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O Território e o Saber Local:

algumas categorias de análise *

Milton Santos

Retomarei aqui algumas categorias de análise que vêm norteando minha reflexão
ao longo dos últimos anos em suas implicações para uma melhor compreensão da
problemática do território nesta era de globalização.

O evento
A primeira dessas categorias é a noção passado que aparece como presente. O
de evento. Ela tem entrada recente no presente é fugaz e sua análise se realiza
meu vocabulário e imagino que seja sempre a partir dos dois pólos: o futuro
talvez a minha contribuição pessoal mais como projeto e o passado como reali-
importante, na medida em que é a zação já produzida. O evento aparece
forma de resolver uma série de proble- como essa grande chave para unir tam-
mas de método. Isso porque permite bém as noções de tempo e espaço, que
unir o mundo ao lugar; a História que até recentemente não apareciam como
se faz e a História já feita; o futuro e o um todo único. Mesmo os que avança-

*
Texto apresentado em seminário organizado pelo Laboratório de Conjuntura Social: tecnologia
e território (LASTRO/IPPUR) e pelo Núcleo de Cidadania e Políticas Públicas da FASE.
Ricardo Salles, doutorando em História na UFF, colaborou na edição, e Cristiane Calheiros
Falcão, Laura Maul de Carvalho e Alice Lourenço, na transcrição.

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIII, No 2, 1999, p. 15-26


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ram mais na questão do “tempoespaço” recuperando, por conseguinte, a noção


eram obrigados a pôr um travessão entre de futuro e atribuindo à idéia de utopia
essas duas palavras. A minha proposta um conteúdo – diriam os céticos – realis-
é que só é possível falar em tempo-espa- ta, trabalhado a partir de possibilidades
ço a partir da idéia de evento, que reúne que são reais, as que são conhecidas
tempo e espaço numa categoria única. pela história a cada momento. Dessa
forma, a noção de evento, de tempo
Nesse sentido, temos a noção de empírico, do mundo como possibilidade
tempo empírico como solução a ser en- de um futuro realizável (logo, a negação
contrada. Como unir tempo e espaço, da idéia dos impossíveis) é uma ameaça
este sempre contendo um componente à queda na depressão. Essa foi a busca
empírico, se o tempo não for considera- que fiz para justificar o meu permanente
do na sua empiricidade, na sua histo- otimismo quanto à realização da história.
ricidade, que está atrás da sua realização
histórica e geográfica? Realização enten- Esse tempo empírico é trabalhável
dida no sentido de tornar-se realidade, apenas com base na noção de periodiza-
de fazer-se atualidade. Um tempo empí- ção. Essa noção é fundamental porque
rico que vai ser buscado numa definição não vamos poder trabalhar no nosso coti-
muito simples do que existe, em que o diano ou no trabalho científico, tampou-
que existe é um conjunto de possibilida- co no trabalho político, com momentos
des a tomar ou a deixar de tomar. Possi- fugazes; trabalhamos com pedaços de
bilidades que apenas alguns atores são tempo. Assim, ela encarna a realidade de
capazes de exercer e que são exercidas tempo empírico. Do tempo empiricizado,
apenas em certos lugares. Esse tempo como conjunto de possibilidades, tanto
empírico que flui da existência de possi- as utilizadas quanto as que serão utiliza-
bilidades concretas, que permite uma das, sem o qual a idéia de projeto tam-
história já feita ou uma história por fazer, bém se torna impossível.

