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FAZER DA TÁTICA A ESTRATÉGIA: O caminhar e o urbanismo

tático

SANTOS, BÁRBARA BRENA ROCHA DOS (1).

1. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da


Faculdade de Arquitetura da UFBA
Rua Caetano Moura, 121, Federação, CEP: 40210-905, Salvador-Bahia
barbarabrena@live.com

RESUMO
Dentre as maneiras de pensar e perceber a cidade contemporânea que nos são oferecidas a
consumir, que estampam revistas e compõe o hype das tendências urbanas, este artigo escolhe
como objeto de estudo a apropriação de um universo de referências e imagens que associam o
caminhar, o pedestre, a escala do pequeno e a experiência daquele que caminha e erra pela urbe, a
produtos, ideias, discursos, imagens e projetos políticos repletos de princípios e intenções que muitas
vezes fogem aos significados que tais referências carregam. Em meio a essa discussão, atenta-se
para uso do caminhante e da experiencia daquele que vive a cidade desde a rua como referência
comum entre o debate construído por Michel de Certeau e as práticas do urbanismo tático. Busca-se
evidenciar diferenças, camadas e vínculos entre essas duas maneiras de pensar cidade afim de
expor o conflito e retirar o caráter perverso que se observa nessas apropriações.

Palavras-chave: Urbanismo Tático, Urbanismo Neoliberal, Caminhar.

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BELO HORIZONTE – De 24 a 27 de Julho de 2018
1. INTRODUÇÃO
A ideia de que maneiras de ver e de sentir, de pensar e perceber, são oferecidas a todo
instante como qualidade ou valor de algum produto, já não nos parece óbvia? Estamos
habituados ao “tudo vira mercadoria” e por vezes não atentamos à perversidade de
processos que permeiam nossas vidas cotidianamente.

Dentre as maneiras de pensar e perceber a cidade contemporânea que nos são oferecidas
a consumir, que estampam revistas e compõe o hype das tendências urbanas, este artigo
escolhe como objeto de estudo a apropriação de um universo de referências e imagens que
associam o caminhar, o pedestre, a escala do pequeno e a experiência daquele que
caminha e erra pela urbe, a produtos, ideias, discursos, imagens e projetos políticos repletos
de princípios e intenções que muitas vezes fogem aos significados que tais referências
carregam.

Investiga-se a respeito de tais capturas, cooptações ou apropriações de subjetividades, e da


sujeição deste universo de referências e imagens do caminhar a interesses mercadológicos,
percebendo o avanço do mercado como parte de um projeto político neoliberal de governo
em disputa pelo lugar do Estado. Portanto, entende-se também que o perigo neste tipo de
associação vai além da banalização de termos, da cobiça pelo lucro e da espantosa
casualidade mercadológica em apropriar-se destas questões e transformá-las em produtos.

Evelina Dagnino (2004) nos fala de uma crise discursiva pela qual estaríamos passando em
que a homogeneidade no vocabulário e o uso de uma mesma linguagem corrente são
capazes de obscurecer diferenças, diluir nuances e reduzir antagonismos. O risco habita no
uso de referências comuns afim de promover projetos e discussões sobre cidade que
caminham em direções opostas. Ademais, o que surpreende em meio à familiarização aos
processos de captura, é perceber que a estratégia corrente nos últimos tempos tem sido
fazer da tática a estratégia.

A fim de observar tais apropriações e discorrer sobre alguns desdobramentos dessas


questões, elege-se uma discussão em específico: A apropriação da “Tática”, formulação
construída por Michel De Certeau (1980), pelo urbanismo tático em um discurso a favor da
participação popular, frente a falência das instituições governamentais, contribuindo
ativamente para o avanço de um projeto neoliberal de governo.

Em meio a essa discussão, atenta-se para uso do caminhante e da experiencia daquele que
vive a cidade desde a rua como referência comum entre o debate construído por Michel de
Certeau e as práticas do urbanismo tático. Busca-se evidenciar diferenças, camadas e
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vínculos entre essas duas maneiras de pensar cidade afim de expor o conflito e retirar o
caráter perverso que se observa nessas apropriações.

Este ensaio é parte de uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento no grupo de


pesquisa Laboratório Urbano do programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal da Bahia, e dialoga diretamente com as discussões que vêm sendo
pautadas na pesquisa da Cronologia do Pensamento Urbanístico, no campo de debates da
Participação.

