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Fernando Pessoa
A Arte é apenas e simplesmente a expressão de uma emoção.

A Arte é apenas e simplesmente a expressão de uma emoção. Um grito,


uma simples carta pertencem um à arte de cantar, à literatura a outra, inevita-
velmente.
O próprio gesto é artístico segundo é ou não interpretação de uma emoção.
Porque no gesto há o fim do gesto e a expressão desse fim. Uma coisa reporta-se
à vontade, a outra à emoção. Elegância ou deselegância de um gesto significam
conformidade ou não-conformidade com a emoção que exprime. Assim uma
estátua da dor é a fixação dos gestos que mostram a dor — e será tanto mais
bela quanto mais justa e exactamente representar por esses gestos a emoção
da dor, quanto mais adaptados em tudo forem esses gestos ao mostrar essa
emoção.

1910?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 5.

N. do A.: H[istory] of a D[ictatorship] ou Estética

Obra Aberta · 2015-06-08 01:51


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Fernando Pessoa
ARTE — IDEALIZAÇÃO

ARTE — IDEALIZAÇÃO

Todo o material da arte repousa sobre uma abstracção: a escultura, p. ex.,


desdenha o movimento e a cor; a pintura desdenha a 3ª dimensão e o movimento
portanto; a música desdenha tudo quanto não seja o som; a poesia baseia-se
na palavra, que é a abstracção suprema, e por essência, porque não conserva
nada do mundo exterior, porque o som—acessório da palavra — não tem valor
senão associado — por impercebida que seja essa associação.
A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstracção da realidade, tenta
reaver a realidade idealizando. Na proporção da abstracção do seu material está
a proporção em que é preciso idealizar. E a arte em que mais é preciso idealizar
é a maior das artes.

1915?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 5.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:51


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Fernando Pessoa
OS DESVIOS IDEATIVOS DA POESIA MODERNA

OS DESVIOS IDEATIVOS DA POESIA MODERNA

Emoção que não seja vaga, pensamento que o seja não prestam. Os modernos
poetas franceses têm o contrário:
são nítidos e (. . .) na emoção e vagos, deploravelmente vagos na ideia.
Uma obra literária procura sentimentos que têm que ver com: a ideia,
a emoção, a imaginação (que vem a ser uma combinação inteira de ideia
e emoção). A ideia deve ser nítida, a emoção vaga, a imaginação, como é
composta essencialmente de ambos, ao mesmo tempo vaga e nítida.— A arte
deve dirigir-se a estas 3 faculdades, que não a uma ou duas delas isoladamente.

1913?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 6.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:52


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Fernando Pessoa
Porque a arte dá-nos, não a vida com beleza, que, porque é a
vida,

Porque a arte dá-nos, não a vida com beleza, que, porque é a vida, passa,
mas a beleza com vida, que, como é beleza, não pode perecer.
A cada conceito da vida cabe não só uma metafísica, mas também uma
moral. O que o metafísico não faz porque é falso, e o moralista não faz porque
é mau, o esteta não faz porque é feio.

1930?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 6.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:51


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Fernando Pessoa
INTRODUÇÃO À ESTÉTICA

INTRODUÇÃO À ESTÉTICA

Exigir de sensibilidades como as nossas, sobre que pesam, por herança,


tantos séculos de tantas coisas, que sintam e portanto se exprimam com a
limpidez, e a inocência de sentidos, de Safo ou de Anacreonte, nem é legítimo,
nem razoável. Não é no conteúdo da sensibilidade que está a arte, ou a falta
dela: é no uso que se faz desse conteúdo.
Distinguiremos na arte, como em tudo, um elemento material, e um formal.
A matéria da arte, dá-a a sensibilidade, a forma, dirige-a a inteligência. E na
forma há, ainda, duas partes a considerar: a forma concreta ou material, que se
prende com a matéria mesma da obra, e a forma abstracta ou imaterial, que se
prende só com a inteligência e depende de suas leis imutáveis.
Três são as leis da forma abstracta, e, como são da forma abstracta, aplicam-
-se a todas as artes e a todas as formas de cada arte. Abdicar delas é abdicar da
mesma arte. Podemos eleger quebrar tais leis; não podemos, porém, elegendo-o,
presumir que fazemos arte, pois a arte consiste, mais que em qualquer outra
coisa, na obediência a essas leis. As três leis da forma abstracta são: a unidade;
a universalidade ou objectividade; e (. . .).
Por unidade se entende que a obra de arte há-de produzir uma impressão
total definida, e que cada seu elemento deve contribuir para a produção dessa
impressão; não havendo nela nem elemento que não sirva para esse fim, nem
falta de elemento que possa servir para esse fim. É uma falha artística, por
exemplo, a introdução em um poema de um trecho, por belo que seja, que não
tenha relação necessária com o conjunto do poema, como o é, mais palpavel-
mente, a introdução em um drama de uma cena em que, por grande que seja
a força ou a graça própria, a acção pára ou não progride, ou, o que é pior, se
atrasa.
Por universalidade, ou objectividade, se entende que a obra de arte há-de
ser imediatamente compreensível a quem
tenha o nível mental necessário para poder compreendê-la. quanto mais
altamente intelectual for uma obra de arte, maior será, em princípio, a sua

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universalidade, pois que a inteligência abstracta é a mesma em todos os tempos


e em todos os lugares—dada a espécie humana no nível de tê-la—, enquanto a
sensibilidade varia de tempo para tempo e de lugar para lugar.
Cumpre esclarecer este ponto. A obra de arte procede de uma impressão ou
emoção do artista que a constrói, impressão ou emoção que, como tal, é própria
e intransmissível. Se o valor dessa emoção, para quem a sente, é o ser ,própria,
deve gozar-se simplesmente, e não exprimir-se. Se o valor dela, porém, é mais
alguma coisa, (. . .).
Todos nós sentimos a dor e o delírio do Rei Lear de Shakespeare; esse
delírio, contudo, é, diagnosticavelmente, o da demência senil, de que não
podemos ter experiência, pois quem cai em demência senil nem pode perceber
Shakespeare, nem qualquer outra coisa. Porque é, então, que, sendo esse delírio
tão caracterizadamente o do demente senil, o sentimos tanto nós, que não
temos conhecimento desse delírio ? Porque Shakespeare pôs nesse delírio só
aquela parte que nele é humano, e afastou a que nele seria, ou particular
do indivíduo Lear, ou especial do demente senil. Todo o processo mórbido
envolve essencialmente ou um excesso, ou um abatimento, de função; ou uma
hipertrofia, ou uma atrofia, de órgão. O desvio, que constitui a doença, está
na distancia a que fica o excesso, ou o abatimento, do nível da função normal;
na dissemelhança que se estabelece entre o órgão hipertrofiado, ou atrofiado,
e o orgão são. Assim a doença é, ao mesmo tempo, e no mesmo acto, um
excesso ou abatimento do normal, e um desvio (ou diferença) desse normal. Se,
apresentando um caso de doença mental, o apresentarmos pelo lado em que
é excesso ou abatimento da função normal, com isso mesmo o apresentamos
como ligação a essa função, e compreensível para quem a tenha; se, porém,
o apresentarmos pelo lado em que é desvio ou diferença, com isso mesmo o
apresentamos como desligado ou separado dessa função, e incompreensível,
portanto, a quem não esteja no mesmo caso mórbido, o que será pouca gente,
senão pouquíssima. As duas maneiras são comparáveis à maneira racional, e
à dogmática ou aforística, de apresentar uma conclusão: o raciocinador leva
o ouvinte ou lente até à conclusão por um processo gradual, e ainda que a
conclusão seja estranha ou paradoxal, torna-se em certo modo aceitável por se
tornar compreensível como se chegou até ela; o dogmático põe a conclusão sem
explicar como chegou a ela, e sucede, como se não vê relação entre o ponto
de partida e o de chegada, que só quem tenha feito o raciocínio necessário, ou
quem aceite a conclusão sem raciocínio, pode convir nessa conclusão.
Tudo que se passa numa mente humana de algum modo análogo se passou

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já em toda outra mente humana. O que compete, pois, ao artista que quer
exprimir determinado sentimento, por ex., é extrair desse sentimento aquilo
que ele tenha de comum com os sentimentos análogos dos outros homens, e
não o que tenha de pessoal, de particular, de diferente desses sentimentos.
A obra de arte, ou qualquer seu elemento, deve produzir uma impressão, e
uma só; deve ter um sentido, e só um; seja sugestivo o processo, ou explícito.
Isto se vê claramente no emprego do epíteto em literatura. Muito se tem bradado
contra o emprego de adjectivos estranhos, ou juntos a substantivos com os quais
não parecem poder ligar-se. Não há, porém, adjectivos estranhos, nem é possível
construir uma fase a que se não possa atribuir um sentido qualquer. O que é
necessário é que esse “sentido qualquer” seja só um, e não possivelmente um
de vários. Ésquilo, numa frase célebre, refere-se ao “riso inúmero das ondas”; o
epíteto é daqueles a que é uso chamar ousados, pois que tudo é ousado para
quem a nada se atreve. Toda a gente, porém, compreende a frase, nem lhe é
atribuível mais que um sentido. Há, porém, uma poetisa francesa que deu a
um seu livro o título, mimado desta frase, de “O Coração inúmero”, frase esta
que pode ter vários sentidos, porém que não é certo que tenha este ou aquele.
A “ousadia” do epíteto é igual no grego e na francesa; uma, porém, é a ousadia
da inteligência, a outra a do capricho.
Pode ser, no caso de um epíteto desta última ordem, que a sensibilidade de
várias pessoas convenha na mesma interpretação, e, ainda, que essa interpreta-
ção seja — o que também poderia não acontecer — aquela mesma que lhe o
autor deu. Como, porém, a sensibilidade é passageira e local, local e passageira
é também a interpretação que dela procede.
Estas considerações têm que ser interpretadas em relação às diversas artes,
diversamente para cada uma, conforme sua matéria e fim. Aquele trecho musical
cuja frescura e alegria me dá a mim a impressão de madrugada, pode dar a
outro a impressão de Primavera. Como, porém, não é função da música definir
as coisas, senão a emoção que geram, o trecho produziu, em verdade, a mesma
impressão em mim e no outro, pois ambos sentimos nele frescura e alegria;
o lembrar-me essa frescura a madrugada, e a outro a Primavera, é apenas
a tradução pessoal que cada um de nós faz da sensação que recebeu, pois a
sensação abstracta de alegria e de frescura é comum à madrugada e à Primavera.
A um terceiro esse mesmo trecho poderia evocar, por exemplo, certa cena de
amor, ou certa paisagem, sem que em alguma coisa saísse do seu fim próprio,
logo que a essa cena de amor e a essa paisagem estejam nele ligadas as ideias
de frescura e alegria. Do mesmo modo a frase de Ésquilo “riso inúmero das

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ondas” não é diversa em mim e num veneziano por em mim evocar o Atlântico
e nele o Adriático.

1925?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 7.

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Fernando Pessoa
Se a obra de arte proviesse da intenção de fazê-la,

Se a obra de arte proviesse da intenção de fazê-la, podia ser produto da


vontade. Como não provém, só pode ser, essencialmente, produto do instinto;
pois que instinto e vontade são as únicas duas qualidades que operam.
A obra de arte é, portanto, uma produção do instinto. O drama, sendo
primariamente uma obra de arte, é-o também.

1916?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 7.

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Fernando Pessoa
1. A arte é a notação nítida de uma impressão errada (falsa).

1. A arte é a notação nítida de uma impressão errada (falsa). (À notação


nítida duma impressão exacta chama-se ciência).
2. O processo artístico é relatar essa impressão falsa, de modo que pareça
absolutamente natural e verdadeira.
Quando Ésquilo fala no “riso inúmero do mar”, diz uma coisa pavorosa de
todos os pontos de vista, incluindo o quase-gramatical, que se indigna com a
justaposição das palavras “riso inúmero”.

1914?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 12.

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Fernando Pessoa
A obra de arte é primeiro obra, depois obra de arte.

A obra de arte é primeiro obra, depois obra de arte.

Em que se distingue a obra de arte de qualquer obra do esforço humano ?


Num exemplo simples poderemos vê-lo.
Carta, frase falada, M. Jourdain.
Intenção ou valor notável.
Porém o valor não basta. Ele será nulo, em relação a quem escreveu a carta,
ou proferiu a frase, se verificarmos que essa carta foi copiada de outrem, ou que
a frase foi reproduzida. Haverá, sim, valor artístico na carta e na frase, porém o
artista será aquele de quem a carta é, o que disse a frase.
Uma obra de arte, portanto, é, em sua essência, uma invenção com valor. Se
não for invenção, o valor pertencerá a quem inventou; se não tiver valor não
será obra de arte, pois que importa inventar o que não presta?
Uma obra que é uma invenção com valor, de que processos intelectuais
procede?
Uma invenção é uma ideia nova realizada. Há aqui dois elementos: a ideia,
e os meios por que se realize. Em qual dos dois, ou de que modo, reside a
essência da ideia nova?
Suponha-se um poema, que penso em escrever. Tenho a ideia; os meios, que
são os princípios de metrificação e de disposição do assunto, suponha-se que os
tenho, porque os saiba, tendo-os aprendido. Com isto, terei certo que farei um
poema de valor, supondo sim que é original a ideia que tenho? Se assim fosse,
qualquer homem de cultura escreveria um grande poema. Ciente dos meios, e
podendo ter uma ideia original, bastar-lhe-ia realizá-la. O que lhe falta?
Se, havendo na invenção ideia e meios, e se, supondo-se a posse da ideia e o
conhecimento dos meios a empregar, ainda assim se possa dizer que não é certo
que a ideia se realize com valor, que elemento especial falta considerar? Este: a
ideia original tem que ser sentida em todos os seus detalhes, abrangendo o uso
dos meios. Isto é: o acto de invenção envolve uma fusão do fim e dos meios.

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Mas a fusão do fim e dos meios é o que, segundo vimos, caracteriza o acto de
instinto. A invenção de um valor é portanto um acto de instinto.
Provado assim, pelo modo directo, pode isto provar-se também pelo absurdo
do contrário. Suponha-se que a invenção é um acto da vontade consciente; como
esta se divide na determinação e na inteligência, que aquela emprega, a obra
há-de provir, ou de uma, ou de outra, ou de ambas juntas. Da intenção já vimos
que não vem, e na verdade todos sabemos que a intenção de inventar nunca fez
ninguém inventor. Da inteligência não vem, porque o conhecimento dos meios
(que é o que a simples inteligência fornece) também não faz inventores, e os
que mais conhecem os princípios da poesia e a história dela não são os maiores
poetas. E se não pode vir de uma ou de outra, também não pode provir das
duas reunidas.
O instinto, porém, não origina. O instinto de andar não descobre novos
processos de andar. Há no caso da invenção uma fusão do instinto com a
inteligência.
Não é difícil encontrar uma explicação científica. Por natureza, a inteligência,
embora não crie, constantemente se transforma. Um longo uso da inteligência
pela humanidade criou um instinto nessa inteligência, e como a inteligência por
natureza transforma, e o instinto por natureza operas uma fusão dos dois, ou,
por outras palavras, um instinto intelectual será uma qualidade do espírito que
transforme operando. Mas a transformação reduzida a acto é precisamente a
essência da invenção, pois que a invenção é um acto, e um acto que transforma
o que há.
A obra de arte, no que invenção de um valor, deriva portanto do que com
propriedade se pode chamar um instinto intelectual.

Há, porém, invenções de vários géneros, e nem todas são arte. Invenção foi
a de Watt, quando descobriu a máquina de vapor; invenção a de Descartes,
quando uma manhã, na cama, viu de repente a geometria por coordenadas.
Ambas são invenções de um valor, de nenhuma delas diremos — salvo em
qualquer sentido, que por translato não tem cabimento aqui — que é uma
obra de arte. O valor da obra de arte é portanto diferente do daquelas outras.
Cumpre que distingamos bem em que difere.
O que é um valor? Como há diferenças de valores, o valor é uma quanti-
dade. . . É uma quantidade medida por um princípio ou critério qualitativo.

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Ao contrário da invenção prática, que é uma invenção com valor de utilidade,


e da invenção científica, que é uma invenção com valor de verdade, a obra de
arte é uma invenção com um valor absoluto.
Como dissemos que a invenção de um valor procede de um instinto inte-
lectual, diremos, da invenção prática, que procede do instinto intelectual da
utilidade, da invenção científica, que procede do instinto intelectual da ver-
dade, e assim, da invenção artística, que provém do instinto intelectual (da
intensidade).

Como, pois, a obra de arte, para que deveras o seja, nem seja apenas o
simulacro de uma, tem de provir do instinto; como, porém, esse instinto, como
é intelectual, pode ser imitado nas suas operações pela inteligência; como a
obra da inteligência não pode ter valor no género a que pertence, porém pode
simulá-lo; como, portanto, o que primeiro temos que fazer é distinguir se uma
aparente obra de arte pode ter ou não valor, isto é, provém ou não do instinto,
temos primeiro que determinar por que processos objectivos se distingue ime-
diatamente uma obra do instinto intelectual de uma composição da inteligência.
Para muitos de nós, bastará o gosto, ou senso estético, para o determinar; esse,
porém, não é um princípio objectivo, nem podemos cientificamente propor a
outrem que aceite o nosso gosto por critério com que ele aprecie.
A inteligência não pode dar-me o desejo de comer; pode porém dar-me o
desejo de não comer senão o que me for útil. E quando, em doença, eu não
sinta o desejo de comer, vendo, pela inteligência, que devo fazê-lo, para me não
desalimentar, guio-me pela utilidade e não pelo simples desejo de comer.
Assim o acto de inteligência, quando colabore nas coisas do instinto, ou
se substitua ao instinto, distingue-se por isto — que se guia sempre por uma
ideia acessória da ideia central do instinto, nunca pela central, para a qual só o
instinto pode guiar.
Nisto, pois, se encontra a distinção entre a inteligência e o instinto: que o
instinto, desde que funcione, acerta sempre com a essência do objecto para
que tende, sendo que a inteligência não acerta com a essência nunca, ficando
sempre nos acessórios.
Entende-se bem que, por ideia central de um instinto, se entende aquela que
se define pelo próprio fim do instinto.
Assim um produto do instinto difere de um da inteligência em que no

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primeiro o essencial está com certeza dado, no segundo o essencial está com
certeza por dar.

Determinado o processo objectivo, por meio do qual se determine se uma


obra é do instinto ou da inteligência, está com isto determinado se essa obra
pode ter, ou não, valor, pode valer, ou não, como obra de arte. O ser de instinto,
porém, é a condição do valor, não o valor mesmo. Resta, pois, que determinemos
em que se diferença, na obra de instinto, o maior do menor; qual o princípio
objectivo pelo qual, dada uma obra de instinto, se determina o valor ou força
do instinto que realizou tal obra.
Vimos que, numa operação do instinto, o objecto se define, relativo a esse
instinto por meio de uma ideia geral central, que só o instinto pode dar, as-
sim como, melhor, por meio de outras ideias gerais, acessórias essas, que a
inteligência pode simular.
Em que pode residir o valor de um instinto? Em que pode um indivíduo ter
um instinto de comer mais perfeito que o de outro indivíduo? Não por certo
em comer muito, pois, se o valor é uma quantidade média qualitativamente,
aqui, onde há só quantidade, não há valor (. . .).

1916
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 12.

Fragmento de ensaio sobre o drama “Octávio” de Vitoriano Braga

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António Mora
REGRESSO DOS DEUSES: Estética [a]

REGRESSO DOS DEUSES: Estética

Mas o critério de perspicuidade não limitará demasiado a arte? Não limita,


se atendermos a um ponto importante, que é que há várias artes, cada uma das
quais corresponde a um género de perspicuidade. Certos sentimentos vagos e
pensamentos nebulosos, que são naturais a todos os homens, encontram a sua
expressão em a música.
O critério de perspicuidade é, porém, derivado na arte helénica. O grego
amava a perspicuidade porque amava a generalidade, a universalidade e a
distinção das artes. Ora, era difícil que uma ideia vaga pudesse ser geral,
universal, e caber na arte literária ou escultural, por muito bem que estivesse
em a música.
Semelhantemente, não é a sobriedade um característico essencial na estética
pagã, senão também um corolário dela.
A arte é o aperfeiçoamento do mundo exterior. Ora este aperfeiçoamento
(da Realidade) pode fazer-se de três maneiras: pela alteração do mundo exterior,
(. . .).

1916?
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por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 18.

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António Mora
REGRESSO DOS DEUSES: Estética [b]

REGRESSO DOS DEUSES: Estética

Objectar-se-á, sem dúvida, que, havendo sentimentos que são vagos, senti-
mentos que são confusos, impulsos do ânimo (espírito) que, de confundidos
com outros, se nos não apresentam claros, é abusivo exigir do artista que os
delineie como nítidos, como qualquer coisa que eles não são.
A resposta a esta observação está na pergunta, se esses estados do ânimo são
legitimamente representáveis em arte? O artista subjectivo parte do princípio
que o fim da sua arte é exprimir as suas próprias emoções. Critério é esse que
o artista objectivo não aceita, e com razão absoluta o não aceita, porque a arte
objectiva é que é a arte, por isso que é uma coisa realizada, que passa para fora
do artista, e não fica nele, como a emoção que a produz.
De feito, perguntemos, porque é um pensamento confuso, porque é um
sentimento vago, por que razão não se apresenta nítido um impulso volitivo?
Para todos a razão é uma: é que o pensamento se não pôs em contacto com a
realidade, é que o sentimento se não comparou com a sua realização, é que a
vontade se não mediu com o exterior.
Uma obra de arte é um objecto exterior; obedece portanto às leis a que estão
subordinados os objectos exteriores, no que objectos exteriores.
O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime,
das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens. Falando para-
doxalmente, exprime apenas aquelas suas emoções que são dos outros. Com
as emoções que lhe são próprias, a humanidade não tem nada. Se um erro da
minha visão me faz ver azul a cor das folhas, que interesse há em comunicar isso
aos outros ? Para que eles vejam azul a cor das folhas? Não é possível, porque é
falso. Para que eles saibam que eu vejo azuis as folhas? Não é preciso porque
não tem importância nenhuma. O mais que o fenómeno é curioso, e o curioso
é senti-lo; senti-lo sinto-o eu, não os outros. O que há de realmente estético,
pois, nas sensações estranhas é que cada um as guarde para si, gozando-as em
silêncio, se para tal lhe dá o gozo.

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:26


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Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa


pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem
possa ser compreendida.
O segundo princípio da arte é a universalidade. O artista deve exprimir,
não só o que é de todos os homens, mas também o que é de todos os tempos.
O subjectivismo cristista, além do erro pessoalista, produziu esse outro erro,
a preocupação de interpretar a época. A frase de Goethe, bastas vezes citada
sobre o assunto, é de mestre; com efeito, um homem de génio é da sua época só
pelos seus defeitos. A nossa época deduz-nos da humanidade. Como o artista
deve procurar erguer-se acima da sua personalidade, deve procurar levantar-se
fora da sua época.
O terceiro princípio da arte é, finalmente, a limitação. Isto é, a cada arte cor-
responde um modo de expressão, sendo o da música diferente do da literatura,
e o da literatura diverso do da escultura, este do da pintura, e assim com todas
as artes. Erro crasso, mas recentemente vulgar, é o de confundir os limites das
artes. Foi cometido por uma época tão aparentemente ortodoxa como o século
dezassete dos franceses. Os poetas como Corneille e Racine aplicaram à poesia
a secura de expressão, a nitidez de raciocínio, que são características da prosa.
Racine errou como errou Mallarmé. Por um errar por fazer da poesia prosa, e
outro por fazer da poesia música, não é menor o erro de um do que o de outro.
Para os sentimentos vagos, que não comportam definição, existe uma arte —
a música, cujo fim é sugerir sem determinar. Para os sentimentos perfeitamente
definidos, de tal modo que é difícil a emoção neles, existe a prosa. Para os
sentimentos que são harmoniosos e fluídos, existe a poesia. Em uma época sã e
robusta, um Verlaine ou um Mallarmé escreveriam a música que nasceram para
escrever. Não teriam tido nunca a tendência para dizer em palavras aquilo que
a palavra não comporta. Pergunto ao maior entusiasta dos simbolistas franceses
se Mallarmé os comoveu tanto como uma melodia vulgar, se a inexpressão de
Verlaine chegou alguma vez à inexpressão legítima de uma valsa simples. Não
chegou, e se me responderem que preferem para esse fim Verlaine e Mallarmé
à música, o que me estão dizendo é que preferem a literatura como música à
música. Estão-me dizendo uma coisa que não tem sentido fora de lamentá-los.

1916?
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António Mora
Na Grécia a ciência não estava desenvolvida ao ponto. . .

Na Grécia a ciência não estava desenvolvida ao ponto de permitir à arte


grega toda a expansão que estava latente na lógica dos seus íntimos princípios.
O fim da arte é imitar perfeitamente a Natureza. Este princípio elementar é
justo, se não esquecermos que imitar a Natureza não quer dizer copiá-la, mas
sim imitar os seus processos. Assim a obra de arte deve ter os característicos
de um ser natural, de um animal; deve ser perfeita, como são, e cada vez mais
o vemos quanto mais a ciência progride, os seres naturais; isto é, deve conter
quanto seja preciso à expressão do que quer exprimir e mais nada, porque cada
organismo, ou cada organismo considerado perfeito, deve ter todos os órgãos
de que carece, e nenhum que lhe não seja útil. Assim, reparemos, a ideia de
perfeição não é, como Platão, grego decadente, julgava, uma ideia vinda do
ideal; a ideia de perfeição nasce da contemplação das coisas, da Matéria, e da
perfeição que a Natureza põe nos seres que produz, em que cada órgão, tecido,
parte ou elemento existe para o Todo a que pertence, em relação ao todo a que
pertence, pelo Todo a que pertence. Assim deve ser a obra de arte. O passo
discutido de Aristóteles, de que a obra de arte é comparável a um animal, deve
sem dúvida ter este sentido.
Demais sabe, e contra seu agrado, o criador de arte que a sua obra qualquer
não pode ter a perfeição da Natureza, de um ser dos que a Natureza produz.
Ele, porém, busca aproximar-se o mais possível. O mito de Pigmalião e Galateia
mostra que o grego compreendeu a dor de a arte nunca poder chegar à vida,
por não poder criar a vida verdadeiramente. O conceito, em aparência inferior,
dos deuses pagãos semelhantes aos homens, é, em verdade, superior ao con-
ceito platónico e depois cristão, mas já antes vindo de civilizações inferiores
e orientais, de que Deus o criador é uma entidade abstracta. O politeísmo
helénico é o reconhecimento de que os seres são semelhantes a obras de arte,
de que toda a criação é do mesmo género, e só a diferença enorme que vai de
homens para deuses marca a diferença enorme que vai de só poder criar morte
e poder criar vida. No fundo, ambos os fenómenos são erros, ingenuidades,
como todos os fenómenos religiosos; mas o politeísmo grego é um avanço
sobre o grosseiro espiritualismo, idealismo, transcendentalismo, ocultismo, dos

1/2

Obra Aberta · 2015-06-08 01:26


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índios e dos judeus, que Platão, na hora de decadência da Grécia, havia de


reconstituir desnacionalizadamente aliás. Platão foi um dos grandes inimigos da
Grécia. Aristóteles não pôde destruir o mal que ele fez. No próprio peripatético
há laivos da corrupção espiritualista e idealista do que, afinal, foi seu mestre.
Sócrates foi, na verdade, o chefe dos sofistas; na verdade foi inimigo da Pátria.
......
Como é que a ideia de Perfeição podia vir do Ideal se esse Ideal é da matéria
informe do espírito, se esse Ideal a si próprio se não pode definir? Como é que
ela seria uma ideia vinda do Ideal se a Grécia foi pátria da ideia de perfeição, e,
ao mesmo tempo, o país materialista e atento às coisas por excelência?
......