A forma-conteúdo
Nesse caso não se trata de trabalhar a realiza através sobretudo de formas-
forma em si, nem o conteúdo em si. Essa conteúdo? Estas seriam as dotadas do
seria a contribuição dos “territoriólogos”, que chamei também de inércia dinâmica,
geógrafos à frente, evidentemente, para enquanto não havia ainda inventado essa
o entendimento da sociedade. A socieda- idéia de forma-conteúdo. Uma forma
de em si pode ser uma categoria, mas que, por ter um conteúdo, realiza a socie-
quem jamais trabalhou o país com essa dade de uma maneira particularizada,
idéia de sociedade em si, dessa sociedade que se deve à forma. Isto é, aquela
total? Onde está ela? Será que o país se concha na qual a sociedade deposita
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fração do seu dinamismo e que se torna em técnica, um conteúdo em ciência e


dinâmica por isso. Um dinamismo que um conteúdo em informação que permi-
não é explicado pela sociedade sozinha, tem formas de ação diferentes, segundo
mas pelo fato de ela, naquele momento, as densidades respectivas. A racionali-
naquele período – para retomar a idéia dade, nesse fim de século, chega ao ter-
de periodização – se realizar e, a partir ritório; ou seja, ela não é apenas uma
desse ponto, rever a noção de região, a categoria da sociedade, da economia, da
noção de cidade e, quem sabe, também política. O próprio território, em certos
a de bairro ou de sub-região. lugares, acaba por tornar-se racional.
Racional dessa racionalidade sem razão.
Além de suas quatro dimensões, o Haveria uma produtividade espacial.
espaço teria uma quinta dimensão, a do Dentro de um certo tipo de economia
cotidiano, que permitiria exatamente hegemônica há espaços que são mais
chegar à idéia de ação comunicacional a produtivos do que outros, e assim ter-
partir do nosso trabalho como “territo- se-ia que medir, ou ao menos considerar,
riólogos”. E outra idéia, então, que me produtividades espaciais diferentes se-
pareceu importante trabalhar foi a do gundo os lugares, o que tornaria possíveis
“acontecer solidário”, que vem da minha participações diferentes no processo
inconformidade com a maneira como tra- global.
balhamos a noção de escala na geografia.
Essa noção, a meu ver, é insuficiente para Há quarenta anos, quando distin-
permitir uma análise dinâmica dos fatos guiu a noção de espaço econômico do
sociogeográficos; por isso, andei propon- que chamava de espaço banal, François
do – e nisso também estou balbuciando – Perroux dizia que o espaço econômico
a noção de “acontecer solidário”. Resta era a reunião de pontos para possibilitar
o grande problema da definição dos o exercício da economia. Essa idéia de
níveis da solidariedade ou, na expressão espaço de fluxos ele contrapunha à de
consagrada, das escalas da solidariedade. espaço geográfico. Haveria um espaço
O que possibilitaria reconstituir um terri- do geógrafo, que não seria o espaço do
tório a partir de mosaicos – porque o ter- fluxo, e haveria o espaço dos fluxos, que
ritório é sempre dado como mosaico – seria o dos economistas. A idéia de hori-
seria este “acontecer solidário”. Haveria zontalidade e verticalidade tem, de algu-
algo que levaria à realização concreta, à ma maneira, essa filiação. Não no sentido
produção histórica e geográfica de even- literal, porque o momento histórico é di-
tos solidários. E é isso que dá o limite da verso. Nos espaços da globalização have-
área. Quer dizer, a idéia de escala (já que ria relações verticais e relações horizontais
é também uma idéia de limite) ganharia que resultariam na produção desses es-
em dinamismo a partir dessa noção de paços banais – que são o espaço da co-
“acontecer solidário”, embora não a munhão, da comunicação, o espaço de
tenha desenvolvido suficientemente. todos –, não apenas em contraposição
ao espaço dos fluxos econômicos, mas
O meio geográfico tem um conteúdo por serem também considerados o lugar
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de todos, sem excluir quem quer que muito grave, porque não são considera-
seja, sem excluir qualquer que seja a ins- das a totalidade dos atores, a das institui-
tituição ou a empresa. Dessa forma, have- ções, a das pessoas e a das empresas.
ria uma volta à noção de totalidade dos Procura-se explicar aos empresários o
atores agindo no espaço. Coisa que os que eles fazem, dedica-se muito aos
“territoriólogos”, mas sobretudo os pla- fluxos dominantes e abandonam-se os
nejadores, deixaram para trás, porque a outros. Ou, pelo contrário, estuda-se a
pesquisa e o ensino do planejamento são pobreza como se ela fosse independente
realizados, na maior parte dos casos, do conjunto de circunstâncias. O que se
sobre algo que não é o espaço. O plane- produz não é uma interpretação da po-
jamento espacial, o planejamento terri- breza, pois falta essa idéia de totalidade,
torial, o planejamento regional não são que só poderá ser alcançada pela noção
planejamentos do espaço. Não o são na de horizontalidade.
prática, na pesquisa e no ensino, o que é

