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IV

GESTÃO DO
TRABALHO E DA
SAÚDE
GESTÃO DO
TRABALHO E DA
SAÚDE
CARGA HORÁRIA:
80 HORAS | 10 SEMANAS
Autores:
Túlio Batista Franco
Luiz Carlos Hubner Moreira
Reitor
Sidney Luiz de Matos Mello
Vice-reitor
Antônio Cláudio Lucas da Nóbrega
Pró-Reitoria de Graduação - Prograd
Pró-reitor: José Rodrigues de Farias Filho
Coordenação de Educação a Distância - CEAD | UFF
Regina Célia Moreth Bragança

Curso Micropolítica da Gestão e Trabalho em Saúde


Coordenação do Projeto: Ana Lúcia Abrahão | Túlio Batista Franco
Coordenação Pedagógica: Ândrea Cardoso de Souza | Benedito C. Cordeiro | Camilla Maia Franco | Elisete
Casotti | Eduardo Alves Melo | Luiz Carlos Hubner Moreira | Magda de Souza Chagas | Monica Gouvea

Revisão técnica
Camilla Maia Franco
Revisão de Conteúdo
Camila Louzada e Nathália de Ornelas
Projeto Gráfico
Daniele da Costa Pereira
Diagramação
Marcos Maurity e Paulo Carvalho
Autores
Ana Cristina Reis e Cátia Martins de Oliveira

©2016. Coordenação de Educação a Distância - CEAD | UFF. Todos os direitos reservados.


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com sanções previstas no Código Penal, artigo 184, Parágrafos 1° ao 3°, sem prejuízo das sanções cíveis cabíveis à espécie.

E641 Organizado por: Chagas, Magda ; Melo, Eduardo.


Autores: Magda de Souza Chagas, Eduardo Alves Melo, Ana Lúcia Abrahão e
Elaine Maria Giannotti.

Micropolítica da Gestão e Trabalho em Saúde / Abrahão, Ana Lúcia; Melo,


Eduardo Alves; Giannotti , Elaine Maria e Chagas, Magda De Souza. Niterói: UFF.
CEAD, 2018.
81p.
ISBN: 978-85-62007-46-0

1. Gestão do Trabalho e da Saúde 2. Saúde. Título.


EMENTA
Desenvolvimento da prática do planejamento em saúde em sua vertente estratégica
e normativa com ofertas de ferramentas para elaboração de plano de ação. Gestão de
Rede de Saúde com ênfase na construção regional. Enfoca a visão do gestor municipal
sobre organização do cuidado, a rede de atenção à saúde, a Regionalização da Saúde, os
pactos e as negociações nas relações intergestores.

METAS
• Conhecer os conceitos básicos de planejamento em saúde e a relevância do uso;
• Aplicar o planejamento nas atividades a serem desenvolvidas na secretaria municipal
de saúde (ou na unidade de saúde), com especial foco na elaboração do plano de ação;
• Apropriar-se do conceito de rede de atenção à saúde e regulação assistencial;
• Conhecer e incorporar no planejamento o perfil epidemiológico da população do mu-
nicípio (ou estado) com olhos na transição demográfica;
• Articular os conceitos de planejamento, programação, rede de atenção à saúde, regio-
nalização e, assim, firmar pactos que reflitam a necessidade de sua população;
• Conhecer e fazer uso dos instrumentos legais básicos em uso na saúde.

OBJETIVOS
• Problematizar abordagens e a importância do planejamento na saúde;
• Exercitar a articulação entre o planejamento estratégico (com suas ferramentas metodológi-
cas), as necessidades de saúde da população e os processos formais e cotidianos de gestão;
• Abordar a regionalização da saúde à luz das especificidades do federalismo brasileiro e
das estratégias de gestão compartilhada/interfederada no SUS;
• Discutir a estratégia da construção das RAS (Redes de Atenção à Saúde) para reforço de
um modelo de atenção à saúde centrado nas necessidades das pessoas e grupos sociais,
tendo a atenção básica como um dos seus pilares;
• Refletir sobre os grandes desafios para a efetivação da integralidade da atenção e a
construção das RAS nas regiões de saúde;
• Analisar as diferentes dimensões dos mecanismos de regulação (como importante es-
tratégia de gestão) em processos macro e micropolíticos do SUS;
• Subsidiar a construção do Trabalho de Conclusão do Curso (TCC), na qualidade de pro-
jeto de intervenção.
Tópicos de aulas:

Esta unidade de aprendizagem será trabalhada em dez semanas. No quadro abaixo


estão listados os temas a serem abordados.

Semana Temática/conteúdo

1e2 Aula 1 – Processo de Trabalho e o modo de produção do Cuidado

3e4 Aula 2 – Processo de Trabalho em Saúde

5 Aula 3 – Ferramentas para Análise do Processo de Trabalho

6 Aula 4 – Gestão Compartilhada

7e8 Aula 5 - Modelo de Cuidado Centrado no Usuário

9 Atividade de Avaliação

10 Revisão e aprofundamento TCC


SUMÁRIO
AULA 1 PROCESSO DE TRABALHO E O MODO DE
PRODUÇÃO DO CUIDADO 9

AULA 2 PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE 15

AULA 3 FERRAMENTAS PARA ANÁLISE DO PROCESSO DE


TRABALHO 19

AULA 4 GESTÃO COMPARTILHADA 24

AULA 5 MODELO DE CUIDADO CENTRADO NO USUÁRIO 27

ATIVIDADE DE AVALIAÇÃO 34
Apresentação

Esta Unidade vai discutir o processo de trabalho em saúde. Este tema é de grande
relevância para todos os que estão envolvidos, seja no cuidado ou na gestão do SUS,
porque o processo de trabalho é a essência de tudo o que se faz no funcionamento
cotidiano dos serviços de saúde. Compreendê-lo é requisito para toda proposta de
mudança no SUS, considerando que esta se dá efetivamente a partir dos sistemas de
produção do cuidado. É impossível separar estes dois temas, visto que o produto final de
todo trabalho na saúde é o cuidado realizado.
O tema é apresentado na 1ª. Parte do texto através de uma pequena história
criada para tornar mais didática a apresentação dos conceitos, e dinâmica na forma
de discuti-los. Iniciamos com apresentação de um caso em 4 cenas, divididas entre o
momento do trauma o qual o leva a uma demorada internação hospitalar, e a alta do
hospital como 2ª. Cena; a estadia em casa sob cuidados da mãe e o momento em que
ele é encontrado pela equipe da Unidade de Saúde, 3ª. Cena; e 4ª. Cena o resultado
obtido com o cuidado. A história contada inicialmente serve para ilustrar a discussão
sobre as principais características do processo de trabalho que vem em seguida. Assim
os conceitos ao mesmo tempo em que vão ganhando formam, têm uma imagem de
aplicação dos mesmos.
Na 2ª parte do texto, é apresentado um caso sobre o qual se discute o que
chamamos de “Projeto Terapêutico Singular”, um tema vinculado também ao processo de
trabalho e cuidado. Pode-se verificar uma abordagem familiar, considerando o contexto
social e afetivo no qual vivem as pessoas e são pensadas ações de cuidado, a partir das
necessidades de saúde identificadas pela usuária Marta. A experiência tem como base
o reconhecimento de que o cuidado deva se dar no contexto da vida de cada um, no
campo existencial da pessoa, e não apenas a partir de um determinado problema clínico.
O pressuposto é o de que, independente do problema de saúde que a pessoa tenha,
ela não se resume a ele. Por isso, o projeto terapêutico precisa ser integral, singular, no
sentido de pensar todas as dimensões da vida de cada um daqueles que nos procuram.
Boa leitura!

