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Angélica Karim Garcia Simão

Maria Angélica Deângeli


(Organização)

Tendências Contemporâneas dos Estudos da Tradução


Volume 1

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”


Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
Câmpus de São José do Rio Preto
2015 - Tendências Contemporâneas dos Estudos da Tradução – volume 1
© Todos os direitos reservados para esta edição.

Organização: Angélica Karim Garcia Simão e Maria Angélica Deângeli


Projeto gráfico e diagramação: Luma Almeida Seleghim
Preparação e Revisão: Fábio Henrique de Carvalho Bertonha
Foto da capa: Pedras de Sete Pilões (Cristina Carneiro Rodrigues)

Conselho Consultivo

Adriana Zavaglia
Universidade de São Paulo (USP)

Álvaro Luiz Hattnher


Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Enilde Leite de Jesus Faulstich


Universidade de Brasília (UnB)

Lauro Maia Amorim


Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Leila C. Melo Darin


Pontifícia Universidade Católica (PUC - SP)

Márcia do Amaral Peixoto Martins


Pontifícia Universidade Católica (PUC - RJ)

Maria Viviane do Amaral Veras


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher


Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Mauricio Mendonça Cardozo


Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Paula Godoi Arbex


Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Nesta obra respeitou-se o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tendências contemporâneas dos Estudos da Tradução [recurso eletrônico]
/ organizado por Angélica Karim Garcia Simão, Maria Angélica Deângeli.
- São José do Rio Preto:
UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto, 2015.
2 v.

ISBN 978-85-8224-109-7
Tipo de arquivo: Texto
Requisito do sistema: Software leitor de pdf

1. Linguística. 2. Tradução e interpretação – Estudo e ensino. 3.


Traduções. I. Simão, Angélica Karim Garcia. II. Deângeli, Maria
Angélica. III. Título.
CDU – 8.035

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE


UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto
SUMÁRIO

Apresentação
9 Cristina Carneiro Rodrigues

Uma análise paratextual das traduções francesas


15 de Menino de Engenho
Flora Marina Figueiredo Ajala e Marta Pragana Dantas

Riscando milagres: Lídio Corró e a tradução


34 intersemiótica em Tenda dos Milagres
André Batista

A tradução política de Langston Hughes


53 Paula Campos

Literaturas não canônicas e a tradução de antologias


64 de contos brasileiros
Janaína Araújo Coutinho

Traduzir La Disparition de Georges Perec para o


84 português: entretraduzir: entredizer o “e” interditado
em O Sumiço
José Roberto Andrade Féres

Apreendendo a ler a tradução: considerações acerca do


99 projeto de tradução O Centauro Bronco, de Mauricio
Mendonça Cardozo
Renê Wellington Pereira Fernandes

7
124 A tradução da literatura infantil: uma análise linguística
no par inglês/português brasileiro
Kícila Ferreguetti e Flávia Ferreira de Paula

Procedimentos tradutórios e teoria literária nas traduções


155 de Geir Campos de Folhas de Relva, de Walt Whitman
Bruno Gambarotto

O bilinguismo literário de Nancy Huston: escrita


175 traduzida entre línguas
Gabriela Oliveira e Maria Angélica Deângeli

Traite petit de titrologie : regard critique sur la


191 traduction de titres
Slav Petkov

8
Apresentação

O Bacharelado em Letras com habilitação de Tradutor do


Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, câmpus
de São José do Rio Preto, foi criado em 1978 e, na época, era o único
em uma instituição pública no Brasil. Os Estudos da Tradução eram,
ainda incipientes, por isso docentes e discentes do curso pensaram
em abrir um espaço para discutir questões teóricas e práticas acerca
da tradução. Com essa finalidade, programaram, em 1981, um
evento que pudesse preencher essa função, a Semana do Tradutor.
Suas primeiras edições foram modestas em termos
orçamentários e contaram com a participação de palestrantes e
conferencistas da região, principalmente da própria Unesp.
Inicialmente organizada quase exclusivamente pelo corpo discente,
aos poucos, com o apoio dos docentes do curso, a Semana passou
a contar com o auxílio de órgãos de fomento e passou a receber
grandes nomes dos Estudos da Tradução, tanto da vertente teórica
quanto da prática.
A partir do momento em que sua programação, mais ampla
e diversificada do que inicialmente, começou a ser mais divulgada,
muitos alunos e docentes de outras instituições passaram a
participar da Semana do Tradutor, vindos de diversas regiões do
Brasil.
Em 2014, houve uma inovação. Em sua 34. edição, a
Semana do Tradutor foi realizada junto com o I Simpósio
Internacional de Tradução (SIT). À discussão mais voltada para
alunos de graduação, incorporou-se a troca de experiências entre
pesquisadores do Brasil e do exterior.
Nesse ano, o evento contou com mais de trezentos
participantes inscritos, e mais de duzentos apresentaram trabalhos

9
em forma de comunicação oral. Convidados e participantes dos dois
eventos vindos de quatorze Estados do Brasil e de dez outros países
(Áustria, Canadá, China, Colômbia, Espanha, Estados Unidos,
França, Inglaterra, Itália e Peru), apresentaram conferências,
workshops e comunicações orais que envolveram diferentes
aspectos dos Estudos da Tradução.
A diversidade da produção dos participantes, assim como
sua qualidade, fez nascer a ideia de publicação dos trabalhos
apresentados. Formou-se um Conselho Consultivo que cuidou da
seleção dos textos e as organizadoras agruparam-nos em dois eixos
temáticos.
Neste volume incluem-se artigos que abordam crítica de
tradução, tradução literária, assim como questões identitárias. A
disposição dos textos, que apresento a seguir, não é temática, segue
ordem alfabética pelo sobrenome dos autores.
Ajala e Dantas examinam alguns elementos paratextuais de
duas traduções francesas de Menino de engenho (1932), de José Lins do
Rego, uma publicada em 1953, outra em 2013. Concluem que a obra
mais recente tende a evidenciar a proveniência estrangeira do texto,
além de ser mais informativa que a anterior.
Tomando como base os Estudos da Tradução na pós-
modernidade, Batista questiona as concepções tradicionais de
originalidade, fidelidade e essência semântica. Para fazê-lo, examina
a prática, apresentada por Jorge Amado em Tenda dos Milagres, de
encomendar a artistas populares a pintura de milagres supostamente
realizados por santos. Como se trata de um processo que envolve a
transformação da narrativa oral do milagre em uma imagem, ou seja,
uma tradução intersemiótica, o autor argumenta que ambas as
atividades envolvem leitura e interpretação e o resultado é um novo
objeto, que suplementa e revitaliza o texto de partida.

10
O texto de Campos propõe-se a, a partir da tradução que faz
de poemas do estadunidense Langston Hughes, discutir a tradução
de literatura de escritores afrodescendentes no Brasil, buscando dar
visibilidade às semelhanças e diferenças entre o contexto do Brasil e
o dos Estados Unidos. Suas traduções levam em consideração a
estética literária não canônica do autor e sua força como ativista
político e intelectual engajado.
Considerando a tradução literária no plano da mediação nas
trocas entre línguas diferentes, Coutinho concebe uma obra
traduzida como um novo produto, que passou por processos de
adaptação no novo contexto de recepção. É desse prisma que
analisa a obra traduzida Je suis favela (2011), uma coletânea de 22
contos brasileiros escritos por autores não canônicos, que tem como
objeto a favela brasileira na contemporaneidade e publicada pela
editora francesa independente Anacaona, pertencente a Paula
Anacaona, que se encarregou da tradução. Enfoca especialmente a
representação que se molda do Brasil e a imagem que se forma da
literatura brasileira contemporânea traduzida ao se levar aos países
de língua francesa uma literatura que retrata as periferias brasileiras.
Féres expõe como entretraduz La Disparition, de Georges
Perec, romance lipogramático sem uma vogal “e”, que narra o
desaparecimento dessa letra. Seu texto intitula-se, em português, O
Sumiço e nele o autor busca traduzir entre livros, religando os mais
variados intertextos entrelaçados, buscando, na maior parte das
vezes, não traduzir as palavras em si, mas traduzir entre elas, traduzir
o que lê nas entrelinhas, a metatextualidade que as une entre si e lhes
dá razão de ser – e dizer tudo também sem “e”.
Baseado especialmente em Zilly, Arrojo, Berman e Moraes,
Fernandes explora o projeto tradutório de Cardozo de dupla
tradução da novela “Der Schimelreiter”, do escritor alemão Theodor
Storm. O primeiro trabalho intitula-se A assombrosa História do

11
Homem do Cavalo Branco, e apresenta-se com os contornos do
estrangeiro. O segundo, sobre o qual Fernandes se debruça
detidamente, denominado O Centauro Bronco, é transformado na luta
de um homem do sertão brasileiro contra a aridez do clima
nordestino.
Partindo do pressuposto de que traduzir é recontar e
reescrever, Ferreguetti e Paula examinam a tradução de literatura
infantil. As autoras analisam quatro obras com o uso de ferramentas
da Linguística de Corpus e com o aporte teórico da Linguística
Sistêmico-Funcional. Nas obras analisadas detectam a tendência a
mudanças na organização temática, na pontuação, no nome de
personagens, explicitação de imagens, assim como uso de itálicos e
caixa alta para ênfase.
Gambarotto parte da convergência entre estratégias e
procedimentos tradutórios e uma visada do objeto literário
orientada pela história e a teoria literárias para analisar duas
diferentes versões dos poemas de Folhas de relva, de Walt Whitman,
publicadas pelo tradutor e poeta brasileiro Geir Campos, uma em
1964, outra em 1983. Como seu interesse é investigar as
possibilidades de incorporação da teoria literária e da história crítica
à prática tradutória, discorre sobre a recepção de Whitman no Brasil
para, então, examinar as duas traduções de Campos. Em sua
avaliação, as diferenças que se apresentam são menos fruto de
posturas tradutórias que da cultura e produção literária que as
informa. Ao evidenciar um tradutor preso a seu(s) tempo(s), conclui
que o trabalho de tradução não se dissocia de uma recepção
assujeitada a determinações histórico-sociais.
Fundamentadas na concepção de que bilinguismo é um
acontecimento que atravessa a subjetividade dos que, por diversas
razões, partilham a experiência de viver entre línguas e culturas,
Oliveira e Deângeli examinam a questão da autotradução, ou

12
reescritura, realizada pela autora canadense Nancy Huston.
Evidenciam que a tarefa evoca o entre-línguas e a alteridade, que a
escritora está na posição de sujeito entrelínguas, transpassada pelas
línguas que a constituem.
Petkov trata de títulos, das diferentes maneiras de nomear
textos, filmes, séries televisivas, estudo que Hoek e Genette
denominaram titulologia.1 Considera que a teoria da tradução
deveria incorporar o estudo dos títulos, exemplificando com uma
breve análise de alguns títulos em francês, inglês e búlgaro.
Temos, assim, representadas neste volume algumas das
principais tendências dos Estudos da Tradução contemporâneos,
tanto em termos de fundamentação teórica quanto de objetos
examinados.

Cristina Carneiro Rodrigues

Referência bibliográfica
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro
Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.

1 Adoto aqui a tradução de Álvaro Faleiros para titrologie (Genette, 2009, p. 55).

13
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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

UMA ANÁLISE PARATEXTUAL DAS TRADUÇÕES


FRANCESAS DE MENINO DE ENGENHO

Flora Marina Figueiredo AJALA


Marta Pragana DANTAS

1. Introdução

O presente artigo consiste em uma análise paratextual de


duas traduções da obra Menino de engenho (1932), de José Lins do
Rego, para o francês. Tem por objetivo comparar as escolhas
tradutórias e verificar o avanço nos Estudos da Tradução a partir
dos paratextos presentes em L’Enfant de la plantation (1953 e 2013).
A análise se baseia no modelo descritivo de tradução literária
desenvolvido por José Lambert e Hendrik Van Gorp (2011),
permitindo descrever as traduções e examinar as estratégias em
diferentes aspectos, bem como nas reflexões de Genette (2009)
sobre os paratextos editoriais – elementos que contribuem para a
produção de sentido e orientam a recepção de uma obra. A partir
do modelo proposto por Lambert e Van Gorp, a presente análise
das traduções francesas se detém nas seguintes questões
preliminares propostas pelos autores: os elementos que compõem
capa, coleção, página de rosto e quarta capa.

UFPB, Programa de Pós-Graduação em Letras, Brasil, floramarina@hotmail.com


 UFPB, Universidade Federal da Paraíba, Brasil, praganamarta@yahoo.fr

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

A análise tem por finalidade verificar as implicações das


escolhas tradutórias em L’Enfant de la plantation. Busca-se, dessa
forma, contribuir para a reflexão sobre a produção de traduções de
obras literárias, mostrando a importância dos paratextos para a
contextualização de uma obra estrangeira.

2. Modelo descritivo de tradução literária

Para a realização da análise proposta, adotou-se o modelo de


descrição de tradução desenvolvido por José Lambert e Hendrik
Van Gorp, em 1985. O modelo prático elaborado pelos autores
objetiva uma análise textual que descreva e examine as estratégias
tradutórias. Segundo os pesquisadores, seu modelo proposto tem
como principal vantagem a possibilidade de ignorar as ideias
tradicionais que se relacionam a “fidelidade” e “qualidade”
tradutória, ideias essas que priorizam o texto-fonte.
O esquema para a descrição de tradução (Quadro 1)
apresentado pelos autores se divide em: dados preliminares;
macronível; micronível; e contexto sistêmico. Sendo que cada um
deles é subdividido em aspectos mais específicos.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Quadro 1 – Reprodução do esquema sintetizado para a descrição de tradução.


UM ESQUEMA
3. Micronível (isto é, mudanças nos níveis
SINTETIZADO PARA A
fônico, gráfico, microssintático, léxico-
DESCRIÇÃO DE TRADUÇÃO
semântico, estilístico, elocucionário e modal):
- Seleção de palavras;
1. Dados preliminares: - Padrões gramaticais dominantes e
- Título e página-título (por estruturas literárias formais (metro,
exemplo, presença ou ausência da rima);
indicação de gênero, nome do autor, - Formas de reprodução da fala (direta,
nome do tradutor); indireta, fala indireta livre);
- Metatextos (na página-título; no - Narrativa, perspectiva e ponto de
prefácio; nas notas de rodapé – no vista;
texto ou separado); - Modalidade (passiva ou ativa;
- Estratégia geral (tradução parcial expressão de incerteza; ambiguidade);
ou completa). - Níveis de linguagem (socioleto;
Esses dados preliminares deveriam arcaico/popular/dialeto; jargão).
levar a hipóteses para análise Esses dados sobre estratégias
posterior tanto no nível microestruturais deveriam levar a um
macroestrutural como no nível confronto renovado com as estratégias
microestrutural. macroestruturais e, em seguida, a
considerações em termos do contexto
2. Macronível: sistemático mais amplo.
- Divisão do texto (em capítulos,
atos e cenas, estrofes); 4. Contexto sistêmico:
- Título dos capítulos, apresentação - Oposições entre micro e macroníveis
dos atos e cenas; e entre texto e teoria (normas,
- Relação entre os tipos de narrativa, modelos);
diálogos, descrição; entre diálogo e - Relações intertextuais (outras
monólogo, voz solo e coro; traduções e obras “criativas”);
- Estrutura narrativa interna (enredo - Relações intersistêmicas (por
episódico, final aberto); intriga exemplo, estruturas de gênero, códigos
dramática (prólogo, exposição, estilísticos).
clímax, conclusão, epílogo);
estrutura poética (por exemplo,
contraste entre
quartetos e tercetos em um soneto);
- Comentário autoral, instruções de
palco.
Esses dados macroestruturais
devem levar a hipóteses sobre as
estratégias microestruturais.
Fonte: LAMBERT; VAN GORP, 2011, p. 222-223.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Pelo fato de o esquema ser abrangente e apresentar várias


relações específicas, Lambert e Van Gorp afirmam que “a tarefa do
estudioso será estabelecer quais relações são as mais importantes”
(ibid., p. 211). Dessa forma, entre os dados preliminares, elegemos o
título e página-título como elementos de análise. O título e a página
título abrangem aspectos como: capa, coleção, página de rosto e
quarta capa.

2.1 Dados preliminares

A análise dos dados preliminares aqui proposta se baseia na


reflexão de Genette (2009) sobre o paratexto editorial. Inicialmente,
resume paratexto como “aquilo por meio de que um texto se torna
livro e se propõe como tal a seus leitores” (Genette, 2009, p. 9),
afirmando que o texto
raramente se apresenta em estado nu, sem o
esforço e o acompanhamento de certo número
de produções, verbais ou não, como um nome
de autor, um título, um prefácio, ilustrações,
que nunca sabemos se devemos ou não
considerar parte dele, mas que em todo caso o
cercam e o prolongam, exatamente para
apresentá-lo, no sentido habitual do verbo, mas
também em seu sentido mais forte: para torná-
lo presente, para garantir sua presença no mundo,
sua “recepção” e seu consumo, sob a forma,
pelo menos hoje, de um livro (ibid., p. 9, grifos
no original).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Genette (2009) afirma que o paratexto é uma “zona


indecisa” entre o interior (o texto) e o exterior (o discurso do mundo
sobre o texto) e faz referência a Philippe Lejeune, que nomeia os
paratextos como “franja do texto impresso que, na realidade,
comanda toda a leitura”. Genette conclui,

[...] com efeito, essa franja, sempre carregando


um comentário autoral, ou mais ou menos
legitimada pelo autor, constitui entre o texto e
o extratexto uma zona não apenas de transição,
mas também de transação: lugar privilegiado de
uma pragmática e de uma estratégia, de uma
ação sobre o público, a serviço, bem ou mal
compreendido e acabado, de uma melhor
acolhida do texto e de uma leitura mais
pertinente – mais pertinente, entenda-se, aos
olhos do autor e de seus aliados (ibid., p. 10,
grifo no original).

O autor afirma que o paratexto desdobra-se em duas


modalidades: peritexto e epitexto. O peritexto consiste nos
elementos paratextuais que se situam em torno do texto, no espaço
do mesmo volume, como o título, o prefácio, as notas de rodapé
etc. Já o epitexto concerne aos elementos paratextuais que se
encontram a certa distância do texto, que se situam na parte externa
do livro, um suporte midiático (conversas, entrevistas etc.) ou uma
comunicação privada (correspondências, diários etc.).
Genette (2009) também aborda a questão de uma obra se
encontrar inserida em uma coleção e comenta que essa inserção tem

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

seus objetivos e significados, inclusive a ausência de coleção,


segundo o autor, é sentida pelo público. Segundo o autor,

[o] selo de coleção, mesmo sob essa forma


muda, é, pois, uma duplicação do selo editorial,
que indica imediatamente ao potencial leitor
que tipo ou que gênero de obra tem a sua
frente: literatura francesa ou estrangeira,
vanguarda ou tradição, ficção ou ensaio,
história ou filosofia etc. (ibid., p. 26).

A capa apresenta algumas informações que são praticamente


obrigatórias, como: nome do autor, título da obra e selo do editor.
Além dessas informações, outras podem aparecer, entre elas:
indicação genérica, nome do tradutor, nome do prefaciador, retrato
do autor, ilustração específica, endereço do editor, preço de venda.
Na página de rosto, encontram-se geralmente título, nome do autor,
nome do tradutor e da editora, podendo conter indicação genérica,
epígrafe e dedicatória (GENETTE, 2009).
A quarta capa é um lugar considerado estratégico e seu
conteúdo pode variar. Pode apresentar o nome do autor e do título
da obra novamente, uma nota biográfica, um release, uma relação de
obras de uma coleção, citações da imprensa, comentários elogiosos,
preço de venda, entre outros (GENETTE, 2009).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

3. Análise dos dados preliminares

A partir do modelo de descrição de tradução proposto por


Lambert e Van Gorp (2011), e das reflexões de Genette (2009),
serão considerados para fins de análise: a capa, a coleção, a página
de rosto e a quarta capa das duas traduções do romance de José Lins
do Rego.

3.1 Capa

A capa da primeira tradução de J. W. Reims (1953) é


considerada clássica, já que contém as informações que, segundo
Genette (2009), são praticamente obrigatórias (nome do autor, título
e editora) e outras informações que, segundo o autor, podem
constar na capa. Em destaque, na metade superior da capa, aparece
o título da obra em uma fonte maior.
Já a capa da segunda tradução (2013), de Paula Anacaona,
apresenta, além das informações consideradas praticamente
obrigatórias, uma ilustração que preenche grande parte do espaço
disponível. A importância dada à ilustração não é perceptível apenas
no espaço disponibilizado para a mesma, mas também na opção
feita pela xilogravura, arte presente na literatura de cordel2

2
O Centre de Recherches Latino-Américaines da Université de Poitiers, na França
(http://www.mshs.univ-poitiers.fr/crla/), torna conhecida, através de colóquios e
jornadas de estudos internacionais, essa manifestação literária e popular brasileira.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

nordestina e na representação de um ambiente rural, oferecendo


indícios sobre o enredo da obra.

Figura 1: Capas de L’Enfant de la plantation 1953 e 2013

As demais informações presentes na capa das obras se


apresentam no Quadro 2.

Quadro 2 – Levantamento de informações presentes nas duas capas


Informação L'Enfant de la L'Enfant de la
plantation (1953) plantation (2013)
Coleção Collection Rive Ouest Collection Terra
Autor José Lins do Rego José Lins do Rego
Título L'Enfant de la plantation L'Enfant de la plantation
Indicação genérica Roman -
Prefácio Présenté par Blaise Cendrars -
Editora Deux Rives Anacaona

A capa da edição de 1953 não fornece qualquer informação


sobre a origem estrangeira da obra, nem mesmo indica que se trata
de uma tradução. A única informação que dá um caráter estrangeiro
à obra diz respeito ao nome do autor.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Como dito anteriormente, a capa da edição de 2013 fornece,


a partir da ilustração, um caráter estrangeiro à obra, precisando
ainda, para os que conhecem a xilogravura e a literatura de cordel, a
origem nordestina e rural do romance. Como na primeira edição,
outra informação presente na capa que dá um caráter estrangeiro à
obra é o nome do autor. Diferentemente da primeira tradução, não
há indicação sobre a autoria do prefácio na capa, e o mesmo é
assinado pela própria Paula Anacaona.
É importante salientar que a tradução de 2013 foi publicada
por uma pequena casa editorial independente e que a tradutora Paula
Anacaona acumula as funções de editora, tradutora e prefaciadora
da obra; diferentemente da edição de 1953, com a tradução de J. W.
Reims e prefácio de Blaise Cendrars3 – prefácio que serve como
indício de que a Deux Rives era uma editora provavelmente de porte
maior que a Anacaona.

3.2 Coleção

A primeira tradução francesa de Menino de engenho se encontra


inserida na Collection Rive Ouest. Nas pesquisas feitas para
contextualização da editora, não foram encontradas informações
sobre o perfil dessa coleção. Porém, na quarta capa encontra-se uma
lista das obras da mesma coleção, provenientes de outros países e

3Novelista e poeta suíço, segundo relata Carelli (1994), possui uma história particular com
o Brasil, país reconhecido por ele como sua segunda pátria e onde permaneceu durante a
década de 1920.

23
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

literaturas (Quadro 3).Os títulos não apresentam ligação específica


com o Brasil; apenas sugerem que se trata de uma coleção de obras
estrangeiras contemporâneas. A forma como opera a coleção ao
introduzir a obra traduzida em um novo contexto, induzindo a sua
recepção, é objeto de análise de Adriana Pagano (2001) em seu
estudo exemplar sobre traduções e coleções de editoras no contexto
editorial do Brasil e da Argentina entre 1930 e 1950. Para a autora
(2001, p. 179-181) as coleções organizam a recepção da obra,
estabelecendo critérios de classificação que expressam a posição
ideológica de determinado grupo (os editores) e filtram as escolhas
feitas em meio a obras da literatura mundial a serem inseridas no
repertório nacional. Apoiando-se em Stewart (1993), a pesquisadora
afirma que a coleção é um espaço a-histórico que organiza e
categoriza. A diversidade dos autores que são apresentados em
conjunto, reunidos em uma mesma categoria, revela esse efeito
descontextualizante e a-historicizante que supõe a constituição das
coleções, como ilustra o caso aqui analisado da Collection Rive Ouest.

Quadro 3 – Levantamento das obras presentes na Collection Rive Ouest


Collection Rive Ouest
Autor Obra Título original País de origem
Dolorès, Roman Apropos of Dolores
H.-G. Wells (1946) (1938) Inglaterra
Le coin du Rêve, Un The Happy Turning
songe (1946) (1945)
Les Enfants dans la Babes in the
Forêt, Roman (1947) Darkling Wood
(1940)
Emil Ludwig Quatuor, Roman Quartet (1938) Alemanha
(1946)

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Diana Diana, Roman (1946) Diana: A Strange Estados Unidos


Frederics Autobiography da América
(1939)
Hart Stilwell Ville frontière, Roman Border City (1945) Estados Unidos
(1947) da América
Christina Vent d’amour, Roman For Love Alone Austrália
Stead (1947) (1944)
D.-H. Lady Chatterley, Lady Chatterley's Inglaterra
Lawrence Roman (1947) Lover (1928)
Marg. Anne de Cleves, 4ͤ My Lady of Cleves: Inglaterra
Campbell- femme de Henri A Novel of Henry
Barnes VIII (1947) VIII and Anne of
Cleves (1946)
Harry Douce Marys, Roman Tell Me About Estados Unidos
Reasoner (1950) Women (1946) da América
Gore Vidal Un garçon près de la The City and the Estados Unidos
rivière, Roman (1949) Pillar (1948) da América

A segunda edição, por sua vez, encontra-se inserida na


Collection Terra e evidencia o aspecto estrangeiro da coleção ao
manter o termo “Terra” em português (língua estrangeira para o
público-alvo da tradução), além de situar a obra em um contexto
rural a partir da ilustração da capa. Além disso, na Collection Terra
estão inseridas outras obras brasileiras de temática rural, tais como:
Nossos ossos, de Marcelino Freire (Nos os, 2014), O quinze, de Rachel
de Queiroz (La terre de la soif, 2014) e Bernarda Soledade – A tigre do
sertão, de Raimundo Carrero (Bernarda Soledade, Tigresse du sertão,
2014).

3.3 Página de rosto

Na página de rosto da primeira edição, repetem-se as


informações constantes na capa sobre a coleção, o autor, o título, a
indicação genérica, o prefácio e a editora. Os elementos

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

acrescentados informam o caráter estrangeiro da obra: o título


original Menino de Engenho abaixo do título traduzido e a indicação
Traduit par J. W. Reims.
No entanto, o que chama a atenção nessa edição, tanto na
capa como na página de rosto, é o fato de:
 Na capa: encontra-se a informação sobre o prefaciador,
Blaise Cendrars;
 Na página de rosto: repete-se a informação sobre o
prefaciador, cujo nome se encontra acima da indicação do
tradutor.

O reconhecimento da autoridade do poeta suíço no campo


literário francês e a sua relação com o Brasil conferem validade ou
crédito ao que ele afirma sobre a obra. Ao prefaciar o romance,
Cendrars empresta-lhe prestígio, em uma operação de transferência
de capital simbólico4 conforme descrito por Bourdieu (2002). Já a
informação sobre o tradutor se restringe às letras iniciais e ao
sobrenome, J. W. Reims.
A tradução de J. W. Reims (1953) não informa o texto de
partida utilizado, mas tudo indica que tenha sido uma tradução

4 Conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu para se referir ao crédito ou prestígio


atribuído a determinado agente (indivíduo, instituição etc.) ou prática social (a literatura
sendo uma delas) e que se traduz em vantagem efetiva na disputa pelo reconhecimento e
pela legitimação no espaço social.

26
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

direta do português, tendo em vista o acesso de Blaise Cendrars à


obra5.
Na página de rosto da segunda edição é mantida a ilustração
presente na capa, repetem-se as informações sobre o autor, o título
e a editora, mas suprime-se a informação sobre a coleção. A
informação acrescentada torna claro o caráter estrangeiro da obra e
indica o texto de partida utilizado para a tradução, por meio da
menção: Traduit du brésilien par Paula Anacaona.

Figura 2: Páginas de rosto de L’Enfant de la plantation 1953 e 2013

5 Conforme o prefácio da primeira tradução francesa (1953) escrito por Blaise Cendrars:
“Menino de Engenho é de 1932. Doidinho de 1933. Banguê de 1934. Em 1935, Paulo
Prado me dando, em Paris, o Ciclo da Cana-de-Açúcar de José Lins do Rego disse-me:
[...].” (tradução nossa de: “Menino de Engenho est de 1932. Doidinho de 1933. Banguê de
1934. En 1935, Paulo Prado en me donnant à Paris O Ciclo de Cana de Assucar de José
Lins do Rego me déclarait: [...]”).

27
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

3.4 Quarta capa

O espaço da quarta capa é tido como um lugar estratégico


do peritexto editorial. Na primeira edição, encontram-se nesse
espaço informações sobre as obras editadas pela Deux Rives,
presentes em outras coleções da editora (Éditions de luxe e Collection
«De quoi vivaient-ils?»), e as demais obras inseridas na Collection Rive
Ouest. Na parte inferior dessa mesma zona, encontra-se um
endereço, provavelmente da editora. Segundo Genette (2009), entre
as informações presentes na capa de uma obra, poderia figurar o
endereço do editor/casa editorial; no presente caso, a informação
em questão é disponibilizada na quarta capa.
Na quarta capa da segunda edição, encontra-se um trecho
do prefácio de Blaise Cendrars “La voix du sang” presente na primeira
tradução, retomando-se a estratégia de transferência do prestígio de
Cendrars, considerado uma autoridade no sistema literário francês.
O texto escrito por Cendrars e com referências ao Brasil (“Todo o
Brasil está nesse livro transparente”6) atesta o caráter estrangeiro da
obra, marcando-a como uma tradução. Além do texto, a quarta capa
apresenta uma ilustração que, à semelhança da capa, trata da obra
revelando o contexto rural ao qual faz referência. Outra informação
presente nessa zona é o preço de venda, localizado no canto inferior
esquerdo, próximo ao código de barras e ao endereço eletrônico da
editora.

