da Ortega y Gasset – que evita bancar o agente duplo. Conhece muito

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bem o potencial explosivo que certas informações adquirem ao mudar Ninguém, muito menos seus entes queridos, nem mesmo aqueles que
de campo. Mas talvez seja exatamente por isso que contou. Talvez só não têm a menor objeção a fazer – nem ele, para encurtar a conversa,
quando volta, queimado de sol como nunca antes nem depois, e vê a que assim que descobre que o pai joga deixa de desprezá-lo como o
mãe desfazer sua mala e um pouco de areia carioca, caindo de uma meia, covarde que pensou que era e, mesmo sabendo que está sendo enga-
jorra sobre o tapete, talvez então se dê conta da raiva que foi juntando. nado, passa a respeitá-lo de novo, a adorá-lo, a cobiçar a intimidade
Cassino? Fica olhando para ela com um espanto desconfiado, como um desse mundo novo onde acaba de saber que ele reina. Não quer gente
profissional da trapaça olharia para seu inimigo mais treinado. por perto quando joga – ponto. Nem por perto nem com vontade de
Seu pai morre e ele nunca, em quase cinquenta anos, deve tê-lo visto imitá-lo. Daí a indolência que o invade – seu pai, que em qualquer outra
jogando. Chorando sim, e também sendo humilhado, e atravessando matéria na qual se destaque, números, naturalmente, leitura de jornais
a madeira barata de uma porta de armário de hotel com um soco, e nas entrelinhas, tênis, esportes em geral, previsões de sucesso ou fra-
fazendo todo tipo de coisas patéticas às escondidas, e examinando com casso de espetáculos, é um pedagogo nato, quando não um evangeliza-
os braços na cintura e ar de perplexidade absoluta o motor do Fiat 600 dor, alguém que não descansa enquanto não esgota tudo o que tem para
que fumega no acostamento, e estancando o sangramento de um corte ensinar – quando alguém, ele em primeiro lugar, pede que lhe ensine
ao se barbear com um pedaço de papel higiênico, e mentindo para es- um pouco de tudo o que sabe, como fazer cara de pôquer, artimanhas
conder a vergonha, e esfregando furiosamente a primeira mancha de para ganhar na roleta, maneiras de blefar, técnicas para embaralhar e
velhice que aparece no dorso de sua mão. Mas essa cena – a cena de seu dar as cartas, atitudes a adotar em cassinos, bebidas a pedir, formas de
pai sentado a uma mesa de jogo, com o copo de uísque, o cigarro fume- detectar rivais com melhores cartas, como se dirigir aos lançadores de
gante apoiado no encaixe do cinzeiro, a mão virada para baixo sobre o bolas da roleta para que saiam os números que devem sair. De novo, é
pano verde, quieta, a outra segurando três cartas de pôquer em leque tudo vago e genérico ou já conhecido. Os panos são verdes, bebe-se
a quarenta e cinco graus, também virada para baixo – sempre lhe será uísque puro ou com gelo, convém deixar uma ou duas fichas na caixi-
negada. Será negada por ele, seu pai, aberto em tudo, até mesmo des- nha de gorjetas quando se ganha uma bolada, sempre é bom jogar em
pudorado em assuntos de intimidade corporal, na hora de tomar banho, mais de uma mesa ao mesmo tempo, saber mentir é crucial. Em outras
por exemplo, ou de defecar – duas coisas que sempre faz com a porta do palavras, nada. É difícil para ele decidir se o pai se nega a compartilhar
banheiro aberta –, ou de soltar puns – hobby para o qual não reconhece o que sabe para não consolidar sua imagem de jogador, por vergonha –
limites de espaço nem restrições sociais, que pratica e ensina com a de- como aquele que, vítima de uma enfermidade viciosa, acredita que trans-
voção de um cruzado –, mas de um recato inflexível quando se trata de mitindo o que aprendeu sobre ela desde que a contraiu transmitirá a
jogo. Pode tocar no assunto, contar histórias dos cassinos que visita e própria doença –, ou porque teme que, ao compartilhá-lo, seu saber
dos jogadores que conhece, confessar o que ganha em sua melhor noite passe para outro jogador, o aprendiz consciencioso que um dia, quando
e o que perde na pior, e até conseguir a proeza de fazer os números o acaso os reunir numa mesa de jogo, vai lhe dar uma rasteira usando
soarem convincentes. Mas seu pai jamais permite que o vejam jogando. as técnicas que aprendeu com ele. Em todo caso, terá de se consolar

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com a versão pública que o pai aceita dar sobre o talento que pratica em ponta, o repertório de defeitos que o definem, tudo o que se dedicará
particular, tão opaca, tão escandalosamente distante do original quanto a amaldiçoar durante os quarenta anos que passará sem ele, livre dele.
as versões de certos filmes que a censura da época põe em circulação Pode imaginar o bate-boca na rua, embora saiba por experiência que,
depois de mutilá-los sem dó: o blefe esperto e sem consequências de se aconteceu, não foi por um atentado a sua prioridade de pedestre, a
um pôquer entre amigos, a manha com que vira depressa o copo com menos que por prioridade seu marido entenda o que é evidente que
os dados e ganha uma partida de general jogada na praia, as partidas de entende, o direito de atravessar a rua onde e quando lhe der na telha, de
uíste na sala de jogos do clube, em plena luz do dia, com crianças brin- preferência naquela parte da rua onde o trânsito é mais denso, quando
cando entre as mesas e grupos de idosos cabeceando, por um dinheiro o semáforo está verde para os carros e nenhum pedestre com um pingo
que, caso seja ganho, o que – segundo a fama que o cerca no clube – ele de juízo pensaria em atravessar, e isso, além do mais, com o estilo de-
consegue em duas de cada três vezes, não dá nem para pagar os cafés safiante e metido de um verdadeiro artista do perigo.
consumidos durante a partida. Pensa que ele tem uma amante. Sua mãe é jovem e bela, tem a avi-
Com sua mãe acontece a mesma coisa. Recém-casados, com ele dez de toda fugitiva e o rancor de uma aristocrata no exílio, obrigada
já a caminho, fruto não calculado de um dos pegas em que se enros- a vestir roupa de segunda mão e comer comida requentada. A candi-
cam antes de pensar se estão apaixonados, embora já com a ideia fixa, data ideal para que o primeiro canalha que a seduzir a ancore na terra
igualmente peremptória em ambos, de fugir o quanto antes das respec- fazendo-lhe um filho enquanto sai batendo perna por aí. Acontece com
tivas famílias, ela nota que seu ventre perfeito, liso como uma tábua e todas. Por que ela seria a exceção? Sua mãe nem toca nesse assunto.
abençoado por uma pele sonhada – um desses ventres que a fotografia Cada vez que sente o impulso de perguntar tem a impressão de pisar
artística da época retrata sempre em preto e branco e bem de perto, de numa superfície muito frágil, como um tapete de vidro. É como se ti-
maneira que pareçam praias ou paisagens lunares –, tensiona-se e vai vesse nascido sem pele. Sente medo do toque da roupa, do ruído que
se abaulando no mesmo ritmo em que o marido volta cada vez mais sua garganta faz ao engolir, das manchas trêmulas de luz que o sol,
tarde para o apartamento da Ortega y Gasset. A noite que cai, o telefone atravessando a copa do plátano cujos galhos invadem a sacada, projeta
mudo, a faxineira do escritório dizendo que todos foram embora, a no teto do quarto. Há manhãs em que acorda e não tem nem coragem
comida fria, já intragável, o plano do cinema abortado. Certa noite ele de abrir os olhos. Mas nada a aterroriza tanto como lhe dar um mo-
só aparece às quatro e vinte da manhã. Quando aparece, com a som- tivo para se livrar dela – e pensa que qualquer coisa pode ser um motivo.
bra da barba de um longo dia, aureolado de um cheiro de cigarro ator- Uma noite vai dormir sozinha. Cada minuto que passa sem ele é um
doante, diz que teve um incidente na rua: sai do escritório, atravessa a minuto perdido na tortura de esperá-lo, mais um metro que afunda
rua, um imbecil joga o carro em cima dele. Retido até meia hora antes num pântano escuro, que não a matará, mas a envenenará de ódio. Às
na delegacia da Suipacha com a Arenales. Ela não sabe o que pensar. seis e dez da manhã ouve a chave remexendo na porta. Vira-se de lado
Não o conhece. Só conhece dele, além do ímpeto desajeitado, mas re- na cama, dando-lhe as costas, e finge dormir. Não quer falar com ele,
confortante, de suas investidas alemãs, aquilo que a exaspera e a desa- não quer vê-lo. Só senti-lo, como se, escondida atrás de uma porta com

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uma faca dentro da roupa, espreitasse o momento perfeito para cravá- filho de imigrantes que é, paternalista incorrigível, não consegue se re-
-la em seu peito. Ele não disfarça. Nem sequer tem o cuidado de não cuperar –, e um pouco porque lhe convém. O moço é inexperiente; por
fazer barulho para não acordá-la. Tira a roupa – uma abotoadura tilinta algumas moedas faz tudo o que ninguém aceitaria fazer, leva recados,
contra a base de bronze do abajur –, toma uma ducha de porta aberta, prepara o chá-mate, trabalha como motorista ou vigilante noturno, e
se veste e sai de novo. Ela não consegue mais dormir. Nunca esquecerá tem ambições que a gratidão que sente pelo patrão só faz reforçar. En-
o som daquelas chaves. carregam-no, por um extra – um dos muitos que coleciona, que juntos
No meio da manhã sua mãe passa para visitá-la. Traz roupa nova nunca darão um salário –, que investigue por onde anda o genro. Seis-
para o bebê, outro desses conjuntos cheios de fitas, babados e laços que centos pesos em moeda nacional: a soma exata de que seu pai precisa,
compra compulsivamente, exaltada com a ideia – aliás, verdadeira, e é quatro noites depois, para continuar no páreo numa mesa de pôquer
isso o que mais a deprime – de que é o mesmo estilo de roupa que com- que lhe foi adversa, inexplicavelmente adversa, e da qual alguma coisa
pravam para ela antes que nascesse, e que ela aceita e arquiva no armá- lhe diz que, apesar de depenado, ainda não é hora de se retirar. São
rio onde guarda as naturezas-mortas, os cisnes de vidro verde, as corti- cinco e cinco de uma madrugada crua de inverno e seu pai saiu para
nas de cretone com que a presenteiam desde seu casamento. Depois de fumar na rua, em mangas de camisa. Um pulôver o abrigaria. O jogo
trinta horas sem pregar o olho, não consegue mexer uma xícara de chá. é melhor: torna-o invulnerável. Amassa o cigarro no chão de lajota,
Que dirá segurar a xícara, que se faz em pedaços no chão da cozinha. lança um resignado sopro de fumaça no ar gelado, o último da noite, e
Começa a chorar e confessa, e assim que confessa se dá conta do erro quando levanta os olhos detecta a sua frente a silhueta do tucumano se
que comete. Se há duas pessoas que não podem ajudá-la, essas são seus movendo, ou melhor, tremendo de frio, no saguão onde já está há um
pais. Ela é uma mulher diminuta e amargurada, que acredita ter dado bom tempo montando guarda. Demora cinco segundos para perceber
tudo o que podia dar – aliás, sempre pouco – e agora se limita a derivar que é alguém, dez para atravessar a rua, vinte para alcançá-lo quando
os dramas da filha para o marido. Ele, um déspota corpulento, que se o tucumano tenta correr, meio minuto para reconhecê-lo – lembra-se
comunica com grunhidos e usa calças muito altas, recebe os problemas bem dele: é o garoto que ri baixinho quando seu pai, numa das duas
e os molda à vontade, usando-os como provas para a causa que nunca se visitas que faz à fábrica para agradar o sogro, comenta que a coisa de
cansará de defender: demonstrar para a filha que, enquanto viver longe que mais gosta no lugar é a roupa que os operários usam – e um – di-
deles, sua vida será uma catástrofe. Suplica à mãe que não diga nada, latado pelo caminhão de garrafas que passa na rua, cujo estrépito o
que não a humilhe perante o pai. A mãe, sorrindo, diz-lhe que não se obriga a repetir pela segunda vez o arranjo que lhe propõe – para tirar
preocupe. Mas é tarde demais. Assim que volta para casa, a mulher pega dele os seiscentos pesos que acaba de ganhar. É só um empréstimo, diz,
o telefone, liga para a fábrica e faz o relatório para o marido. reforçando a ideia com sutis insinuações nepóticas. Serão devolvidos,
Na fábrica há um jovem de Tucumán, irmão de um gerente recente- sem falta, em duas horas, nesse mesmo saguão, mas multiplicados por
mente despedido por roubo, que seu avô manteve um pouco por des- quatro. Um pouco mais tarde, ela emerge dos embates de outra sessão
peito, para atormentar o despedido – de cuja traição, como o patrão de insônia e o encontra na cozinha, sentado com o espaldar da cadeira

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entre as pernas, girando uma xícara de café recém-coado nas mãos. própria do médico que do doente. “No cassino, meu querido”, diz sua
Acaba de se barbear, está mais jovem do que nunca, sorri como um mãe depois de rir, e ele, passado o primeiro momento de espanto, es-
menino maravilhado. “Estava morto. Surra total: não tinha ganhado pia pela porta que ela entreabriu e tem um panorama rápido da coisa,
nem uma mão”, diz-lhe, com os olhos bem abertos. “O tucumano que o ouro e o vermelho dos tapetes, as luzes titilantes das máquinas caça-
seu pai contratou para me seguir me salvou.” -níqueis, os garçons levando bandejas com bebidas por entre as mesas,
O jogo é a mania dele – como a de outros é se drogar, roubar em os empregados de gravata-borboleta e colete tirando pilhas de fichas
lojas, vestir-se de mulher, dirigir a duzentos quilômetros por hora – e de suas caixas, as mesas cercadas de jogadores em pé, os tapetes de
nessa mania ele está sozinho, e tudo o que se souber dele e de sua mania feltro, as cartas emergindo do sabot e, de costas para ele, sem o paletó,
até que ambos se extingam se saberá por erro ou por acidente. Porque que pende do encosto da cadeira, com duas auréolas de suor ao redor
as manias são mundos e não há mundos capazes de fechar-se por com- dos sovacos, e a cabeça envolta na fumaça do próprio cigarro, vê o pai
pleto sobre si mesmos, por mais perfeitos que sejam. Nessa manhã, na dobrado para a frente, com os ombros afundados e os cotovelos apoia-
cozinha, sua mãe se dá conta de que nunca haverá lugar para ela nesse dos na beirada da mesa.
mundo. Isso não depende dela, do que faça ou deixe de fazer. A prova é a Às vezes não consegue evitar e deixa escapar uma dúvida sobre ro-
absoluta falta de culpa, a naturalidade quase jovial com que ele se desvia letas, crupiês, trapaceiros, as salas secretas sem som onde imagina
do transe da confissão e dá por fato consumado algo que para ela, até en- que os grandes ganhadores trocam suas fichas por dinheiro. E às vezes
tão, tinha a forma de um enigma e a torturava de maneira insuportável. A passa diretamente para a ação, pensando em quanto comoverá o pai se
mesma razão pela qual não disse antes que joga explica que o diga agora, ele mesmo servir de exemplo, se encarnar tudo o que não sabe e que
e explica também o modo como diz isso, para si mesmo, como quem gostaria de aprender. De modo que sob qualquer pretexto começa a
pensa em voz alta e não precisa de interlocutores. Seu silêncio nunca foi embaralhar cartas, e embaralha mal, exagerando sua inabilidade, para
um segredo. Por isso nunca sentiu a urgência de confessar. Para a mãe, sensibilizar o orgulho dele e induzi-lo a ensinar-lhe, ou perde parti-
essa noite de jogo é a primeira e talvez a única, sufocada que está com a das de truco de propósito a fim de despertar sua piedade ou seu furor
surpresa e a revelação. Para o pai é só mais uma de uma série. Por isso e, eventualmente, conseguir as gotas de sua expertise lhe pouparão mais
fala dela como se a mãe estivesse sabendo de todas as que a precederam. humilhações. São tentativas frágeis, sem esperança. O pai reage sem
Agora ele também sabe. Sabe quase com mais consciência do que vontade, com evasivas que ele aceita sem protestar. Com o tempo, não
seu próprio pai, vítima dessa vocação mimética que despertam nele toca mais no assunto. Causa perdida. No entanto, quanto comemora
certos doentes indefinidos, ainda sem diagnóstico ou presos nas redes esses momentos em que alguma coisa inesperada, um estímulo casual,
de um diagnóstico equívoco – melancólicos, perversos, sonhadores, desprovido de intenção, causa impacto na blindagem que protege o pai
idólatras, procrastinadores –, com cujos males mantém uma estranha e sua mania e volta a abrir por um segundo a porta aberta pela mãe, e
intimidade, como se os tivesse sofrido numa outra vida, e ao mesmo um fulgor ínfimo mas deslumbrante do mundo proibido escapa e chega
tempo uma distância peculiar, feita de compaixão e perspicácia, mais até ele, como a música de uma festa alcança um quarto distante, e ele

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tem a impressão de que o fecunda. Isso acontece raras vezes, em geral de jogo”. Ou: “Ninguém joga tudo”. Também o tiram do sério o efeito
com filmes, programas de tevê, peças de teatro, livros que em algum estético geral, a imagem reluzente, meio acetinada, com que o cinema
momento tocam no tema do jogo, dos jogadores, do hábito de apostar. embeleza o jogo nos filmes, em que o dorso das cartas cintila como es-
Está tudo bem, as cenas fluem normalmente, o filme é mais ou menos pelho e o gelo dos copos como diamante, o pano verde parece gramado
divertido, o livro é mais bem escrito ou menos, a peça segue em frente – inglês, os jogadores bons são sempre elegantes e os maus uns monstros
até que aparece alguém que corta um maço de cartas, um personagem cheios de cicatrizes, propensos às trapaças mais vis, incapazes de fazer
comenta uma noite no cassino depois do jantar ou uma bola dá uns pu- ou decidir nada sem a ajuda dessa corte de espectadores irascíveis que
los indecisos na inclinação de uma roleta que gira e seu pai, que seguia espreitam, incógnitos, ao redor da mesa. Mas o coração da censura é ou-
o desenrolar do assunto em silêncio, entrincheirado na indiferença, de tro, mais de fundo, mais radical. O que deixa seu pai doente é que sejam
repente se crispa, atingido por um dardo invisível, e, como se tivessem todas versões de segunda mão, relatos de orelhada, ecos pálidos de ecos.
sido recrutados instantaneamente por um chamado marcial, todos os Poderão manter o espectador pregado em sua poltrona, ser um estouro
seus sentidos, até então flutuantes e dispersos, voltam a aflorar em seu de bilheteria e alegar que se baseiam em histórias reais, mas para seu
rosto, põem-se em pé de guerra e disparam contra o que estava con- pai – para ele que esteve lá, mergulhado na experiência original – é óbvio
templando. Numa fração de segundo ele se transforma no que já era, que alguém que participou da fabricação daquelas fraudes nunca esteve
mas mantinha em sigilo: a sentinela de uma experiência que ninguém lá. Ninguém viveu o jogo. E é esse déficit de vida que compromete essas
conhece em primeira mão e sobre a qual só ele detém a verdade suprema. representações com uma falsidade irreversível.
Fanático por cinema, por exemplo, cujas liberdades está disposto a de- Talvez a verdadeira vida de seu pai seja essa, a recôndita, a que eles
fender em nome da arte, como licenças poéticas que nenhuma exigên- não veem, essa mistura estranha de paraíso particular e subsolo insa-
cia de realidade terá jamais o direito de impugnar, é de uma suscetibi- lubre, de oásis orgiástico e campo de trabalhos forçados, da qual tudo
lidade doentia, no entanto, com os filmes sobre jogo. Tudo lhe parece o que podem almejar saber é fruto dessas revelações que o pai deixa
negligente e absurdo, não por artificial, mas por falso. Seus argumentos, escapar muito de vez em quando, quase a contragosto, como um mé-
quando os formula – quando não se limita a substituí-los por um sorri- dium que abre a boca e fala e torna a fechá-la só quando o espectro
sinho de sarcasmo, um gesto de desdém dirigido ao aparelho de tevê, ao que fala por ele ordena. É uma ideia um pouco desoladora: obriga-o
palco, à tela onde se comete o ultraje –, são pouco específicos, sempre a pensar no pai visível, primeiro no de todos os dias (enquanto ainda
genéricos, muitas vezes sentenciosos. Mais parecem vetos, leis que só está ao lado da mãe), depois no dos fins de semana (quando se muda
se deixam formular negativamente. “Ninguém que tenha jogado numa da Ortega y Gasset), como uma espécie de dublê de corpo de outro,
mesa de ponto e banca fica olhando para as mulheres enquanto joga”, invisível, a réplica que executa de maneira mecânica, como quem se-
diz. Ou: “Para um verdadeiro jogador o dinheiro nunca é um problema.” gue um manual de instruções tudo o que um pai faz, o original, ao
Ou: “Jogadores não fazem previsões.” Ou: “Não existem crupiês sim- que parece ocupado demais adivinhando cartas, dobrando apostas e
páticos”. Ou: “Nenhum jogador ganha ou perde tudo na primeira hora amedrontando rivais com mãos para poder se comportar como pai.

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Depois de um tempo, porém, acaba se acostumando. O jogo é um começar. O escritório, por exemplo. Ele veio do colégio para visitá-
mundo e funciona. Tem suas regras, horários, costumes, uniformes, -lo, estão saindo para almoçar. A primeira lição (como quase todas) é
cenários, acessórios. Seu princípio, como o de todo mundo – pouco deambulatória; ministra-se nas entrelinhas enquanto se encaminham
importam os perigos que inclua –, é a hospitalidade. Desolador ou para o elevador e cruzam em diagonal o escritório, expostos – princi-
não, agora ele sabe ou pode adivinhar onde o pai está quando não o palmente ele, animal exótico, como toda criatura do mundo exterior
encontra onde espera encontrá-lo, onde ele e talvez mais ainda a mãe que aterrissa no mundo do trabalho, com sua timidez, sua franja e as
precisam dele, socorrendo-o quando, no meio da noite, é assaltado por joelheiras das calças esfoladas pelos ladrilhos ásperos do pátio do colé-
esses pesadelos que o dominam sem acordá-lo e o obrigam a sentar-se gio – ao escrutínio dos empregados. Sem parar de caminhar, enquanto
bem ereto na cama, como Pinóquio, de olhos abertos e cegos como cumprimenta um pouco ao acaso, sacudindo a cabeça e sorrindo, o pai
moedas, ou ligando para o pediatra depois de tirar o termômetro de vai compartilhando com ele os atestados de óbito que já assinou: “A
sua axila, ou ensaboando os interstícios dos dedos de seus pés. Pen- gorda de lenço na cabeça, morta. O que escreve à máquina com dois
sando bem, é muito pior imaginá-lo atravessando o Rio de Janeiro à dedos: morto. O vendedor de café: morto. A feia que cumprimenta
noite a bordo de um desses fuscas coloridos lançados à velocidade da você como se você tivesse três anos: morta, morta, morta”. E conti-
luz, em busca de um devedor sem nome nem rosto que, se existe uma nua em plano-sequência no elevador que desce aos solavancos, com
coisa que ele não tem em sua agenda imediata, essa coisa é sem dúvida o ascensorista quase dormindo (morto), continua no hall de entrada
a dívida pela qual estão prestes a cair em cima dele. com o porteiro que separa envelopes com os dedos cheios de gordura
Além do mais, fica claro desde muito cedo, desde antes que ele te- (morto), na rua com o ruivo da banca de doces (morto), a mulher das
nha uso da razão, como se diz, que se há alguém competente para de- flores (morta), o jornaleiro que fecha a banca para ir comer (morto).
cidir onde está a vida, esse alguém é o pai. É ele, de fato – cuja própria Todos mortos. A lição consiste basicamente nisso. Mortos: ou seja –
existência, talvez apesar de si mesmo, prova de que não há nada menos segundo o existencialismo de repartição pública que impera na região
conhecido e menos óbvio do que o que se pressupõe quando se diz naquele momento, com o erudito em spleens contábeis Mario Benedetti
vida –, quem se encarrega da partilha cotidiana e, como um agrimensor, no papel de Albert Camus, La tregua no de L'homme révolté e seu pai no de
traça fronteiras – ou melhor, revela as que existem mas são invisíveis – porta-voz oficial do dogma –, reféns perpétuos nas celas de uma vida
entre os simulacros de vida e a vida autêntica, as farsas e as experiên- infeliz, imposta, monocromática (o cinza, cor do horror vacui segundo a
cias, os disfarces e a verdade nua e crua. Desde menino, acompanhar o escala Pantone da época), sem surpresas nem perspectiva de mudança.
pai em seus percursos pelo microcentro da cidade equivale a fazer um Com o passar do tempo, ele pensa compreender que a vida – isso que
curso intensivo na arte de avaliar vidas alheias. (Embora ainda haja em parece tão comum, distribuído de forma tão equânime – é na realidade
avaliar uma pitada de otimismo: o pai é um avaliador brutal, para quem um bem escasso e aflora onde ele em princípio não esperaria encon-
os matizes são pura afetação ou gradações do medo. Para ele, das duas trá-lo: crianças, mendigos, vira-latas, loucos – os únicos, segundo o
uma: ou se está vivo ou se está morto.) Qualquer momento é bom para pai, que cumprem com a única condição que a vida exige para ser vida

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verdadeira: atrever-se a desafiar tudo. O menino descalço que enfia a uma viúva e dois órfãos e o marido da mãe em estado de choque, so-
mão suja pela janela do carro parado no semáforo, o mendigo uivando nhando durante meses com o corpo no fundo do rio, até que lhe falta
num saguão, enrolado em sacos de lixo, o cachorro que fareja sem pu- o ar e acorda quase com uma parada cardíaca, o travesseiro apertado
dor a vulva da cadela afegã arrogante, o louco e seu mundo particular contra o rosto por suas próprias mãos ?
de sóis incandescentes e órgãos que devoram a si mesmos: as únicas É seu primeiro morto. Como todo primeiro morto, tem a rara qua-
anomalias felizes que o pai parece reconhecer nesse teatro unânime lidade de ser ao mesmo tempo inverossímil e inapelável. Mal desem-
de mortos. Há mais vida lá, diz, nesses corpos cheios de calos, crostas, barca na sala superaquecida onde o velam, tudo – os cochichos, a luz
cicatrizes, nessa intempérie humana, que em qualquer outro lugar. suave que emitem as lâmpadas de pé e de mesa, o som furtivo dos mo-
Ele concorda em silêncio, como se concorda depois de certa idade vimentos, a uniformidade na cor das roupas, a atmosfera de monoto-
diante de toda manifestação mais ou menos séria de autoridade. nia que envolve tudo – o prepara para enfrentar um morto, tudo o leva
Mesmo assim gostaria de aprender, saber de onde o pai tira aquela téc- a acreditar nele, a aceitar sem a menor sombra de dúvida a evidência de
nica de traçar a linha divisória, que sinais é preciso detectar e como lê- sua condição de morto. Mas vai até o caixão, vê o corpo maquiado, ves-
-los para decidir qual é a vida genuína, livre, soberana, e qual a paródia tido como para sair, e a primeira coisa que lhe passa pela cabeça é uma
que pretende usurpar seu lugar. Já na época gosta das coisas argumen- frase inconfessável: “Pronto. Vamos acabar com essa farsa. Levante-se
tadas. Pode admirar a agudeza de uma decisão, o impacto pontual de de uma vez”. A verdade de um corpo sem vida não precisa de nada.
um golpe de efeito, mas o que o fascina neles é também o que o desa- É irredutível, dura como a pedra. Mas é precisamente essa espécie de
nima: como são súbitos, como duram pouco. Além do mais, se o moto- suficiência impassível que exige todo o teatro que a envolve, esse es-
rista de táxi que vive xingando os carros com os quais divide a rua está forço de cuidados e embelezamento que transforma todo morto num
morto, tão morto quanto o caixa que os atende no banco, que trabalha estranho misto de títere, boneco de cera e ator. E mesmo assim, por
horas contando dinheiro alheio sem levantar a cabeça, e como a garço- mais artificiosos que sejam, os primeiros mortos – como a tecla que
nete do falso restaurante italiano onde costumam almoçar, vermelha o pianista toca antes de começar a tocar, que se desvanece como nota
de vergonha pelo uniforme de prostituta que a obrigam a usar, com os assim que soa, mas sempre persiste como clave, ao longo de toda a
botões da camisa abertos até o umbigo e a saia justa que mal lhe cobre peça, orientando-a e dando-lhe sentido – mudam o mundo que conhe-
as nádegas – se toda essa gente que, bem ou mal, respira, abre as pál- cemos de maneira radical, para sempre, inoculando-lhe a única pos-
pebras todas as manhãs e sente a estocada gélida da água nas gengivas sibilidade – a possibilidade da supressão – que um segundo antes de
e tem medo e fala com outros está morta, mortíssima, como diz o pai estar cara a cara com o cadáver nos parecia inimaginável, porque era o
da feia do escritório que agita a mão inepta no ar para congraçar-se à contrário mesmo do mundo.
distância com ele e nos casos mais extremos em geral, quando é pro- E além disso, nesse caso, há a questão do dinheiro. Onde está a vida?
vável que não haja sismo nem revolução que possa ressuscitá-los, que – a velha pergunta de seu pai que o morto encarna, confrontando-o com
dizer então do amigo íntimo da família do marido da mãe, que deixa a fragilidade e a ameaça de que se tinge o mundo toda vez que a des-

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graça o toca – tende a se confundir com a outra, onde está o dinheiro?, posto a transpor. É surpreendente. O mais grave é que também é tarde
que serpenteia no velório à meia-voz, como circula em circunstâncias demais, e isso não tem remédio. Descobrem não só que ele não lhes
solenes ou graves certa conversa vulgar, mal-intencionada ou cômica, serve, como que agora sabe demais. Entre um soldado leal com melin-
para acabar com a solenidade e torná-la mais tolerável ou talvez lem- dres morais e um plano perfeito que pacificará toda a região, ainda por
brar-nos de que estofo ruim ela é feita, e acende alguns indícios delibe- cima com as bênçãos do governo, com o que vão ficar?
rativos quando aparece no velório alguém teoricamente habilitado para Estar, o dinheiro está. Não se passaram nem doze horas desde que
respondê-la, um hierarca da siderúrgica, algum funcionário da polícia, a família denuncia que o helicóptero não chegou ao destino e já uma
os dois ou três elementos da Marinha e do Exército que se apresentam caravana de um quilômetro e meio de veículos carregados de policiais
de uniforme, precedidos por uma compacta falange de escoltas, e se da província, agentes federais enviados da capital e uma brigada de se-
limitam a apertar as mãos dos que vêm ao seu encontro assim que os letos capangas de sindicato, no total uns quatro mil homens divididos
veem chegar, como se os parentes fossem eles – que nunca viram o em cento e cinco veículos, contando carros particulares sem patente,
morto pessoalmente e, depois de bater continência junto ao féretro, não patrulheiros e carros de assalto, munidos de armas longas e caracteri-
demoram a ir embora – e não os que passam horas consumindo-se na zados com os acessórios de intimidação que farão furor em todo o país
luz macilenta do apartamento. Onde? Onde está o dinheiro? nos próximos oito anos, falsos óculos ray-ban, capuzes, bonés com vi-
Não são eles, embora a saibam, que darão a resposta. Nada os seira, boinas azul-marinho ou verdes, entra em Villa Constitución, um
obriga a isso. Só quem poderia obrigá-los é o próprio morto, que talvez dia batizada como a capital do cinturão vermelho do Paraná, para aca-
a tenha descoberto antes de todos, no momento em que sobe ao ter- bar com a “Lista Marrón” e cortar pela raiz o complô subversivo contra
raço da sede da siderúrgica em Buenos Aires e depois de embarcar no a indústria pesada do país, coisa que farão daí em diante sem nenhum
helicóptero que gira suas hélices, já sentado, faz sinais a seu assistente freio, pagos alternadamente pelo chefe de pessoal e o chefe de relações
para que lhe dê a pasta com o dinheiro e então descobre que ele está de trabalhistas da siderúrgica à razão de cem e às vezes cento e cinquenta
mãos vazias, fechando de um golpe a porta do helicóptero e mandando dólares diários por homem, aproveitando o heliporto da fábrica para
o piloto decolar. Contavam com ele. Durante quantos anos ele se man- que os helicópteros da polícia aterrissem, os pátios de estacionamento
teve fiel aos interesses da empresa? Vinte? Quantas medidas de força para acomodar seus carros, os refeitórios da fábrica para almoçar e jan-
evita? Quantos líderes sindicais cala? É o homem ideal para a opera- tar a preços acessíveis, as confortáveis casas originalmente destinadas
ção, o único capaz de entender seu caráter excepcional, de operação de aos executivos para dormir, ver televisão, jogar baralho entre uma e
emergência, justificada por uma situação igualmente excepcional, fora outra operação, o alojamento de operários solteiros para interrogar e
de controle. Ninguém pensou que ele fosse se opor por uma questão torturar e armazenar o butim das razias cotidianas.
de princípios, que não eram os da empresa. Chegado o momento, no O dinheiro está lá mas não é visto, como ele não demora a com-
entanto, faz objeção a tudo: aos meios, ao propósito, à própria ideia. preender que quase sempre acontece. Desaparecer talvez não seja um
Sua lealdade continua intacta, mas há certos limites que não está dis- acidente indesejado, uma das muitas contingências que o espreitam,

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mas a própria lógica do dinheiro, sua tendência fatal. Pode ser que Reconhece os personagens do drama – “beneficiário”, “segurado”, “a
nisso, pensa, o dinheiro seja parecido com a vida – mais nisso, inclu- seguradora” –, mas custa a identificar o tipo de relações que o texto
sive, que no impulso de reproduzir-se, que também compartilham. estabelece entre eles, e sobretudo seu direcionamento, quem dá o quê
Está, mas sempre traduzido ou encarnado em alguma coisa: roupa, re- a quem, quem paga e quem recebe, o que tem de acontecer para que
vistas, comida, edifícios, máquinas, material escolar, discos, entradas fulano faça tal coisa e beltrano outra. Perde o sentido no meio das
de cinema, capangas de óculos fumê que metem o antebraço pra fora frases. Toda vez que tropeça com um “supramencionado” ou um “o
da janela enquanto engatilham suas armas tchecoslovacas. Por isso, mesmo” tem de dar marcha a ré e procurar o antecedente, mas o ca-
porque o desafio anacrônico que representa o comove, ele gosta que o minho é tortuoso e se perde. A única coisa que reconhece é seu pró-
pai prefira não disfarçar e ande sempre com os bolsos cheios de notas. prio nome grafado em maiúsculas, solitário e titubeante, como um
Confia somente no que vê, e o que vê, o que lhe cabe ver no pai – como explorador perdido na selva. Quando termina de varrer o texto, ergue
em outros, antes, lhe cabe ver grãos de sal ou de cacau, conchas mari- os olhos e encontra os da mãe, atravessados por uma impaciência
nhas, penas, ouro –, é papel impresso. cansada. Quanto tempo faz que olha assim para ele, com o turbante
Chegado o momento, não muito depois da tarde em que vê em se desfazendo na cabeça com aquela lentidão geológica, como se es-
pessoa seu primeiro morto, num dia em que a mãe, com certa gravi- tivesse vivo? Queria sua assinatura, só isso. Não pensava que o leria.
dade na voz, marca um encontro formal com ele, embora morem na Mas pensava mal ou pensava em outro. Ele lê tudo. Basta que uma
mesma casa, porque quer “falar sobre um assunto”, pergunta-se se a coisa se apresente escrita para despertar seu interesse, não importa se
indenização que a siderúrgica paga para a viúva do morto dos crosti- é uma bula de remédio, um folheto entregue nas ruas, uma candente
nes – tão excepcional e pode ser que tão considerável quanto a partida promessa de sodomia garatujada na parede de um banheiro ou as cor-
de dinheiro que deve ter viajado a bordo do helicóptero e que de algum rentes de auspícios agourentos – fortuna e prosperidade para quem
modo condena o morto à morte, destinada a financiar a tropa que en- perpetuá-las, ruína, dor, naufrágios para quem interrompê-las – que
quanto isso vira colchões, rouba alianças de casamento e arranca testí- começam a vir escritas nas notas de cinco mil pesos lei. Por que essas
culos em Villa Constitución – é em espécie. Pergunta-se isso no exato e não outras, é uma coisa que sempre se pergunta. Por que não as ver-
instante em que sua mãe aparece na sala – acabou de tomar banho, tem melhas de dez mil, por exemplo, ou as de cem mil, com aquele irisado
a cabeça embrulhada num desses turbantes de toalha que lhe caem tão tão exótico, em que o general José de San Martín, cujo retrato – sempre
bem – e lhe entrega um envelope tamanho carta com duas páginas da- o mesmo, três quartos de perfil esquerdo, cabelo e bigode todo branco,
tilografadas e lhe pede que leia e assine embaixo. lenço no pescoço: o Libertador em seu exílio europeu, confinado a um
Demora um pouco para entender o que está lendo. “Ocorrido o si- quarto alugado em Boulogne-sur-Mer – aparece em todas as notas da
nistro...”, “cobertura indenizatória...”, “em consequência do qual...”, série, parece levemente mais velho e amargurado que nas de cinquenta
“mediante o recebimento da quantia estipulada...”. A música arcaica, mil e levemente menos que nas de duzentos mil, como se as denomi-
sóbria, como de outra civilização, emitida pelos jargões técnicos. nações, ao aumentar, acompanhassem o caminho do prócer para a