8 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


1

Aula
PROCESSO DE TRABALHO E
O MODO DE PRODUÇÃO DO
CUIDADO

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


9
UMA HISTÓRIA PRA SER CONTADA E ESTUDADA 1
Márcia e Joana são enfermeiras na Unidade Básica “Novo Mundo”, na periferia de
uma grande cidade. Participam de equipes de Saúde da Família e, ao mesmo tempo, têm
um trabalho junto à escola do bairro de educação em saúde voltada para adolescentes.
Nos últimos 6 meses, desenvolveram uma peça de teatro que reuniu um grupo de
alunos, professores e trabalhadores da Unidade de Saúde. Baseada em um caso real,
1 O caso aqui rela-
retratamos a peça e pretendemos, a partir dela, fazer um debate sobre a produção do
tado é inspirado no
cuidado e o processo de trabalho em saúde.
texto: Franco, T.B. e
Galavote, H. S. Em 1ª Cena: Jota é um rapaz de 28 anos, um profissional marceneiro e líder comunitário
Busca da Clínica dos na comunidade onde mora. Ele é casado e tem uma vida intensa entre o trabalho, a casa
Afetos. In: Franco, T.B. e o trabalho no bairro, para a melhoria das condições de vida da sua população. Em um
e Ramos, V.C. Semió- sábado de manhã, Jota estava andando tranquilamente pelas ruas da cidade, quando foi
tica, Afecção e Cuida- abordado por dois homens, que, sem lhe dizer qualquer coisa, desferem 5 tiros sobre ele.
do em Saúde. Huci- Ele cai gravemente ferido. Transeuntes se reúnem em volta do seu corpo, até a chegada
tec: São Paulo, 2010. do serviço de urgência, que o leva para a emergência do hospital da cidade. Desde então,
foram 6 meses entre cirurgias e a sua recuperação. Jota teve alta hospitalar e, na saída do
hospital, recebeu do médico o prognóstico: “Você tem uns seis meses de vida”.
Jota estava tetraplégico, havia perdido a mulher e retornava à casa da mãe com
um corpo que atrofiava a olhos vistos. Muito pobre, ele passa a viver uma vida em estado
absolutamente precário de alimentação e higiene, com dificuldades para obter os
insumos para os curativos e remédios.
2ª. Cena: A gerente da Unidade de Saúde da área de abrangência onde estava
morando Jota soube da sua existência através da mãe, que ia até a Unidade para obter
os produtos necessários ao seu cuidado, como medicamentos e insumos. Diante do
problema, ela solicitou a uma equipe que fizesse visita domiciliar e verificasse as condições
de saúde do usuário, para tentar, com isso, estabelecer um projeto terapêutico. A equipe
volta assustada com as precárias condições de vida e de saúde do rapaz. Sem uma
proposta consistente inicialmente para atendê-lo, resolve a própria gerente fazer a visita,
na qual se dedica a conversar demoradamente com Jota. Nesta conversa vislumbram-se
possibilidades de cuidado. Jota se vê apoiado. A longa conversa serviu para que cada um,
a trabalhadora de saúde e o usuário, buscasse, através da narrativa de vida do usuário,
perceber aquela existência para além do corpo e sua lesão. Jota continua sendo um
líder altivo, com grande capacidade de pensar sobre as coisas que o cercam. A conversa,
enfim, ativou em Jota uma grande vontade de voltar a viver com intensidade, e essa foi
a questão crucial, pois a vontade age no corpo como uma força propulsora, que põe a
pessoa em movimento. Ao ativá-la, esta energia passa a agir em favor da produção de
vida. Era necessário, a partir deste momento, mobilizar a equipe de saúde para que ela
respondesse às necessidades de cuidado, que agora encontraria um usuário receptivo,
ativo e desejoso de se restabelecer.
3ª Cena: A equipe da Unidade de Saúde discutiu as primeiras atividades para
executar um projeto terapêutico de cuidado para Jota. Na reunião de equipe, várias
questões passaram a ser consideradas para o cuidado e discutidas em torno do seguinte
ponto: era importante apostar na relação com o usuário, considerando que ele pode ser
ativo no processo de cuidado, na medida em que tem conhecimento do seu problema,
sabe como se cuidar e, principalmente, está muito ativado por essa vontade de viver. O
encontro com a gerente da Unidade de saúde superou um primeiro momento de baixa
vitalidade e ativou uma grande capacidade de agir, na qual aparece uma potente energia

10 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


vital que o coloca em movimento, no sentido de produzir nele mesmo o cuidado, uma
certa forma de produção de vida.
A equipe passa a discutir o projeto terapêutico, que deveria envolver vários
profissionais trabalhando como em uma rede, na relação uns com os outros, e todos com
o usuário. As necessidades de cuidado vão desde o problema clínico em questão, como
cuidar para reverter a atrofia muscular, as feridas, o déficit motor; e passam também por
tentar restabelecer laços afetivos, os direitos previdenciários, a possibilidade de construir
um futuro. O projeto terapêutico deveria pensar e agir, considerando sua existência no
mundo, e não apenas a lesão que ele se ressentia. Jota precisa de futuro e pode construí-
lo, porque é desejoso disso atualmente.
Uma equipe multiprofissional compõe a rede de apoio ao cuidado e dispara ações
direcionadas à assistência clínica, ao ambiente de moradia, à produção da vida, como
um conjunto que acontece no âmbito socioafetivo, ou seja, no espaço social e, também,
no plano dos afetos, pois tudo o que acontece em volta de si é percebido e assimilado,
produzindo efeitos sobre o usuário, formando uma certa subjetividade, ou uma forma de
significar sua própria vida no contexto em que ele vive.
4ª. Cena: Quatro anos após este processo intenso, Jota é um sujeito que passou
de uma tetraplegia, que o segurava sobre uma cama, para uma vida de cadeirante que
circulava com desenvoltura pelo bairro. Passa a ter vida social, possui renda e dignidade
como toda pessoa. Faz planos de um curso profissional para adotar uma nova profissão
adequada à sua condição atual. Considerado um projeto terapêutico de sucesso, a equipe
passa a discutir seu próprio trabalho, procurando tirar deste processo um aprendizado
para que isto possa ser integralizado na equipe, como uma forma de agir e trabalhar.

Discussão sobre o processo de trabalho e o modo de produção do cuidado


A equipe resolve fazer uma oficina na qual todo este processo passa a ser analisado,
do ponto de vista do processo de trabalho que foi desenvolvido. As questões iniciais para
disparar o debate foram:
− O que é produção do cuidado e o processo de trabalho em saúde? Por que
o médico deu um prognóstico de 6 meses de vida, que foi depois contrariado pelos
fatos que se sucederam? Quais foram os elementos importantes no processo de trabalho
desenvolvido pela equipe, que levaram ao resultado que se viu ao final?

Iniciando a Oficina, Márcia coloca no centro da sala um cartaz com a seguinte


questão:
O que significa o termo”produção do cuidado”?
Para fazer a discussão, ela propõe que cada um se lembre de como se faz o cuidado
e como é o cotidiano de cada um que remete ao tema do cuidado. Sugerimos que o
mesmo exercício seja feito por cada um de vocês, que estão vivenciando esta Unidade.

Exercício: Procure escrever em no mínimo dez linhas uma narrativa sobre o


cotidiano da sua atividade de cuidado: Como é? O que é cuidado para você?
Como pensa que deve ser? Quais questões no ato de cuidar lhe dão alegria
ou tristeza? Busque discutir na sua equipe estas questões.

