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Bandeira de Angola
DADOS PRINCIPAIS:
Capital: Luanda
Moeda: kuanza
SUMÁRIO
Cronograma da disciplina 03
31/08/2018 - Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas (Fábio Leite) 05
14/09/2018 – Retrado do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (Albert 17
Memmi)
31/08/2018 e 14/09/2018- Os condenados da terra (Franz Fanon) 24
28/03/2017 - “A década de 50. O movimento dos Novos intelectuais de Angola. 29
Mensagem e Cultura” (Carlos Ervedosa)
28/09/2018 – “Ngola Ritmos, um breve histórico” (Tania Macêdo) 42
19/10/2018 - (Fragmento de ensaio) – “Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três 44
linhas uma maneira de pensar o texto” (Manuel Rui)
18/04/2017 - “A oratura em Angola” (Tania Macêdo) 46
18/04/2017 - “Prólogo - A memória africana” (Amadou Hampâté-Ba). 49
19/10/2018 - “Tradição viva” (Hampatê-Ba) 51
19/10/2018 - “Modelos críticos das representações da oralidade nos textos 80
literários africanos e sua adequação no quadro das teorias pós-coloniais” (Ana
Mafalda Leite)
26/10/2018 – José Luandino Vieira: consciência nacional e desassossego. (Rita 91
Chaves)
26/10/2018 – “Luandino Vieira: engajamento e utopia”(Vima Lia Martin) 106
09/09/2018 - “A literatura e a arte em Angola na pós-independência” (Carmem 117
Lúcia Tindó Secco
09/09/2018 - ”Sob o signo de uma nostalgia projetiva: a poesia angolana 127
nacionalista e a poesia pós-colonial” (Inocência Mata)
2-09/09/2018 - “Bordejando a margem (escrita feminina, cânone africano e 140
encenação de diferenças)” (Laura Padilha)
09/09/2018 - Ruy Duarte: a educação pela terra (Rita Chaves) 150
ANTOLOGIA 154
José da Silva Maia Ferreira 155
Agostinho Neto 159
Antonio Jacinto 162
Viriato da Cruz 165
Boaventura Cardoso 166
Ana Paula Tavares 168
Ruy Duarte de Carvalho 172
David Mestre 176
João Maimona 178
João Tala 179
José Luís Mendonça 180
3
CRONOGRAMA – 2018
AGOSTO
24 – Apresentação do Curso
31 – Literatura e colonialismo – Franz Fanon
FANON, Franz. Os condenados da terra. Cap. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra (Apostila)
SETEMBRO
14 – Literatura e colonialismo
FANON, Franz. Os condenados da terra. Cap. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra (Apostila)
Entrega de fichamento – (Optativo)
21 – Cronologia da literatura angolana
Poesia de José da Silva Maia Ferreira (Apostila)
TAVARES, Ana Paula. Cinquenta anos de literatura angolana. São Paulo,Via Atlântica,
1999, número 3, p. 124-131.
28 – A arte anti-colonial em Angola – movimentos de Literatura e Música
Texto sobre Ngola Ritmos (Apostila)
Texto “A década de 50. O movimento dos Novos intelectuais de Angola. Mensagem e
Cultura” (Apostila)
OUTUBRO
05 – A literatura anti-colonial em Angola – poesia
19- Literatura anti-colonial – O recurso à tradição
HAMPATÉ-BÂ . “Prólogo – A memória africana” In HAMPATÉ-BÂ, A. Amkoullel, o
menino fula. São Paulo: Casa das Áfricas; Palas Athena,2003. (Apostila)
LEITE, Ana Mafalda. “Modelos críticos das representações da oralidade nos textos
literários africanos e sua adequação no quadro das teorias pós-coloniais”. (Apostila)
MONTEIRO, Manuel Rui. Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três linhas uma
maneira de pensar o texto. In MEDINA, C. Sonha, manana África. São Paulo: Epopéia,
1987. (Apostila)
Poemas de Agostinho Neto, Antonio Jacinto e Viriato da Cruz (Apostila)
26 - A literatura anti-colonial em Angola. Luuanda
CHAVES, Rita. José Luandino Vieira: consciência nacional e desassossego. In Angola
e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê, 2005.
CHAVES, R. e MACÊDO, T. “Breve apresentação dos textos de Boaventura Cardoso;
PADILHA, Laura. “Pelo ventre sagrado da terra” ; FONSECA, Maria Nazareth.
“Processos narrativos e reciações linguageiras na obra de Boaventura Cardoso”. In
CHAVES, Rita; MACEDO, Tania e MATA, Inocência (Org). Boaventura Cardoso, a
escrita em processo. Luanda; São Paulo: UEA, Alameda editorial, 2005.
MACÊDO, Tania. Os rios e seus discursos em Rosa, Luandino e Mia Couto. In Angola
e Brasil. Estudos Comparados. São Paulo: Arte & Ciência, 2002.
SEPÚLVEDA, Lenirce. Luandino Vieira: paixão e arte de escre(vi)ver. In SEPÚLVEDA,
Maria do Carmo & SALGADO, Maria Teresa. (org.) África & Brasil: letras em laços. Rio
de Janeiro, Atlântica, 2000.
VÁRIOS. Luandino – José Luandino Vieira e a sua obra. Lisboa: Edições 70, 1980.
NOVEMBRO
09 – A literatura no pos-independência e a Poesia de Ana Paula Tavares
MATA, Inocência. Sob o signo de uma nostalgia projetiva: a poesia angolana
nacionalista e a poesia pós-colonial. Belo Horizonte: Scripta, 2006, v. 10, p. 25-42.
(Apostila)
SECCO, Carmen Tindó. Por entre sonhos e ruínas – reflexões sobre a atual poesia
angolana. Rio de Janeiro: ABE Graph Editrora/Barroso Produções Editoriais, 2003, p.
262-279. (Apostila)
4
ABDALA JR., Benjamin. Entre imagens da lua e do sol, a passagem: uma leitura
antropológica de três poetas angolanas. In De vôos e ilhas. Literatura e
comunitarismos. São Paulo: Ateliê, 2003.
PADILHA, Laura. “Paula Tavares e a semeadura da palavra” e “Corpo e terra: um
entrecruzamento simbólico em falas poéticas de mulheres africanas”. In Novos
pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre:
EDPUCRS, 2002.
16 - Exibição do filme No ritmo dos Ngola Ritmos
DEZEMBRO
07 - Entrega do trabalho escrito (Obrigatório)
Trabalho escrito em que se realize uma análise comparativa entre Luuanda, Os da minha
rua e As aventura de Ngunga (escolha, preferencialmente Personagens OU Espaço OU
Relação entre Textos e Contexto em que se desenrolam as narrativas – NÃO
ESQUECENDO QUE SE TRATA DE UM TRABALHO DE LITERATURA)
(Deverá ter de 06 a 10 páginas, e conter obrigatoriamente Introdução, Análise e
Bibliografia).
FEVEREIRO
FORÇA VITAL
A questão da força vital, que foi objeto das preocupações de Tempels (1969) e Kagamé
(1976), refere-se àquela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser,
não havendo separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem uma
única realidade. Importa notar, entretanto, que a vitalidade universal, capaz de assim
individualizar-se, é relacionada com aspectos precisos da problemática que envolve,
possibilitando objetivar as relações que se estabelecem entre homem e natureza e aparecendo
como elemento pertencente ao domínio da consciência social.
certos demiurgos - entes por ele concebidos - e ao próprio homem. De fato, uma vez ocorrida
a doação da vitalidade que faz configurar a vida individualizada dos seres, estes são
complementados pelos demiurgos, o que também explica parte da dimensão sagrada de que é
portadora a natureza: quando ocorre o ato de complementação, uma parte da vitalidade
desses entes passa a integrar a constituição mais íntima dos seres, manifestando-se como
dimensão específica de sua materialidade. Mas a elaboração contínua do mundo é também
tarefa do homem nesse intercâmbio privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo ações
transformadoras ao criar o ser humano no âmbito de sua competência, assim como aqueles
elementos ligados à organização da sociedade. É o caso, por exemplo, dos processos de
socialização, com suas etapas iniciáticas - que fazem configurar o homem proposto pela
sociedade em sua dimensão social -, e também das atividades relacionadas com outras
instâncias históricas, onde as ações humanas complementam a obra inicial do preexistente,
colocando-a, com o cuidado e conhecimento exigidos pela vitalidade que anima os seres, em
estreita relação com a sociedade, como ocorre, para criar outro exemplo, com a manipulação
da terra, fator básico da produção. Pode ser acrescentado ainda que a noção de vitalidade
enquanto elemento ligado à explicação da realidade desdobra-se mesmo até seu nível
empírico mais imediato, manifestando-se na vida cotidiana. Isso ocorre quando se considera,
simplesmente, que algo ou alguém é por motivos que estabelecem uma relação diferenciada
de qualquer natureza, envolvendo real ou simbolicamente uma propriedade distintiva. De
fato, a expressão ele é forte é utilizada com grande frequência nas mais variadas situações.
Dessa forma, a noção de força vital não se limita às instâncias das formulações
abstratas, situando-se materialmente no interior das práticas históricas e da explicação da
realidade.
PALAVRA
Dentro do universo que lhe é próprio nessas sociedades, a palavra emerge como
fator ligado à noção de força vital e, em seu aspecto mais primordial, tem como principal
detentor o próprio preexistente. Nesse sentido, não raro, a palavra aparece como substância
da vitalidade divina utilizada para a criação do mundo, confundindo-se com o chamado sopro
ou fluido vital, sendo que no homem essa herança manifesta-se, em uma de suas formulações,
através da respiração. o conjunto força vital/ palavra/ respiração é elemento constitutivo da
personalidade, emergindo plenamente quando o homem o estrutura de maneira a criara
linguagem e o exterioriza através da voz. Outro aspecto deve ser realçado. Sendo a palavra
dotada de uma parcela da vitalidade do preexistente, é necessariamente uma força inerente à
personalidade total, daí que sua utilização deve ser cuidadosamente orientada, pois que uma
vez emitida algumas de suas porções desprendem-se do homem e reintegram-se na natureza.
Nesse sentido deve ser lembrado que a palavra é elemento desencadeador de ações ou
energias vitais. De fato, ao ser dirigida para atingir determinados fins, interfere na existência
pois que, uma vez absorvida, pode provocar reações, controláveis ou não. É por isso que o
aparelho auditivo é assemelhado aos órgãos reprodutores femininos: ambos são capazes de
fazer gestar algo decisivo pela penetração, no interior dos indivíduos, de um elemento vital
desencadeador do processo.
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HOMEM
Nessas sociedades o homem é definido como síntese de alguns elementos vitais que
se encontram em interação dinâmica permanente. Em generalização ampla, é possível afirmar
que o homem é constituído de pelo menos três elementos vitais: o corpo, o princípio vital de
animalidade e espiritualidade e o princípio vital que estabelece a imortalidade do ser humano.
A esses três grandes princípios vitais naturais que integram a noção de pessoa,
devem ser acrescentados aqueles de ordem social: o nome e a socialização com suas fases
iniciáticas, bem como, em versão ampla do conceito de existência, os ritos funerários, cuja
9
SOCIALIZAÇÃO
Para alcançar esses objetivos, as crianças são introduzidas em grupos formados pelo
critério de idade, nos quais ingressam logo após ultrapassadas as fases mais incipientes da
infância. Desses grupos nascem aquelas figuras sociais a que se convencionou chamar de
gerações: são indivíduos que passam por processos educacionais comuns a todos os
componentes dos grupos segundo os estágios de aprendizado em que se encontrem. Em geral
as pessoas atingem juntas a maturidade, submetendo-se coletivamente aos atos iniciáticos
previstos pelo costume e que marcam etapas vencidas. Dessa maneira, os integrantes desses
grupos e dessas gerações adquirem consciência ótima de sua condição social e dos principais
valores, direitos e deveres de sua sociedade, ligando-se estreitamente em razão da
solidariedade que se estabelece entre eles. Ao vencerem as últimas etapas, são considerados
capazes de integração social e representantes legítimos da sociedade.
MORTE
ANCESTRAIS E ANCESTRALIDADE
FAMÍLIA
PRODUÇÃO
Das alianças seladas com a terra pelas famílias nascem, como indicado antes, as
unidades de produção e a comunidade, elementos sintetizados na família-aldeia. Dentro dessa
proposta comunitária que orienta a existência social, o trabalho transparece como outro
grande instrumento da produção, encontrando-se vitalmente associado a ele segundo as
normas de interdependência estabelecidas por outros fatores que não os meramente
econômicos. É bem verdade que nessas sociedades o trabalho se traduz como ação
comunitária por excelência, pois que a sociedade dedica ao labor coletivo cerca de dois terços
do tempo destinado às atividades agrárias. O tempo restante é usado para o trabalho exercido
em subáreas cedidas às famílias conjugais que compõem a família extensa, possibilidade esta
que é, entretanto, vedada aos homens solteiros. Os jovens que ainda não concluíram
13
PODER
***
conjunturas, em nível planetário. Não se pode esquecer, entretanto, que tal realidade não
implica, necessariamente, na destruição de singularidades.
Tal proposição não se formula apenas ao nível de fator histórico com o qual se
defrontam as sociedades negro-africanas na atualidade. De fato, embora tais processos
universalizantes se apresentem hoje sob formulações capitais para o conjunto da humanidade,
eles já integraram, nas modalidades próprias das etapas históricas de suas manifestações, as
realidades totais das civilizações de que se trata aqui. Realmente, a história evidencia, por
exemplo, que não obstante todos os processos desestabilizadores e desestruturadores - alguns
da mais extrema crueldade - impostos a essas sociedades em épocas não tão distantes, elas
absorveram os impactos decorrentes e os transformaram, em fases - e não totalidades - de sua
realidade, fases essas que, embora marcando época, não foram suficientes para levá-las à
aniquilação. Ou seja, as sociedades negro-africanas sempre viveram suas próprias realidades
no fluxo de processos sociais abrangentes, que se definem seja em relação a grupos extensos
caracterizados pelos diversos complexos culturais, seja em relação ao conjunto de civilizações
negro-africanas, que formam, mais do que uma simples constelação de povos, um universo
histórico elaborado pela rede de relações sociais totais típicas do universo social que define
essas sociedades. Em outras palavras, essas civilizações mantiveram e mantém a sua
continuidade histórica - e não apenas a sobrevivência histórica - e nesse processo a natureza
singular de seus valores civilizatórios é mecanismo de sua materialidade.
BIBLIOGRAFIA
ABLE, Jean-Albert. Histoire et Tradition Politique du Pays Abouré. Abidjan, Imp. Nationale, 1978.
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GRIAULE, Marcel. Dieux d’Eau: Entretiens avec Ogotemmêli. Paris, Fayard, 1966.
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KAGAME, Alexes. La Philosophie Bantu Comparée. Paris, Présence Africaine, 1976.
KOUSSIGAN, Guy-Adjété. L’Homme et la Terre. Paris, Ed. Berger-Levrault, 1966.
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LEITE, Fábio Rubens da Rocha. A Questão Ancestral. Notas sobre ancestrais e instituições ancestrais em
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M'BOW, Amadou Mahtar e outros. Le Nouveau Dossier Afrique. Verviers, Marabout SS, 1977.
PALAU-MARTI, Monserrat. Le Roi-Dieu au Bénin. Paris, Éditions Berger-Levrault, 1964.
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ZAHAN, Dominique. Societé d’initiation Bambara: le N'Domo, le Kore. Paris, Mouton, 1960.
LEITE, Fábio. África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 18-19
(1).103- 118, 1995/1996
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1. Existe o Colonial?
Muitos ainda imaginam o colonizador como um homem de grande estatura, bronzeado pelo sol,
calçado com meias-botas, apoiado em uma pá – pois não deixa de por mãos à obra, fixando seu
olhar ao longe, no horizonte de suas terras; nos intervalos de sua luta contra a natureza, dedica-se
aos homens, cuida dos doentes e diffunde a cultura, um nobre aventureiro, enfim um pioneiro.
Não sei se essa imagem convencional jamais correspondeu a alguma realizada ou se às gravuras do
dinheiro colonial se limita. Os motivos econômicos do empreendimento colonial estão,
atualmente, esclarecidos por todos os historiadores da colonização; ninguém acredtia mais na
missão cultural e moral, mesmo original, do colonizador. Em nossos dias, ao menos, a partida para
a colônia não é a escolha de uma luta incerta, procurada precisamente por seus perigos, não é a
tentação da aventura, mas a da facilidade.
É suficiente, aliás, interrogar o europeu das colônias: que razões o levaram a expatriar-se e,
principalmente, a persistir em seu exílio? Acontece que ele fala também em aventura, em
pitoresco e em expatriação. Mas, por que não os procurou na Arábia, ou simplesmente na Europa
Central, onde não se fala sua própria língua, onde não encontra um grupo importante de
compatriotas seus, uma administração que o serve, um exército que o protege? A aventura
comportaria mais imprevisto; essa expatriação, no entanto, mais certa e de melhor qualidade, teria
sido de duvidoso proveito: a expatriação colonial, se é que há expatriação, deve ser antes de mais
nada, bastante lucrativa. Espontaneamente, melhor que os técnicos da linguagem, nosso viajante
nos proporá a melhor definição da colônia: nela ganha-se mais, nela gasta-se menos. Vai-se para a
colônia porque nela as situações são garantidas, altos os ordenados, as carreiras mais rápidas e os
negócios mais rendosos. Ao jovem diplomata oferece-se um posto, ao funcionário uma promoção,
ao comerciante reduções substanciais de impostos, ao industrial matéria-prima e mão-de-obra a
preços irrisórios.
Mas seja: suponhamos que exista esse ingênuo, que desembarque por acaso, como viria a
Toulouse ou a Comar.
Precisaria de muito tempo para descobrir as vantagens de sua nova situação? Pelo fato de ser
percebido mais tarde, o sentido econômico da viagem colonial nem por isso deixa de impor-se, e
rapidamente. O europeu das colônias pode também, é claro, amar essa nova região, apreciar o
pitoresco de seus costumes. Mas, mesmo repelido pelo seu clima, mal à vontade no meio de suas
multidões estranhamente vestidas, saudoso do seu país natal, o problema doravante é o seguinte:
deve aceitar esses aborrecimentos e esse mal-estar em troca de vantagens da colônia?
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Bem cedo não esconde mais: é frequente ouvi-lo sonhar em voz alta: alguns anos ainda e comprará
uma casa na metrópole... uma espécie de purgatório em suma, um purgatório remunerado.
Doravante, mesmo farto, enjoado de exotismos, algumas vezes doente, ele se prende: a armadilha
funcionará até a aposentadoria ou mesmo até a morte. Como retornar à metrópole, onde lhe seria
necessário reduzir seu padrão de vida pela metade? Retornar à lentidão viscosa de sua carreira
metropolitana?
Quando, nestes últimos anos, com a aceleração da história, a vida se tornou difícil,
frequentemente perigosa para os colonizadores, foi esse cálculo tão simples, porém irrespondível,
que os reteve. Mesmo aqueles que na colônia são chamados aves de arribação não manifestaram
excessiva pressa em partir. Alguns, considerando a volta, puseram-se a temer, de forma
inesperada, uma nova expatriação: a de se reencontrarem em seu país de origem. Podemos
acreditar em parte; deixaram seu país há muito tempo, e nele não têm mais amizades vivas, seus
filhos nasceram na colônia e na colônia enterraram seus mortos. Mas, exageram sua dilaceração;
se organizaram seus hábitos quotidianos na cidade colonial e, para ela importaram e a ela
impuseram os costumes da metrópole, onde passam regularmente suas férias, de onde recolhem
suas inspirações administrativas, políticas e culturais, é para a metrópole que seus olhos
permanecem constantemente voltados.
Sua expatriação, na verdade, é de base econômica: a do novo-rico que se arrisca a ficar pobre.
Resistirão, pois, o maior tempo possível, porque quanto mais passa o tempo mais duram as
vantagens, que bem merecem algumas inquietações e que sempre será cedo demais para perder.
Mas, se um dia o econômico é atingido, se as “situações”, como se diz, correm perigos reais, o
colonizador sente-se então ameaçado e pensa, seriamente, dessa vez, em regressar à metrópole.
No plano coletivo, a questão é ainda mais clara. Os empreendimentos coloniais nunca tiveram
outro sentido confessado. Quando das negociações franco-tunisianas, alguns ingênuos se
admiraram da relativa boa vontade do governo francês, particularmente no domínio cultural,
depois da aquiescência, aliás rápida, dos chefes da colônia. É que as cabeças pensantes da
burguesia e da colônia tinham compreendido que o essencial da colonização não era nem o
prestigio da bandeira, nem a expansão cultural, nem mesmo o controle administrativo e a salvação
de um corpo de funcionários. Admitiram que se pudesse transigir em tudo, desde que o principal,
quer dizer, as vantagens econômicas, fosse salvo. E, se o Sr, Mendes-France pôde efetuar sua
famosa viagem-relâmpago, foi com sua benção e sob a proteção de um deles. Foi esse exatamente
seu programa e o conteúdo mais importante das convenções.
O INDÍGENA E O PRIVILEGIADO
Tendo descoberto o lucro, por acaso ou porque o havia procurado, o colonizador não tomou ainda
consciência, apensar disso, do papel histórico que deverá desempenhar. Precisa dar mais um passo
no conhecimento de sua nova situação: falta-lhe compreender igualmente a origem e a
significação desse lucro. A bem dizer, isso não tardará muito. Poderia demorar muito tempo para
ver a miséria do colonizado e a relação dessa miséria com seu bem-estar? Percebe que esse lucro
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só é tão fácil porque tirado de outros. E suma, faz duas aquisições em uma: descobre a existência
do colonizado e ao mesmo tempo seu próprio privilégio.
Sabia, sem dúvida, que a colônia não era povoada unicamente por colonos ou colonizadores. Tinha
mesmo alguma ideia dos colonizados graças aos livros de leitura de sua infância: tinha visto no
cinema certo documentário sobre alguns de seus costumes, escolhidos de preferência pela sua
estranheza. Mas, esses homens, pertenciam precisamente aos domínios da imaginação, dos livros
ou do espetáculo. Não lhe diziam respeito, ou muito pouco, indiretamente, por intermédio de
imagens comuns a toda a sua nação, epopeias militares, vagas considerações estratégicas.
Inquietavam-no um pouco desde que tinha decidido ir ele mesmo para a colônia; não mais, porém
do que o clima, talvez desfavorável, ou a água que diziam ser por demais calcária. E eis que esses
homens, subitamente, deixam de ser simples elementos de cenário geográfico ou histórico, e
instalam-se em sua vida.
Nem mesmo pode decidir-se a evitá-los: deve viver em relação constante com eles, pois é essa
relação mesma que lhe permite esta vida, que decidiu procurar na colônia; é essa relação rendosa,
que cria o privilégio. Encontra-se em um dos pratos de uma balança que carrega, no outro, o
colonizado. Se seu nível de vida é elevado, é porque o do colonizado é baixo; se pode beneficiar-se
de mão-de-obra, de criadagem numerosa e pouco exigente, é porque o colonizado é explorável
impunemente e não se acha protegido pelas leis da colônia; se obtém tão facilmente postos
administrativos, é porque esses postos lhe são reservados e porque o colonizado deles está
excluído; quanto mais respira à vontade mais o colonizado sufoca.
Tudo isso, não pode deixar de ser por ele descoberto. Não é ele que correria o risco de ser
convencido pelos discursos oficiais, pois esses discursos são redigidos por ele ou por seu primo, por
seu amigo; as leis que estabelecem seus direitos exorbitantes e os deveres dos colonizados, é ele
que as concebe e, porque é incumbido de sua aplicação, está necessariamente no segredo das
instruções discriminatórias, muito pouco discretas, aliás, referentes às classificações nos concursos
e à distribuição dos empregos. Se pretendesse ficar cego e surdo em relação ao funcionamento de
toda a máquina, bastaria que recolhesse os resultados: ora, é ele o beneficiário de todo o
empreendimento.
O USURPADOR
É impossível, finalmente, que não verifique a ilegitimidade constante de sua situação. Ilegitimidade
que, além disso, é de certa maneira dupla. Estrangeiro, chegado a um país pelos acasos da história,
conseguiu não apenas um lugar, mas tomar o do habitante, e outorgar-se privilégios
surpreendentes em detrimento dos que a eles tinham direito. E isso, não em virtude das leis locais,
que legitimam de certo modo a desigualdade pela tradição, mas ao subverter as normas vigentes,
substituindo-as pelas suas.
Revela-se assim duplamente injusto: é um privilegiado e um privilegiado não legítimo, quer dizer,
um usurpador. E, finalmente, não apenas aos olhos do colonizado, mais aos seus próprios olhos. Se
objeta algumas vezes que privilegiados também existem no meio dos colonizados, feudais,
burgueses, cuja opulência iguala ou ultrapassa a sua, o faz sem convicção. Não ser o único culpado
pode tranquilizar, mas não absolver. /reconheceria facilmente que os privilégios dos privilegiados
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autóctones são menos escandalosos que os seus. Sabe também que os colonizados mais
favorecidos serão sempre recusados, que certas vantagens lhes serão estritamente reservadas. Em
resumo, a seus olhos, como aos olhos de suas vítimas, sabe-se usurpador: é preciso que se
acomode com esses olhares e com tal situação.
O PEQUENO COLONIZADOR
Antes de ver como essas três descobertas – lucro, privilégio, usurpação -, esses três progressos da
consciência do colonizador vão modelar sua figura por meio de que mecanismos vão transformar o
candidato colonial em colonizador ou em colonialista, é preciso responder a uma objeção corrente:
a colônia, dizem constantemente, não inclui apenas colonos. Pode-se falar de privilégios em
relação a ferroviários, a funcionários médios ou mesmo a pequenos agricultores, que contam o
dinheiro para viver tanto quanto seus homólogos metropolitanos?...
Certamente todos os europeus das colônias não são potentados, não dispõem de milhares de
hectares e não controlam administrações. Muitos são, eles mesmos, vítimas dos senhores da
colonização. São por eles economicamente explorados, politicamente utilizados, a fim de
defenderem interesses que, frequentemente, não coincidem muito com os seus próprios. Mas, as
relações sociais quase nunca são unívocas. Contrariamente a tudo o que a esse respeito se prefere
acreditar, aos votos piedosos e aos protestos interessados: o pequeno colonizador é, de fato,
geralmente solidário dos colonos e defensor encarniçado dos privilégios coloniais. Por que?
É que o privilégio é um negócio relativo: mais ou menos, porém todo colonizador é privilegiado,
pois o é comparativamente e em detrimento do colonizado. Se os privilégios dos poderosos da
colonização são ostensivos, os privilégios miúdos do pequeno colonizador, mesmo o menor de
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todos, são muito numerosos. Cada gesto de sua vida quotidiana o coloca em relação ao colonizado
e por meio de cada gesto se beneficia de uma vantagem reconhecida. Tem problemas com a lei? A
polícia e mesmo a justiça ser-lhe-ão mais clementes. Trem necessidade de serviços da
administração? Ela ser-lhe-á menos embaraçosa, abreviar-lhe-á as formalidades, reservar-lhe-á um
guichê, onde, com os pedintes menos numerosos, a espera será menos longa. Procura um
emprego? Precisa passar em um concurso? Lugares, postos ser-lhe-ão antecipadamente
reservados, as provas serão na sua língua, ocasionando dificuldades eliminatórias ao colonizado.
Será ele, então, tão cego ou tão obnubilado que jamais possa ver que, em condições objetivas
iguais, classe econômica, méritos iguais, é sempre favorecido? Como não se voltaria, de vez em
quando, a fim de perceber todos os colonizados, algumas vezes antigos condiscípulos ou
confrades, dos quais tanto se distanciou.
Finalmente, mesmo que nada peça, mesmo que de nada precise, basta-lhe aparecer para ser
recebido com o preconceito favorável de todos aqueles que têm importância na colônia; e mesmo
dos que não a têm, pois se beneficia do preconceito favorável do respeito do próprio colonizado
que lhe concede mais que aos melhores dos seus; que tem, por exemplo, mais confiança na sua
palavra do que na palavra dos seus. É que ele possui, de nascença, uma qualidade independente
dos seus méritos pessoais, da sua classe objetiva: é membro do grupo dos colonizadores, cujos
valores reinam e dos quais participa. O país é ritmado pelas suas festas tradicionais, mesmo
religiosas, e não pela dos habitantes; o feriado semanal é o do seu país de origem, é a bandeira de
sua nação que flutua sobre os monumentos, é sua língua materna que permite as comunicações
sociais: mesmo seu traje, sua pronúncia, suas maneiras acabam por impor-se à imitação do
colonizado. O colonizador participa de um mundo superior, do qual não pode deixar de recolher
automaticamente os privilégios.
E é ainda sua situação concreta, econômica, psicológica, o complexo colonial, em relação aos
colonizado de um lado, aos colonizadores de outro, que explicará a fisionomia dos outros grupos
humanos: - aqueles que não são nem colonizadores nem colonizados. Os nacionais de outras
potências (italianos, malteses da Tunísia), os candidatos à assimilação (a maioria dos judeus), os
assimilados de data recente (corsos na Tunísia, espanhóis na Algéria). Podemos acrescentar aqui os
representantes da autoridade recrutados entre os próprios colonizados.
A pobreza dos italianos ou dos malteses é tal que pode permanecer ridículo falar de privilégio a seu
respeito. Todavia, se frequentemente são miseráveis, as migalhas que lhes dispensam sem nelas
pensar, contribuem para diferenciá-los, para separá-los nitidamente dos colonizados. Mas ou
menos favorecidos em relação às massas colonizadas, tendem a estabelecer com elas relações de
estilo colonizador-colonizado. Ao mesmo tempo, não coincidindo com o grupo colonizador, não
tendo o mesmo papel no complexo colonial, dele se distinguem cada um à sua maneira.
Todos esses matizes são facilmente legíveis na análise de suas relações com o fato colonial. Se os
italianos da Tunísia sempre invejaram os privilégios jurídicos e administrativos dos franceses, estão
de qualquer modo em melhor situação que os colonizados. São protegidos por leis internacionais e
por um consulado muito atuante, sob o constante olhar de uma metrópole atenta.
Frequentemente, longe de serem recusados pelo colonizador, são eles que hesitam entre a
22
assimilação e a fidelidade a sua pátria. Enfim, mesma origem europeia, religião comum, maioria de
costumes idênticos os aproximam sentimentalmente do colonizador. De tudo isso resultam
algumas vantagens que, certamente, o colonizado não possui: emprego mais fácil, menor
insegurança contra a total miséria e a doença, escolarização menos precária; alguns cuidados
enfim da parte do colonizador, a dignidade mais ou menos respeitada. Compreendemos que, por
deserdados que sejam no absoluto, terão, frente ao colonizado, várias condutas semelhantes às do
colonizador.
Não se beneficiando da colonização, senão por tabela, pelo seu parentesco com o colonizador, os
italianos estão bem menos afastados dos colonizados que os franceses. Não têm com eles essas
relações contrafeitas, formais, esse tom que revela sempre o senhor, dirigindo-se ao escravo, do
qual não se pode desembaraçar totalmente o francês. Ao contrário do francês, os italianos falam,
quase todos, a língua dos colonizados, contraem com eles amizades duráveis e mesmo, sinal
particularmente revelador, casamentos mistos. Em suma, não tendo nisso maior interesse, os
italianos não mantêm entre eles e os colonizados grande distância A mesma análise seria válida,
com alguns matizes, em relação aos malteses.
A situação dos israelitas – eternos candidatos hesitantes e recusados à assimilação – pode ser
encarado de uma perspectiva semelhante. Sua ambição constante, e quão justificada, é a de
escapar à sua condição de colonizado, carga suplementar para um balanço já pesado. Procuram,
assim, parecer-se com o colonizador, na esperança confessada de que deixe de reconhecê-los
diferentes deles. Daí seus esforços para esquecer o passado, para mudar de hábitos coletivos, sua
adoção entusiasta da língua, da cultura e dos costumes ocidentais. Mas, se o colonizador nem
sempre desencoraja abertamente esses candidatos à sua semelhança, jamais lhes permitiu
também realiza-la. Vivem assim em penosa e constante ambiguidade: recusados pelo colonizador,
participam em parte da situação concreta do colonizado, têm com ele solidariedade de fato; por
outro lado, recusam os valores do colonizado enquanto pertencentes a um mundo decadente, do
qual esperam escapar com o tempo.
Todos, enfim, mais ou menos mistificados, mais ou menos beneficiários, abusados a ponto de
aceitar o injusto sistema (defendendo-o ou resignando-se a ele) que mais fortemente pesa sobre o
colonizado, Seu desprezo pode ser apenas uma compensação de sua miséria, como o anti-
semitismo europeu é, frequentemente, um derivativo cômodo. Tal é a história da pirâmide dos
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tiranetes: cada um, socialmente oprimido por outro mais poderoso, encontra sempre um menos
poderosos em quem apoiar-se, tornando-se pro sua vez, tirano. Que desforra e que orgulho para
um pequeno marceneiro não colonizado andar em companhia de um mecânico árabe levando na
cabeça uma tábua e alguns pregos? Para todos, há pelo menos essa profunda satisfação de ser
negativamente melhor que o colonizado: jamais são totalmente confundidos na abjeção em que os
lança o fato colonial.
