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Belo Horizonte
2010
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 869.0(81)-3
Arthur Parreiras Gomes
O narrador nos tempos hipermodernos:
a cartografia e o romance
_________________________________________________________________________
Prof ª Dr ª Maria do Carmo Lanna Figueiredo – UFMG
_________________________________________________________________________
Prof ª Dr ª Mônica Maranhão Fagundes Fernandino – INTEGRA Cursos de Língua
Portuguesa e Consultorias
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Prof ª Dr ª Márcia Marques Morais – PUC Minas
_________________________________________________________________________
Prof ª Dr ª Sílvia Regina Eulálio Souza – PUC Minas
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart (Orientador) – PUC Minas
PUC Minas
DEDICO
Para Heloísa, minha esposa, companheira e grande amor, que me questiona, me apóia e me
incentiva em todos os momentos, principalmente naqueles em que penso em desistir.
Para Nathália que, com sua beleza, sinceridade e inteligência, me acolhe carinhosamente nas
situações que me parecem mais difíceis.
Para Catharina, minha caçulinha que, com sua meiguice e alegria, me ensina, cotidianamente,
dançar e cantar o mundo fazendo dele arte.
Muito obrigado,
Amo vocês!
AGRADEÇO
À Prof ª Maria do Carmo Lanna Figueiredo, pelas ricas contribuições apresentadas no exame
de qualificação, reafirmando sua competência, dedicação, afetividade e compromisso ético
com a formação de seus alunos.
À Prof ª Márcia Marques Morais, pelo empenho e sugestões dadas na realização do estudo
orientado do romance “Nove Noites” e pelos valiosos comentários feitos no exame de
qualificação.
À Prof ª Sílvia Regina Eulálio de Souza, pela disponibilidade para compor esta banca e pelo
companheirismo e afetividade que solidifica nossa amizade no cotidiano do trabalho
acadêmico.
À Prof ª Mônica Maranhão Fagundes Fernandino, pela simpatia e gentileza que acolheu o
convite para ser leitora desta tese e pelas contribuições trazidas nesta banca.
Á Prof ª Suely Maria de Paula e Silva Lobo, pela delicadeza, seriedade e competência
cotidianas e pelas sugestões oferecidas no parecer do projeto de pesquisa.
Às Professoras Ângela Vaz Leão, Ivete Lara Camargos Walty e Maria Nazareth Soares
Fonseca, pelo apoio e aprendizagem no percurso do Mestrado ao Doutorado.
Às secretárias Berenice Viana de Faria e Vera Lúcia Mageste de Salles Alves, pela atenção e
solicitude.
Aos meus pais Arthur e Alice e aos meus familiares e amigos Angélica, Joaquim, Lúcia,
Vanessa, Cristina, Denise, Luciane, Renata, Thaís, Cláudia, Victor, Carolina, Flávia, Gabriel,
Betânia e, em especial, minha sobrinha Roberta, pelo carinho, interesse e solidariedade em
todas as minhas dificuldades, conquistas e produções.
À minha irmã amiga e cunhada, Sandra Maria de Assis, pela maneira afetiva e carinhosa que
acompanhou este trabalho, desde a escolha do romance a ser estudado até a revisão final desta
tese.
Aos meus cinco grandes e verdadeiros amigos Denancir, Ronan, Lauro, Vanderson e
Vamberto, pelo companheirismo e por saber que com vocês sempre posso contar como meus
queridos irmãos.
Aos colegas e amigos Andréa Carmona, Dinéia Domingues, José Newton Garcia, Juliane
Paulino, Maria Carmen Schettino, Maristela Costa, Patrícia Melo, Paula Birchal, Regina
Corradi e Wagner Siqueira, grandes intercessores com quem compartilhei todo o percurso do
doutorado no companheirismo afetuoso presente no nosso cotidiano de trabalho.
À Carla Jorge Machado, pelo interesse carinhoso pelo meu percurso no doutorado e
contribuições pontuais na elaboração final da tese.
Ao amigo Michael Albino dos Santos, pela paciência e colaboração no trabalho de digitação
desta tese.
Aos meus alunos e orientandos de monografia, pela parceria no trabalho de pesquisa e nos
estudos sobre esquizoanálise, arte e literatura.
RESUMO
The schizoanalysis brings its reflections on art and literature by using the concept of
invention. To think creation as an invention is the same to believe that the findings and
products are unique in a human context of plurality and diversity of experiences.
Through what Guattari (1992) called a motor internal fencing, artist and writer
produce their subjectivities. The subjectivities allow them to make their discoveries, meet
with the external reality, as well as with themselves. The output of subjectivies are translated
into acts of resistance to societies of control.
Faced with harsh lines present in the societies of control, this thesis makes use of
cartography in order to study the romance, giving the work autonomy, recognizing it as living
space. In fact, the narrative is constructed by the movement afforded by deterritorializations
allowed by the narrator. Move the romance biography away from author allows the
mapping of the narrative in the movements made by the narrator, even before the lines that
make the text as a network, which are built on a rhizome and on the hypermodern plurality. In
the composition of the romance, taken as a rhizome, the author also makes a line in this
narrative.
The romance, as a manifestation of feelings, emotions and perceptions, take away
from the production of romance its static condition designed by the author. Such production is
included on the flow of fiction, which is heavily promoted to be read by different
subjectivities and their dynamic looks.
Reading the romance as a rhizome allows the narrator to accompanning cartography
involving different discourses, which presents us with another way to treat the narrative,
unlike conventions that were statically territorialized.
Considering mobility, fluidity and flexibility, the romance, the hypermodernity,
approaches the mobility and socio-cultural fluidity. Thus, literary studies should also be
updated in the space of plurality, transdisciplinarity and intertextuality to approach the
romance and the human reality hypermodern.
There is no possibility to avoid the new literary techniques in the production of
romance and, among them, find different possibilities of assembling the narrative, which is
open to multiple as the locus in which the romance takes place, instead of shutting the search
in the view of the plural as fragmentation looking for conventions and
uniformalizations.
Thus, the romance gives voice to feelings, sensations and human perceptions
according to the intensity they are affected by hypermodernity. Thus, the romance moves
away from the perspective of the individual and unique to dive into the field of dialogue,
which can be interdiscursive, transdisciplinary, transpersonal, and, therefore, social.
There is no intention to banish standards and techniques in literary studies, but to
consider multiple values and different perspectives that only strengthen the reading and the
study of romance in the hypermodernity times.
SUMÁRIO
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................168
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................176
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Assim, “Nove Noites” não é nem início e nem fim; é sempre meio que sustenta o
enigma e o mistério que envolve a morte, a vida e a sexualidade de Buell Quain em constantes
transformações.
No contexto do rizoma, também podemos incluir a compreensão do que chamamos
hipermodernidade. Contudo, se faz necessário, inicialmente, conhecer a pós-modernidade e
suas interfaces com a modernidade para alcançar a hipermodernidade proposta por Lipovetsky
(2004). Nos tempos pós-modernos, Bauman (2001) comenta a fluidez das transformações
comparando-a com a fluidez líquida e gasosa. Esse autor pensa a pós-modernidade em sua
natureza líquida a partir do “capitalismo moderno, [que] na expressão célebre de Marx e
Engels, ‘derrete todos os sólidos’; [portanto,] as comunidades auto-sustentadas e auto-
reprodutivas figuram em lugar de destaque no rol dos sólidos a serem liquefeitos.”
(BAUMAN, 2003, p.33) Nesta mesma direção, Kujawski (1991) nos diz que a modernidade
pode ser entendida sob o ponto de vista de Gianni Vattimo através dos “conceitos de
progresso e superação” (KUJAWSKI, 1991, p.18) ou pela fórmula de Marx, adotada por
Marshall Berman, de que “tudo que é sólido desmancha no ar” (KUJAWSKI, 1991, p.18),
numa alusão ao “dinamismo da economia moderna, que aniquila tudo que cria, a fim de
continuar, infindavelmente, criando o mundo de outra forma”. (KUJAWSKI, 1991, p.11)
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No que se refere à forma pela qual o romance “Nove Noites” se apresenta, em um jogo
de desvendamentos e ocultações, diferentes tonalidades aparecem na escrita da narrativa.
Assim, o discurso jornalístico se intertextualiza com os discursos histórico, científico e
antropológico, dando distintas configurações ao texto literário. Ao falar sobre o gênero
romance, Bakhtin diz que este
tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno pluriestilístico,
plurilíngue e plurivocal. O pesquisador depara-se nele com certas unidades
estilísticas heterogêneas que repousam ás vezes em planos linguísticos diferentes e
que estão submetidas a leis estilísticas distintas. (BAKHTIN, 1993, p.73)
Dentre diferentes textos, aqui também representados por distintos espaços dentro das
ciências humanas; “o objetivo do método cartográfico é arrancar o percepto das percepções,
do objeto e dos estados de um sujeito percipiente. Bem como arrancar o afeto das afecções,
passagem de um estado ao outro.” (KIRST, 2003, p.98) Para se aproximar desse objetivo, o
cartógrafo procura afirmar-se através do encontro com o objeto e não no distanciamento dele,
trabalhando conceitos e ideias como letra; registro; vibrações históricas e sócio-culturais da
subjetividade.
lugares a que não se atribui significado. Não precisam ser delimitados fisicamente
por cercas e barreiras. Não são lugares proibidos, mas espaços vazios, inacessíveis
porque invisíveis. Se o fazer sentido é um ato de padronização, compreensão,
superação da surpresa e criação de significado, nossa experiência dos espaços
vazios não inclui o fazer sentido. (BAUMAN, 2001, p.120)
Nessa direção, Kristeva comenta que “a ‘palavra literária’ não é um ponto (um sentido
fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do
escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior.”
(KRISTEVA, 1974, p.62)
No seu texto “Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso”, Barros, ao
aproximar Todorov a Bakhtin no que se refere às relações do discurso com a pluralidade
semântica que envolve a enunciação, o contexto sócio-histórico e o outro, introduz a
concepção de intertextualidade a partir de Kristeva. Segundo Barros: “Todorov, a partir da
sugestão de Kristeva, prefere usar o termo intertextualidade para os ‘diálogos entre
discursos’”. (BARROS, 1996, p.33-4) Assim, falar de intertextualidade é falar do cruzamento
de diferentes discursos na compreensão do texto como dialogismo e polifonia, “reservando o
termo dialogismo para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo discurso e
empregando a palavra polifonia para caracterizar certo tipo de texto, aquele em que o
dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes”. (Barros, 1996, p.36)
Aqui cabe ressaltar que para Fiorin, intertextualidade e interdiscursividade se
diferenciam. Para esse autor enquanto a intertextualidade diz respeito aos “processos de um
texto – unidade de manifestação, com expressão e conteúdo – em outros; [...] [na
interdiscursividade] incorporam-se temas e/ou figuras de um discurso em outro.” (FIORIN,
1994, p.32)
Contudo, enquanto rede, tanto a intertextualidade quanto a interdiscursividade se
aproximam da transdisciplinaridade, ou seja, a coordenação de várias disciplinas num dado
sistema onde interagem distintos saberes, em diferentes níveis e com objetivos múltiplos na
composição de um axioma. Para Vasconcelos (2002), transdisciplinaridade não é a
pulverização de conhecimentos especializados, é a integração de campos e saberes individuais
em um campo de saber mais amplo com autonomia teórica e operativa própria. Na perspectiva
esquizoanalítica, Baremblitt recorre à figura do bricoleur para falar de transdisciplinaridade.
Segundo esse autor:
[Na transdisciplinaridade] o essencial é entender que não se trata de “aplicações”
sistemáticas de disciplinaridades, especificidades ou de saberes fazeres
convalidados ou sacralizados, e sim, de sua reinvenção e remontagem fragmentária
e bricoleur que se compõem as realidades e realteridades
esquizoanalíticas.(BAREMBLITT, artigo disponível no
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sitehttp://www.fgbbh.org.br/artigos/subetividad_subjetivacion.htm acesso em
21/05/2008)
Kristeva, citando Sollers, também nos diz que: “entendido como prática, o texto
literário ‘não é assimilável ao conceito, historicamente determinado, de literatura. Implica a
inversão e o remanejamento completo do lugar e dos efeitos desse conceito.’”(KRISTEVA,
1974, p.40) Assim, para essa autora “todo texto ‘literário’ pode ser encarado como
produtividade. Ora, a história literária, desde o fim do século XIX, oferece textos modernos
que, em suas próprias estruturas, se pensam como produção irredutível à
representação.”(KRISTEVA, 1974, p.41)
Sendo assim, para pensar o romance e o seu narrador na hipermodernidade, não
podemos desconsiderar a modernidade, seus paradigmas e possibilidades. Como diz
Lipovetsky (2004): “Longe de decretar-se o óbito da modernidade, [nos tempos
hipermodernos], assiste-se a seu remate, concretizando-se no liberalismo globalizado, na
mercantilização quase generalizada dos modos de vida, na exploração da razão instrumental
até a ‘morte’ desta, numa individualização galopante.” (LIPOVETSKY, 2004, p.53) Portanto,
para se falar de tempos hipermodernos, termo cunhado por Lipovetsky, tem-se que pensar na
modernidade, quando o homem medieval/feudal que “não [era] protagonista dos próprios
atos, [pensando e agindo] coletivamente, governado por um só princípio, a
tradição”(KUJAWSKI, 1991, p.20), foi substituído pela individualidade, única responsável
tanto pelo sucesso como pelo fracasso de cada indivíduo isoladamente.
Contudo, atravessando o contexto da individualidade moderna, os tempos
hipermodernos, elevando os paradigmas da modernidade aos seus expoentes maiores, deram
visibilidade à diferença no sentido do que é múltiplo e dialógico. Para Jakobson, no prefácio
do livro de Bakhtin “Marxismo e filosofia da linguagem”, segundo Bakhtin,
na estrutura da linguagem, todas as noções substanciais formam um sistema
inabalável, constituído de pares indissolúveis e solidários: o reconhecimento e a
compreensão, a cognição e a troca, o diálogo e o monólogo, sejam eles enunciados
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uma fuga é uma espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos eixos (como
“pirar” etc.). Há algo de demoníaco, ou de demônico, em uma linha de fuga. Os
demônios distinguem-se dos deuses, porque os deuses têm atributos, propriedades e
funções fixas, territórios e códigos: eles têm a ver com os eixos, com os limites e
com os cadastros. É próprio do demônio saltar os intervalos, e de um intervalo a
outro. [...] Sempre há traição numa linha de fuga. [...] Trai-se as potências fixas que
querem nos reter, as potências estabelecidas da terra. (DELEUZE; PARNET, 1998,
p.53)
Schuch comenta que linhas de fuga podem ser “entendidas como o pensamento que
não se fecha sobre o reconhecimento de situações e saberes, mas, pelo contrário, questiona os
modelos e se propõe a novos encontros nas relações em que foi produzido.” (SCHUCH, 2003,
p.2)
Produzindo algo real e criando vida, o narrador, pensado como um cartógrafo diante
da pluralidade hipermoderna, desterritorializa-se e reterritorializa-se em diferentes tempos e
espaços da narrativa, deixando sempre vazar o que sustenta o tom enigmático do romance.
No que se refere à territorialização, desterritorialização e reterritorialização, para
Guattari e Rolnik,
a noção de território é entendida aqui num sentido muito mais amplo. [...] Os seres
existentes se organizam, segundo territórios que os delimitam e os articulam aos
outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território é sinônimo de aproximação, de
subjetivação fechada sobre si mesma. [...] A reterritorialização consistirá numa
tentativa de recomposição de um território engajado num processo
desterritorializante. (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p.323)
Ainda é importante salientar que um rizoma não se constrói apenas por linhas de fuga.
No rizoma também encontramos as linhas duras. Essas linhas são as linhas da arborescência e,
para Deleuze e Guattari, tais linhas também participam da construção do rizoma. Segundo
esses autores,
o que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos:
um [a árvore-raiz] age como modelo e como decalque transcendente, mesmo que
engendre suas próprias fugas; o outro [o rizoma-canal] age como processo imanente
que reverte o modelo e esboça um mapa; mesmo que constitua suas próprias
hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico. (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p.31-2)
Num rizoma construído por linhas duras e linhas de fuga, encontramos igualdades e
diferenças. Enquanto, pelo decalque, o sujeito molda-se frente ao modelo apresentado pela
árvore-raiz, no rizoma, através das linhas de fuga, o sujeito singulariza-se produzindo
diferenças. A rigidez das linhas duras é desfeita pelas linhas flexíveis, linhas elásticas que
metamorfoseam as linhas duras em “uma corrente de maleabilidade.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.68)
Na condição de produtor de intervalos propiciadores da emergência do diferente, o
narrador é um experimentador que, para Deleuze e Parnet, é um traidor, aquele que não se
conforma com os modelos que lhes são apresentados. Podemos pensar o experimentador
como o coringa de um baralho, aquele que muda o valor das cartas no decorrer do jogo. Para
Deleuze e Parnet, “o padre, o adivinho, é um trapaceiro, mas o experimentador, um traidor.”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p.55) É preciso trair para produzir diferenças e intensidades, e
não trapacear, pois, este último não denota devir. No seu livro “Lógica do sentido”, Deleuze
nos permite pensar o experimentador como uma possível forma de reverter o platonismo, por
o experimentador ser um diferencial, marcar uma diferença que evidencia um
devir-louco, um devir ilimitado, [...] um devir sempre outro, um devir subversivo
das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o mesmo ou o semelhante:
sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. Impor um limite a este
devir, ordená-lo ao mesmo, torná-lo semelhante – e, para a parte que permaneceria
rebelde, recalcá-la o mais profundo possível, encerrá-la numa caverna no fundo do
oceano: tal é o objetivo do platonismo em sua vontade de fazer triunfar os ícones
sobre os simulacros, [mataria o experimentador, extinguiria sua função de produzir
diferenças.] (DELEUZE, 1969, p.264)
outros autores na produção textual, significa utilizar de seus conceitos, como se fosse uma
caixa de ferramentas para a criação, num sentido pragmático, de outros e, talvez, novos
conceitos. Através dos intercessores encontramos as ferramentas necessárias para a produção
de teorias, para a construção de conceitos, para a criação. Na opinião de Foucault, um dos
intercessores de Deleuze, “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com
o significante. É preciso que sirva, é preciso que funcione...”. (FOUCAULT, 1979, p.70)
Diferente da arma, a ferramenta
prepara uma matéria à distância para trazê-la a um estado de equilíbrio ou adequá-
la a uma forma de interioridade. Nos dois casos, existe a ação à distância, mas num
caso é centrífuga, e no outro, centrípeta. Diríamos, do mesmo modo, que a
ferramenta se encontra diante de resistências a vencer ou a utilizar, ao passo que a
arma se encontra diante de revides, a evitar ou a inventar. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.73)
trabalho realizado pela e na linguagem, também se sustenta pela sua dissimilitude em relação
a um dado modelo, indo em direção à pluralidade hipermoderna.
O que pode parecer justaposição de ideias, na perspectiva da cartografia, é a
possibilidade de escrita e leitura de um texto como rizoma. Já em Bakhtin, podemos pensar
que “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo
tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.” (BAKHTIN,
1981, p. 144) Aproximando-se da ideia de cartografia, Bakhtin, ao falar sobre o discurso
citado, diz que
esse torna-se [...] mais forte e mais ativo do que o contexto narrativo que o
enquadra. Dessa maneira, o discurso citado é que começa a dissolver, por assim
dizer, o contexto narrativo. Esse último perde a grande objetividade que lhe é
normalmente inerente em relação ao discurso citado; nessas condições, o contexto
narrativo começa a ser percebido – e mesmo a reconhecer-se – como subjetivo,
como fala de “outra pessoa”. (BAKHTIN, 1981, p.151)
Bernardo Carvalho foi analisado através do método cartográfico para pensar as posições do
narrador frente ao imaginário, ao virtual e à ficção. Segundo a esquizoanálise, a realidade é
composta do possível, do impossível, do virtual e do atual e, assim, é preenchida pelo ser do
devir. Desta forma, “a realidade consiste em ‘todos’ os devires (processos) que a integram.”
(BAREMBLITT, 1998, p.71) Longe de uma ideia totalizante, a esquizoanálise, através dos
devires, diz de constantes construções da realidade por processos que vão “se agregando, sem
totalizar-se nem unificar-se inteiramente.” (BAREMBLITT, 1998, p.71) Da mesma forma, “o
ser não é estático, o ser é devir.” (BAREMBLITT, 1998, p.88)
Com o intuito de delimitar espaços conceituais e apresentar sucintamente o romance
“Nove Noites” como objeto de estudo desta tese, foram aqui realizadas algumas reflexões
como considerações preliminares à produção deste texto. Com isso espera-se contribuir para a
leitura e compreensão do texto que se encontra a seguir. Contudo, o que numa concepção
linear, arborescente e radicular pode parecer uma solução, a saber, a construção de uma
introdução ao texto a ser desenvolvido, na perspectiva esquizoanalítica uma introdução
apresenta-se como um problema. Na concepção de rizoma não temos nem início e nem fim.
Tudo é meio, pelo qual se deslocam e se desdobram diferentes significações. Portanto, o que
aqui é apresentado como considerações preliminares pretende definir territórios para futuras
desterritorializações e reterritorializações, já que, como foi dito anteriormente, para a
realização de uma cartografia exige-se coerência conceitual e força argumentativa e não a
linearização do texto.
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2 O NARRADOR E O IMAGINÁRIO
Em “Nove Noites”, o fato da morte do antropólogo Buell Quain está presente ao longo
de toda a narrativa, movimentando-a e ampliando suas possíveis leituras. As inquietações do
narrador frente à morte do antropólogo possibilitam, no decorrer do romance, a reconstituição
da vida de Buell Quain e de sua personalidade. O fluxo da narrativa, ao mesmo tempo em que
diz da morte do etnólogo, nos propicia conhecer a sua vida. Assim, o suicídio de Quain deve
ser entendido não como um núcleo desencadeador do romance, mas como um dos elementos
que dele faz parte e que o dinamiza.
Enquanto fluxo, a narrativa se expande em diferentes direções, em que cartas, fatos,
fotos personagens e o próprio narrador se contaminam mutuamente na constituição das
subjetividades existentes em “Nove Noites” e dos contextos temporais e geográficos presentes
no romance. Enquanto um rizoma, “Nove Noites” é devir, constantes transformações que na
dimensão imaginária se compõe por subjetividades que se manifestam em diferentes espaços
históricos, sociais e culturais. Na articulação do individual e particular com o social, a
narrativa mostra-se como fluxo de discursos, afetos e sensações. É nesse contexto que
podemos ser remetidos à concepção de imaginário radical de Castoriadis e à sua aproximação
com a cartografia apresentada pela esquizoanálise.
O desejo faz parte da mentalidade capitalista, assim como, de todo e qualquer outro
modo de produção. Em torno do capital podemos encontrar diferentes sistemas e organizações
sociais que se estendem do capitalismo ao socialismo. As máquinas desejantes são
moleculares. Por serem pequenas, “elas permanecem como tais no seio das entidades macro,
que se chamam molares, e que são as que estamos acostumados a reconhecer.”
(BAREMBLITT, 1998, p.52-3) Falar, pois, do desejo é estar “em conexão direta com os mais
diferenciados elementos de seu entorno que vão da família ao cosmos.” (GUATTARI;
ROLNIK, 1999, p.239-40) Assim, segundo Guattari e Rolnik, “o desejo é sempre
extraterritorial, desterritorializado, desterritorializante. Ele passa por cima e por baixo de
todas as barreiras.” (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p.47)
Da mesma forma que o desejo se diferencia enquanto impossibilidade e enquanto
fluxo, a concepção de imaginário radical difere de outras compreensões do imaginário, as
quais se organizam pelo entendimento de suas funções. Pensar o imaginário como instituição
é reconhecê-lo como fundação da produção e da criação enquanto fluxos contínuos
propiciados por linhas de forças que direcionam a psique-soma para a sua sobrevivência no
horizonte sócio-histórico. Novamente recorrendo a Bakhtin, temos que “a ideologia do
cotidiano constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num
sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de
consciência.” (BAKHTIN, 1981, p.118) “A consciência só se torna consciência quando se
impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de
interação social.” (BAKHTIN, 1981, p.34)
Deslocando a subjetividade do universo da singularidade para o grupo coletivo e
social, o romance, como produção humana, também pode ser visto como uma das formas do
sujeito lançar-se para fora de si a fim de garantir e alcançar a sua existência na realidade
social objetiva da qual faz parte.
34
tempo.” (LIMA, 1991, p.143) Comunicando a realidade, ou seja, ficcionalizando o fatual nas
relações que esse estabelece com o tempo, o fluxo narrativo dinamiza o romance.