2. A PROMOÇÃO DO CAMINHAR
“Rio, modo de usar” era a manchete que intitulava uma das páginas da sessão de turismo
da Revista Gol, nº 173, de agosto de 2016. A revista é deste tipo de publicação que fica à
disposição nos bolsões das poltronas do avião durante o voo, uma opção de leitura rápida
aos passageiros e turistas que viajam pela companhia área brasileira. As imagens e os
pequenos parágrafos que compunham a página convidavam o leitor a consumir as atrações
que movimentavam a capital carioca durante os Jogos Olímpicos de 2016. Entre os
recorrentes anúncios - desta vez disfarçados em etiquetas que sugeriam experiências de
cidade - eventos, produtos e serviços eram promovidos. Propunha-se partir de “Mochilão”
pelas 50 casas olímpicas onde cada nação estaria promovendo a sua cultura. O visitante
poderia optar por curtir um “Samba e muito mais” através da assinatura de um serviço digital
de música online com trilhas exclusivas para ouvir nos principais pontos turísticos da cidade.
Sugeria-se saborear “Energia” em um almoço tipicamente africano no recém-inaugurado
grastro lounge da cidade e logo após, talvez seguir por um passeio pelo “Centrão”, ilustrado
ali, pelo mais novo regalo de Calatrava ao Rio de Janeiro. No lateral direita, a última das
etiquetas apresentava um personagem conhecido: o “Flâneur” informava aos turistas que a
cidade poderia ser melhor conhecida se a fizessem a pé. Os passeios saiam diariamente e
eram orientados por guias bilíngues, divididos em sete roteiros temáticos com 4 horas de
duração. Disponíveis enquanto durassem as Olimpíadas.

É no mínimo curioso se deparar com uma vitrine de experiências de cidade e de rua


ofertada entre as nuvens. E até um tanto cômico perceber um personagem tão próprio das
multidões, da despreocupação e do chão como porta voz de uma experiência em que
espaço e tempo são pressupostos condicionados por roteiros temáticos e por horas de
duração.

A figura do Flâneur, personagem literário recriado por Charles Baudelaire na Paris do século
XIX, apesar de demonstrar fascinação pelo processo de modernização das cidades corrente

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na época, reagia com lentidão à velocidade imposta como crítica às grandes reformas
urbanas. É aquele que caminha pela cidade para experimentá-la, que vaga pelas ruas a
contemplar a vida e que “se perde voluntariamente, com um inebriante prazer, entre a
alteridade e o anonimato da multidão” (JACQUES, 2012, p. 53). A flanância, o ser Flâneur e
a própria flanerie configuram um imaginário bastante consolidado no debate moderno a
respeito do caminhar nas cidades e apesar de ser comumente associado ao perambular,
assume uma posição frente ao processo de modernização urbana evidenciando às
consequências das transformações no cotidiano das cidades - “Flanar é a distinção de
perambular com inteligência” (DO RIO, 1997, p. 51).

Ao se apropriar superficialmente do personagem, a Revista acaba afastando-o da coerência


que carrega em seu nome, e faz uso de uma faceta acrítica a serviço da venda da cidade
pelo turismo. A errância inebriante traduzida nos versos de Baudelaire como qualidade
inerente ao ser Flâneur é invalidada ao condicionamento do personagem à ideia de
exploração de cidade por meio de roteiros temáticos com duração e condução pré-
determinadas. O valor de troca perpassa o significado e faz da poética cotidiana mercadoria.

Se até mesmo o Flâneur já surge enquanto etiqueta de experiência, acessível aos


dispositivos de captura mercadológicos e facilmente apropriado pelo discurso de uma
grande empresa, seria possível entender o caminhar e o imaginário contemporâneo que o
acompanha enquanto mercadoria ou tendência de mercado?

Não é de hoje que o debate a respeito da escala do pequeno, das possibilidades criativas do
uso da rua no cotidiano das cidades e da experiência do caminhar em uma perspectiva
crítica da vida urbana atravessa ideias, discussões e produções no campo do urbanismo e
da produção de cidade, e se posiciona na contramão da lógica das intervenções e do
planejamento urbano. E dentre aqueles que já levantaram questões a respeito deste
imaginário, podemos citar desde autores que experienciaram a rua do século passado a
práticas coletivas contemporâneas de retomada das cidades através da apropriação dos
espaços públicos e das ruas.

Em A alma encantadora das ruas (1908) e em Vidas Vertiginosas (1911), João do Rio,
pseudônimo do cronista carioca Paulo Barreto, já refletia sobre o impacto do automóvel no
cotidiano do homem carioca mediante às transformações urbanas que Pereira Passos, o
“Haussman tropical”, realizou no Rio de Janeiro entre 1902 e 1904. No final da década de
1950 e começo dos anos 1960, o movimento Internacional Situacionista propunha derivas
pelas ruas de Paris - experimentações de errância voluntária e de crítica radical ao
urbanismo moderno. Jane Jacobs, por meio de seu livro “A Vida e Morte das Grandes

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Cidades Americanas” de 1961, foi pioneira em contestar os princípios da Carta de Atenas 1 e
reclamar a volta da ordem da cidade pela valorização do pedestre e da rua. Em 1980, o
historiador e filósofo francês, Michel de Certeau, dedicou um capitulo de seu livro “A
invenção do cotidiano, tomo 1: Artes de fazer ao andar na cidade” ao andar pela cidade “o
que considera a forma mais elementar de experiência urbana” (JACQUES, 2012, p. 267).

