Sei sulla pagina 1di 82
Meomtvees MESZAROS A EDUCACAO _ PARA ALEM oo CAPITAL Borremre EDITORIAL A educagao para além do capital € um pequeno livro no qual Istvan Mésziros nos oferece uma reflexao densa e critica sobre os limites e os equivocos das vi- sdes liberais e utdpico-liberais da educa- io. Com base em obras anteriores, es- pecialmente o livro Para além do capital (Boitempo, 2002), ele demonstra enfati- camente que “os processos educacionais € 0 processos sociais mais abrangentes de reproducio estado intimamente liga- dos”. Ou seja, sem rupturas nas relacdes saciais que estao sob © controle do sis- tema do capital nio podera haver mu- dangas profundas no sistema educacio- nal. Sob as relacdes sociais capitalistas a educacao funciona, dominantemente, como sistema de internalizagao dos co- nhecimentos, valores e cultura funcionais & reprodugio da (des)ordem do meta- bolismo social do capital. Esta idéia central é apresentada, por um lado, median- te as concepgdes de Adam Smith e John Locke, que naturalizam a sociedade capitalista e o dualismo na educa¢io e, por outro, pela fragilidade do socialismo utépico de Robert Owen e do reformismo de Edward Bernstein. Cada uma dessas concep¢des, a seu modo, conduz a visGes moralizantes do dever-ser da edu- cacao, separando o insepardvel: a materialidade da A EDUCACAO PARA ALEM DO CAPITAL CcOLECAO Mundo do Trabalho Coordenagao Ricardo Antunes TITULOS PUBLICADOS ALEM DA FABRICA. Marco Aurélio Santana ¢ José Ricardo Ramalho (orgs. A CAMARA ESCURA Alienacao e estranhamento em Marx Jesus Ranieri CRITICA A RAZAO INFORMAL A imaterialidade do salariado Manoel Malaguti DA GRANDE NOITE A ALTERNATIVA O movimeto operdrie europew em crite Alain Bibe A DECADA NEOLIBERAL £ A CRISE DOS SINDICATOS NO BRASIL Adalberto Moreira Cardoso DO CORPORATIVISMO AO NEOLIBERALISMO Estado ¢ trabalhadores no Brasil ¢ na Inglaterra Angela Araiijo (org.) © EMPREGO NA GLOBALIZAGAO Marcio Pochmanna FORDISMO E TOYOTISMO NA CIVILIZAGAO DOAUTOMOVEL Thomas Gounet HOMENS PARTIDOS. Comunistas ¢ sindicatos no Brasil Marco Aurélio Santana LINHAS DE MONTAGEM Oindustrialismo nacional-desenvolvimentisia ¢ a sindicalizagao dos trabalbadores (1945-1978) Antonio Luigi Negro OMISTER DE FAZER DINHEIRO Ausomatizacio e subjetividade no trabalho bancirio Nise Jinkings NEOLIBERALISMO, TRABALHO E SINDICATOS Reestruturagio produtiva na Inglaterra e no Brasil Haw Beynon, José Ricardo Ramalho, John ‘Mellroy ¢ Ricardo Antunes (orgs.) NOVA DIVISAO SEXUAL DO TRABALHO? Um olbar voltado pare a empresa ea sociedade Helena Hirata © NOVO (E PRECARIO) MUNDO DO TRABALHO Reestruturacdo produtiva e crise do sindicalismo Giovanni Alves PARA ALEM DO CAPITAL Rumo a uma teoria da tranigio Istvin Mészaros POBREZA E EXPLORAGAO DO TRABALH( NAAMERICA LATINA Pierre Salama O PODER DA IDEOLOGIA Istvin Mésziros O ROUBO DA FALA Origens da ideologia do trabalhismo no Brasil Adalberto Paranhos OSECULO XXI Socialismo ou barbdrie? Istvan Mészaros OSSENTIDOS DO TRABALHO Ensaios sobre aafirmasaio e « negagao do trabalhe Ricardo Antunes TERCEIRIZAGAO: (DES)FORDIZANDO AFABRICA Maria da Graga Druck ‘TRANSNACIONALIZACAO DO CAPITAL E fragmentacio dos trabathadares Joo Bernardo Istvan Mészdros A EDUCACAO PARA ALEM DO CAPITAL EDITORIAL © Istvan Meszaros Copyright desta edicio © Boitempo Editorial, 2005 Titulo original: Education Beyond Capital Copyris Coordenagio editorial Ivana Jinkings e Aluizio Leite Assisténcia ‘Ana Paula Castellani Tradugiéo Isa Tavares Rewisio da traducao Sergio Luiz Mansur ¢ Luis Gonzaga Fragoso Revisiio técnica Maria Orlanda Pinassi Capa Antonio Kehl sobre foro de Sebastiio Salgado (Terra, Sao Paulo, Companhia das Letras, 1997) © Sebastiso § Editoragao cletr Gap Design Produsito Marcel Iha Maringoni igado/Amazonas | Impressita © acabamento Bartira CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, Rj, M55e Mésziros, Istvin, 1930- A educagio para além do capital / Istvin Mésziros ; radugio de Isa ‘Tavares, - Sao Paulo : Boitempo, 2005 “Tradugio de: Education beyond capital ISBN 85-7559-068-5 1, Educagio - Aspectos econdmicos, 2. Capitalismo, 3, Democracia, 4. Educagio e Estado. 1. Titulo. 05-2005, CDD 370.19 CDU 37.0154 ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a expressa aucorizagio da edivora, 1 edigio: julho de 2005 1" reimpressio: novembro de 2005 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Edivores Associados Ltda Rua Euclides de Andrade, 27 Perdizes 5030-030 Sio Paulo SP Tel./Fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 e-mail; editora@boitempo.com site: www.boitempo.com do para além do capital autor 15 19 APRESENTACAO O ensaio que da titulo a este volume foi escrito por Istvan MészAros para a conferéncia de abertura do Forum Mundial de Educacio, realizado em Porto Alegre, no dia 28 de julho de 2004. Nesse texto, o professor emérito da Universidade de Sussex afirma que a educagio nao é um negécio, é cria- g40. Que educagio nao deve qualificar para o mercado, mas para a vida. Na sessdo inaugural no gindsio Giganti- nho, enfatizou o sentido mais enraizado da frase “a educa- ¢ao nao € uma mercadoria”. ~ Em A educacdo para além do capital, Mészdros ensina que pensar a sociedade tendo como parametro o ser huma- no exige a superacao da Idgica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competigao seus fundamentos. Que educar é — citando Gramsci — colocar fim 4 separac4o entre Homo faber e Homo sapiens; é resgatar o sentido estruturante da educagao e de sua relagio com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatérias. E recorda que transformar essas idéias e princfpios em pra- ticas concretas é uma tarefa a exigir agdes que vao muito além dos espacos das salas de aula, dos gabinetes e dos féruns académicos. Que a educag¢ao nao pode ser encerrada no ter- 10 A educac&o para além do capital reno estrito da pedagogia, mas tem de sair as ruas, para os espacos ptiblicos, e se abrir para o mundo. Pensando na construgao da ruptura com a ldgica do capital, Mészéros reflete nas paginas deste livro sobre al- gumas quest6es de primeira ordem, tais como: Qual o papel da educagao na construgao de um outro mundo possivel? Como construir uma educagao cuja principal referéncia seja o ser humano? Como se constitui uma educagao que realize as transformag6es politicas, econémicas, culturais € sociais necessdrias? Istvan Meszaros nasceu em 1930, em Budapeste, onde completou os estudos fundamentais na escola publica. Pro- veniente de uma familia modesta, foi criado pela mie, ope- rdria, e por forca da necessidade tornou-se ele também — mal entrava na adolescéncia — trabalhador numa industria de avides de carga. Com apenas doze anos, o jovem Istvan alterou seu registro de nascimento para alcangar a idade minima de dezesseis anos ¢ ser aceito na fabrica, Passava, assim — como homem “adulto” —, a receber maior remu- nera¢do que a de sua mae, operdria qualificada da Standard Radio Company (uma corporagio transnacional estadu- nidense). A diferenga consideravel entre suas remunera- g6es semanais foi a primeira experiéncia marcante e a mais tangfvel em seu aprendizado sobre a natureza dos conglo- merados estrangeiros e da exploragao particularmente se- vera das mulheres pelo capital. Somente apds o final da Segunda Guerra, em 1945, péde se dedicar melhor aos estudos. Comecou a trabalhar como assistente de Georg Lukdcs no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste em 1951 ¢ defendeu sua tese de doutorado em 1954/ Mészaros seria o sucessor de Lukacs Apresentagao 11 na Universidade, porém, apés o levante hiingaro de outu- bro de 1956, com a entrada das tropas sovi¢ticas no pais, exilou-se na Irdlia — onde lecionou na Universidade de Tu- rim —, indo posteriormente trabalhar nas universidades de St. Andrews (Escécia), York (Canada), ¢ finalmente em Sussex (Inglaterra), onde em 1991 recebeu o titulo de Pro- fessor Emérito. Autor de obra vasta e significativa, ganhador de pré- mios como o Attila Jézsef', em 1951, e 0 Isaac Deutscher Memorial, em 1970, Mészéros é considerado um dos mais importantes pensadores da atualidade. Sua experiéncia como operdrio que teve acesso ao estudo na Hungria socialista, em meio 4s grandes tragédias do século XX, foi possivel- mente determinante para a compreensao da educagao como forma de superar os obstdculos da realidade: Istv4n — assim como Donatella, sua companheira desde 1955 ¢ também professora na rede publica de ensino ~ sempre militou em defesa da escola das maiorias, das periferias, aquela que ofe- rece possibilidades concretas de libertagao para todos. Ele alerta, porém, que o simples acesso 2 escola é con- digao necessdria mas nao suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhdes de pessoas cuja existéncia sé € reconhecida nos quadros estat{sticos. E que o desloca- mento do processo de exclusao educacional nao se dé mais principalmente na questao do acesso 4 escola, mas sim den- tro dela, por meio das instituicées da educagio formal. O que est4 em jogo nao é apenas a modificagao politica dos Processos educacionais — que praticam e agravam o apartheid "Attila Jézsef (1905-1937), poeta htingaro por quem Mészdros nu- tre verdadeira paixdo, e a respeito de quem publicou o livro Attila Jozsef ¢ Varte moderna [Attila Jozsef ¢ a arte moderna], em 1964. 12 A educagio para além do capital social —, mas a reprodugao da estrutura de valores que con- tribui para perpetuar uma concep¢ao de mundo baseada na sociedade mercantil, Mészaros sustenta que a educagao deve ser sempre con- tinuada, permanente, ou nao é educagio. Defende a exis- téncia de praticas educacionais que permitam aos educado- res ¢ alunos trabalharem as mudangas necessdrias para a construcao de uma sociedade na qual 0 capital nao explore mais o tempo de lazer, pois as classes dominantes impoem uma educagao para o trabalho alienante, com o objetivo de manter o homem dominado; Ja a educacao libertadora te- tia como fungao transformar o trabalhador em um agente politico, que pensa, que age, ¢ que usa a palavra como arma para transformar 0 mundoy Para ele, uma educagao para além do capital deve, portanto, andar de maos dadas com a. luta por uma transformacio radical do atual modelo econé- mico ¢ politico hegeménicor Estudioso da obra de Marx, Mészdros acredita que a sociedade s6 se transforma pela luta de classes. Limitar, por- tanto, uma mudanga educacional radical “As margens corre- tivas interesseiras do capital significa abandonar de uma sé vez, conscientemente ou nao, o objetivo de uma transforma- go qualitativay[...] E por isso que € necessdrio romper com a légica do capital se quisermos contemplar a criagao de uma alternativa educacional significativamente diferente”. Usando como referéncia duas grandes figuras da bur- guesia iluminista—o economista Adam Smith e 0 educador utépico Robert Owen -, o autor deste livro advoga que o capital é irreformavel porque, pela sua propria natureza, in Mészdros, A educagito para além do capital, p. 27 deste volume. Apresentagéo 13 como totalidade reguladora sistémica, ¢ incontrolayel ¢ in- cortigivel, Seria, desse ponto de vista, absurdo esperar uma “formulacdo de um ideal educacional, do ponto de vista.da ordem feudal em vigor, que considerasse a hipdtese da do- minacio dos servos, como classe, sobre os senhores da bem estabelecida classe dominante”’y Naturalmente, 0 mesmo vale pata a alternativa hegeménica fundamental entre capi- tal e trabalho, Nao surpreende, portanto, que “mesmo as ‘mais nobres utopias educacionais, anteriormente formula- das do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro dos limites da perpetuacao do dominio do capital como modo de reprodugio social metabélica”4, Pequeno em tamanho, A educagdo para além do capital € um livro imenso em esperanga e determinagao. Nele, o fildsofo marxista condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a idéia de que nao existe alternativa & globalizagao capitalistag Em Mészdros, educar nao € a mera transferéncia de conhecimentos, mas sim conscientizagao ¢ testemunho de vida. E construir, libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo quea histéria é um campo aberto de possibilidades. Esse ¢ 0 sen- tido de se falar de uma educago para além do capital: edu- car para além do capital implica pensar uma sociedade para além do capital, Aos leitores que queiram conhecer melhor as opinides de Isty4n Mészaros sobre educagao, sugiro a leitura do capl- tulo “A alicnagao e a crise da educagao”, sobre as utc 4 Thidem, p. 26 * Ibidem, p. 26 14 A educagio para além do capital educacionais, em Marx: a teoria da alienagdo, a ser publica- do pela Boitempo em 2005; Nessa obra, o pensador hiinga- ro reafirma a necessidade de transcender as relagdes sociais de produgio capitalistas, com 0 objetivo de conceber uma estratégia educacional socialistay Ele discute nesse texto 0 conceito de “educago estética”’, tentativa isolada de enfren- tar a desumanizagao do sistema educacional na sociedade capitalista. E conclui que a superacao positiva da alienagio € tarefa educacional que exige uma “revolucao cultural” ra- dical para ser colocada em praticay tie A tradugao que aqui se apresenta foi feita a partir do original em inglés Education Beyond Capital, por Isa Tavares, com texto final de Sérgio Luiz Mansur e Luis Gonzaga Fragoso. A revisao técnica coube a professora de Sociologia da Unesp, Maria Orlanda Pinassi. Nos textos de Mészdtos, as notas de rodapé numeradas s4o do autor; as indicadas com asterisco sao dos revisores da traducio ¢ vém marcadas no final com (N.R.T)). Registro o agradecimento da editora a Sebastitio Salga- do, que autorizou o uso da foto (uma menina fazendo os deveres escolares e tomando conta dos irmaos enquanto a me trabalha) que ilustra a capa deste livro, cujos direitos autorais — assim como de toda a obra de Mészdros publicada pela Boitempo no Brasil — foram cedidos para o Movimen- to dos Trabalhadores Sem Terra, 0 MST, lvana Jinkings ° Conceito que ficou famoso com as Cartas sobre a educagito estética do homem, de Schiller (1793-1794). PREFACIO O objetivo central dos que lutam contra a sociedade mer- cantil, a alienacao ¢ a intolerancia ¢ a emancipagao huma- na. A educagao, que poderia ser uma alavanca essencial para a mudanga, tornou-se instrumento daqueles estigmas da sociedade capitalista: “fornecer os conhecimentos e¢ 0 pes- soal necessdrio 4 maquinaria produtiva em expansao do sis- tema capitalista, mas também gerar ¢ transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes”. Em ou- tras palavras, tornou-se uma pega do processo de acumula- ao de capital e¢ de estabelecimento de um consenso que torna possfvel a reprodugao do injusto sistema de classes. Em lugar de instrumento da emancipacao humana, agora é mecanismo de perpetuagao e reproducio desse sistema._ / A natureza da educa¢ao — como tantas outras coisas essenciais nas sociedades contemporaneas — est4 vinculada ao destino do trabalho. Um sistema que se apéia na separa- 40 entre trabalho e capital, que requer a disponibilidade de uma enorme massa de forca de trabalho sem acesso a meios para sua realizaclo, necessita, ao