DO COLONIAL AO COLONIZADOR
O colonial não existe, porque não depende do europeu das colônias permanecer colonial, mesmo
se tivesse tido essa intenção. Quer o tenha expressamente desejado ou não, é acolhido
privilegiado pelas instituições, pelos costumes, pelas pessoas. Tão logo desembarcado, ou desde
seu nascimento, encontra-se em uma situação de fato, comum a todo europeu, que vive na
colônia, situação que o transforma em colonizador. Mas não nesse nível, na realidade, que se situa
o problema ético fundamental do colonizador: o do engajamento da sua liberdade e, portanto, da
sua responsabilidade. Teria podido, certamente, não tentar a aventura colonial: desde que o
empreendimento começou, no entanto, não depende dele recusar suas condições. É preciso ainda
acrescentar que podia encontrar-se sujeito a essas condições, independentemente de toda escolha
prévia, se nasceu na colônia de pais já colonizadores, ou se realmente ignorou, quando de sua
decisão, o sentido real da colonização.
É em outro nível que se vai apresentar o verdadeiro problema do colonizador: uma vez que
descobriu o sentido da colonização e tomou consciência da sua própria situação, da situação do
colonizado, e de suas necessárias relações irá aceitá-las? Irá aceitar-se ou recusar-se como
privilegiado, e confirmar a miséria do colonizado, correlativo inevitável de seus privilégios? Aceitar-
se-á como usurpador, e confirmará a opressão e a injustiça em relação ao verdadeiro habitante da
colônia, correlativas da sua excessiva liberdade e do seu prestígio? Irá, finalmente, aceitar-se como
colonizador, essa imagem de si mesmo que espreita, que já sente desenhar-se sob o hábito
nascente do privilégio e da ilegitimidade, sob o constante olhar do usurpado? Irá acomodar-se com
essa situação e como esse olhar e com a própria condenação por si mesmo, cedo inevitável?
MEMMI, A. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. 2 ed. Trad. Rolland
Corbisier e Marisa Pinto Coelho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 19-32.
24
Franz Fanon
“Os últimos serão os primeiros”. A descolonização é a verificação desta frase. É por isto que,
no plano da descrição toda descolonização é um triunfo.
Exposta em sua nudez, a descolonização deixa entrever através de todos os seus poros,
granadas incendiárias e facas ensanguentadas. Porque se os últimos devem ser os primeiros
isto só pode ocorrer em consequência de um combate decisivo e mortal entre dois
protagonistas. Esta vontade de fazer chegar os últimos à cabeça da fila, de os fazer subir com
cadência (demasiado rápida, dizem alguns) os famosos escalões que definem uma sociedade
organizada, só pode triunfar se se lançam na balança todos os meios, inclusive a violência,
evidentemente.
Não se desorganiza uma sociedade, por mais primitiva que seja, com tal programa se não se
está decidido desde o início, isto é, desde a formulação mesma deste programa, a destruir
todos os obstáculos encontrados no caminho. O colonizado que resolve cumprir este
programa, tornar-se o motor que o impulsiona, está preparado sempre para a violência. Desde
seu nascimento percebe claramente que este mundo estreito, semeado de interdições, não
pode ser reformulado senão pela violência absoluta.
A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos. Estas
duas zonas se opõem mas não em função de uma unidade superior. Regidas por uma lógica
puramente aristotélica, obedecem ao princípio da exclusão recíproca: não há conciliação
possível, um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e
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ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixões de lixo regurgitam de sobras
desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. Os pés do colono nunca estão à mostra,
salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante próximo deles. Pés protegidos por
calçados fortes, enquanto que as ruas de sua cidade são limpas, lisas, sem buracos, sem seixos.
A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente
repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros.
A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina1, a reserva,
é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde,
não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem
intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade
do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A
cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É
uma cidade de negros, uma cidade de árabes. O olhar que o colonizado lança para a cidade do
colono é um olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de
posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se
possível. O colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar,
constata amargamente mas sempre alerta: “Eles querem tomar o nosso lugar”. É verdade, não
há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar o lugar do colono.
Este mundo dividido em compartimentos, este mundo cindido em dois, é habitado por
espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades
econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não logram nunca
mascarar as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida
não logram nunca mascarar as realidades humanas. Quando se observa em sua imediatidade o
contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de
pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias a infra-estrutura econômica é
igualmente uma superestrutura. A causa é consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é
branco porque é rico. É pior isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente
distendidas cada vez que abordamos o problema colonial. Não há nem mesmo conceito de
sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, que não exigisse ser repensado aqui. O
servo é de essência diferente da do cavaleiro, mas uma referência ao direito divino é
necessária para legitimar essa diferença estatutária. Nas colônias o estrangeiro vindo de
qualquer parte se impôs com o auxílio dos seus canhões e das suas máquinas. A despeito do
sucesso da domesticação, malgrado a usurpação, o colono continua sendo um estrangeiro.
Não são as fábricas nem as propriedades nem a conto no banco que caracterizam em primeiro
lugar a “classe dirigente”. A espécie dirigente é antes de tudo a que vem de fora, a que não se
parece com os autóctones, “os outros”.
1
Cidade árabe ao lado da qual se erguem edificações para europeus
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engolfar nas cidades interditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de
ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos
que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da
abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo
colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou
expulsá-la do território.
Por vezes este maniqueísmo vai até ao fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. A rigor,
animaliza-o. e, de fato, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem
zoológica. Faz alusão aos movimentos répteis do amarelo, às emanações da cidade indígena,
às hordas, ao fedor, à pululação, ao bulício, à gesticulação. O colono, quando quer descrever
bem e encontrar a palavra exata, recorre constantemente ao bestiário. O europeu raramente
acerta nos termos “figurados”. Mas o colonizado, que apreende o projeto do colono, o
processo preciso que se instaura, sabe imediatamente o que o outro pensa. Essa demografia
galopante, essas massas histéricas, esses rostos de onde fugiu qualquer traço de humanidade,
esses corpos obesos que não se assemelham mais a nada, essa coorte sem cabeça nem cauda,
2
Mostramos em Peau Noire, Masques Blancs (edição de Seuil), o mecanismo desse mundo maniqueísta.
28
essas crianças que dão a impressão de não pertencerem a ninguém, essa preguiça estendida
ao sol, esse ritmo vegetal tudo isso faz parte do vocabulário colonial. O General de Gaulle fala
das “multidões amarelas” e o Sr. Mauriac das massas negras, morenas e amarelas que dentro
em pouco vão soltar as amarras. O colonizado sabe de tudo isso e dá uma gargalhada cada vez
que aparece como animal nas palavras do outro. Pois sabe que não é um animal. E justamente,
no instante mesmo em que descobre sua humanidade, começa a polir as armas para fazê-las
triunfar.
FANON, Franz. Os condenados da terra. 2 ed. Trad. J. L. de Melo. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 1979, p. 25-32.
29
Carlos Ervedosa
Em 1948, aqueles rapazes, negros, brancos e mestiços, que eram filhos do pais e se tornavam
homens, iniciam em Luanda o movimento cultural "Vamos descobrir Angola!». Que tinham em mente?
Estudar a terra que lhes fora berço, a terra que eles tanto amavam e tão mal conheciam. Eram ex-
alunos do liceu que recitavam de cor todos os rios, todas as serras, todas as estações e apeadeiros das
linhas férreas de Portugal, mas que mal sabiam os afluentes do Cuanza que corria ao seu lado, as suas
serras de picos altaneiros, os seus povos de hábitos e linguas tão diversas, que liam e faziam
redacções sobre a beleza da neve ou o encanto da Primavera que nunca tinham presenciado, que
desenhavam a pêra, a maçã ou a uva sentindo apenas na boca gulosa o sabor familiar e apetecido da
goiaba, da pitanga ou da gajaja, que interpretavam as fábulas de La Fontaine mas ignoravam o
fabulário, os contos e as lendas dos povos da sua terra, que sabiam com precisão todas as datas de
todas as façanhas dos monarcas europeus, mas nada sobre a rainha Nzinga ou o rei Ngola.
O movimento, diz-nos o ensaísta Mário de Andrade, incitava os jovens a redescobrir Angola em todos
os seus aspectos através de um trabalho colectivo e organizada; exortava a produzir-se para o povo;
solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e
nacionalizar as suas criações positivas válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da
autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo
colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão
africanas.
Enquanto estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles faziam parte mas que tão
mal lhes haviam ensinado, começa a germinar uma literatura que seria a expressão da sua maneira de
sentir, o veículo das suas aspirações, uma literatura de combate pelo seu povo.
Publicava este poeta, no ano de 1949, o seu melhor poema, «Estrela pequenina», e começavam a
aparecer as primeiras composições literárias marcadas, bem marcadas, pelas condições ambientais,
resultantes de um conhecimento perfeito do homem e da terra, como nos mostra esse admirável «Sô
Santo», criação de Viriato da Cruz:
30
«Muari-ngana Santo
dim-dom
ual' o banda ó calaçala
dim-dom
chaluto mu muzumbo
dim-dom
Sô Santo ...
Quando o sô Santo morrer, Vamos chamar um kimbanda Para Ngombo nos dizer
Se a sua grande desgraça
Foi desamparo de Sandu
Ou se é já própria da Raça ... »
Lá vai ...
descendo a calçada
A mesma calçada que outrora subia
Cigarro apagado
Bengala na mão
Eles sabiam muito bem o que fora o movimento modernista brasileiro de 1922. Até eles havia chegado,
nítido, o «grito do Ipiranga» das artes e letras brasileiras, e a lição dos seus escritores mais
representativos, em especial de Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge
Amado, foi bem assimilada.
O exemplo destes escritores ajudou a caracterizar a nova poesia e ficção angolanas, mas é,
certamente, num fenómeno de convergência cultural que poderemos encontrar as razões das afi-
nidades das duas literaturas. A mesma amálgama humana, frente a frente nas duas margens do
Atlântico tropical, em presença de condições ecológicas quase idênticas, teria de conhecer reacções e
comportamentos muito semelhantes. Da mesma forma se poderá explicar a receptividade dos
angolanos em relação aos ritmos afro-brasileiros e afro-cubanos.
Realizadas as condições para a eclosão de um movimento literário, ele não se faria esperar muito e,
ainda em 1950, surge, consciente da sua missão, com o nome de Movimento dos Novos Intelectuais de
Angola.
Como centro aglutinador, o departamento cultural da Associação dos Naturais de Angola, através do
qual iniciam, em 1951, a publicação da revista Mensagem - A Voz dos Naturais de Angola, que
pretendiam fosse o veículo da sua mensagem literária e ideológica:
Mensagem sai hoje, para a rua, a cumprir a sua missão, levando em si, para vós, para o Mundo, uma
mão-cheia de esperança; um cacho de mocidade sedenta de Verdade, de Justiça e de Paz.
É a mocidade de Angola, que abraça com Mensagem os seus irmãos do Mundo; são os jovens,
generosos como a própria generosidade, confiantes da missão que cada um tem a cumprir ( ... ) .
( ... ) São os jovens que não conhecem a descrença; que não acreditam no impossível e amam a
Verdade; que lutam pela Justiça e crêem ainda na Solidariedade Humana e na Fraternidade Universal,
- são esses jovens de Angola, iguais a todos os jovens do Mundo -, são esses que Mensagem traz até
vós. E Mensagem sente-se, hoje, mais do que nunca, amanhã mais do que hoje, segura da missão que
tem a cumprir.
O Movimento dos Novos Intelectuais de Angola foi essencialmente um movimento de poetas, virados
para o seu povo e utilizando nas suas produções uma simbologia que a própria terra exuberantemente
oferece. O vermelho revolucionário das papoilas dos trigais europeus, encontraram-no, os poetas
angolanos, nas pétalas de fogo das acácias, e a cantada singeleza das violetas, na humildade dos
«beijos-de-mulata» que crescem pelos baldios ao acaso. Os seus poemas trazem o aroma variado e
estonteante da selva, o colorido dos poentes africanos, o sabor agridoce dos seus frutos e a
musicalidade nostálgica da marimba. Mas vêm também palpitantes de vida, com o cheiro verdadeiro
dos homens que trabalham, o gosto salgado das suas lágrimas de desespero e a certeza inabalável na
madrugada que sempre raia para anunciar novo dia.
Assim, os novos poetas foram cantando, com voz própria, a terra angolana e as suas gentes.
António Jacinto escreve então alguns dos mais belos poemas do Movimento, com temas que se
inscrevem tanto no mundo urbano como no mundo rural. Deste, dá-nos o escritor, entre outros poemas,
32
a «Carta de um contratado», onde nos transmite a angústia do homem do campo, saudoso, longe da
terra e da sua amada, escolhendo o poeta, com precisão, as palavras e as imagens, a forma em suma,
que melhor poderia servir o tema:
Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
«Por ti sofre gente o meu coração»
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou.
Outro poeta, Mário António, em «Linha Quatro» aborda um dos temas que sempre lhe foi dos mais
gratos ao longo da sua vida e nos aparece amiúde na sua já volumosa e importante obra literária: o
amor. Quatro era o número do autocarro que servia uma das zonas da periferia de Luanda - Kinaxixe,
Bairro Operário, Sambizanga, Tanque d'Água - ocupada por gente humilde que todos os dias descia à
cidade, a caminho dos seus modestos empregos:
Também na vida!
Rua da Maianga
De um qualquer missionário
Mas para nós somente
A Rua da Maianga.
O desaparecimento da antiga cidade, onde a sua população fora durante largos anos como que uma
grande família, acompanhado da destruição dos lugares sagrados da infância passada, é outro tema
que nos aparece com grande frequência. Hoje / A cidade está cheia de forasteiros / De desconhecidos
por todas as esquinas / De atitudes vincadamente aburguesadas, lamentava-se Tomás Jorge no seu
poema evocativo «Infância», que fechava de forma magnífica
(...)
Hoje
Cumpre, finalmente, salientar uma das características fundamentais da poesia do Movimento: poesia
social, onde o nacionalismo angolano transparece a cada passo, apesar da forma ambígua utilizada
algumas vezes e como exigiam as apertadas limitações da época.
O canto de Agostinho Neto distingue-se, logo de início, dos restantes camaradas do Movimento. Ele
ultrapassa as fronteiras de Angola, é um canto dirigido a todos os seus irmãos de raça, da África e das
Américas, aos seus irmãos que, espalhados pelo mundo, sofrem e lutam pela sua dignificação: Eu vos
sinto / negros de todo o mundo / eu vivo a vossa dor / meus irmãos.
Mas poemas há, como «Mussunda amigo», que são bem angolanos, recheados de símbolos que
pertencem ao seu país - uma frase típica, um elemento geográfico, um facto histórico:
Dentro da mesma linha de poesia social se incluem muitas outras criações, como, por exemplo, «Mamã
negra», de Viriato da Cruz, «Poema da alienação», de António Jacinto,. ou «Muimbu ua Sabalu», de
Mário de Andrade, poema que é a primeira tentativa de utilização integral do quimbundo na literatura
angolana:
Aiué!
(...)
Mama, muene uondó vutuka
Ah! Ngongo ietu iondó biluka
Aiué
A mu tumisa ku S. Tomé
Em 1951, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola realizava, de acordo com o seu programa
cultural, o primeiro (e último) concurso literário. Para júri convidaram-se prestigiosas figuras
portuguesas das letras e da democracia, os escritores João de Barros, Augusto Casimiro e Julião
Quintinha, residentes em Lisboa, e a que se juntou Lília da Fonseca.
«Bandeira»:
Somos um povo à parte
Desprezado
Incompreendido,
Um povo que lutou e foi vencido.
(...)
A seguir,
A vermelho-vivo,
A vermelho-sangue,
Com tinta feita de negros corpos desfeitos
Em lutas que vamos travar,
A vermelho-vivo
Cor do nosso sangue amassado
Escreve, Negro,
Escreve, irmão.
A palavra suprema:
LIBERDADE!
Como seria de esperar, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola acabou por ser alvo da
repressão policial. A Mensagem terminou a sua publicação ao fim do segundo número e o Movimento
teve de se desmembrar. A maior parte desses jovens acabaria por se reunir, mais tarde, não à volta de
um movimento cultural, mas já sob a bandeira de um movimento político, o MPLA.
Movimento de poetas, contistas e ensaístas, foi essencialmente através da poesia que aquele grupo de
jovens, no dealbar da segunda metade do século vinte, se impôs e logrou virar uma página da história
da literatura angolana.
Pouco tempo de atividade lhes foi permitido. Publicaram-se apenas dois números da revista, realizou-
se um concurso literário e publicou-se uma pequena antologia. Mas restou um punhado de poemas que
circularam durante anos, clandestinamente, pelas mãos dos jovens angolanos, que os copiavam e
declamavam nas suas reuniões privadas.
Apesar do fim rápido e até da pequena expansão da Mensagem, ela permaneceu, contudo, como um
verdadeiro símbolo. O espírito que a animava, diz-nos o poeta Mário António, se não teve uma
realização à altura, nem por isso deixou de ser - e isso é que é importante - o elemento de catálise de
um despertar literário que já hoje tem uma obra a defini-Ia. Poetas, contistas, ensaístas da Mensagem
deram, ao longo dos anos decorridos, um corpo ao sonho que a revista não foi capaz de concretizar.
Entretanto, em Dezembro de 1956, o MPLA distribuía em Luanda o seu I Manifesto, no qual se podia
ler:
(...) o colonialismo português não cairá sem luta. E por isso que o povo angolano só se poderá libertar
pela guerra revolucionária. Será apenas vitoriosa com a realização de uma frente unida de todas as
forças anti-imperialistas de Angola, que não esteja ligada à cor, à situação social, a credos religiosos e
tendências individuais; será vitoriosa graças à formação de um vasto movimento popular de libertação
de Angola.
A ele começaram de imediato a aderir o proletariado, a burguesia e os intelectuais do país. E seria com
o apoio constante destas três componentes que o MPLA levaria de vencida, através dos anos, todos os
obstáculos que lhe foram surgindo pela frente.
Desmembrada e extinta a Mensagem, com as suas principais figuras engajadas na luta política, aberta
ou clandestina, uma nova camada juvenil surge a preencher os lugares deixados vagos, prosseguindo,
especialmente na Sociedade Cultural de Angola, na Associação dos Naturais de Angola e na Casa dos
Estudantes do Império, a tarefa de consciencialização e unidade nacional através da cultura.
Porém, nos sete anos que medeiam a publicação de Mensagem e a reaparição de Cultura, jornal de
artes e letras fundado em 1945, mas que, em dada altura, suspendera a publicação, outros escritores,
mais velhos, foram isoladamente publicando os seus livros: Óscar Ribas, já referenciado anteriormente,
que na década de 50 publica o romance Uanga, um livro de contos, Ecos da Minha Terra, e outro de
40
carácter etnográfico, Ilundo, no qual, entre valioso material recolhido sobre ritos e divindades, podemos
encontrar alguns excelentes contos tradicionais dos habitantes da região de Luanda. Este autor, no
prosseguimento da sua valiosa actividade de recolha dos contos tradicionais, dar-nos-ia, já nos anos de
60, os livros Missosso e Sunguilando.
Ernesto Cochat Osório, o segundo escritor a mencionar, finalizado o seu curso superior em Portugal,
regressa à sua terra, e publica em 1956 e 1957, respectivamente, o livro de poesias Calema, e o de
contos Capim Verde, os quais, porém, contrariamente ao que os títulos sugerem, pouco ou nada
representam de tipicamente angolano. Mas, alguns anos depois, já em 1960, reatado o encontro com
as coisas e gentes de Angola, dá-nos um terceiro livro inspirado na sua cidade, terra de contrastes
coloridos, na vegetação, nas casas e nos homens, livro de poesia sugestivamente intitulado Cidade.
Em 1966 Cochat Osório publica novo livro, Biografia da Noite, de imediato apreendido pela PIDE.
Através das suas páginas, o poeta narra a longa noite da opressão e anuncia o raiar da madrugada que
chegaria a 25 de Abril de 1974.
Em 1957 a Sociedade Cultural de Angola reinicia, como dissemos, a publicação do seu jornal Cultura,
que, na senda da Mensagem, iria revelar novos valores.
Noutras épocas, outros homens realizaram a mesma tarefa. Porém, há vários anos, em virtude de
circunstâncias que não interessa agora referir, não existe em Angola qualquer órgão cultural,
especificamente cultural.
Durante dois anos, que foi o período de vida permitido ao novo jornal, publicaram-se doze números de
bom nível cultural, com uma colaboração que ia desde a científica, normalmente a cargo de intelectuais
progressistas portugueses residentes em Angola, à literária, esta exclusivamente preenchida peloss
escritores locais. Uma nova fornada de poetas, contistas, críticos, etnólogos e ilustradores se revelam
nas páginas de Cultura. Poetas como Arnaldo Santos, Costa Andrade, João Abel, Manuel Lima,
Henrique Guerra, Caobelo, Ernesto Lara Filha' contistas como Luandino Vieira, Mário Guerra, Hélder
Neto, um ensaísta como Adolfo Maria, um etnólogo como Henrique Abranches, a maior parte deles
espraiando-se pela poesia, conto ensaio, com grande facilidade.
Mas enquanto em Cultura a poesia e o conto continuavam a ser a forma literária dominante através dos
seus mais assíduos colaboradores, pela pena de Ernesto Lara Filho, surge pela primeira vez a «crónica
angolana», repassada de poesia e saudosismo como é timbre da geração literária angolana em que se
enquadra. Ernesto Lara Filho daria também à poesia o seu valioso contributo com os livros Picada de
Marimbondo, O Canto de Martrindinde e Seripipi na Gaiola, de cunho vincadamente angolano.
Durante o ano de 1959, promovido pela Sociedade Cultural de Angola, realizava-se em Luanda o
primeiro colóquio sobre a poesia angolana. Abriu-o uma palestra de Mário António, que apresentou
então a primeira tentativa de classificação da poesia feita em Angola: «Poesia tradicional dos povos de
Angola», «Poesia de Angola», «Poesia angolana», «Poesia negra de expressão portuguesa» e
«Poesia».
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A «Poesia tradicional dos povos de Angola» uma realidade riquíssima e viva, tão rica e viva que se
passa bem do desinteresse de poetas e da de poetas e da pouca consideração de críticos. Além do
mais, porque é uma poesia socialmente enquadrada e servindo fins sociais. Ela está presente em
quase todas as manifestações da sabedoria popular, quer associada ao canto, quer subjacente às
diferentes formas de literatura oral: canto, provérbio, adivinha.
«Poesia de Angola», termo que aceito para enquadrar as maniifestações poéticas de indivíduos
europeus ou europeizados ql1e, elegendo Angola para motivo principal das suas composições, não
conseguiram contudo passar de aspectos exteriores, paisagísticos ou de preconceito psicológico.
«Poesia angolana», produto cultural do homem angolano, tal qual ele é - pelo menos o que
intelectualizado (e só este até agora tem sido capaz de expressão literária) -, que através da sua
formação europeia, não perdeu elementos culturais negros nem a sua consciência de homem com
determinada posição.
«Poesia negra de expressão portuguesa», que é, mais do que uma revelação, afirmação de uma
posição em face de um problema. A sua posição em relação à vida, releva do puro aspecto ideológico.
Mas qualquer destes movimentos literários, bastante isolados do grande público, não conseguiu, na
altura em que se manifestou, ultrapassar o meio intelectual que os criava ou apoiava, e ganhar a
projecção que mais tarde acabariam inevitavelmente por atingir. E compreende-se. Sem uma editora
que lhes publicasse os livros e ignorados pelos grandes meios de informação, os jovens escritores
angolanos só lograriam afirmar-se quando os seus trabalhos reunidos em coletâneas ou livros
individuais, começaram, a partir de 1958, a circular com a chancela prestigiada da Casa dos Estu-
dantes do Império, que, dessa forma e no cumprimento dum plano de divulgação dos valores culturais
dos seus povos, dava início à Coleção Autores Ultramarinos.
Simultaneamente, com fins mais amplos, destinada à divulgação de autores de língua portuguesa,
surgia no Lubango a editora Imbondeiro, que lança uma coleção de livros de poesia e ficção.
Na esteira deste movimento editorial, também na planáltica cidade do Huambo se dava início à Coleção
Bailundo, com um livro do malogrado poeta Alexandre Dáskalos, precocemente surpreendido pela
morte a meio duma carreira científica que começava a dar os seus primeiros frutos.
ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. 4 ed. Luanda: UEA, s/d (p. 81-105)
42
Tania Macêdo
Carlos do Aniceto “Liceu” Vieira Dias é considerado como o fundador da música popular
angolana. Nascido em Banana, ex-Congo Brazzaville. Vieira Dias fez parte da classe social
colonial designada de assimilados e, embora ele não fosse residente do Bairro Operário, suas
criações foram influenciadas pelas pessoas e outros músicos que lá viviam3.
Por iniciativa do músico e de Nino Ndongo, em 1947 forma-se o Ngola Ritmos, cujo objetivo
era preservar a cultura angolana e afirmar a identidade nacional numa tentativa de reação à
imposição colonialista que rejeitava todas as manifestações culturais autóctones. Os outros
membros do grupo eram Domingos Van-Dúnem, Mário da Silva Araújo, Manuel dos Passos e
Nino Ndongo. Na década de 1950, a banda era composta por Liceu, Nino, Amadeu Amorim,
José Maria dos Santos, Euclides Fontes Pereira, José Cordeira, Lourdes Van-Dúnem e Belita
Palma.
Vieira Dias e os Ngola Ritmos traduziram canções tradicionais do campo em uma música
popular que era dançante. Tecnicamente, a inovação baseava-se no uso de instrumentos
locais. O som da dikanza (reco-reco) foi traduzido para acordes de guitarra e outros
instrumentos locais foram usados para substituir instrumentos europeus. Alguns solos
famosos do guitarrista congolês Franco foram adaptados e incorporados em instrumentações
do semba. Vieira Dias tocava com a sua guitarra músicas que ouvia sua mãe e avó cantarem.
Ele também transcreveu para guitarra ritmos e canções que ouviu quando ele estava viajando
pelo país com seu pai, que era funcionário público. Desta forma, usando uma combinação de
instrumentos europeus e angolanos, com base em ritmos locais e adaptando frases musicais
de música produzida em outros países, Vieira Dias transformou as práticas musicais locais em
um estilo que era semelhante ao das músicas estrangeiras tocadas nas rádios e festas, mas
com sabor de Angola e cantada em quimbundo, durante um período em que as línguas
locais eram reprimidas pelo regime colonial.
Em 1959, Euclides, que era funcionário público de profissão, foi transferido para Luso e Liceu
Vieira Dias, Amadeu Amorim e Zé Maria dos Santos, juntamente com outros 50 nacionalistas
angolanos, foram presos, acusados de conspiração contra as autoridades coloniais
3
O Bairro Operário, (lugar de transição entre os musseques – zonas periféricas – e a urbanização) situado no
coração de Luanda, começou a ser povoado nos anos 1930 e era um musseque sem becos. O sociólogo Artur
Pestana “Pepetela” disse, há anos, em entrevista ao Jornal de Angola, que “o Bairro Operário não nasce como
musseque. Foi o primeiro bairro urbanizado em Luanda, construído pela Câmara Municipal de Luanda”. Não
havia, porém, asfalto, água canalizada, luz eléctrica e construções de carácter definitivo, nem qualquer tipo
de saneamento básico.
43
Apesar dos percalços, o Ngola Ritmos continuou o seu percurso, liderado por Nino N’dongo.
Entraram novos elementos, como Zé Cordeiro, Gégé e Ricardo Xodó e o grupo foi até Lisboa,
onde gravaram dois discos.
A popularidde dos Ngola Ritmos na década de 1950 deu-lhes o acesso às estações de rádio
nacionais e suas canções foram gravadas na rubrica chamada “folclore”, que era transmitida
em todo o país.
Em 1978 o produtor de cinema António Ole fez um filme com os Ngola Ritmos, e foi a última
vez que o grupo apareceu em publico com todos os seus membros.
Referências
JODOSOFT. Music production, Multimedia, Karaoke, Angola Music. História da música de Angola
[online]. http://jodosoft.com/pt/2013/02/ngola-ritmos-era/
Moorman, M. J., 2008. Intonations, a social History of Music and Nation in Luanda, Angola, from 1945 to
Recent Times. . Ohio: New African Histories, Ohio University Press.
SILVA, M. R., 1999. HISTÓRIAS DA MÚSICA EM ANGOLA. [online]. Rio de Janeiro: Consulado Geral de
Angolahttp://www.consuladodeangola.org/index.php?Itemid=60&id=35&option=com_content&task=vi
ew [Accesso 16 Fevereiro 2013].
Uakidi.com 2012. Recordar Liceu Vieira Dias. [online]. Luanda: uakidy.com. Available from:
http://www.uakidi.com/recordar-liceu-vieira-dias-97.htm [Accesso 17 February 2013].
4
"(Os Ngola Ritmos) era uma rebelião pacífica, tentando despertar consciências adormecidas, que não
acreditavam em mais nada, eram 500 anos de colonização. Não havia televisão, nem rádio para toda
gente, os jornais não chegavam aos musseques nem ao interior do país e nós sabíamos que uma canção
ficava presa no assobio, no cantar. Na LNA (Liga Nacional Africana) quando cantávamos em quimbundu,
as pessoas viravam a cara meias envergonhadas, chamavam-nos os mussequeiros...acabamos por fazer
canções de absoluta reivindicação, e incendiávamos aquelas pessoas fartas de ser espezinhadas, e eles
entendiam que havia qualquer coisa na fogueira. Isso acabou por se descobrir, fomos perseguidos. O
conjunto morre antes do tempo, aqueles que eram funcionários foram transferidos. Entra este, sai
aquele, entra outro etc. Tudo culmina com a prisão porque alguns de nós estávamos diretamente
metidos na luta política, como eu e o Liceu, nenhum de nós sabia o quanto o outro estava metido, na
altura nem com a mulher se podia falar. Foi esta fase que resultou na criação do MIA (Movimento
Independentista de Angola)." Entrevista de Amadeu Amorim a Milonga, em 2002.
44
Manuel Rui
Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A
luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia
árvores, paralelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto
porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido e visto. É certo que podias
ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegastes! Mas
não! Preferiste disparar os canhões.
A partir daí, comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar que
da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mas tarde
viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que
também sistematicamente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu texto ouvido e
visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que
não me pertence.
Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmonta-lo peça a peça, refazê-lo e
disparar ao contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte
que me agride. Afinal assim identifico-me sempre eu/até posso ajudar-te à busca de uma
identidade em que sejas tu quando eu te olho/em vez de seres o outro.
Mas para fazer isto eu tenho que transformar e transformo-me. Assim na minha oratura para
além das estórias antigas na memória do tempo eu vou passar a incluir-te. Vou inventar novas
estórias. Por exemplo o espantalho silenciosos que coloco na lavra para os pássaros não me
comerem a massambala passa a ser o outro que não fazia parte do texto. Também vou
substituir a surucucu cobra maldita. Surucucu passa a ser o outro. E cobra no meu texto
inventado agora passa a ser bela e pacífica se morder o outro com o seu veneno mortal.
E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim oraturizado
e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. Afinal
isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade. Se o fizer
deixo de ser eu e fico outro, aliás como o outro quer. E agora? Vou passar o meu texto oral
para a escrita? Não. É que a partir do momento em que eu o transferir para o espaço da folha
branca, ele quase morre. Não tem árvores. Não tem ritual. Não tem as crianças sentadas
segundo o quadro comunitário estabelecido. Não tem som. Não tem dança. Não trem braços.
Não tem olhos. Não tem bocas. O texto são bocas negras na escrita quase redundam num
mutismo sobre a folha branca.
45
O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós. E há palavras que só alguns
de nós podem ouvir. No texto escrito posso liquidar este código aglutinador. Outra arma
secreta para combater o outro e impedir que ele me descodifique para depois me destruir.
Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e
simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já
composta? Isso não. No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que
eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a
arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro,
descrevo para que eu conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu, da
minha identidade. Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto
inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma, temos de ser nós. “Nós mesmos”. Assim reforço a
identidade com a literatura.
Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo
do espaço e tempo e tempo mais total. O emendo não sou eu só. O mundo somos nós e os
outros. E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser
ação de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal.
Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador. Dinâmico. Nunca estático para que
além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a
desalienação do outro até que um dia virá e “os portos do mundo sejam portos de todo o
mundo”.
Até lá não se espantem. É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor!
RUI, Manuel. Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o
texto. In MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana África. São Paulo: Epopéia, 1987.
46
Tania Macêdo
“Vou por uma estória”. A que o auditório prontamente responde: “Venha ela” (“Diize”)
Já com relação ao fecho das narrativas tradicionais, é Óscar Ribas quem informa:
Referindo-se aos temas e personagens do mi-soso (ou misosso), o mesmo autor ainda
diz o seguinte sobre as personagens e ações dos contos tradicionais angolanos:
5
Para José Martins Vaz (1969- I vol. p. 9), os testos – tampas - de panela são “cartas, bilhetes
esculpidos, portadores de mensagem traduzíveis em provérbios (...) “
6
Ver, a respeito, ver a exaustiva bibliografia citada e comentada por Oliveira (2000, vol. I, p. 94)
47
se da sua esperteza, vence o de porte superior e, assim pode-se verificar que grande parte dos
mi-sosso acaba por enaltecer a astúcia, em detrimento da força bruta. Dentre os animais
destacam-se:
kandimba (a lebre ou coelho selvagem) – é também juiz, mas não raro foge às
conseqüências, ou seja, dá a sua opinião, decide mas não implementa as
decisões, preferindo esconder-se;
os quinzáris que possuem corpo de fera (onça ou pantera), mas com pés humanos
– metamorfose obtida por magia concedida para o efeito. “Homem-fera. Palavra
formada a partir do quimbundo: kuzuma (dilacerar) + kûria (comer)” (RIBAS, 1997,
p. 249);
Bibliografia referida
RIBAS, Óscar. Misosso - literatura tradicional angolana. Luanda: Angolana, 1964, 3 vol.