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


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Na oficina coordenada pela Márcia, em relação a essa primeira questão, a síntese
final foi redigida da seguinte forma:
Parece uma questão banal, mas não é. Quando introduzimos a palavra “produção”
para falar do cuidado, estamos dizendo que o cuidado não é algo da natureza, ou
natural, que tem existência em si mesmo. Ele é o resultado de uma produção, ou seja,
do esforço dos trabalhadores feito pelo seu próprio trabalho. Sem o trabalho aplicado,
não haveria este cuidado. Esta é uma questão fundamental, pois significa que o cuidado
realizado e seu resultado dependem do modo como o trabalho se realiza, isto é, do
processo de trabalho. Por exemplo: se o cuidado é excessivamente instrumentalizado,
realizado sob uma lógica biomédica e prescritiva, significa que o processo de trabalho
é majoritariamente centrado nos instrumentos e procedimentos. Neste caso, tem-se na
sua lógica a ideia inicial de que o corpo é formado apenas por essa massa biológica,
sem considerar os aspectos que circundam a existência da pessoa no mundo, como o
ambiente no qual vive, suas relações sociais e a produção subjetiva que tem por base a
experiência da pessoa no ato de viver. Se o processo de trabalho considera todos esses
aspectos, o cuidado a ser realizado é agenciado por estas questões e é, portanto, feito
de outro modo do que o primeiro aqui apresentado. Portanto, podemos concluir que
o cuidado é antes de tudo uma produção humana, e o processo de trabalho é o seu
principal dispositivo.
Como eu poderia pensar a produção do cuidado no caso do Jota?
O cuidado pode ser pensado com base em algumas diretrizes que orientam o
processo de trabalho. Neste caso, se verificou o seguinte:
Acolhimento significa fazer uma escuta qualificada do problema de saúde do
usuário e dar-lhe uma resposta positiva. Acolher é, principalmente, investir na relação, se
importar com o outro, procurar resolver sua necessidade, abrir espaços de fala e escuta
no encontro com o usuário2 . A equipe da Unidade Básica acolheu o problema de saúde
do Jota, mesmo considerando a precária condição em que ele estava e sua fragilidade.
Isso exigiu um compromisso com a resolutividade.
2
Sobre Acolhimento
Vínculo significa se responsabilizar pelo problema de saúde do usuário e
ver: Franco, T.B., Bue-
no, V.S. e Merhy, E.E. estabelecer uma referência segura. É importante estabelecer um “projeto terapêutico”,
O Acolhimento e os que é o conjunto de atos assistenciais pensados para o usuário, o que permite fazer
Processos de Traba- um acompanhamento do seu processo ao longo do tempo. Isso foi verificado no caso
lho em Saúde: o caso do Jota. E ainda foi estabelecido um vínculo com a equipe e com cada trabalhador, o
de Betim, MG. Cad. que produziu confiança e segurança para o usuário. Os sentimentos de proteção e não
Saúde Pública, Rio de abandono são os principais indicadores do vínculo.
Janeiro, 15(2):345-353, Integralidade no cuidado foi outra diretriz importante e conquistada com o
abr-jun, 1999.
fato de haver uma equipe multiprofissional cuidando do Jota, o que significa que vários
saberes e práticas estavam à sua disposição. Além disso, a integralidade se verificou na
busca por serviços especializados e, inclusive, por esforço para proporcionar-lhe boas
condições de vida, através de intervenções no ambiente e de providência junto ao
sistema previdenciário de modo a viabilizar sua aposentadoria.
Podemos ver que o cuidado deve ter como foco toda a existência do usuário, e não
apenas a lesão ou o problema clínico específico. A condição da sua subjetividade, ou seja, o
modo como significa o mundo, é também fundamental para que ele se oriente no modo
de produzir sua própria via. Por isso, a abordagem deve ser singular, dedicada ao seu caso
específico e, ao mesmo tempo, ampla, para abarcar todas as dimensões da sua vida.

12 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


Exercício: Pense um caso que você conhece e procure descrevê-lo
resumidamente. Em seguida, verifique se estas diretrizes básicas de cuidado
foram observadas no processo de trabalho dedicado a ele: acolhimento;
vínculo; integralidade.

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


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14 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE
2

Aula
PROCESSO DE TRABALHO EM
SAÚDE

GESTÃO
GESTÃODO
DOTRABALHO
TRABALHOEE
DADA
SAÚDE
SAÚDE
15
Uma segunda questão é mostrada no cartaz para o grupo:
O que é processo de trabalho em saúde?
Neste item, a enfermeira fez uma explanação sobre o conceito para discussão. Ela
diz o seguinte:
O processo de trabalho em saúde é o modo como se organiza o trabalho e é
definido pelas atividades cotidianas, sejam elas na gestão ou na assistência à saúde,
sendo estas duas dimensões inseparáveis. É importante observar que:
i. Na saúde o trabalho humano é insubstituível, sendo um dos poucos setores em
que a incorporação de novas tecnologias não resulta em redução de postos de
trabalho; pelo contrário, quando novas máquinas são introduzidas no ambiente
de produção, como tomógrafo, Raio-X, etc., cria-se novos postos de trabalho. É
importante registrar, também, que por tecnologia entende-se não apenas máquinas,
mas é preciso considerar as tecnologias não materiais, como o conhecimento e as
relações empregados no processo de trabalho. Isso será discutido mais à frente.
ii. De modo geral, o trabalho em saúde é sempre relacional, ou seja, é na relação de
um com o outro que se produz o cuidado. Essa relação se dá entre os trabalhadores
e os usuários, pois o processo de trabalho acontece, sobretudo, no encontro entre
ambos. Há, portanto, nestes casos, um grande protagonismo de trabalhadores e
usuários para a produção do cuidado. O processo de trabalho, como podemos
ver, é controlado pelo próprio trabalhador, a quem cabe tomar as decisões no
momento exato em que está com o usuário. Isso só é possível porque o processo
de trabalho em saúde é centrado no trabalho vivo em ato, de acordo com Merhy
(1997, 2002). Este conceito será debatido em seguida.
iii. O processo de trabalho é sempre em rede, ou seja, constatamos facilmente
que não há autossuficiência em nenhuma profissão para produzir o cuidado;
há na verdade uma interdependência positiva entre todos. Há uma rede de
conversas intensas no cotidiano da equipe de saúde sobre o trabalho, mostrando
o funcionamento desta rede. Por exemplo, se alguns dependem de médico,
enfermeira, dentista, assistente social, agentes de saúde, recepcionistas, todos
dependem da pessoa que faz higienização, do porteiro que orienta os fluxos do
usuário, do administrativo que anota dados, etc... Constatamos facilmente que é o
trabalho coletivo, o conjunto, que consegue de fato produzir o cuidado, conforme
Franco (2006).
iv. O processo de trabalho em saúde é singular, isto é, é sempre voltado para um
problema específico, para uma pessoa em dada situação de saúde, que também é
única. Isso faz com que a famosa frase “cada caso é um caso” signifique um cuidado
direcionado a uma situação que não se repete. Isso é diferente de pensarmos um
processo de trabalho serializado, que seria o contrário do que estamos falando
aqui. Serializado seria um cuidado padronizado a todas as situações similares. O que
no nosso entendimento não seria eficaz, pois deixaria de atender à especificidade
de cada um. Por exemplo, sabemos que os protocolos são importantes, uma
referência para todo profissional, mas, ao aplicá-lo, cada um investe seu próprio
conhecimento e experiência, a partir da avaliação específica do problema de
saúde, ou seja, há um tom personalizado que dá a característica de que aquele
processo é singular.

16 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


A partir destas questões iniciais, a outra enfermeira, Joana, propôs que a plenária
se dividisse em grupos e que cada grupo iria pesquisar uma destas características do
processo de trabalho em saúde e trazer, para o próximo encontro, os seus resultados
para o debate entre todos. Isso deveria ser feito procurando analisar o caso “Jota”, que
foi a motivação para a oficina. Enfim, todos deveriam discutir, com foco na própria
experiência de trabalho, o cuidado vivido por Jota, que foi também um protagonista de
todo o processo. Foram formados os seguintes grupos temáticos:
Grupo 1 – Tecnologias de Trabalho em Saúde
Grupo 2 – Trabalho Vivo em Ato e autogestão no processo de trabalho
Grupo 3 – O Trabalho em Redes
Marcou-se outra oficina na qual cada grupo vai apresentar um minisseminário
sobre estes temas.
Após duas semanas, os temas foram apresentados e discutidos. Reproduzimos
abaixo, de forma resumida, como se deu o debate.

