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‘A énfase dada neste capitulo a educagdo popular e suas possibilidades de didlogo com a APS esta fundamentada no crescente interesse dos profissionais de satide por esta tem: tica que se evidencia na participagdo crescente em encon- {ros, oficinas e minicursos com enfoque na educaco popular durante alguns dos principais eventos da Satide Coletiva no Brasil. Um exemplo € a participagio ativa dos profissionais nas atividades das Tendas Paulo Freire, organizadas por co- letivos que atuam em defesa da educagao popular, como a Rede de Educacao Popular em Saiide, a Articulagao Nacio- nal de Extenso Popular em Satide e a Articulagdo Nacional de Movimentos e Priticas de Educacio Popular em Saide ‘em parceria com a Secretaria de Gestio Estratégica ¢ Partici- pativa do Ministério da Sade. Esses coletivos vém realizando, desde 2003, movimen- tos de aproximagdo com esta secretaria, resultando em uma proposta de institucionalizagao dessas préticas que esté em vias de efetivagdo com a construgao da Politica Nacional de Educagdo Popular em Satide (PNEPS SUS), a partir da criagdo do Comité Nacional de Educagao Popular em Satide (CNEPS). A constituigio dessa politica traz como um dos principais desafios a formagao dos profissionais da APS vin- culados & ESF ¢ aos Nucleos de Apoio & Estratégia Satide da Familia para possibilitar didlogos efetivos entre estes as cexperiéncias de educago popular, de forma a reconhecé-las € inclui-las como agdes de promogao e cuidado a satide. Referéncias 1. Andrade LOM, Barreto ICHC, Bezerra RC. atengio priméria a satide e estratégia de satde da familia. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond M Jr, Carvalho YM, or- ‘ganizadores, Tratado de satide coletiva, Rio de Janeiro: Huci- tec; 2006. p. 783-863. 2. Smeke ELM, Oliveira NLS. 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Logo, ¢ fa cil deduzir que 0 jovem médico, queira ou ndo, despenderd a ‘maior parte do tempo com o atendimento ambulatorial Surpreendentemente, essa verdade nao foi assimilada de modo adequado, de sorte que, ndo obstante a flagrante desproporgao, 0 ensino médico ainda tem como estandarte 0 aprendizado em hospital-escola, fie! a0 mito de que as doen- «as raras, as patologias ex6ticas merecem inteira prioridade. ‘As consequéncias nao se fazem tardar: estudantes ou jovens, médicos, familiarizados com o doente horizontal mas geral- mente estranhos ao paciente vertical, sentem-se perplexos, desambientados, impotentes quando de seus primeiros con- tatos com 0 mundo novo do ambulatério. Isso influi de forma Conduta ambulatoral segundo o tipo de queva: precisio do diagndsticoe exame fisico? EL TL ese 4 2» ashetineo Dor de garganta Dorabioninal Mancha esidase eras “Dard Dortokiea Dente cba Deraiear Dstition ogo Dsttbiono euro “Distrbonaespiacdo Asta oF APE. v B 0 tem nada de alarmante, pois © método preconizado inelui ‘como rotina algumas medidas de precaugio. ADEMORA PERMITIDA ‘Uma dessas medidas & assegurar a0 usuario, em caso de necessidade, acesso facil a0 seu médico. Com essa garantia, © profissional ganha a liberdade para uma conduta sébria, de expectativa, sem aquele clima de atropelo que caracteriza 0 atendimento médico de “alta rotatividade” (as urgéncias cos- tumam ser raras, de resto nio sio dificeis de reconhecer, a elas reservando-se cuidados especiais). No interesse do servi- {g0.e, sem dvida, do préprio paciente, o médico poderd agir ‘em pressa ou precipitagdo, pois sua conduta esté baseada no acompanhamento da gradual evolugdo do quadro clinico (sem aque isso se tore um pretexto para a displicéncia, lgico). Entre as caracteristicas da demanda ambulatorial, foi ‘mencionada a remissdo espontinea, observada em 80 a 90% das situagdes (um fendmeno, alias, que a0 longo da hist6- ria da medicina foi responsdvel pela fama de uma legiao de ccharlatdes e pela popularidade de toda sorte de manipulagdes terapéuticas). Ao usar o tempo como instrumento de traba- tho, o profissional ganha um poderoso aliado, que muito Ihe simplifica 0 trabalho, podendo mostrar-se indispensdvel.. Existem alguns requisitos, € légico: que 0 médico esteja con- vencido de nao se encontrar ante uma urgéncia, e que tenha ‘uma ideia formada sobre o tempo que Ihe € permitido esperar sem risco para o paciente. Usando essa estratégia, a demora permitida, 0 dilema do ambulat6rio, recém-mencionado, per- de muito de seu constrangimento. G.A.L., 32 anos, mulher, prendas domésticas. Esta senhora comparece diante do médico queixando-se de uma sibita rouquidao, quase uma afonia, surgida aquela manha, ao levantar, Nao hé antecedentes dignos de nota, nem febre ou qualquer outro sintoma. Uma vez que 0 médico nao tem recursos para uma larin- ‘goscopia indireta (e mesmo que os tivesse, ainda deveria providenciar o agendamento de uma segunda consulta, dessa vez em jejum), seu primeiro impulso € o de enviar a paciente a um especialista. Porém, jé que tanto falam em resolutividade, serd que nao existe outra opgio? ‘Como se sabe, a rouquidao, a afonia, é um problema bas- tante comum, geralmente benigno. Por outro lado, tam- bbém se sabe que a lista do diagnéstico diferencial inclui o ‘dincer de laringe. a blastomicose, a tuberculose de laringe € algumas outras patologias. Uma vez que sio infrequen- tes, e