VALENTE, José Francisco. Paisagem africana (Uma tribo angolana no seu fabulário). Luanda:
Instituto de investigação científica de Angola, 1973.
OLIVEIRA, Américo Correia de. O livro das adivinhas angolanas. Lisboa: Mar além, 2001.
MACEDO, Tania. Luanda, cidade e literatura. São Paulo; Luanda. Editora UNESP,
Nzila, 2008, p. 49-52
7
A respeito, remetemos a O livro das adivinhas angolanas, de Américo Correia de Oliveira
(OLIVEIRA, 2001) que congrega mais de mil adivinhas divididas a partir de temas: Fauna, Flora,
Mundo, Geografia, Objetos, Corpo humano, Alimentação, Pessoas, Miscelânea, Impossíveis e
Filosofia de vida.
49
Amadou Hampâté-Ba
CRONOLOGIA
Como a cronologia não é uma grande preocupação dos narradores africanos, quer
tratem de temas tradicionais ou familiares, nem sempre pude fornecer datas precisas.
Há sempre uma margem de diferença de um a dois anos para os acontecimentos,
salvo quando fatores externos conhecidos me permitiam situá-los. Nas narrativas
africanas, em que o passado é revivido como uma experiência atual de forma quase
8
Griots: corporação profissional compreendendo músicos, cantores e também sábios genealogistas itinerantes ou
ligados a algumas famílias cuja história cantavam e celebravam. Podem também ser simples cortesãos (...). Como não
existe em português um termo equivalente para designar estas pessoas e este tipo de atividade, foi conservado o
termo original em todo o relato. (NT)
50
intemporal, às vezes surge certo caos que incomoda os espíritos ocidentais. Mas nós
nos encaixamos perfeitamente nele. Sentimo-nos à vontade como peixes num mar
onde as moléculas de água se misturam para formar um todo vivo.
ZONA DE REFERÊNCIA
Quando se fala da "tradição africana", nunca se deve generalizar. Não há uma África,
não há um homem africano, não há uma tradição africana válida para todas as regiões
e todas as etnias. Claro, existem grandes constantes (a presença do sagrado em
todas as coisas, a relação entre os mundos visível e invisível e entre os vivos e
os mortos, o sentido comunitário, o respeito religioso pela mãe, etc), mas também
há numerosas diferenças: deuses, símbolos sagrados, proibições religiosas e
costumes sociais delas resultantes variam de uma região a outra, de uma etnia a
outra; às vezes, de aldeia para aldeia.
SONHOS E PREVISÕES
TRADIÇÃO VIVA
Amadou Hampâté-Ba
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o
saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que
nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos
transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente." Tierno
Bokar (1)
Como não posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer tradições que não tenha
vivido ou estudado pessoalmente - em particular as relativas aos países da floresta -
tirarei os exemplos em que me apóio das tradições da savana ao sul do Saara (que
antigamente era chamada de Bafur e que constituía as regiões de savana da antiga
África ocidental francesa). A tradição bambara do Komo (2) ensina que a Palavra,
Kuma, é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala,
criador de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: "Aquilo que Maa Ngala diz,
é!", proclama o chantre do deus Komo. O mito da criação do universo e do homem,
ensinado pelo mestre iniciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens
circuncidados, revela-nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou
o Primeiro Homem: Maa. Antigamente a história da gênese costumava ser ensinada
durante os 63 dias de retiro imposto aos circuncidados aos 21 anos de idade; em
seguida, passavam mais 21 anos estudando-a cada vez mais profundamente. Na orla
do bosque sagrado, onde Komo vivia, o primeiro circuncidado entoava ritmadamente
as seguintes palavras: "Maa Ngala! Maa Ngala! Quem é Maa Ngala? Onde está Maa
Ngala?" O chantre do Komo respondia: "Maa Ngala é a Força infinita. Ninguém pode
situá-lo no tempo e no espaço. Ele é Dombali (Incognoscível) Dambali (Incriado -
Infinito)". Então, após a iniciação, começava a narração da gênese primordial: "Não
havia nada, senão um Ser. Este Ser era um Vazio vivo, a incubar potencialmente as
existências possíveis. O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um. O Ser-Um
chamou-se de Maa Ngala. Então ele criou 'Fan', Um Ovo maravilhoso com nove
divisões no qual introduziu os nove estados fundamentais da existência. Quando o
Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que constituíram a
totalidade do universo, a soma total das forças existentes do conhecimento possível.
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a tornar-se o
interlocutor (kuma-nyon) que Maa Ngala havia desejado para si. Assim, ele tomou de
uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e misturou-as; então,
insuflando na mistura uma centelha de seu próprio hálito ígneo, criou um novo Ser, o
Homem, a quem deu uma parte de seu próprio nome: Maa. E assim esse novo ser,
através de seu nome e da centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio
Maa Ngala". Síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força
suprema e confluência de todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de
herança uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra. Maa Ngala
ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos os elementos do
cosmo foram formados e continuam a existir. Ele o intitulou guardião do Universo e o
encarregou de zelar pela conservação da Harmonia universal. Por isso é penoso ser
Maa. Iniciado por seu criador, mais tarde Moa transmitiu a seus descendentes tudo o
que havia aprendido, e esse foi o início da grande cadeia de trans- missão oral
iniciatória da qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore, etc., no Mali)
diz-se continuadora. Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e,
54
Os tradicionalistas
seja, dos colonizadores). No entanto, nos diversos países da savana africana que
formam o antigo Bafur - e, sem dúvida, outras partes também - ainda existem
"Conhecedores" que continuam a transmitir a herança sagrada àqueles que aceitam
aprender e ouvir e que se mostram dignos de receber os ensinamentos por sua
paciência e discrição, regras básicas exigidas pelos deuses. Dentro de 10 ou 15 anos,
os últimos grandes Doma, os últimos anciãos herdeiros dos vários ramos da Tradição
provavelmente terão desaparecido. Se não nos apressarmos em reunir seus
testemunhos e ensinamentos, todo o patrimônio cultural e espiritual de um povo cairá
no esquecimento juntamente com eles, e uma geração jovem sem raízes ficará
abandonada à própria sorte. Autenticidade da transmissão Mais do que todos os
outros homens, os tradicionalistas-doma, grandes ou pequenos, obrigam-se a
respeitar a verdade. Para eles, a mentira não é simples- mente um defeito moral, mas
uma interdição ritual cuja violação lhes impossibilitaria o preenchimento de sua função.
Um mentiroso não poderia ser um iniciador, nem um "Mestre da faca", e muito menos
um Doma. Se, excepcionalmente, acontecesse de um tradicionalista-doma revelar-se
um mentiroso, jamais voltaria a receber a confiança de alguém em qualquer domínio e
sua função desapareceria imediatamente. De modo geral, a tradição africana abomina
a mentira. Diz-se: "Cuida-te para não te separares de ti mesmo. É melhor que o
mundo fique separado de ti do que tu separado de ti mesmo". Mas a interdição ritual
da mentira afeta, de modo particular, todos os "oficiantes" (ou sacrificadores ou
mestres da faca, etc.) 4 de todos os graus, a começar pelo pai de família que é o
sacrificador ou o oficiante de sua família, passando pelo ferreiro, pelo tecelão ou pelo
artesão tradicional - sendo a prática de um ofício uma atividade sagrada, como
veremos adiante. A proibição atinge todos os que, tendo de exercer uma
responsabilidade mágico-religiosa e de realizar os atos rituais, são, de algum modo, os
intermediários entre os mortais comuns e as forças tutelares; no topo estão o oficiante
sagrado do país (por exemplo, o Hogon, entre os Dogon) e, eventualmente, o rei. Essa
interdição ritual existe, de meu conhecimento, em todas as tradições da savana
africana. A proibição da mentira deve-se ao fato de que se um oficiante mentisse,
estaria corrompendo os atos rituais. Não mais preencheria o conjunto das condições
rituais necessárias à realização do ato sagrado, sendo a principal estar ele próprio em
harmonia antes de manipular as forças da vida. Não nos esqueçamos de que todos os
sistemas mágico-religiosos africanos tendem a preservar ou restabelecer o equilíbrio
das forças, do qual depende a harmonia do mundo material e espiritual. Mais do que
todos os outros, os Doma sujeitam-se a esta obrigação, pois, enquanto Mestres
iniciados, são os grandes detentores da Palavra, principal agente ativo da vida
humana e dos espíritos. São os herdeiros das palavras sagradas e encantatórias
transmitidas pela cadeia de ancestrais, palavras que podem remontar às primeiras
vibrações sagradas emitidas por Maa, o primeiro homem. Se o tradicionalista-doma é
detentor da Palavra, os demais homens são os depositários do palavrório... Citarei o
caso de um Mestre da faca dogon, do país de Pignari (departamento de Bandiagara)
que conheci na juventude e que, certa vez, foi forçado a mentir a fim de salvar a vida
de uma mulher procurada que ele havia escondido em sua casa. Após o incidente,
renunciou espontaneamente ao cargo, supondo que já não mais preenchia as
condições rituais para assumi-lo lidimamente. Quando se trata de questões religiosas
e sagradas, os grandes mestres tradicionais não temem a opinião desfavorável das
massas e, se acaso cometem um engano, admitem o erro publicamente, sem
58
desculpas calculadas ou evasivas. Para eles, reconhecer quaisquer faltas que tenham
cometido é uma obrigação, pois significa purificar-se da profanação. Se o
tradicionalista ou "Conhecedor" é tão respeitado na África, é porque ele se respeita a
si próprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve mentir, é um homem
"bem equilibrado", mestre das forças que nele habitam. Ao seu redor as coisas se
ordenam e as perturbações se aquietam. Independentemente da interdição da
mentira, ele pratica a disciplina da palavra e não a utiliza imprudentemente. Pois se a
fala, como vimos, é considerada uma exteriorização das vibrações de forças interiores,
inversamente, a força interior nasce da interiorização da fala. A partir dessa óptica,
pode-se compreender melhor a importância que a educação tradicional africana atribui
ao autocontrole. Falar pouco é sinal de boa educação e de nobreza. Muito cedo, o
jovem aprende a dominar a manifestação de suas emoções ou de seu sofrimento,
aprende a conter as forças que nele existem, à semelhança do Maa primordial que
continha dentro de si, submissas e ordenadas, todas as forças do Cosmo. Dir-se-á de
um "Conhecedor" respeitado ou de um homem que é mestre de si mesmo: "É um
Maa!" (ou um Neddo, em fulfulde), quer dizer, um homem completo. Não se deve
confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar enquanto divertem e se
colocam ao alcance da audiência, com os trovadores, contadores de história e
animadores públicos, que em geral pertencem à casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso
("cativos de casa") (5). Para estes, a disciplina da verdade não existe; e, como
veremos adiante, a tradição lhes concede o, direito de travestí-Ia ou de embelezar os
fatos, mesmo que grosseiramente, contanto que consigam divertir ou interessar o
público. "O griot" como se diz - "pode ter duas línguas." Ao contrário, nenhum africano
de formação tradicionalista sequer sonharia em colocar em dúvida a veracidade da
fala de um tradicionalista-doma, especialmente quando se trata, da transmissão dos
conhecimentos herdados da cadeia dos ancestrais... Antes de falar, o Doma, por
deferência, dirige-se às almas dos antepassados para pedir-lhes que venham assisti-
lo, a fim de evitar que a língua troque as palavras ou que ocorra um lapso de memória,
que o levaria a alguma omissão. Danfo Sine, o grande Doma bambara que conheci na
infância em Bougouni e que era o Chantre do Komo, antes de iniciar uma história ou
lição costumava dizer: "Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké! Oh, Almas dos
velhos ferreiros e dos velhos tecelões, Primeiros ancestrais iniciadores vindos do
Leste! Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou Na trombeta do Komo, Vindo
sobre o Jeliba (Níger)! Acercai-vos e escutai-me, Em concordância com vossos
dizeres Vou contar aos meus ouvintes Como as coisas aconteceram, Desde vós, no
passado, até. nós, no presente, Para que as palavras sejam preciosamente guardadas
E fielmente transmitidas Aos homens de amanhã Que serão nossos filhos E os filhos
de nossos filhos, Segurai firme, ó ancestrais, as rédeas de minha língua! Guiai o brotar
das minhas palavras A fim de que possam seguir e respeitar Sua ordem natural". Em
seguida, acrescentava: "Eu, Danfo Sine, do clã de Samake (elefante), vou contar tal
como o aprendi, na presença de minhas duas testemunhas Makoro e Manifin" ( 6). "Os
dois como eu conhecem a trama (7). Eles serão a um tempo meus fiscais e meu
apoio." Se o contador de histórias cometesse um erro ou esquecesse algo, sua
testemunha o interromperia: "Homem! Presta atenção quando abres a boca!" Ao que
ele responderia: "Desculpe, foi minha língua fogosa que me traiu". Um tradicionalista-
doma que não é ferreiro de nascença, mas que conhece as ciências relacionadas à
forja, por exemplo, dirá, antes de falar sobre ela: "Devo isto a fulano, que deve a
59
decano voltou o rosto para o outro lado e disse: "- Como podemos contar-lhe tudo se
ele não quer ser circuncidado? Você bem sabe, chefe, que isso não é possível. Ele
terá de levar a vida dos circuncidados para que possamos ensinar-lhe todas as lições".
"- Uma vez que por força somos obrigados a satisfazê-lo" - replicou o chefe do cantão
-, "cabe a você encontrar uma saída para essa dificuldade." "- Muito bem! - disse o
velho. - Nós nos desembaraçaremos dele sem que ele perceba, 'pondo-o na palha'". A
fórmula "pôr na palha", que consiste em enganar uma pessoa com alguma história
improvisada quando não se pode dizer a verdade, foi inventada a partir do momento
em que o poder colonial passou a enviar seus agentes ou representantes com o
propósito de fazer pesquisas etnológicas sem aceitar viver sob as condições exigidas.
Muitos etnólogos foram vítimas inconscientes desta tática... Quantos não pensavam
ter compreendido completamente determinada realidade quando, sem vivê-la, não
poderiam verdadeiramente tê-la conhecido. Além do ensino esotérico ministrado nas
grandes escolas de iniciação - por exemplo, o Komo ou as demais já mencionadas -, a
educação tradicional começa, em verdade, no seio de cada família, onde o pai, a mãe
ou as pessoas mais idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores e constituem
a primeira célula dos tradicionalistas. São eles que ministram as primeiras lições da
vida, não somente através da experiência, mas também por meio de histórias, fábulas,
lendas, máximas, adágios, etc. Os provérbios são as missivas legadas à posteridade
pelos ancestrais. Existe uma infinidade deles. Certos jogos infantis foram elaborados
pelos iniciados com o fim de difundir, ao longo dos séculos, certos conhecimentos
esotéricos "cifrados". Citemos, por exemplo, o jogo do Banangolo, no Mali, baseado
em um sistema numeral relacionado com os 266 siqiba, ou signos, que correspondem
aos atributos de Deus. Por outro lado, o ensinamento não é sistemático, mas ligado às
circunstâncias da vida. Este modo de proceder pode parecer caótico, mas, em
verdade, é prático e muito vivo. A lição dada na ocasião de certo acontecimento ou
experiência fica profundamente gravada na memória da criança. Ao fazer uma
caminhada pela mata, encontrar um formigueiro dará ao velho mestre a oportunidade
de ministrar conhecimentos diversos, de acordo com a natureza dos ouvintes. Ou
falará sobre o próprio animal, sobre as leis que governam sua vida e a "classe de
seres" a que pertence, ou dará uma lição de moral às crianças, mostrando-lhes como
a vida em comunidade depende da solidariedade e do esquecimento de si mesmo, ou
ainda poderá falar sobre conhecimentos mais elevados, se sentir que seus ouvintes
poderão compreendê-lo. Assim, qualquer incidente da vida, qualquer acontecimento
trivial pode sempre dar ocasião a múltiplos desenvolvimentos, pode induzir à narração
de um mito, de uma história ou de uma lenda. Qualquer fenômeno observado permite
remontar às forças de onde se originou e evocar os mistérios da unidade da Vida, que
é inteiramente animada pela Se, a Força sagrada primordial, ela mesma um aspecto
do Deus Criador. Na África, tudo é "História". A grande História da vida compreende a
História das Terras e das Águas (geografia), a História dos vegetais (botânica e
farmacopeia), a História dos "Filhos do seio da Terra" (mineralogia, metais), a História
dos astros (astronomia, astrologia), a História das águas, e assim por diante. Na
tradição da savana, particularmente nas tradições bambara e peul, o conjunto das
manifestações da vida na terra divide-se em três categorias ou "classes de seres",
cada uma delas subdividida em três grupos: - Na parte inferior da escala, os seres
inanimados, os chamados seres "mudos", cuja linguagem é considerada oculta, uma
vez que é in- compreensível ou inaudível para o comum dos mortais. Essa classe de
61
seres inclui tudo o que se encontra na superfície da terra (areia, água, etc.) ou que
habita o seu interior (minerais, metais, etc.). Dentre os inanimados mudos,
encontramos os inanimados- sólidos, líquidos e gasosos (literalmente, "fumegantes"). -
No grau médio, os "animados imóveis", seres vivos que não se deslocam. Essa é a
classe dos vegetais, que podem se estender ou se desdobrar, no espaço, mas cujo pé
não pode mover-se. Dentre os animados imóveis, encontramos as plantas rasteiras,
as trepadeiras e as verticais, estas últimas constituindo a classe superior. -
Finalmente, os "animados móveis", que compreendem todos os animais, inclusive o
homem. Os animados móveis incluem os animais terrestres (com e sem ossos), os
animais aquáticos e os animais voadores. Tudo o que existe pode, portanto, ser
incluído em uma dessas categorias.(9) De todas as "Histórias", a maior e mais
significativa é a do próprio Homem, simbiose de todas as "Histórias", uma vez que,
segundo o mito, foi feito com uma parcela de tudo o que existiu antes dele. Todos os
reinos da vida (mineral, vegetal e animal) encontram-se nele, conjugados a forças
múltiplas e a faculdades superiores. Os ensinamentos referentes ao homem baseiam-
se em mitos da cosmogonia, determinando seu lugar e papel no universo e revelando
qual deve ser sua relação com o mundo dos vivos e dos mortos. Explica-se tanto o
simbolismo de seu corpo quanto a complexidade de seu psiquismo: "As pessoas da
pessoa são numerosas no interior da pessoa", dizem as tradições bambara e peul.
Ensina-se qual deve ser seu comportamento frente à natureza, como respeitar-lhe o
equilíbrio e não per- turbar as forças que a animam, das quais não é mais que o
aspecto visível A iniciação o fará descobrir a sua própria relação com o mundo das
forças e pouco a pouco o conduzirá ao autodomínio, sendo a finalidade última tornar-
se, tal como Maa, um "homem completo", interlocutor de Maa Ngala e guardião do
mundo vivo. Os ofícios tradicionais Os ofícios artesanais tradicionais são os grandes
vetores da tradição oral. N a sociedade tradicional africana, as atividades humanas
possuíam frequentemente um caráter sagrado ou oculto, principalmente as atividades
que consistiam em agir sobre a matéria e transformá-la, uma vez que tudo é
considerado vivo. Toda função artesanal estava ligada a um conhecimento esotérico
transmitido de geração a geração e que tinha sua origem em uma revelação inicial. A
obra do artesão era sagrada porque "imitava" a obra de Maa Ngala e completava sua
criação. A tradição bambara ensina, de fato, que a criação ainda não está acabada e
que Maa Ngala, ao criar nossa terra, deixou as coisas inacabadas para que Maa, seu
interlocutor, as completasse ou modificasse, visando conduzir a natureza "à perfeição”.
A atividade artesanal, em sua operação, deveria "repetir" o mistério da criação.
Portanto, ela "focalizava" uma força oculta da qual não se podia aproximar sem
respeitar certas condições rituais. Os artesãos tradicionais acompanham o trabalho
com cantos rituais ou palavras rítmicas sacramentais, e seus próprios gestos são
considerados uma linguagem. De fato, os gestos de cada ofício reproduzem, no
simbolismo que lhe é próprio, o mistério da criação primeira, que, como foi mostrado
anteriormente, ligava-se ao poder da Palavra. Diz-se que: "O ferreiro forja a Palavra, O
tecelão a tece, O sapateiro amacia-a curtindo-a". Tomemos o exemplo do tecelão, cujo
ofício vincula-se ao simbolismo da Palavra criadora que se distribui no tempo e no
espaço. O tecelão de casta (um maabo, entre os Peul) é o depositário dos segredos
das 33 peças que compõem a base fundamental do tear, cada uma delas com um
significado. A armação, por exemplo, constitui-se de oito peças principais: quatro
verticais, que simbolizam não só os quatro elementos-mãe (terra, água, ar e fogo),
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matéria. (Em fulfulde, ferreiro traduz-se por baylo, palavra que literalmente significa
"transformador"). Antes de começar o trabalho, invoca os quatro elementos-mãe da
criação (terra, água, ar e fogo), que estão obrigatoriamente representados na forja:
existe sempre um receptáculo com água, o fogo da fornalha, o ar enviado pelos foles e
um montículo de terra ao lado da forja. Durante o trabalho, o ferreiro pronuncia
palavras especiais à medida que vai tocando cada ferramenta. Ao tomar a bigorna,
que simboliza a receptividade feminina, diz: "Não sou Maa Ngala, mas o representante
de Maa Ngala. Ele é quem cria, não eu". Em seguida, apanha um pouco de água, ou
um ovo, oferece-a à bigorna e diz: "Eis teu dote". Pega o martelo, que simboliza o falo,
e aplica alguns golpes na bigorna para "sensibilizá-la". Estabelecida a comunicação,
ele pode começar a trabalhar. O aprendiz não deve fazer perguntas. Deve apenas
observar com atenção e soprar. Esta é a fase "muda" do aprendizado. À medida que
vai avançando na assimilação do conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos cada vez
mais complexos, cada um deles possuindo um significado. No decorrer da fase oral do
aprendizado, o Mestre transmitirá gradualmente todos os seus conhecimentos ao
discípulo, treinando-o e corrigindo-o até que adquira a mestria. Após uma "cerimônia
de liberação", o novo ferreiro poderá deixar o mestre e instalar a sua própria forja.
Comumente, o ferreiro envia os próprios filhos para outro ferreiro a fim de iniciarem
seu aprendizado. Como diz o adágio: "As esposas e os filhos do Mestre não são seus
melhores discípulos". Assim, o artesão tradicional, imitando Maa Ngala, "repetindo"
com seus gestos a criação primordial, realizava não um "trabalho" no sentido
puramente econômico da palavra, mas uma função sagrada que empregava as forças
fundamentais da vida e em que se aplicava todo o seu ser. Na intimidade da oficina ou
da forja, participava do mistério renovado da criação eterna. Os conhecimentos do
ferreiro devem abranger um vasto setor da vida. Renomado ocultista, a mestria dos
segredos do fogo e do ferro faz dele a única pessoa habilitada a praticar a circuncisão,
e, como vimos, o grande "Mestre da faca" na iniciação do Komo é invariavelmente um
ferreiro. Não apenas sabe tudo o que diz respeito a metais, como também conhece
perfeitamente a classificação das plantas e suas propriedades. O ferreiro de alto-forno,
que ao mesmo tempo extrai e funde o mineral, é o mais avançado em conhecimentos.
À ciência de ferreiro fundidor, acrescenta o conhecimento perfeito dos "Filhos do seio
da Terra" (mineralogia) e dos segredos das plantas e da mata. De fato, ele conhece as
espécies de vegetais que cobrem a terra que contém determinado metal e detecta um
veio de ouro simplesmente examinando as plantas e os seixos. Conhece as
encantações da terra e as encantações das plantas. Uma vez que se considera a
natureza como viva e animada pelas forças, todo ato que a perturba deve ser
acompanhado de um "comportamento ritual" destinado a preservar e salvaguardar o
equilíbrio sagrado, pois tudo se liga, tudo repercute em tudo, toda ação faz vibrar as
forças da vida e desperta uma cadeia de consequências cujos efeitos são sentidos
pelo homem. A relação do homem tradicional com o mundo era, portanto, uma relação
viva de participação e não uma relação de pura utilização. É compreensível que, nesta
visão global do universo, o papel do profano seja mínimo. No antigo país Baúle, por
exemplo, o ouro, que a terra oferecia em abundância, era considerado metal divino e
não chegou a ser explorado exaustivamente. Empregavam-no sobretudo na confecção
de objetos reais ou cultuais, mas igualmente o utilizavam como moeda de câmbio e
objeto de presente. Sua extração era livre a todos, mas a ninguém era permitida a
apropriação de pepitas que ultrapassassem certo tamanho; toda pepita com peso
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árvore considerada viva e habitada por outros espíritos vivos, não pode ser derrubada
ou cortada sem determinadas precauções rituais conhecidas pelo lenhador; - aquele
que faz utensílios ou móveis domésticos de madeira; - aquele que fabrica pirogas,
devendo ser iniciado também nos segredos da água. No Mali, os Somono, que se
tomaram pescadores sem pertencer à etnia Bozo, também começaram a fabricar
pirogas. São eles que podemos ver trabalhando às margens do Níger entre Kulikoro e
Mopti. Existem três tipos de trabalhadores do couro (garanke em bambara, sakke em
fulfulde): - os que fazem sapatos; os que fazem arreios, rédeas, etc.; - os seleiros ou
correeiros. O trabalho do couro também envolve uma iniciação, e os garanke
geralmente têm a reputação de feiticeiros. Os caçadores, os pescadores e os
agricultores não correspondem a castas, mas sim a etnias. Suas atividades estão
entre as mais antigas da sociedade humana: a "colheita" (agricultura) e a "caça" (que
compreende "duas caças", uma na terra e outra na água) representam também
grandes escolas de iniciação, pois não há quem se aproxime imprudentemente das
forças sagradas da Terra-Mãe e dos poderes da mata, onde vivem os animais. A
exemplo do ferreiro de alto-forno, o caçador, de modo geral, conhece todas as
"encantações da mata" e deve dominar a fundo a ciência do mundo animal. Os
curandeiros (que curam por meio de plantas ou pelo "dom da fala") podem pertencer a
qualquer classe ou grupo étnico. Normalmente eles são Doma. Cada povo possui
como herança dons particulares, transmitidos de geração a geração através da
iniciação. Assim, os Dogon do Mali têm a reputação de conhecer o segredo da lepra,
que sabem curar muito rapidamente sem deixar uma única marca, e o segredo da cura
de tuberculose. Além disso, são excelentes "restauradores", pois conseguem recolocar
os ossos quebrados, mesmo em caso de fraturas graves. Os animadores públicos ou
"griots" ("dieli" embambara) Se as ciências ocultas e esotéricas são privilégio dos
"mestres da faca" e dos chantres dos deuses, a música, a poesia lírica e os contos
que animam as recreações populares, e normalmente também a história, são
privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o país ou
estão ligados a uma família. Sempre se supôs - erroneamente - que os griots fossem
os únicos "tradicionalistas" possíveis. Mas quem são eles? Classificam-se em três
categorias: - os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra,
cora, tantã, etc.). Normalmente são cantores maravilhosos, preservadores,
transmissores da música antiga e, além disso, compositores. - os griots
"embaixadores" e cortesãos, responsáveis pela mediação entre as grandes famílias
em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes
a uma única pessoa. - os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao
mesmo tempo), que em geral são igualmente contadores de história e grandes
viajantes, não necessariamente ligados a uma família. A tradição lhes confere um
status social especial. Com efeito, contrariamente aos Horon (nobres), têm o direito de
ser cínicos e gozam de grande liberdade de falar. Podem manifestar-se à vontade, até
mesmo impudentemente e, às vezes, chegam a troçar das coisas mais sérias e
sagradas sem que isso acarrete graves conseqüências. Não têm compromisso algum
que os obrigue a ser discretos ou a guardar respeito absoluto para com a verdade.
Podem às vezes contar mentiras descaradas e ninguém os tomará no sentido próprio.
"Isso é o que o dieli diz! Não é a verdade verdadeira, mas a aceitamos assim." Essa
máxima mostra muito bem de que modo a tradição aceita as invenções dos dieli, sem
se deixar enganar, pois, como se diz, eles têm a "boca rasgada". Em toda a tradição
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causar confusão. Por vezes, alguns tecelões deixam de exercer seu ofício tradicional
para se tomarem tocadores de guitarra. Os Peul chamam-nos de Bammbaado,
literalmente "aquele que é carregado nas costas", porque suas despesas são sempre
pagas por outrem ou pela comunidade. Os Bammbaado, que são sempre contadores
de histórias, também podem ser poetas, genealogistas e historiadores. Alguns
lenhadores também podem trocar suas ferramentas por uma guitarra e se tornar
excelentes músicos e genealogistas. Bokar Ilo e ldriss Ngada, que, pelo que sei, se
encontravam entre os grandes genealogistas do Alto Volta, eram lenhadores que se
tornaram músicos. Mas trata-se aqui de exceções. Do mesmo modo, alguns nobres
desacreditados podem se tornar animadores públicos, mas não músicos (14), e são
chamados de Tiapourta (em bambara e em fulfulde). Assim, são mais impudentes e
cínicos do que o mais impudente dos griots, e ninguém leva a sério seus comentários.
Pedem presentes aos griots com tal insistência que estes últimos chegam a fugir ao
ver um Tiapourta... Se a música é, em geral, a grrande especialidade dos dieli, existe
também uma música ritual, tocada por iniciados, que acompanha as cerimônias ou as
danças rituais. Os instrumentos dessa música sagrada são, portanto, verdadeiros
objetos de culto, que tornam possível a comunicação com as forças invisíveis. Por
serem instrumentos de corda, sopro ou percussão, encontram-se em conexão com os
elementos: terra, ar e água. A música própria para "encantar" os espíritos do fogo é
apanágio da associação dos comedores de fogo, que são chamados de Kursi-kolonin
ou Donnga-soro. Como tomar-se um tradicionalista Na África do Bafur, como já foi
dito, qualquer um podia tornar-se tradicionalista-doma, isto é, "Conhecedor", em uma
ou mais matérias tradicionais. O conhecimento estava à disposição de todos (sendo a
iniciação onipresente sob uma forma ou outra) e sua aquisição dependia
simplesmente das aptidões individuais. O conhecimento era tão valorizado, que tinha
precedência sobre tudo e conferia nobreza. O conhecedor, em qualquer área, podia
sentar-se no Conselho dos Anciãos encarregado da administração da comunidade, a
despeito de sua categoria social - horon, nyamakala ou woloso. "O conhecimento não
distingue raça nem 'porta paterna' (o clã). Ele enobrece o homem", diz o provérbio. A
educação africana não tinha a sistemática do ensino europeu, sendo dispensada
durante toda a vida. A própria vida era educação. No Bafur, até os 42 anos, um
homem devia estar na escola da vida e não tinha "direito a palavra" em assembléias, a
não ser excepcionalmente. Seu dever era ficar "ouvindo" e aprofundar o conhecimento
que veio recebendo desde sua iniciação, aos 21 anos. A partir dos 42 anos, supunha-
se que já tivesse assimilado e aprofundado os ensinamentos recebidos desde a
infância. Adquiria o direito a palavra nas assembléias e tornava-se, por sua vez, um
mestre, para devolver à sociedade aquilo que dela havia recebido. Mas isso não o
impedia de continuar aprendendo com os mais velhos, se assim o desejasse, e de
lhes pedir conselhos. Um homem idoso encontrava sempre outro mais velho ou mais
sábio do que ele, a quem pudesse solicitar uma informação adicional ou uma opinião.
"Todos os dias", costuma-se dizer, "o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu." Assim,
a educação podia durar a vida inteira. Após aprender o ofício e seguir a iniciação
correspondente, o jovem nyamakala - artesão, pronto para voar com suas próprias
asas, ia geralmente de cidade em cidade, a fim de aumentar seus conhecimentos
aprendendo com novos mestres. "Aquele que não viajou, nada viu", diz-se. Assim, ele
ia de oficina em oficina, percorrendo, o mais extensamente possível, o país. Os
homens das montanhas desciam às planícies, os das planícies subiam às montanhas,
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de sua "carteira de identidade". No antigo Mali, não havia quem não conhecesse pelo
menos 10 ou 12 gerações de antepassados. Dentre todos os velhos tukulor que
vieram para Macina com al-Hadjdj'Umar não havia um que não soubesse sua
genealogia no Futa Senegal (seu país de origem) e seu parentesco com as famílias
que lá permaneceram. Foram eles que Mamadou Molom, filho de Molom Gaolo,
consultou quando veio ao Mali para dar prosseguimento à pesquisa de seu pai. A
genealogia é, desse modo, ao mesmo tempo sentimento de identidade, meio de
exaltar a glória da família e recurso em caso de litígio. Um conflito por um pedaço de
terra, por exemplo, poderia ser resolvido por um genealogista, que indicaria qual
ancestral havia limpado e cultivado a terra, para quem a havia dado, sob que
condições, etc. Ainda hoje encontramos entre a população muitos conhecedores de
genealogia e história que não pertencem nem à classe dos dieli nem à dos gaolo.
Temos aí uma importante fonte de informações para a história da África, pelo menos
ainda por um certo tempo. Cada patriarca é um genealogista para seu próprio clã, e os
dieli e gaolo vêm freqüentemente lhes pedir informações com o propósito de
complementar seus conhecimentos. De modo geral, todo velho na África é sempre um
"Conhecedor" em algum assunto histórico ou tradicional. O conhecimento genealógico
não é, portanto, exclusividade dos griots . e gaolo, mas são eles os únicos
especialistas em declamar genealogias perante os nobres para obter presentes.