O território usado
O território não é uma categoria de aná- lética. A sociedade não atua sobre a na-
lise, a categoria de análise é o território tureza em si. O entendimento dessa ação
usado. Ou seja, para que o território se é o nosso trabalho e parte do valor que
torne uma categoria de análise dentro é dado àquele pedaço de natureza –
das ciências sociais e com vistas à pro- valor atual ou valor futuro.
dução de projetos, isto é, com vistas à
política, com “P” maiúsculo, deve-se É o caso da Amazônia. A ação presen-
tomá-lo como território usado. Por que te, os interesses sobre parte do território,
essa insistência? O marxismo vendeu, e a cobiça, e mesmo as representações
vendeu bem, algumas idéias que eu pró- atribuídas a essa parte do território têm
prio escrevi na minha maturidade, tam- uma relação com o valor que é dado ao
bém repetindo o mainstream marxista. que está ali presente. O que há na reali-
Uma delas é a relação sociedade–natu- dade é relação sociedade e sociedade
reza que abunda na literatura que nos enquanto território, sociedade enquanto
concerne como “territoriólogos”. Mas espaço. O território não pode ser uma
onde é que se encontra essa relação categoria de análise, tem de ser conside-
sociedade–natureza? Será que há real- rado território usado. Na realidade,
mente essa dialética sociedade–nature- quando uma empresa, uma instituição,
za? Eu creio que não. A dialética somente um grupo, agem sobre uma fração do
se realiza a partir da natureza valorada território, num momento “T” do tempo,
pela sociedade; é aí que começa a dia- não desconsideram o que ali já existe,
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ou seja, não só as coisas mas também os deixar os governantes fazerem o que


homens e as relações. Dessa maneira é querem. A realização do planejamento
que talvez possamos ajudar os cientistas regional não dependeu do que nós que-
políticos a avançar um pouco mais na ríamos, exceto em casos muito específi-
sua reflexão, inclusive a propósito da cos, isolados do conjunto. Nunca houve
produção de idéias políticas sobre o país um esforço para pensar a idéia de terri-
e, de maneira mais prática, nos conselhos tório como um todo, território da nação,
que lhes serão solicitados numa próxima território do país, território como totalida-
reforma constitucional. Porque há uma de. Os planejadores eram irresponsáveis
reforma constitucional “de cima para do ponto de vista do que escreviam. Mas
baixo” e haverá a nossa, a reforma cons- creio que chegará o dia em que não po-
titucional de “baixo para cima”, que vai deremos continuar falando irresponsa-
levar em conta o território usado. A velmente, quando será indispensável que
ciência política de modo geral ignora o afinemos nossos conceitos para que
território – dá conta da divisão dos esta- sejam realmente representativos não de
dos, dos municípios, mas não dos con- uma sociedade estática, mas do dina-
teúdos –, como se ele não tivesse um mismo social.
conteúdo social. Este aparece apenas
como estatísticas, que são caixinhas que Essa idéia de território usado, a meu
vamos abrindo à medida que necessi- ver, pode ser mais adequada à noção
tamos produzir o discurso. Mas está de um território em mudança, de um
excluído o conteúdo – o dinamismo território em processo. Se o tomarmos
socioterritorial, socioespacial, essas for- a partir de seu conteúdo, uma forma-
mas-conteúdo que têm a ver com a exis- conteúdo, o território tem de ser visto
tência. Talvez por culpa nossa, já que não como algo que está em processo. E ele
elaboramos de maneira conveniente os é muito importante, ele é o quadro da
conceitos capazes de dialogar com as vida de todos nós, na sua dimensão glo-
outras ciências sociais. bal, na sua dimensão nacional, nas suas
dimensões intermediárias e na sua di-
Acho que esse é um drama dos “ter- mensão local. Por conseguinte, é o ter-
ritoriólogos”. Num mundo simples, como ritório que constitui o traço de união
foi de modo geral até os anos 50, a enu- entre o passado e o futuro imediatos.
meração das categorias não exigia um Ele tem de ser visto – e a expressão de
refinamento muito maior. Desde então novo é de François Perroux – como um
tudo mudou e temos de reelaborar as campo de forças, como o lugar do exer-
categorias de análise. O nosso trabalho cício, de dialéticas e contradições entre
é apreciado academicamente quando o vertical e o horizontal, entre o Estado
bem feito, mas o que é apreciação acadê- e o mercado, entre o uso econômico e
mica? Para que serve, se a compreensão o uso social dos recursos. Esta última
da dinâmica da sociedade escapa? Em questão, hoje fundamental, refere-se à
um país como o Brasil, onde o planeja- dissonância entre os usos econômicos e
mento regional nunca foi feito, é possível os usos sociais dos mesmos recursos, ou
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à possibilidade de produzir recursos. O é um dado da técnica, é um dado da