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morte. Talvez, pensa, porque são as notas de maior circulação, as que a conta de tudo o que ainda espera resposta que sentido pode ter isso
se usam nas transações mais comuns, as que passam por mais mãos, que se chama hoje –, ninguém sabe com certeza se foi herói ou traidor,
e uma circulação fluida é um requisito-chave para a reprodução das se tombou no cumprimento do dever ou foi vítima, se foi soldado ou
correntes supersticiosas. agente duplo, canalha sedento de sangue ou pai de família empenhado
Que idade deve ter: sete, oito anos, quando pega a primeira dessas em evitar derramá-lo: se não foi por ter quebrado a corrente de oração
notas marcadas? Está vindo da banca, onde foi comprar uma barrinha que lhe propõe uma nota fortuita, não muito diferente, possivelmente,
Suchard azul de chocolate amargo, sua guloseima favorita, e ao guar- da que lhe cai nas mãos depois de comprar sua barrinha Suchard azul,
dar o troco topa de repente com uma dessas profecias que sempre o se não foi por essa razão que ele desabou no fundo do rio San Antonio.
inquietarão, sejam benévolas ou aterradoras, redigidas com aquela Claro que ele, ele não é o contraexemplo perfeito? Quantas notas
sintaxe bíblica estapafúrdia. Quando esta nota chegar a tuas mãos tua sorte supersticiosas caem em suas mãos desde então? Cinquenta? Cem?
mudará, faze sete iguais, São Judas Tadeu... Que coisa estranha, ler dinheiro. Deixa que sigam, todas e no entanto está saudável, lúcido, muito longe,
E que medo que o destino salte no dinheiro como salta nas linhas que sem dúvida, dessas tragédias truculentas e coletivas que as notas vati-
cruzam as palmas das mãos ou na borra do café. Fica quieto junto da cinam. E não é que não pense em entrar no jogo. Chegou a sentar-se à
banquinha, atrapalhando a passagem de novos clientes, e enquanto o mesa com a nota à sua frente, bem alisada, e uma esferográfica na mão,
primeiro pedaço de chocolate derrete em sua boca lê a prece em voz pensando no texto da prece que vai inventar. Sua própria oração. Mas
bem baixa, imbuindo-se, pelo simples contato com a nota, de um nunca rola. No momento-chave, quando tem de decidir, a ideia de se
capital religioso que jamais teve nem terá. Asunción F., da ilha Los Ro- entregar a essa circulação aziaga lhe dá mais medo que as consequên-
ques, Venezuela, não continuou esta corrente e foi demitida do emprego e dois cias de interromper a corrente. A ideia persiste, de toda maneira. Sabe
meses depois ficou doente e perdeu uma perna e morreu. As vidas felizes, sal- que nunca a executará, mas não há dia, ao pagar alguma coisa e rece-
vas – María Y. escreveu sete notas iguais e viajou para Miami e hoje tem casa e ber de troco essas notas pequenas que, como espécies ameaçadas, se
três filhos bonitos, um chefe dos correios e um engenheiro –, nunca lhe fazem aproximam a cada dia, a cada hora, a cada segundo, de uma extinção
efeito. Nem mesmo acredita que sejam verdadeiras. As trágicas, em segura, em que, quase à revelia, não procure surpreender nelas a pre-
compensação, são de um realismo insuportável e tornam verossímil sença dessas cursivas analfabetas, desbotadas pelo toque, mas ainda
todo o dispositivo. As notas marcadas o marcam de tal forma que oito ameaçadoras, nem dia em que não se diga que um dia se decidirá e en-
anos depois, na tarde em que, em parte para não contrariar a mãe e o trará, que um dia escreverá sua oração e porá em circulação a nota com
marido da mãe, devastados pelo episódio, em parte para verificar se a sua marca, e a jogará no mar de dinheiro anônimo onde brilhará, única,
morte, como ouviu todo mundo dizer, é a única coisa capaz de ameni- e um dia, também, certamente quando menos se esperar, anos, talvez
zar as aversões mais exacerbadas, vestido com o uniforme do colégio, décadas depois, se o país, em algum momento, sair do buraco negro
vai ao velório do morto dos crostines, não pode deixar de se perguntar que o suga, condenando sua moeda a uma morte periódica, alguém lhe
se não foi esse o erro fatal do homem que, no dia de hoje – e vá para pagará ou lhe dará o troco em notas e ele, como uma espécie de gêmeo

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perdido, reconhecerá de imediato sua própria mão, a oração redigida sua mãe planeja alugar para percorrer a costa do Mediterrâneo. A simples
por seu próprio punho na nota. ideia de uma catástrofe é atroz, e na fração de segundo em que se dedica
“Não se preocupe. Eu também não entendo uma palavra”, diz a mãe, a pensar nela, a se deixar estremecer por ela, transpira cinco vezes mais
passando-lhe uma esferográfica. “Você precisa assinar ali embaixo, em do que dando as quinze voltas no ginásio a que o professor de educação
cima de onde diz “Beneficiário”. Ele vacila um segundo. Detesta sua física o condena por ter esquecido a roupa de ginástica. Mas a morte é
assinatura. Detesta-a no mesmo dia em que se vê obrigado a ter uma e uma hipótese tão geral que perde força, se dissipa e, principalmente, fica
acaba decidindo-a sem pensar, no atropelo, apressado pelo oficial de eclipsada pela hipótese da riqueza instantânea, tão inesperada e próxima.
polícia que espera tamborilando com uns dedos manchados de tinta É verdade: é preciso que alguma coisa terrível aconteça para que isso se
que ele assine o formulário para tirar a carteira de identidade. Sempre cumpra, mas, ao mesmo tempo, não serão uma catástrofe aérea ou um
a detestou. Quanto mais a aperfeiçoa – desde o primeiro garrancho de deslize numa ribanceira vias de acesso à riqueza mais simples e acessí-
zoo art que reconhece como arte até o carnê do cineclube comunista –, veis, pelo menos para ele, que ainda não completou quinze anos, do que
sua insatisfação vai se complicando e refinando até limites inacreditá- toda uma vida de trabalho, de um negócio salvador, de uma afortunada
veis. Como um artista que só investisse o talento em seus piores defei- sequência de noites no cassino ou de um golpe de mestre como o que dão
tos, mantém-se fiel a uma garatuja que o envergonha (e que o identifica Os sete homens de ouro, o filme que lhe ensina tudo o que deve e deverá saber
onde quer que vá): dois relâmpagos gêmeos, penteados para a direita sobre roubos de bancos? Além disso, é justamente a brutalidade desme-
em perfeita sincronia, como uma dupla de patinadores sobre gelo sur- dida da ideia que o impede de representá-la para si mesmo, de desdobrar
preendida em pleno número. Isso é ele. Mas se reconhece menos nisso seu macabro afresco pós-colisão cheio de estrondo, chamas, ferragens
que é do que nas fotos que tiram dele, empenhadas, sempre, com uma retorcidas, corpos em pedaços. (E mesmo assim, mesmo que na verdade
perversidade infantil, em lhe devolver a cara melíflua e esquiva de al- o afresco seja inimaginável, um pouco de sua crueza consegue se filtrar,
gum outro imbecil. de qualquer modo, pelas frestas dos dedos que mantém unidos contra os
No entanto, ele assina, e no momento em que assina se dá conta olhos para não vê-lo, como costuma fazer no cinema com os primeiros
de uma coisa extraordinária: é rico. É verdade que se dá conta disso de planos de intervenções cirúrgicas ou de agulhas de seringas carregadas
forma um pouco abstrata, como quando compreendemos sem dificul- de heroína entrando em veias de viciados, e o fulgor do sinistro que se
dade, e principalmente sem desespero, que nos encaixamos numa cate- filtra sempre inclui a visão de sua mãe no meio do acidente, ainda presa
goria pouco auspiciosa, como a de sermos mortais, por exemplo. É rico ao banco pelo cinto de segurança, não se sabe se agonizante ou só meio
quer dizer que receberá duzentos mil dólares – cem mil por ela, outro tonta pelo sonífero que tomou ao decolar para dormir direto durante o
tanto pelo marido dela, mesmo que ele seja apenas seu padrasto – se o voo – sua mãe que pisca com um ar de desgosto, como se perguntasse
Jumbo jet que em uma semana os levará para a Europa resolver cair no quem teve o mau gosto de importunar seu sono desse modo, olha ao re-
meio do Atlântico, ou se um guardrail da estrada Barcelona-Cadaqués in- dor, descobre a paisagem de devastação que a rodeia e se dá conta de que
terceptar para sempre a trajetória da Giulia Sprint 75 que o marido de vai morrer, e depois de ajeitar um pouco o cabelo pensa nele, e lhe deseja

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de todo o coração que faça bom uso do dinheiro que receberá do seguro.) sempre esse pathos, esse descontrole emocional, verdadeiro câncer ex-
De modo que toda a imaginação que se amesquinha nessa conflagração torsivo que impede toda compreensão. Nisso a apólice é implacável.
misteriosa que a apólice chama de sinistro – único termo técnico que re- Não atenua a emoção: abole-a. Uma vida igual a cem mil dólares. Ponto.
tém na memória, arcaico também, como seus colegas, mas prenhe de Onde viu as ordens da carne e do dinheiro confluírem assim, com essa
uma dessas indecisões semânticas que sobrevivem com o poder intacto espécie de evidência impassível? De algum distante almoço de domingo
em todas as épocas – é investida na ideia de riqueza – rico, rico: cheio lhe chega de repente a voz do morto falando com um estremecimento
de dinheiro! – e em decifrar o modus operandi das companhias de seguros de terror. Demora a vê-lo, como acontece tantas vezes com certas lem-
na hora de avaliar a vida das pessoas que seguram. Se pensar nisso (e branças que lhe voltam sem nenhuma das pistas que as compõem, sem
pensa, de fato, no momento de estampar seu aborto de assinatura ao pé a imagem, o som, o cheiro ou a vibração da experiência, como se uma
da apólice, enquanto a mãe, bruscamente ressuscitada, deixa que a toalha mão as interceptasse entre o momento em que saem do arquivo até che-
que lhe envolvia a cabeça se desenovele como uma serpente e começa a gar a ele. Mas sobre o quadro momentaneamente negro escuta a voz em
enxugar o cabelo com ela), por que cem mil dólares e não cinquenta, tre- falsete que repete diversas vezes uma cifra, quatro milhões, a quantia que
zentos, um milhão? E por que a mesma quantidade pela vida de sua mãe, a organização armada que sequestra o gerente geral da siderúrgica pede
que nunca acorda antes das onze e fica na cama com o rosto besuntado de de resgate, até que a imagem ganha nitidez e o morto aparece fora de
cremes e aquela máscara de rodelas de pepino fresco até bem depois do si, com o rosto injetado de sangue, gesticulando em mangas de camisa
meio-dia, que pela de seu marido, que se levanta ao amanhecer e vive aos junto de uma mesa onde a comida esfria, e aproveita o estupor geral em
solavancos em caminhos rurais enlameados, entre vacas doentes, bosta e que caíram os comensais para estender a mão e roubar um crostine. Sim,
emanações de desinfetante? esses números lhe dizem alguma coisa. Muito mais, em todo caso, que a
É como se descobrisse de repente um sentido da expressão custo de expressão custo de vida em seu sentido corrente, da qual todo mundo fala,
vida que até aquele momento tinha passado despercebido. Onde viu an- porque não existe coisa ou bem ou serviço cuja cotação não mude de um
tes a espécie cotada assim? No cinema, talvez... Os escravos em filmes dia para o outro, mas deixando de explicar o essencial: por que inclui o
de romanos, vendidos e comprados em praça pública por um punhado comportamento do preço do leite ou da roupa e não o do preço de um
de moedas rústicas, mal entalhadas, ou por uns disquinhos dourados dono de frigorífico ou o de um executivo de empresa multinacional?
que fazem de moedas e que uma mão cobiçosa deve agitar dentro de um É como uma febre. Não há semana em que os jornais não anunciem
saco para que façam soar sua obscenidade de pandeiro. E as prostitutas, na primeira página um novo recorde. Quatro milhões pelo gerente geral
claro, arcaicas mas sempre tão auráticas, cujo preço, de qualquer modo, da siderúrgica, um caso que o morto conhece bem porque afeta a cor-
nunca se sabe se avalia a própria prostituta ou o conjunto de serviços poração para a qual trabalha, mas principalmente porque, segundo ele
que proporciona. Mas isso é cinema, e só ele sabe até que ponto deve mesmo diz, o tiro passa bem perto e prova até que ponto ele, como a loca-
desconfiar de tudo o que o ilude. E nos dois casos, além do mais – os lização de seu corpo no fundo do arroio San Antonio torna evidente, pode
escravos sob o açoite, as mulheres oferecendo sua carne na rua –, há ser o próximo. Mas também os vinte milhões que as Forças Armadas

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Revolucionárias pedem por Roggio em Córdoba, os cinco milhões pelo elas a viver, e não durante duas semanas ou três meses, como lhes cabe
metalúrgico Barella, os dois milhões e trezentos que o Exército Revolu- excepcionalmente viver, mas durante anos, décadas inteiras, toda uma
cionário del Pueblo tira de Lockwood, o milhão por John Thompson, da vida, tanto que deixa de ser o substituto perverso da vida deles e passa
Firestone, os doze milhões que a Esso paga por Victor Samuelson depois a ser a própria vida, a única, e, como tal, a vida que, penosa e tudo mais,
de cinco meses de cativeiro. Até chegar à marca máxima, ao golpe de to- imunda e sem saída como é, exige ser celebrada? Não. O que o exalta, tão
dos os golpes, ao nec plus ultra da tabela de preços carne-dinheiro, que flagrante nessas capas de jornal quanto as camadas de maquiagem que
contém em si mesmo um ciclo inflacionário completo: os cinco milhões embelezam os atores nas fotos coladas nas portas dos teatros, é a trans-
que a organização Montoneros exige quando sequestra os irmãos Born, formação operada nos sequestrados. Andam em carros último tipo, exi-
em setembro de 1975, e os quarenta ou sessenta milhões – as versões bem ternos feitos sob medida e sapatos italianos e assinam cheques com
divergem – que a cerealista Bunge e Born acaba desembolsando em abril canetas de ouro quando uma força-tarefa perfeitamente sincronizada os
de 1976, quando os executivos são finalmente libertados. Ele, que segue extirpa da vida luxuosa que levam. Dias, semanas, meses depois, quando
deliciado as peripécias dessas operações, com o mesmo entusiasmo com são libertados e enfrentam, ofuscados, o esplendor dos flashes, estão de
que muitos de seus amigos – os mesmos, em geral, que lhe respondem cabelos brancos, têm o couro cabeludo roído por piolhos, uma barba de
com expressão de sarcasmo ou que o deixam simplesmente plantado es- semanas, escoriações na pele. Estão sujos, emagreceram, são visíveis os
perando toda vez que os convida para ir ao cineclube comunista ver um ossos do rosto. Têm o ar apagado dos condenados, o olhar vidrado e es-
ciclo de filmes do Leste Europeu – acompanham o campeonato de fute- quivo dos alcoólatras, dos sedados, dos espancados. Vestem roupas de
bol, nunca comemora tanto como quando os sequestrados recuperam a ginástica de má qualidade, conjuntos improvisados com as roupas que
liberdade e aparecem nas primeiras páginas dos jornais e nos noticiários seus sequestradores lhes dão, nada combina com nada – a camisa para
da tevê, exaustos mas felizes, em meio a um cordão de câmeras e policiais. fora da calça, tênis sem cadarço, os dedos manchados de nicotina – os
Não é exatamente a libertação que o comove. Não é o fato, repetido a torto que já fumavam quando os sequestraram continuam entregues ao cigarro
e a direito pela imprensa burguesa, de que com a liberdade os sequestra- como chaminés, e os que não fumavam adotam o vício com uma sede
dos recuperam o fator mais vital da vida e, portanto, a própria vida, redu- fatal –, as unhas sujas e quebradas de quem escava todos os dias tentando
zida, durante o cativeiro nos chamados cárceres do povo, a dormir, mijar, inutilmente fugir. Estão desorientados, têm problemas de memória, bal-
cagar, ruminar uns mexidos infectos, andar em círculos em ambientes buciam. Parecem bichos, retardados mentais.
minúsculos, ouvir de passagem os rádios dos vizinhos e responder a in- Mas para ele, o mais perto que deve ter chegado em toda a sua vida
terrogatórios. As misérias humilhantes da sobrevivência não lhe interes- do departamento de sequestros extorsivos e de tudo o que se move em
sam. Afinal de contas, essa vida quase subvital, a ponto de ficar abaixo do sua órbita – executivos de corporações-monstro, comandos, armas lon-
nível mínimo da vida, por acaso não é a vida a que as empresas das quais gas, cárceres do povo, campanas, resgates, capuzes, falsos uniformes
os sequestrados são os cérebros, os símbolos, os porta-vozes orgulho- militares – é a cifra quatro milhões vociferada em meio a um ataque de
sos, condenam os milhares e milhares de operários que trabalham para pavor pelo morto dos crostines, e naturalmente o próprio morto dos

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crostines, ele mesmo, em pessoa, a quem vê pela última vez num al- por um mês e meio com seu segundo marido –, é por que quatro mi-
moço de verão em Mar del Plata, metendo o pau no laranja berrante lhões e não dois, sete ou cento e vinte e cinco mil. Como faz a cúpula
com que resolveram pintar as cadeiras de vime da praia enquanto enche guerrilheira, uma vez capturado o objetivo, como se diz no jargão mili-
a boca de crostines, e depois, sem solução de continuidade, como se tar que faz furor na época, para calcular o montante a pedir? Que crité-
diz, comprimido pelas paredes estreitas de um caixão, de terno escuro rios seguem, a que estimativas se atêm, como deduzem essa peripécia
e maquiado – para ele essa deterioração física e mental, essa perda de contábil? Se são todos ricos, por que por alguns pedem setecentos mil
energia, esse envelhecimento precoce que os sequestrados experimen- e por outros dois milhões e meio? Pedem o que acham que o inimigo
tam durante o sequestro e os jornais reproduzem em êxtase nas primei- pode pagar ou pedem o que necessitam para se reabastecer de armas,
ras páginas, tem menos a ver com as condições em que são mantidos no equipamentos de comunicação, veículos, esconderijos, ou para distri-
cativeiro, por mais rigorosas que elas sejam, do que com a cobrança de buir alimentos e roupas em favelas e em áreas rurais remotas, ou para
dinheiro que lhes foi imposta. A diferença entre o executivo recém-se- planejar ações futuras? Só existe uma coisa mais incalculável que o
questrado, viçoso e em pleno domínio de suas faculdades, e o mesmo preço de uma vida humana: a arte. Toda vez que lê os jornais e topa com
executivo libertado dias, semanas ou meses depois, é uma diferença uma dessas cifras exorbitantes sente um primeiro impulso de alegria,
monetária. É o dinheiro que lhe falta, que tiraram dele, o fluxo de cash – uma febre eufórica. Pensa na pobreza, na miséria sem nome, nas neces-
porque as organizações armadas leem pela mesma cartilha que seu pai: sidades atrozes que os sequestrados e as corporações que representam
só acreditam em cash – que é sugado e leva consigo as proteínas, os impõem direta ou indiretamente a parcelas cada vez mais crescentes
nutrientes, o plasma, os glóbulos vermelhos, todos os componentes bá- da sociedade, e toda cifra lhe parece pouco, toda quantia ridícula. Pois
sicos de cuja notória míngua dão fé, alarmados, os médicos da polícia se não há dinheiro que possa compensá-las! O segundo impulso é um
que examinam os sequestrados assim que são postos em liberdade. Ele pouco diferente: uma vacilação sutil, impregnada de certo mal-estar.
pode até mesmo ver o processo numa espécie de vinheta mental nítida, Volta a ler a cifra e pensa: se ao menos houvesse uma lógica. Se ao me-
desenhada com um grafismo já um pouco antiquado – charutos king nos seguissem o exemplo do terra de ninguém Godard – como o batiza
size acesos com notas de cem dólares, ventres abaulados pelas taças de na tarde em que, afundado numa poltrona rangente da cinemateca, es-
lagosta com molho golf, relógios de pulso que brilham como lingo- ticando o pescoço ao máximo para eludir as nucas afro do casal a sua
tes de ouro – que a imprensa revolucionária usa frequentemente para frente, vê pela primeira vez a cena das execuções na piscina coberta de
satirizar os capitalistas e seus lacaios: o sequestrado – ainda com seu Alphaville, com os tristes executados de terno e gravata caindo na água e
Montecristo entre os dedos – emagrecendo e se consumindo num catre o cortejo de pin-ups de biquíni mergulhando atrás deles para escoltá-los
enquanto uma sonda quase arrebentando de tão cheia lhe extrai num até a borda da piscina, e quando sai do cinema, com a solenidade soli-
mesmo movimento, da mesma veia, o dinheiro e o sangue. tária que têm as decisões tomadas aos quinze anos, decide que nunca
A pergunta, mais uma vez – como no caso da apólice do seguro de mais repetirá a falácia que todos repetem, o francês Godard, o suíço
vida que sua mãe o faz assinar uma semana antes de ir para a Europa Godard, até mesmo o franco-suíço Godard, a tal ponto atribui à fron-

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teira que separa a França da Suíça tudo o que admira nele, que é tudo, louco que seja –, não há outro remédio senão medi-lo pelo pior: em vida
dos óculos fundo de garrafa às barras viradas das calças, justas, curtas humana. E nesse caso, como saber se o que se pede é muito ou pouco?
demais, passando por suas mulheres, principalmente suas mulheres, e Como saber no caso da mãe, por cuja vida, se a perdesse, a com-
essas rajadas de música que irrompem como pancadas de chuva cortam panhia de seguros oferece cem mil dólares – cem mil verdes, como os
ao meio as imagens de seus filmes e retornam ao silêncio –, o terra de denomina agora a voz das ruas, inaugurando o ecologismo financeiro
ninguém Godard, que quando termina de rodar Tout va bien, o panfleto que impregnará as conversas públicas e privadas ao longo das duas
anticapitalista que filma com Jean-Pierre Gorin, e senta para pensar, décadas seguintes – “pagáveis”, como consegue ler na apólice antes de
como sempre que termina um filme, mas agora mais, justamente por- assiná-la, “contra apresentação do correspondente atestado de óbito”.
que o que filma agora não são filmes, mas panfletos anticapitalistas, Por outro lado, pagáveis como? Em seu equivalente em pesos? Em dó-
quem diabos pagará uma entrada de cinema para vê-los, que público lares? E se for em dólares, a que câmbio? Ao câmbio oficial, que em
real pode haver para essa obra-prima do Kino-Pravda Slapstick que tem abril de 1975 pede quinze pesos e cinco centavos por dólar? Ao câmbio
Jane Fonda e Yves Montand como reféns em pleno fogo cruzado de um paralelo, que pede mais do dobro, trinta e seis e quarenta e cinco? E se
conflito sindical, o teto que estabelece é de cem mil espectadores, os for o paralelo, paralelo de quando? De julho de 75, quando nas chama-
mesmos cem mil, pensa, que vão ao enterro do militante maoísta Pierre das cuevas onde se decide a vida secreta do dinheiro pagam por dólar
Overney no Père Lachaise, assassinado às portas da fábrica Renault de sessenta e seis pesos e cinco centavos? De setembro, quando já pagam
Billancourt – sem que haja um só irmão Lumière para registrar o episó- cento e dez? E se fosse em pesos, que pesos? Os de antes de junho de
dio – pelo segurança Jean-Antoine Tramoni. Sete quilômetros de cortejo 1975 ou os de depois, quando a passagem de ônibus já subiu cento e
fúnebre, cem mil parentes (entre eles o filósofo mais feio do mundo, o cinquenta por cento e um litro de gasolina uns cento e setenta e cinco?
que jura de pés juntos que leva tudo de que precisa para viver nos bolsos Como acontece com todo mundo, ele tem dificuldade para entender
do paletó), cem mil poltronas ocupadas em Paris. como as cifras de repente vão lá para as nuvens e os zeros, nas quitan-
É isso, só isso, que ele pede quando a vertigem o aflige: uma econo- das da cidade, nesses papelões violeta ligeiramente côncavos onde os
mia. Não importa qual. Alguma coisa que responda de algum modo à verdureiros marcam com giz branco o valor de suas mercadorias, se
pergunta por que quatro milhões e não dois, vinte ou quinhentos mil. multiplicam de maneira enlouquecida, como se designassem magni-
Roubar um banco não. Assaltar uma delegacia, um destacamento mili- tudes extraterrestres – anos-luz, por exemplo – ou extensões de tempo
tar ou uma fábrica de armas também não. Mas todo pedido de resgate geológicas, e não o preço de um pé de alface, até que de um dia para
por um sequestrado tem de se fundamentar em alguma coisa. Garrafas o outro uma lei põe um freio neles e os corta pela raiz, e o que an-
de Coca-Cola, carros, metros lineares de aço, ações, propriedades não tes custava dez mil pesos agora custa um. Mas ele tem mais trabalho
declaradas, contas bancárias no exterior, cabeças de gado, hectares de ainda para entender como os zeros se multiplicam ao avaliar a vida de
latifúndio... Alguma coisa! Senão, pensa, se não há um metro-padrão, sua mãe e a do marido de sua mãe – em viagem, além do mais, e na
um princípio de valor que sirva de medida para o resgate – por mais maior tranquilidade, a bordo da Giulia conversível que alugam em Por-

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tofino –, sem que esse incremento exponencial signifique necessaria- soube – desde que, deitados na praia em Mar del Plata –, ela de lado,
mente que valham mais, que sejam mais caras, que seja preciso pagar untada com aquele bronzeador que parece laqueá-la de cima a baixo,
mais dinheiro por elas caso um acidente as liquide. a cabeça apoiada sobre o braço estendido e a alça do biquíni abaixada
Sua mãe. Quando é que sua desafiante beleza começa a murchar? até a metade do outro braço, ele inquieto, desesperado para encontrar
Com a desvalorização da moeda de junho de 75? Com a de meados uma posição na qual consiga cumprir com relativa comodidade a pena
de julho, ainda mais inesperada, golpe de misericórdia que aniquila atroz da sesta, proibido de tomar banho de mar e de qualquer atividade
os poucos sobreviventes da de junho? Não poderia dizer, se é que um física –, ele descobre o extremo reluzente feito prata de uma cicatriz
dia soube. Lembra-se, isso sim, que de regresso da famosa viagem à que desponta em diagonal pela borda da parte de baixo do biquíni e
Europa na alta temporada na qual, muito longe de morrer numa catás- pensa em perguntar sobre ela, e sua mãe, sem dizer uma palavra, vira-
trofe aérea, numa derrapagem ou num atentado de uma das numerosas -se de barriga para baixo e torce a cabeça na direção oposta, como
organizações armadas que fustigam o continente – em especial a Itália, quem, dormindo, evita a fraca sabotagem que o mundo desperto lhe
onde passam doze dias de sol absolutamente inesquecíveis, e a Alema- estende e segue desdenhosamente seu caminho. É assim: descobre a
nha, território que tomam muito cuidado ao pisar, menos por medo do beleza da mãe justo no momento em que a vê vacilar, como se descobre
grupo Baader-Meinhof do que por uma aversão visceral a tudo o que a perfeição do dia só quando uma nuvem enegrecida, arrastando-se em
seja alemão, a começar por esses obscenos embutidos de pele esbran- direção ao sol com lentidão de réptil, tinge de medo o azul elétrico do
quiçada –, ao que parece os três sinistros principais que as companhias céu. Mas não são só essas ramificações arroxeadas que se avolumam ao
de seguro levam em conta na hora de propagar apólices de seguros de redor dos olhos. Há alguma coisa em seu rosto, provavelmente ligada
vida, gastam boa parte do dinheiro que lhe caberia se não tivessem tido àquelas manchas, mais geral, porém, e mais indefinível, que parece ter
a sorte que têm, percebe uns estranhos parênteses arroxeados na área expulsado a mãe do mundo pleno, soberano, arrogante, que lhe dava
das têmporas e sob os olhos dela, como se umas artérias diminutas o direito de viver a beleza: uma espécie de medo glacial, muito mais
tivessem arrebentado sob sua pele, derramando fios de uma tinta ne- glacial que a beleza, que se instalou nela e a faz estremecer.
gro-avermelhada. Ele a vê e pensa numa batida, no resultado da freada É então, de fato, também, que a vê tremer pela primeira vez. Pro-
brusca de um carro, como se tivesse atropelado alguma coisa e o aro cura as chaves na bolsa e assim que as encontra deixa-as cair, e fica
dos óculos tivesse se cravado na pele dela. Evita perguntar, em parte uma fração de segundo imóvel, perplexa, com a mão culpada suspensa
porque ainda não se recuperou do espanto de voltar a vê-los vivos e na a meio caminho, sacudindo levemente no ar, como se estivesse sendo
data estipulada, depois de ter passado horas imaginando-os vítimas eletrizada por um enxame de choques simultâneos. Toda viagem para
de toda espécie de desastre fatal, em parte porque sabe muito bem que uma taça de vinho é instável e escarpada, preencher um cheque deixa
se há uma coisa que sua mãe não tolera são perguntas ou comentários de ser a brincadeira de criança que era. Já não atende o telefone sem
sobre seu aspecto físico que ela mesma, de maneira explícita, não te- antes fazer o fone dançar no gancho, de modo que gira e esconde o
nha convidado a fazer ou não tenha feito primeiro. Desde sempre ele tremor da mão com o próprio corpo, como se o protegesse de olhares

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zombeteiros. Uma tarde, apressada pelo zelador, que passou horas ar- empreende também às sextas-feiras, uma das duas que lhe deixam li-
rumando a persiana da sala e agora se demora junto à porta, fingindo vres as noites em que tem mesa, verdadeiros raids de furiosa ludopatia
examinar uma fechadura frouxa para dar-lhe tempo de ir buscar uma que arrancam na saída do escritório, sempre de táxi, quatrocentos e
gorjeta, pede a ele a cota habitual de trocado e quando a recebe – três quatro quilômetros da Maipú com a Córdoba, em pleno centro de Bue-
notas pequenas, dobradas ao meio, com uma pilhazinha de moedas nos Aires, até o 2100 do bulevar marítimo Patricio Peralta Ramos, onde
em cima –, o côncavo trêmulo que é sua mão cede um pouco, como se passa uma média de sete horas jogando sem parar, nunca roleta, que é
fosse desfalecer com o peso. para aprendizes, sempre bacará ou black jack, às vezes bacará e black jack
Não, não é graças à morte acidental da mãe ou do marido da mãe simultaneamente, sete horas sem comer nem dormir e às vezes sem
que ficará rico. Nem assim, dessa maneira ignóbil que tempos mais nem sequer levantar-se para esticar as pernas, alimentado à base de
tarde, quando revê aqueles dois meses de 1975 e revive a excitação que uísque e cigarros, enquanto o motorista do táxi – o mesmo tucumano
o assalta toda vez que fica sabendo, por telefone, que a mãe e o marido que o ex-sogro contrata para segui-lo e lhe empresta os seiscentos pe-
da mãe empreendem um novo trecho de avião, ou voltam a embarcar sos com os quais reverte a famosa mesa adversa – o espera a algumas
na Giulia para fazer o percurso entre dois vilarejos da Costa Azul, en- quadras com o rádio ligado, cabeceando de sono no carro estacionado
vergonha-o como nada neste mundo, nem de nenhuma outra maneira, junto à praça.
privado, como sempre estará, não tanto de ganhar dinheiro – porque Quanto a ele, se tem uma coisa que sabe fazer com o dinheiro é
o ganhará, e às vezes em quantias consideráveis, embora sempre sem pagar. É a única coisa da qual poderia se gabar, por mais patético que
esperança alguma, posto que só toma consciência de como são con- seja. Aceita isso como o papel que lhe destina um elenco arbitrário,
sideráveis quando as faz virar fumaça, fumaça radical, dissipadas, nem mas incontestável. Não lhe coube fazer dinheiro, como o pai, nem
um puto centavo no fundo do baú, zero – como de multiplicá-lo ou só herdá-lo, como a mãe. De todas as missões possíveis, a ele cabe saldar,
conservá-lo como está, intacto, ao abrigo de toda contingência, fora da ser aquele que paga. Alguns dão de comer aos famintos, outros curam
história, como um óvulo num banco genético, um troféu na vitrine de doentes. Sua maneira de cicatrizar ferimentos – uma paixão nem sem-
um clube, uma obra de arte num museu. Daria tudo o que não tem nem pre bem entendida – é pagar. Assume-a com a mesma convicção re-
jamais terá para saber fazer dinheiro. Fazê-lo literalmente, fabricá-lo, signada com que declara, quando lhe perguntam – em geral mulheres,
como fazem os empregados da Casa da Moeda ou os ex-empregados mulheres que não deseja e que o desejarão mais que todas as que ele
que acabam virando – mais tarde ou até simultaneamente – falsificado- possa desejar – seu signo astrológico, de longe, para ele, o que tem a
res, ou fazê-lo aparecer, como faz de fato seu pai durante anos, duas sex- pior reputação em todo o zodíaco, mas a executa com uma satisfação
tas-feiras por mês, das onze da noite às sete e meia da manhã, quando inexplicável, num estado de euforia, como quando, depois de explo-
tem mesa, conforme a expressão com que ele mesmo denomina suas rar demoradamente o fundo azulejado de uma piscina, esgotadas suas
noites de pôquer depois que as torna públicas na família, e sobretudo reservas de oxigênio, põe a cabeça para fora da água e com o último
em suas visitas ao cassino de Mar del Plata, excursões-relâmpago que resto de energia abre a boca imensa e enche os pulmões de ar. Há uma

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estranha urgência em pagar, sempre, não importa se na data de ven- ele garante que estava usando naquele dia – calças de ginástica com os
cimento ou não, um suspense que a natureza meio submissa do ato joelhos reforçados por gerações e gerações de remendos, a regata de
parece contradizer. Enquanto seus amigos gastam o dinheiro que rou- piquê branca, o agasalho obrigatório com as mangas enroladas no pes-
bam dos casacos que os pais deixam pendurados no cabide ou desviam coço, como uma paródia de cachecol. Não tem jeito: não tem jeito de
da mesada familiar para discos, cerveja, roupa, cigarros, passagens ele se lembrar. Então, em parte para sentir que, como o personagem
eventuais pelo motel, ele, seu primeiro dinheiro, o dinheiro que recebe de Kafka perante a lei, faz tudo o que está ao seu alcance, em parte le-
por seu primeiro trabalho – a tradução de um artigo sobre as excentri- vado pelo impulso de sua própria lembrança, deixa-se arrebatar pelos
cidades gourmandes de um dramaturgo inglês que vinte anos mais tarde, detalhes daquele meio-dia que já nem sabe com certeza se aconteceu
consumido por um câncer de estômago, ganha o Prêmio Nobel –, é ou se é só o pretexto que seu desejo de pagar inventa para saciar-se.
em parte mas em primeiro lugar, destinado a pagar a dívida contraída Primavera: vidraças entreabertas, cheiro de churrasco no ar, a televi-
meses antes com um colega de escola, o sátrapa rico e esquecido que são sintonizada num programa de fofocas, as pás dos ventiladores de
o tira de um aperto não totalmente infrequente – uma vez mais, sua teto que nunca terminam de parar. Entra – deslocando uma massa de
mãe, precisando de dinheiro vivo a altas horas da noite, usou sem avi- ar que sente no rosto como uma bofetada – a garota do terceiro ano
sar o dinheiro que ele guarda para comer no dia seguinte –, e lhe paga que entusiasma todos os do quinto, a estrábica, a que é morta ao lado
o almoço, e é, claro, o primeiro a ficar surpreso quando ele pretende dos trilhos do trem três semanas depois do golpe de Estado, pede uma
devolver o dinheiro, a tal ponto o empréstimo e até o almoço passaram tortilha para viagem – almoça debaixo da escada do colégio, sempre
por sua vida sem deixar nenhum rastro. Ele vacila. Em dois segundos sozinha, áspera como uma mendiga –, vira-se para a sala e, apoiando
vê desfilar tudo o que poderia fazer com o dinheiro se não o devolvesse, os dois cotovelos no balcão, como uma garota caubói em busca de
todas as coisas que o dinheiro assinala e enverniza com sua luz e torna aventuras, olha os dois nos olhos, os dois, simultaneamente. O outro
disponíveis e que de repente, ali de pé, na porta da churrascaria nefasta pensa alguns segundos e nega com a cabeça, mas aceita o dinheiro do
onde tenta devolver o dinheiro que lhe emprestaram, a mesma onde mesmo jeito. Entram na churrascaria, que ainda está deserta, sentam-
meses atrás o investe num naco de alcatra comido pela metade e numa -se. “Peça o que quiser”, diz, “eu pago.”
salada murcha, de algum modo começam a tentá-lo, como sereias des- Pagar, sim, e todo o seu cortejo de deleites sibilinos: dar meia-volta e
lumbrantes. Mas está tão perto de pagar, tão perto de fechar o que fi- afastar-se da janela ainda com o coração na mão, como se acabassem de
cou tanto tempo em aberto... Como poderia, tão perto, tendo chegado lhe dar um indulto, e guardar no bolso a joia do recibo carimbado com
tão longe, deixar de completar? É um luxo que não pode se permitir: o uma emoção que lhe custa disfarçar, e grampeá-lo mais tarde – estalo
esbanjamento por excelência. Naturalmente, de que tipo de pagamento adorável – com a fatura, e riscá-lo da lista de pagamentos pendentes e
se trata se seu próprio credor não reconhece a dívida que ele jura ter arquivá-lo, por fim, na pasta de plástico translúcido onde um a um vão
contraído? Não se lembra do episódio, não se lembra da quantia que parar os recibos das contas que paga, troféus de um vício que não se
emprestou, nada. Nem da alcatra, nem da salada, nem da roupa que atreve a dividir com ninguém. Seria difícil até mesmo confessar, tão ruim