6 Cujo título em francês é “Tout le Brésil est dans ce livre transparent.”

28
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Figura 3: Quartas capas de L’Enfant de la plantation 1953 e 2013

A partir da capa e da quarta capa da primeira edição, é


possível depreender a apresentação sóbria e mais clássica da obra,
direcionada a um público restrito7. A quarta capa não apresenta
informação sobre a obra em si, optando por contextualizá-la em
relação aos títulos publicados na mesma coleção, bem como às
outras coleções da editora, conforme já mencionado, em uma
estratégia de orientar a recepção no contexto de chegada e de
divulgar o acervo para o público. Sobre a capa e a quarta capa da
segunda tradução percebe-se a agradabilidade visual, se comparada
com a primeira edição, mais sóbria. Ao apresentar as ilustrações em
xilogravuras, a tradução de 2013 busca, segundo a tradutora, “fazer
a Revolução da Literatura”, e comenta:
[...] Na França, os livros são muito feios, muito
clássicos e se as pessoas agora vão comprar e-
book, é porque realmente o livro com um papel
vagabundo, com uma capa feia, não atrai.

7
Noção desenvolvida por P. Bourdieu para designar “o escritor, o artista e mesmo o
erudito, escrevem não apenas para um público, mas para um público de pares”
(BOURDIEU, 2007, p. 108). A noção de público restrito se contrapõe à de grande público.

29
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Penso que isso [ilustrar os livros] é uma


maneira de salvar o papel e também porque eu
constatei que todos os meus amigos não leem,
eu sou a única que lê [...] ideia era atrair um
público mais jovem, que pode ser seduzido
pelas imagens (AJALA, 2013, p. 41).

O quadro recapitulativo (Quadro 4) sintetiza os aspectos dos


dados preliminares, com o intuito de fornecer uma visão geral do
que foi analisado.

Quadro 4 – Quadro recapitulativo


Aspectos Deux Rives (1953) Anacaona (2013)
Ilustração na capa Não Sim
Coleção Rive Ouest Terra
Título L’Enfant de la plantation L’Enfant de la
plantation
Indicação genérica Sim (roman) Não
na capa
Nome do Sim (Blaise Cendrars) Não
prefaciador na capa
Menção à origem Nome do autor Nome do autor,
brasileira ou nome da coleção e
estrangeira na capa ilustração
Ligação explícita Não Sim
entre a coleção e o
Brasil
Quarta capa Obras editadas Trecho do
prefácio de Blaise
Cendrars
Página de rosto Coleção, autor, título, Autor, título e
indicação genérica, prefácio, indicação do
título original e indicação do tradutor
tradutor

O resultado dessa análise evidencia o caráter assumidamente


estrangeiro da segunda tradução (2013), por meio da ilustração na
capa (e página de rosto), da coleção com um termo em francês

30
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

(Collection) e outro em português (Terra). A coleção também reúne


outras obras brasileiras e rurais, e não apenas estrangeiras, como é o
caso da Collection Rive Ouest, na qual a primeira tradução (1953) está
inserida.

4. Conclusão

A partir das reflexões de Genette (2009), e feita análise dos


dados preliminares, é possível confirmar a importância dos
paratextos para a contextualização de uma obra traduzida. Como
observado, as escolhas presentes na segunda tradução (2013), além
de revelarem o caráter estrangeiro por meio da ilustração e do nome
da coleção com um termo em língua estrangeira, contextualizam o
ambiente do enredo por meio de elementos presentes na ilustração.
Considerando o avanço nos Estudos da Tradução, também,
verificou-se que o período de sessenta anos que separa uma
tradução da outra é significativo para a produção e apresentação da
obra. O modo como a tradução em 1953 é produzida e apresentada
– menos estrangeira, sóbria e sem ilustração – contrasta com a
tradução de 2013, assumidamente estrangeira e informativa;
possibilitando ao leitor uma contextualização em um coup d'œil.
Por meio da análise descritiva é possível refletir sobre as
escolhas nas traduções e o significado delas na produção e inserção
de uma obra estrangeira em determinado país. As escolhas

31
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

tradutórias podem revelar a relação existente entre os países


envolvidos nessa troca cultural.
Referências bibliográficas

AJALA, Flora Marina Figueiredo. Menino de engenho (José Lins do Rego)


na França: um estudo descritivo-comparativo de duas traduções.
João Pessoa, 2013. 69 f. Monografia (Bacharelado em Tradução) –
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal
da Paraíba.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas: introdução,


organização e seleção Sergio Miceli. 6. ed. São Paulo: Perspectiva,
2007.

______. Les conditions sociales de la circulation internationale des


idées. In : Actes de la recherche en sciences sociales, nº 145, p. 3-8, 2002.
Disponível: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/a
rticle/arss_0335-5322_2002_num_145_1_2793. Acesso em: 27 jul.
2013.

CARELLI, Mario. Culturas cruzadas: intercâmbios culturais entre


França e Brasil. Tradução de Nícia Adan Bonatti. Campinas:
Papirus, 1994.

CENDRARS, Blaise. La voix du sang. In: REGO, José Lins do.


L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims. Paris:
Deux-Rives, 1953.

GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro


Faleiros. São Paulo: Ateliê, 2009.

LAMBERT, José; VAN GORP, Hendrik. Sobre a descrição de


traduções. In: GUERINI, A.; TORRES, M.H.C.; COSTA, W.C.
(Org.) Literatura e tradução: textos selecionados de José Lambert. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2011. p. 208-223.

32
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

PAGANO, Adriana S. “An Item Called Books”: Translations and


Publishers’ Collections in the Editorial Booms in Brazil and
Argentina from 1930 to 1950. Crop, nº 6, 2001. p. 171-194.

REGO, José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: Adersen-


Editores, 1932.

______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Jeanne Worms-Reims.


Paris: Deux Rives, 1953.

______. L'Enfant de la plantation. Traduit par Paula Anacaona. Paris:


Éditions Anacaona, 2013.

33
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

RISCANDO MILAGRES: LÍDIO CORRÓ E A TRADUÇÃO


INTERSEMIÓTICA EM TENDA DOS MILAGRES

André BATISTA

Tenda dos Milagres, romance escrito pelo baiano Jorge


Amado, publicado em 1969, é uma narrativa basilar para se
compreender os principais componentes da produção literária
amadiana. O livro trata de discriminação, intolerância religiosa, mito
da democracia racial e sociedade de consumo, entre outras questões.
O romance é, segundo o próprio Jorge Amado, dentre os livros que
escreveu, o seu favorito, e Pedro Archanjo, personagem principal da
trama, aquele que mais se assemelha ao seu criador – apesar de ter
sido baseado também em outras figuras da vida real, como Manuel
Querino e Miguel de Santana.
No entanto, o título do romance está diretamente ligado a
outro – e também importante – personagem da narrativa: Lídio
Corró, o melhor amigo de Pedro Archanjo. A Tenda dos Milagres,
situada na Rua do Tabuão, nº 60, próximo ao Largo do Pelourinho,
era o ateliê onde Lídio Corró exercia seu ofício de artista plástico
cuja razão do nome está relacionada ao tipo de trabalho que ele
exercia – Lídio era riscador de milagres. Seu ofício se configurava da
seguinte forma: alguém que estivesse passando por um problema de
difícil solução – principalmente, casos de doença – fazia uma


UFBA, Instituto de Letras, Brasil, al.batista@hotmail.com

34
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

promessa para determinado santo e, alcançada a graça, ou milagre –


como também era conhecido o feito –, o devoto ia até o riscador,
narrava-lhe de que forma o milagre havia ocorrido e encomendava
uma pintura que o representasse.

Quem fez promessa a Nosso Senhor do


Bonfim, a Nossa Senhora das Candeias, a outro
santo qualquer, e foi atendido, mereceu graça,
benefício, vem às tendas dos riscadores de
milagres para lhes encomendar um quadro a ser
pendurado na igreja, em grato pagamento
(AMADO, 1969, p. 17).

Os quadros nos quais se riscam milagres são formalmente


conhecidos como tábuas votivas, compostos por uma pintura e uma
legenda. Segundo Klebson Oliveira,

dividem-se em três planos: no terço inferior, a


legenda com o nome do miraculado e as
circunstâncias e data em que ocorreu o milagre;
no terço médio, a figura do milagrado, em seu
quarto, geralmente deitado em posição pré-
mortuária; no plano superior, habitualmente à
esquerda, representa-se a divindade,
geralmente envolta em raios ou nuvens, que
propiciou a graça (OLIVEIRA, 2008, p. 47).

Cada obra servia de modelo para “riscos” posteriores, apesar


do seu compromisso de representar um acontecimento, os
riscadores, em muitos casos, exerciam sua imaginação de forma
consideravelmente livre, particularmente, quando quem

35
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

encomendava a obra não fornecia uma narrativa detalhada do


milagre, embora, em geral, seguissem, de alguma forma, um padrão
estabelecido. As tábuas votivas, por serem produzidas por artistas
oriundos das camadas mais populares e, geralmente, encomendadas
por fiéis pertencentes ao mesmo extrato social, não eram
consideradas propriamente manifestações artísticas. O material com
o qual os quadros eram confeccionados variava desde os de melhor
qualidade, como algum tipo de madeira nobre, até os mais
improvisados, feitos com pedaços de caixote. Normalmente, as
peças encomendadas não possuíam grandes dimensões, o que
tornava o custo acessível pra os devotos (SCARANO, 2004, p. 75).
A figura do riscador de milagres era bastante popular no
Brasil até a metade do século XX. O “risco” do milagre
(representação pictográfica de uma graça concedida por uma
divindade católica) é um dos vários tipos de ex-voto, isto é, um
“quadro, imagem, inscrição ou órgão de cera ou madeira etc. que se
oferece e se expõe numa igreja ou numa capela em comemoração a
um voto ou a promessa cumprida” (FERREIRA apud OLIVEIRA,
2008, p. 5). A variedade dos tipos de ex-voto é vasta, desde os mais
prováveis e “condizentes” com o sagrado até os mais insólitos. Além
dos quadros pintados pelos riscadores e das esculturas talhadas
pelos santeiros, existem “cartas, placas, objetos orgânicos, esculturas
trabalhadas em alta reprodutibilidade” (OLIVEIRA, 2009, p. 3). Em
inúmeras religiões, há uma relação “mercadológica” entre os fiéis e
as divindades, configurada em constantes barganhas pagas por meio

36
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

de orações, bênçãos, sacrifícios, milagres, penitências e graças. No


âmbito do catolicismo brasileiro, o ex-voto é uma dessas
importantes moedas de troca dessa relação. A principal distinção
entre o risco do milagre e os demais tipos de ex-votos é o fato de
que um “procura comunicar-se, informando determinada
ocorrência” e o outro “intenciona apenas uma reverência”
(VALLADARES apud OLIVEIRA, 2009, p. 4). Restam, no Brasil,
poucos riscadores de milagres, “a marca da evolução da história
econômica é clara. Hoje, concluímos que a fotografia veio sobrepor
à pintura” (OLIVEIRA, 2008, p. 6), talvez pela sua praticidade e
imediatismo, talvez pelo seu custo relativamente baixo, ou ainda,
por produzir uma representação mais documental e verossímil.
Atualmente, os tipos de ex-votos mais recorrentes são os
escultóricos, principalmente, aqueles que representam as partes
afetadas do corpo humano e para as quais a graça é pedida.
Dentre as diferentes formas de ex-votos, a pintura é a que
mais aproximava o devoto do objeto, no que diz respeito à sua
feitura. A exigência da existência de um relato – tão minucioso
quanto possível – do milagre fazia do asceta um contador de
histórias, além disso, a relevância que atribuía ao santo e ao milagre
era refletida na sua eloquência e na riqueza de detalhes para que o
riscador pudesse captar, sem falhas, o caráter do milagre. O
contador tornava-se, então, o autor de uma narrativa, construtor de
uma “verdade palpável” a partir de outra, de cunho metafísico,
supondo que o riscador, construtor de um terceiro discurso,

37
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

reproduziria aquela narrativa inicial, pois acreditava que essas


“verdades” fossem únicas.
O riscador de milagres era, portanto, responsável por recriar
uma narrativa oral em forma pictográfica, ou seja, por traduzir de
um sistema de signos (linguagem oral) para outro (pintura). A esse
tipo de transcriação, Roman Jakobson chamou de tradução
intersemiótica, definindo-a como a “interpretação dos signos verbais
por meio de sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON, 2000,
p. 65). Poder-se-ia supor, portanto, que o trabalho do riscador seria
captar a “essência” do relato e transpô-la para a tela.
Por ser uma tradução intersemiótica, transcriação, ou, ainda
segundo Jakobson, uma transmutação, o trabalho do riscador de
milagres é uma recriação, uma ressignificação da narrativa do
devoto. Trata-se de uma nova narrativa, um novo olhar, uma
construção a partir daquilo que já é uma construção – o relato do
milagre. Construção, porque tudo o que se tem no momento do
relato é a palavra de quem conta (única referência ao “fato”). Essa
construção, ou representação, é uma interpretação do
“acontecimento”, uma tradução do “fato” plasmada a partir de um
determinado ponto de vista, ideologicamente fundamentado,
interessado, permeado pelas idiossincrasias do contador, assim
como o que narra o milagre a Lídio Corró: “foi milagre de primeira,
seu Corró, aquilo não era uma onça, era um despropósito de bicho
sem entranhas, os olhos, acredite, uma iluminação” (AMADO, 1969
p. 102). O evento ganha ares de grandeza na voz do narrador, o que

38
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

justificaria a súplica, a relevância da intercessão do santo, conferindo


grandeza ao milagre, a gratidão do devoto e sua relação de débito
com o santo e, como consequência, a responsabilidade do riscador
em recontar, com seus traços, o feito da divindade, sem deixar de
incluir os detalhes mais significantes e ainda assegurar a qualidade
estética de que o milagre era digno.
A pintura ou “risco” do milagre é uma leitura e uma
interpretação do relato, sendo, portanto, uma releitura e reescritura
do “fato”, ou seja, uma nova construção, um novo texto, que tem
como referência inicial uma narrativa anterior. Para muitos, o fato
de a pintura ter como ponto de partida o relato pressupõe uma
dívida, uma obrigação de “fidelidade” ao milagre alcançado. Tal
pressuposto, porém, suscita alguns questionamentos, haja vista ser
o relato do milagre uma interpretação do “acontecimento”, a
construção de uma “verdade”, tecida a partir da perspectiva de, pelo
menos, um indivíduo, carregada de elementos do consciente e do
inconsciente desse sujeito que se somam ao contexto histórico e
cultural em que está imerso. Em outras palavras, uma leitura parcial
– leia-se parcial não como deficitária, mas como não absoluta ou
definitiva. Octavio Paz afirma que “a linguagem torna-se paisagem
e esta paisagem, por sua vez, é uma invenção, a metáfora de uma
nação ou de um indivíduo” (PAZ, 2009, p. 19). A “paisagem” que a
narrativa do milagre descreve revela não apenas o próprio milagre,
mas o contador e a comunidade do qual é parte e porta-voz. Ora, se
o relato do milagre é produto de uma leitura parcial, como

39
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

estabelecer uma relação de “fidelidade” entre a narrativa oral e o


“fato”? A “fidelidade”, portanto, não nos parece cabível.
Poder-se-ia argumentar que a “fidelidade” esperada estaria
entre a narrativa oral e o “risco” do milagre, sendo a narrativa o
texto “original” e o “risco”, sua tradução. Se o relato do milagre
consiste numa construção passível de questionamentos quanto à
“veracidade” ou “integralidade do fato”, desestrutura-se o conceito
de “originalidade”, como é visto tradicionalmente, pois nem o
“original” é puro, ou seja, “nenhum texto é inteiramente original,
porque a própria linguagem em sua essência já é uma tradução” (id.,
ibid., 2009, p. 13). Como vimos anteriormente, a representação
pictórica do milagre é uma leitura interpretativa do relato, ou seja,
uma reconstrução do acontecimento, uma ressignificação desse
milagre e, assim, outro texto. Portanto, ainda que seja uma tradução,
a pintura do milagre é uma obra original, pois, “todos os textos são
originais porque cada tradução é distinta. Cada tradução é, até certo
ponto, uma invenção e assim constitui um texto único” (id., ibid.,
2009, p. 15). Essa outra obra é, também, carregada de sensibilidade,
percepção, impulsos e ponderações do artista aliados a seu lugar de
fala. A obra de arte, além de se construir sobre os rastros da narrativa
de partida, relaciona-se com todo o repertório de histórias,
experiências afetivas, sociais, políticas, culturais, artísticas e
sensoriais do autor, afinal, “cada elemento se constitui a partir do
rastro dos outros elementos da cadeia ou do sistema” (DERRIDA
apud RODRIGUES, 2000, p. 198). Esses elementos se relacionam

40
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

“guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já


moldar com o elemento futuro” (id., ibid., 2000, p. 198). Deparamo-
nos, então com a impossibilidade de se estabelecer uma relação de
“fidelidade” ou de pura e simples repetição do que foi narrado, tal
qual pretendia um dos clientes de Lídio Corró quando ordenou:
“Quero um quadro com tudo que contei, tudo, sem tirar nem pôr”
(AMADO, 1969, p. 102).
Essa impossibilidade pode ser explicada, também, pelo fato
de que o texto “original” não é um “objeto estável, ‘transportável’,
de contornos absolutamente claros, cujo conteúdo nós podemos
classificar completa e objetivamente” (ARROJO, 1986, p. 12).
Ainda a esse respeito, Rodrigues afirma que “o pressuposto da
equivalência [...] só teria lugar em um sistema em que houvesse um
centro, um ponto fixo” (RODRIGUES, 2000, p. 200), e o milagre,
a cada vez que contado oralmente, sofre algum grau de modificação,
não tendo, portanto, uma “essência” determinável, um significado
absoluto que possibilitasse uma correspondência linear entre as
diferentes formas de significação. A pesquisadora também defende
que “a tradução só poderia ser uma operação que transfere, ou
transporta significados, se houvesse a possibilidade do ‘significado
transcendental’ [...]” (id., ibid., 2000, p. 192).
No campo da tradução, incluindo-se a tradução
intersemiótica, a busca pela “fidelidade” é pauta de uma discussão
contínua, fundamentada numa hierarquia platônica entre o texto de
partida e a tradução. No caso do ofício de Lídio Corró, o milagre

41
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

estaria no nível do ideal, a “essência” do acontecimento, assim, o


relato oral seria a representação, a materialidade justa que nos é
acessível, desprovida de essência, porém, autorizada pela sua
“proximidade factual” com o acontecimento. O “risco” do milagre,
na condição de representação da narrativa oral, seria, portanto, um
simulacro, “imitação afastada no terceiro grau da verdade”
(PLATÃO, 2005, p. 374). A ficção amadiana confirma a crença de
que uma tradução deve ser subserviente, pois está sempre em débito
com o texto de partida. Esse é um pensamento corrente quando se
avalia uma tradução intersemiótica – ou “adaptação”, como é
comumente chamada. Temos, como exemplo, inúmeros filmes
baseados em romances os quais, por inúmeros fatores, são
considerados “infiéis” à obra que lhes deu origem, sendo,
consequentemente, tratados como inferiores. Em contrapartida,
Robert Stam acredita haver uma “interminável permutação de
textualidades, ao invés de ‘fidelidade’ de um texto posterior a um
modelo anterior” (STAM, 2006, p. 21).
O exemplo de Lídio Corró vai ao encontro dessa crença na
subserviência. Pelo seu trabalho, o milagre ganhava cores, luzes e
podia ser visto e sentido durante anos, por todos os que se
dispusessem a contemplar a sua obra de arte. O ofício do riscador
perpetuava o milagre, dava-lhe sobrevida. Lídio era criativo,
“riscando o milagre portentoso, [...] deixa[va] a imaginação correr”
(AMADO, 1969, p. 102), ignorando a relação de subserviência para
com o milagre,

42
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

[...] não pensa na grandeza da graça concedida,


na categoria do prodígio, do próprio quadro
decorrem seu sorriso e seu contentamento: da
luz obtida, das cores e da composição difícil,
com as figuras, a fuga dos cavalos, o santo e a
mata virgem (AMADO, 1969, p. 99).

No âmbito da lógica platônica, não conseguindo reproduzir


uma suposta integralidade do relato oral, essa nova criação artística
não se configura como cópia, “uma imagem dotada de semelhança”
(DELEUZE, 1974, p. 263), mas como um simulacro, “construído
sobre uma disparidade, uma diferença, ele interioriza uma
dissimilitude” (id., ibid., 1974, p. 263). O “risco” do milagre era um
simulacro sim. Mas não o simulacro platônico, relegado a um posto
inferior, em eterno débito com a “essência”. Ao invés disso, o
“risco” do milagre, como força de criação, “encerra uma potência
positiva” (id., ibid., 1974, p. 267).

Pelo menos das duas séries divergentes


interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser
designada como original, nenhuma como
cópia. Não basta nem mesmo invocar um
modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste
à vertigem do simulacro. Não há mais ponto de
vista privilegiado do que objeto comum a todos
os pontos de vista. Não há mais hierarquia
possível: nem segundo, nem terceiro [...]
(DELEUZE, 1974, p. 267).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Lídio não negava o acontecimento, mas subvertia o status quo


que submete o artista à mera reprodução, reconstruindo o milagre
conforme o sentia e o interpretava.

Não se pode dizer que a subversão do


platonismo consista apenas em virar a
pretensão do pretendente contra a fonte da
pretensão, o simulacro contra o modelo; o
fundamental de sua estratégia antiplatônica de
glorificação dos simulacros é abolir as noções
de original e derivado (MACHADO, 2009, p.
48).

Grande parte dos riscadores de milagres tinha a


preocupação de retratar o milagre seguindo à risca as palavras do
narrador, procurando incluir, no pequeno espaço do quadro, os
pormenores da obra divina, sem deixar de dar um lugar de destaque
à divindade que havia concedido a graça ao devoto, conforme
preconizava a cartilha do seu ofício. A razão de ser do “risco” não
era exaltar o perigo experimentado pelo fiel, nem sua recuperação
ou sua sobrevivência. O “risco” do milagre existia em função do
santo e de sua glória, assim, a representação pictórica da façanha só
deveria concorrer para a exaltação da divindade. Pode-se imaginar
que não restava margem a “desvios” ou interpretações que
parecessem muito particulares, pois os riscadores estavam não
apenas comprometidos com os fiéis que lhe encomendavam a obra,
mas também presos por um laço de reverência que os atava ao santo.
No entanto, Lídio Corró não se prendia a essas convenções. Para

44
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

ele, sua arte não tinha apenas valor de culto. Era a expressão da sua
alma à qual mantinha uma relação de intimidade, era a sua obra, “na
meia-luz do fim da tarde, ao roxo clarão crepuscular, mestre Corró,
sincero e comovido, admira o trabalho terminado: uma beleza”
(AMADO, 1969, p. 104). Seu encantamento pelo próprio trabalho
chegava ao desejo de mantê-lo na Tenda dos Milagres, tal o
embevecimento provocado pelo quadro.

Por vezes, ao término de um milagre riscado na


arte e no capricho, mestre Lídio Corró
experimenta o desejo de desistir da
remuneração, de reter o quadro, de não
entregá-lo, deixando-o na parede da oficina. Os
mais bonitos, pelo menos (AMADO, 1969, p.
107).

Lídio Corró tinha reverência pelos santos, conforme


atestado em sua pintura e nas legendas que compunham o quadro.
Entretanto, não condicionava seu trabalho à grandeza do santo. Seu
esmero em destacar a figura da divindade no quadro poderia
depender de quão tocante ou dramática julgasse ter sido a proeza:
“Vou caprichar no santo, ele fez por merecer” (id., ibid., 1969, p.
103). Para Lídio, por vezes, aquilo que o encantava no relato do
milagre não era a tensão ou o perigo de morte que rondava a cena.
Tampouco era o clamor do devoto ou a importância do santo. Lídio
se desviava de uma ordem estabelecida ao dar maior proeminência
a elementos que normalmente estariam em segundo plano em

45
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

relação ao santo, demonstrado quando da confecção da tela que


trata do Senhor do Bonfim afugentando a onça:

Volta Lídio Corró, porém, à sua figura predileta


e insubmissa: a onça rajada, inclemente,
gigantesca, os olhos fuzilantes, e a boca, ai a
boca a sorrir para o menino. O artista já fez
tudo para apagar esse sorriso, essa ternura; deu
à onça sertaneja porte de tigre e ares de dragão.
É superior às suas forças, por mais feroz a
pinte, ela sorri; existe entre a fera e a criança um
pacto secreto, antigo conhecimento,
imemoriável amizade (AMADO, 1969, p. 104).

Na tela de Corró, a onça cresce, fulgura mais que o


resplendor do santo, torna-se a figura central do quadro,
diferentemente do relato. Ao invés de ameaçar o menino, constrói
uma cumplicidade entre os dois cujo pacto é denunciado pelo
sorriso da onça. O felino, que antes simbolizava o “mal”, agora, na
tela do riscador, faz resplandecer uma luz que é própria do “bem”,
sorri, terno, revelando a Lídio sua “imemoriável amizade” com a
pureza, personificada pela criança. A tela pintada por Lídio Corró
foge dos padrões, subverte a “lógica” vigente, desestrutura os
fundamentos de uma ordem, assim, essa é a força do simulacro.
Reconhece o santo, mas louva o animal, trazendo das profundezas
um “antigo conhecimento”, o milagre do pacto entre a criança e a
onça. É o simulacro que se recusa a ser recalcado, nega o triunfo da
cópia, insiste em emergir e escandalizar, fazer com que o mundo
experimente a descontinuidade.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

A arte na tela tem vida própria e não põe fim ao jogo de


interpretação da narrativa oral. O “risco” de Lídio é uma das muitas
leituras possíveis do mesmo milagre. Outros riscadores, que
pintassem a graça alcançada pelo fiel, fariam-no de maneiras
diversas, sendo que nenhum deles faria, necessariamente, melhor ou
pior que o outro. Seriam todos fiéis, não ao milagre, mas à sua
própria interpretação do milagre, à sua força criativa. O jogo
interpretativo não cessa, pois “os signos se encadeiam em uma rede
inesgotável, também infinita, não porque repousam em uma
semelhança sem limite, mas porque há uma hiância e abertura
irredutíveis” (FOUCAULT, 2009, p. 45). Tal abertura leva cada
intérprete a pontos cada vez mais distantes de um referencial, que
alguns chamariam de “origem” ou “essência”. O narrador interpreta
o milagre, o riscador interpreta o relato, o contemplador interpreta
o “risco” do milagre e o descreve a um ouvinte que, por sua vez, irá
interpretá-lo à sua maneira. Essa cadeia se estende em todas as
direções, ramifica-se, fragmenta-se, refrata-se, seus elos se
tangenciam e se afastam novamente, resultando, nas palavras de
Foucault, no fato de que “nada há de absolutamente primeiro a
interpretar, pois no fundo tudo já é interpretação; cada signo é nele
mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas interpretação
de outros signos” (id., ibid., 2009, p. 47). Criam-se, assim, novos
textos e diluem-se as possibilidades de “fidelidade à essência”, ao
“ponto primeiro”. Se um mesmo milagre fosse relatado a riscadores
diferentes, cada um dos quadros teria uma nova perspectiva do

47
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

evento e permitiria a adição de um número infinito de outras


interpretações e outras obras de arte. Cada obra seria, então, um
suplemento, “uma parte que se adiciona a um todo para ampliá-lo,
um aditamento, um acréscimo. Nesse sentido, é algo extra, não
essencial, acrescentando a algo que supostamente está completo”
(RODRIGUES, 2000, p. 208).
A arte do riscador se une à voz do narrador numa relação de
cumplicidade e troca, sendo que o primeiro fornece a matéria prima,
o texto de partida, o acontecimento, enquanto o último propicia sua
perpetuação, a continuidade e o alcance mais amplo. Jacques
Derrida constrói a metáfora da relação matrimonial: “uma tradução
desposa o original quando os dois fragmentos unidos, tão diferentes
quanto possível, completam-se para formar uma língua maior que
muda todos os dois” (DERRIDA apud RODRIGUES 2000, p.
208). O milagre se transforma, ganha cores, ares e texturas que só a
arte lhe pode dar. A tela, por sua vez, não é só um receptáculo de
tinta e traços, é a materialidade da graça, a manifestação da crença
de um povo, credo que os ajuda a persistir na árdua tarefa de
sobreviver. Dá-se, assim, a aliança entre o relato do milagre e a obra
de arte, em uma transformação mútua.
A maioria das telas de milagres não possuía a identificação
do autor, possivelmente em sinal de reverência à divindade, que,
para a comunidade, era o “autor” do milagre. “O milagreiro não tem
a preocupação de assiná-los ou colocar qualquer sinal que os
identifique, razão pela qual o fazedor de ex-votos dificilmente é

48
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

reconhecido por meio do seu trabalho” (CASTRO apud


OLIVEIRA, 2008, p. 54). Lídio Corró, no entanto, fazia questão de
assinar os quadros, marcando, assim, seu lugar de autor da obra de
arte. Ora, se o risco do milagre, mesmo sendo uma tradução, é um
novo texto, diferente da narrativa oral, realizado por outro
indivíduo, é perfeitamente coerente que se faça assinalar o lugar do
autor dessa nova obra. Sob o ponto de vista da tradição, o tradutor
é responsável por transportar uma carga de “significados”, fazendo
com que ela “chegue intacta ao seu destino [...] mas não deve
interferir nela, não deve interpretá-la” (ARROJO, 1986, p. 12).
Entretanto, não há “carga” que chegue “intacta”, as intenções do
autor do texto de partida não podem ser captadas, pois tudo o que
afirmamos ser a intenção do autor, nada mais é do que aquilo que
supomos ser sua intenção. O que cabe, então, ao tradutor, é a
interpretação do texto que lhe foi posto nas mãos, interpretação essa
que, como vimos anteriormente, está permeada de toda sorte de
elementos, que compõem o indivíduo/intérprete. De posse dessa
interpretação, o intérprete/tradutor constrói seu próprio texto, uma
atividade que envolve escolhas, posicionamentos, autonomia,
opinião, tornando-se, a partir daí, o autor de uma nova obra. Lídio
Corró, talvez diferentemente de outros riscadores de milagres (os
mais tradicionalistas, talvez) assume de bom grado sua condição de
autor (mesmo o sendo de maneira multifacetada e refratada) e se
utiliza dela para liberar sua expressividade e força criativa, rejeita a
função de mero transportador de uma “essência” semântica, talvez

49
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

por saber ou intuir que não há uma “essência” a ser captada e


transposta. De fato, o que há são transformações operadas
principalmente pelo artista, na condição de autor, e nas relações com
o mundo que o cerca.
À luz dos Estudos Contemporâneos de Tradução, o ofício
do riscador de milagres, de Lídio Corró, configura a tradução de
relatos de feitos de milagres para a pintura, que, em circunstância
alguma, coloca-se em débito com a narrativa oral tomada como
texto de partida. O “risco” do milagre é um texto novo, construído
nas limitações que sua natureza pictórica lhe impõe, pois a oralidade
dispõe de recursos dos quais a pintura não dispõe – o que é evidente,
tratando-se de diferentes linguagens, duas formas de expressão, sob
determinado ponto de vista, antagônicas. Por outro lado, a pintura
consegue atingir o contemplador de uma forma singular,
despertando sensações que apenas essa forma de arte é capaz, e, no
caso do risco do milagre, dando à prática votiva uma dimensão
particular e uma forma de apreciação que vai além do universo
religioso. Desconstrói-se, por essa razão, qualquer ilusão de
“fidelidade ao original”, ou seja, ao relato oral. Porém há, ainda,
outros motivos pelos quais a expectativa de fidelidade cai por terra:
a “fidelidade” implica pureza, mas o texto de partida já se mostra
“impuro”, construído a partir de rastros de outros textos, de saberes
diversos, de um contexto histórico-cultural específico. Portanto sua
“originalidade”, assim como toda aura e carga valorativa, que esse
termo possa trazer, são questionáveis. Ademais, mesmo que o artista

50
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

esteja, a priori, a serviço da religião, nem sempre assume o


sentimento de débito que o fiel tem para com a divindade. A
tradução é uma obra nova, “única”, apesar de também ser
construída sobre rastros de outros textos – inclusive e obviamente
do texto de partida. Finalmente, não há no texto de partida, um
significado absoluto que possa ser depreendido, decodificado e
transposto para outra linguagem. A construção desse novo texto, a
tradução para outra linguagem de signos, depende de um exercício
interpretativo, contínuo e mutável. Essa perpetuidade interpretativa
mantém o texto de partida no jogo das linguagens e das
interpretações. O “risco” na tela de Lídio Corró e de outros
riscadores é a sobrevida, a perpetuação, a multiplicação do milagre.