que estou chamando de “país de cima” política. Assim, podemos incluir a noção
e “país de baixo” é algo que vai ser im- de velocidade como uma das característi-
portante, não obrigatoriamente com as cas de análise do território. Se tomo ainda
mesmas palavras, como forma de en- o território como território usado, estu-
tender o território. Não se fala mais em dando-o a partir das normas, eu tenho
entreguista, mas pode-se falar em “país dois partidos a levar em conta. Se tomo
de cima”, o que pode ser entendido o partido do “país de cima”, o que vejo
através do exame dos conflitos de atri- é que as próprias técnicas são normas.
buição de competência, de possibilida- Uma das características da técnica é ser
des. Estou pensando muito seriamente ela mesma norma. A técnica normativa
no nosso papel numa reforma da Cons- é normatizada no seu uso e é normativa
tituição. Acho que o discurso dos “terri- na sua repercussão sobre os agentes. Re-
toriólogos” e dos que a nós se associam pito: ela é normatizada na sua constituição
pode ser fundamental no debate da íntima, porque é uma forma particular
Constituição, se forjarmos instrumentos de uso; e ela é normativa quanto ao seu
que nos auxiliem a reinterpretar dados uso. E essas normas procuram arrastar a
empíricos e produzir uma idéia de país existência de outros agentes – as normas
visto a partir do território. Evidentemen- das técnicas. Alguns adaptam, segundo
te, no nosso caso, a contribuição, que diversos graus, as suas próprias normas.
não vai ser toda assimilada à Constitui- Ou seja, os agentes adaptam suas nor-
ção, será sobretudo a produção de uma mas para que haja compatibilidade com
consciência territorial da Nação. O con- as normas dos agentes hegemônicos. E
flito entre níveis de governo, por exem- essa adaptação rompe com equilíbrios
plo, merece um capítulo na análise, externos e internos, condenando os equi-
assim como o conflito entre os ramos líbrios preexistentes.
de mercado.
É nesse sentido que o território hoje
O mercado não é categoria de aná- é nervoso, instável... E é por isso que, a
lise. O mercado é uma grande palavra partir do território, se verifica no Brasil
que, para ser transformada em categoria a crise da Nação. Não há melhor indica-
de análise, tem que ser muito esmiuçada. dor da crise por que passa a Nação que
Cada ramo do mercado, para não usar o território; pela sua nervosidade, pela
outra palavra, tem um comportamento sua instabilidade, pela sua ingovernabi-
diferente, produz uma topologia própria. lidade, como território usado. Trata-se
Isto é, uma distribuição no território, mas dessas mudanças rápidas de normas que
também o uso do território e demandas reconhecemos como luta global pela
relacionadas a esse uso. Devem ser con- mais-valia maior, essa competitividade
siderados os conflitos entre classes, os que está na raiz mesma da posição ocu-
conflitos entre localidades e áreas e os pada na economia global e exige uma
conflitos entre velocidades, dentro do ter- adaptabilidade permanente das normas
ritório. Como sabemos, a velocidade não das grandes empresas, o que aumenta
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a instabilidade do território “de cima” O que acontece é que hoje a econo-