Tecnologias de Trabalho em Saúde


Grupo 1 – Tecnologias de Trabalho em Saúde
O termo “tecnologia” está geralmente associado a máquinas e instrumentos. Mas
não significa apenas isso. O uso que fazemos do termo é entendido como “meios usados
para fazer algo”, no caso, podemos dizer que são todos os meios utilizados para produzir
o cuidado. As tecnologias formam, podemos assim dizer, nossa “caixa de ferramentas”,
ou seja, é tudo aquilo que vamos lançar mão no trabalho. Merhy (1997, 2002) tipificou
as tecnologias de trabalho em saúde em três tipos: as tecnologias duras, que dizem
respeito às máquinas e aos instrumentos; as tecnologias leve-duras, que se referem
ao conhecimento técnico; e as tecnologias leves, que são as relações. No processo de
trabalho em saúde, são aplicadas sempre as três tecnologias, ou seja, o trabalhador
lança mão de instrumentos mais estruturados, como toda a maquinaria e, inclusive,
os protocolos; o seu conhecimento tirado da clínica, a epidemiologia, o planejamento,
os conceitos das Ciências Sociais e Humanas, etc. Em todo processo de trabalho, há
uma relação envolvida, na qual há também certa forma de conduzir essas tecnologias
relacionais ou leves.
Há uma crítica sobre o modo de produzir o cuidado de forma convencional, que
prioriza o uso das tecnologias duras. Isso porque se criou, no século XX, um imaginário
entre trabalhadores e os usuários, que associa o consumo de instrumentos e maquinaria
ao cuidado e à proteção às pessoas. Contudo, sabemos que, por mais importante que
sejam, as tecnologias duras não são o suficiente e que, na maioria das vezes, não são o
principal recurso no processo de cuidado. Esse processo requer uma escuta qualificada
do problema de saúde, um acolhimento, o estabelecimento de vínculo e, especialmente,
um compromisso do trabalhador com o usuário. Tudo isso está no campo das
tecnologias relacionais (leves) e o conhecimento empregado (tecnologias leve-duras).
O que consideramos mais adequado é um processo de trabalho que utilize de todas as
tecnologias, mas que tenha como central a implicação com o usuário e seu problema
de saúde, ou seja, as tecnologias leves no centro do processo de trabalho. Nesse sentido,
isso poderá reverter o atual modo excessivamente prescritivo de cuidado, que favorece
um processo mais eficaz em relação às necessidades do usuário.

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


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Olhando para ao caso do Jota, que foi relatado inicialmente, podemos dizer que,
no processo de trabalho da gerente da Unidade que foi até o domicílio do usuário, foram
estabelecidos uma “escuta qualificada” do seu problema de saúde e um acolhimento na
condição em que ele se encontrava. Dessa forma, se evidenciou não apenas o problema
clínico que se abatia sob seu corpo, a lesão medular, mas especialmente apareceu o
sujeito que era um líder comunitário altivo, inteligente, generoso com os outros e que
ainda havia uma grande reserva de vontade que faltava apenas ser ativada para agir,
aumentando sua energia vital. A força das tecnologias relacionais, quando empregadas
nesse sentido do acolher, fez surgir uma grande potência nesta relação de cuidado. O
modo de conduzir a relação entre trabalhador e usuário fez com que se instituísse entre
eles a confiança e o vínculo, possibilitando a compreensão de toda dimensão existencial
do Jota no seu próprio mundo, e, a partir disso, se conseguiu estabelecer um projeto
terapêutico mais adequado às suas necessidades.
Verificamos, portanto, que o uso das tecnologias leves no processo de trabalho
pode dar uma melhor e mais nítida compreensão do problema de saúde e, por outro
lado, uma maior resolutividade no processo terapêutico a ser conduzido. Mas não é
sempre assim, visto que as tecnologias leves podem ser usadas também para produzir um
processo relacional centrado no campo da biomedicina e um cuidado excessivamente
prescritivo. Então, vamos verificar que não há uma valoração “a priori” da tecnologia leve.
Não é possível falar que a tecnologia leve vai produzir sempre um bom cuidado ou, o
contrário, o processo de trabalho no cotidiano é que vai informar sobre isso. A relação
com o usuário, e mesmo entre os trabalhadores, pode servir para cuidar ou para “torturar”
o usuário ou o outro de modo geral. Vai prevalecer aquilo que for da ética de cuidado
do trabalhador, suas convicções sobre o conceito de cuidar e os agenciamentos que isso
proporciona na sua ação cotidiana.

18 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


3

Aula
FERRAMENTAS PARA
ANÁLISE DO PROCESSO DE
TRABALHO

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


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Trabalho Vivo em ato e autogestão no processo de trabalho
Grupo 2 – Trabalho Vivo em ato e autogestão no processo de trabalho
A primeira questão sobre a qual o grupo teve que se debruçar era entender o
conceito. Afinal, o que é trabalho vivo? Este termo foi usado por Marx (1988) nas Ciências
Sociais para indicar o trabalho no seu exato momento de produção, criação. É o momento
em que o trabalhador está no exercício da sua tarefa. Merhy (1997) ressignifica o termo e
identifica que o processo de trabalho em saúde está centrado no trabalho vivo em ato,
ou seja, se produz o cuidado em relação ao exato momento em que o trabalhador está
executando a atividade de cuidar. Por exemplo, se produz um curativo na relação com o
usuário, em ato, que, ao mesmo tempo em que ele é produzido, é consumido pelo usuário.
Pelo fato de que o trabalho vivo significa que o trabalhador produz em ato, ele vem
revestido de grande liberdade de ação, visto que, na relação com o usuário, o trabalhador
conduz seu próprio processo de trabalho, toma decisões e define se, por exemplo, será
acolhedor ou burocrático, dialógico ou prescritivo, enfim... Na liberdade do seu trabalho
vivo, o trabalhador faz autogestão do seu próprio processo de trabalho.
O “trabalho vivo” convive com o “trabalho morto” no interior do processo de trabalho.
O trabalho morto está inscrito em todos os instrumentos e ferramentas presentes no
cuidado. E tem esse nome justamente porque, para produzir a maquinaria, foi empregado
um trabalho pregresso que está “embutido” naquele instrumento. Por exemplo, para
produzir um tomógrafo ou protocolo, foi aplicado um trabalho já realizado para essa
produção no passado. Então, esses equipamentos são a expressão do trabalho morto. Não
há uma valoração do trabalho vivo ou do trabalho morto, ou seja, não é possível dizer
que trabalho vivo é bom e trabalho morto é ruim. Os dois são necessários para o cuidado
integral. A questão importante é que o modo de produção do cuidado convencional se
realiza com base em um processo de trabalho centrado no trabalho morto, que predomina
e cria uma prática clínica mais voltada para a produção de procedimentos do que para
a produção do cuidado. Consideramos importante que o processo de trabalho esteja
centrado no trabalho vivo e que seja este quem deve comandar a produção do cuidado.
Isso não garante que o cuidado seja acolhedor, porque o trabalho vivo em ato pode ser
usado para diferentes opções sobre o cuidado, que pode ser de natureza biomédica,
apenas centrado em procedimentos técnicos, ou mais acolhedor, mas isso vai depender,
como já dissemos anteriormente, de qual é a ética do cuidado que agencia o trabalhador,
o modo como significa o usuário e o ato de cuidar.
De qualquer forma, importa registrar que o fato de o trabalho em saúde estar
centrado no trabalho vivo, e que este traz o atributo da liberdade, tornando o processo
de trabalho autogestionário, ou seja, conduzido pelo próprio trabalhador, dá a essa
dimensão uma potente capacidade de produzir mudanças. Assim, podemos verificar
que os trabalhadores usam o trabalho vivo para produzir na atividade cotidiana processos
muito criativos, inventivos, com diferentes possibilidades de cuidado em saúde.