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isso lhe parece, um pouco mesquinho, como o prazer que o caixa do em dólares, dólares oficiais em dólares paralelos, deduzir quantidade
banco sente ao rastrear na ponta dos dedos o perfume sujo do dinheiro de público em manifestações políticas, partidas de futebol, estreias de
e a seborreia, ou do guarda-noturno que espia casais pelas câmeras de filmes, profetizar a sorte comercial de empreendimentos teatrais, di-
segurança do estacionamento. E depois, uma vez arquivada a fatura, a vidir números de bilheteria por quantidade de salas de cinema. Ele, é
sensação de poder começar do zero outra vez: jovem de novo, virgem, claro, perde rapidamente toda a conta, mas sabe que anos mais tarde,
limpo para procurar na lista o próximo pagamento... É isso, acredite se dez, quinze pelo menos, não é a cada começo de mês que tem o prazer
quiser, o que o exalta tanto quando vai morar sozinho pela primeira vez. de pagar mas, para seu alvoroço, toda sexta-feira de cada semana, quatro
Esse prazer de burocrata, muito mais que a possibilidade de organizar vezes por mês – como um relógio, segundo a expressão usada por seu
o tempo e o espaço a seu bel-prazer, de não ter de prestar contas a nin- pai para descrever a regularidade com que faz três coisas na vida, cagar,
guém, de ter a liberdade de receber quem quer que seja na hora que for e trepar, jogar pôquer –, durante os onze eternos meses que a reforma do
no estado em que estiver. Isto: pagar suas contas, muito mais que tudo apartamento comprado em sociedade com a mulher acaba consumindo,
o que se costuma entender por soberania, em momentos – ele mal com- duas vezes e meia os que o arquiteto anuncia de entrada sem titubear.
pletou vinte e um anos – em que a experiência da soberania, depois de Todas as sextas-feiras às seis e meia, sete da noite, sobe pela escada, a
quatro esmagadores anos de terror, só sobrevive na dimensão privada da toda a velocidade, os três longos andares com os bolsos arrebentando de
existência, casas particulares, quartos, porões, fundos o mais afastados dinheiro vivo. Os pedreiros esperam fumando na sala do apartamento,
possível da rua e da vida pública. Para ele, emancipar-se, essa palavra entre vigas de madeira e pilhas de tijolos. Entra, cumprimenta-os com
esvaziada de todo sentido que não seja o abandono individual do ninho, um monossílabo e uma inclinação de cabeça – a mesma moeda com a
foi, acima de tudo, descobrir uma alquimia inesperada, a que transfigura qual se comunicam com ele ao longo de toda a obra, não importa se o
em prazer, e até mesmo em glória, um pesadelo típico dos anos de ado- acham simpático ou não – e se instala na cozinha do apartamento, ou
lescência: serei capaz de pagar as contas todo mês com meu dinheiro? melhor, no tugúrio em ruínas onde os projetos do arquiteto prometem
Pagar, pagar: prazer número um da vida adulta recém-estreada. Que de- que um dia haverá alguma coisa parecida com uma cozinha, e com um
lícia chegar ao começo do mês e ter de pagar. maço de notas na mão, grita: “Que entre o primeiro!”. Assim dá por
Ninguém para levar os livros do tempo como seu pai. Seu pai, que no inaugurada a ronda de pagamentos da semana. E assim toda sexta-feira.
fim deve ter morrido sem um centavo, duro, como se diz, deixando meio Outro em seu lugar já teria explodido. Não só pelo modo como
limão ressecado e um pé de alface murcho na geladeira e uma coleção de os prazos da obra se dilatam, uma contrariedade incômoda e até um
discos de jazz cobertos de pó em duas estantes sustentadas por tijolos, pouco ofensiva à luz do sorriso e das palmadinhas nas costas com que
levando para o túmulo a calculadora mental com a qual não para um o arquiteto pretende aplacá-lo toda vez que lhe pede explicações, en-
segundo de adivinhar quantidades, somar e multiplicar anos e dinheiro, quanto o distrai apontando as placas de pastilhas coloridas, as lajotas
calcular idades, tempo de vida de casamentos, durações de trechos aé- antigas que encontra na loja de materiais de demolição, os sanitários
reos e diferenças horárias entre países, traduzir dólares em pesos, pesos de época que esperam sua vez num canto, três motivos mais que su-

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ficientes, ao que parece, para que ele aceite os atrasos como o preço edifício, ou seja, no próprio teto da moradia que estreiam e onde não
a ser pago pela inspiração e pelo bom gosto de um arquiteto sublime, conseguem morar juntos dois meses.
e até os aprove com entusiasmo. O verdadeiro inferno, na verdade, é Os preços mudam da noite para o dia, de hora em hora, às vezes
a debacle inflacionária na qual o país arde todos os dias, que dispara duas ou três vezes na mesma hora. Em certas ocasiões volta da loja
quinze dias depois de iniciada a obra, acompanha os tra0balhos de re- de materiais com as mãos vazias, sem ter conseguido comprar nada.
forma do princípio ao fim, centrifugando os orçamentos combinados “Não temos preço”, dizem. Em outras, com muita frequência, conta
e tornando irrisória toda previsão, e que sobreviverá mais um ano e o dinheiro que deverá pagar enquanto faz fila diante do caixa, mas ao
meio, um espaço de tempo enlouquecedor no qual devora tudo o que chegar ao guichê precisa calcular tudo outra vez. O preço subiu uns
atravesse seu caminho, não só seu dinheiro, seu tempo, seus nervos e a dez, quinze, às vezes vinte por cento, e isso num espaço de tempo in-
relação desde o início instável com o arquiteto, mas também o amor. O significante, não mais que dez, quinze minutos, transcorridos entre a
amor: a única razão que o leva a investir todo o seu dinheiro – o único última remarcação e o momento em que deve pagar. A mesma coisa
que tem e jamais terá, se deixar de lado o que literalmente volta do acontece toda sexta-feira à tarde, dez, às vezes cinco minutos antes
passado, como um fantasma, e lhe chove na mesma tarde em que lhe do fechamento das operações financeiras, quando vai com sua dose
cabe cremar o pai – na compra de um apartamento que é, além do mais, semanal de dólares até o antro infecto de sempre no microcentro da
o que se chama de uma oportunidade: preço baixo, escritura imediata, cidade, o covil de um cambista de confiança de seu pai, um homem afá-
condições de pagamento quase abusivas que a parte vendedora aceitará vel, sufocado pelo sobrepeso, que aproveita cada uma de suas visitas
sem um pio. Mas essas vantagens mal podem compensar os problemas para afastá-lo da fila e, baixando a voz, no tom confidencial de quem
que ele e a mulher descobrem mais tarde, quando, consumidos pelos se dispõe a revelar o segredo do futuro econômico do país, metralha-o
onze meses de obra, onze meses de pesadelo, se mudam e sofrem na com histórias da outra vida de seu pai, a vida verdadeira, cem por cento
carne a hostilidade ostensiva dos vizinhos – todos com mais de setenta fantástica, que o pai, quando ele as repete tal e qual as ouviu, ouve um
e cinco anos, todos surdos –, as vibrações que as máquinas da empresa pouco desconcertado, sem negar nem concordar, para afinal, sorrindo,
têxtil vizinha transmitem das oito da manhã às cinco da tarde à parede dizer que não se lembra de absolutamente nada. Assim, nos minutos
sul do apartamento, os esgotos precários do bairro, os aprendizes de que esse lendário pai leva para depenar um xeque árabe em Mônaco,
criminoso que se reúnem na esquina, os resíduos de vidros quebra- quebrar a banca em Baden-Baden ou ir preso por assumir a autoria da
dos de carros brilhando junto ao meio-fio das calçadas, os produtos micção com que um membro do grupo de turistas a seu encargo quer
sempre vencidos dos armazéns, o cheiro de podre nas quitandas e de deixar sua marca nas ruínas de Pompeia, a desvalorização do peso é
inseticida nos bares, as prateleiras rarefeitas, as estreias fora de moda, tão vertiginosa que os bolsos da jaqueta que vestiu especialmente para
os pôsteres do videoclube desbotados pelo sol e, sobretudo, o calor in- a ocasião, testados e aprovados na sexta-feira anterior no mesmo sub-
suportável, quase radioativo, que derrete o asfalto das ruas sem árvores solo, diante do mesmo pagador ruivo que conta dinheiro com uma das
e bate durante todo o verão no terraço ainda sem impermeabilização do mãos enquanto arranca as cutículas dos dedos da outra a dentadas, não

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são suficientes para alojar o monte de austrais que lhe entregam em três verdes, um alarde de pedagogia primitiva que só serve para confun-
troca de seus dólares. dir todo mundo ainda mais.
Impossível acompanhar o ritmo. Ninguém é tão rápido. Quando a É uma coisa de louco. Há dias em que tem de percorrer até cinco
obra começa, a nota mais alta em circulação é a de mil pesos, e trocá-la lojas diferentes – afastadas entre si e localizadas, em geral, em pon-
é uma verdadeira odisseia. Quando termina, onze meses mais tarde, tos remotos da cidade, e para chegar a elas perde horas rodando – até
já circulam as de cinco e as de dez mil, que reinam como monarcas, encontrar não a melhor, nem a que lhe recomendaram, nem mesmo a
distantes, jovens, inalcançáveis, e quatro semanas depois, tão plebeias mais barata, mas simplesmente uma que tenha preço – um preço que
quanto os plebeus sobre os quais reinaram, somem sem deixar rastro ele tenha condições de pagar, o que, a essa altura do campeonato, com
no pagamento de poucas coisas básicas. Não há como nomear o di- o custo de vida em alta à razão de cento e cinquenta por cento ao mês,
nheiro sem cometer equívocos. Como a expressão palo para denomi- quer dizer um preço razoavelmente inadmissível – e não tenha resol-
nar o milhão, que ele escuta pela primeira vez mais de dez anos antes, vido armazenar o que tem para vender, como faz a maioria das lojas,
no velório do morto dos crostines, intercalada numa das conversas esperando que o preço suba de novo, tijolos, areia, cimento, seja o que
subreptícias empenhadas em calcular a soma que o morto leva na fa- for que as hordas de mestres de obras, arquitetos e pedreiros, alertadas
mosa pasta – um palo verde, no mínimo, é essa, literalmente, a frase que antes dele da existência do lugar, já não tenham levado. Encontra o
ele ouve em meio ao tilintar das colheres nas xicrinhas de café –, agora lugar e chega, e quando enfim faz seu pedido, cheio de felicidade mas
se cunha luca para denominar os mil pesos, em parte para abreviar e tremendo, pois sabe muito bem que a continuidade imediata da obra
em parte, provavelmente, na esperança de que, mudando-se do reino depende da resposta que o gerente da loja lhe dará, das duas, uma: ou
dos números para o das palavras, um pouco desse caos em expansão lhe dizem que sim, que têm tudo o que está pedindo e o dinheiro que
que é o universo do dinheiro vai se aquietar e se assentar e ficará, de lhe exigem pela compra não compromete de maneira irreversível seu
algum modo, sob controle, pelo menos sob o controle que a linguagem já dizimado orçamento e todos ficam contentes, ou lhe dizem que sim,
de todos os dias pode exercer sobre aquilo que é mudo e não tem nada que têm tudo et cetera, mas na hora de pagar não lhe pedem pesos – que
a dizer e se limita a crescer para cima e para baixo ao mesmo tempo, é o que tem ali, menos por senso prático do que por prudência, por-
como Alice quando cai no buraco. Mas como demora pouco para luca que, sinal dos tempos, basta a mera suspeita de que alguém esconde
perder seu brilho original, para empobrecer. Como é substituída rapi- um punhado de notas estrangeiras para torná-lo alvo de assalto – mas
damente, e não por notas, mas por outras maneiras de dizer, ficções dólares, e dólares em notas – moeda de asilo, na época, de oitenta por
de ocasião, um pouco infantis e de efeito imediato, como uma vermelha, cento dos comerciantes, que no entanto continuarão entrincheirados
uma verde, uma azul, inspiradas na cor das notas, que motoristas de táxi, nela quando não houver mais motivos que o justifiquem, um pouco
comerciantes e caixas em geral passam a usar todo dia, mas misturadas como os televisores que desembarcam nos bares com os primeiros
com denominações antigas ou em vias de desaparecimento, são duas campeonatos mundiais de futebol e acabam virando parte do mobiliá-
lucas, uma vermelha e duas azuis, por exemplo, ou me dê uma luca e eu te dou rio cotidiano –, esse cash verde que ele, se não quiser perder seu pedido

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e que a obra pare, deverá dar um jeito de conseguir antes do horário todas as sextas-feiras ao poço inóspito que um dia, se acreditarmos no
de fechamento da loja, o mais tardar às seis da tarde, ou seja, dado arquiteto, será uma cozinha, e onde executa o ritual de pagar, o único
que bancos e casas de câmbio já estão fechados há meia hora, rastreá- que sabe como fazer e que o salva de ficar louco ao longo desses onze
-los em sórdidas galerias de bairro, nos fundos de agências de viagens meses de inferno.
que são pura fachada, em banheiros de bares, em escadas de pátios de É de fato para o pai – para quem, pela familiaridade com que se
estacionamento, em todos esses ninhos furtivos onde há meses flores- move nesse mundo, não há maior diferença entre os meandros da espe-
cem os arbolitos, como são chamados, bem de acordo com o verde ve- culação financeira e os que conhece depois de anos frequentando cassi-
getal do dólar, esses lumpens que tentam ganhar o dia e só saem para nos – que ele, sem pensar duas vezes, decide confiar seu dinheiro. Não
comprar e vender quando bancos e casas de câmbio já baixaram suas exatamente o seu, porque próprio, na verdade, não tem um único peso,
cortinas e não há cotação de nenhum tipo, nem oficial nem paralela, mas o que um belo dia o marido de sua mãe lhe dá de presente sem
dólar livre total, fumando posicionados atrás de colunas, dando voltas aviso, sem dar muita importância ao fato e sem outro motivo aparente
sobre si mesmos, à primeira vista ociosos, mas com todos os sentidos que não a ideia de uma “herança em vida”, depois de vender – de fazer
em alerta, atentos à chegada de gente desesperada como ele, que com dinheiro, como seu pai traduz quando recebe dele o pacote de dinheiro,
o tempo, por sua vez, logo aprende a detectá-los, ali mesmo, inclusive, pacote no sentido literal, dado que o que recebe é o maço de notas tal
infiltrados na fila da loja, aquecendo nos bolsos as notas que venderão e qual a casa de câmbio o entrega ao marido de sua mãe e o marido de
com preços nas alturas. sua mãe a ele: envolto em papel kraft, amarrado na altura e no compri-
Como não entra em colapso? Tem insônia a três por dois e já na mento com o fio de plástico colorido que as padarias usam para amar-
penumbra quieta da madrugada sente os mordiscos do dia que ainda rar os pacotes de massas – o lote de coisas, campos, gado, maquinário
nem começou. Prevê tudo o que pode dar errado, as coisas que não agrícola, que lhe cabe por justiça depois da morte da mãe.
conseguirá, as oportunidades que passarão despercebidas ou que será Dez mil dólares. O primeiro dinheiro que tem na vida – o primeiro
incapaz de aproveitar. Imagina tudo com tamanho grau de nitidez e de verdade, o primeiro digno de nota, dinheiro e não salário, nem re-
detalhe que dez minutos mais tarde está com a cabeça em estado de muneração, nem pagamento por serviços prestados – ele não recebe de
efervescência. Fica sentado na cama, duro, o corpo coberto de suor quem se supõe pudesse recebê-lo por natureza ou por lei, seu pai, sua
e a boca seca, perguntando-se não mais como retomar o sono, mas mãe, mas de alguém que, eximido de qualquer compromisso legal com
como fazer para tirar um pé do meio dos lençóis e apoiá-lo no chão e ele, teria todo o direito de gastar aquele dinheirão – torrá-lo, como diz
andar, ir à luta. Quem dera estivesse blindado, como o pai. Quem dera o pai – deixando-o de fora da festa. Mas torrar, para todos os efeitos,
tivesse seu jogo de cintura, sua flexibilidade, o misto de indiferença e ele também torra, e isso com a colaboração incondicional da mulher e
sangue-frio com que abre caminho nesse campo minado. Na verdade, sócia número um, sua mãe, que contribui, de seu lado, com sua parte
se não fosse pelo pai não teria nem apartamento, nem reforma, nem na venda da fábrica de aço que o pai deixa ao morrer, ao longo dos dez
arquiteto, nem esse grupo de pedreiros taciturnos que convoca para ir ou quinze anos seguintes: viagens, investimentos azarados, negócios

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audazes sem pé nem cabeça, vacilos que o país não perdoa e, principal- em dólares, em outro terreno no Uruguai, num zero quilômetro japonês
mente, a longa construção da Besta, como passam a chamar, menos ou no pacote mais caro de Forest Hills, que inclui hotel cinco estrelas
de três meses depois de empreendê-lo e com uma clarividência à qual e passagens na primeira classe. Quando ele recebe o dinheiro ela diz
talvez devessem ter prestado mais atenção, o projeto da casa no litoral isso, naturalmente, mas também depois, e sempre, de maneira que ele
uruguaio, verdadeiro coup de foudre que os une numa cumplicidade cega, não consiga esquecer: quando o usa para reformar o apartamento que
incondicional, como a que um crime longamente acariciado implanta dividirá com a mulher, e mesmo mais tarde, quando, já separado, vende,
nas duas almas que o tramam e executam, e que depois cresce de ma- com sua agora ex-mulher, o apartamento recém-reformado e gasta o
neira desmedida, escapa de suas mãos e por fim se vira contra eles, dinheiro, torra-o – ele também! –, de coração partido, numa viagem pela
dessangrando-os, e os destrói. Europa que não pode ser mais deprimente, e mesmo muito depois, com
Acredite ou não, dez mil vão para ele. Cento e quarenta mil pesos o assuntozinho da herança em vida totalmente esquecido, fora da pauta,
em janeiro, quando o marido de sua mãe os dá, dezenove milhões e quando a mãe e o marido da mãe, depois de trinta e cinco anos de casa-
quinhentos mil em dezembro, quando o apartamento no qual não che- mento, se separam em meio à bancarrota financeira e sentimental mais
gará a dormir nem dois meses sugou quase até o último centavo. Não calamitosa, transformados em inimigos mortais, entre muitas outras
consegue acreditar. O argumento da herança em vida não consegue coisas pelo modo como a construção da Besta os corrói ao longo da
convencê-lo. Acha que ali tem coisa. Se for uma ética particular de pa- quase década e meia que têm de lidar com ela. Mas ele sabe que não.
drasto, ele gostaria de conhecer, conhecer seus princípios, talvez. Fica Sabe que o único responsável pela decisão, por mais extravagante que
desconfiado. E se o dinheiro for a cabeça visível de um plano que ignora seja, é o marido da mãe, e que é a ele, e à razão secreta pela qual ele a
e que o obrigará a viver uma vida indesejável? Mas o marido da mãe tomou, chame-se amor, generosidade, tentativa de suborno ou pura e
não lhe dá explicações – não é de falar muito – e, contrariando suas simples insensatez, que ele deve e sempre deverá o fato.
piores suspeitas, desde que lhe entrega o dinheiro é mais respeitoso A verdade é que assim que tem o dinheiro em seu poder ele recusa
com ele e se interessa mais por seus assuntos do que nunca. Já a mãe, com firmeza as opções de aplicação que o marido da mãe insiste em lhe
quem sabe por divergência, ciúme, ou porque a decisão do marido a oferecer – cabeças de gado, pílulas de sêmen premium, lotes de terra fértil
pega tão de surpresa quanto o pegou, aproveita toda ocasião que apa- na província de Buenos Aires, justamente os lastros dos quais ele acaba
rece para lhe dar a entender que foi ela, não diretamente, porque nunca de se desfazer, feliz da vida, para ter dinheiro vivo e as mãos livres, como
tocaram nesse assunto, mas com sua influência secreta, cotidiana, um ele mesmo diz, para dispor dele na hora em que quiser – e o dá ao pai
pouco por osmose, como se explica então que aconteçam muitas coi- para que o administre. Confia no pai. Confia mesmo apesar do receio
sas que de outro modo seriam inexplicáveis, a responsável pelo fato de escandalizado da mãe, que assim que fica sabendo solta sua melhor gar-
aquela bolada de dinheiro, como ela mesma diz – e pelo modo como sua galhada de escárnio e lhe diz muito bem, estupendo, mas que teria sido
boca se deforma fica evidente que é a primeira vez que pronuncia essa mais seguro jogá-lo no hipódromo de Palermo ou investi-lo em selos ou
expressão –, tenha ido parar com ele e não numa aplicação a prazo fixo em fichas de metrô, e adverte que em caso de desastre – e um frondoso

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repertório de catástrofes parece desfilar diante de seus olhos brilhantes – a fazer diariamente teriam o resultado feliz que parecem ter –, seu pai
não vá lhes pedir socorro porque não receberá mais nada. tira do bolso interno do paletó os dez mil dólares que ele acaba de lhe
O que o pai faz com o dinheiro, mistério. O pai não conta nada e dar e salda uma conta pendente.
ele prefere não saber, convencido de que se souber a inquietação com Confia nele quer dizer: confia que ele saberá em quem confiar.
a sorte do dinheiro tornará sua vida impossível. Tem também uma su- Seu pai é um elo de uma corrente, um recrutador de dinheiro. Sem
perstição: pensa que ignorando o jogo do qual seu dinheiro participa ele, esse dinheiro, por mais modesto que seja, nunca entraria no jogo.
neutralizará sua natureza irracional, ou a verterá magicamente a seu Mas ele é o elo de uma corrente longa e sinuosa cujos outros elos seu
favor. A única coisa que sabe, porque é a primeira que o pai comenta pai não conhece e provavelmente não se conheçam nem se conhece-
com ele, é que durante os cinco meses em que porá seu dinheiro para rão entre si, não por segurança nem por vontade de preservar as hie-
trabalhar – prazo no qual, diz, seu capital alcançará a máxima rentabi- rarquias – os dois princípios mais comuns que explicam essa mania
lidade que o mercado paralelo pode oferecer – não haverá recibos, nem de vendar os olhos na qual repousa com frequência a lógica de mui-
registros por escrito, nem nada oficial, com assinatura e carimbo e data tas organizações secretas, por exemplo a organização armada que di-
de vencimento, nada do que acontece com os depósitos a prazo fixo de zem que derruba o helicóptero que transporta o morto dos crostines,
bancos e instituições financeiras, que prove que o dinheiro existe e dá pasta com dinheiro e piloto incluídos –, mas porque o que os une não
dividendos em algum lugar e lhe pertence. Sabe também que, falando passa de uma cifra, uma entidade puramente nominal, dez mil dóla-
com propriedade, o fato de entregar ao pai o maço de cem notas novas res no caso, mais uma, por outro lado, dos milhões de cifras anôni-
de cem dólares não quer dizer rigorosamente nada, como também não mas que ativam o jogo e o mantêm em movimento. Isso é tudo o que
quer dizer nada o fato de seu pai guardá-lo no bolso interno do pa- precisa saber sobre esse magma que o fascinará e jamais compreen-
letó assim como está, sem desembrulhá-lo nem contá-lo, como se há derá, a lógica financeira. Não, não há “seu” dinheiro, não existem o
anos esperasse por ele. Não é nas mãos do pai que ele põe o dinheiro, dinheiro “do marido de sua mãe” nem o “de seu pai”. O dinheiro não
uma evidência que o pai, por outro lado, não faz mais que confirmar é pessoal, não é uma propriedade, não é de ninguém. O dinheiro é o
diante de seus próprios olhos uns vinte minutos depois, na agência de que está sempre antes do dinheiro. É esse oceano sem limites, puro
uma companhia aérea europeia, quando se aproxima da funcionária horizonte, no qual desembocam segundo após segundo milhões de
do caixa, uma mulher jovem, vestida com uniforme de aeromoça, com maços como o seu que chegam de toda parte, perdem sua identidade
restos de delineador nas pálpebras, e depois da rasgação de seda de assim que mergulham nele, sobrevivem num estado informe durante
praxe, das frases de duplo sentido, das piadas que fazem corar – todo meses, amnésicos, apagada toda marca de origem e até toda defini-
esse borboleteio que ele, que o vê em ação desde menino, desde que o ção de quantidade, e no melhor dos casos voltam a ser o que eram
acompanha toda sexta-feira em seus percursos de trabalho pelo micro- quando alguém, de alguma margem surgida do nada, lembra-se de-
centro, já considera a segunda língua de seu pai, um idioma básico mas les e os reconhece e os devolve à circulação de todos os dias, enri-
crucial, sem o qual nenhuma das transações que o pai se vê obrigado quecidos pelas cicatrizes que as aventuras e o perigo deixaram neles.

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Isso na melhor das hipóteses. Na pior, que, com o país centrifu- cias, casas de câmbio, visita à livraria do subsolo da galeria Jardín,
gado pela chamada espiral inflacionária, é também a mais frequente, o despedida na plaza San Martín.
dinheiro se perde e desaparece para sempre, engolido pelo oceano Ele o vê se mover tão como um peixe dentro d’água que seus ter-
comum, e o mundo só se lembra que um dia ele existiu quando seu rores se dissipam. Pensa que nada disso poderia estar acontecendo se
dono, que esperou por ele ansioso durante o prazo combinado e seu dinheiro estivesse em perigo. Algum hábito, pelo menos, deveria
depois, vencido o prazo, em vão, por semanas, meses, batendo em ter se alterado. Seu pai não comeria a toda a velocidade, como sempre,
portas que não se abrem, discando números de telefone desligados, medindo-se com algum rival invisível. Não limparia o prato com os
encurralando empregados atônitos diante do rosto de louco que os nacos de pão que depois atira na boca. Não faria piadas sobre futebol
olha pela primeira vez, percebe que perdeu tudo, deixa o paletó do- com o maître. Não deixaria as gorjetas exorbitantes que deixa. Não pa-
brado com capricho num dos bancos da estação e se atira nos trilhos raria para olhar sapatos numa vitrine. Não discutiria os anúncios do
do metrô. Mais de uma vez, ao longo desses cinco meses, ele, so- ministro da Economia com o tom distante e sarcástico de quem se sabe
bressaltado pelo festival de hecatombes que lê nos jornais, falências, a salvo deles, como um estrangeiro. Há alguma coisa nessa normali-
bancos que desmoronam, gerentes de financeiras foragidos, motins dade enérgica, um pouco acelerada, que o acalma. Apesar dos pesares,
de pequenos investidores caloteados que a polícia dispersa, sente- as coisas se ajeitam para seguir seu curso. De modo que se esquece do
-se um pouco como aquele energúmeno fora de si que, com a mão dinheiro. E quando se lembra dele, estimulado por alguma coisa que
perpendicular à testa a modo de viseira, perscruta desesperado o mar deseje ou descubra de repente que necessita, alguma coisa cara demais
aberto procurando algum sinal de seu dinheiro. Se não o é, se só para o que tem no bolso ou guarda no armário embutido, na velha caixa
se sente como, é porque seu pai sabe como tranquilizá-lo. Toca no de sapatos, acusa o golpe e sente a estocada da frustração, mas o mal-
assunto antes dele – toca nisso como assunto, não como terror –, -estar logo se dissipa, assim que vê o dinheiro que falta como o que é,
fala do dinheiro com um misto de nostalgia e admiração, como se uma pátria da qual teve de se ausentar por motivos de força maior, mas
evocasse a figura de um parente muito querido e sensato que, che- à qual, no entanto, está de algum modo prometido e que o espera, mais
gando a certa idade, tivesse resolvido mudar de vida e protagoni- opulenta do que nunca, de braços abertos.
zasse agora todo tipo de intrigas apaixonantes em países remotos, Isso durante cinco meses. Até que um dia a mãe, descendo de um táxi,
que o mudarão para sempre mas das quais voltará são e salvo e até descobre, como de costume, que não tem trocado – como ela o chama
melhorado, mais forte, capaz de enfrentar, agora sim, os monstros somente quando é ela que está sem –, lhe pede que pague a corrida e já na
dos quais um dia fugiu. E assim como puxa o assunto por conta pró- calçada, atravessada por uma brusca iluminação, pergunta se não é por
pria, do mesmo modo o abandona e o arquiva e retoma a rotina que esses dias que deveria estar recuperando seu dinheiro. Por um momento,
compartilham há vinte anos: um tempinho no escritório, almoço no como faz sempre que alguma coisa o assusta, deixa-se atrair pela inflexão
falso restaurante italiano da Esmeralda com a Córdoba, café no bar sarcástica que envenena o tom da mãe e a ignora para despistar o medo.
da Florida com a Paraguay, percurso por companhias aéreas, agên- Mas depois, quando se despedem e a mãe, dando-lhe as costas, começa

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a se afastar devagar, com aquele passo que já começa a se cansar, os bra- tão novas, às vezes, e tão estalantes, que ele se pergunta se não estarão
ços quase imóveis dos lados do corpo, a cabeça baixa, a primeira coisa dando dinheiro recém-falsificado. São trâmites rápidos, sem preâm-
que faz, agora que está a salvo de seu olhar, é abrir a agenda e, com toda bulos nem emoções especiais, que o pai executa como se não quisesse
a velocidade de que são capazes seus dedos assustados, deixar para trás deixar rastros, com gestos expeditivos e em cenários rotineiros: o escri-
os dias já vividos, as contas pagas, os guardanapos de bar onde anota as tório, um bar impregnado de cheiro de comida e de empregados com
coisas pendentes que promete em vão passar para a agenda, até confirmar, caspa, que gesticulam em mangas de camisa, e até mesmo na porta da
por fim – com a página do dia diante dos olhos e a hora crucial encerrada casa dele, onde o pai pede que o táxi que o leva pare por um segundo,
num círculo fluorescente, ladeada por proeminentes sinais de exclama- passa-lhe o último pacote de dinheiro sem descer, pela janela, e segue
ção, como uma manobra de xadrez inspirada – que a mãe tem razão. É o seu caminho sem lhe dar tempo para nada, nem sequer para agradecer.
dia. Como, por que ela tem tão presente a data em que deveria recuperar Assim, fracionada, a entrega lhe deixa um sabor vagamente decepcio-
seu dinheiro – logo ela, a quem ele, prevendo o uso tóxico que poderia nante. O que não é ruim, no fim das contas. Como costuma acontecer
fazer dessa informação, pensa ter evitado cuidadosamente deixar a par do com certas emoções menores, mas inesperadas, capazes de eclipsar,
assunto –, isso ele não sabe. Do pai e dele, da dupla de sequazes que ar- só pela surpresa que causam ao aparecer, emoções muito mais fortes
mam tão logo o casamento explode em pedaços, ou seja, loguíssimo, e em mas também mais previsíveis, a decepção embaça e dissipa a inquie-
particular do que lhe ocultam, sua mãe sempre parece se gabar de saber tude, que é o que ele logicamente deveria ter sentido quando o pai, já
tudo, saber até mesmo antes que aconteça, e embora com frequência se de início, anuncia a forma escalonada como vai recuperar seu dinheiro.
engane e confunda alhos com bugalhos e dê por certo o que só existe em Mas essa negligência na arrecadação urgente, atabalhoada, atenua
sua imaginação, a convicção com que o faz sentir que sabe não lhe é in- também o alívio de ter recuperado o dinheiro e, em especial, a felici-
diferente, sempre o derruba, deixa-o em dúvida, obrigando-o a confirmar dade que deveria sentir com o milagre de sua multiplicação. Tem quase
pela segunda ou terceira vez o que já dava por certo e tinha acabado de con- três vezes o que tinha no princípio, muito mais do que outros, com
firmar segundos antes de se encontrar com ela. É uma coisa que sempre a a mesma soma inicial, teriam obtido ou obtêm pondo o dinheiro no
acompanha, provavelmente a única do reino efêmero e infeliz que os três banco nesse mesmo momento, enquanto ele suja os dedos contando
compartilharam que ela mantém intacta: uma certa vocação de suspeita, a sua pequena fortuna. Pena que o milagre da multiplicação murche um
vontade de conhecer o que o inimigo está tramando. pouco quando ele estende o dinheiro sobre a mesa, quando contempla
Dez dias mais tarde o dinheiro está com ele de novo – cash. Não o re- o conjunto de pilhas, tamanhos, cores, moedas e texturas díspares, que
cupera de uma vez, tudo junto, como esperava, mas por partes, em qua- não conseguem se encaixar umas com as outras e nunca – isso é o que
tro entregas, duas pequenas, a princípio, embrulhadas em papel jornal, mais o entristece – formarão uma unidade, aquele todo que o maço de
as duas maiores no final, em sacos de papel kraft, às vezes em punhados dólares inicial, por mais esquálido que fosse, formava.
de dinheiro argentino, às vezes em dólares, o câmbio mais baixo e as Ele gostaria de lhe agradecer. Pelo menos isso. Procura-o nos dias se-
notas mais enrugadas misturadas com as notas maiores e mais novas, guintes, convida-o para almoçar, ir ao cinema, tomar um drinque juntos.