Influência do Islã As peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua
transmissão oral não foram afetadas pela islamização, que atingiu grande parte dos
países da savana ou do antigo Bafur. De fato, por onde se espalhou, o Islã não
adaptou a tradição africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrário adaptou-se à
tradição africana quando - como normalmente ocorria – esta não violava seus
princípios fundamentais. A simbiose assim originada foi tão grande, que por vezes
torna-se difícil distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição. . A grande família
árabe-berbere dos Kunta islamizou a região bem antes do século XI. Logo que
aprenderam o árabe, os autóctones passaram a se utilizar de suas tradições
ancestrais para transmitir e explicar o Islã. Grandes escolas islâmicas puramente orais
ensinavam a religião nas línguas vernáculas (exceto o Corão e os textos que fazem
parte da oração canônica). Podemos mencionar, entre muitas outras, a escola oral de
Djelgodji (chamada Kabe), a escola de Barani, a de Amadou Fodia em Farimaké
(distrito de Niafounké, no Mali), a de Mohammed Abdoulaye Souadou em Dilli (distrito
de Nara, no Mali) e a do xeque Usman dan Fodio na Nigéria e no Níger, onde todo o
ensino era ministrado em fulfulde. Mais próximas de nós estavam a Zauia de Tierno
Bokar Salif, em Bandiagara, e a escola do xeque Salah, o grande marabu dogon,
ainda vivo. Das crianças que saíam das escolas corânicas a maioria era capaz de
recitar de cor o Corão inteiro, em árabe e no salmo desejado, sem entender o sentido
do texto, o que demonstra a capacidade da memória africana. Em todas essas escolas
os princípios básicos da tradição africana não eram repudiados, mas, ao contrário,
utilizados e explicados à luz da revelação corânica. Tierno Bokar, tradicionalista em
assuntos africanos e islâmicos, tornou-se famoso pela intensa aplicação deste método
educacional. Independentemente de uma visão sagrada comum do universo e de uma
mesma concepção do homem e da família, encontramos, nas duas tradições, a
mesma preocupação em citar as fontes (isnad, em árabe) e nunca modificar as
palavras do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de transmissão iniciatória (silsila,
ou "cadeia", em árabe) e o mesmo sistema de caminhos iniciatórios (no Islã, as
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grandes congregações Sufi ou Tariga, plural turuq, cuja cadeia remonta ao próprio
Profeta), que tornam possível aprofundar, através da experiência, aquilo que se
conhece pela fé. Às categorias de "Conhecedores" tradicionais já existentes vieram
juntar-se as dos marabus (letrados em árabe ou em jurisprudência islâmica) e dos
grandes xeques Sufi, embora as estruturas da sociedade (castas e ofícios tradicionais)
fossem preservadas, inclusive nos meios mais islamizados, e continuassem a veicular
suas iniciações particulares. O conhecimento de assuntos islâmicos constituía uma
nova fonte de enobrecimento. Assim, Alfa Ali, falecido em 1958, gaolo de nascimento,
foi a maior autoridade em assuntos islâmicos no distrito de Bandiagara, assim como
seus antepassados e seu filho 15. História de uma coleta Para dar uma ilustração
prática de como narrativas históricas, entre outras, vivem e são preservadas com
extrema fidelidade na memória coletiva de uma sociedade de tradição oral, contarei de
que maneira consegui reunir, unicamente a partir da tradição oral, os elementos que
me permitiram escrever a História do Império Peul de Macina no Século XVIII 16.
Pertencendo à família de Tidjani, chefe da província, tive, desde a infância, condições
ideais para ouvir e reter. A casa de Tidjani, meu pai, em Bandiagara, estava sempre
cheia de gente. Noite e dia havia grandes reuniões onde todos falavam sobre uma
grande variedade de assuntos tradicionais. Estando a família de meu pai muito
envolvida nos acontecimentos da época, os relatos eram normalmente sobre história,
e cada pessoa narrava um episódio bem conhecido de alguma batalha ou de outro
acontecimento memorável. Sempre presente nessas reuniões, eu não perdia uma
palavra sequer, e minha memória, como cera virgem, gravava tudo. Foi lá que, ainda
criança, conheci Koullel, o grande contador de histórias, genealogista e historiador de
língua fulfulde. Eu o seguia por toda parte e aprendia muitos contos e narrativas que
orgulhosamente recontava aos camaradas de meu grupo de idade, a ponto de me
apelidarem "Amkoullel", que significa "pequeno Koullel". Circunstâncias alheias à
minha vontade levaram-me a viajar, seguindo minha família, por diversos países onde
pude sempre estar em contato com grandes tradicionalistas. Assim, quando meu pai
se viu obrigado a fixar residência em Bougouni, para onde Koullel nos havia
acompanhado, travei conhecimento com o grande doma bambara, Danfo Sine, e, em
seguida, com seu irmão mais novo, Latif. Mais tarde, em Bamaco e em Kati, a corte de
meu pai foi praticamente reconstituída, e tradicionalistas chegavam de todos os países
para se reunir em sua casa, sabendo que lá encontrariam outros "Conhecedores" em
cuja companhia poderiam avaliar ou mesmo alargar seus próprios conhecimentos,
pois sempre se encontra alguém mais sábio. Foi ali que comecei a aprender muitas
coisas referentes à história do Império peul de Macina, tanto na versão macinanke
(isto é, a versão do povo originário de Macina, partidários da família de Sheikou
Amadou), como na versão dos Tukulor, seus antagonistas, e ainda na versão de
outras etnias (Bambara, Soninke, Songhai, etc.) que haviam presenciado ou
participado dos acontecimentos. Tendo, assim, adquirido uma formação básica
bastante sólida, decidi coletar informações sistematicamente. Meu método consistia
em gravar, primeiramente, todas as narrativas, sem me preocupar com sua veracidade
ou com uma possível exageração. Em seguida, comparava as narrativas dos
Macinanke com as dos Tukulor ou com as de outras etnias envolvidas. Dessa
maneira, sempre se pode encontrar, em qualquer região, etnias cujas narrativas
permitam controlar as declarações dos principais interessados. Foi um trabalho de
fôlego. A coleta de informações exigiu-me mais de 15 anos de trabalho e de jornadas
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que me levavam do Futa Djalon (Guiné) a Kano (Nigéria), a fim de retraçar as rotas
que Sheikou Amadou e al-Hadjdj'Umar haviam percorrido em todas as suas viagens.
Desse modo, registrei as narrativas de pelo menos mil informantes. No final, mantive
apenas os relatos concordantes, os que eram conformes tanto às tradições macinanke
e tukulor, como também às das demais etnias envolvidas (cujas fontes citei no livro).
Constatei que, no conjunto, meus mil informantes haviam respeitado a verdade dos
fatos. A trama da narrativa era sempre a mesma. As diferenças, que se encontravam
apenas em detalhes sem importância, deviam-se à qualidade da memória ou da verve
peculiar do narrador. Dependendo do grupo étnico a que pertencia, podia tender a
minimizar certos revezes ou a tentar encontrar alguma justificativa para eles, mas não
mudava os dados básicos. Sob a influência do acompanhamento musical, o contador
de histórias podia deixar-se levar pelo entusiasmo, mas a linha geral permanecia a
mesma: os lugares, as batalhas, as vitórias e as derrotas, as conferências e diálogos
mantidos, os propósitos dos personagens principais, etc. Essa experiência provou-me
que a tradição oral era perfeitamente válida do ponto de vista científico. É possível
comparar as versões de diferentes etnias, como fiz, a título de controle, mas a própria
sociedade exerce um auto-controle permanente. Com efeito, nenhum narrador poderia
permitir-se mudar os fatos, pois à sua volta haveria sempre companheiros ou anciãos
que imediatamente apontariam o erro, fazendo-lhe a séria acusação de mentiroso. O
Professor Montet certa vez referiu-se a mim como tendo relatado, no Império Peul de
Macina, narrativas que seu pai havia coletado 50 anos antes, das quais nenhuma
palavra tinha sido alterada. Isso dá uma idéia da fidelidade com que os dados são
preservados na tradição oral! Características da memória africana Entre todos os
povos do mundo, constatou-se que os que não escreviam possuíam uma memória
mais desenvolvida. Demos o exemplo dos genealogistas que conseguem reter uma
inacreditável quantidade de elementos, mas poderíamos mencionar também o caso de
certos comerciantes iletrados (ainda conheço muitos deles) que dirigem negócios
envolvendo por vezes dezenas de milhões de francos, e emprestam dinheiro a muitas
pessoas no curso das suas viagens, guardando de memória a mais precisa
contabilidade de todos esses movimentos de mercadorias e dinheiro, sem uma única
nota escrita e sem cometer o menor engano. O dado a ser retido fica imediatamente
inscrito na memória do tradicionalista, como em cera virgem, e lá permanece sempre
disponível, em sua totalidade (17). Uma das peculiaridades da memória africana é
reconstituir o aconteci- mento ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um
filme que se desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de
recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o
narrado r e a sua audiência. Aí reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é
contador de histórias a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu
realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tomem-se
testemunhas vivas e ativas desse fato. Ora, todo africano é, até certo ponto, um
contador de histórias. Quando um estranho chega a uma cidade, faz sua saudação
dizendo: "Sou vosso estrangeiro". Ao que lhe respondem: "Esta casa está aberta para
ti. Entra em paz". E em seguida: "Dá-nos notícias". Ele passa, então, a relatar toda sua
história, desde quando deixou sua casa, o que viu e ouviu, o que lhe aconteceu, etc., e
isso de tal modo que seus ouvintes o acompanham em suas viagens e com ele as
revivem. E, por esse motivo que o tempo verbal da narrativa é sempre o presente. De
maneira geral, a memória africana registra toda a cena: o cenário, os personagens,
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suas palavras, até mesmo os mínimos detalhes das roupas. Nos relatos de guerra dos
Tukulor, sabemos qual bubu bordado o grande herói Ouma-reI Samba Dondo estava
usando em determinada batalha, quem era seu palafreneiro e o que lhe aconteceu,
qual era o nome de seu cavalo e o que lhe sucedeu, etc. Todos esses detalhes
animam a narrativa, contribuindo para dar vida à cena. Por essa razão o tradicionalista
não consegue "resumir" senão dificilmente. Resumir uma cena equivale, para ele, a
escamoteá-la. Ora, por tradição, ele não tem o direito de fazer isso. Todo detalhe
possui sua importância para a verdade do quadro. Ou narra o acontecimento em sua
integridade ou não o narra. Se lhe for solicitado resumir uma passagem ele
responderá: "Se não tens tempo para ouvir-me, contarei um outro dia". Do mesmo
modo, o tradicionalista não tem receio de se repetir. Ninguém se cansa de ouvi-lo
contar a mesma história, com as mesmas palavras, como talvez já tenha contado
inúmeras vezes. A cada vez, o filme inteiro se desenrola novamente. E o evento está
lá, restituído. O passado se torna presente. A vida não se resume jamais. Pode-se,
quando muito, reduzir uma história para as crianças, resumindo certas passagens,
mas então não se a tomará por verdade. Em se tratando de adultos, o fato deve ser
narrado na íntegra ou calado. Esta peculiaridade da memória africana tradicional
ligada a um contexto de tradição oral é em si uma garantia de autenticidade. Quanto à
memória dos tradicionalistas, em especial a dos tradicionalistas-doma ou
"Conhecedores", que abrange vastas áreas do conhecimento tradicional, constitui uma
verdadeira biblioteca onde os arquivos não estão "classificados", mas totalmente
inventariados. Tudo isso pode parecer caótico para um espírito moderno, mas para os
tradicionalistas, se existe caos, é à maneira das moléculas de água que se misturam
no mar para formar um todo vivo. Nesse mar, eles se movimentam com a facilidade de
um peixe. As fichas imateriais do catálogo da tradição oral são máximas, provérbios,
contos, lendas, mitos, etc., que constituem quer um esboço a ser desenvolvido, quer
um ponto de partida para narrativas didáticas antigas ou improvisadas. Os contos, por
exemplo, e especialmente os de iniciação, possuem uma trama básica invariável, à
qual, no entanto, o narrado pode acrescentar floreados, desenvolvimentos ou
ensinamentos adequados à compreensão de seus ouvintes. O mesmo ocorre com os
mitos, que são conhecimentos condensados em uma forma sintética que o iniciado
pode sempre desenvolver ou aprofundar para seus alunos. Convém considerar com
atenção o conteúdo dos mitos e não "catalogá-los" muito rapidamente. Podem
encobrir realidades de ordens muito diversas e mesmo, por vezes, ser entendidos em
vários níveis simultaneamente. Enquanto alguns mitos se referem a conhecimentos
esotéricos e "ocultam" o conhecimento ao mesmo tempo que o transmitem através
dos séculos, outros podem ter alguma relação com acontecimentos reais. Tomemos o
exemplo de Thianaba, a serpente mítica peul, cuja lenda narra as aventuras e a
migração pela savana africana, a partir do oceano Atlântico. Por volta de 1921, o
engenheiro Belime, encarregado de construir a barragem de Sansanding, teve a
curiosidade de seguir passo a passo as indicações geográficas da lenda, que ele havia
aprendido com Hammadi Djenngoudo, grande "Conhecedor" peul. Para sua surpresa,
descobriu o traçado do antigo leito do rio Níger.
77
Conclusão
grandes depositários. Justamente por esse motivo o trabalho de coleta deve ser
intensificado durante os próximos 10 ou 15 anos, após os quais os últimos grandes
monumentos vivos da cultura africana terão desaparecido e, junto com eles, os
tesouros insubstituíveis de uma educação peculiar, ao mesmo tempo material,
psicológica e espiritual, fundamentada no sentimento de unidade da vida e cujas
fontes se perdem na noite dos tempos. Para que o trabalho de coleta seja bem-
sucedido, o pesquisador deverá se armar de muita paciência, lembrando que deve ter
"o coração de uma pomba, a pele de um crocodilo e o estômago de uma avestruz". "O
coração de uma pomba" para nunca se zangar nem se inflamar, mesmo se lhe
disserem coisas desagradáveis. Se alguém se recusa a responder sua pergunta, inútil
insistir; vale mais instalar-se em outro ramo. Uma disputa aqui terá repercussões em
outra parte, enquanto uma saída discreta fará com que seja lembrado e, muitas vezes,
chamado de volta. "A pele de um crocodilo", para conseguir se deitar em qualquer
lugar, sobre qualquer coisa, sem fazer cerimônias. Por último, "o estômago de uma
avestruz", para conseguir comer de tudo sem adoecer ou enjoar-se. A condição mais
importante de todas, porém, é saber renunciar ao hábito de julgar tudo segundo
critérios pessoais. Para descobrir um novo mundo, é preciso saber esquecer seu
próprio mundo, do contrário o pesquisador estará simplesmente transportando seu
mundo consigo ao invés de manter-se "à escuta". Através da boca de Tierno Bokar, o
sábio de Bandiagara, a África dos velhos iniciados avisa o jovem pesquisador: "Se
queres saber quem sou, Se queres que te ensine o que sei, Deixa um pouco de ser o
que tu és, E esquece o que sabes".
Notas
1 Tierno Bokar SALIF, falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande
mestre da ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos africanos.
Cf. HAMPATÉ BÂ, A. e CARDAlRE, M., 1957.
2 Uma das grandes escolas de iniciação do Mande (Mali).
3 Ver adiante sobre os Griots
4 Nem todas as cerimônias rituais incluíam necessariamente o sacrifício de um animal. O
"sacrifício" podia consistir em uma oferenda de painço, leite ou algum outro produto natural.
5 Os Woloso (literalmente "os nascidos na casa"), ou "cativos de casa", eram empregados ou
famílias de empregados ligados há gerações a uma mesma família. A tradição concedia-lhes
liberdade total de ação e expressão bem como consideráveis direitos materiais sobre os bens
de seus senhores.
6 Makoro e Manifin eram seus dois condiscípulos,
7 Uma narrativa tradicional possui sempre uma trama ou base imutável que não deve jamais
ser modificada, mas a partir da qual pode-se acrescentar desenvolvimentos ou
embelezamentos, segundo a inspiração ou a atenção dos ouvintes,
8 Ancestral dos ferreiros.
9 Cf. HAMPATÉ BÂ, A., 1972. p. 23 e segs.
10 A respeito da lei de correspondência analógica, v. HAMPATÉ BÂ, A. Aspects de Ia
civilization africaine. Paris: Présence africaine, 1972, p. 120 e segs.
11 "Teu pai", em linguagem africana, pode muito bem designar um tio um avô ou um
antepassado. Significa toda a linha paterna, inclusive as colaterais.
12 Nobre e uma tradução bastante aproximativa de Horon. Em verdade Horon é toda pessoa
que não pertence nem à classe dos nyamakala nem à classe dos Jon ("cativos"), sendo esta
ultima constituída por descendentes de prisioneiros de guerra. O Horon tem por dever
assegurar a defesa da comunidade, dar sua vida por ela, assim como garantir a conservação
das outras classes.
79
Observação: toda a coleção da História geral da África da qual foi retirado o texto
acima está on-line para ser “baixada”, gratis, em pdf em:
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-
view/news/general_history_of_africa_collection_in_portuguese_pdf_only/
80
Com efeito, de acordo com o ponto de vista da crítica africana, os textos literários
caracterizam-se pela mobilidade da sua simbolização e convocam uma multiplicidade de
metodologias para a sua descodificação, ou para a fruição completa das suas várias
interferências, linguísticas, culturais, simbólicas, míticas, enfim, semióticas.
Semelhante postura, que tem na sua base a dicotomia Oralidade/ Escrita, levada ao seu
extremo, considerando que a crítica mais eficaz seria aquela culturalmente mais enraizada,
acabaria por efectuar-se num quadro já nem sequer nacional, mas étnico. Thomas Melone 11 é
um dos representantes deste tipo de tendência etnológica e ancestralizante, e de teses que
conduziram a um impasse, uma vez que, entre outros aspectos, se punha em causa, a origem
não africana dos pesquisadores.
9
As diferentes práticas de colonização permitiram, tanto no caso francês como inglês, o desenvolvimento
de elites intelectuais africanas desde a década de trinta, e a maioria das independências ocorreram no fim da
década de cinquenta.
10
Cf. Locha Mateso, La Littérature Africaine et sa Critique, Paris, E.Karthala, 1986 ; Mineke Schipper,
Beyond the Boundaries, African Literature and Literary Theory, London, Allison & Busby, 1989; Chidi Amuta, The
Theory of African Literature, London and New Jersey, Zed Books Ltd.,1989.
11
Melone, Thomas, "La critique littéraire et les problèmes du langage: point de vue d'un africain" in
Présence Africaine, 73, 1970, p.3-19.
81
O Colóquio de Leiden (1977) sobre a Crítica Literária Africana 12 discutiu questões como a
especificidade do discurso crítico africano, promovendo o ecletismo como regra, e o contributo
de vários tipos de modelos críticos, entre os quais, naturalmente, os tradicionais.
Locha Mateso expõe vários dos percursos críticos que posteriormente tiveram lugar,
nomeadamente a partir de ensaios de origem universitária, salientando, entre outros, a crítica
sociológica de Sunday Anozié, a crítica estilística de Zadi Zaouru, o modelo linguístico de J-
P.Makouta M'Boukou13, tentando fazer uma tipologia do discurso crítico africano, reconhecendo
o contributo incontornável das correntes críticas ocidentais no desenvolvimento dos estudos
africanos, especialmente ao referir a importância do valor heurístico do conceito de
"dialogismo", como sendo particularmente operatório no estudo das culturas não europeias,
sujeitas à interpenetração de sistemas culturais diferentes: "Ainsi dans le domaine artistique ou
littéraire, on peut mettre en rapport les traditions orales et les principes de création littéraire
moderne, les interférences linguistiques dans les techniques d'écriture (...)" 1986:367.
O texto de Locha Mateso, "Le modèle traditionnel", incluído na obra referida (1986), tem
especial interesse porque desenvolve uma abordagem teórica e metodológica distinta, que
assenta sobretudo na especificação da relação entre a tradição oral africana e o romance
moderno, encarada de um ponto de vista não ortodoxo, e representado pela obra, fundamental,
de dois autores.
É a partir da literatura oral que o autor constrói o seu modelo teórico, procurando detectar as
"formas" da sobrevivência da oralidade no romance moderno. São essencialmente seis
aspectos que o autor refere: Estrutura linear, Mobilidade temporal e espacial, A viagem
iniciática, Carácter autobiográfico, Estrutura dialógica e Imbrincação de géneros.
A mobilidade temporal e espacial é outra das formas de sobrevivência da literatura oral que
caracteriza o romance africano, em que o itinerário do herói evolui na mudança, partindo de
uma situação de desquilíbrio ou equilíbrio, que tende a inflectir no seu contrário, prevalecendo
uma moralidade final. Ligada a esta característica, a viagem iniciática, segundo Kane,
12
Condé M, "Non spécifité de la critique littéraire 'africaine'" in African Perspectives: Text and Context,
methodological explorations in the field of african literature, Afrika-studiecentrum, Leiden, 1977, p.39.
13
Anozié, Sunday, Sociologie du Roman Africain, Paris, Aubier- Montaigne, 1970; Zadi Zaourou, B.,La Parole
Poétique dans la Poésie Africaine. Domaine de l'afrique de l'Ouest francophone, Thèse d'ètat, Université de
Srasbourg, 1981; Makouta M'Boukou, JP, Introduction à l'étude du roman négro-africain de langue française,
Abidjan, NEA, 1980.
14
Kane, Mohamadou, Roman Africain et Tradition, NEA, 1983.
15
"C'est l'oralité implicite des comportements 'monumentalisées'", Mateso,p.340.
82
Por outro lado, se a literatura tradicional está mais vocacionada para os valores
comunitários do que individuais, o romance africano revela uma vertente autobiográfica muito
forte, componente inovadora em relação à tradição; a estrutura dialógica autor-narrador/leitor
convoca os procedimentos existentes entre o contador e seu auditório, uma vez que a
produção de formas breves, como as máximas, adivinhas, provérbios, pressupõe, pelo menos,
a presença de dois indivíduos; a omnisciência e a polivalência do contador tradicional
sobrevive nas formas do narrador , que interfere e não hesita em invadir a narrativa e
distanciar-se de novo.
Se alguns dos aspectos estudados, minuciosamente, por Kane continuam a ser úteis, outros
parecem ter perdido a sua pertinência com a produção literária pós-colonial, mais recente. Com
efeito o corpus de Kane centrou-se, em especial, em romances da década de sessenta, cuja
temática se centrava no conflito de culturas. No entanto, julgamos operatórios vários dos
aspectos apresentados.
Com efeito, algumas das particularidades das literaturas africanas de língua portuguesa
residem nesta espécie de processo, temporalmente desnivelado em relação às suas
congéneres em outras línguas. O desenvolvimento do romance moçambicano, em que nosso
corpus se orienta, inicia-se na década de oitenta, bem como a sua vertente temática da
conflitualidade cultural.
16
As publicações mais significativas no domínio da ficção no período colonial são os livros de contos
de João Dias, Godido e Outros Contos, em 1950, de Luís Bernardo Honwana, Nós Matámos o Cão
Tinhoso, em 1964 e o pequeno romance Portagem de Orlando Mendes em 1965. Todos estes livros nos
narram histórias que documentam a opressão do colonizado, e se situam no contexto da situação de
discriminação racial e económica que então se vivia na colónia portuguesa de Moçambique.
83
O segundo autor, mencionado por L. Mateso, que reflecte de forma original sobre o
modelo tradicional na crítica africana, recuperando e desenvolvendo algumas das teses de
Kane, é M. Ngal.
Ensaísta e escritor, Ngal preconiza que o autor africano se deve inspirar nos mecanismos
de criação próprios da África tradicional e que o crítico da literatura africana deve orientar o seu
estudo no sentido de descobrir no texto moderno as marcas dessa tradição. A sua obra
romanesca, de que se destaca Giambatista Viko ou Le Viol du Discour Africain e L'Errance17, é
uma alegoria em que Ngal esboça as suas concepções sobre a influência da tradição oral
africana na construção do romance moderno.
Ngal define a oralidade como "tradição oral" 18, ou seja, o testemunho transmitido oralmente
por uma geração às seguintes; ao crítico compete reconhecer os "lugares textuais" onde se
intertextualiza a oralidade; todavia, além do reconhecimento de uma textualidade reconhecível,
como, por exemplo, o uso do provérbio, do conto, o autor assinala as declarações de intenção
paratextuais, como as introduções, dedicatórias, títulos, subtítulos, etc, bem como considera
fundamental um sólido conhecimento antropológico, que permita o reconhecimento de certos
símbolos e atitudes mentais características do espaço tradicional; no entanto, o autor considera
que as marcas de oralidade constituem um inventário em aberto, e susceptível de múltiplas
reformulações, e não um inventário constante, como o proposto por Kane.
O corpus de textos orais a que o escritor recorre, vão sendo comentados pela sua vertente
ensaística, bem como as técnicas de narração, manipulando o narrador de forma a aproximá-lo
do contador; deste modo Ngal demonstra, por exemplo, que o narrador, como na tradição oral,
desempenha um papel primordial, aproximando o acto de fala ao acto de criação.
17
Ngal, M. A M., Giambatista Viko ou le Viol du Discours Africain, Lubumbashi, ed. Alpha- Oméga,
1975; L'Errance, Yaoundé, Clé, 1979.
18
Vansina distingue quatro formas fundamentais da tradição oral:poema, fórmula, epopeia,
narração.E afirma relativamente ao conceito de tradição:"La plupart des oeuvres littéraires sont des
traditions, et toutes les traditions conscientes sont des discours oraux", "La tradition Orale et sa
Méthodologie" in Histoire Générale de l'Afrique, I, Paris, Unesco,p.170.
84
Um segundo texto, de Bill Ashcroft et al.,"African Literary Theories" (in The Empire Writes
Back, London, Routledge, 1989, p.123-132) permite situar e complementar a discussão sobre
a eficácia e o historial crítico do modelo tradicional, do ponto de vista dos africanos anglófonos.
A discussão nasce na década de sessenta em torno dos programas curriculares oferecidos
pelos departamentos de Literatura Inglesa das universidades de Ibadan, Lagos e Makerere.
Escritores como Chinua Achebe19 e Wole Soyinka20 defendem uma estética africana, em que o
papel social do artista africano é fundamental, distanciando-se daquilo que é designado como
"preocupação europeia com a experiência individual".
O ensaio de Achebe "Colonialist criticism"21 - " (...) should like to see the word universal
banned altogether from discussions of African literature until such a time as people cease to
use it as a synonym for the narrow, self-serving parochialism of Europe." - é paradigma de um
posicionamento crítico que defende a "descolonização" da literatura africana e reafirma a
importância de pesquisar, teorizar, o monumental legado oral africano, equivalente, segundo o
autor, à tradição literária europeia.
Estas posições atingiram o seu radicalismo máximo como grupo crítico Bolekaja,
representado pelos nigerianos Chinweizu22, Jemie e Mandubuike que, partindo das asserções
de Achebe, consideram que a literatura africana tem as suas próprias tradições, modelos e
normas, rejeitando qualquer interferência europeia; Wole Soyinka no seu artigo "Neo-
Tarzanism: the poetics of pseudo-tradition" 23, critica a atitude essencialista e reducionista dos
Bolekaja, não negando a importância do legado oral, mas afirmando a inevitável hibridação
cultural resultante da história da presença colonial.
19
Achebe, Chinua,"The Novelist as a Teacher" in Morning Yet Creation Day, NY, Doubleday, 1975.
20
Soyinka, Wole, " The Writer in an African State ", in Transition, 31, 1968.
21
Achebe,Chinua, Morning Yet Creation Day, New York, Doubleday, 1975, p.13.
22
Chinweizu et al., The Decolonisation of African Literature, Washington, Howard University Press, 1983.
23
Soyinka, Wole, "Neo-Tarzanism: the Poetics of Pseudo-Tradition" in Transition, 48, 1975.
24
Thiongo'o, Ngugi Wa. Decolonising the Mind:The Politics of Language in African Literature, London,
Currey,1986.
85
Os trabalhos críticos, produzidos com base neste modelo, pela crítica africana em língua
portuguesa, fundamentaram-se, em grande parte, em ensaios provenientes da bibliografia
francófona e anglófona, no entanto, adequando-a à textualidade em língua portuguesa. Deve-
se destacar a obra de Salvato Trigo sobre Luandino Vieira, que foi um dos ensaios pioneiros
nesta área de pesquisa.27Neste estudo da obra de Luandino constatamos um primeiro
momento de representação da oralidade, que passa necessariamente pela língua.
25
Ngara, Emmanuel, Art and Ideology in the African Novel:a Study of the Influence of Marxism in African
Writing, London, Heinemann,1985.
26
Irele, Abiola, “The African Imagination”, in Research in African Literatures, Spring 1990, p.56.
27
Salvato Trigo, Luandino Vieira O Logoteta, Porto, Brasília Editora,1981.
28
Ana Mafalda Leite, A Poética de José Craveirinha, Lisboa, Vega, 1991; Gilberto Matusse, A Construção
da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba ka Khosa, Universidade Nova
de Lisboa, 1993, Laura Padilha, Entre Voz e Letra- O lugar da Ancestralidade na ficção angolana do século XX,
Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 1995.
86
estudo da obra de Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, o primeiro romance moçambicano que visa
tematicamente a questionação do passado histórico, fazendo uma releitura das fontes
históricas da época anterior ao início da colonização portuguesa. A obra concretiza uma
reflexão sobre a noção de cultura e identidade cultural, que é retrabalhada pela reabsorção de
modelos de oralidade e de uma certa mundividência mágico-mítica.
Ualalapi, designado como romance, organiza-se num conjunto de seis contos, que
funcionam como unidades independentes, e ao mesmo tempo interdependentes. Cada uma
das narrativas é precedida de um pequeno texto em itálico (muitas vezes com atribuição de
autoria, outras vezes depreende-se que são do autor da obra, e oscilando entre o testemunho
histórico e a ficção), intitulado Fragmentos do fim, numerados de um a seis, que estabelecem
um evolução e quadro cronológicos, até à queda do império nguni.
29
Rosário, Lourenço, A Narrativa Africana, Lisboa, Icalp, 1989.
30
Gilberto Matusse, A Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto
e Ungulani Ba Ka Khosa, Maputo, Imprensa Universitária, 1997, p.118.
87
Manhune transmitira ao filho e ao neto de que Manua fora envenenado pelo pai, pois era
uma vergonha para os nguni ver um filho seu assimilar costumes de outros povos estrangeiros,
e o pior, dizia Manhune, Manua parecia um chope, pois era subserviente aos portugueses.
Matem-no na próxima oportunidade, disse Ngungunhane num dos encontros que teve com os
maiores do reino. (p 106)
O conto Diário de Manua começa aliando a ideia de decadência do império com o achado
do diário. A escrita é aqui, por um lado, o símbolo maior da recusa da cultura tradicional, por
outro do início do colonialismo, enquanto rasura e transformação de valores dessa mesma
cultura.
Por entre os escombros daquilo que fora a última capital do império de Gaza encontraram
um diário com uma letra tremida, imprecisa, tímida, as folhas amontoadas ao acaso, estavam
metidas numa caveira que repousava entre ossadas humanas e animais ... Não há referência
ao seu autor, mas sabe-se que pertenceu a Manua, filho de Ngungunhane (p.97) ... De 1892 a
1985, ano de sua morte, o diário nada diz, pois a folhas foram comidas pelos ratos, as letras
que restaram estão soltas. Juntando as cinco letras tem-se a palavra morte. Ou temor. Ou
tremo. Kamal Samade, que pela capital passou, deixou as suas impressões em árabe, escritas
em folhas desordenadas. Pela sua pena sabe-se que Manua, desde a chegada tornou-se
taciturno e mais bêbado do que nunca. ( p.105)
Neste conto, Diário de Manua, patenteia-se, de forma relativamente explícita, uma espécie
de moral ou função didáctica: o narrador, ao problematizar o significado da escrita na
sociedade moçambicana, denega o seu valor, socorrendo-se parodicamente de uma estratégia
temático-formal, a invenção de fontes escritas, o diário achado de Manua e o testemunho do
árabe. Estas fontes forjadas no interior do texto permitem-lhe reflectir, com ironia, sobre o
abandono da oralidade, e a cultura que ela representa, enquanto uma das causas da
degradação cultural.
Por outro lado Ungulani Ba Ka Khosa, com o seu livro, Ualalapi, moderniza a ficção
moçambicana ao introduzir um género, que se enraíza no romance histórico. Os sinais que nos
permitem identificar o género são os nomes de personagens históricos e os acontecimentos
que nos convidam a ler o texto à luz de um certo conhecimento histórico. Contudo, o modelo
do género escolhido não tem a ver com o romance histórico romântico, mas antes com
algumas das estratégias de ficção histórica moderna e pós-moderna, bem como com a
recuperação simultânea da genologia oral africana, nomeadamente ao fazer do conto a forma
de construção romanesca da sua escrita.
Esta obra vem confirmar o entrosamento cultural da literatura moçambicana, que burila, de
forma mais ou menos consciente, a sua originalidade na recriação e partilha de dois universos
culturais: o europeu, que lhe legou a escrita, e o pré-colonial, de que reinventa, através da
escrita, a fictiva ancestralidade e as formas orais.