como o inicio stibito dos sintomas nao faz parte de seu quadro clinico, a laringite aguda, doenga autolimita- da, tem tudo a seu favor. Ainda assim, o médico nio se dispde a correr 0 mfnimo risco e, adotando a politica da demora permitida, agenda uma consulta de retorno. Seu raciocinio segue o seguinte caminho: — Eurgente? - Nao é, -Entio, ~ Sim, dé. para esperar’? = Quanto tempo poderei esperar? Basicamente, €nisso que consiste a demora permitida. Sua duragio é varidvel; cada situagdo precisa ser analisada a parte No caso presente — uma muito provavel laringite aguda -, uma demora de sete dias é razodvel, oferecendo oportunidade para ‘uma remissio espontinea; por outro lado, se no houver remis- sfo, ndo haverd prejutzos maiores para o paciente (nenhuma das patologias que fazem parte do diagnéstico diferencial teri evoluido substancialmente no decorrer de uma semana), Antes de se despedir da paciente, 0 médico the receita repouso de voz, complementado, mais a titulo de placebo, por algumas inalagées. ‘Trés dias depois © médico veio a saber, sem qualquer surpresa, que G.A.L. recuperara 0 pleno uso das cordas vocais. Reparem a economia resultante, 0s agravos fisicos € psiquicos poupados a 99% dos casos de laringite, que se “curam” sem que seja preciso complicar-thes a vida. Se- methante metodologia, um atendimento simplificado mas responsdvel, assegura a boa resolutividade dos servigos de satide, permitindo-Ihes manter um padrao de qualidade impossfvel sob qualquer outro regime de trabalho. Em vez de pulverizar o j& escasso orgamento de sade, consumin- do seus recursos de forma indiscriminada ¢ irracional com tum grande nimero de pacientes, e atendé-los mal, agora 0 precioso dinheiro estard a servigo daqueles que, estes sim, requerem medidas especiais (no caso de uma afonia que no responde favoravelmente, uma eventual laringoscopia direta, ‘uma tomografia ou mesmo uma biépsia). E natural que a mesma estratégin scja adotada em ou- tras situagdes. Contudo, hé ocasives, é verdade que raras, nas quais, ndo obstante as estatisticas otimistas, seria uma teme- ridade apostar na remissao espontanea. Em tais casos ~ febre e vOmitos em uma crianga de meses, por exemplo — nenhuma demora é permitida. “Muitos anos atrds, em volta de uma mesa-redonda, trava~ ‘mos um inflamado debate com um colega gastrenterologista, que se mostrou inflexivel em exigir que todo paciente com queimacdo epigéstrica, mesmo aqueles que diziam sofrer de algo assim como uma “dispepsia’”. teria de ser submetido a ‘uma gastroscopia, por via de diividas, claro. N6s, por outro lado, advogdvamos que, na auséncia de informagées mais especificas, se comecasse pelo tratamento empirico, comple- tado pela frequente observagio do paciente. Mesmo hoje, de- pois de muita pesquisa e da descoberta do Helicobacter. uma conduta conservadora continua sendo a primeira escolha. ‘A demora permitida ndo significa displicéncia nem pri- marismo (uma “medicina de pobre”, como se costuma di- zet): AS vezes € a tinica solugao para uma situagdo que parece nao ter saida. Um bom exemplo € a tao corriqueira tombal- gia, extremamente comum em qualquer ambulatério (talvez a terceira demanda em ordem de frequéncia). dada a grande dificuldade de esclarecer o diagnéstico anatémico, mesmo apés emprego dos exames complementares de “terceira ge- ragio”. Daf que os protocolos mais modernos. adotados aps longa discussdo e alguns estudos multicéntricos, recomen- dam 0 tratamento de suporte, completado por uma espera no inferior a seis semanas. Por outro lado, existem doengas que evoluem por surtos (asma, enxaqueca, epilepsia e outras), sendo a remissao es- Pontinea nesses casos apenas iluséria. Porém, isso nlo impor- ta: contanto que 0 sistema de satide permita a atencdo conti- ‘nuada dos pacientes, uma breve demora s6 contribuird para a melhor definigao do quadro, inclusive permitindo firmar um diagnéstico ainda em suspenso. De resto, o atual consenso re- comenda que pessoas com uma pressio arterial considerada elevada, mas sem sinais evidentes de lesdo de 6rgio-alvo, se- jam acompanhadas durante algumas semanas ou mesmo me- ses, até chegar a uma melhor compreensio de sua hipertensio. G.0., 52 anos, homem, comerciante. Paciente tranquilo, informando bem, em bom estado geral. Conta que nos d- timos quatro meses passou por dois episédios de “reuma- tismo agudo”, 0 primeiro afetando um dos cotovelos e, em seguida, duas semanas atrs, 0 joelho esquerdo, Em ambas fc ‘concomitantemente, a regia das articulagdes tomou-se edemaciada, corada e quente. Nao obstante a automedicagao com analgésicos, 0s epis6- ios s6 terminaram decorrida uma semana, mais ou menos. exame fisico nada revelou de anormal. Apesar da in- isténcia do académico que acompanhava seu professor que pretendia conseguir uma radiografia das articula- Ges e um “perfil bioquimico” -, o paciente foi instruido € voltar por ocasiao do inicio de um novo episédio. G.O. retornou uns 20 dias depois, as voltas com um terceiro surto reumstico, confirmando a suspeita clinica anterior. No mesmo dia foi iniciado o tratamento de sua gota, no- vamente desapontando 0 estudante, que pretendia pri- ‘meiro esperar por uma dosagem de écido tirico. Para finalizar, vamos pdr as cartas na mesa e confessar que, ‘mesmo decorridas algumas décadas de exercicio da medicina, nio é infrequente chegarmos & conclusio de que ainda somos, principiantes e necessitamos de informagio atualizada, que € preciso voltar aos estudos, seja em livros ou portais da internet, seja por meio de uma conversa com um colega especialista, Sendo esse 0 caso, o adiamento de uma tomada de decisao para o dia seguinte, sem qualquer prejuizo para o doente, esta plena- ‘mente justficado, uma demora mais do que permitida. 