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Poderia jurar que o pai está se esquivando. Nas poucas vezes em que se apresenta diante da tontura que o acomete na rua, a última de uma série
encontram, sempre no escritório, o único lugar em que ele sabe que pode de episódios que manteve em segredo: ir na mesma hora para a clínica,
emboscá-lo, e às pressas, porque não tem vez em que o pai não deva com- decisão, no caso dele, absolutamente insólita, tão proverbiais são o des-
parecer a uma reunião ou não tenha alguém esperando por ele, aproveita dém que sempre professou pelo mundo médico e pela saúde ou a soberba
os poucos minutos que tem e fala. Basta que puxe o assunto do dinheiro que lhe permitiram prescindir dele e, já na clínica, confinado a uma ca-
para que o pai pule para outra coisa, um telefone que começa a tocar na deira de rodas que primeiro recusa e que em seguida o encanta, como uma
sala ao lado, a bagunça de guardanapos de bar rabiscados, tíquetes de estúpida joia adulta encanta o menino estabanado que descobre que uso
café escritos no verso, pedaços de jornal arrancados com números de dar a ela para fazê-la virar-se contra os donos, fazer objeções às medidas
telefone que minha agenda demanda, ou franza o cenho e até pareça in- que os médicos propõem para estabilizá-lo, chamá-los de inúteis e fugir
comodado, como essas pessoas que, modestas ou vaidosas demais, ado- deles a bordo da cadeira, lançando-se a toda a velocidade pelas rampas do
ram o reconhecimento alheio quando os pega de surpresa, mas se tornam plantão da clínica. Entre um e outro, entre o descontrolado irascível que
hostis quando os outros elogiam talentos que já sabem que têm. se internou por vontade própria na cidadela médica para enlouquecer seus
Terá de esperar anos (a entrada do pai na última fase da vida, última no habitantes e o espectro de olhos vidrados que de repente, na unidade de te-
sentido estrito, no sentido fase hospital, porque logo que entra na clínica e rapia intensiva onde passará quase duas semanas, começa a recordar tudo
vê o séquito de médicos e enfermeiras aglomerados ao redor dele – dele, em voz alta – como nunca teve certeza de poder recuperar seu dinheiro,
que se pisou duas vezes num consultório médico em setenta e dois anos é quantas vezes, durante aqueles dez dias, esteve a ponto de chamá-lo e con-
muito, e em ambos os casos pelas razões menos pertinentes, para cobrar fessar-lhe ter perdido tudo, quantas, incapaz de enfrentá-lo, pensou em
umas passagens para Cancún no primeiro e uma dívida de uma noite de sumir do mapa –, há uma angioplastia a que se entrega com uma alegria
pôquer no segundo –, sabe que não haverá volta, que dessa fase só sairá contagiante e beligerante, o catastrófico quadro coronário que lança como
para a cidade dos pés juntos) para inteirar-se das verdadeiras razões do resultado e quase cinco horas de cirurgia de coração aberto, cinco horas
comportamento do pai. É verdade que saem dele, da boca do pai, uma de carniçaria brutal das quais ninguém sabe a priori como ele voltará, isso
noite em que é seu turno de montar guarda ao lado da cama dele, mas se tiver a sorte de voltar, e das quais acaba voltando reduzido a uma vida
não é exatamente o pai que as confessa. Em todo caso, não é o mesmo mínima, entubado, com o peito cortado da garganta ao diafragma enro-
homem que uma semana antes chega à clínica por vontade própria. Está lado, num corpete de ataduras que não demoram a empapar-se de sangue.
muito cansado, banhado de suor. Tem as coxas amortecidas por uma dor É sua vez de fazer-lhe companhia nessa noite, três ou quatro dias
que não conhece e a pressão sanguínea lá nas nuvens, mas também o brio depois da operação, quando a enfermeira lhe anuncia com um sorriso
suficiente para descer do táxi sem interromper o sermão futebolístico- de orelha a orelha que tiraram o respirador artificial para testar se ele
-político – um cruzamento em que se dá muito bem, e ao qual sua pres- consegue respirar sozinho. Foi até a clínica um pouco porque sim, por-
são sanguínea é particularmente sensível – com o qual veio torturando o que não consegue fazer outra coisa, não porque seja útil. Só o deixam
motorista de táxi. A prova de que ainda está bem da cabeça é a reação que ficar no quarto de forma intermitente, meia hora a cada duas. O resto

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do tempo ele passa na sala de espera, lendo com luz ruim e cabeceando, ração profunda, quase um gesto de aborrecimento, e o pai afunda no
cheio de espanto e inveja pela véspera de acampamento – garrafas tér- negro outra vez. Nunca o viu tão pálido. A pele do rosto parece tão fina
micas, cobertores, uma geladeirinha de plástico, jogos de mesa, um que poderia rasgá-la com o gume de uma unha. Como um beijo clan-
abajur – que seus vizinhos desdobraram, mais previdentes e experien- destino, um hematoma mancha de roxo um lado do pescoço. Afasta-se
tes que ele nesse assunto de internações. Não quer mais nada além de um pouco, apenas o suficiente para voltar a perceber a forma geral de
ficar no quarto. Assim que sai, alertado por uma enfermeira que o faz seu rosto, e quando o focaliza dá dois passos para trás, golpeado pela
lembrar o prazo de visita, à luz opaca da sala de espera, sente falta da surpresa. Seu pai abriu os olhos e olha para ele. Por um momento não
escuridão estrelada e palpitante onde o pai dorme de barriga para cima sabe o que pensar. Voltou a si? Está morrendo? Depois, como se reto-
como se fosse alguma espécie estranha de paraíso, um reino fresco, masse a frase perdida e a língua obscura e embolorada em que a pro-
moderno, cheio de emoções mecânicas e entretenimentos eletrônicos. nunciou, o pai emite um som longo, arrastado, uma espécie de suspiro
Uma hora e meia depois, quando o deixam entrar outra vez, não sente sonoro que ziguezagueia no ar e de repente, na metade do caminho,
nada além de desolação: tristeza, impotência, um tédio penoso que o como que apressado por uma urgência súbita, se articula abruptamente
dessangra. Não há nada a fazer. Gostaria de tocar o pai mas não sabe numa palavra, em duas palavras que se atraem, nítidas, e fala.
onde, a tal ponto tubos, sondas e fios impedem todo acesso ao corpo Algo iminente parece preocupá-lo, um perigo tão próximo e ao
dele. E se soubesse onde, também não é certo que o tocaria. Apavora-o que parece tão sério que conseguiu o que não conseguiram os medi-
que um gesto, quanto mais um gesto de amor, possa alterar irreversi- camentos e as visitas: repatriá-lo de noventa e seis horas de coma, um
velmente o equilíbrio delicadíssimo que o mantém vivo. Não há nem limbo que depois, em algum momento do breve interregno no qual o
cadeiras na unidade de terapia intensiva – tudo foi pensado para afu- pai parece convencer todo mundo, até os médicos, de que conseguirá
gentar as visitas –, de modo que cochila de pé, com o livro que não lerá, se sair bem, começa a lembrar com a maior alegria, como muitos de
porque a luz é insuficiente, seguro entre as mãos. seus clientes judeus, daquela estadia no centro de banhos termais de
Num certo momento pensa escutar algo que vem do pai, os rastros Király que intercala sem avisá-los em seus itinerários, como uma cor-
de uma frase humana, e abre os olhos. Quando lhe ocorre pensar que tesia secreta. Está muito agitado. Move a mão, aponta com o indicador
talvez a tenha escutado dormindo, dita por um desses coveiros sorri- para o lado, para um ponto impreciso entre as pantufas atoalhadas que
dentes e asseados com os quais ultimamente tem conversado quando continua se recusando a usar e o pé tridáctilo do suporte de soro. Pede,
sonha, vê o pai entreabrir a boca e mover a cabeça sobre o travesseiro, exige que lhe deem sua calça. Exige assim, em geral: não dele, a quem
um movimento lento, típico de um corpo esquecido de si, mas percep- olha fixo e do qual o separam agora menos de vinte centímetros, seu
tível. Aproxima-se e se inclina sobre ele. Mau hálito, remédios, suor, filho, que nada agradece mais, nem nunca tanto, quanto a graça de ter
desinfetantes: é difícil aguentar o cheiro que o corpo dele exala. Vê-o ouvido outra vez sua voz depois de quatro dias de coma, mas de nin-
engolir com dificuldade e embebe no copo d’água que está junto à cama guém, ou talvez do mesmo interlocutor ignoto e nebuloso com quem
um quadrado de gaze com o qual lhe umedece os lábios. Uma inspi- falava alguns minutos antes, enquanto sonhava. Precisa de sua calça, o

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dinheiro está no bolso da calça agora mesmo. Tem de dar uma gorjeta olhos confusos. Não vê sua calça. Pergunta onde está sua calça. Uma
para a enfermeira da manhã antes que ela vá embora. Porque depois, de veludo cotelê azul, veludo cotelê grosso, azul. Estava ali, na cadeira,
quem sabe o que as outras farão com o dinheiro? De nada adianta ele antes de lhe trazerem o jantar. Alguém deve tê-la roubado. Ele acaricia
lhe dizer que são duas horas da madrugada, que faltam cinco horas o rosto do pai, penteia aqueles tufos de cabelo que afloram indômitos
para que a enfermeira da manhã chegue ao trabalho, que não há ne- quando levanta a cabeça do travesseiro. Devem tê-la levado para lavar,
nhuma urgência. Ele não escuta. Inclina levemente a cabeça para o lado diz-lhe. E se oferece para dar ele mesmo o dinheiro à enfermeira. Seu
com uma desconfiança risonha, como os cães quando os donos brin- pai o olha com estranheza, como se a ideia não o convencesse, mas
cam de falar com eles em seu idioma, mas nada do que soa ao seu re- tampouco fosse absurda a ponto de desqualificá-la. Ele pega um pouco
dor parece atravessar o estupor que o blinda. Agora, quer a calça agora, do dinheiro e mostra para o pai. Você me diz quanto e eu dou para ela,
antes que o turno mude e a enfermeira vá embora. A única enfermeira diz. Seu pai aponta para umas notas com o queixo. Quais?, diz ele. As
que fala alemão. Ali, no bolso. Pede-lhe esse favor: que procure o di- azuis, diz o pai. Quantas?, diz ele. Duas, diz o pai: duas azuis. E parece
nheiro no bolso da calça. Ele muda de tática. Talvez entrando na dele se arrepender e pergunta: é muito? Ele sorri novamente.
se faça ouvir melhor que contradizendo-o. Quanto quer dar a ela? O É menos do que custa um dos dois maços de cigarros diários que o
pai hesita. Franze o cenho, como se calculasse, e seus olhos que duvi- pai fuma desde os treze anos, e o dobro do que a enfermeira que acode
dam recuperam certo brilho de humanidade. Vinte mil pesos? Ele ri. É ao chamado da campainha paga pelo pacote de chicletes de peppermint
provavelmente o que vão custar os oito dias que o pai passa internado que compra sempre que é sua vez de passar a noite na unidade de tera-
na clínica. Vinte mil?, repete, você acha? O pai olha de novo para ele. pia intensiva, de cujos exemplares um, longamente mascado, libera em
Não sei, diz: trinta mil? A enfermeira fala um alemão perfeito. Além sua boca os últimos, lânguidos eflúvios de sabor. Não, não é demência:
do mais, é linda, e usa sapatos sapatos, não essas porcarias sem calca- é desorientação, diz a enfermeira, e a palavra, carregada de um matiz
nhar que as enfermeiras arrastam. E conhece de cor todas as canções: técnico inesperado, fulge como se a ouvisse pela primeira vez. Algo
“Hans hat Hosen an”, “Laterne”, “O Tannenbaum”, “Der Kuckuck und comum em pacientes cirúrgicos que passam um longo tempo em tera-
der Esel”. Ali, na calça, diz, e aponta outra vez com seu dedo cego, e pia intensiva, isolados, sem esse contato vital com o mundo – o dia, a
de repente crava um cotovelo na cama e se levanta um pouco, varrendo noite, os outros, as notícias que a televisão divulga –, que, mesmo con-
os lados do quarto com olhares ávidos e receosos. Precipita-se para trolado, ainda subsiste num quarto normal de uma clínica. E é nesse
detê-lo e aproveita para tocar a campainha que pende da cama. Está transe, espécie de tontura benigna e cândida, como de menino ébrio,
tão fraco que a sonda e os fios de monitoramento bastam para freá-lo. capaz ao mesmo tempo de angustiar e de fazer chorar de rir, que pode
Olha pela primeira vez os braços, o peito, começa a remontar a linha continuar assim horas a fio, sem que nada nem ninguém o quebrem,
da sonda que brota de seu pulso e em poucos segundos, exausto, se e arrastar o náufrago aos desvarios mais extremos, é aí que seu pai, de
abandona. Todas as evidências estão ali; nenhuma tem força suficiente repente, levado pelo assunto da conversa – o dinheiro: os quatro, cem,
para se impor e alcançar sua consciência. Volta a varrer o quarto com vinte ou trinta mil pesos que é imperativo dar à enfermeira da manhã, a

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única em toda essa clínica pseudoalemã com quem pode compartilhar É difícil determinar o que acontece antes e o que acontece depois, se-
canções infantis alemãs, único tesouro, por outro lado, além dessa lín- gundo o relato do pai – se é que se pode chamar de relato aquelas volu-
gua que já não fala com ninguém e que apodrece dentro dele, que lhe tas de lembranças que ele trança e destrança mergulhado na penumbra
resta da Alemanha que abandonou há sessenta e oito anos –, começa a do quarto da unidade de terapia intensiva, com os olhos arregalados,
exumar aqueles dez dias de inferno. olhos de possuído, de hipnotizado, de sonâmbulo, com os olhos secos
É difícil para ele acompanhá-lo. Percebe o básico: que a naturali- e meio vidrados dos psicotrópicos, que sempre parecem estar ilumina-
dade, quase a indiferença, com que o pai lhe anuncia, quando chega a dos a partir de dentro –, mas logo parece que não, que em Montevidéu
hora, que a restituição do dinheiro será escalonada, não passou de um só viram um dos dois, o verdadeiro cérebro do calote. O outro, ao que
blefe, da fachada, sustentada com esforço maiúsculo, que permite que parece tão vítima quanto as outras vítimas, se não mais, porque ao pre-
o pai ganhe tempo para procurar e, se tiver sorte, encontrar a dupla de juízo econômico deve acrescentar o dano emocional que só as traições
crápulas encarregados da corretora onde se supõe que o dinheiro foi do próprio sangue causam, ficou em Buenos Aires, escondido, a fim de
parar, dois irmãos gêmeos que há dias não atendem o telefone nem respirar um pouco e também ganhar tempo, mas com a intenção final
passam pelos escritórios luxuosos que usavam apenas para tomar um de dar as caras e assumir os compromissos contraídos. Seu pai esgota
café, conferir a correspondência ou admirar as panturrilhas de todas os recursos. Não deixa de fazer nenhum contato, bate em todas as por-
aquelas secretárias que logo estarão na rua. A coisa se complica com tas, passa horas no telefone. Na voz do pai os personagens tendem a
o passar dos dias, das horas, dos minutos – porque é assim, subdivi- se confundir, trocam de nomes, apelidos e profissões que raras vezes
dindo-se, apequenando-se cada vez mais, até concentrar todo o peso voltam ao portador original: de repente, o gêmeo que hoje contorna o
dos fatos num só ponto, no presente, que talvez não o suporte, é assim temporal refugiado na garagem da casa de um primo tem as feições, o
que as coisas acontecem na economia enlouquecida da época. Chegam bigode à escovinha e os vícios de um velho ex-sócio do pai, preso por
rumores de que os gêmeos estão no Uruguai, não se sabe se presos, ter uma linha de telefone clandestina, e nos métodos com que tenta re-
comprando terras ou competindo com todas as forças numa regata unir o dinheiro que deve ecoam exageradamente os ardis que o pai põe
offshore, de qualquer modo muito longe, geográfica, mas sobretudo em prática para fazer a única coisa que está treinado para fazer, levantar
moralmente, de assumir qualquer responsabilidade perante os investi- mortos, em suma, a que lhe fica da companhia farmacêutica para a qual
dores e poupadores que deixaram em Buenos Aires, a ver navios, que se organiza a viagem de fim de ano com que premia seu pessoal, que, ale-
multiplicam como cogumelos e montam guardas inúteis – apertando gando dificuldades financeiras, lhe paga com seis meses de atraso as
nos punhos os recibos caseiros que algum empregadinho assinou – quase noventa passagens de avião que o pai devia ter pago com estrita
nos bares das imediações do escritório, no pátio de estacionamento pontualidade à companhia aérea. O que é evidente, de todo modo, é
onde os gêmeos deixam seus carros último tipo, nas casas do Country, que o pai arregaça as mangas, ativa contatos dos quais se orgulha, re-
também gêmeas, onde moram ou moravam antes do desfalque com nuncia a certos direitos em troca de informação, e acaba encontrando
suas mulheres louras, bronzeadas em pleno inverno de sol de neve. o gêmeo, e uma vez ali, naquela garagem úmida e mal iluminada onde

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o outro, de regata, com uma barba de dias, as pálpebras avermelhadas dias entre o escândalo e o delito, a cabeça debaixo d’água, prendendo
e aquele ar de embrutecimento causado pela clausura – o mesmo as- a respiração. Uma única dessas manobras vem à tona e é a derrocada
pecto com o qual quinze anos antes recuperam a liberdade os reféns total. Depois de alguns dias, nada ou quase nada o distingue do crápula
das organizações armadas –, montou uma paródia de escritório com que o caloteou. Mentiu, prometeu coisas que não cumprirá, ficou com
uma mesa e umas cadeiras de plástico de jardim e um velho telefone de dinheiro alheio. Ainda dorme em sua cama, ainda toma banho e troca
baquelita, ouve de sua boca o que receia ouvir desde o princípio: que de roupa, ainda anda pela rua abertamente e despacha clientes para o
não tem o dinheiro, que não sabe quando o terá, que nem sequer pode Rio, Nova York ou Roma. Mas esses privilégios não durarão muito. Uma
lhe garantir que um dia o terá. noite, sem explicação, atrasa a volta para casa. Vê-se no monitor de um
Começa a clarear. Ele percebe isso não pela luz, ainda muito fraca, circuito interno de tevê na vitrine de uma loja de eletrodomésticos e não
que se desfaz assim que bate nas janelas polarizadas da clínica, mas se reconhece. Demora-se num bar, depois em outro, depois em mais
pelo rumor do quartel-general da unidade de terapia intensiva que outro, e à medida que as horas passam os porões vão ficando mais sór-
cresce, torna-se mais vivo, mais intenso: o som de uma engrenagem que didos, o ar mais viciado, a bebida – uísque, sempre, e só: qualquer outra
começa a se espreguiçar. É madrugada e tudo se mistura à voz suave do coisa não é álcool e sim uma piada ruim – de pior qualidade, a náusea o
pai diante dos monitores que piscam, impassíveis, enquanto no com- único sentimento possível. A vergonha: uma espécie de lava fria e negra
partimento ao lado uma mulher quase sem cabelo agoniza abraçada ao que alguém verte dentro dele e o inunda da cabeça aos pés e se petrifica
travesseiro, e no da frente, descoberto, ronca um jovem esportista com muito rápido. E tudo, diz seu pai, fixando nele aqueles olhos abertos,
o coração em pedaços. De modo que terá que desenhar esse dinheiro – radiantes, que já não podem olhá-lo, tudo por trezentos e cinquenta
um mau uso do verbo que sempre lhe agradou. Terá que desenhá-lo em dólares? Por um Buenos Aires-Rio-Buenos Aires?
tempo recorde, com a maior discrição, sem que ele, seu filho, chegue a A vergonha o comove, muito mais que os malabarismos que sabe que
suspeitar do que está acontecendo. Não importa se são dez, trezentos o pai fez para devolver o dinheiro que lhe confiou, multiplicado por três
e cinquenta ou cinquenta mil dólares, segundo os altos e baixos que a nesse prazo espantosamente curto. A vergonha, em vez do calvário de
cifra sofre em seu delírio confusional, quase tão caprichosos e extrava- urgências, perigos e braçadas de afogado que sofreu. Comove-o que o
gantes quanto as origens que o pai vai atribuindo ao dinheiro à medida pai, uma vez conseguido o dinheiro, tenha mantido em segredo os esfor-
que fala – um trabalho muito bem pago que na verdade nunca lhe coube, ços que teve de fazer para recuperá-lo. Mas o que mais o comove – agora
a venda de um carro que nunca teve, a indenização por demissão com que o pai, extenuado pelo trabalho de recordar, tão titânico quanto a
a qual continua sonhando e, perdido entre esses impostores, o verda- epopeia que vive nesses dez dias de desespero, fecha os olhos e se aban-
deiro, a herança em vida que o marido da mãe lhe dá –, o pai vai con- dona outra vez ao sono – é vê-lo se confundir e naufragar nos números,
seguindo reuni-lo a duras penas, um pouco daqui, um pouco dali, des- ali onde sempre foi uma luz. Não sabe em que dia vive, é incapaz de cal-
viando fundos de seus destinos naturais, usando discretamente partidas cular o tempo que se passa entre dois fatos, anos e datas são partículas
que não lhe correspondem, adiando pagamentos urgentes. Nada dez que se misturam no caos, às cegas. Temperaturas, quantidades, custos:

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tudo o que se mede e se enumera, que sempre foi seu elemento, agora é Mas como tudo isso desaparece rápido, engolido pela fome do pre-
pântano onde patina e cai e faz papel ridículo – ridículo: o pesadelo que sente. Do dinheiro, desse pequeno capital que o pai, temerário ou não,
durante toda a vida se empenha em evitar, à custa de pagar os preços já não importa, protege da desvalorização entregando-o à roleta-russa
mais altos. Com frequência, nos dias que se seguem, ele reclama que da especulação financeira, e ele mesmo, seguindo seus conselhos,
medem sua temperatura ou lhe tiram sangue cinco, seis vezes ao dia, o transforma imediatamente em dólares, um ano depois já não resta
que só acontece em sua imaginação, ou protesta indignado porque em nada, nem um cobre, comido pela obra, a inflação, os honorários do
quarenta e oito horas não recebeu mais que uma refeição e uma visita, arquiteto, que no dia do último pagamento, decepcionado porque não
quando na verdade o fornecimento de refeições é perfeitamente regu- recebe a compensação que espera, sai batendo a porta, estilhaçando o
lar e as visitas tão profusas que a chefe da enfermagem teve de inter- vitral junto da porta de entrada, o aporte ao apartamento de que mais se
vir para moderá-las. Depois de ser transferido para um quarto comum, orgulhava. Tem, no entanto, um apartamento, um apartamento novo,
quando por um momento faz todo mundo acreditar que logo essa longa o primeiro de sua vida. E quando é assaltado pela saudade ou sente
estadia na clínica não passará de uma lembrança ruim, quantas vezes falta da presença do dinheiro, da prestimosidade sempre reconfortante
se espanta reconhecendo na televisão – um elemento que lhe é quase que as notas oferecem, costuma se consolar dizendo para si mesmo
tão inato quanto os números –, vivinhas da silva, atrizes que conside- que não, que não o perdeu, que o dinheiro só mudou de aspecto, e que
rava mortas, e quantas vezes se surpreende perguntando por gente que basta uma decisão sua para que ele volte ao seu aspecto anterior.
está debaixo da terra há anos, animadores ou jornalistas cuja morte ele, Dois meses depois de estrear o apartamento, espantado pelo cau-
sempre tão sensível aos furos do mundo do espetáculo, foi um dos pri- dal de água que depois de quarenta e oito horas de dilúvio se acumula
meiros a divulgar. Quantas vezes a famosa enfermeira germanofalante – nas calhas entupidas do telhado, apodrecendo por fim o teto e caindo
a única de toda a clínica, segundo o pai, uma das quatro ou cinco que em cascata dentro do quarto, diretamente sobre as pantufas de lã de
patrulham com regularidade o andar, conforme ele mesmo averigua um cordeiro que, inverno e verão, costuma calçar quando acorda, segue os
belo dia, um pouco cansado do retrato exaltado que o pai não para de passos do arquiteto e dá o fora. De repente: vai embora do apartamento
fazer dela, em todo caso a única para a qual o pai, ignorando, natural- e não volta mais. Durante um tempo sua ex-mulher vegeta de camisola
mente, que delegou essa missão a outros, sempre dá um jeito, quando na sala ainda desabitada, sem conseguir acreditar. Depois, pensando
ela se inclina sobre ele, segundo ele para cantar para ele “Schlaf, Kind- menos na casa que no nécessaire, na roupa, nos livros, nos discos, nas
lein, schlaf !”, segundo ela para lhe dar um comprimido ou trocar um pilhas e pilhas de videocassetes que ele deixou no quarto de cima e
curativo, de colocar dinheiro num bolso do avental – chama-o com um nunca voltará para buscar, consegue depressa um comprador, torra o
gesto discreto, para que o pai não perceba, e junto à porta do quarto, apartamento e lhe dá sua metade. Grosso modo, tirando gastos e ex-
com um desconforto enternecido, como se tivesse sofrido o avanço las- tras, a mesma cifra em dólares que o marido da mãe lhe dá de presente
civo de um aluno da escola primária, devolve-lhe as moedas esquálidas um ano e meio antes. O famoso maço de cem notas de cem. Magia:
ou a soma exorbitante que o pai lhe desliza de gorjeta sem que perceba. dezoito meses abolidos de um golpe, como se nada tivesse acontecido.

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Contempla aquelas notas idênticas, novas, estalantes, e não consegue ou na vasilha de alumínio amassada. Não quer insultá-los. Ele os vê
acreditar, e se pergunta se não serão as mesmas. Sem dúvida: o dinheiro contando as esmolas e fica comovido até as lágrimas com a delicadeza
não muda. É uma de suas leis secretas, milagrosas. Todo o resto sim. ensimesmada com que examinam e classificam as moedas, guardando
Ele, por enquanto: mais velho, mais vil, mais covarde. Como sempre algumas no bolso e conservando outras, as que logo usarão, na palma
que decide ficar sozinho, nessa escuridão úmida mas sempre acolhe- da mão enegrecida. Ele, por sua vez, volta tão sujo quanto eles, igual-
dora que conhece tão bem, que não demora a se tornar irrespirável mas mente antissocial e indiferente, mas o que neles é distância e dandismo
à qual volta periodicamente sem esperanças, com uma sede de viciado nele é puro desespero.
ou de órfão, sabe que, se pode contar com alguém, esse alguém é o Com que cara baterá à porta da mãe? Com que roupa? Com essa
pai. De maneira que vai até a agência de viagens, deposita o maço de japona de pele de cordeiro ridícula, surrada, fora de moda há dez anos,
dólares sobre a escrivaninha dele e pede que lhe programe uma viagem que não tira desde que desce do avião, embora seja pleno verão em
personalizada à Europa. De maneira que o dinheiro volta a desaparecer, Buenos Aires? Se a procurasse, de todo jeito, não a encontraria. Está na
a se traduzir: países, pontes, pocilgas, jornais, guarda-chuvas. Volta costa uruguaia, metade em férias, metade se ocupando da Besta, que já
doente, mais gordo, com um dente quebrado (um faláfel criminoso, tem dois andares (não um, como estipulavam os planos), quatro quar-
prenhe de durezas não identificadas), uma tendinite no joelho direito tos (não dois), dois pequenos terraços que dão para o mar (não um) e
(semanas caminhando com o canto do pé para não molhar a sola es- uma piscina em forma de rim que abarca quase todo o lote original-
buracada do sapato com as chuvosas calçadas europeias) e sem roupa mente previsto para o jardim, o pequeno alpendre e os canteiros de flo-
(sua mala encalhada no purgatório das bagagens). res, uma homenagem à mansão de Mar del Plata que o marido da mãe
É de dar pena. Se ao menos tivesse o senso de economia dos clochards. deverá reacomodar, depois de reduzi-la ao consolo de duas ou três flo-
Passa boa parte da estadia em Paris observando-os enternecido, depois reiras com hortênsias, em um dos múltiplos halls que brotaram recen-
corroído por uma inveja irremediável. Seus favoritos: o que se entrin- temente no projeto. Ouvindo-a descrever por telefone como cresce, não
cheira com sua garrafa de vinho e seus jornais numa dessas cabines sabe se a mãe está falando de uma casa ou de um organismo vivo, que
de telefone público, envidraçadas, que ninguém mais usa e com por- só obedece às ordens que ele mesmo dita. Tudo é entusiasmo e alarme,
tas muito difíceis de abrir sem deslocar um ombro; o que patrulha a e a comunicação está sempre ameaçada de corte. Gastos, dinheiro, pa-
quadra descalço, em pleno inverno, lançando a cada tanto um grito gamentos e mais pagamentos: um poço sem fundo, que ele conhece
de alarme ou de ameaça que ninguém entende; a que dorme abrigada bem, por outro lado – mas a casa é esplêndida: um estranho cubo verde
por sua corte de cães num patamar das escadas do metrô. Jamais lhes que dá um pouco de rigor a uma paisagem colonizada pelo kitsch da
dá dinheiro. Não é que não tenha – embora esteja no final da viagem estética chalé. Não, ele a convence: não a verá por enquanto – mas bem
e entesoure esse último punhado de traveller checks com devoção, como que gostaria de pegar em flagrante, de enfim desmascarar esse arqui-
se fossem obras de arte não descobertas. Não sabe como se aproximar teto sobre o qual imaginou o pior, sobretudo desde que ficou sabendo
deles, como abordá-los, de que forma deixar cair a moeda no chapéu que ele ganha a vida como treinador de rúgbi profissional e que só tira

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o pó do diploma universitário quando a mãe e o marido da mãe, que Falta uma assinatura, esquece o documento, acabam de depositar-lhe
acabam de conhecê-lo numa festa, lhe confessam que afinal decidiram um dinheiro que ainda não foi creditado. Cada vez que empurra a porta
fazer alguma coisa com aqueles quatro terrenos que têm no alto do bar- de vidro e entra no banco sente seu peito se contrair num espasmo de
ranco. Iria, mas acaba de chegar a Buenos Aires, tem de cuidar de suas dor. Isso não o surpreende da primeira vez, ao sentar-se diante da ge-
coisas, conseguir algum trabalho. A Europa é cara, resta-lhe pouco di- rente que o atende desde sempre e comunicar sua decisão de fechar a
nheiro – até que uma salva de risadas da mãe o interrompe. “Qual é o conta, e depois de ouvir o arsenal de alternativas promissoras com que
problema?”, diz ela: “Dê para seu pai aplicá-lo para você!”. a mulher tenta frear sua decisão, todas escritas em vermelho raivoso no
É estranho. Sua vida amorosa desmorona em alguns meses e ele manual de instruções para reter clientes, todas formuladas com uma
não verteu uma lágrima. Até o dia em que vai ao banco para dar baixa clareza e uma benevolência igualmente suspeitas, escuta sua própria
no cofre de segurança (caixa dois, módulo três) que dividiu com a ex- voz gaguejar e se descobre confessando a única coisa que jurou não
-mulher, que de fato ainda divide, como provam as duas chaves gê- confessar nem sob tortura: que se separou, e que já não faz sentido
meas que devolve e o eletrocardiograma em miniatura da assinatura continuar com uma conta conjunta. Nas vezes seguintes é ainda mais
dela embaixo da dele na ficha de registro. Entram, abrem as duas gra- difícil para ele. No entanto, o banco não é a primeira cena do crime
des corrediças de prisão, e quando a funcionária do banco o convida à qual volta. Bebeu nos mesmos bares onde marcava encontro com a
a abrir a caixa de metal para comprovar que está vazia, requisito in- ex-mulher, fumou no frio da praça inóspita onde a cercou e a beijou
dispensável para lhe dar baixa, seus joelhos bambeiam de repente, e contra uma árvore, raspando-lhe imperdoavelmente os cotovelos na
tem de apoiar a mão no ombro frágil dessa mulher, que o olha cons- casca do tronco. Já foi pego de surpresa, sozinho, distraído, por músi-
ternada, para não desmoronar. Sentado na beirada do banco que se cas que costumavam ouvir juntos, amigos acostumados a vê-los sem-
apressam a lhe trazer – um desses tamboretes altos, desconfortá- pre juntos, cheiros ou impulsos que para ele só tinham sentido e que
veis, nos quais às vezes se sentava sozinho quando guardava ou reti- ele só cheirava e seguia se estivesse com ela. Nenhum desses baques o
rava alguma coisa da caixa, e de repente, atraído pelos dois cofrezi- deixa indiferente, mas o efeito nunca passa de um déjà-vu amável, como
nhos vermelhos acolchoados que aparecem no fundo, ele os abria e de museu romântico, mais um suvenir ou uma forma de conservar do
ficava contemplando por um momento a beleza modesta, um pouco que a pedra chegada do além para estilhaçar o cubo de cristal onde
infantil, daquelas duas joias que sua ex-mulher amava mais que tudo tenta recobrar o fôlego. O ar impessoal do banco, em compensação, a
no mundo –, começa a chorar sem pudor, longa, ruidosamente, ge- luz dos tubos fluorescentes, o estofado sujo das poltronas, o uniforme
mendo como uma besta espancada, e suas lágrimas caem e batem das funcionárias, sempre mal cortado, cheio de fiapos soltos, para não
no chão da caixa vazia e estouram em mil estilhaços microscópicos, falar da condescendência com que sempre o trataram (dado o cliente
mil diamantes de água que são dele, que de fato são dele, mas que fi- de pouca monta que é), as filas que o obrigam a fazer, as vezes que te-
carão ali para sempre, encerradas naquele pequeno féretro achatado. lefona e não o atendem, o calote cotidiano e silencioso a que o subme-
O fechamento da conta é mais agônico, e o obriga a voltar várias vezes. tem: o mais insípido ou aborrecido desse lugar que raras vezes pisam

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juntos – “Todo mundo deveria ir ao banco pelo menos uma vez na vida. traída com que certas partes do corpo fazem coisas sem que o resto
Mas para assaltá-lo”, gostava de repetir para ela, soprando a fumaça precise ficar sabendo. Decide segui-la. Não tem nem que pensar. Todo
de um Colt 1873 Peacemaker invisível –, e ao qual agora volta para se o resto – o fechamento da conta, os últimos pesos que lhe roubam e
despedir, tudo isso se une e de repente forma um mundo, uma espécie que ele paga sem chiar, com a mesma impaciência com que aperta a
de atmosfera única, envenenada e sensível, em contato com a qual ele, mão apática que lhe estendem à guisa de despedida pelo buraco do gui-
o impassível, fica na intempérie, tão desamparado que a evocação mais chê –, faz isso com sensatez, imperceptivelmente, num desses segun-
tímida de sua vida extinta corre o risco de matá-lo. dos planos difusos nos quais os sonâmbulos executam seus simulacros
Uma tarde entra numa fila, provavelmente a última. Tem na mão o de gestos. Procura a mulher, pergunta-se qual das dobras secretas do
punhado de papéis assinados e carimbados que o libertarão – pelo me- banco a terá engolido, até que a vê se encaminhar para a porta dos co-
nos desse banco, ou dessa filial, ou desse amor que tanto subestimou. fres de segurança. Soa a campainha. A mulher luta com a porta durante
Levou algo para ler. Gosta desse escudo de arrogante indiferença que os alguns segundos (que ele poderia aproveitar para se aproximar e lhe
livros interpõem entre ele e o mundo, em especial quando detecta por entregar as chaves das quais não vai mais precisar: uma leve puxada em
perto um desses agitadores de filas que bufam, levantam os olhos can- sua direção e a seguir o tranco que lhe permitirão abri-la) e desaparece
sados para o céu, queixam-se buscando cumplicidade, invocam os tor- do outro lado. É como se pudesse vê-la, como se a visse agora com uma
mentos mais infernais para o banco e seus funcionários, e quando chega dessas câmaras de segurança que instalarão alguns anos mais tarde,
a vez deles param diante do guichê e deslizam o cheque ou a fatura com para cujo olho insone as sucessoras da funcionária que o atendeu abri-
os modos de uma gueixa. Lê, ou melhor, sobrevoa com indolência uma rão outras caixas de segurança de outros clientes, a fim de dar fé diante
página com o ângulo direito marcado – sinal de que não é a primeira vez de um terceiro, diante de ninguém, de que estão vazias. Sabe perfei-
que passa e se detém nela – onde um jovem discípulo desertado por suas tamente o que fará ali dentro. Sabe quanto tempo passará isolada do
forças declara sua impotência radical e se rende ao mestre agradecendo- mundo, inexpugnável, quanto tempo levará para atravessar as grades,
-lhe por tudo o que fez por ele, tudo o que lhe deu, as verdades às quais abrir a porta do módulo, tirar a caixa alongada, guardar seus tesouros,
lhe permitiu ter acesso, mas pede que o esqueça para sempre, quando a embuti-la outra vez, assinar os papéis, sair. E quando sai ele está lá fora
fila avança dois lugares e aparece diante do guichê uma nuca lassa, aze- à espera, olhando sem ver os livros na vitrine da livraria ao lado. Já não
viche brilhante, que ele, três lugares atrás, acha que é uma peruca, e a têm preço: os valores mudam tão rápido que os livreiros desistiram de
funcionária que a atende, depois de verificar algo numa ficha, levanta seguir seu rastro.
os olhos para ela e pronuncia a frase fatídica, a que ele nunca imaginou Cinco meses depois, o mesmo enquadramento da vitrine da livraria –
que escutaria, a única que devia ter imaginado que escutaria: “Caixa dois, mas os livros são outros, e já não são avaliados em austrais, mas em
módulo três”. Seu cofre, com seu vazio e suas lágrimas furtivas. pesos, à razão de dez mil austrais por peso –, a mesma porção visível
Usa sapatos náuticos azuis, sem meias. Coça a panturrilha de uma da fachada do banco, com a coluna de granito vermelho e a folha da
perna com o ossinho do tornozelo da outra, com essa idoneidade dis- porta de vidro com a marca insultante que um aerossol lhe deixou, e

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ele reaparece com o cabelo mais curto, um bigode anacrônico, como deveria, odeia com todas as suas forças o acervo literário do pai, que
de ator de filmes pornô dos anos 70, e um casaco Montgomery de um nunca leu (“Pra quê, se o odeio com todas as minhas forças?”), e está
elegante azul-marinho suplantando a velha japona de pele de cordeiro. mais ou menos em guerra com o mundo. Sonia, a viúva, e seu corte de
Reaparece, entra no banco e para diante do guichê, e sem qualquer si- cabelo Príncipe Valente. Uma obsessão imemorial: já o exibe nas fotos –
nal de emoção, repete: “Caixa dois, módulo três”. Como conta a seu todas fora de foco – de sua festa de quinze anos. E não, não usa peruca,
pai, que segue suas aventuras sentimentais com um interesse difuso, como ele comprova – com a oportuna decepção – quando a segura pela
preguiçoso demais para sobreviver à surpresa da novidade, talvez a te- nuca e puxa sua cabeça da primeira vez que a beija, na luminosa copa
nha seguido e abordado e por fim se apaixonado, depois de um cortejo daquela que em breve, muito em breve, será sua nova casa, alguns se-
silencioso e persistente, só por isso, obcecado por aquele ataúde me- gundos depois de a lâmpada do poste estourar quase sobre suas cabe-
tálico que ela herdou dele sem saber, para poder dizer mais uma vez as ças, lançando um manto de escuridão sobre as lides, e alguns segundos
quatro palavras do jargão bancário que o nomeiam, ou simplesmente antes de o vândalo adolescente irromper a bordo de seus patins e quase
porque não suporta a ideia de ter que deixar de dizê-las. É isso que os atropelá-los de encontro à parede empapelada.
especialistas em amor chamam de encontro, nome que descreve como Atentados desse tipo são moeda corrente nos primeiros tempos. O
milagre romântico uma coisa que na verdade não passa de um fenô- garoto o deixa esperando, desliga o telefone, não transmite suas men-
meno de compensação mecânica, não muito diferente, no fundo, do sagens. Diz que Sonia não está (quando ela serviu uma taça de vinho
que protagonizam um olho presbita e a lente dos óculos que o corrigem, para esperá-lo), que não quer vê-lo (quando acaba de se perfumar para
ou da plataforma de madeira que prolonga na medida certa uma perna ele), que não ponha mais os pés na casa (quando ele já tem dois pa-
curta demais. Outra vez no páreo. Será possível? Sua herdeira – como res de sapato no armário). A garrafa de champanhe que ele levou (e
a chama para si mesmo, com o contentamento secreto com que um que procura como um louco) aparece dois dias depois no armário da
credor pensa e se delicia imaginando a inocência de um devedor que cozinha, no meio do material de limpeza, vazia, claro, e o quilo de sor-
ainda não sabe tudo o que deve – tem quarenta e dois anos, um marido vete, na última gaveta da escrivaninha do pai, derramando seus sucos
dramaturgo, ou roteirista de cinema, ou letrista de músicas folclóricas, multicoloridos sobre os originais de Peligro, o oratório que o drama-
nos três casos um homem de sucesso, dotado do mau gosto necessário turgo está escrevendo quando incrusta a tromba de seu Honda Civic
para morrer durante uma viagem pelo interior do país – atravessa-lhe a no flanco fofo da vaca. Vai apanhar sua japona depois de uma noitada
frente, em plena estrada, uma vaca em busca de material para um pas- inesperadamente fogosa no sofá e encontra um par de chicletes blo-
toreio na madrugada – e a delicadeza suficiente para não se esquecer queando as casas. Volta para casa, e quando vai abrir a porta descobre
dos parentes, aos quais envia remessas periódicas de dinheiro do além que está sem as chaves – ocupadas, enquanto isso, nas mãos do garoto,
(como os dramaturgos, roteiristas de cinema e letristas de músicas de- em destampar o ralo da banheira de um tufo de cabelos e sêmen ante-
nominam as arrecadadoras de direitos autorais), e um filho intratável, diluviano. Ele não se deixa intimidar. Basta ver como o pivete trata o
com a cara semeada de acne, que usa roupa dois números acima do que caixa do supermercado, o rapaz do videoclube ou seu professor de vio-

