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0009
Olegna Guedes*
Silmara Carneiro e Silva**
Abstract: This paper is based on the assumption that the analysis of the aspects of
classical contractualism helps the understanding of the ideals upon which modern
state is founded. Based on natural law, Hobbes, Rousseau and Locke formulate
theories that have different interpretations of concepts that structure modern
political thought. Their conceptions provide theoretical elements that support the
analysis of the relations between the state and civil society in face of the ideological/
political game in which they are structured nowadays. Based on this analysis, this
papers aims to discuss the fundamental aspects of classical contratualism and
demonstrate how they aid the analysis of contemporary political thought.
Keywords: Natural Law. Contractualism. Political Thought. Modern State.
*
Dra. em Serviço Social pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Docente do Curso de Graduação e Pós Graduação
em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bolsista Produtividade da Fundação Araucária -Apoio
ao desenvolvimento científico e tecnológico do Paraná. E-mail: olegnasg@gmail.com
**
Doutoranda em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Assistente Social da Secretaria de
Estado da Família e Desenvolvimento Social do Paraná Ponta Grossa, Paraná, Brasil. E-mail: verdesilmara@yahoo.com.br.
Emancipação, Ponta Grossa, 13, nºEspecial: 133-143, 2013. Disponível em <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao 133
Olegna Guedes; Silmara Carneiro e Silva
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Aspectos do Contratualismo Clássico na Formulação do Ideário do Estado Moderno: Subsídios...
moderna nascente, sob um mesmo conjunto E, nessa busca, destacam-se três motivos para
de premissas interpretativas, cada filósofo con- a constante discórdia: “Primeiro, a competição;
tratualista, à sua maneira, construiu diferentes segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.”
argumentos que sustentaram suas distintas Hobbes (1979, p. 75). E, se é assim, porque en-
interpretações sobre a soberania e ofereceram tão a necessidade da sociedade? Para o autor, a
socialização se constrói devido ao desejo huma-
explicações que contribuem para a compreensão
no de segurança, mediante o medo da opressão.
das relações ideológicas e políticas que compu- Assim, procura-se “[...] ajuda na associação, pois
seram o período de estruturação das bases da não há outra maneira de assegurar a vida e a
sociedade moderna. Portanto, as explicações liberdade.” (HOBBES, 1979, p. 61).
teóricas construídas por Hobbes, Locke e Rous- No estado de natureza, para o autor, o
seau, sob as determinações do período histórico homem não encontra outros meios para sua pre-
em questão, expressam particularidades da servação e proteção que não seja o uso da força
interpretação que cada autor faz acerca dos e ou da astúcia, o que não é seguro e nem estável
elementos históricos e políticos presentes no para sua conservação. Nas palavras do autor,
contexto em que estavam inseridos. [...] nenhuma maneira, de se garantir [a se-
Dentre esses autores, Hobbes (1588-1679) gurança] é tão razoável como a antecipação;
é o precursor. Nasceu em um contexto político isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar
desfavorável para a Inglaterra. Viveu durante o as pessoas de todos os homens que puder,
período da reforma anglicana e acompanhou o durante o tempo necessário para chegar ao
efervescer da Inglaterra imersa na guerra dos 30 momento em que não veja qualquer outro po-
anos. Esses são alguns dos fatos históricos que der suficientemente grande para ameaçá-lo.
corroboram para a formação de uma análise pes- E isto não é mais do que sua própria conser-
vação exige, conforme geralmente admitido.
simista da realidade construída por Hobbes e que
(HOBBES, 1979, p. 75).
permitem identificá-lo como um sujeito temeroso
mediante o contexto de fragilidade política no Mediante o estado de natureza, na tradi-
qual vivera. O próprio filósofo apresenta-se: “mi- ção hobbesiana, o direito natural compreende
nha mãe pariu gêmeos, eu e o medo” (HOBBES “[...] a liberdade que cada homem possui de
apud RIBEIRO, 1984, p. 11). Ressalta-se, assim, usar seu próprio poder, da maneira que quiser,
na sua argumentação política, a defesa da troca para a preservação de sua própria natureza, ou
da liberdade, que interpretava como inerente ao seja, de sua vida; [...]” (HOBBES, 1979, p. 78). A
estado natural, pela segurança oferecida pelo liberdade constitui-se, portanto, como um direito
Estado, corpo político formado mediante um con- natural de conservação do homem, ao passo
trato, por meio do consentimento dos homens. que considerando a lei da natureza, o homem
Hobbes parte da premissa de que os ho- deve se esforçar para viver em paz. Caso não
mens em estado de natureza estão em condições alcance meios para tanto, “[...] pode procurar e
de igualdade. Iguais tanto na força física como usar todas as ajudas e vantagens da guerra.”