O livro termina com o conto "O Último discurso de Ngungunhane" que nos interessa aqui
destacar por vários motivos de ordem simbólica, narratológica e temática.
"Virou-se repentinamente para a multidão que o vaiava, a uns metros do paquete que o
levaria para o exílio, e gritou como nunca, silenciando as aves (...) Ngungunhane falando, e o
corpo bojudo oscilando para a direita e para a esquerda, enquanto os olhos reluziam e as
tremiam ao ritmo das palavras que cresciam, de minuto a minuto, como agora, em que
Ngungunhane dizia a todos, podeis rir, homens, podeis aviltar-me, mas ficai sabendo que a
noite voltará a cair nesta terra amaldiçoada ..." (p.115)
31
Gilberto Matusse, A Construção da Imagem da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto
e Ungulani Ba Ka Khosa, Maputo, Imprensa Universitária, 1997, p.138.
90
A profecia de carácter apocalíptico neste conto, enquanto discurso, estabelece uma relação
entre o sujeito e o transcendente, tornando-se aquele portador de uma verdade futura,
antecipadamente anunciada. A profecia é característica por excelência de sociedades cuja
tradição é oral, e cumpre-se através da palavra dos mediadores, profetas ou feiticeiros. Mais
uma vez deparamos com uma estratégia, por parte do narrador, de tematização e de
recuperação da oralidade, ao colocar na boca do seu protagonista este tipo de discurso.
Por outro lado, dada a sua temporalidade abrangente, a profecia permite relacionar o
passado com o futuro, e com o presente, sendo, por isso, adequada, às intenções críticas da
narrativa histórica. Devido às formas escolhidas, há neste processo narrativo, a valorização do
tempo mítico que se sobrepõe ao histórico. Passado, presente e futuro mais não são mais do
que consequências transcendentes e punitivas dos actos praticados pelos homens. É esta
mundividência que o narrador imprime na sua escrita.
"—Há pormenores que o tempo vai esboroando— disse o velho tossindo. Colocou duas
achas no fogo e soprou. Novelos de fumo passaram pelo rosto. Pequenas lágrimas saíram dos
olhos cansados e tocaram na pele coberta de escamas. Afastei os papéis. Olhei-o. Era noite.
Identificamos, nesta passagem, o narrador como testemunha, que finge ser imparcial. Ele
ouve o velho no ambiente adequado, numa noite de lua cheia, em redor da fogueira. Contudo,
a palavra que utiliza é escrita: "Afastei os papéis", que representa outro tempo, numa prática de
reconfigurada modelação da mundividência pré-colonial à pós-colonial, que, por sua vez exige
ao leitor, e ao crítico, uma leitura localizada das práticas históricas e culturais e, tal como
insinua Achebe, em que o domínio do conceito de universal se torna pouco operatório.
Rita Chaves
A partir de uma reflexao sobre os textos do escritor angolano Jose Luandino Vieira, o texto
apresenta questoes importantes nao apenas para o entendimento da obra desse
importante prosador, como tambem do processo literario angolano (seus temas, seus
principais autores e os varios momentos de seu desenvolvimento).
From a reflection about the texts by Angolan writer Jose Luandino Vieira, the text presents
important issues not only for the understanding of the work of this important prose writer,
but also of the Angolan literary process ( its themes, main authors and several moments in
its development ).
Com dez livros editados, José Luandino Vieira é um dos três nomes mais
prestigiados da ficção africana em língua portuguesa. Os prêmios acumulados e os
textos traduzidos para várias línguas comprovam a definição de seu lugar e atestam
a relevância de sua produção no terreno da literatura contemporânea. Sem publicar
títulos novos desde 1975, o escritor é tema constante nas reflexões a respeito da
Literatura Angolana. As singularidades da sua obra e também a interrupção de sua
escrita há tantos anos são fenômenos de interesse em debates de natureza vária. É
certo que as razões de seu prolongado silêncio inquietam leitores e críticos, no
entanto a perplexidade gerada não esbate a convicção de que o repertório
apresentado assegura-lhe a posição conquistada ainda nos anos 60. No conjunto de
sua obra é possível perceber a fisionomia madura de um projeto literário gestado
num contexto bastante especial, se tomamos em conta os padrões via de regra
utilizados para examinar a relação entre literatura e sociedade. As condições
concretas que cercaram a produção de seus textos, a situação daqueles duros anos
de guerra, a particularidade de sua situação pessoal no desenho dos conflitos de
que foi parte, tudo isso impõe dados um tanto raros à discussão sobre o exercício
literário.
Tal como é comum suceder nos espaços periféricos, a história das Letras em
Angola se mistura ostensivamente à história do país. Para sermos precisos, vale
dizer que ali o processo literário se fez seguindo a linha das lutas para conquistar
a independência nos mais diversos níveis. Surgindo no aperto do contexto colonial, a
Literatura Angolana marcou-se pelo selo da resistência e, sobretudo a partir dos
anos 40, alinhou-se entre as forças decididas a construir a nacionalidade angolana,
participando de movimentos empenhados na construção de uma identidade cultural.
Insulta-me,
Ruas de escravos …
"O sol já tinha fugido todo, lhe deram berrida nas estrelas invejosas e a lua
nasceu, pelejando nas nuvens para lé do Rangel. Um silêncio mais grosso
caiu, mesmo com o roncar dos jipes teimosos, em cima das cubatas
escondidas e encostadas nas pequenas ruas e quintais. Pela cara da noite
98
" A noite, no princípio ainda, não estava fria. Agosto já tinha chegado e era
mesmo a lua desse dia que ia dar berrrida no cacimbo cinzento que pinta
de triste as águas azuis e verdes. Os ´pés largos nos quedes faziam chorar
a areia e a noite espreitava o andar do homem com os seus olhos
pequenos brilhantes das janelas das estrelas.
No lado direito o mar estava falar, mas João Matias ão lhe ligava,
habituado dessa conversa de sempre, desde pequeninho no dongo até
agora na traineira de mestre Rufino, da Ilha do Cabo. As palvras pequenas
e mansas vinham na boca das águas fazer barulho na areia e o vento,
em cima de tudo, dicanzava nos coqueiros lá longe, na Pescaria.
..................................................................................................................
É fato que não se pode contar até o momento com pesquisas de fundo que
permitam conhecer com verticalidade a realidade linguística de Angola, o que torna
difícil estabelecer com exatidão os limites entre a simples incorporação do registro
coloquial dos falantes e o que é produto da criatividade do escritor. No entanto os
trabalhos já realizados e o contato direto com aquela sociedade amparam a
afirmação de que, no exercício de sua rebeldia, Luandino sabe combinar os fenômenos
observados no uso da língua pelos falantes angolanos com procedimentos orientados pela
concepção de linguagem literária enquanto resultado da potencialização das
possibilidades abertas pelo sistema. Dizendo de outra maneira, o escritor não hesita em
"apanhar carona" nas mudanças promovidas pelos usuários da língua. Devemos aqui
recordar que a imposição do Português como língua obrigatória nas ex-colônias
africanas não se fez acompanhar por medidas que, de fato, pudessem torná-la
acessível às várias camadas da população. O esforço para falar uma língua que não
conhecia gerou um curioso processo de contaminação, através do qual são transferidos
para a segunda língua certos mecanismos que regem a gramática da língua
materna. Sem constituir propriamente um ato organizado, tais variações seriam, na
realidade, uma consequência natural dessa aprendizagem naquele contexto em que as
línguas bantu são predominantes , segundo Perpétua Gonçalves, para quem "os
desvios a esta norma não são produzidos conscientemente por uma comunidade de
falantes que quer construir a sua identidade linguística nacional - para além daquela
que as diversas línguas bantu facultam - mas resultam em geral da falta de
exposição à norma de referência, que poderia permitir a convergência com a língua -
alvo".
O encantamento despertado pelos hinos e tudo o mais que compõe os ritos não
reduz a aversão às instituições, da qual a igreja não escapa :
Tematizado por tantos estudos nos vários campos das ciências humanas, o
choque cultural atinge nas sociedades africanas níveis efetivamente surpreendentes.
Premidos entre duas ordens, os homens se vêem em contato direto com valores,
modelos, símbolos e objetos representativos de vivências não processadas por eles. As
noções de "civilização" que lhe são trazidas chegam por pacotes, o que determina que
a apreensão se faça aos pedaços, deixando também em bocados o próprio patrimônio
acumulado. Abaladas por tantas quebras, as noções sobre as quais se baseariam o
modo de estar no mundo perdem o senso do equilíbrio e tendem a produzir lógicas
estranhas, permeadas por uma sequência muito acelerada de mudanças. As passagens de
um modelo a outro se fazem sem a maturação necessária, daí decorrendo não raro um
acentuado grau de violência. O que poderia ser uma conquista, torna-se , tantas vezes,
uma fator de desestabilização. A respeito do confronto entre a força da oralidade na
tradição africana e a intervenção da tecnologia que atualiza certas leis da sociedade
industrial, o escritor angolano Arlindo Barbeitos, ao problematizar o lugar da escrita,
elabora uma significativa imagem :
Limitados em seus gestos, seja pelas paredes da prisão concreta, seja pela rede
opressiva de uma lógica estranha a sua sensibilidade, os personagens libertam-se
através de formas de linguagem que atentam contra o modelo rígido de uma língua
que, não sendo instrumento de comunicação, apresenta-se como mais um meio
coercitivo e redutor da sua humanidade. Libertar a língua significa, pois, apropriar-se
dela e moldá-la de forma que ela possa ser a expressão desse universo pleno de
marcas, valores, símbolos, medidas , crenças anteriores à sua própria chegada . Esse
patrimônio misturado é a expressão de um mundo quase às avessas, para lembrar as
palavras de Guimarães Rosa, um ficcionista tão visitado por Luandino. Nesse
movimento que é também de nacionalização da língua, o autor segue em duas
direções : lança mão de modificações presentes na variante angolana do português,
incorporando usos que os falantes da terra criaram e dá asas a seu próprio
processo criativo, inventando caminhos para fazer com que a língua exprima o
universo de seus personagens. Nesse aspecto, o autor não economiza meios e
investe sem hesitação na produtividade de processsos já perceptíveis na fala
corrente do universo sócio-cultural de onde saem os protagonistas de suas estórias.
105
Grande parte da história do angolano Luandino Vieira confunde- se com a história da luta pela
independência política de seu país, o que o levou a sofrer profundamente as conseqüências da
militância política. Nascido em Portugal, em 1935, José Mateus Vieira da Graça ainda criança
mudou-se com os pais para Angola, país que assumiu como seu. Viveu a infância e a
adolescência em bairros populares, conhecidos como musseques, como o Braga, o Makulusu
e o Quinaxixe. Mais tarde, integrou-se à geração da revista angolana "Cultura" (II), publicada
entre 59 e 61, e juntamente com Arnaldo Santos, Costa Andrade, Ernesto Lara Filho, Henrique
Abranches, Mário Guerra, entre outros, contribuiu decisivamente para a consecução do projeto
de nacionalização da literatura angolana. Preso em Lisboa em 1961, acusado de exercer
"atividades anticolonialistas", foi libertado somente em 1972, depois de ter cumprido os três
primeiros anos de sua pena em Luanda e o tempo restante no campo de concentração de
Tarrafal de Santiago, em Cabo Verde.
Luandino, nome que autor escolhe para assinalar sua identificação com a capital angolana, diz
muito de sua dedicação à causa da libertação nacional. A maior parte da obra do escritor foi
escrita na prisão e sua publicação, quase toda a posteriori, não corresponde necessariamente
à ordem em que foi escrita. Seu primeiro livro, A cidade e a infância, é publicado em Lisboa,
pela Casa dos Estudantes do Império, em 1960. Já Luuanda, livro-chave na trajetória literária
do autor, como veremos mais adiante, foi escrito na prisão durante o ano de 1963, publicado
em Angola em outubro de 64 e obteve, em 1965, o Grande Prêmio de Novelística da
Sociedade Portuguesa de Escritores, o que gerou uma violenta reação de setores sociais
conservadores e, inclusive, culminou na extinção dessa associação por decisão do governo
português.
Depois de ter publicado quatro romances - o último, intitulado Nosso musseque, foi publicado
em 2003 - e cerca de oito livros de estórias, atualmente Luandino Vieira vive discretamente
numa pequena cidade ao norte de Portugal.
Engajamento e utopia
perceptível na fatura dos próprios textos. Assim, não são apenas os momentos históricos
vividos em Angola em meados do século passado que vão transparecer nas narrativas do
escritor. Mais do que isso, a subjetividade do sujeito que vivenciou essa História será
significativa na constituição das obras: é na tensão entre a vida particular e a vida social que se
dá a ação e a reflexão do autor.
Em cartas enviadas da prisão ao amigo Carlos Everdosa, intelectual que também fez parte da
geração que se organizou em torno da revista "Cultura"(II), Luandino Vieira atesta sua imensa
capacidade de resistência e a confiança na transformação política e social do seu país. Ainda
em Luanda, antes de ser transferido para o campo de concentração do Tarrafal, ele escreve:
31-7-64
Meu caro:
Faltam poucas horas para embarcar no "Cuanza" rumo a cabo Verde - ou assim dizem. Li a
tua carta e aproveito estes curtos momentos para te enviar umas linhas, talvez as últimas
que recebas de mim antes do regresso geral à nossa terra, às nossas coisas, ao nosso
povo. É muito difícil nesta altura dizer qualquer coisa; mas podes afirmar aos amigos e
companheiros que procurarei sempre ser digno da confiança que têm em mim; que, nas
minhas possibilidades e dentro do meu particular campo de acção - o estético - ... tudo farei
para que a felicidade, a paz e o progresso sejam usufruídos por todos.
(...)
O meu livro, o livro da Linda afinal, chegar-te-á talvez com mais trabalhos selecionados para
a 2ª edição. Se a conseguirem aí em edição de bolso era óptimo para ir a concurso da
Sociedade Portuguesa de Escritores. Depois enviem ao Jorge Amado (Brasil) para ver se
conseguem uma edição lá. Não é pelo livro, claro, é pelo que ele pode representar
[1]
como "arma" para a nossa libertação.(...)
Mesmo envolvido por incertezas - o escritor tem dúvidas sobre a possibilidade de continuar
se comunicando com os amigos, estando isolado em Cabo Verde -, Luandino Vieira
demonstra uma profunda tranqüilidade e uma notável disponibilidade para a relação com o
outro: não apenas afirma sua fidelidade aos companheiros, como também se diz
empenhado na luta pelo bem comum. Note-se que as reticências, utilizadas depois do termo
"estético", podem indicar que o campo de atuação do escritor talvez transcenda o
especificamente literário, sugerindo um envolvimento direto com ações revolucionárias.
No parágrafo final, o livro que o autor menciona é Luuanda, chamado de "livro da Linda"
porque foi ela, sua mulher à época, que conseguiu retirar clandestinamente os manuscritos
da prisão, escondidos num saco de fundo duplo, no qual levava as refeições em visitas
[2]
diárias ao marido . Já o concurso promovido pela Sociedade Portuguesa de Escritores,
forte centro de resistência ao fascismo, é justamente aquele que iria premiar a obra no ano
seguinte. Vale ainda ressaltar a referência de Luandino Vieira a Jorge Amado, escritor
brasileiro que apresentava posições políticas progressistas e certamente apoiava a luta de
libertação angolana. A importância atribuída a uma edição brasileira do livro naquele
momento reforça o caráter militante assumido pela literatura, que se torna efetivamente uma
arma de combate contra a opressão colonial.
Dois anos depois, já em Cabo Verde, outra carta destinada a Carlos Everdosa reafirma a
esperança e o comprometimento do escritor:
Tarrafal, 14-10-66
(...) Meu caro Carlos: só não compreendo como insistes em alcunhas ainda que sinceras
como a do "maior ficcionista angolano". Isto para te falar no estares desiludido de ti próprio,
como dizes, e de muitos outros. Isso era inevitável, é um constante suceder e é preciso
compreendermos que não há outros homens para com eles construir o mundo. É com esses
108
mesmos que se fará - ou nunca se fará. E portanto me regozijo que digas que ainda vai
havendo sementeiras para o futuro. Nós somos responsáveis, pouco ou muito não importa,
ou o que importa é que o sejamos na medida em que nos foi permitido ou o soubemos ser,
por essas sementes. Portanto não se justifica essa desilusão de nós próprios, mas é
necessário não cairmos nas mistificações da sementeira que parimos. É só isso que fará a
nossa justificação: lucidez. Mas para que não penses que o teu primo é um super-homem e
para que se dissolvam ainda mais as idéias feitas, sempre te digo, meu caro irmão, que há
dias em que os seguintes versos são possíveis: "é necessário o ódio/ só ele impele/ o
vermelho estrebuchar do sangue/ quieto insone/ sob o medo...// só ele sacode/ o cansado
sono do pensamento/ puro fraterno/ sob o amor// é necessário o ódio/ só ele liberta/ só ele
não cansa!"
[3]
Deixo-te com toda a amizade, hoje: o poema é de ontem.
Finalmente, o poema escrito por Luandino - para que ele mesmo não esmoreça - fala sobre
a necessidade imperativa do ódio para manter a firmeza dos combatentes. "Só o ódio", diz o
autor, "impele", "sacode", "liberta", "não cansa". Num contexto revolucionário, o ódio,
explicitamente dirigido contra os mecanismos opressores e seus representantes, é o que
mantém acesa a chama da luta, driblando o medo e o cansaço: odiar é necessário para que
a fraternidade seja conquistada.
Essa carta, escrita depois de cinco anos de confinamento, revela a tenacidade do escritor e
sua imensa capacidade de alimentar - com lucidez - a utopia de uma Angola livre. Mais de
dez anos depois, em entrevista concedida a Michel Laban em 1977, portanto dois anos
depois da conquista da independência, Luandino Vieira faz uma avaliação de sua trajetória
pessoal e acaba por validar sua atitude combativa, reafirmando a certeza de que havia
sempre agido justificadamente:
Portanto, pessoalmente, também considero que, suceda o que suceder à República Popular
de Angola, nunca, tanto quanto vejo, posso dizer assim: "Bom, meti a minha vida por uma
estrada que não tinha qualquer sentido ou fim". Suceda o que suceder, considero sempre
que o que andei até hoje estava perfeitamente justificado, quer individualmente - não sou
pessoa com grandes problemas de natureza pessoal, o que não quer dizer que diariamente
[4]
não reflita sobre a minha atividade - quer coletivamente.
Ao estabelecer uma clara distinção entre o significado da luta pela independência e o futuro
de Angola como nação independente, Luandino salienta a importância de ter participado do
movimento revolucionário. Afirmando ser uma pessoa sem "grandes problemas de natureza
pessoal", o escritor atribui sentido pleno a suas atitudes, reafirmando a convicção de ter
feito exatamente o que era possível fazer em cada encruzilhada histórica. Seja no nível
individual ou no nível coletivo, a coerência parece ter sido marca decisiva em sua conduta.
A inserção histórico-social de Luandino Vieira pauta-se sobretudo por uma reflexão aguda
sobre sua realidade nacional. Contra a manutenção de uma ordem social
excludente, Luandino Vieira aposta na efetivação de uma realidade mais justa e inclusiva em
Angola. Em tempos revolucionários, o escritor angolano forja um discurso transgressor e
109
utópico que vai reivindicar literariamente - e politicamente - identidade e autonomia para seu
país.
Tudo isso [as contradições sociais, o preconceito, as diferenças culturais entre as tradições
africanas e européias], em criança, fui vivendo e mais tarde fui relatando. Isso me deu a
riqueza - o que eu penso ser a riqueza - de uma experiência que se prolongou até aos dez,
doze anos e que serviu para a aquisição de valores culturais africanos, valores
populares angolanos, que continuamente a margem africana da cidade estava elaborando, e
que, depois, no liceu, quando chegou a idade em que eu comecei a ler outras coisas, fui
[5]
interpretando de outro modo, e que foram realmente o germe de minha consciência política.
Seja através do exercício do conto ou do romance, a opção de Luandino Vieira foi por
ficcionalizar os desafios vividos pelos marginalizados que habitam a periferia de Luanda e
sublinhar o potencial de resistência dos habitantes dessa periferia mestiça. Vale registrar que,
afastados do centro, os musseques também funcionavam como guetos que mantinham as
populações africanas longe dos brancos mais ricos que habitavam a parte central da cidade,
denominada de "Baixa".
Uma das estórias do escritor, intitulada "A fronteira do asfalto" e publicada em A cidade e a
infância, trata justamente da acentuada divisão entre periferia e centro, negros e brancos,
pobres e ricos na cidade de Luanda. Lembremos que em seu desfecho, Ricardo, o jovem
morador do musseque, morre no meio fio ao tentar falar com Marina, a menina de tranças
loiras que habitava o asfalto. A interdição do mundo branco aos africanos e, no limite, a
impossibilidade de diálogo entre universos ideologicamente conflitantes são simbolicamente
retratadas pela narrativa.
Aliás, é importante sublinhar que os contos escritos por Luandino Vieira são nomeados por ele
como "estórias", já que guardam uma relação profunda com o universo da oralidade. Vale dizer
que o termo "estórias", que designa narrativas de cunho tradicional e popular, já havia sido
utilizado pelo brasileiro Guimarães Rosa e, posteriormente, também foi escolhido pelo escritor
moçambicano Mia Couto para qualificar os seus contos.
Como bem apontaram pesquisadoras como Maria Aparecida Santilli, Tania Macêdo e Carmen
Lucia Tindó Secco, os três escritores - Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Mia Couto -
aproximam-se pelo fato de criarem uma linguagem inovadora, que amalgama aspectos do
português padrão a formas espontâneas da oralidade praticada pelas populações
[6]
marginalizadas enfocadas em seus textos . O resultado dessa mistura é a expressão de uma
lógica que revela um modo de ser e de ver o mundo característico de sujeitos que se
encontram em profunda tensão com as normas da civilização moderna.
È importante ressaltar que uma das singularidades da obra produzida por Luandino Vieira
repousa justamente na convicção que a sustenta: a de que o texto literário deveria afirmar a
grande diferença cultural angolana a partir da qual a autodeterminação e a independência
poderiam ser reivindicadas. Nesse sentido, a elaboração discursiva de suas estórias dá-se em
função de um projeto político bastante claro. Num período tenso e convulsionado, a luta em
curso deixa em aberto novas possibilidades de configuração social. Daí que a marginalidade
social ficcionalizada pela narrativas do autor angolano deva ser vista como conseqüência
110
Como já assinalamos, o livro de contos Luuanda atesta a maturidade de Luandino Vieira como
ficcionista, uma vez que marca um redirecionamento de sua escrita literária, que passa a
apresentar uma maior sofisticação no modo de representar a realidade luandense que sempre
alimentou a sua prosa. De fato, se a objetividade e o caráter de exemplaridade das situações
narrativas se fazem mais presentes nas primeiras estórias do autor - nos contos de A cidade e
a infância, de Vidas novas e no romance A vida verdadeira de Domingos Xavier -, a partir
de Luuandaa complexidade das relações sociais, culturais e políticas típicas dos espaços
marginais urbanos assumem maior destaque, condicionando a forma literária - que se torna
intensamente oralizada - e rompendo com um registro mais simplificado da realidade.
Nessas narrativas da segunda fase, além de haver uma modificação na configuração dos
protagonistas, observa-se também uma transformação na perspectiva do narrador que,
paulatinamente, abandonará a perspectiva da onisciência para abrir maior espaço para que as
personagens construam suas falas e suas versões sobre os conteúdos narrados. Desse modo,
o narrador abandona seu papel de intérprete privilegiado dos fatos enunciados e a polifonia
torna-se marca constitutiva das narrativas.
(...) penso que o primeiro elemento da cultura angolana que interferiu com a escrita,
segundo a norma portuguesa, foi a introdução da oralidade luandense no meio do discurso
da norma portuguesa... mas depois, quando entramos na luta política pela independência
do país, que foi feita em nome das camadas que não tinham voz - e se tivessem não
podiam falar, e se falassem não falariam muito tempo... -, foi aí que os escritores angolanos
resolveram dar voz àqueles que não tinham voz e, portanto, escrever para que se soubesse
111
o que era o nosso país, se soubesse qual era a situação do país e, desse modo, interferirem
[9]
de maneira a modificarem essa situação...
E como estávamos numa fase de alta contestação política - e um dos elementos dessa
contestação política do colonialismo era afirmar a nossa diferença cultural, mesmo na língua
-, um bichinho qualquer soprou-me a dizer-me: "Por que é que tu não escreves em língua
portuguesa de tal maneira que nenhum português perceba!"
Foi desta maneira que escrevi essas três estórias do Luuanda, de tal maneira que se um
português de Portugal lesse, percebesse todas - ou quase todas - as palavras e dissesse
que era português e, depois, dissesse ao mesmo tempo: "Não percebo nada disto!" Foi
alguma coisa de deliberado, de provocatório, e por isso, essas três estórias não resistiram
[10]
ao tempo.
O processo de busca por uma dicção angolana realmente autêntica leva Luandino a
encontrar parentesco entre o seu trabalho o os textos de Guimarães Rosa. Em diversos
depoimentos e entrevistas, o escritor afirma a importância da leitura do autor brasileiro no
que tange aos seus próprios processos de criação lingüística. Sobre a apreensão que
realiza de Sagarana, por volta de 1963, declara:
E então aquilo foi para mim uma revelação. Eu já sentia que era necessário aproveitar
literariamente o instrumento falado dos personagens, que eram aqueles que eu conhecia,
que me interessavam, que reflectiam - no meu ponto de vista - os verdadeiros personagens
a pôr na literatura angolana. Eu só não tinha ainda encontrado era o caminho. (...) Eu só
não tinha percebido ainda, e foi isso que João Guimarães Rosa me ensinou, é que um
escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não seja a que os seus personagens
[11]
utilizam: um homólogo desses personagens, dessa linguagem deles.
A "revelação" de que fala Luandino Vieira talvez deva ser compreendida em termos de
"confirmação". Afinal, quando o escritor leu Sagarana, ele havia concluído a sua "Estória do
ladrão e do papagaio", narrativa central de Luuanda, em que já se observa uma recriação
[12]
lingüística notável. Por isso, em vez de influência, talvez possamos pensar em confluência
entre a escrita dos dois autores: ambos, na intenção de reelaborar a linguagem de sujeitos que
se situam à margem das normas sociais impostas, empenham-se em realizar um intenso
trabalho de oralização do discurso escrito. Guardadas as diferenças contextuais de produção e
as especificidades de cada projeto estético-ideológico, os discursos dos dois escritores
convergem na medida em que operam o resgate de culturas locais e marginais através da
utilização inventiva da linguagem.
A celebração da utopia
A utopia revolucionária que perpassa e sustenta Luuanda pode ser percebida em vários
aspectos da elaboração das estórias, todas organizadas por um narrador onisciente: na
aprendizagem empreendida pelos protagonistas, na progressão temporal sugerida pela
sucessão das narrativas e na ampliação paulatina da voz do "griot" a ritualizar o texto escrito.
A ação narrativa do conto, o único em que a voz do "griot" não se faz presente e que
certamente por isso não é nomeado como "estória" pelo narrador, centra-se nas dificuldades
enfrentadas por uma avó e seu neto, que moram juntos numa mesma cubata, de sobreviverem
em meio às agruras típicas da exclusão social, numa sociedade extremamente preconceituosa
e segregadora. Perplexos e sem consciência política, Zeca Santos e sua avó deixam-se
envolver pelos sentimentos de fracasso e impotência. A velha, ligada ao passado, e o moço,
desiludido com o presente, não sabem como agir para construir um futuro livre da violência e
da opressão.
Por cima dos zincos baixos do musseque, derrotando a luz dos projetores nas suas torres
de ferro, uma lua grande e azul estava subir no céu. Os monandengues brincavam ainda
nas areias molhadas e os mais velhos, nas portas, gozavam o fresco, descansavam um
pouco dos trabalhos desse dia. Nos capins, os ralos e os grilos faziam acompanhamento
nas rãs das cacimbas e todo o ar estava tremer com essa música. Num pau perto, um
matias ainda cantou, algumas vezes, a cantiga dele de pão-de-cinco-tostões.
Com um peso grande a agarrar-lhe o coração, uma tristeza que enchia todo o corpo e
esses barulhos da vida lá fora faziam mais grande, Zeca voltou dentro e dobrou as calças
muito bem, para agüentar os vincos. Depois, nada mais que ele podia fazer já, encostou a
cabeça no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e dasatou a chorar um choro de grandes
soluços parecia era monandengue, a chorar lágrimas compridas e quentes que começaram
a correr nos riscos teimosos as fomes já tinham posto na cara dele, de criança ainda. (p.38)
Mas, no momento final da narrativa, "os barulhos da vida lá fora" só fazem aumentar a tristeza
e a impotência do protagonista, que "nada mais podia fazer" contra a miséria a que estava
submetido junto com a avó. Daí o choro inconsolável, sinal de que Zeca não era capaz de
vislumbrar saída para sua situação marginal. A afirmação dupla de sua infantilidade - em
quimbundo e em português: "parecia era monandengue" e "cara dele, de criança ainda" -
atesta menos a idade cronológica do rapaz e mais a sua incompreensão dos mecanismos da
opressão colonial. Sem mais nada a dizer, o narrador suspende a narrativa bem no meio desse
desamparo, deixando as personagens a sós com sua dor e deixando a nós, leitores, perplexos
com a sua solidão.
A estória central do livro, "Estória do ladrão e do papagaio", opera uma espécie de passagem
entra a primeira narrativa - em que os protagonistas ainda não despertaram para a
necessidade do engajamento na luta contra o colonizador - e a última - em que as personagens
113
vão experienciar o alcance político da prática social solidária. De um modo bem genérico, é
possível dizer que o texto fala sobre o encontro de três africanos na prisão - Xico Futa,
Lomelino dos Reis e Garrido Fernandes - e sobre o florescimento da solidarieidade entre eles.
Vale afirmar que o papel exercido por Xico Futa é central nessa interação: ele é porta-voz de
ensinamentos preciosos para as outras personagens e também para os leitores da estória.
Nesse sentido, a "parábola do cajueiro", enunciada por Futa, é fundamental para a constituição
de um saber revolucionário. Nessa narrativa de caráter didático, a personagem adverte que é
preciso conhecermos a raiz ou o princípio daquilo que mobiliza as pessoas e as suas ações.
Vejamos:
(...) Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro;
deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal
do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no
cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem
o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a
castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um
pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido.
Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa
cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram
mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro
cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem
ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na
frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe:
costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos
casos, das conversas. (p. 54)
Ao insistir no fato de que devemos refletir sobre o cajueiro - imagem das estórias entrelaçadas
que conformam e justificam a realidade - e perseguir o fio da vida - fio das histórias pessoais e
coletivas - Futa aponta para a necessidade de constituirmos nossa identidade como sujeitos
históricos, afirmando valores fundamentais para a mobilização popular contra o poder
instituído.
Por fim, a última frase do narrador/"griot", que encerra definitivamente o texto, é: "E isto é a
verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado" (p.97). Se pensarmos no caráter
didático de muitas das estórias tradicionais, que cumprem a função de transmitir valores éticos,
o valor atribuído à verdade na "Estória do ladrão e do papagaio" estaria contido justamente na
sugestão de procedimentos importantes para o estabelecimento da harmonia nas relações
pessoais e sociais. Ao afirmar que diz a verdade, "mesmo que esses casos nunca tenham se
passado", o narrador/"griot" articula as noções de real e verossímil, fazendo com que os
leitores/ouvintes tornem-se testemunhas vivas e ativas da possibilidade de construção de uma
nova realidade histórica afinada com as aspirações revolucionárias.
114
A terceira estória, "Estória da galinha e do ovo", que já começa com a voz do "griot"
anunciando-a como "caso", tem como motor a disputa entre duas vizinhas - nga Bina e nga
Zefa - pela posse de um ovo. Posto pela galinha Cabíri, que pertencia à nga Zefa, no quintal de
nga Bina, que está grávida e tem o marido preso, o ovo é reivindicado por ambas, que alegam
seu direito sobre ele. A solução do conflito se dá com a interferência de duas crianças - Beto e
Xico - que, imitando o cantar de um galo, fazem com que Cabíri fuja das mãos de policiais que
haviam sido chamados para intervir no caso e que pretendiam levar vantagem na situação.
Depois disso, nga Zefa resolve abrir mão do ovo e oferecê-lo a nga Bina. Na cena final da
estória, podemos observar toda a satisfação da jovem mãe:
De ovo na mão, Bina sorria. O vento veio devagar e, cheio de cuidados e amizade, soprou-lhe
o vestido gasto contra o corpo novo. Mergulhando no mar, o sol punha pequenas
escamas vermelhas lá embaixo nas ondas mansas da Baía. Diante de toda a gente e nos olhos
admirados e monandengues de miúdo Xico, a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo do
vestido, parecia era um ovo grande, grande... (p.123)
O vagar do vento, a amenidade do sol e a mansidão do mar demonstram a solidariedade da
natureza com a protagonista. A força de sua imagem carregando dois ovos - um nas mãos e
outro na barriga -, símbolos de vidas novas que se anunciavam, atesta o acerto na solução
de um impasse que parecia insolúvel. A justiça é alcançada graças à intervenção das
crianças que conseguem fazer com que o ovo alimente aquela que está gestando um novo
angolano, metáfora de um futuro mais desejável para Angola. E as reticências que
encerram o parágrafo traduzem justamente esse porvir que precisa ser conquistado.
Para arrematar a narrativa, o narrador/"griot" mais uma vez atualiza a forma oral cristalizada
das estórias tradicionais, pedindo o julgamento do relato pelos leitores e atestando a sua
verdade:
Minha estória.
Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro que não falei mentira e estes casos se
passaram nesta nossa terra de Luanda.(p.123)
Como já vimos, a avaliação estética exigida dos leitores é também uma avaliação ética. Julgar
a estória "bonita" significa concordar com os valores que ela veicula e, em última instância,
interiorizá-los e colocá-los em prática. Já o contrário significa a não adesão à ideologia que
sustenta a narrativa, a negação daquilo que ela propõe - e que já havia sido anunciado na
segunda estória: a ressignificação da tradição, a compreensão histórica dos fatos e a
solidariedade entre os angolanos como forma de fortalecimento na luta contra os
representantes do colonialismo.
Mais uma vez, a "verdade" da estória afirma exatamente aquilo que é necessário para a
conquista da liberdade e da justiça na "nossa terra de Luanda". Trata-se, assim, não da
afirmação de realidades sedimentadas, mas da possibilidade de construção de uma nova
realidade histórica.
A progressão temporal sugerida pela ordenação das três narrativas de Luuanda diz muito do
sentido geral do livro. Nele, passado, presente e futuro se dispõem cronologicamente,
115
perfazendo uma trajetória que anuncia novos tempos. De Vavó Xíxi à criança gestada por Bina,
o fio da vida trançado pelo escritor é percorrido também pelos leitores. Desse modo, um
percurso que diz respeito à construção de um saber ou de uma ética revolucionária pode ser
depreendido da leitura encadeada das três narrativas do livro. Vale lembrar que a última estória
se encerra com o pôr do sol. Aliás, o poente - referido por três vezes durante a narrativa - é
bastante significativo em sua elaboração. Para além dos sentidos evocados por seu tom
avermelhado - a paixão revolucionária, o sangue derramado na luta pela liberdade e até a cor
característica das bandeiras dos partidos comunistas -, é possível pensar que o cair do dia
metaforiza o final de um ciclo, de um tempo de opressão que deve se encerrar. Desse modo, a
estória sinaliza que, depois da morte do tempo colonial, um novo dia - vidas novas, novos
tempos - surgirá.
É prática literária de Luandino Vieira, corporificada nas três narrativas do livro, aproximaria-se
da concepção de "utopia concreta" desenvolvida por Ernst Bloch principalmente em sua
obra Das Prinzip Hoffnung (O princípio esperança), escrita entre 1938 e 1948.
Numa linha marxista, o filósofo alemão desenvolve seu conceito de utopia a partir do sentido
ontológico do "ainda-não-ser", redefinindo o conceito de "ser" como "modo de possibilidade
para frente". Assim, ao combinar uma concepção materialista da história e as potencialidades
imanentes ao sujeito, espécie de força dinâmica que o projeta para o futuro, Bloch vislumbra a
"realização progressiva da utopia marxiana da sociedade sem classes, que aposta na
transformação da vida capitalista alienada em autodeterminação humana real, em auto-
[13]
realização e em emancipação social individual."
Aparentando-se com os casos tradicionais, as duas últimas estórias do livro de Luandino Vieira
transmitem valores essenciais para o bem-estar coletivo e exigem um posicionamento crítico
de quem se dispõe a conhecê-las
116
[1]
In LABAN, Michel et alli. Luandino. José Luandino Vieira e a sua obra. Lisboa: Edições 70,
1980, p.90.
[2]
Sg. Carlos Everdosa in LABAN, M. et alli. Luandino. José Luandino Vieira e a sua obra, op.
cit., p. 89.
[3]
Idem, p.99.
[4]
In LABAN, Michel. Angola - Encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António de
Almeida, 1991, p.40.
[5]
LABAN, M. et alli. Luandino. José Luandino Vieira e a sua obra, op. cit., pp.13-4.
[6]
Cf. SANTILLI, M. Ap. "João Guimarães Rosa e José Luandino Vieira, criadores de
linguagens". In Paralelas e tangentes entre literaturas de língua portuguesa. São Paulo: Área
de ECCLP/ USP; Editora Arte e Ciência, 2003, pp.91-108; MACÊDO, T. "Os rios e seus
(dis)cursos em Rosa, Luandino e Mia Couto" (pp. 95-105) e "Cantos do sertão e do
musseque"(pp.107-116). In Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Área de ECLLP/
USP; Editora Arte e Ciência, 2002; SECCO, C. L. T. "Luandino Vieira e Mia Couto -
intertextualidades..." (pp.44-53) e "O mito da criação em Luandino e Guimarães" (pp.70-7). In A
magia das letras africanas. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora; Barroso Produções Editoriais,
2003.
[7]
Sg. CHAVES, Rita. "José Luandino Vieira: consciência nacional e desassossego", op. cit.,
p.79.
[8]
Termo utilizado pelo narrador de "Cangundos, verdianos, santomistas, nossa gente", estória
de Luandino Vieira publicada em Macandumba (Lisboa: Edições 70, 1997, p. 104).
[9]
In "Um escritor confessa-se... ". Entrevista de Luandino Vieira publicada no Jornal de Letras,
Artes e Idéias, de Lisboa, em 9/5/89, p. 10.
[10]
Idem, p.10.
[11]
LABAN, M. et alli. Luandino. José Luandino Vieira e a sua obra, op. cit., p. 27.
[12]
Sg. depoimento do próprio autor in "Um escritor confessa-se...", op. cit., p.10.
[13]
Sg. MÜNSTER, Arno. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst
Bloch. São Paulo: Edunesp, 1997, p.15.
[14]
In Ernst Bloch - Filosofia da práxis e utopia concreta. São Paulo: Edunesp, 1993, p.19.
Abstract: We divide our work into three sections: fi rst, we will raise questions about the concept of
post-colonialism; then we will trace a route of Angolan poetry in post-independence, and the last
section discusses some important painters of Angola. Our intention is to highlight some trends in
Angolan post-1975 literature and painting.
Keywords: Postcolonialism, coloniality, post-independence, literature, painting.
Resumo: Dividimos nosso trabalho em três momentos: inicialmente, levantaremos questões acerca do
conceito de pós-colonialismo; a seguir, traçaremos um percurso da poesia angolana na pós-
independência; na última parte, apresentaremos alguns pintores importantes de Angola. Nossa intenção
é evidenciar algumas tendências da literatura e pintura angolanas-pós 1975.
Palavras-chave: - Pós-colonialismo, Colonialidade, Pós-independência
Até meados de 1985, essa predisposição utópica, até certo ponto, persistiu, refletindo-se,
inclusive, num movimento literário novo que se alastrou, com força e entusiasmo, por quase
todo o país, principalmente entre os anos de 1980 e 1988: as Brigadas Jovens de Literatura.
Surgiu em Luanda, em 5 de julho de 1980, a Brigada Jovem de Literatura de Luanda – BJL,
fundada pelo poeta São Vicente, tendo-se constituído como homenagem ao poeta Agostinho
Neto, falecido em setembro de 1979. Para saudar a memória do Presidente-Poeta, foram
editados por essa Brigada folhetos mimeografados intitulados “Aspiração” e “Caminho das
Estrelas”, títulos estes inspirados em conhecidos poemas de Neto.
O Movimento das Brigadas foi contagiante e espontâneo, tendo-se espalhado não apenas por
diversas províncias angolanas (Luanda, Lubango, Huambo, Cabinda, Uíge e outras), mas
também entre angolanos que se encontravam no exterior: em Cuba e na Rússia, por exemplo.
Das Brigadas, três foram as mais representativas: a de Luanda; a do Lubango – da Huíla
(fundada em 1982) –, cujas produções literárias e ensaísticas circularam no folheto
“Hexágono”; e a do Huambo (criada em 1984), denominada “Brigada Jovem de Literatura Alda
Lara”, cujos poemas e ensaios foram divulgados no folheto “Gênese”.
Funcionando como autênticas oficinas literárias, as Brigadas congregaram jovens poetas,
mantendo viva e acesa a importância do constante e renovador processo do fazer poético. Tais
centros literários serviram não só à discussão crítica e ao repensar dos ideais ideológicos
legados por Agostinho Neto e pelas lutas em prol da Independência, mas também ao exercício
da liberdade de cada cidadão e ao desenvolvimento da pesquisa estética rumo à renovação da
poesia angolana. A poética produzida pelas Brigadas se afastou do tom épico dos poemas de
combate que dominaram a cena literária entre 1960 e 1975, abraçando um viés lírico e uma
reflexão profunda acerca de questões humanas e literárias, na esteira da “poesia do gueto”
que, nos anos 1970, optou pelo exercício e refinamento da elaboração estética, em busca de
metáforas dissonantes e surpreendentes. A contribuição dos poetas da geração-1970 (Ruy
Duarte de Carvalho, David Mestre, Arlindo Barbeitos) foi fundamental para o desenvolvimento
não só da produção literária das Brigadas, como da poesia angolana mais jovem.
Não foi por acaso que grandes poetas hoje consagrados – entre os quais João Maimona, João
Tala, Conceição Cristóvão, Fernando Kafukeno e muitos outros – saíram das Brigadas. E destas
também emergiram representativos nomes em diversos campos: da Arte, da Política, da
Economia, da Administração angolanas, entre outros.
Alguns poetas e intelectuais angolanos mais velhos, entre os quais: Uanhenga Xitu,António
Jacinto, Boaventura Cardoso, Jorge Macedo, Luandino Vieira reconheceram a importância das
Brigadas. Luandino, inclusive, quando foi Secretário-geral da UEA, deu apoio financeiro a esses
movimentos.
No início das Brigadas Jovens, havia ainda uma certa visão utópica em relação à poesia, sendo
esta concebida como arma de resistência e conscientização dos jovens, como instrumento de
manutenção dos sonhos socialistas preconizados pela Revolução.
Porém, após 1985, com o acirramento da guerra desencadeada entre a UNITA e o MPLA, e,
especialmente na década de 1990, depois da queda do Muro de Berlim e da dissolução da
antiga União Soviética, um tom melancólico passou a envolver a produção poética das
Brigadas Jovens, havendo um clima de desencanto em razão do não cumprimento de muitos
dos ideais preconizados pela Independência.
Do final dos anos 1980 até 2002, entretanto, as disputas internas entre o MPLA e a UNITA
esfacelaram, em grande parte, o crescimento econômico de Angola, destruindo, em grande
parte, algumas regiões do país. Nesse período, tanto a poesia das Brigadas Jovens como a de
poetas não vinculados a esses Movimentos também se esgarçaram, caracterizando-se por
forte distopia em relação aos sonhos libertários. A certeza revolucionária foi, assim, substituída
pela instabilidade e pelas incertezas. No campo da linguagem, a poética pós-1985, de um
modo geral, propôs a radicalização do projeto de recuperação da língua literária, aproveitada
120
32
BARBEITOS, Arlindo. Angola angolê angolema. 2. Ed. Lisboa: Sá da Costa, 1977, p.72.
33
MAIMONA, 1997, p. 81.
121
Há, todavia, nesses poemas, a par do desencanto, da solidão, da dor, a procura de elementos
cósmicos: o ar, o vento, as aves, as abelhas, metafóricas imagens do tecido tênue e aéreo da
poesia.
José Luis Mendonça, autor de Chuva novembrina, livro de poemas galardoado com o prêmio
de poesia “Sagrada Esperança – 1981” do concurso de literatura “Camarada Presidente”, é um
dos grandes poetas da novíssima poesia angolana surgida após a Independência, embora não
tenha sido membro de nenhuma das Brigadas Jovens de Literatura. Seus poemas produzidos
entre os anos 1980 e 1990 apresentam uma visão noturna e melancólica, embora, também,
trabalhem com a alegoria da aurora dos sonhos e do amanhecer da poesia.
Alguns poemas de Paula Tavares – grande poetisa que também desponta logo após o 11 de
novembro de 1975 e funda uma nova dicção para o discurso poético feminino em Angola –
põem em cena, de modo contundente e alegórico, o universo de dor existente no contexto
social angolano das guerras pós-independência. O onirismo de seus versos é revelador dos
absurdos do próprio real:
Paula Tavares é autora de obras de poesia: Ritos de passagem (1985), O lago da lua(1999),
Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003) e Manual para Amantes
Desesperados (2007), além de um romance e de dois livros de crônica em prosa poética. Sua
poiesis, embora surgida nos anos 1980, guarda muitas características comuns à poesia
angolana dos anos 1970, isto é, da geração de David Mestre e Ruy Duarte de Carvalho.
Outras vozes poéticas femininas também despontaram após 1980, como Ana de Santana, Lisa
Castel, Maria Alexandre Dáskalos, Amélia Dalomba.
Ao lado dessa significativa produção poética feminina, vários poetas continuaram escrevendo.
Lembro o nome de João Melo que vem publicando desde os anos 1980 e, embora não tenha
saído das Brigadas Jovens, tem sido atuante na consolidação da poesia contemporânea
angolana. João Melo foi Secretário da União dos Escritores Angolanos, tendo organizado o I
Seminário da Literatura Angolana em dezembro de 1997, onde se discutiram os rumos da
literatura de Angola. O erotismo em sua poesia é marcante e se faz arma de resistência para
enfrentar medos e dores do passado e do presente povoados por fantasmas, pesadelos,
gemidos. Poeta da paixão, elege o amor como forma de se manter vivo e de poder sonhar.
Outra vertente que caracterizou o panorama da poesia angolana pós-1980 foi a de poetas
como Lopito Feijoó e Frederico Ningi, cuja linguagem poética rompeu iconoclastamente com
os cânones estéticos tradicionais, valendo-se de metáforas dissonantes e experimentalismos
visuais. Tais poetas assumiram claramente um viés poético paródico, transgressor e
irreverente, através do qual denunciaram pesadelos sociais. Frederico Ningi, ironicamente,
optou por uma poética, na qual palavras, imagens e símbolos gráficos interagem criticamente.
Sua poesia sempre se mostrou discordante e agressiva.
34
TAVARES, 2001, pp. 16-17.
122
Mais recentemente, em Luanda, como também tem ocorrido em diversas partes do mundo,
começaram a surgir alguns movimentos de poesia performática: o grupo LEV´ARTE e o POESIA
AO VIVO. Já há publicações desses jovens poetas: ControVerso é um livro de poesia de autoria
de Kardo Bestilo, um dos pseudônimos literários de Kussi Bernardo, membro executivo do
LEV´ARTE, grupo artístico que dramatiza poemas ao som de guitarra em bares da noite
luandense. Dilemas, paradoxos existenciais e sociais, sentimentos são ali declamados e
encenados.
Gostaríamos de poder abordar uma gama maior de obras literárias, mas como também iremos
dar uma ideia da pintura em Angola pós-independente, trazemos aqui telas de alguns pintores
angolanos que privilegiamos para esta apresentação: Eleutério Sanches, Etona, Jorge Gumbe,
Francisco Van-Dúnem, nos alongando um pouco mais na análise de telas dos dois últimos, em
razão de as pinturas deles fazerem parte do corpus da pesquisa que desenvolvemos, no Brasil,
junto à UFRJ e ao CNPq.
De Eleutério Sanches, convoco a alquimia da árvore [Tela 1], série em que o imbondeiro
protagoniza a cena pictural, transbordando o espaço da tela, com majestática imponência e
convulso cinetismo que expressam, plasticamente, a resistência africana, plasmada por
intermédio de múltiplos entrelaçamentos e intensas cores.
Como metáforas de vida, os galhos do imbondeiro apresentam oscilação propiciadora de uma
imaginação em movimento; se assemelham a vigorosos tentáculos que alegorizam a força
telúrica africana, cujas profundas raízes mergulham no chão ancestral, conotando resistência.
Por trás das voluptuosas formas do imbondeiro, podem ser facilmente depreendidos o
mistério e o encantamento próprio às histórias orais, contadas sob as árvores milenares da
tradição. É, por conseguinte, evidente a presença de um gosto de narrar africano, que se
expressa, picturalmente, pela revisitação de mitos e símbolos da terra, muitos dos quais
reinventados, retorcidos, como os galhos dessa árvore sagrada, plasticamente representada.
Embora possua uma linguagem artística bastante diferente, Etona – nome artístico do pintor
Tomás Ana, pertencente à “novíssima geração das artes plásticas angolanas” – também
partilha do prazer estético de reescrever Angola. É interessante como o tempo em que foi
cartógrafo se reflete em sua pintura, cujos traços formam ângulos, desenhando mapas
estéticos que põem em diálogo paisagens angolanas diversas, com cores contrastantes,
reveladoras da pluralidade de geografias, etnias, costumes e crenças em Angola.
[Tela 2] Conforme Adriano Mixinge, crítico e historiador de Arte, há, na obra de Etona, uma
«poética do pontiagudo, das cores (avermelhadas e azuis) [que] se unem à poética da (re)
memorização histórica e/ou morfológica, no intuito de (re)interpretação e modernidade (...) ».
( MIXINGE, Adriano)
A pintura de Etona realiza uma iconografia sociocultural de Angola, na medida em que pinta
tipos humanos e cenários do país, com tintas de um pincel preocupado em dar visibilidade ao
povo, em seu cotidiano; representa personagens anônimas, “sem rosto”, que eterniza e
problematiza em suas telas. Triangularizações delineiam uma cartografia pictórica plural, que
contempla não apenas variadas paisagens e regiões de Angola, mas também personagens em
movimento, em busca da própria identidade.
De Jorge Gumbe, invoco uma fase de sua pintura, que é caracterizada pela ressemantização do
universo mítico luandense relacionado à Kianda. A água, o ar, o fogo, a terra e divindades de
alguns dos sistemas mitológicos angolanos são presentes na obra desse pintor, principalmente
na sua produção pós-1997, designada como “a fase dos imbondeiros e das Yàndà”. Nas telas
desse período, os elementos primordiais da natureza são reinventados segundo um estilo
próprio e original. Com domínio das técnicas, o pintor recria mitos, tempos e temporalidades;
123
gera, com traços leves, rápidos e com a dispersão das cores, figuras em rotação ascensional,
que, em ritmo de fuga e antifuga, parecem se mover em rodopios que metaforizam o
movimento giratório da criação, sempre em constantes mutações e metamorfoses dentro do
universo.
O culto às Yàndà, nas populações quimbundas de Angola, é milenar, tendo continuado a existir
secretamente, mesmo após a colonização, como forma de sobrevivência do imaginário mítico
angolano. As Yàndà são entidades reguladoras de tudo que se relaciona ao oceano; são
consideradas entes benéficos que alertam as pessoas para os perigos vindouros. Tanto podem
ser representadas por peixes como por imbondeiros ou, também, pelo arco-íris e pelos fl
amingos (denominados ndeles em quimbundo), aves que metaforicamente simbolizam a
esperança e o sonho, pois, segundo uma lenda, empurram a noite para o outro lado da Terra,
de onde trazem o sol para iluminar os dias.
Nos quadros de Jorge Gumbe, frequentes espirais configuram a ideia de movimento em torno
de imbondeiros que, antropomorfizados, bailam com galhos para o alto. Incorporando a
sacralidade própria às Yàndà, a pintura de Gumbe realiza plasticamente um ritual telúrico de
cores e míticas ofertas.
Vários críticos já ressaltaram esse vertiginoso movimento das imagens projetadas no espaço
abstraizante das telas de Gumbe, como se as figuras pintadas captassem as ininterruptas
metamorfoses do cosmo.
Em Oferendas para Kiàndà [Tela 3] é focalizado um típico ritual à deusa angolana do mar. Um
imenso flamingo azul contracena com um imbondeiro humanizado que tem braços para cima e
se agita ao vento. Tanto a árvore, como o pássaro são duplos míticos da Kyàndà e, como ela,
simbolizam os sonhos, remetendo, por conseguinte, à busca dos sentidos poéticos da vida, à
paz e à leveza da imaginação criadora. No coração do imbondeiro, nada uma tartaruga
enorme, metáfora da ancestral sabedoria africana. Em acrobática posição, um ser humano
tenta galgar uma escada para alcançar o corpo azulado e onírico do ndele, ave que, como o
arco-íris, traz a magia das Yàndà.Nessa perspectiva de reinventar mitos da tradição, fazendo-
os interagir com modernas técnicas picturais, encontramos também a obra de Francisco Van-
Dúnem. Suas telas recriam fábulas e estórias, provérbios e adivinhas, animais totêmicos da
ancestralidade angolana e ideogramas desenhados na areia. Riscos das tradições dos povos da
Lunda que, embora, em parte, fissuradas, devido aos longos anos de guerras e opressões,
resistem ao tempo e se apresentam renovadas, por intermédio de traços híbridos que
mesclam técnicas antigas de pintar com outras mais contemporâneas e universais.
Referindo-se à pintura de Van, Irene Guerra Marques declara que o pintor “projeta símbolos
da ancestralidade numa contemporaneidade africana capaz de compatibilizar tradições com
realidades atuais de Angola”.
De acordo com José Redinha, os povos cokwe, antigos habitantes da Lunda, tinham o hábito
de desenhar em terrenos arenosos; utilizavam o solo para explicar, graficamente, suas viagens,
suas crenças, seus mundos, seus itinerários e seus mapas. Cartografar a terra era, para esses
povos, uma forma de melhor conhecer o próprio solo identitário. Este era, assim, concebido
como “mesa e assento”, local onde se dispunham em círculo e aclaravam, com figuras traçadas
na areia, suas conversas, costumes, conflitos, estórias, mitos. De um modo geral, esses povos
usavam os dedos e o chão como se fossem, respectivamente, lápis e papel. Os desenhos na
areia dos cokwe podem ser entendidos, portanto, como narrativas que “escrevem a terra
angolana”.
Ao optar por inserir ideogramas cokwe em suas telas, recriando-os em sua pintura, Van, com a
plasticidade criativa de sua arte, empreende também uma reescrita de Angola, de seus ritos,
mitos e práticas culturais.
Segundo Ana Paula Tavares, os desenhos em areia dos povos cokwe de Angola ilustram a
íntima ligação entre os riscos e a palavra. Esta, na ancestralidade africana, acompanhava os
124
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Resumo
Não me parece excessivo afirmar que, hoje, a literatura angolana, reagindo à intrigante e nada apaziguadora
(pelo menos até 2002) dinâmica da situação pós-colonial do país, vive um período de singular ecletismo
estético e produtividade reflexiva. Tal se deve a uma dialogia transtextual e intergeracional e à necessidade
de repensar o país, tarefa a que a literatura se assume como vanguarda, continuando a ser veículo
privilegiado da atividade reflexiva, agora quase substituindo os cientistas sociais (historiadores, sociólogos,
politólogos) no registro e análise dos acontecimentos e fenômenos que ainda não foram erigidos a “objeto”
de estudo. No entanto, apesar de a literatura angolana continuar ainda a cerzir a identidade na senda da
história e das imagens e memória dela, os pressupostos e os destinadores hoje são “outros”, ou antes, essa
alteridade já não remete apenas para os sujeitos “do exterior”, mas também contempla aqueles “mesmos”
que são partícipes de um estado de coisas. Isto é, as novas gerações de escritores assumem de forma incisiva
a “internalização” do olhar e não descuram as “novas” relações de poder. Este ensaio põe em diálogo a
poesia consagrada dos poetas da “geração da Mensagem”, em especial a poesia de Agostinho Neto (Sagrada
esperança), e a poesia pós-colonial, da “geração das incertezas, a saber: Adriano Botelho de Vasconcelos,
Abismos do silêncio (1996) e Tábua (2004); José Luís Mendonça, Quero acordar a alva (1997) e Ngoma do
negro metal (2000); João Maimona, A idade das palavras (1997) e Retrato das mãos (incluído em Festa da
monarquia, 2001); Paula Tavares, Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001) e Ex-votos (2003) e Maria
Alexandre Dáskalos, Jardim de delícias (1991) e Lágrimas e laranjas (2001).
Palavras-chave: Poesia nacionalista; Olhar pós-colonial; Utopia; Nostalgia projetiva; Nação.
Não me parece excessivo afirmar que, hoje, a literatura angolana, reagindo à intrigante e nada
apaziguadora (pelo menos até 2002) dinâmica da situação pós-colonial do país, vive um
período de singular ecletismo estético e produtividade reflexiva. Tal se deve a uma dialogia
transtextual e intergeracional e à necessidade de repensar o país, tarefa a que a literatura se
assume como vanguarda, continuando a ser veículo privilegiado da atividade reflexiva, agora
quase substituindo os cientistas sociais (historiadores, sociólogos, politólogos) no registro e
análise dos acontecimentos e fenômenos que ainda não foram erigidos a “objeto” de estudo.
No entanto, apesar de a literatura angolana continuar ainda a cerzir a identidade na senda da
história e das imagens e memória dela, os pressupostos e os destinadores hoje são “outros”,
ou antes, essa alteridade já não remete apenas para os sujeitos “do” exterior, mas também
contempla aqueles “mesmos” que são partícipes do estado do país. Isto é, as novas gerações
de escritores assumem de forma incisiva a “internalização” do olhar e não descuram as
“novas” relações de poder.
Na verdade, é sabido que no período colonial-fascista, em que se gerou a estética nacionalista,
a produção literária fez-se em diálogo com a ideologia libertária.
A estética literária de então mobilizou, por isso, uma retórica que buscou partilhar memórias
imaginariamente históricas e sociais e coletivizar angústias e aspirações, enveredando por
terrenos temáticos e estilísticos que, visando a rasura e o obscurecimento de conflitos e de
pulsões divergentes dentro da “comunidade imaginada”, intentava a construção de um corpo
uno e coeso, dentro dos propósitos do nacionalismo – que se pode definir, segundo Ernest
Gellner (1993), como sendo “um princípio político que defende que a unidade nacional e a
unidade política devem corresponder uma à outra” (p. 11).
Cada geração, numa certa opacidade, descobre a sua missão; assume-a ou se torna traidora.
(Frantz Fanon)
Para reforçar a contaminação épica da escrita do período de definição do sistema literário,
outro esquema foi o recurso à elaboração do imaginário cultural, a partir de índices retirados
da natureza e da sociocultura (gentes, sinais de uma vivência quotidiana, do espaço físico e
social) e transformados em símbolos. Por via destes, intentava-se, pelo poder incantatório da
128
clássicos angolanos – entendendo “clássico” no sentido em que o define Vítor Manuel Aguiar e
Silva: “o clássico é aquele escritor que, seja qual for o tempo em que escreveu, é nosso
contemporâneo, porque ainda tem alguma coisa a dizer-nos” (SILVA, 2002, 19). Enfim, como
dialoga a atual poesia com os nossos clássicos, autores que fundaram o sistema literário
angolano?
Esta geração de poetas, todos na casa dos cinqüenta anos, ou quase, continua a ser
historicamente caracterizada por uma disponibilidade para dizer a nação e a identidade.
Adriano Botelho de Vasconcelos e José Luís Mendonça, por exemplo, que se revelaram ainda
nos anos 1970, têm uma poesia ainda muito marcada por sinais de celebração utópica. Quem
ler Voz da terra (1974) e Abismos de silêncio (1996) e Tábua (2004), de Botelho de
Vasconcelos, poderá pensar tratar-se de poetas diferentes; o mesmo se passará com a viagem
de Chuva novembrina (1981) a Quero acordar a alva (1997) e a Ngoma do negro metal
(2000), de José Luís Mendonça... Poéticas diferentes, sim, porque os primeiros livros – Voz da
terra e Chuva novembrina – são de celebração da revolução, numa colagem aos desígnios da
“escrita de combate”, realizada numa construção isotópica, isto é, numa rede semântica que
remete, no caso de Botelho de Vasconcelos, para a reiteração da “voz da terra”, de cujos
sinais, em urdidura simbólica e alegórica, os demiurgos do sistema haviam construído a
angolanidade; por seu turno, em José Luís Mendonça essa celebração realiza-se pela
reiteração expansiva da semântica da fertilização do solo em tempo de liberdade (pela
referência à independência de Angola, ocorrida a 11 de Novembro de 1975). Por outro lado, os
últimos livros desses poetas – particularmente Abismos de silêncio e Ngoma do negro metal –
já denunciam a nostalgia de um futuro anunciado e não cumprido: o silêncio e o negro metal a
denunciarem uma aparente melancolia e uma nostalgia regressiva, distópica. O modo elegíaco
é configuração semântico-pragmática privilegiada pelos dois poetas para expressarem as suas
perplexidades perante o Mundo, o país e perante eles próprios.
A idéia de uma pátria rica cantada por Agostinho Neto no poema “Havemos de voltar”, ou por
António Jacinto em “Monangamba” e em “O rio da nossa terra”, ou “Quando os meus irmãos
voltarem”, de Aires de Almeida Santos, é desqualificada pela visão da desapropriação das
riquezas nacionais por uma entidade não localizada – apetecia-me dizer globalizada, na
medida em que se trata de uma entidade com alcance “biopolítico” cujo poder, sem rosto,
sem raça ou sem marcação nacional, é um sistema “transnacional”, que “descentraliza” e
“desterritorializa” (NEGRI & HARDT, 2001, p. 12). Na verdade, trata-se de uma máquina que
integra as diversas modalidades (econômico, cultural, familiar, alimentar, até afetivo), e que
sequestra o próprio corpo sociocultural, o bios social.
É esta preocupação que a obra de Pepetela também tece nas bordas do texto: em A geração
da utopia, por exemplo, é legível a mesma entidade imperial interna – é por isso que falei de
uma alteridade interna –, representada na figura de Malongo, que substitui a ordem
imperialista “tradicional” – afinal aquele imperium que já não significa “colonizar, controlar
terras que não são nossas, que estão distantes, que são possuídas e habitadas por outros”
(SAID, 1995, p. 37). A profecia do poeta sobre o regresso à pátria concretizou-se e Malongo
voltou à bela pátria angolana, à “Angola libertada/Angola independente” (Neto, “Havemos de
voltar”), e se instalou na terra:
[Malongo] estava lá há muito tempo preparada para a paz. Começou a vir à banda para
pequenos negócios. Servia de intermediário de firmas belgas, francesas e holandesas, de
médio porte, que queriam vender produtos ou tecnologias. Como era amigo antigo de
responsáveis importantes (...) conseguiu os primeiros negócios. (...) Ele tinha de repartir a sua
comissão. Mas mesmo assim ganhava muito dinheiro. Ganhou dez vezes mais num ano que
em toda a vida anterior. Estava preparado para a paz tão esperada. (PEPETELA, 1992, p. 259-
261)
130
Porém, o interlocutor de Agostinho Neto neste canto das riquezas da pátria – feitas de
recursos naturais e paisagísticos e de potencialidades culturais (a marimba, o quissange, o
carnaval), parece ser, quase 40 anos depois, José Luís Mendonça, particularmente em Respirar
as mãos na pedra (1989) e em Quero acordar a alva e em Ngoma do negro metal.
Particularmente Quero acordar a alva – que funciona como um macropoema e se desenvolve
em três momentos (as suas três partes denominadas livros: “Sobre o nocturno coração de
África, Uma árvore fala e Quero acordar a alva) – responde à eufórica “sagrada esperança” do
regresso à pátria com a tenso “nocturno coração de África”. Leiamos a marcação distópica do
tempo no poema “Reconstrução Nacional”:
1974
Quimbanguleiros35 de todos os muceques erguem o verde
despertar das cidades
com blindagens de óleo palma
no eco encardido das nádegas
1994
Nossas crianças roem os dentes
neste céu etílico de balas perfumadas
2004
Nossa Senhora Santa Ana da Muxima
ainda marmoriza o país do rio Bengo
mas os deuses já não escarram mais o mel
da angústia em nossas bocas de papel
Outro diálogo na contramão pode ver-se ainda entre os poemas de Agostinho Neto
“Sangrantes e germinantes” (Sagrada esperança) e o poema de José Luís Mendonça
“Sangrantes pedaços de metal” (Ngoma do negro metal): enquanto o poema de Neto termina
com uma disposição claramente, melhor, profeticamente utópica,
35
Quimbanguleiros eram estivadores das construções dos grandes edifícios do tempo colonial. Eram operários não
qualificados que misturavam o cimento à areia e transportavam a argamassa, os tijolos e outros materiais pelos
andares acima – daí a kimbangula (carregar às costas). Ao lado de cada edifício e construção, as mulheres dos
bairros pobres chegavam, instalavam as suas cozinhas, panelões e carvão, para vender funge com peixe de óleo
palma, por um preço módico, à altura do bolso do kimbanguleiro – daí a expressão “com blindagens de óleo
palma/no eco encardido das nádegas”.
131
Subvertendo a vinculação que, por um lado, então se operava entre nação e riqueza e, por
outro, entre esta categoria e felicidade coletiva que se intentava construir, hoje o poeta José
Luís Mendonça (1997) considera que –
O que ressalta neste diálogo, sempre na contramão, é que à idéia de africano – na sua versão
metonimicamente angolana, o que reforça a transnacionalidade da entidade imperial –, que
ainda tem a Mãe África como “superpátria”, se liga à de orfandade (material, cultural,
espiritual) e de desapossamento da terra e do homem, ainda criança: “(...) no/maximbombo
dos mortos a infância/do pólen sitiado toma assento”. E é esta última “herança”, a orfandade,
que sintetiza esse sentimento de irrealização da utopia que percorre a poesia angolana
contemporânea.