O imaginário radical não tendo o sentido de fundamento e sendo fluxo, traz na sua
concepção a possibilidade da multiplicidade semântica na produção do discurso. Assim, as
narrativas enquanto “multiplicidade, [...] [apresentam-se como] um feixe inextricável de
tecidos enredados de materiais diferentes e todavia homogêneos, cobertos por peculiaridades
virtuais e fugazes” (ISER, 1996, p.249), ou seja, aquilo que podemos entender como magma.
Podemos, pois, pensar que as possíveis aproximações entre os elementos que
compõem a narrativa acontecem num contexto de diferenças e semelhanças. São as
semelhanças que permitem a conexão de uma ideia a outra. Essas conexões possibilitam o
cruzamento de uma linha de pensamento com outra. Contudo, é a diferença que, pelo
afastamento destas linhas, constrói os intervalos que fazem do discurso uma rede. Os espaços
vazios existentes entre diferentes enunciados abalam a linearidade do discurso, questionando
os sentidos por eles construídos na abertura para outras interpretações marcadas pelo não
sentido. Dessa forma, no movimento do devir, uma significação transforma-se em outra. As
possíveis compreensões produzidas no e pelo discurso não obedecem a uma linhagem linear
causa/efeito. No imaginário radical, uma ideia não se origina de outra e a narrativa entendida
como fluxo ramifica-se como rede pelas transformações decorrentes de um constante vir-a-
ser.
Em “Nove Noites”, o narrador como um cartógrafo, orquestra diferentes vozes que
ecoam umas sobre as outras no fluxo da narrativa. Assim, o romance é tecido como uma rede
imaginária, cujos espaços existentes entre uma ideia e outra, e os silêncios produzidos entre
um discurso e outro, possibilitam a construção de diferentes sentidos para a morte de Quain,
para a sua vida, para a narrativa, para o romance, para os personagens e para o próprio
narrador.
No romance “Nove Noites”, o enigma da morte, e da morte de Buell Quain, é
apresentado pelo narrador, seguindo como “na poesia épica (ou no romance) o poeta, em
parte, [falando] na sua própria pessoa, como narrador, e, em parte, [fazendo] as suas
personagens falarem em discurso direto (narrativa mista)”. (WELLEK; WARREN, 1962,
p.288) Assim, as vozes do narrador e dos personagens ecoam umas nas outras, produzindo o
conhecimento e a ficcionalização dos fatos, ao mesmo tempo em que demarcam a diferença
de dois distintos tempos.
“Nove Noites” é uma narrativa composta por duas diferentes grafias que demarcam
dois diferentes discursos e tempos. As partes do romance que são escritas em itálico referem-
36
Assim, das sete cartas, três foram para os Estados Unidos (Ruth Benedict, pai Eric
Quain e cunhado Charles Kaiser), uma para o Rio de Janeiro (Heloísa Alberto Torres), uma
para o Mato Grosso (reverendo Thomas Young) e duas para Carolina (capitão Ângelo
Sampaio e Manoel Perna). Manoel Perna, amigo de Quain, é o engenheiro que estava ocupado
com uma obra no momento que o antropólogo chegou a Carolina e que tem um nome que
pode ser motivo de chacota. O narrador, através das cartas deixadas por Quain antes de sua
morte, deixa entrever as pistas necessárias para a identificação do personagem Manoel Perna,
que também, ao enumerar estas cartas e seus destinatários, participa do seu desvendamento na
narrativa.
Também o narrador de “Nove Noites” é construído ao longo do romance de Bernardo
Carvalho, propiciando inquietação e fruição no leitor.
Na perspectiva de Culler,
por convenção, diz-se que toda narrativa tem um narrador, que pode se colocar fora
da história ou ser um personagem dentro dela. Os teóricos distinguem a “narração
em primeira pessoa”, em que um narrador diz “eu”, daquilo que [...] é chamado de
“narração em terceira pessoa”, em que não há um “eu” – o narrador não é
identificado como um personagem na história e todos os personagens são referidos
na terceira pessoa, pelo nome ou por “ele” ou “ela”. Os narradores em primeira
pessoa podem ser os principais protagonistas da história que contam; podem ser
participantes, personagens secundários na história; ou podem ser observadores da
história, cuja função não é agir, mas descrever as coisas para nós. Os observadores
em primeira pessoa podem ser plenamente desenvolvidos como indivíduos com um
nome, história e personalidade. (CULLER, 1999, p.88)
Diante do que até aqui foi exposto é possível considerar o romance “Nove Noites”
como uma narrativa cujas fronteiras territoriais e temporais são fluidas e a construção dos
personagens e do narrador é plural. Na tessitura do romance pela fluidez da produção
imaginária, a diversidade e pluralidade desta narrativa se organizam em torno, principalmente,
de cartas. O tom epistolar que identifica a gênese do romance, que permite a construção da
narrativa e que evoca um destinatário que está para chegar, também possibilita a cartografia
da narrativa.
Segundo Peters (2001), a troca de cartas evidencia uma espécie de diálogo por escrito
com a presença de locuções diretas e pessoais, quebrando formalidades e abrindo espaço para
o que Deleuze (1998) chamou de afetos e devires. Sobre os devires, Zourabichvili acrescenta
que “devir é o conteúdo próprio do desejo (máquinas desejantes ou agenciamentos): desejar é
passar por devires.” (ZOURABICHVILI, 2004, p.48) Assim, as cartas, ao quebrarem
formalidades impessoais, permitem aproximações afetivas e manifestações do desejo, o que,
para Guattari e Rolnik, “é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de
construção de algo.” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.216)
41
Ainda para Peters, “a cultura da correspondência tem uma longa tradição. Platão
transmitiu seus pensamentos por este meio, e o apóstolo Paulo escreveu suas epístolas aos
romanos a fim de divulgar a doutrina cristã.” (Peters, 2001, p.48) Cumpre ainda lembrar que a
gênese do gênero romance pode ser encontrada também na escrita de cartas. Recorrendo a
Wellek e Warren, temos que na “história do romance, [...] por trás da sua chegada à
maioridade, [...] encontram-se [...] a carta, o diário, o livro de viagens (ou a ‘viagem
imaginária’), as memórias, o ‘caráter’ do século XVII, o ensaio, bem como a comédia, a épica
e o romance.” (WELLEK; WARREN, 1962, p.299) Em “Nove Noites”, cartas, diário, livro
de viagem, viagens imaginárias e memórias compõem esse romance da mesma forma que o
precederam e, assim, participaram da construção e compreensão do que é esse gênero
literário. O fato é que através de cartas, o pensamento se movimenta, atravessando fronteiras
temporais e territoriais, se desterritorializando e encurtando distâncias para se reterritorializar.
Foucault, ao pensar a função do documento na reconstituição da história, nos fala de
rupturas e descontinuidades. Para Foucault,
desde que existe uma disciplina como a História, temo-nos servido de documentos,
interrogamo-los, interrogamo-nos a seu respeito; indagamos-lhes não apenas o que
eles queriam dizer, mas se eles diziam a verdade, e com que direito podiam prendê-
lo, se eram sinceros ou falsificadores, bem informados ou ignorantes, autênticos ou
alterados. Mas cada uma dessas questões e toda essa grande inquietude crítica
apontavam para um mesmo fim: reconstituir, a partir do que dizem estes
documentos – às vezes com meias-palavras –, o passado de onde emanam e que se
dilui, agora, bem distante deles; o documento sempre era tratado como a linguagem
de uma voz reduzida ao silêncio: seu rastro frágil mas, por sorte, decifrável. Ora,
por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se
concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como
sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é
seu valor expressivo, mas sim tratá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza,
recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é
pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades e descreve relações.
O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual
ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que
deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades,
conjuntos, séries, relações. É preciso desligar a história da imagem com que ela se
deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropológica:
a de uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para
reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de uma
materialidade documental [...] que apresenta sempre e em toda parte, em qualquer
sociedade, formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O
documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesmo, e de
pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar
status e elaboração à massa documental de que ela não se separa. (FOUCAULT,
1987 b, p. 7-8)
casa no lugar de cartas e que mostravam a sua posição no mundo.” (CARVALHO, 2002,
p.116)
Cartografar o romance “Nove Noites” é ampliar as suas leituras por movimentos de
afastamento e aproximações do fato da morte de Quain no desdobramento de sentidos sobre a
vida do antropólogo pelas possíveis conexões existentes entre diferentes textos, espaços,
temáticas, realidades, posicionamentos políticos, subjetividades, construções literárias,
ficções, linguagens e culturas. Cartografar o romance é também experimentá-lo no trabalho
com o conhecimento e as sensações que o permeiam, ampliando seus possíveis movimentos
territoriais. Cartografar o romance é se afastar da lógica aristotélica que “diz que o enredo é o
traço mais básico da narrativa, [...] que as boas histórias devem ter um começo, meio e fim e
que elas dão prazer por causa do ritmo de sua ordenação.” (CULLER, 1999, p.85)
A cartografia de um romance, através da possibilidade de cartografar territórios de
singularidades, é uma maneira de recusar todos os modos preestabelecidos de manipulação,
para construir modos de sensibilidade que produzam subjetividades em consonância com o
desejo. Pensar numa cartografia do romance é incluir a produção do romance e da literatura
dentre esses dispositivos de fuga dos estilos de produção preconcebidos como verdadeiros e
únicos. Segundo Bakhtin, “é justamente o caráter plurilíngue, e não a unidade de uma
linguagem comum normativa, que representa a base do estilo.” (BAKHTIN, 1993, p.113)
Portanto, cartografar um romance não se limita à representação do todo estático pelo mapa,
coincidindo, assim, com a ideia de cartografia pensada pelos geógrafos. Na opinião de Rolnik
(1989), a cartografia é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os
movimentos de transformação alteram as paisagens.
Em “Nove Noites”, a tentativa de evitar um inquérito sobre a morte de Buell Quain
causa aproximações que possibilitam sentidos para a história e para a vida do protagonista do
romance. Manoel Perna, dirigindo-se ao destinatário que ainda não chegou, diz que Quain
“foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que [ele] mesmo [teve] a infelicidade de
ajudar a redigir para evitar o inquérito.” (CARVALHO, 2002, p.08) Contudo, é na tentativa
de evitar a certeza sobre a morte de Quain através do referido inquérito que diferentes cartas
são evocadas, possibilitando a construção e o deslocamento da narrativa e a subjetivação do
antropólogo. Como possíveis pistas que, ao contrário de esclarecer totalmente a morte de
Buell, mantêm o enigma acerca do seu suicídio, as cartas possibilitam conexões e
desconexões que transcendem à linearidade espaço-temporal.
No que se refere às cartas através das quais se desenvolve a narrativa, num jogo de
ocultamento e revelações, o narrador nos diz:
44
Nessa citação, podemos perceber que a carta escrita pelo narrador e endereçada a
Schlomo Parsons, filho do fotógrafo Andrew Parsons que, na perspectiva desse narrador,
poderia ter conhecido Quain e assim aproximá-lo da verdade sobre a vida e a morte do
antropólogo, também o afasta do possível desvendamento do enigma Quain pelo uso da
conjunção subordinativa adverbial condicional, se, e pela confusão e delírio do próprio
narrador que esperou em vão uma resposta.
Segundo esse narrador, tendo suas iniciativas frustradas, o que o impedia de desvendar
o mistério que envolvia Buell Quain, restava-lhe apenas insistir no envio de cartas, mantendo
a esperança de alguma resposta. Sendo assim, o ele faz uma segunda tentativa de se
comunicar com Schlomo Parsons. Em suas palavras: “Quando esgotei todos os meios de
achar o que me faltava [...] decidi retomar a minha busca pelo filho do fotógrafo, dessa vez
pessoalmente. Cheguei a lhe escrever mais uma vez, perguntando se podia visitá-lo.”
(CARVALHO, 2002, p.156-7) Em busca do que lhe faltava, o narrador recorre, novamente, à
carta na esperança de uma resposta. Contudo, desta vez, a carta fazia apelo à possibilidade de
um encontro real. Afinal, ele diz que “precisava ver um rosto. [...] Precisava de um rosto real
[...] que [o] impedisse de continuar à deriva naquele limbo”. (CARVALHO, 2002, p.157-8)
Contudo, mais uma vez, o narrador se viu frustrado, pois, segundo o filho do
fotógrafo:
Nunca tinha ouvido falar de nenhum etnólogo, não fazia a menor ideia de quem
podia ser Buell Quain, e portanto não podia ajudar na [...] pesquisa [do narrador].
Não tinha nenhum documento que [o] interessasse. Não tinha mais nada a dizer e
pedia que [o narrador implícito] não mais o procurasse. (CARVALHO, 2002,
p.157)
sobre a morte de Quain ao dizer que “da sua carta, todavia, ninguém nunca soube nada.”
(CARVALHO, 2002, p.25)
Também o narrador, em conversa telefônica com Raimunda Perna sobre a morte de
Quain e obtendo informações sempre insuficientes para o entendimento desse enigma,
imagina esta oitava carta porque Manoel Perna não tinha deixado um testamento que poderia
ser esclarecedor do fato. “Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a
oitava carta.” (CARVALHO, 2002, p.135) Contudo, Manoel Perna, ao se dirigir ao
destinatário que está por chegar, diz que: “deixo este testamento para quando você vier e
deparar com a incerteza mais absoluta.” (CARVALHO, 2002, p.08) Esse possível testamento
ou não existiu ou existiu como incerteza absoluta.
Junto a essa suposta oitava carta existe também um possível diário, alimentando a
esperança do narrador em desvendar o enigma sobre a morte do antropólogo. Segundo o
narrador,
tudo o que eu precisava era do teor de uma suposta oitava carta, além das que o
etnólogo enviara ao pai, a um missionário e ao cunhado antes de morrer (por que
não teria escrito antes à irmã? Ou teria escrito uma oitava carta à irmã?), e de um
eventual diário que, segundo a mãe, ele sempre mantinha. A oitava carta e o diário
explicariam tudo. (CARVALHO, 2002, p.153-4)
Entretanto, nem esta oitava carta nem o eventual diário aparecem na obra de Bernardo
Carvalho e, sendo imaginação ou não, participam das ambiguidades que estão presentes em
toda a obra, sustentando o inexplicável da morte e o incompreensível do suicídio numa
tonalidade de inquérito que assusta, angustia e justifica a existência de um segredo que não
pode ser conhecido. Recorrendo à obra de Bernardo Carvalho, “Ninguém nunca me
perguntou, e por isso também não precisei responder. Todo mundo quer saber o que sabem os
suicidas.” (CARVALHO, 2002, p.27)
Frente ao inexplicável da morte e à incompletude do conhecimento, a palavra escrita
pode ser uma tentativa de sustentar o sujeito no seu processo de singularização. No contexto
das cartas que permitem o desenvolvimento da narrativa, também encontramos uma carta
enigmática escrita por dona Heloísa a Quain que, “a pretexto de lhe propor um futuro
emprego de professor no Museu Nacional” (CARVALHO, 2002, p.119), inicia-se com uma
curiosa pergunta sobre o que levou Quain “a rasgar a última parte da sua carta.”
(CARVALHO, 2002, p.119) Há também a existência de uma carta escrita por Buell a
Margaret Mead que foi “abruptamente interrompida [e] que não foi enviada” (CARVALHO,
2002, p.120), mantendo o tom enigmático do romance.
47
Traços, marcas, cartas, fatos e fotografias são elementos que compõem a narrativa
organizada pela lei advinda da linguagem que, através daquilo que sempre escapa, possibilita
a construção de sentidos. Assim, “Nove Noites” não apresenta capítulos definidos, embora
tenha diferentes partes definidas por numeração e pelo uso ou não do itálico que demarca dois
tempos na narrativa: o apresentado por Manoel Perna que foi amigo e conviveu com Quain
(itálico) e o do narrador que, muitas gerações depois da morte de Buell, retomou o enigma de
sua morte na tentativa de desvendá-lo (sem o uso do itálico). Os dois tempos presentes no
romance também indicam o tempo do acontecimento e o tempo da narrativa.
“Nove Noites” continua sendo uma história contada esperando um fim que não se
totaliza numa certeza. Afinal, “cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer,
aplica o sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento em que os lê.”
(CARVALHO, 2002, p.114) Nesse romance, encontram-se significantes que se repetem, se
desdobram e transbordam em múltiplos sentidos pelos quais a morte de Quain, transformada
em enigma, pode ser transmitida pela dimensão imaginária da linguagem. Assim, “o texto
atinge à força de trabalhar o significante: a imagem sonora que Saussure vê envolver o
sentido, um significante que devemos pensar aqui, também, no sentido que lhe deu a análise
lacaniana.” (KRISTEVA, 1974, p.11) Para Lacan, a função significante é aquela “de nada de
particularmente significado. Ou seja, o trabalho imposto à criação [...] só faz evidenciar o
vazio.” (GUARDADO, 1989, p. 47) Na direção do vazio, nada de particularmente
significado, Kristeva busca recursos para afirmar que no texto “o sujeito é aniquilado: aí se
efetua a estrutura do autor enquanto anonimato que cria e se vê criar, enquanto eu e enquanto
outro, enquanto homem e enquanto máscara.” (KRISTEVA, 1974, p. 77-8)
Repleta de perícias, a linguagem em “Nove Noites” possibilita diversas conjecturas.
Sendo assim, o pedido de Quain que Heloísa Alberto Torres e Ruth Benedict esterilizem as
cartas por ele enviadas, talvez possa significar o seu conteúdo estéril por, em verdade, nada
dizerem. Esta é uma conjectura que se acrescenta a tantas outras apresentadas pelo narrador e
personagens no decorrer do romance. Frente à impossibilidade da palavra se esgotar numa só
significação no desenrolar da produção imaginária, o narrador polissêmico e polifônico torna-
se também apenas possibilidade de conjecturar acerca do enigma aqui apresentado pela morte
de Buell Quain.
O relato do narrador sobre a sua experiência junto ao pai doente e internado num dado
hospital, onde e quando aquele encontrou o paciente norte-americano que conhecera Buell
Quain. Nesse relato, o narrador não só diz da sua vivência, mas também do que dela escapa
apontando para a dimensão dos sonhos. Frente às palavras do rapaz, que lia para o paciente
americano, acerca da espera deste paciente por alguém que estaria por chegar, o narrador
reconhece que demorou “para entender que aquelas palavras não faziam parte do [seu]
sonho.” (CARVALHO, 2002, p.145) No relato do narrador sobre suas conversas com este
rapaz, certezas advindas daquilo que escutou apontam para a dimensão ficcional do seu
discurso e, por não fazerem parte de seu sonho, lhe incentivam na busca do que escapa e que
continua incognoscível. Deleuze e Guattari afirmam que “não se tem mais uma tripartição
entre um campo de realidade, o mundo, um campo de representação, o livro, e um campo de
subjetividade, o autor.” (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p.34)
Nas páginas 150 e 151, o narrador, ao relatar a sua descoberta sobre quem era “o velho
americano que morrera no leito de hospital ao lado do [seu] pai” (CARVALHO, 2002, p.150-
1) busca também, com precisão, identificá-lo pelo nome, profissão, procedência, datas e fotos.
Vejamos:
Era fotógrafo, chamava-se Andrew Parsons e tinha vindo para o Brasil
provavelmente antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, por volta de 1940.
Nunca mais voltou para a casa. Em mais de uma ocasião o velho havia lhe
mostrado fotos antigas, dos anos 30 e 40, de uma praia perto de Nova York e uma
tribo de índios, provavelmente no interior do Brasil. (CARVALHO, 2002, p.151)
Em “Nove Noites” podemos encontrar essas duas maneiras de pensar o seu enredo.
Dando forma aos acontecimentos para transformá-los em história, o narrador torna-se
pesquisador da vida e da morte do antropólogo Buell Quain, apresentando os fatos através dos
mais variados discursos. Para Bakhtin,
o prosador-romancista [...] acolhe em sua obra as diferentes falas e as diferentes
linguagens da língua literária e extraliterária, sem que esta venha a ser enfraquecida
50
e contribuindo até mesmo para que se torne mais profunda. [...] Nesta estratificação
da linguagem, na sua diversidade de línguas e mesmo na sua diversidade de vozes,
[o romancista] também constrói o seu estilo, mantendo a unidade de sua
personalidade de criador e a unidade do seu estilo. (BAKHTIN, 1993, p.104)
Pela descrição dessas duas últimas fotos, trata-se dos retratos apresentados na página
26, os quais continuam sendo explicados no final da parte 14, também na página 117, logo
acima da citação apresentada anteriormente. Perna, ao falar sobre o homem que fotografou
Quain numa ilha onde o antropólogo se encontrava junto com amigos, relata que
por muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto [de Quain]. Até
irromper um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a fotografá-lo de
qualquer jeito, depois de ter sabido que ele estava de partida para o Brasil. Queria
uma lembrança do amigo antes de embarcar para a selva da América do Sul.
(CARVALHO, 2002, p.117)
Percebe-se, então, que entre a foto e o texto se incluem legendas explicativas que
impossibilitam qualquer fusão entre o fato e a ficção. Sem seguir uma linearidade na
exposição dessas fotos, suas legendas e explicações, o narrador lida com o descompasso
presente entre o experimentado e o deduzido, entre a realidade e o romance.
Outra fotografia apresentada na página 31 vem logo em seguida à pergunta: “O que
Buell Quain queria tanto esconder?” (CARVALHO, 2002, p.30) Na retomada do enigma, ela
parece vir como uma possível explicação à pergunta levantada. Contudo, aquilo que a
fotografia não consegue responder e que lhe escapa nas suas limitações, evoca a palavra com
51
condensa, a foto reduz e o retrato falha; o narrador, pela palavra, amplia pela diferença a
inexatidão do fato.
A precisão imprecisa da fotografia faz com que o narrador também recorra à imagem
cinematográfica e ao desenho no romance. Afinal, “toda imagem [é] [...] uma forma de
escrita. Ela ensina a ler em seus traços a confissão de sua falsidade, confissão essa que a priva
de seu poder e o transfere para a verdade. Desse modo, a linguagem torna-se mais que um
sistema de signos.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.36)
Manoel Perna, na parte 8, ao falar das nove noites que passou na companhia de Quain,
em especial a primeira noite, diz da sua impossibilidade de acessar a realidade narrada pelo
antropólogo através de suas palavras. Nas palavras de Perna, ao se referir ao relato de Quain
na primeira noite em que estiveram juntos:
[...] falou dos Trumai, e eu os imaginei. Tudo o que ele contou daí em diante eu
procurei imaginar. [...] O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou
e da minha imaginação ao longo de nove noites. Foi assim que imaginei o seu
sonho e o seu pesadelo. O paraíso e o inferno. (CARVALHO, 2002, p.46-7)
que não se conhece com certeza. Assim, tanto as palavras de Quain, quanto as imagens
cinematográficas, eram índices, imprecisões, as quais impossibilitavam Perna de ver o que o
antropólogo tinha visto. Nas palavras de Manoel Perna:
O sonho é um ponto de vista. É um lugar de onde se vê. Mas por mais que [Quain]
me falasse de Fiji e de Vanua Levu, a sua ilha no Pacífico Sul, eu não conseguia
ver. [...] Eu não conseguia imaginar. [...] Para me ajudar a ver, quando voltou a
Carolina em maio, trouxe uma fotografia e um desenho que havia feito de próprio
punho. (CARVALHO, 2002, p.48-9)
Junto ao cinema e ao desenho, que, por sua vez, se uniram às fotografias, às fotos e
aos retratos ampliando lembranças e provocando dúvidas e inexatidões, mapas são incluídos
na narrativa como possibilidade de combinação da experiência vivida com a imaginação, do
fato com a ficção. Afinal, como afirma Warning, citado por Lima, “a imaginação permanece
ligada ao ser.” (LIMA, 1981, p. 62) Contudo, essa combinação também é falha, pois os fatos
se ficcionalizam por imagens e essas imagens sempre deixam que algo do fato escape. Assim,
Manoel Perna, recorrendo ao aparato sensorial, justifica a precariedade de suas imagens por
nunca ter visto o fato e apenas dele ter ouvido falar.
No que se refere ao jogo criado pelas lembranças e esquecimentos numa perspectiva
temporal, na obra de Bernardo Carvalho, a memória também é visual. Isto pode ser visto
também na fala do narrador, quando ele diz que “àquela altura dos acontecimentos, depois de
meses lidando com papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, [ele]
57
precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem fundo e sem fim que
[lhe] impedia de começar a escrever o [seu] suposto romance”. (CARVALHO, 2002, p.157)
Assim a narrativa se desenvolve num terreno construído por confissões e enganos, afirmações
e negações, cujo narrador e os personagens se apresentam em suas intimidades num contexto
público que dá visibilidade ao privado.