1915?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 21.

O Regresso dos Deuses?

2/2
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1920

António Mora
Não repararam na natureza da arte.

Não repararam na natureza da arte.


Procura a arte imitar a Natureza; mas imitá-la completamente. À obra de
arte, porém, dado que é produto do pensamento e não da natureza, falta uma
coisa — a vida. Por isso a “imitação completa” que da natureza procura o artista
tem de encontrar maneira de dar a vida à obra de arte.
É que a arte compõe-se de 3 elementos: 1) imitação, 2) vitalização; 3) (. . .)
(Copia a arte a Natureza, e por Natureza aqui se entende tudo, desde os
nossos íntimos pensamentos até às árvores e às pedras. Não procura a arte
reproduzir, dar a nossa sensação simplesmente; mas dar da nossa sensação
aquilo que mais traduza a realidade dela).
A arte deve: 1) dar o objecto ou sentimento tal qual foi sentido; 2) vitalizá-lo
para dar a impressão de realidade; 3) coordenar as fórmulas de vitalização
empregadas.
— A arte, como a ciência, supõe a eliminação do factor pessoal. Não viram
isto os artistas modernos.
A arte difere da ciência — não, como modernamente se crê, em que a Arte é
subjectiva, e a ciência objectiva — mas em que a ciência procura interpretar e a
arte criar.

De aí o conceito moderníssimo da Arte que confunde vitalizar com deformar.

A arte moderna procura interpretar o que vê. Ora interpretar é o papel da


ciência.
A ciência procura compreender uma coisa por meio das outras, interpretar
uma série de fenómenos por meio de todas as outras séries de fenómenos (que
para isto sirvam).
A arte procura reproduzir sem interpretar (daí o contraste vulgar entre o
génio e a “inteligência fraca” de certos homens superiores).

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:26


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1915?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 23.

O Regresso dos Deuses?

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António Mora
A arte é a interpretação individual dos sentimentos gerais.

A arte é a interpretação individual dos sentimentos gerais. Se é a interpre-


tação de sentimentos só individuais, não tem base na compreensão alheia. E
deixa de ter um limite. Porque sendo sem número os sentimentos individuais,
não se pode nunca definir o que é arte, ou o que não é arte, dado que cada qual
traz a sua arte consigo.
O romantismo, no fundo, é uma confissão de falência. Longe de ter sido
uma renovação da arte, foi uma incapacidade de a renovar. Tinham-se gasto as
fórmulas clássicas? Não se tinham gasto as fórmulas clássicas. O que se tinha
gasto era a inspiração dentro delas. Para encontrar uma nova inspiração, foi
mister saltar fora das regras. Por isso disse que o romantismo — pois que é
uma incapacidade de trabalhar dentro de limites — é uma incapacidade de
renovação artística.
O único modo de renovar a arte é substituir um conceito do universo a outro.
Para isso não faz mister alterar as formas clássicas da arte. Basta alterar o que
se exprime, para a expressão quedar alterada. O romantismo é uma tentativa
de reformação da arte de fora para dentro, em vez de dentro para fora.
Se repararmos em quais são as coisas essenciais da poesia, facilmente nos
convenceremos de que são coisas em
que não é preciso tocar para reformar a arte. Uma é a construção, outra é a
Weltanschauung.

1915?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 25.

O Regresso dos Deuses?

Obra Aberta · 2015-06-08 01:27


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1940

Fernando Pessoa
The aim of art is not to please.

The aim of art is not to please. Pleasure is here a means; it is not in this case
an end. The aim of art is to elevate.
Before this principle then the famous question of art and morality is quite
easy of solution. We do not elevate a thing by making it tend towards evil.
But is not then philosophy an art? Is not the aim of philosophy to elevate
also? It is, for knowledge elevates — it cannot lower anyone. My definition of
the end of art is then too wide, too extensive. Considering better, then, the aim
of art is elevation of man by the means of beauty. The aim of science is the
elevation of man by means of truth. The aim of religion is the elevation of man
by means of good.
By this classification we can see how it is that religion means so much; how
it is so hard to make men relinquish it. It is that religion is the practical art.
But I am far from attempting a defence of religion. Indeed it is my hope that
we found a religion without God — a religion purely of man, one which has
benevolence and kindness as its basis instead of faith an of belief.
By religion — be it noticed — I do not mean theology. Theology is, if it
be anything, a science, forming a part of metaphysics. Theology, being this, is
theory; religion is practical. The creed of Auguste Comte is more religion than
theology — it is perhaps even more, for it has not the egoistic element of a care
for self-salvation.
How do we explain the taste of so many authors for subjects which are
coarse, unpleasant, repugnant? How are we to explain the (. . .) of Zola; how the
“Black Cat” of Edgar Allan Poe?
One reason for this taste is, I believe, to be found in the scientific and analytic
spirit of the author. Another consists in the originality of the subject. Is it in the
cultivation of a novelty of sensations?
Is such a taste pathologic or is it not?
Do these poets and the psychologist [. . .]
Do they, as Baudelaire in his “Le voyage”, descend “au fond de l’enfer pour
trouver du nouveau”?
In idealistic compositions the symbol must be vague. By vague, however,
I do not mean obscure. Its meaning should be grasped as vague in its limits

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:27


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and in its boundaries — in itself it must be clear. The idealistic symbol must
resemble those lofty woman [?] creations of Shelley; the outlines, the contours
of whose ineffable beauty are uncertain and undestined.
The satiric symbol, on the other hand, must be clear, quite clear. If it be
vague it ceases to be striking.

1907?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 26.

2/2
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Fernando Pessoa
AS ARTES [a]

AS ARTES

Há as artes cujo fim é entreter, que são a dança, o canto e a arte de represen-
tar.
Há as artes cujo fim é agradar, que são a escultura, a pintura e a arquitectura.
Há as artes cujo fim é influenciar, que são a música, a literatura e a filosofia.
Há uma arte cujo fim é entreter, não podendo derivar a sua força, ou o seu
valor, nem do tempo que entretém, porque esse tempo forçosamente tem de ser
limitado, nem da qualidade de almas que entretém, porque entreter não inclui
[?] um valor — só pode derivar a sua força do número de gente que consegue
entreter (e, também) da intensidade com que entretém.
Uma arte cujo fim é agradar deriva já a sua força, ou o intenso do seu
valor, não só do número de gente a quem agrada, mas deste número somado à
intensidade do agrado que causa. Em vez de valer extensamente como as artes
anteriores, vale intensamente.
Entreter não comporta intensidade, porque entreter está ligado a variar,
variar a não-durar, e o que não dura nunca pode ser muito intenso.
As artes cujo fim é influenciar, para influenciarem quantitativamente e
qualitativamente, têm que ter qualidades que façam com que se dirijam ao
melhor público de um grande número de épocas. Para isso é preciso que
tenham qualidades que se dirijam à média superior das almas de várias épocas,
no que todas as épocas têm de fundamentalmente comum. O que é isso? As
épocas superiores têm de comum, ou as épocas têm de comum nas suas pessoas
superiores: 1º a análise psicológica, 2º a especulação metafísica, 3º a emoção
abstracta. (1º literatura, 2º filosofia, 3º música).

1925?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 29.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:04


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Fernando Pessoa
Athena — O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte
média. . .

ATHENA

O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da


arte superior é libertar. Mas a arte média, se tem por fim principal o elevar,
tem também que agradar tanto quanto possa; e a arte superior, se tem por fim
libertar, tem também que agradar e que elevar, tanto quanto possa ser [. . .].
Elevar e libertar não são a mesma coisa. Elevando-nos, sentimo-nos superio-
res a nós mesmos, porém por afastamento de nós. Libertando-nos, sentimo-nos
superiores em nós mesmos, senhores, e não emigrados, de nós. A libertação é
uma elevação para dentro, como se crescêssemos em vez de nos alçarmos.

1924
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 30.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:05


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Fernando Pessoa
1) Artes de agrado

1) Artes de agrado

2) Artes de aperfeiçoamento
[. . .]

Tornar o útil agradável, eis a base de artes de aperfeiçoar; porque tornar o


útil agradável é aperfeiçoar o útil, tornando-o mais útil, fazendo-o servir em
si o seu fim directo, que constitui a sua utilidade, plus [?] outro fim, indirecto,
que é o de tornar essa utilidade duplamente útil.
A escala é da mais directa agradabilização do útil para a menos directa; da
arquitectura, portanto, através da escultura para a pintura.
3) Artes de influenciar. São essencialmente as artes de civilização. O seu
fim é transmitir civilização, passar de umas gerações para outras o resultado
do trabalho psíquico de cada uma. As artes de influenciar são portanto: a)
representativas de resultados civilizacionais, e não de tipos psíquicos (. . .) .
O ideal do artista influenciador é alto na proporção em que ele tem cons-
ciência do seu mister, na proporção em que tem consciência do seu papel
de influenciador de gerações futuras, e da sua missão de quem deve deixar
perenemente aumentado o património espiritual da humanidade.
Os poetas antigos tinham esta consciência; a decadência dela entre os mo-
dernos, substituída pela ânsia da popularidade imediata, apanágio finalista
das artes inferiores, é um dos mais fortes sintomas da nossa degradação moral
(espiritual) .

Artes de influenciar

a) o fim representativo: o artista procura, ao fazer a sua obra, deixar alguma


coisa que represente o estado da sua época (?).

b) o fim valorizador: [o artista procura deixar] alguma coisa que dê valor à


sua pátria (ou à humanidade).

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Obra Aberta · 2015-06-08 02:05


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c) o fim instrutivo: [o artista procura deixar] alguma coisa que perenemente


mande nas almas.

Uma obra sobrevive em razão de


1) sua construção, porque, sendo a construção o sumo resultado da vontade
e da inteligência, apoia-se nas duas faculdades cujos princípios são de todas as
épocas, que sentem e querem da mesma maneira, embora sintam de diferentes
modos;

2) a sua profundeza psicológica;

3) carácter abstracto e geral da emoção que emprega. A obra sóbria de


emoção tende mais a sobreviver porque a emoção moderada é característica de
todas as épocas, porque os de emoção moderada a apreciam naturalmente; e os
de emoção irregular têm a sua média na emoção moderada. De mais a mais,
as emoções excessivas variam de época para época; são, portanto, o que há de
passageiro em cada uma. As emoções moderadas caracterizam todas; isto é,
todas as aceitam, embora algumas, por o que têm de transitório, prefiram que
se exagere.
A excessiva compaixão pela humanidade, por ex., caracteriza o romantismo.
Fora do romantismo, essa emoção não existe. Mas a compaixão nobre pelas
dores humanas é um sentimento humano de todas as épocas.

1925?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 31.

2/2
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/4062

Álvaro de Campos
A INFLUÊNCIA DA ENGENHARIA NAS ARTES
RACIONAIS

A INFLUÊNCIA DA ENGENHARIA NAS ARTES RACIONAIS

(Apontamentos para uma estética não-aristotélica)

Quanto piu un’ arte porta seco fatica di corpo, tanto piu è vile.
Leonardo da Vinci

De há muito sustento a teoria que a civilização é a criação de estímulos em


excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reacção a eles.
A civilização é pois a tendência para a morte pelo desequilíbrio. A coisa mais
útil que a ficção real chamada um povo pode fazer é resistir a civilizar-se por
processos de civilização. Existir é não se deixar matar; ser civilizado é inventar
reacções para os estímulos que excedem já a reacção possível, isto é, inventar
reacções artificiais, quer dizer civilizadas, contra a própria civilização.
Tudo que é vivo subsiste pelo equilíbrio de duas forças — a de integração
e a de desintegração, o anabolismo e o catabolismo dos fisiologistas. A que
desintegra faz viver e morrer; a que integra faz morrer e viver. Uma insiste, e
outra subsiste. Até à civilização (sociedade), e na ordem biótica, e mesmo abaixo
da biótica, a força que insiste é que cria, porque destrói, e destruir é transformar;
a força que subsiste é que deixa criar, porque não deixa destruir, e destruir é
transformar para outro. Na ordem acima da biótica — isto é, nas sociedades
— inverte-se a dinâmica dos factores agentes: a tendência para subsistir é que
mata, a tendência para não subsistir é que faz viver. Isto porque a sociedade é
um corpo naturalmente artificial, e vive por isso segundo leis que são contrárias
às leis naturais.
O que faz subsistir nas sociedades? A tradição, a continuidade, a tendência
para permanecer, isto é, para não viver. E a tradição, a tendência para permane-
cer, tem três formas — o apego ao passado, que é a tradição vulgar; o apego
ao presente, que é a moda; e o apego ao futuro, que é o ideal social em que se
confia. O que faz viver, isto é, não subsistir, nas sociedades ? A anti-tradição,

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Obra Aberta · 2015-06-08 02:05


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/4062

a tendência para não permanecer. E a tendência para não permanecer tem só


uma forma — o apego ao não-passado, ao não-presente, e ao não-futuro. Isto
quer dizer o apego ao abstracto e ao ideal em que não se confia. Por isso a força
que conserva as sociedades é a inteligência de abstracção e imaginação.
A inteligência de abstracção e imaginação tem duas formas — a matemática
e a crítica. A matemática abstrai de toda a experiência, excepto da essência
da experiência; o único critério de verdadeira objectividade que temos é o
critério de matematização. A crítica abstrai de toda a experiência excepto de
ela ser nossa; o único critério de verdadeira subjectividade que temos é o da
confrontação, não das nossas impressões com as coisas, mas das coisas com as
nossas impressões.
Deve compreender-se que entendo por crítica toda a actividade crítica: a
crítica, no sentido em que emprego a palavra, inclui toda a forma de actividade
que ou não aceita, ou quer substituir a objectividade da experiência. Assim, a
arte é uma forma de crítica, porque fazer arte é confessar que a vida ou não
presta, ou não chega. Assim, também, a parte por assim dizer dogmática da
religião (não a sua parte social nem a sua parte metafísica) é uma forma de
crítica, porque crer numa coisa sem ser com uma razão, embora aparente (como
acontece na metafísica, que procura explicar), não sendo essa coisa um elemento
da experiência (objectiva), é querer substituir essa experiência. . .
A crítica é, em suma, todo o artifício que é feito com inteligência, e sem fim
social nenhum. Desde que sirva um ideal em vez de uma impressão [?], a crítica
é falsa como crítica, não é crítica, em suma, mas só opinião.

1924
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 33.

2/2
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/4075

Fernando Pessoa
Argumento do jornalista

Argumento do jornalista

As artes todas são uma futilidade perante a literatura. As artes que se diri-
gem à visualidade, além de serem únicos seus produtos, e perecíveis, podendo
portanto, de um momento para o outro, deixar de existir, não existem senão
para criar ambiente agradável, para distrair ou entreter — exactamente como as
artes de representar, de cantar, de dançar, que todos reconhecem como sendo
inferiores em relação às outras. A própria música não existe senão enquanto
executada, participando portanto da futilidade das artes de representação. Tem
a vantagem de durar, em partituras; mas essa não é como a dos livros, ou
coisas escritas, cuja valia está em que são partituras acessíveis a todos que
sabem ler, existindo ali para a interpretação imediata de quem lê, e não para a
interpretação do executante, transmitida depois ao ouvinte.
As literaturas, porém, são escritas em línguas diferentes, e, como não há
possibilidades de haver uma língua universal, nem, se vier a havê-la, será o
grego antigo, onde tantas obras de arte se escreveram, ou o latim, ou o inglês
ou outra qualquer, e se for uma delas não será as outras, segue que a literatura,
sendo escrita para a posteridade, não a atinge senão, na maioria dos casos, em
referências indirectas, nomes sem sentido, numa vida de citação traduzida e
dicionário.
O jornalismo, sendo literatura, dirige-se todavia ao homem imediato e ao
dia que passa. Tem a força directa das artes inferiores mas humanas, como o
canto e a dança; tem a força de ambiente das artes visuais; tem a força mental
da literatura, por de facto ser literatura. Como, porém, o seu fim não é senão
ser literatura naquele dia, ou em poucos dias, ou, quando muito, numa breve
época ou curta geração, vive perfeitamente conforme com os seus fins.
Concedo, disse, que Ésquilo seja hoje, ainda que translatamente, uma in-
fluência. Nego que uma influência translata possa ser uma influência literária. É
para nós como um homem agradável que nos fala uma língua estranha. Como é
agradável, admitimos que esteja dizendo coisas simpáticas. Como, porém, o fim
de dizer é ser entendido, e o não entendemos, há erro em tudo que está nisto.

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Obra Aberta · 2015-06-08 02:05


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/4075

A religião e o jornalismo são as únicas forças verdadeiras. Quando se diz


que o jornalismo é um sacerdócio, diz-se bem, mas o sentido não é o que se
atribui à frase. O jornalismo é um sacerdócio porque tem a influência religiosa
dum sacerdote; não é um sacerdócio no sentido moral, pois não há, nem pode
haver moral no jornalismo, que serve o momento que passa, em o qual não
cabe, nem pode caber, moralidade.
Quando digo que escreve futilmente o que escreve para a imortalidade, ou
para as épocas futuras, deve entender-se que não pretendo com isso negar
a sobrevivência da alma, ou até a sua imortalidade. Não nego nem afirmo;
concedo. Mas nada disso pesa no meu argumento. A acção da literatura é sobre
quem fica neste mundo — (e o astral do poema, ou da narrativa?. . .).
— Engana-se, meu amigo, disse eu. Cada coisa neste mundo não é porven-
tura senão a sombra e o símbolo de uma coisa (essa a verdadeira) em outro
mundo antetípico ou espiritual. Não é pois a língua em que está escrito um
poema que pesa no caso. É o poema que foi escrito nessa língua. E esse é uma
entidade abstracta e real, agente sem corpo verbal.
— Seja, respondeu o jornalista. Concedo sem admitir.

s. d.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 36.

2/2
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1663

Fernando Pessoa
A arte suprema tem por fim libertar. . .

A arte suprema tem por fim libertar — erguer a alma acima de tudo quanto
é estreito, acima dos instintos, das preocupações morais ou imorais.
A arte nada tem com a moral, quanto ao fim; tem, quanto ao conteúdo.
Toda a arte deve dar prazer — o tipo de prazer é que varia. A arte inferior
dá prazer porque distrai, liberdade porque liberta das preocupações da vida;
a arte superior menor dá prazer porque alegra, liberdade porque liberta da
imperfeição da vida; a arte superior dá prazer porque liberta, liberdade porque
liberta da própria vida.
Um assunto sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite desejo.
Para suscitar desejos, serve melhor uma fotografia pornográfica.

13-10-1914?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 53.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:22


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1676

Fernando Pessoa
AS ARTES

AS ARTES

As relações entre a arte e a moral são análogas às entre a arte e a ciência.


Não há relação entre a arte e a moral, como a não há entre a arte e a ciência;
mas um poema que viola as nossas noções morais impressiona identicamente o
homem são como um poema que viola a nossa noção da verdade.
Um poeta que canta, elogiando, o roubo, não fará com isso um bom poema;
nem o fará um poeta moderno a quem lembre cantar o curso do sol à volta da
terras que é uma coisa falsa.
Viola a regra do agrado. Agradará a mais gente um poema que, sobre ser
belo, seja moral, que um que, sendo belo, seja imoral. As épocas têm mais
de comum as suas ideias morais que as suas imoralidades. Só nas épocas
de decadência é que a moralidade deixou de ser um ideal; e, mesmo nessas,
reconhece-se o seu valor ideal.
As relações são entre o artista e o moralista, não entre a arte e a moral.
Como é improvável que um grande artista, por isso mesmo que é um grande
artista, falseie a verdade, é improvável que falseie a moral. Não pertence esse
característico aos de um cérebro típico de criador.
O criador de arte para influenciar tem, em geral, como motivo o interesse
de influenciar; ao qual falha se cria obra com elementos que tendem a limitar a
acção da obra.
A tendência moral é reconhecida pela espécie [?] humana como superior
à realidade [?] imoral. O poeta imoral corre portanto, na proporção em que é
imoral, o risco de não influenciar os espíritos superiores (quando não da sua
época, porventura decadente), das outras épocas pelo menos.

1916?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 54.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:22


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1702

Fernando Pessoa
A questão da arte moral ou imoral. . .

A questão da arte moral ou imoral — se a arte deve ser “art for art’s sake”,
independentemente da moralidade — , apesar de muito simples de solução,
não tem deixado de ocupar desagradavelmente muito pensador, especialmente
dos que desejam provar que a arte deve ser moral.
Em primeiro lugar demos inteira razão — é evidente que a tem — aos
estetas; a arte tem, em si, por fim só a criação de beleza, aparte considerações de
ser moral ou não. Se isto é assim quem manda pois à arte ser moral? A resposta
é simples: a moral. Manda-o a moral porque a moral deve reger todos os actos
da nossa vida e a arte é uma forma da nossa vida. Têm errado aqueles que têm
querido achar uma razão, dentro da própria Natureza da arte, para a arte ser
moral. Não existe essa razão onde a procuraram. A arte, qua arte, tem por fim
apenas a beleza. A razão que a manda ser moral existe na moral, que é exterior
à estética; existe na natureza humana.
A arte tem duas feições: a feição puramente artística e a feição social. A feição
artística é criar a beleza — nada mais. Como a beleza é uma coisa independente
do consenso humano (apesar de julgada por ele), como a beleza em si, digamos,
é independente de opiniões, a arte na sua (. . .) social nenhum outro fim tem
que a criação da beleza, sem outra consideração moral ou intelectual.
Mas a arte tem outra feição. É a feição social. O artista é um homem e um
artista. Puramente artista a sua obra, já o dissemos, tem só por fim criar a
beleza, só uma responsabilidade — perante a Estética. Mas o artista vive em
sociedade, publica as suas obras de arte. Vive em sociedade como artista e vive
em sociedade como homem. Como artista o seu fim é um só: agradar. Como
homem o seu fim é um só: obter glória. Vemos pois que o artista mostra-se-nos
sob 3 feições: como puramente artista (não tendo outro fim que criar a beleza),
como ao mesmo tempo artista e homem (querendo ver essa beleza que criou
admirada), e finalmente como homem (desejando a glória, no que é comum
aos outros homens, geralmente a todos). O primeiro sentimento é puramente
impessoal; o segundo é entre pessoal e impessoal — o desejar ver admirada uma
obra de arte, conquanto sua, não é inteiramente egoísta; o terceiro é inteiramente
pessoal.

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:23


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1702

Cremos ter dado, nestas palavras, a solução definitiva do problema.


Ora, segundo estas 3 feições do artista, está ele submetido a diversas leis.
Como puramente artista nenhuma outra lei tem que não seguir a estética.
Mas já buscando agradar se tem que submeter a outras leis; a natureza da
humanidade é uma só, não se divide em estética, moral, intelectual, etc. Só a
Estética personalizada é que poderia apreciar uma obra de arte sob o ponto de
vista puramente estético. A humanidade não; o amor da beleza é fundamental
na sua alma — é arte; mas não só isso reside nela, não só com isso critica e
aprecia. Outros elementos entram inevitavelmente essa apreciação. Um grande
poema revolucionário agradará mais a um republicano do que a um conservador,
admitindo em ambos, quanto a qualidades críticas, a mesma dose de estética.
Os homens não apreciam só esteticamente, apreciam segundo toda a sua
constituição moral. Por isso coisas grosseiras impuras, lhes desagradam, não na
parte estética neles, mas na parte moral que não podem mandar embora de si.

1914?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 55.