para “baixo”. Isto é, a produção da mia se realiza pela política. Não é a eco-
ordem para as empresas e da desordem nomia que ocupa hoje a posição central;
para todos os outros agentes, e para o é a política exercida pelos agentes econô-
próprio território, incapaz de se ordenar micos hegemônicos. Sobre o território,
porque ideologicamente decidimos que o resultado é o que estamos apreciando,
essas grandes empresas são indispensá- embora não estejamos analisando ainda
veis. Assim, aceitamos a idéia de que o por que o nosso meio de análise está de
território tem que ser desorganizado. É certa maneira atrasado em relação à nova
o que nós estamos fazendo. Aqui faço realidade. Somos prisioneiros da Univer-
um parêntese para sugerir que a noção sidade, porque supomos que ela contém
de poder não seja estudada somente a os anéis de mudança intelectual. Mas o
partir do Estado, porque, na realidade, sistema reprodutivo que garante à Uni-
o poder maior sobre o território deixa versidade a sua permanência também é
de ser do Estado e passa a ser das gran- aquele que impede o progresso do
des empresas. A gestão do território, a pensamento. O que é grave é que as ne-
regulação do território são cada vez cessidades das empresas globais, e isso o
menos possíveis pelas instâncias ditas po- território mostra, arrastam os governos –
líticas e passam a ser exercidas pelas ins- nacional, estaduais, no caso do Brasil, e
tâncias econômicas. locais.

O saber local
A territorialidade é um atributo do terri- propriamente dito; tem de saber, mais
tório ou dos seus ocupantes? Vivo o meu e mais, sobre o mundo, mas tem de res-
cotidiano no território nacional ou no pirar o lugar em si para poder produzir
lugar? Essas perguntas me parecem im- o discurso do cotidiano, que é o discurso
portantes porque estão ligadas ao que da política. Por conseguinte, o expert de
eu chamaria de saber da região em con- fora vem como aquele que atiça a brasa
traposição a saber do expert internacio- como um fole. E tem que ir embora.
nal. Este, cada vez mais, é chamado a Tenho cada vez mais consciência de que
falar sobre o lugar, quando no máximo há necessidade de se fortalecer a pro-
deveria fazer uma palestra de dois dias dução desse saber local e, no caso bra-
e ir embora. Porque o saber local, que sileiro, de apoiar a multiplicação da
é nutrido pelo cotidiano, é a ponte para Universidade, sobretudo de mestrados,
a produção de uma política – é resultado para a geografia brasileira. Essa é a nossa
de sábios locais. O sábio local não é garantia de que a disciplina vai continuar
aquele que somente sabe sobre o local viva. E isso é central: que os monopólios
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sejam quebrados. Essa produção do campo do espaço se tornou possível tam-