Bauman, ao pensar a pós-modernidade como líquida e fluida, atenta para o fenômeno
da colonização do espaço público pelos interesses privados. Na sua opinião, “o interesse
público é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas [...] e a arte da vida pública é
reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos
privados.”(BAUMAN, 2001, p.46) Assim, o leitor pode ser capturado pelas confissões e
angústias do narrador e dos personagens, em busca do desvelamento dos enigmas humanos,
sem perceber que, ao se prenderem às intimidades que lhes são expostas, se mantem na
superfície do enunciado, se afastando do nunca entendido que sustenta os diferentes
posicionamentos do sujeito no campo da enunciação, através do engano, do incerto, do lapso e
das hesitações.
Ao se referir à carta escrita por Heloísa Torres para Fannie, o narrador se refere a
possíveis enganos nas correspondências trocadas entre estas duas personagens. Assim,
em dezembro de 1939, por ocasião do primeiro Natal depois da morte de Quain,
[este narrador comenta sobre estas cartas como se fosse] [...] um diálogo forjado de
enganos [e que] estivesse sendo tácita e mutuamente incentivado entre as duas.
Alguma coisa [lhe] dava a impressão de que ambas sabiam e fingiam não saber.
[Nesta] mesma carta, [...] dona Heloísa diz coisas que, no mínimo, contradizem
uma carta estranhíssima que tinha enviado ao próprio Quain poucos meses antes do
suicídio. Dona Heloísa escreve à mãe do etnólogo: ‘Ele parecia tão bem-disposto e
feliz quando deixou o Rio’, e completa dizendo que nem os colegas de Columbia
podiam imaginar tal desfecho. Vários outros elementos desmentem a afirmação.
(CARVALHO, 2002, p.118)
Marcado por afirmações e enganos, Manoel Perna, ao se referir a Quain, comenta que
“ele se exprimia por denegações.” (CARVALHO, 2002, p.128) Do jogo entre espelhos, o
narrador, Buell Quain, Manoel Perna e os outros personagens também fazem parte. Na
dimensão do imaginário, narrador e personagens são construídos e constantemente
desconstruídos e reconstruídos como figuras discursivas e de linguagem.
59
3 O NARRADOR E O VIRTUAL
da realidade Buell Quain. Cumpre também ressaltar que essa produtora era reputada por
desenterrar o que ninguém mais conseguia descobrir. Sendo assim, a produtora poderia ser a
alavanca necessária para que o narrador desenterrasse o que estava enterrado, mantendo o
mistério da narrativa. Contudo, isso não foi suficiente para revelar a verdade sobre Buell
Quain e a realidade continuou sendo ficção.
No que tange às cartas enviadas pelo narrador para os Estados Unidos, ele afirma que:
Escrevi mais de cento e cinquenta [cartas] e as enviei para todos os Kaiser e Quain
que encontrei na lista telefônica de Chicago, de Portland e arredores, no Oregon, e
de Seattle. E por uma infeliz coincidência, toda essa correspondência chegou aos
destinatários justamente no momento em que os Estados Unidos entraram em
pânico por causa das remessas de antraz em cartas anônimas enviadas pelo correio
a personalidades da mídia e da política americana e até mesmo a pacatos cidadãos.
[...] Das mais de cento e cinquenta cartas que mandei, recebi apenas umas vinte
respostas, todas por e-mail, [...] todas negando qualquer tipo de parentesco com os
Kaiser que eu procurava. Não sei se algum dos indivíduos a quem enviei as minhas
cartas chegou a suspeitar de um ato terrorista ao ler o nome desconhecido e exótico
do remetente e me denunciou ao FBI. Não sei se algum deles deixou de ler a minha
carta por causa disso. Não sei se algum era de fato parente de Quain e simplesmente
preferiu me ignorar por razões que eu também desconheço mas posso supor – uma
desconfiança em relação aos meus verdadeiros motivos, a determinação de
preservar a privacidade familiar ou o mero desinteresse por um caso encerrado
havia sessenta e dois anos e que um estranho e duvidoso jornalista da América do
Sul tentava reviver. (CARVALHO, 2002, p.155)
amostras, dados, mercadorias, que precisam ser rastreados, cartografados e analisados para
que padrões de comportamentos repetitivos possam ser percebidos.” (COSTA, artigo
disponível no site http://www.scielo.php?script=sciarttext&pid=S0102-88392004000100019.
acesso em 20/09/2007)
Sendo a globalização oriunda do avanço tecnocientífico circunscrito pelos ditames
capitalísticos, o ciberespaço e a cibercultura podem, assim, também ser circunscritos pelo
modo de produção e mentalidade capitalista na dimensão capitalística.
Gradativamente, o computador e a internet ampliaram os domínios do ciberespaço e
da cibercultura. Configurando-se como rede, o mundo virtual se apropria da realidade e é
apropriado por ela. Segundo Gevertz (2002), na virtualidade hipermoderna, “a imagem não
mais representa o real, mas ela o simula. [...] A lógica da simulação não pretende mais
representar o real com uma imagem, mas, sim, sintetizá-lo, em toda sua complexidade.”
(GEVERTZ, 2002, p.267) Gevertz ainda acrescenta que “é vital não confundir o virtual com o
imaginário. [...] No imaginário, o real é colorido pelas experiências emocionais. Já no virtual,
o real é abstraído, segundo cálculos matemáticos, e apresentado, pela lógica da simulação,
como seu ideal.” (GEVERTZ, 2002, p.268) Já Deleuze diz que:
[...] o mundo moderno é dos simulacros. Nele, o homem não sobrevive a Deus, nem
a identidade do sujeito sobrevive à identidade da substância. Todas as identidades
são apenas simuladas, produzidas como um “efeito” óptico por um jogo mais
profundo, que é o da diferença e da repetição. (DELEUZE, 1988, p.15-6)
Retornando a Levy, ainda pode ser acrescentado que: “a realidade virtual se propõe a
ser encarada como real. As relações virtuais privam o sujeito do olhar do outro de onde se
origina o sentimento de existir, de ser real, de ser verdadeiro, sendo possível que desperte
sentimentos de irrealidade e de vazio existencial.” (LEVY, 2002, p.62)
Na hipermodernidade marcada pela virtualidade, quando o simulacro ocupa o lugar do
intervalo entre o representado e a representação,
talvez possamos afirmar que, confundir o mundo virtual com o emocional seja uma
forma de atingir a felicidade buscada pelo princípio do prazer, uma vez que
iludindo o mundo emocional busca-se fugir dos sentimentos desprazerosos do viver
humano e encontrar, na realidade virtual, o mundo ideal ficcional. (GEVERTZ,
2002, p.268)
Sobre o consumo tecnológico, podemos ainda acrescentar Marçal (1999), que diz: “É
possível observar um movimento na direção do consumo de aparatos tecnológicos ‘mais
compactos, mais potentes, mais rápidos, mais baratos, mais acessíveis’, atendendo ao
determinismo tecnológico, como se ele garantisse a inserção social, a organização do sujeito.”
(MARÇAL, 1999, p.51)
Enquanto uma rede tecida por inúmeras e diferentes linhas, que se equivalem, sem
haver predominância de uma sobre as outras e pela inexistência de um só comando central, na
hipermodernidade, o romance, assim como a subjetividade, pode ser também aproximado da
concepção de rizoma de Deleuze e Guattari, quando esses autores salientam que o rizoma
“pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma [seus diferentes
direcionamentos] segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.18) O fato é que, nas novas experiências de linguagem, onde inclui-se o
hipertexto, “o novo dilúvio não apaga as marcas do espírito. Carrega-as todas juntas. Fluida,
virtual, ao mesmo tempo reunida e dispersa, essa biblioteca de Babel não pode ser queimada.
As inúmeras vozes que ressoam no ciberespaço continuarão a se fazer ouvir e a gerar
respostas. As águas deste dilúvio não apagarão os signos gravados: são inundações de
signos.”(LÉVY, 1999, p.16)
É exatamente por essas rupturas e religamentos que, em “Nove Noites”, a
compreensão advinda das informações contidas nos e-mails e nas cartas, por se tratarem de
meios de comunicação humana e, portanto, de linguagem, nunca é completa. Isso também
aproxima o que é arcaico do que é moderno, “já que em termos rigorosamente filosóficos, o
virtual não se opõe ao real, mas ao atual.” (LÉVY, 1996, p.15) Para Lévy,
a virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num
conjunto de possíveis). [...] [Também, a virtualização] em vez de se definir
principalmente por sua atualidade (uma “solução”), [ela] passa a encontrar sua
consistência essencial num campo problemático. (Lévy, 1996, p.18)
Ainda em Bakhtin, temos que um “híbrido romanesco [...] trata-se não apenas [...] da
mistura de formas e de indícios de duas linguagens e dois estilos, mas principalmente do
choque no interior dessas formas, dos pontos de vista sobre o mundo. [...] O objeto da
hibridização [...] do romance é uma representação literária da linguagem.” (BAKHTIN, 1993,
p.158-62)
O romance e a modernidade, assim como os híbridos, escapam a toda explicação que
tenta reduzi-los a uma identidade totalizada e totalizadora. Por causa disso, no que se refere à
71
modernidade, Latour diz que jamais fomos modernos. Segundo Latour: “jamais fomos
modernos no sentido da Constituição. A modernidade jamais começou. Jamais houve um
mundo moderno. O uso do pretérito é importante aqui, uma vez que se trata do sentido
retrospectivo, de uma releitura de nossa história.” (LATOUR, 1991, p.51)
Assim, a modernidade se expande à pós-modernidade, quando “a uniformidade dos
modelos [...] já começa a ser substituída pela pluralidade dos padrões adaptados a cada
circunstância e a cada caso”. (KUJAWSKI, 1991, p.26) Já os tempos hipermodernos referem-
se, na concepção de Lipovetsky (2004), ao tensionamento das diferenças e do plural ao seu
maior expoente, ampliando a coexistência e a dispersão dos híbridos produzidos.
Na hipermodernidade, isto é, na coexistência e dispersão dos híbridos, assim como na
sua resistência à purificação da representação, as questões que sustentam a humanidade e as
suas produções recebem várias significações. Frente à origem, à morte e ao sexo, o trauma e o
trágico, o mito e o complexo, o duplo e o dialógico, fazem emergir, no campo da enunciação,
o sujeito como enigma, indo além das suas manifestações enquanto enunciado. Na
hipermodernidade, os enigmas que sustentam a existência e a produção humana recebem
outras configurações, surgindo outras formas de subjetivação. Dentre elas, o universo do
ciberespaço se faz presente na reconstituição do sujeito no ideal virtual.
Na manifestação da subjetividade no romance, visto como um híbrido, o narrador
promove rupturas e junções textuais, diminuindo a distância entre o fato e a ficção. De forma
próxima da produção virtual, o narrador, dando à ficção feições reais, afasta o romance, nos
tempos hipermodernos, da idealização imaginária. Além de diminuir distâncias, ele também
cria espaços e intervalos que desestabilizam a simulação da realidade fatual. Na lógica do
virtual, o narrador, promovendo encontros e dispersões entre o fatual e a ficção, faz com que o
romance sintetize o real, mas também impede que o sujeito se perca na dimensão da verdade.
Afinal, o romance apresenta a realidade fatual como um disfarce, uma simulação.
No contexto daquilo que escapa e produz questões, a modernidade alcança a
hipermodernidade através de resíduos fundantes das organizações subjetivas que se mantêm
enquanto aquilo que é traumático, um mito pelo qual o complexo se organiza em sua condição
trágica de ser sempre dispersão e nunca totalidade.
da subjetividade acontece a partir da cicatriz deixada pelo não entendimento e apreensão das
questões fundantes da realidade humana. Nesta direção, Manoel Perna questiona-se em
relação do passado de Quain: “O que pode ter passado um homem na infância para trazer uma
cicatriz daquelas na barriga?” (CARVALHO, 2002, p.43) Antecipando a resposta à sua
pergunta, na página anterior, Perna diz: “o terror de um menino operado pelo próprio pai”.
(CARVALHO, 2002, p.42) Ainda no que se refere a esse terror, Manoel Perna acrescenta:
“Eu sabia da cicatriz na barriga, que ele só revelou aos índios, entre outras barbaridades, nas
horas de desespero que precederam a sua morte”. (CARVALHO, 2002, p.125) Para Manoel
Perna “a tristeza e o horror” (CARVALHO, 2002, p.42) que tomavam Quain e que marcaram
os seus “olhos para sempre” (CARVALHO, 2002, p.42), iam além de seus objetos pessoais
que passaram “a assombrar a mãe depois da sua morte”. (CARVALHO, 2002, p.42) Operado
pelo pai, o menino se submete a lei trazida e inserida na cultura. Assim como Quain, o filho
de José Maria, índio Krahô que hospedou o narrador do romance em sua casa, “agia sob as
ordens do pai.” (CARVALHO, 2002, p.90)
A impossibilidade do acesso à verdade, como cicatriz que marca a existência do
sujeito, reaparece em diferentes tonalidades no romance. Uma dessas possíveis tonalidades
diz respeito à cirurgia a que foi submetido o filho do casal de antropólogos que conduziram o
narrador até a aldeia krahô na sua pesquisa acerca da morte de Buell Quain. O antropólogo
que acompanhou este narrador até a referida aldeia
tinha prometido aos Krahô levar o filho mais velho para a aldeia quando acabasse a
reunião em Carolina. O rapaz, de vinte e poucos anos, sobrevivera a uma operação
para resolver um problema congênito no coração. Depois de vários adiamentos ao
longo da infância e da adolescência, resolveram por fim operá-lo. A cirurgia, que
não era simples nem sem riscos, foi bem-sucedida, e os índios, em agradecimento,
queriam comemorar o renascimento do menino, que conheciam desde pequeno.
(CARVALHO, 2002, p.75)
Pode-se observar que o rapaz, tido pelos índios como um menino, menino como Quain
quando foi operado pelo pai, traz a cicatriz que delimita a fronteira existente entre a vida e a
morte, uma passagem ritualizada. Os rituais também se manifestam nas citações abaixo.
As cicatrizes deixadas pela impossibilidade do encontro com a verdade são
simbolizadas por rituais. Nesse contexto, também se faz presente o ritual de iniciação dos
meninos Trumai que denota a passagem da vida infantil para a idade adulta, quando esses
meninos
tinham o corpo inteiro esfolado com uma pata afiada de tatu. Era uma prova de
coragem, uma recompensa e uma honra, embora muitos, apavorados e horrorizados,
chorassem de dor durante o sacrifício, cobertos de sangue. Entre os Trumai, as
cicatrizes eram muito admiradas. Os meninos de 7 anos expunham com orgulho as
marcas que as cerimônias lhes deixavam pelo corpo. (CARVALHO, 2002, p.56)
73
O encontro da passagem da vida à morte com o ritual de iniciação dos trumai pode ser
visto quando Manoel Perna se lembra do suicídio do antropólogo e nos diz que,
ao se lembrar das palavras do dr. Buell [palavras essas referentes à sua experiência
de ser operado pelo pai e às suas observações acerca do ritual de passagem vivido
pelos meninos trumai] só [lhe] vem à cabeça a imagem do seu corpo enforcado,
cortado com gilete no pescoço e nos braços, coberto de sangue, que foi como os
índios o encontraram e o descreveram ao chegarem à [sua] casa. (CARVALHO,
2002, p.57)
Cumpre também lembrar que os Trumai “vêem na morte uma saída e uma libertação
dos seus temores e sofrimentos.” (CARVALHO, 2002, p.56) Prova disso é “uma vez em que
[Buell] havia caído doente, um de seus amigos índios se ofereceu para esfaqueá-lo com o
intuito beneficente de livrá-lo da dor da doença.” (CARVALHO, 2002, p.57) É importante
salientar que
os ritos [indígenas] dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demônio
dentro do doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito
que se dedicava à magia; ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se
assemelhar aos múltiplos espíritos. (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.24)
a magia é a pura e simples inverdade, mas nela a dominação ainda não é negada, ao
se colocar, transformada na pura verdade, como a base do mundo que a ela
sucumbiu. O feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou
suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave. (ADORNO, HORKHEIMER,
1986, p.24)
No terreno do rito, a força que a magia exerce sobre o sujeito transforma inverdades
em verdades, fragilizando, também, os limites entre a realidade fatual e a ficção. Entre a
“versão oficial [sobre a morte de Quain] e o relato do velho Diniz” (CARVALHO, 2002,
p.82), o narrador diz que:
Ao voltar para o acampamento sem pá nem enxada, João Canudo encontrou [o
antropólogo] todo cortado com navalha e ensanguentado. Horrorizado, implorou ao
etnólogo que parasse de se maltratar, que não fizesse aquilo, que não morresse.
Ficou atônico diante do estado deplorável do jovem americano. Perguntou por que
ele estava se cortando, e o tresloucado respondeu que “precisava amenizar o
sofrimento, extinguir a sua dor cruciante”, já não podia seguir em frente, não tinha
cara para chegar a Carolina. (CARVALHO, 2002, p.84)
74
Assim como lhe ensinaram os índios, o antropólogo corta o próprio corpo para
amenizar a sua dor. Verdade ou mito, Quain reproduz o rito indígena para diminuir o seu
sofrimento, dando expressão à angústia frente à inexistência da verdade, fazendo da vida uma
invenção. Ainda no que se refere à morte, é curioso que, em relato de Quain para Perna,
os Trumai, apesar de estarem em vias de extinção, continuavam fazendo abortos e
matando recém-nascidos. E que, talvez sem saber, estivessem cometendo um
suicídio coletivo, vivendo um processo coletivo de autodestruição. [...] Não era à
toa que matavam os recém-nascidos. Pior era nascer. (CARVALHO, 2002, p.57)
Cumpre ainda lembrar que, mesmo “que foram tomadas as devidas precauções contra
[a] oftalmia neonatal [que Quain foi portador ao nascer], àquela altura um procedimento de
praxe contra a transmissão de doenças venéreas aos recém-nascidos” (CARVALHO, 2002,
p.19), o fim trágico de Quain não pode ser evitado e a sua morte foi além da sífilis que ele
tinha. Sífilis neonatal e que também aparece na sua vida adulta quando “a julgar por certos
sintomas na pele, achava que tinha contraído sífilis em consequência de uma aventura casual
com uma moça que teria encontrado durante o Carnaval no Rio.” (CARVALHO, 2002, p.40)
Assim, sustentando a atmosfera enigmática frente ao que é traumático, o narrador
apresenta, ao longo do romance, índices enquanto possibilidades de entendimento da morte e
do suicídio de Quain, ao mesmo tempo que antecipam a imprecisão que nos desloca para
lugares inesperados por aproximações e afastamentos sucessivos que demarcam a diferença
entre o conhecer e o saber.
Conhecendo o que é fatual, deslocamo-nos com Quain, com Manoel Perna e com o
narrador pelos diversos e difusos caminhos marcados por um saber que em si contempla um
não-saber. Movido pelo saber, o sujeito produz conhecimento sobre si e sobre o mundo no
qual se encontra inserido. Assim, o sujeito e suas possíveis verdades estão entesourados no
campo do saber. Segundo Adorno e Horkheimer,
a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele muitas coisas
estão guardadas que os reis, com todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre
as quais sua vontade não impera, das quais seus espias e informantes nenhuma
notícia trazem, e que provêm de países que seus navegantes e descobridores não
podem alcançar. (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.19)
Para Lévi-Strauss,
76
3.3.1 O mito
O mito, portanto, realiza, na história, o sujeito, ou seja, torna-o real, pela ilusão do
fatual e do acontecido. A concretude do fato realizado no e pelo mito alivia o sujeito na
impossibilidade de ter acesso a sua verdade. Contudo, esse alívio pressupõe um preço. “No
mito, tudo o que acontece deve expiar uma pena pelo fato de ter acontecido. [...] O preço que
se paga pela identidade de tudo com tudo é o fato de que nada, ao mesmo tempo, pode ser
idêntico consigo mesmo.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.26-7) Em “Nove Noites”,
Quain paga com a vida por ter vivido a possibilidade de encontrar e ser, na cultura indígena, o
oposto do que tinha e era na cultura civilizada e que tanto desprezava. Portanto, a morte de
77
Quain também pode ser vista como a desilusão do antropólogo diante do que ele acreditava
ter alcançado no meio dos índios.
No contexto dos mitos, também o texto bíblico está presente na narrativa de Bernardo
Carvalho. A saída do narrador de Carolina para a aldeia Krahô lembra a saída de Moisés do
Egito em direção à terra prometida. Segundo este narrador: “Viajamos durante cinco horas
pelo cerrado, atravessando rios e areais. A certa altura, a trilha de terra começa a seguir
paralela ao rio Vermelho, que no final é preciso cruzar a pé, com água acima da cintura e as
malas na cabeça.” (CARVALHO, 2002, p.89)
No livro do Êxodo, nos capítulos de 1 a 13, Moisés parte com os hebreus escravizados
no Egito em direção a Canaã. Neste percurso, Moisés e o povo de Deus depararam-se com o
mar Vermelho, necessitando da intervenção divina para realizarem a ultrapassagem das águas
deste mar. Segundo a narrativa bíblica:
Tendo Moisés pois estendido a sua mão sobre o mar, o Senhor lhe dividiu as águas
fazendo que toda a noite assoprasse um vento veemente, abrasador, que lhe secou o
fundo. Estando a água assim dividida, entraram os filhos de Israel pelo meio do mar
seco, tendo pela direita e esquerda a água que lhes servia como de muro. (Ex,
14:21-22)
Por retirar os hebreus da servidão, Deus, no monte Sinai, apresenta a Moisés sua lei e
seus mandamentos como a verdade a ser seguida como forma de libertação. De forma similar,
o narrador de “Nove Noites”, a fim de se libertar da obsessão de desvendar o enigma que
envolvia o antropólogo Buell Quain, atravessa o rio Vermelho, dirigindo-se à tribo Krahô em
busca da palavra reveladora e esclarecedora do misterioso suicídio.
A terra prometida também pode ser pensada a partir do comentário feito pelo narrador
sobre o deslocamento dos índios Krahô para outras aldeias. Na perspectiva do narrador:
A aldeia anterior tinha se desmembrado quando um grupo decidiu se mudar para a
aldeia Nova e o resto, discordando do sítio escolhido, juntou-se à aldeia do Rio
Vermelho, que tínhamos avistado de longe, no caminho. O sítio anterior foi
abandonado por ter se tornado infértil. Não sei o quanto havia de superstição
naquilo. Falavam do número de índios que ali estavam enterrados. (CARVALHO,
2002, p.90)
questiona o saber indígena por também ter o seu saber questionado. Afinal, devemos lembrar
que o antropólogo “procurava entre os índios as leis que mostrariam [...] o quanto as nossas
são descabidas.” (CARVALHO, 2002, p.48) Quain parecia buscar o resgate do encantamento
da vida, já que para Adorno e Horkheimer, “o entendimento que vence a superstição [impera]
sobre a natureza desencantada.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.20) Contudo,
superstição ou não, o mito aí se encontra como possibilidade de construção da narrativa.
O narrador, ao relatar o seu desespero ao comer do peixe servido pelos seus anfitriões
na aldeia Krahô, faz também alusão à outra passagem bíblica ao dizer que “ali começava a
via-crúcis da alimentação.” (CARVALHO, 2002, p.93) Esse narrador ainda faz menção ao
texto bíblico quando apresenta seu anfitrião Krahô ao leitor pelo nome de “José Maria”.
(CARVALHO, 2002, p.89)
O mito bíblico, que envolve os nomes dos pais do salvador, também evoca outros
mitos. Na percepção do narrador: “José Maria Teinõ [...] tinha [ainda] alguma coisa de
guerrilheiro mexicano do começo do século XX, de bigode, pele muito escura e cabelo
ondulado até os ombros.” (CARVALHO, 2002 p.89-90) A lembrança e descrição do
guerrilheiro mexicano pode nos conduzir à imagem de Ernesto Guevara de la Serna,
revolucionário e líder político argentino que foi para o México, onde se ligou aos cubanos
Fidel e Raúl Castro.
Contudo, também o mito se organiza em torno do que é enigmático. Assim, “o rio
Vermelho é verde” (CARVALHO, 2002, p.89) mantendo o enigma como um mito, um saber
pulsante primitivo, circular e não científico e racional, um “mapa não muito preciso ou
detalhado que [o narrador] tinha trazido” (CARVALHO, 2002 p.89) para a sua viagem de
Carolina à aldeia Krahô.
O rio Vermelho que é verde também estava contaminado com lixo hospitalar. Segundo
o narrador:
Os índios ouvem tudo. [...] [Eles] costumavam beber aquelas águas, pescar e se
banhar nelas, até o dia em que começaram a cair doentes, um depois do outro, e
foram morrendo sem explicação. Alguns conseguiram chegar à cidade e morreram
no hospital, diante da perplexidade e incompreensão dos médicos. Foi quando
decidiram parar de usar a água do rio Vermelho e passaram a se banhar e beber em
um córrego que passava do outro lado da aldeia e a pescar numa lagoa distante.