mesmo tempo, socializar os valores que permitem a sua reproducio, Se no pré-capi- talismo a desigualdade era explicita ¢ assumida como tal, no 16 A educagao para além do capital capitalismo — a sociedade mais desigual de toda a histéria —, para que se aceite que “todos sao iguais diante da lei”, se faz necessdrio um sistema ideolégico que proclame e inculque cotidianamente esses valores na mente das pessoas. No reino do capital, a educacao é, ela mesma, uma mercadoria. Daf a crise do sistema ptiblico de ensino, pres- sionado pelas demandas do capital ¢ pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orgamentos ptiblicos. Talvez nada exemplifique melhor 0 universo instaurado pelo neolibe- ralismo, em que “tudo se vende, tudo se compra”, “tudo tem prego”, do que a mercantilizagao da educagio. Uma sociedade que impede a emancipagao sé pode transformar os espagos educacionais em shopping centers, funcionais A sua légica do consumo e do lucroe » O enfraquecimento da educagio publica, paralelo ao crescimento do sistema privado, deu-se ao mesmo tempo em que a socializagao se deslocou da escola para a midia, a publi- cidade ¢ o consumo. Aprende-se a todo momento, mas 0 que se aprende depende de onde e de como se faz esse aprendiza- do. Garcfa Marquez diz que aos sete anos teve de parar sua educagao para ir & escola. Saiu da vida para entrar na escola — parodiando a citagao de José Martt, utilizada neste livroy Seu autor, Istvan Mészéros, filésofo no melhor sentido da palavra — aquele que nos ajuda a desvendar o significado das coisas —, htingaro de nascimento, péde conviver com um dos maiores pensadores marxistas, Georg Lukécs. Mészros orienta sua obra por uma demanda de seu mestre: reescrever O capital de Marx — trabalho que empreendeu em seu Para além do capital, hoje leitura indispensével para ' Istvan Mészdros, Para além do capital : rumo a uma teoria da transicéo (Sao Paulo, Boitempo, 2002). Prefacio 17 se entender o sistema de relag6es capital—trabalho, seus li- mites, suas contradig6es, seu movimento ¢ seu horizonte de superacaoy Ao pensar a educagao na perspectiva da luta emanci- patéria, nao poderia senao restabelecer os vinculos — tao esquecidos — entre educagao e trabalho, como que afirman- do: digam-me onde estd 0 trabalho em um tipo de socieda- de e eu te direi onde est4 a educacio. Em uma sociedade do capital, a educagao e o trabalho se subordinam a essa dina- mica, da mesma forma que em uma sociedade em que se universalize o trabalho — uma sociedade em que todos se tor- nem trabalhadores —, somente af se universalizard a educa- gaoy"A “auto-educagao de iguais’ ¢ a ‘autogestao da ordem social reprodutiva’ nao podem ser separadas uma da outra” — nas palavras de Mészdros. Antes disso, educacio significa o processo de “interiorizacao” das condigdes de legitimidade do sistema que explora ° trabalho como mercadoria, para induzi-los & sua aceitacao passiva. Para ser outra coisa, para produzir insubordinagao, rebeldia, precisa redescobrir suas relagdes com o trabalho e com o mundo do trabalho, com 0 qual compartilha, entre tantas coisas, a alienagao. Para que serve o sistema educacional — mais ainda, quando publico —, se nao for para lutar contra a aliena- Gao? Para ajudar a decifrar os enigmas do mundo, sobre- tudo o do estranhamento de um mundo produzido pelos préprios homens?, Vivemos atualmente a convivéncia de uma massa iné- dita de informagées disponiveis e uma incapacidade apa- rentemente insuperdvel de interpretagao dos fendmenosy Vivemos*o que alguns chamam de “novo analfabetis- mo” — porque € capaz de explicar, mas nao de entender -, tipico dos discursos econdmicos, Conta-se que um presi- 18 Aeducagao para além do capital dente, descontente com a polftica econdmica do seu gover- no, chamou seu ministro de Economia e lhe disse que “queria entender” essa polftica. Ao que o ministro disse que “ia lhe explicar”. O presidente respondeu: “Nao, explicar eu sei, 0 que eu quero é entender’# A diferenga entre explicar e entender pode dar conta da diferenga entre acumulagao de conhecimentos ¢ com- preenséo do mundo. Explicar ¢ reproduzir o discurso midiatico, entender € desalienar-se, é¢ decifrar, antes de tudo, o mistério da mercadoria, ¢ ir para além do capital. E essa a atividade que Istvan Mészdros chama de “contra-interio- rizagao”, de “contraconsciéncia’, um processo de “transcen- déncia positiva da autoalienagao do trabalho” / Os que lutam contra a exploragao, a opressao, a domi- nagao e a alienagao — isto é, contra o dominio do capital — tém como tarefa educacional a “transformagao social ampla emancipadora”. Se em Para além do capital Mészaros reto- mava o fio condutor de O capital, neste texto — vibrante, licido, decifrador —ele se insere na prolongagao do Manifesto Comunista, apontado para as tarefas atuais do pensamento e da aco revoluciondria no campo da educagio e do trabalho — isto ¢, da emancipagao humana.y Emir Sader A EDUCAGAO PARA ALEM DO CAPITAL A aprendizagem é a nossa propria vida, desde a juventude até a velhice, de fato quase até a morte; ninguém passa dez horas sem nada aprender. Paracelso Se viene a la tierra como cera, — y el azar nos vacia en moldes prehechos. Las convenciones creadas deforman la existencia verdadera [...] Las redenciones han venido siendo formales; — es necesario que sean esenciales [...] La libertad politica no estard asegurada, mientras no se asegura [a libertad espiritual. [...] La escuela y el hogar son las dos formidables céirceles del hombre. José Marti A teoria materialista de que 0s homens sao produto das circunstancias e da educagao e de que, portanto, homens modificados sto produto de circunstancias diferentes e de educacio modificada, esquece que as circunstancias sito modificadas precisamente pelos homens e que o préprio educador precisa ser educado, Leva, pois, forgosamente, 2 divisio da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepoe & sociedade [...]. A coincidéncia da modificagao das circunstancias e da atividade humana sé pode sér apreendida e racionalmente compreendida como pratica transformadora. Karl Marx Escolhi as trés ep{grafes deste livro a fim de antecipar al- guns dos pontos principais a serem abordados. A primeira, do grande pensador do século XVI, Paracelso; a segunda, de José Marti; ¢ a terceira, de Marx. A primeira diz, em contraste agudo com a concepg¢ao atual tradicional mas tendenciosamente estreita da educagao, que “A aprendiza- gem € a nossa prépria vida, desde a juventude até a velhi- ce, de fato quase até a morte; ninguém passa dez horas sem nada aprender” y Relativamente a José Martf, escreve ele, podemos estar certos, com o mesmo espirito de Paracelso, quando ele insiste que “La educacién empieza con la vida, y non acaba sino con la muerte”g Mas ele acres- centa algumas restrices cruciais, criticando duramente as solugGes tentadas pela nossa sociedade ¢ também resumindo a enorme tarefa que temios pela frentey E assim que ele coloca em perspectiva o nosso problema: ' Paracelso, Selected writings (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1951), p. 181. 24 Aeducagao para além do capital Se viene a la tierra como cera, ~y el azar nos vacfa en mol- des prehechos. — Las convenciones creadas deforman la lexisrencia verinders (.- | las rcdencionss haowenido ciende formales; — es necesario que sean esenciales [...] La libertad polftica no estar4 asegurada mientras no se asegura la libertad espiritual. [...] La escuela y el hogar son las dos formidables cdrceles del hombre.* —p Ea terceira epigrafe, escolhida entre as Teses sobre Feuerbach de Marx, poe em evidéncia a linha diviséria que separa os socialistas utépicos, como Robert Owen, daqueles que no nosso tempo tém de superar os graves antagonismos estruturais de nossa sociedade. Pois esses antagonismos blo- queiam o caminho para uma mudanga absolutamente ne- cessdria, sem a qual nao pode haver esperanga para a pré- pria sobrevivéncia da humanidade, muito menos para a melhoria de suas condigées de existéncia. Eis o que diz Marx: A teoria materialista de que os homens sao produto das circunstancias e da educagao e de que, portanto, homens modificados sao produto de circunstancias diferentes e de educagdo modificada, esquece que as circunstancias sao modificadas precisamente pelos homens € que o préprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forgosamente, a divisao da sociedade em duas partes, uma das quais se so- brepGe a sociedade (como, por exemplo, Robert Owen). A coincidéncia da modificagao das circunstancias e da ativi- dade humana sé pode ser apreendida e racionalmente com- preendida como prdtica transformadora.* José Martt, «Libros», em Obras completas, v. 18 (Havana, Editorial de Ciencias Sociales, 1991), p. 290-1. > Karl Marx e Friedrich Engels, Teses sobre Feuerbach (Sao Paulo, Alfa- Omega, 1977), p. 118-9 (grifos do autor). Istvan Mészéros 25 A idéia que pretendo destacar éa de que nao apenas a Ultima citagao_mas de alguma forma todas as trés, durante um periodo de qua é aurgéncia de se instituir— tornando-a ao mesmo tempo irreversfyel — uma radical mudanga estrutural. Uma mudanga que nos leve para além do capital, no sentido genuino ¢ educacionalmente vidvel do termoy ~) A incorrigivel légica do capital e seu impacto sobre a educagao Poucos negariam hoje que os processos educacionais € os processos sociais mais abrangentes de reprodugao estao in- timamente ligados. Conseqiientemente, uma reformulagao significativa da educacao ¢ inconcebfvel sem a correspon- dente transformacao do quadro social no qual as praticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais ¢ historicamente importantes fungées de mudangag Mas, sem um acordo sobre esse simples fato, os caminhos dividem-se nitidamentesPois caso nao se valorize um determinado modo de reproducao da sociedade como o necessdrio quadro de intercambio social, serao admitidos, em nome da reforma, apenas alguns ajustes menores em todos os ambitos, in- cluindo o da educagaoyAs mudangas sob tais limitagdes, aprior(sticas e prejulgadas, sao admissiveis apenas com o tinico ¢ legitimo objetivo de corrigir algum detalhe defei- tuoso da ordem estabelecida, de forma que sejam mantidas intactas as determinagoes estruturais fundamentais da socie- dade como um todo, em conformidade com as exigéncias inalterdveis da da légica global de um determinado sistema de “reproduioy Podem-se ajustar as formas pelas quais uma multiplicidade de interesses particulares conflitantes se deve 26 A educagao para além do capital conformar com a regra geral preestabelecida da reprodugao da sociedade, mas de forma nenhuma pode-se alterar a propria regra geral. Essa Idgica exclui, com uma irreversibilidade categéri- ca, a possibilidade de legitimar 0 conflito entre as forgas hegeménicas fundamentais rivais, em uma dada ordem social, como alternativas vidveis entre si, quer no campo da produ- 40 material, quer no Ambito cultural/educacional. Portan- to, seria realmente um absurdo esperar uma formulagao de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que considerasse a hipétese da dominacao dos servos, como classe, sobre os senhores da bem-estabelecida classe dominante. Naturalmente, o mesmo vale para a alter- nativa hegeménica fundamental entre o capital ¢ o trabalho. Nao surpreende, portanto, que mesmo as mais nobres uto- pias educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente den- tro dos limites da perpetuacio do dominio do capital como modo de reprodugao social metabdlica. Os interesses objeti- vos de classe tinham de prevalecer mesmo quando os subjeti- vamente bem-intencionados autores dessas utopias e discursos crfticos observavam claramente e criticavam as manifestacdes desumanas dos interesses materiais dominantest Suas posic6es criticas poderiam, no limite, apenas desejar utilizar as reformas educacionais que propusessem para remediar os piores efeitos da ordem reprodutiva capitalista estabelecida sem, contudo, eli- minar os seus fundamentos causais antagOnicos ¢ profundamente enraizados, A razao para o fracasso de todos os esforgos anteriores, ¢ que se destinavam a instituir grandes mudangas na sociedade por meio de reformas educacionais lticidas, reconciliadas com o ponto de vista do capital, consistia — e ainda consiste — no Istvan Mészéros 27 fato de as determinagées fundamentais do sistema do capital serem irreformdveis. Como sabemos muito bem pela lamen- tavel historia da estratégia reformista, que jd tem mais de cem anos, desde Edward Bernstein‘ ¢ seus colaboradores — que outrora prometeram a transformagao gradual da ordem capi- talista numa ordem qualitativamente diferente, socialista—, 0 capital ¢ irreformavel porque pela sua propria natureza, como totalidade reguladora sistémica, é totalmente incorrigivelyOu bem tem éxito em impor aos membros da sociedade, incluin- do-se as personificages “carinhosas” do capital, os imperati- vos estruturais do seu sistema como um todo, ou perde asua viabilidade como o regulador historicamente dominante do modo bem-estabelecido de reproducdo metabélica universal ¢ socialy Conseqiientemente, em seus parametros estruturais fundamentais, o capital deve permanecer sempte incontestd- vel, mesmo que todos os tipos de corretivo estritamente mar- ginais sejam nao sé compativeis com seus preceitos, mas tam- bém benéficos, e realmente necessdrios a ele no interesse da sobrevivéncia continuada do sistema, Limitar uma mudanga educacional radical as margens corretivas interesseiras do ca- pital significa abandonar de uma sé vez, conscientemente ou nao, o objetivo de uma transformagao social qualitativa. Do mesmo modo, contudo, procurar margens de reforma sistémica na prdpria estrutura do sistema do capital ¢ uma contradigéo em termos. E por isso que é necessdtio romper com a légica do capital se quisermos contemplar a criagdo de uma alternativa educacional significativamente diferente. * Para uma discussio detalhada sobre a estratégia reformista de Bernstein, ver 0 capitulo intitulado “O beco sem saida representati- vo de Bernstein”, no meu livro O poder da ideologia (S40 Paulo, Boitempo, 2004). 