saber local é o que vai permitir que os bém através, creio eu, e digo com toda
estudos sejam menos dirigidos aos cole- a timidez, do cotidiano. Porque o cotidia-
gas, já que o que hoje produzimos não no é a realização das pessoas e, quem
é para mais ninguém senão para nós sabe, também das instituições e das em-
mesmos. Trata-se do que os franceses presas nos lugares.
chamariam hoje uma produção fecha-
da. Os colegas lêem, os colegas citam e Essa união de espaço e tempo, atra-
ficamos felizes. Felizes interni corporis, vés do que antes chamávamos igual-
mas se desejarmos que o nosso trabalho mente de espaço, pode-nos dar a
realmente seja uma produção que consciência da permanente mudança.
apresse o desenvolvimento social, será As formas só têm significado apenas a
outra a forma de produção do saber. partir do que contêm. Qual foi o filó-
sofo que falou que o mistério da forma
Neste ponto, podemos introduzir a é mais complicado que o mistério da
idéia de universalidade empírica, que ciência? Isso porque a forma se dá como
venho trabalhando desde 1985 e creio coisa e impõe uma imagem que dura.
ser muito importante porque é uma Como penetrar a forma e descobrir a
idéia que somente pode ser gestada a sua verdadeira significação? Por exem-
partir da globalização. A idéia da totalida- plo, a questão da habitação. Se estu-
de, que os filósofos nos legaram como dássemos a questão da habitação no
produto da sua cosmovisão, como pro- Brasil nos anos 1980, 1970, constata-
duto da sua formidável penetração no ríamos o envelhecimento rápido das ci-
entendimento do mundo, agora, com dades. Acho que ainda não houve uma
a planetarização da técnica hegemônica, tese sobre isso. As cidades brasileiras
é trabalhável empiricamente. Acho que envelheceram rapidamente nos anos
essa é a grande novidade, a grande 1970 porque o BNH facilitava às classes
ponte entre a produção de uma geogra- médias a mudança de lugar. Às classes
fia teórica, isto é, o estudo dos conceitos, médias era concedido, com facilidade,
e os lugares. Por essa razão atribuímos dinheiro para comprar casas, o que
tanta importância ao fenômeno da téc- Marx chamou de envelhecimento
nica na interpretação de lugares. Nesse moral da forma. A idéia que eu quis
sentido, o lugar é o lugar de uma escolha. trazer com essa noção de “espaço-
O mundo está aí e o lugar colhe no tempo”, que é uma outra versão da
mundo atributos que o realizam histórica idéia de “forma-conteúdo”, é sugerir
e geograficamente. É o mundo que se que desconfiemos do significado que a
dá seletivamente no lugar. O fenômeno forma nos oferece pelo seu corpo. Que
técnico, na sua abrangência telúrica duvidemos do nosso corpo. E que en-
atual, permite entender a totalidade- frentemos a forma a partir de seu con-
mundo a partir dessa empiricidade. Por teúdo permanentemente renovado. E
conseguinte, a possibilidade de uma teo- aí também vem a esperança de que se
rização que abranja o todo e a parte no use de outra forma a cidade.
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Aqui retomo a noção de tempo em- mesma coisa, estou fornecendo um ca-
pírico. O que buscar para tornar o even- minho de método para a História e,
to analítico analiticamente utilizável? paralelamente, para a Geografia.
Vou, se o que está em questão é a ação
do fato financeiro, tentar encontrar o O que é que estamos vendo acon-
que o caracteriza em geral, em seguida tecer agora em relação à composição
o que o caracteriza em particular e, a orgânica do território? É que no territó-
partir daí, verificar como incide sobre rio diminui o número de empregos pro-
uma sociedade e um lugar. O mesmo priamente agrícolas e, mais ainda, o
procedimento se aplicaria para o fato número de empregos rurais. Isso pela
industrial, o fato informacional, aquela mudança de composição orgânica da
notícia, aquele rumor. Acho que isso é atividade agrícola e da vida do território.
que permitiria datar os eventos. Essa A cidade abriga uma parte importante
seria a metodologia a utilizar. Escolheria dos empregos agrícolas, de tal maneira
ainda um número de variáveis signifi- que temos hoje no país mais empregos
cativas e acompanharia sua historiciza- e atividades agrícolas do que rurais. O
ção e geografização. Faria esse caminho campo é que é o lugar do capital e não
para trás, reconhecendo presentes su- mais a cidade. É o campo brasileiro o
cessivos, porque se trata de (re)encon- lugar de acolhimento mais fácil para o
trar presentes sucessivos. capital. A cidade resiste às formas hege-
mônicas do capital e passa a ter um papel
Quando se lê um relatório da Asso- de porta-voz desse campo larga e pro-
ciação dos Geógrafos Brasileiros dos fundamente capitalizado, juntamente