0 ACHADO CASUAL Como o leitor deve ter percebido, até aqui nao se fez qualquer mengdo a0 exame clinico, preferindo adié-lo para ‘um momento oportuno, quando aproveitariamos para fa- Tar, em particular, do exame fisico. Ao contrério da opiniao vigente, os sinais clinicos por ele descobertos trazem uma contribuigio bastante inferior a da anamnese; esta, segundo querem alguns autores, por si s6 responde por 80 ou mesmo 85% dos acertos diagnésticos. 7 ae | i be ‘Anos atrés, em um ambulatério universitério em Londs na ~ PR cuja clientela era composta principalmente port balhadores rurais, entretivemo-nos durante uma semana em listar os achados semiolégicos obtidos mediante um exame fisico razoavelmente completo, finalizando por computar a média de 4,5 “patologias” per capita. Boa parte desses acha- dos era sequela de uma demanda longamente reprimida por tum sistema de satide omisso: cataratas, hérnias, varicoceles, roturas de perineo, etc.; 0 restante consistia em sinais clini cos de importincia discutivel: adenopatias antigas, varizes, um discreto pterigio, mé oclusio dentéria, um figado ou bago apenas palpavel, e assim por diante. 0 objetivo maior do exame fisico € 0 conhecimento da causatidade; infelizmente, esse alvo nem sempre € aleanga- do; em vez disso, vemo-nos as voltas com a casualidade, 01 seja, tantos so 0s sinais revelados ao exame sistemético do paciente que a maioria inevitavelmente tera que ser classifi: cada entre 0s achados casuais. Isso pode ser perigoso: at pelado pela avalanche de dados clinicos, € muito comum qut © iniciante, desnorteado, tome o atalho errado, por excessiva tengo a um ou outro sinal ou sintoma que, na verdade, $0 de todo inocentes. Nao hé quem jamais tenha visto criang2s ue, em razio de um sopro sist6lico suave sem maiores conse uéncias, tenham sido afastadas das aulas de educagio ise. excluidas de uma vida normal, para o resto da vida conden das a um papel de quase-invAlidas. Os exemplos so muitos Um dos mais grotescos, de consequéncias dramaticas foi ° de um adolescente com osteomielite de femur em fase agud- ue, por apresentar ginecomastia discreta, por iniciativa 4° residente, perambulou trés semanas pelos endocrinologist para enfim ser submetido a uma dréstica cirurgia 6sse2- Antes de se aventurar a identficar as “anomalias” de ¥® ‘exame fisico, € preciso ter uma ideia precisa a respeito do" mal € do anormal. Neste sentido, os conceitos tém se moti ado grandemente. Um bom exemplo é 0 do faroso ¢sP0" de calcaneo (ostesfito), que os estudantes da minha gers?” aprendiam ser uma patologia a ser enfrentada com ee» mas que hoje, depois de verifieado que o identico ose!” esté presente em pessoas sem dores no membro inferiot reduzido a condigao de um achado casual, assim como °°" ‘com 0 lendairio desvio de septo nasal, objeto, em seu apogeu, de um oceano de cirurgias corretivas. Outro exemplo, este bas- tante atual, é 0 do prolapso da vilvula mitral, uma questo que, ‘embora ainda sem um consenso, € igualmente um sério candi- dato a0 titulo de achado casual (0s exemplos sio muitos). Visando contornar esse problema, sempre demos prefe- réncia ao exame fisico de cardter seletivo, direcionado con- forme as necessidades do paciente. Se este se queixar de uma dor no cotovelo, € por af que se iniciaré o exame; se nada for constatado, se nenhuma das manobras prescritas resultar positiva, entdo 0 exame poderd progredir para o ombro (por- ventura trata-se de uma dor referida?), 0 t6rax (a sindrome brago-pulmao, tio rara?) e dat para diante, Na pratica, nenhum profissional encontra tempo ou di posigao para um exame “completo”; o préprio professor, em sua clinica privada, é duvidoso que o faga. Entio, por que continuar insistindo em um modelo ultrapassado? (Alias, conforme mostra a ABELA12:, também Morell nao faz segre- do de sua preferéncia). Hé quem pense que determinados grupos etérios ou al- ‘guns outros grupos em risco poderiam tirar proveito daqui- Jo que se chama um “exame geral”, uma revisio de saiide, tum check-up. Pode até ser verdade, mas € preciso manter em ‘mente que a partir deste momento estaremos engajados com ‘a medicina preventiva, uma especialidade inteiramente res- peitével, com técnicas e linguagem proprias, uma eventual promessa para um futuro melhor, mas que nada tem a ver com as necessidades presentes deste ou daquele paciente. Confundir demandas presentes com possibilidades futuras nao pode dar certo. O proprio respeito pelo ser humano exige {que 0 atendimento da demanda expressa do doente seja pri ritério, & medicina preventiva cabendo um papel secundétio. Sendo, é fécil acontecer 0 que aconteceu com este paciente: HLR,, 54 anos, homem, relojoeiro. O paciente queixa- -se de dor lombossacral que h4 muitos anos o importu- na, Como se intensifica a0 longo do dia e torna-se mais, banda nos fins de semana, nao hesita em culpar a posi- io imposta pelo