28 A educagao para além do capital ~® Farei referéncia aqui a apenas duas grandes figuras da burguesia iluminista, a fim de ilustrar os limites objetivos, intransponiveis mesmo quando ligados 4 melhor das inten- gdes subjetivas. A primeira é um dos maiores economistas politicos de todos os tempos, Adam Smith; ¢ a segunda, o extraordindrio reformador social e educacional utépico — que também tentou pér em pratica aquilo que pregava, até cair em bancarrota econémica — Robert Owen. Adam Smith, a despeito de seu profundo compromis- so com 0 modo capitalista de organizagao da reprodugao econdémica e social, condenou de forma clara o impacto negativo do sistema sobre a classe trabalhadora. Falando acerca do “espirito comercial” como a causa do problema, ele insistia em que este limita as vis6es do homem. Na situacéo em que a divisdo do trabalho é levada até a perfei¢ao, todo homem tem ape- nas uma operacao simples para realizar; a isso se limita toda a sua aten¢ao, e poucas idéias passam pela sua cabeca, com excecao daquelas que com ela tém Jigacao imediata, Quan- do a mente é empregada numa diversidade de assuntos, ela é de certa forma ampliada e aumentada, e devido a isso geralmente se reconhece que um artista do campo tem uma variedade de pensamentos bastante superior a de um cita- dino. Aquele talvez seja simultaneamente um carpinteiro e um marceneiro, e sua atengao certamente deve estar volta- da para varios objetos, de diferentes tipos. Este talvez seja apenas um marceneiro; esse tipo especifico de trabalho ocupa todos os seus pensamentos, e como ele nao teve a oportuni- dade de comparar varios objetos sua visto das coisas que no estejam relacionadas com seu trabalho jamais serd tao ampla como a do artista. Deverd ser esse 0 caso sobretudo quando toda a atengéto de uma pessoa é dedicada a uma den- tre dezessete partes de um alfinete ou a uma dentre oitenta Istvan Mészéros 29 partes de um botito, de tao dividida que esté a fabricacao de tais produtos. [...] Essas sao as desvantagens de um espiri- to comercial. As mentes dos homens ficam limitadas, tor- nam-se incapazes de se elevar. A educagio ¢ desprezada, ou no minimo negligenciada, ¢ 0 espirito herdico é quase total- mente extinto. Corrigir esses defeitos deveria ser assunto digno de uma séria atengao.°¢ ~i@ Contudo, a “séria atengao” advogada por Adam Smith significa realmente muito pouco, se é que tem algum sig- nificado. Pois esse arguto observador das condigées da Inglaterra sob o avango triunfante do “espirito comer- cial” nao encontra outra solugio a nio ser uma dentincia moralizadora dos efeitos degradantes das forgas ocultas, culpando os préprios trabalhadores em vez do sistema que lhes impée essa situagao infeliz. E nesse espfrito que Smith escreve: Quando o rapaz se torna adulto, mio tem idéias de como possase divertir, Portanto, quando estiver fora de seu trabalho é provavel que se entregue & embriaguez e 4 intemperanga. Conseqiientemente, concluimos, nos locais de comércio da Inglaterra os comerciantes geralmente se encontram nesse estado despreztvel; o que recebem do trabalho de me- tade da semana é suficiente para seu sustento, e devido 4 ignorancia eles nado se divertem senio na intemperanca e na libertinagemY Adam Smith, Lectures on justice, police, revenue, and arms (1763), em Adam Smith: moral and political philosophy, ed. por Herbert W. Schneider (Nova York, Hafner, 1948), p. 318-21. © Tbid., p. 319-20. 30 Aeducagao para além do capital —PAssim, a exploracao capitalista do “tempo dedicado ao lazer”, levada hoje & perfeigto sob o dominio do “espirito comercial” mais atualizado, pareceria ser a solugdo, sem que se alterasse minimamente o nticleo alienante do sistemagCon- siderar que Adam Smith gostaria de ter instituido algo mais elevado do que uma utilizac4o inescrupulosa e insensfvel do “tempo de lazer” dos joyens nao altera o fato de que até o discurso dessa grande figura do Iluminismo escocés é com- pletamente in incapaz de se dirigir 4s causas mas deve permane- cer aprisionado no cfrculo vicioso dos efeitos condenadosy Os limites objetivos da légica do capital prevalecem mesmo quan- do nos referimos a grandes figuras que conceituam o mundo a partir do ponto de vista do capital, e mesmo quando eles tentam expressar subjetivamente, com um espfrito ilumina- do, uma.preocupacao humanitdria genuinag p O nosso segundo exemplo, Robert Owen, meio século apés Adam Smith, nao mede palavras quando denuncia a busca do lucro ¢ o poder do dinheiro, insistindo em que “o empregador vé o empregado como um mero instrumento de ganho”’. Contudo, na sua experi¢ncia educacional pratica ele espera que a cura se origine do impacto da “razd0” e do “esclarecimento”, pregando nao aos “convertidos”, mas aos “inconvertiveis”, que nao conseguem pensar o trabalho em quaisquer outros termos a nao ser como “mero instrumento de ganho”. E assim que Owen fundamenta a sua tese: Devemos entao continuar a obstar a insttugao nacional dos nossos camaradas, que, como foi mostrado, podem facil- mente ser treinados para serem diligentes, inteligentes, vir- tuosos e membros valiosos do Estado? ” Robert Owen, A new view of society and other writings (Londres, Everyman, 1927), p. 124. Istvan Mészdros 31 De fato, a verdade é que todas as medidas agora propostas sdo apenas uma transigéncia com os erros do sistema atual. Mas considerando que esses erros agora existem quase uni- versalmente, e tém de ser ultrapassados apenas por meio da forca da razéo; e como a razAo, para produzir um efeito sobre os objetivos mais benéficos, faz avangos passo a passo, e consubstancia progressivamente verdades de alto signifi- cado, uma apés outra, serd evidente, para mentes abertas e acuradas, que apenas com essas e outras similares transigéncias pode-se esperar, racionalmente, ter-se sucesso na pratica. Pois tais transigéncias apresentam @ verdade ¢ o erro ao publico, e, sempre que esses sao exibidos em conjunto de um modo razodvel, no final das contas a verdade tem de prevalecer. [...] Espera-se, confiantemente, que esteja proximo o tempo em que o homem, por ignorancia, nao mais infligird um softimento desnecessdrio sobre o homem; porque a maioria da humanidade se tornard esclarecida, ¢ id discernir clara- mente que ao agir assim inevitavelmente criar4 sofrimento a si propria. , e O que torna esse discurso extremamente problemati- co, ndo obstante as melhores inten¢oes do autor, é que ele tem de se conformar aos debilitantes limites do capital. E também por isso que a nobre experiéncia pratica utépica de Owen em Lanark esta condenada ao fracasso. Pois ela tenta conseguir 0 imposstvel: a reconciliagao da concepgao de uma utopia liberal/reformista com as regras implacdveis da or- dem estruturalmente incorrigivel do capital, ¢)/O discurso de Owen revela a estreita inter-relagao entre a utopia liberal, a defesa de procedimentos como 0 “passo a pas- so”, “apenas com transigéncias”, e 0 desejo de superar os * Tbid., p. 88-9. 32 A educagao para além do capital problemas existentes “apenas por meio da forca da razo’s Con- tudo, uma vez que os problemas em causa sao abrangentes, correspondendo aos inalteraveis requisitos da dominagio es- trutural e da subordinacao, a contradi¢ao entre o cardter global e abrangente dos fenémenos sociais criticados e a parcialidade e 0 gradualismo das solug6es propostas — que em si sao compati- veis com o ponto de vista do capital — tém de ser substituidos de modo ficticio por uma excessiva generalizacao de alguns “deve ser” utépicosy Assim, vernos na caracterizagao de Owen de “o que tem de ser feito?” uma passagem dos fenédmenos sociais especificos originalmente identificados com precisao — por exemplo, a deploravel condigao em que “o empregador vé o empregado como um mero instrumento de ganho” — para a vaga e atemporal generalizagao do “erro” ¢ da “ignorancia’, para concluir, de forma circular, que o problema da “verda- de_versus erro ¢ ignorancia” (afirmado como uma questao de “razao ¢ esclarecimento’) pode ser solucionado “apenas por meio da forga da razao”. E, claro, a garantia que recebe- mos do éxito da solucao educacional proposta por Owen ¢, mais uma vez, circular: a afirmacgao de que “no final das contas a verdade tem de prevalecer [...] porque a maioria da humanidade se tornaré esclarecida”. Nas rafzes da generali- dade vaga da concepgao corretiva de Owen, vemos que o seu gradualismo utépico é, claramente, motivado pelo medo da emergente alternativa hegemdnica sdcio-histdrica do tra- balho ¢ pela anguistia em relacio a ela. Nesse espirito, cle insiste que sob as condigdes em que os trabalhadores esta condenados a viver, eles contrairéo uma rude ferocidade de cardter, a qual, se nao forem tomadas criteriosas medidas legislativas para prevenir © seu aumento e melhorar as condigdes dessa classe, mais Istvan Mészéros 33 cedo ou mais tarde fard 0 pais mergulhar num formiddvel ¢ talvez complexo estado de perigo. A finalidade direta desvas observacoes ¢ incentivar a melhoria e evitar 0 perigo.” Quando os pensadores punem o “erro ¢ a ignorancia”,~ deveriam também indicar a origem dos pecados intelectuais criticados, em yez de admiti-los como seus, base ultima e¢ irredutfvel 4 qual a questao do “por qué?” nao pode ¢ nao deve ser dirigiday Do mesmo modo, também o apelo a au- toridade da “tazio e do esclarecimento”, como a futura € infalivel solugao para os problemas analisados, ¢ uma falaciosa esquiva 4 pergunta: “por que é que a razao ¢ o esclarecimen- to nao funcionaram no passado?”, ¢ se isso realmente acon- teceu, “qual é a garantia de que funcionarao no futuro?” ¢ Certamente, Robert Owen nao é de forma alguma o tinico pensador a apontar o “erro e a ignorancia’ como a razao explicativa fundamental dos fenémenos denunciados, a se- rem corrigidos de bom grado pela forga todo-poderosa da ae : > : AS razio e do esclarecimento”. Ele partilha essa caracterfstica a crenga positiva a ela associada — crenga que est4 longe de io iluminista liberal no seu conjunto. Isso torna a contradigao subjacente ter uma fundamentagio segura — com a tradi¢: ainda mais significativa e dificil de superars Conseqiientemente, quando nos opomos & circula- ridade de tais diagnésticos finais e declaragdes de fé, que insistem em que, possivelmente, nao se pode ir além do ponto explicativo aceito, nao podemos nos satisfazer com a idéia, encontrada muitas vezes nas discuss6es filoséficas, de que essas respostas dubias surgem do “erro” dos pensadores criticados, o qual, por sua vez, deve ser corrigido com um 9 Tbid., p. 124. 34 A educagao para além do capital “taciocinio adequado”. Agir assim equivaleria a cometer 0 mesmo pecado do adversdrio. / PO discurso critico de Robert Owen e a sua solugao educacional nada tém a ver com um “erro Iégico”s A dilui- go da sua diagnose social num ponto crucial ¢ a circularidade das solugdes vagas e atemporais oferecidas por ele sao descarrilamentos prdticos e necessdrtos, devidos nao a uma defi- ciéncia na légica formal do autor, mas sim & incorrigtbilidade da légica perversa do capital. E este ultimo que, categorica- mente, lhe nega a possibilidade de encontrar respostas numa genu{na associac¢do comunitéria com o sujeito social cujo potencial “cardter de rude ferocidade” cle teme. E assim que ele se depara, no final, com a contradicao — nao Idgica, mas fundamentalmente pratica —, de querer mudar as relagGes desumanas estabelecidas, enquanto rejeita, como um peri- go sério, a tinica e possivel alternativa social hegeménica. A contradicao insoltivel reside na concepcio que Owen tem da mudanca significativa como perpetuacdo do existente. A circularidade que vimos no seu raciocinio é a conseqiiéncia necessdria da aceitagdo de um “resultado”: a “razao” triunfante (procedendo em seguranga, “passo a passo”), que prescreve o “erro ¢ a ignorancia’ como o problema adequadamente retificado, parao qual se supOe estar a razao eminentemen- te adequada a resolver. Dessa forma, mesmo que incons- cientemente, a relacao entre o problema e sua solucao esta, na verdade, revertida, e¢ com isso ela redefine anistoricamente o primeiro, de maneira a ajustar-se & solucao — capitalista- mente permissivel — que fora conceitualmente preconcebi- da. E isso o que acontece quando mesmo um reformista social e educacional esclarecido, que honestamente tenta remediar os efeitos alienantes e desumanizantes do “poder do dinheiro” ¢ da “busca do lucro”, os quais ele deplora, Istvan Mészéros 35 nao pode escapar a auto-imposta camisa-de-forga das determi- nagoes causais do capitaly O impacto da incorrigfvel légica do capital sobre a educa- go tem sido grande ao longo do desenvolvimento do sistema. Apenas as modalidades de imposi¢ao dos imperativos estrutu- rais do capital no ambito educacional sao hoje diferentes, em relaco aos primeiros e sangrentos dias da “acumulagao primi- tiva’, em sintonia com as circunstancias histéricas alteradas, como veremos na préxima secao. E por isso que hoje o sentido da mudanga educacional radical nao pode ser senao 0 rasgar da camisa-de-forca da légica incorrigivel do sistema: perseguir de modo planejado ¢ consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo capital, com todos os meios disponi- veis, bem como com todos os meios ainda a ser inventados, e que tenham o mesmo espiritoy J 4itUspas solugées nao podem ser apenas formais: elas devem ser essenciais Parafraseando a epigrafe de Jos¢ Martf, podemos dizer que “as solugdes nao podem ser apenas formais; elas devem ser essenctals . A educagao institucionalizada, especialmente nos Ulti- mos 150 anos, serviu —no seu todo —ao propdsito de nao sé fornecer os conhecimentos € 0 pessoal necessdrio 4 maquina produtiva em expansao do sistema do capital, como também gerar ¢ transmitir um quadro de valores que /egitima os inte- resses dominantes, como se nao pudesse haver nenhuma al- ternativa 4 gestao da sociedade, seja na forma “ internalizada” (isto é, pelos individuos devidamente “educados” ¢ aceitos) ou através de uma dominacao estrutural e uma subordinagao hierdrquica e implacavelmente impostas. A prépria Histéria 36 A educagao para além do capital teve de ser totalmente adulterada, e de fato freqiiente e gros- seiramente falsificada para esse propdsito. Fidel Castro, fa- lando sobre a falsificagao da histéria cubana apés a guerra de independéncia em relagao ao colonialismo espanhol, fornece um exemplo impressionante: {Qué nos dijeron en la escuela? ;Qué nos decian aquellos inescrupulosos libros de historia sobre los hechos? Nos decfan que la potencia imperialista no era la potencia imperialista, sino que, lleno de generosidad, el gobierno de Estados Uni- dos, deseoso de darnos la libertad, habfa intervenido en aquella guerra y que, como consecuencia de eso, éramos libres. Pero no éramos libres por cientos de miles de cuba- nos que murieron durante 30 afios en los combates, no éramos libres por el gesto heroico de Carlos Manuel de Céspedes, el Padre de la Patria, que inicié aquella lucha, que incluso prefirié que le fusilaran al hijo antes de hacer una sola concesién; no éramos libres por el esfuerzo heroico de tantos cubanos, no éramos libres por la predica de Marti, no éramos libres por el esfuerzo heroico de Maximo Gomez, Calixto Garcfa y tantos aquellos préceres ilustres; no éra- mos libres por la sangre derramada por las veinte y tantas heridas de Antonio Maceio y su cafda heroica en Punta Brava; éramos libres sencillamente porque Teodoro Roosevelt desembarcé con unos cuantos rangers en Santiago de Cuba para combatir contra un ¢jército agotado y practicamente vencido, o porque los acorazados americanos hundieron a los ‘cacharros’ de Cerveza frente a la bahfa de Santiago de Cuba. Y esas monstruosas mentiras, esas increfbles falsedades eran las que se enseftaban en nuestras escuelas. '° "" Fidel Castro, José Marté: el autor intelectual (Havana, Editora Politi- ca, 1983), p. 162. Ver também p. 150 da mesma obra. Istvan Mészéros 37 As deturpagoes desse tipo sao a regra quando ha riscos realmente elevados, € assim é, particularmente, quando eles sao diretamente