Referências bibliográficas

AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. Rio de Janeiro: Record, 1969.


338 p.

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: A teoria na prática. São


Paulo: Ática, 1986.

DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In: ___. A lógica do sentido.


Tradução de Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva; EDUSP,
1974. p. 259-271. (Estudos)

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. Tradução de Inês


Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009.

51
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro


Blikstaein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2000.

MACHADO, Roberto. Platão e o método da divisão. In: ___.


Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

OLIVEIRA, José Cláudio Alves de. Santuário do Senhor do Bonfim, sala


de milagres e seus ex-votos: Patrimônio cultural, fé e informação.
Salvador: FSBA, 2008.

______. Ex-votos do Brasil: Religiosidade, patrimônio cultura,


memória social. Salvador: FSBA, 2012.

OLIVEIRA, Klebson. As tábuas votivas: Imagem e texto no mesmo


endereço. Rio de Janeiro, 2009.

PAZ, Octavio. Tradução: literatura e literaridade Tradução de


Doralice Alves de Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009.

PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo,


Sapienza: 2005. (Livro X)

RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença. São Paulo:


Editora Unesp, 2000.

SCARANO, Julita. Fé e milagre. São Paulo: Edusp, 2004.

STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à


intertextualidade. Florianópolis: UFSC, 2006.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

A TRADUÇÃO POLÍTICA DE LANGSTON HUGHES

Paula CAMPOS

James Mercer Langston Hughes nasceu em 1902 e faleceu


em 1967 e pôde testemunhar momentos históricos importantes na
vida social, política e cultural dos afrodescendentes nos Estados
Unidos da primeira metade do século XX. Como a história das
sociedades escravocratas nos mostra, mesmo após a abolição da
escravatura, os africanos que foram escravizados e seus
descendentes não tiveram direito à cidadania estadunidense. É
nesse contexto histórico que Langston Hughes nasce e, neste
mesmo momento, alguns movimentos na luta pelos direitos civis
surgem.
Em 1910, surge um movimento político chamado “New
Negro” (Novo Negro) que, em sua origem, remetia aos novos
africanos escravizados recém-chegados aos Estados Unidos. No
início do século XX, entretanto, significou uma resistência potente
contra a opressão, a favor do reconhecimento dos direitos humanos
básicos aos afrodescendentes.
Outro movimento foi o da “Associação Nacional para o
Desenvolvimento dos Afrodescendentes” que, em 1917, promoveu
um protesto contra as terríveis condições de vida às quais os negros

 UFBA, Instituto de Letras, Brasil, paulacampos83@yahoo.com.br

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

eram expostos naquele momento. Esse protesto ficou conhecido


como The Silent March (Março Silencioso)1, que foi uma caminhada a
partir do Harlem para o centro de Manhattan.
Alguns anos depois, nos anos de 1920, surgiu outro
movimento dos afrodescendentes norte-americanos, chamado
Harlem Renaissance, e o seu diferencial em relação aos movimentos
políticos anteriores, foi ter sido um movimento de caráter artístico-
intelectual do “Novo Negro”. Envolto nessa atmosfera sócio-
histórica, Hughes surge como escritor promissor, mas já mostrando
indícios de uma performance política aguçada.
Ainda muito jovem, aos 17 anos, junto a outros escritores
da época, idealizara este movimento político e cultural – o Harlem
Renaissance – que durou de 1919 até 1935. De acordo com David
Lewis, podemos marcar o início do movimento em 1919 com a
publicação de If we must die, poema de Claude McKay, e podemos
marcar seu final em 1935, quando houve o The Harlem Riot (O motim
do Harlem)2, em 19 de março.
Langston Hughes também foi tradutor e utilizava-se dessa
função de forma endereçada, de forma política. Ele via a tradução
como um meio de espraiar seus textos literários e de outros
escritores, como forma de compartilhar as experiências da diáspora
negra nos Estados Unidos, como também compartilhar as políticas
efetuadas na luta pela igualdade de direitos.

1 Tradução minha.
2 Tradução minha.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Diversos pensadores e filósofos renomados na nossa


sociedade ocidental teorizaram sobre a tradução. A grande maioria
viu a tradução como uma função menor, como uma profissão não
grata, pois, no pensamento conservador, a tradução traía o
“original” e este perdia seu valor, já que haveria mais perdas do que
ganhos.
Um grande pensador do século passado, Walter Benjamin,
escreveu, em 1923, um ensaio que se tornou um marco dentro da
teoria literária e da teoria da tradução, pois, mesmo timidamente,
reivindicava o valor da tradução como a grande responsável pela
“sobrevivência” da obra traduzida, ou seja, de “corruptora” da obra
literária, ela se torna a “salvadora”, já que é por causa da tradução
que o texto vive mais e em outras culturas.
Muitos vieram depois, tanto para corroborar e suplementar
essa ideia, quanto para colocar-se contra. Mas a ideia que trago
comigo, de linha benjaminiana, é da tradução como a responsável
pela sobrevivência da obra e da nova vida que ela ganha na nova
cultura de que passa a fazer parte.
Digo isso também, pois tendo ou não contato com esses
textos, Hughes agiu pensando a tradução como responsável pela
vida e pela sobrevida da obra literária em outras culturas. Não é por
acaso que traduziu seus textos e de outros colegas afro-norte-
americanos para outras línguas, como traduziu obras literárias de
autores afrodescendentes de diversas nacionalidades para a língua
Inglesa.

55
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Além da sobrevivência da obra por mais tempo do que


talvez vivesse se tivesse ficado em sua cultura de partida, o poder
que a tradução de determinados textos possui dentro de uma
sociedade é imenso, inclusive, esse poder foi utilizado durante
séculos para criar estereótipos e perpetuar preconceitos. Uma vez
que pensamos que a tradução é direcionada para um determinado
público leitor, percebemos mais claramente as relações de poder
que perpassam a tradução. Ela pode formar identidades culturais,
criar determinadas representações de povos e culturas, além de
ajudar a construir a subjetividade desses leitores.
Venuti (2002, p. 299) discute que, nos países hegemônicos,
a tradução modela imagens de seus Outros subordinados, que
podem variar entre os polos do narcisismo e da autocrítica,
confirmando ou interrogando os valores domésticos dominantes,
reforçando ou revendo os estereótipos étnicos, os cânones
literários, os padrões de mercado e as políticas estrangeiras às quais
outra cultura possa estar sujeita. Nos países em desenvolvimento a
tradução modela imagens de seus Outros hegemônicos e deles
próprios que podem tanto clamar por submissão, colaboração, ou
resistência, que podem assimilar os valores estrangeiros dominantes
com a aprovação ou aquiescência, ou revê-los criticamente para
criar autoimagens domésticas mais oposicionistas (nacionalismos,
fundamentalismos).
Langston Hughes vê a tradução como potência de
resistência, como mais uma forma de resistir ao esmagamento

56
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

geopolítico social. A tradução como um gesto político, que podia


(pode) remarcar os territórios, apagar e escrever por cima uma nova
imagem. É um poder simbólico, que muitos países hegemônicos
utilizaram durante séculos para fins diversos, mas, em seu maior
propósito, subalternizar a cultura do Outro.
Esse poder simbólico foi utilizado pelas empresas coloniais
com o objetivo de recalcar até o quase apagamento das culturas e
das línguas locais a fim de destruir subjetivamente aqueles sujeitos
que foram colonizados. Um dos grandes pensadores da diferença é
Homi Bhabha, que traz questões interessantes sobre tradução
cultural e o papel potente que figuras com identidade “híbrida” têm
dentro de sociedades sob o julgo de uma hegemonia branca.
Seus pensamentos se coadunam com a própria figura de
Langston Hughes e seus escritos, pois ele trabalha com a ideia da
potência dos sujeitos que ocupam a posição de “entre-lugar”.
Hughes é esse sujeito híbrido, do “entre-lugar”, pois mesmo sendo
“americano” nascido nesse espaço geográfico, não tinha direitos
iguais aos outros americanos brancos e daí vem sua potência.
Ele é potente, pois se constrói em meio a duas vivências, e
passa a agir nas fronteiras, friccionando as relações de poder,
rasurando os espaços que antes eram “naturalmente” ocupados pela
ideia hierarquizante de matriz europeia. Podemos inclusive
perceber essas questões claramente no poema abaixo, escrito por
Langston Hughes.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Eu, também, canto a América

Eu, também, canto a América


Eu sou o irmão mais escuro.
Eles me mandam comer na cozinha
Quando a visita chega,
Mas eu gargalho,
E como bem,
E cresço forte
Amanhã,
Eu comerei à mesa
Quando as visitas vierem.
Ninguém ousará
Dizer para mim,
“Coma na cozinha”,
Então.

Além disso,
Eles verão o quão lindo eu sou
E se envergonharão-

Eu, também, canto a América.3

A atenção de Bhaba se dirige justamente a esses sujeitos e


às formas como eles se construíram e se empoderaram. O teórico
também busca verificar quais as estratégias de representações que
utilizaram para se inserirem nessa comunidade como sujeitos e
como produtores artísticos e culturais. Além dos meios que
desenvolveram para se infiltrarem e rasuraram as redes
hegemônicas de representações.
Neste poema, podemos perceber estratégias como a
reversão de certos valores: o primeiro é a ideia de cidadania que era

3
Tradução minha.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

negada aos descendentes dos africanos (fato que perdurou até 1968,
quando da eclosão dos Movimentos de Direitos Civis, nos Estados
Unidos). O poeta reivindica o direito de sujeito nascido naquele
local geográfico de participar de sua política e de ter direitos que a
cidadania oferecia. Reivindica o direito de cantar, de louvar a
“América”, pois, mesmo sua manifestação cultural não sendo a
central (a instituída), como nascido naquele território, ele tinha o
direito de pertencer, de ser considerado irmão pelos cidadãos
brancos.
Também, reivindicava que suas formas culturais e
representativas deixassem de ser marginalizadas a fim de
participarem do jogo com o centro. Isso fica claro quando,
metaforicamente, demonstra que suas manifestações, sejam quais
fossem, deviam ceder lugar para aqueles que já estavam
“originalmente”, anteriormente e “naturalmente” ocupando um
determinado lugar; pois quando as visitas chegavam, ele deveria se
esconder e “comer na cozinha”. Porém, quando ele ri, quando
gargalha a respeito dessa situação, ele descobre um meio ou uma
forma de burlar aquela configuração, aquelas representações.
Ele diz que se fortalece e que, um dia, todo aquele arranjo
sociorracial e os estereótipos em torno daqueles sujeitos iriam se
transformar e, por isso, diz que, em breve, ele “comerá à mesa”, ou
seja, fará parte de uma configuração política, social e artística a que
anteriormente não pertencia, e ninguém ousará dizer que não
poderá ocupar aquele espaço.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Além da vergonha pelas atrocidades cometidas contra os


afrodescendentes, eles descobririam sua beleza, a beleza do Outro, a
beleza que era forçadamente recalcada naquela sociedade. Além
dessa resposta a esse arranjo sociorracial ao qual ele estava inserido
nos EUA, Hughes dá uma resposta direta a um dos grandes poetas
norte-americanos: Walt Whitiman, que é considerado uma das
grandes vozes nacionais.
O poema I Hear America Singing4, de Whitiman, trata de uma
ideia de América, de nacionalismo, da qual os negros não faziam
parte. Apesar de ser sabido que Whitman foi um defensor da
abolição da escravatura e de colocar em seus poemas sujeitos que
antes não eram citados, como pobres, pessoas do campo e mesmo
os afrodescendentes, essa América que cantava essa voz em busca
de sua “nacionalidade”, por uma voz independente das vozes
europeias, não incluíam os descendentes dos africanos.
Por isso, Hughes dá uma resposta bastante direta,
reivindicando seu direito de cantar a América, de fazer parte da
América, visto que ele havia nascido nesse território. Contudo,
mesmo sendo um cidadão estadunidense, não possuía direitos civis,
como os outros. Destarte, reclama o seu direito de ser “irmão”, e
ser o irmão mais escuro, como diz no poema.
Ele cria estratégias para reconfigurar aquelas representações
a que estavam submetidos, por meio de sua agência cultural,
introduz o “novo” no mundo. Utilizo, como expressão, o título de

4 Eu escuto o canto da América (Tradução minha).

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

um dos capítulos do livro O local da cultura, de Bhabha, “Como o


novo entra no mundo”. O intuito de Hughes era que esses escritos
de autores afrodescendentes pudessem alcançar o maior número de
leitores possível e, assim, as ideias que circulavam naquele momento
histórico pudessem ser compartilhadas com outras nações que
também participaram da diáspora africana.
O meu maior desafio no processo de tradução dos poemas
de Langston Hughes é a possibilidade de perder sua força política
ou que essa voz potente fique sufocada pela minha voz. Contudo,
a minha maior aliada é a possibilidade, ou as possibilidades, que a
tradução cultural me oferece no momento em que possibilita a
redemarcação de posições, o movimento dos signos centrais,
propiciando novas significações e ampliando as possibilidades de
representações e de discursos.
Esse contradiscurso da tradução cultural junto ao próprio
posicionamento não canônico (canônico como sinônimo de forma,
molde europeu) de Hughes, possibilita a ideia de que as diferenças
de gênero, etnia, história e geografia não sejam impedimento para
que essa tentativa de sobrevivência e vivência textual seja feita. A
tradução cultural tira da redoma os ideais de supremacia cultural, de
raça, gênero e etnia, permitindo um fluxo contínuo de
transformações. Ela reescreve a própria história da história da
tradução.
Escolho a mesma ferramenta (a tradução) que outrora havia
sido utilizada para reforçar estereótipos negativos sob determinados

61
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

povos e que espalhara discursos ideológicos de exclusão, mas que


agora utilizo para espalhar contradiscursos como os de Langston
Hughes. O autor/tradutor/intelectual lutou contra estereótipos
negativos em relação aos povos da diáspora africana e contra a
violência com que esses povos foram excluídos de qualquer forma
de existir, seja política, social ou culturalmente.
E é inspirada por Hughes, que enxergava a tradução como
uma forma de sobrevivência de seus textos e como uma ação
política, que sigo no propósito de continuar um trabalho feito por
ele durante anos e que teve tanta reverberação ao ponto de encantar
de forma avassaladora, uma jovem latino-americana, nos anos 2000,
fenotipicamente branca e que supostamente não seria afetada pelos
seus escritos.

Referências bibliográficas

BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG,


1998.

BRAZILLER. G. The Langston Hughes Reader. New York: Ninth


Printing, 1958.

DELEUZE, G. Post-scriptum sobre a sociedade de controle. In:


Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

DERRIDA, J. A estrutura, o signo e jogo no discurso das ciências


humanas. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Editora
Perspectiva,1995.

62
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud e Mark – Theareum Philosoficum. São


Paulo: Princípio Editora, 1997.

GILROY, P. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001.

VENUTI, L. Globalização. In: Escândalos da tradução: por uma ética


da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Luciléia Marcelino
Villela, Marileide Esqueda e Valéria Brando. Bauru: Edusc, 2002.

63
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

LITERATURAS NÃO CANÔNICAS E A TRADUÇÃO DE


ANTOLOGIAS DE CONTOS BRASILEIROS

Janaína Araújo COUTINHO

1. Introdução

O presente artigo intenciona discutir algumas relações entre


a literatura não canônica brasileira traduzida para a língua francesa,
tendo como corpus a obra Je suis favela (2011), buscando compreender
a relevância desse processo para as trocas culturais entre os países
envolvidos. Assim sendo, discutiremos os efeitos da tradução de
antologias de autores alocados fora do eixo sacralizado e suas
implicações para a formação da identidade da literatura brasileira
contemporânea por meio do gênero conto.
Desde cedo, a literatura se apresentou como veículo capaz
de transpor as barreiras históricas e geográficas, fazendo com que
as especificidades culturais dos povos pudessem interagir entre si.
Criada para ser a concretização da oralidade, a mesma foi utilizada
de acordo com as necessidades de cada época e, dessa forma,
perpassou os campos da moralidade (literatura pedagogizante de
Charles Perrault), do registro documental histórico, como também
serviu de apoio para o ensino de línguas. Por vezes, era concebida
como leitura despretensiosa, isto é, aquela em que se busca o prazer

UFPB, Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes, Brasil.


janaina.a.coutinho@gmail.com

64
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

tão somente pelo ato de ler.


Para que fosse possível ultrapassar barreiras linguísticas, foi
necessário utilizar o ato de traduzir que, como a própria literatura,
também tem sua gênese situada em tempos passados. De início,
tradutores experientes se dedicavam à tradução literal, privilegiando-
se o texto puro, ou seja, o conjunto de palavras e suas relações.
Porém, viu-se que tal escolha se punha insuficiente, uma vez que era
necessário levar em consideração o que vinha atrelado ao texto
escrito, ou seja, a cultura a que o mesmo pertencia. Desse modo,
emergiram-se os estudos sociológicos da tradução defendidos por
Pierre Bourdieu e reproduzidos por Heilbron e Sapiro (2009), nos
quais a mesma é compreendida por meio das peculiaridades
culturais capazes de demarcar as especificidades próprias de cada
nação, relacionando dialeticamente com o campo e a cultura de
chegada.
Partilhando dessa nova abordagem, o presente artigo
também visita outros teóricos, a exemplo de André Lefevere (2007),
quando este enriquece os debates acerca da tradução, pondo-a na
categoria de texto reescrito, ou seja, de texto original recriado em
novo contexto, permitindo-lhe ser visto de modo distanciado do
texto base. Outra contribuição relevante de Lefereve (2007) é o
modo como são concebidas as antologias, sejam elas de contos ou
de poesias, e como as mesmas podem formar a identidade literária
dos países envolvidos.
Acerca do assunto proposto, indagamo-nos: Qual é a

65
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

imagem do Brasil composta via literatura contemporânea traduzida


e escrita por autores não canônicos presentes na obra Je suis favela
(2011)? Vejamos o que traz o presente estudo.

2. Literatura e tradução sociológica: um encontro necessário

Ao estarmos diante de um texto literário, colocamo-nos em


contato, direta ou indiretamente, também e, sobretudo, com
culturas, aspectos sociais e políticos, desse modo, acabam por
ocupar a posição de formadores de identidades nacionais, regionais
ou mesmo individuais. Refletindo a esse respeito, e tendo a literatura
como foco, Antoine Compagnon, em seu livro O demônio da teoria:
literatura e senso comum (2012), argumenta que a literatura, seja oral ou
escrita, exerce, sobre os homens, certo poder capaz de sensibilizá-
los para situações singulares, tornando-os quase dependentes dessa
matéria.

[...] há um conhecimento no mundo e dos


homens propiciado pela experiência literária
(talvez não apenas por ela, mas principalmente
por ela) um conhecimento que só (ou quase só)
a experiência literária nos proporciona.
Seríamos capazes de paixão se nunca
tivéssemos lido uma história de amor, se nunca
nos houvessem contado uma única história de
amor? (COMPAGNON, 2012, p. 35)

De acordo com esse teórico, à literatura, é delegada a função


de uma instituição habilitada a coferir àqueles que dela utilizam

66
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

ensinamentos capazes de despertar conhecimentos que ora


poderiam permanecer adormecidos. Ressalta-se ainda que à
literatura é permitido, no caso de registro escrito, ser vista como
fonte documental para estudo nas mais diversas áreas do
conhecimento, uma vez que toda produção literária é construída
dentro de uma realidade histórica específica.
Quando imaginada como produto da criatividade e nascida
para o deleite daqueles que a querem ingênua, a literatura pode, por
vezes, ir ao encontro desse pensamento e assumir postos relevantes
dentro da coletividade, pois, “a literatura pode estar de acordo com
a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o
movimento, mas também precedê-lo” (COMPAGNON, 2012, p.
37). Desse modo, a literatura se constituiu como forma
independente de expressão artística capaz de servir como pano de
fundo para o estudo de inúmeras abordagens e disciplinas.
A tradução, como a literatura, desde sua gênese, vem
recebendo olhares diferenciados, resultantes dos inúmeros estudos
que se aprofundam com as necessidades surgidas com a passar do
tempo. De início, ela se deu via perspectiva morfológica de texto, ou
seja, era realizada palavra a palavra, excluindo assim a necessidade
de compreender o contexto de produção do texto literário base e
suas relações com o campo de recepção.
Indo de encontro a essa abordagem, os estudos tradutórios
viram emergir a preocupação com todo o processo que envolve o
ato de verter um texto escrito para outra língua, pois é sabido que a

67
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

linguagem literária se apresenta como um campo movediço, em que


há a possibilidade de algumas interpretações e também o
reconhecimento que em cada palavra traduzida podem ser
encontradas especificidades capazes de tornar singulares as culturas
que envolvem o texto de partida.
Desse modo, a perspectiva sociológica da tradução ganha
força na academia devido a sua abrangência no que concerne olhar
com mais acuidade todos os sujeitos que compõem os processos
tradutórios como também os campos de produção e de recepção.
Sob essa ótica e baseados na teoria de Pierre Bordieu, Heilbron e
Sapiro (2009) afirmam que

uma abordagem sociológica da tradução deve


levar em conta diversos aspectos das condições
de circulação transnacional dos bens culturais,
a saber, a estrutura dos espaços das trocas
culturais internacionais, os tipos de exigências
– políticas e econômicas – que pesam sobre as
trocas, os agentes da intermediação e os
processos de importação e de recepção no país
de destino (HEILBRON; SAPIRO, 2009, p.
16).

Por meio dessa abordagem, é notório que a tradução se


configura como um relevante modo de permitir os intercâmbios
culturais como também a necessidade de se levar em conta o campo
de recepção, pois é ele que, na maioria das vezes, guiará o processo
tradutório escolhido por todos os agentes envolvidos na
materialização do livro, sejam eles o editor, o autor, o tradutor, entre

68
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

outros. Assim sendo, além de conhecimentos linguísticos


aprofundados, o tradutor deverá ser sensível às culturas envolvidas,
principalmente, àquela que receberá essa literatura estrangeira.
Nesse momento o tradutor poderá optar por fazer do texto
traduzido um texto independente, no qual ele, o tradutor, passa a
ocupar a função de autor. Esse novo produto, moldado às regras do
sistema de recepção, será testemunha de processos domesticadores, em
que características inerentes ao campo de partida podem ser
modificadas ou mesmo apagadas, deixando o texto inteligível para a
cultura de chegada. Porém, se há o apagamento de características
culturais que possivelmente motivaram a tradução, o que fará a
cultura receptora consumir essa tradução? Indo ao encontro do
pensamento de Venutti (2002), as especificidades culturais impressas
nas literaturas traduzidas poderão ser intercambiadas,
exclusivamente, por meio da linguagem, assim, mostrando-se
necessário que “adaptações” sejam feitas, provando que esse
processo se dá tão somente por meio de relações de força.
Compreender a efetivação dessas trocas culturais e do
reconhecimento autoral intermediados pela tradução de textos
escritos é compreender a independência da obra traduzida quando
lida e apreendida pelo público receptor. Segundo Helenice
Rodrigues (2010), na efetivação do ato tradutório, ou seja, do ato

de reapropriação de um texto, ocorrem


transformações e deformações. Assim, quando
um livro, uma teoria, uma tendência estética,

69
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

ultrapassam as fronteiras (espaciais, temporais,


e virtuais) entre espaços culturais distintos, sua
significação, subentendida por seu contexto
(intelectual e histórico), modifica-se pelo
simples fato da defasagem (em geral, temporal)
da transferência. Logo os objetos de análise são
os mais distintos possíveis: os processos de
seleção, de mediação, de recepção, de
mestiçagem, de tradução, de migração, de
intercâmbio etc. (RODRIGUES, 2010, p. 208).

De acordo com o mencionado, a ideia que defende a


tradução como mediadora nas trocas entre línguas diferentes é
corroborada por Rodrigues (2010) que, de modo claro, explicita a
necessidade de observar a obra traduzida como um novo produto,
que passou por processos de adaptação no novo contexto de
receptação que, por sua vez, possui histórico social e político
diferentes do lugar de partida do texto dito original.
Ainda tratando do texto traduzido visto como
independente, André Lefevere, em seu livro Tradução, Reescritura e
Manipulação da Fama Literária (2007), afirma que a tradução se
constitui no ato de reescrever algo sob a ótica do tradutor ou do
sistema que o cerca. Desse modo, o agente que verte culturas é
coautor e responsável por fazer com que escritos que ora estiveram
adormecidos sejam consumidos por leitores intitulados de “não-
profissionais” (LEFEVERE, 2007, p. 13), ou seja, leitores que não
estão na academia ou que não são estudiosos da literatura, mas que
fazem com que a produção e a venda do livro se perpetue.
Ainda segundo Lefevere (2007), os reescritores ainda são

70
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

responsáveis por fazer com que cânones consagrados continuem


inalterados devido à aceitação e corroboração por parte dos leitores
profissionais e de instituições que continuam a ter a percepção que
a literatura se divide em alta e baixa literatura, resultando em alta e
em baixa reescritura (op. cit., p. 15).
O que é notório no campo da reescritura é que seu consumo
por parte dos leitores não-profissionais é muito mais expressivo que
o consumo do texto base, ao qual vemos atreladas questões como o
não acesso ao sistema linguístico da cultura de partida como
também, quando se trata de literatura mais antiga, o não acesso à
obra em si, por ela estar, talvez, esgotada ou por estar escrita em um
sistema não mais usual. Além de ser responsável pelas trocas
culturais, a reescritura colabora ainda para a composição da
identidade literária do país de partida perante aqueles que
consomem essa literatura traduzida, seja ela contemporânea ou não.

No passado, assim como no presente,


reescritores criaram imagens de um escritor, de
uma obra, de um período, de um gênero e, às
vezes, de toda uma literatura. Essas imagens
existiam ao lado das originais com as quais elas
competiam, mas as imagens sempre tenderam
a alcançar mais pessoas do que o original
correspondente e, assim, certamente o fazem
hoje (LEFEVERE, 2007, p. 18-19).

Confirmando a assertiva de Lefevere (2007), as reescrituras


continuam sendo mecanismos de formação de imagens
representativas e, seguindo esse mesmo caminho, vê-se que as

71
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

literaturas não canônicas vão lentamente ganhando espaço com o


intuito de atualizar e alargar essa imagem literária que ora se
consolidou tanto nos cânones nacionais como também
internacionais e que, um dia, por escolhas desconhecidas, ficaram
relegadas a poucos leitores que buscavam, fora da sacralidade
acadêmica, por literaturas que se aproximassem com suas
experiências de mundo, fazendo-os quase parte integrante da
narrativa.

3. A Tradução de literaturas não canônicas e a coletânea Je suis


favela

Como vimos acima, a literatura e, por conseguinte, a


tradução como reescritura, divide-se historicamente em alta e baixa,
ou seja, em canônica e não canônica. Mas o que, então, configura
uma literatura como canônica ou não canônica? Quem, dentro do
processo de produção literária, consagra as escrituras e seus autores?
De início, faz-se necessário reforçar que traduzir pressupõe relações
de poder entre as nações envolvidas, sejam essas relações políticas,
econômicas ou culturais. Nesse processo, cada país e cada língua
possuem créditos e reconhecimento internacional que interferem
diretamente nas escolhas do material a ser vertido para outro idioma,
como também na forma como essa inserção cultural se dará. De
acordo com Heilbron e Sapiro (2009), cada nação, devido a sua
relação com o campo político e econômico, ocupa um espaço
específico no capital literário internacional, intituladas de hiper-central

72
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

(inglês), central (francês) e periférica (português). Desse modo, a


escolha de textos para compor o hall das literaturas canônicas
depende também dessa relação com o campo literário internacional
e como as literaturas específicas de cada nação são produzidas,
segundo as regras de aceitação dentro e fora do campo de origem.
De acordo com o exposto, as literaturas são assim nomeadas
de acordo com fatores externos aos textos e a seus autores, a
exemplo dos mecenatos – pessoas que arcavam financeiramente
com a produção do livro –, da aceitação em centros de difusão
literária internacional como Paris, que, segundo Casanova (2002),
constituiu-se como centro literário consagrador, como também o
recebimento de prêmios nacionais e internacionais que conferem ao
autor reconhecimento e exposição perante os leitores profissionais
ou não.
Canonizar, de acordo com Otte (1999), é um termo que se
origina na igreja que, buscando universalizar pessoas e ações,
formulou uma lista, o cânon, servindo-se de referência para
pesquisas, reconhecimento e respeito perante os outros. Desse
modo,

sancionar, consagrar, canonizar, todos esses


termos têm sua origem no âmbito clerical e
apontam para uma das preocupações principais
da Igreja, ou seja, a de subtrair determinados
objetos e personagens do mundo profano para
universalizá-los no espaço e eternizá-los no
tempo, de torná-los imortais. As diversas
Academias Nacionais de Letras parecem ter se

73
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

inspirado nos processos clericais de


canonização (OTTE, 1999, p. 12-13).