trabalho. “Fico o dia todo em minha bancada, mexendo com relégios. Agachado em cima do banguinho, curvado para a frente, senio nfo enxergo 0 que estou fazendo. Chega o fim do dia, mal consigo me Jevantar; chegar em casa é um sacrificio.” médico fé-lo ficar em pé, apalpou-Ihe a musculatura paravertebral, depois tirou da maleta o seu esfigmoma- németro, constatou uma pressdo arterial de 16,5 por 10. Sentou-se, comegou a escrever: um diurético, seguido por um betabloqueador. Acrescentou algumas recomen- dagdes com respeito a0 peso, 0 regime alimentar, a ne- cessidade de exercicio. E deu por encerrada a sua missio Nao teria sido melhor comegar com a lombalgia, o ver- dadeiro motivo da consulta, deixando a hipertensdo - desde 4que confirmada por repetidas leituras! — para outra ocasi Niveis tensionais elevados ainda nao indicam a presenga de tuma doenga, no maximo (j4 que 90% dos hipertensos vistos ‘no ambulat6rio so assintomiticos) um fatar de risco, algo ‘que pertence ao terreno da medicina preventiva, Em outras palavras, no contexto da consulta, o profissio- nal deu mais atengo a um achado casual do que ao préprio paciente. Infelizmente, esse tipo de atuaglo jf se tornou pra xe, um diagnéstico precipitado de hipertensio arterial sendo atualmente a causa mais comum de erros e desacertos. Problema idéntico ocorre com relago aos exames com- plementares, sendo 0 exame parasitolégico de fezes 0 res- ponsével por grande parte dos erros de conduta (isso porque, ‘4 exemplo da hipertensdo arterial, as verminoses se destacam pela elevada prevaléncia). Mas, salvo forte prova em contri- rio (isto é, a suspeita de uma estrongiloidiase ou amebiase, ue possuem um quadro clinico mais ou menos caracteris- tico), estamos convictos de que 0 exame parasitolégico de fezes é sempre o tiltimo a ser pedido, dada a alta prevaléncia das parasitoses em nosso meio, Quem j& no teve conhec mento de pessoas com doencas graves do trato intestinal mas 4que, por apresentarem alguma banal helmintose ou protoz00- se, perderam preciosas semanas até que alguém percebesse {que a causa de seus sintomas era outra? Foi também em Londrina que tentamos estudar a cor- relagdo entre as parasitoses intestinais e o tipo de demanda apresentado pelo paciente (TAB81A 122). Mas que surpresa: os pacientes com queixas reuméticas eram os mais infestados, sendo que no grupo com uma sintomatologia digestiva a pre- valéncia era bem menor! Ainda com relagao & proliferaco dos exames comple- ‘mentares, embora ocasionalmente assumam um papel deci- sivo, com mais frequéncia seu efeito € o de aumentar as certezas: quanto mais se procura, tanto mais se acha, seja nos ‘exames de rotina (tao comuns nas enfermarias, embora uma prética desacreditada), seja no rastreamento das doengas em nivel de populagao, sem esquecer uma série de ficges cien- tificas, como as “disritmias” da infincia ou da adolescéncia, ‘uma patologia de triste meméria que deveu sua existéncia & popularidade do eletroencefalograma (EEG). ‘A répida expansio da tecnologia médica de segunda ou terceira geragdo, a ultrassonografia, a tomografia, a resson: cia magnética, entre outras, ampliou o espectro das “docn- gas" ou “anormalidades” que, em sua auséncia, jamais seriam descobertas. Nesse sentido, os célculos biliares ou urinérios “silenciosos”. bem como uma legidio de malformagdes anat6- -as sem maior significado clinico, tomnam-se pretexto para intervengées cintirgicas inteiramente desnecessérias. OS EXAMES COMPLEMENTARES “A medicina é a ciéncia da incerteza e arte da proba bilidade.” William Oster (hé quase um século) 0 preenchimento dos pedidos de exame faz parte do ce ‘quase obrigatério de uma consulta, pois estamos ha- bituados a encarar os métodos e procedimentos que ano apes de exames negatvos: 8% de exames com: is ‘Schistsama manson ‘Hymenolepisnona Taeniasp. ‘Srongylide irda lamba Entamoeba soya Nimero de parasitasporexame Neos de exames Bl~esouunecas BEl-ee seen ces ano, em niimero crescente, sdo oferecidos pelos laboratérios ou institutos de imagem como a garantia de um diagndstico seguro, de uma conduta terapéutica bem-sucedida (tal glori- ficagdo ¢ imerecida). ‘A experiéncia demonstrou que um eficiente ambulatério. geral se satisfaz com 30 a 40 exames complementares por 100 consultas, dos quais por volta de um quarto so exames de imagens. Esta cifra coincide com a melhor prética do ex- terior. (Enquanto isso, o SUS é alvo da indignacao geral por estipular um teto de $5 ou 60 exames por 100, julgado insufi- . Mas esse teto, diga-se, é uma imposicdo formal, pois ago desses exames depende menos do tipo da deman- da do que do “estilo de vida” adotado pela unidade de satide. ‘Algumas so extremamente imprudentes com os recursos piblicos, a exemplo daquele ambulat6rio de hospital-escola, que alcangou o recorde de 245 exames por 100.) No geral, os exames complementares trazem uma con- tribuigo apenas modesta, conforme mostra a TABELAT23, que TABELA 12.2 Resultados da coprscopa segundo a queiva predominate (Londra, pacientes maiores de 18 2005) v7 B 0 2 B «6 B 0 au 0 ° 2 + 9 7 o 9 2 . 