espiritual; voltam-se aos mesmos objetos; são
(HOBBES, 1979, p. 78).
instáveis; portadores dos mesmos desejos; e
reúnem-se, sobretudo, motivados pelo desejo de A lei, na concepção hobbesiana, é enten-
se beneficiar da companhia do outro. E porque dida como um “[...] preceito ou regra geral, esta-
são iguais, e se voltam para a satisfação dos belecido pela razão, mediante o qual se proíbe
mesmos desejos, estão em constante disposição a um homem fazer tudo o que possa destruir
para a guerra, ou seja, são expostos a um estado sua vida ou privá-lo dos meios necessários para
de guerra de todos contra todos, traduzida na preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder
expressão Homo homini lúpus, que significa o contribuir melhor para preservá-la.” (HOBBES,
‘homem é o lobo do homem’. 1979, p. 78). É, portanto, uma forma racional
Na convivência entre os homens impera a encontrada pelo homem para garantir a sua pró-
desconfiança entre todos, sobretudo, pelo medo
pria vida. Entretanto, a guerra é ainda um meio
da morte violenta. Frente a tal desconfiança,
torna-se fundamental o instinto de conservação, utilizado para a preservação do direito natural à
pelo qual os homens buscam valer-se de qual- vida. Daí a necessidade do pacto, sem o qual,
quer forma, a fim de salvaguardar suas vidas. o homem apenas em seu estado de natureza
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Olegna Guedes; Silmara Carneiro e Silva
está em constante insegurança, medo e risco em Quando, finalmente, firmamos todo o pacto
relação à preservação da própria vida. Diante pelo qual se institui o Estado, cada um de nós
dessa condição, o homem consente ao Estado está cedendo algo no ato (o direito a todas
o poder soberano, mediante todos os homens. as coisas, de que antes desfrutávamos) – e
assim retira, de todos os outros, as razões
Através da celebração de um contrato, o
para a suspeita recíproca. O que é absoluta-
homem perde o direito natural à liberdade e em mente brilhante nesse caso é que o contrato
troca recebe proteção do Estado, o que estabe- de todos com todos faz com que cada qual
lece um estado de segurança entre todos. Em ocupe as duas posições, a de quem desconfia
Hobbes (1979, p. 80), o contrato configura-se (B) e a daquele de quem os outros deveriam
como “[...] transferência mútua de direitos [...]”. desconfiar (A). Cada um (A), cedendo de ime-
No caso do contrato firmado entre os homens diato, retira dos outros (os B) a razoabilidade
para a formação do Estado, uma lei se constituiu dele suspeitar. O caráter simultâneo da opera-
necessária entre os homens. ção faz com que, sendo todos A e B, a guerra
encontre fim. (RIBEIRO, 2006, p. 31).
Que os homens cumpram os pactos que ce-
lebrem. Sem esta lei os pactos seriam vãos, Nessa acepção hobbesiana de formação
e não passariam de palavras vazias; como o do Estado criam-se as condições políticas ne-
direito de todos os homens a todas as coisas cessárias ao enfrentamento do estado de guerra
continuaria em vigor, permaneceríamos na de todos contra todos, uma situação inerente às
condição de guerra. (HOBBES, 1979, p. 86). relações entre os homens em estado de natu-
reza, pois todos criam o Estado colocando-se
O Estado hobbesiano configura-se num
cada qual em posições recíprocas, portanto na
corpo político soberano capaz de proteger o
de desconfiar e na de ser alvo de desconfiança.