Assim, como afirmou Otte (1999), as academias se


apropriaram do termo religioso para formular sua própria lista de
imortais literários, compondo o panorama que continua a ser
perpetuado nas instituições de ensino. Porém, apesar de haver
normas que vão da estilística textual até a forma como são
abordados os temas, inúmeros autores e suas obras ficam relegados
ao conhecimento de uma parte da população que se dedica a dar voz
a essa literatura. Vale ressaltar que esse movimento em torno do
reconhecimento não se refere a uma questão valorativa da escrita,
por se configurar inferior ao molde sacralizado, mas porque ainda
não conseguiu ser reconhecida como representante da literatura
nacional. Dessa forma, muitas das literaturas não canônicas estão
sendo descobertas e inseridas lentamente na academia, como forma
de dar voz às minorias que, por algum motivo, ficam relegadas a
contextos específicos de produção.
Outra possibilidade que emerge lentamente no campo da
produção do livro, visando a conferir o reconhecimento que essas
literaturas não sacralizadas buscam receber, está sendo percebida
por meio de intercâmbios culturais, por meio da tradução que,
interessada em ampliar e renovar seus moldes de atuação, dedica-se
a apresentar ao público estrangeiro uma imagem diferenciada
daquela já sedimentada da cultura de partida. Assim sendo, vê-se a
necessidade de alargar o cânone em busca de atualizá-lo e,

74
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

sobretudo, de aproximá-lo daqueles leitores não-profissionais,


alterando, dessa maneira, as características que compõem a
identidade literária em questão, tanto para aqueles de mesma
nacionalidade como para os de nacionalidade outras. A esse
propósito, Venuti (2002) afirma que

a tradução exerce um poder enorme na


construção de representações de culturas
estrangeiras. A seleção de textos estrangeiros e
o desenvolvimento de estratégias de tradução
podem estabelecer cânones peculiarmente
domésticos para literaturas estrangeiras,
cânones que se amoldam a valores estéticos
domésticos, revelando assim admissões e
exclusões, centros e periferias que se
distanciam daqueles existentes na língua
estrangeira (VENUTI, 2002, p. 130).

Ciente desse processo dependente, no qual as relações de


poder presentes na tradução influenciarão nas escolhas feitas e,
assim, na constituição das representações identitárias por meio da
literatura, vê-se nas literaturas não canônicas o caminho, como dito,
de permitir que vozes ora abafadas sejam ouvidas e analisadas como
fonte fértil de dados sociais que cercam o contexto de produção.
Outro dado relevante no processo de
tradução/representação é a constituição de coletâneas ou antologias
de literaturas não canônicas, pois, como afirma Venuti (2002), as
relações de trocas culturais, quando ligadas à tradução, pressupõem
escolhas, sejam elas ideológicas ou políticas. Desse modo, caberá ao

75
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

projeto de tradução selecionar os textos, sejam poemas ou contos,


que representarão, por meio da escrita, a cultura estrangeira em
questão. Em seu capítulo Antologia – Antologização da África (2007),
Lefereve expõe claramente o quanto essa representação é
dependente do mercado editorial, o qual impõe um número
específico de páginas, reduzindo e impedindo uma real
representação literária.
Pensadas para versarem em torno de um mesmo tema, as
coletâneas se tornaram o produto preterido de editores que buscam
se inserir no campo do livro e por isso se debruçam sobre traduções
de autores já conhecidos pelo público, conferindo assim certa
porcentagem de acerto na relação aceitabilidade/retorno financeiro.
Desse modo, quando se trata de tradução de literaturas não
canônicas, as coletâneas ganham públicos que normalmente se
distanciam da realidade narrada pelos autores, fato que se confirma
em Lefevere (2007).

Uma grande parte do público de poesia


africana hoje é branca. As primeiras tentativas
de canonizar poetas africanos e projetar uma
imagem da poesia africana não foram
realizadas por negros africanos, mas por
brancos europeus e americanos. Uma vez que
o público da poesia africana é relativamente
pequeno, os editores tentarão fazer o maior
número possível de leitores potenciais
comprarem as antologias que eles publicam. O
resultado é competição, mas também
diversidade de seleção, ao menos desde 1973,
quando novos editores tentaram entrar no

76
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

mercado oferecendo seleções de novos poemas


para seu público potencial (LEFEVERE, 2007,
p. 202).

Assim sendo, fica explícito que o projeto de tradução, além


de formador de identidades, é também o mecanismo pelo qual se
afirma o caráter prático/financeiro da indústria do livro, fazendo
com que escolhas sejam realizadas também pela via econômica.
Esse mesmo movimento das relações entre as
representações, as literaturas não canônicas e a competição
mercadológica é também verificado em traduções de autores
brasileiros que, buscando se dedicar a temas pertinentes ao
cotidiano das minorias, produzem obras que vão ganhando espaço
além das fronteiras geográficas.
Um exemplo é a obra Je suis favela, uma coletânea de contos
brasileiros, impressa em 2011 pela editora francesa Anacaona,
composta por autores não-canônicos e que tem como mote a favela
brasileira e suas particularidades discutidas pela ótica da
contemporaneidade. Violência doméstica, abuso sexual infantil,
tiroteios entre traficantes e polícia, população refém da situação
socioeconômica são temáticas que ensejam os vinte e dois contos.
O interesse em levar à França a escrita de autores brasileiros
atuais marginalizados1 surge com a criação, em 2009, das Éditions
Anacaona, uma editora francesa independente, pertencente à Paula

1
Referimos-nos aos autores ainda desconhecidos do grande público e que por isso vivem
à margem das discussões em instituições responsáveis por disseminar a literatura.

77
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Anacaona, agente que atua nas funções de tradutora e editora,


escolhendo materiais que devam ser traduzidos e publicados com o
selo Anacaona. Voltada exclusivamente para a literatura brasileira ou,
como informa o endereço eletrônico da editora, “Une passerelle de
diffusion de la littérature brésilienne en France”, a editora se dedica a
publicar traduções de livros de autores pouco conhecidos do grande
público, ao lado de autores nordestinos consagrados como Rachel
de Queiroz e José Lins do Rego.
É interessante perceber no trabalho da Anacaona que alguns
textos brasileiros iniciaram seu contato com o grande público via
língua francesa, uma vez que obras como Je suis favela, foram
compostas para os leitores francófonos, remetendo-nos diretamente
ao estudo feito por Lefevere (2007) acerca da poesia africana. O que
queremos dizer é que se trata de uma reunião de contos feita para
ser publicada, primeiramente, em língua francesa, o que não implica
dizer que os textos originais não circularam antes em língua
portuguesa. Em 2012, as Éditions Anacaona lançam a tradução da
coletânea para o português, Eu sou favela, utilizando-se dos mesmos
recursos gráficos encontrados na versão francesa, tanto na capa
quanto no interior da obra.

78
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Figura 1: Publicação em 2011 Figura 2: Publicação em 2012

Como é possível observar, na capa, não há a indicação de se


tratar de uma tradução de obra brasileira. O que pode levar o leitor
a supor a origem do texto é o termo “favela”, que, historicamente
está atrelado à imagem do Brasil. Somente na folha de rosto se
encontra a referência a qual cultura pertence a obra: “Traduit du
brésilien par Paula Anacaona”. Aqui, verifica-se um dado interessante,
pois ao usar a palavra brésilien, a tradutora afasta qualquer
possibilidade de confusão linguística em relação aos portugueses.
Acerca dos autores da coletânea, ressalta-se que alguns deles
possuem certo histórico de produção de textos voltados à denúncia
das problemáticas sociais do país. Desse modo, destaca-se a
trajetória profissional do autor para que se busque compreender se
houve influências no processo tradutório ou não. Um dos escritores

79
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

é João Anzanello Carrascoza, professor do curso de Publicidade e


Propaganda da Universidade São Paulo.
Carrascoza se destaca também pelo considerável número de
obras publicadas, aproximadamente 40 livros, tanto de literatura
(gêneros conto e romance), como livros de publicidade. Alguns de
seus textos já foram traduzidos para o inglês, francês, sueco,
espanhol e italiano e, em 2012, esteve no Salon du Livre de Paris,
participando de debates sobre o conto No morro, com o apoio da
Fundação Biblioteca Nacional em conjunto com a Câmara Brasileira
do Livro.
Diante do exposto, interrogamo-nos o que faz uma editora
francesa dedicar seus serviços à literatura brasileira, em especial, à
literatura periférica brasileira? De acordo com o site da editora, no
qual é possível encontrar uma entrevista dada por Paula Anacaona
para o blog Estudos Lusófonos, da Universidade Paris IV, mostrando-
se adepta a leituras engajadas, que permitem ao leitor refletir sobre
problemas sociais e, a partir da leitura de Cidade de Deus, obra
indicada pelo autor brasileiro Paulo Lins, a tradutora começou a se
interessar pela literatura das minorias do Brasil, vertendo o romance
Manual prático do ódio2 para a língua francesa, publicando em Paris em
2009, ano da criação da Éditions Anacaona.
Diante das escolhas de publicação da editora em questão, na
qual é visto um bom número de obras que abordam a realidade da

2 Livro de autoria do romancista e contista paulista Férrez, que se dedica a escrever sobre
as minorias marginalizadas do Brasil. O título da tradução para o francês é Manuel pratique
de la haine.

80
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

periferia brasileira, estando afastadas do cânone literário, surge a


inquietação de compreender qual imagem da literatura
contemporânea brasileira está sendo construída nos países
francófonos. A esse respeito, Martins (2008) levanta questões acerca
do papel da patronagem nas escolhas feitas para a tradução e na
assimetria em trocas culturais quando envolvem a literatura
brasileira, pois,

além de pouco divulgada e consumida no


exterior, [a literatura] tem contribuído para
criar imagens e representações parciais e
estereotipadas na nossa cultura, diante dos
autores e temáticas comumente selecionados
para tradução e que contam, ainda, com o
reforço da mídia e do cinema. De modo geral,
os aspectos mais ressaltados têm sido, por um
lado, o exotismo, a sensualidade e a
religiosidade/misticismo e, de outro, a miséria
e a violência urbana (MARTINS, 2009, p. 39).

Compreende-se que a literatura auxilia na formação da


imagem cultural tanto dentro do país, quanto principalmente fora
dele. Porém, lançar esse olhar sobre a literatura contemporânea
engajada e não canônica se mostra uma ação um tanto equivocada,
uma vez que também é função da literatura levar os leitores/atores
a refletir sobre seu cotidiano, fazendo dela um meio pelo qual as
realidades abafadas sejam proferidas sem ressalvas, mesmo que
estejam sujeitas às regras de edição. É somente por meio das

81
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

traduções que nações menores e suas literaturas não sacralizadas


conseguirão ultrapassar as barreiras linguísticas, ganhando assim, a
possibilidade de ter seu número de leitores aumentado. Desse modo,
reconhece-se a relevância da dedicação despendida pela Anacaona
em dar ênfase aos escritos brasileiros que relatam o cotidiano difícil
de algumas localidades. Por esse olhar de denúncia engajada, a
literatura brasileira não canônica começa a ser reconhecida tanto
fora como também dentro de seu contexto de produção.

Referências bibliográficas

ANACAONA ÉDITIONS. Romans brésiliens. Disponible sur:


http://www.anacaona.fr/.

CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. Tradução de


Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum.


Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes
Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

LEVEFERE, André. Tradução, reescritura e manipulação da fama literária.


Tradução de Claudia Matos Seligmann. Bauru: EDUSC, 2007.

HEILBRON, Johan; SAPIRO, Gisèle. Por uma sociologia da


tradução: balanço e perspectivas. Tradução de Marta Pragana
Dantas. In: Graphos. João Pessoa. v. 11, n. 2, 2009. p. 13-28.

MARTINS, Márcia A. P. O papel da patronagem na difusão da


literatura brasileira: o Programa de Apoio à Tradução da Biblioteca
Nacional. In: GUERINI, Andréia; TORRES, Marie-Hélène

82
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Catherine; COSTA, Walter Carlos. Literatura traduzida e literatura


nacional. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 39-52.

OTTE, Georg. A obra de arte e a narrativa – Reflexões em torno


do cânone em Walter Benjamin. In: OTTE, Georg; OLIVEIRA,
Silvana Pessoa de. (Org.). Mosaico Crítico. Ensaios sobre literatura
contemporânea. Belo Horizonte: Autêntica, NELAM, 1999, p. 9-
15.

RODRIGUES, Helenice. Transferência de saberes: modalidades e


possibilidades. In: História: Questões & Debates, n. 53. Curitiba:
Editora UFPR, 2010. p. 203-225.

VENUTI, Lawrence. Escândalos da Tradução. Tradução de Laureano


Pelegrin, Lucinéia M. Villela, Marileide D. Esquerda e Valéria
Biondo. Bauru: EDUSC, 2002.

83
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

TRADUZIR LA DISPARITION DE GEORGES PEREC PARA O


PORTUGUÊS: ENTRETRADUZIR: ENTREDIZER O “E”
INTERDITADO EM O SUMIÇO

José Roberto Andrade FÉRES

1. Introdução

La Disparition, romance lipogramático de Georges Perec,


escrito em 1969, ainda inédito em língua portuguesa, eis o que ando
traduzindo, após ter feito duas dissertações de mestrado sobre ele,
ainda o estudo no doutorado. São 320 páginas sem nenhuma letra
“e”, a mais frequente da língua francesa, também a letra que retiro
da minha tradução. E o problema maior não é sequer a quantidade
de vezes que essa vogal aparece tanto em uma quanto na outra
língua, o pior – e o melhor – de tudo é que a tal narrativa é um relato
de nada mais, nada menos, que o sumiço do “e”. Tudo isso para
frisar que esse livro é, acima de tudo, “metatextual”, o que quer
dizer, nas palavras daquele que é ainda hoje – mesmo vivo apenas
em palavras – um dos maiores especialistas perecquianos, Bernard
Magné (1986, p. 77), “appartient au métatextuel tout énoncé qui,
dans un texte, apporte une information, dénotativement et/ou

 UFBA, Instituto de Letras, Brasil, zeferes@hotmail.com

84
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

connotativement, sur la scription du texte et/ou sur son écriture


et/ou sa lecture”1.
Mas como traduzir a metatextualidade de um texto como
esse? Como traduzir algo que aponta sem cessar para os próprios
tecer e tecido do texto, o próprio fazer da língua, sendo que as
línguas se diferem em seus fazeres e afazeres em potencial? Ainda
mais quando o que está em jogo – como se não bastasse – não são
duas línguas naturais, mas duas línguas que só se falam nos seus
mundos específicos de letras e seres de papel e tinta: o francês sem
“e”, ou melhor, o disparicionês2 de La Disparition e o sumiçol, o
português sem “e” dos nativos de O Sumiço, título que dou à minha
tradução (em andamento). Como traduzir La Disparition, um
romance metatextual por excelência? Essa é a pergunta cuja resposta
é a meta deste artigo, resposta que toma por ponto de partida uma
pista de outro livro do mesmo autor, 53 Jours: “la vérité que je
cherche n’est pas dans le livre, mais entre les livres [...] il faut lire entre
les livres comme on lit ‘entre les lignes’[...]”3 (PEREC, 2001, p. 93).
Ora, da mesma maneira que se deve ler “entre os livros”
quando certa “verdade” é buscada na obra de Perec, vejo-me
encorajado a traduzir entre os livros, tanto do autor quanto de outros,
haja vista, por exemplo, às intertextualidades. Aliás, fazem-se

1 Minha tradução: “pertence ao metatextual todo enunciado que, em um texto, traz uma
informação, denotativa e/ou conotativamente, sobre a scription [termo de Roland Barthes]
do texto e/ou sobre sua escrita e/ou sua leitura”.
2 Minha tradução do neologismo “disparitionnais”, de Warren Motte (1990), e inspiração

para o meu sumiçol.


3 Minha tradução: “a verdade que busco não está no livro, mas entre os livros [...] é preciso

ler entre os livros como se lê nas ‘entrelinhas’ [...]”.

85
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

igualmente necessários métodos de tradução nas entrelinhas e


estratégias que possibilitem traduzir-se entre as línguas – estranhas
e/ou estrangeiras que aparecem por lá –, ou até mesmo entre os
números – também metatextuais neste caso. Enfim, esse traduzir
entre, esse entretraduzir, que mal se deixa entrever até agora, por esta
porta entreaberta que é esta “Introdução”, adiante, ficará mais
esclarecido assim que feitas a leitura e a análise deste trecho de O
Sumiço que segue, entretradução minha de uma grande parte do
capítulo 4 de La Disparition (PEREC, 1969, p. 53-55).
4
No qual, malgrado um “Voo dos Borrachudos”,
não há alusão alguma a Nicolas
Rimski-Korsakov

Antoin Vagol sumiu no dia dos Finados.


Um tríduo atrás, ficara alarmado com um
artigo lido num jornal noturno:

Um indivíduo, mantido incógnito por


apavorar a todos com sua força obscura,
invadindo o arquivo do Comissariado Principal
da polícia, roubara uma prova contida numa
carta julgada capital, pois sua divulgação,
diziam, podia malsinar o trio dos porcos no
comando da Polícia Militar. Para sanar a
situação, urgia capturar o inoportuno
manuscrito, caso contrário, o dispachado
larápio não tardaria a passar aquilo às mãos
dum outro. Mas, após umas trinta vasculhadas
na sua casa, na qual, tudo fazia supor, havia
obumbrado a carta com a prova, não a
acharam.
Jogando a sua última cartada, um Capitão,
Romain Didot, junto com o adjunto favorito,

86
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Garamond, foi trocar umas palavras com


Dupin, o qual gozava dum notório faro fino.
— A priori — falou o Capitão —, pouco
nos importa caso um bandido bata asas a voar
com uma prova do tipo x ou y, composta por
algo, digamos, normal. Mas a afiliação do
borrão batido aqui implica uma borrada
tramada por um borrachudo importantíssimo...
— Borrão, borrada, borrachudos? —
intrigado, Dupin mostrava não achar a ligação
das palavras com a sua significação.
— Por favor, ignora o jargão — sorriu
Didot —: noutras palavras, supomos tratar
duma batida vital pra nós, cuja prolongação
arrisca abolir, tornar vão, tornar caduco todo o
cuidado com a organização: afraca nossas
forças na proporção dum oitavo, no mínimo!
— Bom, portanto — solicitou mais
informação o Dupin —, já passaram uns trinta
crivos finos na casa do ladrão?
— Sim — admitiu Didot —, não achando
nada na inquisição. Mas lugar algum ficou pra
trás nas vistorias.
— Pra mim, não dá pra ficar mais claro —
afirmou Dupin —, olha só: fuçaram cada
cantinho, sondaram cada chão ou muro, não
surtindo fruto algum do trabalho, pois são
dotados da vista, mas não logram avistar: olha
agora o mais óbvio, ô cuca oca, o nosso
camarada optaria por um sumidouro mais sutil:
o cara não iria obumbrar aquilo num muro ou
algo assim, no máximo sujou ou amassou o
troço, como uma coisa banal, aí tacou aquilo
num porta-cartas, apanhado por tuas próprias
mãos hora ou outra, mas não havias visto, não
havias quisto ou podido avistar ali o furto tão
primordial, só um rascunho trivial!
— Mas — confutou Didot —, não tinha
porta-cartas algum ali!
— Não brinca — ironizou Dupin.

87
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Colocou a casaca, apanhou o guarda-chuva,


saiu, com a afirmação:
— Vou lá dar uma olhada nisso. Trago num
minuto o tal papiro.
Havia calculado com astúcia, com toda a
razão do mundo, mas só voltou com um
murmúrio para dar:
— Nada.
Logo tornou a sair, puxando a porta numa
batida à la um “Pou!”. Por consolação,
largando para lá a agitação da DP, foi inquirir a
história dum orangotango inculpado por um
triplo assassinato.

Conquanto o Dupin haja captado tudo por


instinto, dos “a” aos “z”, dado o fracasso da
sua busca, não há absolvição pra mim – anotou
Antoin Vagol no Diário.
Postou uma carta a todos os amigos, na qual
dizia: “Aspirava tanto a dormir um bocado.
Aspirava tanto a tirar um bom cochilo. Mas
sumiu! Algum indivíduo? Algo? Só dá pra
imaginar! Sumiram com aquilo. Quanto a mim,
sigo agora rumo ao fim da vida, rumo ao
grandioso olvido branco, rumo à omissão. Sou
obrigado a isso. Sorry. Aspirava tanto a alcançar
o logos. Fui torturado por um mal tão tortuoso.
Minha voz soa rouca como um ruído corroído.
Oh, fim da vida minha, livrai minha alma da
louca paixão a habitá-la. Antoin Vagol”.
Abaixo, havia um postscriptum, um
postscriptum pavoroso, mostrando faltar a
razão a Antoin Vagol: “Proponha x bons
whiskys quando o advogado fajuto fumar no
zoológico”.
No fim, havia uma rubrica formada por um
traçado tríptico (com um dos braços mais curto
na comparação com os outros dois) rasurado
do cimo a baixo por um risco confuso. [...]
Todos ainda ignoram o fim do Antoin: vivo
ou morto, ou morrido ou matado...

88
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

[...]
Mas Antoin Vagol havia sumido.

2. Traduzir entre os livros

Antes de mais nada, quando digo “livros”, penso em textos,


no mais amplo sentido do termo, referindo-me não somente a um
objeto de papel – ou até mesmo virtual, um e-book, com letras
impressas e imagens –, mas também à própria imagem por si só, um
exemplar de um sistema de linguagem não-verbal, que faz uso de
outros tipos de signos, bem como a música e também um texto,
exatamente o texto no qual eu queria chegar devido ao intertexto
que se vê logo no título do capítulo que cito acima:

Où, nonobstant un “Vol du Bourdon”, l'on n'a pas


fait d'allusion à Nicolas Rimski-Korsakov (La
Disparition4, p. 53);

No qual, malgrado um “Voo dos


Borrachudos”, não há alusão alguma a Nicolas
Rimski-Korsakov (O Sumiço5).

Como a própria abertura do capítulo adverte, o “Vol du


Bourdon”, do qual se tratará, não é a obra de Korsakov, mas sim de
outro artista, do escritor Edgar Allan Poe – criador do investigador
Dupin e de um certo orangotango homicida (autor do conto “A carta

4 Doravante designado pela sigla LD.


5 Doravante designado pela sigla OS.

89
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

roubada”, ali reescrito por Perec, justamente porque, em francês, o


conto se chama “La lettre volée”), ou seja, graças à polissemia de
“lettre” (carta e letra), de “vol” (voo e roubo) e de “bourdon” (que
iremos explorar com mais cuidado a seguir), coloca-se em relação o
“Voo dos besouros” (de Korsakov), “A carta roubada” (de Poe) e a
letra sumida do romance. E como inter-relacionar todos esses
intertextos? Intertraduzindo-os, ou melhor, entretraduzindo-os.
Para começar, “besouros” (com e) não poderiam aparecer na
minha tradução, mas “Voo dos moscardos” (sem e) – outro nome
dado à música de Korsakov – sim, poderia. No entanto, nem besouros
nem moscardos apontaria, metatextualmente, para Poe e para a letra
sumida. Portanto, no intento de traduzir entre esses livros (e/ou
intertextualidades), lanço mão de uma estratégia que elaborei para a
tradução dos inúmeros “bourdons” de LD, partindo de um
procedimento bem simples nomeado por Henri Meschonnic (1999,
p. 27) “non-concordances”: traduzir uma única palavra por várias outras.
A palavra “bourdon” aparece em inúmeros momentos do romance,
com muitos sentidos diferentes: (i) como som de sino: “Un
carillon […], plus profond qu’un bourdon […], sonna” (LD, p. 17) /
“borrachudo como a badalar à borda duma borrasca […], um sino
soou” (OS); (ii) como porrete: “On s’attaquait au bourdon ou au
fauchard” (LD, p. 47) / “Porfiavam a borrachadas ou a foiçadas”
(OS); (iii) como besouro (como no título do quarto capítulo, se o
tomarmos como referência à música de Korsakov) etc.[sem saltar
para novo parágrafo] Entretanto, a cada vez,

90
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

nas entrelinhas, “bourdon” remete a um significado metatextual: um


erro tipográfico, a omissão de uma letra durante a composição de
um texto: “vos omissions, vos trous, vos bourdons” (LD, p. 113) / “tua
omissão, os buracos, o borrão” (OS).
Já que não há uma palavra da língua portuguesa que abarque
todo essa carga polissêmica de “bourdon”, construo uma nova rede
(meta)textual – como se pode ver pelos últimos exemplos – com
lexias que tenham algo a ver com borracha e borrão, ainda
contribuindo com a metatextualidade, sugerindo uma referência à
conjunção apagada do romance, mas que se deixa entrever o tempo
todo, como se borrada. É assim que o “Vol du Bourdon” se
transforma em um “Voo dos borrachudos” (sendo que um
borrachudo é também um animal voador, assim como um besouro,
ou um moscardo, uma espécie de mosca). Sem contar que, no fim
das contas, tento também levar em conta duas expressões que
conectem o voo ao roubo do “vol” desses borrachudos: bater
carteira e bater asas e voar. O resultado desse entretraduzir no
excerto que estou esmiuçando é o seguinte:

—A priori, lui dit-il, nous n'aurions pas dû


tant pâtir du vol; pour tout pli disons normal, si l'on
nous avait ravi un x ou un y, ça nous aurait fait un
faux bond minimal. Mais ici, il a pour filiation un
bourdon trop important...
—Un bourdon ? s'intrigua Dupin qui, à coup
sûr, ignorait la signification du mot (LD, p. 53);

91
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

— A priori — falou o Capitão —, pouco


nos importa caso um bandido bata asas a voar
com uma prova do tipo x ou y, composta por
algo, digamos, normal. Mas a afiliação do
borrão batido aqui implica uma borrada
tramada por um borrachudo importantíssimo...
— Borrão, borrada, borrachudos? —
intrigado, Dupin mostrava não achar a ligação
das palavras com a sua significação (OS).

Agora, deixando de lado toda essa “borracharia”, e ainda


retomando novamente Poe, seu próprio nome aparece num jogo de
homofonia nesse capítulo 4 de LD, seu nome próprio faz uma
“aparição hipográfica” (OULIPO, 1988, p. 394) na expressão “j’avais
du Pot”, com letra maiúscula para “Pot” (pronúncia de Poe, na
França), expressão que, além de ser proibida na minha tradução (“eu
tinha Sorte”), sonoramente, não lembra de forma alguma o nome de
Allan Poe dito em português. Para que ele ressurja
homofoneticamente em OS, foi preciso traduzir entre essa expressão
francesa e outra situação bem diferente, no entanto, uma em que a
língua portuguesa me permitia um jogo análogo (que sublinho aqui):

il manqua son coup.


—Jadis, au moins, j'avais du Pot, murmura-
t-il.
Puis, par consolation, il s'occupa, laissant la
P.J. à son tracas, d'un orang-outang qui avait commis
trois assassinats (LD, p. 54);

mas só voltou com um murmúrio para dar:

92
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

— Nada.
Logo tornou a sair, puxando a porta
numa batida à la um “Pou!”. Por consolação,
largando para lá a agitação da DP, foi inquirir a
história dum orangotango inculpado por um
triplo assassinato (OS).

3. Traduzir entre os números

Como já comentei alhures, em outro artigo (FÉRES, 2014),


o número “três” está por todos os lados em LD, tanto na palavra
“trois”, incessantemente repetida, quanto em estruturas sintáticas
tripartidas e em descrições de imagens que lembrem o “3”, um “E”
maiúsculo visto no espelho, praticamente. Sarah Greaves (2000, p.
110) afirma que “ce procédé s’insère dans un réseau de procédés
permettant d’inscrire malgré tout la lettre et dans le texte”6.
Mesmo que, por um lado, não possa escrever “três” em OS,
então, uso e abuso de outras palavras radicalmente semelhantes
(“tríduo” ou, por exemplo, traduzindo “vingt” por “trinta”, por causa
do “e” de “vinte”), por outro lado, posso pintar a grafia do “3” no
espelho, o “E”, tal qual em:

trois traits horizontaux (dont l'un au moins paraissait


plus court) qu'un gribouillis confus barrait (LD, p.
55);

6 Minha tradução: “esse procedimento se insere em uma rede de procedimentos que


permitem, apesar de tudo, que se inscreva a letra e no texto”.

93
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

um traçado tríptico (com um dos braços mais


curto na comparação com os outros dois)
rasurado do cimo a baixo por um risco confuso
(OS).

Entretanto, o que mais me importa neste artigo é o traduzir


entre e, mais especificamente, nesta seção, entre os números. No
trecho do capítulo lido mais atrás, há um exemplo bem esclarecedor
desse meu método tradutório:

un vol pour nous vital […]: il affaiblit nos pouvoirs


dans la proportion d'au moins un sur cinq (LD, p.
54);

batida vital pra nós [...]: afraca nossas forças na


proporção dum oitavo, no mínimo (OS).

Quando traduzo “un sur cinq” (“um quinto”, que poderia


muito bem ser escrito no português sem “e” de OS) por “um
oitavo”, interpreto esse “un sur cinq” metatextualmente: o
investigador de Perec perde quase “um quinto” da sua força porque
a frequência da vogal “e” na língua francesa é de mais de 17%
(MÜLLER). Havendo uma diferença significante entre a frequência
dessa letra no francês e no português – em que a ocorrência do “e”
varia entre 13,9% (REIS, 2014) e 14,64% (TKOTZ, 2005) –, o meu
investigador, lusófono – ou sumiço-hablante –, não perde – como
ocorre com o francês de LD – um quinto do seu poder, e sim “um
oitavo”.

94
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

4. Traduzir entre as línguas

Segundo um dos tradutores de LD para o espanhol –


também autor de uma dissertação de mestrado e uma tese de
doutorado a respeito desse romance, ambas orientadas por Bernard
Magné –, Marc Parayre (1985, p. 74), “lorsque, malgré tout, le
vocabulaire français se révèle improductif, l’auteur [Perec, dans LD]
n’hésite pas à faire des emprunts à d’autres langues”7. Por exemplo,
próximo ao fim do capítulo 4, lê-se “It is a must. Pardon!” (LD, p. 55),
já que, ao que me parece, o autor não podia escrever em francês
“C’est obligé. Pardon!” ou “Je n’ai pas le choix. Pardon!”, aquilo que seria
dito no dia a dia. Só que posso muito bem utilizar “Sou obrigado a
isso”, em português, sem nenhum “e”, para traduzir da língua
inglesa “It’s a must!”, embora, em compensação, não podendo
oferecer um “Me desculpe!” ou “Peço perdão!” como tradução para
o francês “Pardon!”, lancei mão do crédito que acabei de ganhar e já
vinha com outra palavra inglesa no lugar:

It is a must. Pardon (LD, p. 55);


Sou obrigado a isso. Sorry (OS).