Com o tempo, descobriram a causa do envenenamento do rio vermelho. Um
hospital, construído rio acima, em Recursolândia, estava despejando lixo hospitalar
naquelas águas. Foi o que me contaram logo que cheguei e depois ficaram me
olhando calados, com olhos mendicantes, como se eu tivesse o poder de resolver
alguma coisa. (CARVALHO, 2002, p.89)
morriam no hospital sem recursos para salvá-los, o que deixava os seus médicos perplexos,
mas também morriam em virtude do envenenamento decorrente do lixo hospitalar despejado
em suas águas por um hospital de Recursolândia. Parece que os únicos recursos hospitalares
disponíveis aos índios serviam para o seu envenenamento e não para a sua cura. Novamente, o
saber científico e racional é questionado na produção ficcional, não trazendo respostas, mas
promovendo intensidades.
O pai cirurgião que deixou no corpo do filho uma marca, uma cicatriz, traduz para
Quain a morte como algo inacessível à compreensão humana, um navio assombrado que
jamais chega ao porto desde tempos imemoriais. Ainda sobre a morte, podemos pensá-la em
oposição à sobrevivência, o que retoma a questão do verdadeiro e do falso. Adorno e
Horkheimer comentam que “na escolha entre a sobrevivência e a morte, [...] entre duas
proposições contraditórias, só uma pode ser verdadeira e só uma falsa.” (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.42) Como inatingível ou em oposição à sobrevivência, a morte
apresenta-se como um enigma que instala a dúvida no sujeito e promove questionamentos.
Como um possível impossível encontro com a morte, novamente cartas aparecem no romance
e mais uma vez seus destinatários não são encontrados. No contexto da morte, o destino de
Quain se traduz como “um processo de liquidação.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986,
p.27)
Já na perspectiva da sexualidade, Manoel Perna narra para o intercessor que está para
chegar que:
Entre as canções, lendas e histórias que o negro [...] contara [a Buell Quain]
debaixo das estrelas da [...] ilha no Pacífico Sul, do outro lado do mundo, houve
uma que o dr. Buell deixou para me relatar na noite em que separamos. Era a
80
história de um chefe de Vanua Levu que, às vésperas de visitar outra aldeia, ouviu
falar de um homem que seduzia todas as mulheres que por ali passavam. Com a
intenção de pregar-lhe uma peça, antes de chegar à aldeia, pediu a seus
antepassados que lhe dessem a aparência de uma mulher. Entrou no rio e uma
enguia fez dele uma moça. Seguiu para a aldeia e, ao chegar, logo foi abordado pelo
sedutor, que o convidou a dormirem sob o mesmo teto. O chefe em forma de
mulher rechaçou todas as investidas e propostas, até o sedutor, contrariado, e à falta
de outros recursos, terminar por lhe pedir em casamento. No dia seguinte, enquanto
o chefe em forma de mulher fingia estar se arrumando, o homem tentou seduzi-lo
de novo. Mas, dessa vez, o chefe não ofereceu resistência. Quando o sedutor subiu
em cima dele, os dois pênis eretos se tocaram e o sedutor fugiu envergonhado,
perseguido pelo chefe, que agora exigia que dormissem juntos. (CARVALHO,
2002, p.128)
3.3.2 O complexo
clássica. Na história de Buell Quain, diferentes posicionamentos de seus pais diante de sua
morte apontam para diferentes papéis por eles vivenciados no romance familiar.
Diante da lei e da impossibilidade do saber absoluto, o antropólogo relatou a Perna
que
na escuridão da sala de [um] cinema, a luz de prata se acendeu na tela e uma vida
impensada se descortinou diante dele, uma nova possibilidade e uma saída, como se
um cainho inexplorado se abrisse à sua frente. Não fazia ideia do filme a que
assistiria quando entrou no cinema, assim como não fazia ideia do destino que ali
lhe era apresentado. Assistiu vidrado a uma história de amor no Pacífico Sul. Um
amor proibido pelas leis de uma sociedade de nativos. Um amor condenado pelos
deuses. Um tabu. Até a noite em que contou suas lembranças [para Manoel Perna],
não sabia o quanto havia do feito daquele amor proibido na própria vocação.
(CARVALHO, 2002, p.47)
O romance edipiano já estava traçado e não tinha como dele fugir. Frente ao enigma
do sujeito, mesmo que não fosse possível negar alguma clareza sobre o suicídio do
antropólogo, “uma vez constatadas as provas irrefutáveis do suicídio” (CARVALHO, 2002,
p.20), Eric Quain, pai de Buell Quain, “lançou mão de seus conhecimentos e apelou a um
influente senador da Dakota do Norte [...] para que entrasse com um pedido de investigação
junto ao Departamento de Estado” (CARVALHO, 2002, p.20) para esclarecer a morte do
filho. Nas palavras do próprio Quain: “Meu pai sofre de uma forma atenuada de
degenerescência senil – talvez seja o que o tenha levado a escarafunchar o passado nos
últimos seis meses.”(CARVALHO, 2002, p.21) Seis meses estes que antecederam à morte de
Quain.
Já Fannie Quain,
descontando-se a dificuldade do momento, em que de repente se viu sozinha no
mundo, recém-divorciada e com o filho morto, [parece que, em cartas endereçadas
a Heloísa Alberto Torres,] mais do que querer saber a razão do suicídio do filho,
temesse que alguém já a conhecesse ou viesse a descobri-la. (CARVALHO, 2002,
p.21)
Isso pode também ser visto no encontro de Fannie Quain com os missionários Thomas
e Betty Young no final de 1940. Sobre este encontro, o narrador comenta que Fannie
certamente nada perguntou aos missionários sobre o filho, reforçando assim a ideia de que
temesse a revelação de algo que queria manter encoberto. Segundo o narrador:
O mais provável, porém, é que, ao se apresentar e cumprimentar [os missionários]
entre os outros convidados, ela não tenha lhes perguntado nada, em parte por
constrangimento, em parte por temer que lhe revelassem o que não podia ouvir. É
possível que, dez anos depois, tenha morrido sem chegar a perguntar nada a
ninguém. Preferia acreditar que não soubessem o que ela também não podia saber.
(CARVALHO, 2002, p.50)
é possível que ela tenha morrido sem perguntar nada a ninguém. Se Fannie não perguntou
nada, ou seja, se é o nada que ela não perguntou é porque algo ela perguntou. Além disso,
Fannie preferia acreditar que não soubessem o que ela não podia saber. Sendo assim, ela sabia
do que não podia saber. Se não sabia, pelo menos desconfiava. Na perspectiva do narrador:
“Sua insistência atormentada dá a impressão de que [Fannie] tentava, ainda que
inconscientemente, sob um véu de filantropia, comprar o silêncio dos índios ou subornar a
própria consciência.” (CARVALHO, 2002, p.50-1)
Entre as diferentes posições assumidas pelos pais de Quain, gravitam cenas e
fantasmas relativos à origem, à sexualidade, à morte e à vivência edípica. Afinal, a palavra
dos pais “é organicamente ligada ao passado hierárquico. [...] Ela já foi reconhecida no
passado. É uma palavra encontrada de antemão.” (BAKHTIN, 1993, p.143)
No reconhecimento da palavra no passado, os mitos inseridos no romance, através dos
elementos retirados das culturas civilizada e também indígena, sustentam e são sustentados
pela vivência do complexo edipiano tanto presente na história de Quain, quanto na vida dos
índios com os quais o antropólogo e o narrador conviveram.
Entre diferentes culturas, o complexo de Édipo também delineia os papéis
desempenhados por diferentes personagens. No relato de Quain a Manoel Perna acerca dos
índios da aldeia Nakoroka na ilha no Pacífico, temos:
[...] cada um decide o quer ser, pode escolher sua irmã, seu primo, sua família, e
também sua casta, seu lugar em relação aos outros. Uma sociedade muito rígida nas
suas leis e nas suas regras, onde, no entanto, cabe aos indivíduos escolher os seus
papéis. Uma aldeia onde a um estranho é impossível reconhecer os traços
genealógicos, as famílias de sangue, já que os parentes são eletivos, assim como as
identidades. O paraíso, o sonho de aventura do menino antropólogo.
(CARVALHO, 2002, p.47)
Na cultura Nakoroka, embora os parentes sejam eletivos, também existem leis. Essas
leis organizam a constituição social e definem papéis e identidades por possibilitarem a
vivência do complexo edípico. Afinal, as famílias e as castas também existem nessa
sociedade, embora não sejam delimitadas por relações consanguíneas. Assim, o sonho de uma
criança não se refere à ausência da lei, mas sim à possibilidade de escolher seus parentes,
obviamente, deixando fora da proibição do incesto àqueles que bem desejar. Estrangeiro
naquela sociedade, Quain não reconhecia traços genealógicos, mas reconhecia a lei que
também existia na sua cultura.
De forma semelhante, o narrador, em visita à tribo Krahô, relata que:
Na verdade, quase todos ali tinham laços de sangue. Aos poucos, fui descobrindo
que a aldeia Nova era praticamente uma única família, que eram quase todos irmãos
e irmãs, tios e sobrinhos, e que o parentesco simbólico, classificatório, em grande
83
parte apenas maquiava relações, se não incestuosas, pelo menos muito viciadas.
(CARVALHO, 2002, p.97-8)
como por encantamento, saem de suas casas para acompanhar o chamado de um homem, um
ancião representante da lei que organiza o contexto social na constituição de uma ordem
coletiva. Essas mulheres, sob a liderança do ancião; obedeciam a ele em suas canções. Nesse
contexto, surge um homem que, seguindo a sua mulher e lhe entregando o filho em seus
braços, se manifesta como singularidade, ao mesmo tempo em que representa, na
coletividade, o universal da instituição e organização familiar.
Ainda cumpre lembrar que no que se refere à constituição das famílias, na divisão do
paparuto, “uma espécie de bolo de mandioca recheado com banha e pedaços de porco”
(CARVALHO, 2002, p.98), “cada família teria o seu quinhão e voltaria para comê-lo em
casa.” (CARVALHO, 2002, p.101) Também no ritual da divisão do paparuto, a singularidade
de cada família é mantida no grupo social por pertencer e participar do que é coletivo. Na
intimidade de suas casas, cada família celebrava a sua participação na organização social,
comendo do paparuto preparado coletivamente, o quinhão que lhe cabia.
Nos jogos realizados na tribo Krahô, também os índios eram organizados em duas
famílias. “De um lado ficava a família do verão ou da estiagem (Wakmêye). [...] Do outro, a
família do inverno ou da estação das chuvas (Katamye). [...] Os dois grupos alternavam-se no
poder e na administração da aldeia, como dois partidos políticos.” (CARVALHO, 2002,
p.102) Após os jogos dos Krahô, o narrador teve que escolher a qual das duas famílias iria
pertencer e “no início da noite, [...] [o antropólogo que lhe acompanhava na visita a essa tribo
lhe revelou] de uma vez por todas o que ia acontecer ali: ‘Você escolheu, hoje de manhã.
Agora vai ser apresentado à sua família, às mulheres com quem não poderá transar’”.
(CARVALHO, 2002, p.104)
Outro ritual presente na aldeia Krahô era:
Algumas mulheres com baldes e garrafas de água nas mãos se aproximaram,
escolhendo alguns homens e os levaram para o centro da roda, perto do fogo, onde
abaixaram a cabeça, como numa reverência, e elas lhes despejaram os baldes e as
garrafas, rindo a valer. [...] As mulheres jogavam água nos homens a que estavam
ligadas por laços de parentesco simbólico, classificatório, com os quais não podiam
manter relações sexuais. O banho era uma cerimônia de explicitação e delimitação
da interdição do incesto. (CARVALHO, 2002, p.104)
que para ele foi produzido. Portanto, é entre duas diferentes famílias, entre os Wakmêye e os
Katamye, entre o verão e as chuvas, que o sujeito se organiza num contexto social pelo
coletivo que lhe oferece a possibilidade de inserção e inclusão em dadas instituições e
organizações, dentre as quais se inclui a família. A linguagem, assim, exercendo sua função
social, permite a construção da subjetividade num processo singular/coletivo, onde e quando
se organizam as relações sociais, parentais, familiares e sexuais através das interdições
apresentadas ao sujeito pela incompletude do saber.
Em carta escrita por Marion à Ruth Benedict, ao frisar o interesse de seu pai por
dinheiro, a irmã do antropólogo também se refere a uma lei. Marion apela à Ruth que: “Por
favor, não deixe que ele ou qualquer outra pessoa mude o rumo da lei.” (CARVALHO, 2002,
p.88)
No contexto da magia da cultura Krahô, Buell Quain envolve-se com rituais que lhe
apresentam no contexto social da coletividade, o complexo de Édipo e os possíveis rumos
resultantes da sua organização pela lei do incesto. Segundo Adorno e Horkheimer,
todo ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a
ser influenciado pela magia. [...] No estágio mágico, sonho e imagem não [devem
ser] tidos como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por semelhança ou
pelo nome. A relação não é a da intenção, mas do parentesco. (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.23-5)
Assim, parece que Quain também encontrou na linguagem da magia da cultura Krahô
possibilidades para vivenciar o complexo edípico organizado pela lei e proibição incestuosa.
A lei, através da cultura, organiza a sociedade. Isto também está presente no que
Quain relatou a Manoel Perna sobre os nativos do Pacífico Sul. Nas palavras de Perna,
segundo o antropólogo:
A aldeia não ficava na praia, mas morro acima, [...] governada por um chefe que
mantinha um dente de baleia pendurado no peito como símbolo de poder. Na ilha
os chefes eram sagrados, assim como tudo em que eles tocavam e todos os que os
tocavam. As aldeias na costa foram aculturadas pelos invasores de outras ilhas, que
por sua vez foram influenciados pelos europeus. Só os nativos do interior
mantinham intacto aquilo que [Quain] procurava: uma sociedade em que, a despeito
da rigidez das leis, os próprios indivíduos decidiam os seus papéis dentro de uma
estrutura fixa e de um repertório predeterminado. (CARVALHO, 202, p.115)
Numa rede construída por diferentes culturas, a cultura europeia chega às aldeias da
costa pela sua invasão por outras ilhas já aculturadas pelo europeu. Para Bakhtin, não
podemos desconsiderar “o imenso papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou no
processo de formação de todas as civilizações da história. [...] A palavra estrangeira foi,
86
Corroborando com o narrador, Manoel Perna também fala que “depois da morte [de
Quain], [saiu] à procura [da] árvore [na qual “todo bicho [...] vê a totalidade do universo e
compreende [...] o que é, onde está e o que se passa à sua volta.” (CARVALHO, 2002,
p.133)] (CARVALHO, 2002, p.133) Ainda nas palavras de Perna:
Os índios me levaram até o túmulo cercado de talos de buriti. Podia estar diante de
qualquer árvore. Tive que acreditar que havia sido ali. A comprovação eu só teria se
exumasse o cadáver com as próprias mãos. Muita coisa não se pode desenterrar.
Sozinho eu não tinha forças. (CARVALHO, 2002, p.133)
Num jogo especular, diferentes elementos textuais desdobram-se uns sobre os outros
na construção do romance e da subjetividade Buell Quain. Na perspectiva de Lima, “a dupla
ótica interpretativa não é apropriada apenas para entendermos a razão do tom da narrativa. Na
88
verdade, ela penetra em cada vão do relato,”(LIMA, 1981, p.138) ampliando as possibilidades
de produção de sentidos que fazem do romance uma rede semântica e interpretativa. Em
“Nove Noites”, no contexto do Carnaval, uma festa marcada pela possibilidade de
transgressão, chega ao Brasil um antropólogo questionando as leis que regem a civilização
branca e disposto a encontrar outra configuração de mundo e de sociedade na qual pudesse se
incluir.
Buscando um mundo no qual ele coubesse e que lhe abrigasse, um mundo dialógico,
de relações, distâncias, analogias e oposições que trazem o plural, o social, o coletivo e o
intersubjetivo, Buell Quain também se aproxima das ideias de Bauman sobre as comunidades
contemporâneas. Para Bauman,
comunidade é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido – mas a que
esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que
podem levar-nos até lá. [...] O paraíso perdido, diferente da’‘dura realidade” é
produto da imaginação, da liberdade de sonhar uma realidade de realidade hostil da
vida cotidiana. [...] A comunidade imaginada se alimenta dessa diferença.
(BAUMAN, 2003, p.9)
No Brasil, nada melhor do que a cidade do Rio de Janeiro e o Carnaval para expressar
a receptividade do povo brasileiro. No texto do Carnaval se inclui o texto do bairro da Lapa
conhecido como o berço da boemia carioca, o ponto de referência para os amantes e para a
vida noturna. Em terras brasileiras, Quain também teve seus momentos boêmios. Isso pode
ser visto tanto na sua chegada no Rio de Janeiro, quanto em suas visitas a Manoel Perna.
Quain
chegou ao Rio no Carnaval de 1938 e [...] conheceu, num bloco de rua, uma negra alta e
vistosa, fantasiada de enfermeira. [...] Ele mal falava português. Não entendia nada do que
ela lhe dizia. Estava bêbado. Levou-a para o seu quarto de pensão, dormiram juntos, mas
quando acordou no dia seguinte, ela já não estava lá. [...] Havia um homem na sua cama.
(CARVALHO, 2002, p.127)
tecido por questões referentes ao dinheiro, à política, às classes sociais, à família, às relações
pessoais, ao sexo e principalmente, a uma possível traição.
Assim, como o texto literário é em si duplo, podemos também pensar na duplicidade e
desdobramentos entre textos. No que diz respeito à duplicidade dentro do próprio texto,
Kristeva adverte que
este desdobramento não é nem horizontal, nem vertical: não implica nem a ideia do
paragrama como mensagem do sujeito da escritura a um destinatário (o que seria a
dimensão horizontal), nem a ideia do paragrama como significante-significado (o
que seria a dimensão vertical). O duplo da escritura-leitura é uma espacialização da
sequência: às duas dimensões da escritura (Sujeito-Destinatário, Sujeito da
enunciação-Sujeito do enunciado), acrescenta-se a terceira, a do texto “estranho.”
(KRISTEVA, 1974, p.99)
Passando por entre flechas traiçoeiras em terras inimigas, Quain, desconhecendo o seu
destino, já que não mais poderia ficar com os trumai, depara-se com os sentidos produzidos
pelos índios para o eclipse. Assim, um eclipse pode estar comendo a lua ou ser sinal de
assassinato. Segundo o antropólogo, em carta escrita para Ruth Benedict, a partir de sua
convivência como os Trumai: “toda morte é assassínio. Ninguém espera passar da próxima
estação das chuvas. Não é raro haver ataques imaginários. Os homens se juntam aterrorizados
no centro da aldeia – o lugar mais exposto de todos – e esperam ser alvejados por flechas que
92
virão da mata escura.” (CARVALHO, 2002, p.60) O fato é que Quain, no dia 7 de novembro
de 1938, dirigia-se pela incerteza para o seu destino, ou seja, para a sua morte em 2 de agosto
de 1939. Para Lima,
a morte é sim o nada, o aniquilamento do que nasce, mas também o oposto que o
incita e o delimita. Neste que aqui nasce, a morte que se invoca declara o contrário
que o norteará. Mesmo pois sob o risco de articularmos o inarticulável, não se
cogita de dizer que a dialética entre contundência e receio seja a causa de que o
efeito seria a morte como nada e norte. (LIMA, 1981, p.184)
Assim como a morte, vista como nada e norte, num contexto de incertezas,
multiplicidades, coexistências e dispersões, o narrador e personagens do romance
manifestam-se na narrativa como duplicações e especularidades. Lima afirma que “o outro
não está a priori fora do eu, inaugura-se dentro de si. E este outro interno é outro mesmo
porque não é uno, mas disperso. O outro não é apenas quem empresta seu ouvido para o que
diz a nossa voz. Dentro desta voz, já está o mais de um do outro.” (LIMA, 1981, p.160)
Enquanto vozes que ecoam umas sobre as outras, na escrita do romance, o enigma da
morte e da vida de Quain é constantemente reescrito por repetições. A reescrita, como forma
de buscar o ideal virtual, defende o texto contra a sua esclerose ao estabelecer uma rede
construída por linhagens envolvendo diferentes gerações. As tentativas de encontrar o
esclarecimento acerca do enigma Quain realizam-se não só por repetições, mas também por
omissões e substituições, alcançando sempre outras configurações. Na busca da causa da
morte do antropólogo, o narrador, confuso entre as possibilidades desta morte, especulariza as
crises vividas por Quain. Nessa mesma perspectiva, o terror vivido pelos índios Trumai,
frente aos possíveis ataques de outras tribos, também duplica e dispersa os fantasmas do
antropólogo. Para o narrador:
A saída de Buell Quain da aldeia pela última vez lembra uma fuga. [...] Se estava
realmente louco, e a despeito do clichê psicológico, era então uma fuga de si
mesmo, do duplo que o mataria na eventualidade de uma nova crise, que se
aproximava. Deve ter sentido a iminência de uma nova crise e decidido ir embora
antes que fosse tarde demais. Na solidão, vivia acompanhado dos seus fantasmas,
via a si mesmo como a um outro de quem tentava se livrar. Arrastava alguém no
seu rastro. Carregava um fardo: Cãmtwýon. [...] A aceitar a explicação da doença,
no entanto, de um ponto de vista exterior e mais objetivo, esse fardo era agora o
próprio corpo leproso ou sifilítico. Simplesmente não podia mais suportar o
sofrimento do próprio corpo castigado pela doença. [...] Houve momentos em que,
talvez por causa da inutilidade da obsessão de entender o que o guiava nas suas
últimas horas, e com isso tentando entrar também na sua loucura, cheguei a cogitar
que pudesse estar fugindo não só de um fantasma pessoal, mais de alguma coisa
objetiva e concreta, de alguém de carne e osso. Quando nos encontramos, perguntei
à antropóloga que tinha escrito o artigo no jornal se ela aventava a possibilidade de
ele ter sido assassinado. E ela foi taxativa. Me disse que não havia nenhuma chance
de que ele não tivesse se matado. Tudo contradizia a hipótese do homicídio, a
começar pelas cartas que deixou. [...] Talvez Quain tivesse as suas razões para não
deixar transparecer que estava correndo risco de vida. O que eu queria dizer não
fazia muito sentido, estava contaminado pela loucura dele. [...] Talvez houvesse
93
razões para ele ser assassinado. Talvez não quisesse que essas razões viessem à
tona. [...] Talvez preferisse se matar. Tudo dependia do que tivesse feito na aldeia.
(CARVALHO, 2002, p.112-4)
Quando o filho de José Maria adverte o narrador de uma possível mentira, isso
também aproxima o narrador de uma possível verdade. Nesta direção, Bakhtin adverte que “a
verdade é restabelecida pela redução da mentira ao absurdo.” (BAKHTIN, 1993, p.115) A
coexistência da mentira com a verdade promove horror e fruição. A possibilidade de o sujeito
alcançar a verdade que busca lhe traz fruição na mesma intensidade que lhe causa horror pela
realização e fim de sua busca. Também a mentira horroriza o sujeito pela probabilidade de
destituir a verdade do lugar do desejo, ao mesmo tempo em que lhe causa fruição por manter
acesa a dúvida que alimenta a sua condição de ser desejante. Interrompendo pela metade o
que poderia revelar a verdade, o menino desaparece, causando desconfiança, cumplicidade e
desejo no sujeito. A revelação sempre parcial do que se busca, o que causa fruição e horror no
sujeito, dá o tom enigmático necessário à construção da subjetividade e da sua narrativa.
Ehrenzweig, ao discutir
o chiste como excelente e racionalmente significativo [para a percepção artística,
diz que] se tornará difícil para nós nos darmos conta de seu caráter inarticulado e
sem sentido. Nós acreditamos ter “adivinhado” um significado já previamente
existente, um sentido “oculto” numa aparente falta de sentido. [...] Do mesmo modo
somos levados a acreditar que o chiste tem uma estrutura articulada e um conteúdo
sensato o tempo todo, só que antes do riso não conseguíamos captá-lo. As
experiências inarticuladas originais são esquecidas em um nível mais profundo da
mente, foram destruídas quando a percepção totalmente articulada da superfície
chegou para substituí-las. (EHRENZWEIG, 1977, p.178-9)
Apesar de toda relutância para não nos perder na dimensão do não sentido, é ele que
nos traz fruição, mesmo que também nos horrorize pela instabilidade que nos causa. Da
mesma forma que a produção de sentido acontece no campo da alteridade, nos deparamos
com o não sentido também no nosso encontro com o outro. Nas palavras do narrador,
dois meses e meio depois [que Quain tinha chegado na aldeia trumai, ele] já estava
integrado; [mesmo que agora, o antropólogo se permitisse] recusar os pedidos
incessantes dos índios [...] [e sabendo que] a violência física não era permitida na
aldeia, sobretudo contra as crianças, [...] por duas vezes quase desencadeou uma
comoção social ao bater na mão de um menino que lhe roubava farinha e ao pisar
sem querer no pé de outro. (CARVALHO, 2002, p.55)
Assim como o narrador relata a aculturação de Quain pelos trumai, esse mesmo
narrador também comenta a aculturação do antropólogo e de seu filho que o acompanharam à
aldeia Krahô ao observá-los “pintados dos pés à cabeça” (CARVALHO, 2002, p.92) no meio
desses índios. A aculturação de Quain pelos trumai ainda pode ser vista quando Manoel Perna
relata o que o etnólogo lhe tinha contado na primeira noite em que eles se encontraram.
