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LIMITES E POSSIBILIDADES DA
INTERFACE ENTRE CIÊNCIA E POLÍTICA1
Maria José Carneiro*; Edgar Lyra**; Teresa da Silva Rosa***; Laila Sandroni ****
Resumo
Palavras chave: ciência & política pública; evidência; gestores públicos, agricultura-
biodiversidade.
1
Artigo publicado em Ambiente e sociedade na Amazônia: uma abordagem interdiciplinar, Vieira,
I.C.G.; Toledo, P. M.; Santos Junior, R.A.O. (orgs.). Rio de Janeiro, Gramond, 2014
*
(mjtcarneiro@gmail.com)
**
(lyranetto@gmail.com)
***
(tsrosaprof@yahoo.com.br)
****
(lailasondroni@hotmail.com)
1
Abstract
Contemporary thinkers called incisive attention to the gap gradually dug between the
languages of science and politics. This gap becomes more apparent whenever science
and public policies are brought together with the purpose of informing and supporting
decision-making, by means of evidence resulting from academic research, in order to
broaden the range of choices opened to the policy makers. While in many other
countries such a bridge is institutionalized by means of creating tools and procedures so
as to facilitate access by policy makers to scientific knowledge, in Brazil very little has
been done to that end. As scientific production is neither centralized nor consensus-
driven, and considering the timeframe demanded by events around which political
processes take place, scientific consultancy requires, in order to avoid arbitrariness, the
stipulation of criteria by which relevant consultants and scientific papers are selected.
Such identification of criteria is not simple, ranging from the political-institutional
realm to possible epistemological consensus: the lack of such criteria, on the other hand,
can lead to complete randomness. These issues are discussed here in the light of a
critical reading of the evidence-based Policy approach, and of other possibilities for
building the interface between science and policy. The theoretical argumentation is
informed by research undertaken with governmental policy makers.
1. INTRODUÇÃO
Este uso do conhecimento científico nos remete à reflexão feita pela autora
quando afirmou, em seu muito conhecido Prólogo ao livro A Condição Humana, escrito
em 1958 – quando do lançamento do primeiro artefato humano ao espaço e do
recrudescimento das experiências atômicas – que, se os cientistas são “culpados” de
2
alguma coisa, é de habitar “um mundo em que o discurso (speech) perdeu seu poder”
(Arendt 1999, p.12). A autora chama atenção para a progressiva especialização das
linguagens nas quais a ciência busca legitimar suas teses (particularmente a sua
matematização), e para o fosso, assim aberto, entre essas linguagens científicas e o
discurso comum, através do qual ainda hoje fazemos – ou deveríamos fazer – política.
2
A cidade ideal imaginada por Bacon teria sua autoridade máxima na mão de três cientistas, os
“intérpretes da natureza” (interpreters of nature), (Bacon, 1979:270).
3
Além dos epistemólogos e da citada Hannah Arendt, inúmeros autores debruçaram-se e debruçam-se
sobre essas interfaces. Entre os já clássicos podemos citar: Max Weber (1864-1920), Martin Heidegger
3
A discussão de Arendt segue atual. Desde a publicação de A Condição Humana
assistimos à reedição de episódios de descompasso entre o universo técnico-científico e
o da tomada de decisão política, episódios ora encarnados na sobredeterminação da
política por fatores técnico-econômicos (em geral de cunho desenvolvimentista), ora em
tomadas de decisão arbitrárias informadas por interesses diversos, definidos por
completa desatenção ou por relativização das pesquisas científicas. Tais descompassos
verificam-se, mais recentemente e com especial frequência, na seara das políticas
ambientais.
(1889-1976), Michel Foucault (1926-1984), Jürgen Habermas (1926 - ), Pierre Bourdieu (1930-2002),
etc.