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Fernando Pessoa
This problem of immoral art is one that is ever cropping up,

This problem of immoral art is one that is ever cropping up, centering for the
moment round one work or another which puts the vague principles involved
in that problem into public focus. There are two aspects to the problem. The
first is the abstract philosophical one which consists in the discussion of the
relations between art and morals, the aesthetic problem of ethics, if we may so
call it, or, putting it the other way, the ethical problem in aesthetics. I am not
now concerned with this problem. My object is to discuss the practical problem
based upon these two elements — the problem of pornography, we may say.
Should government or any authorities control or supervise the exercise of
literary or artistic faculties, having regard to their possibly evil influence on the
reading, seeing or hearing public? If so, on what bases will that supervision
work?
We will take the problem as concerned with literature. The only classification
admissible in literature, which concerns this problem is into literature proper
and mere obscene writing. That obscene writing which is the script
equivalent of, say, obscene photographs, in which the only possible justi-
fication is obscenity, belongs palpably to a different species than the writing
which is literary and in which either obscene elements are superimposed on
the literary substructure, or inextricably interwoven with the artistic substance
thereof. So that, if authorities are to interfere in this problem, they have to
proceed, first, on a palpably aesthetic basis.
The question, as all questions, is of degrees. There are works which are
palpably only obscene and not literary at all, such as those pamphlets, we have
just named, which correspond in written manner to the obscene photographs
which we also cited in parallel. And there are, at the other end, products
like “Venus and Adonis”, like so many classical poems and prose-works; the
difficulty is greatest when we meet with high works of art which are, not only
immoral, but frankly apologetic for some species of immorality.
It cannot be claimed that the artistic elements involved absolve and extirpate
the immorality of the work. Of the two kinds of public that read, one, the lower,
does not see the artistic elements and enters into the significance of only the

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:23


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immoral elements contained in the work of art. The other portion of the reading
public, that portion which is sensitive to artistic influences, and able therefore to
effect a separation between the two kinds of elements which are, by hypothesis,
involved in the kind of artistic work we are discussing, is not very far from
the other public in reference to effects, for, if the work be really a high work of
art, and the immoral elements therefore not foreign to the substance of it, but
inextricably wound up with it, these immoral elements are brought all the more
into prominence, inasmuch as they gain intensity, beauty and fervour through
the artistic way they are put.
“Venus and Adonis” is very likely to excite sexual feelings in a feebly
educated person; but it is, if anything, still more likely to excite them in a
highly educated or highly-sensitive one. The very artistic superiority of the
work ensures that effect. The principle that “to the pure all things are pure” is
pure fireworks; there are no “pure”.
If we wish to prohibit the sale of immoral art, we cannot do so without
prohibiting art at the same time. The problem is especially difficult when we
have to consider non-extreme works, that is works which are not palpably
superior from the artistic standpoint, but which also are not pure obscenity,
mere obscenity and no more. When we are at the Shakespeare level, we all more
or less agree that it would be tantamount to violence to prohibit the circulation
of immoral literature. When we are at the literary level correspondent to the
obscene photograph, only the traders in it will not agree to its suppression.
But when we are round the popular novelist level, the problem becomes very
difficult. To a certain extent works on a literary par with Mr. Hall Caine’s or
Miss Marie Corelli’s are literature; though they are unremaining literature —
though several people, indeed, might claim for them a superior level. If such
works convey obscenity or immorality, what is to be done to them?
The central fact is that the problem is elsewhere and its solution rendered
impossible until we decide to see that some classification of publics must be
entered into, before any light at all breaks into the discussion.
For the essential difference between the uneducated and the educated rea-
ding of, say, “Venus and Adonis” is that, though both educated and uneducated
are very possibly sensually excited to the same degree while reading the work,
the after-influence differs, special cases and morbid ones being, of course, not
considered. A little after finishing “Venus and Adonis”, the uneducated reader
who has not been bored but kept interested by the sexual part of it, remains
under the influence of that part of it which interested him, and that is the sexual

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one. Whereas the educated reader, once past the momentary excitement of the
work, remains rather under the influence of the artistic elements.
The second distinction to be effected is between adult and non-adult public.
An adult is held to be one who is able to shift for himself, which a child is
not. So that, in this field, the problem becomes simple: the reading of immoral
works, of whatever kind they be, should be forbidden to children, but permitted
to adults.
Among adults, the distinction follows: there are the educated and the une-
ducated ones, and the latter are, to a certain extent, in the position of children.
So that, if prohibition is to some extent to be decided on, it should be extensive
only to the uneducated part of the public. The question of how that is to be
effected is quite secondary and solvable, if only approximately, in several ways.

1914?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 57.

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Fernando Pessoa
[Carta a Adolfo Rocha — Jun. 1930]

Meu prezado camarada:


Recebi a sua carta que agradeço, e vou procurar expor em frases sem imagens
o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que,
tendo tardado já uns dias em agradecer o seu livro, escrevi uma carta rápida,
para não demorar mais. Sucede que, quando escrevo rapidamente, isto é, sem
ter tempo de desdobrar em razões o que digo, e concisamente, por escrever
rapidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafórica, e não
lógica. Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessariamente
existiria na minha carta. O que não havia nela era o dogmatismo que parece
supor que continha. Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia
para dia muda de opinião, e é, por temperamento, instável e flutuante. Vamos,
que consigo o caso não foi grave: já me sucedeu pior, com um poeta espanhol
— ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da língua — o
ser o conciso tomado por seco, e o metafórico por irónico.
Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus
é o seguinte:
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos
fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente
pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia sus-
ceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência,
mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e
instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto
que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto
as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual; b) a reflexão
crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado
pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem
lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simples-
mente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de

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arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o
inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não
quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora,
por necessidade orgânica, o já elaborado.
Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste
mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a
sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia;
que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de
escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.
Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma
seguinte: 1) a sua sensibilidade é boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2)
pode, portanto, ser um poeta espontâneo, sem ter que sobreintelectualizar
demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crítica; 3) para isso, porém,
convinha-lhe (a meu ver, bem entendido — mas era a minha opinião, que não
a de outrem, que lhe dava), ou a) focar num ponto nítido e universalmente
transmissível a intelectualização da sensação, ou b) distribuir mais igualmente
a intelectualização pela extensão da sensação.
Isto não é, talvez, muito claro; não sei, porém, como o diga melhor. Servir-
-me-ei de exemplos. Um homem que era, e suponho (embora nada publique,
nem talvez escreva) ainda é, o mais curioso espírito crítico português, Manuel
António de Almeida, escreveu, em 1912, no “Inquérito Literário” de Boavida
Portugal, esta definição da arte moderna: “Uma representação central nítida, em
torno da qual bóia todo um nimbo de coisas evocadas.” Isto representa muito
bem o que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo
seria, servindo-me de uma expressão de igual tipo, “uma representação central
vaga, em torno da qual brilham, nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as
representações secundárias.”
É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento, e
para não tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta
lhe disse translatamente .
Peço-lhe que creia no verdadeiro apreço de . . . . . .

6-1930
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 69.

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Fernando Pessoa
Estética — A composição de um poema lírico deve ser feita não
no momento. . .

Estética

A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção,


mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual,
e uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si,
intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma
emoção é a sua existência na inteligência — isto é, na recordação, única parte
da inteligência, a propriamente tal, que pode conservar uma emoção.

1928?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 72.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:23


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Fernando Pessoa
A poem is an intellectualized impression, or an idea made
emotion,

A poem is an intellectualised impression, or an idea made emotion, com-


municated to others by means of a rhythm. This rhythm is double in one, like
the concave and convex aspects of the same arc: it is made up of a verbal or
musical rhythm and of a visual or image rhythm, which concurs inwardly with
it. The translation of a poem should therefore conform absolutely to the idea or
emotion which constitutes the poem, to the verbal rhythm in which that idea or
emotion is expressed; it should conform relatively to the inner or visual rhythm,
keeping to the images themselves when it can, but keeping always to the type
of image.
It was on this criterion that I based my translations into Portuguese of Poe’s
“Annabel Lee” and “Ulalume”, which I translated, not because of their great
intrinsic worth, but because they were a standing challenge to translators.

1923?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 74.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:02


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Fernando Pessoa
ESTÉTICA — Poesia lírica primeiro música + poesia, poesia
cantada.

ESTÉTICA

Poesia lírica primeiro música + poesia, poesia cantada. Depois a poesia to-
mou para si o ritmo. A música passou a expressar sentimentos por si, e a poesia
lírica a ter música em si (Cf. as poesias de Shelley e a sua má musicabilidade).
A sátira, o epigrama são duros, mas é porque a música do satirizar é a aspereza
e a [. . .]
Toda a poesia lírica tem, ou deve ter, uma música própria (como Tennyson
tem). — A arte que poetas líricos, às vezes instintivos de todo, têm, é uma
composição musical.
Uma poesia (lírica ou outra) exige intérprete, como uma partitura (trecho mu-
sical); só que na poesia a interpretação é mais restritamente inindividualizável
por causa do elemento fixador.

1915?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 74.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:01


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Fernando Pessoa
Essentials of poetry are three: Feeling, Colour and Form.

Essentials of poetry are three: Feeling, Colour and Form.


Poetical feeling, and in some degree poetical colour, may be used in prose;
what especially distinguishes poetry is poetical form. — Thus in the prose
of Carlyle or of Ruskin, or of Jenny Taylor there are fine passages of poetry
poetically coloured.

1906?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 81.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:02


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Fernando Pessoa
Se quisermos estudar — em contraposição, sobretudo, ao ideal
antigo. . .

Se quisermos estudar — em contraposição, sobretudo, ao ideal antigo — o


critério de perfeição a que um dramaturgo hoje pretende, ou deve pretender,
conformar-se, temos que procurar a sua causa na operação dos fenómenos
culturais que, nesta matéria, fundamentalmente distinguem a nossa época das
épocas anteriores; o seu efeito através das duas qualidades do espírito, que
vimos serem causas na criação dramática. (Concretizando melhor: temos que ver,
primeiro, quais são as normas práticas da cultura que cumpre que comandem
o espírito do dramaturgo deste tempo; temos que ver, depois, em que é que,
especificamente, essas normas influem na intuição psicológica e no instinto da
acção sintética) .
Os fenómenos culturais, de que se trata, e que distinguem a nossa época
de outras, são, primeiro, e no campo da cultura geral, a extensão, compulsão e
intensidade da cultura científica; segundo, e no campo restrito da cultura artís-
tica, e desde o romantismo, a tendência para substituir os processos sugestivos
aos definidores na realização da obra; terceiro, e no campo ainda mais restrito
da cultura teatral, os aperfeiçoamentos especiais do instinto cénico e da arte de
representar.

As faculdades do espírito que são envolvidas naquilo a que chamámos o


instinto da acção sintética não sofrem, pela agência daquelas causas, e em relação
ao critério antigo, alteração notável quanto aos ideais gerais para que tendem.
Desde que o drama é criticamente, ou conscientemente, drama, a tendência
para aperfeiçoar a acção concretiza-se sempre no sentido de a concentrar o
mais possível; nem para outro fim foram imaginadas as celebradas unidades de
tempo e de lugar. Não houve nunca, em arte dramática outro ideal, porque tal
ideal é o critério de perfeição que se deduz da própria substância do drama.
O que o romantismo de parte da Renascença, e depois o romantismo como tal
conhecido, realizaram no sentido de fazer predominar o elemento psicológico

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Obra Aberta · 2015-06-08 02:03


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(como em Shakespeare) ou o lírico (como nos românticos) sobre o elemento


dramático não representa uma fase evolutiva, mas um desvio mórbido; não tem
por isso interesse para o caso do ideal dramático.
Neste campo restrito da acção dramática, a única influência moderna notável
é a que provém do acréscimo do instinto cénico, e do aperfeiçoamento da arte de
representar. Um e outra têm evoluído no sentido de conseguir uma ilusão cada
vez maior de naturalidade e de inevitabilidade. Servo desta necessidade legítima,
o dramaturgo moderno tem sido compelido a eliminar progressivamente os
artifícios palpáveis do antigo drama — os monólogos, as entradas e saídas
mecânicas, a sucessão arbitrária de cenas. Enorme como progresso técnico, este
avanço carece de alcance profundo apenas porque deriva das mais, e não das
menos, superficiais das causas culturais operantes.
De resto, no que respeita ao instinto da acção dramática, as influências
culturais mais profundas só operam hoje em um sentido: é quando a acção
envolva uma tese, conclusão ou “filosofia”. De per si, a presença de uma tese
não aumenta nem diminui, como arte, o equilíbrio ou relevo da obra dramática.
A tese é extra-artística no drama, como em qualquer obra não-filosófica por
natureza; e, como tudo quanto na arte é extra-artístico, a tese pode aumentar
o valor da obra, se é tratada, e nela integrada artisticamente; diminui-o com
certeza se o não é, se, por o não ser, representa, pelo menos, um acréscimo
inassimilado no conjunto. Ora, na obra dramática moderna, onde haja tese,
as causas culturais já citadas operam no sentido de compelir o autor cioso da
perfeição a apresentar essa tese de determinado modo.
A preocupação artística moderna, de sugerir em vez de exprimir, obriga-
-nos a que concebamos o ideal dramático neste ponto como o de que a tese,
conclusão ou filosofia do drama seja sugerida pelo seu enredo ou conjunto, e
não dita por esta ou aquela personagem (em substituição sem vantagem dos
coros do drama antigo), não distribuída pelas personagens em indicações ou
considerações directas (como nos monólogos que no drama ante-moderno foram
o seguimento dos mesmos coros). Ou pelo processo simbólico, em que o drama
é, pelo enredo fora, a sombra, passo a passo, de uma ideia (como nos dramas
de Maeterlinck ou de Lord Dunsany, aliás falhados pela opressão excessiva
do símbolo); ou pelo processo sugestivo, em que a obra no seu conjunto findo
leva a uma conclusão (como, sem falha, no drama a que estas considerações
servem de comentário) — o facto é que a tese só é admissível ao instinto artístico
moderno quando, de uma ou de outra destas duas maneiras, ela se integra na
estrutura da obra e com ela se consubstancia, e não se lhe extra— ou justapõe.

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Neste campo do instinto da acção dramática não produziu a cultura moderna


outros resultados, quanto ao ideal que o dramaturgo de hoje procura conseguir;
é no campo da intuição psicológica, no conceito do psiquismo individual, que
a cultura científica produziu, na mente do dramaturgo, porque na de toda a
gente culta, resultados novos e notáveis.

Cinco conceitos predominantes, de origem científica todos, formam hoje


parte determinante e insensível da cultura geral, no que diz respeito à interpre-
tação psicológica. Um desses conceitos vem da biologia; três são dados pela
ciência psicológica, o quinto é insinuado, mais do que dado, pela ciência, pois
que nasce, não dela, mas da filosofia científica.
O primeiro conceito, disse, vem da biologia; da ciência do corpo, em que
é fundamental, passa por extensão directa para a ciência do espírito, pois que
essas duas ciências são, afinal, ambas ciências da vida. É o conceito de que o
homem, psíquica— como fisicamente, é, como qualquer outro animal, produto
determinado da hereditariedade e do meio. Não interessa, para o caso presente,
analisar e esmiuçar o conteúdo desta ideia; apontar, por exemplo, como no
próprio conceito de hereditariedade se inclui o seu oposto e complementar, o de
variação. No seu alcance geral e absoluto, tal conceito é uma conclusão assente
da ciência positiva.
Dos três conceitos seguintes — os que a psicologia traz — — o primeiro é
directamente psicológico. Deriva daquela aquisição definitiva e fundamental da
ciência do espírito, pela qual ela se contrapõe radicalmente à antiga filosofia da
alma. Em poucas palavras ele se define por extenso: “O homem é um animal
irracional”. Com efeito, contra a pseudopsicologia tradicional, cristã como não-
-cristã, para quem a alma humana era símplice, a razão a faculdade, não só
distintiva, como também impulsiva, do Homem, e a consciência o fenómeno
definidor dos factos psíquicos, a ciência psicológica constata que a alma humana,
soma de instintos e impulsos herdados e de hábitos adquiridos e insensíveis,
é um composto heterogéneo; que a emoção, e não a razão, conduz o Homem
como os animais, sendo apenas maior mas não mais activa naquele do que
nestes; que a esfera do inconsciente, ou subconsciente, é enorme e activa, e
pequena e quase estática a esfera da consciência. Esta tripla conclusão é uma
só: o Homem é uma soma heterogénea de solicitações inconscientes, a que
uma consciência e uma razão, aquisições recentes da animalidade, presidem

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como um rei constitucional, que reina mas não governa. A acção humana é
irracionalizável, contraditória, absurda. Quanto tenha coerência, é a coerência
do temperamento, não do raciocínio. A razão alumia um caminho que não
determina. A vontade está sempre sob sugestão post-hipnótica. A mais lúcida e
simples das nossas escolhas é inúmera e obscura nas suas origens.
A este conceito fundamental da ciência psicológica, uma parte especial dessa
ciência, a psiquiatria, acrescenta dois conceitos. O primeiro — deduzível, aliás,
da biologia, mas que os psiquiatras constataram independentemente — é o da
importância suprema do fenómeno sexual na vida do espírito. A psiquiatria
nota, com efeito, que a desagregação psíquica é quase sempre acompanhada
pelo desvio sexual. Quase sempre? A mais recente das teorias psiquiátricas diz
que sempre. Freud e os seus discípulos, através da “psico-análise”, afirmam
a origem sexual de todas as psicoses. Justa ou não esta doutrina extrema, o
certo é que a sexualidade domina os factos psíquicos tanto, se não mais, que
os físicos; e que a sua importância notavelmente se vê quando se analisam as
manifestações mentais de um louco ou de um degenerado.
O segundo conceito, que a cultura psicológica geral deve à psiquiatria, é
o de que a superioridade psíquica notável é acompanhada por um desvio
psíquico, que todo o superior é um doente, ou, em termos mais flagrantes, que
o supernormal é, por ser isso mesmo, anormal. Este conceito teve interpretações
extremas e absurdas, como em Lombroso; mas ninguém, hoje, duvida de que
seja, na sua substância, uma verdade; de que a variação extrema não envolva
desadaptação.
Finalmente, a filosofia da ciência, e não já a ciência propriamente, trouxe
para a cultura geral um conceito importante, que é o último dos que serão aqui
citados. E o conceito determinista, que, na aplicação psicológica, se resume na
tese de que todo o acto humano é o produto determinado do temperamento
e do impulso, ou estimulo, externo. Assim, e à luz deste critério, todo o acto
humano é o cruzamento inevitável de duas linhas inevitáveis — o carácter
determinado do indivíduo, e o curso determinado dos fenómenos externos.
Este conceito pode ser verdadeiro, pode ser falso; mas a verdade é que ele é uma
conclusão tão inevitável da soma das aquisições científicas, é uma necessidade
tão iniludível da nossa mentalidade culta, que ninguém o contestaria se o
dogma religioso, ou preconceito pragmático do livre-arbítrio, se não sentisse
por ele desapassado. O que se não pode negar é que o conceito determinista
influi subtilmente em espíritos que repudiariam a fé expressa nele; que é um
dogma essencial da mentalidade de hoje; que por ele regressou ao espírito

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humano o antigo conceito, tão profundamente dramático, da Fatalidade.

Quem quiser, à luz destas considerações, percorrer com atenção ainda


que rápida a obra dos artistas psicólogos — romancistas ou dramaturgos
— modernos, constatará sem dificuldade que, umas vezes conscientemente,
outras inconscientementes quase toda a arte de hoje, em que haja elementos
psicológicos, tende para uma perfeição que aqueles cinco conceitos orientam e
determinam.
A que atribuir, senão a eles, tantos estudos da hereditariedade, tantos estudos
de “meios sociais”, e da influência deles sobre os homens, na novela e no drama
da nossa época? A que atribuir uma tão profusa e tão especial atenção aos
desvios sexuais e aos conflitos provenientes desses desvios? A que atribuir
uma tão larga cópia de preocupações psiquiátricas na arte psicológica do nosso
tempo? Se quisesse citar exemplos, alargaria indevidamente este estudo, que já
deveria ser mais breve. Quem ler estas considerações, faça, porém, com suas
próprias leituras a demonstração demorada. Verá que quase todas as correntes
e contracorrentes da arte psicológica moderna são a revelação de que estes
conceitos da ciência, entrados já na substância da cultura geral, e infiltrando-
-se por isso subtilmente nas mais recônditas inconsciências do pensamento,
constituem já sugestões artísticas. O limite da preocupação científica na arte
— mas neste caso já inadmissível, e consciente e voluntário demais — é o
espantoso acto “O Teatro da Alma”, de Evreinoff, em que a cena é o “interior
da alma humana” e as personagens, designadas por A1, A2 e A3, etc., são as
várias sub-individualidades componentes desse pseudo-simplex a que se chama
o espírito. Mas neste caso o autor fez inteligência demais e arte de menos na
obra, que fica pertencendo, como a maioria das inovações literárias e artísticas
modernas, não à arte mas às curiosidades da inteligência, como os anagramas,
os desenhos de um só traço e os poemas univocálicos.
A verdade, porém, é que o artista psicológico moderno não pode já construir
uma personagem, integrá-la num enredo, desenvolver esse enredo, sem atender
aos cinco conceitos científicos a que me tenho referido. E, na proporção a
que a eles atenda, e o faça instintiva e inconscientemente, como a arte exige,
ele criará uma obra susceptível de ser duradoura; pois que, adaptando-se a
aquisições da ciência, e não a caprichos da moda, adapta-se àquelas conquistas
da inteligência que constituem a substância da cultura, a qual, por sua vez,

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constitui a substância da civilização.


Para mim, o valor capital do drama “ Octávio”, o que o torna, a meu ver,
notável entre a multidão nula das peças modernas, sejam de que nação forem, é
que, por acção [de] um seguro instinto, ele é orientado exactamente no sentido
que a cultura moderna impõe como o caminho do dever artístico.
Não creio que Vitoriano Braga fosse guiado, ao adequar-se a estas impul-
sões da ciência, por um esforço consciente, ou, mesmo, por um conhecimento
intelectual da cultura científica. Nem, que o fosse, isso lhe serviria, pois que
a obra artística deriva de origens mais subtis que a compreensão e o raciocí-
nio; tanto que Ibsen, que quis fazer drama psiquiátrico, não conseguiu, nem
sequer de longe, criar personagens tão inteiramente verdadeiras, perante a
própria psiquiatria, como Shakespeare, cuja época não tinha a ciência, mas cujo
espírito tinha a intuição. Com efeito, a ciência moderna pasma da perfeição
sintomatológica com que são delineadas, vivas e concretas, com os traços físicos
como os psíquicos, a histero-neurastenia de Hamlet, a demência senil de Lear, a
histero-epilepsia de Lady Macbeth.
Não importa, pois, que eu não creia que Vitoriano Braga se guiasse consci-
entemente por o critério científico que expus. Importa, sim, que ele seguisse
um instinto que, com a segurança de todos os instintos, se ajustou inconsci-
entemente a esse critério necessário. Sim, o que importa é que, sendo tais as
indicações da ciência psicológica, ele, seja de que modo ou por que razão, as
tenha deveras seguido.
E, com efeito, o drama “Octávio” corresponde, passo a passo, e nos detalhes
como no conjunto, às exigências com que a cultura moderna impõe a acção
dramática.

s. d.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 87.

Fragmento de ensaio sobre o drama “Octávio” de Vitoriano Braga

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Fernando Pessoa
I. O drama, como todo objectivo, compõe-se organicamente

I.
O drama, como todo objectivo, compõe-se organicamente de três partes
— das pessoas ou caracteres; da entreacção dessas pessoas; e da acção ou
fábula, por meio e através da qual essa entreacção se realiza, essas pessoas
se manifestam. Produto subjectivo assim composto, o drama provém de três
qualidades — do instinto psicológico, que cria e enforma os caracteres, e depois
os vai descobrindo uns por meio dos outros; do instinto dramático, que inventa
ou renova a fábula, e dispõe o seu seguimento; do instinto artístico, que ordena
a operação dos outros dois na construção harmónica do todo, como na execução
formal de cada parte.
Ao dramaturgo, para que de natureza o seja, são necessários estes três
instintos; e, se o nome há-de valer como elogio, um ou outro tem que haver
nele em grau notável. Conviria, por certo, que nele existissem todos, não só em
grau notável, senão também no mesmo grau; para que a obra fosse, ao mesmo
tempo, inspirada e harmónica. Mas a imperfeição da natureza humana não
permitiu ainda que um engenho tal nascesse; seria porventura um monstro
de perfeição, o monstrum vito carens, do poeta. Houve, sim, um Shakespeare,
psicólogo sem igual, porém artista irregular e dramatista imperfeito; houve
um Molière, grande dramatista, porém artista e psicólogo insuficiente; e outros
houve que não esqueço, e omito. Só dos gregos, pelo instinto de harmonia que
os distinguiu como povo, houve quem, num nível que na psicologia não é o de
Shakespeare, nem na arte da acção podia ser o de Molière, juntasse aquelas três
qualidades — predominando, contudo, a artística — em quase igual plenitude.

II.
Àquelas três qualidades chamámos instintos, como, com diferente propri-
edade, poderíamos ter chamado intuições. Entendemos, em primeiro lugar,
empregar um termo por onde logo se visse que são, não faculdades distintas
da inteligência, movidas de fora pela vontade, e por isso, como não sofrem
alteração, impotentes de exceder os limites próprios da inteligência, que por
natureza compreende mas não cria; porém, aplicações diferentes da mesma

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inteligência, que, enformada por impulsos distintos da índole, se consubstancia


com eles, para que operem, tomando de cada um a sua distinção especial, como
também a sua qualidade genérica, que é a de criar.
Se dos dois termos aplicáveis elegemos, como melhor, o de instinto, foi
porque a esta razão uma outra ainda se juntou. Não há dramaturgo verdadeiro
sem que exista nele em grau notável uma ou outra daquelas qualidades; e são
necessariamente, como acabámos de ver, não faculdades da inteligência, senão
disposições da índole. Quando, porém, uma disposição da índole existe em nós
em grau notável, e de modo, portanto, que determina o carácter e as inclinações,
essa qualidade, por tal ser, denota que é uma fixação da hereditariedade, embora
por variação, e que por isso em tudo se assemelha — mais, se identifica — ao
instinto.
Como os três instintos do dramaturgo, além do que seja comum a todos
os instintos, têm, de próprio, vista a sua aplicação, o seu uso necessário da
inteligência, com exactidão poderemos chamar-lhes instintos intelectuais. Com
o emprego deste termo não esqueceremos, nem que são instintos, para que
constantemente oponhamos a sua operação à operação da inteligência, quando
a mova só a vontade consciente; nem que são intelectuais, para que, quando
essa oposição se faça, não se esqueça que é a substância da qualidade operante,
e não o meio por que opera, o por onde ela se distingue da inteligência.

III.
Quando, guiados por estes princípios (e por que outros, que não estes, nos
guiaríamos?), nos propomos determinar, como críticos, qual o valor de um
dramaturgo ou de uma obra dramática, temos que empreender uma dupla
investigação. Investigaremos, primeiro, se deveras se trata de um dramaturgo,
se apenas de um escritor dramático; ou, por outras palavras, se o dramaturgo o
é de instinto, ou de inteligência; se a obra, produto de um impulso natural da
índole, pode, pois que o é, significar um valor do seu género, ou se, simples
composição da inteligência, de modo nenhum pode ser mais, no género a que
pertence, que uma habilidade da literatura, bem desempenhada embora no que
nela seja estranho a esse género.
Feita que seja esta primeira determinação, e quando dela resulte que a
obra, com efeito, provém do instinto, e não procede da inteligência, teremos
que determinar a força do instinto, que se moveu para produzi-la, com o que
teremos determinado o valor do autor, como dono desse instinto.
Mas a esta investigação especial e concreta cumpre que preceda a genérica

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e abstracta, dupla como aquela: qual o sinal necessário, pelo qual se distinga
objectivamente um produto do instinto de uma composição da inteligência ?
Qual o sinal gradativo, por onde se meça, num produto do instinto, a quantidade
ou força do instinto que o produziu ?
Esta investigação vamos fazer, e, em um e outro caso, quando feita na
generalidade, daremos a sua aplicação especial ao caso da arte dramática.
Senhores, por fim, dos princípios que dela resultem, poderemos obviar um
pouco a que o defeito virtual da crítica — que é o ser naturalmente subjectiva
— nos desvie de um critério, quanto possível, objectivo e científico.