Apesar da relação entre o caminhar e a produção de cidade atravessar décadas e se manter


presente no tempo enquanto potência para a reflexão do campo, pode-se dizer que foi no
início do século XXI que a discussão sobre a valorização da escala do pedestre se
intensificou. “Agora, (...) podemos perceber os contornos dos vários e novos desafios
globais que salientam a importância de uma preocupação muito mais focalizada na
dimensão humana” (GEHL, 2000, p. 06). Dimensão Humana; Pedestrianismo; Walkability;
Cidade para Pessoas; Pequena Escala; entre outros termos, conformavam naquele
momento o foco da atenção do pensamento urbanístico e colocavam a experiência do
caminhar em um lugar de tendência global na discussão acerca do planejamento das
cidades.

Desde os anos 2000, por exemplo, grandes capitais globais, como Londres 2, Nova Iorque e
Copenhagen mantem projetos urbanos voltados ao pedestre, visando uma melhor
circulação de pessoas dentro da cidade. Grandes avenidas começaram a ser fechadas no
mundo inteiro para usufruto de pedestres e ciclistas, entre os exemplos icônicos: a
requalificação da Times Square (2009-2017) em Nova Iorque, que transformou uma das
áreas mais congestionadas da cidade em uma grande praça pública de mais de 9 mil metros
quadrados; e a abertura da Avenida Paulista na cidade de São Paulo aos domingos e
feriados em 2015, iniciativa que fez parte e foi propulsora do programa municipal Ruas
Abertas, implementado sob a ação conjunta entre coletivos ativistas e o poder público.

Entre as publicações que repercutiriam no debate internacional, evidenciam-se o livro


“Cidade para Pessoas” (2010) do arquiteto dinamarquês Jan Gehl, em que o autor nos
convida a pensar cidade a partir da pequena escala; por Francesco Careri “Walkscapes: o
caminhar como prática estética” (2002), publicação em que o arquiteto italiano apresenta a
ideia do “andar a zonzo”, zanzar, ziguezaguear, vagabundear; e A history of walking (2000) e
A field guide to getting lost (2005) ambos da historiadora Rebecca Solnit, publicados nos
EUA.

1
A Carta de Atenas é o manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna
(CIAM), realizado em Atenas em 1933. A carta define o conceito de urbanismo moderno, traçando diretrizes e
fórmulas que seriam aplicáveis internacionalmente.

2
Entre eles estão o Walkable London (Londres caminhável) e o Legible London (Londres legível).
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No que diz respeito ao debate nacional, fica impossível não contextualizar a discussão sobre
o caminhar como crítica ao urbanismo sem recorrer ao círculo de debates que atravessaram
o tema no Laboratório Urbano. As publicações “Apologia à deriva” de 2003 e “Elogio aos
errantes” de 2012, de Paola Berenstein Jacques, coordenadora do grupo, assim como a
pesquisa coletiva estabelecida entre 2011 e 2014 - “Experiências metodológicas para a
compreensão da complexidade da cidade contemporânea” abordaram o caminhar em uma
perspectiva crítica da vida urbana e enxergavam nessa prática “uma potente ferramenta de
apreensão da cidade, mas também de ação urbana, na medida em que, ao tornar o lugar
praticado, possibilita microresistências dissensuais” (JACQUES, 2012, p.315), capazes de
desestabilizar processos de homogeneização nas cidades.

É possível inferir, então, que a efervescência no debate a respeito do caminhar e da


construção de ideias que acompanhavam a temática tenha possibilitado o direcionamento
de holofotes mercadológicos a uma discussão que estava acostumada a se colocar em
contrapelo ao que geralmente reluzia no pensamento urbanístico tradicional.

Percebe-se, desde então, a apropriação de imagens, discursos e ideias associadas ao


caminhar nas cidades por grandes empresas e até mesmo por projetos políticos repletos de
intenções que muitas vezes escapam aos significados que tais referências carregam.
Observa-se, por exemplo, a presença de caminhantes e manifestantes em campanhas
publicitárias de grandes montadoras de automóveis3 e incorporadoras imobiliárias4
favorecendo o esvaziamento de pautas políticas através da associação direta do caminhar à
produtos e ideais de cidade que oprimem, selecionam e diferenciam aqueles que estão
aptos a usufruir da experiência do corpo na rua. Além disso, menções à experiência do
caminhar e a “venda da experiência” pelo turismo 5 são facilmente encontradas em ações
3
Podemos citar a campanha publicitária “Vem pra rua” de 2013 da FIAT, em que a chamada a tomada das ruas é
coordenada por uma montadora de automóveis. A propaganda se popularizou em um contexto da Copa do
Mundo de Futebol e das manifestações de Junho de 2013 no Brasil. Naquele ano, a FIAT recebeu o prêmio de
melhor empresa automobilística e melhor publicidade do ano. Disponível em:
<https://revistaautoesporte.globo.com/Carro-do-Ano/noticia/2013/12/vem-pra-rua-da-fiat-ganha-premio-de-
publicidade-do-ano.html> Acesso em 09 de fev. 2018.
Em novembro de 2016 a Chevrolet anunciava a campanha publicitária de lançamento do novo Chevrolet Tracker
2017 através hashtag #RetomarACidadeEh. Como parte da campanha de venda do novo automóvel, a Chevrolet
realizou um círculo de debates intitulado “Tracker Talks The City” que propunha repensar a maneira de como nos
apropriamos de nossas cidades, associando a “evolução das ruas” à venda de um “carro evoluído”. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=Xp2H00SVZY4> Acesso em 09 de fev. 2018.