4
metodologia “baseada em evidências” foi disseminada para outras áreas4, tornando-se
um instrumento importante de governança de alguns países, passando a ser conhecida
como Evidence Based Policy (Política Baseada em Evidência). Diversos organismos
internacionais também aderiram a esse método, como o Banco Mundial, a Organização
Mundial da Saúde e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO). Especificamente no campo da governança ambiental internacional, vale a pena
mencionar o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o Clearing
House Mechanism (CHM) e a Plataforma Intergovernamental Ciência-Política sobre
Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES)5. Também a Unesco, em relatório
publicado em 2010 sobre o estado da arte das Ciências Sociais no Mundo, chama a
atenção para “a necessidade de mudanças no rumo da produção do conhecimento em
Ciências Sociais no sentido de acompanhar a demanda dos gestores públicos em
‘evidências transparentes e claras sobre o que funciona em determinados contextos, e
por que’, ao invés de o fazer em estudos ‘mais genéricos’” (UNESCO, 2010:317)
Por tudo isso, o presente artigo pretende contribuir com a análise da relação
entre ciência e política, tendo como tarefa primeira uma leitura crítica da abordagem da
4
Na área ambiental cabe citar o Centre for Evidence-Based Conservation, sediado na Bangor University,
País de Gales, que tem como objetivo realizar sistematizações bibliográficas e meta-análises na área (Ver
sítio do CEBC).
5
O IPCC funciona como um corpo científico internacional constituído para avaliar as mudanças
climáticas, oferecendo para isso uma visão científica do estado do conhecimento sobre elas, os potenciais
impactos ambientais e socioeconômicos, e fornecendo informações científicas rigorosas e bem
balanceadas para tomadores de decisão. O IPBES, criado recentemente como interface entre a
comunidade científica e os formuladores de políticas públicas, busca fortalecer a capacidade e o uso da
ciência na formulação das políticas. O CHM é parte da Convenção sobre Diversidade Biológica, cujos
principais objetivos incluem a implantação de uma rede operacional entre países membros e parceiros da
CDB e fornecer informações eficazes para facilitar a implementação do Plano Estratégico para a
Biodiversidade 2011-2020, estratégias nacionais de biodiversidade e planos de ação
(http://www.cbd.int/chm/; http://www.chm-cbd.net/).
5
Evidence Based Policy. Na sequência dos problemas levantados, virão naturalmente à
luz outras perspectivas para se construir essa ponte.
Cabe por último alertar que as reflexões e argumentos aqui desenvolvidos são
limitados ao escopo das pesquisas já mencionadas. Quaisquer generalizações devem ser
cautelosas.
6
Referimo-nos aqui às pesquisas “Desenvolvimento Sustentável” e agricultura familiar: antagonismos e
confluências nos campos dos saberes e das práticas (2007-2010) e A comunicação entre ciência e
políticas públicas: o uso da metodologia baseada em evidências na interface biodiversidade-agricultura
familiar, ambas coordenadas por Maria José Carneiro, sendo a primeira com financiamentos da ANR
(Agence National de Recherche, França), da FAPERJ e do CNPq, e a segunda financiada integralmente
pelo CNPq.
6
É praticamente impossível apresentar um retrato da maneira como os gestores
públicos brasileiros encarregados de formularem e implementarem políticas recorrem ao
conhecimento científico para subsidiarem suas decisões, mesmo que nosso universo
empírico seja limitado a temas relacionados à interface da agricultura familiar e a
conservação da biodiversidade. Isso porque a diversidade de práticas observadas deve-
se justamente à ausência de procedimentos institucionalizados para esse fim, ao
contrário do que é comum ocorrer em certos países da Europa, nos Estados Unidos, no
Canadá entre outros. Nesse contexto, tentaremos aqui descrever algumas práticas
encontradas, enfatizando que elas não estão igualmente presentes em todos os setores
dos órgãos públicos onde atuam os gestores entrevistados. No decorrer das duas
pesquisas referidas acima, entrevistamos gestores de órgãos ambientais nacionais,
estaduais e municipais além de deputados e stakeholders. Dessas entrevistas, deter-nos-
emos apenas nos relatos dos 34 gestores da esfera federal ouvidos no período de
setembro de 2012 a abril de 2013.