concernentes & racionalizagao ea legitimagao da ordem social estabelecida como uma “ordem natural” supostamente inalterdvel. A histéria deve ent4o ser reescrita ¢ propagandeada de uma forma ainda mais distorcida, nao s6 nos érgdos que em larga escala formam a opiniao politi- ca, desde os jornais de grande tiragem as emissoras de radio e de televisdo, mas até nas supostamente objetivas teorias académicas. Marx oferece uma caracterizagao devastadora de como uma questo vital da histéria do capitalismo, co- nhecida como a acumulagéo primitiva ou original do capital, é tratada pela ciéncia da Economia Politica. Num vigoroso capitulo de O capital, escreve ele: Essa acumulacio primitiva desempenha na Economia Po- litica um papel andlogo ao pecado original na Teologia. Adao mordeu a magi e, com isso, 0 pecado sobreveio a humanidade. Explica-se sua origem contando-a como anedota ocorrida no passado. Em tempos muito remo- tos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente ¢ sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dis- sipando tudo o que tinham e mais ainda. A lenda do pecado original teoldgico conta-nos, contudo, como o homem foi condenado a comer seu pao com o suor de seu rosto; a histéria do pecado original econdmico, no entanto, nos revela por que hd gente que nao tem neces- sidade disso. Tanto faz. Assim se explica que os primei- ros acumularam riquezas, ¢ os tiltimos, finalmente, nada tinham para vender senZo a sua prdépria pele. E desse pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo o seu trabalho, nada possui para vender senao a si mesma, é€ a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora h4 muito tenham parado 38 A educagao para além do capital de trabalhar. Tais trivialidades infantis o Sr. Thiers, por exemplo, serve ainda, com a solene seriedade de um ho- mem de Estado, em defesa da propriété, aos franceses, outrora tio espirituosos. [...] Na histéria real, como se sabe, a conquista, a subjugacao, o assassinio para rou- bar, em suma, a violéncia, desempenham o papel princi- pal. Na suave Economia Politica reinou desde sempre o idilio. [...] Na realidade, os métodos da acumulacio pri- mitiva sao tudo, menos idflicos. [...] Os expulsos pela dissolugao dos séquitos feudais e pela intermitente € vio- lenta expropriagao da base fundidria, esse proletariado livre como os passaros nao podia ser absorvido pela ma- nufatura nascente com a mesma yelocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram brusca- mente arrancados de seu modo costumeiro de vida nao conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente stibita na disciplina da nova condi¢ao. Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposigao e na maioria dos casos por forga das circunstancias. Daf ter surgido em toda a Europa oci- dental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislacao sanguindria contra a vagabunda- gem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformagao, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislacao os tratava como criminosos “voluntdrios” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalbando nas antigas condigbes que nao existiam. [...] Desses pobres fugitivos, dos quais Thomas Morus diz que os coagiu a roubar, “foram exe- cutados 72 mil pequenos e grandes ladrées, sob o reinado de Henrique VIII”."' "Karl Marx, O capital (Sa0 Paulo, Nova Cultural, 1988), v. 1, livro primeiro, tomo 2, capftulo XXIV, p. 251-2, 265-6. Istvan Mészaros 39 Naturalmente, nem mesmo os altamente respeitaveis pensadores da classe dominante podiam adotar uma atitude que divergisse do modo cruel de subjugar aqueles que de- yiam ser mantidos sob o mais estrito controle, no interesse da order estabelecida. Nao até que a prépria mudanga das condig6es de produgéo modificasse a necessidade de uma forga de trabalho — grandemente ampliada — sob as condi- gGes expansionistas da revolugao industrial. No tempo em que John Locke escreveu, havia uma maior procura de pessoas empregaveis lucrativamente do que no tempo de Henrique VIII, mesmo que numa quanti- dade ainda muito distante da que veio a ser demandada durante a revolugio industrial. Portanto, a “populagao ex- cedente”, em significativa diminuigao, nao teve de ser fisi- camente eliminada como anteriormente. Todavia, tinha de ser tratada da forma mais autoritdria, racionalizando-se ao mesmo tempo a brutalidade e a desumanidade recomenda- das em nome de uma pretensiosa moralidade. Desse modo, nas tltimas décadas do século XVII, em conformidade com 0 ponto de vista do capital da economia politica da época, 0 grande {dolo do liberalismo moderno, John Locke — um latifundiario absentefsta* em Somersetshire, e também um dos mais generosamente pagos funciondrios do governo — pregava a mesma “trivialidade infantil”, tal como descrita por Marx. Locke insistiu em que a causa para © crescimento do ntimero dos pobres [...] nada mais ¢ do que o relaxamento da disciplina e a corrup¢ao dos habitos; a virtude ea diligéncia sio como companheiros constantes * Mészdros emprega o termo “absentefsta” em relagio a Locke, no sentido de um proptietario de terras que nao vivia nelas. (N.R.T.) 40 A educagao para além do capital de um lado, assim como 0 vicio ¢ a ociosidade esto do outro. Portanto, o primeiro passo no sentido de fazer os pobres trabalhar [...] deve ser a restrig&o da sua libertina- gem mediante a aplicacao estrita das leis estipuladas [por Henrique VIII e outros] contra ela.'? Recebendo anualmente uma remunetagao quase astro- némica, de cerca de 1.500 libras, pelos seus servicos ao go- verno (como membro da Junta Comercial, um dos seus v4- rios cargos), Locke nao hesitou em louvar a perspectiva de os pobres ganharem “um centavo por dia”? (a penny per diem), ou seja, uma quantia aproximadamente mil vezes in- ferior a seu préprio vencimento, em apenas um dos seus cargos governamentais. Nao surpreende, portanto, que “o valor dos seus bens, quando ele faleceu — quase 20.000 li- bras, das quais 12.000 em dinheiro —, era comparvel ao de um comerciante préspero em Londres”. Um grande feito para uma pessoa cuja principal fonte de renda era explorar — confessadamente de bom grado — o Estado! Além disso, sendo um verdadeiro cavalheiro, com um volumoso patriménio a resguardar, ele também queria con- trolar as atividades dos pobres com uma medida perversa, a dos passes, propondo que Todos os homens que mendiguem sem passes nos munict- a 8 Pp pios litoraneos, sejam eles mutilados ou tenham mais que "John Locke, “Memorandum on the reform of the poor law” em R. H. Fox Bourne, The life of John Locke (Londres, King, 1876), v. 2, p. 378, 3 Thid., p. 383. 4 Neal Wood, The politics of Locket philosophy (Berkeley, University of California Press, 1983), p. 26. Istvan Mészaros 41 50 anos de idade, ¢ todos os de qualquer idade que também mendiguem sem passes nos municipios do interior, longe da orla maritima, devem ser enviados para uma casa de corregao préxima e nela mantidos em trabalhos forgados durante trés anos.’ Eenquanto as leis brutais de Henrique VIII e de Eduar- do VI pretendiam cortar apenas “metade da orelha” dos crimi- nosos reincidentes, o nosso grande fildsofo liberal e funciondrio do Estado —uma das figuras dominantes dos primérdios do Iluminismo inglés — sugeriu uma melhoria de tais leis ao recomendar, solenemente, o corte de ambas as orelhas, pu- nig4o a ser aplicada aos réus primarios’’. Ao mesmo tempo, no seu Memorandum on the reform of the poor law, Locke também propés a instituicao de ofici- nas* para os filhos ainda em tenra idade dos pobres, argu- mentando que Os filhos das pessoas trabalhadoras s4o um corriqueiro fardo para. a paréquia, e normalmente sao mantidas na ociosidade, de forma que geralmente também se perde 0 que produziriam para a populagao até eles completarem doze ou catorze anos de idade. Para esse problema, a soluc&o mais eficaz que so- mos capazes de conceber, e que portanto humildemente pro- pomos, éa de que, na acima mencionada lei a ser decretada, 'S John Locke, op. cit., p. 380. ‘6 Thid, * “Workhouses”, no original. A tradugéo mais proxima de workhouse, considerado 0 inglés britanico, é “oficina’. No entanto, no inglés americano é “instituigao correcional”. Certamente, Locke recomen- dava um trabalho compulsério para os meninos pobres, num presf- dio especial a que seriam recolhidos. (N.R.T,) 42 A educagao para além do capital seja determinado, além disso, que se criem escolas profissionalizantes em todas as paréquias, as quais os filhos de todos, na medida das necessidades da paréquia, entre quatro e treze anos de idade ... devem ser obrigados a freqiientar.'? Nio sendo ele préprio um homem religioso, a principal preocupagao de Locke era combinar uma disciplina de traba- lho severa ¢ doutrinacio religiosa com uma maxima frugali- ¢ 8) dade financeira municipal e estatal. Ele argumentava que iP 8) q Outra vantagem de se levar as criancas a uma escola profis- sional é que, desta forma, elas seriam obrigadas a ir a igreja todos os domingos, juntamente com os seus professores ou professoras e teriam alguma compreensao da religiao; ao Pasosaur ancien edo cade reel, Gorccae fein rédeas, elas sao totalmente alheias tanto A religiao e a moralidade como 0 sao para a diligéncia.'* Obviamente, entao, as medidas que tinham de ser apli- cadas aos “trabalhadores pobres” eram radicalmente dife- rentes daquelas que os “homens da razdo” consideravam adequadas para si préprios. No final tudo se reduzia a relagdes de poder nuas € cruas, impostas com extrema brutalidade e violéncia nos primérdios do desenvolvimento capitalista, independentemente da forma como elas eram racionalizadas nos “primeiros anais da economia politica’, conforme as palavras de Marx. Naturalmente, as instituigdes de educacao tiveram de ser adaptadas no decorrer do tempo, de acordo com as de- terminag6es reprodutivas em mutagcao do sistema do capital. Y Locke, op. cit., p. 383. " Tbid., p. 384-5. Istvan Mészaros 43 Deste modo, teve de se abandonar a extrema brutalidade e a violéncia legalmente impostas como instrumentos de edu- caga4o — nao sé inquestionavelmente aceitos antes, mas até ativamente promovidos por figuras do inicio do perfodo iluminista, como o préprio Locke, como acabamos de ver. Elas foram abandonadas nao devido a consideragdes huma- nitarias, embora tenham sido freqiientemente racionaliza- das em tais termos, mas porque uma gestao dura e inflexfvel revelou-se um desperdicio econdmico, ou era, no minimo, supérflua. E isso era verdadeiro nao sé em relacio As insti- tuigdes formais de educagdo mas também a algumas dreas indiretamente ligadas a idéias educacionais. Tomando-se apenas um exemplo significativo, o éxito inicial da experiéncia de Robert Owen deveu-se nao ao humanitarismo paternalista desse capitalista esclarecido, mas 4 vantagem produtiva relati- va, de inicio desfrutada pelo empreendimento industrial de sua comunidade utédpica. Pois gracas 4 redugao da absurda- mente longa jornada de trabalho, regra geral na ¢poca, a abordagem “owenista” do trabalho levou a uma intensidade muito maior de realizagao produtiva durante a jornada re- duzida. Contudo, quando praticas similares foram mais amplamente difundidas, j4 que tinha de acatar as regras da concorréncia capitalista, sua empresa tornou-se condenada ¢ faliu, nao obstante as indubitavelmente avangadas con- cepg6es de Robert Owen em materia educacional. As determinagées gerais do capital afetam profunda- mente cada ambito particular com alguma influéncia na educagao, e de forma nenhuma apenas as instituigdes edu- cacionais formais. Estas estao estritamente integradas na totalidade dos processos sociais. Nao podem funcionar ade- quadamente exceto se estiverem em sintonia com as deter- minacoes educacionais gerais da sociedade como um todo. 44 A educagao para além do capital Aqui a questao crucial, sob o dom{nio do capital, é assegurar que cada individuo adote como suas préprias as metas de reprodugao objetivamente possiveis do sistema. Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo do termo educagéo, trata-se de uma questao de “internalizagao” pelos indivfduos — tal como indicado no segundo pardgra- fo desta segao — da legitimidade da posicao que lhes foi atribufda na hierarquia social, juntamente com suas expectativas “adequadas” e as formas de conduta “certas”, mais ou menos explicitamente estipuladas nesse terreno. Enquanto a internalizagdo conseguir fazer o seu bom tra- balho, assegurando os parametros reprodutivos gerais do sistema do capital, a brutalidade e a violéncia podem ser relegadas a um segundo plano (embora de modo nenhum sejam permanentemente abandonadas) posto que sao mo- dalidades dispendiosas de imposigao de valores, como de fato aconteceu no decurso do desenvolvimento capitalista moderno. Apenas em perfodos de crise aguda volta a pre- valecer 0 arsenal de brutalidade ¢ violéncia, com o objetivo de impor valores, como o demonstraram em tempos recentes.as tragédias dos muitos milhares de desaparecidos no Chile e na Argentina. As instituig6es formais de educagio certamente so uma parte importante do sistema global de internalizacao. Mas apenas uma parte. Quer os individuos participem ou nao — Por mais ou menos tempo, mas sempre em um numero de anos bastante limitado — das instituig6es formais de educagio, eles devem ser induzidos a uma aceitacao ativa (ou mais ou menos resignada) dos princfpios reprodutivos orientadores dominantes na prdpria sociedade, adequados asua posicao na ordem social, ¢ de acordo com as tarefas reprodutivas que lhes foram atribuidas. Sob as condig6es de escravidao Istvan Mészéros 45 ou servidao feudal isto é, naturalmente, um problema bastante diferente daquele que deve vigorar no capitalismo, mesmo que os trabalhadores nao sejam (ou sejam muito pouco) educados formalmente. Todavia, ao internalizar as onipresentes pressdes externas, eles devem adotar as perspectivas globais da sociedade mercantilizada como inquestiondveis limites individuais a suas aspira¢Ges pessoais. Apenas a mais consciente das agoes coletivas poder livra-los dessa grave e paralisante situacao. Nessa perspectiva, fica bastante claro que a educacao formal nao é a forga ideologicamente primdria que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si sd, forne- cer uma alternativa emancipadora radical. Uma das funcoes principais da educagao formal nas nossas sociedades ¢ produ tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus prdprios limites institucionalizados ¢legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada uma sangao ativa— ou mesmo mera tolerancia — de um man- dato que estimule as instituig6es de educagao formal a abra- gar plenamente a grande tarefa histérica do nosso tempo, ou seja, a tarefa de romper com a ldgica do capital no interesse da sobrevivéncia humana, seria um milagre monumental. E por isso que, também no ambito educacional, as solugSes “nao podem ser formais; elas devem ser essenciais”. Em outras pala- vras, eles devem abarcar a totalidade das praticas educacionais da sociedade estabelecida. As solucées educacionais