4
Em 2016 a Gafisa, empresa líder no mercado imobiliário de alto padrão produziu uma série de produtos
audiovisuais. “Cidade-se!” foi o conceito escolhido. O convívio democrático na rua, a ocupação do espaço
público e as ruas fechadas para o pedestre aos domingos eram a pauta. A Praça Mauá, os museus de arquitetos
renomados e os megaeventos constituíam o cenário. Disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UCjdvK-
jhuEsB9m5o4p61XDA> Acesso em 09 de fev. 2018.

5
No portal do Ministério do Turismo do Governo Federal (www.turismo.gov.br) é possível acessar o projeto
“Economia da Experiência” que visa conduzir a monetização e a valoração de produtos turísticos agregando a
eles o conceito de “Experiência”. No mesmo portal, os passeios a pé são apresentados como nova tendência de
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encabeçadas tanto pelo Estado quanto pelo mercado, em que a flanerie é associada aos
walking tours e a experience6 se torna slogan de autenticidade e alteridade urbana.

Percebe-se um suposto chamado das ruas, um ativismo traduzido em consumo, que é


veiculado massivamente em propagandas, discursos políticos e até mesmo em pautas de
governo. Ao consumidor se oferece a possibilidade de compra de uma lógica de alteridade
urbana que se legitima pela associação a referências consolidadas, mas que no entanto por
ser veiculada de maneira rasa e superficial, acaba contribuindo para a banalização do
discurso.

Em “Confluência perversa, deslocamento de sentido e crise discursiva” (2004), Evelina


Dagnino delineia os contornos de uma disputa de discursos e imaginários mediante a
instalação do projeto neoliberal na américa latina nas últimas décadas. Um momento
marcado pela utilização de referências comuns como linguagem corrente aponta para a
crise discursiva elucidada, uma vez que a homogeneização do vocabulário “obscurece
diferenças, dilui nuances e reduz antagonismos” (DAGNINO, 2004, p. 198) e oferece o risco
de servir aos objetivos de projetos que lhe são incompatíveis.

Segundo Dagnino, tal crise discursiva resulta de uma confluência perversa entre um
processo de alargamento da democracia, que se expressa na crescente participação da
sociedade civil em processos de emancipação política, e na emergência de um “projeto de
Estado mínimo que se isenta progressivamente de seu papel garantidor de direitos, através
do encolhimento de suas responsabilidades sociais e sua transferência para a sociedade
civil” (Ibidem, p. 197). A perversidade se faz presente uma vez que, mesmo apontando, em
direções opostas sob intenções até antagônicas, ambos os projetos partem de referências
aparentemente comuns como participação, cidadania e democracia, mas que se
examinadas com cuidado, escondem distinções e divergências fundamentais.

Afim de contribuir para a diluição da crise discursiva instaurada e revelar os


obscurecimentos que ela tem provocado, elege-se neste artigo a apropriação da “Tática”,
formulação construída por Michel De Certeau (1980), pelo urbanismo tático como exemplo
de deslocamento a ser analisado. Em um esforço para evidenciar as diferenças desses dois
projetos, que além do uso de uma mesma palavra compartilham do elogio à rua e ao
caminhar, busca-se acessar o que se esconde e o que se pode revelar de tal relação.

experiencia no turismo brasileiro.

6
O site AirBnb (www.airbnb.com.br), portal de aluguel de quartos e hospedagens em todo o mundo, também
oferece desde 2016 a venda de “experiences”. As “caminhadas culturais” são uma das categorias de experiência
disponíveis em diversos destinos. Os valores variam em média de R$90 a R$200 por duas horas de caminhada.
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3. A TÁTICA DE MICHEL DE CERTEAU E O URBANISMO EXTRA
SMALL
Em “A invenção do cotidiano” (1980), Michel de Certeau constrói uma narrativa de elogio ao
caminhante presente desde a dedicatória do livro (“Este ensaio é dedicado ao homem
ordinário. Herói comum. Personagem disseminada. Caminhante inumerável”), que atravessa
a leitura da obra por completo mas que acaba culminando no capítulo “Caminhadas pela
cidade” em que o autor nos conta “daqueles que experimentam a cidade, que a vivenciam
de dentro – ou ‘embaixo’ como ele diz, referindo-se ao contrário da visão aérea, do alto, dos
urbanistas através dos mapas” (JACQUES, 2012, p.267).

Mas "embaixo" (down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os
praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são
caminhantes, pedestres, Wandersmanner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de
um "texto" urbano que escrevem sem poder lê-lo (DE CERTEAU, 1994, p. 157, grifo
nosso).