Há casos em que essa mobilização ocorre para legitimar uma decisão já tomada,
escolhendo-se, então, pesquisadores conhecidos e de confiança – cuja posição a respeito
8
do tema da consulta coincide com a decisão política. Esse conhecimento pessoal, que se
traduz em confiança, torna a relação pessoal o principal meio de se chegar ao
especialista. Prefere-se chamar um especialista ou um conjunto deles para ouvir sobre
determinado assunto que consultar relatórios de pesquisa muitas vezes encomendados
pelos próprios órgãos governamentais. Recorre-se ao antigo professor do curso de pós-
graduação ou à própria instituição onde esta se realizou, no caso de convênios, tanto
para realizar consultas avulsas quanto para encomendar estudos. Alguns gestores em
posição mais elevada na hierarquia da administração pública constituem suas próprias
redes de especialistas, que são acionados formalmente através de consultorias
remuneradas, ou mesmo informalmente, quando a relação pessoal permite. Por vezes
esse assessor está dentro do próprio aparelho do estado, como se fosse “a universidade
aqui dentro”, como definiu uma entrevistada. Contudo, em alguns casos, a falta de
planejamento da política a médio e a longo prazo pode transformar esse assessor num
coletor incessante de informações desconjuntadas, rapidamente obtidas através da
internet e transmitidas ao demandante sem que haja tempo para análises e buscas mais
criteriosas. O depoimento de um gestor responsável pelo setor de estudos de um dos
ministérios é ilustrativo:
É claro que outros fatores atuam na decisão política. Seria ingenuidade acreditar
que esta deva obedecer unicamente à racionalidade científica, ou que a ciência deva
desempenhar o papel de legitimadora ou conselheira da política. Contudo, os defensores
da EBP argumentam que cabe à ciência mostrar como as coisas funcionam, de maneira
a aumentar a eficácia ou facilitar a tomada de decisão, e não responder diretamente às
demandas da política.
Muitos obstáculos na construção dessa ponte são identificados por parte dos
gestores. Em síntese, três obstáculos são mais recorrentes:
9
• Tempo
• Diferenças epistemológicas
Ainda está por ser feita uma pesquisa para avaliar o impacto de pesquisas
encomendadas por organismos governamentais sobre as ações dos policymakers. Sabe-
10
se que boa parte delas não chega ao conhecimento dos gestores, e algumas não são
amplamente divulgadas até mesmo no âmbito do próprio órgão que as contratou. Não só
por isso, mas também pelas dificuldades apontadas acima, seus resultados raramente são
utilizados pelos gestores, segundo afirmaram eles próprios e os pesquisadores
entrevistados. Além da falta de hábito de se buscarem evidências para consubstanciar
decisões sobre as políticas, reconhece-se uma grande dificuldade em adaptar o
conhecimento produzido por essas pesquisas à questão em pauta. De modo geral, os
gestores que preparam as informações para os tomadores de decisão não são capacitados
para traduzir o discurso científico nos termos da política; por isso esperam que a ciência
responda diretamente às suas demandas. Como isso não acontece, há uma visão
pessimista da capacidade com que a política pode se beneficiar da ciência, o que causa
ambiguidade na percepção dos gestores -- principalmente entre os que ocupam os níveis
mais baixos na hierarquia -- sobre a relação entre ciência e política.
11
critérios técnico-científicos por parte dos policymakers pode gerar problemas graves.7
Torna-se assim imperativo discutir as possibilidades de reversão desse quadro.