homem do próprio homem e das vicissitudes
A partir do contrato, os homens firmam um
inerentes à convivência humana em seu estado
compromisso no qual cada um não se coloca
natural. Sobre o poder do Estado Hobbes (1979)
exclusivamente nas posições de sujeitos ou ob-
afirma:
jetos de desconfiança. Mas, como cada qual sabe
O maior dos poderes humanos é aquele que aprioristicamente que no estado de guerra pode-
é composto pelos poderes de vários homens, ria, a qualquer tempo, ocupar ambas as posições.
unidos por consentimento numa só pessoa, Nessa nova relação, pautada na reciprocidade do
natural ou civil, que tem uso de todos os seus contrato, o homem deixa de desconfiar do outro,
poderes na dependência de sua vontade: é
na medida em que o outro demonstra ter deixado
o caso do poder de um Estado. (HOBBES,
de desconfiar dele também. Constitui-se, assim,
1979, p. 53).
a reciprocidade que advém da formação do con-
Diante dos elementos teóricos construídos trato e a afirmação do Estado enquanto instância
na teoria hobbesiana para interpretar a formação política soberana, criada pelos próprios indivídu-
do Estado Moderno, verifica-se que no ideário os, que se tornam no ato de criação autores do
construído por Hobbes, no Leviatã, o Estado ab- Estado, como forma de conquistarem uma forma
solutista configurava-se como a forma de gover- de conviver com segurança.
no que conseguiria melhor sanar as demandas Forma-se, portanto, uma sociedade civil
humanas. Sua soberania seria suficientemente regida por um corpo político governado por um
forte para impor limites aos homens, mediante homem artificial, maior que todos os outros ho-
a segurança proporcionada por algo que está mens, erigido por cada contrato, criado por esses
acima de todos os homens. Sua função seria homens, para governá-los – cuja soberania evita
garantir a manutenção do direito do homem à a morte violenta entre os homens e garante a
preservação, minimizando os riscos desse feito, preservação da vida e da paz entre todos. Cabe
mediante os motivos que levam os homens à ao representante legal o papel de atuar, carregar
discórdia. a máscara, ou seja, portar um rosto que não lhe é
Para Ribeiro (2006, p. 31), a interpreta- próprio e, como ator, deve engajar nos seus atos,
ção hobbesiana do Estado impunha a seguinte a vontade (o ato) dos homens (dos outros). Como
conclusão: autores, que concordaram com o pacto, cabe aos
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Aspectos do Contratualismo Clássico na Formulação do Ideário do Estado Moderno: Subsídios...
homens apenas obedecer ao governante para O estado de natureza tem uma lei de natureza
o qual entregaram, racionalmente, o poder de para governá-lo, que a todos obriga; e a ra-
atuar e de agir (Hobbes, 1979). O poder político zão, que é essa lei, ensina a todos os homens
apresenta-se, portanto, em Hobbes, simultane- que tão só a consultem, sendo todos iguais e
independentes, que nenhum deles deve pre-
amente como produto da razão e resultado de
judicar a ordem na vida, na saúde, na liberda-
sua impotência. de ou nas posses. (LOCKE, 1979, p. 36).
Um contraponto a essa concepção de so-
berania constitui-se o formulado por John Locke Verifica-se, em Locke, que tanto a liberda-
(1641-1704), filósofo inglês que se destaca como de, como a igualdade são condições apriorísticas
um dos principais formuladores do liberalismo. ao indivíduo e, portanto, não se configuram como
Locke foi crítico do absolutismo monárquico e finalidades de uma construção coletiva. A liberda-
teórico da burguesia em ascensão no final do de e a igualdade, para Locke, estão presentes no
século XVII. estado de natureza e são próprias dos indivíduos.
Inserido na chamada Época de Ouro, na “A liberdade natural do homem consiste em estar
Inglaterra que estendia seu domínio sobre o livre de qualquer poder superior na Terra [...].”
mundo, Locke (1979) afirmou que na monarquia (LOCKE, 1979, p. 43).
absolutista imperava um estado de guerra con- Partindo da referida lógica de estrutura-
tinuado entre o conquistador e o homem cativo, ção das concepções de liberdade e igualdade,
que se submetera à condição de súdito diante do para Locke a concepção de estado de natureza
soberano. Sobre o poder absoluto, considera que constitui-se um estado de igualdade, no “[...] qual
é recíproco qualquer poder e jurisdição, ninguém
Livrar-se de semelhante força é a única segu-
tendo mais do que qualquer outro [...]” (LOCKE,
rança de preservação; e a razão ordena con-
1979, p. 35).
siderar como inimigo à própria preservação
aquele que arrebatar a alguém a liberdade A formação da sociedade civil, que con-
que a assegura, de sorte que quem tenta es- grega representantes da classe dos indivíduos
cravizar a outrem se põe com ele em estado proprietários é, nesse sentido, uma sociedade
de guerra. (LOCKE, 1979, p. 40). de homens livres e iguais. Iguais em condições
de preservar a própria propriedade.