formais, mesmo algumas das maiores, e mesmo quando sao sacramentadas pela lei, po- dem ser completamente invertidas, desde que a légica do capital permanega intacta como quadro de referéncias orientador da sociedade. Na Gra-Bretanha, durante varias décadas, os principais debates acerca da educacao centraram-se 46 A educagao para além do capital na questao das comprehensive schools*, a serem instituldas em substitui¢do ao sistema educativo elitista, hé muito estabelecido. Durante aqueles debates, o Partido Traba- thista Britanico nao sé adotou como parte essencial do programa eleitoral a estratégia geral de substituir o privi- legiado sistema anterior de aprendizagem pelas “escolas abrangentes”, como de fato também sistematizou legal- mente essa politica, depois de bem-sucedido na forma- ao do governo, embora nao tenha, nesse momento, ou- sado tratar do mais privilegiado setor da educagao, as “escolas publicas”**, Hoje, contudo, o governo britanico do New Labour est determinado a desmantelar o sistema da escola abrangente, nao sé com a renovagao das antigas instituigdes educacionais elitistas, mas também com a ins- tituig¢ao de uma nova variedade de “academias” que favo- recem a classe média, apesar das numerosas eriticas, que partem mesmo de seus préprios adeptos, acerca do esta- belecimento de um sistema de “duas vias” (two-tier system), tal como est4 prestes a ser estabelecido e fortalecido pelo governo britanico no National Health Service. Assim, nao se pode realmente escapar da “formiddvel prisdo” do sistema escolar estabelecido (condenado nestes termos por José Mart{) reformando-o, simplesmente. Pois © que existia antes de tais reformas serd certamente res- tabelecido, mais cedo ou mais tarde, devido ao absoluto fracasso * Na Gra-Bretanha, escola secundaria nao-seletiva, para jovens com todos os niveis de habilidade, em contraste com as grammar schools, escolas onde a matricula € controlada por um processo de selegao. (N.R.T.) * “Puiblico”, nesse contexto, significa “privado” na Gra-Bretanha; re- fere-se as escolas que cobram anuidades exorbitantes. (N.R.T.) Istvan Mészéros 47 em desafiar, por meio de uma mudanga institucional iso- lada, a ldgica autoritéria global do prdprio capital. O que precisa ser confrontado ¢ alterado fundamentalmente ¢ todo o sistema de internalizag&o, com todas as suas di- menses, visfveis ¢ ocultas. Romper com a légica do capital na drea da educagao equivale, portanto, a substituir as for- mas onipresentes ¢ profundamente enraizadas de interna- lizagao mistificadora por uma alternativa concreta abran- gente. A internalizacio é a questo para a qual nos devemos voltar agora. “A aprendizagem é a nossa propria vida, desde a juventude até a velhice” Na sua época, Paracelso estava absolutamente certo, ¢ nao est4 menos certo atualmente: “A aprendizagem é a nossa propria vida, desde a juventude até a velhice, de fato quase até a morte; ninguém passa dez horas sem nada aprender”. A grande questao é: 0 que é que aprendemos de uma forma ou de outra? Ser4 que a aprendizagem conduz & auto-reali- zagao dos individuos como “individuos socialmente ricos” humanamente (nas palavras de Marx), ou estd ela a servigo da perpetuagao, consciente ou nao, da ordem social alienante e definitivamente incontrolavel do capital? Serd o conheci- mento o elemento necessério para transformar em realidade o ideal da emancipagao humana, em conjunto com uma firme determinacao e dedicacao dos individuos para alcan- gar, de maneira bem-sucedida, a auto-emancipagao da humanidade, apesar de todas as adversidades, ou serd, pelo contrario, a adogao pelos individuos, em particular, de mo- dos de comportamento que apenas favorecem a concretizagao 48 A educagao para além do capital dos objetivos reificados do capital? Considerando esse mais amplo e mais profundo significado da educago, que inclui de forma proeminente todos os momentos da nossa vida ativa, podemos concordar com Paracelso em que muita coisa (praticamente tudo) é decidida, para o bem e para o mal — nao apenas para nés prdprios como individuos mas simulta- neamente também para a humanidade —, em todas aquelas inevitdveis horas que nao podemos passar “sem aprender”, Isso porque “a aprendizagem é, verdadeiramente, a nossa propria vida”. E como tanta coisa é decidida dessa forma, para o bem e para o mal, 0 éxito depende de se tornar consciente esse processo de aprendizagem, no sentido amplo e “para- celsiano” do termo, de forma a maximizar o melhor ea minimizar 0 pior. Apenas a mais ampla das concepcoes de educagio nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudanga verda- deiramente radical, proporcionando instrumentos de pres- sao que rompam a légica mistificadora do capital. Essa ma- neira de abordar o assunto ¢, de fato, tanto a esperanc¢a como a garantia de um possivel éxito, Em contraste, cait na tenta- ¢40 dos reparos institucionais formais — “passo a passo”, como afirma a sabedoria reformista desde tempos imemoriais — significa permanecer aprisionado dentro do circulo vicioso institucionalmente articulado ¢ protegido dessa Idgica autocentrada do capital. Essa forma de encarar tanto os pro- blemas em si mesmos como as suas solugées “realistas” é cuidadosamente cultivada e propagandeada nas nossas socie- dades, enquanto a alternativa genuina e de alcance amplo ¢ pratico € desqualificada aprioristicamente e descartada bom- basticamente, qualificada como “politica de formalidades”. Essa espécie de abordagem ¢ incuravelmente elitista mesmo quando se pretende democratica, Pois define tanto a educagao Istvan Mészéros 49 como a atividade intelectual, da maneira mais tacanha pos- stvel, como a tinica forma certa e adequada de preservar os “padroes civilizados” dos que sao designados para “educar” € governar, contra a “anarquia e a subversao”. Simultanea- mente, ela exclui a esmagadora maioria da humanidade do Ambito da ac4o como sujeitos, e condena-os, para sempre, a serem apenas considerados como objetos (e manipulados no mesmo sentido), em nome da suposta superioridade da eli- te: “meritocrdtica’, “tecnocrdtica’, “empresarial”, ou o que quer que seja. Contra uma concep¢4o tendenciosamente estreita da educagao e da vida intelectual, cujo objetivo obviamente ¢ manter o proletariado “no seu lugar’, Gramsci argumen- tou, enfaticamente, h4 muito tempo, que nao hd nenhuma atividade humana da qual se possa excluir qual quer intervencio intelectual — 0 Homo faber nao pode ser separado do Homo sapiens. Além disso, fora do traba- lho, todo homem desenvolve alguma atividade intelectual; ele é, em outras palavras, um “filésofo”, um artista, um homem com sensibilidade; ele partilha uma concep¢ao do mundo, tem uma linha consciente de conduta moral, e portanto contribui para manter ou mudar a concepgdo do muredo, isto é, para estimular novas formas de pensamento."” Como podemos observar, a posic¢ao de Gramsci é pro- fundamente democratica. E a tinica sustentdvel. A sua con- clusao € bifacetada. Primeiro, ele insiste em que todo ser hu- mano contribui, de uma forma ou de outra, para a formacao ® Antonio Gramsci, “The formation of intellectuals”, em The Modern Prince and Other Writings (Londres, Lawrence and Wishart, 1957), p. 121. 50 A educagao para além do capital de uma concepgao de mundo predominante. Em segundo lugar, ele assinala que tal contribui¢ao pode cair nas categorias contrastantes da “manutencao” e da “mudanga”. Pode nao ser apenas uma Ou outra, mas ambas, simultaneamente. Qual das duas ¢ mais acentuada, e em que grau, isso obviamente dependerd da forma como as forgas sociais conflitantes se con- frontam e defendem seus interesses alternativos importantes, Em outras palavras, a dindmica da histéria nao é uma forca externa misteriosa qualquer e sim uma intervengio de uma enorme multiplicidade de seres humanos no processo histd- tico real, na linha da “manutengio ¢/ou mudanga” — num periodo relativamente estatico, muito mais de “manutengao” do que de “mudanca”, ou vice-versa no momento em que houver uma grande clevagao na intensidade de confrontos hegeménicos ¢ antag6nicos — de uma dada concepgao do mundo que, por conseguinte, atrasar4 ou apressard a chegada de uma mudanga social significativa. Isso coloca em Perspectiva as reivindicacées elitistas de politicos autonomeados ¢ educadores. Pois eles nao podem mudar a seu bel-prazer a “concepgao de mundo” da sua época, por mais que queiram fazé-lo, ¢ por mais gigantesco que possa ser 0 aparelho de propaganda A sua disposicao. Um processo coletivo inevitdvel, de Prtoporgées clementares, nao pode ser ex- propriado definitivamente, mesmo pelos mais espertos ¢ generosamente financiados agentes politicos ¢ intelectuais. Nao fosse por esse inconveniente “ato brutal”, posto tao em evi- déncia por Gramsci, 0 dominio da educaco institucional for- mal ¢ estreita poderia reinar para sempre em favor do capital. Por maior que seja, nenhuma manipulacao vinda de cima pode transformar o imensamente com Plexo processo de mo- delagem da visio geral do mundo de NOssos tempos — consti- tuida por incontaveis concepgoes particulares na base de inte- Istvan Mészéros 51 resses hegemdnicos alternativos objetivamente irreconcilidveis, independentemente de quanto os individuos possam estar cons- cientes dos antagonismos estruturais subjacentes — num dispo- sitivo hornogéneo e uniforme, que funcione como um promotor permanente da \dgica do capital. Nem mesmo 0 aspecto da “manutencao” pode ser considerado um constituinte passivo da concep¢ao de mundo que predomina entre os individuos. No entanto, mesmo que de uma maneira muito diferente do as- pecto da “mudanga” da visto do mundo de uma ¢poca, a “ma- nuten¢ao” sé ¢ ativa e benéfica para o capital enquanto se man- tém ativa. Isso significa que a “manutengao” tem (e deve ter) sua propria base de racionalidade, independentemente de quao problematica for em relagao 4 alternativa hegeménica do tra- balho. Isto ¢, ela nao sé deve ser produzida pelas classes de individuos estruturalmente dominadas em determinado mo- mento no tempo, como também tem de ser constantemente reproduzida por cles, sujeita (ou nao) 4 permanéncia de sua base de racionalidade original. Quando uma maioria significa- tiva da populagao — algo préximo de setenta por cento em muitos paises —se afasta com desdém do “processo democrati- co” do ritual eleitoral, tendo lutado durante décadas, no passa- do, pelo direito ao voto, isso mostra uma mudanga real de atitude em face da ordem dominante; pode-se dizer que € uma rachadura nas espessas camadas de gesso cuidadosamente de- positadas sobre a fachada “democratica” do sistema. Contudo, de modo nenhum isso poderia ou deveria ser interpretado como um afastamento radical da “manutengao” da concepgao de mundo atualmente dominante. Naturalmente, as condig6es séo muito mais favordveis a atitude de “mudanga” e & emergéncia de uma concep¢ao alter- nativa do mundo, em meio a uma crise revolucionaria, descri- ta por Lenin como o tempo “em que as classes dominantes ja 52 A educagio para além do capital nao podem governar 4 maneira antiga, ¢ as classes subalternas jd ndo querem viver 4 maneira antiga”. Esses so momentos absolutamente extraordindtios na histéria, ¢ nao podem ser prolongados como se poderia desejar, como o demonstraram no passado os fracassos das estratégias voluntaristas®®. Portan- to, seja em relagdo 8 “manutencio”, seja em relacao 4 “mudanga” de uma dada concep¢io do mundo, a questao fundamental éa necessidade de modificar, de uma forma duradoura, 0 modo de internalizagao historicamente prevalecente. Rompera légica do capital no ambito da educacao ¢ absolutamente inconcebivel * “A dificuldade é que o ‘momento’ da politica radical é limitado estri- tamente pela natureza da crise em questao ¢ pelas determinagées tem- porais de seu desdobramento. A brecha aberta em tempos de crise nao pode ser deixada assim para sempre, ¢ as medidas adotadas para fechd-la, desde os primeiros Passos em diante, tém sua prépria légica ¢ impacto cumulativo nas intervengdes subseqiientes, Além disso, fanto a estrutura socioeconémica existente quanto seu correspon- dente conjunto de instituigdes polfticas tendem a agir contra as inicia- tivas radicais através da sua prépria inércia, tao logo tenha passado o pior momento da crise ¢ assim se tornando possivel contemplar no- vamente ‘a linha de menor resisténcia’ L..] Por mais paradoxal que Possa soar, somente uma autodeterminagao radical da polftica pode prolongar 0 momento da politica radical. Se nao se deseja que este ‘momento! seja dissipado sob o peso da pressio econdmica imediata, tem de ser encontrada uma maneira para estender sua influéncia para muito além do pico da prépria crise (quando a politica radical tende a afirmar sua efetividade como uma lei). E, desde que a duragdo temporal da crise como tal nao pode ser prolongada & vontade — nem poderia ser, desde que uma politica voluntarista, com seu ‘estado de emergéncia’ artificialmente manipulado, sé poderia tentar fazé-lo em seu préprio risco, através do despojamento das massas, em vex de assegurar 0 seu sustento —, a soluco s6 pode surgir de uma bem- sucedida conversao de um ‘tempo transitério’ a um ‘espago permanen- te’ por meio da Teestruturacao dos poderes de tomada de decisio” (L. Mészaros, Para além do capital, cit., p. 1077-8). Istvan Mészéros 53 sem isso. E, mais importante, essa relagao pode e deve ser ex- pressa também de uma forma concreta. Pois através de uma mudanga radical no modo de internalizagao agora optessivo, que sustenta a concepgio dominante do mundo, o dominio do capital pode ser ¢ ser4 quebrado. Nunca é demais salientar a importancia estratégica da concep¢4o mais ampla de educago, expressa na frase: “a apren- dizagem é a nossa prépria vida". Pois muito do nosso proces- so continuo de aprendizagem se situa, felizmente, fora das instituig6es educacionais formais. Felizmente, porque esses ptocessos nao podem ser manipulados e controlados de ime- diato pela estrutura educacional formal legalmente salvaguar- dada sancionada. Eles comportam tudo, desde o surgimento de nossas respostas criticas em relago ao ambiente material mais ou menos carente em nossa primeira infancia, do nosso primeiro encontro com a poesia ¢ a arte, passa ndo por nossas diversas experiéncias de trabalho, sujeitas a um escrutinio racional, feito por nés mesmos ¢ pelas pessoas com quem as partilhamos ¢, claro, até o nosso envolvimento, de muitas diferentes maneiras ¢ ao longo da vida, em conflitos e con- frontos, inclusive as disputas morais, polfticas ¢ sociais dos nossos dias. Apenas uma pequena parte disso tudo esta dire- tamente ligada a educagao formal. Contudo, os processos acima descritos tém uma enorme importancia, nao sé nos nossos primeiros anos de formacao, como durante a nossa vida, quando tanto deve ser reavaliado e trazido a uma unida- de coerente, orginica e vidvel, sem a qual nao poderiamos adquirir uma personalidade, ¢ nos fragmentarfamos em pe- dacos sem valor, deficientes mesmo a servigo de objetivos sociopoliticos autoritdrios. O pesadelo em 1984, de Orwell, nao é realiz4vel precisamente