9 0 9 0 s w 9 “ 4 v 0 Osis os an ole eae 2 ee Perr - 6 uM 6 oferece uma estimativa da importancia relativa da anamnese, do exame fisico e dos exames complementares na finalza- ‘go do diagnéstico.” Como esses dados tiveram sua origem em uma clinica de especialistas, usada como referéncia pelo servigo de satide do Reino Unido, os resultados so particu- larmente surpreendentes. Constata-se, em primeiro lugar, que os exames de rotina se rmostraram pouco siteis. Concomitantemente, vé-se que o tri cional exame clinico, mesmo em um ambulat6rio de especial dades, demonstrou ser de importincia decisiva, Por exemplo, € digno de nota que 91% dos diagndsticos do cardiologist st deveram & anamnese e ao exame fisico, sobretudo a primeira Os atendimentos em endocrinologia so um exemplo & Parte; como eles nao incluem os casos corriqueiros de diabe- tes, doenga que no Reino Unido fica por conta do generalist. a0 especialista so enviadas as patologias mais complicadss. muitas das quais exigem dosagens hormonais. Uma segu™ da exceco € a gastrenterologia, em que a anamnese cost ‘TABELA 12.3 -> Valor diagnstio da anamnese, do exame fico e dos exames complementares Gasritestnal Respatio a ¥ 2 0 “ Wino od aes Ss % Micelnea 8 cb ae a Tous oa 6 ” 5 aw “teogbin league wlcdae deeming enecomu eu, uel Sema, etapa ergata detoan feo: Sane! ‘ma ser pouco especifica e o exame tisico pouco sensivel, 0 diagndstico dependendo, em grande parte, dos exames “es- peciais”. (Se a soma das colunas ndo completa os 100%, isso provavelmente deve-se a um fendmeno que nio costuma ser mencionado em piiblico: hd ocasides em que 0 diagnéstico permanece em suspenso, mesmo na mio do especialista.) Nao obstante a escandalosa liberalidade no uso dos exa- mes complementares, seria um equivoco menosprezé-los. Em determinadas situagOes, podem trazer uma importante contribui¢do ao diagnéstico e mesmo mostrar-se indispen- sveis, mormente quando se trata da identificago de um agente etiol6gico (a pesquisa do bacilo de Koch no escarro, a hemocultura em face da suspeita de endocardite bacteria- na). Ainda assim, € preciso insistir que, no momento atual, se formos confrontar estes éxitos com o montante dos prejufzos decorrentes do emprego intempestivo desses exames, 0s pre~ /0s haverio de predominar. Certamente nao nos referimos aos riscos diretos do pro- cedimento —o pneumotoréx devido a uma acidental pungao da pleura, a hemorragia ap6s bidpsia de figado, a reacao alérgica por efeito do contraste radiolégico, etc. -, pois estes repre- sentam riscos calculados, que podem ser previstos. Tampouco ‘nos ocuparemos das mil-e-uma fontes de erros e enganos, seja por conta do método, do equipamento ou do observador; a ‘melhor maneira de contomné-los consiste em sempre trabathar com laboratérios ou servigos altamente credenciados. Em vez disso, falaremos de riscos mais indiferenciados, inerentes ao pr6prio habito de exagerar no nimero e na indi- cago dos exames (BEATA). Custo ‘Como de esperar, a demanda por exames de baixa, mé- ia e alta complexidade cresce em relagio direta com a ofer- ta, em certos municipios, especialmente na presenca de uma escola médica, sendo responséveis por despesas insustenté- veis, superiores & prépria folha de pagamento da Secretaria de Satide. (Enquanto isso, jd € tradicional a falta de verba para ‘a aquisigdo de medicamentos, que, na pior das hipsteses, nfo ddeveria ultrapassar 0s 10 a 15% do orgamento de satide.) A economia no uso dos recursos, em especial no servigo piblico, é incontorndvel, um imperativo. Para compreendé- “lo, é preciso atentar para o que Giovanni Berlinguer' tem a dizer: TABELA 12.4 -> Riscos do exame complementar sto (iaogenia sai) Ansedade trogen pscligia) Menosprero pelo exame cinco ngaratament™ Araso no dagnéstico Diagnéstineauvacado {..1 areflexio ética obriga-nos a escolher. Obriga-nos a procurar, ene as vrias solugbes possivels, quai sio aque- las que correspondem no s6 a crtéros de eficiénca e de eficacia, ao equilfrio entre custos e beneficios, mas sobre- tudo a exigéncias de prioridade, equidade e moralidade[..] Ansiedade E fécil compreender: a partir do momento em que the pedem algum exame, clinico ou complementar, 0 usuério tende a considerar-se um “doente”, sua preocupagao sendo proporcional ao nimero ¢ & complexidade dos exames so- licitados. Para o profissional sensfvel, este € um fator de primei- rissima ordem. Menosprezo pelo exame clinico Como é sabido, um exame clinico de complexidade adequada ao caso é medida indispensdvel, ao exame com- plementar cabendo o papel, no mais das vezes, de um mero complemento. Porém, tamanho € 0 fascinio dos laudos que emanam do laboratério ou do gabinete dos institutos, que cada vez mais a ordem hierdrquica é subvertida, a anamnese © 0 exame fisico passando a ocupar uma posigao subalterna, ‘meramente simbélica. Isso fatalmente resulta em uma dete rioragao do padrao de atendimento. Engarrafamento Oengarrafamento nos laboratérios e demais servigos em face da crescente avalanche de pedidos de exame traz como resultado inevitével um duplo padrio de prioridades, em pre- |juizo, € natural, dos “pacientes do SUS”. Em meio a esses pedidos represados, certamente se encontram alguns exames urgentes, cuja falta pode dificultar uma conduta clinica acer- tada. Atraso no diagndstico 0 tao costumeiro ritual do exame complementar faz es- quecer que, a0 adiar uma tomada de conduta, mesmo uma demora de um, dois ou trés dias pode ser prejudicial ao pa- ciente, especialmente injustficado quando os exames pelos quais espera nao sao de