E, com relação ao estado de guerra, Lo- Nessa interpretação lockeana, destaca-se
cke o considera como “um estado de inimizade a associação da liberdade à igualdade formal
e destruição; [...].” (LOCKE, 1979, p. 40). Mas, como sinônimo de justiça, em detrimento à de-
contrapondo-se aos argumentos de Hobbes, afir- sigualdade das condições materiais de existên-
ma que nenhum poder superior na Terra poderia cia, em que sua discussão está cativa ao seio
se sobrepor à liberdade do homem constitutiva das relações entre os proprietários. Conforme
de seu estado de natureza. Este, para Locke, Kuntz (1997), a igualdade para Locke possui
configura-se como uma situação na qual os ho- dois componentes essenciais: um positivo e
mens gozam de perfeita liberdade e igualdade. outro negativo. O positivo é “[...] a comunidade
Tais conceitos, em Locke, são introduzidos em da espécie e das faculdades características de
sua interpretação do estado de natureza, como cada um de seus indivíduos. O outro, indicado
pilares de sustentação à condição dos homens de de forma negativa, é a ausência de subordinação
dispor de suas posses e pessoas (KUNTZ, 1997). transitiva.” (KUNTZ, 1997, p. 6).
A liberdade é compreendida, na inter- Para Locke, os homens convivem sob
pretação liberal, como um estado em que os ‘jurisdição recíproca’. O que significa que cada
indivíduos dispõem de perfeitas condições para um, fazendo parte de um corpo, tem a respon-
a preservação de sua propriedade e igualdade. sabilidade pela sua autopreservação. A preser-
Não é nada além do que a igual condição entre vação do corpo de indivíduos que representa a
os homens de preservá-la. Condição esta, recí- humanidade.
proca a todos que a possuem. Assim, no estado de natureza, conforme a
Kuntz (1997, p. 5) aponta que a perspectiva lei de jurisdição recíproca, todos têm poder de
de “indiferenciação de poder” sustenta o perfeito empreender ação que tenha por objetivo a auto-
estado de liberdade e de igualdade em Locke. preservação e ainda que enseje punir qualquer
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um dos indivíduos, que no estado de natureza comum a todos os homens - o mundo e razão.
coloque em risco a autopreservação - a preser- Deus, afirma o autor, concedeu “[...] a terra e tudo
vação do conjunto de homens. quanto ela contém ao homem para sustento e
Segundo Kuntz (1997, p. 7), “Para a ‘pre- conforto da existência.” (LOCKE, 1979, p. 44).
servação de toda a humanidade, a execução da Locke (1979, p. 44) diz que
lei da natureza é, naquele estado, (no estado
de natureza) posto nas mãos de cada homem’”. [...] embora a terra e todas as criaturas inferio-
res sejam comuns a todos os homens, cada
(parênteses nossos). Explicita-se, aqui, a preo-
homem tem uma propriedade em sua própria
cupação de Locke em sustentar a preservação pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito
da sociedade enquanto conjunto de homens senão ele mesmo. O trabalho de seu corpo e
proprietários. Portanto, a preservação da pro- a obra das suas mãos pode dizer-se, são pro-
priedade é elemento agregador do conjunto de priamente dele. Seja o que for que ele retire do
homens na sociedade burguesa. estado que a natureza lhe forneceu e no qual o
A burguesia compõe a sociedade civil expli- deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho,
citada por Locke. Seus argumentos de sustenta- juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por
ção da liberdade e da igualdade enquanto bases isso mesmo, tornando-o propriedade dele.