Vejamos:
Num dia de tempestade cuja escuridão se confundiu com a noite, acometido de
febre, [Quain] sentiu o horror que afligia os Trumai. Apesar de eles não ligarem
para o sobrenatural, como os Kamayurá, temiam raios e trovões. Achavam que
alguém estava contrariando a chuva. Durante a primeira tempestade tropical que
95
Como os Trumai, Quain teme, na escuridão propiciada pela chuva, não o sobrenatural
ou os raios e os trovões, mas algo de conhecido que amedronta pela familiaridade e
semelhança. Para Adorno e Horkheimer, “o sobrenatural, o espírito e os demônios seriam as
imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras
míticas podem se reduzir [...] ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito.” (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.22)
Atemorizado, também, pela semelhança existente entre e si e os Trumai, Quain busca
marcar uma diferença quando “ao chegar [na aldeia trumai] raspou a cabeça e as
sobrancelhas, para a perplexidade dos seus anfitriões, já que a prática é considerada um
costume suyá.” (CARVALHO, 2002, p.53) Adotando um costume suyá no meio dos trumai, o
antropólogo instala uma falha no duplo, essencial à construção da subjetividade. Nem branco,
nem trumai, nem suyá, pois na perspectiva dos missionários americanos do rio Coliseu,
“quando viram um homem com a cabeça raspada, calças esfarrapadas e uma velha jaqueta
vindo do rio na sua direção, acharam que [o antropólogo] fosse um prisioneiro em fuga, até
que ele lhes sorriu.”(CARVALHO, 2002, p.50) Afinal, como já foi dito, o antropólogo “tinha
horror da ideia de ser confundido com as culturas que observava.”(CARVALHO, 2002, p.55)
Nos tempos hipermodernos, assim como Quain, homem branco, trumai e suyá, a
produção de subjetividades se amplia na coexistência de sentidos que se dispersam para a
construção de outras interpretações. Desestabilizando toda e qualquer certeza, o desequilíbrio
existente entre os significantes e os significados também nos apresenta o desequilíbrio entre
os diferentes mundos e as linguagens que os compõem. Para Bakhtin, “todas [...] [as] línguas
e mundos cedo ou tarde sairão de seu estado de equilíbrio sereno e amorfo, para descobrir sua
pluridiscursividade.” (BAKHTIN, 1993, p.103) Na pluridiscursividade, o discurso imaginário
e o discurso virtual se apresentam como diferentes formas de pensar a ficção.
96
4 O NARRADOR E A FICÇÃO
Assim, este romance escrito também por cartas se inspira num artigo jornalístico que,
por sua vez, foi inspirado por outras cartas. Além disso, ainda encontramos em “Nove
Noites”, fotos, retratos, bilhetes, testamentos, mapas, filme, desenho, artigo jornalístico,
outros romances e e-mails ampliando as possibilidades de se escrever e de se fazer um
romance.
A condição dialógica na composição da narrativa está presente no romance desde os
tempos em que esse gênero literário encontrava-se vinculado à épica. Segundo Wellek e
Warren,
num tempo em que épica e romance não estavam ainda separados, [...] o romance
tradicional, à semelhança da épica, misturava o diálogo, a apresentação direta, com
a narração; a épica chegou mesmo a ser considerada, por Scaliger e outros
inventores de medidas de “valor” dos gêneros, como o mais elevado gênero, em
parte pela razão de que incluiria os outros todos. (WELLEK; WARREN, 1962,
p.287-289-290)
tipos de relação: a relação entre sujeitos interlocutores que interagem e a relação entre desses
interlocutores com a sociedade. Compondo a subjetividade e o romance, temos, pois, as duas
definições bakhtiniana de dialogismo, o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre
discursos. A concepção de subjetividade para Bakhtin, também presente na construção do
romance, aproxima-se da compreensão esquizoanalítica de rizoma por “o dialogismo
interacional de Bakhtin desloca[r] o conceito de sujeito, que perde o papel de centro ao ser
substituído por diferentes vozes sociais que fazem dele um sujeito histórico e ideológico.”
(BARROS, 1996, 28)
Assim, o romance, na hipermodernidade, apresenta-se com espaço intersubjetivo,
interdiscursivo e intertextual. Recorrendo a Bakhtin, Fiorin diz que: “a singularidade do
gênero romanesco consiste exatamente em ser uma representação do interdiscurso e que,
portanto, nele a heterogeneidade constitutiva representa-se.” (FIORIN, 1996, p.136-7)
Em “Nove Noites”, além da diversidade de elementos textuais que compõem o
romance, tais como cartas, mapas, fotos, e-mails, dentre outros, encontramos também,
diferenças linguísticas. Se não todas as cartas, certamente parte delas foi escrita em inglês o
que impôs a sua tradução para o português. “Nove Noites” torna-se, portanto, um espaço de
pluralidade linguística, o que nos remete ao gênero romance como o lugar onde também
diferentes línguas ou suas traduções podem aparecer compondo a narrativa. O narrador de
“Nove Noites”, ao se referir a sua visita à aldeia Krahô, diz: “no final da tarde [...] saí à
procura do antropólogo e do seu filho [...]. Encontrei-os de short e sandália havaiana (em
Roma como os romanos), com os corpos pintados de urucum, sentados em frente à casa do
pajé.” (CARVALHO, 2002, p.91) A presença dos elementos short, sandália havaiana e
urucum, muito mais do que uma questão de tradução, apresenta a pluralidade linguística e
cultural na escrita do romance, numa cartografia do texto literário organizada pelo narrador.
Em Bakhtin, a “palavra estrangeira [entra no espaço do outro criando um] novo contexto.”
(BAKHTIN, 1993, p.147)
Nesse jogo de diversidade e pluralidade, “Nove Noites”, ao se apresentar como um
romance, também se questiona como tal, assim como discute o que é este gênero literário.
Como já foi, rapidamente, comentado anteriormente, problematizando o valor da literatura, às
vezes vista como diletantismo, temos o narrador esclarecendo para Leusipo, índio da tribo
Krahô, sobre o que escrevia: “Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma
vez o que era um romance, o que era um livro de ficção [...], que seria tudo historinha, sem
nenhuma consequência na realidade.”(CARVALHO, 2002, p.95)
99
Historinhas sem consequências eram também aquelas contadas pelos índios krahô na
tentativa de impressionar o narrador visitante. Segundo ele, só mais tarde entendeu “que, por
ser recém-chegado, [ele] também era o bobo da aldeia, o alvo mais fácil das histórias em que
ninguém mais acreditava.” (CARVALHO, 2002, p.95) O fato é que, recorrendo a Robert
(1973), a origem do romance cedeu lugar a um romance das origens, quando os índios mais
velhos ”estavam preocupados [e] queriam saber por que [o narrador] vinha remexer no
passado”. (CARVALHO, 2002, p.95) Nesse cenário temos que o mito está para os índios,
assim como o romance está para os brancos como possibilidade de esclarecimento e condição
de aplacar a ameaça do caos civilizatório.
Recorrendo a Adorno e Horkheimer, temos que “o esclarecimento ainda se reconhece
a si mesmo nos próprios mitos.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.22) Para esses autores,
o mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. [...] Do
mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o
esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia.
Todo conteúdo, ele o recebe dos mitos, para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na
órbita do mito. (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.24 e 26)
esse narrador comenta: “Eu dizia que queria escrever um romance.” (CARVALHO, 2002,
p.75) Nessa citação, a colocação dos verbos dizer e querer como uma intenção permite pensar
que o narrador não tem certeza de que o que escrevia era mesmo um romance. Afinal, o que é
o romance nos tempos hipermodernos? Como pensar o narrador na hipermodernidade?
Dentre as alusões relativas à produção literária no romance “Nove Noites”, ainda
temos a fala de Mrs. Lowell, endereçada ao narrador, sobre o trabalho de leitura realizado
pelos jovens no asilo que dirigia. Para Mrs. Lowell: “’São jovens interessados em literatura.
Aprendizes de escritores. É um trabalho voluntário. Ajudam os idosos e para eles – quero
dizer, para os jovens – também é muito bom. Afinal, os velhos são uma fonte de histórias. É o
que o traz aqui, não é? ’” (CARVALHO, 2002, p.148)
Considerando o interesse do narrador em escrever um romance, ele, assim como os
jovens interessados em literatura e aprendizes de escritores, poderia se inspirar nas histórias
contadas pelos velhos, conforme a orientação benjaminiana. Para Benjamin: “o narrador não
está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se
distancia ainda mais.” (BENJAMIN, 1985, p.197) A ambiguidade aqui também se faz
presente quando o exercício da escuta de histórias e da leitura pode beneficiar os velhos
contadores de histórias e ouvintes de literatura, ou os jovens leitores de histórias e aprendizes
de escritores, ou o narrador imerso em suas dúvidas e críticas sobre os romances. Para Culler:
O autor cria um texto que é lido pelos leitores. Os leitores inferem a partir do texto
um narrador, uma voz que fala. O narrador se dirige a ouvintes que às vezes são
subtendidos ou construídos, às vezes explicitamente identificados [...] [Assim,] a
narrativa constrói um público através daquilo que sua narração aceita sem discussão
e através daquilo que explica. (CULLER, 1999, p.88)
Frente à crítica que Mrs. Lowell faz á mídia e a inexistência de limites entre o público
e o privado, a decepção e o desalento do narrador com a escrita de um romance também se
manifesta, já que esse narrador se dispôs a escrever sobre a vida e a morte de Buell Quain,
aquilo que deveria dizer respeito apenas àquele antropólogo.
Na composição do romance, ainda é possível observar que, considerando a construção
das partes enumeradas presentes na obra, as partes em itálico referentes a Manoel Perna são
interrompidas pelas partes em não itálico, em que encontramos a voz do narrador, sendo
retomadas em outros momentos do romance para serem novamente interrompidas. Essa
estratégia, referente à forma pela qual o romance foi construído, reforça o enigma da vida e da
morte de Quain, núcleo central da narrativa. Para Culler,
o leitor [...] compreende [o texto literário] identificando a história e depois vendo o
texto como uma apresentação específica daquela história; identificando “o que
acontece”, somos capazes de pensar no resto do material verbal como sendo a
maneira de retratar o que ocorre. (CULLER, 1999, p.87)
Isso pode ser visto quando Manoel Perna, ao relatar a experiência vivida por Quain na aldeia
trumai, diz que
durante uma caçada em que [os Trumai] procuravam aves para tirar-lhes as penas,
disseram [para Buell Quain] que um pássaro de cabeça vermelha a que chamavam
“lê” era o anúncio da morte para quem o visse. Pouco depois [Quain] deparou com
a aparição fatídica e preferiu acreditar que lhe pregavam uma peça. Não disse nada,
embora no íntimo tenha ficado muito impressionado. (CARVALHO, 2002, p.58)
O pássaro “lê” pode ser visto como a representação daqueles que desejam saber,
inclusive saber sobre a morte, e para tal realizam suas leituras, dentre os quais podem ser
incluídos Manoel Perna, o narrador e o leitor do romance. Contudo, esse pássaro impressiona
por não sabermos se a história construída em torno dele é uma peça ou realidade. Assim, em
busca de respostas para os seus questionamentos, o sujeito constrói suas interpretações na
fronteira que delimita os espaços da ficção e da realidade fatual. O enigma Quain apresenta-
nos os enigmas do sujeito através da sua ficcionalização. O sujeito, assim como suas
verdades, é pura ficção.
O romance de Bernardo Carvalho atravessa a realidade fatual, quebrando as suas
conexões com a verdade, apresentando-nos a ficção como possibilidade de acesso ao sujeito.
Para além do inventário dos fatos, existe um enigma, o qual não é totalmente esclarecido,
mantendo o tom enigmático que sustenta o desenvolvimento da narrativa, já que o inquérito
sobre a morte de Quain não aconteceu. Na impossibilidade de compreensão e esclarecimento
acerca da morte de Quain, o antropólogo torna-se, assim como a sua morte, também enigma.
Os motivos para a morte de Buell são múltiplos e os enigmas sobre a personalidade do
antropólogo desdobram-se na narrativa, através das mais diferentes falas. Para Bakhtin, “o
homem do romance é essencialmente o homem que fala; o romance necessita de falantes que
lhe tragam seu discurso original, sua linguagem.” (BAKHTIN, 1993, p.134)
A presença marcante do enigma na narrativa de Carvalho, que atravessa quebrando o
que é fatual, também é mencionada por Marion em carta escrita à Ruth Benedict, quando ela
diz: “O fato de que nenhum de nós provavelmente jamais conhecerá os fatos torna ainda mais
difícil nos desembaraçarmos deles.”(CARVALHO, 2002, p.88) O provável conhecimento dos
fatos é, assim, atravessado e quebrado pelo próprio fato, o fato de jamais conhecê-los. Da
mesma forma que o provável é questionado pelo jamais, o verossímil questiona e mantém a
esperança da possibilidade do conhecer no âmbito da impossibilidade apresentada pelo nunca.
Assim os enigmas são construídos e no lugar da impotência, ou mesmo da onipotência frente
ao desvendamento dos fatos, surge a impossibilidade de apreensão do fatual, abrindo espaço
103
O significado do verbo ler como espiar, recolher, reconhecer traços, pode ser
identificado quando, no romance, Manoel Perna ressalta a palavra observar, recorrente na
parte 10 de “Nove Noites”, demonstrando a preocupação de Quain em ser observador dos
Trumai e assim fazer a sua leitura desses índios, mantendo uma distância necessária para não
se perder no meio da cultura indígena. Segundo Perna: “A [Quain] só restava observar”
(CARVALHO, 2002, p.55); “tinha horror da ideia de ser confundido com as culturas que
observava” (CARVALHO, 2002, p.55); “ele estava cansado de observar” (CARVALHO,
2002, p.55); “tentava manter-se afastado e, num círculo vicioso, voltava a ser observador”
(CARVALHO, 2002, p.55); “talvez por uma estranha afinidade decorrente do lugar incômodo
que ele próprio ocupava na aldeia, justamente como observador” (CARVALHO, 2002, p.56);
“observou que o órfão tinha um interesse especial [pelos jogos sexuais que aconteciam na
aldeia Trumai]” (CARVALHO, 2002, p.56); “outro garoto, logo depois da primeira ereção,
compareceu uma noite à casa do dr. Buell para se vangloriar e certa vez chegou a copular com
uma menina, sob os olhos do antropólogo, de propósito, para se mostrar, sabendo que era
observado”(CARVALHO, 2002, p.56); “[Quain] não observou nenhum caso de suicídio
propriamente dito durante a sua breve estada entre os Trumai.”(CARVALHO, 2002, p.57)
Nas citações acima, é curioso que o antropólogo, mesmo ocupando o lugar de
observador para não se misturar com os Trumai, corre o constante risco de se perder no meio
dessa cultura indígena exatamente por observá-la. Uma estranha afinidade existente entre
Quain e os Trumai fazia do etnólogo observador dos índios, na mesma proporção que era
observado por eles. A condição de observador e observado pertence, pois, tanto a Buell,
quanto aos Trumai. Assim, enquanto o antropólogo observa a cultura trumai, ele é observado
pelo garoto indígena como aquele com quem este índio podia se vangloriar por seu
desempenho sexual ao se colocar como objeto da observação de Quain. Ler pressupõe ler-se e
ser lido, o que na composição do romance, reafirma seu caráter polifônico, plurilinguístico e
social.
104
Os diferentes sentidos que o verbo ler pode receber diluem possíveis verdades,
tornando tênues os limites entre a realidade fatual e a ficção. Entre a realidade e a ficção, a
trama narrativa se desenvolve, promovendo intensidades e não certezas. Para Culler:
Um enredo exige uma transformação. Deve haver uma situação inicial, uma
mudança envolvendo algum tipo de virada e uma resolução que marque a mudança
como sendo significativa. [...] Encontramos a associação de um desenvolvimento
no nível dos acontecimentos com uma transformação no nível do tema. Uma
sequência de acontecimentos não faz uma história. Deve haver um final que indique
o que aconteceu com o desejo que levou aos acontecimentos que a história narra.
(CULLER, 1999, p.86)
A linguagem cerca o fato, mas não o apresenta na sua totalidade. Algo escapa e é
exatamente por isso que diferentes e novos arranjos e configurações podem ser construídos
em torno da morte de Buell Quain e de tudo que faz alusão à sua vida. Da mesma forma que a
igreja de Carolina e as ocas da aldeia Trumai, na remontagem da história do antropólogo,
histórias atravessam e participam de outras histórias possibilitando espelhamentos e
duplicações. Para Culler, o “encaixe de histórias dentro de outras histórias, [faz com] o ato de
contar uma história se torna um acontecimento na história. [...] Histórias dentro de histórias
dentro de histórias.” (CULLER, 1999, p.92)
No entrecruzamento de diferentes histórias, o discurso organiza as relações existentes
na obra “Nove Noites”, assim como os mitos evocados nos relatos das culturas indígena e
civilizada organizam o caos da impossibilidade da compreensão absoluta da existência
humana, e o romance organiza a realidade para o sujeito. Na perspectiva de Culler:
Os personagens [de um romance] são pessoas cujas vidas secretas são visíveis:
somos pessoas cujas vidas secretas são invisíveis. E é por isso que os romances
podem nos consolar; eles sugerem uma raça humana mais compreensível e,
portanto mais administrável, podem nos dar a ilusão de perspicácia e de poder.
(CULLER, 1999, p.93)
No que diz respeito ao controle, também o homem e seu corpo evidenciam-se. Nas
palavras de Foucault,
o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e
objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância
hierárquica e sansão mobilizadora, realiza as grandes funções disciplinares de
repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de
acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de
fabricação da individualidade celular, orgânica genética e combinatória.
(FOUCAULT, 1987 a, p.160)
Contudo, a sociedade disciplinar, pensada por Foucault, vem tomando outras formas e
novas configurações. Segundo Deleuze, o próprio Foucault falava que esse tipo de sociedade
não duraria por muito tempo. Para Deleuze, “as sociedades disciplinares são exatamente
aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos.” (DELEUZE, 1992, p.214) Esse
autor ainda afirma que o anúncio constante da necessidade de reformas nas instituições
contemporâneas nada mais é do que uma maneira encontrada pelos políticos e gestores sociais
de “gerir [a] agonia das instituições e ocupar as pessoas, até a instalação das novas formas que
se anunciam.” (DELEUZE, 1992, p.220) Nessa direção ainda podemos encontrar Hardt,
quando ele diz que “os muros das instituições estão desmoronando de tal maneira que suas
lógicas disciplinares não se tornam ineficazes, mas se encontram, antes, generalizadas como
formas fluidas por meio de todo o campo social.” (HARDT, 2000, p.357)
As mudanças sociais vividas na contemporaneidade não significam que no lugar da
sociedade disciplinar foucaultiana surgiu uma nova configuração social. O que é possível
vislumbrar na atualidade é a coexistência de sociedades. Ao lado da sociedade disciplinar, ou
melhor, rizomatizada com essa sociedade, encontra-se “o que está sendo implantado, às cegas,
[...] novos tipos de sansões, de educação, de tratamento.” (DELEUZE, 1992, p.216) Segundo
Costa, “chegamos definitivamente à modulação contínua da sociedade de controle de que nos
fala Deleuze.” (COSTA, artigo disponível no site
http://www.scielo.php?script=sciarttex&pid=S0102-88392004000100019. acesso em
20/09/2007) E nas palavras do próprio Deleuze: “o que conta é que estamos no início de
alguma coisa.” (DELEUZE, 1992, p.225)
Nesse novo cenário, que também representa os tempos hipermodernos, a sociedade, o
poder e a linguagem se conectam e desconectam na construção do romance de forma
alienante ou emancipadora. Assim, falar, ler e escrever são exercícios necessários para
109
marca a diferença, na dimensão do sujeito que aponta o desequilíbrio entre o mundo dos
significantes e o dos significados. Diante desse desequilíbrio, o sujeito como efeito de
linguagem pode ser encarado como metonímia do corpo biológico e da própria vida,
encontrando, no romance, possibilidades de dizer de si.
A humanização do corpo enquanto processo de subjetivação ocorre num jogo que
envolve linguagem, escrita e poder. As leis, pelas quais se organizam o grupo social e a
cultura, são traços que marcam cada subjetividade e por ela são subjetivados. Nos
depoimentos do narrador de “Nove Noites”, esses traços e marcas também aparecem como
pinturas que o narrador teve sobre o corpo, feitas com jenipapo e urucum. Segundo esse
narrador:
Não tive como resistir quando as índias me cercaram à tarde para me pintar de
jenipapo. A tintura do jenipapo é um líquido transparente com pedacinhos do fruto,
e uma vez aplicada à pele termina por tingi-la de preto. Quando mais maduro o
jenipapo, mais escuro o resultado da pintura. Ao contrário do urucum, o jenipapo
não mancha a roupa. O que não me disseram na hora, e que eu devia ter concluído,
é que se não mancha a roupa é porque também não sai da pele. Não adianta esfregar
com nada o jenipapo fica na pele por um mês. [...] Sem que eu tivesse noção, ceder
ao jenipapo tinha sido como fazer um primeiro gesto de respeito e amizade em
relação aos índios. (CARVALHO, 2002, p.101-2)
Traços e marcas traduzem ao sujeito o seu encontro sempre parcial com a realidade
fatual, ao livrá-lo e, ao mesmo tempo, aproximá-lo daquilo que é “terrível e surpreendente.”
(CARVALHO, 2002, p.157) Em outras palavras, ficcionalizar a realidade só é possível pelo
não encontro total com fato. Marcado pela morte, o encontro com a realidade dos fatos traz o
terrível para a ficção. A impossibilidade do encontro pleno com a realidade protege o sujeito
da morte, da sua destruição enquanto subjetividade e linguagem, e assim, o surpreende com o
terrível ficcionalizado, levando também à sua ficcionalização. Em “Nove Noites”, recorrendo
às palavras do narrador, temos:
Dois aviões de passageiros, diante dos olhos atônitos de todo o planeta, atingiram e
derrubaram as duas torres do World Trade Center. Os jornais diziam que o mundo
nunca mais seria o mesmo. O fato é que nunca mais consegui falar com a produtora
[de televisão reputada por desenterrar o que ninguém mais conseguia descobrir.
(154)] Não me restava outra opção ou recurso senão as cartas. [...] E por uma
infeliz coincidência, toda [a minha] correspondência chegou aos destinatários
justamente no momento em que os Estados Unidos entraram em pânico por causa
das remessas de antraz em cartas anônimas enviadas pelo correio a personalidades
da mídia e da política americana e até mesmo a pacatos cidadãos. (CARVALHO,
2002, p.154-5)
Para não subordinar o romance à verdade da história, Weinhardt (1996) adverte que,
para além dos laços parentéticos existentes entre eles, ficção e discurso histórico se
intertextualizam, já que “a história, tanto quanto a ficção, é uma modalidade discursiva”
(WEINHARDT, 1996, p.338) e ambas não são categorias universais. Enquanto espaços que
se intertextualizam, o romance e a história demarcam suas diferenças. Weinhardt (1996),
comenta Walter Mignolo em “Lógicas das diferenças e política das semelhanças”, publicado
nos Anais do simpósio promovido pelo Centro Ángel Rama, “Literatura e história na América
Latina”, em 1992. Para Weinhardt,
Mignolo realiza rigoroso exame dos procedimentos habituais que a comunidade
historiográfica e a literária têm com assentes, enfatizando o que denomina
“convenção de veracidade” e “convenção de ficcionalidade”. O discurso conforme
as normas literárias pode enquadra-se na convenção de ficcionalidade, ainda que
esta não seja sua condição indispensável. Já no discurso histórico a submissão à
convenção de veracidade, protocolo de verdade para Costa Lima, é indispensável.