fato indispensédveis, Diagndstico equivocado Contrariamente ao que pretendem os entusiastas, a con- fiabilidade de um diagnéstico ndo guarda a menor relag ‘com 0 ntimero de exames complementares encomendados: a verdade é que, na maioria das vezes, estes nio s6 se revelam redundantes, mas podem mesmo mostrar-se nocivos ao diag- néstico, desencaminhando o raciocinio elinico, conduzindo- -0 por rumos falsos (é lastimavel que a respeito desses acha- dos casuais 0 siléncio seja quase total) Nao estamos nos referindo aos erros ou enganos do ob- servador nem as mas condigdes do instrumental utilizado ~ ambos podem facilmente ser superados. A verdadeira fonte dos equivocos mencionados sio as limitagdes inerentes a0 processo de decidir, a base de uma evidéncia indireta, entre o normal e 0 anormal, fendmeno que pode ser resumido em um breve axioma, a saber: Esse fato, € I6gico, afeta o desempenho: o exame ora vé de menos (os falso-negativos), ora vé demais (os falso- -positivos). ‘Como esse € um tema abordado no Capitulo Aplicando Evidéncias em Decisdes Clinicas: Conceitos Basicos de Epi- demiologia Clinica, 0 leitor jé estard familiarizado com tais nogdes; logo, entender que os exames complementares so particularmente nocivos quando empregados no diagnéstico de doengas de baixa prevaléncia, no rastreamento populacio- nal ou — um assunto de todos os dias ~ na prética de enco- ‘mendar ao laboratério toda uma bateria de exames, digamos a titulo de curiosidade, com o fim de “melhor documentar 0 caso” ou “s6 para ver como esta”, sem que haja 0 minimo elemento de suspeita que possa justificé-los. Em ais situagdes —e como a especificidade nunca atinge ‘05 100%, em geral esta bem abaixo deste valor ~ 0 nimero de falso-positivos ¢ considerdvel, superando em muito o nii- ‘mero de pessoas efetivamente positivas. Nao € preciso entrar em detalhes, um simples exemplo numérico jé € o bastante: Principiamos com a hipotese de um agente infeccioso qualquer, cuja prevaléncia na populacao € estimada em 0,5%. Admitamos também que 0 exame empregado pelo laborat6ri tenha uma especificidade de 80% (uma cifra bastante favord- vel), sua sensibilidade, com vistas a simplificar 0 célculo, sen- do fixada em exatos 100%. Nessas condigdes, se praticarmos ‘© exame em 1.000 pessoas, acabaremos com 0 saldo de cinco pessoas efetivamente infectadas; em contrapartida, somos obri- gados a aceitar 20% de falso-positivos, em um total de 199 er- ros de diagndstico (995 multiplicado por 0,2). Em resumo, cada doente identificado pelo laborat6rio ver acompanhado por 40 “alarmes falsos", uma situago, convenhamos, constrangedora. Serd esse um exemplo isolado, especialmente escolhido por seu forte efeito sobre o leitor? De forma alguma: aciden- {es como este ocorrem todos os dias, mas néo nos damos con- ta. A maior parte das doengas tem uma prevaléncia inferior a 1:100, em geral mais pr6ximo de 1:1.000; assim sendo, qual- ‘quer tentativa de rastreamento (screening) de uma populaci0, toda vez que. na enfermaria, se pede um “perfil biog ‘ou uma “avaliagdo pré-operatéria”, abre as portas para uma pequena catéstrofe. E preciso que isso fique bem claro, No entanto, se o pedido de exame partir de uma suspeita, clinica concreta, situagdo na qual o nivel de probabilidade — etn ‘ou prevaléncia, se quiserem — é bem mais elevade do que ny ‘exemplo que acabamos de ver € 05 falso-positivos proporcio. nalmente infrequentes, ele poderd ser justificado. Assim, se uma dosagem de creatinina em pacientes de uma enfermarig geral ndo tem valor algum, em uma enfermaria de urologia, onde a probabilidade de alteragdes bioquimicas € bem supe. rior, ndo hd o que objetar. Boa parte dos indicadores usados em clinica tem uma distribuigao continua, com um aspecto que lembra a dis. tribuigaio de Gauss. Nessas condig&es, em vez de simples. © 0 “negativo”, entre 9 “presente” e 0 “ausente”, o resultado do exame é expresso mediante um valor numérico. Por isso € que, para decidir se © resultado é normal ou ndo, sempre foi hébito consultar as listas dos valores normais, encontradas nos livros-texto ou acompanhando o laudo do laborat6rio. No caso do écido tr co, por exemplo, consta que os limites da normalidade sio respectivamente 4 € 8,6 mg/dL. Caso tivéssemos autorizado este exame por ocasido da primeira consulta do paciente G.O., € 0 laboratério tivesse encontrado uma taxa de 7,2 mg/dL, isso jé nos permitiria descartar 0 diagnéstico de gota? Ou a sacramenté-lo se a do- sagem casualmente atingisse os 8,7 mg/dL? Nao, a hist6ria € bem mais complicada. Ao falar do diag- néstico de gota, o magnifico manual escrito por Wallach® diz © seguinte: “verifica-se que a incidéncia de gota nos homens, para os diferentes niveis de Acido trico, € de 1,1% para taxas inferiores a 6 mg/dL, de 7,3% para valores entre 6 € 6,9 mg/ dL, de 14,2% entre 7,0 € 7,9 mg/dL, de 18,7% para 0 in- tervalo de 8,0 a 8,9 mg/dL ¢ de 83% para valores iguais ou superiores a9 mg/dL”. Com essas palavras, o autor confirma que a transigZo entre o normal e 0 anormal ndo se dé brusca- mente, de um salto, e que um diagnéstico é, em sua esséncia, uma operagio probabilistica (veja 0 que Osler teve a dizer). Com relagio a gota, ainda consta que somente 1a 3% das pessoas com hiperuricemia sofrem de gota; em tomo de 10% dos adultos do sexo masculino tém