Cabe, assim, entrar no mérito da noção de evidência posta em destaque por essa
metodologia, sobretudo visando superar (ou ratificar) a suspeita de que ela possa não ser
mais que a retomada impensada de um projeto que, pelo menos desde o já referido René
Descartes, passando pelos positivismos e neopositivismos dos séculos XIX e XX, ronda
a comunidade científica. Sobretudo depois das querelas epistemológicas do século
passado, envolvendo por exemplo o Círculo de Viena (1929)9 e nomes de peso como os
de Karl Popper (1902-1994), Imre Lakatos (1922-1974), Thomas Kuhn (1922-1996) e
Paul Feyerabend (1924-1994), resulta aberta a questão do método capaz de legitimação
positiva e unificada dos vários conhecimentos ditos científicos. É preciso,
incontornavelmente, perguntar pelo novo tipo de legitimação do conhecimento a que
7
Um exemplo pontual é o da demarcação de algumas unidades de conservação no Estado do Rio de
Janeiro, na qual a escala da observação (um único sobrevoo) e a falta de recursos a estudos mais
detalhados sobre a área resultaram no agravamento da vulnerabilidade da população local e na detonação
de conflitos com o órgão governamental responsável.
8
Ver, por exemplo, STEWART, 2009.
9
Ver HAHN, et al. 2013.
12
aspira a evidence-based science, examinando criticamente a partir daí as bases dessa
aspiração.
Esse é de fato um ponto importante. Ainda que o escopo deste artigo não
permita uma abordagem exaustiva da questão, é possível todavia constatar que a
maioria dos textos disponíveis sobre o referido ressurgimento da noção de evidência
versa sobre a possível relação entre discursos científicos “baseados em evidências” e
seu modo de informar as práticas a eles ligadas (de início, práticas médicas), além da
possível transposição dessa metodologia para o campo da elaboração de políticas
públicas. É verdade que muitos discutem mais pontualmente a aplicabilidade da
evidence-based metodology a âmbitos outros que o da medicina, mas o fato é que
poucos entram no mérito da sua fundamentação epistemológica.
14
pratice as informed by but not adequately based on evidence” (op.cit.:178, grifos
nossos). Distinguem, assim, EBP (evidence-based practice) de EIP (evidence-informed
pratice), concentrando-se a discussão no possível grau de determinação dos resultados
teóricos sobre os desdobramentos práticos. A posição dos autores está adequadamente
descrita já no resumo do artigo:
“Under the EIP model, there is no need for the five-steps procedure11 of the
EBP model, but only that practitioners will become knowledgeable of a wide
rang of sources – empirical studies, case studies and clinical insights – and use
them in creative ways throughout the intervention process”. (op.cit:1176).
Essa flexibilização entre teoria e prática feita pelos autores traz, como se vê, de
volta à cena a pergunta sobre que tipo de nova contribuição os discursos voltados para
“evidências” realmente trariam para abordar as questões que abrem estas notas. Ainda
que no âmbito médico seja possível pensá-los como exortação a um maior rigor ou
busca dirigida de esgotamento de fontes teóricas para a “informação” dos respectivos
procedimentos clínicos, a questão permanece demasiado aberta no que envolve a
extrapolação para a “informação” de políticas públicas a partir das prescrições teórico-
científicas. Mais exatamente, na medida em que, a partir da crítica à noção de evidência
recusa-se qualquer univocidade prescritiva das teorias às práticas, advogando-se espaço
para coisas como “latitude of choice” e para a apropriação dos resultados teóricos “in
11
Uma descrição detalhada dos referidos “cinco passos” encontra-se, em Bloom & Orme (2009).
15
creative ways”, recoloca-se o problema da informação, no presente caso, de políticas
públicas.
Chega-se a sugerir, por exemplo, que a EIP deveria pautar-se por uma
abordagem “centrada no cliente” (em nosso caso, no beneficiário da política) e não
primeira ou estritamente na busca de evidências. Como enfatizam Nevo and Slonim-
Nevo em suas conclusões:
Não se pode, enfim, perder de vista que esse problema é estreitamente ligado às
origens das práticas baseadas em evidências, ou seja, no âmbito das práticas médicas.
Lá, a busca por evidências pode e deve pautar-se pelas necessidades do paciente em
compartilhar com o médico as decisões sobre o tratamento. O deslocamento desse
procedimento para o âmbito de uma “clientela” político-social está, por tudo o que foi
dito até aqui, longe de ser simples.