anos 1940 ou 1950, vê-se uma tentati- com a obrigação de estender a vertica-
va de reconstituição do passado. A in- lidade ao campo por meio de processos
tenção era descrever o presente; mas, técnicos nas áreas da produção direta.
lido a posteriori, torna-se uma oferta de A cidade é cada vez mais um interme-
interpretação do que passou, que pode diário, na produção direta, do processo
ser canhestra, que pode ser insuficien- técnico da produção, mas não do pro-
te, que pode ser pobre, mas que pode cesso político. Só que ela se investe de
também ser rica se escolhermos bem as uma vontade política que é diferente da
categorias. E é por isso que a Geografia que havia há quinze anos no Brasil. Essa
é cada vez mais uma disciplina que só é vontade política se manifesta através da
praticada a partir de uma teoria. Para imprensa local, da rádio local, dos pro-
evitar exatamente que as interpretações longamentos locais da televisão, que têm
sejam incoerentes. Essa busca de coe- de usar uma linguagem diversa da utili-
rência, de solidariedade entre os “acon- zada pela grande imprensa nacional,
teceres” num pedaço do território é o estadual ou pela televisão mais geral.
que temos por fim. E isso é válido tam- Assim, a partir de um certo tamanho, a
bém para a História, já que o espaço e cidade acaba sendo esse laboratório po-
o tempo são a mesma coisa. Quando lítico, dado que a agricultura exige uma
considero espaço e tempo como uma certa quantidade de emprego urbano
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que não tem relação direta com a pró- obediência a estas eles serão excluídos.
pria agricultura. Esse fato cria dentro da Assim, a primeira coisa que o agricultor
cidade uma complexidade de funções de uma área moderna terá de fazer, se
inimagináveis há vinte anos e uma com- quiser sobreviver, é obedecer, como
plicação em matéria de interesse, que num exército, à palavra de ordem. Po-
poderá transformar-se em uma comple- deríamos identificar na figura do servo
xidade de preocupação da ordem polí- da gleba, da Idade Média, esses agricul-
tica, já que tudo se resolve na ordem tores modernos. Ou seja, são servos de
da política e a economia se realiza a uma ordem global cujo mecanismo co-
partir da política das empresas e do Esta- nhecem pouco, sabendo porém que a
do. Creio que por aí aproximar-se-ia, a obediência é indispensável para conti-
partir do acontecer empírico (o aconte- nuar presentes. Nesse caso, o lugar para
cer é sempre empírico, mesmo quanto a solidariedade é menor porque o pro-
às idéias), de uma tentativa de interpre- cesso de vida, a produção de sua exis-
tação que talvez encontrasse essa pro- tência, de alguma maneira, supõe
dução de horizontalidade, quando o preocupações menos altruísticas. Trata-
que se quis produzir foi a exclusiva verti- se da tensão da bolsa, do mercado, da
calidade, mesmo quando não se fala da necessidade de obedecer às regras de
grande cidade, mas também das cidades produção, de colheita, de empacota-
que no Brasil chamamos de médias. E, mento. Tudo o que verificamos no Pa-
a partir disso, é originado esse mecanis- raná e sobretudo em Santa Catarina,
mo de horizontalização, que é tanto mais por exemplo, com a produção de por-
rico quanto maior é a divisão do traba- cos ou de frangos, é exemplo típico dessa
lho interna às cidades e que tem um po- obediência indispensável do produtor a
tencial de despertar político na medida uma cadeia técnica que responde a uma
em que a própria atividade econômica demanda econômica que cria nele com-
sugere esse entendimento a partir da po- portamentos regulados, de tal forma
lítica. que excluem a idéia que se possa ter de
prática da solidariedade.
Haveria a possibilidade de distinguir
lugares pela sua capacidade inata de Talvez desse modo pudéssemos ana-
produzir mais ou menos solidariedade? lisar o que se chama sociabilidade a partir
Haveria lugares onde essa disposição de condições geográficas, ou geo-socio-
para a solidariedade pudesse se exercer econômicas, ou geo-sociopolítico-eco-
mais fortemente, mais rapidamente, nômicas, o que implica uma diferença
mais conscientemente? Retomo rapida- essencial entre o que chamaríamos de
mente uma oposição hoje factível nas rural e o que chamaríamos de urbano.
áreas mais modernas entre o rural e o Isto é, a oposição rural e urbano vai to-
urbano. O rural submetido às leis da glo- mando novos contornos, novos conteú-
balização convoca os participantes do dos, novas definições, diferentes das que
trabalho rural a uma atitude de subor- aprendemos e ensinamos ainda há vinte
dinação a essas normas, porque sem anos. A cidade é isso: ela fornece a pre-
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sidência das atividades técnicas do jam situadas no Rio de Janeiro ou em