niveis elevados de Acido tirico; e mais de um tergo dos pacientes portadores de gota jamais revelam nfveis anormais de cido tiico. Vé-se que, ndo obstante nossa conduta pouco conven- ional ao atender o paciente G.O., em vez de exames de la- boratério, preferindo acompanhar a evolugio natural de sua doenga, tal prética foi bem-sucedida, UM EXEMPLO FINAL A lombalgia é uma dessas entidades clinicas extrema- ‘mente comuns, na grande maioria dos pacientes benigna. que se presta bem como dltima ilustragdo ao presente capitulo. uma espécie de recapitulagao. ‘Segundo se estima, cerca de nove décimos dos adultos jé tiveram pelo menos um episédio de dor lombar ou lombosst ‘ral na vida, a afecgdo sendo crOnica em boa parte deles. AS~ sim, todo médico, qualquer que seja a sua especialidade.faria bem em apropriar-se de uma estratégia, de uma condita pad nizada. que the permita enfrentar com tranguilidade o grande ‘timero de pacientes que vém a queixar-se de uma recente dor nna parte inferior da coluna. (F natural que estamos falando do atendimento ambulatorial, pois nenhum sistema de saide orga- nizado de forma racional, seja qual for o pais, aceita que tais pacientes sejam de imediato encaminhados ao ortopedista.) Embora tenhamos sido todos condicionados, sem maior reflexdo. a iniciar a conduta clinica por uma radiografia de co- luna (frente e algumas obliquas), os beneficios sio ilus6rios. Nao porque se negue & radiografia a necesséria sensibilidade na detecgio de eventuais alterages anatOmicas — muito pelo con- trario, seu poder de captacdo é até grande demais, ao identificar uma profusdo de “anomalias”. Estas, por indispensdvel medida de cautela, é preferivel encarar como achados casuais, uma vez ‘que também estio presentes em pessoas sem quaisquer sinto- mas atribuiveis & coluna. As vitimas da imprudéncia se contam aos milhares: pessoas desnecessariamente alarmadas na base de tum ou mais bicos-de-papagaio, de grandes ou discretas altera- ‘gGes nos espagos intervertebrais, fusdo entre vértebras, desvios, deslizamentos e assim por diante! Poucas pessoas tém uma co- Juna conforme desenhada nos atlas de anatomia. A imprecisdo dos exames complementares ja € not6ria, ‘a causa anatémica em estimados 80 a 90% dos portadores de dor lombar aguda permanecendo ignorada. Assim, muito a contragosto, em vez. de um diagnéstico etiolégico razoa- velmente preciso, em vez de raciocinar em termos de uma doenca, somos forgados a nos contentar com a lombalgia en- quanto sindrome. Para melhor ilustrar as dificuldades na interpretagao de alguns dos exames mais sofisticados, inclufmos a TABELAT25.° ara compreendé-la melhor, € preciso lembrar que a sensibi- lidade e a especificidade de um determinado exame nao tém cardter imutdvel, mas dependem do objetivo do exame, da doenga que se procura. Assim, uma radiografia de trax pode TABELA 12.5 > Caracterstcas da radiografiae da tomograia na dorlombar aguda EXAME Tr ea Radogafiasimples Cincer 70% 30% i adogratia simples Oteomieite 290% = Radoortiasimpes Espndite 50% = anguiosante fadogafiacantas- Wémia~— ~75%6 {ada (milogafa) cea aia reers Temogiaacompu- i 5% ore todonzada - a Tomogafiacompu- Osteomiete 95% 0% tadorzada = Tomografacompu- Hémia- —— ~85% ~ 65% tatizada tia oe Tomogriacompu- Esporte 80% 70% todozada anqulosnte Fome Mane! ter uma elevada sensibilidade para a tuberculose, mas ser in- teiramente inadequada para o diagnéstico das bronquiectasias. Nao conseguimos encontrar dados referentes & resso- nincia magnética, mas é duvidoso que ela, por um toque de égica, venha a salvar a situagdo. Em outro lugar reproduzi- ‘mos uma fotografia tomada de empréstimo de um pesquisa- dor norte-americano: uma ressonéncia magnética de coluna Jombar que acusa a presenca de pelo menos cinco anomalias de espago intervertebral, duas delas indiscutiveis “hérnias de disco”. E, no entanto, a anomalia se resumia em apenas um a pessoa em pauta jamais se queixara de lombalgia!” Conforme demonstra a tabela, a sensibilidade no diag- néstico da osteomielite de coluna lombar € bastante razodvel, ‘05 10.2 20% falso-negativos da radiografia simples caindo para ‘5% mediante emprego da tomografia. 14 a especificidade de cerca de 80%, a primeira vista uma cifra animadora, acaba por rmostrar-se inaceitével, dada a elevada frequéncia da lombalgia nna populagao. A prevaléncia da osteomielite € bastante b “pseudo-osteomielite, por outro lado, pode ser identificada em ‘cerca de um quinto das pessoas, estejam elas doentes ou no. Se 0 reconhecimento dessas doengas relacionadas jé & tio problemético, quais nao serao as dificuldades em face das lombalgias mais benignas, nfo necessariamente dependentes de alteragdes anatémicas, mas determinadas por uma postura iciada, um esforgo sibito, a ansiedade ou a depressio? Embora se veja obrigado a raciocinar em termos de uma sindrome, mesmo assim o profissional ainda tem pela fren- te uma importante tarefa: a de distinguir entre o grupo de lombalgias devidas a farores mecénicos e um segundo grupo, constituido por algumas patologias mais graves, que se ex- pressam por uma dor na regio lombar mas nao tém origem ro sistema musculoesquelético. Se essa triagem deixar de ser feita, a conduta conservadora atualmente adotada em todo mundo terd de ser considerada uma temeridade. Este segundo grupo, o das