Essa reação, ainda que atrelada a certa representação do que seja ciência, nos leva
a refletir sobre os limites de construção de uma ponte entre ciência e política e a
reafirmar a propriedade de nossas questões. De que maneira poderia a ciência contribuir
para aumentar a eficácia da gestão pública em relação a seus fins? Para quem fala a
ciência para além das fronteiras de seus próprios pares? Caberia à ciência oferecer
respostas à formulação de políticas públicas, ou simplesmente oferecer matéria para
17
reflexão dos tomadores de decisão? Como vimos, a EBP e a EIP são tentativas de
responder a essas questões, mas deixam em aberto uma série de outras. Vale a pena,
pois, examinar ainda algumas abordagens alternativas que se esforçam para superar essa
dualidade, apontando para a necessidade de se construir um novo tipo de ciência, ou
uma nova percepção da ciência e não mais guiada pelos princípios que fundaram a
ciência moderna.
Uma das mais conhecidas no Brasil é a de Bruno Latour, que argumenta a favor
da inseparabilidade entre sociedade (ou política) e ciência na sociedade contemporânea,
já que ambas seriam “co-fundadas”. A ciência passaria a ser entendida como
internalizada na sociedade, produzindo híbridos que contenham, em seus produtos não-
humanos, elementos da natureza e da sociedade (Latour 1994). Mas, na crítica de
Nowotny, Scoot & Gibbons (2001), a abordagem latouriana continua vendo as coisas a
partir da perspectiva dominante da ciência. O ‘social’ teria sido “absorvido pelo
‘científico’”, permanecendo a ciência em foco de modo que a transformação da
sociedade é vista como “predominantly shaped by scientific and technical change. In
other words, the socialization of science has been contingent on the scientification of
society” (p. 3) Distintamente, esses autores propõem uma abordagem mais
contextualizada da ciência, onde ambas (ciência e sociedade) estejam integradas num
processo de “co-evolução” permanente. Na mesma direção, encontramos a perspectiva
da “co-produção” entre ciência e sociedade proposta por Sheila Jasanoff (2004), para
quem a ciência não pode ser produzida à revelia do que ocorre na sociedade, sendo
importante considerar que o que ela produz interfere intimamente na sociedade, através
da própria construção desta. Jasanoff, na verdade, já havia esclarecido em seu livro The
fifth branch: science advisers as policymakers (1994), ser contrária tanto à perspectiva
“tecnocrática” quanto à “democrática”, porque nenhuma das duas “takes adequate
account of the nature of science or of politics” (op.cit.: vii).
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demonstraram a necessidade da incorporação da incerteza (inclusive a incerteza ética),
da prudência e da precaução na construção do conhecimento. Seria necessário, portanto,
estabelecer uma via de expressão e comunicação à sociedade das incertezas que
permeiam o campo científico, bem como construir estratégias de resolução de
problemas por dentro e por fora da comunidade científica, a partir de uma “comunidade
de pares estendida” onde novos atores (e não apenas os cientistas) participariam dos
debates políticos. Esses autores chamam a atenção para a centralidade do risco nas
sociedades contemporâneas e deslocam a ciência para o mesmo lugar de tantas outras
vozes a serem ouvidas nos processos decisórios, ao contrário do que propõe a Evidence-
Based Policy, baseada na primazia da ciência e dos cientistas.
Mais uma vez, porém -- mesmo quando há uma relativização da autoridade final
do conhecimento científico através de uma crítica baseada na percepção construtivista
do conhecimento, de modo a tratá-lo como apenas uma interpretação dialogando com
outras no debate político --, autores como os próprios Funtowicz e Ravetz enfatizam a
importância da ciência na alimentação desse debate. Os cientistas seriam
particularmente importantes na construção de uma massa crítica de conhecimento sobre
uma determinada questão e para evitar que prevaleça um mero embate de opiniões.