As práticas linguísticas historiográficas e as ficcionais são portadoras de marcos
discursivos que as inscrevem nesta ou naquela convenção. Os produtores de tais
discursos podem proceder no sentido de eliminar ou de reforçar esses marcos. Cabe
ao analista detectar esses movimentos e levantar as hipóteses sobre as razões que os
geram. (WEINHARDT, 1996, p.340)
112
[...] Ao relatar algo que aconteceu com ele quando criança, um narrador pode
focalizar o evento através da consciência da criança que ele foi, restringindo o
relato ao que pensou ou sentiu na época, ou pode focalizar os eventos através de seu
conhecimento e compreensão na época da narração. Ou, naturalmente, pode
combinar estas perspectivas, fazendo um movimento entre o que sabia ou sentiu
[...] e o que reconhece agora. Quando a narração em terceira pessoa focaliza
acontecimentos através de um personagem específico, ela pode empregar variações
semelhantes, relatando como as coisas parecem ao personagem na época ou como
são percebidas mais tarde. A escolha da focalização temporal faz uma diferença
enorme nos efeitos de uma narrativa. (CULLER, 1999, p.89 e 90)
Pensar o tempo e intertextualizá-lo com a história também nos apresenta duas distintas
direções. Uma delas é associar tempo à cronologia, assim delimitando e diferenciando três
distintos espaços: passado, presente, futuro. A outra direção nos apresenta o tempo como
devir, ou seja, onde e quando as coisas acontecem sem a demarcação territorial do passado, do
presente e do futuro.
Recorrendo a Kastrup (1999) existem duas vertentes filosóficas que se contrapõem na
história da filosofia. Uma delas é a vertente analítica da verdade que, segundo Foucault
(1983), se ocupa com a discussão e com o estabelecimento das condições necessárias para a
produção e compreensão do conhecimento verdadeiro e científico. A segunda vertente diz
respeito à ontologia do presente, que, na perspectiva de Foucault (1984), afasta a filosofia da
busca do conhecimento verdadeiro e a aproxima da história. Para Kastrup, “a ciência está para
114
a analítica da verdade assim como a história está para a ontologia do presente.” (KASTRUP,
1999, p.33)
Na ontologia do presente se inclui a discussão sobre o tempo. Nessa vertente
filosófica, “o presente aparece como ponto privilegiado, pois é nele que o processo de
transformação acontece. É a partir dele, do que ele apresenta de instabilidade em relação
àquilo que, por encontrar-se estabelecido, sugere a ideia de invariância, que tais limites
podem ser ultrapassados.”(KASTRUP, 1999, p. 34) Nessa perspectiva, podemos pensar que a
instabilidade do presente ao fazer frente à rigidez do estabelecido, dilui fronteiras temporais, e
presente, passado e futuro podem acontecer num só instante. Para haver a coexistência desses
três tempos, esses não devem ser entendidos como acontecimentos fatuais, mas, sim, como a
realização do fatual na produção de sentidos, na qual se inclui a ficção. A impossibilidade de
retornar ao passado e de viver o futuro faz do presente momento também de lembranças, de
resignificações, de expectativas e previsões. Na opinião de Kastrup:
Segundo Foucault, [na] segunda vertente filosófica aberta por Kant, [ou seja, na]
ontologia do presente, [...] se inscrevem Hegel, Marx, Nietzsche, M. Weber e a
Escola de Frankfurt. [Kastrup inclui] aí também as filosofias de Heidegger, Sartre e
de H. Bergson, que Foucault não cita. [...] Neste momento, importa sublinhar que
se encontra aí toda a filosofia que toma como problema fundamental o tempo, seja
na forma da investigação histórica (Hegel, Marx, Weber, a Escola de Frankfurt),
seja na forma do intempestivo e do devir (Nietzsche, Bergson). [...] A ontologia do
presente reúne uma variedade de filosofias entre as quais não é possível traçar uma
linha homogênea. Agrupa Hegel, que desenvolve um historicismo racionalista, e
também anti-hegelianos ferrenhos, como Nietzsche, para quem o historicismo é
uma doença da filosofia, que a desvitaliza e a conduz à morte. [...] O que distingue
a maneira como o problema do tempo comparece em Hegel e em Nietzsche é que,
para o primeiro, ele aparece como tempo passado, história de curso necessário, ao
passo que, para o segundo, ele é tempo por vir, futuro inantecipável. Foucault
parece não se importar com os matizes dos diferentes conceitos de história, ou
mesmo com a diferença entre história e tempo, história e devir. (KASTRUP, 1999,
p.32-3)
Assim, para Kastrup, da mesma forma que o presente inclui o passado e o futuro,
enquanto produção e dissipação de sentidos, Foucault incorpora história, tempo e devir, por
sua filosofia significar uma ruptura com o conceito tradicional de epistemologia, com a
história dos conceitos básicos de determinada ciência em suas teorias e métodos, com o
conhecimento verdadeiro, ou seja, com a vertente filosófica analítica da verdade. Portanto,
Kastrup acredita que Foucault propõe que o que faz a unidade de um discurso ou de uma
teoria não é o objeto a que ele se refere, mas o que é enunciado a seu respeito, a constituição
de temas que resultam em diferentes configurações do saber. Os discursos também não devem
ser analisados segundo uma história de temas, mas considerar a sempre e constante dispersão
dos temas em diferentes sentidos. Aqui cumpre salientar que, para Deleuze (1988), lembrado
115
por Escobar (1991), Foucault é um historiador do presente e que para Bergson, “quanto mais
aprofundarmos na natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração quer dizer
invenção, criação de formas, elaboração contínua do inteiramente novo.” (BERGSON, 1907,
p.49) Ainda sobre o tempo, Weinhardt pode ser lembrada quando ela diz que
No tempo presente na ficção “Nove Noites”, também foi no início dos anos 70 que “os
militares chegaram a aventar a possibilidade de que, sendo área de segurança, o aeroporto [em
verdade, a pista de pouso existente ao lado da casa do Xingu] estivesse sofrendo um ataque
terrorista.” (CARVALHO, 2002, p.63)
Cumpre lembrar que a década de 70 foi um período de turbulência política e apogeu e
crise da ditadura militar brasileira. Nessa década o regime repressor, a censura policial e a
tortura militar provocaram uma reação no Brasil, onde um projeto humanitário mobilizou o
país contra a hegemonia política calcada no poder militar. Sendo assim, abriu-se espaço para a
resistência ao regime militar no transcorrer dessa década. Considerando também que os anos
70 ficaram conhecidos como o período de reestruturação capitalista global, essa época passou
a refletir sobre a forma como funcionavam os países governados pelo modo de produção e
mentalidade capitalistas, estabelecendo as normas para o progresso da nação e bem-estar
social. Aqui merece destaque o império norte-americano, país de origem do antropólogo Buell
Quain.
No que se refere à história, ao progresso e à opressão social, Benjamin, ao dizer que “a
tradição dos oprimidos nos ensina que ‘o estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a
regra geral” (BENJAMIN, 1985, p.226), analisa um quadro de Klee da seguinte forma:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse
aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nos vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se
em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o
impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
progresso. (BENJAMIN, 1985, p.226)
Ainda no que se refere ao progresso, Serres nos diz que: “não há progresso sem
utopia.” (SERRES, 1999) Esse filósofo francês nos convida pensar na importância das utopias
como a desencadeadora do progresso da humanidade, já que, na sua opinião, quando o
homem historicamente se vê frente àquilo que é novo, se vê convidado à percorrer os
caminhos da experimentação, da invenção e da criação como resistência. No contexto da
invenção como resistência, Deleuze e Guattari comentam que desta forma transfere-se ao
futuro “as sensações persistentes que encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre
renovado dos homens, seu protesto recriado, sua luta sempre retomada.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997 c, p.228)
Na perspectiva da criação e da invenção, para compreender o romance como
resistência, Compagnon comenta que a literatura pode tanto favorecer as ideologias e valores
capitalísticos, quanto ser propiciadora do desejo e dos processos de singularização que
rompem com esses valores e, assim, produzem o novo. Para Compagnon,
ligada à privatização da cena da leitura, depois do nascimento da imprensa, [...] [a
literatura] estaria comprometida com valores dos quais seria ao mesmo tempo causa
e consequência, sendo o primeiro deles o indivíduo burguês. Essa é, sobretudo, a
crítica marxista, que vincula literatura e ideologia. A literatura serve para produzir
um consenso social; ela acompanha, depois substitui a religião como ópio do povo.
(COMPAGNON, 2001, p. 36)
reprodução de opiniões sobre as sensações e perder sua abertura ao caos, de onde justamente
tira seu plano de composição. Mais do que combater o caos, a arte combate as opiniões e
clichês que nos abrigam do caos.” (DELEUZE; GUATTARI apud FURLAN, 2006, p.105-
126) Ainda nessa direção, Guattari comenta a diferença entre a relação de alienação e a
relação de criação, incluindo-se, nesta última, os processos de singularização. Para esse autor,
existem dois modos de relação do sujeito com a ordem capitalística e esses modos dizem
respeito a
relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal
como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se
reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu
chamaria de singularização. (GUATTARI, 1992, p.33)
Também no contexto da criação como forma de resistência, Deleuze diz que “criar não
é comunicar, mas resistir.” (DELEUZE, 1992, p.179) Junto a Guattari, Deleuze ainda
acrescenta que “não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais,
falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997c). Para
pensar o ato de criar como resistência, segundo Deleuze, “é preciso falar da criação como
traçando seu caminho entre impossibilidades.” (DELEUZE, 1992, p.179)
Corroborando Benjamin, Serres, Compagnon, Deleuze e Guattari, Bosi apresenta o
conceito de poesia-resistência. Esse autor afirma que toda poesia moderna, ou melhor, o fato
de se conseguir produzir poesia no mundo contemporâneo, pode ser visto como uma forma de
resistência simbólica às ideologias e discursos dominantes. Para Bosi:
A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, “esta coleção de
objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo
descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso.
Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova
ordem que se recorta no horizonte da utopia. Quer refazendo zonas sagradas que o
sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o
sentido do presente em nome de uma libertação futura, o ser da poesia contradiz o
ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um
ou outro pseudovalor formal vigente – e daí, obliquamente ideológico – venha a
cruzar o seu jogo verbal). (BOSI, 2004, p.169)
118
Podemos, pois, pensar que o discurso poético, frente ao discurso autoritário, polemiza
a realidade fatual apresentada como verdade. A dimensão plural do discurso poético questiona
a linearidade do discurso autoritário. No contexto do discurso poético, inclui-se o romance, já
que, recorrendo à Barros,
cabe ressaltar aqui que todo discurso, seja ele poesia, pintura, prosa, dança, que
apresentar as características de polifonia [...] será tido discurso poético. A palavra
poético não tem aqui o emprego que lhe dá Bakhtin quando diferencia poesia
(lírica) e prosa (romance) e apenas à última atribui a característica de polifonia. Em
seus últimos textos, Bakhtin afirma que não há na literatura discursos monofônicos,
nem mesmo na poesia lírica. É nesse sentido que [...] o termo [...] discurso poético
[pode se referir] aos discursos que produzem efeitos de polifonia. (BARROS, 1996,
p.37)
articulava desde 1966, em Brasília, a compra de dois latifúndios no sertão, por meio
de títulos definitivos do governo. [...] Não só pagou uma ninharia pelas terras,
como passou a receber subsídios para o projeto agropecuário que implantou a partir
de 1970. A prática foi estabelecida como programa pelo governo militar, que sob o
pretexto de desenvolvimento da Amazônia não só subvencionou a compra e
centenas de milhares de alqueires a preço de banana, como em seguida financiou
nababescamente os projetos de ocupação pelos fazendeiros – em geral, bastava
derrubar a mata, plantar capim e encher as fazendas de gado. (CARVALHO, 2002,
p.65)
agressão entre Hitler e Stalin, o sinal verde para o início da Segunda Guerra e, para
muitos, uma das maiores desilusões políticas do século XX. Topei com uma
referência à carta de Einstein, por mera coincidência, logo que comecei a vasculhar
a morte de Quain. Ele não chegou a ver nada. O mundo dele não foi o meu. Não viu
a guerra, não viu a bomba – ainda que, na loucura final das suas observações sobre
os Krahô, e com base nas lembranças das revistas científicas que lia na
adolescência, tenha tentado aplicar “os mesmos princípios matemáticos que
governam os fenômenos atômicos” aos fenômenos sociais, detectando nos índios
“síndromes de comportamento cultural” análogas às leis da física. Tinha um
fascínio quase adolescente pela ciência e pela tecnologia. Não podia ter pensado
que quanto mais o homem tenta escapar da morte mais se aproxima da
autodestruição, não podia lhe passar pela cabeça que talvez fosse esse o desígnio
oculto e traiçoeiro da ciência, sua contrapartida, embora muito do que observou
entre os índios e associou por intuição à sua própria experiência pudesse tê-lo
levado a alguma coisa muito próxima dessa conclusão. (CARVALHO, 2002, p.15)
“equivale a dizer que se propõe estabelecer uma atitude de constante desconfiança ante o
afirmado.” (LIMA, 1975, p.14) Portanto, marcado pela desconfiança, o texto histórico
transcende o fato numa rede de constantes e sucessivas interpretações. Nessa direção se inclui
Bakhtin, quando ele nos diz que:
Todas estas linguagens [...] são concretizadas sobre um plano social e histórico [...]
e, por isso, atrás de todas elas, transparecem as imagens das pessoas que falam, em
vestimentas concretas sociais e históricas. [...] Para que esta linguagem se torne
precisamente uma imagem de arte literária, deve se tornar discurso das bocas que
falam, unir-se à imagem do sujeito que fala. (BAKHTIN, 1993, p.137)
No que se refere ao romance, ainda podemos pensar em Kristeva. Ela comenta que
este é “uma rede de diferenças que marcam e/ou reúnem as mutações dos blocos históricos.”
(KRISTEVA, 1974, p.14)
Num contexto de mutações, no qual o romance e o discurso histórico ampliam suas
fronteiras, Hutcheon apresenta a ideia de metaficção historiográfica. Esta autora, ao introduzir
seu livro “Poética do pós-modernismo”, nos diz que
este livro [...] vai privilegiar o gênero romance, especialmente uma de suas formas,
que quero chamar de “metaficção historiográfica”. Com este termo refiro-me
àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo são intensamente
auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de
acontecimentos e personagens históricos [...]. A metaficção historiográfica
incorpora todos esses domínios (literatura, história e teoria), ou seja, sua
autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas
(metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração
das formas e dos conteúdos do passado. [...] Ela sempre atua dentro das convenções
a fim de subvertê-las. Ela não é apenas metaficcional; nem é apenas mais uma
versão do romance histórico ou do romance não ficcional. (HUTCHEON, 1991,
p.21-2)
seguida ao trecho da página 19, o narrador expõe seu desencanto com a verdade e decepção
com a verossimilhança ao comentar sobre “os nascimentos [e] a euforia cega com que os pais
encobrem o risco e a imponderabilidade do que acabaram de criar” (CARVALHO, 2002,
p.19) e volta a precisar temporalmente a narrativa, agora no que diz respeito ao nascimento e
dados biográficos de Quain.
Buell Halvor Quain nasceu em 31 de maio de 1912, às 11h53 da noite, no hospital
de Bismarck, capital da Dakota do Norte. A certidão de nascimento diz que foram
tomadas as devidas precauções contra a oftalmia neonatal, àquela altura um
procedimento de praxe contra a transmissão de doenças venéreas aos recém-
nascidos. (CARVALHO, 2002, p.19)
A ironia está também presente em “Nove Noites” nos momentos em que o narrador
faz menção à produção de um romance. Assim, “suposto romance” (CARVALHO, 2002,
p.157), “edição popular” (CARVALHO, 2002, p.153) e “livros [...] de gente que não [existe]”
(CARVALHO, 2002, p.157) reafirmam o tom crítico presente na narrativa acerca da ficção
como uma “historinha sem nenhuma consequência na realidade.” (CARVALHO, 2002, p.95)
A ironia referente à produção de um romance também se faz presente quando o narrador, no
seu encontro com Schlomo Parsons, momento em que esse narrador diz iniciar a ficção, nos
fala: “A ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos.” (CARVALHO,
2002, p.158) “As palavras dali em diante não teriam nenhuma importância. Eu podia dizer o
que quisesse, podia não fazer o menor sentido, só não podia dizer a verdade. Só a verdade
poria tudo a perder. ”(CARVALHO, 2002, p.161)
Ainda no que se refere à ironia, temos nas especularidades presentes em “Nove
Noites”, o relato do narrador, quando ele nos diz: “Meu pai me fez o favor de anunciar que eu
era bisneto do marechal Rondon por parte de mãe. Uma informação que, dali em diante, ele
usaria sempre que achasse necessário, como cartão de visita, toda vez que me levava para a
selva.” (CARVALHO, 2002, p.66) Intensificando a importância de Rondon para o jogo
político necessário à apropriação de terras amazônicas, o marechal, agora lembrado na patente
mais elevada, já que na página 67 Rondon era lembrado como General, enquanto bisavô do
narrador, é extremamente útil para que o pai deste narrador justificasse a compra da fazenda
Santa Cecília e os subsídios que recebeu do governo federal para a implantação do projeto
agropecuário em suas terras. Essa importância é reafirmada na narrativa quando a palavra
rondar aparece na página 67, referindo-se à procura das terras para serem compradas pelo pai
125
do narrador, na companhia do filho. Entediado pela procura das terras na mata, este narrador
relata:
Na ilha do Bananal, [...] meu pai e eu, com o meu chapéu de Jim das Selvas e um
mau humor mais do que compreensível numa criança de seis anos que se vê forçada
a passar os dias a rondar pela mata, de jipe e em voadeiras, sob um sol escaldante,
saímos à procura das terras que ele pretendia comprar. (CARVALHO, 2002, p.67)
Essa autora ainda diz que “uma ruptura nas práticas significantes [possibilita que] o
significante [seja] remodelado enquanto significante.” (KRISTEVA, 1974, p.34) Portando,
Rondon cedeu lugar a rondar reforçando, na narrativa, a política agropecuária proposta para as
terras amazônicas.
Já apontando para o contexto da aculturação indígena sob o poder da civilização do
homem branco representada pelo poder de Rondon para a apropriação de terras na Amazônia
e pelo poder norte-americano imposto à nação brasileira, o que será analisado mais adiante, o
seriado televisivo “Jim das Selvas”, assim como a ficção científica “Perdidos no espaço”
lembrada na página 62 e a revista “Sétimo Céu” referida na página 66, confirmam o tom
irônico presente na narrativa.
O narrador ao fazer suas críticas às relações de poder e aculturação indígena, inclui, no
romance, comentários sobre o envolvimento amoroso de seu pai com uma atriz da fotonovela
que tinha como cenário o hotel da ilha do Bananal, onde esse narrador se hospedou na
companhia de seu pai que estava em busca de terras na Amazônia. Segundo o narrador:
Meu pai logo se engraçou com uma das atrizes da fotonovela, que no verão
seguinte eu reencontraria em Petrópolis, num fim de semana em que ele apareceu
para me visitar, com ela e dois filhos [...] e me comprou um forte apache de plástico
para aplacar a decepção que me provocou aquele reencontro. (CARVALHO, 2002,
p.67)
sustenta os processos de subjugação e aculturação. Não podemos esquecer que o hotel ao qual
o narrador se referia “era um prédio moderno, de dois andares, que lembrava Brasília à beira
do Araguaia.” (CARVALHO, 2002, p.66) Na perspectiva da dominação do homem branco
sobre os índios, Ribeiro comenta que
assim viviam, assim morriam os índios do Brasil nos primeiros anos [do século
XX]. Os que se opunham ao avanço das fronteiras de civilização eram caçados
como feras desde os igarapés ignorados da Amazônia até às portas das regiões mais
adiantadas. Ainda mais dramático era o destino dos índios civilizados. Submetidos
ao convívio com as populações brasileiras que ocuparam seu antigo território,
incapazes de se defenderem da opressão a que eram submetidos, viviam seus
últimos dias. Expulsos de suas terras, eram escravizados nos seringais e nas
fazendas onde enfrentavam condições de vida a que nenhum povo poderia
sobreviver. (RIBEIRO, 1977, p.111)
Entre a ilusão propiciada pelo romance e a busca de sentidos para o que nele se
apresenta escrito, o leitor se desilude e se fortalece diante do segredo que move a narrativa.
Na perspectiva da presença do discurso histórico no romance,
na primeira instância, a situação é dada pelo momento histórico; na segunda é o
diálogo com o discurso do próprio historiador que se instaura; no romance, estas
duas situações primeiras podem ser totalmente subvertidas, a partir das
confluências com outras vozes e até com outros discursos já chamados à cena ou
que ainda o serão. (WEINHARDT, 1996, p.351)
Assim, na composição do romance “Nove Noites”, lido como uma rede de diferenças,
além do discurso histórico, ainda encontramos os discurso jornalístico visto pela ótica da
ruptura, da descontinuidade, da desconfiança, das mutações, das possibilidades. Para
Weinhardt: “Se o traço definidor do discurso romanesco é a confluência de muitos discursos,
[...] nele há o discurso do historiador, o do antropólogo, o do sociólogo, o do jornalista, o do
etnólogo...” (WEINHARDT, 1996, p.346) No romance de Carvalho, a confluência desses
discursos possibilita o desenvolvimento da narrativa e a construção de seus personagens.
Através de fontes consideradas confiáveis, o tom jornalístico é tomado na narrativa
enquanto estratégia literária. Um exemplo da interseção existente entre texto literário e
discurso jornalístico pode ser visto na seguinte passagem:
Manoel Perna, o engenheiro de Carolina e ex-encarregado do posto indígena
Manoel da Nóbrega, morreu em 1946, afogado no rio Tocantins, durante uma
127
tempestade, quando tentava salvar a neta pequena. [...] Deixou sete filhos, três
homens e quatro mulheres. Voltava de Miracema do Tocantins para Carolina.
Quem conta a história são os dois filhos mais velhos. [...] Francisco Perna, de
Miracema, disse que o pai “voltava para Carolina pelo rio, houve uma tempestade e
a balsa virou. Ele já estava doente dos intestinos. O coração não aguentou. Tentou
nadar e salvar a neta sobre uma mala, mas o corpo dele afundou. A neta foi salva
por um amigo que conseguiu nadar até a margem.” Só dias depois do acidente os
filhos tiveram notícia de que o corpo do pai, levado pela correnteza, tinha sido
achado e enterrado em algum lugar rio abaixo, que não sabem onde é.
(CARVALHO, 2002, p.134-5)
Como pode ser visto, o texto literário atravessa o discurso jornalístico e é por ele
atravessado. A ficção se apodera da realidade e é por ela apoderada. O relato da morte de
Manoel Perna numa descrição jornalística, ao compor a narrativa, participa do tom enigmático
que sustenta todo o romance de Bernardo Carvalho quando, mesmo como a riqueza de
detalhes que o compõe, não se sabe onde o corpo de Perna foi enterrado.
No contexto do discurso jornalístico, retratos da realidade desfilam ao longo do
romance desde a sua gênese apresentada pelo artigo de jornal exposto na página 13, quando o
narrador diz:
[...] não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar [em Buell Quain], mas a
verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome Buell Quain
pela primeira vez num artigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um
sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às vésperas da Segunda
Guerra. O artigo saiu meses antes de outra guerra ser deflagrada. (CARVALHO,
2002, p.13)
histórica e geográfica existente entre o sujeito e a arte pode ser rompida no seu caráter espaço-
temporal, quando a fronteira que delimita diferentes territórios subjetivos se permeabiliza,
possibilitando infinitas trocas de saberes, conhecimentos, aspectos culturais, sociais e de
linguagem. Para Bakhtin,
em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de
fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído
num romance por algum autor. Os gêneros introduzidos no romance conservam
habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade
linguística e estilística. (BAKHTIN, 1993, p.124)
Assim, da mesma forma que distintos gêneros podem ser introduzidos no romance,
podemos pensar que diferentes discursos também podem ser nele incluídos. No romance
“Nove Noites”, o cruzamento do discurso jornalístico com o discurso histórico permite a
produção de diferentes interpretações e sentidos para as lembranças do narrador na
ficcionalização dos fatos e acontecimentos.