IV.
Antes, porém, que penetremos no ádito mesmo do assunto, não será por-
ventura supérfluo que ministremos alguns esclarecimentos, para que, no curso
da leitura do que vai seguir-se, não lembrem dúvidas e objecções que afinal
procedam, já do mau entendimento dos termos que se empregam, já do conhe-
cimento imperfeito dos limites em que esta dissertação forçosamente tem que
recolher-se.
O termo “drama”, como até aqui o empregámos, serviu de designar o
género, e não qualquer das suas espécies. Como o que seja dito do género
forçosamente se poderá aplicar à espécie, o que do drama dissemos poderá
entender-se da espécie trágica como da cómica, da em prosa como da em verso,
da directa ou representativa, que trata das acções humanas e da vida real, como
da transferida ou simbólica, em que nem as pessoas são propriamente humanas
nem a acção humanamente possível. Não é assim o que do drama diremos.
Como não nos propomos escrever aqui um tratado do drama, indicando todas
as suas espécies e a cada uma atribuindo os seus distintivos próprios, senão
apenas fazer um estudo, cuja aplicação final tem que convir a um drama
representativo, especialmente nos ocuparemos dos característicos dessa espécie
do drama. Quando, portanto, doravante escrevermos “drama”, muitas vezes
poder-se-á entender o género, todas aquela espécie.
Também os termos “instinto” e “inteligência”, de cuja distinção já demos fé,
serão diferenciados com maior exactidão nos capítulos que vão ler-se; não há
mister, portanto, nem teria cabimento, que por enquanto esclarecêssemos melhor
em que se distinguem. Como, porém, ao fazer a distinção exacta entre essas
duas qualidades, teremos em vista uma aplicação especial, não nos ocupará
estabelecer entre instinto e inteligência a distinção completa, própria só de um
estudo exclusivamente destinado a esse fim. Lembrados, sim, que estudaremos

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o drama, e que para esse fim estudamos os instintos intelectuais, de cuja


operação ele procede, olharemos, mesmo na distinção geral, menos ao em que
ela genericamente consiste, que ao em que se manifesta nos actos intelectuais,
sejam de compreender, sejam de inventar.
Posto isto, para que só possa não compreender quem não possa compreender,
podemos dar curso à investigação a que nos prendemos.

V.
Distinguem-se a inteligência e o instinto quanto aos objectos, a que se
aplicam; aos meios, de que para essa aplicação se servem; e aos fins, a que
propriamente se destinam. A distinção primária reside, porém, na da natureza
dos seus fins.
A inteligência, como tem por fundamento a consciência, tem por fim o
conhecimento ou compreensão, que é o com que a consciência se define; o
instinto, como tem por fundamento a vida, tem por fim a acção, que é o em
que a vida se manifesta. A inteligência tem, por isso, por próprio o ser passiva
e receptiva, como o é a consciência; como tem por fim a acção, o instinto tem
por próprio o ser activo e criador. A inteligência, ainda quando, como quando
elabora ou dispõe, em certo modo crie, não manifesta nos seus produtos outros
característicos que não sejam os que a distinguem como qualidade essencial-
mente passiva. O instinto, mesmo quando, como no conhecimento intuitivo, em
certo modo compreenda, não revela na sua compreensão outros característicos,
que não sejam os que o distinguem como qualidade essencialmente activa.
Feita esta distinção quanto aos fins, por meio dela desde logo se realiza a
distinção quanto aos objectos, implícito como está o conhecimento do objecto, a
que uma qualidade necessariamente se aplica, no conhecimento do fim, a que
ela necessariamente se destina.
Como tem por fim compreender, a inteligência tem por objecto o universal
ou geral; como tem por fim operar, o instinto tem por objecto o particular. Não
pode haver compreensão — e por isso se diz que não há ciência — do particular,
pois que o único acto de consciência, que pode haver do particular absoluto, é
a sensação absolutamente simples. Tão-pouco pode haver acção sobre o geral,
pois que, sendo o geral abstracto, a acção sobre o geral seria a simples intenção
de operar, a acção virtual apenas.
Como, pois, tem por objecto o universal, a inteligência tem por qualidade
a extensão; como tem por objecto o particular, o instinto tem por qualidade a
intensão. E a inteligência, como quanto mais forte mais extensa, quanto mais

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forte for, mais lenta terá que ser. O instinto, por contra, como quanto mais forte
mais intenso, quanto mais forte for, mais rápido será. Só dos dois primeiros
pormenores desta distinção há, porém, mister que nos ocupemos, sendo que na
obra de arte le temps ne fait rien à l’affaire.
Aplicando este critério para, na relação com um objecto a compreender
ou um produto de compreender, distinguir as operações da inteligência e do
instinto, temos que a inteligência, como por natureza é extensa e ascende ao
universal, quanto maior for, com maior número de objectos relacionará aquele
em que se emprega; sendo que o instinto, quanto maior for, e por isso mais
intenso e concentrado, com menor número de objectos relacionará o em que se
aplica, e mais completamente o considerará sozinho. O instinto, pois, quanto
mais forte for, mais pronta e exclusivamente se inteirará da essência do objecto,
pois que o considera em ele próprio; a inteligência, quanto mais forte for, mais
seguramente resolverá o objecto num sem número de ligações e de referências,
aproximando-se, sim, das suas causas e efeitos, porém, afastando-se da sua
essência. E por isto que se dá o caso, tantas vezes visto quantas estranhado, de
um intuitivo entrar com tamanha segurança na compreensão de um assunto, de
que um inteligente, por mais que o considere, e por mais que lhe vá acertando
com os acidentes, não alcança a essência verdadeira.
Distingue-se, pois, o produto, que o é primariamente do instinto, daquele,
que o é da inteligência, em que, no primeiro, o essencial está com certeza
obtido, o acessório ou acidental possivelmente por obter; quando, no segundo,
o acessório está mais ou menos expresso, o essencial necessariamente por
exprimir.
Podemos, já agora, aplicando este princípio à arte dramática, estabelecer
em que se distingue o drama, produto do instinto, do drama, composição da
inteligência.
Três são, como no começo vimos, as partes objectivas do drama, e às objecti-
vas temos que atender, considerando um produto feito; são elas as pessoas, a
entreacção das pessoas, e a fábula.
O essencial, quanto às pessoas, é que sejam naturais e humanas, e, como
elas se manifestam pelo diálogo, a virtude prima do dramaturgo, neste ponto, é
que escreva um diálogo natural; quanto à entreacção das pessoas, que provenha
de seus caracteres, e não da fábula, que deve ser como a condição, e não a
causa, da entreacção; quanto à fábula, que pareça proceder da entreacção dos
caracteres e não da invenção do autor, acontecer porque eles existem e não para
que eles existam — que pareça, na verdade, ser, não fábula, senão vida.

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Parece, sem dúvida, que estes requisitos objectivos dos instintos dramáticos,
como são fáceis de expor, serão também fáceis de alcançar; julgareis que uma
inteligência prudentemente aplicada conseguirá, sem grande esforço, a sua
execução. Como em tudo quanto é do instinto, assim parece e assim não é. Con-
siderai, com crítica segura, qualquer drama vulgarmente célebre; vereis quão
poucas vezes o diálogo, a entreacção, a acção, são como na vida, quão poucas a
produção dramática apresenta aqueles sinais necessários do produto do instinto.
Escritores inteligentes há muitos, porque há muitos homens inteligentes, e que
o são ainda mais por cultivados; o dramaturgo de instinto, porém, tem que
nascê-lo, e a natureza é menos pródiga de valores, que os homens da imitação
deles.
Ver-se-á isto melhor reparando, depois de nos essenciais do drama, nos seus
acessórios. São acessórios principais do drama: quanto às pessoas, que o seu
diálogo seja em linguagem inteligível e, quanto caiba, boa; quanto à entreacção
das pessoas, que não seja absurda quanto aos seus motivos; quanto à fábula, que
seja plausível e, quanto possa ser nova. Isto, sim, podereis encontrar, não só, com
outras qualidades, nos dramaturgos de instinto que sejam também cultivados,
como também, sem essas outras, nos bons escritores que a inteligência, não o
Destino, fez dramaturgos.

VI.
Provado que um dramaturgo o é de instinto, não está com isso provado
que ele tenha valor como dramaturgo, porém apenas que pode tê-lo. O ser de
instinto é a condição do valor, não o valor mesmo. Determinados já, portanto,
os sinais necessários, pelos quais se conheça, de pronto, o produto do instinto,
caberá agora descobrir qual possa ser o critério seguro, pelo qual, nesse produto,
se distinga o maior do menor, se determine, de um instinto e por isso de seu
dono, quanto vale e porque o vale.
Servir-nos-á de guia nesse descobrimento a distinção, que falta fazer, quanto
à inteligência e ao instinto; é ela a distinção que entre eles há quanto aos meios
de que se servem.
A inteligência, como tem por objecto o universal ou geral, tem necessaria-
mente por meio o particular; como alcançaria ela o universal, senão partindo do
particular, que tira da sensação, em que ela se apoia, e que só do particular tem
conhecimento? O instinto, como tem por objecto o particular, tem forçosamente
por meio o geral; pois como procuraria ele o particular, se não se guiasse pelo
geral, que tira da inteligência, por quem se manifesta, e que só no geral tem

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aplicação?
Como, pois, tem por meio o particular e por natureza a extensão, a inteligên-
cia alimenta-se com quanto de particular a amplie e a desenvolva, lhe dê maior
facilidade em generalizar — ideias particulares, factos concretos, sensações defi-
nidas, com que a memória se enche e o raciocínio se instrui. Como, por contra,
tem por meio o geral e por qualidade a intensão, o instinto alimenta-se com
quanto de geral o concentre e o defina, lhe dê maior exactidão em operar — não
factos, mas resultados; não sensações, porém estímulos; não ideias particulares,
senão gerais.
Como a inteligência tem por objecto o universal ou geral e a extensão por
qualidade, o seu valor ou força residirá na amplidão com que generalize; como,
porém, tem a propriedade de ser passiva e de receber todos os factos ou ideias
particulares que a sensação lhe entregue, e como nem todos eles convirão às
generalizações que haja de fazer, segue que não há entre o em que consiste a
sua força e o em que consiste a sua experiência uma correlação perfeita, pois
que, não as ideias particulares que recebe, porém o uso que delas faz, é que
denota essa força.
Do instinto, como tem por objecto o particular e por qualidade a intensão,
o valor consiste na completidão com que se aposse, no objecto particular para
que tende, na essência dele, que é o que o denota como particular. Como o que
denota uma coisa como particular é a ideia geral que define a espécie a que esse
particular pertence, e como a essência de um objecto, limitada por natureza,
necessariamente se define por um número limitado de ideias gerais, o instinto
tanto mais completamente se apossará do objecto, quanto mais completamente
tenha a posse das ideias gerais possíveis, que especialmente convenham ao fim
de definir a essência desse objecto. E como o instinto é por natureza activo, e
por isso não só procura, em vez de receber, a experiência, senão procura só a
que lhe convém, rejeitando por inútil toda a outra, o número de ideias gerais,
de entre as possíveis, convenientes ao seu fim, que haja aprendido, dependerá
da sua força, pois que da força com que houver tendido para esse fim, e houver
procurado, portanto, os meios para consegui-lo.
Vemos, pois, que a completidão, com que se aposse da essência do objecto
particular a que se aplique, e o número de ideias gerais, das possivelmente
convenientes ao seu fim, que manifeste, servem indiferentemente de denotar o
valor ou força de um instinto. Por isso, sendo que na inteligência é o uso do
conteúdo, e não o conteúdo, que denota a força; no instinto o conteúdo e o
uso dele são exactamente correlativos, ou coextensos, qualquer deles podendo

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portanto denotá-lo. E, como destes dois sinais do valor, o conteúdo, como


consiste em ideias gerais que o uso forçosamente manifestou, é que é o sinal
veramente objectivo, temos que, para investigar o valor de um instinto, servir-
-nos-á de indício seguríssimo o número de ideias gerais de entre as possíveis,
convenientes ao seu fim, de que esse instinto mostre ter-se aproveitado.

VII.
Das duas partes, de que se compõe esta distinção, a que diz respeito à
inteligência terá sido bem compreendida; a que diz respeito ao instinto pode ser
que, por mais abstrusa, o tenha sido menos; e como, para o fim a que olhamos,
nos importa sobretudo compreender bem o que aqui se esclareceu do instinto,
julgamos próprio o passo para, por meio de um exemplo simples, e seguindo
todo o caminho do que houvemos ocasião de afirmar do instinto, tornar clara,
de todo, a explicação.
Sirva-nos de exemplo o instinto de comer. O instinto de comer tem por fim
operar — a operação, ou acção, de
comer. Tem por qualidade a intensão, porque o mais seguro instinto de
comer será aquele que mais seguramente escolha para comer só aquilo que
serve para ser comido; não a extensão, pois que dum maníaco que, além do
que todos comem, comesse terra, não diríamos que tinha um mais perfeito
instinto de comer que um homem vulgar. Tem por objecto o particular, porque
o que se come há-de ser uma coisa particular, ou concreta; ficaria, por certo,
mal alimentado quem jantasse pão virtual e a ideia de carne. Tem por meio o
geral, porque escolhe, entre todas as coisas, aquelas em quem reside de comum
a propriedade de servirem para ser comidas, isto é, aquelas a quem é comum
a ideia geral de edibilidade; e a esta ideia geral esse instinto acrescenta, as
mais das vezes, algumas outras, como a de palatabilidade, a de utilidade, etc.
Mas essas ideias gerais não poderão ser em grande número, porque a essência
do objecto, que serve para se comer, é, como tal, limitada. Por último, o mais
perfeito instinto de comer mede-se pela aplicação, por quem o possui, do maior
número de ideias gerais possíveis, que convenham ao fim de comer, isto é, a
definir a essência de um objecto em relação a ele servir para ser comido. Quem,
em comer, se guie só pela edibilidade, terá um instinto de comer inferior a
quem se guie também pela palatabilidade; e assim por diante.
Não será porventura supérfluo acrescentar que, ao guiar-se por estas ideias
gerais, o instinto — como difere da inteligência, e por isso não é, em substância,
consciente — faz delas um uso inconsciente; nem sabe que são ideias, nem

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gerais, nem que as aprendeu, nem que houvera de aprendê-las. Como, porém,
as ideias gerais são objecto da inteligência — e por isso dissemos que o instinto
as tira da inteligência, embora não entendêssemos que o fizesse conscientemente
— , e como portanto não só o instinto, e inconscientemente, senão também a
inteligência, e conscientemente, pode aprendê-las e aplicá-las, caberá ainda
explicar como se podem distinguir, num mesmo produto em que colaborem
instinto e inteligência, quais, das ideias gerais que apareçam aplicadas, as que
provêm daquele, as que procedem desta.
Sabedores já do em que o produto do instinto se distingue daquele que
a inteligência realiza, não sofrerá dúvida que, das ideias gerais, convenientes
a certo fim, que apareçam no produto, serão do instinto as que estiverem
integradas no que no produto é essencial, serão só da inteligência as que
simplesmente se encontrem ligadas aos acessórios dele, ou constituindo-os.
Isto dito, poderemos entrar na aplicação especial do que genericamente se
estabeleceu.

VIII.
Temos, pois, que se mede objectivamente o valor ou força de um instinto
pelo número das ideias gerais possíveis, convenientes ao seu fim, que empregou.
São três os instintos do dramaturgo — o psicológico, o dramático, o artístico.
Quais são as ideias gerais possíveis, convenientes ao fim de cada um?
Como eles são, não só instintos, senão instintos intelectuais, essas ideias
são necessariamente de duas ordens para cada um: as que a cada um convêm
como intelectual, e as que a cada um convêm como psicológico, ou dramático,
ou artístico. Ambas essas ordens de ideias definem a essência do objecto de
cada instinto destes; mas as primeiras, como são relativas ao género, definem
a essência primária, a essência secundária as segundas, porque são relativas à
espécie.
Consideremos a primeira ordem de ideias — as que convêm a um instinto
intelectual simplesmente como intelectual. Como ele é um instinto, tem por
objecto o particular; porém, como é intelectual, tem por objecto esse particular
no seu aspecto universal. Como, porém, o aspecto universal de um objecto
particular é simplesmente o ser universalizável, e o ser universalizável deriva
da ideia geral de universalidade, temos que, afinal, esta ordem de ideias é uma
ideia só para qualquer instinto intelectual — a ideia geral de universalidade.
Se aplicarmos este princípio aos três instintos do dramaturgo, veremos
que a ideia geral de universalidade, quanto ao instinto psicológico, é que

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possa dar cada pessoa que crie, não só como particular, senão também como
universalizável, isto é, como, sem que deixe de ser particular, representativa da
humanidade; quanto ao instinto dramático, que possa dar cada acção, não só
como particular, senão também como representativa da acção humana; quanto
ao instinto artístico, que possa dar ao conjunto da obra, como ao de cada parte
de por si, não só a sua significação particular, senão também a sua significação
geral.
Servir-nos-á, para esclarecer estas afirmações, o exemplo do emprego por
Shakespeare do instinto psicológico. Confessam os psiquiatras, que na matéria
são os competentes, que a pessoa do rei Lear representa um desenho perfeito
de um caso de demência senil; nós, simplesmente homens, não há mister que
sejamos dementes senis para sentir, no seu conjunto como a cada passo, a
verdade humana daquela pessoa. Sendo, pois, tão rigorosamente dada como
particular, que pode ser assunto de um diagnóstico, mas, ao mesmo tempo, tão
rigorosamente dada como geral, que qualquer de nós escusa de saber isso para
a sentir, a pessoa de Lear denota o emprego da ideia geral de universalidade
pelo instinto psicológico de Shakespeare. No mesmo autor se encontra, no
dizer das mesmas autoridades, um bom número de casos análogos, como o da
histero-neurastenia de Hamlet e o da histero-epilepsia de Lady Macbeth.
Nesta altura, porém, reparamos que os característicos objectivos do emprego
da ideia de universalidade pelos instintos do dramaturgo coincidem com aque-
les característicos que dissemos indicarem a essência do drama, e que serviam
de denotar se o autor era dramaturgo de instinto, ou se o era de inteligência.
Sendo assim, a ideia geral de universalidade serve apenas de denotar a essência
do instinto intelectual como intelectual, não de medir o seu valor ou força. Não
que em absoluto para tal não sirva, ou que não haja, entre os dramaturgos de
instinto, graus ou quantidades diferentes na aplicação da ideia de universali-
dade. Essa ideia, porém, não ministra sinal objectivo nenhum pelo qual se meça
o valor do instinto. Por isso, abandonando-a para esse fim, nos voltamos para a
segunda ordem de ideias, que, relativas à espécie e não ao género do objecto de
cada instinto dramático, definem a sua essência secundária.

IX.
As ideias gerais possíveis que convenham aos fins dos instintos do drama-
turgo, não já como intelectuais, porém como psicológico, dramático e artístico,
são necessariamente aquelas ideias gerais que orientam a psicologia, a crítica
dramática, e a estética, pois são estas disciplinas que definem os objectos daque-

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les instintos. Como, porém, estas disciplinas procedem da operação do espírito


na investigação incompletável da verdade, não poderemos determinar todas
as ideias gerais, que caibam em cada uma dessas disciplinas, senão apenas
aquelas que se estabeleceram até uma certa época; e esta época tem que ser,
para qualquer dramaturgo, a época em que ele vive. Para a aplicação final dos
princípios, que descobrimos, a um dramaturgo do nosso tempo, temos pois
que assentar em quais são as ideias gerais que definem a cultura psicológica, a
cultura dramática, e a cultura artística da nossa época. O talento de um drama-
turgo estará manifestado no número dessas ideias, de que cada um dos seus
instintos se tenha servido. Quando se dê um caso como o de Shakespeare, cujo
instinto psicológico se serviu de ideias psiquiátricas que a sua época lhe não
podia administrar, diremos que se trata de um dramaturgo, não já de talento,
porém de génio; mas um dramaturgo de génio, como se serve, pela adivinhação
do instinto, de ideias gerais que a cultura não descobriu ainda, e que para
ela, portanto, tanto podem ser ideias certas por descobrir, como desvios do
recto caminho, não pode nunca ser avaliado pelos seus contemporâneos, a não
ser por um ou outro cujo instinto coincida em alcance com o dele. Serve esta
advertência de indicar que uma investigação raciocinada, como esta que vamos
fazendo, poderá, sendo esclarecida, acertar com a medida exacta do talento de
um dramaturgo; não poderá determinar se, além de talento, ele tem génio.
Quais são, porém, as ideias gerais que orientam a cultura da nossa época
na psicologia, na crítica dramática, na estética? Vamos vê-lo, e como são em
número menor, e de ordem mais simples, as que dizem respeito às duas últimas
disciplinas, começaremos por estas, deixando as que se referem à psicologia
para serem tratadas em último lugar.
(. . .)

1916?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 96.

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Fernando Pessoa
The basis of acting is misrepresentation.

The basis of acting is misrepresentation. The art of the actor consists in


employing the author’s drama in showing his acting ability upon it. The piece
is like a bar where on the actor shows his gymnastic abilities. He is only limited
by the necessary conditions of a bar: he can do only a limited number of things
with it, but those he can do in a thousand individual ways.
Acting, again, has all the attraction of forgery. We all love a forger. It is a very
human and a quite instinctive sentiment. We all adore trickery and counterfeit.
Acting unites and intensifies, through the material and vital character of its
manifestations, all the low instincts of the artistic instinct — the riddle-instinct,
the trapeze-instinct, the prostitute-instinct. It is popular and appreciated for
these reasons, or, rather, for this reason.
The artist’s thirst for glory is made flesh in the actor’s thirst for applause. All
appearance before people is low. All assemblies are crowds, and if not sweaty
in body, at least sweaty in emotions.
All coarse minds adore speech. To be wordy is itself vulgar. The only thing
that renders wordiness interesting is profanity and obscenity, for these things
are “in character” therewith. Wordiness without dirty words and coarse phrases
is feminine and therefore vulgar.

9-3-1914
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 114.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:19


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Fernando Pessoa
ESTÉTICA — As três qualidades fundamentais do artista são:

As três qualidades fundamentais do artista são:

1) A originalidade,
2) a construtividade, e
3) o poder de suspensão.

E vulgar haver confusões que obscurecem de todo o verdadeiro sentido


destas palavras, e é absolutamente importante que essas confusões se desfaçam.
Elas resultam, em geral, da adopção de um ideal artístico restrito, por via do
qual se vicia a interpretação das coisas. Assim, muitos não sabem propriamente
distinguir a originalidade da excentricidade; uma caracteriza o génio, outra
manifesta o louco. E, no mesmo ponto, o mais frequente é não se saber avaliar
bem a originalidade de um autor, por não se saber, em geral, medir o valor
das influências que ele recebe, de onde sucede, bastas vezes, o ser dado como
plágio o que é legítima influência. Ora a originalidade é de três espécies: a)
de pensamento, b) de modo de manifestar esse pensamento, c) de modo de
manifestar essa manifestação; temos, portanto, a) originalidade ideativa, b)
originalidade formal (. . . )
Os românticos confundem em geral o poder de construção com o poder de
desenvolvimento, o qual, meramente por si, e desprovido da base de construção
propriamente dita, não passa de uma mera facilidade retórica sem grande valor,
salvo episódico.
Se nesses dois pontos são grandes os erros que se cometem, muito maiores
são os que enferma, quase sempre, o conceito geral de “poder de sugestão”. Por
esse termo desejo exprimir aquilo que no artista permite tornar inteiramente
perspícua a sua intenção e a sua emoção. Importa muito — a distinção é de
relevo capital — não confundir “poder de sugestão” com “compreensibilidade”,
como importa não confundir perspicuidade com clareza. Sobre confusões destas
assenta o erro que sempre houve, da parte das pessoas de escassa sensibilidade,
na crítica aos poetas simbolistas e decadentes — todos aqueles que, no seu
pleníssimo direito, foram perspícuos sem serem claros.

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:19


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1916
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 121.

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Fernando Pessoa
Goethe — O homem de génio é um intuitivo que se serve da
inteligência. . .

Goethe

O homem de génio é um intuitivo que se serve da inteligência para exprimir


as suas intuições. A obra de génio — seja um poema ou uma batalha — é
a transmutação em termos de inteligência de uma operação superintelectual.
Ao passo que o talento, cuja expressão natural é a ciência, parte do particular
para o geral, o génio, cuja expressão natural é a arte, parte do geral para o
particular. Um poema de génio é uma intuição central nítida resolvida, nítida ou
obscuramente (conforme o talento que acompanhe o génio), em transposições
parciais intelectuais. Uma grande batalha é uma intuição estratégica nítida
desdobrada, com maior ou menor ciência, conforme o talento do estratégico,
em transposições tácticas parciais.
O génio é uma alquimia. O processo alquímico é quádruplo: 1) putrefacção;
2) albação; 3) rubificação; 4) sublimação. Deixam-se, primeiro, apodrecer as
sensações; depois de mortas embranquecem-se com a memória; em seguida
rubificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam pela expressão.

1932
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 123.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:20


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Fernando Pessoa
ESTÉTICA — Um grande artista (literário) nota-se
aplicando-lhe. . .

