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Descrever a vida psíquica

Vladimir Safatle
19/01/2018
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/01/1951472-descrever-a-
vida-psiquica.shtml?loggedpaywall

Quando foi publicado em sua primeira edição, em 1952, o "Manual Diagnóstico e


Estatístico de Transtornos Mentais" (DSM) continha 128 categorias para a descrição de
modalidades de sofrimento psíquico. Em 2013, em sua quinta e última versão, o Manual
apresentava 541 categorias.

Ou seja, em algo em torno de 60 anos, 413 novas categorias foram "descobertas". Não
há nenhum setor das ciências que tenha conhecido um desenvolvimento tão anômalo e
impressionante.

O que afinal tal desenvolvimento significa? Os editores da primeira versão do DSM não
foram capazes de identificar 413 categorias que existiam e estavam à espera de nossa
descrição ou, em 60 anos, tais categorias foram simplesmente criadas?

Pois seria plausível imaginar que os psiquiatras de nossos avós eram tão incapazes a
ponto de não enxergar 413 categorias descritivas? Mas se elas foram criadas, então
deveríamos nos perguntar qual a razão para tanto?

O que está em jogo nessa nova reconfiguração geral de descrição das formas do
sofrimento psíquico e em suas modalidades de intervenção? Um termo como
"esquizofrenia" é, de fato, uma espécie natural dotada de certas características
diferenciais e individualizadoras biologicamente marcadas?

Longe de interessar apenas a psiquiatras, tais questões dizem respeito a todos nós. A
maneira como descrevemos nossas formas de sofrer é um setor importante da maneira
com que as sociedades se reproduzem, definem o que pode ou não existir, o que pode
ou não ter existência social.

Normalmente, descrevemos a doença como uma limitação da capacidade de ação. Ou


seja, ao ficar doente, o organismo limita seu horizonte de ação, sua capacidade de lidar
com as instabilidades do seu meio ambiente.

Tal definição vale também para o que definimos por "doença mental". Mas, neste caso,
não é difícil perceber que o "meio ambiente" do qual falamos é o meio social em que
organizamos nossos comportamentos, em que seguimos normas e realizamos valores.

O sofrimento pode, então, não dizer respeito apenas à consciência do doente em estar
diante de uma vida limitada, mas ao prejuízo e à inadaptação a situações socialmente
vistas como necessárias.
Nesses casos, o sofrimento aparece necessariamente como o objeto de uma patologia.

Neste sentido, nos perguntemos sobre a estratégia por trás dessa explosão de
categorias clínicas no campo psiquiátrico.

Muitas delas foram resultados da decomposição de grandes categorias como a neurose


obsessiva, a histeria, a paranoia. Categorias estas que simplesmente não existem mais,
mesmo que a psicologia popular as tenha conservado.

Ao serem decompostas, elas perderam não apenas seu caráter de síndromes que
tocariam toda a extensão do comportamento humano. Elas perderam sua história, ou
seja, a forma com que elas traziam em seu bojo a história das dificuldades de
socialização e individuação dos sujeitos concernidos.

A partir de então, nossas doenças serão doenças sem história, nossas vidas não serão
mais descritas em suas contradições e dificuldades de construção de vias singulares. Elas
serão analisadas a partir de variáveis específicas ligadas a humor, a atenção, a
capacidade de síntese, a afetividade adequada.

Cada uma dessas dimensões da experiência serão submetidas a padrões de normalidade


e de medida, mesmo que muitas delas tenham marcadores biológicos obscuros. Padrões
esses que expressarão um desejo de performance que acabará por se naturalizar como
a figura mesma de uma vida bem realizada.

Dentro de uma lógica dessa natureza, a possibilidade de intervir e transformar


comportamentos, julgamentos e reações em objeto de um saber médico para além de
toda contestação possível aparece como uma forma insidiosa de não precisar mais lidar
com a singularidade das histórias que compõem o campo de experiência de uma vida.

Nunca na história do Ocidente a intervenção clínica nos comportamentos foi tão


desenvolvida, esquadrinhando tantas dimensões da existência.

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