Portanto, mais do que da orfandade do indivíduo em relação à pátria, é dela própria, a pátria,
que os poetas contemporâneos falam, de uma instituição que já não espera uma entidade –
quase messiânica – propulsora de mudanças e de transformações dialéticas, como em “Adeus
à hora da largada” e “O içar da bandeira”, ambos de Sagrada esperança, de Agostinho Neto:
O IÇAR DA BANDEIRA
Cheguei no momento preciso do cataclismo matinal
132
Em contrapartida, o metal das minas de diamante, ouro, cobre e de petróleo já não gera vida,
“a que haveríamos de voltar”, como se pode ler em “Ngoma do negro metal”:
Por seu turno, tanto Paula Tavares, em Dizes-me coisa amargas como os frutos (2001), como
Maria Alexandre Dáskalos, em Lágrimas e laranjas (2001), desfazem a semântica da espera
esperançosa e transformam-na numa espera desencantada, injetando-lhe sinais de uma
nostalgia que se prolonga pela desventurosa existência, perante a indiferença daqueles por
quem esperaram:
SOMBRAS
tristezas os olhos
de onde me olhas
detrás de um tempo passado,
o tempo das promessas antigas.
Teus olhos, amado,
são os olhos de alguém
que já morreu
e ainda não sabe.
MAD
Os filhos de Eva
não têm a memória do Éden.
Foi com o silêncio
que a serpente se fez pagar.
Eles passam por ela indiferentes
36
Importante zona mineira no município da Jamba, no interior da província da Huíla (zona fronteiriça, entre as
províncias da Huíla e do Kunene), pertencente à Companhia Mineira do Lobito. O ferro era escoado pelo Porto do
Namibe (ex-Moçâmedes), especialmente construído para esse efeito e onde hoje existe o projeto de um Terminal
Mineralífero.
133
e
caminham sem retorno.
Nem a solidão de Eva
nem o pranto de Adão
lhe arrepiam os passos.
Já não há o enlevo dos poetas por um corpo pródigo, igualitário, harmonioso e sem fissuras.
Contra a ilusão da “bela pátria/nossa terra”, a poesia contemporânea de Angola instaura o
diálogo tenso com os discursos poéticos fundadores, através de uma sucessão de anomalias da
natureza que remetem para a desenrolar da História, como em Ex-votos (2003):
É este diálogo – como essoutro entre Agostinho Neto e João Maimona – que se me afigura
subversivo, canibalesco, melhor, antropofágico (no sentido em que os atuais atores de escrita
devoram criticamente as categorias fundacionais do sistema, incorporando-lhe as
contingências da História do país), produtivamente pós-moderno até, no sentido de constante
questionamento da doxa, isto é, da tradição, ao contrapor a essa tradição dos filhos de uma
pátria de promissora glória a sua atual condição mendicante e “subhumana”. De novo José
Luís Mendonça
(1997):
SUBPOESIA
Subsarianos somos
sujeitos subentendidos
134
subespécies do submundo
subalimentados somos
surtos de subepidemias
sumariamente submortos
do subdólar somos
subdesenvolvidos assuntos
de um sul subserviente.
Coteje-se este poema com essoutros “Poema de alienação” de António Jacinto e “Poema” e
“Adeus à hora da largada” de Agostinho Neto. Ou mesmo “Velho negro”, também de Neto:
VELHO NEGRO
Vendido
e transportado nas galeras
vergastado pelos homens
linchado nas grandes cidades
esbulhado até o último tostão
humilhado até ao pó
sempre sempre vencido
E forçado a obedecer
a Deus e aos homens
perdeu-se
Perdeu a pátria
e a noção de ser
Reduzido a farrapo
macaquearam seus gestos e sua alma
diferente
Velho farrapo
Negro
perdido no tempo
e dividido no espaço!
Ao passar de tanga
com o espírito bem escondido
no silêncio das frases côncavas
murmuram eles:
Pobre negro!
E os poetas dizem que são seus irmãos.
A nação – a comunidade imaginada do “nós” – categoria que da terra se expandiu a corpo uno
e coeso, e a pátria como instituição, antes entidades dialogantes e conformantes na literatura
fundadora, já não o são na atual literatura: esta quer agora, para além da nação gregária, fazer
funcionar a sua dimensão cívica, em que se harmonizam categorias como nostalgia do passado
e com intenções desiderativas do futuro, numa estratégica discursiva que visa a integração
dessas duas disponibilidades da vontade na nova “comunidade” pós-colonial.
É assim que se chega, na atual literatura angolana, ao lugar da cidadania, até então inexistente
na configuração do local da cultura e da nação, e que começa a insinuar-se para resgatar o seu
lugar no discurso sobre a identidade e na escrita da nação. A cidadania, qualidade de teor
legalista concomitante de qualquer nação (SMITH, 1997, 147), transporta implicações que se
atualizam sobretudo no lugar da pátria.
135
ATRÁS DA SOMBRA
tive em dias meus as festas da sombra.
tudo era sombra. princípio e decadência:
a essa cores eu chamo palavras adiadas:
não me farto de contemplar suas ruínas.
(MAIMONA, 1997)
ORIGENS
Guardo a memória do tempo
em que éramos vatwa,
os dos frutos silvestres.
Guardo a memória de um tempo
sem tempo
antes
da guerra,
das colheitas
e das cerimónias.
(TAVARES, 2001)
Não obstante essa nostalgia, por vezes regressiva (porque crepuscular), o que a poesia
contemporânea, afinal, intenta não é a negação da feição celebrativa da terra e suas gentes, a
sua feição histórica e a do poético. Se hoje as preocupações dos poetas se viram para as
37
A visão de pátria de Lima Barreto (1881-1922), num texto publicado precisamente em 1961 ano do início da luta
armada em Angola, sintetiza aquela que eu gostaria de expressar como relevando da poesia angolana
contemporânea. Cito-a por isso: “(...) a Pátria, esse monstro que tudo devora, continuava vitoriosa nas idéias dos
homens, levando-os à morte, à declaração, à miséria, para que, sobre a desgraça de milhões, um milhar vivesse
regaladamente, fortemente ligados num sindicato macabro”.
136
relações internas de poder, para a repartição razoável das riquezas, para o processo de
dignificação do indivíduo, para o respeito pela história particular e segmental dos
grupamentos, para o respeito pelos direitos cívicos e para o equilíbrio nas relações sociais,
mais não fazem que reelaborar criticamente a corrente de solidariedade e cumplicidade que,
prosopopeicamente, se constrói no poema “Partida para o contrato”, de Agostinho Neto, em
que a natureza “chora”, tal como Maria, a partida de Manuel para o contrato, ou a
participação de todos na sinfonia emancipatória em “O içar da bandeira”, ou ainda o
acumpliciamento da natureza na comunhão entre os dois amantes em “Carta dum
contratado”, de António Jacinto. Não obstante a celebração da comunhão entre homem e
natureza como partes da mesma entidade, em que aquela se cumplicia com o enunciador na
dor da separação e na desventura do analfabetismo, no poema “Carta dum contratado”, de
António Jacinto, em Adriano Botelho de Vasconcelos (1996), a terra reveste-se de silêncios e
de sombras, e o “olhar das mães adormece as agonias/que infecundam os signos
das/fraternidades” (p. 24); outrossim, enquanto a Mulher-Mãe, nos seus desdobramentos
simbólicos, é símbolo de resistência, persistência, proteção, união e fortaleza na poesia
nacionalista, em vários poemas de Paula Tavares a Mulher se humaniza e se fragiliza perante a
força destruidora dos acontecimentos (guerra, fome, aniquilamento das relações afetivas e
seus corolários), como no poema “Mãe” (Dizes-me coisas amargas como os frutos):
MÃE
A mãe chegou
não estava sozinha
o cesto que trazia
não estava bem acabado
a mãe chegou
não tinha as tranças direitas
a mãe chegou e o pano que trazia
não estava bem alinhado
a mãe chegou com olhos maduros
os olhos da mãe
não olhavam
na mesma direcção
a mãe chegou
e não era ainda o tempo
do pão do leite azedo
e das crianças.
A mãe chegou e a fala que trazia
não estava bem preparada
a mãe chegou
sozinha
com as falas da desgraça da miséria do leite fermentado e do barulho.
PROCURA
impalpável país fúnebre quando procurado
se cobre de noite. fugitivo cresce no rio
donde o oceano mais distante que se vê
chora conhecer o fruto as cinzas
que aos poucos se tornam janelas alheias.
38
Considero apenas Retrato das mãos, que é um dos dois segmentos do livro Festa da monarquia (2001), de João
Maimona (o outro é precisamente Festa da monarquia). Na verdade, as duas partes não constituem um conjunto,
antes funcionando de per si, idéia que até o próprio autor pareceu perfilhar ao solicitar prefácios diferentes para
cada uma. Parece-me que a publicação conjunta se deveu, apenas, a um exercício de engenharia financeira.
Quando fiz o prefácio de Retrato das mãos, desconhecia que o livro seria parte de uma publicação, Festa da
monarquia, e não um todo de per si.
138
Abstract
It does not seem an exaggeration to say that, today, that in reacting to the intriguing and by no means pacific
dynamic of the country’s post-colonial situation (at least until 2002), Angolan literature is going through a period of
remarkable aesthetic eclecticism and reflective productivity. This is due to a transtextual, inter-generational dialogic
and the need to re-think the country, a task in which literature has taken on the role of vanguard. It continues to be
the chosen means for reflection and has almost replaced the social scientists (historians, sociologists, politologists)
in recording and analysing events and phenomena which have yet to be raised to the “object” of study.
Nonetheless,
despite Angolan literature continuing to give shape to identity on the path traced out by history and its images and
memories, today, the ideas and designators are “others”. Or rather, this otherness
is not only aimed at subjects “from” without but takes into account the “very ones” who are part and parcel of the
state of things.
In other words, the new generation of writers have taken it upon themselves to “internalize” their gaze on Angola
from within, and they have not turned their backs on the “new” power relationships.
This paper will set in dialogue the consecrated poetry of the nationalist poets, and in particular that of Agostinho
Neto (Sacred hope) with the post-colonial poetry by Maria Alexandre Dáskalos, Jardim de delícias (1991) and
Lágrimas e laranjas (2001), Adriano Botelho de Vasconcelos, Abismos do silêncio (1996) and Tábua (2004), José
Luís Mendonça, Quero acordar a alva (1997) and Ngoma do negro metal (2000), João Maimona, A Idade das
Palavras (1997) and Retrato das mãos (included in Festa da monarquia, 2001) and Paula Tavares, Dizes-me coisas
amargas como os frutos (2001) and Ex-votos (2003).
Key words: Nationalist poetry; Post-colonial poetry; Utopia; Projective nostalgia; Nation.
139
Referências
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São Paulo: Editora Brasileira, 1961.
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Editora da UFMG, 1999.
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São Paulo: Editora Record, 2001.
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SILVA, Vítor Manuel Aguiar e. Há um tempo para formar o leitor. Entrevista a João
Pedro Aido. Palavras (Lisboa): Associação de Professores de Português, n. 21, p. 7-21,
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SMITH, Anthony D. A identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997.
140
O termo bordejar faz parte do vocabulário náutico, estando, pois, diretamente vinculado ao
mar e às embarcações. Como se sabe, bordeja-se quando se navega, costeando o litoral, ou
sem rumo certo e segundo a direção dos ventos. Talvez tenha sido essa a sensação que, como
pesquisadora das Literaturas Africanas, sempre experimentei, ao navegar por suas margens,
que era o que se me oferecia, ao invés do caminhar seguro por um mar já conhecido e que A
palavra é um pacto com o tempo. Mesmo que seja um tempo fissurado entre realidade e
sonho, entre vivido e por viver, entre ruído e silêncio. (Paula Tavares) e que as minhas próprias
cartas náuticas desde muito tempo explicavam ou descreviam.
Também o termo mais se sedimentou em meu imaginário leitor, quando o objeto de meu
olhar passou a ser as produções poéticas femininas cujo lugar, no ocidente, sempre foi o da
borda, da orla, da fímbria, da margem, enfim. E por muito tempo também.
Explicado o termo bordejar, começo pela lembrança desnecessária, mas que merece ser
invocada, do sentido dicionarizado da palavra cânone, etimologicamentederivada do grego
kanón, pelo latim canone. Lemos em Nascentes (1972) que o termo significa
Regra geral donde se deduzem outras particulares, catálogo dos livros sagrados, reconhecidos
como de inspiração divina; catálogo dos santos reconhecidos pela igreja; fórmula de orações
[...]; decisão de igreja [...]; modelo plástico. (p. 318a)
Vê-se, pela leitura das acepções, que a palavra está ligada ao campo semântico do sagrado e
da fé. De Camões, dentre outros, obviamente, vem-nos a convicção de ser a fé, par do império,
uma das principais estacas de sustentação do alicerce ético do edifício chamado ocidente. Ora,
se o cânone faz parte desse grande edifício, ele se contamina do seu caráter coercitivo e
opacizante. A sua base, alerta o verbete, é o reconhecimento dos valores, no caso estéticos,
que o fundamentam e sacralizam.
Sendo as culturas africanas, por princípio e de princípio, excluídas, por sua diferença axial, de
tal edifício, por não se sustentarem nem em uma base greco-latina nem na judaico-cristã, não
há outra saída para suas manifestações, senão a imersão no vazio e no silêncio, muitas vezes
transmudados em silenciamento.
É óbvio que, a partir de um determinado momento histórico, o catálogo, ou “o arquivo dos
conhecimentos ocidentais”, no dizer de Aijaz Ahmad (2002, p. 16), passa a exercer seu fascínio
sobre o imaginário dos excluídos desse grande sistema.
141
Desse modo, vê-se que o desejo da letra e a “regra geral” da modelização canônica passam a
fazer parte do arquivo dos conhecimentos africanos, quando os colonizados têm acesso aos
bens simbólicos do que se pode considerar o vetor alto da cultura do ocidente. Em especial,
interessa-me aqui pensar o modo como, nessas entradas e saídas, se dá a apropriação pela
mulher daqueles bens. Interessa-me também rastrear o momento a partir do qual ela tem
condições de participar do jogo inclusivo, pelo letramento, e como adquire domínio sobre o
espaço simbólico do arquivo. Por fim, apetece-me entender de que modo a sua fala se
estrutura em relação à dos actantes masculinos dessas culturas ditas periféricas, e
como nessa fala se inscrevem, ou não, as suas marcas de classe e gênero – ainda Ahmad (p.
22).
A escrita literária feminina, vale lembrar, fosse africana ou não, historicamente imergiu em
uma zona de profunda exclusão, habitando o sombreado das fímbrias. Como indica Lucia
Guerra (1995), a mulher ocupou sempre uma posição subordinada, sendo privada, na
organização patriarcal, “de sua própria História e das histórias que modelizam sua própria
experiência” (p. 26-27; traduzi). Ora, esse lugar de subordinação nem sempre está de acordo
com as formas de organização das sociedades africanas onde a mulher sempre exerceu um
papel muito representativo, sobretudo no que se refere à etnia banto. Recorro a Raúl Altuna
(1983) que, na análise feita desse papel, afirma que a mulher, por ter o dom da maternidade,
se faz uma espécie de “laboratório sagrado”. Sua principal fórmula química é o sangue pelo
qual “os antepassados prolongam-se e as linhagens vão rodando pelos séculos” (p. 256). Há,
desse modo, um conflito de base entre as sociedades patriarcais do ocidente e as matrizes
africanas de sacralização da mulher.
A colonização vai interferir, é óbvio, nesse quadro geral, no momento mesmo em que impõe
seus inquestionáveis modelos e jogos de hegemonia e poder nas sociedades com as quais
passa a interagir pela dominação, buscando civilizá-las, para arrancá-las do seu estado de
barbárie, aqui tomando o sentido dicionarizado de civilização. Por isso mesmo, se se recorta o
papel secular da mulher africana, não se pode deixar de pensar que a sua rasura, em tal plano
simbólico, significa um duplo mergulho no silêncio. Assim, para dimensionar tal silêncio e os
movimentos para superá-lo, dentro do recorte temporal proposto – dos fins dos anos de 1940
aos de 1970 –, elenquei uma série de instrumentos culturais, para neles buscar os textos
poéticos femininos e outros de caráter geral que resgatassem seja o papel social da mulher,
seja a sua performance intelectual stricto sensu.
Com essa ampliação, visei também alargar o espectro da fala feminina fora do corpus
estritamente poético, para melhor perceber e analisar não só sua produção literária
propriamente dita, mas os traços da diferença dessa fala em relação ao discurso masculino
hegemônico, tal como o ocidente o erigiu. Por fim, a meta última foi refletir sobre o processo
de circulação da obra individual, isto é, dos livros dessas poetisas – e aqui prefiro esta
nomeação à de poetas que é uma forma de reforçar a preponderância nominativa do
masculino sobre o feminino –, considerando sua relação com o mercado editorial (títulos
publicados, época da publicação, o financiamento das edições, divulgação etc.), via pela qual
se pode mensurar a visibilidade dessas produções no tempo abrangido pela pesquisa. Daí, o
incluir os anos imediatamente posteriores às independências. Quanto ao espaço, Angola e
Moçambique foram o ponto de ancoragem do olhar crítico, embora com expansões para os
outros países, sempre que a forte presença de alguma(s) mulher(es) a isso obrigava, como se
dá, por exemplo, com Alda Espírito Santo.
Meu grande objetivo, ao fim e ao cabo, usando palavras de Kwame Anthony Appiah(1997), foi
ir um pouco além, pois desejei estabelecer uma espécie de “sintonia com os modos pelos
quais a ‘escavação’ convencional do cânone literário pode servir para consolidar uma
determinada identidade cultural” (p. 93). Ao me valer das produções poéticas femininas,
elegendo-as como a área privilegiada da “escavação”, pude perquirir como as identidades
142
Como se sabe, antologizar significa trazer para o cânone, pois, por esse gesto, há um processo
de reconhecimento no qual subjaz uma forma escamoteada de sacralização qualquer. Assim,
para rastrear a fala poética feminina em expansão entre o fim dos anos de 1940 e os de 1970,
comecei por um conjunto de antologias que já então se faziam canônicas, como No reino de
Caliban, organizada por Manuel Ferreira (3v., 1975, 1976 e 1988) e pela paradigmática
Antologia temática de poesia africana, cujo organizador, Mário Pinto de Andrade, alia
claramente o projeto estético ao ideológico que procura adensar (2v., 1975 e 1979).
Ainda foram buscadas as coletâneas: Poesia negra de expressão portuguesa, assinada pelo
mesmo Mário, em dupla com Francisco José Tenreiro (1953) e Antologias de poesia CEI –
1951/1963, em dois volumes, e editadas pela Associação Casa dos Estudantes do Império
(ACEI), em 1994.
Pela importância do material aí contido e pelo fato de atenderem, de modo mais direto, à
cronicidade da pesquisa, as Antologias constituíram-se, desde então, a minha principal fonte,
juntamente com Poesia negra (1953), apesar da pouca extensão desta última, por assim dizer.
Por fim, não há como deixar de considerar 50 poetas africanos, coletânea organizada também
por Manuel Ferreira, dada a público em 1989 e que constitui claramente um gesto de
sedimentação canônica, como adiante se verá.
No primeiro volume das Antologias, encontram-se duas coletâneas igualmente intituladas
Poetas angolanos (1959 e 1962). A terceira cobre São Tomé e Príncipe (1963). As capas que
abrem duas das coletâneas do volume mostram a força da mulher-mãe no imaginário banto,
sempre um duplo da terra.
No segundo volume, encontra-se a “Separata da Mensagem dedicada à Poesia em
Moçambique”, de 1951, e ainda as duas antologias então publicadas (1960 e 1962).
Ao todo, em tais antologias, aparecem: 31 poetas angolanos; seis santomenses e 57
moçambicanos nomeados, além de dois desconhecidos. No conjunto assim formado, 94
poetas, há 11 poetisas, isto porque Vera Micaia é pseudônimo de Noémia de Sousa. Portanto,
em um universo de 94 poetas nomeados, apenas, e aproximadamente, 12% são mulheres.
Vale notar que essas antologias jogam o jogo de tentar driblar o outro, colonizador, mas deixa
quase de fora a questão da fala duplamente colonizada da mulher africana do tempo.
Nomeiam-se e dizem seus textos nas antologias da CEI: Angola: Lília da Fonseca; Alda Lara;
Ermelinda Xavier; São Tomé e Príncipe: Maria Manuela Margarido e Alda Espírito Santo;
Moçambique: Irene Gil; Noémia de Sousa/ Vera Micaia; Ana Pereira Nascimento; Anunciação
Prudente; Glória de Sant’Ana e Marília Santos. Dessas, quantas sabemos quem são? Como
viam o mundo? Como se viam? De onde falavam? Por que falavam? Que modelos poéticos
estavam na antecena de seus versos? Como seus corpos culturais se encenavam? E os seus
corpos físicos? A última parte deste texto tentará responder a algumas dessas questões.
Quanto aos 50 poetas africanos, vejo-a como uma antologia de extração canônica, a partir
mesmo do que preceitua, no prefácio, o seu organizador, Manuel Ferreira, ao afirmar que nela
“prescreve o critério de selectividade” e que o ponto de vista adotado é o “qualitativo” (1989,
p. 7-8). Portanto: seleção + qualidade = sacralização, ou seja, consolidação de um cânone.
Nesse quadro geral, dos 50 poetas elencados, dentro do “critério de selectividade” e “do
ponto de vista qualitativo”, só aparecem duas mulheres: Noémia de Sousa e Alda Espírito
Santo, as mesmas selecionadas na antologia organizada por Mário e Tenreiro. Sedimenta-se o
cânone africano, com a exclusão da maioria das produções de mulheres e os textos de 1953 e
1989 se tocam nos nomes de Alda e Noémia, embora tais textos se façam tão distintos em sua
143
finalidade e processo de elaboração. Ao final, repito, veremos que tipo de encenação política
os poemas dessas duas mulheres então canonizadas representam; a sobrevivência de seus
textos até os nossos dias e a retomada, por ambas, da força sacralizante da mulher africana,
laboratório sagrado onde se processa a permanência dos ancestrais.
Para além das antologias, o presente trabalho se valeu do boletim Mensagem da CEI, editado,
com interrupções embora, entre 1948 e 1961, em Lisboa, cidade sede da Casa. O papel do
boletim, mesmo em sua simplicidade gráfica, é insofismável. Por ele, sedimentam-se as
culturas africanas, ao ganharem visibilidade no coração do império. Recorro a Alfredo
Margarido (1994) que, ao analisar o papel das antologias, análise aqui estendida ao boletim,
assim se expressa:
O que estava em causa era, de maneira evidente, para cada grupo nacional, a necessidade de
assegurar a automatização dos instrumentos culturais que, permitindo a afirmação da
capacidade criadora, fornecesse ao mesmo tempo os alicerces a uma consciência nacional
cada vez mais liberta dos obstáculos colonialistas. (p. 15)
Não se levanta. Morre na distância. Ela nem voz tem. É escrava. – É mulher negra
[...]. É vítima de todos. [...]. A nossa raça não poderá erguer-se enquanto se não tentar
dar à mulher – às últimas da sociedade – um campo aberto com o privilégio de se
poderem considerar com direitos. (1949, n. 7, ano I, p. 13)
Mensagem vai, assim, tecendo aquela energia nacional de que fala Gramsci (1985) e que é,
sobretudo, coletiva. O boletim deixa patente o papel significativo representado pelas mulheres
no que tange ao processo de consolidação da face em diferença e, como conseqüência, do
nacional.
Outro instrumento cultural de suma importância para as presentes reflexões foi Jornal de
Angola, em um período de tempo que vai de 1954 a 1961. O ensaio “Corpo e terra: um
entrecruzamento simbólico em falas poéticas de mulheres africanas” (2003, p. 219-228)
sintetiza a leitura dos poemas que circularam no periódico, leitura que, em parte, se retomará
no segmento final deste texto.
Desejo aqui tão somente apresentar algumas pistas de leitura do Jornal, órgão da Associação
dos Naturais de Angola. Se pensamos ter tal Associação congregado os Novos Intelectuais e o
seu grito subvertedor de “Vamos descobrir Angola!”, podemos dizer que o periódico fundado
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em 1954 representa, em alguns pontos, uma espécie de retrocesso político, pelo menos
inicialmente. Alia-se à portuguesidade e se mostra como um órgão conservador. Certo que,
posteriormente, há um salto, como já analisaram, dentre outros, Costa Andrade e João Melo,
em várias oportunidades. No início do período abrangido pela pesquisa, vê-se, no entanto, que
o jornal caminha na contracorrente da Mensagem, revista editada em Luanda por aqueles
mesmos intelectuais e da qual saem apenas dois números.
Futuramente, as conclusões de uma pesquisa já realizada com Jornal de Angola serão
publicadas, mas aqui me interessa apenas apontar o modo como o jornal vê a mulher
angolana, nesse viés conservador. Este se pode avaliar por várias matérias, entrevistas e,
sobretudo, pelas páginas e/ou suplementos a ela dedicados e onde quase sempre aparecem os
poemas. Via de regra, tais páginas trazem imagens de mulheres brancas, receitas européias e
outras “dicas” para as donas de casa e para seu “sagrado” lar. Não há imagens de mulheres
negras nem de seus corpos culturais.
Tanto Mensagem da CEI, quanto Jornal de Angola se tornam instrumentos, pois, da maior
importância para que um novo modo de escrever a história se possa solidificar. Outros
arquivos começam a fornecer outros dados para se formalizar a história dos sujeitos africanos
que a então viviam, mesmo que fora de lugar e em seu exílio forçado em sua própria terra
e/ou espacialidade simbólica.
O conjunto de textos trabalhados permitiu-me chegar a alguns recortes finais, já expostos nos
ensaios referidos. Assim, de modo breve, retomo-os, indicando que as ocorrências apontadas
não se apresentam em malhas diacrônicas, mas se sucedem em sincronias. Só a minha
intenção didática justifica a cadeia expositiva.
O corpo poético que primeiro ganha densidade, no corpus literário desse modo formado, é o
assimilado. Por ele, retorna o padrão da fala literária européia, pelo qual a mulher se
apresentava como um sujeito de dor e sofrimento. Maria Eugénia Lima:
Irene Gil:
No segredo das horas silenciosas
Ei-la que veio, a Doce irmã Alada!
Veio ainda uma vez coroar de rosas
Minha fronte cansada...
Coalhou lá fora o Silêncio...
(Antologias, 1994, v. II, p. 110)
Desse movimento de assimilação aos “formais e rendilhados cantos”, aqui repetindo Noémia,
no poema não por acaso intitulado “Negra”, se passa para um processo de identificação com a
terra, sendo o corpo feminino a sua metonímia. Alda Lara, no corpus, é o melhor exemplo do
procedimento imagístico e seu poema “Presença” talvez a sua mais forte expressão:
E apesar de tudo
ainda sou a mesma!
[...]
– A dos coqueiros
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
(Antologias, 1994, v. I, p. 187-188)
Aqui, como já afirmei algumas vezes, emerge o corpo físico da terra, duplo daquele do sujeito
lírico, que com ela se procura identificar. Surge, então, a terra romântica do cantador a que se
refere Antonio Candido (1987, p. 140). Não se problematiza o local da cultura, o não-lugar
histórico, mas a atitude é de ufanismo, ou segundo Candido ainda, de um “estado de euforia”
pelo qual se camufla o exotismo, transformando-o em estado anímico (idem, p. 141).
De um modo ou de outro, a terra – que ainda não se pode confundir com o desejo da nação –
pede passagem e finca pé no texto, em forma de palmeiras, acácias rubras, poentes cor de
sangue, calemas, etc. O eu-lírico, em estado de exílio, anseia poder voltar e misturar seu corpo
à natureza de sua terra:
Tenho sede...
sede dos crepúsculos africanos
todos os dias iguais,
e sempre belos
de tons quase irreais...
Saudade... Tenho saudade
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As reticências, a marcação dos versos, o tom apaixonado ainda nos fazem lembrar Florbela,
mas o sujeito se sabe de um outro lugar e seu movimento não é apenas de imersão subjetiva,
mas o de buscar, na natureza local, o elemento de consolidação de seu próprio eu. Nasce, daí,
um movimento suplementar na direção do outro, o igual, e, em conseqüência, consolida-se a
esperança e a certeza de um futuro pensado no coletivo ou no “sonho colectivo”, tal como
analisado por Inocência Mata (2001, p. 110). Na mesma antologia aparece o poema “Rumo”:
É tempo, companheiro!
Caminhemos...
Longe, a Terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz
Da Terra... (idem, p. 189)
É essa Terra, alegorizada pela maiúscula, que aparecerá martirizada, com o futuro barrado,
quase diria, nos poemas de Alda Espírito Santo e nos de Noémia de Sousa. Ambas nela
imergem de cabeça, buscando desesperadamente a nação por vir e soltando suas vozes em
chama, a clamarem pela libertação. A “devastação” se apresenta em todo o seu
dimensionamento trágico na fala poética de Alda e Noémia, em longos poemas de versos
soltos que se desdobram, com freqüência, em um ritmo frenético, conforme se dá em “Se me
quiseres conhecer” de Noémia que aparece em Mensagem, ano XIV, n. 3, em agosto de 1962 e
pelo qual o corpo-África devastado se projeta especularmente no eu-lírico feminino:
Esse poema de Noémia se faz uma espécie de ícone, sendo antologizado com freqüência, até
hoje. No caso do corpus, vê-se que reaparece em Poetas de Moçambique, 1962 (Antologias,
1994, v. II, p. 217). Manuel Ferreira não o seleciona.
Um outro texto da poetisa que significa também um grito pela inclusão do homem negro e um
gesto de denúncia do vazio histórico no qual ele está imerso é “Deixa passar o meu povo”. Ele
aparece na antologia de Mário e Tenreiro, reaparece na da CEI de 62 e volta nos 50 poetas,
assim criando uma cadeia repetitiva que atesta a sua importância no espaço da consolidação
canônica. Ganha densidade, nos poemas de Noémia, um “novo processo de subjetividade” que
ultrapassa o indivíduo, penetra no coletivo e, com isso, leva-nos a assistir a um “espetáculo da
alteridade”, usando palavras de Homi Bhabha (1998, p. 180). Também gostaria de lembrar
uma instigante análise de Isabel Allegro de Magalhães, que adverte: “perante a sociedade sem
horizontes no retorno, o sujeito refugia-se na escrita, como horizonte de viagem por dentro de
si, com a palavra como única possibilitação de acesso a um futuro” (2002, p. 317). Agora, sim,
Noémia:
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Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar
Minha mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando do negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do meu sangue e da mesma seiva amada de [Moçambique
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças
[...]
Todos se vêm debruçar sobre meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso [do rádio
– “let my people go
oh let my people gol”.
(50 poetas, 1989, p. 356)
Essa “seiva amada” e o retrato do povo martirizado se deslocam, nos poemas de Alda Espírito
Santo, de Moçambique para São Tomé. Também ela encena um desfile de seu povo, dando
corpo, por sua vez, àquele novo processo de subjetividade, a que se refere Bhabha. Por isso,
ela recria os seus “Angolares” também uma peça poética densamente antologizada. Na
Mensagem, ano XV, n. 2, jun./1963,
lá encontramos aquela
Canoa frágil, à beira da praia
[...]
canoa flutuante por sobre as procelas das águas
lá vai o barquinho da fome
Rostos duros de angolares
na luta com o gandú
por sobre a procela das ondas
remando, remando
no mar dos tubarões (p. 19)
O mesmo texto retorna em Poetas de S. Tomé e Príncipe, também de 1963 (Antologias, 1994,
v. I, p. 307-308) e em várias outras recolhas. O longo poema “Onde estão os homens caçados
neste vento de loucura”, no qual ela reencena com raiva e dor o massacre de 1953, é
igualmente uma peça de resistência e um libelo contra a devastação dos “barões assinalados”
e a sua ação predatória nos lugares para onde o mar os levou:
Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário
as vidas queimadas,
erguem o coro insólito da justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus
— Que fizestes do meu povo?
— Que respondeis?
— Onde está o meu povo?
(Antologias, 1994, v. I, p. 306)
148
Na seleção de Manuel Ferreira, o poema sofre cortes, o que é uma pena. De todo modo, Alda,
em eco com Noémia, encena o povo, trazendo-o “em grande” para a cena poética,
denunciando o massacre que existiu historicamente, mas fazendo dele metáfora e bandeira.
Nesse momento, com as vozes em chama dessas duas mulheres, já não há hipótese de
conformismo e, de certo modo, “sacralizam-se”, duplamente, voltando a ter o papel simbólico
originário e passando a pertencer ao catálogo, ou seja, fazem-se vozes canônicas e rompem
com a teia pela qual as mulheres se silenciavam. Tornam-se, parodiando Noémia, um
“instrumento” do “sangue” de um povo “em turbilhão” que, assim convocado, não
pode deixar de passar.
ARREMATES
Abstract
This is an analysis of the African female poetic production circulating in various cultural media between
the late 40s and the early 60s. They stage, on the one hand, gender issues, and on the other hand,
ethnic questions, either emphasizing the latter or not. The cultural media on which these reflections are
based are Bulletin Ménage ad Casa dos Students do Imperia (Newsletter Message from the Empire
Students’ House); anthologies edited in that House; Journal de Angola (Angola Journal), and other
anthologies such as Poesies Negro de expression Portuguese (Black poetry in Portuguese), organised by
Mario Pinto de Andrade and Francisco José Terrier. The analysis shows the course from aesthetic
assimilation to the reafricanisation of rhythms, sounds and the themes themselves. In that subversive
149
process of re-africanisation the poetic voices attempt to subvert the Western aesthetical and ideological
patterns culturally imposed by colonisation.