Frente a essa situação, os índios tiveram suas terras demarcadas e, dessa forma, foi
assegurado o trabalho nas obras para a instalação das linhas telegráficas. A fim de manter a
ordem e impedir reações indígenas, surgiram duas diferentes iniciativas: uma religiosa e outra
leiga e política. Recorrendo ainda a Ribeiro temos:
[...] em meio a [diferentes] [...] debates, o País toma consciência do problema
indígena, definindo-se logo duas correntes opostas. Uma, religiosa, que defendia a
catequese católica como a única solução compatível com a formação do povo
brasileiro. Outra, leiga, argumentava que a assistência protetora ao índio competia
privativamente ao Estado. Sendo este leigo, leiga devia ser a assistência, mesmo
porque mais de uma religião era professada pelo povo e cabia assegurar ao índio
plena liberdade de consciência para, uma vez capacitado, escolher sua própria fé, e
bem assim garantir a todas as confissões religiosas o direito de fazer prosélitos
entre eles. (RIBEIRO, 1977, p.131-2)
verá em livro a expressão por ele pronunciável. [...] Por um artifício literário, portanto, o leitor
[...] se defronta com o ponto de vista doutra classe.”(LIMA, 1981, p.125) Nesta direção, em
“Nove Noites”, o discurso antropológico abre espaço para a emergência das falas tanto do
índio quanto do homem branco.
Na reconstituição da vida de Buell Quain e na busca da compreensão de sua morte,
diferentes antropólogos estão presentes. Num misto de ficção e antropologia, Franz Boas,
antropólogo inovador das ciências humanas no século XX por deslocar o foco dos seus
estudos para as culturas, lendas, costumes, línguas e tradições, assinalando o caráter
inconsciente dos fenômenos linguísticos e dos fenômenos etnológicos, é incluído na narrativa.
Assim como Franz Boas, sua aluna Ruth Landes é também lembrada, por considerar nos seus
trabalhos questões relativas à subjetividade, à memória social e ao outro enquanto lugar para
falar de si próprio. Também Ruth Benedict, orientadora de Landes, não foi esquecida.
Na aproximação da ficção com a antropologia, foi construído um enigma a partir da
morte de Quain e diferentes sentidos deslocam-se na composição da rede narrativa. Nessa
rede, incluem-se os encontros do antropólogo com Manoel Perna acontecidos no decorrer de
nove noites. Segundo o narrador
foi na casa de Manoel Perna que Buell Quain encontrou um interlocutor atento nas
noites que passou em Carolina ao desembarcar em março, e depois em sua
passagem pela cidade no final de maio e início de junho, quando veio buscar cartas,
dinheiro e mantimentos, e comemorar o seu aniversário. (CARVALHO, 2002,
p.76-7)
Contudo, a reconstituição do enigma da morte de Quain não se limitou aos relatos dos
encontros do antropólogo com Perna. Outros sentidos para o suicídio de Quain foram
buscados na narrativa, incluindo assuntos referentes à etnia.
Quando em “Nove Noites”, o romance apresenta questões étnicas, o tom literário
apodera-se do discurso antropológico e é também tocado por ele. Na página 24, Manoel Perna
relata ao destinatário, que está por chegar, que conhece os motivos do suicídio de Quain, só se
silenciando para evitar inquérito policial “e para proteger os índios.” (CARVALHO, 2002,
p.24) Numa carta escrita por Quain e endereçada à Ruth Benedict, o etnólogo diz que: “Você
receberá esta carta bem depois da minha morte. Os índios estão a salvo, pelo que fico muito
feliz’.” (CARVALHO, 2002, p.87) A preocupação e os cuidados de Manoel Perna e de Quain
em proteger os índios e livrá-los de qualquer responsabilidade sobre a morte do antropólogo,
também, demonstram a intenção do narrador de resguardar os índios das perseguições da
cultura do homem branco. Ao conhecer o conteúdo dessa carta endereçada à Ruth Benedict,
132
Assim, a baixa densidade populacional dos índios xinguanos tornou-se ainda menor
com a presença do homem branco. A aculturação indígena ainda pode ser observada, no
romance “Nove Noites”, através do hotel construído por Juscelino Kubitschek, da fotonovela
Sétimo Céu e do barman, como representação da cultura branca e da destruição do povo e da
cultura indígena. Recorrendo a Adorno e Horkheimer, ao falarem da imposição do
esclarecimento sobre a produção mítica, “o lugar dos espíritos e demônios locais foi tomado
pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo
sacrifício bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando.” (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.23) Diante das imagens da dominação concretizadas nas troças
dirigidas ao cacique, no hotel de Juscelino e na fotonovela Sétimo Céu, o narrador se deprime,
133
Podemos pensar que a ameaça real, vivida pelos índios devido à intrusão externa,
apresenta a pressão interna na própria comunidade que abala o seu entendimento natural e
aconchegante. Nesse contexto, também se inclui a ameaça exercida pelo homem branco à
comunidade indígena. Assim, para a surpresa do narrador, no que diz respeito aos índios
Krahô, o ataque sofrido por essa tribo não foi de outros índios, mas do homem branco. Nas
suas palavras:
134
O massacre dos índios Krahô também recebeu um tom messiânico e enigmático assim
como aconteceu com a morte de Buell Quain. Para o narrador,
os reflexos do trauma do massacre foram imensos e podem ser detectados até no
movimento messiânico que se desenvolveu entre os Krahô por volta de 1952, em
outra aldeia. Um vidente, ao que tudo indica sob efeito da maconha, passou a
profetizar o desaparecimento dos brancos e a transformação dos índios em
civilizados. (CARVALHO, 2002, p.74)
Pode-se observar que a crítica à transformação dos índios em homem civilizados feita
pelo narrador reflete e é refletida na crítica que Buell Quain faz à intelectualidade carolinense.
Num jogo de espelhos, imagens se refletem mutuamente, duplicando e reduplicando sentidos
ao mesmo tempo em que os reforça. Especularmente, a narrativa também evidencia as críticas
do antropólogo Buell Quain no que tange à aculturação indígena.
Numa das cartas que nunca mandou a Margaret Mead, escrita em 4 de julho de
1939, Quain dizia o seguinte: “O tratamento oficial reduziu os índios à
pauperização. Há uma crença muito difundida (entre vos poucos que se interessam
pelos índios) de que a maneira de ajudá-los é cobri-los de presentes e ‘elevá-los à
nossa civilização”. Tudo isso pode ser atribuído a Auguste Comte, que teve uma
135
O romance “Nove Noites” aponta para implicações étnicas, éticas e políticas que, na
ficção, apresentam as realidades indígena e brasileira em outras configurações que não apenas
científicas e antropológicas. Como já foi citado anteriormente, o narrador afirma junto ao
índio Leusipo, sua condição de romancista, dizendo: “Tentei lhe explicar que pretendia
escrever um livro e mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção”.
(CARVALHO, 2002, p.95) Reiterando seu desejo de escrever um romance e não um estudo
antropológico, o narrador ainda comenta:
Não consegui entender nem os laços de sangue nem o parentesco simbólico entre os
membros da tribo [Krahô]. Era muito complicado, e meus objetivos não eram
antropológicos. O próprio Quain teve dificuldades em entender essas relações. [...]
Não sou antropólogo e não tenho uma boa alma. (CARVALHO, 2002, p.98-109)
em casa diferente da que se hospedou o antropólogo que o acompanhou nessa viagem. Nas
palavras do narrador:
No final da tarde em que chegamos [na aldeia Krahô], logo depois de me instalar,
saí à procura do antropólogo e do seu filho, que ficaram em outra casa. [...] Cada
convidado comia na casa em que estava hospedado, o que significava, para meu
desespero, que jantaria separado do antropólogo e do seu filho. (CARVALHO,
2002, p.91-2)
alcançada na leitura de um dos apontamentos deixado pelo antropólogo Buell Quain sobre o
Xingu. Assim, o narrador nos diz:
Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos Krahô, em
agosto de 2001, me esclarecer: “Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque
foram sendo empurrados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no
lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobrevivência, e ao
mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou.”
(CARVALHO, 2002, p.73)
Quando a ficção toma a realidade, a precisão fatual é abalada pela fluidez da palavra.
Afinal, na perspectiva de Booth, “se o espelho [da ficção] for polido demais, sacrificar-se-á a
ilusão.” (BOOTH, 1980, p.63) Por exemplo, na página 22 de “Nove Noites”, em carta escrita
por Quain à Heloísa Torres, momentos antes de sua morte, a palavra contos pode ser lida
ambiguamente, pois se por um lado pode se referir aos contos de réis, moeda brasileira em
vigor em 1939, apenas sendo substituída pelo cruzeiro em 10 de outubro de 1942; por outro
lado, esta mesma palavra pode significar narrativa, literatura, invenção, ficção.
Na referida carta, Quain solicita à Heloísa que dois contos fossem remetidos aos índios
que a enviariam o catálogo da coleção que o antropólogo dizia já não poder terminar.
Segundo Quain:
Estou morrendo de uma doença contagiosa. [...] Não pense o pior de mim. Apreciei
a sua amizade. Mas não posso terminar o catálogo da coleção que os índios vão
encaixotar e lhe enviar. Pedi que dois contos lhe fossem remetidos por conta do
meu fracasso. (CARVALHO, 2002, p.22)
O fracasso de Quain o remete aos contos. Esses contos podem ser interpretados como
contos de réis como pagamento do serviço prestado pelos índios ao encaminharem à Heloísa o
catálogo inacabado. Mas, dois contos podem-nos remeter também às duas versões sobre o
suicídio do antropólogo que aparecem neste momento da narrativa. Bakhtin comenta que “o
sentido da palavra é totalmente determinado pelo seu contexto. De fato, há tantas
significações possíveis quantos contextos possíveis.” (BAKHTIN, 1981, p.106) Isso é
diferente de pensar “a ficção da palavra como decalque da realidade [que] ajuda [...] a
congelar sua significação. [...] O objetivismo abstrato coloca a língua fora do fluxo da
comunicação.” (BAKHTIN, 1981, p.107) Já Lima comenta que “a palavra que faltara obseda
a que se multiplica.” (LIMA, 1981, p.170) Sendo assim, Quain escreve para Heloísa que está
morrendo de uma doença contagiosa. O narrador acrescenta que: “A aceitar a explicação da
doença, no entanto, de um ponto de vista exterior e mais objetivo, esse fardo era agora o
próprio corpo leproso ou sifilítico. Simplesmente não podia mais suportar o sofrimento do
próprio corpo castigado pela doença.” (CARVALHO, 2002, p.113) Reforçando a doença
como possível motivo do suicídio de Quain, no diário de Métraux, citado pelo narrador, num
jantar que esse antropólogo teve na companhia de uma americana, de Wagley e de Cowan,
maneira pela qual chamava Quain,
a identidade do misterioso personagem por fim se revela, por dedução: “Cowan nos
relata a sua viagem ao Xingu, e depois se estende sobre o tema da sua sífilis. Na
fraqueza brutal do se discurso, nas brincadeiras que ele faz sobre a sua própria
condição, creio descobrir uma bravata desesperada.” (CARVALHO, 2002, p.130)
141
Nessa fala, Quain deixa entrever a possibilidade de estar com a doença por
contaminação, já que deveria ter prestado atenção na manifestação da sífilis, não limitando
essa característica apenas como um traço comum aos negros. Na perspectiva do narrador:
O estranho é a associação um tanto perturbada que Buell Quain faz desses traços
com sinais de uma determinada condição patológica, o fato de reconhecê-los vez
por outra na vida cotidiana e de lamentar não ter dado maior atenção àquelas
informações, como se de posse delas tivesse podido melhor se defender ou evitar
alguma coisa. (CARVALHO, 2002, p.41)
Nas ilações do narrador, a morte de Quain pode estar associada a sua condição de
portador de sífilis por contaminação através do ato sexual, assim como, ao se lembrar da fala
de Castro Faria, a morte do antropólogo pode dizer respeito à lepra. Contudo, não se têm
certezas. São apenas especulações construídas a partir da estranheza advinda do inesperado
suicídio, que em James, comentado por Booth (1980), podem ser entendidas por intensidades
de ilusão e não por realidades ilusórias. No contexto da falta das certezas e garantias, o
narrador, pela cartografia, opera no fluxo imaginário do romance, dispersando verdades,
criando intensidades e fazendo semblant. Para Linn e Taylor, “o narrador [...] francamente
omnisciente desapareceu [...] da ficção moderna.” (LINN, TAYLOR, 1935, p.33) Nesse
sentido, Booth, fazendo referência a Sartre em suas reflexões sobre o autor na atualidade, diz
que:
Para Sartre, não chega que o autor evite por completo o comentário omnisciente.
Nem sequer é suficiente que o autor dê a ilusão de que está silenciosamente sentado
nos bastidores, como se fosse um Deus, observando objetivamente o seu trabalho.
[...] O autor tem que dar a ilusão de que não existe. Se, por um momento que seja,
suspeitarmos de que ele está nos bastidores,controlando as vidas dos personagens,
estes não parecerão livres. (BOOTH, 1980, p.67-8)
Ainda no que se refere às doenças como possíveis causas da morte de Buell Quain, o
narrador comenta que “em carta de 1º de novembro de 1940 a Heloísa Alberto Torres, a mãe
de Quain conta a história dos missionários do rio Coliseu. À falta de quinino, e com os
homens morrendo de malária, os americanos começaram a rezar.” (CARVALHO, 2002, p.49-
50) Inclui-se, assim, a malária como outra hipotética doença que poderia ser a causa do
suicídio do antropólogo, já que, segundo o narrador, “de volta à Cuiabá, Buell Quain sofreu
um ataque de malária.” (CARVALHO, 2002, p.60)
No meio de tantas deduções acerca de uma possível doença para Buell Quain, em
correspondência de Ruth Landes com Ruth Benedict, “Landes menciona à orientadora ter
recebido ‘notícias pesarosas’ de Quain – que estava retido em Cuiabá com uma infecção no
ouvido – mas que ele próprio revelaria mais detalhes a Benedict em carta a ser remetida pela
Bolívia por razões de segurança.” (CARVALHO, 2002, p.43) Cumpre lembrar que essa
infecção no ouvido, como o motivo pelo qual o antropólogo estava retido em Cuiabá, é
questionável por se tratar de um momento quando
a situação dos estrangeiros no Brasil do Estado Novo era delicada. A impressão era
que estavam sob vigilância permanente. [Neste contexto,] a prostração de Quain se
devia em especial às dificuldades que enfrentava para chegar ao Xingu sem as
devidas autorizações. Sua expedição solitária aos Trumai terminaria com uma
convocação expressa de volta ao Rio e Janeiro. (CARVALHO, 2002, p.43)
Nessas circunstâncias, questões políticas também passaram a fazer parte das hipóteses
sobre a morte e o suicídio do antropólogo. Na opinião do narrador: “Se é que Buell Quain já
tinha alguma coisa a esconder, a situação política só lhe dava ainda mais razões para a
dissimulação e a preservação quase paranóica da sua vida pessoal.” (CARVALHO, 2002,
p.44) Um possível motivo político que justificasse a morte de Quain foi questionado pelo
narrador a Castro Faria. No relato do narrador sobre seu encontro com Castro Faria temos:
Perguntei a Castro Faria sobre a repercussão do suicídio de um jovem etnólogo
americano em meio a esse estado de coisas. [Considerando que “a situação dos
estrangeiros no Brasil do Estado Novo era delicada.”(43)] “Não creio que o suicídio
dele tenha tido alguma repercussão nacional. Não sei nem localmente quais foram
as reações. Foi inteiramente imprevisto, apesar de todas as excentricidades dele,
que eram faladas. [...] O suicídio não foi traumatizante para nenhum de nós. Foi
surpreendente. O Quain foi um acidente na história da antropologia e nas relações
entre o Museu Nacional e a Universidade de Columbia. Mas as relações
continuaram sem problemas.” (CARVALHO, 2002, p.(45)
Na fala de Castro Faria um motivo político para a morte de Quain, assim como
ocorreu com outros possíveis motivos apresentados ao longo da narrativa, é questionado
como a real justificativa para o suicídio do etnólogo. Se a morte de Quain não interferiu nas
relações estabelecidas entre o Museu Nacional e a Universidade de Columbia, sendo apenas
considerada como um acidente na história da antropologia, um motivo político não explicaria
144
Dona Heloísa depara-se, pois, com duas versões, dois contos, acerca da morte de
Quain. A primeira versão, encaminhada pelo próprio Quain, diz de doença contagiosa, a qual
também foi atravessada por questões políticas. A segunda versão apresentada à dona Heloísa
por Manoel Perna, a partir do relato dos índios, aponta para problemas familiares. Doença
contagiosa, embora sem apresentação de sintomas, questões políticas ou problemas
familiares? Enfim, entre uma versão e outra, enquanto conto, ficção, os motivos do suicídio
de Quain continuam ignorados, mesmo que as notícias colhidas advenham de fontes
consideradas confiáveis.
Na perspectiva do narrador, além das possibilidades de doença contagiosa e problemas
familiares, ele sugere outros prováveis motivos para a morte do etnólogo. Segundo esse
narrador:
145
Tal como o narrador de “Nove Noites”, Sant’Anna também foi à busca de fatos para
escrever seu livro. Segundo ele: “Minha primeira decisão foi a de me ater a fatos ocorridos
com aeronaves de empresas brasileiras. O segundo passo foi a escolha dos episódios. Optei
por selecioná-los entre os que deixaram sobreviventes, gente que sobrou para contar a
história.” (SANT’ANNA, 2001, p.10) Segundo Sant’Anna:
Meu ponto de partida foi ler o máximo possível de matérias publicadas na imprensa
sobre os eventos escolhidos. Além de pesquisar durante meses na Biblioteca
Nacional, obtive recortes de jornais e revistas com Sindicato Nacional dos
Aeronautas e, mais tarde, com o sobrevivente de um dos desastres. Só destas duas
últimas fontes, trouxe xerocadas para casa 331 reportagens, que li atentamente e
que tenho arquivadas. (SANT’ANNA, 2001, p.11)
Junto aos recortes de jornais e revistas, Sant’Anna incluiu telefonemas, e-mails, fax,
cartas e fotografias em suas pesquisas, os mesmos recursos utilizados pelo narrador de “Nove
Noies” para o entendimento da morte do antropólogo Buell Quain. Assim, Sant’Anna
disparou “telefonemas, e-mails e fax em todas as direções, para instituições e pessoas as mais
diversas, às vezes [se] guiando apenas por um sobrenome num site de universidade.”
(SANT’ANNA, 2001, p.11-2) Como o narrador do romance de Carvalho, Sant’Anna obteve
respostas às suas cartas e e-mails gradativamente. Recorrendo a ele temos: “Tendo lançado ao
mar 154 garrafas (materializadas através de 96 e-mails, 42 fax e 16 cartas), recebi 97
respostas escritas (73 e-mails, 13 fax e 11 cartas). Isso sem contar as centenas de telefonemas
que dei, alguns verdadeiros tiros no escuro.” (SANT’ANNA, 2001, p.13)
Assim entre telefonemas, fitas gravadas, fotos e cartas, o acidente aéreo que envolveu
o vôo da Varig, RG-820, foi narrado por Ivan Sant’Anna e o suicídio de Buell Quain
sustentou o desenvolvimento da narrativa de Bernardo Carvalho. Na busca da
verossimilhança, Sant’Anna comenta que correu “em busca da exatidão.” (SANT’ANNA,
148
2001, p.13) Segundo esse autor “só quando [ele se julgou] um razoável conhecedor dos fatos
que pretendia narrar,” (SANT’ANNA, 2001, p.11) é que iniciou a escrita de seu livro.
Na composição da literariedade de seu texto, Sant’Anna também descobriu “que um
mesmo fato pode ser visto (e costuma ser narrado) de maneira diferente por cada um dos
envolvidos [...] [e] que, não raro, a visão oficial encobre culpas, torce os fatos.”
(SANT’ANNA, 2001, p.13) A ficcionalização da realidade e a realização da ficção estão
presentes tanto no romance “Nove Noites” quanto no livro de Sant’Anna que adverte querer
“escrever [...] [um] livro de não-ficção.” (SANT’ANNA, 2001, p.10)
Em “Nove Noites”, no que diz respeito ao acidente com o vôo 820 da Varig, o
narrador, referindo-se ao dia em que acordou após o acidente aéreo que teve na companhia de
seu pai, ficcionaliza um dado da realidade ao mesmo tempo em que dá visibilidade a esse
dado na ficção. As notícias dos jornais, “Jornal do Brasil”, “Folha de São Paulo” e “Estadão”,
tão precisas nas suas reportagens, recebem um tom de mistério na narrativa. Assim, 123
mortos, já que parecia “impossível alguém ter sobrevivido no interior do aparelho”,
(SANT’ANNA, 2001, p.23) tornaram-se, na narrativa de Bernardo Carvalho, boa parte dos
tripulantes e de todos os passageiros, à exceção de um que conseguiu sobreviver ao acidente.
Contudo, na primeira página do “Jornal do Brasil” daquela quinta-feira 12 de julho,
embaixo de uma foto tirada numa plantação de cebola perto do aeroporto de Orly, pode ser
lido o seguinte título: “Fogo a bordo derruba Boeing perto do aeroporto de Paris e mata 122”.
Nessa mesma reportagem temos que “em circunstância de incrível dramaticidade, dos 134 que
se encontravam a bordo morreram todos os passageiros e se salvaram apenas 12, que eram
tripulantes.” Para Sant’Anna, a aeronave “levando em seu bojo 134 pessoas, decolou em
direção ao Aeroporto de Orly, em Paris, dez horas e meia e 10 mil quilômetros adiante. O
RG-820 chegaria quase lá.”(SANT’ANNA, 2001, p.42)
No espaço do dramático e porque não dizer do romance, realmente, os 123 mortos
noticiados na “Folha de São Paulo” (2000) e no “Estadão” (2006) menos os 122 mortos
anunciados na manchete do “Jornal do Brasil” (2007) são iguais a um, uma exceção que faz a
diferença; que não se encontra entre os 12 tripulantes sobreviventes de acordo com o “Jornal
do Brasil” (2007); um único passageiro sobrevivente na perspectiva do narrador de “Nove
Noites” e também dado presente no livro publicado por Sant’Anna (2001).
Sobre os tripulantes que sobreviveram à aterrissagem forçada do Boeing da Varig
numa plantação de cebolas, na opinião do “Jornal do Brasil”, ou numa horta de repolhos, na
perspectiva do livro “Caixa-preta”, Ivan Sant’Anna comenta que
149
Sendo assim, Trajano fugira para frente, enquanto os demais passageiros, seguindo as
instruções dos comissários, permaneciam em seus assentos, onde vieram a morrer. Ainda é
importante salientar que “a abertura das janelas do cockpit fora benéfica aos tripulantes que
150
estavam na galley e junto à porta principal, assim como a Trajano.” (SANT’ANNA, 2001,
p.77) Após o acidente, um bombeiro, “embora supondo que se tratava de um cadáver, puxou-
o pelos longos cabelos. Muito queimado, interna e externamente, Ricardo Trajano foi retirado
do Boeing.” (SANT’ANNA, 2001, p.91) Os bombeiros “depararam-se com um cenário que
lhes revoltou os estômagos: na parte traseira, não fosse pelos ossos enegrecidos à mostra,
dificilmente poderia se dizer que as postas calcinadas dispostas lado a lado – e amalgamadas
às ferragens retorcidas – eram de seres humanos.” (SANT’ANNA, 2001, p.23) Diante de tal
situação, “tomavam Trajano pelo comissário Sérgio Balbino (que morrera logo após ser
retirado do Boeing).”(SANT’ANNA, 2001, p.95)
Afinal, o que ocorreu a bordo da aeronave da Varig só pode ser parcialmente
reconstituído e ficcionalizado através dos relatos dos sobreviventes e da releitura que o
narrador do romance de Carvalho faz desse acidente. Assim, o narrador de “Nove Noites”
afirma que de alguma forma associou o acidente do Boeing da Varig ao pequeno acidente que
sofreu na companhia de seu pai, quando seu “pai se esqueceu de fazer uma mistura de óleo
[...] enquanto [atravessavam] já fazia quase uma hora uma tempestade de granizo e raios,
entre São Miguel do Araguaia e Goiânia” (CARVALHO, 2002, p.64), “como se houvesse
alguma conexão incompreensível entre os dois” (CARVALHO, 2002, p.72) acidentes. Este
narrador, ainda, faz a conexão entre o acidente do Boeing da Varig ocasionado por um
incêndio e o “o Xingu [que] ficou guardado na [sua] memória como a imagem do inferno.”