O Trabalho em Redes
Grupo 3 – O Trabalho em Redes
Como já foi afirmado aqui, todo processo de trabalho em saúde se dá em redes.
Essas redes podem ser mais harmônicas e integrais ou conflituosas, tensas e até sofrer
rupturas, mas continuam sendo redes. É algo inerente às relações de trabalho, visto a
necessidade de alta cooperação entre saberes e práticas para produzir o cuidado em
qualquer circunstância.

20 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


A rede pode ser formada dentro de uma mesma equipe, entre os trabalhadores ou
entre diferentes equipes e equipamentos de saúde, como da atenção básica, especializada
e hospitalar, entre outros. O que se verificou no caso do Jota foi a formação de uma rede
entre trabalhadores que garantiu um atendimento multiprofissional integrado, ou seja,
um atendimento em que todos colaboravam entre si para que o cuidado se realizasse.
Ao mesmo tempo, esta rede foi ampliando-se, de forma quase natural, para os serviços
junto à Unidade de Previdência Social, para obter sua aposentadoria e garantir renda, e
a outras Unidades de Saúde, para atendimento especializado. A rede tem um caráter
fluído ou elástico. Ela se estica para certos equipamentos e serviços e vai ganhando
ramificações sempre que necessário, para que um trabalhador acione novos recursos
para atender às necessidades do usuário. É possível ver claramente o caráter de rede viva,
que tem mobilidade e não segue apenas um protocolo específico.
Verificamos que o que caracteriza o trabalho em rede não é apenas a disposição
de pessoas, equipes ou equipamentos de saúde em um dado lugar que se comunicam.
O trabalho em rede acontece quando há conexão e fluxo entre eles, caracterizando um
funcionamento no qual as linhas de cuidado que se formam entre pessoas atravessam as
equipes e as Unidades de Saúde e facilitam o acesso do usuário aos recursos necessários
para atender ao seu problema.
Consideramos nesta discussão que há as redes formais, definidas por protocolos
que padronizam fluxos e modos de agir, e as “redes vivas” (Merhy et al., 2014), que são
criadas por trabalhadores ou pelos próprios usuários, conforme as necessidades e
possibilidades de cuidado no cotidiano. Essas redes não obedecem a nenhuma regra,
exceto a de proteger o usuário e a sua necessidade de saúde. Elas podem se formar em
qualquer circunstância, fazendo fluxo e conexão entre equipes, para, com isso, garantir
que haja um trânsito mais seguro ao usuário no serviço. Essas redes podem atravessar
os limites do serviço de saúde e se conectar com a comunidade e com outros grupos,
desde que essa seja da vontade do usuário e que ele atue para que isso aconteça.

FERRAMENTAS PARA ANÁLISE DO PROCESSO DE


TRABALHO
Apresentamos a seguir duas ferramentas que podem ser utilizadas para análise do
processo de trabalho em Saúde. São elas:
1. O FLUXOGRAMA ANALISADOR DO PROCESSO DE
TRABALHO
Segundo Franco e Merhy (2003), o Fluxograma Descritor é uma representação
gráfica de todas as etapas do processo de trabalho. É uma forma de olhar a organização
das práticas assistenciais em saúde no trabalho cotidiano da equipe. Como se dá isso?
Se pudéssemos seguir um usuário no seu percurso em busca de uma resposta para sua
necessidade de saúde, anotando todos os lugares por onde ele passou e as ações que
foram realizadas pelos trabalhadores de saúde, dentro da unidade ou na rede de saúde,
tais como: perguntas, orientações, procedimentos, cadastros etc., com o objetivo de
atendê-lo, teremos, ao final, uma descrição do seu percurso terapêutico. O Fluxograma é
a representação gráfica desse percurso, que interroga o processo de trabalho, isto é, ele
busca compreender como o trabalho está organizado no serviço de saúde, ao mesmo
tempo em que aponta os problemas verificados no processo de cuidado ao usuário.
2. OS MAPAS ANALÍTICOS PARA ANÁLISE DO PROCESSO DE

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


21
TRABALHO
Os Mapas Analíticos foram propostos originalmente por Franco e Merhy (2009), a
partir da experiência do seu uso no contexto de um curso de especialização em gestão
em saúde. São consideradas ferramentas cartográficas, que, quando utilizadas para
desenhar os processos de trabalho, são capazes de captar os movimentos contínuos e
descontínuos na dinâmica do Trabalho em Saúde, possibilitando identificar e analisar o
processo de trabalho e a produção do cuidado na sua micropolítica.
Essas definições foram tiradas do livro organizado por Pessôa (2011), “Manual do
Gerente: desafios da média gerência na saúde”, págs. 32 a 38, que pode ser acessado em
http://www5.ensp.fiocruz.br/biblioteca/dados/txt_51893713.pdf.

Exercício: Leia o “Manual do Gerente (link acima): desafios da média gerência


na saúde”, da página 32 a 38. Em seguida, escolha uma das ferramentas
apresentadas, Fluxograma ou Mapa Analítico, e faça um exercício junto a
uma equipe de saúde. Apresente o exercício ao tutor.

22 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


4

Aula
GESTÃO COMPARTILHADA

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


23
GESTÃO COMPARTILHADA: O QUE É E COMO FAZER
A gestão compartilhada é uma forma de organizar, programar e tomar decisões na
condução dos serviços de saúde, tomando por referência o coletivo de trabalhadores. Isso
parte do pressuposto de que reconhecemos o quanto cada um tem de conhecimento,
sobretudo a sua experiência de trabalho, sobre o funcionamento cotidiano da Unidade
de Saúde. Por isso, cada um pode contribuir com a condução da gestão.
Uma primeira forma de organizar a gestão nesse sentido pode ser feita pela
formação do Colegiado Gestor, composto por aqueles que coordenam serviços da
Unidade de Saúde. Este é um fórum de amplo debate e decisões sobre as diretrizes a
serem adotadas para o cuidado e gestão da Unidade. É um lugar de compartilhamento
dos problemas, desafios, e de discussão de soluções conjuntas de superação. O Colegiado
cria um ambiente de camaradagem, companheirismo, confiança, e potencializa a gestão,
fortalecendo o projeto da equipe que está conduzindo a Unidade.
Para além de um Colegiado Gestor, cada reunião de Equipe de Saúde da Família,
por exemplo, é uma forma de compartilhar a gestão do cuidado. Chamamos a atenção
para a importância dessas reuniões. Elas são um lugar privilegiado para se discutir o
processo de trabalho de cada um; os projetos terapêuticos singulares e a sua gestão; o
trabalho em redes que cada um faz, procurando, assim, programar a gestão do cuidado.
É importante que cada detalhe do fluxo do usuário na “linha de cuidado” da Unidade
seja discutido sempre que necessário. Essas reuniões servem para acertar esses fluxos,
garantindo ao usuário segurança e conforto quando busca as suas necessidades.
A gestão colegiada e compartilhada com todos vai ter no seu foco o cotidiano.
Essa é a questão fundamental, que, nesse sentido, vai pautar:
i. A rede de cuidado que se forma na relação entre todos os trabalhadores,
incluindo a assistência prestada na Unidade e no espaço comunitário e domiciliar.
É fundamental ter como foco as necessidades do usuário, e não perder de vista as
relações intraequipe, lembrando sempre que, para ser acolhedor com o usuário,
tem que primeiro acolher o colega de trabalho e manter boas relações na rede
interna à equipe.
ii. A linha de cuidado que deve garantir fluxos seguros e tranquilos de acesso do
usuário aos serviços de saúde dentro ou fora da própria Unidade. A linha de cuidado
só funciona de forma harmônica com garantia de fluxos entre equipes e serviços,
se houver uma pactuação entre os trabalhadores com base no compartilhamento
do cuidado.
iii. O processo de trabalho individual e coletivo é a base sobre a qual todo cuidado
pode acontecer. Portanto, compartilhar a gestão do cuidado é ter como foco,
atravessando todos os processos, o trabalho em saúde. Ele deve ser discutido no
seu funcionamento cotidiano, envolvendo o saber e o fazer de cada trabalhador
na relação com o usuário.
iv. Implicação em relação a todo processo de cuidado. Só compartilha quem está
implicado, ou seja, quem tem envolvimento, compromisso e é cúmplice de uma
relação de trabalho centrada nas necessidades do usuário.
Essas questões podem ser consideradas o ponto de partida para se pensar a gestão
colegiada e compartilhada, tendo como foco o funcionamento cotidiano da Unidade de
Saúde e um serviço centrado no usuário e sua relação com os trabalhadores.