lombalgias devidas a causas nao mecdnicas, que, somadas, nao excedem 1% dos casos, pode incluir casos de cancer, de espondilite anguilosante ou de osteomielite; sintomas semelhantes podem ser observados na pielonefrite, na calculose urinéria ou biliar, nas doengas de pancreas, no aneurisma de aorta, na ilcera perfurada e ou- tras, Doengas ricas em outros sinais e sintomas dificilmente constituem um problema diagnéstico; de resto, € incomum {que tais processos se acompanhem por uma dor lombar de icio subito. Outra caracteristica a lembrar & que neste gru- po de doentes a dor nao costuma ser aliviada pelo repouso ou pela posigdo de dectibito. ‘Afastados os 1%% que exigem cuidados especiais, fiea- ‘mos com um grupo numeroso de pessoas afetadas por uma lombalgia nao precisamente identificada, que continuarao sob nossos cuidados sem que se busque avangar no diag- néstico com auxilio de exames complementares. A terapéutica é conservadora, consistindo essencialmen- te em anti-inflamat6rios e/ou eventuais analgésicos, bem ‘como um repouso relativo. (Estudos recentes poem em di- i vida a eficdcia do repouso em leito.) O prognéstico costuma ser excelente, tanto assim que cerca de 85% dos pacientes voltam ao trabalho no decorrer do primeiro més. A ctapa complementar consiste na observagao do pa- ciente, com uma “demora permitida” de seis semanas. Aque- les cujos sintomas persistirem além desse prazo ~ ou se agravarem ~ deverdo ser reavaliados (esta € a mais recente estratégia recomendada pelos especialistas, a ela nada te- ‘mos que acrescentar). As estratégias e téticas apresentadas neste capitulo nada tém de revoluciondrias; na verdade, obedecem ao mais ele- mentar bom-senso. Foram testadas durante vinte anos sem dar motivos de arrependimento. Podemos recomendé-las sem qualquer restrigo, mesmo porque transformam o atendimento ambulatorial, temido por suas dificuldades, suas incertezas e, principalmente, por causa dos dilemas de conduta, em uma vvidade capaz de fazer a satisfagaio de pacientes e profissionais. Referéncias 1. Fry J. Common diseases. London: MTP; 1974, 2, Morrell DC. Symptom interpretation in general practice. J R Coll Gen Pract. 1972:22(118):297-309. 3. Sandler G. The importance of the history in the medical clinic and the cost of unnecessary tests. Am Heart J. 1980;100(6 Pt 192831 4, Berlinguer G. 15 anos errando pela América Latina. Ir benschutz C, organizador. Politica de sade: 0 pablico e o pri- vvado, Rio de Janeiro: Fiocruz; 1996, ‘5. Wallach J. Interpretation of diagnostic tests. 6th, ed. Boston: Little, Brown; 1996. ‘6. Mazanec DJ. Low back pain syndromes. In: Black ER, Bord- ley DR, Tape TG, Panzer RJ, editors. Diagnostic strategie common medical problems. 2nd ed. Philadelphi College of Physicians; 1999, 7. Kloetzel K. Medicina ambulatorial: prineipios basicos. Sao Paulo: EPU; 1999, CapituLo 13 A Consulta Ambulatorial Francisco Arsego de Oliveira Lucia Campos Pellanda A consulta ambulatorial, apesar de fazer parte da rotina, profissional de todo médico que trabalha em atengao primér deve ser considerada como um fenémeno de grande comple. rxidade, pois diz respeito diretamente ao relacionamento ¢ Comunicagio estabelecida entre duas pessoas ~ 0 médica ¢ paciente - que, muitas vezes, mesmo que ndo estejam se encon. trando pela primeira vez. podem apresentar necessidades, mo. tivagdes e expectativas diferentes em relagdo a esse momento, Cert peer rae eT tn eal fundamentais do médica e serdo desempenhadas com Perr ee rn Ree ee ec et ee Lo Me ee re ou Le Ce re PU RL Te eee ua Cee LL res. 2 ans E por esse motivo que muitos ainda consideram a condu- ‘gGo de uma consulta uma arte. Porém, mesmo admitindo que esteja no campo da arte, € necessério exercité-la constantemen- te, sem desprezar 0 fato de que hd recursos e técnicas dispont- veis que, quando utilizados, podem melhorar o desempenho de cada profissional, A consulta pode, dessa forma, tomar-se um instrumento que contribui de maneira decisiva para tornar 0 exercicio da medicina mais humano, efetivo e prazeroso. Hé intimeras abordagens possiveis em relagdo a consul- ta ambulatorial, A abordagem médica cldssica, por exemplo, baseia-se em um modelo estritamente biomédico, estando re- lacionada de modo exclusivo com dois conceitos fundamen- tais, que so a doenga e 0 diagnéstico. Ou seja, centra 0 seu esforgo em tentar esclarecer qual é a alteracdo existente em cada caso € qual o seu agente etiolégico para, entdo, poder exercer a sua intervengdo terapéutica. Eevidente que, na medicina, a busca por um diagnéstico correto € essencial, pois é a partir dele que se estabelece © tratamento adequado. Essa abordagem adapta-se bem a si- tuagdes em que esta presente uma doenca infecciosa. mas nao explica, por exemplo, fatores como suscetibilidade ind- vidual a elementos externos. Esses aspectos seriam contem- plados em uma visdo mais holfstica da pessoa (e nio neces- sariamente menos cientifica), a qual abrangeria, entre outras questdes, aspectos sociais, culturais, psicolégicos, a maneira ‘como ele percebe os seus problemas de satide e os mecanis- ‘mos de que langa mao para buscar a cura.! OBJETIVOS DA CONSULTA Dentro da ética de uma abordagem clinica centrada Mt Pessoa, importante reconhecer que a consulta represe?-

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