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lão para entender que o problema não é pessoal, embora nem o caixa todos os frascos existentes – como o embriaga o perfume de enxofre ao
do supermercado nem o rapaz do videoclube nem o professor de violão longo da viagem de volta – e promete dar um ao garoto se ele desistir,
sejam acusados aos gritos, quase à beira da convulsão, como um Ham- como ameaça, de fazer uma fogueira com toda a sua roupa no meio de
let epiléptico, de pretender um trono que não lhes corresponde. Onde seu quarto. O garoto aceita. Três dias mais tarde, suas maçãs do rosto
ele arranja – ele, para quem toda novidade costuma ter o rosto do mal e o cenho – terras de ninguém estragadas pelas tropas da seborreia –
e do perigo – aquela têmpera, aquela distância estranha, como se fosse se mostram limpos, suaves, lisos, e naquela noite o garoto volta para
um domador de leões? Algo o imuniza contra esse tipo de raiva, algo casa aos beijinhos com uma espécie de namorada. Uma noite jantam
que nem ele mesmo sabia ter e que, como todas as armas fortuitas – ele juntos (se jantar é a palavra para descrever aquele lento, parcimonioso
aprende isso bem cedo graças aos quadrinhos de super-heróis, lendo esquartejamento de duas berinjelas à parmegiana) até que o garoto
os capítulos onde se conta como o super-herói descobre que tem os pede licença para se levantar da mesa, não a concedem e, como sem-
poderes que tem –, é duplamente eficaz, porque é poder em estado pre, ele se levanta e sai, deixando cair o guardanapo e regando o chão
puro, usado sem controle nem cálculo. Pouco a pouco, como quem com migalhas de pão. Sonia soluça, enxuga as lágrimas com um guar-
reconhece que os sonhos que vem tendo, as ideias que o assaltam, as danapo um pouco sujo, ele a consola e acaba sentado junto dela, na
coisas que compra, os rituais a que se abandona, todos esses sinais, mesma cadeira, desconfortáveis, liquidando as berinjelas que o choro
dispersos como estão no tempo e no espaço, formam na verdade uma deixou pela metade. Uma hora ele se levanta e vai ao banheiro, e no
coisa única, um só desejo crucial, pelo qual daí em diante não hesi- caminho surpreende o garoto no quarto da mãe, roubando dinheiro
tará em sacrificar sua vida se necessário, descobre que gosta de estar da carteira dela. Vai seguir direto sem dizer nada, mas de repente fica
onde está, no meio, nem numa posição central, como o amante que ir- quieto, olhando-o fixo, até que o garoto, sobressaltado, para de contar
rompe no meio do velório e rapta a viúva ainda morna de pranto, nem as notas e olha para ele.
numa posição subordinada, como o escravo que compensa toda essa Mas o que importa para ele é o cofre, a caixa de segurança, ir de
desolação com serviço. É ele, de fato, que intercepta com seu corpo as vez em quando ao banco e dizer: “Caixa dois, módulo três”, e enfiar
munições caseiras – miolo de pão recheado de moedas – que o garoto a chave na fechadura – a mesma que usa em sua outra vida, com a
dispara alegremente contra a mãe. É ele que conversa com o vândalo clássica dificuldade de nunca se lembrar em que sentido deve enfiar
quando ele se entrincheira em seu quarto. Vai e vem, leva e traz, anun- a chave, se com a borda dentada para a direita ou para a esquerda – e
cia e transmite. E a sorte, dessa vez, está do seu lado. Uma tarde, num tirar a caixa e abri-la e se refugiar no boxe, ao abrigo de olhares in-
desses bairros de casas baixas que ainda sobrevivem na cidade, topa trusos, para enchê-la docemente com tudo o que Sonia lhe pede que
com uma farmácia quase abandonada e detecta numa das vitrines em- guarde para ela, joias, apólices, escrituras, moeda estrangeira. É isso,
poeiradas, desvalido, como se fosse a estrela de um filme muito antigo, esse cerimonial ridículo, solitário, que volta e meia lhe arranca umas
nunca estreado, um frasco de sabão adstringente que ele usa aos vinte lágrimas e do qual sai esgotado, como de uma via crucis emocional,
e seis anos para frear uma intempestiva crise de acne. Entra, compra não o dinheiro, contra a hipótese gigolô que sua mãe lhe joga na cara

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quando conta para ela as novidades de sua vida. “Ou ser sustentado por O cofre é seu tesouro, seu fetiche secreto, sua paixão. Se vivesse num
mulheres não foi sempre uma de suas fantasias secretas?”, diz, com filme depravado, uma dessas esquisitices sombrias e taciturnas que,
um sorriso de orelha a orelha, voltando um pouco alta de uma sessão como os antigos compêndios de psicopatia sexual, acobertam sob um
de osteopatia. Que ele saiba, a sede central de suas fantasias secretas repertório de tortuosas síndromes clínicas o único propósito que têm,
não tem chave, e se tem, sua mãe nunca ganhou uma cópia, não dele, despertar essa comichão inconfundível que lhe recorda que a virilha
em todo caso – a menos que toda mãe, por lei, por ser mãe, tenha linha existe, seu alter ego na ficção – provavelmente mais velho, mais careca,
direta com o laboratório onde fermentam as fantasias secretas dos fi- com as unhas roídas, caspa nos ombros e a bainha de uma barra ita-
lhos. Como ela chega a essa ideia, de onde ela a tira, de onde lhe vem, liana da calça arrastando-se pelo chão – tremeria mais do que ele ao in-
acima de tudo, a convicção com que a enuncia, não são coisas que ele serir a chave na ranhura, morderia um pouco os lábios ao retirar a caixa
tenha condições de saber no momento. Talvez mais tarde, quando o e a levaria ao boxe apertando-a contra o corpo, como se a estivesse rou-
buraco negro da Besta tiver devorado tudo, dinheiro, outras proprie- bando, como se a sufocasse com o calor de seu desejo, e já no boxe, de-
dades, reservas, créditos, incluída ela mesma, até deixá-la na ruína, e pois de destampá-la com os olhos muito abertos, ávidos, de pé diante
sua mãe, dobrando a aposta – ela, que em toda a sua vida mal joga na dele, com o tamborete fazendo pressão contra a porta para travá-la, me
loteria, e se joga compra sempre o bilhete menor, pensando em perder aliviaria até desfalecer, guardando nela o que nenhum dinheiro poderia
o mínimo possível –, decida, aos sessenta anos, renunciar à única coisa pagar, o que ninguém pensaria em roubar, ou porque não tem nenhum
que lhe resta, trinta e cinco anos de casamento, ir morar por conta pró- valor, ou porque seu valor é incalculável. Ele não. Se deixa alguma coisa
pria num apartamento de quarenta e cinco metros quadrados, menor na caixa toda vez que vai ao banco – mais alguma coisa, bem entendido,
do que uma das suítes que o ex-rugbier metido a arquiteto dá um jeito além do que Sonia o encarrega de guardar –, não são as gotas de sua
de enfiar na Besta, e retomar sua carreira de tradutora interrompida pobre seiva, que ele mesmo estrangula com um nó escorregadio na ca-
logo no começo, quando está sozinha e com um filho e resolve se casar misinha onde vão morrer duas ou três vezes por semana, de preferência
novamente para não cair na rede infernal de sua própria família. pela manhã. São bagatelas, coisas sem maior valor, pertences pessoais
Não é o dinheiro, mas a caixa (dois), o próprio objeto, que tira a que expostos à luz, na irrepreensível visibilidade de uma estante de bi-
cada vez do módulo (três) com o cuidado e a solenidade com que os blioteca ou numa cômoda, não chamariam a atenção de ninguém: um
agentes funerários tiram os nichos nos cemitérios. O cofre é seu pró- caderninho de apontamentos (seu diário de sonhos), uma medalha do
prio morto: a única coisa que tem, na verdade, para confrontar, ou único torneio de xadrez que joga na vida (ganha o terceiro lugar, mas
equilibrar, o vazio atroz que o dramaturgo de sucesso deixa nessa mu- tem apenas dezesseis anos e o campeão, que ele mantém durante toda
lher e nesse garoto quando ofusca a vaca no meio da estrada (está com a partida com a corda no pescoço mas não sabe como eliminar, uns ex-
a luz alta acesa, segundo consta no boletim da polícia) e a atropela. (E perientes cinquenta), um envelope com fotos da infância (praia, praia
que alívio, quase que prazer ocupar literalmente o lugar de outro, o com bassê, praia com avó e bassê), um dado (que rola e cai com o seis
vazio morno na cama, os cabides no armário, a cabeceira da mesa!) para cima e lhe dá o único general de toda a sua vida), uma rã verde

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com riscas pretas, pinceladas azul-celeste e olhos fora das órbitas, de dança. Ah, a mudança! Talvez a combinação não seja senão a continua-
lata, de corda, que assim que ele fecha a tampa da caixa, como se resis- ção por outros meios – a “etapa superior”, nas palavras do irmão mais
tisse a ser enterrada viva, ativa umas voltas na corda que tinham ficado velho do único amigo que consegue arrastar para o cinema do Partido
pendentes e começa a pular feito louca entre títulos de propriedade, Comunista, um trotskista empreendedor que durante um ano e meio,
maços de libras esterlinas e estojos de veludo com colares de pérolas. valendo-se dos golpes baixos mais extorsivos – as fotos do crânio de
Em termos técnicos, que são os que sua mãe adota toda vez que dis- Liev Davídovitch fendido pela picareta de Ramón Mercader, entre ou-
cutem a questão, ele vive da viúva, claro. Tudo é tão fluido, tão natural, tros –, lhe arranca uma mensalidade para, segundo ele, contribuir para
no entanto, que ele nem sequer tem tempo de se envergonhar. Dão-lhe o jornal do partido – de sua velha e proverbial função de emprestador de
acesso a tudo, contas de banco, talões de cheques, adicionais de car- dinheiro miúdo em casos de emergência. Talvez.
tões de crédito, inclusive essas províncias do mundo do dinheiro com Ele, por enquanto, não discute. O que mais o intriga, em certo
as quais não saberia o que fazer, depósitos a prazo fixo, investimentos, sentido, é o interesse da mãe por sua situação sentimental. Esse entu-
e nas quais se limita a executar instruções. É frugal, muito mais frugal siasmo misto, ao mesmo tempo desconfiança e rivalidade... Essa es-
agora, que “tem dinheiro” – as aspas são de sua mãe –, do que quando tranha expectativa... A última vez que se lembra de ter experimentado
o dinheiro era verdadeiramente seu ou não o tinha. Sua mãe não tolera uma sensação parecida tem dezesseis anos e acabava de ameaçar a sair
isso. Vão almoçar, por exemplo. Sua mãe, gourmet diletante, escolheu o com uma namorada extraordinariamente séria, militante de um grupo
restaurante de um ex-convento em pleno microcentro, um território no juvenil de esquerda, que não lê livros de menos de seiscentas páginas,
qual se aventura só de vez em quando com o intuito de provocar, para tem uma pontaria perfeita para presentear (um jogo de patas de rã, um
que ele não dê por certo, com tanta desenvoltura, que tem dono e que telescópio, uma caneta-tinteiro que irá durar vinte e dois anos) e o vi-
esse dono é seu pai. Enquanto ela se perde no menu entre suspiros de sita com regularidade profissional toda vez que ele fica doente. Basta
prazer, tentada pela monástica variedade dos pratos como uma mari- que sua mãe os deixe sozinhos para que lance um olhar de reprovação
posa pelas piscadelas da luz, ele, que nem o olhou ainda, desdobra o para a caixa de antibióticos e com um de seus passes da mágica bila-
guardanapo com um vago gesto de mago e pede um panaché de legumes, biais – beijar, doutrinar: o que vem antes e o que vem depois? – tente
ou uma batata cozida com azeite de oliva, ou um arroz branco. “Basta, convertê-lo ao dogma homeopático. “Sei que você não vai gostar do que
farsante”, repreende-o sua mãe fechando abruptamente o menu, que eu vou dizer, mas vou dizer assim mesmo”, diz sua mãe nessa mesma
emite uma explosão surda. “Não se faça de faquir, que a viúva não está noite, um minuto assim que sua namorada-prodígio vai embora, não
olhando, e peça alguma coisa decente.” Ele paga, esse foi desde sem- sem antes recolher com um domínio surpreendente um punhado de
pre o combinado. Mas quando começou o “desde sempre”? E por quê? lenços de papel impregnados de muco para jogá-los na cesta de lixo.
E quem combinou que seria assim, se ele, principal prejudicado pela “Nem pense em se casar com essa garota. Escute o que eu lhe digo: viva
combinação, embora force a memória, não consegue se lembrar de ter um pouco e depois se case!” Depois, mais nada, nem uma palavra, nem
combinado nada com ninguém? Talvez, se procurasse melhor... A mu- a favor nem contra, nunca mais, e com razão, pois já é gato escaldado,

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como se diz, porque ele não escuta o que ela diz nem dessa vez, com de repente o infantiliza ou os arroubos de cavalheirismo com que a
sua precoce Florence Nightingale bolchevique, com quem acaba indo agrada, assim também a imagina a partir das malfeitorias que o garoto
morar e flutua quase dez anos num voluptuoso mundo engripado, nem comete – sem nunca lhe confessar, claro, o retrato falado a que chega,
na vez seguinte, com a musicoterapeuta, nem nunca. E quando su- esse camafeu monstruoso, misto de harpia manipuladora e espantalho
cumbe ao último amor, o que desmorona nos mesmos onze meses que passivo-agressivo, segundo o jargão da paróquia psicológica da qual é
demora para erguer a casa que deveria abrigá-lo, está tão na sua, tão devota há décadas, e com os efeitos mais contraproducentes.
absorvida pela marcha enlouquecida da Besta que nem se lembra de Para ele isso não muda nada. Desde aquela primeira vez em que
lhe dar de presente as persianas de vime que prometeu para a varanda. ignora a objeção à namorada bolchevique, sua vida amorosa transcorre
No entanto, é evidente que a viúva a interessa. Evita cuidadosamente longe da mãe, em outro plano, não blindada – porque nada muito visí-
demonstrá-lo, como se perguntar por ela sem rodeios fosse sinal de fra- vel a protege –, mas imune e obstinada, amparada por regras e protoco-
queza ou reconhecimento de derrota. Mas é traída pela atenção com que los próprios, como esses paraísos fiscais que na época entram na moda,
acompanha as mudanças que aparecem nele. Nada lhe passa desperce- localizados em geral em ilhas mais ou menos remotas, protetorados
bido. Nota que ele exibe uma cor de camisa inesperada, ou que desliza herméticos, países minúsculos, frágeis à primeira vista, mas cuja única
numa frase uma palavra inaudita, ainda um pouco rígida, engomada, força é a discrição, a capacidade que têm de entesourar os segredos
como um jogo de lençóis recém-estreado, ou que assimila e neutraliza que o resto do mundo morre de vontade de conhecer. Ele, de seu lado,
sem esforço, num alarde de bom humor, os surtos de ansiedade dela aperfeiçoou tanto o sistema que já não precisa se preocupar em preser-
que antes o deixavam fora de si, e todos os seus sistemas de alarme se var nada. Não tem medo. Pode dizer tudo – diz tudo, de fato, e não só
ativam no ato, mobilizando sua legião de espiões moleculares ao re- quando admite que a camisa verde-garrafa, como as cortesias fora de
dor do único corpo estranho suspeito de ter inspirado essas novidades. moda ou o cabelo curto, é fruto direto da vontade de Sonia, mas literal-
Às vezes toma como indício o comportamento do foragido. Pode ser mente, quando a descreve física (alguma dificuldade, devida à ignorân-
que a divirta ver o filho lidando com o inadaptado que ele, na mesma cia supina da mãe em matéria de histórias em quadrinhos, para expli-
idade, nunca foi, mas festeja tanto a crônica de seus vandalismos – que, car a noção de corte Príncipe Valente) ou moralmente (dá dinheiro em
por outro lado, lhe narra com riqueza de detalhes, que parece querer todos os casos, a todos os que pedem na rua, sem razão nem exceções,
ressaltar o contraste entre o pesadelo que coube a ele, pai postiço ino- e risca da lista de amigos todo aquele que tenha empregada que durma
cente, completamente incauto, e o baixo perfil paradisíaco do filho que no emprego) ou quando se espraia sobre seus hábitos (uma hora de
um dia coube a ela – que os conselhos com que depois se empenha em ioga entre o sexo matutino e o café da manhã, televisão racionada, ja-
recompensá-lo, ainda trêmula de rir, todos perfeitamente improceden- nelas abertas de par em par em pleno inverno) – e no entanto o segredo
tes, por outro lado, se confundem para ele com variantes disfarçadas continuará ali, intacto, inacessível para a mãe, como essas frequências
da apologia do crime. Mas assim como deduz a personalidade da viúva que se produzem em plena luz mas só são audíveis para ouvidos muito
pela camisa verde-garrafa com que o vê aparecer, o corte de cabelo que treinados. Um dia, esperando por ela, sentado na única mesa aceitável

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da confeitaria onde combinaram se encontrar, um desses lugares es- sola na sacada do hotel, pasma diante da gaiola dos tucanos no museu
palhafatosos aos quais a mãe é fiel, com F de fanática, só porque lhe dos pássaros, sorrindo contra o travesseiro, adormecida e de lábios en-
oferecem uma coisa à qual não consegue resistir, uma só coisa, anô- treabertos – senta-se e tira os óculos de sol com a mão trêmula e diz:
mala mas não necessariamente imprescindível, papel higiênico de fo- “Como você pode tirar fotos tão feias? Não está na hora de comprar
lha dupla no banheiro das damas, por exemplo, ou toalhas brancas de uma câmera decente?”. Não, não tem medo de dizer e de mostrar tudo
puro algodão, ou música renascentista, ou o enjoativo licor de uísque porque sabe que confiar o segredo a sua mãe, oferecê-lo assim, grátis,
no qual se vicia no ferry que a leva até a Besta, ele examina umas fo- a sua grosseria, é a melhor maneira de guardá-lo.
tos que acabou de mandar revelar, suvenires de “uma escapada” – um Mas se a mãe desdenha as fotos é porque o segredo que a desvela
dos viuvismos que mais arrepiam a pele de sua mãe – a Misiones que não é esse, não está ali, naquelas imagens estúpidas, efetivamente mal
começa mal, nas cataratas do Iguaçu, a bordo de um barco de borra- enquadradas, mas em outro lugar: encriptado nos resumos das contas
cha instável que o pivete, hostil desde menino aos coletes salva-vidas, de banco, nas quantias de dinheiro que entram e as engordam a cada
ameaça cortar com a Victorinox que convence a mãe a comprar para três meses, com uma regularidade suíça, sem que ninguém mova um
ele na loja do lobby do hotel, e termina pior, na cela da delegacia da dedo para que existam. O dinheiro dos mortos. É isso que a faz delirar. Ele
Tríplice Fronteira, onde passa seis horas em animado conclave trilín- sabe disso: ou não é isso que também o faz delirar? Existe por acaso
gue (prostituta brasileira, dealer argentino, contrabandista paraguaio), um dinheiro melhor, mais perfeito? O dinheiro que cai, o dinheiro que
acusado de ter posto uma pornochanchada nos vinte e cinco televisores chove sozinho, sem que ninguém o ganhe nem se dê ao trabalho de
de uma casa de eletrodomésticos em Foz do Iguaçu. Pergunta-se pela enviá-lo nem responda por ele, o dinheiro que vem e chega do além,
enésima vez por que o que vê pelo visor da câmera no instante de tirar neutro, benfazejo, impessoal como uma estação do ano, uma floração,
a foto nunca tem a cor do que aparece nas cópias nove por treze que uma maré. Compartilham isso, a inveja inenarrável, sem consolo, quase
deveriam tê-lo registrado, por que, por Deus, vê agora o que pensava delituosa, no caso da mãe – que, quando jovem, no atordoante intervalo
ter deixado fora do quadro (a traseira de um Renault 12 amarelo, a mão de tempo entre dois maridos, concebe num momento de insensata ins-
com o indicador apontando e o pulso cheio de pulseiras de ouro falso piração o plano de seduzir um trompetista de jazz, um sujeito afetuoso
do turista de Minas Gerais que os persegue com sua afabilidade e seu e imberbe, à beira do autismo, mas extraordinariamente prolífico, ca-
mau hálito) e não encontra, embora procure com desespero, pensando paz de compor três standards irrepreensíveis no percurso de táxi até a
inclusive em voltar à loja de revelações e reclamar, o que tinha certeza empresa familiar onde o obrigam a trabalhar para não sentir que o sus-
de ter retratado (o perfil ligeiramente aquilino da viúva adormecida e tentam –, que lhes despertam essas criaturas privilegiadas, superiores
sorridente, recortado contra o travesseiro), e nisso chega sua mãe e fica a qualquer burguês endinheirado e a qualquer aristocrata, superiores
de pé junto dele, olhando as fotos de cima enquanto ele as examina, e principalmente a esses tubarões que se forram com ações, que são os
depois de saborear uns flashes de intimidade trivial – a viúva de maiô, beneficiários de direitos autorais e regalias, inventores e filhos de inven-
sessão de massagens junto à piscina, tomando café da manhã de cami- tores, autores e descendentes de autores, herdeiros de iluminados que

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tiveram uma ideia e a executaram e a soltaram no mundo para que fosse piscina, quando do pacote de dinheiro de seus mortos não lhe restar
ela, a ideia, e não eles, os iluminados, com seu suor, suas lágrimas, seu muito mais que o que consegue conservar dos mortos que o deixaram,
sangue, que se dedicasse daí em diante a produzir dinheiro. fósseis cobertos de pó, lembranças vagas, o eco distorcido de uma voz
“Por quê?”, grita sua mãe (que colocou de novo os óculos de sol, que balbucia desatinos na escuridão.
como faz sempre que sofre um acesso de emoção), enquanto estende Sim, herdar tem suas manhas. Ele, ex-herdeiro, herdeiro nonato,
os braços por cima da mesa, fazendo o galheteiro balançar, e o sacode morto ao nascer, chamado a esperar o que nunca acontecerá, sabe
pelas lapelas do paletó de tweed, última contribuição de Sonia para seu disso em primeira mão. Conhece a impaciência, a avidez malsã, a so-
guarda-roupa. “Por que diabos você não foi um autor? Por que não foi berba de quem sabe que tudo não passa de questão de tempo. Mais cedo
um gênio, um escritor, um físico, um desses músicos precoces, doen- ou mais tarde: o lema do herdeiro, a frase-talismã que repete para si para
tios, mortos precocemente antes de conhecer mulheres e ter filhos, que se tranquilizar noites adentro, antes de dormir, no final de um dia que
deixam para suas mães os direitos sobre todas as suas obras?” Se ela o humilhou exigindo já, agora, imediatamente, o que ainda não tem, o
diz isso assim, com tanto furor e desconsolo, quando ainda desfruta que o infarto, o câncer ou o motorista alto de um caminhão de distri-
do dinheiro de seus mortos, quando lhe basta acordar de manhã com buição de bebidas que dobra a esquina a toda velocidade lhe darão um
uma ideia fixa e traduzir esse dinheiro – tradução, por sua vez, do pa- dia, mais cedo ou mais tarde. A risada do herdeiro é ácida, estrondosa.
cote que o pai lhe deixa ao morrer, velho, sim, mas principalmente en- É a risada de quem ri por último, uma gargalhada de ressentimento e
venenado de rancor pela meia dúzia de operações de cataratas estéreis de vingança longamente fermentada, que passa arrasando como um
às quais se submete, quase cego e mesmo assim perspicaz o bastante furacão. Mas se ao menos se tratasse disso. Porque até herdar implica
para perceber, antes de morrer, que tudo o que deixa, a fábrica de aço uma responsabilidade. É preciso estar à altura de uma herança. Se sua
da Villa Devoto, o apartamento da Belgrano R, o chalé de Miramar, os mãe, pudica como é, encouraçada de orgulho, cede à atração que a
dois carros, deixa tudo a fundo perdido, na verdade entrega tudo à di- viúva exerce sobre ela, é porque reconhece o quanto ela foi capaz de
lapidação e ao desastre – para o idioma que lhe der na cabeça, coisas, ir mais longe. Comparado com o milagre que conseguiu – dinheiro
bens, viagens, até mesmo empreendimentos ambiciosos como a Besta, que cai periodicamente, rajadas de grana que sopram e se renovam sem
um dos muitos investimentos que reclama o dinheiro de seus mortos pausa, sem esgotamento possível, como cartas que seu folclorista apai-
e depois, bem depressa, o investimento principal e até o único, a tal xonado lhe escrevesse depois de morto, com seu amor eternizado no
ponto esse projeto que começa como uma casa de veraneio e termina mesmo formol que impede que seu corpo apodreça –, herdar soa como
como uma mansão-tumba, palácio-catástrofe, acaba comendo tudo o um protótipo falido, uma dessas ideias engenhosas a que a pressa, ou
que ele tem, o dinheiro do banco, naturalmente, mas também o apar- a cobiça, ou a inabilidade, ou uma combinação fatídica das três, redu-
tamento da Belgrano R, o chalé de Miramar etc. –, se agora fala assim, zem um pobre rascunho descartável.
quando, como se diz, ainda está nadando em dinheiro, como irá di- Além do mais, sua mãe já herdou, o marido de sua mãe também,
zer sete, oito anos depois, quando não há mais uma gota d’água na e todo herdeiro legal – todo aquele cuja vida em algum momento fica

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ligada a uma herança, palpitando à sombra de sua promessa, e perma- é que uma casa começa de fato a viver, a necessitar, a pedir. É então que
nece em suspenso, sempre à espera, preparada para esse futuro que se revela sua natureza verdadeiramente viva, animal. Mas aí já é tarde.
haverá de conceder-lhe, por fim, o que lhe cabe – sabe, uma vez que Toda vez que partem, bronzeados, com aquele cansaço feliz, aquela
herdou, até que ponto esse tempo passado é a hipoteca que pende so- estranha juventude experimentada que deixam no corpo seis semanas
bre a euforia que sente ao ficar rico. Recebida a herança, a única coisa de ócio e de mar, e ela se vira para trás no carro e vê – como um filme
que resta, abrupta ou paulatina, razoável ou demente, é o processo fa- projetado ao contrário – a casa que recua e volta a ser engolida pelas
tal de sua erosão. É o que a mãe e o marido da mãe compreenderam árvores, tem a impressão inquietante de deixar uma pedra preciosa na
bem, demasiado bem, a julgar pela rapidez com que põem em prática intempérie, indefesa, à mercê do primeiro que passar. Isso, e alguns
esse programa de liquidação de riqueza do qual a Besta, no fim das roubos na região, convencem-nos a contratar caseiros. Uma moradora
contas, é menos a causa que a ilustração exemplar. do lugar, uruguaia, recomenda que procurem um casal (os caseiros
Em pouco mais de cinco anos, aquele paralelepípedo imponente, homens e sozinhos tendem à indolência e ao álcool, em especial no
que desponta entre as árvores como um bunker de concreto assim que inverno, quando a única coisa viva que vagueia pelo lugar são velhos
os carros saem da curva da estrada que sobe, deixa de ser o remanso he- hippies desdentados que perderam o rumo e alguns vira-latas), e que
donista que foi projetado para ser – e que de fato é, pelo menos nos pri- seu marido o registre em carteira, com todos os encargos e seguros que
meiros tempos, enquanto a mãe e o marido da mãe e alguns amigos ín- a lei prevê, mais por medo das inspeções que por fidelidade a uma ética
timos, todos igualmente vítimas do feitiço inexplicável do ex-rugbier que social. Três meses mais tarde, depois de um casting não totalmente rigo-
virou arquiteto, confundem as dimensões exageradas da casa com uma roso, que a mãe e o marido da mãe usam mais como pretexto para fugir
excentricidade atraente, um luxo a explorar, e, como crianças que co- de Buenos Aires, uma família tipo jovial, com essa jovialidade engas-
meçam a ocupar a mansão da qual seus pais acabam de partir, dormem gada dos uruguaios e dos guris ariscos mas hipercinéticos, se instala no
um dia numa ala, outro dia em outra, distribuem as refeições pelas di- andar de baixo da Besta, onde viverá quase uma década, testemunhas
ferentes salas de jantar, tomam banho cada dia num banheiro diferente, taciturnas de uma decadência da qual nunca alertam, sem dúvida por-
passeiam e se beijam nos corredores, acampam nos playrooms desertos que temem que a primeira medida para freá-la seria despedi-los, mas
com suas espreguiçadeiras de praia, suas taças de vinho, seus discos de que detectam desde o princípio, ao primeiro sinal, com toda a clareza.
Mel Tormé e Tony Bennett – e se transforma numa preocupação. Nada Muda o governo uruguaio e as autoridades que assumem, necessita-
define pior, nada mais enganoso que descrever uma casa como um bem das de dinheiro, reavaliam as taxas do imposto territorial de todo o país
imóvel, principalmente uma casa construída do zero. Acredita-se que, e maltratam os lugares de veraneio, onde sabem que há muito dinheiro
instalado o último rodapé, colocado o lustre que faltava, ajustado o pa- fácil e, sobretudo, estrangeiro. Os impostos municipais vão parar nas
rafuso da última maçaneta, pronto: a casa deixa de exigir, é a vez dos ou- nuvens. A água, antes quase gratuita, agora é ouro puro. O clima se re-
tros, dos que vão morar nela. Depois da Besta, sua mãe não vai tolerar bela. Há uma sequência de verões não aprazíveis, traiçoeiros, com furio-
que ninguém repita essa falácia. Pelo contrário. Quando está terminada sas descargas de chuva que os surpreendem sempre ao chegar à praia,

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obrigam-nos a voltar e se interrompem, deixando um céu impecável e trem lategaços de ar. Solta-se um postigo (um desses belos postigos me-
ensolarado, quando acabam de desencilhar o carro na garagem da casa. diterrâneos que o rugbier tanto defendeu) que começa a bater, e podem
Poderiam se consolar com a piscina, agora que enfim solucionaram o passar vinte minutos rastreando-o, hirtos de frio. Tem vezes – princi-
inexplicável desnível estrutural (rugbier!) que impedia o abastecimento palmente de noite, quando os assalta uma espantosa insônia de férias e
normal de água, mas a poda brutal de árvores cometida pelo novo com- cada um vai lidar com ela no seu canto, envergonhado, como um animal
prador do terreno vizinho – que na época eles são os primeiros a come- ferido – que se sentem perdidos e sozinhos como intrusos.
morar, pensando em toda a paisagem que ganham sem ter de gastar um À beira da falência (se tivessem alguma empresa para falir, algo mais
centavo – tornou-a inabitável, um corredor de vento anárquico, sempre sólido que esse caos de operações às cegas, malabarismos financeiros,
à beira de alguma tormenta, como uma pista de aterrissagem. negócios sem horizonte e contas cada vez mais minguadas em que se
Começam a ir menos, menos semanas. A Besta se ressente. Um in- transformaram suas respectivas heranças), cansados de ver o dinheiro
verno particularmente chuvoso (somado a uma obra em construção não indo embora na Besta com a mesma regularidade com que chegam a
de todo legal que prospera na montanha, um pouco acima, escorada Sonia as remessas do além, decidem que é hora de fazer a casa lhes dar
por andaimes frágeis) descarrega uma avalanche de terra, escombros dinheiro. Não têm grandes pretensões. Não querem ficar ricos. Só que
e um que outro pedreiro desprevenido que sepulta parte de ala direita a casa se autofinancie. Alguém – talvez um apontador contratado pelo
da casa e põe em evidência certo déficit constitutivo nos alicerces (rug- ex-rugbier – lhes sopra a ideia de transformá-la num complexo de apar-
bier!), muito mais permissivos com a umidade do que deveriam, o que tamentos de uso compartilhado. Quando o chamam para comentá-la, o
demanda uma obra de escavação e calafetagem que exige toneladas de ex-rugbier que virou arquiteto e agora telepata, dado que quando atende o
dinheiro (mas o dinheiro sempre se mede em toneladas quando se trata telefone já parece estar sabendo de tudo, desenrola as plantas (que mis-
de arrumar alguma coisa) e um verão e meio (tempos uruguaios) de abs- teriosamente já estão com ele) e lhes detalha com um entusiasmo trans-
tinência no uso da casa. Ficam mal-humorados. São roubados (com a bordante o plano de reformas. Diz bem: reformas. Já previu tudo, nada
caseira dentro, que é trancada no quarto de passar roupa, e as crianças, é mais importante para ele do que tranquilizá-los já de saída. Ampla e
que nem ficam sabendo, no jardim, tirando porquinhos-da-índia de suas generosa como é – é quase como se tivesse visto o futuro quando a pro-
tocas com pastilhas fumigantes). Chega até eles o boato de que alguém jetou pela primeira vez! –, absolutamente nada será acrescentado à casa,
planeja um bed & breakfast para mochileiros onde cresce aquela colônia nem um tijolo – salvo, é evidente, o que a legislação vigente exigir para os
gigante de magnólias que tanto gostam de contemplar. Têm dificuldade usos compartilhados: espaços comuns, três, ou talvez dois, sim, só mais
em conseguir amigos para acompanhá-los. O salitre embaça as janelas: dois banheirinhos, os dezesseis metros quadrados suplementares que
quando tomam o café da manhã só veem um véu branco granuloso e exigirão a piscina e as baias de estacionamento – fundamentais: quem
triste e o mar e a costa e os telhadinhos atrás, apagados, como o postal pensaria em ir até lá sem carro? – para uma meia dúzia de carros. Traba-
antigo de um lugar perdido. A casa é imensa, inútil, impossível de se lhar com o que existe. Subdividir o que já existe. Poderiam conseguir meia
manter aquecida com calefação. Não há abertura pela qual não se infil- dúzia de apartamentos e um sétimo, um duplex, o melhor e mais caro do