ESTÉTICA

Um grande artista (literário) nota-se aplicando-lhe a seguinte pergunta


critica: tem paixão ou imaginação ou pensamento? Por ex. os “Lusíadas” de
Camões têm paixão (o patriotismo), imaginação (o Adamastor, a Ilha dos
Amores), mas não falhos de pensamento. Os sonetos de Antero têm sempre
pensamento, às vezes imaginação, paixão nunca (Júlio Dantas nada: não é um
grande poeta).
O arquitecto, o pintor, o escultor não podem mostrar pensamento, nem o
pode o compositor musical. Mas os três primeiros podem mostrar imaginação
(conquanto não emoção); o segundo emoção, conquanto não imaginação. Vemos
assim nitidamente as diferenças entre as artes.
O pintor, se quiser dar uma aproximação do pensamento, só pode fazer uma
coisa: simbolizar; o escultor menos, o arquitecto nada. O músico nunca pode
nem dar nem indicar pensamento. E evidente a razão: a música dá a emoção,
as artes da vista a imaginação; ora a emoção não está ligada à razão, mas a
imaginação aproxima-se, sendo de perto uma combinação de emoção e razão,
tendo o carácter não-rígido da emoção (a mildness), e a frieza da razão. A música
é das artes todas a mais intuitiva, a mais instintiva, aquela em que crianças
se tornam notáveis; é que da emoção depende e não da imaginação nem do
pensamento, quer dizer, a segunda, mais do que a primeira, indesenvolvida nas
crianças.
Estas considerações tocaram no símbolo. Ajudam-nos a compreendê-lo. O
símbolo é o modo de pensar dos imaginativos (nos que são inintelectuais,
habitual; nos que são intelectuais, voluntário, se assim se pode dizer).
Primeiramente, primitivamente, o homem, em quem ainda se não tinha dife-
renciado imaginação e razão, pensou por símbolos, por imagens, por metáforas.
......
A imaginação nasce primitivamente da emoção, e da imaginação nasce
depois a razão, como irmã. Mas — não sendo criadas — cada qual está já

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:20


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contida na anterior. Temos assim que a evolução mental humana é do seguinte


modo:

(inserir esquema da pág. 125)

1º a repetição das sensações forma a memória

A sensação, persistindo, vai deixando alguma coisa que pela memória


se vai tornando permanente. Esta permanência da sensação é o sentimento.
Mas, a par disto o mesmo processo deu-se quanto à inteligência: a memória
ideativa (a outra é a afectiva, mas está combinando-se) também se constituiu
pela repetição das representações; como se forma, quanto à parte afectiva da
psique, o sentimento, forma-se, quanto à parte intelectual, a noção, uma ideia
das coisas. A mesma permanência que forma, sentimentalmente, o sentimento,
forma intelectualmente a noção. Forma [?] [. . .] do impulso, repetido — o desejo.
Temos assim o segundo grau da evolução mental. Noção — sentimento —
desejo. O 1º era aquele em que estavam estes 3 elementos virtuais na vida —
sensação-impulso que eram uma unidade mais homogénea. Mas os outros 3 não
tinham uma unidade; é preciso não o esquecer. Mais heterogénea, porém, esta
unidade começa nos seus 3 elementos a influenciar-se mutuamente, ajudando a
desenvolver o que cada um em si tem.
Mas os sentimentos e os desejos compelem o ente, quando os sente, a
associar-lhes noções que a memória afixara a certos sentimentos e desejos, qua
associações no passado. Nasce assim a imaginação. Paralelamente, a influência
dos desejos e das noções ou ideias nos sentimentos fazem com que estes, ao
ser recordados e incitados por meio de imagens e lembranças, formem uma
nova coisa: a emoção (da qual o exemplo é o medo). E com respeito ao desejo o
mesmo acontece, sendo o resultado a paixão. (Paixão, emoção e imaginação são
três partes de um todo; p. ex: no medo, há imanente a imaginação representativa
do perigo, a emoção do medo e a paixão do temor levando à acção de fugir
— o que se concebe, o que se sente e o que se é impelido). É este o 4º grau da
evolução mental.
À medida porém que no cérebro nascem representações imaginativas (i. é,
impulsos de [. . .] imediata) o ente associa-os como sensações: temos o pensa-
mento. Pensamento ainda não distante da imaginação.
Todas estas faculdades são, não nos devemos esquecer, desenvolvimen-
tos de uma só: a consciência. Essa consciência entra através de todas essas

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manifestações.
Estas faculdades formam camadas.
Por ex., a imaginação artística não é a do período da imaginação, mas sim
essa (já radicada) + o pensamento abstracção.
1) A 1ª arte (já das aves) é a música. 2) A memória não é um fenómeno
inteligente; é um fenómeno da consciência.

1925?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 124.

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Fernando Pessoa
Poetas: de construção; de intensidade; de profundeza.

Poetas: de construção; de intensidade; de profundeza.


A. O tipo normal do poeta de construção é, não um sentimento muito
intenso nem muito profundo, mas de certo, médio, modo, intenso, e não neces-
sariamente de igual modo profundo. Tipo do poeta de construção há os gregos
no alto grau, e, no baixo grau, Corneille, Racine, etc.
B. O tipo normal e puro do grande poeta de intensidade é uma construção
firme mas curta, incapaz de construir complexidades, e uma profundeza média.
Victor Hugo é o melhor exemplo do tipo puro destes poetas.
C. Poeta profundo envolve [?] poeta de pensamento original, visto que
nada há de profundo em transferir literalmente pensamento profundo alheio; e
pouco transferir não-literalmente é poesia sem um pensamento original para
lhe poder dar outra forma. Ainda assim este último é o grau médio, ou entre
médio e grande, da profundeza. (Wordsworth’s Ode, Junqueiro, Luz). O poeta
de profundeza é tipicamente incapaz de construir mesmo na extensão do poeta
intenso; o pensamento é, de sua natureza, concentrado. Raras vezes é intenso
o poeta de profundeza. Tipo de poeta de profundeza é Antero. Outro tipo é
Pascoaes, que falha ao querer dar ou construção, ou intensidade.
Tipos mistos:
Poetas de intensidade e construção:
Milton (?), Junqueiro ( “Pátria”) — Junqueiro tem profundeza média — ,
Dante
Poetas de construção e profundeza:
Goethe (a construção um tanto estragada pela profundeza) .
Poetas de intensidade e profundeza:
Wordsworth (?), Coleridge (?), Browning (?).
Intensidade é saber manter através do seu desenvolvimento um tema qual-
quer (Ou, se [. . .] chamar, arte, que é isso — não há desta intensidade” na Salomé
de Eugénio de Castro).

1914?

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Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados


por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 127.

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Fernando Pessoa
A inteligência elabora elementos vindos do exterior,

A inteligência elabora elementos vindos do exterior, isto é, trabalha sobre


dados dos sentidos. Esses dados são de três espécies — os que são propriamente
sensações, dados directos dos sentidos; os que resultam da transmissão directa
de sensações e impressões alheias, colhida no convívio social; e os que resultam
de influências indirectas, impressões colhidas em livros, em museus, em labo-
ratórios. Os dados directos dos sentidos são, em si mesmos, necessariamente
limitados, pois cada um de nós é só quem é: não vê senão com os próprios
olhos, nem ouve senão com os próprios ouvidos. Não vemos nem ouvimos
bem e profundamente senão quando a inteligência, ampliada pelos outros dois
factores ou por qualquer deles, amplia as nossas sensações, com as quais insen-
sivelmente colabora. Vemos e ouvimos melhor — no sentido de mais completa
e interessantemente — quanto mais ampla e informada é a inteligência que
está por trás do nosso ver e ouvir. Por isso com razão disse Blake: “Um néscio
não vê a mesma árvore que vê um sábio”. (Um néscio e um sábio não vêem a
mesma árvore).
Segue, pois, que os dados do exterior serão tanto mais completos e sugestivos
quanto maior for a formação da inteligência pelas impressões colhidas no
convívio social, ou pelas impressões colhidas em livros, museus, em laboratórios.
À soma das primeiras impressões chamamos vulgarmente experiência, cultura
à soma das segundas. Estes dois elementos, directo e indirecto, reflectem-se um
no outro: o convívio social será um elemento importante ou não na formação
mental conforme a cultura da sociedade com que se convive. A cultura é o
elemento importante — quer se receba directamente, pela leitura ou o estudo,
quer se receba indirectamente, pelo convívio com os que a têm. “Só um parvo”,
disse Bismarck, “aprende pela experiência; eu aprendi sempre na experiência
alheia”.
A cultura, porém, não é um resultado inevitável; não existe se não houver
no indivíduo a capacidade de cultura, e existe no indivíduo, como resultado,
na proporção em que existe essa capacidade. A cultura é um alimento mental, e
o alimento, para que nutra, tem que ser assimilado. Assim o a quem chamamos
um homem culto é aquele que tem a capacidade de assimilar cultura, de

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:21


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transmudar as influências culturais em matéria própria do seu espírito, e o


que de facto adquire essas influências. De resto, a capacidade de cultura leva o
indivíduo inevitavelmente a procurar cultura.
Há três tipos de cultura — a que resulta da erudição, a que resulta da
experiência translata, e a que resulta da multiplicidade de interesses intelectu-
ais. A primeira é produzida pelo estudo paciente e aturado, pela assimilação
sistematizada dos resultados desse estudo. A segunda é produzida pela rapidez
e profundeza naturais do aproveitamento do que se lê ou vê e ouve. A ter-
ceira é produzida, como se disse, pela multiplicidade de interesses intelectuais:
nenhum será profundo, nenhum será dominante, mas a variedade alargará o
espírito. Daremos exemplos de todas do que existiram em três grandes poetas:
vemos a primeira em Milton, que se preparou conscientemente para a sua obra
poética — qualquer que houvesse de ser, pois em jovem não sabia qual seria
— pela posse do grego, do latim, do hebreu e do italiano (todos os quais não
só lia, mas escrevia), e pelo estudo dos clássicos em as duas primeiras línguas.
Vemos a segunda em Shakespeare, pessoa pouco lida e estudada, mas intenso e
profundo em aproveitar tudo que via e ouvia, a ponto de involuntariamente
simular uma erudição que verdadeiramente não tinha. Vemos a terceira em
Goethe, que nem tinha a erudição de Milton nem a ultra-assimilação de Sha-
kespeare, mas cuja variedade de interesses, abrangendo todas as artes e quase
todas as ciências, compensava na universalidade o que perdia em profundeza
ou absorção.
Um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais proba-
bilidades de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não
saiba. Nem há nisto mais que um paradoxo aparente. Um poeta que se deu ao
trabalho de se interessar por uma abstrusão matemática tem em si o instinto da
curiosidade intelectual, e quem tem em si o instinto da curiosidade intelectual
colheu por certo, no decurso da sua experiência da vida, pormenores do amor
e do sentimento superiores aos que poderia ter colhido quem não é capaz de se
interessar senão pelo curso normal da vida que o afecta — a manjedoura do
ofício e a arreata da submissão. Um é mais vivo que o outro pelo menos como
poeta: de aí a relação subtil entre as coordenadas de Gauss e a Amaryllis do
momento.
Um é um homem que é poeta, o outro um animal que faz versos.

1924?

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Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados


por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 129.

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Fernando Pessoa
Em arte tudo é lícito, desde que seja superior.

Em arte tudo é lícito, desde que seja superior. Não é permitido ao homem
vulgar ser antipatriota, porque não tem mentalidade acima da espécie, e a não
pode ter pois acima da espécie imediata, que é a nação a que pertence. Ao génio
é permitido. Sucede, por ironia, que os grandes génios são em geral conformes
com os sentimentos normais: Shakespeare era intensamente, até excessivamente,
patriota.
Um génio antipatriota é um fenómeno, não direi vulgar, mas aceitável. Um
operário antipatriota é simplesmente uma besta.
O homem da espécie não pode ter opiniões, porque a opinião é do indivíduo,
e desde que um homem pertença organicamente a uma família, a uma classe,
a qualquer coisa que constitua ambiente imediato e vivo, deixa de ser um
indivíduo para ser uma célula qualquer. Só a nação, por ser um ambiente
abstracto, visto que tem parte no passado e parte no futuro, não estorva a alma
individual.
O problema da protecção aos artistas, ou qualquer problema parecido, não
existe em relação ao homem de génio, cuja vida mental é uma coisa à parte e que
passa, em geral, incompreendido na sua época, ou, pelo menos, incompreendido
naquilo mesmo que é nele génio.
Devem proteger-se e defender-se os artistas, os escritores que têm que viver
da sua pena, e esses nunca são os homens de génio. O homem de génio é
produzido por um conjunto complexo de circunstâncias, começando pelas
hereditárias, passando pelas do ambiente, e acabando em episódios mínimos
da sorte.

1924
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 132.

Esboço para resposta a uma entrevista da Contemporânea.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:59


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António Mora
Para o índio a obra de arte não é ainda uma coisa,

Para o índio a obra de arte não é ainda uma coisa, uma coisa que ele veja
existir independentemente da emoção que a produziu. O grego tem já isso.
Nasceu nele o senso artístico, ou crítico propriamente, de ver a obra de arte
como coisa, no espaço, fora da relação com a emoção que, a produziu.
O grego reparou nisto — que uma obra de arte é uma realidade exterior,
uma realidade exterior, porém, que pertence a determinada categoria — à das
coisas exteriores produzidas, fabricadas, pelo Homem. Daqui fatalmente um
conceito do artista como sendo um operário.

1915?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 132.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:59


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Fernando Pessoa
Que essa arte não é feita para o povo?

Que essa arte não é feita para o povo? Naturalmente que o não é — nem ela
nem nenhuma arte verdadeira. Toda a arte que fica é feita para as aristocracias,
para os escóis, que é o que fica na história das sociedades, porque o povo passa,
e o seu mister é passar.
A nossa arte é supremamente aristocrática, ainda, porque uma arte aris-
tocrática se torna necessária neste outono da civilização europeia, em que a
democracia avança a tal ponto que, para de qualquer maneira reagir, nos in-
cumbe, a nós artistas, pormos entre a elite e o povo aquela barreira que ele, o
povo; nunca poderá transpor — a barreira do requinte emotivo e da ideação
transcendental, da sensação apurada até à subtileza [. . .]

A nossa civilização corre o risco de ficar submersa como a Grécia (Atenas)


sob a extensão da democracia, de cair inteiramente nas mãos dos escravos, ou
então de ficar como Roma, não nas mãos de imperadores filhos do acaso e
da decadência, mas de grupos financeiros sem pátria, sem lar na inteligência,
sem escrúpulos intelectuais e sem causa em Deus. O único antídoto para isto é
uma lenta aristocratização. É pela arte que, supremamente, essa aristocratização
pode ser feita.
Raiava, já antes da guerra, no horizonte o triste sinal da plebeização das
elites. Bailados, espectáculos e outros desvios semelhantes da arte superior iam
tomando vulto. É preciso reagir contra esta corrente.
Depois da guerra, é de crer que aumente o espírito patriótico. Nada mais
ignóbil. Reporto-me às palavras sublimes de Goethe quando falou de quão
pouco o sentimento patriótico sobe até às paragens de ar puro e raro onde
vivem os Superiores. Permita-me que lhe recorde aquele passo das conversações
com Eckermann em que o Mestre de Weimar registou essa ideia.

1916?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 161.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:18


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Fernando Pessoa
Lembrou-se, há um tempo para cá, certa gente, degenerada por
natureza. . .

Lembrou-se, há um tempo para cá, certa gente, degenerada por natureza


e critica por predilecção, de protestar, cada qual com o mau “modo” que
lhe é modo, contra a obscenidade e a confusão desta ou daquela “literatura”,
destoutra ou daqueloutra poesia moderna, etc.
Isto, além de revelar a tendência para ter opiniões sobre qualquer assunto,
que é um dos estigmas psíquicos de degenerescência, amostra, paralelamente,
o hábito mental de não ter ideias, e expor ao público as ideias que se não tem.
Assim, neste ponto, nada curaram os autores dos diversos atentados críticos
em ver o que seria a obscenidade e a confusão, não se detiveram em procurar o
valor real dessa moeda artística. Nem sequer perguntaram a si próprios se na
realidade o ser obsceno e confuso não seria mais natural e são do que escrever
com clareza e lucidez.
De duas coisas uma: ou a ideação literária deve, ou não deve, seguir a norma
da ideação vulgar. Ou por ser ideação deve ser apenas um grau superior da
ideação normal, ou, por ser literária, e não vulgar, deve ser um género diferente
de ideação.
Que carácter tem, vista sob o aspecto de se é confusa ou não, a ideação
vulgar?
Sendo a ideação vulgar aquela que aparece nas conversas vulgares, é nesta
prosa de conversa que temos de a fotografar.
Que carácter têm as ideias conforme expostas numa conversa usual?
São perfeitamente nítidas? Não o são. Tanto o não são que as discussões
são geralmente intermináveis, sendo apenas modos de dois ou mais indivíduos
levarem muito tempo a chegar a perceber que se não percebem uns aos outros,
algumas vezes que se não percebem a si próprios, raras e ilustres vezes que não
percebem nada.
São perfeitamente confusas? Não são. Se o fossem não só não achariam
expressão nas palavras do próprio indivíduo, nem trariam consigo, ao serem
expressas, aquela quota parte de compreensibilidade que habilita o outro locutor
a julgar que as percebe. . .

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:18


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A ideação de conversa é, portanto, ao mesmo tempo nítida e confusa. Em


que é nítida e em que é confusa ? Vejamos. Se ela não fosse nítida na ideação
da ideia, o indivíduo, não tendo essa ideia, não a poria em palavras, porque
nem toda a gente pode estar com o Sr. Maeterlinck, constantemente a expor
ideias que não tem. Se ela fosse nítida na ideação da expressão da ideia, o
interlocutor perceberia o que se diz — o que nunca acontece, e, dado que
soubesse o pensamento sobre o assunto, poderia, logo de princípio, dizer se
estão ou não naquela espécie de divergência de si-próprios que se chama estar
de acordo com outra pessoa.
De modo que chegamos a isto: que a ideação vulgar é nítida na ideação da
ideia e confusa na ideação da expressão dessa ideia.
Ora, a ideação artística, sendo ou um prolongamento, ou uma inversão
da ideação normal — uma das duas coisas há-de ser, porque aqui não se
pode ser duas coisas opostas, como os católicos são cristãos (espiritualistas) e
materialistas — , tem de ser ou — é o caso do prolongamento — , como aquela
nítida na ideia e confusa na expressão, ou — e é o caso da inversão — nítida na
expressão e confusa na ideia. No primeiro caso temos uma ideia nítida expressa
confusamente, o que dá confusão, visto que a ideia, ao ser expressa, se torna
confusa; e no segundo caso temos uma ideia confusa expressa nitidamente, o
que dá confusão também, visto que uma ideia confusa não pode dar senão
confusão, de qualquer modo que seja expressa.

1915?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 162.

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Fernando Pessoa
My dear Marinetti:

My dear Marinetti:

I have not written you earlier because politics, which I have now almost
altogether set aside, and also lust have left me almost no time to fulfil other
duties and enjoy other pleasures. But, at any rate, here I am. I was already
acquainted with some of the manifestos which you have sent me, and for which
I thank you very much. Besides this, I had also read Boccioni’s fine book on
futurist painting and sculpture. I am therefore not altogether ignorant in the
matter of futurism; I am even to a certain extent on your side.
I think, however, that futurism ought to develop very much and to abandon
its extreme exclusivism. It seems to me that your idea of history is too little
futurist, and that you figure to yourselves a far too regular historic develop-
ment. In evolution we do not find a regularly ascending line; on the contrary,
development takes place in a violent and cataclysmic manner, in which gains
are achieved only through fundamental losses. And all this occurs in a very
labyrinthic manner which produces vertigo: here you have real futurism in
history. Social values are scattered almost haphazard over times and places, and
what there is of progress appears only through the loss of something which
must be produced anew that the Infinite may at last be established. In the
Infinite, which is the supreme futurist aspiration, all values should be realised
without the possibility of the loss of any of them. If there be losses in evolution,
even through manifest gains, let those losses be but momentary. In no other
way can the Infinite emerge, since nothing must be lacking to it.
Pre-war modern civilisation, which conceived futurism, possesses new ele-
ments which were hitherto unknown. But, on the other hand, it no longer
possesses elements, social values, which are as important as its own ones. So-
mething has been gained, but through several losses. Modern civilisation has
acquired new aspects of Existence, but it has lost other aspects. It is therefore
necessary that the Future should be the supreme synthesis of all that has been
lost and of all that exists still, so that it may engender the Infinite, to which
nothing is ever lacking, from which no single aspect of Existence is absent. It

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:18


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is this definitive state of Life which must be prepared that we may infinitize
ourselves for ever.
The Infinite, since it is continuous, is a multiplicity-one, and therefore the
civilisation which can be identified with it must not be divided into several
peoples, for it must be but one people, the perfect synthesis of all the peoples of
the Universe. In this synthesis, nothing must be missing; then all the scattered
aspects of Existence, which are the divers peoples and individuals, small worlds
of universal impressions, will rule together in the Infinite which will mingle
them with each other, without the sacrifice of any of them. In this way, each
individual and each people should develop itself as much as possible, and yet
their purpose should not be individual or nationalistic, since it must rather act
(?) that nothing may be lost before the establishment of the synthesis-Infinity,
to which nothing is lacking. If a people were to be sacrificed, that would mean
that a multitudinary aspect of Existence would be lost for ever; and for this
reason I seek nationalism with a purely ultra-nationalist purpose: synthesis
is a total to which nothing is lacking. Now it is not only in space that we
must take into consideration the different peoples and civilisations, the several
scattered aspects of infinite Existence; we must consider them also through all
times, throughout all lost history. Many things have disappeared, and they must
emerge again, rejuvenated and infinitized: in each element of the Infinite all the
other elements are included, and this because the Infinite is continuous, is pure
Unity all through the fact of being Multiplicity.
If modern civilisation has a spirit of Inexpression, of essential Void (Vacuum),
which is the basis (essence) of your “music-hall sensibility”, the Middle Ages,
for instance, know how to live splendidly the spirit of Supernatural which must
be made to reappear. Yet in the Middle Ages this spirit is imperfect, because it is
not excessive, as it will be when it is combined with the spirit of Void (Vacuum)
which is the essence of our civilisation. Infinity-Void, God-Void, this is what
must be sought. Through this supernatural, astral Void the forms, the phantoms
of Existence, altogether real and altogether false and in an altogether labyrinthic
manner glide essentially in Vertigo in each other; each supposes all the others,
and creates them in itself, and qua itself, by the excess of its nature, as I short1y
make evident, and then each exists but labyrinthically by the others and for
the others, that is to say, they all exist only relatively some to the others. The
Relative is not the simple Nothingness, and yet it has the spirit of Nothingness
all the while it expresses (throughout the fact of its expressing) a creative act,
an altogether animic act (an act of pure existence), that which manifests itself

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(shows itself) in things in their conceiving, in their creating other things, which
therefore exist only by them and for them, in fine, only relatively to them. In
this way, Life, which is a relativist phantomogeny where there is but Indecision
(?), where there is but Vertigo, impregnates itself with Void as well as with
Absolute, which is pure Existence, pure creative animism, as I shall shortly
make quite evident.
This Astral Void, this altogether animic Void-Infinity, this Void-Phantom in
Vertigo (in labyrinthizing-Vertigo) is as awful as it is sublime, being the pure
Essence of Life. It expresses the absolute creative power (it is the absolutely)
infinitely creative act expressed in pure relativity), it is the pure, the divine
Animic-Creating, so pure that there is no question of an animism creator of
a being, but of an animism in itself, purely in abstract: it is because there is
no longer being in this animism that we have a pure void in this pure act of
animic existence; and it is this that sublimates awfully (?) the essence of Life,
that essence, as sublime as it is awful, of infinite Void-Phantom in Vertigo.
If we have here a creative power, we have here doubtless [ly] the spirit of
God, the Holy Spirit (Ghost) of Death which is the essence of the whole World!
And I refer to Death because we naturally conceive Death as an altogether
abstract life, full of spiritual darkness, and of an altogether animized infinite
void: animism and void are indeed the things proper to Death.
It is therefore a new Religion and a new Church which I wish to (?) announce
(?), and both one and the other have a distinctly futuristic character. The rule
of the Void in a pure spirit of Relative-Creating, the Indecision-Vertigo of
all, the pure gliding (?) of forms-phantoms which are lost each in another in
an altogether labyrinthic manner, in a manner distinctly vertigic, all this is
markedly futuristic. And it is a glory for Futurism that Religion itself can profit
by its doctrines.
The Paracletian Church, whose foundation God commands me to announce,
is an essentially Futuristic Church! Let us then raise the bloody flag of Revolt
against the rotten carcase of the Vatican!
Like you, I condemn simple rationalism; yet my opinion is that we must
go beyond it. Now to go beyond it, and thus to attain the Infinite, we must
traverse it first. The simple intuition, or rather the simple immediate impression
of things, is not enough. We must know, understand, feel altogether purely
the intimate (inner) reason of things, et how they are engendered (produced).
It is true that Futurism seeks in relativity, that is, in what it calls physical
transcendentalism, the creative reason of impressions, but it seeks only their

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physical, outer, superficial and empirical reason, and not their metaphysical,
intimate, deep abysmic one! It is only the senses that seek that one, while the
metaphysical reason of things is found (out) by pure thought in an altogether
emotional purity. I can foresee your objection: “But it is thought itself which we
absolutely condemn”. I am not of that opinion; I wish only that thought may
transcend itself and attain the supreme state of Vertigo! You are on this side of
thought (on the near side of thought); I prefer its pure other side. (. . .)

1917?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 164.

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Fernando Pessoa
O futurismo vem a ser uma fotografia abstracta das coisas.

O futurismo vem a ser uma fotografia abstracta das coisas. Ora toda arte,
seja como for, é antifotográfica e concreta. . .

s. d.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 175.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:18


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Fernando Pessoa
[Carta a Mário Beirão — 6 Dez. 1912]

Lisboa, 6 de Dezembro de 1912

Meu caro Mário:

Recebi, há dias, a sua “plaquette” “Cintra”, que muito lhe agradeço. Além
de ter demorado um pouco o responder-lhe por não sei que razão propriamente
definível, demorou-me um pouco mais, ao pensar em escrever-lhe enfim, o
não saber bem o que lhe hei-de dizer, que V. já não saiba, da alta opinião
que tenho do seu génio. A “Cintra”, porém, se não me revela esse génio
sob forma nova — porque eu já conhecia, de lho ouvir e de o ler, o soneto
“Ausente” escrito em estilo idêntico — confirma essa revelação e mostra-me
quão artisticamente certeira tem sido, e continua sendo, a sua ascensão. Desde
que lhe conheço estilo definidamente próprio, lhe noto a perfeição artística como
flagrante característico. A sua evolução não tem sido para maior perfeição na
forma, senão porque tem sido para maior perfeição da ideia. A sua prodigiosa
interioridade tem ido complicando-se, e a forma tem seguido, naturalmente,
essa complexização.
V. hoje é tão perfeito e muito mais perfeito do que era quando escreveu
“As Queimadas”. Este paradoxo diz a verdade. O que era subtil tornou-se
hiper-subtil, e a perfeição da expressão acompanhou perfeitamente essa subida
da sua alma.
Isto podia acontecer sem V. ter originalidade. O que de mais curioso há em
si é que V. a tem, e eloquentemente. Estou-lhe dizendo coisas que V. já sabe que
eu penso; mas V. notará que, de novo, nada tenho para lhe dizer.
Permita-me que lhe faça, a par disto, a minha acompanhante observação de
sempre. Não se disperse, “nem mesmo dentro em si próprio”. Cuide em não
perder a noção do conjunto. A sua forma escusa de subir mais. A complexidade
da sua ideação tão original, tão interior, tão de fogo e sombras, escusa de se
complicar mais ainda. O que é preciso obter é aquela qualidade que os gregos
tiveram maximamente — a noção da poesia como “um todo composto de
partes”, e não aquela em que V. tende a cair — pelo género da sua intensa
inspiração — a da poesia como partes compondo um todo.