24 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


Exercício: Propomos que você releia o tema dos “Mapas Analíticos” citado
anteriormente e faça um exercício de sua aplicação em uma equipe de
gestão ou assistencial. Apresente os resultados ao tutor.

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


25
26 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE
5

Aula
MODELO DE CUIDADO
CENTRADO NO USUÁRIO

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


27
2ª. Parte: MODELO DE CUIDADO CENTRADO NO USUÁRIO
NOVAS POSSIBILIDADES DE PROJETO TERAPÊUTICO: O
CASO MARTA
Para ilustrar esta nossa reflexão, gostaríamos de trazer para a cena temas caros para
a produção do cuidado na E.S.F. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), ao tratar
das Especificidades da Estratégia de Saúde da Família, aponta para a importância de
“atuar no território, realizando cadastramento domiciliar, diagnóstico situacional, ações
dirigidas aos problemas de saúde de maneira pactuada com a comunidade onde atua,
buscando o cuidado dos indivíduos e das famílias ao longo do tempo...”.
Não podemos deixar de valorizar aspectos fundamentais da ESF, como a compreensão
do território e a máxima utilização possível de outra ferramenta, a “visita domiciliar” de rotina,
que é o espaço onde muitas vezes nos defrontamos com o outro e suas reais necessidades
de saúde, para além das estratégias programáticas que orientam essas ações na ESF, ou
seja, a busca ativa de hipertensos, diabéticos, gestantes e menores de um ano.
Chamamos a atenção, também, para o Caderno de Atenção Básica “Diretrizes do
NASF, no qual se discute importantes conceitos e ferramentas utilizados na produção do
cuidado e que não podem ser perdidos de vista pela gestão das unidades. Destaque
para a Clínica Ampliada e para o Projeto Terapêutico Singular (PTS).
A Clínica Ampliada busca evitar abordagem que privilegie excessivamente alguma
matriz de conhecimento disciplinar. Ou seja, cada teoria faz um recorte parcialmente
arbitrário da realidade (por exemplo, na mesma situação clínica, pode-se “enxergar”
vários aspectos: patologias orgânicas, “forças sociais”, produção de subjetividade etc.),
podendo ser cada recorte mais ou menos relevante em cada momento. A Clínica
Ampliada busca construir sínteses singulares, tensionando os limites de cada matriz
disciplinar e colocando em primeiro plano a situação real do trabalho em saúde, vivida
a cada instante por sujeitos reais. Esse eixo da Clínica Ampliada traduz-se, ao mesmo
tempo, em um modo de fazer a clínica diferente e na ampliação do objeto de trabalho,
com a necessária inclusão de novos instrumentos.
O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é um conjunto de propostas de condutas
terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão
coletiva de uma equipe interdisciplinar, com apoio matricial, se necessário. Geralmente, é
dedicado a situações mais complexas. É uma variação da discussão de “caso clínico”. Foi
bastante desenvolvido em espaços de atenção à saúde mental como forma de propiciar
uma atuação integrada da equipe que valoriza outros aspectos, além do diagnóstico
psiquiátrico e da medicação no tratamento dos usuários, mas pode e deve ser aplicado
na ampliação de projetos terapêuticos na atenção básica, em que a busca por entender
o outro, a partir do seu lugar, pode ser importante no estabelecimento de vinculo entre
usuários e equipes na resolutividade e compreensão do que seja a real necessidade de
saúde de um usuário e/ou sua família. O caso abaixo dialoga com esses conceitos.
Ao chegar a uma unidade de saúde, me deparo com uma técnica de enfermagem
de saída para uma visita domiciliar. Ela iria fazer uma busca ativa de crianças com vacinas
em atraso e de mulheres que não “estavam em dia” com o preventivo ginecológico.
Sobre a mãe dessas crianças, ela diz que, apesar de sucessivos agendamentos, quase
nunca aparece às consultas. Além de algumas de suas crianças estarem com as vacinas
de rotina atrasadas, ela nunca tinha vindo fazer o seu preventivo ginecológico, mesmo
com a insistência da equipe.

28 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


“Não sei mais o que fazer... é uma mãe muito relapsa. Vou lá ter mais uma conversa
com ela”, diz a técnica de enfermagem com ares de reprovação. Perguntei se poderia
acompanhá-la na visita e, com seu assentimento, sugeri que fôssemos lá para tentar
entender as causas dessas ausências ao serviço, para apenas escutá-la, e que, pelo menos
inicialmente, não cobrássemos as faltas dela e das crianças à unidade.
Um profissional de saúde não deve definir regras abstratas para serem aplicadas
nos encontros, pois ele não busca um caminho linear para atingir um fim. Integre-
se, sinta que você é parte da cena, e não o dono dela. Não se esqueça de que cada
caso é um caso e que você também é um em cada encontro, afinal, como nos dizia
Deleuze, “somos multiplicidade”. Mas, em uma visita domiciliar, temos algumas pistas que
devemos considerar. Não se deve dirigir a atenção para algo específico, mas mantê-la
“uniformemente suspensa”; ficar igualmente atento a tudo, estar em cena e saber escutar.
Essa atenção aberta, sem focalização específica, permite a captação dos elementos que
formam um texto coerente e à disposição da consciência, como também nos permite
captar material aparentemente desconexo e em desordem, que muitas vezes dá pistas
para a fluidez do encontro, uma atenção à espreita, nos diria Deleuze. Deve-se estar
atento aos signos e às forças circulantes, ou seja, às pontas de processos em curso. É
preciso estar atento às expressões que trazem à tona as sensações, os afetos disparados
em ato. Devemos colocar entre parênteses os juízos sobre o mundo, em uma atitude de
abandono, ainda que temporário, da política cognitiva realista, na qual o conhecimento
se realiza a partir da relação sujeito-objeto. Não comece comparando o caso de fulana
com sicrana, cada história tem sua beleza, a sua dor.
Ao chegarmos, Marta estendia roupas no varal e, com ar de “poucos amigos”,
veio ao nosso encontro: “o que vocês querem”, diz, colocando as duas mãos na cintura.
Imediatamente, percebi certa hostilidade naquela expressão, pois, como sabemos,
os corpos em seu poder de afetar e ser afetado se atraem ou se repelem. Havia um
tensionamento e um certo descaso naquele olhar. A técnica me apresentou: “esse é o
meu apoiador, viemos conversar um pouco com você”. Eu me aproximei dela e estendi
a mão. Ela titubeou, dizendo que estava com as mãos molhadas. Eu insisti e apertei a
sua mão, perguntando se teria um tempo para conversarmos, pois, se não estivesse
disponível, poderíamos retornar outra hora. “Tudo bem, já acabei de lavar a roupa
mesmo”, responde Marta. Dos movimentos de atração e repulsa, geram-se efeitos, os
corpos são tomados por uma mistura de afetos, muitas vezes díspares. Na expressão de
seu olhar e observando as condições de habitação de Marta senti a dureza daquela vida,
uma expressão de cansaço, de “beco sem saída”.
“Quanta roupa!”, comento de propósito. “Claro! Além das roupas daqui de casa,
ainda ‘lavo pra fora’ para ganhar alguns trocados. A vida não está fácil, doutor. Só aqui
em casa são seis bocas para alimentar; e criança, o senhor sabe, suja muita roupa”, declara
Marta. Estávamos todos em suspense naquele momento, Marta e nós. Qualquer palavra
mal colocada poderia provocar uma ruptura, a impossibilidade de prosseguir o encontro.
Neste momento, se aproxima uma criança; com um sorriso largo, e de pura
expressão de entrega, vem em minha direção de braços abertos, me abraça pela cintura,
coloca a cabeça no meu peito e assim permanece, sorrindo e mordendo a língua que se
movimentava pela boca. Eu me entrego àquele abraço e acaricio seus cabelos. Diferente
dos afetos produzidos até agora no encontro com Marta, sobra fluidez neste encontro.
Uma onda de ternura me invade. Marta se explica: “ele é assim mesmo, doutor, abraça
todo mundo, tem problemas desde pequenininho, já nasceu assim. Me dá um trabalho