das relações entre os homens são os princípios O direito natural da propriedade, na teoria
de sustentação das relações econômicas bur- política de John Locke, uma das principais bases
guesas – bases para a agregação da sociedade do liberalismo, tem como um de seus pilares fun-
civil como corpo político construído em prol da damentais a formação de uma sociedade políti-
manutenção de seus interesses. ca, com vistas à garantia de leis necessárias para
Locke, portanto, levanta argumentos cen- defesa e proteção da vida e dos bens; haja vista
trais para consolidação do ideário da burguesia que, segundo o autor, embora todos os homens,
e torna-se um dos expoentes teóricos dos prin- no estado de natureza, sejam livres e iguais; não
cípios políticos que davam sustentação à sua há garantia de segurança da propriedade.
manutenção da burguesia no poder. Ressalta-se, Na referida teoria política, o objetivo do
entre esses argumentos, a defesa da proprieda- governo seria, então, garantir a segurança e paz
de privada no rol de direitos naturais do homem, entre as pessoas para que possam gozar das
associada à igualdade e à liberdade. “[...] propriedades que tiverem e desfrutando de
Baseado, ainda na doutrina jusnaturalista, maior proteção contra quem quer que não faça
Locke interpreta a propriedade privada como parte dela” (LOCKE, 1979, p. 71).
resultado do trabalho humano livre e a liberda- O Estado, nessa perspectiva, não se resu-
de como uma condição anterior à formação do me, portanto, no coletivismo e ou em uma tirania,
Estado, portanto inerente ao estado natural. Ar- mas no corpo político formado pelo consentimen-
gumenta que o estado de natureza se configura to da maioria dos indivíduos pertencentes à so-
como um estado de “[...] perfeita liberdade para ciedade civil. A gênese da sociedade é atrelada
ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses à necessidade dos indivíduos garantirem o que
e as pessoas conforme acharem conveniente, os levou a aceitá-la: a propriedade privada, um
dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir direito natural (LOCKE, 1979).
permissão ou depender da vontade de qualquer A sociedade civil é considerada o estado
outro homem.” (LOCKE, 1979, p. 35). de união de todos os homens em um corpo
Inserido nessa lógica, a propriedade priva- que possui leis comuns para que os indivíduos
da, interpretada como fruto do trabalho humano possam apelar quando tiverem situações de
livre, constitui-se um direito natural e, portanto, controvérsias entre si e que serve para prote-
não deve se submeter a um poder soberano ger a propriedade privada, enquanto forma de
exterior ao próprio homem porque posterior, em autopreservação das relações entre os homens
termos ontológicos, à propriedade privada, in- no âmbito de um Estado, no qual a propriedade
trínseca ao homem em seu estado de natureza. é considerada um direito natural e, portanto
A propriedade é extensão do trabalho inviolável, nem por qualquer um dos indivíduos
humano. É fruto da apropriação do homem atra- pertencentes à sociedade civil, nem pelo Estado.
vés de seu trabalho, daquilo que Deus deu em
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Parte do suposto que esse estado natural é o da cravos para submeter outros, só pensaram
perfeita harmonia entre o homem e a natureza, em subjugar e dominar seus vizinhos, como
no qual o homem goza de plenas possibilidades aqueles lobos famintos que, uma vez comen-
de utilização do mundo; sem divisões. do carne humana, recusam qualquer outro ali-
mento e só querem devorar homens.
O espírito humano não é, portanto, original-
mente competitivo e conflitivo; tais características É para essa sociedade que Rousseau
derivam da história (ROUSSEAU, 1979). E é por procura construir uma saída, na qual os homens
ela que se torna possível apreender a gênese pudessem selar um poder supremo que defen-
e o desenvolvimento da sociabilidade humana desse todos os membros comuns. A sociedade
conflituosa. política seria, neste ideário, aquela na qual o
Um marco histórico, para Rousseau, é a homem poderia reencontrar a sua liberdade,
sociedade civil. É a partir dela que nasce a pro- na medida em que cada um cedesse um pouco
priedade, e a consequente desigualdade entre para que se alcançasse a vontade geral de toda
os homens. Rousseau (1973, p. 265) afirma a sociedade. O bem comum seria o objetivo do
que “O verdadeiro fundador da sociedade civil contrato social.
foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, No contrato social rousseauniano não há,
lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou portanto, garantia de interesses particulares. Ao
pessoas suficientemente simples para acreditá- contrário, a vontade geral que dele deriva é a
-lo.” Assim, confrontando as posições teóricas expressão de todos os homens que participam
de Hobbes e Locke, Rousseau deflagra o ato de pessoalmente do corpo político. Nessa síntese
formação da propriedade privada, vinculando-a entre o homem particular com o homem político
à fundação da sociedade civil, enquanto estado constrói-se uma noção de soberania coletiva e
de sua preservação entre os homens. essa soberania possui limites, impostos pelos
Se para Hobbes a sociedade civil era um es- membros do corpo político.
tado de plena segurança de todos e para Locke um Para Rousseau (1973, p. 54),
estado de paz e proteção de todos os homens, de
suas vidas e de suas propriedades, para Rousse- Assim como a natureza dá a cada homem po-
au, ela não passa de um estado em que o homem der absoluto sobre todos os seus membros, o
deixa de ser senhor e passa a ser escravo da na- pacto social dá ao corpo político um poder ab-
soluto sobre todos os seus, e é esse mesmo
tureza. “Tornando-se sociável o escravo, torna-se
poder que, dirigido pela vontade geral, ganha,
fraco, medroso e subserviente, e sua maneira de como já disse, o nome de soberania.
viver, frouxa e afeminada, acaba por debilitar ao
mesmo tempo sua força e sua coragem.” (ROUS- O corpo político expressa o coletivo dos
SEAU, 1973, p. 247). Ricos e pobres convivem sob homens. O povo é o protagonista, de forma que a
relações pautadas nas necessidades derivadas da liberdade civil passa a ser sinônimo de liberdade
preservação da propriedade. natural e igualdade natural é também política.
A sociabilidade baseada nesse estado de “Cada um de nós põe em comum sua pessoa
desigualdade passa a reificar as relações huma- e todo o seu poder sob o supremo comando da
nas; configura-se como utilitarista e constituída vontade geral e haverá de receber ainda cada
por relações de trabalho fundadas na escravidão membro como parte indivisível do todo.” (ROUS-
e na miséria; e dela deriva o lucro dos ricos. SEAU, 1973, p. 39).
Rompe-se, portanto, a igualdade natural e se Conforme Reale e Antiseri (1990, p.
estabelece um estado de maior desordem, no 771),“Rousseau destaca, com extremo vigor, a
qual o trabalho alienado e a propriedade priva- interiorização da vida social e dos seus deveres.
da se constituem nas bases de sustentação da Não há nada de privado. Tudo é público ou, pelo
sociedade civil. menos, deve tornar-se tal.”
Rousseau (1973, p. 274) argumenta que Rousseau (1973, p.52) afirmara que
Os ricos, de sua parte, nem bem experimen- [...] a vontade geral é sempre certa e tende
taram o prazer de dominar, logo desdenharam sempre à utilidade pública; donde não se se-
todos os outros e, utilizando seus antigos es- gue, contudo, que as deliberações do povo
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igualdade, da segurança, da proteção da proprie- ______.Thomas Hobbes, ou: a paz contra o clero. In:
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mocrático na contemporaneidade estão direta e Paulo: CLACSO, DCP-FFLCH, USP, 2006, p. 45-79.
indiretamente vinculadas e/ou se explicam, em
determinadas questões, quando analisadas à luz
das diferentes perspectivas teóricas inerentes às
teorias da filosofia política, nas quais o contra-
tualismo ainda sobrevive como fundamento, em
meio aos novos elementos teóricos que foram
sendo agregados ao longo do desenvolvimento
do Estado, da democracia e das lutas políticas
travadas pela sociedade civil.
Considera-se que tais lutas constituem-se
plurais, em meio às diferentes perspectivas de
Estado e de sociedade que coabitam no espaço
da política, mas os fundamentos do contratu-
alismo clássico lançam mão de aspectos que
iluminam a análise das complexas relações
políticas e ideológicas presentes na sociedade
contemporânea, servindo de parâmetro para a
compreensão de muitas de suas contradições,
conflitos e desafios na atualidade.
Referências
HOBBES, T. A. O Leviathan. São Paulo: Abril cultural,
1979.
Emancipação, Ponta Grossa, 13, nºEspecial: 133-143, 2013. Disponível em <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao 143