20
5. PARA QUEM FALA A CIÊNCIA, AFINAL? REFLEXÕES INCONCLUSAS.
Coerente com a proposta inicial deste artigo, enveredamos por uma avaliação
crítica da evidence-based policy não só a partir da discussão dos seus fundamentos
epistemológicos, como da tentativa de operacionalizá-la. Buscamos identificar como se
dá o uso do conhecimento científico por alguns gestores públicos de três Ministérios e
chegamos aos difíceis obstáculos que se interpõem nos ensaios de construção de uma
ponte entre essas esferas. Percebemos que a proposta de uma utilização racional de
assertivas científicas como subsídio na tomada de decisão do gestor público se sustenta
em uma visão de ciência assentada em uma hierarquia de conhecimentos e de
procedimentos que acabam por se tornar inoperantes do ponto de vista da gestão
pública.
21
Ainda outras abordagens encaminham na direção da necessidade de construção
de uma nova ciência -- ou uma nova concepção de ciência, mais integrada ou “fundida”
à sociedade de maneira que, no mundo contemporâneo, não se possa mais falar de uma
sem incluir a outra.
1. Para avançarmos num diálogo que possa resultar em uma contribuição mais
pertinente da ciência para a política (policy), é primordial estarmos abertos a ouvir
várias vozes: as dos cientistas, as da sociedade com seus diferentes saberes,
necessidades e desejos, e as dos gestores públicos.
4. Para além dos contornos gerais capazes de organizar a condução das referidas
interações, reconhecemos ainda um derradeiro ponto a ser mais profundamente
explorado acerca das possíveis relações entre ciência e política no Brasil. É que a
política brasileira possui certa especificidade quanto ao seu grau de apego à
racionalidade científica, às propostas de tecnocratização e racionalização dos processos
políticos, sobretudo no que concerne à formulação de políticas públicas. Portanto, um
questionamento sobre por que estas relações entre políticas públicas e conhecimento
científico são no Brasil mais fracas do que nos citados países da Europa, não pode se
ater apenas a questões acerca de dificuldades práticas ou de complicações
epistemológicas, como se a ciência e a política fossem levadas a efeito da mesma
maneira em todos os países.
14
Tais Conselhos integram e articulam, diferentemente, membros do governo e da sociedade civil
(incluindo em alguns casos, representantes de sociedades científicas) com o objetivo de propor diretrizes
para a atuação governamental. O CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e o CONDRAF
(Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável) são exemplos. Um estudo aprofundado sobre
o desempenho desses Conselhos sob a ótica das questões propostas no presente capítulo ainda está por ser
feito.
23
O fato é que a política tropicalizada não aceita facilmente que a ciência se
apresente a priori como instrumento legítimo nos processos de tomada de decisão15.
Apesar de reconhecerem a importância do conhecimento científico, os gestores
simplesmente não o acessam como fonte primária ou mesmo auxiliar para sustentar as
tomadas de decisão; a ciência é vista como fundamental, mas na prática está sempre em
posição satélite no momento das decisões. Mas é claro que, com essa observação e no
âmbito da presente discussão, não vislumbramos que a política deva se submeter
unilateralmente à racionalidade científica. Longe disso.
Resta, ainda assim, questionar de onde vem esta relativa recusa à racionalização
do processo de tomada de decisões, tema que merece futuras investigações: será a
confusão entre público e privado baseada na figura dos “donos do poder” a chave para
compreensão desta particularidade? Seria a primazia, quem sabe, do “homem cordial”
na política, a responsável pela preferência por pessoalizar relações que deveriam ser
institucionais? Ou estaria o centro deste nó na característica antropofagia brasileira,
numa espécie de filtragem das influências culturais distantes do racionalismo ocidental?
BIBLIOGRAFIA
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25
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UNESCO. World Social Science Report: Knowledge Divides. Paris: United Nations
Educational, Scientific and Cultural Organization, 2010.
Sobre os autores:
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interdisciplinaridade das ciências humanas. Possui particular interesse e na dimensão
epistemológica das ciências e nas relações entre ciência e política pública. Pesquisadora
integrante do Grupo de Pesquisa Ciência, Natureza, Informação e Saberes (CINAIS).
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