Key words: Female African poetry; Literary anthologies; Re-africanisation
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150
O itinerário da poesia angolana revela-nos a história de uma tradição literária cuja nota
dominante se dá pela imagem do desassossego. Estamos ali diante de uma produção que
radicalizando a capacidade que tem a literatura de captar e semear inquietações, expõe sua
perplexidade ante as muitas faces que a vida apresenta e revela-se ansiosa ante o jogo de
expectativas que a História, sutil ou diretamente, impõe. Fazendo-se nas linhas do pacto com a
natureza, penetrando por entre as malhas de projetos eticamente definidos, revolvendo o corpo da
guerra que fratura o imaginário e o cotidiano daquele povo ou situando-se nos confusos quadros
da cena amorosa, essa poesia tem se caracterizado pela vontade de transformação e pelo desejo
de se inscrever num terreno mais amplo do que aquele, em geral, detectado por alguns setores da
crítica literária.
Do conjunto de atores dessa história literária tão legitimamente convulsionada, este
trabalho vai buscar entre os inquietos um dos mais dessassossegados: falo do poeta Ruy Duarte de
Carvalho. Nele, a inquietude, logo convertida em lucidez criativa, se vai materializar na própria
diversidade de expressões que o singulariza como artista. Poeta e ficcionista, Ruy Duarte, além da
palavra, percorre o universo da pura imagem e do movimento, traduzindo assim um modo de estar
no mundo que o desenho e o cinema ajudam a completar. Sobre a vida, nem sempre camarada, o
poeta-cineasta vai lançando a palavra e a câmera e extrai do real a luz e a sombra poéticas que o
momento, às vezes, nem sabe que fermenta. Sob o signo da letra e/ou com a cumplicidade para
além do verbo, sua obra se tem definido pela pluralidade e não abre mão dos materiais
acumulados na experiência da vida diária, transformando seu chão em matriz de sentidos.
A diversidade do exercício artístico, todavia, não esconde a raiz da procura: um desejo de
conhecimento do mundo que necessita a um só tempo, do rigor vertical e do movimento oblíquo
com que seus gestos captam os sinais, misteriosos ou não, que uma leitura passiva não deixa ver. A
decifração exige também do leitor uma certa dose de engenho e arte. Dimensionada pela presença
dos quatro elementos básicos, essa poesia procura organizar referências que brotam de uma
paisagem onde se cruzam a depurada exatidão das superfícies planas e a combustão de um
continente em brasa. A História se pauta, então, pela noção de uma geografia elaborada no curso
da memória, cujo movimento permite refazer muitas lavras, dizimadas pela exigüidade de outras
chuvas.
A particularidade dessa produção pode ser melhor compreendida com a incorporação do
fato biográfico como dado dinamizador do processo interpretativo. Isso porque não é difícil
perceber que em Ruy Duarte de Carvalho, com o escritor convive o regente agrícola e a memória
dessa atividade contamina a concepção literária por ele realizada. Afeito aos investimentos físicos,
faz do seu um trabalho de mineração da palavra. O perfil de uma especial face angolana que ali se
pode ler monta-se através da convergência de signos como fogueiras, lavras, savana, costa,
dambas, gados e guerreiros... Todos organizados segundo o princípio da contenção e favorecendo
uma sintaxe que escolhe evitar a gratuidade da palavra enfeite. Ao revolver o terreno, o poeta
assinala o próprio gesto, refletindo a visibilidade de um movimento que é também poético. A
poesia ultrapassa assim o resultado e se mescla mesmo à operação com que se transforma a
matéria. A paixão pelo rigor, mansa e extrema, garante a direção de uma “linguagem mais grata
que o silêncio” (Duarte, 1998, p. 17), como aspira o poeta no Hábito da Terra.
Nessa tentativa de compor o mapa da arte de dizer e, ao mesmo tempo, percorrer a terra,
ele investe na luta para encontrar uma palavra tão plena como aquele “silêncio que excede a
distância” (Idem, Ibidem). Seu verso, lâmina afiada, vai cortando as camadas que se possam
interpor entre a carne das coisas e seu verbo luz. Uma poesia assim não pode prescindir de todo
um inventário que a terra oferece: para o texto vão convergir “o espírito do lago”, “o olhar
151
crepuscular das feras”, “a indiferença das grutas”, “o cheiro das manadas”, “a memória do sangue”,
“as mulheres sentadas, lavrando acordos entre o gesto e o fogo” (Idem, Ibidem, p. 19).
A presença de tais elementos articulados numa dicção muito específica traz para a poesia
angolana o reino do Sul, onde o poeta esteve “pastoreando mulolas e anharas / claras / como
coxas recordadas em Maio” (DUARTE, 1976, p. 13). Ao espaço do musseque tão bem tematizado
pela produção luandense por nomes como Luandino Vieira e Jofre Rocha, vêm juntar-se, no mapa
da literatura angolana, as savanas e o deserto. Com isso, uma nova noção de carência se apresenta
e, uma vez mais, sagra-se a aposta, um tanto angustiada, na palavra como possibilidade de resgate
de verdades que se vão perdendo. Exercício de aprendizagem, escrever se impõe como um ato que
pode desvendar a fisionomia heterogênea do real, posto que o verbo se faz instrumento de
descoberta e análise.
A lição que vem dessa paisagem tão menos verde, tão mais desabitada, impõe ao escritor
uma rigorosa economia. É fundamental extrair do mínimo o rendimento máximo, aproveitar de
modo extremo a exígua fertilidade desse solo árido. Os procedimentos artísticos caminham, pois,
no rumo da condensação. Não há espaço para derramamentos ou facilidades verbais: a densidade,
combinada com a contração, gera uma poesia quase mineral, nascida entre as frestas do terreno,
rejeitando qualquer excesso.
Com base na eleição do concreto como matriz de significados, privilegia-se a concisão. A
expressão se faz através de movimentos e imagens que mais contraem do que relaxam. A opção
por essa lógica que pretende tangenciar a objetividade das referências vai aproximá-lo de um
poeta brasileiro que também prefere cantar a palo seco. Entre o canavial e as cidades percorridas
por João Cabral de Mello Neto e as anharas pastoreadas por Ruy Duarte de Carvalho, ergue-se uma
ponte traçada a régua e compasso, pelas linhas da concisão e da lucidez. Na base do trabalho de
ambos, se pode notar o rigor de quem escolhe recusar a metafísica e a metafórica convenção
poética.
Dessa decisão resulta uma gramática que redimensiona a poesia pela noção de trabalho,
fazendo do poema um lugar onde se explora o potencial literário do real, onde a palavra, sem
esvaziar a sua poderosa carga simbólica, inaugura sentidos e redescobre verdades encobertas.
Cada um desses autores, integrado ao solo sobre o qual caminha, busca atingir a expressividade
máxima com um mínimo de desgaste. Para isso, investem na seleção de realidades poeticamente
essenciais, o que também significa converter em poesia objetos e cenas que os repetidos passos do
cotidiano tendem a trivializar. O insólito achado pode, portanto, recair na “palha da cana”, no
mandacuru da “caatinga tolhida e raquítica”, no “motorneiro de Caxangá”, como ocorre em João
Cabral, ou nos “areais das dambas”, nos “caminheiros da estepe” e nas “pedras concavadas de
moer farinha”, como aponta Ruy Duarte de Carvalho. Desses objetos, seres e cenas nem sempre
muito próximos ao fenômeno literário, os dois escritores procuram desentranhar poesia. Para tal,
utilizam-se, coerentemente, de técnicas e termos apanhados na contramão da tradição lírica.
Colocando-se contra o uso neo-simbolista da imagem, Ruy Duarte não cede à tentação do
onírico que medula certas opções líricas. Prefere afastar a concepção de poesia como Dom,
exercendo radicalmente o controle de seu ofício. Desse modo, não se entrega à deriva e requer
para si o dever e o direito de dar as cartas. A ambigüidade de seu texto, que não raro, torna-o
hermético, se apóia, então, na construção de uma linguagem cuja sintaxe vai prevalecer sobre a
crença na existência de um ilusório vocabulário poético. Essa poesia distancia-se, assim, do caráter
de exposição de motivos e/ou projeção de símbolos, para se afirmar enquanto um jogo em que a
relação entre as palavras é o eixo capaz de assegurar o sentido e a direção buscados pelo poeta, tal
como ele nos revela em “Casos”:
..............................................................................................................Não
poderia traduzir palavras. Optei assim por traduzir a forma e descobrir
palavras que acrescentadas de outras são palavras novas. Perdidas no
discurso, se uma palavra à frente não bebesse delas e as não dissesse
exactas onde importa sê-lo, ninguém diria do valor que têm. Não traduzi
sentenças, modelei linguagens, e comovido constatei, perplexo, que tudo o
que diziam eram sentenças fundas, iguais às que aspirara ouvir um dia.
(DUARTE, 1998, p. 14)
Mais do que sugerir, a palavra incorpora ali, como em Cabral, a função de presentificar
experiências, materializar leituras do mundo e de outras linguagens, exercício que também cabe à
poesia. Nesse momento, o poeta reclama para si a tarefa de refletir sobre a sua escrita e, desse
modo, assoma ao campo que lhe é específico: o da luta com a linguagem. É precisamente nessa
arena que ele pode expor a sua destreza, articulando a percepção madura das coisas com a
extraordinária capacidade de registrá-la, reiventando alguns sinais, recuperando outros, recriando
leituras e leitores para o que está na vida, a pedra ou as areias, tudo vale.
A aproximação entre esses dois universos poéticos também se pode observar na relevância
da linguagem de outras artes no processo de realização de seus textos. Em Cabral, são conhecidas
as referências a Miró, Mondrian e Picasso, para lembrar apenas alguns. No entanto, não é na mera
citação que o problema se esgota, pois, como bem afirma João Alexandre Barbosa, autor de
importante tese sobre o poeta, “[...] as relações entre a poesia e as artes visuais não se exaurem
nas alusões ou no uso das obras visuais como referentes do poema mas como instâncias de uma
meditação entre linguagens: a do poema e a das artes visuais” (BARBOSA, 1990, p. 107). Também
em Ruy Duarte o poema parece aprender a lição do visual, buscando imitar do mundo a forma que
a poesia quer traduzir. Aqui vale a habilidade do escritor que se apropria dos procedimentos
identificados com a vanguarda ocidental e os reinscreve no diálogo com um universo específico,
situado num espaço particular da geografia de Angola.
Em “Provérbios e citações”, um dos segmentos do Hábito da Terra, o último livro de
poemas publicado e ao qual foi atribuído o Prêmio Nacional de Literatura de 1989, o autor
reescreve falas dos povos Kwanyama e Nyaneka, desmontando e remontando sentidos, indiciando
transformações cujo anúncio a própria disposição dos versos ajuda a enfatizar. O poema, feito
imagem, exige ser visto, não pode apenas ser ouvido. A palavra ganha, assim, uma inequívoca
corporeidade que vai ultrapassar as fronteiras do som para tangenciar os limites do objeto.
Alguns anos antes, em Sinais misteriosos ... já se vê, publicado em 79, já se definia a
dimensão múltipla dessa produção artística, explicitamente afeita aos desafios postos pela vida e
pela História. Ali, além da evidência dos desenhos comprovando esse desejo de multiplicidade e a
consciência de que a relação com a linguagem se faz sob o signo da luta, os próprios textos trazem
o apurado gosto pelo movimento de quem quer mesmo representar uma realidade vibrátil, para
usar um adjetivo caro ao escritor. Os textos são também eles desenhados na página, ocupando no
horizonte gráfico um lugar adequado à verdade que registram e compatível com a forma do mundo
que o poeta não se furta a perseguir.
Nessa atitude de articular procedimentos associados à vanguarda e representações
culturais de povos situados à margem da escrita, podemos vislumbrar mais um sintoma da
inquietação desse intelectual. Ao trazer esse legado para a cena poética, ele dá curso ao desejo de
reiterar a sua presença no projeto da identidade cultural que, afinal, tem se colocado como uma
questão fundamental para muitos escritores e outros agentes culturais do país. Ao fazê-lo desse
modo, combinando a razão criativa com um problema de fundo no debate a respeito da
identidade, o poeta assuma uma das preocupações que o escritor (e ali falava também o
antropólogo) destaca num Colóquio realizado pela União dos Escritores Angolanos, em 87. Ali,
reconhecendo a existência de dois pólos culturais na formação da sociedade angolana, ele
assinalava “(...) por um lado, a necessidade de adequação à gramática das relações universais
(integração e conquista de um lugar de equiparidade no sistema de relações e trocas), por outro
uma valorização também necessária dos valores de raiz indispensáveis à evidência de uma
identidade dotada de uma profundidade histórica e conceptual” (DUARTE, s/d, p. 6). Está definido,
153
nessas palavras, o dilema que é, afinal, aquele que enfrentamos todos os que vivemos em
sociedades fraturadas por grandes contradições e tão fundas diferenças.
Essa aguda consciência histórica que remarca a produção de Ruy Duarte de Carvalho
também constitui uma via de aproximação com João Cabral. Ambos, a partir do rigor de uma
estética centrada no eixo da vanguarda, conferem estatuto de poesia a objetos, cenas e espaços
historicamente situados à margem. Da coincidência desse mesmo olhar oblíquo que projetam
sobre o real, emergem curiosamente as particularidades que podemos perceber em cada uma
dessas obras. Entre o solo inerte da caatinga ou o canavial visto do alpendre e o “regaço vítreo do
deserto”, por onde circulam primordialmente os dois poetas despontam diferenças a exigir um
instrumental diverso, do qual já não falo agora. Fica, quem sabe, para outro Encontro ou para outro
leitor.
Antes da conclusão, porém, chamo ainda a atenção para a profunda ligação que os
elementos aqui trazidos revelam existir entre Ruy Duarte de Carvalho e o solo de seu percurso.
Vale dizer que a geografia por ele traçada vai revelando a força do chão em que pisa na elaboração
de seu trabalho. Importa observar que a terra ali deixa de ser mãe, torna-se parceira, nem sempre
amena, nem sempre acolhedora. A imagem da doação ilimitada é substituída pela noção de
cumplicidade que mais do que entrega pressupõe empenho. Só assim ali se pode achar a “água
implícita” de que nos fala Drummond em “Amar”; só assim dali podem brotar modelos e irromper
as essenciais referências que serão trabalhadas no compasso da experiência cosmopolita aberta
pelo tempo à literatura e à arte.
Finalmente, para concluir, lembro que em João Cabral o ofício de poeta tem como
paradigma a pedra, que lhe vai oferecer a lição da racionalidade e da lucidez. Para Antonio
Candido, no seu famoso ensaio, em Álvares de Azevedo, o grande ensinamento vem pela noite,
onde se desvelam as “conotações de mistério e treva” (CANDIDO, 1987, p. 18) que estruturam o
discurso dilacerado de sua poesia. Em Ruy Duarte de Carvalho, patenteiam-se as marcas de uma
economia textual onde, ao lado das lições de rigor e concisão, se podem perceber as dobras de
uma discreta generosidade, em que a comunhão depende de um pacto que pode ser firmado entre
a terra e o agricultor, entre o cineasta e a câmera, entre o poeta e a poesia, entre o poema e o
leitor. Do interior desse código onde a fertilidade não se confunde com excesso é que emerge esse
processo literário a que eu não julguei mal chamar, com a licença de Cabral e do Antonio Candido,
uma educação pela terra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTOLOGIA
155
À MINHA TERRA
(No momento de avistá-la depois de uma viagem)
Dedicação
Ao meu compatriota O Ilmo. Sr. Joaquim Luis Bastos
Decantara nas guerras de Túnis, Mesmo assim rude, sem primores de arte,
De Granada, Marrocos e Fez, Nem da natura os mimos e belezas,
Das vitórias o brado incessante - Que em campos mil a mil vicejam sempre,
Contra mil - do quinhão Português. É minha pátria!
Minha pátria por quem sinto saudades,
Decantara um Afonso Guterres, Saudades tantas que o peito ralam,
Um Gonçalves, um Nuno Tristão E com tão viva força qual sentiste,
Que primeiros levaram à pátria Quando no cume da Tijuca altiva
Os cativos do ardente torrão. Meditando escreveste em versos tristes,
Versos que tanto amei, e que amo ainda,
Entre estes, também decantara As saudades dos lares teus mimosos!
Um Gonçalo de Sintra, que ousado É minha pátria ufanoso o digo!
Num esteiro nadando morreu Deu-me o berço, e nela vi primeiro
Penetrando Guiné conquistado. A luz do sol embora ardente e forte.
Os meus dias de infância ali volveram
Decantara-os! - Mas que, minha terra No tempo ao coração mais primoroso,
Não tem Vate por Deus inspirado; Nesses dias ditosos, em que apenas
Não é pátria do divo Camões Ao mundo despertado, vi e ouvia
Tão poeta, quão bravo soldado. Por sobre os lábios meus roçarem beijos,
Beijos de puro amor, nascidos de alma,
Não é pátria dos Vates da América De alma de Mãe mui carinhosa e bela!
Que em teus cantos, com maga harmonia,
Na Tijuca em seu cume sentado Foi ali que por voz suave e santa
Decantaste em tão bela poesia. Ouvi e cri em Deus! É minha pátria!
Vi as belezas da terra,
Da tua terra sem igual,
Mirei muito do que encerra
O teu lindo Portugal;
E se invejo a lindeza,
Da tua terra a beleza,
Também é bem portuguesa
A minha terra natal.
AGOSTINHO NETO
ASPIRAÇÃO CRIAR
Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas
Criar criar
Ainda criar no espírito criar no músculo criar no
o meu sonho de batuque em noites de luar
nervo
ainda os meus braços criar no homem criar na massa
ainda os meus olhos criar
ainda os meus gritos criar com os olhos secos
(Sagrada esperança)
160
Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela Para aqui estou eu
sobre a onda sobre a nuvem Mussunda amigo
com as asas primaveris da amizade Para aqui estou eu.
A vida, a ti a devo
à mesma dedicação, ao mesmo amor
Mas concreto com que me salvaste do abraço
vestido do verde da jibóia
do cheiro novo das florestas depois da
chuva à tua força
da seiva do raio do trovão que transforma os destinos dos homens.
as mãos amparando a germinação do
riso A ti
sobre os campos de esperança amigo Mussunda, a ti devo a vida.
E escrevo
versos que tu não entendes!
A liberdade nos olhos Compreendes a minha angustia?
o som nos ouvidos
das mãos ávidas sobre a pele do Para aqui estou eu
tambor Mussunda amigo
num acelerado e claro ritmo escrevendo versos que tu não
entendes.Não era isto
161
Assim Inseparáveis
o caminho das estrelas caminhando ainda para o nosso sonho.
pela curva ágil do pescoço da gazela
para a harmonia do mundo.
162
ANTONIO JACINTO
CARTA DE UM CONTRATADO
(Poemas)
Tacula: madeira avermelhada; Dilôa: barro escuro, lodo; Macongue: Fruta de polpa doce e
macia; Maboque: fruto azedo de casca grossa; Capôpa: rio pequeno; Palancas: antílopes
163
ANTONIO JACINTO
MONANGAMBA
VIRIATO DA CRUZ
SERÃO DE MENINO MAKEZU
O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Na noite morna, escura de breu, Já não tem a cor berrante
enquanto na vasta sanzala do céu, Que tinha nos outros anos
de volta de estrelas, quais fogaréus,
os anjos escutam parábolas de santos... Avó Xima está velhinha
Mas de manhã, manhãzinha,
na noite de breu, Pede licença ao reumático
ao quente da voz E num passo nada prático
de suas avós, Rasga estradinhas na areia...
meninos se encantam
de contos bantos... Lá vai para um cajueiro
“Era uma vez uma corça Que se levanta altaneiro
dona de cabra sem macho... No cruzeiro dos caminhos
....................................... Das gentes que vão p’ra Baixa.
... Matreiro, o cágado lento
tuc...tuc... foi entrando Nem criados, nem pedreiros
para o concelho animal... Nem alegres lavadeiras
(“- Tão tarde que ele chegou!”) Dessa nova geração
Abriu a boca e falou - Das “venidas de alcatrão”
deu a sentença final: Ouvem o fraco pregão
“-Não tenham medo da força! Da velhinha quitandeira.
Se o leão o alheio retém
- luta ao Mal! Vitória ao Bem! “Kuakié!...Makèzù, Makèzù...”
tire-se ao leão, dê-se à corça.” “Antão, véia, hoje nada?”
Mas quando lá fora “Nada, mano Filisberto...
o vento irado nas frestas chora Hoje os tempo tá mudado...”
e os ramos xuaxalham de altas mulembas
e portas bambas batem em massembas “Mas
(*) tá passá gente perto...
os meninos se apertam de olhos abertos: Como é aqui tás fazendo isso?”
- Eué
É casumbi... (*) - Não sabe?! Todo esse povo
E a gente grande - Pegô um costume novo
bem perto dali Qui diz qué civrização:
feijão descascando para o quitande - (*) Come só pão com chouriço
a gente grande com gosto ri... Ou toma café com pão...
Com gosto ri, porque ela diz E diz ainda pru cima,
que o casumbi males só faz (Hum... mbundo kène muxima...)
a quem não tem amor, aos mais Qui o nosso bom makèzù
seres buscam, em negra noite, É pra veios como tu”
essa outra voz de casumbi
essa outra voz - Felicidade... Eles não sabe o que diz...
Pru qué qui vivi filiz
(*) Onomatopéia. O barulho do vento na copa das árvores E tem cem ano eu e tu?
(*) Massembas- umbigada “É pruquê nossas raiz
(*) Kazumbi – Fantasma Tem força do makèzù...”
(*)Quitande: purê de feijão
165
NAMORO
Mandei-lhe um cartão
Para me distrair
que o amigo Maninho tipografou:
levaram-me ao baile do Sô Januario
"Por ti sofre o meu coração"
mas ela lá estava num canto a rir
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
contando o meu caso
E ela o canto do NÃO dobrou
as moças mais lindas do Bairro Operário.
BOAVENTURA CARDOSO
NOSTEMPO DE MIÚDO
CARDOSO, Boaventura. Dizanga dia Muenhu. São Paulo: Ática, 1982, p. 27-30
Manecas na baliza imobilizou o avanço. Bola marchando, Pedrito puxa para Lito, este
corre já em direção à linha divisória, entretanto, o sete recebe-lhe o esférico, finta
brasadamentc, tenta distribuir o jogo, corta agora Nené Gordo, miá, Cachaça dono do
esférico, vai agora! remata rasteiro para Zeca em progressão, estica para o lado direito e a
bola lateralmente fugindo. Pontapé no canto. Zero zero, tabuada em branco. Pernas
velozes pisávamos espaço retangular, suarentas catingas, transpirávamos, nós
camisolados, eles costas reluzentes. Na corrida outra vez, jogada agora no campo de lá,
avança Totoxe (tem Xaxa - do nome dele outro), corta, miá, miá, mialalá*, Paulo
aparecendo leva faiscadamente o esférico, atenção!, jogada lixada, defensiva formada na
batiza azarenta, e remata por cima da trave! Jogo renhido no Campo da Companhia
Indígena. Trumuno* com altos e baixos, ninguém que tinha tempo para descansar só. Bola
que andava já, jogo ainda em campo metade, o cinco dominando a situação, tenta passar
para o oito, surge Paulo, não consegue, jogo então veio no nosso campo. Bucho se
defende, Quinzé secunda, faz uma revienga*, miá, dá para Rataças. É pontapé de baliza.
Maxinde contra Quinze de Agosto. Defensiva preparada, Zeca capitão da turma na voz de
comando. Suor banhando corpos movimentados. Rasteiradamente a bola corre a nos
trazer azar, mas surge Manecas ... Boa defesa!
Jogávamos esquecidos de tudo, até dos exames que estavam vizinhos. Traquinice nos
tempo de miúdo. Paramos e olhamos. Respiração batucante ainda. Manecas traz a bola! -
vozeamos. Guardião na fuga rápida com o esférico de borracha. A interrogação prendia
nossos pensamentos. Ó Manecas, traz a bola! - vozeamos juntamente. Olhares de
pergunta nos outros. Rataças, corpo mosquito, dá também de correr. Corre! Lhe agarra
mesmo! - dissemos no íntimo.de cada um. Nos enganamos. Pedrito, Lito, Totoxe, quê que
há?, também no ensaio do passo corrido. Companhia Indígena toda, cinturões
desapertados, eué!, no cerco do retângulo. Vão nos agarrar!
Manecas foi o primeiro quem lhes topou na preparação do cerco. Desafio suspenso no
campo dá desafio fora do jogo, sem penalidade. A velocidade nos pés era grande, nem
mesmo que compreendíamos só como é que estávamos a correr então. Nené Gordo
empalitava maravilhosamente na berrida. Muros altos eram terra plana em nossas pernas
correndo. Soldados disparados atrás de nós, cavalgando metros.
Que que foi, meninos? - Tia Cristina pegou susto.
A resposta ninguém que dava. Nem já só fala para falar. Nada. Cada um na busca de
lugar seguro. Ouvimos então as vozes e os passos soldadescos. Aí o coração que se ia
lixando. No entendimento da nossa aflição, Tia Cristina lhes esperou mesmo lá fora. Aqui?
Não, senhor, não vi meninos entrar.
Traquinice nos tempo das férias? Eh! Se vos conto, me pagas quê então? Bem. Era uma
vez ... , não me lembro mais. Ih! Não faz mais truques, pá. Conta lá, pá. Gente de paz, é a
história que vou pôr. Aconteceu nos tempo das confusões um dia; palavra d'honra.
Ninguém si ri.
Já nos tinham avisado. Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e um * quente.
Cuidado! Pimentel barbudo sanguinário, olhos na mira fúnebre. Sô Rocha nacionalista
fogoso já lhe mataram então. Cuidado! Seis horas recolher. Patrulha atirar só. Sessenta e
um quente.
Vínhamos andando assustados. Nove horas da noite, a corneta tocara fazia tempo.
Maxinde-Katepa parecia tinha distância. Na porta d'armas ainda que passamos bem.
Sentinela só nos olhou mau. Fomos andando, andando. Silêncio, ninguém que passava
só. Capim alto era surpresa escondida no caminho da noite.
Zeca (pai dele lhe chamavam Canhoto) me deu coragem: "Se nos perguntarem quem vem
aí, vamos falar é gente de paz. Em Luanda uma vez ma safei assim". Nem lhe ouvi mais.
167
Vocabulário
Chui - policial
Miá, miá, mialalá - torcida (N. E.)
Pópilas - exclamação equivalente a "ora bolas!" (N. E.)
Revienga - finta, drible (N. E.)
Sessenta e um – 1961, ano em que tiveram início as ações armadas nacionalistas
contra o colonialismo (N.E.)
Trumuno - desafio de futebol (N. E.)
Ximba (cipaio)– policial angolano a serviço da repressão colonial portuguesa (N.E.)
168
Fruta do paraíso
As coisas delicadas tratam-se com cuidado companheira dos deuses
(Filosofia cabinda) as mãos
tiram-lhe a pele
dúctil
como, se de mantos
Desossaste-me se tratasse
cuidadosamente surge a carne chegadinha
inscrevendo-me fio a fio
no teu universo ao coração
como uma ferida leve
uma prótese perfeita morno
maldita necessária mastigável
conduziste todas as minhas veias o cheiro permanece
para que desaguassem para que a encontrem
nas tuas os meninos
sem remédio pelo faro
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe
***
Compraste o meu amor
Com o vinho dos antigos
Sedas da Índia
anéis de vidro
Sou tua, meu senhor
À segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira
E também preparo funje aos sábados
Não não me peças o domingo
Todos os deuses descansam
E sei também das concubinas
O horário de serviço
***
É sempre à noite que mais dói
Dizia-me o amigo
Chega a febre
O cheiro ácido do pântano
O silêncio gelado dos nossos mortos
A presença inquieta dos outros
O lento movimento das dunas
***
Para onde eu vou
Ferve a luz
Debaixo dos tectos
Há ontem e amanhã
Amores com pele de líquen
Sonhos azuis pelas esquinas
Ali não é preciso nada
Guardamos o lugar
Com palavras
Olhamos uns para os outros
E vamos, cada vez mais pobres
Tapar o sol com a peneira
Olha-me este país a esboroar-se Quem pouco fala não diz nem bem nem mal
em chagas de salitre e o morto, no caixão
e os muros, negros, dos fortes não tem voz ativa.
roídos pelo vegetar Tu, quando falas
da urina e do suor matas os da cobra
e os da hiena
a carne virgem mandada vão para a sepultura.
cavar glórias e grandeza
do outro lado do mar. Para que nós, na desgraça, não roubemos
Olha-me a história de um país perdido: para que nós, viajantes, não roubemos
marés vazantes de gente amordaçada, ninguém
a ingênua tolerância aproveitada Senhor, Deus de Nangobe
em carne. Pergunta ao mar, dá-nos a chuva.
que é manso e afaga ainda
a mesma velha costa erosionada. Avô dos miseráveis
Mãe dos pobres
Olha-me as brutas construções quadradas: Tio dos famintos
embarcadouros, depósitos de gente. Mãe, Avô e Tio dos que caem nos caminhos
Olha-me os rios renovados de cadáveres, da fome
os rios turvos de espesso deslizar faz sair a chuva
dos braços e das mãos do meu país. faz crescer os mantimentos
inunda-nos com a tua água.
Olha-me as igrejas restauradas Ajuda os pobres, Deus de Nangobe.
sobre ruínas de propalada fé:
paredes brancas de um urgente brio Cai chuva
escondendo ferros de educar gentio. e traz-nos a bênção
do canto das rãs.
Olha-me a noite herdada, nestes olhos
de um povo condenado a amassar-te o pão. Aonde dorme, a chuva?
Olha-me amor, atenta podes ver Na figueira da Haudila?
uma história de pedra a construir-se Nos grandes paus de Solela?
sobre uma história morta a esboroar-se Eu queria o vento.
em chagas de salitre.
Eu queria a tempestade
e a faísca que levanta
1976, A decisão da idade pela raiz
a pequena palmeira.
A massambala seca
a semente definha
e a rama murcha.
173
1.
Atento, desde sempre, às falas do lugar, nada sei dos sinais se os não confirmo no encontro da
memória com a matriz, quando a carência impõe esforços de equilíbrio não entre o corpo e as
formas que o sustêm mas entre as margens de uma paragem breve. Registo acasos que
desmentem datas e só as não confundem porque é mesmo assim; regularmente e a confirmar
a história Que se constrói, a vida, um texto? Em busca das coordenadas recorro diligente à
pauta de um compasso para saber no texto em que me inscrevo o que se sabe do que havia já,
as leis que alguma angústia desvendasse, o legado da argúcia, a vocação da pausa.
Um texto é como um esforço de existir. A intenção de um lado, uma proposta vaga, uma moral
herdada. Do outro lado o curso das palavras, a esteira do seu eco, os sons e os gestos seguidos
uns dos outros, um som que pede um som e essa resposta é já um bolbo de emoção autónoma
de força para florir madura, à revelia da intenção primeira.
Assim na vida, quero dizer, no texto. Uma questão de sons, de gestos repartidos, mas já numa
cadência que depois está lá. A coerência a haver a comandar o ritmo e a garantir a forma. De
que adianta iluminar-lhe o chão?
1988, Hábito da terra
174
Os duros trabalhos que lhe foram dados para fazer na Herdei-a sozinho
ombala: Não a como assim:
Vedar com uma linha um rombo num tanque
Varrer as macutas sem usar vassoura O dar não molesta o braço
Com a ajuda de um cesto transportar a água nem dorme com espinho a mão que afagou
Abater um boi apenas com as mãos durante o dia.
Derrubar um pau só com as próprias unhas
Secar a farinha espalhando-a na água. Zebras sem guiam perdidas na corrida....
Raia o sol, continuamente
abater um boi com a ajuda de um cesto E o povo pensa que há contentamento.
derrubar um pau sem usar vassoura Mas não nos surge a lua
secar a farinha apenas com as unhas Destroçada
transportar a água espalhando-a na água A renovar-se sempre
varrer as macutas servido de agulha Mutilada?
Vedar a farinha
Derrubar as unhas
esfolar as agulhas
abater os tanques
transportar os rombos
varrer as ajudas
secar os apenas
derrubar as linhas
derrubar as linhas
derrubar as linhas
derrubar as linhas. (1988, Hábito da terra)
175
e então pensei:
DAVID MESTRE
O SOL NASCE A ORIENTE PORTUGAL COLONIAL
(de um quadro de Malangatana)
Nada te devo
nem o sítio
Povo, de ti canto o movimento onde nasci
teu nome, canção feita de fronteiras
lua nova, javite ou lança
tua hora, quissange em trança nem a morte
que depois comi
nem a vida
Do longo longe do tempo
arde minha flecha, meu lamento
minha bandeira de outro vento repartida
aurora urdida nos lábios de Zumbi pelos cães
De ti guardo o gesto nem a notícia
as conversas leves das árvores
a fala sabia das aves
o dialeto novo do silêncio curta
e as pedras, as palavras do medo a dizer-te
os olhos falantes da mata que morri.
quando a onça posta a sua arte
nos fita, guardada em sua mágoa.
nada te devo
De ti amo a denuncia felina
das tuas mãos quebradas ao presente Portugal
a dança prometida do sol colonial
nascer um dia a Oriente
cicatriz
doutra pele
apertada
in No reino de Caliban II,
antologia panorâmica de poesia africana de
expressão portuguesa
JOÃO MAIMONA
ARTE POÉTICA
Que erosão
no choque genésico das marés
de encontro às pedras habitadas.
JOÃO TALA
OS DIAS FUNDAM BREVES CAMINHOS SOBRE AS ONDE ESTÁ O MEU POEMA?
PALAVRAS
LUGAR ASSIM
(para o José Luís Mendonça)
fecundam as ventanias
da mão
(Chuva novembrina)
181
subespécies do submundo
é de um breve negro
surtos de subepidemias
do subdólar somos