Para De Certeau, ao jogar o jogo dos passos os caminhantes tecem os lugares. E é o


pedestre que ao se movimentar efetivamente faz a cidade. Ao rodar e girar segundo a lei
anônima das ruas, o corpo joga ao mesmo tempo que também é jogado. E nessa
brincadeira de produzir cidade com os pés, o caminhante além de tornar efetiva algumas
“possibilidades fixadas pela ordem construída” (Ibidem, p.165) (ao seguir por caminhos
projetados e reconhecidos) também é capaz de aumentar as possibilidades (ao criar atalhos
e desvios).

Em Elogio aos Errantes (2012), Paola Berenstein Jacques associa diretamente a prática
cotidiana dos praticantes ordinários das cidades, em referência direta aos caminhantes de
De Certeau, à formulação também construída pelo filósofo francês no mesmo livro, ao qual
ele nomeia de “tática” numa oposição à ideia de “estratégia”.

As práticas cotidianas dos praticantes ordinários, como as dos errantes, são do tipo
tática – estão diretamente relacionadas com a experiência urbana do ‘embaixo’, com
o ‘corpo a corpo amoroso’ –, enquanto as estratégias ‘escondem sob cálculos
objetivos a sua relação com o poder’ que sustenta os espaços. São duas lógicas de
apreensão da cidade, da experiência urbana, que coexistem: a estratégica, do
urbanismo e planejamento hegemônico – hoje também chamado, não por
acaso, de planejamento estratégico –, daqueles que produzem os espaços a partir
da vista aérea, dos cálculos objetivos e do poder que os sustenta; e a tática, astúcia
daqueles que cotidianamente praticam o espaço, usando-o, desviando-se,

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profanando-o, subvertendo-o: jogam com o espaço dado (JACQUES, 2012, p.
268, grifos nossos).

Ao contrário da estratégia, desenhada como um gráfico que o olho pode dominar, a tática se
ilustra na astúcia e “sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria
decisão, o ato de aproveitar a ‘ocasião’” (DE CERTEAU, 1994, p.46). A tática é a vitória do
“fraco” sobre o mais “forte”, é o escape ao sistema, ao passo que a força da estratégia se
faz no poder que a sustenta, guardado pelo lugar próprio ou da instituição.

A discussão de “tática” versus “estratégia” em um debate no campo do urbanismo vem sido


retomada nos discursos propagadas pelo urbanismo tático nas últimas décadas. Em
referência direta a formulação de Michel de Certeau, os “urbanistas táticos” associam a ideia
de “estratégia” às “ultrapassadas” políticas governamentais de planejamento urbano, e
atribuem à “tática” o poder transformador das cidades movido de dentro para fora pelos
cidadãos. Apesar de fazer uso da dialética dicotômica entre os termos, o urbanismo tático
entende que “o governo pode – e deve – trabalhar mais taticamente assim como os
cidadãos podem aprender como trabalhar mais estrategicamente. Estratégias e táticas tem
portanto igual valor e devem ser usadas em conjunto” (LYDON, GARCIA, 2015, p.10).

Sendo assim, se faz importante investigar as ações do urbanismo tático, para além de
questionar e disputar a utilização do termo, mas afim de refletir em que contextos e à
sombra de quais interesses as ações e práticas ditas “táticas” constroem cidade e de fato se
mantem coerentes ao significado e a construção das ideias de Michel de Certeau.

A dita falência dos projetos estatais de urbanização por vezes reproduzida, divulgada e até
mesmo comemorada brinda o engajamento dos coletivos ativistas, arquitetos, urbanistas e
designers dispostos a representarem a sociedade civil em reclames pontuais pelo direito à
cidade através da organização, realização e manutenção de ações e intervenções no
espaço público. Tais práticas urbanas de abordagem voluntária, em colaboração com o
Estado e/ou a iniciativa privada, realizadas em curto prazo e geralmente mobilizadas de
“baixo para cima” são assumidamente associadas à chancela do urbanismo tático.

Celebrado como potente alternativa ao planejamento urbano moderno, o urbanismo tático


surge associado a um contexto de crise de governança e das possibilidades e
potencialidades que emergem das tentativas por parte de indivíduos e grupos sociais em
encontrar formas de construir uma vida decente em um ambiente decente de vida (HARVEY,
2015).

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Dentre as recentes reflexões e formulações interpretativas acerca do tema, aquelas que
partem em defesa e afirmação do conceito constroem argumentos por meio dos ideais de
descentralização; maleabilidade e abertura; participação popular e reapropriação do espaço
público, e costumam convencer através da crítica à burocracia e ineficiência dos modelos de
gestão pública.

Parklets; hortas urbanas; intervenções artísticas em ruas e calçadas; food trucks; cadeiras e
sombreiros de praia no asfalto; faixas de pedestres improvisadas; mobiliários urbanos de
pallet e ruas abertas aos pedestres são alguns exemplos do ilimitado espectro de ações
colaborativas de atuação no espaço público e de produção de cidade vinculadas ao
urbanismo tático. Entende-se que à frente dessas intervenções devam estar cidadãos ou
coletivos ativistas, que em um movimento “de baixo para cima” proponham e liderem
pequenas transformações em seus espaços de sociabilidade, e que a depender do impacto
de tal construção coletiva e da capacidade de tais intervenções alertarem a consciência
publica, as ações de urbanismo tático deixem a efemeridade e assumam uma natureza
permanente.