É assim que faço aquilo que chamo de traduzir entre as línguas,


por estar consciente de que uma simples reprodução dos
empréstimos presentes em LD, feitos justamente para apontar na

7
Minha tradução: “quando, apesar de tudo, o vocabulário francês se revela improdutivo,
o autor [Perec, em LD] não hesita em fazer empréstimos de outras línguas”.

95
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

direção de algo que não se pode dizer, pode implicar um


enfraquecimento do caráter metatextual do texto. Só faz sentido
tomar emprestado algo de uma língua estrangeira quando isso se
torna necessário, o qual ocorre em momentos distintos no francês
(sem “e”) e no português (sem “e”). Por isso devo sempre transitar
entre o que foi dito em língua estrangeira – por não se ter podido
dizer em francês – e aquilo que posso ou não dizer em língua
portuguesa, respeitando a regra lipogramática, o sumiço do “e”. E
outro dever – igualmente, um direito que também diz respeito a isso
– é ter sempre em mente a quantia desses empréstimos no texto
original a fim de que não haja nenhuma soma injustificável – nem
lacunas – na contagem final da tradução.

5. Conclusão

Relembrando a dica de 53 Jours, em que o protagonista


sugere um tipo de leitura que acabou se transformando em guia para
O Sumiço, espero que minha tradução (ainda inacabada) de La
Disparition – “la vérité que je cherche n’est pas dans le livre, mais entre
les livres [...] il faut lire entre les livres comme on lit ‘entre les
lignes’[...]”8 (PEREC, 2001, p. 93) – tenha se tornado mais evidente
a fim de explicitar o que quero dizer com meu lúdico entretraduzir
(uma das soluções que encontrei para esse trabalho tradutório e que

8 Minha tradução: “a verdade que busco não está no livro, mas entre os livros [...] é preciso
ler entre os livros como se lê nas ‘entrelinhas’ [...]”.

96
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

tentei expor nessas poucas linhas). Trata-se de traduzir entre os livros


(religando os mais variados intertextos entrelaçados por La
Disparition, sempre de cunho metatextual), entre os números (cuja
metatextualidade é repensada nos parâmetros da língua na qual se
traduz), entre as línguas, estranhas e estrangeiras (cujo emprego só se
justifica em prol do metatexto) etc. Dessa maneira, na maior parte
das vezes, não se trata de traduzir as palavras em si, mas traduzir
entre elas, traduzir o que se lê nas entrelinhas, a metatextualidade que
as une entre si e lhes dá razão de ser – e dizer o que é ser – sem “e”.
Assim como Georges Perec, sempre “driblando”, de uma
forma ou de outra, a interdição da vogal por meio de uma entredicção
metatextual, “recheando” La Disparition com pistas e jogos de
linguagem que entredizem o que foi interdito dizer, minha maior
preocupação é trazer, entredito, o “e” interdito em O Sumiço e –
obviamente, mesmo que com jogos não tão óbvios assim – manter
o leitor do meu sumiçol tão entretido quanto o do disparicionês
perecquiano.

Referências bibliográficas

FÉRES, J. R. A. Transcriações poéticas d’O Sumiço: traduções e


retraduções lipogramáticas de poemas de La Disparition de Georges
Perec – e outros. In: Tradução em Revista. Rio de Janeiro, n. 15,
2013/2, 2014. Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/trad_em_revista.php?strSecao=input0. Acesso em: 31 out.
2014.

97
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

GREAVES, S. Une traduction non plausible? La Disparition de


Georges Perec. Traduit par John Lee. In : Palimpsestes, Paris, n.12,
2000. p. 103-116.

MAGNÉ, Bernard. Métatextuel et lisibilité. In : Protée, Université du


Québec à Chicoutimi, v.14, n.1-2, 1986. p. 77-88.

MESCHONNIC, H. Poétique du traduire. Lagrasse: Editions Verdier,


1999. 608 p.

MOTTE, W. F. Jeux mortels. Etudes littéraires, Université de Laval,


v.23, n.1-2, 1990. p. 43-52.

MÜLLER, D. Analyse des fréquences en français. Table des matières. Ars


Cryptographica. Disponível em: www.apprendre-en-
ligne.net/crypto/activites/. Acesso em: 31 out. 2014.

OULIPO. Atlas de littérature potentielle. Paris: Gallimard, 1988. 432 p.

PARAYRE, M. Comment fait un homme de lettres sans caser d’e. Toulouse,


1985. 124 f. Dissertação (Mestrado em Lettres Modernes) – U. F. R.
de Lettres Modernes, Université de Toulouse le Mirail.

PEREC, G. La Disparition. Paris: Denoël, 1969. 320 p.

______. 53 Jours. Paris: Gallimard, 2001. 336 p.

REIS, R. Tabelas de frequências na língua portuguesa. Faculdade de


Ciências. Universidade do Porto. Disponível em:
http://www.dcc.fc.up.pt/~rvr/naulas/tabelasPT/. Acesso em: 31
out. 2014.

TKOTZ, V. Frequência de ocorrência de letras no português. Criptografia:


Criptoanálise, 28 ago. 2005. Aldeia Numa boa. Disponível em:
http://www.numaboa.com.br/criptografia/criptoanalise/310-
Frequencia-no-Portugues. Acesso em: 31 out. 2014.

98
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

APREENDENDO A LER A TRADUÇÃO:


CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE TRADUÇÃO O
CENTAURO BRONCO, DE MAURICIO MENDONÇA CARDOZO

Renê Wellington Pereira FERNANDES

1. A tradução como ato de (re)leitura: a teoria do tradutor


implícito e sua pertinência para a leitura de O centauro bronco

Em 2006, o tradutor e professor da Universidade Federal do


Paraná, Mauricio Mendonça Cardozo dá a conhecer duas traduções
para o português do Brasil da novela Der Schimelreiter, do escritor
alemão Theodor Storm. A primeira recebe o título de A assombrosa
História do Homem do Cavalo Branco (STORM, 2006a), apresentando-
se como uma tradução mais tradicional, no sentido dogmático do
termo. Já a segunda, cuja publicação é concomitante à primeira, é
denominada de O Centauro Bronco (STORM, 2006b), uma tradução
menos ortodoxa da obra alemã, concebida na forma de recriação.
Nesta, Cardozo reconfigura o universo ficcional da história ao
transubstanciar o tema central da novela de Storm (o embate do
cavaleiro frísio contra a intemperança das tempestades de vento e
da consequente força das águas do Mar do Norte) na luta do
“homem do sertão” brasileiro contra a aridez do clima nordestino.


Unicamp, Instituto de Estudos da Linguagem, Brasil, reneyorssey@gmail.com

99
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

No entanto, é necessário salientar que, para produzir as duas


versões, Cardozo partiu da leitura da obra Der Schimmelreiter, texto
em alemão, publicado em 1888, e da leitura de traduções já
existentes desse livro para o português, das quais aquelas já
consagradas de João Távora (O Homem do Cavalo Branco, 1952) e de
Albertino Pinheiro Júnior (O Homem do Cavalo Branco, 1963).
E, justamente pelo fato de se tratar de um trabalho de
tradução feito com base em amplas e diversas leituras, iremos
abordá-lo, dentre outras linhas teóricas adotadas, a partir da revisão
de leitura que Berthold Zilly (2011) faz sobre a teoria do leitor
implícito, concebida por Wolfgang Iser (1972). Nela, o teórico e
tradutor alemão reitera a ideia de que a leitura é a condição sine qua
non para existência da Literatura. A vida e, sobretudo, a sobrevida
das obras literárias, segundo ele, advém dos sentidos que lhes atribui
o leitor em diferentes momentos de atualização, isto é, para um
texto alcançar sua plenitude, para realizar-se, precisa de que alguém
o leia, grosso modo, não só os textos de cunho literário, mas todo e
qualquer texto é escrito para ser lido e, como enfatizava Benjamin
(2001), para ser constantemente relido. Essa é sua condição de ser
enquanto texto, um princípio imanente a seu estatuto ontológico.
Por essa razão, de acordo com Benjamin, a obra literária não
existe em função do leitor, porém, pelo contrário, sua função é
ratificá-la. À vista disso, Zilly (2001) explicita, em seus
apontamentos, a ideia de Benjamin de que o “[...] tom e significado

100
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

das grandes obras poéticas se transformam completamente ao longo


dos séculos [...]” (BENJAMIN, 2001, p. 197).
Destarte, como a própria raiz etimológica da palavra indica,
o texto é um tecido urdido por palavras que, constituindo uma
trama, suscita sentidos (comportados nessas palavras ou a elas
atribuídos) e, portanto, reclama a participação daquele(s) que lhe
persiga(m) o “fio da meada”. Assim, ainda segundo Zilly, os textos
literários “quando narrativos ou dramáticos” precisam da
“encenação mental do leitor, assim como as peças de teatro
precisam da representação , os filmes da exibição e as partituras da
execução, pelo menos imaginada, por parte de quem as entende e
sabe evocar” (ZILLY, 2001, p. 344).
Por esse motivo, também, a leitura não se resume à atividade
meramente mecânica de reconhecer caracteres combinados
fonologicamente entre si, justapostos linearmente de modo a
formarem, em seu agrupamento, vocábulos, palavras, frases,
períodos etc. Ela implica a interpretação de significados subjacentes
ou possíveis de serem suscitados, a partir do e no texto, ou mais
estritamente, a partir da e na letra.
Conscientes desse imperativo, como comenta Zilly (2001),
os autores:

(...) desde há muito não apenas se preocupam


em discursar ou narrar, para informar, ensinar,
entreter, edificar, para expressar seus afetos,
atiçar a curiosidade, para transmitir a sua visão
do mundo, para atacar ou se defender, mas se

101
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

preocupam também com que tal mensagem ou


história – os ensinamentos, a trama, as cenas,
os personagens – sejam percebidas numa
determinada perspectiva e lidas
“corretamente”. Por um lado, eles incitam a
fantasia do leitor, da qual as obras, incompletas
e abertas, de certo modo precisam, por outro
lado procuram guiá-la (ZILLY, 2001, p. 344).

Para esse leitor, de quem se espera uma leitura proativa, ou


seja, de quem se espera que, por interesse diletante ou compromisso
profissional, provenha maturidade suficiente para efetuar uma
leitura participativa e acurada,Wolfgang Iser cunhou o termo leitor
implícito (ISER, 1972).
Ora, se o tradutor é antes de tudo um leitor, posto que para
realizar sua tarefa ele deva, de acordo com Berman (1994), proceder
às leituras do original e às leituras e releituras da tradução que realiza,
Zilly ainda enfatiza o fato de ele ser “um leitor especialmente atento,
assíduo, escrupuloso, crítico e exaustivo na tarefa de (re)constituição
dos significados da obra” (ZILLY, 2001, p. 347), transmutando o
termo leitor implícito em tradutor implícito.
Sendo assim, essas características, tidas como atributos do
leitor, tradutor implícito nesse caso, parecem estar em consonância
com o processo ao qual Arrojo (2007) denomina de “aprender a
ler”, já que, para ela, “aprender a ler envolve muita leitura, muita
pesquisa, muita aquisição de informação e, acima de tudo, um
espírito aguçado, além de uma curiosidade persistente e difícil de ser

102
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

satisfeita” (ARROJO, 2007, p. 77). Portanto, sendo o tradutor um


“leitor por excelência” (ZILLY, 2001, p. 347), haja vista ser ele

um Vor-leser em vários sentidos, ou seja, um pré-


leitor e pró-leitor, aquele que lê antes dos outros e
pelos outros, sendo ao mesmo tempo um
recitador, aquele que lê em voz alta para os
outros, para uma audiência, prefigurando a sua
compreensão do texto, espécie de preletor, que
ensina como se deve ler (loc. cit.)

Nós podemos inferir que, ao elaborar seus textos, os autores


considerem o tradutor como o primeiro leitor estrangeiro em
potencial de suas obras, ou seja, na verdade, o primeiro leitor
sofisticado.
E, uma vez que, para o leitor implícito os autores criam “[...]
dispositivos e marcas que assinalam de que modo ele deve ler um
texto para realizar mentalmente grande parte das potencialidades do
seu sentido” (ZILLY, 2001, p. 345) para o tradutor, como leitor
previsto e, portanto, implícito, todo texto literário também possui
as indicações de como deve ser traduzido. Por conta disso,

o papel do leitor previsto dentro do texto teria


como corolário o do tradutor igualmente
previsto, embora menos manifesto, um feixe
de orientações e recomendações de como
determinada obra deve ser lida por falantes de
outras línguas e como para estas deve ser
trasladada (ZILLY, 2001, p. 355).

103
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Portanto, se ler é um ato ativo, que exige a interação do leitor


para reconstruir significados prévios ou construir novos significados
com base no quadro de experiências diversas no qual se encontra
implicado, sobretudo, como sujeito historicamente condicionado, e
se ler e traduzir não são ações meramente similares, mas idênticas,
logo, ler e traduzir coincidem (ou seja, incidem juntamente) com
interpretar. Isso quer dizer que, ao lermos algo, automaticamente
lhe atribuímos uma interpretação pessoal, com base na rede de
inferências que estabelecemos a partir de nossa familiaridade,
estranheza, predileção e necessidades em relação ao(s) assunto(s)
contemplado(s) pelo texto para que assim seja possível obtermos da
leitura, e na leitura, aquilo pelo que procuramos ou aquilo de que
precisamos, e isso nada mais é do que traduzir.
Por isso ler, traduzir e interpretar são atividades
concomitantes e, por conseguinte, intrínsecas umas a outras das
quais procede a afirmação de Rosemary Arrojo de que:

Toda tradução, por mais simples e breve que


seja, trai sua procedência, revela as opções, as
circunstâncias, o tempo e a história de seu
realizador. Toda tradução, por mais simples e
breve que seja, revela ser produto de uma
perspectiva, de um sujeito interpretante e, não,
meramente, uma compreensão “neutra” e
desinteressada ou um resgate
comprovadamente “correto” ou “incorreto”
dos significados supostamente estáveis do
texto de partida. Essa ligação intrínseca e
inevitável que qualquer tradução mantém com
uma interpretação tem criado um sério

104
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

embaraço para a grande maioria das teorias de


tradução, em especial para aquelas que
alimentam a ilusão de chegar, um dia, a uma
sistematização do processo de traduzir
(ARROJO, 1992, p. 68).

2. À busca do tradutor, escoramento da prática tradutória e a


postura tradutória em O Centauro Bronco

Ora, se até aqui concordamos e reiteramos a ideia de que ler,


traduzir e interpretar são ações que redundam num mesmo e único
processo – o processo de tradução –, para compreendermos o modo
pelo qual ele é concebido, é necessário nos voltarmos para aquele
de quem ele deriva, isto é, para o tradutor. Podemos dizer, sob esse
ponto de vista, que toda e qualquer tentativa de se separar a tradução
daquele que a realiza, ou seja, do tradutor, tornar-se-ia
contraproducente ao trabalho do crítico e do estudioso de literatura
estrangeira traduzida e, em última análise, para a própria identidade
da tradução. Em decorrência desses aspectos, perguntamo-nos até
que ponto o trabalho desse tradutor-leitor (ou seja, sua tradução) é
lido e tido como tal, isto é, como um texto que foi vertido de uma
determinada língua estrangeira (do autor) para uma determinada
língua materna (do leitor).
A partir desse ponto, devemos, então, compactuar com o
pensamento de Antoine Berman (2001), de que no âmago de
qualquer questão que envolva a crítica, a teorização, a realização ou
as relações estabelecidas em diversos aspectos, níveis e setores do

105
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

trabalho tradutório, enfim, “na origem” de toda e qualquer


problematicidade prática ou teórica advinda da atividade
tradutológica, está o tradutor, pois na “origem havia o tradutor”
(BERMAN, 2001, p. 15).
Por conseguinte, outra concepção teórica que cabe a esse
artigo se encontra na obra Pour une critique des traductions: John Donne
(BERMAN, 1994), e é baseada naquela análise que “à medida que
praticava estudos de traduções, ao tentar definir (e sistematizar) os
procedimentos” Berman (1994, p. 64) elabora com base nas
abordagens teóricas propostas por Meschonnic e pela escola de Tel-
Aviv, a partir do conceito benjaminiano de crítica de tradução e no
desenvolvimento de uma metodologia e conceitos próprios, aos
quais denomina “aprender a ler uma tradução” (op. cit.).
Assim, como leitores de textos literários produzidos numa
determinada língua materna, devemos aprender a ler para que
possamos apreender sentidos imanentes e também para que
possamos criar novos sentidos, igualmente como críticos ou
estudiosos de Literatura, ou mesmo, como tradutores, devemos
aprender a ler uma tradução para que possamos nos ocupar de sua
análise. Mas sobre o que nos apoiaríamos para dar início ao nosso
aprendizado? Como abordaríamos a leitura de O Centauro Bronco?
Berman propõe que nos voltemos para o trabalho de
tradução sob um novo viés: “indo ao tradutor”, ou seja, abordando-
o dentro dos estudos da tradução como aquele no qual a progênie
do texto traduzido se engendra. Assim, ele estipula que “uma das

106
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

tarefas de uma hermenêutica do traduzir é considerar o sujeito que


traduz” (BERMAN, 1994, p. 67). Para tanto, elabora seis passos
nessa “reviravolta metodológica” (op. cit., p. 70): 1) Leitura e releitura
da tradução; 2) As leituras do original; 3) A busca do tradutor; 4) A
postura tradutória; 5) O projeto de tradução; 6) O horizonte do
tradutor.
Entretanto, por questão de ordem prática e a fim de alcançar
os objetivos propostos em nosso estudo sobre a tradução O centauro
bronco, de Cardozo, excetuar-se-á a abordagem do terceiro passo, a
saber: a busca do tradutor.
Em primeiro lugar, atentemos para o fato de que Berman
volta a ressaltar a condição primeira de leitor desempenhada pelo
tradutor, uma vez que para ele “traduzir exige leituras vastas e
diversificadas. Um tradutor ignorante – que não lê desse modo – é
um tradutor deficiente. Traduz-se com livros” (BERMAN, 1994, p.
67). O teórico francês denomina esse recurso de escoramento da
prática tradutória, mas adverte que tal noção não coincide com a de
escoramento da própria tradução. Em nota de rodapé, explica: “o
escoramento da tradução compreende todos os paratextos que vêm
a sustentar: introdução, prefácio, notas, glossários etc.” (BERMAN,
loc.cit.).
Por isso é por meio de um paratexto (dentre tantos outros
textos, como os artigos que escreveu a respeito) usado por Cardozo
para o escoramento de sua tradução – a saber, do posfácio que
elaborou para O Centauro Bronco – que analisaremos, neste primeiro

107
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

momento, sua postura tradutória, pois, como aponta Berman, as


posturas tradutórias “[...] podem ser reconstituídas a partir das
próprias traduções, que as dizem implicitamente, e a partir das
diversas enunciações que o tradutor fez a respeito de suas traduções,
do traduzir ou de quaisquer outros temas” (BERMAN, 1994, p. 72).
Assim, Berman define postura tradutória como “o compromisso entre
a maneira pela qual o tradutor, enquanto sujeito tomado pela pulsão
do traduzir percebe a tarefa da tradução, e a maneira pela qual
internalizou o discurso ambiente sobre o traduzir (as normas)”
(BERMAN, 1994, p. 71).
Partindo dessas formulações, encontramos em O Centauro
Bronco um tradutor que discorre a respeito de seu trabalho com
fluidez literária e que, ao mesmo tempo, concebe a tradução
enquanto relação.

Traduzir é um movimento fundado na relação:


é pôr em relação; é construir uma relação; é
relacionar. Portanto, é também – e
necessariamente – um modo de equacionar
uma determinada relação. E se diferenças e
semelhanças se manifestam apenas na relação, a
tradução surge então como ocasião e modo de
equacioná-las (CARDOZO, 2006b, p. 155).

3. A tradução enquanto relação para Cardozo e para Marcelo


Jacques de Moraes

Ora, se para Cardozo a tradução é relação e consiste na


equação de semelhanças e diferenças – haja vista que “é na relação,

108
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

ou seja, somente quando há uma relação, a partir da relação, que se


tencionam e deslizam as noções do diferente e do semelhante, do
próximo e do distante, do próprio e do alheio” (op. cit., p. 154) –,
nós então perguntamos se essa relação de fato se faz sentir em seu
trabalho no que diz respeito ao Outro (ao estrangeiro), representado
por sua língua e sua cultura.
Nesse sentido, no que concerne à tradução entendida
enquanto relação, encontramos no ensaio de Marcelo Jaques de
Moraes, Sobre a Violência da Relação Tradutória, a reflexão sobre o
pensamento de Berman a respeito de que a essência da tradução é,
verdadeiramente, relação. Justamente por isso, recorremos a sua
contribuição para o tema.
Desse modo, ao revisitar as ideias apresentadas por Berman
em A Tradução e a Letra: ou o Albergue do Longínquo, Moraes desdobra
a discussão suscitada pelo teórico francês, situando-a em torno da
violência da relação tradutória, pois, para ele, “[...] há uma violência
fundamental na experiência da relação, e que não é a violência
operada pelo chamado etnocentrismo da tradução” (op. cit., p. 73).
Assim, para Moraes, a violência não é provocada pela língua do
tradutor sobre a língua do autor do texto original, já que, de acordo
com suas próprias palavras, “a violência fundamental dessa
experiência, e que deflagra de fato a pulsão de traduzir, é, repito mais
uma vez, a violência do original sobre o tradutor” (loc. cit.).
Aliás, aqui se apresenta o momento apropriado para ressaltar
a concepção desse estudioso no que diz respeito à ideia de original

109
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

autônomo (na língua do autor ou língua de partida) e tradução


autônoma (na língua de chegada ou língua para qual o tradutor verte
o texto), uma vez que, embasado em Walter Benjamin (2001),
afirma:

(...) não há primeiramente o original,


apreendido na autonomia significante de sua
língua, e depois a tradução, por meio da qual o
tradutor transporia esse original para sua
própria língua, ela também autônoma. A
experiência da tradução é de saída uma relação
já em movimento, uma tensão já estabelecida
com um original que, se exige, se deseja
intrinsecamente tradução (MORAES, 2001, p.
64).

Não obstante, ao deter-se sobre a afirmação do autor de A


Prova do Estrangeiro de que “a tradução é relação, ou não é nada” (op. cit.,
p. 65), Moraes descobre que “a tradução que não é relação, e que
por isso não é nada, seria aquela em que a língua do tradutor
iluminaria o texto estrangeiro de tal forma que o clássico problema
da literalidade da tradução sequer chegaria a se formular como tal”
(op. cit., p. 66). Adiantemos, porém, que com a expressão “ser nada”,
Moraes não quer dizer ser uma tradução ruim, mas sim uma
tradução que deixa de ser tradução e passa a ser lida como texto
original.
Então, vemo-nos retomar a discussão proposta por
Friedrich Schleiermacher no século XIX, de que o tradutor deve
levar o leitor até o autor do texto estrangeiro, uma vez que explica

110
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

que nesse método: “[...] o tradutor está empenhado em substituir,


por meio de seu trabalho, a compreensão da língua de origem, que
falta ao leitor” (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43).
Desse modo, Moraes reclama, para a efetivação da tradução
como tal, o conhecimento linguístico do leitor a respeito da língua
do texto original, já que, como Schleiermacher, ele aponta a
necessidade que o tradutor tem de “(...) transmitir aos leitores a
mesma imagem, a mesma impressão que ele próprio teve pelo
conhecimento da língua de origem da obra, de como ela é, tenta,
levá-los à posição dela, na verdade estranha para eles” (op. cit., p. 43-
45).
Dessa forma, para pensarmos a tradução de Cardozo como
relação, centrada no princípio de alteridade, como ele mesmo a
prefigura, é necessário notar primeiramente se ela faz ecoar “o
burburinho da letra estrangeira” (MORAES, 2001, p. 68), se ela
reverbera centelhas da estranheza que é particular a uma língua que
não é a nossa. Sendo que, para que isso aconteça, é preciso que o
leitor conheça a língua do original, que consiga pressentir sua
imaterialidade a frequentar os signos materiais da língua materna.
Decorrente dessa concepção de Moraes, para quem desconhece a
língua do Outro no processo de relação fundado pela tradução “[...]
jamais existe tradução” (op. cit., p. 67).

111
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

4. O projeto de tradução de Mauricio Mendonça Cardozo

Contudo, antes de discorrermos sobre a tradução que se


sustenta com base no conhecimento linguístico (e por consequência,
cultural) do leitor, abordaremos o projeto de tradução de Cardozo,
segundo delineia o termo Antonie Berman.
Destarte, para Berman, o projeto de tradução, por sua vez, “[...]
define a maneira como, por um lado, o tradutor vai cumprir a
translação literária e, por outro, assumir a própria tradução, escolher
um modo de tradução, uma maneira de traduzir” (BERMAN, 1994, p.
72).
Aplicando esse conceito ao trabalho de Cardozo, outra vez
por meio da leitura do posfácio de O Centauro Bronco, o tradutor
expõe o recurso que empregou na realização de seu trabalho: “O
instrumento principal de construção da tessitura do Centauro Bronco
é a citação, tanto na forma de colagem, quanto na forma de
pastiche” (CARDOZO, 2006, p. 162). Não cabe aqui a análise e
explanação sobre o termo e sobre o artifício conhecido como
pastiche, posto ser o próprio Cardozo quem o define, especificando
o modo pelo qual esse instrumento de (re)criação é empregado na
tradução que realizou: “O procedimento do pastiche, como forma
de citação, foi levado aqui às últimas consequências. Porém, se por
um lado, fazer uso do pastiche é reproduzir o estilo de um autor –
pastiche, por definição –, por outro, procuro não fazê-lo
mecanicamente” (loc. cit.).

112
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Ora, se “as formas de um projeto de tradução, quando é


enunciado pelos tradutores, são múltiplas” (BERMAN, 1994, p. 73),
no caso da tradução desta novela de Storm, elas estão expostas de
maneira contundente, embora articuladas no breve espaço de um
paratexto.
Assim, o modo pelo qual Cardozo assume a própria
tradução fica explicitado. E não só isso, fica pormenorizado o
trajeto que calca, já que explica o segundo expediente do qual lançou
mão na elaboração de sua tradução.

A colagem é recurso extremamente produtivo


nos casos em que se constata, por exemplo, que
uma determinada passagem de uma obra em
vernáculo pode ser lida como tradução da
passagem de uma obra de língua estrangeira –
imagine-se aqui o caso em que uma fala de
Riobaldo pudesse traduzir uma fala do
protagonista de Storm (CARDOZO, 2006, p.
162).

Sob esse aspecto, essa ideia de Cardozo se coaduna à de


Haroldo de Campos, que ao comentar a impossibilidade da
tradução, explica:

Admitida a tese da impossibilidade, em


princípio, da tradução de textos criativos,
parece-nos que esta engendra o corolário da
possibilidade, também em princípio, da
recriação desses textos. Teremos, como quer
Bense, em outra língua, outra informação
estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas

113
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

entre si por uma relação de isomorfia: serão


diferentes enquanto linguagem, mas, como os
corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de
um mesmo sistema (CAMPOS, 2006, p. 34).

Mas, notemos que com “outra informação estética,


autônoma” (loc. cit.), Haroldo de Campos quer dizer uma tradução
que, em seu meio linguístico e cultural, atua como original. Contudo,
no caso de Cardozo, a complexidade é maior, pois ele, em sua
tradução intitulada A Assombrosa História do Homem do Cavalo Branco
(STORM, 2006a), busca uma aproximação mais evidente com a
língua e cultura alemãs, fato do qual podemos nos certificar
mediante as notas de tradução que acrescenta ao fim do livro. E,
lembremo-nos, antes de mais nada, de que ambas as traduções
juntas constituem seu projeto de tradução.
Por conseguinte, entendemos que a questão não se reduz à
problemática de traduzirem-se textos criativos, como aponta
Campos (2006), haja vista ter Cardozo realizado a tradução da
mesma obra sob prismas diferentes: a literalidade e a recriação
literária.
Não obstante, é nesse contexto que – ao expor os eixos
temáticos do livro de Storm, a saber, o embate entre homem e
espaço e entre homem e homem – Cardozo justifica seu modo de
trasladar: “Essas relações, constitutivas do espaço humano da obra,
parecem levantar – ainda que hipoteticamente – mais uma
possibilidade de alinhamento entre o Schimmelreiter e algumas obras
da ficção brasileira de temática e ambientação regionalistas”

114
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

(CARDOZO, 2006, p. 160). Assim, Cardozo promove um diálogo


entre as técnicas narrativas e representativas de alguns autores
brasileiros dos séculos XIX e XX e a retórica literária de um autor
de língua estrangeira do fim do século XIX.
Entretanto, notemos que traduzir por meio da colagem ou
do pastiche não se ajusta à ideia de Moraes, quando cita a
reivindicação reiterada de Berman por literalidade.

(...) essa tradução literal que Berman não cessa


de reivindicar (...) é essa espécie de retorno
tautológico do original, para quem conhece a
língua em que ele é produzido, que funda a
sensação paradoxal de uma espécie de
precedência a posteriori do literal sobre a
predicação figural que qualquer tradução não
pode evitar derivar desse suposto original
literal. O que a experiência da tradução como
tal propicia ao transfigurar necessariamente o
original em outra letra, desliteralizando-o
inevitavelmente, é uma espécie de diferença
original do original para consigo próprio, que o
torna desde sempre irremediavelmente distinto
de si mesmo (MORAES, 2001, p. 67-68).

Sendo assim, até que ponto podemos perceber a


desliteralização de Der Schimmelreiter, de Storm, por meio da tradução
O centauro bronco, de Cardozo? Ou seja, onde se opera a diferença do
original de Der Schimmelreiter para consigo próprio, se a língua alemã,
seu “resíduo” pelo menos, foi recalcado pela transliteração?