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


29
danado esse menino, mas é o mais carinhoso. Três vezes por semana levo ele lá no
Recreio dos Bandeirantes, em um Hospital para se tratar”. De sua casa até o hospital, tem
uma distância de uns 40 km e algumas baldeações de transporte público. Ela abre os
braços e ele, com a mesma expressão de ternura, se acomoda naquele abraço gostoso.
Ela agora já sorri. A chegada de Gérson deu novos ares àquele encontro. Sua máscara
de mãe zangada se transformou, em matéria de expressão, em mãe afetuosa. Essa era
agora a nova expressão de Marta. O apoiador e a técnica também perderam a máscara
de “pisando em ovos” e já sorriam e, ainda meio desajeitadamente, buscavam uma maior
conexão com a nova cena. Já existe alguma fluidez naquele encontro. O cenário se
transformara com a chegada de Gérson. Era esse o seu nome. Nos encontros os corpos
são tomados por uma mistura de afetos eróticos-sentimentais, estéticos. O apoiador
observa Marta, uma mulher jovem, bonita, que agora, sorrindo, mostra todo o seu
esplendor. Pergunto sua idade. “28”, diz ela. “Ele nasceu eu tinha 18”, pôs-se a falar. Teve
com o primeiro companheiro 03 filhos. Gérson, que já nasceu com “esse problema”, era
o mais velho. O pai é um dependente químico de cocaína. “Sei não, mas acho que vem
daí os problemas desse menino. Ele cheirava (uso de cocaína) muito e muitas vezes me
agredia, mesmo durante a gestação”, admite Marta. Gerson olha para a mãe com tristeza,
com cara de reprovação. “Vivi muito tempo com ele, apesar do problema, pois esse aqui,
doutor, até hoje, tem verdadeira adoração por ele, coisa de filho e pai. Mas ele nunca me
ajudou em nada, mais me atrapalhou. Hoje acho que estou livre dele, pois tenho outro
dentro de casa, com o outro aqui ele não entra, é outra situação.”
Suas máscaras de expressão se alternavam. Ora sentia raiva, quando falava do ex-
marido, ora resignava-se pelo filho, que amava aquele “pai bandido” (expressão de Marta),
que, de alguma forma, faz com ele uma conexão. “Depois de Gérson, veio a Melina, essa
sem problemas, vai bem na escola, até me ajuda em casa, é tudo de bom”, comenta Marta.
Numa segunda visita, conhecemos Melina, que nos pareceu ter um pouco de ciúmes de
Gerson, “porque eu cuido mais dele”, diz Marta, mas isso é coisa de irmão. Já o terceiro,
“esse não é moleza”. “O João tem cinco anos. Está fora da creche, nenhuma escola quer
ficar com o menino, é hiperativo (expressão de Marta), uma loucura, destrói tudo que
coloca na mão. Só dorme depois de meia-noite e acorda primeiro do que todos. Às cinco
da manhã ‘pula da cama’ e não deixa ninguém mais dormir. Não sei como uma criança
tão doente pode ser tão levada. Lá no Hospital de criança diagnosticaram uma doença
grave, não sabem direito se é Leucemia, ou fibrose cística, ainda estão investigando, mas
coisa boa não é não. Já tentei várias escolas, ninguém quer ficar com ele, doutor, mas eu
entendo, eu que sou mãe já quase não aguento tanta agitação.”
Eis que surge João, arredio, ressabiado, que, ao contrário de Gérson, não quis
qualquer conexão. Depois de algum tempo, a médica da equipe conseguiu alguma
proximidade com ele. Magro, de cútis amarelada, “este não é um caso simples e precisa
ser investigado com atenção”, diz a médica, que se incorporou ao caso na segunda
visita que fizemos à casa de Marta. A filha mais nova (Maria), desde a segunda visita,
estava sempre no colo da mãe. “Esta menina não me larga, um grude, não quer saber de
chão”, explica Marta. Maria já é do segundo marido, o Manoel, que vive de biscates, mas
ultimamente está doente. “Acho que está com hepatite”, acrescenta. Fomos ver Manoel,
que estava dentro de casa deitado; talvez seja, talvez não. Pergunto se Maria está na
creche. Marta, meio sem jeito, diz que não. “Sabe o que é, perdi o papel do nascimento
dela (declaração de nascidos vivos), e sem ele não consigo a certidão, e aí não consigo
matricular ela na creche.”

30 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


Marta e nós já éramos outras pessoas nesses encontros. Nossas máscaras de
expressão já transpiravam confiança, respeito mútuo, admiração. Percebe-se que as
intensidades experimentadas por todos já formavam algum plano de consistência. Um
plano em que os afetos tomaram corpo, delineando um território onde todos puderam
se situar. Estava estampada em nossos rostos e olhares muita admiração, e nos olhos de
Marta se percebia uma grande satisfação de poder contar sua história e de ser ouvida,
sem nenhuma censura ou interrupção. Gérson vem chegando com a irmã, vindo da
escola, com aquele sorriso nos lábios, abraçando todos com leveza, mexendo com nossa
emoção. Era de fato especial aquele menino, pois conseguia expressar sem rodeios todo
seu afeto, toda sua afeição. Despedimo-nos e saímos, em silêncio, pensando naquele
encontro e nas nossas afetações. Eram múltiplas as nossas máscaras de expressão, de
desapontamento, de autocrítica. Era uma máscara velada, de dissimulação de alguma
situação. A técnica de enfermagem fez uma reflexão meio velada: “Nossa! Nem nos
lembramos da vacina das crianças e do preventivo de Marta, mas também pudera... é
muito problema, e para nós, da saúde, há pouca solução”. A médica, sensível, ponderada,
assumidamente fez sua autocrítica sem rodeios e com emoção: “E pensar que o nosso
projeto terapêutico para ela era vacinar as crianças e trazer a Marta para fazer o seu
preventivo anual. As necessidades de saúde desta família são bem outras. Depois, quem
sabe, ela vem ao serviço e consiga ter alguma adesão”.
Não se pode culpabilizar a equipe pelo projeto terapêutico restritivo até então
pensado. Na saúde os agenciamentos de subjetividade têm como base dois referenciais
constituídos por territórios fortemente marcados, de um lado pelo discurso da prevenção
e promoção e, de outro, pela clínica centrada no modelo biomédico. Sabemos que os
profissionais, a despeito de todas as normatizações programáticas, vão operar aquele
modelo com o qual têm uma maior identidade ético-política, sobretudo aquele que
se refere a seu campo de saberes e território existencial. A forte institucionalização na
estratégia de saúde da família da vigilância em saúde, como orientadora das práticas,
acabava falando mais alto. Se agisse programaticamente, a equipe sinceramente se
preocuparia com a carteira de vacina das crianças e com o preventivo de Marta. Não
que não devesse se preocupar com isso, mas essas poderiam não ser as primeiras ações.
Buscar estabelecer um vínculo, contextualizar o processo de vida das pessoas, evitando
emitir qualquer juízo de valor a respeito de seus comportamentos, pode e deve ser o
primeiro passo na busca de qualquer conexão.
Nos encontros seguintes, sempre destacávamos a força, a potência de Marta diante
da vida, realçando seus esforços em cuidar cada vez melhor de seus filhos, que, nesta
vida, são sua maior paixão. “Por eles sou capaz de tudo, eles são a minha razão.” Talvez
Marta precisasse aprender a viver por ela. Ela deve cuidar, sim, dos filhos, mas também
dela, já que é uma mulher jovem e cheia de vida. Reafirmando a sua potência de vida,
talvez ela percebesse o quanto pode fazer e ser, se desejar com convicção. “Sempre quis
ser vendedora de loja, trabalhar em shopping, porque o que não me falta é disposição”,
declara. Você pode, afirmávamos. Se desejar, você consegue. Ela se considerava uma
pessoa fraca, fisicamente frágil, apesar de sua disposição. Ela precisa perceber a força que
tem e a potência desta força em um processo desejante de transformação. Lembramo-
nos de Espinosa :
Não sabeis do que sois capazes, no bom como no mau, não sabeis
antecipadamente o que pode um corpo e uma alma, num encontro, num agenciamento,
numa combinação. (DELEUZE, 2002, p. 130).