porque a esmagadora maioria das nossas experiéncias constitutivas permanece — € perma- 54 A educagao para além do capital necerd sempre — fora do ambito do controle ¢ da coergao institucionais formais. Certamente, muitas escolas podem causar um grande estrago, merecendo portanto, totalmente, as severas criticas de Martf, que as chamou de “formidaveis prisdes”. Mas nem mesmo os piores grilhdes tém como predo- minar uniformemente, Os jovens podem encontrar alimento intelectual, moral ¢ artistico noutros lugares. Pessoalmente, fui muito afortunado por, aos oito anos de idade, contar com um professor notavel. Nao na escola, mas quase por acaso. Ele tem sido meu companheiro desde entao, todos os dias. Seu nome € Attila Jézsef: um gigante da literatura mundial. Aqueles que leram a epigrafe do meu livro, Para além do capi- zal”, j4 conhecem o seu nome. Mas permitam-me citar, em espanhol, algumas linhas de outro dos seus grandes poemas, escolhido para epigrafe do meu préximo livro**. Ni Dios ni la mente, sino el carbén, el hierro y el petrdleo, la materia real nos ha creado echandonos hirvientes y violentos en los moldes de esta sociedad horrible, para afincarnos, por la humanidad, en el eterno suelo, Tras los sacerdotes, los soldatos y los burgueses, al fin nos hemos vuelto fieles oidores de las leyes: * S40 Paulo, Boitempo, 2002. ** O autor se refere aqui ao livro The challenge and burden of time, a ser publicado em 2006 pela Boitempo. Istvan Més: por eso el sentido de toda obra humana Zumba en nasotros como el violén profindo.” Essas linhas foram escritas ha setenta anos, em 1933, quando Hitler conquistou o poder na Alemanha. Mas clas falam hoje a todos nés com maior intensidade do que em qualquer época anterior. Elas nos convidam a “ouvir as leis atenta e fielmente” e a proclamé-las sonora e¢ claramente por toda parte. Porque hoje est em jogo nada menos do que a prépria sobrevivéncia da humanidade. Nenhuma pré- tica n4o-educacional formal pode extinguir a duradoura validade e 0 poder de tais influéncias. Sim, “a aprendizagem é a nossa prépria vida’, como Paracelso afirmou ha cinco séculos, e também muitos outros que seguiram seu caminho, mas que talvez nunca tenham sequer ouvido seu nome. Mas para tornar essa verdade algo ébvio, como deveria ser, temos de reivindicar uma educa- go plena para toda a vida, para que seja possivel colocar em perspectiva a sua parte formal, a fim de instituir, também af, uma reforma radical. Isso nao pode ser feito sem desafiar as formas atualmente dominantes de internalizagéo, forte- mente consolidadas a favor do capital pelo proprio sistema educacional formal. De fato, da maneira como estao as coi- sas hoje, a principal fungao da educacao formal ¢ agir como um cao-de-guarda ex-officio e autoritdrio para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de internalizacio, de forma a subordind-los as exigéncias da ordem estabelecida. O fato de a educagao formal nao poder 2 Auila Jozsef, Al borde de la ciudad (A varos peremén), traduzido para 0 espanol por Fayad Jamis. 56 A educagio para além do capital ter éxito na criacdo de uma conformidade universal no alte- ta o fato de, no seu todo, ela estar orientada para aquele fim. Os professores e alunos que se rebelam contra tal de- signio fazem-no com a munigdo que adquiriram tanto dos seus companheiros rebeldes, dentro do dominio formal, quanto a partir da 4rea mais ampla da experiéncia educa- cional “desde a juventude até a velhice”. Necessitamos, entao, urgentemente, de uma atividade de “contra-internalizagao”, Coerente e sustentada, que nao Se esgote na negacao — nao importando quao necessdrio isso seja como uma fase nesse empreendimento — ¢ que defina seus objetivos fundamentais, como a criagao de uma alternativa abrangente concretamente sustentdvel a0 que j4 existe. Ha cerca de trinta anos, editei ¢ apresentei um vo- lume de ensaios do notavel historiador e pensador politico filipino Renato Constantino. Na época, ele era mantido sob as mais rfgidas restrig6es autoritdrias do regime cliente dos Estados Unidos, encabecado pelo “general” Marcos. A certa altura, ele conseguiu passar-me a mensagem de que gostaria que o volume se intitulasse Meo-Colonial Identity and Counter-Consciousness [A identidade neocolonial ¢ a contraconsciéncia]**, nome com que de fato o livro mais tarde apareceu. Totalmente ciente do impacto escravizador da internalizacao da consciéncia colonial no seu pats, Constantino tentou sempre dar énfase A tarefa histética de produzir um sistema de educag4o alternativo e dura- douro, completamente A disposicio do povo, muito além # Renato Constantino, Neo-colonial identity and counter-counsciousness: essays on cultural decolonization (Londres, The Merlin Press, 1978). Nos Estados Unidos, publicado por M. E. Sharpe, Nova York, White Plains, 1978, Istvan Mészaros 57 do ambito educacional formal. A “contraconsciéncia” ad- quiriu assim um significado positivo. Relativamente ao passado, Constantino assinalou que desde seu inicio, a colonizagao espanhola operava mais atra- vés da religiao do que pela forca, afetando portanto, profun- damente, a consciéncia, [...] A modelagem de consciéncias no interesse do controle colonial seria repetida noutro plano pelos americanos, que apés uma década de dura repressao operavam de modo similar através da consciéncia, usando dessa vez a educago e outras instituigdes culturais.” E ele [Constantino] deixou claro que a constituicao de uma contraconsciéncia descolonizada envolvia diretamente as massas populares no empreendimento critico. Eis como ele definia a “filosofia de libertagao” que advogava: Em si, ela é algo em desenvolvimento, dependendo do au- mento da conscientizagao. [...] Nao é contemplativa, é ati- va e dindmica e abrange a situacao objetiva, assim como a reagdo subjetiva das pessoas envolvidas. Nao pode ser uma tarefa de um grupo selecionado, mesmo que esse grupo se veja motivado pelos melhores interesses do povo. Precisa da parti ipacao da “espinha dorsal da nagdo”.™ Em outras palavras, a abordagem educacional defendi- da por ele tinha de adotar a totalidade das praticas politico- educacional-culturais, na mais ampla concep¢ao do que seja uma transformac4o emancipadora. E desse modo que uma contraconsciéncia, estrategicamente concebida como alter- 3 Tbid., p. 20-1. * Tbid., p. 23. 58 A educagao para além do capital nativa necessdria 4 internalizagao dominada colonialmente, poderia realizar sua grandiosa miss0 educativa. De fato, o papel dos educadores ¢ sua correspondente responsabilidade nao poderiam ser maiores. Pois, como José Marti deixou claro, a busca da cultura, no verdadeiro sentido do termo, envolve o mais alto risco, por ser insepardvel do objetivo fundamental da libertacao, Ele insistia que “ser cultos es el tinico modo de ser libres”. E resumia de uma bela maneira a razdo de ser da propria educacao: “Educar es depositar en cada hombre toda la obra humana que le ha antecedido; es hacer a cada hombre resumen del mundo viviente hasta el dia en que vive. ..”*. Isso é quase impossivel dentro dos estreitos limites da educagao formal, tal como ela esté constitufda em nossa €poca, sob todo tipo de severas restrigdes. O prd prio Marti percebeu que todo o proceso de educar deveria ser refeito sob todos os aspectos, do comego até um fim sempre em aberto, de modo a transformara “formidavel prisio” num lugar de eman- Cipagao e de realizacao genufna. Foi por isso que ele, por sua conta, também escreveu ¢ publicou, em 1889, um periddico mensal pata os jovens, La Edad de Oro, Esse € 0 espirito em que todas as dimensées da educacio podem ser reunidas. Dessa forma, os principios orientadores da educacao formal devem ser desatados do seu tegumento da * Cirado em Jorge Lezcano Pérez, Introdugao a José Martt: 150 Ani- versavio (Brasilia, Casa Editora da Embaixada de Cuba no Brasil, 2003), p. 8. A intengao de Marti era que esse fosse um Projeto progressivo; nao foi por sua culpa que apenas quatro ntimeros pudessem ser publi- cados, por falta de apoio financeiro. Os quatro ntimeros esto agora reproduzidos no volume 18 das Obras completas de José Mart, p. 299-503. E impossfvel ler hoje a preocupacao expressa nessas pagi- nas sem se ficar profundamente comovido, Istvan Mészéros 59 légica do capital, de imposigao de conformidade, ¢ em vez dis- so mover-se em direcdo a um intercambio ativo ¢ efetivo com praticas educacionais mais abrangentes. Eles (os princfpios) precisam muito um do outro, Sem um progressivo € conscien- te intercambio com processos de educac¢ao abrangentes como “a nossa propria vida”, a educagao formal nao pode realizar as suas muito necessarias aspiracdes emancipadoras. Se, entretanto, os elementos progressistas da educagao formal forem bem- sucedidos em redefinir a sua tarefa num espirito orientado em direco & perspectiva de uma alternativa hegeménica 4 ordem existente, eles poderao dar uma contribui¢ao vital para romper a légica do capital, nao sé no seu prdprio e mais limitado do- minio como também na sociedade como um todo. A educagao como “transcendéncia positiva da auto-alienagao do trabalho” Vivemos sob condicées de uma desumanizante alienagao ¢ de uma subversao fetichista do real estado de coisas dentro da consciéncia (muitas vezes também caracterizada como “reificagdo”) porque o capital nao pode exercer suas fungdes sociais metabdlicas de ampla reprodugao de nenhum outro modo. Mudar essas condigGes exige uma interven¢ao consciente em todos os dominios e em todos os niveis da nossa existéncia individual e social. E por isso que, segundo Marx, os seres humanos devem mudar “completamente as condigées da sua existéncia industrial e politica, e, conseqiientemente, toda a sua manetra cle ser”®”. ” Karl Marx, The poverty of philosophy (Londres, Lawrence and Wishart, s.d.), p. 123. 60 Aeducagao para além do capital Marx também enfatizou o fato de que — se estivermos & procura do ponto arquimediano a partir do qual as contradi- ges mistificadoras da nossa ordem social podem ser tornadas tanto inteligfveis como superdveis — encontramos na raiz de todas as variedades de alienacao a historicamente revelada alze- nagao do trabalho: um processo de auto-alienagéo escravizante. Mas, precisamente porque estamos preocupados com um pro- cesso histérico, imposto nao por uma ago exterior m{tica de predestinacao metafisica (caracterizada como o inevitdvel “di- lema humano”*), tampouco por uma “natureza humana” imutavel — modo como muitas vezes esse problema é tenden- ciosamente descrito — mas pelo prdéprio trabalho, é possfvel superar a alienac¢do com uma reestruturagéo radical das nossas condigées de existéncia h4 muito estabelecidas e, por conse- guinte, de “toda a nossa maneira de ser”. Conseqiientemente, a necessdria interven¢ao consciente no processo histérico, orientada pela adogio da tarefa de superar a alienagao por meio de um novo metabolismo repro- dutivo social dos “produtores livremente associados’, esse tipo de ago estrategicamente sustentada nao pode ser apenas uma questao de negag@o, nao importa quao radical. Pois, na visio de Marx, todas as formas de negacao permanecem condiicio- nadas pelo objeto da sua negagao. E, de fato, é pior do que isso. Como a amarga experiéncia histérica nos demonstrou am- plamente também no passado recente, a inércia condiciona- dora do objeto negado tende a acrescer poder com o passar do tempo, impondo primeiro a busca de “uma linha de me- nor resisténcia” ¢ subseqiientemente — com uma cada vez ** “Estamos condenados ao vale das ldgrimas”, numa versio; ¢, na outra, “estamos condenados a anguistia da liberdade”. Istvan Mészéros 61 maior intensidade — a “racionalidade” de regressar as “prati- cas testadas” do status quo ante, que certamente sobreviverao nas dimensdes nfo reestruturadas da ordem anterior. E aqui que a educagao — no sentido mais abrangente do termo, tal como foi examinado anteriormente — desempenha um importante papel. Inevitavelmente, os primeiros passos de uma grande transformagio social na nossa época envolvem a necessidade de manter sob controle o estado politico hostil que se opée, ¢ pela sua prépria natureza deve se opor, a qualquer idéia de uma reestruturagao mais ampla da sociedade. Nesse sentido, a negagéo radical de toda a estrutura de comando politico do sistema estabelecido deve afirmar-se, na sua inevi- tavel negatividade predominante, na fase inicial da transfor- magao a que se vise. Mas, mesmo nessa fase, ¢ na verdade antes da conquista do poder politico, a negag4o necessaria s6 é adequada para o papel assumido se for orientada efetiva- mente pelo alvo global da transformagio social visada, como uma bissola para toda a caminhada. Portanto, desde 0 inicio o papel da educagao ¢ de importancia vital para romper com a internalizagao predominante nas escolhas politicas circuns- critas 4 “legitimagao constitucional democratica” do Estado capitalista que defende seus préprios interesses. Pois também essa “contra-internalizacao” (ou contraconsciéncia) exige a an- tecipagao de uma visao geral, concreta e abrangente, de uma forma radicalmente diferente de gerir as fung6es globais de decisio da sociedade, que vai muito além da expropriagao, ha muito estabelecida, do poder de tomar todas as decisées fun- damentais, assim como das suas imposigGes sem ceriménia aos individuos, por meio de politicas como uma forma de alienagao por exceléncia na ordem existente. Contudo, a tarefa histérica que temos de enfrentar é incomensuravelmente maior que a negacao do capitalismo. 