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:13


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Sei bem, acima disso, que o género da sua inspiração, o seu modo de sentir,
o faz compor mais por sobreposição, do que por cristalização, de sensações. A
sua arte, porém, é, no detalhe, tão equilibrada que não parece que seja esperar
impossíveis o esperar que atinja o equilíbrio no “todo”, no “conjunto”. De resto,
na sua idade, aquele poeta inglês de quem Lhe tenho falado como seu parente
espiritual, John Keats, tinha — além de menos perfeição no detalhe, quanto
à forma e quanto à ideia — ainda menos cuidado no conjunto do que V. tem.
E ele mais tarde — e pouco mais tarde foi, porque morreu aos vinte e cinco
anos — atingiu, em cinco ou seis poesias, o equilíbrio perfeito não só de ideia e
forma, mas também de detalhe e conjunto. Se ele dava muito menos esperanças
do que V. de o fazer; se na mesma idade que V. era espiritualmente inferior —
por que razão não atingirá V. a perfeição que ele veio a atingir, superiorizada
pela sua maior complexidade e intensidade de alma ?
Digo-lhe estas coisas como crítico, e digo-lhas porque sei que V. me conhece
suficientemente para nem sequer me supor quase capaz de lhas dizer com
oculta intenção irónica ou malévola. Eu, que não sou nem malévolo nem irónico
para quem me fere ou irrita, não havia de ir sê-lo para V., a quem tanto estimo
e admiro.
E, mais, digo-lhe estas coisas críticas porque tenho a certeza que V. subirá
no género de perfeição onde V. ainda se mostra jovem. Se eu julgasse que
essa perfeição lhe seria inatingível, ficaria no elogio, dedicadamente, e não
Lhe faria estes reparos onde, garanto-lhe, o amigo está tanto como o crítico, e
tão empenhado o português em que V. realize através de si, em plena altura
espiritual, o que puder dar à nossa Raça, como o artista em que V., de ascensão
em ascensão, suba até onde estão os deuses, e receba deles a coroa que não
murcha, porque as suas folhas são daquela matéria de que as coisas eternas são
divinamente feitas.
Escreva-me quando puder; cumprimente em meu nome o Vila-Moura, a
quem (diga) breve escreverei; e creia que ninguém mais sinceramente e confia-
damente o felicita e o abraça do que o seu muito amigo e fervoroso admirador.

FERNANDO PESSOA

6-12-1912
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966: 361.

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Fernando Pessoa
Notas ao livro de Max Nordau

Notas ao livro de M[ax] N[ordau]

Outrossim se engana o psiquiatra alemão quando contesta ao poeta o vago


do pensamento fazendo distinções, para o caso fúteis, entre pensamento são e
pensamento mórbido — o primeiro próprio, no dizer dele, do verdadeiro e são
poeta, por exemplo Goethe, o segundo do poeta degenerado.
Em arte porém não se trata, nem da degenerescência do artista como homem,
não da sua degenerescência mais localizadamente como pensador ou sentiente.
Trata-se apenas da sua degenerescência única e exclusivamente como artista. O
fundo da sua personalidade e do seu pensamento pode ser quanto se quiser,
mórbido e estranho (anormal): nada disso esteticamente importa. E da sua
forma — forma psíquica — de estetizar esse pensamento, e na sua (. . .) que
o crítico de arte trata.
Um sentimento em si mórbido pode ser limpidamente tratado por um
artista; o homem será doente e o artista são. Os sentimentos inspiradores não
são limitados aos assuntos morais, naturais ou (. . .). Baudelaire é um grande
poeta e um homem emocionalmente doente.
Um sentimento em si vago e indefinido pode ser tema inspirancial de um
poema, de um quadro ou de uma partitura. (. . .) Grande parte dos sentimentos
inspiradores dos artistas é indefinida e vaga. A saudade, o (. . .), o horror da
morte (. . .), da vida, a sensação (. . .) do mistério — nenhum destes temas
supremos de
inspiração é coisa clara e nítida e exaustivamente analisável. Emocionalmente
porém é claro. Ora a arte é apenas a substituição da inteligência à emoção. O
que deve sê-lo porém é o modo como o poeta, o artista ou o compositor musical
o concebe para que artisticamente o interprete. O que não pode ser vago e
indefinido é o
pensamento do poema, quadro ou partitura em si. Aí é que vem a parte do
artista. A suprema arte é justamente a concretização do abstracto, a nitidização
do indefinido, a lucidização do obscuro no símbolo, ideia ou (. . .) na obra de
arte.

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Obra Aberta · 2015-06-08 02:04


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É caso de distinguir, como apontava e fazia Edgar Poe, a expressão da obs-


curidade da obscuridade da expressão. O obscuro em si lucidamente expresso
permanece o obscuro em si, o obscuro não claro mas claramente obscuro. A
arte que dá ao obscuro uma expressão lúcida não o torna claro porque o que
é obscuro de essência só por erro de interpretação pode deixar de o ser mas
torna-lhe clara a obscuridade.

Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris:
F. C. Gulbenkian, 1977: 495.

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Álvaro de Campos
APONTAMENTOS PARA UMA ESTÉTICA
NÃO-ARISTOTÉLICA

APONTAMENTOS PARA UMA ESTÉTICA NÃO-ARISTOTÉLICA

Toda a gente sabe hoje, depois de o saber, que há geometrias chamadas


não-euclidianas, isto é, que partem de postulados diferentes dos de Euclides, e
chegam a conclusões diferentes. Estas geometrias têm cada uma um desenvolvi-
mento lógico: são sistemas interpretativos independentes, independentemente
aplicáveis à realidade. Foi fecundo em matemática e além da matemática (Eins-
tein bastante lhe deve) este processo de multiplicar as geometrias «verdadeiras»,
e fazer, por assim dizer, abstracções de vários tipos na mesma realidade objec-
tiva.
Ora, assim como se podem formar, se formaram, e foi útil que se formassem,
geometrias não euclidianas, não sei que razão se poderá invocar para que não
possam formar-se, não se formem, e não seja útil que se formem, estéticas
não-aristotélicas .
Há muito tempo que, sem reparar que o fazia, formulei uma estética não
aristotélica. Quero deixar escritos estes apontamentos para ela, em paralelo, não
sei se modesto, com a tese de Riemann sobre a geometria clássica.
Chamo estética aristotélica à que pretende que o fim da arte é a beleza, ou,
dizendo melhor, a produção nos outros da mesma impressão que a que nasce
da contemplação ou sensação das coisas belas. Para a arte clássica — e as suas
derivadas, a romântica, a decadente, e outras assim — a beleza é o fim; divergem
apenas os caminhos para esse fim, exactamente como em matemática se podem
fazer diversas demonstrações do mesmo teorema. A arte clássica deu-nos obras
grandes e sublimes, o que não quer dizer que a teoria da construção dessas
obras seja certa, ou que seja a única teoria «certa». É frequente, aliás, e tanto
na vida teórica como na prática, chegar-se a um resultado certo por processos
incertos ou mesmo errados.

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:04


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Creio poder formular uma estética baseada, não na ideia de beleza, mas na
de força — tomando, é claro, a palavra força no seu sentido abstracto e científico;
porque se fosse no vulgar, tratar-se-ia, de certa maneira, apenas de uma forma
disfarçada de beleza. Esta nova estética, ao mesmo tempo que admite como
boas grande número de obras clássicas — admitindo-as porém por uma razão
diferente da dos aristotélicos, que foi naturalmente também a dos seus autores
— estabelece uma possibilidade de construírem novas espécies de obras de arte
que quem sustente a teoria aristotélica não poderia prever ou aceitar.
A arte, para mim, é, como toda a actividade, um indício de força, ou energia;
mas, como a arte é produzida por entes vivos, sendo pois um produto da vida,
as formas da força que se manifestam na arte são as formas da força que se
manifestam na vida. Ora a força vital é dupla, de integração e de desintegração
— anabolismo e catabolismo, como dizem os fisiologistas. Sem a coexistência e
equilíbrio destas duas forças não há vida, pois a pura integração é a ausência
da vida e a pura desintegração é a morte. Como estas forças essencialmente
se opõem e se equilibram para haver, e enquanto há, vida, a vida é uma acção
acompanhada automática e intrinsecamente da reacção correspondente. E é no
automatismo da reacção que reside o fenómeno específico da vida.
O valor de uma vida, isto é, a vitalidade de um organismo, reside pois na
intensidade da sua força de reacção. Como, porém, esta reacção é automática,
e equilibra a acção que a provoca, igual, isto é, igualmente grande, tem que
ser a força de acção, isto é, de desintegração. Para haver intensidade ou valor
vital (no conceito de vida não pode caber outro conceito de valor que não o de
intensidade, isto é, de grau de vida), ou vitalidade, é forçoso que essas duas
forças sejam ambas intensas, mas iguais, pois, se o não forem, não só não há
equilíbrio mas também uma das forças é pequena, pelo menos em relação à
outra. Assim o equilíbrio vital é, não um facto directo — como querem para
a arte (não esqueçamos o fim destes apontamentos) os aristotélicos — mas o
resultado abstracto do encontro de dois factos.
Ora a arte, como é feita por se sentir e para se sentir — sem o que seria
ciência ou propaganda — baseia-se na sensibilidade. A sensibilidade é pois a
vida da arte. Dentro da sensibilidade, portanto, é que tem que haver a acção e a
reacção que fazem a arte viver, a desintegração e integração que, equilibrando-se
lhe dão vida. Se a força de integração viesse, na arte, de fora da sensibilidade,
viria de fora da vida; não se trataria de uma reacção automática ou natural, mas
de uma reacção mecânica ou artificial.
Como aplicaremos à arte o princípio vital de integração e desintegração?

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O problema não oferece dificuldades; como a maioria dos problemas, basta,


para o resolver, ver bem que problema ele é. Indo ao aspecto fundamental da
integração e da desintegração, isto é, à sua manifestação no mundo chamado
inorgânico, vemos a integração manifestar-se como coesão, a desintegração
como ruptibilidade, isto é, tendência a, por causas (neste nível) quase todas ma-
croscopicamente externas — aliás perpetuamente operantes, em grau menor ou
maior — o corpo se cindir, se quebrar, deixar de ser o corpo que é. No mundo
chamado orgânico mantêm-se, variando o nome porque a forma de manifesta-
ção, estas duas forças. Na sensibilidade o princípio de coesão vem do indivíduo,
que essa sensibilidade caracteriza, ou, antes, essa forma de sensibilidade, pois
é a forma-tomando este termo no sentido abstracto e completo-que define o
composto individualizado. Na sensibilidade o princípio de ruptibilidade está
em variadíssimas forças, na sua maioria externas, que, porém se reflectem
no indivíduo físico através da não-sensibilidade, isto é, da inteligência e da
vontade — a primeira tendendo a desintegrar a sensibilidade perturbando-a,
inserindo nela elementos (ideias) gerais e assim contrários necessariamente aos
individuais, a tornar a sensibilidade humana em vez de pessoal; a segunda
tendendo a desintegrar a sensibilidade limitando-a, tirando-lhe todos aqueles
elementos que não sirvam, ou, por excessivos, à acção em si, ou, por supérfluos,
à acção rápida e perfeita, a tornar pois a sensibilidade centrífuga em vez de
centrípeta.
Contra estas tendências disruptivas a sensibilidade reage, para coerir, e como
toda a vida, reage por uma forma especial de coesão, que é a assimilação, isto
é, a conversão dos elementos das forças estranhas em elementos próprios, em
substância sua.
Assim, ao contrário da estética aristotélica, que exige que o indivíduo gene-
ralize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal,
nesta teoria o percurso indicado é inverso: é o geral que deve ser particularizado,
o humano que se deve pessoalizar, o «exterior» que se deve tornar «interior».
Creio esta teoria mais lógica — se é que há lógica — que a aristotélica; e
creio-o pela simples razão de que, nela, a arte fica o contrário da ciência, o que
na aristotélica não acontece. Na estética aristotélica, como na ciência, parte-se,
em arte, do particular para o geral; nesta teoria parte-se, em arte, do geral
para o particular, ao contrário de na ciência, em que, com efeito e sem dúvida,
é do particular para o geral que se parte. E como ciência e arte são, como é
intuitivo e axiomático, actividades opostas, opostos devem ser os seus modos
de manifestação, e mais provavelmente certa a teoria que dê esses modos como

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realmente opostos que aquela que os dê como convergentes ou semelhantes.

II

Acima de tudo, a arte é um fenómeno social. Ora no homem há duas


qualidades directamente sociais, isto é, dizendo directamente respeito à sua
vida social: o espírito gregário, que o faz sentir-se igual aos outros homens ou
parecido com eles, e portanto aproximar-se deles; e o espírito individual ou
separativo, que o faz afastar-se deles, colocar-se em oposição a eles, ser seu
concorrente, seu inimigo, ou seu meio inimigo. Qualquer indivíduo é ao mesmo
tempo indivíduo e humano: difere de todos os outros e parece-se com todos os
outros.
Uma vida social sã no indivíduo resulta do equilíbrio destes dois sentimen-
tos: uma fraternidade agressiva define o homem social e são. Ora se a arte é
um fenómeno social, no ser social vai já o elemento gregário; resta saber onde
está nela o elemento separativo. Não o podemos buscar fora da arte, porque
então haveria na arte um elemento estranho a ela, e ela seria tanto menos arte;
temos que o buscar dentro da arte — isto é, o elemento separativo tem que se
manifestar na arte também, e como arte.
Quer isto dizer que, na arte, que é antes de tudo um fenómeno social, tanto
o espírito gregário como o separativo têm que assumir a forma social.
Ora o espírito separativo, antigregário, tem, é claro, duas formas: o afasta-
mento dos outros, e a imposição do indivíduo aos outros, a sobreposição do
indivíduo aos outros — o isolamento e o domínio. Destas duas formas a segunda
é que é a forma social, pois isolar-se é deixar de ser social. A arte, portanto,
é antes de tudo, um esforço para dominar os outros. Há, evidentemente, várias
maneiras de dominar ou procurar dominar os outros; a arte é uma delas.
Ora há dois processos de dominar ou vencer — captar e subjugar. Captar
é o modo gregário de dominar ou vencer; subjugar é o modo antigregário de
dominar ou vencer.
Ora em todas as actividades sociais superiores há estes dois processos,
porque fatalmente não pode haver outros; e se me refiro distintamente às
actividades sociais superiores é que são estas, porque são superiores, as que
envolvem a ideia de domínio. São três as actividades sociais superiores — a
política, a religião e a arte. Em cada um destes ramos da actividade social
superior há o processo de captação e o processo de subjugação.
Na política há a democracia, que é a política de captação, e a ditadura, que é

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a política de subjugação. É democrático todo o sistema que vive de agradar e de


captar — seja a captação oligárquica ou plutocrática da democracia moderna,
que, no fundo, não capta senão certas minorias, que incluem ou excluem a mai-
oria autêntica; seja a captação mística e representativa da monarquia medieval,
único sistema portanto verdadeiramente democrático, pois só a monarquia, pelo
seu carácter essencialmente místico, pode captar as maiorias e os conjuntos,
organicamente místicos na sua profunda vida mental. É ditatorial todo o sistema
político que vive de subordinar e de subjugar — seja o despotismo artificial do
tirano de força física, inorgânico e irrepresentativo, como nos impérios decaden-
tes e nas ditaduras políticas; seja o despotismo natural do tirano de força mental,
orgânico e representativo, enviado oculto, na ocasião da sua hora, dos destinos
subconscientes de um povo.
Na religião há a metafísica, que é a religião de captação, porque tenta
insinuar-se pelo raciocínio, e explicar ou provar é querer captar; e há a religião
propriamente dita, que é o sistema de subjugação, porque subjuga pelo dogma
improvado e pelo ritual inexplicável, agindo assim directa e superiormente
sobre a confusão das almas.
Assim como na política e na religião, assim na arte. Há uma arte que
domina captando, outra que domina subjugando. A primeira é a arte segundo
Aristóteles, a segunda a arte como eu a entendo e defendo. A primeira baseia-se
naturalmente na ideia de beleza, porque se baseia no que agrada; baseia-se na
inteligência, porque se baseia no que, por ser geral, é compreensível e por isso
agradável; baseia-se na unidade artificial, construída e inorgânica, e portanto
visível, como a de uma máquina, e por isso apreciável e agradável. A segunda
baseia-se naturalmente na ideia de força, porque se baseia no que subjuga; baseia-
-se na sensibilidade, porque é a sensibilidade que é particular e pessoal, e é com
o que é particular e pessoal em nós que dominamos, porque, se não fosse assim,
dominar seria perder a personalidade, ou, em outras palavras, ser dominado; e
baseia-se na unidade espontânea e orgânica, natural, que pode ser sentida ou
não sentida, mas que nunca pode ser vista ou visível, porque não está ali para
se ver.
Toda a arte parte da sensibilidade e nela realmente se baseia. Mas, ao passo
que o artista aristotélico subordina a sua sensibilidade à sua inteligência, para
poder tornar essa sensibilidade humana e universal, ou seja para a poder
tornar acessível e agradável, e assim poder captar os outros, o artista não-
-aristotélico subordina tudo à sua sensibilidade, converte tudo em substância
de sensibilidade, para assim, tornando a sua sensibilidade abstracta como a

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inteligência (sem deixar de ser sensibilidade), emissora como a vontade (sem


que seja por isso vontade), se tornar um foco emissor abstracto sensível que force
os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela
força inexplicável, como o atleta mais forte domina o mais fraco, como o ditador
espontâneo subjuga o povo todo (porque é ele todo sintetizado e por isso mais
forte que ele todo somado), como o fundador de religiões converte dogmática e
absurdamente as almas alheias na substância de uma doutrina que, no fundo,
não é senão ele próprio.
O artista verdadeiro é um foco dinamogéneo; o artista falso, ou aristotélico,
é um mero aparelho transformador, destinado apenas a converter a corrente
contínua da sua própria sensibilidade na corrente alterna da inteligência alheia.
Ora entre os artistas «clássicos», isto é, aristotélicos, há verdadeiros e falsos
artistas; e também nos não-aristotélicos há verdadeiros artistas e há simples
simuladores — porque não é a teoria que faz o artista, mas o ter nascido artista.
O que porém entendo e defendo é que todo o verdadeiro artista está dentro da
minha teoria, julgue-se ele aristotélico ou não; e todo o falso artista está dentro
da teoria aristotélica, mesmo que pretenda ser não-aristotélico. É o que falta
explicar e demonstrar.
A minha teoria estética baseia-se — ao contrário da aristotélica, que assenta
na ideia de beleza — na ideia de força. Ora a ideia de beleza pode ser uma força.
Quando a «ideia» de beleza seja uma «ideia» da sensibilidade, uma emoção
e não uma ideia, uma disposição sensível do temperamento, essa «ideia» de
beleza é uma força. Só quando é uma simples ideia intelectual de beleza é que
não é uma força.
Assim a arte dos gregos é grande mesmo no meu critério, e sobretudo o é
no meu critério. A beleza, a harmonia, a proporção não eram para os gregos
conceitos da sua inteligência, mas disposições íntimas da sua sensibilidade. É
por isso que eles eram um povo de estetas, procurando, exigindo a beleza todos,
em tudo, sempre. É por isso que com tal violência emitiram a sua sensibilidade
sobre o mundo futuro que ainda vivemos súbditos da opressão dela. A nossa
sensibilidade, porém, é já tão diferente — de trabalhada que tem sido por
tantas e tão prolongadas forças sociais — que já não podemos receber essa
emissão com a sensibilidade, mas apenas com a inteligência. Consumou este
nosso desastre estético a circunstância de que recebemos em geral essa emissão
da sensibilidade grega através dos romanos e dos franceses. Os primeiros,
embora próximos dos gregos no tempo, eram, e foram sempre, a tal ponto
incapazes de sentimento estético que tiveram que se valer da inteligência para

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receber a emissão da estética grega. Os segundos, estreitos de sensibilidade e


pseudovivazes de inteligência, capazes portanto de «gosto» mas não de emoção
estética, deformaram a já deformada romanização do helenismo, fotografaram
elegantemente a pintura romana de uma estátua grega. Já é grande, para quem
souber medi-la, a distância que vai da «Ilíada» à «Eneida» — tão grande que
a não oculta mesmo uma tradução; a de um Píndaro a um Horácio parece
infinita. Mas não é menor a que separa mesmo um Homero bidimensional
como Vergílio, ou um Píndaro em projecção de mercator como Horácio, da
chateza morta dum Boileau, dum Corneille, dum Racine, de todo o insuperável
lixo estético do «classicismo» francês, esse «classicismo» cuja retórica póstuma
ainda estrangula e desvirtua a admirável sensibilidade emissora de Vítor Hugo.
Mas, assim como para os « clássicos», ou pseudoclássicos — os «aristotélicos»
propriamente ditos — a beleza pode estar, não nas disposições da sua sensibili-
dade, mas só nas preocupações da sua razão, assim, para os não-aristotélicos
postiços, pode a força ser uma ideia da inteligência e não uma disposição da
sensibilidade. E assim como a simples ideia intelectual de beleza não habilita
a criar beleza, porque só a sensibilidade verdadeiramente cria, porque verda-
deiramente emite, assim também a simples ideia intelectual de força, ou de
não-beleza, não habilita a criar, mais que a outra, a força ou a não-beleza que
pretende criar. É por isso que há — e em que abundância os há! — simuladores
da arte da força ou da não-beleza, que nem criam beleza nem não-beleza, por-
que positivamente não podem criar nada; que nem fazem arte aristotélica falsa,
porque a não querem fazer, nem arte aristotélica falsa, porque não pode haver
arte não-aristotélica falsa. Mas em tudo isto fazem sem querer, e ainda que mal,
arte aristotélica, porque fazem arte com a inteligência, e não com a sensibilidade.
A maioria, senão a totalidade, dos chamados realistas, naturalistas, simbolistas,
futuristas, são simples simuladores, não direi sem talento, mas pelo menos, e
só alguns, só com o talento da simulação. O que escrevem, pintam ou esculpem
pode ter interesse, mas é o interesse dos acrósticos, dos desenhos de um só
traço e de outras coisas assim. Logo que se lhe não chame «arte», está bem.
De resto, até hoje, data em que aparece pela primeira vez uma autêntica
doutrina não aristotélica da arte, só houve três verdadeiras manifestações de
arte não-aristotélica. A primeira está nos assombrosos poemas de Walt Whitman;
a segunda está nos poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro; a
terceira está nas duas odes — a Ode Triunfal e a Ode Marítima — que publiquei
no «Orpheu». Não pergunto se isto é imodéstia. Afirrno que é verdade.

7/8
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ÁLVARO DE CAMPOS

1924
Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980: 251.

1ª publ. in “Athena”, nº 3 e 4. Lisboa: Dez.-Jan. 1924-25.

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Álvaro de Campos
OUTRA NOTA AO ACASO

OUTRA NOTA AO ACASO

Toda a arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer
coisa. Há duas formas de dizer — falar e estar calado. As artes que não são a
literatura são as projecções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda
a arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o
romance, ou o drama. Quando se diz «poema sinfónico» fala-se exactamente, e
não de um modo translato e fácil. O caso parece menos simples para as artes
visuais, mas, se nos prepararmos com a consideração de que linhas, planos,
volumes, cores, justaposições e contraposições são fenómenos verbais dados
sem palavras ou antes por hieroglifos espirituais, compreenderemos como
compreender as artes visuais, e, ainda que as não cheguemos a compreender
ainda, teremos, ao menos, já em nosso poder o livro que contém a cifra e a alma
que pode conter a decifração. Tanto basta até chegar o resto.

1936
Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980: 279.

1ª publ. in “Presença”, nº 48. Coimbra: Jul. 1936.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:04


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Fernando Pessoa
A virtude principal da literatura — o não ser música. . .

A virtude principal da literatura — o não ser música — é ao mesmo tempo o


seu principal defeito. Tem que ser composta e expressa em uma língua qualquer.
Tem, portanto, por mais largamente que essa língua seja falada ou conhecida,
que se não dirigir plenariamente à maioria do género humano. Aquilo por onde
é mais explícita que qualquer outra arte, por isso mesmo é menos universal que
ela.
Ocorre, pois, perguntar por que processo, em literatura, é alguém univer-
salmente célebre, como, ainda que poucos, há relativamente tantos que o são;
porque processo são célebres no espaço, e sobretudo no espaço e no tempo,
quando forçosamente, e mormente na poesia, que é a espécie literária mais alta,
nenhuma tradução, supondo que existe, pode dar conhecimento da obra em
sua completa e verdadeira vida.
Porque o certo é que, a maioria de nós, não mentimos nem fingimos quando,
ignorantes do grego, sofremos o entusiasmo de Homero, ou, hóspedes e pere-
grinos no latim, temos o culto de Horácio ou de Catulo. Não mentimos nem
fingimos; pressentimos. E esse pressentimento, feito de não sei que misto de
intuição, de sugestão e de entendimento obscuro, é uma espécie de tradutor
invisível, que acompanha pelas eras fora, e torna universal como a música, a
arte dada em linguagem, esse produto de Babel, com cuja queda o homem pela
segunda vez caiu.
O que há de mais alto neste mundo fala, quer queira quer não, uma lin-
guagem simbólica, entendida por poucos com a verdadeira chave hermética, a
inteligência, entendida por mais com o instinto de que há que entender, que
é a intuição. São os primeiros, para o caso da obra literária, os que conhecem
como naturais a língua em que ela está escrita; são os segundos os que a não
conhecem assim, ou de todo a não conhecem, mas que, não conhecendo a
língua, conhecem todavia a obra.
Mas há mais, e mais estranho. Podemos, por intuição, ou o que quer que
seja, figurar-nos a alma e a vida de uma obra poética de que não conhecemos
nada, ou, no melhor, não conhecemos mais que uma tradução em prosa, que
é outra forma, mais complicada, do mesmo nada. Muitos de nós, porém, nos

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figuramos, com razoável exactidão, a alma e a vida de obras que nunca lemos,
por vagas reminiscências de referencias, por obscuras e casuais alusões, ou de
obras, ainda, em idiomas estranhos, e de que não há, ou pelo menos nunca
lemos, tradução em idioma que no-lo não seja. Aqui o tradutor invisível opera
invisivelmente. Já não intuicionamos: adivinhamos. E como se houvesse em
nós uma parte superior da alma que soubesse por condição todos os idiomas e
tivesse lido por natureza todas as obras.
Afinal, que é uma obra literária senão a projecção em linguagem de um
estado de espírito, ou de uma alma humana? E essa obra é o símbolo vivo da
alma que a escreveu (compôs), ou do momento dessa alma — uma pequena
alma ocasional — que a projectou. Porque não haverá de alma para alma uma
comunicação oculta, um entendimento sem palavras, pelo qual adivinhemos a
sombra visível pelo conhecimento do corpo invisível que a projecta, e entende-
mos o símbolo, não por o conhecermos visto, mas por sabermos aquilo de que
é símbolo?
Quem sabe, até, se em qualquer estado antenatal, não vimos frente a frente a
obra em seu espírito, que não no corpo verbal que aqui tem; que, ouvindo aqui
só falar nela, desde logo sabemos de que se trata, na sua verdadeira essência e
vida; e que, pois, lendo mal, ou nem sequer lendo, não é em nós suscitado, não
um entendimento, ainda que intuitivo, mas uma funda e subtil recordação?
Quem sabe, ainda, se, nesse estado antenatal, livres ainda do espaço e do
tempo, não vimos já tudo, aqui hoje passado ou aqui hoje futuro, sub specie
aeternitatis; e assim, se pudermos dispertar em nós essa anamnesis, não estamos
hoje, nós mesmos nossos tradutores invisíveis, senhores inconscientes das obras
ainda por nascer no decurso futuro do mundo?
Não sorrio por isso — ou, melhor, não sorrio sempre, nem prontamente
— dos que me falam de Shakespeare sem que saibam o inglês — e escolho
Shakespeare para exemplo porque ele é dos poetas mais fielmente casados com
a índole e as possibilidades do idioma em que compôs, e, como bom marido,
com as maneiras e formas de enganar esse idioma. Não sorrio. Quem sabe se,
em qualquer incamação anterior, o que me fala não conheceu Shakespeare como
aqui foi, não falou com ele como aqui falou, e não está sendo, sem que ele ou
eu o saiba, o tradutor invisível de um grande amigo ignorado?

s. d.