Apesar do discurso elogioso, a série de quatro publicações coordenadas pelos urbanistas


americanos Mike Lydon e Antony Garcia – “Urbanismo tático: ação a curto-prazo para
mudança a longo-prazo” (2011; 2012; 2013; 2014) promoveu a difusão do urbanismo tático
através da exposição de experiências nos Estados Unidos, América Latina, Austrália e Nova
Zelândia, e constitui um importante meio de divulgação e consolidação da lógica do “faça-
você-mesmo”.

Entre as primeiras iniciativas dos urbanistas táticos nos EUA está a implementação do “Bike
Miami Days” em novembro de 2008. O evento pioneiro em fechar as ruas para pedestres e
ciclistas na cidade foi propulsor de inúmeras outras iniciativas conjuntas de Lydon e Garcia,
a exemplo de workshops e seminários sobre o tema, que vieram a culminar na publicação
dos livros citados anteriormente e na popularização do termo.

Apadrinhados por Andrés Duany, arquiteto e urbanista americano fundador do Congresso do


Novo Urbanismo e ex-chefe de Lydon, os tacticians conduziram o urbanismo XS (Extra
Small7) em uma rápida ascensão à tendência de urbanização global. O padrinho e novo-
urbanista atribui o brilhantismo do urbanismo tático ao fato de tais ações terem sido capazes
de reformular a oposição pública e privada em um propósito comum. E enxerga a

7
Em referência a formulação de Rem Koolhaas - S, M, L e XL - no livro homônimo de 1995, acerca das
categorias de urbanismo do século vinte e um.
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recuperação do processo “frustrado e frustrante” 8 de participação pública a medida que se
estabelece confiança nas manifestações do urbanismo tático.

Em 2015, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) exibiu a exposição Uneven
Growth: Tactical Urbanisms for Expanding Megacities [Crescimento desigual: urbanismo
tático para megacidades em expansão], abrindo espaço para a tendente presença de
discussões acerca do urbanismo tático em eventos e exposições internacionais 9. O
catálogo da exposição, organizado pelo curador do MoMA, Pedro Gadanho, conta com
artigos de arquitetos e críticos de renome, a exemplo de Saskia Sassen, David Harvey e Ted
Cruz, e contribuiu para a consolidação do urbanismo tático como assunto recorrente nas
discussões de urbanização e produção de espaço na cidade contemporânea.

Dando seguimento às reflexões construídas a partir da Uneven Growth e disponibilizadas


pelo MoMa na página da mostra, o professor de Teoria Urbana na Harvard Graduate School
of Design (GSD), Neil Brenner, explicita uma série de contradições no discurso e nas ações
alternativas dos projetos urbanísticos apresentados na exposição. “À medida que a busca
por novas abordagens para reorganizar nosso futuro urbano planetário coletivo ganha
urgência crescente, esses discursos amplamente afirmativos em torno de um urbanismo
tático exigem um exame crítico” (BRENNER, 2016).

O professor centra sua crítica na noção construída pelos comentaristas envolvidos na


referida mostra, que apresenta as ações do urbanismo tático como alternativa aos
paradigmas modernista-estatista e neoliberal de intervenção urbana. A justificativa
apresentada nos comentários faz uso do selo da participação democrática como legitimador
de intervenções bem-intencionadas em defesa da coesão social e aplaude a
espontaneidade de ações supostamente não programadas e construídas “de baixo pra
cima”. No entanto, “não se pode simplesmente presumir que, por causa de suas lógicas
operacionais ou orientações político-normativas, as intervenções táticas vão de fato contra-
atacar o urbanismo neoliberal” (BRENNER, 2016).

Em alguns casos, os tipos de urbanismos táticos parecem mais propensos a reforçar


os urbanismos neoliberais, aliviando-os temporariamente, ou talvez simplesmente
deslocando alguns de seus efeitos sociais e espaciais perturbadores, mas sem

8
Em referência a trecho do prólogo de Andrés Duany - “The frustrated and frustrating process of public
participation begins skeptically and tentatively and then picks up as confidence is reestablished with Tactical
Urbanist demonstrations” - retirado do prefácio do livro Tactical Urbanism: Short-term Action for Long-term
Change de 2015.

9
Das quais podemos destacar também o pavilhão dos Estados Unidos na Bienal Internacional de Arquitetura de
Veneza de 2012 com a mostra intitulada Spontaneus Interventions: Design Actions for the Common Good. A
exposição exibiu 124 projetos, sendo a maioria deles informais e espontâneos.
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interromper os regimes básicos associados a um desenvolvimento urbano – tudo isto
sem desafiar a confiança fundacional das instituições governamentais que sustentam
o projeto neoliberal (BRENNER, 2016).