62 Aeducagao para além do capital O conceito para além do capitalé inerentemente concreto. Ele tem em vista a realizagio de uma ordem social metabélica que sustente concretamente a si prépria, sem nenhuma referén- Cla autojustificativa para os males do capitalismo. Deve ser assim porque a negagao direta das varias manifestacoes de alienagao é ainda condicional naquilo que ela nega, ¢ portan- to permanece vulnerdvel em virtude dessa condicionalidade. Acstratégia reformista de defesa do capitalismo é de fato baseada na tentativa de postular uma mudanga gradual na sociedade através da qual se removem defeitos especificos, de forma a minar a base sobre a qual as reivindicagdes de um sistema alternative possam ser articuladas. Isso é factivel so- mente numa teoria tendenciosamente fictfcia, uma vez que as soluges preconizadas, as “reformas”, na pratica s4o estru- turalmente irrealizdveis dentro da estrutura estabelecida de sociedade. Dessa forma torna-se claro que 0 objeto real do reformismo nio é de forma alguma aquele que ele reivindica para si proprio: a verdadeira solugo para os inegaveis defeitos especificos, mesmo que sua magnitude seja deliberadamente minimizada, e mesmo que o modo planejado para lidar com eles seja reconhecidamente (mas de forma a isentar a propria responsabilidade) muito lento. O nico termo que de fato tem um sentido objetivo nesse discurso é “gradual”, e mesmo este € abusivamente expandido dentro de uma estratégia global, o que nao pode ocorrer, Pois os defeitos especificos do capitalismo nao podem sequer ser observados superficialmen- te, quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faca refe- réncia ao sistema como um todo, que necessariamente os produz € constantemente os reproduz. A recusa reformista em abordar as contradigoes do sis- tema existente, em nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestacbes particulares — ou, nas Istvan Mészaros 63 suas variagdes “pdés-modernas”, a rejeigéo aprioristica das chamadas grandes narratives em nome de petits récits ideali- zados arbitrariamente — é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar, sem uma andlise adequada, a possibili- dade de se ter qualquer sistema rival, e uma forma igual- mente aprioristica de eternizar o sistema capitalista. O objeto real da argumentagao reformista é, de forma especialmente mistificadora, 0 sistema dominante como tal, e nao as partes, quer do sistema rejeitado quer do defendido, nao obstante o alegado zelo reformista explicitamente declarado pelos proponentes da “mudanga gradual”. O inevitdvel fracasso em revelar a verdadeira preocupagao do reformismo decor- re da sua incapacidade de sustentar a validade atemporal da ordem politica e socioeconémica estabelecida. E, na reali- dade, totalmente inconcebtvel sustentar a validade atemporal da ordem polftica socioeconomicamente estabelecida. Na realidade, é completamente inconcebfvel sustentar a validade atemporal e a permanéncia de qualquer coisa criada histori- camente. E isso que torna inevitavel, em todas as variedades sociopoliticas do reformismo, tentar desviar a aten¢ao das » A polémica de Bernstein contra Marx é absolutamente caricatural. Em vez de travar uma discussao tedrica adequada com Marx, Bernstein prefere seguir outro caminho, langando-lhe um insulto gratuito, a0 condenar, sem nenhum fundamento, a “armacaa dialética” de Marx — e de Hegel. Como se a transformagio dos graves problemas do raciocinio dialético num insulto desqualificante pudesse, por si 6, solucionar as importantes questées politicas ¢ sociais em jogo. O leitor interessado pode encontrar uma discussao razoavelmente detalhada dessa controvérsia no capitulo 8 de O poder da ideologia (op. cit.). A expressio “grandes narrativas” na pés-modernidade é usada analogamente ao insulto desqualificador de Bernstein contra a con- denada “armagao dialética”. 64 A educacao para além do capital determinagoes séstémicas — que no final das contas definem © cardter de todas as questées vitais — para discussdes mais ou menos aleatérias sobre eféitos especificos enquanto se deixa a sua incorrigivel base causal nao sé incontestavelmente per- manente como também omissa. Tudo isso permanece escondido pela propria natureza do discurso reformista. E precisamente por causa do cardter mistificador de tal discurso, cujos elementos fundamentais muitas vezes permanecem escondidos até para os seus prin- cipais idedlogos, nao tem nenhuma importancia para os fi¢is desse credo que num determinado momento da histéria — como com a chegada do New Labour na Gri-Bretanha e seus partidos irmaos 4 Alemanha, 4 Franca, a Itdlia ea outros paises —a propria idéia de qualquer reforma social significa- tiva seja completamente abandonada. Contudo, as reivin- dicag6es de um pretenso “avango” (que nao levam a nenhum lugar realmente diferente) sao dissimuladamente reafirma- das. Assim, mesmo as antigas diferengas entre os princi- pais partidos sao convenientemente obliteradas no agora dominante sistema, de estilo americano, de “dois parti- dos” (um partido), nao importando quantos “subpartidos” possamos ainda encontrar em determinados patses. O que permanece constante é a defesa mais ou menos oculta das atuais determinagées sistémicas da ordem existente. O per- nicioso axioma que assevera “nao haver alternativa”— refe- tindo-se nao apenas a determinadas instituigdes politicas mas 4 ordem social estabelecida em geral — é tao aceitdvel para a ex-primeira-ministra do Partido Conservador bri- tanico, Margaret Thatcher (que o tutelou e popularizou), como para o chamado New Labour do atual primeiro-mi- nistro Tony Blair, assim como para muitos outros no es- pectro polftico parlamentar mundial. Istvan Mészaros 65 Tendo em vista fato de que 0 processo de reestrutura¢ao radical deve ser orientado pela estratégia de uma reforma con- creta e abrangente de todo o sistema no qual se encontram os individuos, o desafio que deve ser enfrentado nfo tem parale- los na histéria. Pois o cumprimento dessa nova tarefa histérica envolve simultaneamente a mudanga qualitativa das condigGes objetivas de reprodugao da sociedade, no sentido de recon- quistar o controle total do préprio capital — € nao simplesmen- te das personificagdes do capital que afirmam os imperativos do sistema como capitalistas dedicados— e a transformagito pro- gressiva da consciéncia em resposta as condig6es necessariamen- te cambiantes. Portanto, 0 papel da educagao é soberano, tanto para a elaboracio de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condigGes objetivas de reprodugao, como para a automudanga consciente dos individuos chamados a concretizar a criagfo de uma ordem social metabdlica radicalmente dife- rente. E isso que se quer dizer com a concebida “sociedade de produtores livremente associados”. Portanto, nao ¢ surpreen- dente que na concepgao marxista a “eferiva transcendéncia da auto-alienacao do trabalho” seja caracterizada como uma tarefa inevitavelmente educacional. Asse respeito, dois conceitos principais devem ser postos em primeiro plano: a universalizagdo da educagéo ¢ a universalizagdo do trabalho como atividade humana auto-reali- zadora, De fato, nenhuma das duas é vidvel sem a outra. Tampouco ¢ possfvel pensar na sua estreita inter-relagao como um problema para um futuro muito distante. Ele surge “aqui e agora’, e é relevante para todos os niveis € graus de desenvolvi- mento socioeconémico. Encontramos um significativo exem- plo disso num discurso de Fidel Castro em 1983, relativo aos problemas que Cuba teve de enfrentar ao aceitar o imperativo da universalizagéo da educagao, apesar das dificuldades aparen- 66 A educagao para além do capital temente proibitivas nao s5 em termos econdmicos, mas tam- bém em conseguir os professores necessérios. Foi assim que ele resumiu 0 problema: A lavez habfamos llegado yaa una situacién en que el estudio se universalizaba. Y para universalizar el estudio en un pais subdesarrollado y no petrolero —digamos —, desde el punto de vista econémico, era necesario universalizar el trabajo. Pero aunque fudsemos petroleros, habria sido altamente conveniente universalizar el trabajo, alzamente formativo en todos los senti- dos, y altamente revolucionario. Que por algo estas ideas fueron planteadas hace mucho tiempo por Marx y por Marti. As extraordindrias realizagées educacionais em Cuba, des- de a eliminagao rdpida e total do analfabetismo até os mais elevados niveis de pesquisa cientifica criativa?!— num pais que tinha de lutar nao sé contra as enormes limitagdes eco- némicas do subdesenvolvimento como também contra 0 sé- tio impacto de 45 anos de bloqueio hostil —, somente sao compreensiveis dentro desse quadro. Essas conquistas tam- * Fidel Castro, José Marti: El autor intelectual, cit., p. 224. *" Até 0 governo hostil dos Estados Unidos teve de reconhecer essa proeza de um modo capenga: concedeu a uma empresa farmacéutica americana na California o direito de concluir um acordo comercial multimiliondrio com Cuba, em julho de 2004, para a distribuicao de uma droga anticancerfgena capaz de salvar vidas, suspendendo assim, por causa disso, uma de suas regras do selvagem bloqucio. Obviamente, mesmo assim, o govern dos Estados Unidos mante- ve a sua hostilidade ao negar o direito de transferir em “dinhciro vivo” os fundos envolvidos, obrigando, em vez disso, a sua propria empresa a negociar algum tipo de acordo de “troca” (barter), forne- cendo produtos agricolas ou industriais americanos em troca da pioneira medicina cubana. Istvan Mészéros 67 bém demonstraram que nao hd motivo para esperar a chega- da de um “perfodo favordvel”, num futuro indefinido. Um avango pelas sendas de uma abordagem a educagao ¢ A apren- dizagem qualitativamente diferente pode e deve comegar “aqui ¢ agora’, tal como indicado antes, se quisermos efetivar as mudangas necessdrias no momento oportuno. Nao pode haver uma solugao efetiva para a auto-alie- nacao do trabalho sem que se promova, conscienciosamen- te, a universalizagao conjunta do trabalho ¢ da educagao. Contudo, nao poderia existir uma possibilidade real para isso no passado, devido & subordinagao estrutural-hierar- quica e a dominagao do trabalho. Nem mesmo quando alguns grandes pensadores tentaram conceituar esses pro- blemas dentro de um espirito mais progressista. Paracelso, um modelo para 0 Fausto de Goethe, tentou universalizar o trabalho ¢ a aprendizagem da seguinte forma: embora, no que se refere a seu corpo, o homem tenha sido criado por inteiro, ele nao foi criado assim no que se refere & sua “arte”. Todas as artes lhe foram dadas, mas nao numa forma imediatamente reconhecivel; ele deve descobri-las pela aprendizagem. [...] A maneira adequa- da reside no trabalho ¢ na agao, em fazer e produzir; o homem perverso nada faz, mas fala muito, Nao devemos julgar um homem pelas suas palavras, mas pelo seu co- ragdo. O coragao fala através de palavras apenas quando elas sao confirmadas pelas ages. [...] Ninguém vé o que estd nele escondido, mas somente o que o seu trabalho revela. Portanto, o homem deveria trabalhar continua- mente para descobrir 0 que Deus lhe deu.”” 2 Paracelso, Selected Writings, cit., p. 176-7, 183, 189. 68 Aeducagao para além do capital De fato, Paracelso afirmava que o trabalho (Arbeit) devia ser o principio geral ordenador da sociedade. Ele chegou mes- mo ao ponto de defender a expropriacao da fortuna dos ricos Ociosos, de forma a compeli-los a ter uma vida produtiva®, Como podemos ver, a idéia de universalizar o trabalho ea educaco, em sua indissociabilidade, é muito antiga em nossa histdria. E portanto muito significativo que essa idéia tenha sobrevivido apenas como uma idéia bastante frustrada, dado que sua realizacio PressupGe necessariamente a igual- dade substancial de todos os seres humanos, O grave fato de a desumanizante jornada de trabalho dos individuos repre- sentar também a maior parte do seu tempo de vida teve de ser desumanamente ignorado. As fungées controladoras da reproducao metabdlica social tiveram de ser separadas ¢ Postas em oposi¢ao & esmagadora maioria da humanidade, 4 qual se destinou a execucdo de tarefas subalternas num determinado sistema politico e socioeconédmico, No mes- mo espirito, nao s6 0 controle do trabalho estruturalmente subordinado, mas também a dimensio do controle da edu- cagao tinham de ser mantidos num compartimento separa- do, sob o dominio da personificagao do capital na nossa época. E imposstvel mudar a telagao de subordinacao e do- minagao estrutural sem a percep¢ao da verdadeira — subs- tantiva e nao apenas igualdade formal (que € sempre pro- fundamente afetada, se nao completamente anulada, pela dimensao substantiva real) —igualdade. E por isso que, ape- nas dentro da perspectiva de ir para além do capital, o desa- fio de universalizar o trabalho ea educac4o, em sua indissolu- bilidade, surgiré na agenda histérica, ** Ver Paracelso, Leben und Lebensweisheit in Selbstzeugnissen (Leipzig, Reclam, 1956), p. 134. Istvan Mészdéros 69 Na concepgao de educagao hd muito dominante, os governantes € os governados, assim como os educacional- mente privilegiados (sejam esses individuos empregados como educadores ou como administradores no controle das instituigdes educacionais) e aqueles que tém de ser edu- cados, aparecem em compartimentos separados, quase estanques. Um bom exemplo dessa viséo ¢ expresso no verbete “educacio” da renomada Encyclopaedia Britannica. E diz o seguinte: A agio do Estado moderno nao pode se limitar & educa¢ao elementar. O principio da “carreira aberta ao talento” nao é mais um tema para uma teoria humanitéria abstrata, uma aspiracao fantdstica de sonhadores revoluciondrios; para as grandes comunidades industriais do mundo moderno, é con- vincente como necessidade pratica, imposta pela feroz con- corréncia internacional que prevalece nas artes e nas ativi- dades da vida. A nag4o que nao quiser fracassar na luta pelo éxito comercial, com tudo o que isso implica para a vida nacional e paraa civilizagio, deve cuidar que suas induistrias sejam supridas com uma oferta constante de trabalhadores adequadamente dotados, tanto em termos de inteligéncia geral como de treinamento técnico. Também no terreno politico, a crescente democratizagao das instituigées torna necessdrio que o estadista prudente trate de proporcionar uma vasta difusio de conhecimentos ¢ 0 cultivo de um alto padrao de inteligéncia na populagao, especialmente nos gran- des Estados imperiais, os quais confiam as mais significativas questoes do mundo politico ao julgamento pela voz popular.” Ver o artigo sobre “Educacao” na 13# edigo (1926) da Encyclopaedia Britannica. 70 Aeducagao para além do capital Mesmo nos seus préprios termos de referéncia, esse artigo académico — sem dtivida impressionante em sua in- vestigagao histérica — ¢ bastante deficiente devido a razées ideolégicas claramente identificdveis. Pois exagera enorme- mente os efeitos benéficos sobre a educagao da classe traba- Ihadora advindos da “concorréncia internacional feroz” de capitais nacionais. Um instigante livro de Harry Braverman, Trabalho e capital monopolista: a degrada¢ao do trabalho no séeulo XX, faz uma avaliacdo incomparavelmente melhor das forgas alienantes e brutalizantes que incidem sobre o trabalhador na moderna empresa capitalista. Elas projetam uma luz negativa e penetrante sobre a deturpacao da “luta pelo sucesso empresarial”, acerca do qual a Encyclopaedia Britannica postula um impacto “civilizador”, quando muitas vezes, na realidade, o resultado necessdrio é diametralmente oposto. E mesmo em referéncia as prdprias empresas indus- triais, a chamada “administragdo cientifica” de Frederic Winslow Taylor revela 0 segredo de quao elevados devem ser os requisitos educacionais/intelectuais nas empresas capitalistas para que elas conduzam uma operagao bem- sucedida, competitivamente. FW. Taylor, o fundador desse sistema de controle de gestio autoritério, assim escreveu, com um indisfarg4vel cinismo: Um dos primeiros requisitos para que um homem seja apto a lidar com ferro fundido como ocupacio regular é que ele seja ” [Rio de Janeiro, Zahar, 1977.] Num documentirio televisivo sobre a linha de montagem de automéveis em Detroit, Ppetguntava-se a um grupo de trabalhadores quanto tempo eles demoravam para aprender a sua tarefa. Eles olhavam uns para os outros ¢ comegavam a rir, respondendo com um indisfarcavel desprezo: “oito minutos; ¢ sé isso!”. Istvan Mészaros 71 do estiipido ¢ fleumdético que mais se assemnelbe, no seu quacdro mental, aum boi. {...] O operdrio que ¢ mais adequado para o carregamento de lingotes ¢ incapaz de entender a real ciéncia que regula a execugao desse trabalho. Ele é tito estipido, que a palavra ‘percentagem” néo tem qualquer significado para ele.