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Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 87.

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António Mora
Quantos géneros de ficções há?

Quantos géneros de ficções há?


1. Ficções que formam a religião ou a metafísica.
2. Ficções que formam a moral e os costumes.
3. Ficções que formam a estética.

Servem as primeiras de guiar-nos nas nossas relações universais; as segundas


nas nossas relações sociais; as últimas nas nossas relações com nós-próprios.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 88.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:35


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António Mora
Uma ficção é um erro relativo. Um erro é uma ficção absoluta.

Uma ficção é um erro relativo. Um erro é uma ficção absoluta.


Relativamente ao sistema a que pertence, a ficção é uma verdade; o erro, aí,
é a desarmonia de ficções.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 89.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:35


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Alberto Caeiro
Como ele me disse uma vez: «Só a prosa é que se emenda.

Como ele me disse uma vez «Só a prosa é que se emenda. O verso nunca se
emenda. A prosa é artificial. O verso é que é natural».
Nós não falamos em prosa. Falamos em verso. Falamos em verso sem rima
nem ritmo.
Fazemos pausas na conversa que na leitura da prosa se não podem fazer.
Falamos, sim, em verso, em verso natural — isto é, em verso sem rima nem
ritmo, com as pausas do nosso fôlego e sentimento.
Os meus versos são naturais porque são feitos assim.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 402.

N. do A.: «O verso ritmado e rimado é bastardo e ilegítimo.»

Obra Aberta · 2015-06-08 01:44


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Ricardo Reis
O desprezo de Campos pela exactidão de frases,

O desprezo de Campos pela exactidão de frases, considerando purismo


absurdo o esforço em apurá-las e concentrá-las, dá em resultado o ele, em seus
próprios versos, cair em coisas como a do oceano «lavando as costas», sem olhar
aos dois sentidos, um do quais cómico, da palavra «costas», e esse outro do
«Fui, como ervas, mas não me arrancaram», em que parece que é herbívoro.

1928
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 406.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:45


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2939

Ricardo Reis
A arte consiste na organização ideal da matéria.

A arte consiste na organização ideal da matéria. A matéria, para ser ideal-


mente organizada, tem primeiro que assumir um aspecto ideal o que quer dizer
abstracto, pois a abstracção é o começo do ideal — a negação da matéria.
Temos como abstracção máxima da matéria [?] o espaço com as suas 3
dimensões; do pensamento [?] a palavra, com as suas três dimensões também,
que são a ideia, a imagem e o ritmo, porque toda palavra representa uma ideia,
projecta uma imagem e tem um som.
A escultura e a poesia, a idealização humana do espaço e a idealização
humana da palavra, são pois as duas únicas artes grandes.
A distinção pode provar-se com o uso de termos filosóficos. Na prosa o
ritmo existe; na poesia o ritmo é.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 407.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:45


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2946

Ricardo Reis
. . . a própria sensualidade com sua animalidade directa. . .

. . .a própria sensualidade com sua animalidade directa devem ser excluídas


da arte. Essas coisas não são arte: são vida.
A arte deve dar o material, mas tornado imaterial.
O verso de Cesário. Isso é fotográfico, não pictural. E a fotografia não é arte
porque reproduz exactamente a matéria. Só é arte pela escolha (do assunto, da
posição, etc.) porque a arte é escolha.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 408.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:45


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2954

Ricardo Reis
A música é apenas a forma subtilizada das artes de
comunicação social.

A música é apenas a forma subtilizada das artes de comunicação social. A


música é a forma abstracta de entreter.

Artes de comunicação social


[Artes de comunicação] externa (escultura: máx[ima])
[Artes de comunicação] interna [:] prosa e o verso a, que são modos inteira-
mente diferentes.
O verso é mais abstracto que a prosa porque, em vez de discorrer, impõe.

Para Pessoa a filosofia é uma arte, para Campos é não uma arte, mas uma
ciência virtual. Para mim nada é, ou, quando muito, é um simulacro de ciência,
feita sem dados: a tentativa de construir uma ciência original sem dados alguns.

A prosa está para a poesia como a pintura para a escultura.

Na escultura, que é o tipo da arte, servimo-nos da forma da vida e da matéria


da não-vida.

Possivelmente: só duas artes:


a escultura, que é a imposição da forma particular da vida à matéria material,
e a poesia, que é a imposição da forma geral da vida à matéria mental. As outras
artes são subtracções destas.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 409.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:45


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2960

Ricardo Reis
Quando há alguma coisa de belo a dizer em vida, esculpe-se;

Quando há alguma coisa de belo a dizer em vida, esculpe-se; quando há


alguma coisa de belo a dizer em alma, faz-se versos. A prosa é para a corres-
pondência — quer a correspondência particular, quer a correspondência geral,
chamada literatura. A poesia não é literatura: é Arte.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 410.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:45


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2964

Ricardo Reis
A arte existe, não, como Campos quer, para substituir a vida,
senão para a completar.

A arte existe, não, como quer Campos, para substituir a vida, senão para a
completar. Tudo na vida, excepto o desejo do homem, é irracional e imperfeito;
na arte o homem projecta o seu desejo e a vontade de perfeição que há nele. Por
isso a obra de arte deve, conservando a forma da vida, substituir-lhe a matéria:
a escultura é na limpeza da pedra, que não na porcaria do corpo; a poesia é
na música do ritmo lida que não na falta de música da palavra simplesmente
falada.
Na arte deve ser eliminado todo elemento que recorde a matéria da vida;
conservado tudo que recorde a sua forma. Assim, não aceito como arte o verso
nauseabundo de Cesário Verde, a propósito dos cegos:

Rolam os olhos como dois escarros.

Repudio a tese frequente, de que a arte tenha que ir buscar a sua simplicidade
à simplicidade infantil. Na criança há simplicidade; na arte há simplificação,
que é o contrário. A frase infantil tem analogia com a frase de graça, ou espírito:
representa sem hesitação uma ideia que nasce sem reflectir, fruto, por vezes, de
uma confusão do pensamento.

A arte baseia-se na vida, porém, não como matéria mas como forma. Sendo
a arte um produto directo do pensamento, é do pensamento que se serve como
matéria; a fprma vai buscá-la à vida. A obra de arte é um pensamento tornado
vida: um desejo realizado em si mesmo. Como realizado tem que usar a forma
da vida, que é essencialmente a realização; como realizado em si mesmo tem
que tirar de si a matéria com que realiza.

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 411.

N. do A.: «Ricardo Reis (?) (ou Ant. Mora)».

Obra Aberta · 2015-06-08 01:45


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Álvaro de Campos
Não posso aceitar a atitude crítica de Ricardo Reis para com a
obra de Caeiro.

Não posso aceitar a atitude crítica de Ricardo Reis para com a obra de Caeiro.
Ricardo Reis elogia a obra de Caeiro, não por ser uma obra de arte, mas por
ser uma obra de verdade. Não aceito, repito. Tenho a obra de Caeiro por bela
independentemente da verdade que contenha ou até não contenha. E é por isso
mesmo que chamo à obra de Caeiro uma obra de arte.
É obra de arte tudo aquilo que produz uma emoção de prazer independen-
temente de satisfação, utilidade ou verdade. Repudio o chamado nu artístico,
porque dá, ou desde que dê, uma sensação sexual, isto é, uma sensação, embora
fruste, de satisfação; pois toda a emoção sexual é um prazer de satisfação, e
não simplesmente um prazer. A chamada arte industrial só é arte se nela se não
atendeu à utilidade do objecto em que se aplicou. Desde que um cartaz visa a
produzir um efeito puramente publicitário, pode ser um bom cartaz, mas pode
ser também uma má obra de arte. E — chegamos ao ponto — desde que numa
frase interesse a verdade que ela contém, ou que ela interesse pela verdade que
possa conter, essa frase pode pertencer à filosofia; deixa de pertencer à arte.
Quando Caeiro diz, «A Natureza é partes sem um todo» o que nos dá a
emoção de prazer é a frase e não a sua verdade possível, ou o aceitarmo-la por
verdadeira. Mas é a frase por ser assim como é, na sua vividez paradoxal. Se
Caeiro houvesse dito a mesma coisa de outra maneira, da maneira filosófica
— por exemplo, «A Natureza é essencialmente plural, e é impossível reduzi-la
a unidade», nada haveria de belo no dizer; a própria ideia perde a realidade,
descarna-se, é esqueleto e filosofia.
É por isto que discordei sempre da tese posta por Fernando Pessoa, de que
a filosofia é uma das artes. Achei sempre que a filosofia era uma ciência virtual,
ou uma tentativa de ciência, ou uma ciência fruste. Há nos filósofos frases
casuais que têm poesia, e grande poesia. Mas são as frases só. Quando Platão
diz «Deus geometriza», isto é belo independentemente de Deus geometrizar,
ou até existir. É belo porque exprime em cor e corpo uma ideia grande.
A poesia é toda aquela forma da arte literária em que se recebe uma emoção
estética por motivos independentes do sentido da frase.

1/2

Obra Aberta · 2015-06-08 01:02


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/571

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 412.

2/2
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/578

A. de Campos e R. Reis
POLÉMICA ENTRE RICARDO REIS E ÁLVARO DE
CAMPOS. . .

POLÉMICA ENTRE RICARDO REIS E ÁLVARO DE CAMPOS QUANTO À


CLASSIFICAÇÃO DAS ARTES.

Ricardo Reis: Há só duas artes verdadeiras: a Poesia e a Escultura. A Reali-


dade divide-se em realidade espacial e realidade não espacial, ou ideal.
A escultura figura a realidade espacial (que a pintura desfigura e abaixa e a
arquitectura artificializa porque não reproduz uma coisa real mas outra coisa).
A música, que é a arquitectura da poesia, isola uma coisa, o som, e quer dar o
ritmo fora do humano, que é a ideia.

Álvaro de Campos: Há cinco artes — a Literatura, a Engenharia, a Política, a


Figuração (que inclui o drama, a dança, etc.) e a Decoração. (A Decoração vai
desde a arte de arrumar bem as coisas em cima de uma mesa até à pintura e à
escultura. F[ernando] P[essoa] teve razão numa coisa: a pintura e a escultura
são essencialmente artes de decorar, mas errou em limitar a essas as artes
decorativas).

s. d.
Pessoa por Conhecer — Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990: 413.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:02


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Fernando Pessoa
Há duas expressões humanas de um estado mental — a palavra
e a voz.

Há duas expressões humanas de um estado mental — a palavra e a voz. Não


há palavras sem voz, mas há voz sem palavras — no grito, no riso, no trauteio
— ou, seja, o canto sem palavras. Diferem uma da outra estas duas formas de
expressão em que a palavra é, essencialmente, a expressão de um pensamento ou
ideia, e a simples voz é a expressão de uma emoção. A voz trémula que afirma,
afirma como palavras e nega como voz. A ideia e a emoção desencontram-se
onde se juntam. Os animais, que são emotivos mas não pensantes têm voz
mas não palavra. De alguns animais, como as formigas e as abelhas, se pode
talvez dizer que têm palavra mas não têm voz; e com efeito se entendem
e manifestam na sua organização social o que parece ser inteligência. São
especulações curiosas, que podiam prolongar muito. Não as queremos prolongar
senão até aqui, porque até aqui é que nos servem para o nosso argumento. O
mais é a mais.

A prosa, que é predominantemente expressão de ideias, nasce directamente


da palavra. O verso, que é predominantemente expressão de emoções, nasce
directamente da voz. Por isso os primeiros versos não eram ditos mas cantados.
A expressão de uma ideia chamar-se-á propriamente explicação, porque expor
uma ideia é explicá-la; a expressão de uma emoção chamar-se-á propriamente
ritmo, porque expor uma emoção é tirar-lhe o pensamento sem lhe tirar a
expressão, vocalizá-la sem a dizer.
Como o homem é pensante e emotivo ao mesmo tempo, as duas coisas —
salvo em casos puramente animais como o grito, ou puramente artificiais como
o trauteio — aparecem-nos juntas.

s. d.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).
Lisboa: Livros Horizonte, 1993: 236.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:24


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3861

Fernando Pessoa
Conhece-se a poesia lírica pelo facto de ser quase desprezível

Conhece-se a poesia lírica pelo facto de ser quase desprezível a ideação ou


o sentimento para existir uma boa poesia lírica. Assim o «Ai flores, ai flores
do verde pino» ou o «Levantou-se a velida» de D. Dinis, rei de Portugal, são
poesias líricas maravilhosas, conquanto contenham uma insignificante base
ideativa ou mesmo emocional. É o lirismo puro. Claro está que, dentro d’este
lirismo, a poesia será tanto maior quanto mais ideia e emoção contém. O lirismo
de Burns é parco ao lado do de Shelley.

s. d.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).
Lisboa: Livros Horizonte, 1993: 237.

Indicação inicial: «Estética».

Obra Aberta · 2015-06-08 02:02


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3871

Fernando Pessoa
Poetas: — de profundeza (pensamento). . .

Poetas:
— de profundeza (pensamento) (a)
— de construção (b)
— de intensidade (c)

(a) em que a base inspiracional é uma ideia, uma compreensão, interpretação,


das coisas.
(b) em que a base inspiracional é o assunto, isto é, (uma coisa vista como um
todo composto de detalhes).
(c) em que a base inspiracional é consoante o grau de sensação que uma
coisa desperta.

s. d.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).
Lisboa: Livros Horizonte, 1993: 238.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:02


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3881

Fernando Pessoa
Poetas-pensadores são de 3 espécies:

Poetas-pensadores são de 3 espécies:


(1) Aqueles em que o poeta e o pensador estão absolutamente fundidos
(Antero).
(2) Aqueles em que o pensamento e a expressão poética d’ele se acham
inteiramente separados, de modo que o pensamento é conscientemente posto
em verso, ainda que, sendo a natureza artística intensa, em magnífico verso
(Goethe, em parte; Hugo às vezes[;] os poetas do século XVIII).
(3) Aqueles em que o pensamento é pensado poeticamente, mas não rea-
lizado com perfeito (e artístico) afastamento; nem com fusão, modeladora em
perfeita arte, do pensamento (Bocage, Wordsworth, Pascoais).

s. d.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).
Lisboa: Livros Horizonte, 1993: 239.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:02


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3903

Fernando Pessoa
Um poema é uma obra literária em que o sentido se determina
através do ritmo.

Um poema é uma obra literária em que o sentido se determina através do


ritmo. O ritmo pode determinar o sentido inteira ou parcialmente. Quando
a determinação é inteira, é o ritmo que talha o sentido, quando é parcial, é
no ritmo que o sentido se precisa ou precipita. Na tradução de um poema,
portanto, o primeiro elemento a fixar é o ritmo.

s. d.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).
Lisboa: Livros Horizonte, 1993: 242.

Indicação inicial: «Poe (Introd.)».

Obra Aberta · 2015-06-08 02:02


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Fernando Pessoa
O movimento de qualquer composição literária é o da onda.

O movimento de qualquer composição literária é o da onda. Divide-se em


três, quatro, ou cinco tempos esse movimento, consoante a maneira como se
decomponha para a nossa análise.
O movimento da ode consiste essencialmente em três tempos, e, como o
da ode, o de toda a poesia lírica. O movimento está tradicionalmente gravado
na estrofe, antístrofe e epodo da ode grega. O primeiro tempo corresponde à
lenta subida da onda, ao chegar à praia; o segundo movimento corresponde
àquele tempo em que a onda reflui sobre si própria, curvando-se; o terceiro
tempo corresponde àquele gesto da vaga quando, findo o movimento anterior,
se espraia e alonga pela areia. — Assim, pois, as relações entre a estrofe e a
antístrofe são as seguintes: a antístrofe procede da estrofe, ou prolonga-a; e,
ao mesmo tempo, opõe-se-lhe; assim como, ao fazê-lo, a faz culminar. — As
relações entre a antístrofe e o epodo são análogas, posto que não iguais. O
epodo ao mesmo tempo que prolonga a antístrofe (?), liga, por cima d’ela, com
a estrofe; e, ao fazer isto, completa o movimento ideativo posto na estrofe, que
a antístrofe ao mesmo tempo prolongou e interrompeu. — E o movimento
tese-antítese-síntese da dialéctica platónica. Foi a grande descoberta dos gregos
na arte esta da estruturação.
O movimento do drama consiste de quatro tempos. Temos a preparação,
onde se expõem e se delimitam os conceitos temáticos; o desenvolvimento
d’eles; o clímax, ou auge, a que chegam; e, por fim, a queda, pela solução do
conflito que se representou. — Na onda, também, podemos dividir o movimento
nestes quatro tempos. — Primeiro a onda avança recurva, e sobe para a sua
crista; depois (2º tempo) curva em sentido contrário; a seguir (3º) move-se na
curva oposta, que é já no sentido do primitivo movimento; por fim (4º, e último,
tempo) estende-se no alastre final. Repare-se em como a estrutura de qualquer
drama corresponde a esta classificação analítica dos tempos do ritmo do mar.
— No lº acto natural a situação é posta e esboçados os termos do conflito
que vai desenvolver-se; tanto quanto é possível dizer-se tal de uma coisa em
movimento, há um elemento estático (porque na onda o há quase horizontal)
neste acto. No 2º acto natural desenvolvem-se os elementos dados no lº acto; e,

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Obra Aberta · 2015-06-08 02:03


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enquanto no 1º se punham as situações de onde havia de nascer a possibilidade


do conflito, no 2º determina-se a situação de onde o conflito há-de nascer. No
3º acto natural dá-se o conflito. No 4º resolve-se. O movimento rítmico do 3º
acto natural é no sentido do do 1º, porque o conflito nele se dá, e na curva do
2º, porque desenvolve o seu movimento culminado.
Fica, desde já, compreendido porque é que o final dos poemas e das outras
obras literárias da Grécia é calmo; porque o fim da onda, o seu espraiar-se está
ao mesmo nível que o princípio, e o princípio tem de ser calmo, porque é o
princípio. O fim regressa ao nível do princípio.
O drama pode ser dividido em tantos actos, quantos se queira. Mas, natu-
ralmente, tem quatro actos. Assim o ensina a intuição grega, filosoficamente
desdobrada.
A epopeia, e toda a narrativa literária, baseia-se, não como a ode em três,
ou o drama em quatro, tempos, mas em um movimento de cinco tempos, que
é o mais largo em que se pode dividir o movimento da onda. Os movimentos
são os quatro do drama, mas o cimo da onda, o ponto de passagem da curva
no sentido inverso, para a curva no próprio sentido, da direcção da onda, é
considerado como, também, um tempo do movimento. Assim, os cinco tempos
do movimento épico são: (1) preparação, (2) desenvolvimento, (3) segunda
preparação, (4) decisão, (5) fim. — Ocorrerá perguntar porque é que se chama
decisão e clímax ao movimento recurvo da onda, quando se move já no sentido
da sua direcção primeira, e se não chama — pelo menos nesta quíntupla divisão
— o auge, ou o clímax, ao seu auge visível, que é quando a onda passa no seu
ponto mais alto. É que — repare-se bem — em tudo isto se estuda o ritmo e
não a altura; a altura da onda não entra na comparação, nem serve de base. É o
seu ritmo apenas, e a sua altura só como serva do seu ritmo, que entram no
problema. O auge da onda, em altura, é o seu ponto de máxima altura; mas
o auge da onda, em ritmo, é o seu ponto de definitiva direcção. Esse ponto é
quando, já sem retorno possível, se dirige para o ponto para onde a sua direcção
a encaminhou.
É evidente que o que se diz aqui da ode, se aplica, na prosa, à obra que não
contém narrativa, mas apenas impressão; que o que se diz aqui do drama, se
aplica ao drama em prosa, como ao em verso; que o que se diz aqui da epopeia,
e por implicação de qualquer poema narrativo, se supõe dito de, na prosa, a
narrativa de qualquer espécie, seja conto, ou novela, ou romance extenso.

2/3
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s. d.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).
Lisboa: Livros Horizonte, 1993: 243.

3/3
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Fernando Pessoa
O essencial em arte é a forma como a ideia ou o sentimento é
sentida;

O essencial em arte é a forma como a ideia ou o sentimento é sentida; a ideia


em si nada tem com a obra d’arte senão, se isso, subordinadamente. Assim o
célebre monólogo de Hamlet sobre o suicídio e a morte não contém basilarmente
senão ideias das mais vulgares e medianas; mas tem duas qualidades artísticas
supremas: a dramática da forma do pensamento assim expresso ser a natural
a Hamlet, e a poética, de serem as expressões escolhidas sublimes e líricas de
natureza.
Já o mesmo se não dá com poesias como a Divina Comédia de Antero,
ou, melhor ainda, os dois sonetos formando a «Disputa em Família». Aqui
não há só a forma maravilhosamente simbólica de idear em si a ideia basilar,
há essa própria ideia basilar, profundíssima, por exemplo, nos dois sonetos
segundamente citados.
Como se deve portar a crítica n’um caso d’estes? Não há dúvida que há mais
intelecto nos dois sonetos de Antero do que no célebre trecho de Shakespeare;
mas seguirá de aí que os dois sonetos são superiores ao monólogo de Hamlet?
É uma questão espinhosa, cujo problema é este: se no avaliar do artista entra o
avaliar do homem intelectual todo? Se não entra, e dado que o artista-intelectual
nada tenha escrito a não ser poesia, cometemos uma injustiça para com ele,
pois excluindo-lhe a inteligência da nossa apreciação, lhe rebaixamos o génio.
Se tomamos em conta, porém, a base intelectual da sua arte, estaremos fazendo
crítica estética ou não misturamos, por erro, a crítica estética com a filosófica e,
talvez, a psicológica?
A solução do problema não apresenta grande dificuldade. Porque eviden-
temente se algum poeta escrevesse um drama tendo o poder de concepção,
intuição e arte do Rei Lear e, a mais, ideias e concepções originais e fundas, esse
poeta, além de granjear um lugar à parte, entre os filósofos, seria maior do que
Shakespeare. Isto é evidente. Mas não é d’isto que se trata. Queremos saber é
que proporção tem, para o crítico, na adjudicação da grandeza ao artista, a ideia
basilar e a forma imaginativa da ideia. Porque, claro está, um filósofo alienado
que se lembre de escrever boa filosofia em versos impossíveis, ficará considerado

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como um mau artista mas terá do mesmo modo o seu lugar na história da
filosofia. Ninguém fala de Xenófanes ou de (. . .) como poetas; são filósofos que
escreveram em verso, e ainda assim em verso que não é positivamente mau,
mas que não chega a ser artístico (criticamente falando).
O caso é porém, que o que em arte é essencial é o valor estético da forma da
ideia; dado que a forma seja bela a poesia que a exprime será tão boa quanto a
ideia é levantada e grande. Eis tudo. Um poeta não é apenas um artista; não
trabalha sobre forma apenas, como o escultor, nem sobre forma e cor apenas,
como o pintor, nem sobre sons apenas, como o músico. É sobre todas que
trabalha. E sobre ideias também.
De maneira que, de dois poetas igualmente grandes na forma de idear, será
maior aquele cuja ideação maior for. Fora da igualdade em ideia ou forma de
ideia, não há critério seguro para determinar qual a grandeza relativa de dois ou
mais poetas. Assim quem quisesse determinar sobre quais eram superiores, dos
sonetos de Shakespeare e dos de Antero de Quental, achar-se-ia em dificuldades.
A expressão íntima da ideia, a forma da ideação é tão superior em Shakespeare
quanto é em Antero a ideia em si; na expressão exterior não se avantaja qualquer
d’eles sobre o outro (adaptação maravilhosa das imagens e do ritmo à essência
sendo igual em ambos). Assim, não descendo a minúcias psicológicas, para o
crítico podem considerar-se iguais como sonetistas os dois poetas em questão.
Antero não podia escrever: (cite characteristic Shakespearianism), conquanto
no seu género chegasse a (. . .). Mas S[hakespeare], se, dado que o quisesse fazer,
pretendesse dar a agonia (. . .) do soneto NOX de Antero, não era capaz, a não
ser que mudasse de psiquismo, de se elevar talvez nem sequer à compreensão
de ideias como as que são poeticamente contidas em sonetos como (cite).

s. d.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).
Lisboa: Livros Horizonte, 1993: 246.

Indicação inicial: «Estética».

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Álvaro de Campos
Não sei se houve alguma vez espírito especulativo ou
curioso. . .

DOIS RITMOS

Não sei se houve alguma vez espírito especulativo ou curioso que tentasse
distinguir as civilizações antigas das modernas — entendendo por antigas a
grega e a romana apenas — pela diferença dos sistemas rítmicos empregados
no verso.
O facto de que os gregos e os romanos usavam do sistema quantitativo para
a medida de seus versos, quando os povos modernos se servem do sistema
acentual e da rima tem por certo um sentido de distinção.

Por fácil que se tornasse pelo hábito de assim escrever, certo é que o ritmo
quantitativo é muito mais difícil de usar que o ritmo acentual.

A civilização greco-romana tornava difícil a vitória; nós tornamos fácil o


fingimento dela.

Para fazer versos em grego ou em latim é preciso muito mais esforço que
para fazê-los em qualquer língua moderna.

A barreira da quantidade tem seu par na barreira da servidão.

1930
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 270.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:21


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Álvaro de Campos
RITMO PARAGRÁFICO

RITMO PARAGRÁFICO

Tudo quanto é artificial no verso — a rima, o metro, a estrofe — é principal-


mente nocivo secundariamente. Não é tanto o mal que faz a rima, o metro, ou a
estrofe em serem em si mesmas artificiais. O mal é que desviem a atenção da
emoção ou do pensamento, criam novos pensamentos, e assim interrompem o
que originalmente se pensaria.