Ao assumir a diminuição do papel das instituições públicas e ao aliviar algumas falhas de


governança o urbanismo tático internaliza e acaba reforçando uma agenda neoliberal,
contribuindo para o seu enraizamento e consolidação. Surge e atua em espaços de
neutralidade, que não são nem funcionais nem perturbadores ao projeto neoliberal, e
coexiste, por vezes, sem questionar a que tipo de relações e posicionamentos políticos suas
ações alimentam.

A municipalidade, por sua vez, encontra no urbanismo tático uma estratégia de redução de
gastos e de repasse da responsabilidade pública à sociedade civil e ao mercado. Logo,
grandes empresas e corporações abraçam a oportunidade de se disfarçar de pequeno e de
se aproximar ainda mais do cotidiano dos consumidores. Em um movimento de produção de
certas maneiras de se relacionar e de criar subjetividades, o neoliberalismo intenciona a
naturalização de uma norma de vida que mina a lógica das instituições e coloca em disputa
o lugar do Estado (DARDOT, LAVAL, 2016).

O esforço por desenhar ou acessar camadas outras na atuação na produção de urbanismo


tático nos espaços públicos objetiva limpar a vista ou pelo menos organizar as inúmeras
imagens construídas por meio de um compartilhamento de referências adversas. Apesar do
cenário nebuloso, também decorrente da simultaneidade entre o lançar dos dados e a
consciência do estado de jogo, fazer da tática uma estratégia parece ser uma forma de
avançar na disputa.

4. A DISPUTA PELO LUGAR DO ESTADO


Apesar da associação entre financeirização, Estado e planejamento urbano ainda nos levar
a reflexões acerca do Planejamento Estratégico10, que por sua vez carrega a lógica
neoliberal na maneira como submete as cidades às mesmas condições e desafios que as
empresas, e que ainda é uma realidade nas plataformas de governo de inúmeras cidades
brasileiras, a discussão sobre a mercantilização da vida e a constatação do estreitamento da

10
“O plano estratégico de desenvolvimento, experimentado pela cidade de Barcelona, em vias da realização dos
Jogos Olímpicos de 1992, instaurou um modelo de gestão urbana copiado e editado, e também criticado em todo
o mundo não apenas pelas mudanças físicas na paisagem e vida urbana, mas principalmente por seus efeitos
sociais” - retirado de Verbete da Cronologia do Pensamento Urbanístico, disponível em:
http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1267&langVerbete=pt. Acesso em 09 de
maio. 2018.
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relação entre capital e produção de cidade não cessa nos moldes da cidade pátria-empresa-
mercadoria11.

No entanto, diante da complexa teia de relações entre capital e Estado, entender as


reflexões sobre processos urbanos já consolidados pode contribuir na percepção do avanço
do projeto neoliberal na disputa pelo lugar do Estado. Partir do que se conhece a respeito do
Planejamento Estratégico pode ser estratégico na tentativa em delinear o lugar em que o
urbanismo tático se insere em um contexto de mercantilização da vida cotidiana, por meio
da constatação de manobras inéditas ou da identificação das principais diferenças
discursivas entre tais processos distintos.

A cartilha12 do Planejamento Estratégico regulamenta o papel de cada uma das esferas


envolvidas no processo de urbanização das cidades: a iniciativa privada surge como
provedora de recursos e balizadora das intenções; o Estado assume o papel de gerir tais
parcerias e tirar o máximo proveito delas; e da sociedade civil se espera a confirmação do
sucesso do projeto por meio da conquista de um amplo “consenso citadino”, atribuindo à
participação popular a função de legitimação de interesses maiores.

Ainda que, o Planejamento Estratégico tenha sido construído com o intuito de “ocupar o
trono deixado vazio pela derrocada do tradicional padrão tecnocrático-centralizado-
autoritário” (VAINER, 2000) de planejamento urbano e que as parcerias público-privada
garantam ao mercado poder de decisão sobre os espaços públicos, o discurso pregado
todavia assegura ao Estado um lugar de gestão e operação das manobras estratégicas.

Com o avançar das fases e a conformação da lógica que passa ao urbanismo tático a vez
na partida, esbarramos em uma mudança significativa na leitura das regras do jogo.
Concede-se, agora, certa vantagem a atuação da sociedade civil por meio de um persistente
discurso de desvalorização do Estado e da necessidade de recuperação do processo de
participação pública.

O pressuposto para o surgimento do urbanismo tático que fundamenta a atuação de uma


classe criativa nas ruas e nos espaços públicos é a total incapacidade do Estado em atender
as necessidades de seus habitantes. A lógica máxima do “faça-você-mesmo” não só admite
a falência da gestão pública como também justifica a tomada de responsabilidade urbana

11
Em referência a célebre crítica “Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do
Planejamento Estratégico Urbano" de Carlos Vainer, publicada em “A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos” em 2000, escrito em conjunto com Otília Arantes e Ermínia Maricato.