° De fato, muito cientifico! Quanto 4 proposigao segun- do a qual “uma vasta difusio de conhecimento e o cultivo de um alto padrao de inteligéncia’ ¢ 0 objetivo adotado de bom grado pelo moderno Estado capitalista — especialmente para os grandes estados imperiais que confiam os assuntos mais importantes da politica mundial ao julgamento pela voz popu- lar — cla é bastante ridicula e obviamente de cardter dema- siadamente apologético para ser considerada, mesmo por um momento, como um argumento sério a favor das causas com que se reivindica a melhoria da educagao, de inspira- cao democratica, e politicamente hicidas, sob condi¢oes de dominio do capital sobre a sociedade. A educagio para além do capital visa a uma ordem so- cial qualitativamente diferente. Agora nao sé é factivel lan- gar-se pelo caminho que nos conduz a essa ordem como 0 é também necessdrio e urgente. Pois as incorrigiveis determi- nacoes destrutivas da ordem existente tornam imperativo contrapor aos irreconcilidveis antagonismos estruturais do sistema do capital uma alternativa concreta e sustentdyel para a regulacao da reproducao metabjlica social, se quisermos 3° FW. Taylor, Scientific management (Nova York, Harper & Row, 1947), p. 29 [ed. bras.: Principios de administragio cientifica, Sao Paulo, Atlas, 1990]. A esse respeito, ver capitulos 2 e 3 de O poder da ideologia (op. cit.), especialmente as secdes 2.1: “Expansio do pés-guerra ¢ ‘pés-ideologia”, ¢ 3.1: “A ideologia administrativa € 0 Estado”. 72 A educagio para além do capital garantir as condig6es elementares da sobrevivéncia huma- na. O papel da educagao, orientado pela tinica perspectiva efetivamente vidvel de ir para além do capital, ¢ absolutamen- te crucial para esse propésito. A sustentabilidade equivale ao controle consciente do processo de reprodugao metabdlica social por parte de pro- dutores livremente associados, em contraste com a insus- tentdvel e estruturalmente estabelecida caracterfstica de adversdtios” ¢ a destrutibilidade fundamental da ordem reprodutiva do capital. E inconcebivel que se introduza esse controle consciente dos processos sociais — uma forma de con- trole, que por acaso também € a tinica forma factivel de autocontrole: 0 tequisito necessdrio para os produtores serem associados livremente — sem ativar plenamente os recursos da educagao no sentido mais amplo do termo. O grave ¢ insuperavel defeito do sistema do capital consiste na alienagdo de mediacoes de segunda ordem que ele precisa impor a todos os seres humanos, incluindo-se as per- sonificagées do capital. De fato, o sistema do capital nao conseguiria sobreviver durante uma semana sem as suas mediagoes de segunda ordem: principalmente 0 Estado, a relagao de troca orientada para o mercado, ¢ 0 trabalho, em sua subordinagao estrutural ao capital. Elas (as mediag6es) S40 necessariamente interpostas entre individuos ¢ indivi- duos, assim como entre individuos e suas aspirag6es, viran- do essas de “cabega para baixo” ¢ “pelo avesso”, de forma a conseguir subordiné-los a imperativos fetichistas do sistema do capital. Em outras palavras, essas mediagSes de segunda ordem impdem A humanidade uma Jorma alienada de mediagao. A alternativa concreta a essa forma de controlar a reproducao metabélica social sé pode ser a automediagéo, na sua insepara- bilidade do autocontrolee da auto-realizagéo através da liberdade Istvan Mészdros 73 substantiva e da igualdade, numa ordem social reprodutiva conscienciosamente regulada pelos indivfduos associados. E também insepardvel dos valores escolhidos pelos préprios individuos sociais, de acordo com suas reais necessidades, em vez de lhes serem impostos — sob forma de apetites totalmente artificiais, pelos imperativos reificados da acu- mulagao lucrativa do capital, como € 0 caso hoje. Nenhum desses objetivos emancipadores é concebivel sem a inter- vengao mais ativa da educag¢ao, entendida na sua orientacao concreta, no sentido de uma ordem social que va para além dos limites do capital. Vivemos numa ordem social na qual mesmo os requi- sitos minimos para a satisfagéo humana sao insensivelmente negados 4 esmagadora maioria da humanidade, enquanto os indices de desperdicio assumiram proporgoes escandalo- sas, em conformidade com a mudanga da reivindicada des- truigéo produtiva, do capitalismo no passado, para a realidade, hoje predominante, da producdo destrutiva. As gritantes desigualdades sociais, atualmente em evidéncia, ¢ ainda mais pronunciadas no seu desenvolvimento revelador, sao bem ilustradas pelos seguintes ntimeros: Segundo as Nag6es Unidas, no seu Relatério sobre 0 Desenvol- vimento Humano, 0 1% mais rico do mundo aufere tanta ren- da quanto os 57% mais pobres. A proporcao, no que se refere aos rendimentos, entre os 20% mais ricos e os 20% mais po- bres no mundo aumentou de 30 para 1 em 1960, para 60 para lem 1990 ¢ para 74 para 1 em 1999, ¢ estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhdes de pessoas viviam com menos de dois délares por dia, 840 milhées esta- vam subnutridos, 2,4 bilhdes nao tinham acesso a nenhuma forma aprimorada de servigo de saneamento, ¢ uma em cada seis criangas em idade de freqiientar a escola priméria nao esta- 74 Aeducagio para além do capital va na escola. Estima-se que cerca de 50% da forga de trabalho nao-agricola esteja desempregada ou subempregada.” O que est em jogo aqui nao é simplesmente a defi- ciéncia contingente dos recursos econémicos dispontveis, a ser superada mais cedo ou mais tarde, como j4 foi desneces- sariamente prometido, ¢ sim a inevitdvel deficiéncia estrutu- ral de um sistema que opera através dos seus cérculos viciosos de desperdicio e de escassez, E impossivel romper esse circulo vicioso sem uma intervengao efetiva na educagao, capaz, simultaneamente, de estabelecer prioridades e de definir as reais necesstdades, mediante plena ¢ livre deliberagao dos in- dividuos envolvidos. Sem que isso ocorra, a escassez pode ser — e ser4 — reproduzida numa escala sempre crescente, em conjunto com uma geracao de necessidades artificiais absolutamente devastadora, como tem ocorrido atualmente, a servigo da insanamente orientada auto-expansio do capital e de uma contraproducente acumulagao, Uma concepgao oposta ¢ efetivamente articulada numa educagao para além do capital nao pode ser confinada a um limitado ntimero de anos na vida dos individuos mas, devido a suas fungées radicalmente mudadas, abarca-os a todos. A “auto- educagao de iguais” ea “autogestao da ordem social reprodutiva” nao podem ser separadas uma da outra. A autogestio — pelos produtores livremente associados — das fungées vitais do pro- cesso metabélico social € um empreendimento progressivo — ¢ inevitavelmente em mudanca, O mesmo vale para as praticas educacionais que habilitem o individuo a realizar essas fungoes na medida em que sejam redefinidas por eles préprios, de acor- ” Mingi Li, “After Neoliberalism: Empire, Social Democracy, or Socialism?”, Monthly Review, January 2004, p. 21. Istvan Mészaros 75 do com os requisitos em mudanga dos quais eles so agentes ativos. A educagio, nesse sentido, é verdadeiramente uma edu- cacéo continuada, Nio pode ser “vocacional” (o que em nossas sociedades significa o confinamento das pessoas envolvidas a fungdes utilitaristas estreitamente predeterminadas, privadas de qualquer poder decisério), tampouco “geral” (que deve en- sinar aos individuos, de forma paternalista, as “habilidades do pensamento”). Essas nogées sao arrogantes presungoes de uma concep¢ao baseada numa totalmente insustentavel separagao das dimensées pratica ¢ estratégica. Portanto, a “educagao con- tinuada’, como constituinte necess4rio dos principios regula- dores de uma sociedade para além do capital, ¢ insepardvel da pratica significativa da autogestdo. Ela € parte integral desta uil- tima, como representagao no inicio da fase de formagao na vida dos individuos, e, por outro lado, no sentido de permitir um efetivo feedback dos individuos educacionalmente enriqueci- dos, com suas necessidades mudando corretamente ¢ redefinidas de modo eqiiitativo, para a determinagio global dos principios orientadores e objetivos da sociedade. Nosso dilema histérico é definido pela crise estrutural do sistema do capital global. Esta na moda falar, com total autocomplacéncia, sobre o grande éxito da globalizagao capita- lista. Um livro recentemente publicado ¢ propagandeado de modo devotado tem como titulo: Why globalization works**. Contudo, o autor, que € 0 principal comentarista econémico do Financial Times de Londres, esquece-se de fazer a pergunta realmente importante: Ela funciona para quem? Se é que fun- ciona. Certamente funciona, por enquanto (mas nao tao bem), para os tomadores de decisao do capital transnacional, e nao Ver Martin Wolf, Why globalization warks (New Haven, Yale University Press, 2004). 76 Aeducacao para além do capital para a esmagadora maioria da humanidade, que tem de softer as conseqiiéncias. E nenhuma integragdo jurisdicional advogada pelo autor — isto é, em linguagem direta, 0 maior controle direto sobre um deplordvel “grande ntimero de Estados” por parte de umas poucas poténcias imperialistas, especialmente a maior delas — vai conseguir remediar a situagdo. Na realidade, a globalizagao do capital nao funciona nem pode funcionar, Pois nao consegue superar as contradig6es irreconcilidveis ¢ os antagonismos que se manifestam na crise estrutural global do sistema. A prépria globalizagao capitalista é uma manifestacao contraditéria dessa crise, tentando subverter a relagao causa/ ofeito, na va tentativa de curar alguns efeitos negativos mediante outros efeitos ilusoriamente desejdveis, porque € estruturalmente incapaz de se dirigir s suas causas. A nossa época de crise estrutural global do capital é tam- bém uma época histérica de transigéo de uma ordem social existente para outra, qualitativamente diferente. Essas sao as duas caracterfsticas fundamentais que definem o espago hist6rico ¢ social dentro do qual os grandes desafios para romper a légica do capital, ¢ ao mesmo tempo também para claborar planos estratégicos para uma educagao que va além do capital, devem se juntar. Portanto, a nossa tarefa educa- cional ¢, simultaneamente, a tarefa de uma transformagao social, ampla e emancipadora. Nenhuma das duas pode ser posta a frente da outra. Elas sao insepardveis. A transforma- cao social emancipadora radical requerida é inconcebfvel sem uma concreta e ativa contribuicao da educacao no seu sentido amplo, tal como foi descrito neste texto. E vice-versa: a educacio nao pode funcionar suspensa no ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida constantemente no seu inter-relacionamento dialético com as condigdes cambian- tes e as necessidades da transformagao social emancipadora e Istvan Mészdros 77 progressiva em curso. Ou ambas tém éxito e se sustentam, ou fracassam juntas. Cabe a nés todos — todos, porque sabe- mos muito bem que “os educadores também tém de ser educados” — manté-las de pé, e nao deixd-las cair. As apostas sfo elevadas demais para que se admita a hipétese de fracasso. Nesse empreendimento, as tarefas imediatas € as suas estruturas estratégicas globais nao podem ser separadas ou opostas umas As outras. O éxito estratégico € impensdvel sem a realizacao das tarefas imediatas. Na verdade, a propria estrutura estratégica é a sintese global de intimeras tarefas imediatas, sempre renovadas ¢ expandidas, e desafios. Mas a solucio destes sé é possfvel se a abordagem do imediato for orientada pela sintetizagio da estrutura estratégica. Os passos mediadores em direc4o ao futuro — no sentido da nica forma vidvel de automediagdo—s6 podem comegar do imediato, mas iluminados pelo espago que ela pode, legiti- mamente, ocupar dentro da estratégia global orientada pelo futuro que se vislumbra. OBRAS DO AUTOR Szatira és valésdg. Budapeste, Szépitodahyli Kényvkiadé, 1955. La rivolta degli intellettuali in Ungheria. Tarim, Einaudi, 1958. Aitila Jozsef e larte moderna. Milao, Lerici, 1964. Marx's Theory of Alienation. Londres, Merlin Press, 1970. [Edi¢ao brasileira: Marx: a teoria da alienagdo. Sao Paulo, Boitempo, 2005, no prelo.] Aspects of History and Class Consctousness. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1971. The Necessity of Social Control. Londres, Merlin Press, 1971. Lukes’ Concept of Dialectic. Londres, Merlin Press, 1972. Neocolonial Identity and Counter-Consciousness. Londres, Merlin Press, 1978. The Work of Sartre: Search for Freedom. Brighton, Harvester Wheatsheaf, 1979. [Edigao brasileira: A obra de Sartre: busca da liberdade. Sao Paulo, Ensaio, 1991.] Philosophy, Ideology and Social Science. Brighton, Harvester Wheatsheaf, 1986. [Edigao brasileira: Filosofia, ideologia e ciéncia social. S40 Paulo, Ensaio, 1993.] The Power of Ideology. Brighton, Harvester Wheatsheaf, 1989. [Edicao brasileira: O poder da ideologia. Sao Paulo, Boitempo, 2004.) Beyond Capital. Londres, Merlin Press, 1995. [Edicao brasileira: Para além do capital. Sao Paulo, Boitempo, 2002.] Socialism or Barbarism: from the "American Century" to the Crossroads. Nova York, Monthly Review, 2001. [Edi¢ao brasileira: O século XXI: socialismo ou barbdrie? Sao Paulo, Boitempo, 2003.) estrutura social do sistema do capital das concep- Goes e€ praticas educativas. Mas a analise de Mészdros nao é reprodutivista. Pelo contrario, ¢ profundamente dialética. Toman- do Marx, Lenin e Gramsci como base tedrica e poli- tica, e a experiéncia concreta da revolucio cubana, extrai do pensamento de José Marti a direcio e as tarefas para educadores que nao querem apenas reformar o sistema do capital, mas ir para além dele —“as solugées nao podem ser apenas formais; elas devem ser essenciais”. Trata-se de construir um pensamento educacional contra-hegeménico antagonico combatendo a internalizagdo a cons- ciéncia de subordinagao dos valores mercantis me- diante uma teotia e uma praxis educativa emanci- padora. Isso se torna possivel porque o sistema do capital no é eterno e expressa contradi¢ées insa- naveis. Um sistema que, como afirma o autor em Para além do capital, perdeu sua parca capacidade civilizatéria e agora, para manter-se, torna-se cada vez mais destrutivo de direitos, da vida de milhées de seres humanos e da natureza. Um livro fundamental para 0 combate ao econo- micismo, as visGes reformistas, ao modismo pos- moderno e ao que Florestan Fernandes denomina- va como o risco em que a esquerda incorre: 0 teorismo ou o subjetivismo revolucionarios. Gaudéncio Frigotto COLEGAO Mundo do Trabalho Coordenacdo Ricardo Antunes ISTVAN Ue ae ae ye ae egy A EDUCACAO PARA ALEM bo CAPITAL Limitar uma mudanga educacional radical as mar- prt ee gach pola -n lle tae o Me] oie mri ter teelo)- 1a donar de uma so vez, conscientemente ou nao, o eRe MEM Umer tem eth Mol tely isso que é necessario romper com a légica do capital se quisermos contemplar a criagao de uma alter- nativa educacional significativamente diferente. 85: 068-5, | 0683 ISBN Ml

Potrebbero piacerti anche