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complexo, que eles poderiam utilizar durante três semanas por ano, a sua em copular como robôs desmemoriados com bichinhos de pelúcia,
escolha, sem pagar um centavo. A obra pode começar hoje, agora, ontem continua agora saltando no vazio, e um pedaço de papel arrancado de
mesmo, se necessário. Por acaso, o ex-rugbier tem gente na área pronta qualquer jeito do bloco de telefone com os dias e horários de visita ao
para trabalhar – um complexo de bangalôs em estilo filipino que foi inter- pivete, que bem ou mal acabou se apegando a ele. Em dez anos, a Besta
rompido por um probleminha de financiamento. Teria apenas que desviá- muda de identidade mais de uma vez, sempre com o casal de caseiros
-los para a casa. Quando teriam o adiantamento para dar a partida? como carrancas de proa (é a única exigência que a mãe e o marido da
O projeto fracassa. Planejam inaugurá-lo em dezembro, com a mãe conseguem impor durante todo o processo), sempre em vão. Há
abertura da temporada, a fim de amortizar rapidamente os custos da uma primeira versão uso compartilhado, que decola bem (ocupação de
obra. Mas um inverno hostil, impedimentos legais que demoram a des- oitenta por cento) mas logo se apaga, eclipsada pelo furor dos resorts
travar (o contato do rugbier na prefeitura vai preso por um assuntozinho all inclusive e do hedonismo exclusivista. Seguem-se três anos (pintada
de corrupção de menores) e o mês e meio que o rugbier passa desapare- de um feio verde pinheiro, com painéis solares que nunca funcionam
cido (segundo ele, internado numa malcheirosa clínica de Maldonado direito) como pousada ecológica. Depois, segunda chance como uso
por conta de um rosário de pneumotórax; segundo o casal de caseiros, compartilhado, fórmula que nesse ínterim (crise econômica, recessão,
que cruza duas vezes com ele na casa de câmbio do centro, encerrado desemprego) voltou a ganhar adeptos. Daí em diante, queda livre. Sede
no cassino de chinelo, óculos fumê e uma camisa florida com o logo do central de uma pujante imobiliária da região, falida no ano em que se
complexo de bangalôs), em todo caso muito longe da obra, que é inter- instalou e cujos donos, um par de primos incestuosos, só desocupam
rompida e motiva uma queixa sindical inflamada, com dois dias de to- a Besta com a força pública, deixando sem pagar um ano de aluguel,
mada pacífica da Besta e uma aromática linguiçada no futuro lobby do serviços e impostos municipais. Sede parcial, só nos fins de semana
complexo, retardam o corte da fita para o fresco mês de maio, quando longos (tão apropriados para maratonas de psicodrama, percepção
só um outlaw em fuga veria com prazer uma estadia num apartamento sensorial, meditação transcendental, ioga), de certa fraudulenta “clí-
de uso compartilhado na costa uruguaia, e disparam o caso de lucro nica de bem-estar integral” que os contata através do rugbier, recen-
cessante mais triste da história da arquitetura estival. temente nomeado cônsul ou adido militar ou primeiro secretário da
São dez anos – mais ou menos os mesmos que Sonia leva para via- embaixada argentina na África do Sul, onde seus velhos amigos dos
jar da adoração à saturação, até que o põe na rua com uma caixa de All Blacks o esperam com ansiedade. Produtora de cinema e, mais tarde,
papelão cheia de roupa (menos as coisas que ela vai comprando para estúdio de filmagem, primeiro para spots publicitários (a piscina que
ele enquanto estão juntos, de um gosto refinado, principalmente esse aparece naquele comercial de refrigerante, a escada em caracol onde o
paletó de tweed que agora parece feito sob medida para o pivete), uma marido dá para a esposa as duas passagens para Punta Cana, a ampla
sacola de supermercado com seu diário de sonhos, sua medalhinha, sala com lareira e bibliotecas embutidas que os irmãos gêmeos usam
seu envelope com fotos da infância, seu dado e sua rã de lata, que, como campo para sua guerra de bolachinhas de chocolate), depois
como os gatos mal castrados, que investem suas migalhas de instinto para dois ou três filmes de cinema experimental, nunca estreados, nos

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quais o diretor da produtora acaba investindo (e perdendo) o pouco já vimos acontecer mil vezes no cinema, ou em sonhos, ou nas histórias
que ganhou, e que, segundo os poucos sobreviventes do elenco que de vida dos outros, e que já conhecemos nos mínimos detalhes e não
aceitam falar no assunto, acabam em grandes orgias inúteis (o sujeito é mais capaz de nos surpreender. Não: gela nosso sangue. Não o fato
é diabético, hipertenso, incuravelmente impotente). No fim do túnel, a em si, mas a mudança sobrenatural, absolutamente milagrosa de di-
Besta é território arrasado, um Xanadu sem luz, quase sem vidros nas mensão que foi necessária para que o fato quebrasse a casca do mundo
janelas, que o vento usa para modular sonoridades extravagantes e os onde costumava ocorrer e viajasse até o nosso e o envolvesse como uma
animais para dormir ou se reproduzir, do qual até os caseiros fugiram luva. “O que eu estou querendo dizer?”, repete a mãe olhando-o pela
(arrematando os poucos móveis que restam, única maneira de rece- primeira vez, com um misto de desprezo e compaixão. E responde para
ber os salários que lhes deviam) e que nem sequer lhes pertence total- si mesma: “Nada. Não estou querendo dizer nada”.
mente. Esperançosos com uma possível injeção de capital, puseram Ah, se ele tivesse conseguido responder toda vez que lhe fizeram
quarenta por cento da sociedade nas mãos de dois sócios – um outro essa pergunta. Como nunca se animou? Por que sempre preferiu ter
arquiteto, um empresário de turismo – ainda menos espertos que eles. alguma coisa para dizer, em vez de nada? Quem manda nele, quem o
“Pronto. Aconteceu”, sua mãe lhe diz uma tarde, ainda de casaco e com nomeou guardião disso que se supõe que as coisas querem dizer? Seu
a bolsa deformada pela pressão das duas mãos que tremem, sentada na grupo de inválidos, para encurtar a conversa, tão desesperados, sem-
borda da poltrona de vime de dois lugares, o único móvel digno desse pre, para saber tudo. Durante alguns meses, sem dúvida para disfarçar
nome, ainda que de uma feiura impertinente, que tem na pocilga de a evidência de que é um manteúdo, aceita projetar e comentar filmes –
um cômodo onde mora desde que Sonia o deixou: “Me separei. Estou uma espécie de cineclube particular – para um grupo de sexagenários
morando num hotel. E meu dinheiro acabou”. Ele, de pé, só consegue com inquietações culturais. Reúnem-se uma vez por semana, sempre
perguntar: O que você está querendo dizer? Veste o roupão de toalha alaran- na casa de um membro diferente do grupo. Não pagam muito, mas é
jada que tempos mais tarde, cansado de vê-lo patrulhar os corredores um pagamento rítmico, regular, a coisa mais parecida com um traba-
com aquelas velhas calças de jogging, levará à clínica onde o pai está in- lho que tem em muitos anos. Os inválidos – chama-os assim por causa
ternado. É a única coisa que lhe ocorre dizer. Passa por cima do detalhe do líder do bando, um contador aposentado brilhante e extrovertido
da separação. É uma coisa na qual já pensou tantas vezes que é como confinado a uma cadeira de rodas por uma doença degenerativa – são
se já tivesse acontecido. Nem mesmo a mãe lhe interessa. Só a frase lhe amáveis e hospitaleiros. As mulheres cozinham grandes banquetes
interessa. O que quer dizer a frase meu dinheiro acabou. A frase sozinha, étnicos – homus, faláfel, gulache com spätzle – com os quais coroam
em si mesma, além do esgar de maravilhado estupor da boca que a diz, cada reunião, se oferecem para reforçar o botão pendurado de seu ca-
além do tom da voz, baixo, apagado, o tom de quem fala em sonhos ou saco, mostram-lhe seus álbuns de família, apontando com ar casual a
sedado. Ele sabia, sempre soube. Mas agora é ela que sabe, a mãe – e ele sobrinha ou a neta que poderiam lhe convir. Os homens lhe oferecem
– é tão simples e radiante quanto a visão de um idiota – não consegue charutos, dão-lhe palmadinhas no joelho com confiança antes de per-
acreditar. É como se de repente acontecesse na realidade uma coisa que guntar em quem está pensando votar – quase todos vêm da esquerda,

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um passado a que já não pertencem mas que continua ditando seus na medida do possível, rachar, os belos cristais que os inválidos guar-
gestos, condutas, reações, maneiras de falar, como um país do qual um dam sem usar naquelas prateleiras de madeira escura e pesada sempre
dia se exilaram, ao qual não pensam voltar nunca, mas ao qual devem ameaçando desmoronar, e que conseguiram, ninguém sabe como, tra-
tudo e que não esquecerão jamais – e lhe oferecem suas versáteis cartei- zer intactas da Europa, da mesma Europa selvagem que degolou ou
ras de contatos caso ele precise de um crédito, comprar uma geladeira encheu de chumbo ou matou com gás todos os seus parentes, se não
com desconto ou mandar imprimir convites de casamento grátis. To- o distraísse de repente o novo integrante que se soma ao grupo, um
dos confiam nele e lhe atribuem uma autoridade que não tem, engolem homem magro, alto, de perfil aquilino, seco como um coveiro, com um
sem chiar, afundados num silêncio reverencial, as tralhas soviéticas ou vago prontuário militante (fornecia, segundo dizem, máquinas de im-
tchecas ou búlgaras que ele passa para congraçar-se – ou talvez acabar pressão para a organização Montoneros), que passa seis anos exilado
para sempre – com suas lendárias juventudes militantes. no Brasil, onde escuta e pronuncia pela primeira vez a palavra reciclagem,
No entanto, logo seu pudor se dissipa, ficam mais confiantes e e volta e faz fortuna importando (primeiro) fitas cassete de vídeo vir-
quando veem na tela uma dessas imagens densas, deliberadas, que não gens, fabricando-as (depois) numa remota fábrica patagônica, até que
conseguem explicar mas que reconhecem cheias de sentido, quase ex- se aposenta e monta com o estoque que lhe restou de videocassetes um
plodindo de sentido, eles se animam, por fim, levantam a mão trêmula pequeno selo de vídeo consagrado ao cinema de arte, La Tierra Tiem-
e perguntam: “O que isso quer dizer?”. Assim começa o desastre, a bla, cujos títulos – vanguarda soviética, neorrealismo italiano, expres-
epidemia, o efeito dominó. O que quer dizer o trenó açoitado pela neve sionismo alemão, Jancsó, Wajda, El chacal de Nahueltoro – figuram em
na bolha de vidro que cai da mão do moribundo? O que quer dizer a ordem alfabética na brochure que o contador coloca uma noite num de
velha bota de trabalho sem cadarços abandonada no abrigo antiaéreo seus bolsos e que estão à sua disposição – é só pedir – para as reuniões
em ruínas? O cerzido que a heroína abocanha no final, rodeada de bê- do grupo. Os outros inválidos o chamam de Rei, apócope benigna do
bados sem dentes nem teto? O velho pião que não para de girar? Os Rei da Fita Magnética (mas o Rei, modesto como é, e antimonárquico,
dois versos da canção que o protagonista inutilmente procura recordar não tem de ficar sabendo). Não importa quais sejam suas potestades,
e que só lhe vêm à cabeça no final do filme? O cristal vermelho, a pétala o Rei não detém a epidemia; acontece exatamente o contrário. Os “o
manchada, o relógio que marca as horas ao contrário naquele velho bar que quer dizer” aumentam. Talvez a novidade que representa no grupo
de porto português? fortaleça ainda mais o desejo de intervir e de saber; talvez o fato de os
Responde, naturalmente. Responde como o bom escravo que é do filmes que o grupo começa a ver e discutir provirem do próprio grupo
único trabalho verdadeiro que já teve, que ninguém lhe oferece e para lhes dê mais direito de se fazerem ouvir. Chaplin: o que quer dizer?
o qual não é designado, para o qual ninguém o contrata, pelo qual não Cinzas e diamantes: o que quer dizer? Stalker: que diabos quer dizer isso?
deve se apresentar a ninguém, com o qual nasce e com o qual morrerá: Mais uma dessas e ele vai explodir. Agora sim: vai embora mesmo. Re-
tornar-se responsável pelo significado das coisas. Mas não os suporta. ceberá pela última sessão e nunca mais o verão. Mas vem Ivan, o Ter-
Ele os abandonaria, daria o fora batendo a porta, fazendo tremer, e, rível – é um dos títulos estrela de La Tierra Tiembla, junto com A terra

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treme –, e se ele fosse embora, como planeja, perderia o melhor. Perde- o que quer dizer?”. Ele, que via a coisa vindo, pausou no ato, sem nem
ria a lição do Rei da Fita Magnética. sequer se virar para a tevê (conhece o filme de cor), e, com solenidade
Sexta-feira de chuva. Um apartamento amplo e confortável num ou certo cansaço, levantou-se para falar (é a última vez, pensa, a úl-
bairro próspero (não luxuoso). Impermeáveis e guarda-chuvas pin- tima!), e quando abre os olhos, voltando do brevíssimo blecaute em
gando em penitência no banheiro da empregada. Fumegam o café, o que se interna em busca de bibliografia sobre rituais de coroação, vê
chá, o charuto cubano do Rei, que, como sempre que projetam um oito rostos desfigurados pelo estupor, oito máscaras atônitas e uma, a
filme de seu catálogo, contempla o televisor com um amplo sorriso de do Rei, que, suspensa num esgar de espanto, enrubesce de repente e
satisfação. Ele monta guarda perto do aparelho. Sua perna trepida de irrompe num ataque de tosse. Ele – no maior pique – começa a falar:
impaciência. Está com o controle remoto na mão, os dedos prontos “Bom, nos fastos da Rússia dos czares, o ouro era...”. Nada muda no
para disparar tão logo um dos caçadores de sentido habituais – a pálida rosto dos inválidos. Ninguém o escuta, ninguém sequer registra que
irmã do fabricante de chocolates, o industrial gráfico que não para de ele existe, enfeitiçados que estão pela monstruosidade que contem-
esfregar o nariz, até mesmo o contador, que de uns tempos para cá, plam. Ele então se vira e descobre na tevê um primeiro plano descolo-
encorajado pelos companheiros, lança seus o que quer dizer com grandes rido, com o grão estourado de um filme de amadores, onde dois cace-
gestos acusatórios, como se a cadeira de rodas fosse um púlpito e ele tes colossais, nodosos como troncos, investem sincronicamente contra
um tribuno postergado – levante a mão e cuspa o estúpido pedido que uma mulher deitada de bruços. Não sabe se o solta ou se ele escorrega,
ele, uma vez mais, talvez a última, para sua vergonha, fará todo o pos- mas o controle remoto, também atônito, cai no chão virado para baixo
sível para responder – mas psiu!: acabam de coroar o jovem e resistente e a fita começa a rodar outra vez. Uma mudança de plano. Um metro,
czar. A coroa já cinge sua cabeça, já lhe entregaram o cetro (para não um metro e meio de distância, e a cena é clara como a água, como a
dizer que ele mesmo, sinal de avidez pouco elegante, o arrebata, com cascata de ouro que cai feito dilúvio sobre o jovem czar de todas as Rús-
sua mão anelada, de uma espécie de arcebispo) e o globo com a cruz, e sias, como o português das exclamações de êxtase que faíscam, vaga-
agora o velho energúmeno cheio de pelos entoa seu hino com sua voz -lumes obscenos, na sala: um garanhão mulato de pé, com as pernas
de além-túmulo quando dois cortesãos entram em cena e se posicio- ligeiramente flexionadas, abastece o buraco da bunda; o outro, branco,
nam dos lados de Ivan, dois degraus acima, onde recebem de um par deitado sob a mulher, arremete contra sua boceta enquanto espreme a
de servos duas grandes vasilhas que sustentam nos ombros. Explode carne de suas nádegas com seus dedos longos de masturbador. Cinco
o coro. Os cortesãos entornam suas vasilhas e uma chuva de moedas segundos depois, como um monstro tragado pelos lábios da caverna
de ouro cai sobre a cabeça do czar, cai, cai, não para de cair, uma longa que o cuspiu, o trio brasileiro volta para o além de onde veio e as moe-
cascata de ouro que resvala sobre a coroa e os ombros e se derrama no das de ouro recomeçam sua interminável queda.
chão, e quando tudo indica que a chuva de ouro não vai parar nunca, a Como gostaria daquilo, ela, sua mãe, agora, com toda a força de sua
irmã do fabricante de chocolates descola um pouco as nádegas macias alma desvalida: que o dinheiro chova para ela. Diz isso assim, com os
da poltrona de brim mostarda e, apontando para a tevê, diz: “Professor, olhos perdidos na moldura do teto, como se esperasse ver gotejar as

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primeiras notas daquele cantinho que alguém restaurou com um im- Não, não é a ambição, mas a absoluta falta de esperança, o vazio
plante tosco de gesso, onde uma aranha dorme como um novelo no súbito, gelado, que abre em seu peito a evidência de que já não tem
fundo de sua teia enquanto o cheiro de sua presa desliza em seu sonho. um tostão. É isso que condena sua mãe a esperar este milagre insano:
Ele demora um pouco para perceber até que ponto esse desejo não é fi- que chova dinheiro. Menos por convicção do que por tê-los ao alcance
lho da ambição, nem desse rancor tóxico, tão amorosamente cultivado, da mão, frescos como chagas, começa pelos milagres sensatos e se
que uma majestade acumula ao longo de décadas de exílio, indiferente agarra com unhas e dentes à ideia de que a Besta mais cedo ou mais
em público até às notícias de sua comarca que à noite recorta e aprecia tarde será vendida, não importa o estado em que esteja, não importa o
na intimidade sempre um pouco úmida, ou sufocante, ou barulhenta, que o tempo e os invernos e a umidade e o mato e os bandos de squat-
de seu quarto alugado. A primeira coisa que pensa, de fato, quando ela ters de mochila tenham feito com ela, e lhe devolverá pelo menos uma
confessa sua bancarrota, é que o que confessa na verdade é um crime, parte de tudo o que perdeu. Faz muito tempo que não vai lá, não teste-
um crime de lesa-majestade, como o abuso de crianças ou o genocídio, munhou nem metade das metamorfoses que sofreu, já não consegue
e que a vítima do crime é ele, o filho, despossuído, pelo simples ato da nem imaginá-la. Todas as imagens que tem da casa são anacrônicas. Só
confissão, de tudo o que lhe caberia por direito. Ele pode dever a vida se lembra dela em sonhos, nas poucas vezes em que consegue dormir
a ela, como se diz. Mas ela lhe deve dinheiro, muito dinheiro. Por uma sem interrupção, quando a recompensa por esse interlúdio roubado
fração de segundo atarefada, cheia de madrugadores, aspirantes a le- à insônia – um milagre quase mais inaudito que a chuva de dinheiro:
trados carregados de expedientes, corredores onde o som ecoa, cafés tem sua mesa reservada no bar do hotel e o vigia noturno apalavrado
de máquina, imagina-se acionando a mãe e levando-a à justiça, chega a para que lhe acenda alguma luz e lhe sirva um chá ou um cálice de
ouvir-se vociferando sua alegação de filho espoliado diante do juiz, su- conhaque quando desce de olhos esbugalhados às três e quinze da ma-
bitamente degradado – na figura de um secretário de ombros estreitos, nhã – é a visão em câmera rápida de uma espécie de cidadela rastejante
com caspa, que para de digitar para perguntar-lhe: “Excesso é com x e c, que cresce o tempo todo em todas as direções, até mesmo sob a terra,
né?”. Mas quem vai intimar como testemunhas? O avô. O avô, repatriado segundo um sistema de cubos encaixados dos quais saem e nos quais
pelo lapso solene de uma audiência mediante algum subterfúgio mediú- entram animaizinhos assustados de todo tipo, porquinhos-da-índia,
nico... O avô, do qual sua mãe, tempos depois, quando do nada que con- toupeiras, tatus-canastra, cobaias de um experimento inútil que algum
fessa essa tarde que lhe restou lhe reste ainda menos, lhe contará, roxa figurinista psicótico decidiu agasalhar com minúsculas camisetas de
de raiva, como se o fato tivesse acabado de acontecer, e não há cinquenta rúgbi. “Tem que valer alguma coisa”, pensa. E se não for a casa, se não
anos, a história de quando volta do colégio e, ainda entusiasmada com forem os terrenos, o cimento, os tijolos, os caixilhos das janelas, as
o doutrinamento na matéria que teve de manhã – “A poupança é a base lajes, os azulejos, alguma coisa tem que valer, pelo menos – como é lei
da fortuna” –, pede para ter uma caderneta de poupança e ele, empur- que aconteça nessas aventuras em que o herói, por mais carismático e
rando-a um pouco, como se ela estivesse obstruindo seu campo visual, virtuoso que seja, deve boa parte de sua própria coragem à monstruo-
lhe diz que ele tem “conta de banco, não cadernetinhas de poupança”. sidade do arqui-inimigo que enfrenta –, o papel trágico que a Besta

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desempenhou em sua vida, o modo como em dez anos a casa literal- ponham o mundo inteiro em seu nome, é a cifra ridícula, mesquinha,
mente arrasa com tudo. desproporcionalmente triste, que uma construtora uruguaia acaba lhe
Sentada junto ao janelão do hotel, de camisola, com seu belo im- pagando, o último – o único que aceita ver a casa – de uma longa lista de
permeável italiano sobre os ombros, sonha acordada, um pouco em- compradores que desertam um por um depois de ver as fotos: dez mil
briagada pelos vapores do conhaque, com um caçador de truculências dólares, a serem divididos meio a meio com o ex-marido.
imobiliárias, uma dessas aves de carniça que patrulham em Hollywood À beira das lágrimas, mostra-lhe seus cinco mil – um punhado de
os bairros das estrelas com o talão de cheques e a esferográfica a postos, notas de cinquenta dentro de um envelope sujo, disforme, e colado no
em busca de mansões abandonadas ou decrépitas, mas com o mármore envelope, como um passageiro clandestino, um bilhete de loteria cuja
do banheiro salpicado de sangue, os tetos de ouro lavrado com buracos cabeça desponta sem pedir licença e que ela esconde com uma vergo-
de bala, os alpendres estampados com restos de massa encefálica. Por nha contrariada, empurrando-o para o fundo da bolsa – à luz fluores-
que não? Por que ela não pode ter a bênção de um desses avaliadores de cente do bar onde o encontra depois de recebê-los, um lugar estranho,
desgraças? Tem de valer alguma coisa. Mas se lhe perguntarem o que todo de vidros polarizados, com garçonetes que atendem de roupa de
quer dizer “alguma coisa”, como ela mede “alguma coisa”, não saberia baixo e usam a mesma peruca preta, como réplicas de um original do
o que dizer. Ninguém saberia o que dizer – como não sabe o que dizer ou Crazy Horse, a duas quadras do porão onde funciona a filial Buenos Ai-
não entra em acordo o colégio de especialistas reunidos para avaliar a res da construtora, ou talvez o covil de seu time de contadores e advo-
obra-prima de um artista idiota, a obra idiota de um artista de primeira. gados. Levanta a mão com o envelope para chamar a stripper mais pró-
Quando põe os pés no chão e reconsidera, e decide que só a modéstia xima – um antro, sim, mas o cheesecake é imbatível – e ele pesca o olhar
a salvará, pensa em pouco, pensa apenas num extra, na diferença que de cobiça assassina com que um freguês vizinho segue seu gesto. “Que
a afaste sem exageros, mas de forma nítida, do pesadelo do qual não me roubem”, abandona-se a mãe, e sem parar de chorar agita alegre-
consegue acordar. Mas espera, e espera, e esse pouco modesto que a mente as notas no ar, tentando distrair a stripper do cliente que lhe pede
contentaria não chega, e a Besta, mais uma vez, volta a ser tudo para detalhes sobre o menu enquanto olha seus peitos: “O que são cinco mil
ela, o que lhe tirou tudo e o que pode devolver-lhe tudo, e então abre a dólares comparados com tudo o que perdi?”.
janela de seu quarto de hotel em plena noite e assim, de camisola, com Não era exatamente isso que tinha em mente quando pensava em
o impermeável italiano escorregando pelos ombros e caindo no chão dinheiro que chove. De modo que não o utiliza para mitigar ou preve-
sem uma ruga, só com as rugas previstas por seus estilistas, grita para nir necessidades, mas como uma espécie de compensação reparadora,
o mundo, para o mundo adormecido da rua Uriburu, a cifra astronô- para indenizar-se pelo mal-entendido do qual mais uma vez foi vítima.
mica pela qual está disposta a conversar – só a conversar, depois vere- Faz sua pequena mala, fecha a conta no hotel e espera até a noite para
mos – sobre a venda da casa. O evidente, em todo caso, é que o que sua se despedir do vigia. E depois se muda e gasta até a última nota de
mãe nunca tem em mente, nem quando é modesta e só quer esquecer, cinquenta num hotel um pouco melhor (três estrelas e meia, embora
nem quando é tomada pelo desejo de vingança e exige aos gritos que a meia estrela às vezes se esqueça de brilhar no letreiro de neon) loca-

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lizado na Juncal, a duas quadras do anterior, que tem elevador, tevê a aproveitando a confusão, enfia um papel dobrado na mão dela, pede
cabo e um cesto com guarda-chuvas no lobby para os dias de chuva. que o leia quando estiver saindo e já chegando à porta, quando o mo-
Pensava em algo mais imprevisto e mais drástico, o tipo de dilúvio torista sai do carro e começa a se dirigir até ela, beija-a muito depressa,
que se desencadeia sem aviso e, para o bem ou para o mal, muda tudo, roçando o lado de sua boca com os lábios. Não a vê mais. Mudam-se e
como quando um médico põe uma chapa à contraluz, limpa a garganta trocam de escola, ou vão morar em outro país. Mas cinquenta anos de-
e aponta um dedo para a irrisória nuvenzinha branca que hesita em pois, mais milionária, entrevada e sozinha do que nunca, a quem, senão
se formar no centro do pâncreas. Pensava num acontecimento, nisso a ela, à mãe dele, Angela escreverá outra carta pedindo para se encontra-
que nos folhetins sempre irrompe de maneira intempestiva, através de rem, a quem senão a ela dirá que está doente, pondo seus assuntos em
um telefonema – a campainha que rasga de repente a quietude de um ordem, e que depois de avaliar, e descartar, uma lista bastante exígua de
lar pouco familiarizado com o mundo exterior – ou de uma carta, um candidatos naturais decidiu deixar para ela toda a sua fortuna.
envelope manuseado e exausto, com o endereço mal escrito, de modo Espera esse tipo de chuva. Mas algum dia ela virá, se a espera tanto?
que antes de chegar ao destino tenha tido de se perder, ir e vir várias Virá, se mais que chuva são pagamentos adiados, o tipo de satisfação
vezes, e até correr o risco de nunca chegar. pendente que nenhum credor jamais esquece de verdade, no mínimo
Angela, por exemplo. Aos doze anos fica amiga de uma garota ma- por saber que ficou anotada em algum canto de seu caderno de devedo-
gra e arisca, de joelhos muito ossudos, que passa os recreios grudada res? Vencendo o pudor que sente por comunicar sua mudança de vida,
na grade no pátio, tentando esconder o monstruoso sapato com plata- divulga o endereço e o telefone do hotel onde está morando. Entre as
forma que remata sua perna direita. Empresta-lhe com frequência seu ligações que recebe, e que, feliz da vida, manda a recepção do hotel
transferidor e sua régua, divide seus lanches com ela, deixa-a colar dela filtrar, há apenas uma que não reconhece. Repete em voz alta o nome
nas provas. Esteja ganhando ou perdendo – o tédio é o mesmo, nos que lhe anotaram, rastreia-o (sem encontrá-lo) na agenda de telefones.
dois casos –, deserta do jogo da amarelinha ou do jogo do elástico e Consulta uma ou duas dessas velhas amigas que o tempo transforma
cruza cabisbaixa todo o pátio até a grade e entra com algum receio na em memória de emergência. Ninguém se lembra dele. Desconhecido,
órbita de ostracismo dela. Fica com ela todo o resto do recreio, as costas sem rastros nem rosto, não localizável. “É esse”, pensa. Ali está o se-
contra a grade, falando mal e rápido, como uma espiã apressada, para gredo: que não haja nuvens nem trovoadas, que a chuva venha real-
transmitir a informação que colheu, de todos e de cada um dos colegas mente do além. Arma-se de coragem (uma sesta, uma ducha, dois cáli-
com os quais simpatiza ou finge simpatizar durante o dia, até que An- ces de conhaque, três linhas em que escreve como seu espanto deveria
gela, depois de um breve interlúdio de assombro ou timidez, se une a ser ouvido, com que tom e quanto deveria agradecer) e liga. Atende
ela com um frenesi atrasado e começa a distribuir seus próprios açoites, uma voz anasalada, que a cada tanto afina em artificiosos falsetes de
os sapatos descosturados de Berio, o mau hálito de Melnik, os cravos de dramatismo. Escapa-lhe seu sobrenome de casada – a emoção do re-
Venanzi, os peitos falsos de Serrano. Passam meses assim. No último torno do telefonema, sem dúvida –, deslize que tenta disfarçar tossindo
dia de aula estão saindo do colégio em manada, como sempre, e Angela, até que se dá conta de que seu interlocutor não conhece o de solteira.

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Trabalhou na bolsa. Um dia manejou com bastante solvência umas a porta. Uma ocasião, a sós com o cadáver, inclina-se sobre seu rosto,
ações que a mãe comprou a conselho do ex-marido (e depois vendeu volta a ver de perto as rugas da testa, que conhece tão bem, e o beija. A
mal, entre a fase Pousada Ecológica e a fase Tempo Compartilhado ii, temperatura do corpo o faz retroceder. Um frio de caverna, de mármore,
para trocar todos os pisos da Besta). Agora trabalha por conta própria, abismal e compacto, um frio que nada, nunca vai alterar, que continuará
sempre em finanças. Está oferecendo algumas aplicações muito vanta- assim para sempre. Sua mãe, a primeira a chegar, para sua surpresa, a
josas, e repassando sua carteira de velhos bons clientes... Poderiam se única que leva ao pé da letra o horário de início da cerimônia, velou o
encontrar para um café? Conseguiu seu telefone novo com o ex-marido. tempo todo de pé, com seu guarda-chuva e sua bolsa na mão. Fiel a uma
A propósito: como é morar num hotel? velha lei (a pontualidade e o estoicismo como formas de compartilhar a
É ela que sonha com dinheiro que chove, mas quem acaba se mo- dor alheia), não quis sentar-se, não quis água, nem café, nem aquelas
lhando é ele. Seu pai morreu. Certa noite, espera que passe a última repulsivas balas mentoladas que um macilento corvo de terno passa ofe-
ronda de enfermeiras, desfaz-se de fios e sondas (o prazer mórbido recendo de vez em quando num prato, com o outro braço ligeiramente
do estalo produzido pela fita adesiva ao se descolar) e vai descalço, dobrado nas costas, como o garçom de um restaurante pretensioso.
com seu roupão laranja, até o quarto da frente, onde um velho meio- Há pouca gente no velório, na maioria rostos difusos, que não re-
-de-campo do Boca Juniors conectado a sua máquina de diálise o es- conhece mas que se empenham em lhe fazer sinais de algum lugar do
pera para jogar uma partida de pôquer. A enfermeira do plantão no- passado. Conhecidos. Seu pai viveu cercado de gente transitória e fur-
turno – a que, alta e severa, não aceita gorjetas – encontra-o sentado tiva, unida a ele por laços conjunturais ou contingentes. Tenta lembrar
numa cadeira ao lado da cama do meio-de-campo, muito rígido, com em quem o fazem pensar enquanto aceita os abraços, os tapinhas nas
uma trinca de setes na mão, a cabeça levemente inclinada para a es- costas, as palavras de angústia ou alento. Reconhece um par de em-
querda, em atitude de elegante desconfiança, e a outra mão apoiada na pregados da agência, o cambista – agora francamente obeso – que
borda do móvel de rodinhas que faz as vezes de mesa, onde a espera- troca dólares para ele durante a reforma da casa, o porteiro de um edi-
vam o monte de cartas (com o sete de paus na primeira posição) e um fício na Belgrano onde a três por dois fica preso no elevador, a mulher
copo plástico com dois dedos de uísque. loura, ligeiramente estrábica, funcionária da Air France ou da Alitalia,
O caixão o deixa menor e mais feio. Um pelo muito branco e com- que quando menino, quando acompanha o pai em sua ronda de pa-
prido emerge do bigode, faz um duplo salto mortal e se incrusta no lá- gamentos, sempre pergunta, apontando-o, se não pode lhe fazer um
bio superior, de um dos lados, bem perto da comissura. Terão recortado igual. Mas não são eles, e sim cinco estranhos compungidos – um dos
sua barba? Discute com um funcionário da agência funerária por causa quais, muito bronzeado, tenta sufocar uma crise alérgica apertando
da mortalha que vestiram nele, branca, de linho, muito parecida com a um lenço no nariz –, os que dividem com ele o peso do caixão quando
que usa no hospital quando não há mais esperanças, porém mais vapo- chega a hora, e os carros fúnebres ficam em fila dupla, e as pessoas
rosa, quase transparente, uma roupinha ridícula e feminina, como de começam a se dispersar em racimos de obscura tristeza, alguns para
anjo. “Por que não põem uma harpa nele, também?”, diz, e sai batendo unir-se ao cortejo até o cemitério, outros para ir embora. Sua mãe irá

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embora. Abraça-o uma última vez, cravando-lhe um pouco o cabo do aberta, e ronca com um fragor de histórias em quadrinhos, como se
guarda-chuva entre as escápulas, e ele, de repente, cai no choro como houvesse alguma máquina defeituosa embutida em seu nariz. Com que
um menino, como um menino cai quando chora. Nos braços desse felicidade ficaria dormindo. Começa de fato a dormir, a sonhar – um
corpo encolhido, onde não poderia dizer nunca que caberia, tem pela take de sua mão empunhando uma maçaneta, uma porta que dá para o
primeira vez a certeza de ser o único laço que já existiu entre a mãe e o jardim atapetado de água, o grasnido de uma espécie de tucano de papel
pai. Ela enxuga com um dedo as lágrimas de seu rosto, explica que a que passa adejando –, quando a porta se abre e com uma delicadeza
cremação é demais para ela e pede vinte pesos para o táxi. suprema, como se fosse invisível ou parte de seu sonho, senta-se a seu
Batidas de portas se fechando, motores sendo ligados, uma alavanca lado o desconhecido que espirrava enquanto levava o caixão.
de câmbios que grunhe, a espuma monossilábica das despedidas. A Em menos de um minuto – o tempo que o carro leva para arrancar,
normalidade – o sinal vermelho, a loja de artigos de limpeza aberta, a desviar do carro da frente e sair para a rua sob o olhar hostil dos corvos
mulher varrendo sua sacada com um lenço na cabeça – o fere como um da agência funerária – dissipam o mal-entendido dos carros. Não, o
escândalo. Alguém descola do cartaz de pano preto as letras brancas carro não faz parte do cortejo: só estacionou onde não devia. É o táxi
que compunham o nome de seu pai e as substitui por outras. Soletra: que o desconhecido pega em Ezeiza, recém-chegado do Brasil, para ir
g-r-o-l-m-a-n. Poderia jurar que é com dois enes. Senhor? Senhora? diretamente ao velório de seu pai e agora ao cemitério. Não, não tem
Terá de voltar às três, quando começar a cerimônia Grolman, para ave- por que descer. Ao contrário: é uma honra para o desconhecido divi-
riguar. Procura alguma coisa ou alguém que lhe diga o que fazer, o dir a corrida com ele (espirro), por mais triste que seja. Ele sorri, um
que dizer, onde ficar: um cartaz, um manual de instruções, uma des- pouco atordoado. Avançam por uma avenida ladeada de lojas de peças
sas promotoras de maquiagem espalhafatosa e saia justa que em dois de reposição para carros. Como um mágico enluvado ou um especia-
minutos ensinam a adquirir créditos ou configurar telefones de última lista em infecções, o motorista controla o volante quase sem tocá-lo,
geração. Como é possível que “comportamento no velório dos próprios apenas encostando a pele dos dedos, e parece mudar as marchas com
pais” não seja matéria escolar obrigatória? Esbarra numa porta aberta o impulso de um gesto, sem entrar totalmente em contato com o câm-
e mergulha sem pensar num carro com cheiro de couro, um couro tão bio. “Esta é a Warnes, não é?”, diz o desconhecido, admirando os mos-
perfumado que parece falso. Esperam durante alguns minutos. Um truários com pneus, as flâmulas de Fórmula 1 nas vitrines, os cartazes
trio de corvos delibera junto do carro da frente, o que leva o caixão. O tatuados com marcas de carros, os bonecos infláveis que gesticulam
motorista do seu tem orelhas de abano, cabelo bem curto e um colar para atrair clientes. Faz vinte e dois anos que não pisa em Buenos Aires,
de verrugas diminutas cruzando a nuca. Ele se distrai contemplando e na outra vez (suspiro) também não conseguiu se encontrar com seu
a cidade polarizada, opaca e escura, amortecida, como um entardecer pai. Estende-lhe a mão macia e suada, com uma pulseira de miçangas
nublado de inverno. Suas pálpebras pesam, sente o corpo entorpecido, multicores. “Beimar”, diz. “Milo Beimar.”
como que acolchoado por camadas de lã úmida. Roça-o de repente uma “Beimar... Beimar”, repete sua mãe, como se saboreasse um quitute
lembrança muito antiga do pai: adormeceu vendo tevê, de boca muito pouco confiável. O nome não lhe diz nada. Guarda a imagem que viu