(CARVALHO, 2002, p.72) Aqui deve ser salientado que na notícia publicada pelo “Jornal de
Brasil”,
incêndio a bordo do 707 teve características inéditas. Teve início no sanitário
traseiro e produziu fumaça densa, que se espalhou pelas cabines com incrível
rapidez. Mais tarde, quando os bombeiros subiram a bordo, foi constatado que se
tratava de gás cianídrico. E foi afirmado que esse gás foi desprendido da combustão
de material plástico, que foi espalhado das tubulações do ar condicionado. Tudo
ocorreu rapidamente depois que – supostamente devido ao pequeno incêndio
causado por uma ponta de cigarro jogada na lixeira do banheiro – o PVC começou
a se derreter e o gás letal saiu dos dutos. Houve quem negou essa versão, atribuindo
sem muita credibilidade o gás à explosão de um extintor de incêndio. Mas ficou
comprovado que, ao respirar o ar contaminado, os passageiros começaram a
desfalecer, morrendo em seguida, pois não foi possível ajudá-los com as máscaras
de oxigênio, pois a mistura deste com o gás provocaria uma explosão. (Google,
2007)
história ganhou abrigo nos meios aeronáuticos brasileiros, favorecida pela censura
que prevalecia na época. (SANT’ANNA, 2001, p.100-1)
Sendo o incêndio provocado por uma ponta de cigarro jogada na lixeira, pela explosão
de um extintor de incêndio ou pela combustão de equipamentos de caças Mirage, a
credibilidade do fato depende da interpretação. Através de distintas visões, a realidade é
criada e ficcionalizada. Segundo Booth, “na vida real essas visões não existem. O ato de as
proporcionar em ficção é, em si, uma intrusão do autor.” (BOOTH, 1980, p.35) Na ficção,
“tudo é aparência e todas as aparências são, ou pelo menos parecem ser igualmente válidas.”
(BOOTH, 1980, p.69) Os fatos, o mundo e o sujeito só existem se sustentados na linguagem
como possibilidades, como interpretações. Quain morre suicidando-se, assim como os
passageiros e a tripulação do Boeing da Varig, independente de quantos eram, também
morreram, embora num incêndio. A morte é real e tudo que podemos falar sobre ela é
especulação, no máximo interpretações. Enquanto enigma e mistério, ela provoca no sujeito a
vontade de desvendá-la; causa no sujeito o desejo de saber de si, convocando-o a produzir
sentido e/ou a vivenciar uma experiência literária.
Intensificando as incertezas sobre a morte de Buell Quain, lembranças e
esquecimentos também se apresentam como fragmentos da realidade, índices, possibilidades e
não verdades. Para Lima, “a via memorialista se torna a maneira de que o escritor dispõe a
priori para sentir que contata com o leitor, que fixa para ele experiências reconhecíveis, seja
por sua memória, seja, notadamente, por suas expectativas e valores.” (LIMA, 1981, p.124)
Num jogo de memória, Manoel Perna traduz a subjetividade Quain através de suas impressões
e julgamentos. Ao interpretar o antropólogo nas suas lembranças, Perna, contaminado por
seus valores e inquietações, contribui para manter o tom enigmático da narrativa. Ao se dirigir
ao seu intercessor que está por chegar, diz:
Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às
portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada. [...] Já não posso
contar com a sorte e deixar desaparecer comigo o que confiei à memória. [...]
[Afinal, devo] lembrar que morremos todos. (CARVALHO, 2002, p.7-8)
Manoel Perna ainda acrescenta: “Me lembro do dia em que ele chegou à cidade [...],
sua vinda provocou uma sensação que cinco meses depois todos já tinham esquecido, [...] só
eu guardo a memória dele.” (CARVALHO, 2002, p.8-9) “Nada me entristeceu tanto quanto o
fim do meu amigo, cuja memória decidi honrar.”(CARVALHO, 2002, p.11) Por fim, Perna
Conclui:
Hoje, mal se passaram seis anos da morte do dr. Buell, e o próprio professor
[Pessoa] já se diz etnólogo e se autoproclama estudioso dos Krahô, como se nunca
tivesse passado nenhum etnólogo por Carolina, como se bastasse a sua
autodeterminação para se equiparar ao homem que o ignorou e de quem ele diz
152
Frente ao que foi enterrado no passado, a memória falha e os esquecimentos fazem das
lembranças sombras que apontam para o que parece ser, assemelha-se, mas não é. No
contexto da subjetividade, o ser não é um fato objetivo estabelecido e dado a priori. De
acordo com a abordagem teórica, psicanalítica; sócio-histórica e esquizoanalítica,
respectivamente, o ser se constitui sujeito do desejo e do inconsciente pelo jogo pulsional; se
constrói como uma subjetividade ao construir intersubjetivamente sua realidade sócio-
cultural-histórica; se rizomatiza enquanto devir. Na discussão sobre o ser também se inclui
Bergson, e com ele, a memória participa efetivamente do ser, possibilitando que algo
permaneça num contexto de mudanças. Hyppolite, comentando a filosofia bergsoniana, diz:
Bergson concilia, em sua intuição primeira, as filosofias do devir e aquelas do ser.
O devir não se reduz a uma poeira de instantes sucessivos, mas evanescentes, como
nas filosofias heraclitianas, e o ser não é rejeitado para fora do tempo, como nas
filosofias eleatas. Pela memória, a duração é tanto substancial quanto é mudança.
(HYPPOLITE, 1949, p. 469)
testamentos. Vejamos: Quain “deixou cartas impressionantes, mas que nada explicam”
(CARVALHO, 2002, p.8); “deixo este testamento para quando você vier” (CARVALHO,
2002, p.8); “não guardo rancor de ninguém, muito menos do dr. Quain [...] a despeito de tudo
o que possa ter pensado ou escrito e a que só tive acesso pela incerteza das traduções do
professor Pessoa”(CARVALHO, 2002, p.9); “a despeito do que pensou ou escreveu, não
passava de um menino”(10); “nada do que tenha pensado ou escrito pode me causar
rancor”(CARVALHO, 2002, p.11); “é possível que tivesse queimado [...] retratos junto com
as outras cartas que recebera antes de se matar”(CARVALHO, 2002, p.12); “sabia que viria
em busca do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar”(CARVALHO, 2002,
p.12); “mandei-lhe um bilhete no lugar de uma carta, um bilhete cifrado, é verdade, em
código”(CARVALHO, 2002, p.13); “nunca pude me certificar de que você tenha recebido
esse bilhete, ou que o tenha compreendido”.(CARVALHO, 2002, p.13)
Assim, entre lembranças e esquecimentos, também o intervalo existente entre discurso
oral e registro escrito participa do enigma da morte e da vida do antropólogo Buell Quain que
sustenta a narrativa “Nove Noites” na “espera de um sentido, nem que seja pela suposição do
mistério [...] escorado em fatos [...] parecido[s] incontestáveis”. (CARVALHO, 2002, p.7)
Sobre as suposições que evocam os mistérios constituintes da vida humana e de suas novas
configurações, dentre as quais se inclui a produção romanesca, ainda podemos recorrer a
Booth, que a partir de Sartre, diz que:
Em romances [...], o autor não pode permitir o aparecimento de qualquer sugestão
do mundo ordenado em que vive e a partir do qual recorda acontecimentos;
implicar a existência de ordem virá, necessariamente, destruir no leitor o sentido de
liberdade real que tem quando se vê face ao absurdo do caos. A existência de uma
ordem implícita era, de certo modo, desculpável na ficção antiga; escrita num
mundo ordenado. Era um tipo de ficção em que nem autor nem leitor estão em
perigo; não há surpresas a temer; o acontecimento faz parte do passado; foi
catalogado e entendido. Nesse mundo, não há motivo para que a técnica narrativa
não implique o ponto de vista [...] da ordem. Mas, no nosso mundo em que se
entendeu finalmente o verdadeiro caos das coisas, só é tolerável uma técnica que
pareça deixar aos personagens uma liberdade genuína de enfrentar o caos.
(BOOTH, 1980, p.68-9)
O horror vivenciado por uma criança, frente ao fato da existência do pequeno peixe no
contexto da ficção, também pode ser observado no seguinte relato do narrador do romance:
Houve um final de tarde em que, ao voltarmos à ilha do Bananal, toda a equipe da
fotonovela e a família do gerente do hotel nos esperavam para atravessarmos o rio
até uma praia paradisíaca, de areia branca, onde quem estivesse machucado (ou de
calção vermelho – era esse o folclore) ficava proibido e nadar, para não atrair as
piranhas. Ainda assim, havia cardumes de peixes mínimos que mordiscavam as
pernas dos banhistas e que a mim os adultos disseram ser filhotes de piranha,
provavelmente para me assustar. (CARVALHO, 2002, p.67)
No trecho citado acima, podemos ver que, ambiguamente, a ficção que começou no
dia em que o narrador colocou seus pés nos Estados Unidos diz respeito tanto à escrita do
romance por esse narrador, quanto à escrita das reportagens que noticiavam ao mundo a
tragédia norte-americana. Literatura e jornalismo, ou melhor, ficção e realidade encontram-se
na produção textual. Um rosto, um fato, assim como fotografias, cartas e mapas, enquanto
possíveis recortes da realidade, são ficcionalizados na escrita de um romance ou numa notícia
de jornal. Assim, a vida do antropólogo Buell Quain foi ficcionalizada num romance e a
tragédia norte-americana foi ficcionalizada em notícias de jornal para influenciar as
audiências estrangeiras. Na perspectiva do narrador: “As palavras dali em diante não teriam
nenhuma importância. [...] podia dizer o que [se] quisesse, podia não fazer o menor sentido.”
(CARVALHO, 2002, p.161) Cumpre, novamente, lembrar que o narrador não só começou a
sua ficção a partir de um dado da realidade, como também se interessou por Buell Quain
através do fato da morte do antropólogo publicado “num artigo de jornal”. (CARVALHO,
2002, p.13)
A necessidade do narrador em buscar, na realidade, elementos para a construção de
sua ficção, também registrada no seu romance, reaparece no seu encontro com Schlomo
Parsons. Para o narrador
não podia abordar o filho do fotógrafo de chofre. [...] Até então [...] nunca o tinha
visto. [...] Sabia mais ou menos a idade dele. [...] Fiz o reconhecimento do bairro.
[...] Pensei em tocar [o interfone] e ficar mudo, nem que fosse só para ouvir a sua
voz. [...] Precisava vê-lo. [...] Não podia perder a oportunidade. (CARVALHO,
2002, p.159)
O não querer saber do narrador, ambiguamente, não o impediu de saber. Contudo, esse
não querer saber põe em questão as possíveis verdades presentes nas informações que
obtinha. Cumpre lembrar que, no momento do encontro do narrador com Schlomo, esse
narrador já não se interessava pela vida desse personagem. A suposição de que Schlomo era
filho de Quain parecia suficiente para aliviar o narrador nas suas dúvidas acerca da vida e da
morte do antropólogo.
Contudo, “as histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da
capacidade de interpretá-las.” (CARVALHO, 2002, p.8) De acordo com Manoel Perna: “era
preciso que ninguém achasse um sentido.” (CARVALHO, 2002, p.10) Sem sentidos únicos e
157
absolutos, se faz a ficção e nela se ficcionaliza o sujeito marcado por aquilo que lhe escapa e
lhe traz inquietação. Diante do que escapa ao entendimento, surge, no campo da alteridade, o
duplo como possibilidade do sujeito se significar para se designificar e se resignificar. Assim,
no jogo provocado e propiciado pela linguagem, os enigmas fundadores da subjetividade
possibilitam ao sujeito a sua ficcionalização. A produção da ficção, assim como a
ficcionalização do sujeito, não acontece de forma isolada e solitária, envolvendo, pois, outros
sujeitos e outras questões.
158
plano. O território é o que possibilita ao sujeito estabelecer relações através das distâncias e
fronteiras existentes entre distintos espaços existenciais.
Na citação retirada da página 111 do romance de Bernardo Carvalho e que foi
apresentada no início destas considerações, Quain, na construção de sua subjetividade, tem
que se territorializar enquanto um antropólogo, etnólogo norte-americano, para ao se
desterritorializar, poder se reterritorializar como um antropólogo, etnólogo norte-americano
em terras brasileiras. A necessidade de Quain de territorializar-se em terras brasileiras
coincide com o que Bauman (2003) reflete sobre os sentimentos de segurança e proteção que
nos inspiram a palavra comunidade. Estabelecendo relações através das distâncias e fronteiras
existentes entre distintos espaços existenciais, a saber: ser antropólogo, etnólogo norte-
americano e ser antropólogo etnólogo norte-americano em terras brasileiras, Quain mantém
fronteiras e distâncias necessárias à sua desterritorialização e reterritorialização.
Nos tempos hipermodernos, territórios e distâncias tornam-se, assim, essenciais aos
processos de subjetivação, incluindo os seus movimentos em linhas de fuga, que para
Parpinelli e Souza (2005) são os dispositivos para se conectar com multiplicidades diversas.
Na hipermodernidade construída por inúmeras diferentes linhas, dentre elas as linhas de fuga,
ainda podemos pensar nas linhas de força apresentadas por Kristeva. Comentando a produção
do texto e do texto literário no contexto do devir, essa autora nos diz que a “particularidade do
‘texto’ [destaca-se por] suas linhas de força e de mutação, seu devir histórico e seu impacto
sobre o conjunto das práticas significantes.” (KRISTEVA, 1974, p.10)
Os territórios do romance e da subjetividade hipermodernos estão sempre em
movimento e, por isso, torna-se possível que o sujeito se mova de um território a outro no
processo de desterritorialização, engajando-se em linhas de fuga. Para Deleuze e Guattari,
desterritorializar é “o movimento pelo qual se abandona o território. É a operação da linha de
fuga.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.224)
Portanto, a desterritorialização divide o espaço dos processos de subjetivação com a
reterritorialização, outro tipo de movimento que surge com a intenção de recomposição,
quando o sujeito adentra num outro território, ou seja, quando o sujeito é capturado em outro
território.
Nos movimentos de desterritorialização e reterritorialização surgem agenciamentos
coletivos de enunciação para a produção de singularidades. Dialogando com Deleuze,
Guattari e Rolnik, Bakhtin afirma que “o sujeito [...] não pode ser percebido e estudado a
título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo;
consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico.” (BAKHTIN,
160
1992, p.403) Perceber e estudar o sujeito, assim como a sua inserção no romance, é, pois,
escutar a sua voz no contexto da construção de sua singularidade e, assim, implicá-lo no seu
processo de subjetivação. Os ecos existentes entre as vozes que compõem a voz do sujeito
também podem ser escutados, evidenciando espaços vazios entre os distintos discursos
constituintes da subjetividade, vista enquanto uma narrativa. Assim, diferentes cartografias
que o desejo vai traçando, diferentes micropolíticas, que correspondem a diferentes modos de
inserção social, agenciam linhas de fuga em processos de desterritorialização e
reterritorialização, até onde esses territórios não foram capturados pela subjetividade
capitalística alienante, na sua tomada de poder.
A cartografia da subjetividade se assemelha à cartografia do romance. Para perceber o
sujeito, é necessário escutar, na sua voz, as diversas vozes que participam do seu processo de
sigularização, as máquinas desejantes e desterritorializantes que, embora pequenas, permitem
questionar as máquinas molares territorializadas e territorializantes. Estudar o romance
pressupõe acompanhar o narrador pelos distintos caminhos nele presentes, também
identificando as várias vozes constituintes dos personagens, do narrador e da própria narrativa
na qual eles se inscrevem como singularidades. Tal como os ecos provenientes das diversas
vozes que compõem a subjetividade e participam da produção dos romances, a contraposição
de palavras, ao longo da narrativa, deixam entreabertas fissuras possibilitadoras da construção
de novos sentidos e outras interpretações, tanto no que se refere aos processos de
singularização, quanto no que diz respeito ao estudo dos romances.
A ideia apresentada por Bakhtin (1992) acerca da produção e compreensão do texto
como multiplicidade semântica e criativa dialoga com a concepção de rizoma presente no
pensamento esquizoanalítico. Pensando o rizoma como pluralidades coletivas e individuais, a
subjetividade, na esquizoanálise, pode se aproximar da compreensão do que é um texto para
Bakhtin. Para Guattari, a subjetividade como um rizoma é o “conjunto das condições que
torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como
território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma
alteridade ela mesma subjetiva.” (GUATTARI, 1992, p.19) As condições de tecer as
instâncias individuais e coletivas na construção da subjetividade aproxima-se do dialogismo
proposto por Bakhtin na produção textual. A construção da subjetividade e a elaboração
textual considerando, respectivamente, as suas condições de alteridade e dialógica, envolvem,
portanto, múltiplos discursos, contraposições de ideias e distintas vozes que ecoam umas
sobre as outras, dinamizando a vida enquanto fluxo de vontade, crescimento e produção.
161
(Em nome desta comunicação, Ponge opõe ao ‘Penso, logo existo’, um ‘Eu falo e você me
ouve, logo, existimos’.)”(KRISTEVA, 1974, p.73) Kristeva, assim, aproxima-se de Bakhtin,
quando ele nos diz que “aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,
privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores.” (BAKHTIN, 1981,
p.147)
Como um devir, ou seja, enquanto movimentos solitários e quase imperceptíveis
presentes na vida do sujeito e manifestos como estilo próprio que proporcionam
transformações na dimensão do ser, os encontros acontecem como a inserção de diferentes
outros no terreno singular da subjetividade. Num jogo especular, diferentes subjetividades são
apresentadas na delimitação de espaços interpessoais que se deslocam para outros espaços e
envolvem outras subjetividades. Nos tempos hipermodernos, na produção e análise de ideias,
textos e do romance, “prestamos uma atenção cada vez maior aos jogos de diferenças”.
(FOUCAULT, 1987 b, p.7)
No campo da linguagem, o sujeito se depara com os sentidos que permitem a sua
existência. Enquanto alteridade, a linguagem dinamiza a produção do discurso, assim como o
narrador movimenta a narrativa. Na construção do romance, o narrador exerce a função de
alteridade.
No romance, o sujeito aparece como efeito de linguagem, encontrando-se com outras
subjetividades advindas de distintos discursos e diferentes éticas. Na duplicação de histórias,
fatos e personagens, o outro como o estrangeiro que reside na dimensão do sujeito torna-se,
por excelência, o intercessor necessário para o deslocamento da narrativa de Carvalho.
Manoel Perna, tendo o seu discurso orquestrado pelo narrador, ao se dirigir àquele que está
por chegar, se refere à Quain da seguinte forma:
Numa das vezes em que me falou de suas viagens pelo mundo, perguntei aonde
queria chegar e ele me disse que estava em busca de um ponto de vista. Eu lhe
perguntei: “Para olhar o quê?” Ele respondeu: “Um ponto de vista em que eu já não
esteja no campo de visão”. [...] Ele nunca estaria no seu próprio campo de visão,
onde quer que estivesse, ninguém nunca está no seu próprio campo de visão, desde
que evite os espelhos. Às vezes me dava a impressão de que, a despeito de ter visto
muitas coisas, não via o óbvio, e por isso acreditava que os outros não o vissem,
que pudesse se esconder. O que eu vi, nunca falei. Fiquei à sua espera. O que eu
ouvi, já não sei se foi fato ou fruto de um conjunto de imaginações, minha e dele.
[...] Terá que aprender a se lembrar dele como um homem fora do seu campo de
visão, se é que pretende vê-lo como eu o vi. [...] Ao contrário dos outros, vivia fora
de si. Via-se como um estrangeiro e, ao viajar, procura apenas voltar para dentro de
si, de onde não estaria mais condenado a se ver. Sua fuga foi resultado do seu
fracasso. De certo modo, ele se matou para sumir do seu campo de visão, para
deixar de se ver. (CARVALHO, 2002, p.111-12)
Diante do outro, estrangeiro que está por chegar, Manoel Perna, guiado pelo narrador,
volta-se para si e vai ao encontro do outro que o habita. Na espera de um intercessor, Perna
164
organiza suas imagens acerca de Quain e de si. Afinal, Perna apresenta o antropólogo sob seu
ponto de vista, um conjunto de imaginações, dele e de Quain. Da mesma forma, sendo
intercessor para Buell Quain, Manoel Perna questiona o etnólogo, convocando Quain também
a voltar-se para si. O antropólogo reluta, mas não há escapatória, não é possível não se ver,
tudo é espelho, não é possível não ser visto, não é possível se esconder. Manoel Perna ainda
convida o seu intercessor a abandonar o seu campo de visão para ver o antropólogo como ele
o viu. Para ver Quain como Perna o viu, tem que ser do ponto de vista desse personagem, o
que certamente é impossível, já que o intercessor que está para chegar também tem a sua
forma de olhar.
No campo do outro, na narrativa organizada pelo narrador, a subjetividade Buell
Quain busca segurança e liberdade. Contudo, como adverte Bauman, tem que se haver uma
escolha e “qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. [...] Não
seremos humanos sem segurança ou sem liberdade; mas não podemos ter as duas ao mesmo
tempo e ambas na quantidade que queremos.”(BAUMAN, 2003, p.10-1)
Problematizando a realidade Buell Quain, Perna, conduzido pelo narrador como um
outro que o habita, depara-se consigo e com o outro. Para este personagem, “no fundo nada
pode surpreender quem se permite ouvir nos outros a própria voz.”(CARVALHO, 2002,
p.122) No jogo especular no qual surge o sujeito, a única forma de não se ver é se matando.
Segundo o Manoel Perna: “O suicídio elimina não apenas a hipótese do homicídio, mas os
motivos de quem tivesse razões para matá-lo”. (CARVALHO, 2002, p.131) Perna ainda
acrescenta: “Se pomos o corpo à prova, não é pelo capricho fútil de saber até onde podemos
ir, não é para desafiar os limites, mas para saber onde estamos - embora aos outros possa
parecer que cometemos um ato contra a natureza.” (CARVALHO, 2002, p.132-3)
Na perspectiva de Manoel Perna, traduzida pelo narrador, o corpo territorializa, cria
fronteiras e delimita espaços, garantindo ao ser a sua existência. Contudo, os territórios
corporais são atravessados por linhas de todas as espécies. Na concepção de Deleuze e Parnet,
“indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e tais linhas são de natureza bem diversa.”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p.145) Sendo assim, os corpos que territorializam, também
desterritorializam para que possam acontecer outras territorializações. Esses movimentos
corporais são possíveis devido às diversas linhas que atravessam o corpo e que compõem a
sua tessitura no trabalho realizado pelo narrador sobre o romance.
O corpo da narrativa “Nove Noites”, através de relatos fatuais, retratos, fotografias e
cartas, possibilita o trânsito e o atravessamento do corpo dos personagens por diferentes
espaços intertextuais e interculturais, corporificando o narrador como uma figura discursiva
165
escutar, responder, concordar, discordar ou interrogar. O destinatário que está por chegar é um
intercessor tanto para Manoel Perna, quanto para o narrador. Da mesma forma, ele também
foi um intercessor para Buell Quain.
Sobre os intercessores, Deleuze (1992), ao citar Nietzsche (1844-1900), Bergson
(1859-1941), Guattari (1930-1992), dentre outros, como subjetividades essenciais à sua
produção, comenta que esses são os responsáveis por “pegar as pessoas em flagrante delito de
fabular”. (DELEUZE, 1992, p.157) Assim, a potência de um intercessor, no instante em que
ela se manifesta na produção de uma obra, lança o movimento de constituição de um
pensamento para além dos limites identificados entre o falso e o verdadeiro. Para Deleuze, os
intercessores são as “potências do falso que vão produzir o verdadeiro.” (DELEUZE, 1992,
p.157)
Na perspectiva deleuziana, o destinatário que está por chegar possibilita a produção da
existência de Quain, da voz de Manoel Perna e da pesquisa do narrador como verdades, por
potencializá-las pelo o que é falso. A presença de um intercessor que desconfia e, com isso,
questiona a veracidade dos fatos e das certezas, pegando o produtor do discurso no flagrante
de fabular, produz no agente do discurso a ilusão da verdade. Quando o produtor do discurso
se defende da desconfiança de seu intercessor sobre a veracidade de sua fala, ele, o
intercessor, produz a ilusão da verdade naquilo que o agente do discurso diz.
Assim, no fluxo variável e flexível da produção imaginária, o destinatário que está por
chegar, o narrador do romance e Manoel Perna caracterizam-se como aqueles que vêm “à
procura do que o passado enterrou [...] à espera de um sentido, nem que seja pela suposição
do mistério, para acabar morrendo de curiosidade.” (CARVALHO, 2002, p.7) Também este
destinatário “viria em busca do que era seu” (CARVALHO, 2002, p.12) e de forma especular
era desconfiado como Buell Quain. Desse modo, o narrador, Buell Quain, Manoel Perna e seu
intercessor, rizomaticamente, encontram-se e desencontram-se na narrativa de forma ativa e
viva, quando por consonâncias e multissonâncias se deparam com o enigma deixado pelo
antropólogo, impactando o leitor.
Ao longo da narrativa, a vida e a morte do antropólogo Buell Quain vão se construindo
como enigmas sempre carentes de sentido, o que aproxima o romance das questões que
também movimentam a história da humanidade. A busca de sentidos para a vida e para morte
alimenta o sujeito nos seus questionamentos e interpretações sobre si e sobre o mundo, o que
lhe permite contar as suas histórias de forma dinâmica e plural, como exige a
hipermodernidade.
168
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