115
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

5. A contribuição de Walter Benjamin para o tema: O Centauro


Bronco como sobrevida de Der Schimmelreiter

A resposta, dada pelo tradutor para tal questionamento, é a


explicação de que a intervenção feita na physis implicou uma
intervenção no âmbito humano, o que, por conseguinte, “no caso
do Centauro Bronco [...] tem uma implicação direta na questão da
linguagem” (CARDOZO, 2006 p. 161). E, por conta disso,
apresenta a razão de ter fundado a autoridade narrativa de sua
reescritura na plêiade literária brasileira, tendo predileção por um de
seus integrantes, haja vista que: “De fato, a voz do Guimarães Rosa
(autor do Grande sertão: veredas) predomina na leitura como matriz
principal [...] porque a obra roseana representa, em língua
portuguesa, o exemplo mais radical de tratamento da linguagem”
(op. cit., p. 162).
Porém, já que para o filósofo alemão Walter Benjamin, “[...]
numa tradução, a afinidade entre as línguas demonstra-se muito
mais profunda e definida do que a semelhança superficial e vaga
entre duas obras poéticas”, como a linguagem de O Centauro Bronco
faz ressurgir, pelo menos, como assomo de reencontro, de
redescoberta, de “eco”, o alemão de Der Schimmelreiter para o leitor
brasileiro? Pois, se comparado ao que Cardozo se propôs a fazer –
e de fato o fez –, ao eleger a prosa de Guimarães Rosa como modelo
narrativo (“o exemplo mais radical de tratamento da linguagem”, no
português do Brasil), o emprego da variante dialetal da língua alemã

116
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

– conhecida como baixo alemão (plattdeutsch) – é pouco utilizada por


Storm como elemento composicional de sua ficção.
A partir dessa perspectiva, o que observamos nesse artigo,
não é um mero processo de intensificação da língua (no texto de
Cardozo em português) que visa apenas à elevação do estilo – ou à
sua supervalorização –, mas a realização de um projeto de leitura do
original que explora dimensões contidas no texto de Theodor
Storm, em alemão, apenas realizáveis em português, isto é, um
movimento de leitura que, ao apresentar, em um primeiro
momento, a tradução como aparentemente original em sua língua,
procura fazer com que o leitor seja impulsionado para o texto em
alemão. Por isso, pontua Moraes:

(...) independentemente de a tradução ser boa


ou ruim, de ser mais ou menos etnocêntrica,
sua importância, para os que não entendem o
original, não está, a meu ver, em possibilitar a
relação com o estrangeiro como tal. Mas em
despertar eventualmente esse desejo de relação,
que só pode de fato se realizar se o leitor for
então levado a aprender outra língua, e assim
estar continuamente exposto à experiência
estrangeira inclusive em relação à própria
língua (MORAES, 2001, p. 69).

É óbvio, no entanto, não se tratar aqui de uma tradução


etnocêntrica, mas de uma reconfiguração da história de Der
Schimmelreiter que, ao realizar-se, propicia uma relação, um
movimento em direção a uma dimensão potencial da língua

117
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

portuguesa ao mesmo tempo em que provoca o desejo de “visitar”


ou, pelo menos, vislumbrar, a letra estrangeira da história. Isso
parece estar em acordo com a reflexão sobre a tradução enquanto
instância responsável pela perpetuação da obra de arte literária
dentro de um processo histórico definido que Walter Benjamin
realizou em meados do século XX. Portanto, o filósofo alemão
reconhece ser essa “continuação da vida das obras” (BENJAMIN,
2001, p. 193) aquilo a que se convencionou chamar de fama (a razão
pela qual, para ele, as “boas traduções” existem), concluindo o
filósofo que, caso visasse apenas à imitação objetiva do original, a
tradução decretaria ironicamente o fim deste, já que:

[...] na continuação de sua vida (que não


mereceria esse nome, se não continuasse em
transformação e renovação de tudo aquilo que
vive), o original se modifica. Também existe
uma maturação póstuma das palavras que já se
fixaram: elementos que à época do autor
podem ter obedecido a uma tendência de sua
linguagem poética, poderão mais tarde ter-se
esgotado; tendências implícitas podem
destacar-se ex (sic) novo daquilo que já possui
sua forma (BENJAMIN, 2001, p. 197).

Assim sendo, sugerimos que seja sob esse ponto de vista que
devamos compreender a razão pela qual Cardozo concebe a
tradução como movimento, haja vista sua afirmação de que
“traduzir é como partir numa viagem [...] é movimento”
(CARDOZO, 2006, p. 153). Essa consciência atesta que a mera
imitação representa a estagnação e, portanto, o fim da sobrevida

118
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

(fama) da obra. Por outro lado, o movimento, ou seja, a renovação


garante-lhe um estágio de maturidade sempre ascendente.

6. O horizonte tradutório ou aquilo-a-partir-do-que Cardozo


(re)traduz

Não obstante, para melhor entendermos essa questão,


temos de ter conhecimento do horizonte do tradutor, definido por
Berman como “o conjunto dos parâmetros linguísticos, literários,
culturais e históricos que determina o sentir, o agir e o pensar de um
tradutor” (BERMAN, 1994, p. 75).
Comecemos pelos parâmetros linguísticos e literários que,
no caso de O Centauro Bronco, como já apontado anteriormente, têm
base na prosa regionalista de Alencar, Guimarães Rosa, Euclides da
Cunha e Graciliano Ramos. Como ressalta Berman (1994, p. 75), é
importante ter em mente aquilo-a-partir-do-que se retraduz uma obra,
quais são os “[...] condicionamentos (...) pensados de forma causal
ou de forma estrutural” (loc. cit.), que levam o tradutor a retraduzir
uma obra já contemplada por traduções anteriores. Com isso,
segundo o teórico francês, podemos pensar esse horizonte no plural
e nos perguntar quais são os horizontes, em nosso caso, da
retradução de O Homem do Cavalo Branco.
Assim, posto termos em conta a totalidade das traduções de
Der Schimmelreiter no Brasil, em língua portuguesa, também importa
sabermos que Cardozo leu não só as duas traduções já existentes em
português – de Albertino Pinheiro Júnior (1963) e de João Távora

119
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

(1952) – ou o texto escrito em língua alemã, Der Schimmelreiter, mas


também “uma das fontes mais centrais na matriz de referências da
novela de Storm” (CARDOZO, 2006, p. 145), o folhetim Der
Gespenstige Reiter. Ein Reise Abentheuer. O que faz com que ele
apreenda a experiência da tradução provocada pela pulsão tradutória
em seu aspecto bivalente: tanto como leitor que sente a necessidade
de conhecer a língua do original em sua plenitude de possibilidades,
quanto tradutor que, além de seguir o imperativo de confrontar a
violência do original sobre sua língua, deve também contribuir para
o “(...) mais tardio e vasto desdobramento” (BENJAMIN, 2001, p.
195) da obra de arte literária.

7. Antoine Berman e Jacques Derrida: a tradução concebida e


entendida no âmbito acadêmico-universitário

Para tanto, em um primeiro momento, seria proveitoso


conhecermos a situação da literatura alemã no Brasil e, portanto,
inteirarmo-nos acerca de qual seria o Sprachraum1 da língua e da
literatura alemã em nosso país, atualmente. Ou melhor,
questionarmo-nos se, de fato, ele existe em grande escala fora do
círculo acadêmico.
À vista disso, se ponderarmos o contexto editorial brasileiro,
podemos nos indagar de que outro modo estudiosos e críticos,

1
Termo linguístico usado para designar uma área geográfica onde uma língua, um dialeto,
um grupo ou uma família de línguas são falados ou gozam de certo grau de prestígio.

120
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

alunos universitários e leitores interessados em literatura estrangeira


(que em sua maioria não leem nesse idioma) travariam seus
primeiros contatos com a literatura em língua alemã, se não por
meio da tradução? De que outro modo eles seriam acossados pela
estranheza dessa outra língua a não ser pelas traduções, realizadas,
na maioria das vezes, em meio ao próprio âmbito acadêmico? Por
isso, Berman pronunciou-se a respeito.

Não é necessário se estender mais: parece-me


evidente que a ligação da tradução com a
Universidade, tal qual se opera atualmente, é
um fenômeno histórico importante, no qual
estará em jogo boa parte do destino da
tradução e daquilo que se chama, no Ocidente,
de Universidade (BERMAN, 2001, p. 17).

Chegamos, com isso, ao “[...] próprio caminho proposto por


Derrida: ver a tradução arquitetada e montada pela instituição
universitária” (OTTONI, 1998, p. 17). Mais que isso, se por um
lado, percebemos que no tradutor opera-se uma pulsão tradutória,
que o leva a reagir contra a violência da língua do Outro e o
impulsiona para o ato tradutório – a pulsão tradutória assim
entendida –, por outro, também entendemos que a pulsão tradutória
refrata-se em meio a seu processo de engendramento, instigando o
leitor que não conhece a língua do original a travar contato com essa
em seu domínio particular, em sua diferença e semelhança
estrangeiras.

121
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

A partir daí, tendo em mente que “as literaturas estrangeiras


tornam-se mediadoras nos conflitos internos das literaturas
nacionais e lhes oferecem uma imagem delas mesmas que elas não
saberiam ter” (BERMAN, 2002, p. 118), percebemos que o trabalho
de Cardozo opera numa via dupla, pois, também indica para nós
qual seria o Sprachraum do próprio idioma português no Brasil, no
tocante à construção da nossa Literatura enquanto objeto estético
em constante devir.

Referências bibliográficas

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123
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

A TRADUÇÃO DA LITERATURA INFANTIL: UMA ANÁLISE


LINGUÍSTICA NO PAR INGLÊS/PORTUGUÊS BRASILEIRO

Kícila FERREGUETTI
Flávia Ferreira de PAULA

1. Introdução

Todas as crianças possuem grande necessidade de imaginar,


criar histórias e entrar no mundo da fantasia, assim, os livros de
histórias são de vital importância durante a infância. As histórias
entretêm seus ouvintes e/ou leitores ao mesmo tempo em que os
inserem na cultura e lhes apresentam à dualidade do bem e do mal.
Aventuras a lugares distantes, sonhos que se tornam realidade,
mistérios da morte, sentimentos de amor, ciúme, inveja e o bem que
sempre vence. Também enriquecem o vocabulário das crianças e as
levam a perceber a temporalidade dos contos, bem como a se
familiarizar com a presença de figuras de linguagem. No que diz
respeito à origem das histórias infantis, Lajolo e Zilberman explicam
que

[...] apenas durante o classicismo francês, no


século XVII, foram escritas histórias que
vieram a ser englobadas como literatura
também apropriada à infância: as Fábulas, de La
Fontaine, editadas entre 1668 e 1694, As


UFMG, Faculdade de Letras, Brasil, kicilaferreguetti@gmail.com
 UFMG, Faculdade de Letras, Brasil, flaviafdepaula@gmail.com

124
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

aventuras de Telêmaco, de Fénelon, lançadas


postumamente, em 1717, e os Contos da Mamãe
Gansa, cujo título original era Histórias ou
narrativas do tempo passado com moralidades, que
Charles Perrault publicou em 1697 (LAJOLO;
ZILBERMAN, 2004, p. 15).

Os contos de fadas são narrativas que têm seus argumentos


desenvolvidos dentro de uma magia feérica (personagens do mundo
da realeza, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, metamorfoses,
objetos mágicos, tempo e espaço fora de nossa realidade) e de uma
problemática existencial (COELHO, 1991, p. 13). Já as fábulas,
caracterizam-se como narrativas em prosa ou em verso, cujas
personagens são geralmente animais com características humanas
(pensam, agem, sentem e falam). Tais histórias mostram pontos de
vista sobre comportamentos humanos de forma a recomendar
certas atitudes e censurar outras. O ponto de vista que geralmente é
explicitado no final das fábulas é chamado de lição ou moral da história.
Teresa Colomer (2003, p. 13) esclarece que, apesar de esses textos
estarem presentes no imaginário popular desde tempos remotos, os
livros infantis e juvenis são um fato recente, pois as figuras da
criança e do adolescente só passaram a existir como fenômeno
cultural, de certo valor, a partir do século XVIII, antes disso, eram
vistos apenas como miniadultos, sem necessidades próprias.
Em artigo intitulado “A tradução: núcleo geratriz da
literatura infantil/juvenil”, Coelho (1987) trata da importância que
o ato de traduzir tem entre os homens desde os primórdios da

125
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

história. Segundo Coelho (1987, p. 22), essa importância se torna


evidente quando começamos a estudar a origem das primeiras
narrativas exemplares ou das primeiras fábulas e acompanhamos seu
lento percurso. Essas histórias que venceram não apenas barreiras
no tempo, mas também grandes distâncias geográficas permitindo a
comunicação fecunda entre os homens da terra, divertindo ou
emocionando seus ouvintes/leitores ao mesmo tempo em que
funcionavam como mediadoras entre os homens e os ideais de
civilização que começavam a surgir.
Nas nações novas, como é o caso dos países das Américas,
a literatura infantil se iniciou com as traduções trazidas pelos
colonizadores aos povos colonizados (COELHO, 1987, p. 24). No
Brasil, foi por meio de traduções portuguesas que as crianças
conheceram o prazer de ouvir e/ou de ler histórias. Com Monteiro
Lobato, a literatura infantil iniciou uma reação nacionalista contra a
predominância lusitana em nossa cultura, não sem a grande
influência dos heróis e anti-heróis importados. Assim, conclui a
autora, a tarefa que vem sendo desempenhada pela tradução é de
grande relevância já que está ligada à gênese da literatura
infantil/juvenil no Brasil e no mundo.
Nesse cenário, este artigo almeja examinar o processo de
recontar e reescrever, na literatura infantil, a partir da análise de duas
obras escritas originalmente em língua inglesa e suas respectivas
traduções para o português brasileiro, a saber: Clifford, the big red dog
(de Norman Bridwell); Guess how much I love you (de Sam McBratney);

126
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Pacheco, o cachorro gigante (de Maria Clara Machado); Adivinha o quanto


eu te amo (de Fernando Nuno). Para tanto, pretende-se analisar as
obras sob uma perspectiva linguística com o uso da metodologia dos
Estudos da Tradução Baseados em Corpus e aporte teórico da
Linguística Sistêmico-Funcional. O artigo é embasado nos trabalhos
de Knowles e Malmkjaer (1996) e O’Sullivan (2003) com o intuito
de identificar em que medida as escolhas feitas pelos tradutores
oferecem indícios de suas vozes ou presenças discursivas nos textos
em questão.

2. Literatura infantil e tradução

A tradução em literatura infantil foi tema da 33ª edição do


Congresso da IBBY1, realizada em Londres em agosto de 2012. Em
palestra intitulada Why Translate Children’s Books? (Por que traduzir
livros infantis), O’Sullivan (2012) elucida um ponto importante da
tradução de livros infantis: a tradução se justifica frequentemente
como forma de enriquecer a cultura alvo e apresentar às crianças

1
A IBBY (International Board on Books for Young People) é uma instituição sem fins lucrativos
que representa uma rede internacional de pessoas do mundo todo comprometida em reunir
livros e crianças. Foi fundada em 1953, em Zurique, Suíça, atualmente conta com 70 seções
nacionais pelo mundo todo, sendo que a brasileira é a Fundação Nacional do Livro Infantil
e Juvenil (FNLIJ), criada em 1968, no Rio de Janeiro. A missão da IBBY é, entre outras,
promover o estudo internacional de livros infantis e juvenis, estimulando a pesquisa e os
trabalhos acadêmicos no campo da literatura voltada para crianças e jovens. A cada dois
anos, a instituição organiza congressos que reúne seus membros e profissionais envolvidos
com livros infantis e juvenis, promovendo a leitura por todo o mundo. O evento é sediado
por uma seção nacional diferente a cada edição e conta com palestras, mesas redondas,
seminários e minicursos, além da celebração do prêmio Hans Christian Andersen –
considerado o Nobel da Literatura para crianças e jovens.

127
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

culturas estrangeiras e, paradoxalmente, elementos estrangeiros


geralmente são apagados em textos traduzidos. A autora continua
dizendo que os tradutores de livros infantis, por vezes, querem
“proteger” o leitor de ser desafiado além de sua capacidade, com
medo de que eles não compreendam elementos estrangeiros.
A autora também aborda a questão da assimetria na
comunicação a respeito da literatura infantil e em livros infantis: são
adultos que escrevem livros infantis, adultos que os editam, adultos
que os escolhem na livraria ou na escola e adultos que os criticam.
Em suma, “adultos atuam em nome das crianças em todos os
estágios nesta comunicação literária” (O’SULLIVAN, 2006, p.
113)2. A autora afirma que no processo de tradução para crianças,
essa assimétrica comunicação é refletida, dessa forma, desde a
seleção dos textos até os detalhes de como cada item será traduzido,
são submetidos à avaliação de editores e tradutores. De modo tal
que se avalia o que os pequenos leitores “podem entender, do que
eles gostam, o que é apropriado e aceitável. Essas normas e
suposições funcionam em níveis educacionais, socioculturais,
ideológicos e estéticos” (O’SULLIVAN, 2006, p. 113)3.
O’Sullivan (2003) trata da questão do agente da tradução, o
tradutor, e sua presença no texto traduzido. Para tanto, a autora
apresenta ferramentas teóricas e analíticas, um modelo

2 Adults act on behalf of children at every stage in this literary communication (O’SULLIVAN, 2006,
p. 113, tradução nossa).
3 Can understand, what they enjoy, what is suitable and acceptable. These norms and suppositions function

on educational, sociocultural, ideological and aesthetic levels (O’SULLIVAN, 2006, p. 113, tradução
nossa).

128
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

comunicativo da tradução, com base nos modelos de Chatman


(1978) e Schiavi (1996). Na Figura 1, o modelo de O’Sullivan (2003)
faz uma ponte entre os campos teóricos da narratologia e dos
estudos da tradução, ajudando a identificar o agente da mudança e o
nível de comunicação na qual as modificações mais relevantes
acontecem. É aplicável a todos os textos literários traduzidos, mas
devido à comunicação assimétrica na e em torno da literatura
infantil, o tradutor implícito se torna visível ou audível como o
narrador da tradução, sendo este particularmente tangível na
literatura infantil traduzida.

Figura 1: Modelo Comunicativo do Texto Narrativo Traduzido.

Fonte: Traduzido de O’Sullivan (2003, p. 201).

Por estar familiarizado com a língua fonte e com as


convenções daquela cultura, o tradutor se coloca na posição de leitor
implícito do texto fonte. O’Sullivan (2003, p. 201) ressalta que esse
fato é particularmente significativo no processo de tradução para
crianças, já que, como um adulto, o tradutor não pertence ao
público-alvo dos livros infantis. Dessa forma, ele precisa negociar
uma comunicação desigual no texto fonte entre o adulto autor
(implícito) e a criança leitora (implícita) para ser capaz de se colocar

129
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

no lugar desse último durante a tarefa de traduzir. A comunicação


entre o autor real do texto fonte e o leitor real do texto traduzido se
dá pelo tradutor real que se posiciona fora do texto, sendo seu
primeiro ato aquele de um agente receptor que, ainda em uma
posição fora do texto, transmite o texto fonte por meio de uma
agência intratextual do tradutor implícito (O’SULLIVAN, 2003, p.
202).
Entretanto, O’Sullivan (2003, p. 201), retomando Schiavi
(1996), esclarece que o tradutor não produz uma mensagem
completamente nova. O tradutor intercepta a comunicação e a
transmite, reprocessando-a para o novo receptor/leitor. Com a
interpretação do texto-fonte, seguindo certas normas, estratégias e
métodos, o tradutor, ainda segundo Schiavi, constrói uma nova
relação entre o texto traduzido e seu público-alvo, o que faz com
que o leitor implícito seja diferente daquele do texto fonte. O leitor
implícito da tradução, assim, pode ser equiparado ao leitor implícito
do texto fonte em muitos níveis, mas eles não são idênticos. Dessa
forma, O’Sullivan (2003, p. 201) conclui que o leitor implícito da
tradução sempre será uma entidade diferente do leitor implícito do
texto-fonte, o que se aplica a todos os textos ficcionais traduzidos.

3. Literatura infantil e linguística sistêmico-funcional

Knowles e Malmkjaer (1998) analisam a ideologia presente


na literatura infantil. Os autores utilizam a linguística sistêmico-

130
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

funcional para sua análise, partindo do princípio de que a língua é


um agente socializador, pois é por meio dela que a criança aprende
sobre o mundo social, sobre costumes sociais, instituições e
hierarquias (HALLIDAY, 1978). A língua de textos sociais,
incluindo aqueles que são lidos ou dados para as crianças, é um
agente particularmente eficiente na promoção da aceitação desses
costumes, instituições e hierarquias por parte da criança. Neste
artigo, adota-se o mesmo tipo de análise dos autores, com o uso da
linguística sistêmico-funcional, mas diferentemente de Knowles e
Malmkjaer (1998), a análise aqui será de livros de literatura infantil,
ilustrados e traduzidos.
A Linguística sistêmico-funcional, criada e desenvolvida por
Michael Halliday, postula que o texto, sob o ponto de vista de um
linguista, “é um fenômeno rico e multifacetado que ‘significa’ de
muitas formas diferentes”4 e que, consequentemente, possui várias
possibilidades de análise (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p.
3). Dentre essas possibilidades, duas se destacam: (i) um texto pode
ser analisado como um objeto passível de interpretação e avaliação
por parte do leitor; (ii) ou como um instrumento capaz de revelar
características do sistema linguístico no qual foi produzido. Ambas
as possibilidades se complementam, ainda que objetivem explicar
elementos diferentes (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).
A análise apresentada se baseou no texto como instrumento,
dado que objetivava examinar como os significados foram

4 Nossa tradução para: is a rich, many-faceted phenomenon that ‘means’ in many different ways.

131
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

realizados nos textos originais em inglês e nas suas respectivas


traduções para o português brasileiro, visando, a partir de uma
análise comparada e baseada nos recursos linguísticos utilizados por
autores e tradutores, identificar indícios da presença desses últimos
no texto traduzido. Para isso, adotou-se uma perspectiva de análise
que teve como ponto de partida as escolhas realizadas no âmbito da
léxico-gramática (HALLIDAY, 1978; HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004).
Sob a perspectiva da léxico-gramática, a oração é a unidade
básica de análise, uma vez que “é na oração que os diferentes tipos
de significados são correlacionados em uma estrutura gramatical
integrada”5 (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 10). Em
outras palavras, a oração é a unidade em que operam os três sistemas
(transitividade, modo e tema) vinculados a três metafunções
(ideacional/experiencial, interpessoal e textual), realizando
simultaneamente três funções diferentes e, consequentemente,
construindo três tipos de significados distintos.
A metafunção ideacional/experiencial via sistema de
transitividade é responsável por construir os significados
experienciais, ou seja, representar as experiências das pessoas no
mundo por meio de uma configuração de Processos, Participantes e
Circunstâncias, realizados gramaticalmente por grupos verbais, grupos

5 Nossa tradução para: it is in the clause that meanings of different kinds are mapped into an integrated
grammatical structure.

132
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

nominais e por grupos adverbiais e frases preposicionais,


respectivamente (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).
Já a metafunção interpessoal, por meio do sistema de modo,
possibilita a interação entre as pessoas. Tais interações sempre
envolvem algum tipo de troca, seja de informações, seja de bens e
serviços. As trocas de informações acontecem na forma de
proposições, isto é, via orações declarativas ou interrogativas. Já as
trocas de bens e serviços acontecem na forma de propostas,
geralmente por meio de orações imperativas (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004).
A metafunção textual, por sua vez, é responsável por
organizar os significados experienciais e interpessoais na oração e
caracterizá-la como mensagem via sistema de tema que confere a
cada oração uma estrutura temática (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004).
Com base no exposto, tem-se que a análise das orações que
compõem as obras infantis originais e traduzidas poderia ser
realizada sob três perspectivas diferentes, ou seja, segundo as
metafunções ideacional/experiencial, interpessoal e textual. Neste
artigo, optou-se por conduzir a análise apenas sob a perspectiva
textual, um dos motivos para tal decisão está no fato de que,
segundo Halliday (1978), é a metafunção textual que possibilita as
demais metafunções, isto é, a linguagem só é capaz de representar a
experiência e possibilitar a interação entre as pessoas porque é capaz

133
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

de fazê-lo na forma de texto. A metafunção textual e o sistema de


tema são apresentados mais detalhadamente a seguir.

3.1 A oração como mensagem e o sistema de tema

Cada oração possui uma estrutura temática composta de um


tema e um rema. Tema é o elemento ou informação escolhida para
ter proeminência na oração, ou seja, “é o elemento que funciona
como ponto de partida da mensagem; é o que localiza e orienta a
oração dentro do seu contexto”6 (HALLIDAY; MATTHIESSEN,
2004, p. 64). Já rema é “o restante da mensagem, a parte na qual o
tema é desenvolvido”7 (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p.
64).
O tema, por sua vez, é sempre composto por um elemento
experiencial (um participante, um processo ou uma circunstância),
que sinaliza o término do tema e o início do rema. Se possuir apenas
o elemento experiencial, o tema é considerado simples, porém, se,
além disso, possuir um elemento textual (conjunções, por exemplo)
ou um elemento interpessoal (como vocativos ou adjuntos modais)
ou ambos, é considerado um tema múltiplo (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004).
O tema pode ser, ainda, marcado ou não-marcado. Ele é
não-marcado quando conflui com o sujeito nas orações declarativas.

6 Nossa tradução para: is the element which serves as the point of departure of the message; it is that
which locates and orients the clause within its context.
7 Nossa tradução para: remainder of the message, the part in which the Theme is developed.

134
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Quando isso não ocorre, é classificado como marcado. Geralmente,


as circunstâncias de tempo e de lugar figuram como os temas
marcados mais comuns (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). A
seguir apresenta-se o Quadro 1 que ilustra a explicação acima a partir
de exemplos retirados do corpus de análise.

Quadro 1 – Os temas marcado e não-marcado na oração.


Tema Oração
loves to chew
Clifford
Simples shoes.
Não- Tema Rema
marcado
But I love you this much
Múltiplo
Tema Rema
I gave Clifford a
One Day
Marcado bath.
Tema Rema

No quadro, é possível observar três exemplos de temas que


ocorrem nas obras analisadas. O primeiro é um tema não-marcado
simples, uma vez que possui apenas o elemento experiencial que
conflui com o sujeito da oração Clifford. Já o segundo é um exemplo
de tema não-marcado, pois além do elemento experiencial que
conflui com o sujeito da oração I, tem-se também um elemento
textual, isto é, a conjunção But. Por fim, o terceiro exemplo é de um
tema marcado em que o ponto de partida da oração é uma
circunstância de tempo (One day) e não há confluência com o sujeito
que é I.

135
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

A estrutura temática da oração também desempenha um


papel importante na construção de um texto uma vez que o tema,
além de organizar os significados experienciais e interpessoais,
distribuindo a informação dentro da oração, também realiza essa
função ao longo do texto. Sendo assim, as escolhas feitas com
relação a qual elemento será o ponto de partida de cada oração, bem
como se o tema será marcado ou não-marcado conferem ao texto
uma estrutura e um padrão temático que o situam dentro de um
determinado gênero ou tipo de texto (HALLIDAY, 1978).
Para explicar a organização temática de um texto e como ela
está ligada a um determinado gênero ou tipo textual, é preciso,
primeiramente, analisar como a informação flui ao longo do texto.
A teoria sistêmico-funcional compara o fluxo de informação no
texto como ondas que vão se formando, acumulando e gerando
ondas ainda maiores. Tudo começa com o tema, que confere
proeminência a um determinado elemento da oração. Seguindo a
metáfora da onda, essa proeminência equivale à crista de uma onda,
sendo que é a combinação e acumulação dessas cristas ou dessas
ondas de informação que faz com que o significado flua ao longo
do texto, ao mesmo tempo, em que cria um ritmo, uma
periodicidade para o mesmo (MARTIN; ROSE, 2003).
O ritmo, por sua vez, é criado a partir das fases que podem
ser identificadas no texto. Essas fases, chamadas de fases do
discurso, são criadas por uma sequência de temas não-marcados
(temas que confluem com o sujeito da oração) e continuam até que

136
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

um tema marcado seja introduzido, pois, como os temas marcados


são compostos por elementos que não configuram como sujeitos da
oração, eles geram uma descontinuidade no discurso, ao mesmo
tempo que sinalizam o início de uma nova fase do mesmo
(MARTIN; ROSE, 2003).

4. Metodologia

Os passos metodológicos podem ser descritos sob as


seguintes etapas: 1) Escolha dos livros que compõem o corpus; 2)
Conversão dos textos para formato eletrônico; 3) Leitura dos textos
pelo software WordSmith Tools 6.0; 4) Análise das linhas de
concordância; 5) Análise da organização temática dos textos; 6)
Análise qualitativa dos dados.
Conforme mencionado anteriormente, o objetivo principal
deste artigo é identificar indícios da voz ou da presença discursiva
do tradutor em livros de literatura infantil traduzidos para o
português brasileiro, para tanto, foi compilado um pequeno corpus
de livros infantis e suas traduções. Sendo assim, o trabalho se insere
na área de Estudos da Tradução Baseados em Corpus (ETBC) e a
metodologia se baseia no uso de ferramentas da Linguística de corpus
com análise quantitativa e qualitativa dos dados.
O corpus escolhido é constituído por duas obras de literatura
infantil ilustradas, escritas originalmente em língua inglesa e suas
respectivas traduções para o português brasileiro. A escolha das

137
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

duas obras se deve à proximidade da data de publicação de suas


traduções no Brasil (1995 e 1996).
Clifford, the big red dog foi escrita por Norman Bridwell e
publicada pela primeira vez em 1963. A obra virou uma série de
livros publicados pela editora Scholastic Books. De 2000 a 2003, foi
adaptada para a TV e produzida pela Scholastic Studios. Neste artigo,
analisamos apenas a primeira obra da série e sua tradução para o
português brasileiro – Pacheco, o cachorro gigante –, traduzida no Brasil
por Maria Clara Machado e publicada em 1995.
Guess how much I love you foi escrita em 1994 pelo britânico
Sam McBratney e ilustrada por Anita Jeram. A obra recebeu muitos
prêmios e foi traduzida para mais de 37 línguas, além de ter sido
adaptada para desenho animado no meio televisivo. Sua edição
brasileira, traduzida por Fernando Nuno, Adivinha o quanto eu te amo,
foi publicada em 1996 e, desde então, tem sido um sucesso de
vendas, sendo distribuída gratuitamente pela Coleção Itaú de Livros
Infantis no ano de 2011.
Após a escolha do corpus, os textos foram digitados. Os
possíveis erros foram corrigidos e o arquivo foi convertido em
formato .txt para tornar possível sua leitura pelo programa
WordSmith Tools8. Uma vez preparados os textos, foram submetidos
à análise do programa. Com a leitura pela ferramenta WordList,
foram levantados dados estatísticos mais gerais do corpus e de cada

8Desenvolvido para a análise textual por Mike Scott e publicado pela Oxford University Press,
o WordSmith Tools é um programa cuja versão 3.0 pode ser baixada gratuitamente pelo site:
http://www.lexically.net/wordsmith/version3/index.htm.