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no velório: lembra-se do terno elegante, bem cortado, caro, e da camisa coce cineasta engajado, insolente, ejetado por razões de rivalidade se-
e da gravata pretas de mafioso, e daquele bronzeado laranja-cenoura, xual da minúscula célula clandestina que registra as primeiras imagens
tão Sapolán Ferrini... Mas o rosto é como uma parede branca. Lembra- de La hora de los hornos – meia hora de feroz corte de cana na província
-se de ter se perguntado quem ele era, mas também se pergunta sobre de Tucumán – e da Argentina por motivos político-delituosos; portador,
noventa por cento dos rostos com os quais topa no velório. Não reco- ao embarcar no aeroporto de Ezeiza, de um passaporte falso irrepreen-
nhece ninguém, e não estranha. Já é assim enquanto está casada com sível e de uma passagem Buenos Aires-Rio de Janeiro e de um punhado
o pai. Todo dia uma cara nova, gente que aparece e desaparece sem de dólares autênticos suspeitos (as três coisas fruto da gestão de seu
deixar rastros, vozes que ligam, perguntam por ele e desligam e nunca pai); exilado no Brasil, adaptado à indústria do cinema publicitário,
mais são ouvidas. Não tem tempo sequer de anotar seus nomes, de afogado em dinheiro e em drogas, nas jovens drogas de fins dos anos
modo que também não pode lhe perguntar por eles. Que foi feito de 70; náufrago, nos 80, do dinheiro e das drogas dos 70, que lhe custam
Barbat? E de Desrets? Você não vê mais o Desrets? Amigos fantasma. um septo nasal, um casamento e a parte que não vai parar nas mãos da
Em algum momento começa a pensar que todos são extras, figurantes ex-mulher do patrimônio adquirido trabalhando por mais de dez anos
que o pai, sempre tão sensível ao olhar dos outros, contrata para simu- na imagem publicitária da Rede Globo. Está nessa, sem trabalho, sem
lar uma vida social, uma rede de contatos versátil, capaz de conferir-lhe dinheiro, sem família, vivendo de favor no quarto de empregada do es-
a imagem de homem do mundo sem a qual não poderia viver, como as plêndido apartamento em Ipanema do redator júnior da agência cujos
camisas de monograma ou as abotoaduras nos punhos das camisas lhe roteiros passou uma década filmando, quando sua sorte muda. Uma
servem para atribuir a si próprio uma estirpe que não tem. noite sai da casa de um amigo, um dos poucos que lhe restam, além do
Gosta da ideia da mãe. É tortuosa, precisa, tem a dose justa de ran- redator júnior, completamente transtornado depois de horas vendo tevê,
cor que as ideias necessitam para abrir caminho no mundo e acertar no tomando a cerveja ruim e fumando a boa maconha brasileira, caminha
alvo. Figurante ou não, no entanto, Beimar era e é alguém. De repente algumas quadras sem rumo (é uma noite fresca, sopra da Lagoa uma
era o Homem que Devia Dinheiro a seu Pai – e bem no momento em brisa agradável que seca seu suor e no céu sem lua nem estrelas cruza de
que diz isso vê o título impresso num cartaz de filme de terror barato, leste a oeste o Boeing 747 que se precipitará de cabeça no Atlântico nas
em grandes letras vermelhas que oscilam como chamas – ou (mudança primeiras horas do dia seguinte) e sofre de repente a queda de glicemia
sutil de ponto de vista ou de gênero: terror para crianças) o Homem que cujo assalto esperava sofrer um pouco mais tarde, quando já estivesse
seu Pai Vai Procurar Toda Noite no Rio de Janeiro deixando-o Sozinho são e salvo em sua toca no apartamento do redator júnior, tendo, ao al-
e Insone no Hotel Glória. Para resumir a tortuosa folha de serviços que cance da mão, as porções insanas de sorvete que seu anfitrião acumula
Sapolán recita em meio a espirros entre a avenida Juan B. Justo e um ce- no freezer para casos como o dele. Tem a boca muito seca, os contornos
mitério da Ingeniero Maschwitz sem túmulos nem lápides, semelhante de seus lábios ardem. Num surto de autoconsciência sinestésica, ele os
a um campo de golfe, puro tapete de um gramado tão verde e parelho vê brilhar na escuridão, traçados por quatro finíssimas linhas de focos
que não nasceu na terra a terra capaz de produzi-lo: Milo Beimar, pre- amarelos que piscam, como uma pista de aterrissagem em plena noite,

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e vão se apagando aos poucos, como se os lábios estivessem a ponto que de sua imaginação, não fosse pela urna que viaja a seu lado, no
de se apagar. Está louco por alguma coisa doce e não há quiosques à banco de trás do carro, e pelo santinho que segura entre o polegar e
vista. Só o que tem são dois desses chicletes de menta sem açúcar que o indicador. Como foi parar ali? Um dos corvos deve tê-lo distribuído
uns pseudodentistas de olhos claros e pele muito esticada promovem entre os parentes no final da cerimônia. Não tira os olhos dele desde
ultimamente pela tevê com gizes, ponteiros e argumentos falazes, redi- que deixam o cemitério, admirado com a técnica gráfica – uma foto
gidos pelo júnior que o asilou e por seus sequazes da agência. Melhor de seu pai retocada, colorida em tons pálidos, como de história em
que nada. Enfia os dois chicletes juntos na boca. Um minuto mais tarde, quadrinhos ou ilustração de livro infantil – que suaviza os traços de seu
o tempo que eles levam para perder totalmente todo rastro de sabor, já rosto e lhe dá a bonomia sorridente de um santo. Até ter de mudá-lo de
não sente o menor desejo de doce. Os níveis de açúcar no sangue se mão para receber o cheque com que Beimar dá por saldada a dívida que
estabilizaram por completo. Vai dormir. Na manhã seguinte se levanta tem há quanto tempo, quarenta anos?
cedo, toma um banho e liga de um telefone público – ninguém menos Alguém, talvez para tranquilizá-lo, talvez farto de ouvir seus discur-
confiável que o redator júnior – para o advogado que tocou seu processo sos sobre o comportamento financeiro errático de sua família, um dia
de divórcio, a quem deve o dobro ou o triplo do dinheiro que deve a lhe diz que dívidas não se herdam. A frase lhe produz um efeito de bál-
seu pai, e o põe a par de sua descoberta noturna. Dois meses depois, samo imediato. Tem o ar impessoal, ao mesmo tempo sereno e irrefutá-
juntos, no mais absoluto sigilo, selam um acordo extraoficial com a vel, de lei que não se discute. Mais tarde, um amigo a quem a confia com
corporação que fabrica os chicletes de menta sem açúcar: a companhia um alívio entusiasta, como quem divide o remédio recém-descoberto
transfere para sua quase dessangrada conta corrente uma cifra milio- que o salvará, lhe diz que não, que de fato não se herdam – desde que o
nária (da qual viveu, vive e provavelmente viverá sem precisar trabalhar morto, ao morrer, não tenha deixado nada com que pagá-las. O matiz
até morrer), e ele, por sua vez, se compromete a retirar a ação judicial é inesperado mas não chega a sobressaltá-lo. Sabe que o pai, além do
por fraude maciça e atentado contra a saúde pública que seu advogado limão seco, do pé de alface murcho, das duas velhas malas cheias até
redige numa manhã e parte de uma tarde. em cima de fotos, postais e cartas, dos paletós de tweed no armário e dos
Daí, dessa iluminação genial experimentada numa noite tóxica, discos de jazz, não deixou nada. Mas com o cheque em seu poder fica
sem esperanças, parece lhe chegar de repente – como uma aparição um pouco alarmado. Agora há alguma coisa. O que aconteceria se agora,
sagrada abrindo caminho entre uma folhagem de nuvens negras – o de repente, como exércitos de formigas famintas, acudissem em massa
cheque que Beimar preenche com sua letra tosca, e assina e arranca os credores que antes não moveram um dedo porque, como ele, davam
com um puxão seco de especialista e lhe entrega no táxi enquanto vol- por certo que não havia nada? Consola-o o fato de o cheque, como a
tam da cerimônia de cremação. Não faz nem meia hora que ela termi- dívida, não estar acompanhado de nenhuma prova, nem recibos, nem
nou e já lembra muito pouco dela, quase nada, como se as próprias documentos, nada, nenhuma testemunha, nenhum testemunho. É ou-
chamas que calcinam o corpo de seu pai tivessem devorado os rastros tra dessas operações informais, executadas em furtivos têtes-à-têtes entre
da cerimônia. Poderia até jurar que não aconteceu, que foi só um tru- particulares, fora de toda moldura legal, segundo regras não escritas e

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até nunca estabelecidas, mais aparentadas com um encontro de amor volta à realidade, tivessem-no confinado ao páramo abstrato onde vaga,
clandestino que com uma transação econômica, que pouco a pouco, nem imaginação nem realidade, mas o que resta, desolado e brilhante
numa escala macroscópica, vão ganhando espaço e se consolidando e e sem nenhum matiz, quando já se perdeu o reino da primeira e a se-
acabam se impondo como uma ordem alternativa, cheia de vícios, con- gunda é a terra do opaco por excelência, do que é insuportável.
tagiosa como um organismo pesteado mas tão vital e poderosa quanto Não pensa nem sequer no básico: no cálculo que Beimar deve ter
o organismo legal com o qual nasceram para competir. feito para chegar à cifra que escreve no ângulo superior direito do
Mas por alguma razão, mesmo em êxtase como está, sabendo-se cheque sem a menor hesitação, como se a tivesse na cabeça há muito
milionário da melhor maneira imaginável, a única que a mãe e ele tempo, muito antes até de receber por telefone, por intermédio de um
acham irresistível, incomparável, milionário por obra e graça dos mor- amigo comum, a notícia da morte de seu pai, que não encontrava ha-
tos, não desconta o cheque logo em seguida. Adia o momento diver- via mais de trinta anos, e decidir pegar o primeiro avião para Buenos
sas vezes, justificando-se com todo tipo de razões insustentáveis. Tem Aires a fim de chegar a tempo para o velório. “Te enganaram, na certa”,
medo, só isso. Não precisa nem imaginar os olhos dos credores cinti- diz a mãe quando ele confessa que aceitou o cheque sem fazer per-
lando, emboscados entre arbustos, para deixar com um gesto apreen- guntas. Ele omite o montante, mas assim que guarda a informação
sivo o cheque no fundo da gaveta onde o guarda ao voltar do cemitério. para si, por prudência, a própria palavra, montante, refulge por um mo-
Olhar o fundo da gaveta é suficiente. O cheque é a prova, a testemunha, mento em sua cabeça, prenhe de estranhas possibilidades, mais valiosa
o documento. A caminho do banco, no dia em que se decide, para e que qualquer quantia de dinheiro que pudesse designar. Não lhe diz
pensa: e se for falso? E se não tiver fundos? E se assim que ler o nome quanto, só que é suficiente. A mãe também não pergunta nada. Mas é
do titular da conta ou digitar o número, a moça do caixa franzir o ce- justamente a modéstia da palavra “suficiente”, sua razoabilidade, que
nho, parar de sorrir e lhe pedir um minuto de paciência (“caiu o sis- lhe inspira suspeitas. Ninguém paga uma dívida de trinta anos assim
tema”) e apertar com o dedo que come às dentadas desde os treze anos de repente sem que haja alguma exigência no meio, com uma cifra
o botão vermelho disfarçado sob sua mesa, alertando a meia dúzia de “suficiente”. E quem a paga com tal boa vontade sem dúvida paga me-
agentes da Interpol que montam guarda à paisana no banco? nos do que deve, muito menos do que deveria se fizesse bem as con-
Mas nada disso acontece. Ou sim, mas não o que ele mais teme, o tas, com o cálculo de juros, atrasos e multas que exige a atualização de
que o terror já consumou em sua imaginação – único lugar, diga-se de uma obrigação não paga ao longo de tanto tempo. Embora não lhe ne-
passagem, onde aceita que as coisas aconteçam –, e sim outra coisa, gue de todo o crédito – porque a quantia, fantástica como é, não deixa
não necessariamente melhor que o que ele teme, mas diferente e, por- de despertar nele especulações igualmente fantásticas –, ele encara a
tanto, irreconhecível, miragem e pesadelo ao mesmo tempo, e ele per- desconfiança da mãe como aquilo que é: o ato reflexo de alguém para
manece alguns dias mergulhado num assombro sem forma, uma espé- quem o dinheiro, por definição, é aquilo que nunca é suficiente, muito
cie de imbecilidade, vivendo uma vida de favor, irreal, que não poderia menos o dinheiro que vem dos homens, raça desprezível de prófugos,
descrever, como se os fatos de fato consumados, longe de trazê-lo de pusilânimes, solitários, mas acima de tudo uma raça de avaros incurá-

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veis. Tem sensibilidade para o que é muito ou pouco, e é mesmo boa, com um suspiro de desânimo, infiltrando sua indignação no tom de
muito boa – como se o talento ou o bom senso que lhe faltam para os patrãozinho impaciente com que dá o endereço para o motorista do
assuntos de índole prática no que diz respeito a dinheiro florescessem táxi – não foram feitas pensando nela, nem em quando ela era jovem
aplicados a elucubrações ociosas, sem a menor consequência – para e bela e rainha e não precisava delas (mas quando, meu Deus, quando
avaliar até que ponto o que pedem ou o que se paga por tal ou qual bem foi isso?), nem agora, que não reina e precisa delas mais do que nunca.
ou produto é sensato ou um absurdo inadmissível. Mas que não lhe Em vez de fazer contas nas quais se perderia no meio do caminho, de-
venham com essa de que uma quantia de dinheiro é “suficiente”. Para sorientado pela imensa quantidade de coisas que ignora, sem chegar a
cima dela não, por favor. Aliás, ela precisa de um pouco de dinheiro nada, prefere se perder de saída, de propósito, pensando no caminho
para retirar seus óculos de leitura: uma haste quebrada, uma nova cor- sinuoso e acidentado que aquele dinheiro percorreu antes de chegar
reção, alguma coisa nesse estilo que enuncia às pressas e não se dá ao até ele, um pouco como um astrônomo, pensa – como se as coisas da
trabalho de explicar, como se explicar fosse humilhar-se e contradis- astronomia lhe fossem mais familiares que as do cálculo financeiro –,
sesse o tom de direito adquirido com que sempre se dirige a ele. Ele faz a conta dos anos-luz que uma estrela teve de viajar para ser o que é
hesita por um segundo. Ela, sem olhá-lo, como faz toda vez que pede hoje, mera fulguração no manto negro do céu. Não importa o que o pai
alguma coisa, se distrai durante alguns segundos com o fecho quase tenha feito por ele – e Beimar não abre a boca a esse respeito, só repete
descosturado da bolsa, a costura frouxa de uma manga, a nova mancha como uma ladainha a expressão o que seu pai fez por mim –, seja qual for
que salpica o dorso de sua mão, qualquer uma dessas surpresas banais o preço que aquilo tenha custado na ocasião, ele o imagina como um
nas quais se refugia quando corre perigo, com a mesma seriedade de bólido que atravessa a história em velocidades diversas, às vezes a toda
um menino que pensa que basta fechar os olhos para se tornar invisí- pressa, irrefreável, às vezes com dificuldade, a passo de lesma, esbar-
vel. “De quanto você precisa?”, pergunta ele, procurando, no dorso de rando em resistências formidáveis, uma espécie de cavaleiro intrépido
própria mão, sua primeira mancha de velhice. “Duzentos e cinquenta. que, como o personagem de um romance que lê quando jovem com
Melhor duzentos e setenta, assim posso pegar um táxi e chego logo. A um interesse extraordinário, termina de ler na mais triste decepção e
ótica fecha em quinze minutos.” só muitos anos depois, quando já deixou de pensar nele, causa-lhe um
Não, não se pergunta como Beimar calcula, e ele também não faz efeito, um impacto tal que decide que jamais leu nem lerá livro melhor
cálculos, nem sequer pede ajuda à mãe para fazê-los. Dá-lhe o di- em sua vida, avança transpassando épocas sobre-humanas, rompendo-
nheiro para os óculos e ponto, e chama um táxi para ela e a vê entrar -as como as feras rompem os discos de papel no circo, e muda sem
nele, lenta, um pouco atordoada, com aquele ar de contrariedade ou cessar, de personalidade, de classe, sobretudo de sexo, mas nunca
de afronta que costuma assaltá-la quando tem de lidar com as coisas de idade, e num canto não especialmente memorável desse caminho
do mundo, a porta do táxi, a bolsa, a altura do assento, a barra de seu tortuoso cruza com um menino louro, assustadiço, que não conse-
impermeável, a distância a que fica, quando senta, o trinco da porta gue vê-lo mas não deixa de pensar nele, no fantasma sem forma que
que tem de fechar, coisas que – como ele comprova pela enésima vez é para ele, enquanto tenta conciliar o sono no quarto de hotel onde o

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deixaram sozinho. Que ruim, que desagradavelmente obtuso parece o Levanta a persiana até a metade – alguma coisa impede o processo e a
dólar, o assim chamado verde ou apenas nota – como se só ele tivesse o correia, de repente pende morta em suas mãos: paredes amareladas, um
direito de encarnar na forma papel –, sempre cauteloso, sempre idên- rodapé de bolas de poeira acumulada, pisos manchados, atapetados de
tico a si mesmo, em comparação com esse paladino das metamorfoses pó. Uma barata foge com o corpo ligeiramente inclinado. Esmaga-a com
em cuja pele a história não para de imprimir suas marcas: pesos moeda o pé e uma galáxia de corpúsculos estoura no ar e dança suspensa no
nacional, pesos lei dezoito mil cento e oitenta e oito, pesos argentinos, raio de sol que entra pela janela. Seu pai morreu e o sol entra pela janela.
austrais, ou simplesmente pesos... Um peso de hoje, pensa, só um dos Abre a geladeira, descobre o meio limão e o pé de alface murcha,
trezentos que, para resumir, dá nessa tarde para a mãe – alegando que, sozinhos na prateleira de vidro trincado, tão órfãos quanto ele, olhando
envergonhada como ela é para pedir, se pede duzentos e setenta na para ele com ar contrafeito, como se os tivesse interrompido numa cena
verdade precisa de pelo menos trezentos –, equivale a dez bilhões dos íntima, e a fecha sem tocar neles. Nunca tocará neles, nem na hora
quem sabe quantos pesos moeda nacional que custam a seu pai o pas- de se desfazer da geladeira, que um vizinho lhe compra por algumas
saporte falso, a passagem Buenos Aires-Rio de Janeiro e o punhado de moedas, junto com as velhas caixas de som, o abajur de pé flexível, a
dólares americanos verdadeiros com os quais Beimar salva a pele e tem balança, a máquina de escrever Continental e um quebra-nozes sem
acesso a uma vida nova. Porém, por mais espantosa que seja, a equiva- uso, com o preço ainda colado – um lote que o próprio vizinho empi-
lência é neutra e não diz nada, ou melhor, desconhece e pretende fazer lha depois de inspecionar com ar profissional o apartamento –, e que
esquecer o prodigioso repertório de aventuras que a tornou possível, os acaba carregando nas costas com toda a naturalidade, como se fosse
becos sem saída, as selvas e abismos nos quais se funda, o perigo e a uma mochila cheia de penas. Se datasse aquela sujeira, pensa, poderia
loucura que a alimentaram. datar o momento em que o pai começa a morrer. Não é a internação no
De maneira que quando vai ao apartamento de seu pai, a intenção hospital, não são os diagnósticos médicos nem as operações, não é a
que o move, no fundo, não é limpar, como diz para o porteiro quando dieta clandestina de uísque e pretzels que divide durante algumas noites
cruza com ele no hall de entrada, nem pôr em ordem as poucas coisas com o adversário de pôquer na clínica. É o momento em que, ainda no
que o pai deixa ao morrer, como diz para a mãe, nem encher os dois sa- apartamento, na posse de todas as suas faculdades, cercado pelo elenco
cos de lixo de 70 × 55 cm que está levando com tudo o que houver para mínimo que o rodeia – coisas nem sequer desejadas ou escolhidas por
jogar fora, e sim encontrar uma prova de que a dívida existiu. O aparta- ele, coisas que pertenceram a sua mãe, por exemplo, das quais não tem
mento está imundo. Intui isso ao entrar, enquanto avança às cegas na coragem de se desfazer e que arrasta ao longo de mudanças e de anos
penumbra, um pouco inquieto – só agora se dá conta de como esse es- e que sempre resistem e acabam se impondo a ele –, olha ao redor com
paço é estranho para ele, das poucas vezes que visitou o pai ali –, sente o os braços na cintura e decide que não vai limpar, que não vale a pena. E
cheiro rançoso do recinto fechado e da madeira úmida – ah, como o pai desmorona na poltrona da tevê. É aí que o pai começa a morrer.
era fanático por madeira, quase com tanto fervor quanto por papel – e Tudo está sujo, mas no lugar. Poeira e ordem só são incongruentes
um cheiro áspero se enfia em seu nariz e lhe faz cócegas, como lã velha. nos seres vivos. Nos moribundos andam sempre juntos. Os discos por

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autor e em ordem alfabética, como os livros. Os primeiros cabides para brilham por um segundo como promessas, sobre os quais se preci-
os casacos, os seguintes para os paletós, os últimos para as calças, e pita esperançoso e que logo devolve ao caderno, entristecido, assim
pouco importa que cada roupa tenha o tato áspero das coisas que nin- que comprova que eles também não escapam à fatal órbita contábil:
guém toca há anos, a pátina de sujeira que gruda como cera na ponta os gastos de fim de semana no Tigre anotados no verso do fôlder pu-
dos dedos. Na mesa baixa, fazendo ângulo com o canto, encontra os blicitário de uma churrascaria, uma relação de pagamentos pendentes
cadernos. Um rastilho de semicírculos e parênteses impressos na ma- no envelope de um grande hotel, a lista das comissões recebidas du-
deira – marcas de copos e xícaras úmidas: a sinalética do abandonado – rante um mês na cartolina retangular de um marcador de livros. Da
leva até eles. Abre o primeiro com expectativa, esperando dar com a primeira à última página, do primeiro caderno ao último – são sete, to-
letra do pai, essa estranha amálgama de maiúsculas e minúsculas com dos da mesma marca, comprados no mesmo lugar, uma velha livraria
serifas voando, como fios soltos, sempre penteada para a direita e de- no bairro dos tribunais –, os números vão diminuindo, se apertando
crescendo em altura, como se alguma coisa a fosse esmagando à me- mais, suprimindo os corredores de ar que tornavam possível distingui-
dida que a mão avança, a letra da qual nunca gostou mas que durante -los, entregues à faina de colonizar o espaço inteiro como formigas.
tanto tempo imitou, que foi tantas vezes reprovada por seus profes- No final, no último caderno, o único da pilha com espiral, as colunas
sores e namoradas, incapazes, ao que parece, de decifrar suas com- entortam e se tocam, os números já não se reconhecem, as páginas são
posições escolares ou de reconhecer os nomes e números que deixa céus cobertos de gafanhotos à contraluz.
anotados nos blocos ao lado do telefone. Derrama ali, sentado no braço da poltrona da tevê, inclinado sobre
Encontra números. Mais que encontrá-los, eles lhe saltam à vista, os sete cadernos abertos, todas as lágrimas que não chorou na clínica,
insetos ávidos por uma vida tridimensional com a qual talvez tenham nem no velório, nem na tarde, quase uma semana depois, em que está
sonhado durante anos. Séries, réstias, colunas inteiras de números que passando um café na cozinha e de repente, com um sobressalto de in-
arrancam na primeira linha, margeadas pela esquerda, e seguem linha quietação, como se percebesse que está há tempo demais esquecendo
a linha até o pé, e sobem e recomeçam na parte superior da página, alguma coisa importante, vem-lhe à cabeça: “Preciso ligar para o meu
como ecos da coluna que acaba de terminar, e assim continuamente, pai!” – e nesse mesmo instante a evidência de que o pai está morto se
durante páginas e páginas. De quando em quando, uma variação, que impõe. O apartamento está tão silencioso que pode ouvir cada lágrima
transforma a página numa espécie de oásis privilegiado, numa mira- batendo no papel. Os números estouram, se esfumam em rastros de
gem de frescor gráfico: as colunas são mais curtas e estão acompanha- tinta enegrecida, avermelhada, violácea, que tremem, ondulam um
das de palavras que permitem decifrá-las – palavras como “viáticos”, pouco – o tempo que o papel leva para absorver a umidade – até fica-
como “extras”, palavras como “entradas” e “saídas”, palavras como rem quietos. Cruza sua mente uma cena de um filme sobre a vida de
“Enrique”, “luz”, “gorjeta”. De vez em quando aparecem papéis sol- Chopin: o gradual, delicado gotejar de genuíno sangue pulmonar que
tos, intercalados, uma carta com timbre, páginas de agenda dobradas, salpica o teclado enquanto Chopin investe apaixonadamente contra ele.
post-its, guardanapos de bar, fôlderes recebidos na rua, achados que Por um momento voltou a admirar o orgulho, a jactância beligerante

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com que o pai proclama que nunca teve contas em banco, nunca lidou mesmo a liberdade que acusa o mundo de lhe tirar. Chora porque acaba
com cheques, recusou com todas as forças todos os oferecimentos de de surpreendê-lo em sua vida privada, numa intimidade frágil, obscena,
cartões de crédito, mesmo os mais vantajosos – os piores, segundo ele, e o vê fazer sem freios, sem pudor algum, como na verdade deseja fazer,
leal, como sempre, ao princípio de que nunca o mal é tão impiedoso a única coisa que faz porque não tem outra saída, porque morreria se
quanto quando se apresenta com a face da benevolência. Não quer ser não fizesse. Chora porque nunca antes o vê assim, nu, entregue a sua
controlado pelo dinheiro. Não quer ver sua vida compendiada todos causa – a causa dos números –, e pelo fervor grave e insensato de sua
os meses nos resumos elaborados por um pobre funcionário de banco causa, e pela solidão acérrima, sem consolo, a que sua causa sempre
com o colarinho da camisa sujo e as barras da calça descosturadas, um o condenou.
desses mortos em vida que arrastam os pés e que desde menino ele o E sua mãe, então, entra no delírio de pedir. Já não é só a ajuda de
ensina a reconhecer pelas ruas e dos quais ordena que mantenha dis- que precisa quando chega o inverno para comprar um aquecedor ou
tância. Não quer que outros saibam quem ele é sabendo o que compra, um casaco novo, ou renovar o tapete do pequeno apartamento para o
no que gasta, quanto paga pelo que quer, e muito menos que o façam qual se muda, ou para enfim trocar o trambolho no qual faz, a duras
saber disso. Mas, olhando bem, esses sete cadernos são exatamente penas, suas traduções, uma máquina lenta, ronronante, sacudida regu-
aquilo que ele detesta, só que de seu próprio punho: sua autobiografia larmente por recônditos rangidos digestivos, que herda da típica amiga
contábil. Em certo sentido, a obra de sua vida: o único testemunho que rica que três vezes por ano, só para mudar de ares, sofre um infarto de
decide deixar de si, o documento que prova a que dedica sua constân- generosidade e começa a fazer doações a torto e a direito, usando os
cia, sua fé, seu esmero, seu ensimesmamento – as forças valiosas que membros de sua corte para se libertar dos refugos que a incomodam
tão frequentemente lamenta não ter tido. Examinando-os, qualquer em seu palácio, móveis, lustres, obras de arte, roupas, eletrodomésti-
pessoa com um pingo de bom senso e um pouco de cuidado poderia re- cos que não sabe como usar e nem sequer tirou das caixas.
construir tudo o que seu pai foi e fez nos últimos anos de sua vida, tudo Às vezes, tarde, muito tarde, naquela hora em que tudo o que acon-
o que ninguém que tenha estado a seu lado seria capaz de reconstruir a tece sem aviso ou é engano ou é tragédia, o telefone começa a uivar e
partir do que viu ou presenciou junto a ele. Qualquer pessoa – não ele, ele atende meio em sonhos, pensando que procurar os óculos na mesa
que sabe que nem sempre vai perder seu tempo abrindo essas brenhas de cabeceira, onde acha que os deixou, e que colocá-los, mesmo que
e rastreando a única coisa que importa, o montante original da dívida de ponta-cabeça, fará com que escute melhor, que entenda melhor o
de Beimar. E nessa mesma tarde, depois de experimentar dois paletós que escuta ou que finja ouvir melhor diante de um interlocutor que
de tweed, de tentar varrer com um longo jato de urina a borra de limo não pode vê-lo, a voz de sua mãe verte no labirinto de seu ouvido al-
e óxido da privada e de quebrar de vez a persiana, deixa os cadernos gumas gotas de sua lucidez desesperada. Não grita, não faz pressão,
caírem no fundo de um saco de lixo. Não é esse anseio por uma higiene pensa muito bem em tudo o que diz, mas sua voz lhe chega de outro
impossível – morrer sem um tostão, mas com as contas claras – que o hemisfério, de um estranho mundo polar, ou desértico, onde sempre é
faz chorar. Não é a ingenuidade com que o pai termina negando a si dia e as pessoas estão sempre acordadas. São duas da madrugada. Exa-

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minando um punhado de contas que pensava estarem pagas encontra sabem apreciar – de que está tudo bem, tudo no lugar, em ordem, onde
um aviso de pendência da companhia de eletricidade: ameaçam cortar deveria estar – menos uma coisa, só uma, nada evidente, a pálpebra que
a luz se não ficar em dia amanhã. Três e meia e o aspirador, depois de lateja há horas, as mãos trêmulas, a nitidez ofuscante com que se veem
se engasgar com um transformador, ou um chaveiro, ou um novelo de os objetos menores ou distantes, que é a que fará tudo ir pelos ares.
lã, ronca e tosse e sopra em vez de aspirar. Como vai pagar o conserto, Um dia é um tratamento de canal, no outro a taxa anual do cartão
se não tinha previsto isso? Seis horas: acaba de descobrir, espantada, de crédito, no outro um leve rombo em sua caderneta de poupança.
o alerta de gastos extras que vem – em letra pequena – no balanço de Quando cai em si, já se transformou em alguém crucial, num salva-
despesas do mês. -vidas, numa ambulância financeira que acode, ou deveria acudir, com
É o mundo prodigioso da contingência, ao mesmo tempo variado e dinheiro fresco no bolso, ao primeiro sinal de alerta que recebe. Trans-
monótono, que irrompe em cada um desses gritos de socorro insones. forma-se na droga de sua mãe. Às vezes atravessa meia cidade para
Sua mãe, a única presença que sua vida não pode não reconhecer como pagar o almoço frugal que a faz demorar-se num boteco fuleiro, e a
uma necessidade, uma causa básica, originária, indiscutível, é agora o expressão com que o recebe lhe dá arrepios na espinha. Sentada na
reino do acidente e da incerteza, o que arruína todo programa. Às vezes, pior mesa do lugar, a mais próxima dos banheiros, na passagem de
quando se resigna a sofrer esses assaltos em plena madrugada, pensa uma corrente de ar ou ameaçada pela aresta de uma janela assassina,
que talvez preferisse que tivessem outro estilo. Sente falta – como se um está muito séria, muito concentrada em alguma coisa que só ela vê ou
dia os tivesse experimentado – de certo descontrole, do dramatismo de escuta ou sente, sempre vestindo o casaco, as mãos aferradas à bolsa,
uma voz que grita e se quebra, de um desespero operístico, capaz de como se tivessem tentado roubá-la. Diz coisas horríveis dos garçons,
mover com gestos pomposos grandes massas de ar em espaços imen- queixa-se do volume da tevê, afasta com um gesto de nojo o prato co-
sos, chaves de um realismo emocional no qual não necessariamente mido pela metade, enquanto ao redor de sua boca, alvoroçando a fileira
acredita – afinal de contas é filho de sua mãe –, mas que compensaria, de estrias que com os anos foram se juntando sobre seu lábio superior,
quer acreditar nisso, pelo menos em termos estritamente histriônicos, incuba-se uma terrível efervescência.
a crispada praia de vigília em que fica encalhado quando desliga o tele- Nunca o chama para que ele pague. Quer o dinheiro. Quer a quantia
fone, uma vez prometido que lhe passará o dinheiro na primeira hora da exata que lhe falta, não importa se o que deve pagar é uma salada de
manhã. Mas a mãe detesta, sempre detestou, a grandiloquência do tea- cenoura e alface, a consulta com um osteopata ou o saldo adiado de
tro e seus arroubos, seu sentimentalismo, seu senso de exagero. Pede um serviço no encanamento que deixa o banheiro fora de circulação
e está desesperada, de fato, só que o modelo retórico de seu desespero por uma semana. De fato, ele chega, a mãe diz quanto necessita – so-
não é uma cena de catástrofe, impactante e úmida, mas vulgar, e sem- mas sempre precisas, muitas vezes com centavos –, e assim que está
pre um pouco humilhante, e sim a insônia rochosa, que tem todas as com o dinheiro, de repente impaciente, cala-se ou responde depressa,
propriedades necessárias a sua dignidade de majestade destronada: im- sem vontade, trata-o com distância e mesmo com desdém, como um
pavidez, secura, tensão, e a impressão – que só os gourmets treinados conhecido que tomasse confianças com ela, com o mesmo rancor, o

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mesmo misto de despeito e soberba com que o viciado passa a des- fantasma, o gasto extra, e acima de tudo devorada pela culpa de ter
prezar seu fornecedor assim que tem no bolso a dose que dez minutos gastado o dinheiro que lhe permitiria enfrentá-lo.
antes teria feito qualquer coisa para conseguir. Ela mesma confessa isso ao lhe contar que quando sonha em ter di-
Por que não lhe dá de uma vez o que talvez ela peça: uma reserva? nheiro – o que acontece com frequência cada vez maior, não só de noite,
Não há nada tão enigmático em viver com o dinheiro curto, com o justo. adormecida no cenário espartano do qual decidiu se cercar, como diz,
É uma arte que não requer malabarismos, como se costuma pensar, para pegar o touro do dinheiro pelos chifres, mas nessas narcolepsias
mas virtudes modestas: sobriedade, um pouco de ordem, certo cálculo. em que cai a qualquer momento do dia, andando de ônibus, ou na sala
Mas para alguém acostumado a contar com o que se chama respaldo, de espera do reumatologista, às vezes até mesmo enquanto traduz, en-
alguém que sempre se moveu à sombra indulgente de bens, poupanças, tre dois parágrafos ariscos –, só tem uma coisa capaz de arruinar seu
investimentos, dando-se ao luxo de ignorar em que consistem, onde sonho de maneira definitiva, muito mais, até, do que a consciência de
estão, quanto valem e como se multiplicam, mas não o sossego que estar sonhando, também frequente: a certeza de que todo dinheiro será
transmitem, não a sensação de leveza com que permitem enfrentar pouco, muito pouco para suas pretensões, muito pouco para o tama-
o futuro, tão radiante e otimista como a do viajante que chega a uma nho do buraco que a necessidade, com os anos, foi abrindo em seu
cidade estrangeira depois de uma viagem exaustiva, de manhã bem peito. Meu desejo de vingança cresceu demais. Haveria reserva se fosse pos-
cedo, e sem dormir, recém-banhado, sai para se perder em ruas desco- sível fazer o medidor recuar e começar do zero. Mas em sua mãe não
nhecidas – para alguém assim, abençoado durante anos pela presença há zero possível. Sempre há um saldo prévio que cresce um pouco mais
dessa provisão secreta, pode ser o mais atroz dos pesadelos. Aquela a cada dia, em silêncio, incessante, fora de toda proporção – menos
que perdeu tudo perdeu muito mais que sua fortuna. Perdeu a margem cinco, menos vinte, menos mil –, que toda reserva não teria outra saída
preciosa de tempo que sua fortuna lhe concedia, esse intervalo, essa senão cobrir. Mas que tipo de reserva seria essa que nega o futuro – a
espécie de colchão mágico que a separava de uma experiência imediata única coisa que, por definição, deveria importar-lhe –, acorrentada que
das coisas. Perder tudo a condenou a um inferno pior que a pobreza: o está à obrigação de cancelar a conta pendente do passado?
inferno de viver no presente. Sonha com dinheiro, muitas vezes só que o vê ou o toca. Volta des-
Simplesmente não confia na mãe. Sem condená-la, antes a descul- ses sonhos sacudida por um vago ressentimento, como que tocada
pando, a tal ponto sua lógica lhe é familiar, pensa que se lhe desse a pela asa de um desses monstros lascivos que enfiam o focinho en-
famosa reserva ela seria incapaz de conservá-la e logo gastaria tudo, tre os cortinados e espreitam as mulheres que dormem nos quadros.
numa espécie de transe, com medo de morrer deixando intacto um Pode estar ensimesmada trabalhando, absorta em suas coisas, nesse
capital que a teria feito feliz, ou arrebatada pelo frenesi de revanche estado de anestesia por repetição a que se reduz há muito tempo sua
que está sempre à espreita, em graus díspares de hibernação, em toda vida cotidiana, mas basta que um sinal imprevisto sacuda esse torpor,
arruinada. Logo voltaria a ser a mesma desesperada de antes: sufocada o guincho do interfone, o telefone, duas coisas que, para seu orgulho,
pela estreiteza do dia a dia, corroída pelo medo de que apareça seu pior tendem a soar cada vez menos entre as quatro paredes de sua casa, e

