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Vladimir Safatle
19/01/2018
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/01/1951472-descrever-a-
vida-psiquica.shtml?loggedpaywall
Ou seja, em algo em torno de 60 anos, 413 novas categorias foram "descobertas". Não
há nenhum setor das ciências que tenha conhecido um desenvolvimento tão anômalo e
impressionante.
O que afinal tal desenvolvimento significa? Os editores da primeira versão do DSM não
foram capazes de identificar 413 categorias que existiam e estavam à espera de nossa
descrição ou, em 60 anos, tais categorias foram simplesmente criadas?
Pois seria plausível imaginar que os psiquiatras de nossos avós eram tão incapazes a
ponto de não enxergar 413 categorias descritivas? Mas se elas foram criadas, então
deveríamos nos perguntar qual a razão para tanto?
O que está em jogo nessa nova reconfiguração geral de descrição das formas do
sofrimento psíquico e em suas modalidades de intervenção? Um termo como
"esquizofrenia" é, de fato, uma espécie natural dotada de certas características
diferenciais e individualizadoras biologicamente marcadas?
Longe de interessar apenas a psiquiatras, tais questões dizem respeito a todos nós. A
maneira como descrevemos nossas formas de sofrer é um setor importante da maneira
com que as sociedades se reproduzem, definem o que pode ou não existir, o que pode
ou não ter existência social.
Tal definição vale também para o que definimos por "doença mental". Mas, neste caso,
não é difícil perceber que o "meio ambiente" do qual falamos é o meio social em que
organizamos nossos comportamentos, em que seguimos normas e realizamos valores.
O sofrimento pode, então, não dizer respeito apenas à consciência do doente em estar
diante de uma vida limitada, mas ao prejuízo e à inadaptação a situações socialmente
vistas como necessárias.
Nesses casos, o sofrimento aparece necessariamente como o objeto de uma patologia.
Neste sentido, nos perguntemos sobre a estratégia por trás dessa explosão de
categorias clínicas no campo psiquiátrico.
Ao serem decompostas, elas perderam não apenas seu caráter de síndromes que
tocariam toda a extensão do comportamento humano. Elas perderam sua história, ou
seja, a forma com que elas traziam em seu bojo a história das dificuldades de
socialização e individuação dos sujeitos concernidos.
A partir de então, nossas doenças serão doenças sem história, nossas vidas não serão
mais descritas em suas contradições e dificuldades de construção de vias singulares. Elas
serão analisadas a partir de variáveis específicas ligadas a humor, a atenção, a
capacidade de síntese, a afetividade adequada.