138
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

um dos textos originais e textos traduzidos e suas linhas de


concordância, em seguida, foi criada uma nuvem de palavras para
cada obra original e tradução com o uso da mesma ferramenta para
análise.
Terminada a análise quantitativa, deu-se início a análise
qualitativa, inicialmente, com a verificação das escolhas tradutórias
nas obras, seguida pela análise da organização temática em cada
texto-fonte e texto traduzido com o intuito de se identificar a voz
ou presença discursiva dos tradutores nos textos traduzidos.

5. Análise das obras

5.1 Clifford, the big red dog e Pacheco, o cachorro gigante

A partir da análise do paratexto da obra brasileira já é


possível fazer uma observação relevante: enquanto na capa do livro
consta que foi “baseado em ilustrações e texto de Norman
Bridwell”, dando a entender que autoria é de Maria Clara Machado,
na folha de rosto, lê-se “tradução de Maria Clara Machado”.
Maria Clara Machado é uma renomada autora de livros
infantis, logo, seu nome aparecendo junto com o de Norman
Bridwell, na capa, pode ser entendido como uma estratégia
mercadológica da editora para chamar atenção para a obra, além de
valorizar sua tradução. No que diz respeito às ilustrações, são
basicamente as mesmas, mas as cores são mais claras e o efeito de

139
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

ilustrações, remetendo à lembrança da personagem principal, feito


por cores borradas nas páginas, não é levado à obra traduzida, que
apresenta ilustrações com cores sólidas e personagens com sombras
abaixo, localizando-os no espaço.
No que tange às opções tradutórias, destaca-se o uso do
advérbio de intensidade muito no texto traduzido. Como é possível
observar no Quadro 2, esse recurso é utilizado em três momentos
distintos, conferindo uma avaliação de intensidade que não está
presente no original e que pode ser interpretada como uma forma
de explicitação por parte da tradutora.

Quadro 2 – O uso do advérbio de intensidade muito no texto traduzido.


Clifford, the big red dog Pacheco, o cachorro gigante
We have fun together. Nós dois somos muito amigos.
We play games. Brincamos muito.
I’m a good hide-and-seek player Eu sou muito esperta!

Outro elemento interessante que também pode ser


interpretado como uma forma de explicitação é o uso de pontos de
exclamação no texto traduzido. Enquanto no texto-fonte não foi
verificado o uso desse tipo de pontuação, no texto alvo, foi
empregado sete vezes como ilustrado no Quadro 3.

Quadro 3 – Emprego do ponto de exclamação no texto traduzido.


Clifford, the big red dog Pacheco, o cachorro gigante
He makes mistakes sometimes. Mas, às vezes, ele traz outras coisas!
But he's a very good
Os ladrões têm medo dele!
watchdog.

140
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

The bad boys don't come Eu não tenho medo de nenhum


around anymore. moleque!
Todo cachorro tem casa... mas a do
His house was a problem, too.
Pacheco é diferente!
Confunde sapatos com chicletes... e
Clifford loves to chew shoes.
as flores com doces!
I’m a good hide-and-seek
Eu sou muito esperta!
player
I can find Clifford, no matter
Encontro Pacheco em qualquer lugar!
where he hides.

A seguir, será apresentada a análise da organização temática


dos originais e suas traduções. O objetivo é identificar, por meio das
escolhas de tema e rema, indícios da voz ou presença da tradutora,
bem como possíveis marcas de assimetrias como definidas por
O’Sullivan (2003) no texto traduzido.
Como apresentado anteriormente, a metafunção textual é
responsável por organizar o fluxo de informação na oração e ao
longo do texto por meio do sistema de tema que confere
proeminência a um determinado elemento da oração. Além disso, a
forma como a informação flui ao longo da oração e do texto é
comparada a uma onda (MARTIN; ROSE, 2003). A Figura 2
apresenta a organização temática em Clifford, com os temas
identificados em negrito.

Figura 2: A organização temática em Clifford, the big red dog.

141
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Fonte: Formulada pelas autoras.

Como é possível observar, a partir da Figura 2, a obra


Clifford, the big red dog possui uma predominância de temas simples
não-marcados, nos quais os sujeitos das orações, no caso a menina
Emily Elizabeth, que narra a história, e Clifford, seu cachorro, são os
elementos que mais recebem proeminência nas orações ao longo da
narrativa.
Além disso, ambas as personagens são frequentemente
retomados por meio dos pronomes pessoais I, He e We, que estão
presentes tanto nos temas simples quanto nos temas múltiplos,
acompanhados das conjunções and e but. A partir dessa organização
temática, é possível argumentar que o fluxo da narrativa se
assemelha à fala de uma criança (com repetição de pronomes,
construções e estruturas).

142
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

A organização temática da obra possibilita ainda a


identificação de cinco fases principais durante a história. A primeira
delas começa com a personagem Emily Elizabeth se apresentando,
em seguida, há três fases nas quais ela apresenta o seu cachorro de
estimação e tudo o que fazem juntos, bem como seus defeitos e
qualidades, por fim, há uma última fase na qual ela compartilha uma
experiência com o leitor.
É interessante mencionar que essa última fase é a mais bem
definida da história, pois é introduzida pelo único tema marcado
presente no texto. O tema em questão é a circunstância de lugar One
day, que não só gera uma descontinuidade no texto introduzindo
uma mudança no assunto, mas também inicia uma sequência
temática que conduz à conclusão da história.
Na sequência, a organização temática da tradução é
apresentada e discutida. No entanto, primeiramente, é necessário
esclarecer como a organização temática foi disposta na figura que a
ilustra. Inicialmente, os elementos que constituem os temas das
orações foram identificados em negrito, em seguida, os temas que
configuram como uma sequência de um mesmo assunto foram
localizados logo abaixo do tema que seguiam e sinalizados por meio
de um pequeno recuo para a direita.

143
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Figura 3: A organização temática em Pacheco, o cachorro gigante.

Fonte: Formulada pelas autoras.

A partir da análise da Figura 3, é possível observar que, assim


como no texto-fonte, há uma predominância de temas não-
marcados simples. No entanto, a diferença se apresenta no fato de
que, enquanto no original, esses temas são constituídos, em sua
maioria, pelas duas personagens principais, Emily Elizabeth e seu
cachorro, na tradução há uma maior variedade de sujeitos recebendo
proeminência na oração, como os ladrões e os outros tipos de
cachorros, por exemplo.
É importante mencionar também que muitos dos elementos
que passam a receber proeminência na oração do texto traduzido
estavam presentes no rema do texto original ou poderiam ser
depreendidos por meio das ilustrações. Um exemplo está na
presença de dois temas marcados realizados por circunstâncias de
tempo (Quando acampamos) e de espaço (No jardim Zoológico), que
contribuem para uma localização espaço-temporal da história que
não é feita no original. Sendo assim, é possível que essas escolhas
temáticas se configurem como indícios da presença da tradutora,

144
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

que julgou necessário explicitar determinados elementos da história


para o leitor.
Outra questão que emerge, a partir das escolhas temáticas
feitas pela tradutora, está no fato de que não é possível delimitar as
fases da narrativa traduzida de forma tão evidente como acontece
com o texto traduzido, pois a maior variedade de elementos
recebendo proeminência na oração faz com que a informação seja
distribuída de forma diferente ao longo do texto e com que o
assunto mude com maior frequência. Essa questão pode ser
novamente ilustrada pelos dois temas marcados, introduzidos no
texto traduzido, pois criam uma descontinuidade na narrativa que
não está presente no original. No entanto, é interessante apontar
ainda que o único tema marcado do original, que sinaliza a principal
mudança na narrativa, conduzindo-a para o seu desfecho não foi
mantida na tradução, evidenciando ainda mais a dificuldade de se
delimitar as fases do texto traduzido.

5.2 Guess how much I love you e Adivinha o quanto eu te


amo

Na obra Guess how much I love you, a capa apresenta apenas o


nome do autor Sam McBrateney e da ilustradora Anita Jeram, sendo
que o nome do tradutor aparece apenas na ficha catalográfica. As
ilustrações do texto traduzido são as mesmas do texto-fonte.
A história gira em torno de duas personagens: Big Nutbrown
Hare e Little Nutbrown Hare, no texto-fonte, e Coelho Pai e Coelhinho,

145
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

no texto traduzido. Chama atenção o fato de a obra em inglês não


aludir ao grau de parentesco entre as duas personagens, assim,
entende-se que são da mesma família por terem o mesmo
sobrenome, mas a relação não fica explícita para o leitor. Já no texto
em português, essa relação entre as personagens é explicitada como
sendo de pai e filho por meio das escolhas tradutórias para os nomes
dos mesmos: Coelho Pai e Coelhinho.
Outra questão interessante é a tradução de hare (“lebre”, em
português) como “coelho”. Nas figuras, pelo tamanho das
personagens, é possível notar que se trata de lebres. Uma explicação
para essa escolha do tradutor é o fato de, no Brasil, a lebre não ser
um animal tão comum quanto o coelho. Lebres são encontradas na
Europa, Ásia, África e América do Norte. Uma diferença evidente
entre os dois animais é o tamanho de seus membros posteriores.
Além disso, a tradução do nome das personagens se configura como
um grande desafio para o tradutor por uma questão de gênero da
língua portuguesa: a palavra lebre serve apenas para designar a fêmea
do animal, sendo o macho “lebrão” ou “lebracho”, enquanto o
filhote é chamado de “láparo”. Assim, o tradutor optou por Coelho
Pai e Coelhinho já que o uso da palavra “lebrão” ou “láparo” poderia
causar certa estranheza na leitura de uma obra infantil.
A análise da obra traduzida também aponta para o uso de
pontos de exclamação pelo tradutor em uma frequência maior do
que o autor do texto fonte. No total, são duas ocorrências de ponto
de exclamação no texto-fonte, mantidas no texto traduzido, e seis

146
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

no texto traduzido, duas trazidas do texto-fonte e outras quatro


acrescentadas pelo tradutor, o que pode ser interpretado como uma
forma de explicitação por parte do tradutor (Quadro 4).

Quadro 4 – Emprego do ponto de exclamação no texto fonte e texto traduzido.


Guess how much I love you Adivinha o quanto eu te amo
Big Nutbrown Hare had even Só que o Coelho Pai tinha os
longer arms. “But I love you this braços mais compridos. E disse:
much,” he said. - E eu te amo tudo isto!
“I love you all the way up to my - Eu te amo até as pontas dos
toes!” he said. dedos dos meus pés!
“I love you as high as I can hop!” - Eu te amo a altura do meu pulo!
laughed Little Nutbrown Hare, - riu o Coelhinho, saltando para lá
bouncing up and down. e para cá.
“I love you right up to the moon,” Eu te amo ATÉ A LUA! – disse
he said, and closed his eyes. ele, e fechou os olhos.
“Oh, that’s far,” said Big - Puxa, isso é longe – disse o
Nutbrown Hare. “That is very, Coelho Pai. – Longe mesmo!
very far.”
Then he lay down close by and Depois, deitou-se ao lado do filho
whispered with a smile, “I love e sussurrou sorrindo:
you right up to the moon – and - Eu te amo até a lua... IDA E
back.” VOLTA!

No texto-fonte, as ênfases são marcadas com o uso de


itálicos, recurso comumente empregado nos textos em língua
inglesa. Ressalta-se que o tradutor transpôs tal marcação para o texto
traduzido, como pode ser visualizado no Quadro 5. Tal feito
confirma a hipótese de Saldanha (2011) que mostra uma tendência

147
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

do uso de itálicos para ênfase em textos traduzidos em língua


portuguesa, embora esse uso não se constitua como uma função do
itálico em português. Além da marcação de ênfase com o uso de
itálicos no texto traduzido trazidas do texto-fonte, é possível notar
que o tradutor faz o uso mais recorrente desse recurso no texto
traduzido se comparado ao texto-fonte, como pode ser observado
nas linhas 3 e 4 do Quadro 5.

Quadro 5 – O uso de itálicos para ênfase no texto fonte e texto traduzido.


Guess how much I love you Adivinha o quanto eu te amo
1 Big Nutbrown Hare had even Só que o Coelho Pai tinha os
longer arms. “But I love you this braços mais compridos. E disse:
much,” he said. - E eu te amo tudo isto!
2 “I love you as high as I can - E eu te amo toda a minha
reach,” said Big Nutbrown altura – disse o Coelho Pai.
Hare.
3 “And I love you all the way up - E eu te amo até as pontas dos
to your toes,” said Big teus pés – disse o Coelho Pai,
Nutbrown Hare, swinging him balançando o filho no ar.
up over his head.
4 “But I love you as high as I can - E eu te amo a altura do meu
hop,” smiled Big Nutbrown pulo – riu também o Coelho
Hare - and he hopped so high Pai, e saltou tão alto que suas
that his ears touched the orelhas tocaram os galhos da
branches above. árvore.

Além dos itálicos para ênfase que o tradutor transporta do


texto-fonte, pode-se destacar o uso de palavras e frases em “caixa
alta” a fim de dar ênfase, conforme a Quadro 6. O uso de “caixa
alta” pode ser interpretado como um aumento no tom de voz ou

148
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

grito, recurso muito usado principalmente após o advento da rede


mundial de computadores.

Quadro 6 – O uso de caixa-alta para ênfase no texto-fonte e no texto traduzido.


Guess how much I love you Adivinha o quanto eu te amo
1 “I love you right up to the Eu te amo ATÉ A LUA! –
moon,” he said, and closed his disse ele, e fechou os olhos.
eyes.
2 Then he lay down close by and Depois, deitou-se ao lado do
whispered with a smile, “I love filho e sussurou sorrindo:
you right up to the moon - and - Eu te amo até a lua... IDA E
back.” VOLTA!

A parte final da obra, apresentada na linha 2 do Quadro 6,


apresenta uma mudança de sentido interessante como resultado do
emprego desse recurso. No texto-fonte, a personagem Big Nutbrown
Hare coloca Little Nutbrown Hare para dormir e sussurra com um
sorriso “I love you right up to the moon – and back”. A última palavra da
história, back, termina a obra com Big Nutbrown Hare colocando Little
Nutbrown Hare para dormir, entende-se, pois, que o pequeno termina
a história “pegando no sono”. Já no texto traduzido, o recurso
utilizado pelo tradutor não deixa a mesma interpretação: o pai
coloca o filho para dormir, deita-se ao seu lado e sussurra sorrindo
“Eu te amo até a lua... IDA E VOLTA!”. O recurso da “caixa alta”
para enfatizar o amor do pai pelo filho não dá a ideia de que o
coelhinho termina a história pegando no sono, já que o aumento no

149
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

tom de voz é ainda reforçado pelo ponto de exclamação que termina


a narrativa.
No que diz respeito à analise da organização temática da
obra Guess how much I love you, é possível verificar que os elementos
que recebem proeminência nas orações tendem a ser os mesmos no
texto-fonte e texto-alvo, conforme é apresentado na Figura 4.

Figura 4: Temas em Guess how much I love you e Adivinha o quanto eu te amo.

Fonte: Formulada pelas autoras.

Na Figura 4, é possível observar que os temas em ambas as


obras são majoritariamente temas simples, com as personagens
principais recebendo proeminência nas orações. Também é
possível verificar que essas personagens são frequentemente

150
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

retomadas pelos pronomes pessoais I e Eu, logo, sua repetição,


como forma de referência a ambas as personagens, é uma
característica da organização temática tanto do texto-fonte quanto
do texto traduzido.

6. Considerações finais

Em linhas gerais, nas obras analisadas, há uma tendência, na


literatura infantil traduzida para o Brasil, de mudança na organização
temática, de mudança na pontuação, de explicitação das imagens, de
mudança no nome das personagens, de uso de itálicos e de caixa alta
para ênfase. Esses recursos remetem à voz ou à presença discursiva
do tradutor nos textos analisados.
A obra traduzida Pacheco, o cachorro gigante apresenta mais
mudanças no que se refere à organização temática e explicitação das
imagens. A presença da tradutora Maria Clara Machado é notada
desde a capa do livro, com seu nome escrito juntamente com o da
autora Norman Bridwell. Foi possível identificar uma maior
variedade de elementos recebendo proeminência ao longo do texto.
Elementos esses que, no original, faziam parte do rema ou estavam
implícitos nas imagens dos quais a tradutora optou por explicitá-los
no tema. Dessa forma, é possível argumentar que essas questões
configuram não só como indícios da presença da tradutora, mas
também tornam o texto traduzido menos dependente das imagens

151
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

do que o original, com a tradutora “narrando” as ilustrações para


seu leitor.
A obra traduzida Adivinha o quanto eu amo apresentou mais
mudanças no que se refere ao uso de recursos para ênfase. O uso de
“caixa alta”, por exemplo, que não aparecia no original, direciona a
interpretação do leitor e, em dados momentos, a torna diferente
daquela do texto original, como no trecho final da obra. Nesse livro,
ainda foi maior o uso de pontos de exclamação e uso de itálicos para
ênfase do texto-fonte.
Além disso, em Adivinha o quanto eu amo, a relação de
parentesco entre as personagens foi explicitada nos nomes
utilizados na tradução (Coelho Pai e Coelhinho), sendo que essa relação
fica apenas subentendida na obra original. A mudança do animal
ilustrado nas figuras também foi notada, a qual pode ser justificada
pelo gênero feminino da palavra “lebre” em língua portuguesa, em
contraposição ao gênero masculino das personagens da obra. Assim,
pode-se concluir que, apesar de o nome do tradutor aparecer apenas
na ficha catalográfica, sua presença pode ser vista/ouvida por toda
a obra traduzida.
Por fim, destaca-se que as mudanças analisadas mostram
indícios de um leitor implícito que o tradutor tem em mente
enquanto traduz, como destacado por O’Sullivan (2003), o qual se
pretende analisar em mais detalhes em trabalhos posteriores.

152
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Referências bibliográficas

BRIDWELL, N. Pacheco, o cachorro gigante. Tradução de Maria Clara


Machado. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.

______. Clifford, the big red dog. New York: Scholastic INC., [1963]
2010.

CHATMAN, S. Story and Discourse. Narrative Structure in Fiction and


Film. London: [s.n.], 1978.

HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotics. London: Edward


Arnold, 1978.

HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. An introduction to


functional grammar. 3. ed. Londres: Edward Arnold, 2004.

KNOWLES, M.; MALMKJAER, K. Language and control in children’s


literature. London and New York: Routledge, 1998.

MARTIN, J. R.; ROSE, D. Working with discourse: Meaning beyond


the clause. London: Continuum, 2003.

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Candlewick Press, 1996.

______. Adivinha o quanto eu te amo. Tradução de Fernando Nuno. 3.


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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voice of the Translator in Children’s Literature. Meta : journal des
traducteurs / Meta: Translators' Journal, 48, 2003. p. 197-207.

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children’s literature: A reader. Clevedon, New York, Ontario:
Multilingual Matters, 2006. p. 113-121.

153
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______. Why translate children’s books? 33rd IBBY Congress. London:


International Board on Books for Young People, 2012.

SALDANHA, G. Emphatic Italics in English Translations: Stylistic


Failure or Motivated Stylistic Resources? In: Meta : journal des
traducteurs / Meta: Translators' Journal, 56, 2011. p. 424-442.

SCHIAVI, G. There is Always a Teller in a Tale. In: Target, n. 8,


1996. p. 1-21.

154
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

PROCEDIMENTOS TRADUTÓRIOS E TEORIA LITERÁRIA


NAS TRADUÇÕES DE GEIR CAMPOS DE FOLHAS DE RELVA,
DE WALT WHITMAN

Bruno GAMBAROTTO

“A grandiosidade do conteúdo da poesia de Whitman seria


uma função da forma derramada de seus versos?”
Geir Campos, 1983

O presente artigo visa a uma breve avaliação da recepção e


das traduções poéticas brasileiras de Leaves of Grass, de Walt
Whitman, com foco no trabalho do tradutor fluminense Geir
Campos. O interesse de tal avaliação é refletir sobre as
possibilidades de incorporação mediadora dos campos da história e
da teoria literárias à prática tradutória. Para especificar o horizonte
teórico do qual partem os questionamentos deste artigo, formulo
duas questões: 1) como avaliar uma tradução literária a partir das
determinações histórico-sociais que permeiam o trabalho do
tradutor e, principalmente, seu produto enquanto forma literária? 2)
Será possível, mediante pesquisa literária, eliminar os abismos
culturais e históricos que possam separar sociedades e tornar
possível e acessível a um determinado grupo-leitor uma obra que
jamais poderia ter sido produzida em seu próprio contexto para
além do artifício da tradução? Evidentemente, são questões que


USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Brasil.
bruno.gambarotto@usp.br

155
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

transcendem ao caso que trazemos à baila, aplicando-se ao ofício do


tradutor literário em geral. É preciso expô-las em relação ao autor e
ao tradutor analisados.
O poeta norte-americano Walt Whitman (1819-1892) traz
dificuldades bastante específicas a seus tradutores. O tradutor de
poesia é geralmente consagrado pela habilidade com que maneja a
grade formal de um poema. Para ficarmos apenas no exemplo
europeu clássico, isto é, o da poesia de cunho classicizante que se
desenvolve a partir do século XIV e se mantém dominante até fins
do século XVIII em seus diversos modos de construção, cujas
habilidades pressupõem a eficiência do tradutor no trabalho com
medidas e padrões de cunho universalizante: trata-se de formas
fechadas (em seus mais variados gêneros), modelos de assonância
(rima, aliterações etc.), quantidade (sílabas longas ou breves) e
qualidade (tônicas ou átonas) rítmicas que se disseminam por toda a
Europa e constituem uma cultura literária comum, cujas fórmulas –
sejam estas tributárias do sentido ou da forma – são compartilhadas.
A partir da poesia italiana do Renascimento, institui-se certo
conjunto de formas poéticas (a mais importante, o soneto) que
percorre as cortes europeias juntamente com certos
desenvolvimentos tópicos (relacionados à lírica amorosa, por
exemplo). É sabido que o esforço de aclimatação de formas fez com
que o ofício da tradução acompanhasse pari passu a produção literária
propriamente dita a ponto de mal diferenciar-se desta – como se
poderia depreender do petrarquismo dos portugueses Sá de Miranda

156
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

e Luis de Camões, responsáveis pelo aporte e consolidação da


“medida nova” em sua corte. Tirante questões históricas e sociais
que marcam quaisquer especificidades literárias, o trabalho do
tradutor literário com a poesia tradicional exige o conhecimento de
uma comunidade prévia e consolidada de formas em que mesmo as
equivalências (a tradução do pentâmetro jâmbico pelo decassílabo
em versões do inglês para o português, por exemplo) conhecem
consagração literária que independe do arbítrio e das decisões do
profissional contemporâneo, senão pela necessidade que este terá
de estudá-las e conhecê-las.
O virtuosismo e a cultura daqueles que lidam com essa
máquina que é o poema tradicional ganham outro interesse quando
o assunto é poesia moderna, horizonte do tradutor que se depara
com Leaves of Grass, de Walt Whitman. Ao longo de quase quarenta
anos (1855-1892) e sete edições em que se constrói o volume,
Whitman traz a lume uma das mais importantes e radicais
experiências poéticas da modernidade, instaurando as balizas de
uma poesia propriamente norte-americana ao mesmo tempo em que
produz uma veemente crítica aos modelos da poética europeia e à
instituição literária do Velho Mundo. Transportando esse breve
comentário às preocupações tradutórias acima formuladas, tem-se
aqui um primeiro momento do que consideramos a necessidade do
aporte da história e da teoria literárias ao exame do autor a ser
traduzido. Sob a perspectiva da crítica whitmaniana e, portanto, do
mapeamento das tensões estéticas, sociais, históricas e culturais

157
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

implicadas no desenvolvimento de sua prática poética, a primeira


questão que se coloca diz respeito ao que está em jogo nos versos
de Leaves of Grass. Em sentido bastante amplo, estaríamos diante do
que seria a primeira grande experiência poética moderna sob a forma
de verso livre; no entanto, é bastante problemático assimilar a
liberdade do verso whitmaniano à violência que constitui o
rompimento dos poetas franceses com a prosódia clássica da poesia
francesa – processo já presente em Baudelaire, mas que é levado às
últimas consequências com Rimbaud, Laforgue e Mallarmé nas três
últimas décadas do século XIX, disseminando-se, já sob uma nova
e organizada busca por unidades de ritmo e extensão do verso, na
poesia de vanguarda.
O verso livre de Whitman conhece a ruptura em sentido
muito mais próximo das experiências poéticas do século XX do que
de seus contemporâneos franceses. Justifica-se tal proximidade a
partir de um sentido de invenção que perpassa tanto as necessidades
de reorganização da pesquisa poética europeia em torno do
esfacelamento da grande tradição clássico-humanista – recuperada e
compartilhada mediante os esforços do “talento individual” e da
construção autoral das “tradições”, para ficarmos com T. S. Eliot1 –
quanto o experimento de Whitman de abandono do pentâmetro
jâmbico e exploração do ritmo dos versículos bíblicos, da poesia de
base popular e, principalmente, da prática oratória, disseminada de

1Cf. ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: Ensaios (tradução, introdução e notas
de Ivan Junqueira). São Paulo: Art Editora, 1989, p. 37-48.

158
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

modo indiscriminado no púlpito religioso e nos palanques políticos.


Chama-se, aqui, invenção o trabalho estético de Whitman a partir da
heterogeneidade de registros e modos discursivos concorrentes à
constituição do verso. Essa já se apresenta nas famosas linhas que,
em 1855, abrem o poema sem nome que viria a ser a primeira versão
de “Canção de mim mesmo”:
I celebrate myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.2

Que o leitor atente à indiferença prosaica, à regularidade


métrica, à ressonância bíblica de “shall” e ao endereçamento ao
outro (“you, whoever you are”, na fórmula consagrada por sua poesia),
anônimo com o qual se compartilha uma experiência medida por
“átomos” absolutamente estranhos ao horizonte temático da poesia
tradicional. Diante de tal obra, torna-se redutora uma postura
tradutória que, evidentemente, liberada das dificuldades do verso
tradicional, limite-se a transpor seus versos sem qualquer cuidado
rítmico – julgando-os por sua irregularidade e prosaísmo sem
qualquer consulta ao forte valor cultural de que são prenhes –, ou
ainda, rendendo-se a uma versão instrumental, ou ad verbum, que não
busque a identificação das nuances e o embate com as possibilidades
de sua transposição formal e semântica.

2 Na tradução de Rodrigo Garcia Lopes, temos: “Eu celebro a mim mesmo/E o que eu
assumo você vai assumir, /Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você”.
WHITMAN, Walt. Folhas de relva (A primeira edição, 1855. Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia
Lopes). São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 45.

159
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Dados os problemas mais imediatos da versão de Whitman,


passemos a sua avaliação em chave brasileira. Apesar de largamente
publicado no último decênio – são duas as traduções completas de
Leaves of Grass (publicadas por Luciano Alves Meira, em 2005, e por
mim, em 2011), sem contar o importante trabalho de Rodrigo
Garcia Lopes com a primeira edição do volume (1855), publicada
em 20053, Walt Whitman foi objeto de interesse literário e tradutório
no Brasil ao longo de todo século XX4, a começar pelos
Modernistas. Sendo que o interesse, neste artigo, é investigar as
possibilidades de incorporação da teoria literária e da história crítica
à prática tradutória, começo tratando dessa primeira recepção de
Whitman – da qual depreendo, como se verá, um prenúncio das
dificuldades compartilhadas por tradutores futuros.
Whitman chega ao Brasil passando primeiramente pelas
vanguardas europeias, que assimilaram às suas preocupações a
“liberdade” e a “grandeza messiânica” da poesia whitmaniana. No
“Prefácio Interessantíssimo” de Mário de Andrade, a sua Pauliceia
desvairada (1922), vemos o poeta citado em uma lista que inclui

3Cf. Bibliografia.
4Sabe-se, pela prof. Maria Clara Bonetti Paro (Unesp de Araraquara), que a reunião de
traduções de Whitman produzidas desde a década de 1920 contavam com muitas versões
dos mesmos poemas e, em contrapartida, lapsos que só vieram a ser corrigidos com a
edição citada. Cf. PARO, Maria Clara Bonetti. Leituras brasileiras da obra de Walt Whitman.
Tese de doutoramento. Universidade de São Paulo. Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada, 1995. ______. Recepção literária de Walt Whitman no Brasil (1917-
1929). Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 1979.

160
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

nomes díspares como São João Evangelista e Mallarmé5; e entre os


modernistas, Whitman logo transcende as perspectivas
vanguardistas que o colocavam ora nas hostes futuristas, ora nas
espírito-novistas6, para se tornar um poeta de verve nacional –
tendência fundamental de nosso Modernismo. Mário de Andrade,
de maneira crítica, e Ronald de Carvalho, de maneira menos tensa e
mais mimetizante, assumiram o estudo da obra de Whitman nesse
período do qual extraíram, pelo menos, uma grande contribuição –
a Lira paulistana, de Mario de Andrade, já em compasso de revisão
do Modernismo (1945) – e parte dos poemas Toda a América, de
Ronald de Carvalho (1926), bastante calcado nas longas
enumerações descritivas que compõem os “catálogos” de
Whitman7.

5
“Você já leu São João Evangelista? Walt/ Whitman? Mallarmé? Verhaeren?”. “Prefácio
Interessantíssimo”. In: ANDRADE, Mário de. Poesias completas (Edição crítica de Diléa Zanotto
Manfio). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005, p. 60.
6 Cf. APOLLINAIRE, G. “A tradição antifuturista (Manifesto síntese, 29 de junho de

1913)”; “O Espírito novo e os poetas”. In: TELES, G. M. Vanguarda europeia e modernismo


brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1997.
7 Para exemplificar tecnicamente o processo de enumeração na obra de Whitman

conhecido como “cataloguing”, cito o início da seção 15 de “Canção de mim mesmo”: “A


contralto puro canta na sala do órgão,/O carpinteiro corta a tábua, a lâmina da plaina
assovia a seus gestos ascendentes e vigorosos,/ Os filhos casados e solteiros vão para casa
para o jantar do dia de Ação de Graças,/ O piloto agarra o leme, seu braço forte o puxa
para baixo,/ O imediato está a postos no bote baleeiro, arpão e lança estão prontos,/ O
caçador de patos caminha silencioso e se move com cautela,/ Os decanos são ordenados
com as mãos cruzadas no altar,/A tecelã recua e avança ao zunir da roda do tear,/O
fazendeiro para no cercado de um domingo tranquilo e observa o trigo e o centeio,/O
louco é enfim levado para o asilo, um caso confirmado,/(Ele nunca mais dormirá como
dormia no catre do quarto de sua mãe;) [...]” WHITMAN, Walt. Folhas de relva (Edição
do leito de morte. Organização e tradução de Bruno Gambarotto). São Paulo: Editora
Hedra, 2011, p. 54.