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quando soam em geral é para chateá-la, o amolador, o vendedor am- Miller de Verdi: é a única coisa que têm em comum. Ele é irascível, vai-
bulante, uma dupla de pregadoras, alguma venda telefônica, para que doso, descortês. Jamais lhe pagou um café. Não cede um único suple-
se acenda de repente, se ajeite a toda velocidade diante do espelho do mento – nem mesmo o feminino – enquanto não tiver acabado de ler o
quarto e jogue alguma coisa por cima, um lenço de seda, o único par de jornal inteiro. Mas está sozinho como um cão, muito doente, decerto
brincos de argola que não vendeu, aqueles enormes óculos pretos de não vai sobreviver ao inverno, e que imperdoável deixar órfãos aquele
gafanhoto, qualquer coisa, desde que dê a boa impressão que o advo- camarote no teatro Colón, aquele carro com motorista, aquela casa de
gado ou o escrivão que imagina que veio vê-la gostaria de ter da miste- fim de semana em Colonia. Quando ele, que a conhece, que se cansou
riosa beneficiária da cessão, da doação, do legado que a última vontade de vê-la repelir resmungando toda aproximação de desconhecidos, per-
de algum morto ou morta o encarregou de transmitir a ela. gunta o que lhe agrada naquelas relações circunstanciais, ela apresenta
Assim que fica sabendo que alguém do passado a procura, obriga- razões íntimas – gosta de poder conversar com um homem, por exem-
-se a se lembrar, passa uma tarde inteira limpando as teias de aranha plo – ou de um egoísmo descarnado: quer fazer essa viagem, precisa
daquele galpão entulhado de trastes inúteis e não desiste enquanto não desse ar, dessas termas, dessa tranquilidade. Só nesse retiro de monges
identifica o nome de quem a procura, visualiza seu rosto e encontra, trapistas em Córdoba poderá terminar a tradução que está dando cabo
por fim, perdidos nas dobras de uma manhã escolar, um aniversário, dela, mas quando volta, depois de duas semanas de voto de silêncio e
uma cena de férias de infância, o favor secreto, a prova de cumplici- disciplina militar, morta de fome e sem ter avançado uma linha em seu
dade, o amparo que ofereceu na época, desinteressadamente, por pura trabalho, dedica-se a esfolar viva a lésbica depressiva que, na verdade, ela
amizade, e pelos quais agora, sessenta anos depois, o beneficiário de foi acompanhar, que a deixa louca com seus milhões e suas viagens, só
sua generosidade veio recompensá-la. Volta-se para sua infância, sua que quando vai pagar as duas estadias no convento, como lhe prometeu,
juventude, e vê tudo ligeiramente mudado: o mesmo teatro de tormen- descobre que esqueceu a carteira. Ela mesma muda de bar, deixa de cum-
tos, a mesma escuridão, o mesmo frio úmido penetrando-lhe os os- primentá-los, perde seus telefones, cansada de tudo o que se obriga a
sos, mas enquanto arrasta os pés como uma alma penada, sem que suportar para estar com eles, com nojo de si mesma, do absurdo de suas
ninguém a veja, às vezes até mesmo sem que ela própria saiba, suas próprias pretensões. Sai triste e taciturna, como se estivesse de ressaca,
mãozinhas geladas deixam cair algumas sementes como mensagens mas as crônicas de suas aventuras frustradas têm certa graça, um senso
secretas destinadas à posteridade. do detalhe e uma crueldade que ela jamais poderia imaginar.
Ao seu redor, de repente, germina uma pequena corte de amigos Mais de uma vez telefona para lhe pedir ajuda e marca encontro
novos. Revoluteiam com lânguida intensidade, como as traças velhas em meio a uma de suas reuniões de garotas falidas, como batiza esses
que são, e se apagam depressa, o tempo que a louca ilusão de ser sua conclaves de nostalgia, tortas, gim e boca-livre de maledicência que co-
herdeira tarda para se extinguir. Apresenta-lhe um velho esquivo, ele- memora com meia dúzia de companheiras de estrada na confeitaria do
gantíssimo, murcho como uma uva-passa, com quem compartilha, diz, subsolo do passeio de compras mais antigo da cidade, o mais rançoso,
o ritual de ler os jornais no bar nas manhãs de domingo. Isso, e a Luisa cuja música ambiente jura adorar – bossa nova, Henry Mancini – e a

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desenvoltura quase prostibular com que os coletes e as calças dos gar- -se o que sempre se pergunta: quanto tempo vai esperar dessa vez antes
çons – vermelhos com botões pretos, pretos com listras vermelhas ver- de tomar os comprimidos que a nocauteiam.
ticais dos lados, réplica do velho estilo bell boy de hotel – marcam seus A urgência não apresenta maiores problemas – salvo o descon-
músculos das costas e das nádegas. Quando chega, duas de cada três forto – quando os surtos de necessidade a atacam em horas razoáveis.
vezes elas estão falando de dinheiro. Duas de cada três frases começam Combinam um lugar e um horário que permitem que ele reorganize
assim: “Quando eu tinha dinheiro...”. O resto, para variar: “Quando suas atividades em torno da operação de salvamento e que ele cumpre
você tinha dinheiro...”. Sua mãe sempre senta no mesmo lugar, de religiosamente, menos por senso de responsabilidade que por prag-
frente para a porta que dá para a avenida. Assim pode vê-lo chegar e matismo, como esses médicos que só são pontuais para se poupar das
levantar-se a tempo e interceptá-lo antes que se aproxime demais, para reclamações dos pacientes. Ela agradece – do seu jeito, claro, excluindo
levar a cabo a operação de salvamento longe da vista das outras (que, toda manifestação explícita, ou melhor, sufocando-a numa demons-
naturalmente, na mesma hora começam a comentá-la). tração de compaixão, lamentando os contratempos que a emergência
Com o tempo fica impaciente, como se alguma coisa nela come- possam ter lhe causado, os compromissos que pode ter tido de adiar
çasse a se esgotar. É uma impaciência tirânica, que preexiste ao pedido etc. Mas há alguma coisa no cuidado com que ele desempenha suas
e o torna irritado, áspero como uma ordem. Já não se conforma que ele missões que logo começa a deixá-la fora de si, um zelo meio burocrata,
lhe diga que vai arranjar o dinheiro. Sente que a tratam como criança, tão eficaz e confiável quanto impessoal, a tal ponto parece imune a
que não querem socorrê-la, só distraí-la, aplacar sua ansiedade, como toda circunstância específica, que logo vira alvo de sua mordacidade.
se sua necessidade de dinheiro fosse apenas a fachada de uma inquie- Trata-o como trataria um empregado irrepreensível e insípido, com
tação maior, ao mesmo tempo mais profunda e mais vaga, que não será elogios de dois gumes, exaltando sua virtude e fazendo-o sentir a
aliviada com dinheiro, mas com palavras doces. Quer saber a que horas, imensa região de desejos que não satisfaz. Certa manhã, bem cedo,
onde, como. Qualquer distância entre o pedido e sua satisfação já é ela o vê chegar recém-saído do banho, vestido com essa elegância me-
demais. Poderiam surgir obstáculos, acontecer todo tipo de coisa. Ele diana, perfeita para um longo dia de exigências díspares, e meio entre
poderia sofrer um acidente, ela enfartar, a economia entrar em colapso, risadas decide propor-lhe um pagamento: pagá-lo não pelo dinheiro
o peso se desvalorizar, tudo no decorrer de uma noite, e o dinheiro que lhe dá (de cuja devolução, posto que se trata sempre de “emprés-
não chegaria nunca. E precisa dele já, imediatamente. Caso contrário timo”, nunca se fala uma única palavra), mas por levá-lo. Seria sim-
não conseguirá dormir, ficará atordoada, incapaz de trabalhar (traduz ples: só teria de ficar com uma pequena porcentagem de cada soma
uma média de três mil palavras por dia, o que implica que um dia sem que leva. Mas logo recrudescem os telefonemas insones, e às três e dez
trabalhar são trezentos pesos perdidos) e mesmo de se vestir, e acabará da madrugada, com os braços dormentes, os olhos cheios de remela e
se enfiando outra vez na cama desarrumada, não para dormir, porque a cidade congelada, os bons ofícios do mensageiro exemplar não lhe
sabe que não há nada mais arisco do que o sono perdido, mas para caem tão bem, e o sorriso com que de dia acolhe e desativa o sarcasmo
ficar deitada de barriga para cima, de olhos bem abertos, perguntando- da mãe se degrada numa careta de saturação. Mesmo assim cede uma

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vez, alarmado com o estado crítico em que a escuta e com os ruídos suave palmada no ombro com que se despedem se reduzem a um valor,
que se superpõem a sua voz – o tubo do telefone que cai, alguma coisa por mais alto que ele seja, quanto mais alto melhor.
de vidro que estoura, o volume de Verdi que sobe e desce alucinada- Há noites em que ela lhe telefona, pede o dinheiro e depois, baixando
mente –, cede uma segunda, e enquanto roda no meio da noite, dealer um pouco a voz, com uma timidez com alguns laivos de lascívia, pergunta
de dinheiro, tem uma certeza que o escandaliza e maravilha ao mesmo se não é pedir demais ligar para o motorista da agência que a atendeu da
tempo: não deve haver outro filho atravessando a cidade àquela hora última vez, Walter, Wilson, Wilmar, em todo caso um uruguaio de maçãs
para levar dinheiro para a mãe. Jura não fazer mais isso, e a simples do rosto salientes, incrivelmente narigudo, náufrago dos anos 50 que usa
decisão o alivia. Mas sabe o quanto vai sentir falta da luz vibrante que pulôver com decote em V e camisa xadrez com o último botão abotoado,
se apossa do rosto de sua mãe nessas madrugadas insanas, quando sai está com os sapatos sempre engraxados e declina das gorjetas com um
do elevador e se aproxima, muito ereta, sorrindo, inteira, para lhe abrir ar vago de espanto, como o último representante da civilização declinaria
a porta, como se tivesse recuperado o único bem cuja perda realmente de um velho costume bárbaro, enquanto inclina a cabeça e toca com dois
chorou, muito mais até que sua fortuna: a beleza radiante da juventude. dedos a aba do chapéu. Uma semana mais tarde, no entanto, a situação
Daí em diante se oferece para lhe mandar o dinheiro pelo radiotáxi. está periclitante. São quinze para as quatro, sua mãe telefona em carne
“Era só o que faltava”, grita ela do outro lado do telefone: “Eu aqui mor- viva. Onde está o motorista, que deveria ter passado por sua casa há uma
rendo de medo que o dinheiro não chegue e você querendo entregá-lo hora? Por que não o mandou? Ele (que se lembra perfeitamente de ter
a esse bando de ladrões”. Ele a convence: tem uma agência de táxis pedido o táxi) liga para a agência. Uma voz cavernosa, lixada pelo cigarro,
de confiança, conhece vários dos motoristas, os quais já usou como lhe diz que a encomenda – um envelope fechado, com o nome da destina-
mensageiros, e nunca teve problemas. O sistema parece funcionar. É tária escritos em letras de forma – foi entregue às duas e quarenta e cinco
simples, rápido e, na medida em que se funda no dinheiro – a conta em ponto no endereço combinado. A propósito, diz a voz, depois de um
corrente que ele abriu na agência de táxis –, é inequivocamente profis- pigarro longo e profundo que parece carregar um par de séculos de limo
sional, uma dimensão para a qual a mãe sempre mostrou uma sensibi- mucoso, o senhor é parente da senhora que a recebeu? Poderia esclare-
lidade particular, entre outras coisas porque torna impossíveis os tor- cer, nesse caso, que os motoristas da agência – quanto mais o Wilson,
tuosos mal-entendidos que entranham as relações pessoais. Gosta dos que além do mais é abstêmio, casado e tem duas filhas esplêndidas – não
profissionais. Tem confiança nos uniformes, nos guarda-pós, nos di- estão autorizados a beber álcool com clientes em saguões às duas e qua-
plomas universitários, mas principalmente porque tem acesso a essas renta e cinco da madrugada? Telefona para sua mãe. “O dinheiro nunca
expertises pela mediação do dinheiro. Seduzem-na os médicos loquazes, chegou”, diz ela assoando o nariz. “Pense o que quiser: é a palavra deles
de costeletas grisalhas, que escrevem com canetas de ouro, manejam contra a minha.” Está indignada mas treme de frio, de tão desprotegida,
tecnicismos como cartas de baralho e sabem apalpar os gânglios às como se falasse de um páramo varrido por um vento gelado.
cegas, mas só se rende a seus pés quando recebe a fatura de seus ho- A cena se repete mais duas vezes. Nos dois casos – em parte por-
norários assinada e carimbada, quando o diagnóstico, o tratamento e a que não suporta ouvir a mãe choramingar por telefone, em parte

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porque todas as discussões com o homem da voz cavernosa acabam que desce para receber os envelopes que o filho manda com uma gar-
do mesmo jeito, abruptamente – com uma salva de tosses que o dei- rafa de Grand Marnier e dois copos.
xam à beira de uma síncope – acaba se levantando da cama e indo até a A última coisa que sabe da mãe, contada por ela mesma quando lhe
casa dela levar o dinheiro, a segunda versão do dinheiro que já lhe deu. telefona para pedir o dinheiro do táxi, e que arquiva junto com a visão
Nas duas vezes, quando chega, fica surpreso com a metamorfose que do botão da camisa xadrez, do perfume e da pinta (alarme falso: era
se operou na mãe: está viçosa, serena, como se tivesse acabado de sair benigna), é que vai ao hospital fazer uma visita – uma angina de peito:
de algum tipo de banho floral milagroso, vestida como se fosse sair, nada que o temperamento uruguaio não seja capaz de resolver sem es-
e o convida para tomar o café da manhã juntos. Mas há uma terceira forços nem queixas, com aquele garbo casual, de mercado de pulgas –,
vez, idêntica às anteriores, e ele decide que é demais. Depois da chuva e que o paciente dos três W acaba por aceitar ali, no espaço ultravi-
de vociferações da mãe (“Eu te disse, querido! São uns vigaristas!”), giado do hospital, o trago clandestino que sempre recusou na porta
se agasalha e vai feito uma fúria até a central da agência de táxis, e da casa da mãe. Depois, por um tempo, não tem notícias. Percebe que
quando está para empurrar a porta reconhece o Wilson-Wilmar-Walter – não as tem uma tarde em que está sozinho em casa e o silêncio, ao seu
o chapéu que desponta, a barra italiana estreita da calça do terno, o redor, parece se tornar sólido. Então ele entende que aqueles pedidos
couro dos sapatos, reluzente feito porcelana – lustrando o volante do imperiosos, aqueles telefonemas de madrugada, que o exasperam mas
táxi com uma flanela cor de laranja enquanto o equipamento de som do que acaba aceitando, foram o único contato que tem com a mãe há
carro cospe uma velha canção abrilhantinada: “Palomita linda/ Vidalitá/ muito tempo. E agora, que já está há dias sem recebê-los, é invadido
Palomita triste/ Qué poco te queda/ Vidalitá/ de lo que antes fuiste”. Para de re- por um estranho pavor. Tem medo de ligar para ela. Medo de ligar e
pente. Quanto tempo faz que não grita com alguém? Quanto tempo faz de que não o atenda, medo de passar na casa dela, tocar o interfone e
que não olha outro rosto humano tão de perto? A última coisa que lem- não obter resposta, medo de convencer o zelador a lhe abrir a porta e
bra da refrega é a imagem bem em primeiro plano do botão da camisa encontrá-la na cama, com o controle remoto na mão, ou deitada sobre
xadrez de Walter, frouxo, pendurado num fio que não resistirá, o eco a cerâmica preta do banheiro, fulminada quando ia ligar o secador de
suave de um perfume antigo e uma pequena pinta em forma de trevo, cabelo. Tem medo, na verdade, de que encontrá-la assim seja a última
provavelmente maligna, colada como um sticker em seu proeminente vontade que sua mãe teve pensando nele. Não imagina exatamente a
pomo-de-adão. Mas que direito tem ele de entesourar esses farrapos cena de um suicídio, tão solene e trabalhosa, tão deliberada que, dado
de realidade se quem desmaia, levando a flanela cor de laranja até o o senso de ridículo que ela sempre teve, jamais poderia executar sem
peito, como se a adorasse, e fitando-o com olhos perplexos enquanto rir, frustrando-a no meio do caminho. Não: teme que seja uma morte
seus joelhos vão bambeando, é o frágil Wilmar, o pobre Walter, o in- acidental, fortuita, mas tantas vezes imaginada que o espetáculo de sua
corruptível Wilson, inocentes os três, os três vítimas, que, como disse- consumação já não poderia existir sem ele, seu destinatário, a única
ram mil vezes, aceitarão qualquer corrida, as mais perigosas, Barracas, razão que explica que a tenha imaginado tanto. E, naturalmente, pensa
Fuerte Apache, Lugano, menos ir até essa espécie de diva tresnoitada em como ela estará se virando sem lhe pedir dinheiro. Mal considera

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as opções que se apresentam a ele, rápidas, como um slide show – sua absoluto. Não, faz isso por terror. (Compreende agora, quarenta anos
mãe mendiga, sua mãe ladra, sua mãe engordando uma tradução com depois, quando a mãe dá um passo para o lado e desaparece da cena dei-
longas paráfrases inúteis para aumentar a quantidade de palavras que xando vago um espaço vital, onde podem se espreguiçar forças longa-
terão de lhe pagar –, outra ideia as eclipsa: o que ele fará com o dinheiro mente adormecidas que depois se agruparão e irão de novo à luta, como
que não dá para ela. Que destino dará, agora, a esse pinga-pinga de se o sofrimento da mãe, ao fim e ao cabo, não passasse de uma forma
notas. Não que fosse muito. Era uma sangria, sim, só que mais pelo tardia de dizer isso que os outros chamam ou chamavam de o povo.) Não
rítmico, pelo incessante, do que pelas quantias envolvidas. E no en- terror no sentido da intimidação, além do mais sempre matizada por
tanto, modesto como é, essa sobra imprevista o faz sentir-se abastado certa excitação, que exercem sobre ele o irmão de seu amigo e seus com-
e magnânimo, enche-o de uma energia nova, de um desses ímpetos de panheiros de militância, que enchem a boca falando de classe operária,
filantropo óbvios, exemplares, nascidos não de uma sensibilidade, de burguesia, partido, imperialismo, greve geral, revolução permanente –
uma vontade ou de uma ética particulares, mas do próprio dinheiro, palavras que sempre escuta em maiúsculas, só visualiza sob a forma de
da lógica particular à qual se dobra por si só quando alcança certos uns colossos arremetedores, uma brigada de monstros monumentais
patamares de abundância, tão desprezados por ele em estrelas de rock, que dão três passos e já atravessaram todo o planeta e que reduzem a
artistas plásticos de sucesso, hierarcas de corporações tecnológicas e uma triste dimensão pigmeia todo o mundo de namoradas, futebol, dis-
outros magnatas contemporâneos. Sim, ser um benfeitor. Por que não? cos e praças que ele compartilha com seu amigo –, os quais só vê juntos
Injetar cash numa fábrica e virá-la do avesso. E que o dinheiro, por fim, e em ação uma vez, numa reunião na qual o amigo consegue infiltrá-
substitua a revolução. -lo e que, como a maioria dos conclaves trotskistas, dedica-se intermi-
Mas por onde começar? Se pelo menos continuasse sendo publicado navelmente a fumar, tomar café, mate e, bem entrada a noite, gim, e
o belo mensário trotskista, todo tipografia preta sobre páginas verme- sobretudo “caracterizar a situação”, uma arte na qual o trotskismo não
lhas, para o qual o insta a contribuir o irmão mais velho de seu amigo teve, não tem e nunca terá rivais. Não, terror no sentido de terror: terror
de adolescência e que ele apoia como pode, com doações pequenas que de ser identificado, sequestrado, encapuzado, torturado, terror de mor-
surrupia de uma mesada bastante insuficiente, já, para satisfazer a suas rer como um cão, atirado no rio ou dinamitado, por ter doado aqueles
necessidades naturais, lanche, cinema, os primeiros cigarros. Claro que centavos a um mensário que ele mesmo, apesar de apoiá-lo com fervor
na época não faz isso pelo dinheiro: nem pelo que significa o dinheiro e de subscrever tudo o que diz, da primeira à última letra, ou talvez exa-
para a economia do mensário trotskista, feito nas coxas, como se diz, tamente por isso, fecha trinta segundos depois de abrir, com a mesma
que, como a de sua mãe – sua mãe que desapareceu e não dá sinal de determinação, a mesma falta de culpa com que um cirurgião fecha o
vida –, não pode se permitir nenhum luxo, não, sem dúvida, o dos gas- tórax que acaba de serrar depois de ter examinado seu interior putrefato.
tos extras, e muito menos o de desprezar os aportes de simpatizantes Se entrega esse dinheiro todos os meses sem pestanejar é para experi-
como ele, não importa quão insignificantes sejam; nem pelo que signi- mentar esse terror numa dose infinitesimal, numa dose de ficção. Que
fica ter dinheiro, posto que ele, falando com propriedade, não o tem em terror o moverá agora a enfiar a mão no bolso?

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Chega uma carta para ele. Na verdade, o acorda (e só esse detalhe Não está doente. Não quer visitas (mas não lhe desagradaria rece-
lhe sussurra que sua mãe pode ter alguma coisa a ver com o assunto), ber cartas: poderia passar na agência de táxis e dar seu novo endereço
porque tocam a campainha às oito da manhã e um carteiro muito jo- ao senhor W?). E não, não precisa de dinheiro. Com o que ganhou na
vem, estrábico, mais cativo das forças do sono do que ele e com o ca- loteria vai dar para se virar por um tempo (mas que prêmio não seria
rimbo fresco de um beijo de vampiro na carótida, entrega-lhe um en- uma micharia, em comparação com o que perdeu jogando anos a fio?).
velope retangular no qual reconhece a letra da mãe, a letra que a mãe, Além do mais, em circunstâncias que não vêm ao caso, mas que ainda
ao contrário de todas as pessoas deste mundo que alguma vez escre- agora, quando se lembra delas, a fazem corar, o passado, “um verdugo
veram alguma coisa à mão, preservou intacta, mais bela e elegante do cruel, mas sempre mais generoso que os homens”, teve a delicadeza
que quando jovem, quando, num punhado de linhas firmes, parelhas, de regurgitar em sua vida sua psiquiatra dos vinte e cinco anos, uma
como se traçadas com régua, sem o menor sinal de emoção ou dúvida, pioneira das terapias lisérgicas cujo último experimento – tem câncer,
avisa seu pai que voltará ao apartamento da Ortega y Gasset às seis mas careca é a psiquiatra mais bonita da terra – consiste em reunir,
da tarde e que não quer encontrá-lo quando voltar, nem ele nem as ou em propor a reunião – porque nem todos os candidatos recebem a
coisas dele. Dentro do envelope há um postal caseiro, que alguém não proposta com o regozijo despreocupado com que ela a aceita, enfiando
muito hábil em trabalhos manuais montou, menos para enganar que duas ou três bobagens numa mala e indo de trem para San Isidro – dos
para impressionar, colando uma foto sobre uma prancha de papelão que foram lesados por seus tratamentos dos anos 60, jovens brilhantes
e se esquecendo de limpar a cola residual, cujos rastros, endurecidos e promissores detonados pelo ácido e pelos psicofármacos, e asilá-los
sobre a imagem, parecem brotar dela como quistos. A foto é em preto em sua clínica sem custo, por tempo indeterminado, aproveitando que
e branco. Com esse fervor com que os artistas fracassados se precipi- a última paciente paga que tem – uma mulher surda, quase centenária,
tam sobre qualquer imagem já feita, principalmente se for mecânica, filha única de um marchand centro-europeu cuja coleção de pintura é
para imprimir sobre ela sua mesquinha marca humana, a mesma mão torrada em corridas de cavalos – morreu há meses, deixando entre sua
desajeitada sublinhou sombras e volumes com uns traços finos como roupa, embrulhado no papel de uma confeitaria, um pastel pequeno
juncos e entrecruzados, de modo que tudo parece envolto numa espé- (20 × 25) do jovem Matisse. Não precisa de nada. Poderia jurar que já
cie de aramado. É uma casa vitoriana, uma dessas mansões do norte não sabe o que é precisar de alguma coisa. O mundo se tornou uma
da cidade, rodeadas de parques e de árvores, que se gabam se ser lon- idiotice sem estilo. Só num sanatório pode fazer a única coisa que sabe
gevas ou ruminam sua decrepitude com uma indiferença altiva. Está fazer, a única coisa que deseja, a única para a qual lhe resta tempo: es-
caindo aos pedaços, mas a mãe não parece se importar. A única coisa perar que lhe chova dinheiro.
que reprova nela é que dali não se possa ver o rio. E os mosquitos, que Primeiro o pai. Agora a mãe. Enfia a chave na fechadura, empurra
ao cair da tarde baixam em brigadas raivosas e a rondam – sem picá-la: a porta com o joelho – é julho, a madeira inchou com a umidade do
privilégio das rainhas no exílio – enquanto se instala na galeria para ler inverno – e se pergunta se liquidar apartamentos de pais não será seu
os extravagantes manuais que retira da biblioteca da clínica. ofício, sua vocação secreta, sua verdadeira missão no mundo. De fato,

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os sacos de lixo que leva na mão são os que sobraram da limpeza que deixar uma marca, a tal ponto tudo neles é indiferente às vidas que
não teve necessidade de fazer no apartamento do pai. Entra sem saber poderiam chegar a habitá-los.
o que fará. Vender, jogar tudo fora, doar, ficar com alguma coisa? Não Por que então as cartas lhe caem das mãos? Fica desorientado, tudo
tem instruções claras. O falso postal da mãe se interrompe às portas lhe parece estranho e nítido, como um cenário de sonho. Não há mar-
do assunto, quando acaba de lhe pedir que se encarregue de esvaziar cas, tampouco. Mas tampouco se trata do vazio das limpezas fúnebres,
e devolver o apartamento antes do fim do mês, de forma que não seja minucioso e terrível, que só rejuvenescem um espaço à custa de intensi-
preciso pagar outro mês de aluguel. “Estão me chamando”, escreve- ficar o eco da tragédia que o marcou. Afinal de contas, sua mãe sempre
-lhe, como se estivesse falando por telefone – um tipo de quiasmo que se gabou de ter esse talento: estar como se não tivesse estado. Além do
também pratica ao contrário, inserindo tiques epistolares na conversa mais, está viva, mais viva que nunca em seu fastuoso ostracismo úmido,
telefônica mais pedestre –, e ele pensa ouvir umas badaladas doces, sem calefação, sob essas vigas podres que a duras penas sustentam os
meio abafadas, que soam no entardecer do norte, entre trinados de telhados. E talvez o que o aflija seja isto: a ideia de que ela se salvou,
pássaros e copas de árvores agitadas pela brisa que vem do rio, aler- e que salva esteja mais longe dele do que estaria se estivesse morta.
tando meia dúzia de sobreviventes vestidos com roupa clara, cara, sur- Olha ao redor. Não sobra nem falta nada. Não sabe por onde começar.
rada, que não se conhecem mas que sem dúvida compartilham inimi- Em vez de abrir as persianas, acende todas as luzes. Não quer ar. Não
gos, objetos de maldição ou de rancor, e convidando-os a sentar para o quer que nada altere a cena tal e qual sua mãe a deixou ao ir embora.
jantar, ou para o vermute das sete, ou para algum tipo de jogo de mesa Talvez pense que assim, mantendo-a encerrada, sem nenhuma comu-
complexo, eterno, em cuja dinâmica espreitam implicâncias psicoló- nicação com o exterior, a cena perca pouco a pouco esse ar civilizado,
gicas que o surpreenderiam. e se reaqueça, fermente e apodreça – com ele dentro. Não há recados
Apanha a correspondência acumulada sob a porta. Promoções, na secretária eletrônica: só a voz da mãe fingindo estar interessada em
panfletos do bairro, a revista do Automóvel Clube (no nome do dono recebê-los, com aquelas longas pausas que faz entre as palavras, como
do apartamento), um par de contas vencidas, entre elas a da luz, sem se falasse com um estrangeiro ou um retardado, quando na verdade só
abrir, com o aumento astronômico que motiva o último de seus pedi- teme ter entendido mal o manual de instruções do aparelho e estar fa-
dos desesperados de dinheiro. Não há nada que esteja endereçado à zendo as coisas errado. Abre gavetas um pouco ao acaso, só para sentir
mãe, nada nesse desperdício de papel que a nomeie. Nada, tampouco, que está fazendo alguma coisa, que a excursão não foi inútil. Algumas
que a delate na ordem que reina no lugar, estrito, anódino, perfeita- folhas de papel em branco, dois lápis pretos, um par de envelopes, o
mente impessoal, tão similar, como pensa perceber agora, quando cartão de uma imobiliária da região. Pior que um quarto de hotel.
se põe no lugar da mãe pela primeira vez, a esses apartamentos de Vai até o quarto e se joga de bruços na cama. Gostaria de dormir, so-
aluguel temporário integralmente pensados segundo um critério nhar alguma coisa extravagante e instrutiva – uma aventura num cas-
mediano – tamanho, disposição dos móveis, decoração, equipamento, telo com escadas vertiginosas, mesas de pingue-pongue, tartarugas
materiais –, onde ninguém, mesmo que se esforce, jamais poderá brigando às cabeçadas ou fornicando e uma névoa que sobe e encurrala

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tudo –, acordar sem saber onde está e voltar a si pouco a pouco, demo- despenteando-o, enquanto entra naquela nuvem de couro – e exuma
rando os olhos no que encontrem por perto até reconhecê-lo e, por fim, um pacotinho de celofane transparente, como os de confeitos ou de
se lembrar de tudo. Os pés da mesa de cabeceira, por exemplo, que se brindes para réveillon, amarrado numa das pontas com um arame ver-
afinam, estilizados, como as pernas de uma heroína cambaia de dese- melho como o que encontrou caído no tapete.
nho animado. O fio do abajur, que serpenteia e sai de cena, como se se Lá dentro há dinheiro, umas poucas notas amassadas. Ele o man-
disfarçasse. O rodapé pintado, que começou a se encurvar e logo desco- tém suspenso na altura dos olhos, olhando-o com surpresa e receio,
lará da parede. Um trecho de tapete cinza. Esse pedaço de lã ou de linha como se estudam esses presentes perturbadores cujos embrulhos de-
que traça um Z vermelho sobre o tapete. Apanha-o: é um desses arames latam o que contêm mas também o contradizem, porque o embrulho,
finos, flexíveis, forrados de plástico, que se usam para estrangular sa- suntuoso, foi objeto de evidentes cuidados, e o conteúdo carece de va-
cos ou fronhas. Vira-se e fica de barriga para cima, com o eixo afiado lor, é até mesmo difícil imaginar como um presente, ou ao contrário, o
do ventilador de teto apontando diretamente para seu peito, e só então embrulho é um recurso de emergência, improvisado com materiais ba-
nota o único elemento pessoal que destoa do ar impassível do lugar: o ratos, e o conteúdo é uma joia incalculável. Mas um presente? Nem se-
cheiro. Flutua – num segundo plano, antigo, mas mantido na linha – um quer tem certeza de que seja algo destinado a alguém e não uma forma
perfume sujo e velho, o aroma inconfundível do que passou por muitas de conservação. Abre as portas do armário de par em par, deixa que a
mãos, o cheiro da roupa usada, por exemplo, principalmente quando luz do quarto o invada e, depois de varrer de cócoras as duas fileiras de
fica muito tempo fechada num armário. Ou o do dinheiro. sapatos, dá com outro pacotinho escondido num par de mocassins, e
Não há roupa usada no armário da mãe. Ou há, mas impecável, re- com outro achatado sob a sola de uma sandália, e com mais outro que
cém-lavada, vestidos e casacos recém-saídos da tinturaria, envoltos em duas botas de cano alto apertam desajeitadamente.
suas capas de plástico, calças passadas, sapatos lustrados, tudo per- Sempre é pouco dinheiro, caixa pequena, e sempre quantidades
feitamente pendurado nesses cabides de madeira escura, um pouco diferentes, muito específicas, que parecem responder a alguma neces-
côncavos, como que pensados para ombros e costas de outra época, sidade pontual: vinte e cinco pesos, quarenta, trinta e dois, duzentos e
que sua mãe continua sendo capaz de atravessar toda a cidade para vinte, cento e dez. Não é dinheiro economizado. É dinheiro não gasto:
comprar. O armário está cheio de roupa, lotado de roupa, tanto que dinheiro originalmente destinado a pagar ou saldar algo que no último
se pergunta intrigado o que pode ter ficado de fora, quais teriam sido momento ficou paralisado e demorado deste lado, no invernadouro ao
as duas ou três bobagens que ela leva na mala no dia em que resolve qual sua mãe o confina e onde, já há quanto tempo, está vivendo essa
se internar. E quando baixa os olhos e vê as duas fileiras de sapatos vida estéril? Quanto tempo faz que sua mãe coleciona dinheiro? Esses
que cobrem o chão – a segunda na ponta dos pés, com os calcanha- cento e doze pesos, por exemplo. É a soma exata da conta de luz que
res apoiados na parede, de modo a ganhar um pouco de espaço –, vê apanha no chão assim que entra no apartamento, para a qual sua mãe
alguma coisa brilhar, uma espécie de lampejo, no fundo de umas bo- lhe pede a última porção de dinheiro. É esse dinheiro. Não só a mesma
tas curtas de chuva. Agacha-se – um impermeável acaricia sua cabeça, quantia mas as mesmas notas que ele lhe dá: duas de cinquenta, uma

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de dez, uma de dois. Numa das de cinquenta reconhece o texto da cor- literalmente morta, que só duas pessoas falaram e quase sempre sem
rente supersticiosa que sua mãe lê em voz alta, rindo, quando as re- saber que a falavam, e frequentemente sem saber também o que esta-
cebe. De modo que entra no armário possuído por uma fúria estranha, vam dizendo uma para a outra, nem para quê, nem que valor especial,
disposto a rastelar até o último centímetro quadrado. Encontra mais que brilho, que obscuro privilégio honrava isso que eles, cegos, consi-
dinheiro, ninhos de dinheiro semeados entre pulôveres, na gaveta dos deravam moeda corrente.
sutiãs, disfarçados entre meias, na estante das regatas, onde brotam
como minas de naftalina ou surpresas de Páscoa. Sempre seu dinheiro:
tudo o que lhe empresta, tudo o que lhe dá para que gaste, pague,
cubra, para que se salve dessas emergências que a sufocam. Aparecem
nas duas gavetas da mesa de cabeceira, entre tampões para os ouvidos
e pares de óculos quebrados; na caixa de primeiros socorros do ba-
nheiro, fazendo par com frascos de analgésicos; na cozinha, na gaveta
dos talheres, no guarda-comida e até no forno – dois pacotinhos de di-
nheiro brilhando no escuro, parados no meio de uma assadeira, como
estrelas precoces de um teatro negro, e vai abrindo os pacotinhos e des-
cobre que o dinheiro retrocede no tempo, regride, sempre mais jovem
e mais velho ao mesmo tempo. Há notas e moedas de cinco, dez, vinte,
quarenta anos: austrais, pesos argentinos, pesos lei, pesos moeda na-
cional, quantias volúveis e ao mesmo tempo estranhamente obtusas,
três mil duzentos e cinco, vinte e dois mil, quatrocentos e quarenta,
vinte e sete, somas únicas cujas bordas irregulares, como as peças de
um quebra-cabeça, só se encaixam em certos vãos, numa hora, num
lugar exatos, onde a vida de sua mãe se enlaça com a sua. Está cheio
de dinheiro, agora. Tem mais dinheiro do que jamais teve ou terá. Mas
é um dinheiro perdido, ao mesmo tempo ermo e glorioso, tão deso-
lador quanto esses fósseis que se escavam e são comemorados como
achados providenciais para a humanidade, de tanto que o que pare-
cem dizer do mundo é único, mas tempos depois, examinados com
esmero e paciência, trazem amargura e acabam desanimando, porque
a língua em que o dizem é uma língua morta, não impenetrável, mas

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História do dinheiro terminou de ser escrito em julho de 2012 na residência © Cosac Naify, 2014
de artistas do Castello di Fosdinovo, sob a asa protetora de Pietro Malaspina e © Alan Pauls, 2013
Publicado no Brasil mediante acordo com a Editorial Anagrama s.a, 2013
Maddalena Fossombroni, artistas da hospitalidade, e sob a influência benéfica de
Bianca Maria Aloisia, fantasma. Coordenação editorial heloisa jahn
Assistente editorial raquel toledo
Projeto gráfico luciana facchini
Capa e composição nathalia cury
Revisão laura rivas e cristina yamazaki
Produção gráfica aline valli

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

Pauls, Alan [1959-]


História do dinheiro: Alan Pauls
Título original: Historia del dinero
Tradução: Josely Vianna Baptista
São Paulo, Cosac Naify, 2014
192 pp., 5 ils.

isbn 978-85-405-0697-8

1. Ficção argentina I. Título

cdd-863.82

Índice para catálogo sistemático:


I. Ficção argentina: 863.82

crédito das imagens


Capa: malas de dinheiro apreendidas pelo Serviço Secreto norte-americano, cosac naify
Nova York, 1972. © Underwood Archives / Getty Images. rua General Jardim, 770, 2 .º andar
Primeira guarda: cédula de cem pesos argentinos de 1981; modelo de cheque retirado 01223-010 São Paulo, sp
de manual de contabilidade de 1985. cosacnaify.com.br [11] 3218 1444
Segunda guarda: recorte de matéria da revista argentina Gente de 1984; cédula de atendimento ao professor [11] 3823 6560
dois pesos argentinos de 2006. professor@cosacnaify.com.br
fontes Quadraat e Helvetica Neue
papel Pólen Soft 80 g/m2
impressão Geográfica

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