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


31
Outras questões afligiam Marta. O seu avô, de 85 anos, abriu uma queixa contra ela
por abandono e por falta de abrigo, no Comitê de Defesa da Pessoa Idosa, pois achava
que ela, única neta, tinha por obrigação cuidar dele. Ele morava em uma casa próxima a
dela e dispunha de uma renda familiar bem superior da que dispunha Marta, em termos
per capita, para cuidar de sua família. A companhia de luz a havia notificado, pelo fato de
sua casa ter sido construída sob uma linha de transmissão de energia. Ela temia perder
seu imóvel, que não era legalizado, uma posse de mais de 10 anos, mas sem muito valor em
caso de indenização. Ela nos trouxe o documento da Cia. de energia elétrica, para, ao lê-lo,
o interpretarmos com ela. Era uma notificação da empresa acerca da impossibilidade de
elevar o padrão de construção da casa e/ou plantar sob a linha árvores de médio e
grande porte que pudessem causar qualquer intervenção na linha, mas sem nenhuma
recomendação acerca dos riscos de se viver debaixo de uma linha de transmissão. Ao
chegarmos à UBS, com a ajuda dos alunos que participaram desta ação, tentamos
desenhar o quadro familiar de Marta (familiograma), para pensarmos, juntos, a
complexidade dos problemas e discutir com ela possíveis ações.

Eram também muito precárias as condições do domicílio de Marta e de seus filhos.


Tentamos, de forma bastante cuidadosa, dar seguimento ao projeto terapêutico
explicitado por Marta. A cada encontro, era crescente e recíproca a nossa admiração. E
esse é um cuidado importante, não para produzir paixões alegres, mas afetos passivos
que tornem “paciente” o outro que nos admira e que espera de nós a solução de seus
problemas. Eis um cuidado importante: fazer o outro perceber que é dele a potência de
transformar a sua vida, caso deseje. E esse parece ser o caso de Marta. Buscamos, sempre
com Marta, enfrentar o que ela identificava.

32 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


A apoiadora de Pediatria (neste município os apoiadores atuam por especialidades)
tomou para si o caso de João, de 05 anos, e, após alguns exames, confirmou uma fibrose
cística. Marta leva regularmente o filho às consultas agendadas no hospital de referência.
Acompanhada por alguns alunos e pela Assistente Social, foram visitadas com Marta
algumas creches, para se conseguir, se possível na mesma escola, vaga para João e Maria
(de 01 ano e sete meses). Depois de muita procura e de uma ação do Conselho Tutelar,
conseguimos uma creche de horário integral, que aceitou ambos. A apoiadora de saúde
coletiva em conversas com Marta descobriu onde se realizou o parto de Maria e solicitou
à Marta retornar à maternidade, onde conseguiu a cópia da D.N. (Declaração de Nascidos
Vivos) da filha para, enfim, poder fazer o registro civil de Maria. Todo o tratamento de
Gérson passou a ser feito em Niterói, que dispunha dos mesmos serviços que Marta
buscava na cidade do Rio de Janeiro. No Conselho de defesa da pessoa idosa, por
intermédio da assistente social, o processo de “abandono” que seu avô havia movido
contra ela foi arquivado. Marta agora sai de casa cedo, deixa os filhos na creche e vai
trabalhar como diarista (faxina). Na volta apanha os dois menores na creche ao voltar
para casa.
Algum tempo depois, a equipe informou que Marta havia se mudado com os
filhos, e sem o segundo marido, para a casa do seu avô (com condições estruturais bem
melhores que a sua), passando a cuidar também dele, o que lhe possibilitou ainda alugar
a sua antiga casa. Nem preciso dizer que a relação dela com o serviço de saúde já era
outra. Por falar nisso, as crianças estão com suas vacinas em dia, e Marta, sempre que
possível, aparece para alguma consulta. Na última vez que a vi na UBS, ela disse que
continuava à procura de uma loja para trabalhar em um shopping, um antigo sonho, do
qual não tenho dúvida de que ela ainda vai conseguir realizar.
Uma visita domiciliar, um encontro entre profissionais e usuários, pode e deve ser um
encontro entre singularidades, onde temos que aprender a conviver com a tensão do diferir,
sem ter que reduzi-lo a um equilíbrio normatizador, a processos de trabalho protocolados
pela vigilância em saúde. Nós, profissionais de saúde, falamos, na maioria das vezes, de um
lugar bem diferente daqueles que nos procuram. Não estar com o preventivo ginecológico
ou com as vacinas dos filhos em dia pode parecer um erro em determinado contexto, em
outro nem tanto, ou pode não ser a prioridade naquele momento. Depende do lugar de
onde falamos. O caso Marta pode ilustrar bem esta situação.

GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


33
Atividade de Avaliação UA 2

Use o roteiro abaixo para refletir e elaborar


esta parte do seu TCC
- À luz do conceito “tecnologias leve, leve-dura e dura” tra-
zido por Merhy, analise o caso acima e escreva para seu TCC
acerca do uso destas três tecnologias na relação da equipe
com Marta e seus filhos.
E nos processos de trabalho nas UBS onde trabalhamos, em
que proporção estas diferentes tecnologias são utilizadas?
Que tal levarmos esta discussão para nossa unidade, para
as equipes da ESF? Pense nisso e escreva, acrescentando ao
texto do seu TCC.
Como avaliamos neste encontro a produção do cuidado?
Qual a participação de Marta neste projeto terapêutico?
Leve esta discussão para o fórum da unidade, partilhe com
seus colegas de turma, discuta, reflita e escreva sobre isso.

34 GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


Referências bibliográficas
DELEUZE, G. Espinoza e filosofia prática. São - Paulo: Escuta. 2002. 135 p.
FRANCO, T.B. e GALAVOTE, H. S. Em Busca da Clínica dos Afetos. In: Franco, T.B. e Ramos,
V.C. Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde. Hucitec: São Paulo, 2010.
FRANCO, T.B., BUENO, V.S. e MERHY, E.E. O Acolhimento e os Processos de Trabalho em
Saúde: o caso de Betim, MG. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(2):345-353, abr-jun,
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FRANCO, T.B.; MERHY E.E.; Programa Saúde da Família (PSF): Contradições de um Programa
Destinado à Mudança do Modelo Tecnoassistencial in Merhy, E.E. ET AL, O Trabalho em
Saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano; São Paulo, Hucitec, 2003 (págs.
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MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
MERHY E. E. et al: Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua.
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MERHY, E.E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In:
MERHY, E.E., ONOCKO, R. (orgs.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo:
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MERHY, Emerson E. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde - Uma
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MOREIRA, Luiz Carlos Hubner. Clínica, cuidado e subjetividade: uma análise da prática
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GESTÃO DO TRABALHO E DA SAÚDE


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