12
Em referência a “As Cidades e o Planejamento Estratégico: uma Reflexão Europeia e Latino-Americano” de
Jordi Borja, publicado em 1996, em que o autor descreve o passo-a-passo na implantação do modelo
Planejamento Estratégico na América Latina.
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por parte da sociedade civil e do mercado. Aqui, diferente do Planejamento Estratégico, a
tarefa de firmar alianças e o poder de decisão sobre o espaço público é aparentemente
entregue à sociedade civil, através de um discurso de “propósito comum”.

Em “A nova razão do mundo” (2016), Pierre Dardot e Christian Laval atribuem parte do
sucesso e do predomínio do neoliberalismo enquanto sistema normativo dotado de certa
eficiência, à capacidade de “orientar internamente a prática efetiva dos governos e das
empresas e, para além deles, de milhões de pessoas que não tem necessariamente
consciência disso” (DARDOT, LAVAL, 2016, p.15).

Em um movimento de produção de subjetividades que estende fundamentos como a


racionalidade e a competitividade a uma maneira de viver e de agir do indivíduo, o
neoliberalismo visa obter um autogoverno do governado, isto é, produzir certo tipo de
relação deste consigo mesmo.

o governo requer liberdade como condição de possibilidade: governar não é governar


contra a liberdade ou a despeito da liberdade, mas governar pela liberdade, isto é,
agir ativamente no espaço de liberdade dado aos indivíduos para que esses venham
a conformar-se por si mesmos a certas normas (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 18-19).

O neoliberalismo compreende o empoderamento da sociedade civil e a motivação dessas


“milhões de pessoas” com as possibilidades de liberdade e de autogoverno como estratégia
na disputa pelo lugar do Estado. As ações da sociedade civil que lhe convém são mantidas
e tem sua existência permitida.

É por isso e por outros motivos que a reflexão e questionamento crítico acerca da
complexidade da produção da cidade contemporânea se faz necessária, quais sejam os
vínculos e atores envolvidos nos mais diversos campos de atuação. Desconfiar de discursos
amplamente afirmativos e de ações participativas em espaços públicos repletas de boas
intenções, que apesar do intuito genuíno de criar ambientes decentes de socialização nas
cidades, por exemplo, acabam internalizando agendas políticas de privilégio para poucos e
contribuindo para o avanço do neoliberalismo no cotidiano das cidades.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Na ausência de margens de manobra, o confronto político com o sistema neoliberal
enquanto tal é inevitável. Mas esse confronto também é problemático, porque é difícil reunir
as condições em que ele se dá” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 8). Sabe-se da dificuldade em
lidar com um sistema que de tudo se apropria e em que tudo vê vantagem, e pode parecer

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não valer a pena lutar se até mesmo a resistência já aparece no discurso e nas ações
daqueles que promovem a desigualdade, a competição e o consumo.

Sobretudo cabe atentar também ao contexto político em que cada ação ou intervenção no
espaço público se dá, percebendo as particularidades das dinâmicas de cada caso. É
importante ter a consciência de que em um processo de imbricamento de lógicas opostas,
ambos os lados da disputa são potentes, e que apesar do risco de adentrar em campos
adversários, a possibilidade de transformação é real e deve ser encorajada.

Neste sentido, as possibilidades de transformação no fazem perceber que até mesmo a


crítica, por vezes, precisa esperar ou ser dosada, em um movimento de precaução, evitando
que seja ela também usada a favor daquilo a que não se destina. No entanto, em um
contexto político marcado por contradições e lógicas que operam através da sobreposição
de outras lógicas, colocar-se em constante questionamento assume uma posição de
desafio. E seguir desafiando, experimentando e descobrindo formas outras de enfrentar o
sistema pode ser de fato fazer uso da tática na tentativa de construir outras margens de
manobra possíveis.

REFERÊNCIAS
ARANTES, Otília B. F. Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos Bernardo; MARICATO, Ermínia. A cidade
do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.

BRENNER, Neil. Seria o "urbanismo tático" uma alternativa ao urbanismo neoliberal? E-metropolis,
Rio de Janeiro, v. 27, n. 27, p.6-18, dez. 2016. Disponível em:
<http://emetropolis.net/system/edicoes/arquivo_pdfs/000/000/027/original/emetropolis27.pdf?
1485998410>. Acesso em: 10 jan. 2018.

DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?. In: GARCIA,
Illia e MATO, Daniel (coords.). Políticas de Ciudadania y Sociedad Civil en Tiempos de
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DARDOT, Pierre.; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
São Paulo: Boitempo, 2016.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer, original de 1980. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis (RJ): Vozes, 1994

DO RIO, João. A Alma Encantadora das Ruas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia
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GADANHO, Pedro. Uneven Growth: Tactical Urbanism for Expanding Megacities. Nova Iorque:
The Museum of Modern Art, 2014.

GEHL, Jan. Cities for People. Washington: Island Press, 2010.

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HARVEY, David. A crise da urbanização planetária. 2015. Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2015/01/10/david-harvey-a-crise-da-urbanizacao-planetaria/>. Acesso
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JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. EDUFBA: Salvador, 2012.

LYDON, Mike, & GARCIA, Antony. Tactical Urbanism vol. 1: Short-term Action for Long-term
Change. Washington: Island Press, 2011.

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