mundo rural e, inclusive, uma parcela da São Paulo, podem ter um papel impor-
atividade intelectual das cidades médias tante na produção do saber local, com
que depende diretamente de uma de- a produção de um saber global que não
manda rural – o que denominei, em seja apenas discurso, mas que permita
algum lugar, de consumo produtivo do oferecer elementos de análise localmente
campo. Esse consumo produtivo do reciclados. Não podemos realmente ofe-
campo gera nas cidades atividades que recer as fórmulas de entendimento do
respondem diretamente à demanda do local. Oferecemos um quadro geral de
campo. Mas o fato de as pessoas estarem reflexão, a ser refeito localmente. O que
juntas e terem uma renda, estarem subor- acabo de dizer é uma introdução tam-
dinadas ao meio de consumo e às exigên- bém a essa pergunta sobre a federação
cias da vizinhança cria outras atividades. de lugares que, segundo minhas previ-
Com isso, a própria cidade olha atônita, sões, ocorrerá na medida em que o
sem saber como explicar essa demanda saber local se impuser. As combinações
política que lhe é também feita, esse locais são múltiplas. O que se produz
papel de intermediação em relação ao nas chamadas grandes universidades,
mundo. Isso porque a cidade tem um nos grandes centros da produção do
certo papel também na área política da saber, são generalizações e abstrações e
divisão do trabalho, e não apenas na área que, por isso, não são diretamente apli-
técnica, através do entendimento dos cáveis às políticas locais. São guias; por-
preços, dos incentivos, do custo do di- tanto os experts não podem demorar
nheiro. Tudo isso é a cidade que teste- muito tempo nos lugares porque serão
munha. Esse conjunto de testemunhos desconsiderados, porque falarão tolices,
que lhe é conferido constitui também um certamente. Esse saber do homem da
elemento de cristalização de demandas universidade, do grande centro ou do
expressas, entre outras coisas, pela mídia pequeno centro – que não se imagine
local, pelas associações locais, pelos sin- que só somos grandes se estamos nas
dicatos locais, pelas cooperativas. Todas grandes universidades – é indispensável
são, de um lado, elementos da produção também como um dado central na co-
de um lobby e, de outro, produtoras de zinha do saber local. A cozinha é local.
um discurso da cidade, que é novo e que E esse saber local é urbano. Isso porque
atribui a essa cidade esse papel, também o campo é extremamente vulnerável ao
novo na discussão do mundo e do país. grande capital, já que tem de transigir,
E esse papel será tanto mais eficaz quanto se quiser oferecer o produto que o mun-
mais a cidade explicar esses processos. do pede, nas condições em que pede.

Aqui, finalmente, podemos retomar A datação do mundo faz com que


a questão do saber local, que deixamos tenhamos sempre que estar revendo con-
suspensa um pouco atrás. E como esse ceitos. Mas a própria palavra conceito é
saber local não é independente do saber uma palavra que depende da época, da
global, as universidades, ainda que este- aceitação da idéia de que o mundo é da-
26 O Território e o Saber Local: algumas categorias de análise

tado. Assim, se a relação cidade–campo


(Recebido para publicação em outubro
muda, a definição de campo também
de 1999)
muda. Temos que alcançar essa definição
de um modo geral, global, e de um Milton Santos é professor emérito da
modo nacional, porque em cada país é Universidade de São Paulo
diferente. Como também é diferente a
partir de cada lugar.

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