Todos quantos escreveram em metro, em rima ou em estrofe, sabem que


esses elementos regulares sugerem coisas que não estavam no pensamento
original, sabem que são elementos activos em compelir o pensamento e a sua
expressão a seguir um caminho que, salvo eles, não seguiria. Ora, se eu sinto
profundamente uma coisa e a quero dizer profundamente, para que os outros
a sintam profundamente, não quero ser desviado dessa profundeza com que
sinto porque a palavra «amor» não rima com a palavra «queijada», ou porque
«cebola» tem que ser «nabo» num ponto onde só cabem duas sílabas, ou porque
«ontem» é um espondeu e tenho que pôr «pálido» para dar dáctilo.

O verbalismo extenuante de grandes sensibilidades poéticas como Vítor


Hugo — capaz de alma, se tivesse a disciplina suficiente para ter indisciplina,
de fazer formidáveis poemas de emoção — baseia-se absolutamente na preo-
cupação de ter amor ou ódio em parelhas de alexandrinos, de ter que pensar
e que sentir em rimas graves alternadas com rimas agudas, e de expor o que
sente em dois alexandrinos um verso de seis dois alexandrinos um verso de
seis, rima aabccb, etc. etc. Como se pode sentir nestas gaiolas?

O rio, que poderia correr grandemente no seu leito, extravasa para os campos;
o que devia ser um curso torna-se uma cheia. parece que a imagem está às
avessas, e que os metros, as rimas, as estrofes é que verdadeiramente se devem
comparar às margens. Mas não é assim. As margens são as da nossa emoção
natural. A rima ou o metro são uma espécie de erguer-se do leito do rio que faz

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transbordar este por uma forma desconhecida na natureza. Nem sequer é uma
cheia natural.

É-se grande poeta assim? Pode ser-se. Mas é-se grande poeta apesar disto e
não por causa disto. É-se grande poeta porque se é grande poeta, e não porque
«courage» rima com «rage» ou «son» com «saucisson».

Se, ao desenvolver um poema que tem metro ou rima, a minha odeia pedir
a palavra «amor», mas o metro ou a rima exigirem as sílabas ou o som que
pode ser preenchido só pela palavra «afecto», adentro da possível ou plausível
sinonímia, não é senão humano que eu empregue a palavra «afecto», dando o
caso por fechado nesse particular. Mas o seguimento do poema será atacado
pela circunstância de que a palavra «afecto» contém implícitas que não contém
a palavra «amor», e, insensivelmente, quase sem dar por isso, ou até sem dar
por isso, o seguimento do poema sofrerá um desvio, porque a minha própria
ideia sofreu.

Admitida mesmo a artificialidade de toda a poesia, ninguém há que não


reconheça que temos aqui artificialidade a mais. Que quem sente deveras não
fala em verso, nem mesmo em prosa, mas em grito ou acto, é verdade; mas que
quem sente um pouco menos deveras, e pode portanto falar em verso, tenha,
ainda por cima, que falar em verso dos outros — porque outra coisa não é o
metro e a rima do que uma imposição alheia — , isso é menos que verdade,
isso, organicamente, não é nada.

Sei bem que a própria palavra é uma instituição dos outros, mas a substância
da vida é a assimilação, isto é, a conversão do que é outro em nosso. E quanto
mais nosso tornarmos o que é dos outros, mais vivemos. Para tornarmos mais
nosso o que é dos outros, é preciso que ele, inicialmente, seja o menos possível
dos outros já, para que mais facilmente seja nosso. A força da alma humana não
é tal, que trabalhe seguramente através de grandes dificuldades. Napoleão disse
que não conhecia a palavra impossível, mas deve tê-la encontrado em Moscovo
e Waterloo, se a não tinha visto antes. Depois, deve ter ficado a conhecer a
palavra, em toda a sua expressão maligna.

Disse Goethe que «trabalhar dentro de limites revela o mestre». Revela,


mas o mestre no sentido do jongleur de possibilidades, do artista de circo da

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inteligência superior. Dar uma cambalhota em que o corpo passe através de um


arco de papel, revela o mestre no sentido de Goethe, porque o arco de papel
é um limite, mas, na vida, e na arte que é a vida, não há limites dessa ordem.
O limite que temos é a nossa própria personalidade; é o sermos nós e não a
vida inteira. É isso o limite dentro do qual temos que trabalhar, porque não
podemos trabalhar fora dele. E, para limite, basta esse.

s. d.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 271.

1ª versão in Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa:
Estampa, 1990.

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Álvaro de Campos
O ritmo paragráfico tem sido mal recebido,

O ritmo paragráfico tem sido mal recebido, e, em parte, compreende-se


porquê. No caso de Whitman, a incompreensão — que em todo o caso não
foi grande, e com certeza não foi geral — explica-se pela novidade, não só do
próprio ritmo (aliás pressentido por vários, como Blake, (. . .), mas da matéria,
pois foi Whitman o primeiro que teve o que depois se veio a chamar sensibili-
dade futurista — e cantou coisas que se consideravam pouco poéticas, quando
é certo que só o prosaico é que é pouco poético, e o prosaico não está nas coisas
mas em nós. Whitman, porém, desorientou porque apresentou duas novidades
juntas. O mesmo ahurissement produzi eu com a minha Ode Triunfal, no Orpheu
1, visto que, embora escrita perto de setenta anos depois da primeira edição das
Leaves of Grass, aqui ninguém sabia sequer da existência de Whitman, como não
sabem em geral da própria existência das coisas.
Mas no caso dos decadentes e simbolistas franceses, a incompreensão do
ritmo paragráfico, e a aversão a ele, teve outra origem. Os decadentes franceses
usaram um ritmo irregular e sem rima para dizer asneiras: o conteúdo matou o
continente. Compreende-se que o infeliz que tomou o conhecimento do ritmo
irregular através das imbecilidades de Maeterlinck, nas Serres Chaudes, do delírio
idiota de René Ghil, das assonâncias sem sentido de Gustave Kahn, identificasse
aquela ausência de fundo com a ausência de ritmo, nem sempre existente, pois,
por exemplo, Khan tem ritmos realmente impressionantes.

Isso, porém, nada tinha com o ritmo. Mallarmé, que escrevia em versos
rigorosamente «clássicos», tinha a mesma nebulosidade de sentido, compelindo
o leitor a decifrar charadas sem conceito ao mesmo tempo que procurava
senti-las.

O ritmo paragráfico, quando realmente se obtém, varia com os seus práticos.


Largo, complexo, curioso misto de ritmos de verso e de prosa, em Whitman;
curto, hirto, dogmático, prosaico sem prosa, poético sem quase poesia, no mestre
Caeiro; pitoresco vindo parar à incrível idiotia de Marinetti, cuja banalidade
mental lhe não permitia inserir qualquer ideia no ritmo irregular, porque lhe

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:21


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não permitia inseri-la em coisa nenhuma e lhe chamou «futurismo», como se a


expressão «futurismo» contivesse qualquer sentido compreensível. «Futurista»
é só toda a obra que dura; e por isso os disparates de Marinetti são o que há de
menos futurista.

Tomemos um exemplo, simples e breve, em Caeiro:

Leve, leve, muito leve, (. . .)

s. d.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 272.

1ª versão in Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa:
Estampa, 1990.

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Álvaro de Campos
O ritmo paragráfico é tão fácil, ou tão difícil, como o ritmo
vulgar.

O ritmo paragráfico é tão fácil, ou tão difícil, como o ritmo vulgar. É falsa
a alegação de que qualquer pode escrever bem o ritmo irregular. Mais fácil é
escrever bem em ritmo regular. O ritmo regular moderno habilita a não pensar,
a não sentir um outro ritmo. Está certo, está certo. Muitas vezes está errado. O
ritmo quantitativo era, ao menos, mais difícil.
O ritmo paragráfico exige uma atenção enorme às ideias, às emoções, à
expiração (. . .) pois tudo isso faz parte do ritmo, que não é só para o ouvido,
mas para a linguagem [?] do ouvido com o entendimento.

s. d.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 273.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:01


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Álvaro de Campos
São três os sentidos que colaboraram na formação das artes,

São três os sentidos que colaboraram na formação das artes, ou, pelo menos,
das artes superiores: a vista, de onde se formou a pintura, a escultura, a
arquitectura, o ouvido donde se formou a música; a (. . .)

Quando se traduz um poema, traduz-se a ideia e o objecto; a liberdade está


nos pontos intermédios das frases, das imagens até. Por isso é intraduzível nas
línguas modernas a poesia quantitativa dos gregos e dos romanos.

A arte verbal de dizer as coisas de maneira que o ritmo influa no sentido


chama-se poesia.

Todos conhecem o «pensamento» trazido pela rima; e com o ritmo dá-se


o mesmo.

O que é pensado para se dizer, ou porque se está dizendo, em poesia não é


pensado do mesmo modo que se onde está a poesia estivesse a prosa. O ritmo
dentro do mesmo espírito tem outra marcha ou direcção.

Reescrevamos a Ilíada na forma de uma crónica medieval, e será uma boa


crónica medieval, mais nada. Dispamos o Paraíso Perdido da música rítmica da
[. . .] e será um monumento de fantasia teológica, tediento e fruste.

A preocupação do ritmo infiltrou-se no poema, na substância da mesma


ideação, e o que é para ser pensado ritmicamente não é pensado como se fosse
só pensado.

s. d.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 274.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:01


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António Mora
— A rima é uma doença do ritmo.

— A rima é uma doença do ritmo.


— A substituição do ritmo tónico ao quantitativo é um sinal de degeneres-
cência na pronúncia. A língua perde toda a firmeza, a nítida distinção entre
breves e longas cessa. Só não cessa o acento tónico, porque então cessaria tudo.
Nem haveria palavras. Modernamente, porém, até o ritmo por tónicas pareceu
pesado jugo. Apareceu o verso livre.

(As regras apertadas, longe de serem um sinal de força, são um sinal de


fraqueza).

s. d.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 276.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:01


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Ricardo Reis
Na prosa o ritmo existe; na poesia o ritmo é.

Na prosa o ritmo existe; na poesia o ritmo é.

s. d.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 276.

Obra Aberta · 2015-06-08 02:01


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Fernando Pessoa
A utilização da sensibilidade pela inteligência faz-se de três
maneiras:

A utilização da sensibilidade pela inteligência faz-se de três maneiras:


O processo clássico, que consiste em eliminar da sensação ou emoção tudo
o que nela é deveras individual, extraindo e expondo tão-somente o que é
universal.

O processo romântico, que consiste em dar a sensação individual tão nítida


— ou vividamente, que ela seja aceite, não como coisa inteligível, mas como
coisa sensível, pelo leitor, visor ou auditor.

Um terceiro processo, que consiste em dar a cada emoção ou sensação um


prolongamento metafísico ou racional, de sorte que o que nela, tal qual é dada,
seja ininteligível ganhe inteligibilidade pelo prolongamento explicativo.

Suponhamos que tenho uma aversão íntima pela cor verde, e que quero
transformar esta aversão, que é uma sensação, em expressão artística. Pelo
processo clássico, procederei da seguinte maneira: (1) Lembrar-me-ei que a
aversão pela cor verde é puramente individual, que, portanto, a não posso
transmitir a outrem, tal qual é; (2) deduzirei que, assim como tenho aversão
pela cor verde, outros terão aversão por outras cores; (3) traduzirei a minha
aversão pelo verde em aversão por «certa cor», e cada um que leia verá na
aversão assim traduzida a cor particular com que ele tem aversão. Pelo processo
romântico, buscarei pôr tal horror nas frases com que exprimo o meu horror pelo
verde que o leitor fique preso da explicação do horror, esquecendo precisamente
em que se fundamenta. Vê-se, pois, que o processo romântico consiste num
tratamento intensivo dos elementos expressivos, em desproveito dos elementos
fundamentais, da sensação. Pelo terceiro processo, porei nitidamente a minha
aversão pelo verde, e acrescentarei, por exemplo, «é a cor das coisas nitidamente
vivas que hão-de tão depressa morrer». O leitor, embora não colabore comigo
na minha aversão pelo verde, compreenderá que se odeie o verde por aquela
razão.

1/3

Obra Aberta · 2015-06-08 02:01


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3840

Pelo processo clássico sacrifica-se o mais nosso da sensação ou da emoção,


em proveito de torná-la compreensível. Porém o que tornamos compreensível é
um resultado intelectual dela. De aí o ser a poesia clássica inteligível em todas
as épocas, porém em todas fria e longínqua.

No meu fantasma Alberto Caeiro sirvo-me instintivamente do terceiro pro-


cesso aqui indicado. Embora pareça espontânea, cada sensação é explicada,
embora, para fingir uma personalidade humana, a explicação seja velada na
maioria dos casos.

Há uma cor que me persegue e que eu odeio,


Há uma cor que se insinua no meu medo.
Porque é que as cores têm força
De persistir na nossa alma,
Como fantasmas?
Há uma cor que me persegue, e hora a hora
A sua cor se torna a cor que é a minha alma.

....................................

O verde! O horror do verde!


A opressão angustiosa até ao estômago,
A náusea de todo o universo na garganta
Só por causa do verde,
Só porque o verde me tolda a vista,
E a própria luz é verde, um relâmpago parado de verde. . .

.................................

Odeio o verde.
O verde é a cor das coisas jovens
— Campos, esperanças, —
E as coisas jovens hão-de todas morrer,
O verde é o prenúncio da velhice,

2/3
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3840

Porque toda a mocidade é o prenúncio da velhice.

Uma cor me persegue na lembrança,


E, qual se fora um ente, me submete
À sua permanência.
Quanto pode um pedaço sobreposto
Pela luz à matéria escura encher-me
De tédio ao amplo mundo!

s. d.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de
Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994: 289.

1ª publ. in Novos Temas (Ensaios de literatura e estética). João Gaspar Simões. Lisboa: Inqué-
rito, 1938.

3/3
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2894

Álvaro de Campos
O nosso Ricardo Reis teve uma inspiração feliz. . .

O nosso Ricardo Reis teve uma inspiração feliz se é que ele usa inspiração,
pelo menos por fora das explicações, quando reduziu a seis linhas a sua arte
poética:
Não a arte poética, mas a sua. Que ele ponha na mente activa o esforço só
da «altura» (seja isso o que for), concedo, se bem que me pareça estreita uma
poesia limitada ao pouco espaço que é próprio dos píncaros. Mas a relação
entre a altura e os versos de um certo número de sílabas é-me mais velada. E, é
curioso, o poema, salvo a história da altura, que é pessoal, e por isso fica com o
Reis, que aliás a guarda para si, é cheio de verdade:
Que quando é alto e régio o pensamento,

Súbdita a frase o busca


E o escravo ritmo o serve.

Ressalvando que pensamento deve ser emoção, e, outra vez, a tal altura, é
certo que, concebida fortemente a emoção, a frase que a define espontaneiza-se,
e o ritmo que a traduz surge pela frase fora. Não concebo, porém, que as
emoções, nem mesmo as do Reis, sejam universalmente obrigadas a odes sáficas
ou alcaicas, e que o Reis, quer diga a um rapaz que lhe não fuja, quer diga que
tem pena de ter que morrer, o tenha forçosamente que fazer em frases súbditas
que por duas vezes são mais compridas e por duas vezes mais curtas, e em
ritmos escravos que não podem acompanhar as frases súbditas senão em dez
sílabas para as duas primeiras, e em seis sílabas as duas segundas, num graduar
de passo desconcertante para a emoção.
Não censuro o Reis mais que a outro qualquer poeta. Aprecio-o, realmente, e
para falar verdade, acima de muitos, de muitíssimos. A sua inspiração é estreita
e densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real se bem
que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis. Mas é
um grande poeta — aqui o admiro —, se é que há grandes poetas neste mundo
fora do silêncio de seus próprios corações.

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:44


Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2894

s. d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996: 389.

2/2
Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/2902

Ricardo Reis
Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer
coisa. . .

Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde
se note que existiu Homero.
A novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação
com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa
relação. Saibamos distinguir o novo do estranho, o que, conhecendo o conhecido,
o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem conhecimento de coisa
nenhuma. Entre os escritores que descendem com novidade da velha stirpe e
os que aparecem por novos por pertencer a uma estirpe incógnita há a mesma
diferença que há entre o homem que nos dá uma sensação de novidade por
frases novas que diz e o que nos dá uma sensação de novidade, por, falando
mal nossa língua, nos dizer estropiadamente qualquer frase dela.

s. d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996: 390.

Obra Aberta · 2015-06-08 01:44


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Álvaro de Campos e Ricardo Reis


[Controvérsia entre Álvaro de Campos e Ricardo Reis]

[Controvérsia entre Álvaro de Campos e Ricardo Reis]

A poesia é aquela forma da prosa em que o ritmo é artificial. Este artifício,


que insiste em criar pausas especiais e antinaturais diversas das que a pontuação
define, embora às vezes coincidentes com elas, é dado pela escrita do texto em
linhas separadas, chamadas versos, preferivelmente começadas por maiúsculas,
para indicar que são como que períodos absurdos, pronunciados separadamente.
Criam-se, por este processo, dois tipos de sugestões que não existem na prosa —
uma sugestão rítmica, de cada verso por si mesmo, como pessoa independente,
e uma sugestão acentual, que incide sobre a última palavra do verso, onde se
pausa artificialmente, ou sobre a única palavra se há uma só, que assim fica em
isolamento que não é itálico.
Mas pergunta-se: porque há-de haver ritmo artificial? Responde-se: porque a
emoção intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto.
E como dizer é falar, e se não pode gritar falando, tem que se cantar falando,
e cantar falando é meter a música na fala; e, como a música é estranha à fala,
mete-se [?] a música na fala dispondo as palavras de modo que contenham uma
música que não esteja nelas, que seja pois artificial em relação a elas. É isto a
poesia: cantar sem música. Por isso os grandes poetas líricos, no grande sentido
do adjectivo «lírico», não são musicáveis. Como o serão, se são musicais?

Ricardo Reis:

Diz Campos que a poesia é uma prosa em que o ritmo é artificial. Considera
a poesia como uma prosa que envolve música, donde o artifício. Eu, porém,
antes diria que a poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com
palavras. Considerai que será o fazerdes música com ideias, em vez de com
emoções.
Com emoções fareis só música. Com emoções que caminham para as ideias,
que se agregam ideias para se definir, fareis o canto. Com ideias só, contendo
tão somente [?] o que de emoção há necessariamente em todas as ideias, fareis

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:44


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poesia. E assim o canto é a forma primitiva da poesia, porque é o caminho para


ela [var.: não é a primeira forma da poesia, senão o caminho para ela].
Quanto mais fria a poesia, mais verdadeira. A emoção não deve entrar
na poesia senão como elemento dispositivo do ritmo, que é a sobrevivência
longínqua da música no verso. E esse ritmo, quando é perfeito, deve antes
surgir da ideia que da palavra. Uma ideia perfeitamente concebida é rítmica
em si mesma; as palavras em que perfeitamente se diga não têm poder para
a apoucar. Podem ser duras e frias: não pesa — são as únicas e por isso as
melhores. E, sendo as melhores, são as mais belas.
De nada serve o simples ritmo das palavras se não contém ideias. Não há
nomes belos, senão pela evocação que os torna nomes. Embalar-se alguém com
os nomes próprios de Milton é justo se se conhece o que exprimem, absurdo se
se ignora, não havendo mais que um sono do entendimento, de que as palavras
são o torpor.

9-4-1930
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996: 391.

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Ricardo Reis
Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da
emoção.

Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da emoção. A


emoção não é a base da poesia: é tão somente o meio de que a ideia se serve
para se reduzir a palavras.
Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da
própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de
palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A
palavra contém uma ideia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais
rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há
exclamação, nem a mais abstractamente emotiva, que não implique ao menos o
esboço de uma ideia.
Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação — «Ah», digamos — não
contém elemento algum intelectual. Mas não existe um «ah», assim escrito
isoladamente, sem relação com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o
«ah» como falado e no tom da voz vai o sentimento que o anima, e portanto a
ideia ligada à definição desse sentimento; ou o « ah» responde a qualquer frase,
ou por ela se forma, e manifesta uma ideia que essa frase provocou.
Em tudo que se diz — poesia ou prosa — há ideia e emoção. A poesia difere
da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para
projectar a ideia em palavras através da emoção. Esse meio e o ritmo, a rima, a
estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém menos que uma só não creio que
possa ser.
A ideia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e
define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projecção desse
contorno, a afirmação da ideia através de uma emoção, que, se a ideia a não
contornasse, se extravasaria e perderia a própria capacidade de expressão.
É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar
de emoção. A ideia serve a emoção, não a domina. E o homem — poeta ou
não-poeta — em quem a emoção domina a inteligência recua a feição do seu ser
a estádios anteriores da evolução, em que as faculdades de inibição dormiam
ainda no embrião da mente. Não pode ser que a arte, que é um produto da

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cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem


tem de si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança
com as manifestações mentais que distinguem os estados inferiores da evolução
cerebral.
A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de
emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do
tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente
diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.
Como o estado mental, em que se a poesia forma, é, deveras, mais emotivo
que aqueles em que naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado
poético se aplique uma disciplina mais dura que aquela que se emprega no
estado prosaico da mente. E esses artifícios — o ritmo, a rima, a estrofe — são
instrumentos de tal disciplina.
No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe,
se pode dizer que são artifícios a vontade que corrige defeitos, a ordem que
policia sociedades, a civilizacão que reduz os egoísmos à forma sociável.
Na prosa mais propriamente prosa — a prosa científica ou filosófica — a
que exprime directamente ideias e só ideias, não há mister de grande disciplina,
pois na própria circunstância de ser só de ideias vai discipIina bastante. Na
prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição
descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das ideias,
pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria.
Na prosa amplamente emotiva — aquela cujos sentimentos poderiam com
igual facilidade ser expostos em poesia — há que atender mais que nunca à
disposição da matéria, e ao ritmo que acompanha a exposição. Esse ritmo não é
definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso.
O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever
prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rít-
micos, e esses pontos de pausa maior determina-os ele pelos fins dos versos.
Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo;
mas o ritmo de que tem ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é
aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa
maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes,
determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha
disposta como o que se chama um verso. Se Campos, em vez de fazer tal,
inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical (|) — para
determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o

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mesmo género de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra
diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou reflectida. O que distingue
a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte
pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a
disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da
alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da
outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima
de certo nível. A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem
emoção porque é uma harmonia.
Quase se conclui do que diz Campos que o poeta vulgar sente espontanea-
mente com a largueza que naturalmente projectaria em versos como os que ele
escreve; e depois, reflectindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras
mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem
foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo
uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa
disciplina. Uma emoção naturalmente harmónica é uma emoção naturalmente
ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente
traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há
nela a ordem que no ritmo há.
Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensa-
mento do poeta é alto, isto é, formado de uma ideia que produz uma emoção,
esse pensamento, já de si harmónico pela junção equilibrada de ideia e emoção,
e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento
à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súbdita do pensamento que a
define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a
si, o serve.

s. d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996: 394.

1ª publ.: Obra Poética. Fernando Pessoa. (Organização, introdução e notas de Maria Aliete
Galhoz.) Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1960.

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Ricardo Reis
O nosso único esforço deve ser para que a nossa nação seja o
mais culta,

O nosso único esforço deve ser para que a nossa nação seja o mais culta, o
mais sã, o mais pronta possível em todos os géneros de acção. O critério que
nos mostra a superioridade de um país é a sua cultura, a sua moralidade e a
sua energia. Cultura média, moralidade média e energia média. A Inglaterra
do séc. XIX foi um dos países onde valeu realmente a pena viver-se.
Não foram desse período os seus maiores poetas? É certo. E isso prova
apenas que se não adaptara completamente ao espírito científico, característico
do seu tempo, como Shakespeare e Milton ao do seu.

O valor de uma civilização mede-se pela cultura, saúde e energia dos seus
membros. Uma nação só entregue à cultura pode produzir grandes poetas.

Chateaubriand, ao querer que fosse religiosa a literatura, errou. A literatura


não é um fenómeno religioso. Os homens da Renascença que, no geral, punham
a religião fora da poesia, seguiam um bom caminho. Assim deve ser.

A poesia metafísica é ilegítima. Como assim se a metafísica é legítima, e a


poesia é um produto intelectual, como o é a metafísica? Porque a poesia não é
um produto exclusivamente intelectual. Baseia-se no sentimento, ainda que se
exprima pela inteligência. A inteligência deve servir-lhe apenas para interpretar
o sentimento. Tudo o mais é, ou pensado com o sentimento, ou sentido com
a inteligência. Pensar com o sentimento, sentir com a inteligência — qualquer
destas coisas é doentia [. . .].

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Não quero pretender que a sugestão se exclua da poesia. O mistério mais


facilmente se sente quando sugerido do que quando dito. Mas só o mistério deve
ser sugerido.

1916?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996: 400.

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Álvaro de Campos
«Cancioneiro» é, como a mesma palavra o diz, uma
colectânea. . .

«Cancioneiro» é, como a mesma palavra o diz, uma colectânea (colecção)


de Canções. Canção é, propriamente, todo aquele poema que contém emo-
ção bastante para que pareça ser feito para se cantar, isto é, para nele existir
naturalmente o auxílio, ainda que implícito, da música.
Pode ser narrativo, como quando é balada; (. . .) o que não pode ser, por um
lado, é longo, pois o canto não pode durar muito, e o libreto de uma ópera
não é mais que uma colecção de canções; por outro lado, é epigramático, ou
vazado em moldes semelhantes aos do epigrama, pois o epigrama é o poema
destituído de emoção, excepto a mínima inexcluível de tudo quanto é humano,
e os moldes da poesia de estilo epigramático excluem a musicalidade. Por isso
se não pode chamar canção a um soneto, que é um epigrama de catorze versos,
dispostos em duas quadras e dois tercetos, como no soneto regular, ou em três
quadras e um dístico , como no soneto Shakespeariano.
[Dissemos que devemos chamar canção um poema] que contém emoção
bastante para parecer que nele se está cantando. A canção exclui, portanto, tudo
quanto se não pode cantar. Não se pode cantar o que é longo; não se pode
cantar o que é duro; não se pode cantar o que é rígido e formal. Por isso a
canção exclui o poema longo, exclui o poema satírico, exclui o epigrama e todo
poema que se serve de uma forma rígida, como, por exemplo, o soneto. Salvas
essas limitações, todo poema é uma canção.
Não pode chamar-se canção o que exclui o elemento musical. Por isso não
pode chamar-se canção a um poema em verso irregular ou livre, nem a um
poema onde não haja rima.

s. d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados
por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996: 427.

Prefácio para o «Cancioneiro»

Obra Aberta · 2015-06-08 01:02

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