161
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Como poetas, Mário e Ronald assinalam, ao meu ver, os


limites da assimilação da poesia de Whitman pelo Modernismo e a
poesia brasileira dele derivada. Na Lira paulistana, de Mário, são
muitos os níveis da presença whitmaniana. Já na introdução da série
de fragmentos sem título que ocupa praticamente todo o volume, a
“história da viola” (“Minha viola bonita/ Bonita viola minha,/
Cresci, cresceste comigo/ Nas Arábias”) remonta a, pelo menos, um
aspecto da “Canção do Machado”8, de Whitman, que seja, a
recuperação da experiência social que dá forma aos instrumentos (a
viola e o machado) que ensejam ambos os cantares. Recuperar a
experiência social e histórica que dá sentido à forma literária é
central para ambos – e é essa perspectiva que abona a aproximação
crítica dos poetas, não obstante a técnica de verso popular
empregada na primeira parte da Lira difira diametralmente dos
versos derramados de Whitman. Mário observa, porém, como
Whitman, uma formação social do verso. Suas trovas não remontam a
um saber abstrato, preciosismo de pesquisador. De suas rimas e
refrãos salta algo dos cantares tradicionais em choque com a
metrópole, e nisso, os versos ganham uma dimensão social, uma
perspectiva historicamente concertada (isto é, pelo conflito de
classes e interesses que sugere o enfrentamento e o empenho
próprios à Lira) da qual surge a variedade das observações e
experiências que se permitem vazar pela “viola”. Assim, incorpora-

8Cf. “Canção do machado, 3”. In: Folhas de relva (Edição do leito de morte. Organização e tradução
de Bruno Gambarotto). São Paulo: Editora Hedra, 2011, p. 162-163.

162
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

se uma discursividade multifacetada que, à maneira de “Canção de


mim mesmo”, de Whitman, vai da blague ao lirismo e, desse, à
narrativa.
Pensar a Lira paulistana, de Mário, sob a perspectiva de sua
incorporação da poesia whitmaniana significa atentar a um
importante problema de forma no que tange à recepção de
Whitman: a produção social da forma poética, tal como reconhecida
por Mário e Whitman, implica uma especificidade material que, no
limite, impossibilita a simples reprodução da forma. O verso
whitmaniano torna-se, para Mário, inacessível (intraduzível?) da
perspectiva de sua imitação – o palanque político, o púlpito religioso
e a oratória, fundamentais para o alargamento da experiência rítmica
do verso whitmaniano, não pertencem à experiência brasileira9. Há,
em contrapartida, a possibilidade de reflexão comum sobre a
subjetividade e a vida conflituosa na metrópole. É com essa visada
que Mário volta-se a Whitman, ao mesmo tempo em que ressignifica
modelos poéticos tradicionais sob a ótica dos antagonismos sociais.
A preterição velada que Mário faz do verso longo whitmaniano

9 Como dirá Maria Clara Bonetti Paro (1995) em sua pesquisa seminal da presença de
Whitman no Brasil, muito embora o norte-americano tenha servido de exemplo para Mário
construir (como em Ronald de Carvalho) uma intenção de pluralidade na constituição de
si (“Tenho um mapa-múndi de estados de alma”, ou “Sou o compasso que une todos os
compassos”), nem sempre veremos Mário aderindo incondicionalmente ao poeta norte-
americano. A consulta à marginalia da edição que Mário de Andrade possuía de Leaves of
Grass nos mostra como o impulso de aceitá-lo era acompanhado do reconhecimento de
diferenças intransponíveis. Escreve Mário no frontispício de sua edição, em comentários
que ecoam a construção de Lira paulistana: “Eu não entro no poema”. Versos geralmente
longos. Mostrar a miséria moral do Brasil, por causa da infâmia da política republicana com
palavras enérgicas e cuidar da eloquência para que seja viril e humana e não romântica e
pessoal. Esse tema faz sim polifonia durante todo o poema com a descrição do assunto
gerador. Em partes separadas, talvez, como Song of Myself? (PARO, 1995, p. 87).

163
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

como forma possível de enfeixamento da experiência na metrópole


brasileira (e confirmada, como boa regra, pela declarada emulação
promovida pelo poeta na peça que fecha a Lira, “Meditação sobre o
Tietê”, em que o sentido amargo de revisão da vida dialoga
diretamente, em sua versão whitmaniana, com “Travessia pela balsa
do Brooklyn”) terá ressonância, enquanto experiência de recepção literária
no âmbito cultural brasileiro, no histórico das dúvidas tradutórias
propiciadas por Whitman.
Em sentido inverso, a “influência” de Whitman em Ronald
é muito mais evidente – há em Ronald a mimetização do verso livre
whitmaniano, da organização catalógica, dos longos arrolamentos
descritivos, porém, sem muita reflexão sobre a relação entre a
matéria que passa a figurar nesse modelo expressivo e a constituição
desse10. Ronald, porém, produziu o que se tornaria praxe na tradução

10 Veja-se Brasil, poema de Toda a América: “Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo,
gritando, vociferando!/Redes que se balançam,/sereias que apitam,/usinas que rangem,
martelam, arfam, estridulam, ululam e roncam, /tubos que explodem,/guindastes que
giram,/rodas que batem,/trilhos que trepidam,/rumor de coxilhas e planaltos, campainhas,
relinchos, aboiados e mugidos,/repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro-Preto,
Bahia, Congonhas, Sabará,/vaias de Bolsas empinando números como papagaios,/tumulto
de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,/vozes de todas as raças que a maresia dos portos
joga no sertão!//Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil./Todas as tuas conversas, pátria
morena, correm pelo ar.../a conversa dos fazendeiros nos cafezais,/a conversa dos
mineiros nas galerias de ouro,/a conversa dos operários nos fornos de aço,/a conversa dos
garimpeiros, peneirando as bateias/a conversa dos coronéis nas varandas das roças...//Mas
o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro/palmas paradas/pedras
polidas/claridades/brilhos/faíscas/cintilações/é o canto dos teus berços, Brasil, de todos
esses teus berços, onde dorme, com a boca escorrendo leite, moreno, confiante,/o homem
de amanhã!” (CARVALHO, 1960, p. 46) O poema “Brasil” (claramente inspirado em “I
Hear America Singing”, de Whitman) traz um bom apanhado dessa primeira leitura do poeta
norte-americano, uma súmula de procedimentos métricos e imagéticos: a diferença
regional transformada em variedade tipológica, que arrolando figuras díspares como
“arranha-céus” e “garimpeiros”, promoverá o comum; o gigantismo do sujeito poético, que
dá para si a amplitude das manifestações sonoras e visuais arroladas sob o signo do país;
os versos longos, modulados pela velocidade com que os elementos se sucedem. O

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

de Whitman: a reprodução do verso livre whitmaniano sem maiores


reflexões sobre as condições de seu surgimento enquanto invenção,
aclimatando-o ao português mediante uma tradição de versificação
livre europeia (principalmente francesa) que não compreende o
verso livre sob o mesmo ímpeto comunicativo e declamatório de
Whitman – do qual o reforço retórico aos aspectos místico-
românticos de sua poesia, a uma grandiloquência passional desfeita
de sua contrapartida comunicativa. Mário, por sua vez, recorre a
formas populares e orais que, socialmente equivalentes do que pressupõe
o verso whitmaniano, são formalmente estranhas a ele, pois – este é
o ponto a que quero chegar – a urbanidade liberal que dá impulso à
poesia de Whitman era, nos idos de 1945 (e mesmo antes, quando
Mário inicia seus estudos sobre a obra de Whitman), incipiente –
para não falar em seu tortuoso desenvolvimento no meio brasileiro.
A ver pelas respostas de nossos literatos, a grandeza de
Whitman não se apresenta necessariamente em função de seu
“verso derramado”, mas da compreensão do movimento crítico que
baliza sua invenção. Como nossos tradutores enfrentarão essa
questão?

panorama brasileiro é amplo, seu ritmo rápido e variado; corre do urbano ao rural; registra
seus contrastes; e, sobretudo, configura um modo de perceber as transformações em curso,
abraçando a um só tempo o mais arcaico e, principalmente, o mais moderno, com sua
euforia de futuro. O poeta da ingênua saudação natalina ficaria extasiado diante desse canto
grandioso, vazado pela poesia de Carvalho – extasiado a ponto de talvez não perceber a
medida da imitação submissa e da incongruência do arroubo nacional que, certamente, dão
o motivo da reação de Mário de Andrade (um dos principais nomes do Modernismo a que
Ronald também se filiava), que, alguns anos depois, publica seus “Dois poemas acreanos”
dedicados a Carvalho.

165
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

O tradutor que, de maneira mais radical, deparou-se com


essa dificuldade foi Geir Campos. Embora não tenha se dedicado a
uma tradução integral das Folhas, Campos acabou por legar duas
versões muito distintas de sua compilação – Folhas de relva, coletânea
publicada em 1964, pela Civilização Brasileira; e Folhas das Folhas de
relva, publicada pela Brasiliense em 1983. Nelas, torna-se central o
problema de como verter o verso whitmaniano dando relevo a suas
marcas discursivas na língua e cultura de chegada. Vejamos, para
tanto, duas versões do poema “Are you the new person drawn toward
me?”, que doravante nos servirá de parâmetro. O original do poema,
publicado pela primeira vez na seção “Calamus” (“Cálamo”), de
1860, é:

Are you the new person drawn toward me?


To begin with, take warning, I am surely far different from what you suppose;
Do you suppose you will find in me your ideal?
Do you think it so easy to have me become your lover?
Do you think the friendship of me would be unalloy’d satisfaction?
Do you think I am trusty and faithful?
Do you see no further than this façade, this smooth and tolerant manner of me?
Do you suppose yourself advancing on real ground toward a real heroic man?
Have you no thought, O dreamer, that it may be all maya, illusion?11

Embora reflita uma escrita lírica mais próxima dos padrões


consagrados, seja pela temática, seja pela extensão, podemos
produzir, a partir da peça, o apanhado técnico que marca os voos

11WHITMAN, Walt. Poetry and Prose (Library of America). New York: Library of America,
1996, p. 277.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

mais altos e verborrágicos da poesia whitmaniana, presentes em


“Canção de mim mesmo” e nas demais “canções”. O poema citado
traz, dessa poesia, o impulso dialógico que organiza e molda a voz
lírica. O sujeito não expõe uma condição de si para si, tampouco
aponta ao recolhimento íntimo e solitário que marca o lirismo e a
poesia em geral, sobretudo, a partir do romantismo; marca o poema
o esforço de socialização, o movimento ao outro, confrontado em
suas pretensões e posto em conflito com a perspectiva de que o eu-
lírico tem de si. Em termos linguísticos, essa postura dialógica se
adéqua a um tom informal, plataforma da representação dramática
(outro elemento recorrente na poesia de Whitman) que emoldura o
poema, impondo a seus versos o ritmo não dos pés métricos (cuja
regularidade não se percebe), mas da personagem em ação, dando vazão
a suas preocupações. A linguagem do poema parte, portanto, de um
esforço mimético; esse, por sua vez, dá um sentido passional ao
paralelismo (outro recurso próprio à poesia whitmaniana) da
sequência de perguntas endereçadas ao outro, movendo o ato
declamatório não pela regularidade de pés e cesuras, mas por um
fluxo que só a imitação da situação comunicativa permite controlar.
Nas duas versões de Geir Campos, lemos:

És a nova pessoa vinda a mim? A nova pessoa que vem a mim


Toma um aviso, para começar: com é você?
certeza eu sou muito diferente de Ouça um conselho, para começar:
quanto imaginaste. eu sou com certeza bem diferente
Imaginas que em mim acharás teu
do que você imagina.
ideal?
Você imagina encontrar em mim

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Julgas tão fácil assim eu me tornar teu seu ideal?


amante? Acha tão fácil assim eu me tornar
Pensas que minha amizade será seu amante?
satisfação imaculada?
Pensa que minha amizade
Achas que eu seja fiel e mereça é fonte de satisfação sem impureza?
confiança?
Julga que eu seja fiel e digno de
Tu nada vês além desta fachada, do confiança?
meu jeito macio e tolerante?
Além desta fachada,
Julgas estar avançando em bases
realmente firmes na direção de um do meu jeito macio e tolerante,
homem realmente heroico? você não vê mais nada?
Não te passou pela cabeça, ó sonhador, Acha que vem avançando
que tudo pode ser maya, ilusão? em bases realmente firmes
na direção de um homem realmente
(1964) heróico?
Pela cabeça nunca lhe passou,
ó sonhador,
que tudo isso pode ser maya, ilusão?

(1983)

Como se nota, as diferenças entre versões são bastante


acentuadas e partem do que, no posfácio à edição de 1983 (“Esta
tradução”), revela-se uma mudança de horizonte tradutório.
Citando os conceitos de “subinterpretação” e “superinterpretação”
de Josef Cermák (“a subinterpretação aproxima a tradução do autor,
a superinterpretação aproxima-a do leitor”12), Campos revisa a
tradução de 1964, em seu interesse “autoral” e desejo de “acentuar
a cada instante a sua origem alienígena”, com vistas à “possibilidade
de trazer-se a grandiosa poesia de Whitman para o leitor brasileiro
não-erudito”. Fala-se ainda em pôr em prática a lição de Paulo Rónai:

12
CAMPOS, Geir. Esta tradução. In: WHITMAN, Walt. Folhas de Folhas de Relva (seleção e
tradução de Geir Campos). São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 140.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

“Conduzir uma obra estrangeira para outro ambiente linguístico


significa adaptá-la ao máximo aos costumes do novo meio, retirar-
lhe as características exóticas, fazer esquecer que reflete uma
realidade longínqua e essencialmente diversa [...]” (id., ibid.),
chamando assim a atenção para as estratégias de que se vale com tal
intuito. A principal delas se manifesta, indiretamente, pela contagem
dos versos de uma e outra versão. Os nove versos de 1964
(acompanhando o original) transformam-se, em 1983, em vinte e
um por aquilo que Campos chama, a partir de Christopher Fry, de
“redistribuição das palavras dos versos alongados do original em
‘segmentos rítmicos’ de menor extensão”, evitando assim (diz o
tradutor em nova citação de Paulo Rónai) “o que o original tem de
estranho, de genuíno” em relação a sua “origem alienígena” (id., p.
141.). Não bastasse a guinada “superinterpretativa” incidir sobre a
qualidade do que há de fundamental na tradução poética – o verso
–, Campos arremata sua decisão com a pergunta que destacamos na
epígrafe: “a grandiosidade do conteúdo da poesia de Whitman seria
uma função da forma derramada de seus versos?” (id. ibid.).
A “forma derramada” dos versos de Whitman possui, como
vimos, relação direta com o mais íntimo de sua poesia enquanto
realização estética, histórica e cultural; porém, compreender tal
realização é, insisto, o ponto central para uma versão que traga a
poesia de Whitman à língua de chegada com toda a sua
consequência. Campos tem razão em colocar seu problema da
extensão do verso na conta de sua “origem alienígena”; mas ao

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

propor um padrão rítmico afeito ao ouvido do leitor, à prosódia de


sua língua e, em última palavra, à sua tradição literária, o tradutor
acaba por despertar fidelidades inexistentes naquela que julgava ser
sua primeira versão mais fiel. É certo que a decisão de quebrar os
versos em “segmentos rítmicos menores” (sob pena da produção de
enjambements, virtualmente desconhecidos da técnica poética de
Whitman) fere a concepção do verso whitmaniano como unidade
de exposição imagética e declamatória; por outro lado, a mudança
de tom, encabeçada pela substituição da segunda pessoa (“tu”) pelo
pronome de tratamento (“você”), e o uso menos marcado de
segmentos sintáticos, bem como de formas prosodicamente mais
relacionadas à oralidade (vide, por exemplo, a passagem de “com
certeza eu sou muito diferente de quanto imaginaste”, de 1964, para
“eu sou com certeza bem diferente/ do que você imagina”, de
1983), mostram-se, enquanto “superinterpretação”, muito mais
próximos às exigências do diálogo encenado com outrem – e, nesse
sentido, amarrados a uma concepção poética whitmaniana que a
elevação da versão de 1964 não preserva.
Da perspectiva dos argumentos estritamente tradutórios de
Geir Campos, teríamos de nos resignar às perdas literárias que a nova
edição traz em relação à primeira; entretanto, enquanto opção
literária se observa a despeito das perdas que de fato existem, ganhos
desconhecidos da primeira versão. O mais provável é que Campos
esteja buscando em teóricos da tradução uma justificativa que se
encontra alhures. Um elemento fundamental para o contraste entre

170
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

as versões de 1964 e 1983 é o referente literário embutido nas


versões. Pensando na dicotomia entre as leituras whitmanianas de
Mário e Ronald, a versão de 1964 está mais próxima do segundo do
que do primeiro: a elevação do tom indica menos uma compreensão
daquilo que esteja em jogo na invenção do verso whitmaniano do
que o silenciamento de suas tensões em torno de uma
grandiloquência vazia, na qual a “grandiosidade” identificada em sua
poesia exige dicção que lhe esteja literalmente à altura – o que, de
resto, parece adequar-se à própria postura literária de Campos à
época como poeta, autor vinculado à geração de 1945, cujos
poemas, apesar da temática engajada, o virtuosismo técnico oferece
pouco espaço a uma discursividade diversa da possibilitada por uma
postura literária tradicionalista. A revisão da tradução, passados
dezenove anos, traz em seu bojo não apenas um aparente
redimensionamento da grandeza whitmaniana, agora passível de ser
vazada em versos de corte mais prosaico, mas também a experiência
poética de duas décadas inteiras – e, em particular, àquela que ficou
conhecida como poesia marginal, incorporando os modos de uma
nova urbanidade, marcada pela resistência e pela revolta e, nesse
sentido, aberta ao influxo libertário de formas não-poéticas e
múltiplos registros discursivos de maneira análoga ao esforço
whitmaniano.
Avaliando as diferenças entre uma e outra versão de
Campos, não são tanto as posturas tradutórias que mudam, a
questão está na cultura e na produção literária que as informa.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Os erráticos caminhos das traduções de Geir Campos nos


mostram problemas não apenas pragmáticos e de prática tradutória.
Procuramos expor, de um lado, problemas da recepção da poesia de
Whitman no Brasil; e, de outro, como eles, indiretamente – sob os
modos da cultura e da história – adentram o campo da tradução. As
versões de Geir Campos respondem a momentos distintos e acabam
assimiladas por leitores diversos. Se, no horizonte da poesia pós-
modernista e pós-vanguarda produzida entre meados das décadas
de 1940 e 1960, Whitman perdia suas propriedades estéticas radicais,
subsumido por um romantismo utópico que, não obstante a
presença em sua obra, porém, dela é apenas parte, não todo, no
início da década de 1980, o novo ambiente social e as realizações
literárias que o cercam determinam uma nova visada do poeta.
Talvez isso explique a razão de um poeta tão central no cânone
mundial, cujas traduções europeias remontam às primeiras décadas
do século XX, tenha se tornado mais permeável – ou “entrável”,
lembrando o comentário de Mário citado em nota – ao leitor
brasileiro apenas na primeira década do século XXI.
Eram duas as questões que encabeçavam este artigo.
Quanto à primeira, parece-nos claro que o trabalho de tradução se
instala num campo de equivalências que não se dissociam de uma
recepção submetida a determinações histórico-sociais. A avaliação
das diferentes posturas de Geir Campos frente a Whitman mostram
um tradutor evidentemente preso a seu tempo – ou melhor, a seus
tempos. Resta-nos responder, porém, se seria possível mediante

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

pesquisa literária, eliminar os abismos culturais e históricos e tornar


acessível a um determinado grupo-leitor uma obra que jamais
poderia ter sido produzida em seu próprio contexto. Trata-se de um
questionamento sobre o aspecto utópico da prática tradutória.
Quanto a ele, vale lembrar que as duas publicações de Geir Campos
surgem em momentos decisivos da história brasileira – início da
ditadura e princípio da mobilização de massa que levaria ao fim do
regime de exceção. Que a poesia de Whitman, por meio de seus
tradutores, faça parte do processo de reflexão política da sociedade
brasileira, eis o bastante para que se responda à pergunta.
“What I assume you shall assume, for every atom belonging to me as
good as belongs to you.” A poesia whitmaniana faz-se do diálogo. Seu
drama é o da possibilidade de reconhecimento da alteridade, da
língua e modos do outro, que só recebem uma representação poética
radical quando subvertem a cristalização de modos sociais e
poéticos. De tais movimentos, deriva o ritmo dessa poesia que, em
seu prosaísmo, confronta tradições e costumes. Talvez o crescente
interesse brasileiro em Whitman na última década, seguindo os bons
passos de Geir Campos, seja índice de nossa maior proximidade,
como brasileiros, da conquista e das responsabilidades e
contradições desse ritmo.

173
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mario de. Poesias completas (Edição crítica de Diléa


Zanotto Manfio). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005.

CARVALHO, Ronald de. Poesia e prosa. In: Nossos clássicos.


JÚNIOR, Peregrino (Org.). Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora,
1960.

PARO, Maria Clara Bonetti. Recepção literária de Walt Whitman no


Brasil (1917-1929). São Paulo, 1979. 235 f. Dissertação (Mestrado
em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Letras,
FFLCH/DTLLC, Universidade de São Paulo.

______. Leituras brasileiras da obra de Walt Whitman. São Paulo, 1995.


297 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada)
– Faculdade de Letras, FFLCH/DTLLC, Universidade de São
Paulo.

WHITMAN, Walt. Folhas de relva. Tradução e seleção de Geir


Campos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1964.

______. Folhas de Folhas de relva (Leaves of Grass). Tradução e seleção


de Geir Campos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

______. Poetry and Prose (Library of America). New York: Library of


America, 1996.

______. Folhas de relva. Tradução de Luciano Alves Meira. São Paulo:


Martin Claret, 2005.

______. Folhas de relva. Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia


Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2005.

______. Folhas de relva. Tradução e organização de Bruno


Gambarotto. São Paulo: Editora Hedra, 2011.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

O BILINGUISMO LITERÁRIO DE NANCY HUSTON:


ESCRITA TRADUZIDA ENTRE LÍNGUAS

Gabriela OLIVEIRA
Maria Angélica DEÂNGELI

1. Questão preliminar

O presente trabalho procura analisar a partir dos escritos da


autora canadense Nancy Huston, mais especificamente de sua obra
Nord Perdu (1999), em que medida a escrita se apresenta como uma
alteridade radical – alteridade de si e do outro; dupla alteridade de
antemão – na tarefa da tradução. Escrever em francês e traduzir para
o inglês ou escrever em inglês e traduzir para o francês, um e outro,
ao mesmo tempo, ou, um entre outro de uma só vez, tal é o desafio
que se impõe Huston ao lidar com sua(s) própria(s) escrita(s).
Partindo dos estudos que tencionam deslocar
conceitualmente a figura do tradutor, pensando-o como sujeito
constituído por representações diversas e que, dessa forma, assume
sempre a posição conflituosa do ser/estar entre-línguas
(CORACINI, 2005), procuraremos mostrar em que sentido a escrita
de Huston nos coloca diante da problemática de um sujeito
atravessado pelo acontecimento do “mais de uma língua”


Unesp, Instituto de Biociência, Letras e Ciências Exatas, Brasil.
gabriela_oliveira_silva@live.com
 Unesp, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Brasil.

deangeli@ibilce.unesp.br

175
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

(DERRIDA, 1996). Se, por um lado, tal acontecimento acaba por


desestabilizar todos os atores em cena no ato da escrita, por outro,
se impõe como condição necessária da própria tarefa de tradução.
Tarefa que pode se tornar ainda mais complexa quando se trata de
lidar com a tradução de “seu” próprio texto, ou seja, com a prática
da “autotradução”. Nesse sentido, partiremos das hipóteses de
Clémens (1997) sobre a estrangeiridade presente em todas as línguas e
sobre a tarefa de escrever entendida como movimentação entre os
fragmentos múltiplos e heterogêneos da língua para questionarmos
as considerações segundo as quais a autotradução seria um processo
criativo e libertador capaz de solucionar o conflito original entre
língua materna e língua adotiva (cf. SARDIN-DAMESTOY, 2007).
Concluiremos, ao contrário, que a autotradução coloca em cena um
movimento de línguas que faz apelo a questões de ordem identitária
no sentido em que procuram desestabilizar as fronteiras do materno
e do estrangeiro, do si mesmo e do outro, da origem e do destino,
ou se preferirmos, da “partida” e da “chegada”.
A noção de bilinguismo é aqui entendida não como
fenômeno restrito aos sujeitos que convivem com duas línguas
desde a primeira infância, mas como acontecimento que atravessa a
subjetividade daqueles que, por diversas razões, partilham a
experiência do viver entre línguas e culturas. Não raras vezes, o uso
do termo bilinguismo está atrelado à noção de competência linguística
e parece limitar-se a uma espécie de “domínio” do sujeito das (e
sobre as) línguas que fala; a maior ou menor performance com

176
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

relação a estas, implicando, assim, um maior ou menor grau de


bilinguismo.
Com o intuito de operar um deslocamento na problemática
referente ao “duplo”, sempre presente nas discussões acerca de
bilinguismo, e ao “entre” é que nos interessamos, então, na obra de
Huston.
Não se trata, porém, de ignorar a lógica binária que perpassa
nossas reflexões e até mesmo nossas línguas, mas de questioná-la no
próprio sistema no qual se insere. Se, etimologicamente, o prefixo
“bi-” remete a uma ideia compreendendo “dois”, “duas vezes”, no
espaço de nosso questionamento, o bilinguismo implica uma
pluralidade de “dois”; duas línguas (no caso de Huston, o inglês e o
francês) que são várias línguas e que se desdobram em inúmeras
outras, guardando sempre, em si mesmas, o estranhamento que lhes
é peculiar. Trata-se de um apelo ao “mais de um”, ao “dois”, como
diria Huston, o que faz com que toda comunicação seja permeada
por uma espécie de milagre; o milagre do “entendimento” (que pode
ser também um desentendimento) o qual engaja, nessa
multiplicidade de origem, um certo respeito ao outro, tal como
podemos constatar nas palavras de Huston.

No fundo, me parece, a estrangeiridade é uma


metáfora do respeito que devemos ao outro.
Nós somos dois, cada um de nós, pelo menos dois,
temos de sabê-lo! E mesmo no interior de uma

177
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

só língua, a comunicação é um milagre


(HUSTON, 1999, p. 37)1.

Mas, apesar de tudo, nos comunicamos, ainda que a ideia de


comunicação possa variar muito em função do lugar a partir do qual
a comunicação “fala” ou “escreve” ou, às vezes, silencia-se. O
milagre desse ato de comunicar talvez seja simplesmente a promessa
de uma escuta, e é nesse sentido que ele engaja o outro, com todo o
respeito que lhe devemos, em todas as suas línguas, em francês ou
em inglês, no caso de Huston, no movimento de suas
estrangeiridades, como veremos a seguir.

2. Questões bilíngues

Para analisarmos a escrita da autora é preciso, antes,


contextualizar, ainda que sucintamente, sua história de vida. Nancy
Huston nasceu em Calgary, cidade anglófona, no Canadá, mudou-
se para a França aos 20 anos para fazer seu mestrado com Roland
Barthes e começou a escrever pouco tempo depois, em francês.
Escreveu críticas, ensaios, romances, cartas, consagrou-se escritora
de língua francesa, até o ano de 1989, quando escreveu seu primeiro
romance em inglês, Plainsong (1993b). Logo em seguida, dedicou-se

1 Tradução nossa: Au fond, me semble-t-il, l’étrangéité est une métaphore du respect


que l’on doit à l’autre. Nous sommes deux, chacun de nous, au moins deux, il s’agit de
le savoir! Et même à l’intérieur d’une seule langue, la comunication est un miracle.

178
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

a sua primeira autotradução, Cantique des Plaines (1993a). O motivo


de tal empreitada foi simplesmente editorial: em um primeiro
momento, ela não conseguiu publicar o livro escrito em inglês,
então, traduziu-o para o francês a fim de publicá-lo. Após quase
quatro anos de trabalho, os dois livros foram lançados em datas
próximas, sendo que a versão em francês ganhou o prêmio
Gouverneur Général de melhor romance em Quebec. Tal fato
desencadeou grande polêmica no meio literário, pois, para alguns
críticos, o livro deveria ter concorrido na categoria tradução e não
romance2. Foi nesse momento que Huston se viu obrigada a
(re)pensar sua prática e assumir a posição de quem (re)escreve em
mais de uma língua. A partir de então, autotraduzir ou reescrever ou
escrever em francês e em inglês, ao mesmo tempo, foi se tornando
cada vez mais comum para a escritora.
Um dado importante a ser considerado é o que a levou a
escrever Plainsong. Se o francês já era sua língua de produção
acadêmica e literária, como e por que voltar a língua que havia
tentado abandonar? Segundo a própria Huston, foi no momento em
que ela percebeu que também havia algo de estrangeiro, de outro,
na “língua da mãe”, que o inglês se tornou também uma
possibilidade de escrita.

Eu a havia abandonado por muito tempo,


minha língua mãe; ela não me reconhecia mais

2Para uma leitura detalhada sobre o assunto, ver o artigo de Christine Klein-Lataud:
“Les voix parallèles de Nancy Huston”, 1996.

179
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

como sua filha. Assim como em francês, uma


gama inteira de possibilidades se abrira para
mim [...] (HUSTON, 1999, p. 51)3.

Isso, porque, para Huston, a escrita permitiria justamente


evocar a estrangeiridade da língua, autorizaria um deslocamento de
si mesmo e seria uma forma de tentar conviver com o conflito entre
a “língua materna” e a “língua adotiva”, a língua da morada e a língua
do outro, pois é desta maneira que a autora descobre o prazer da
criatividade e da liberdade contidas no vaivém entre línguas. A ideia
de estranhamento como material comburente da escrita é
encontrada no parágrafo inicial do capítulo “... ET LA PLUME”,
do livro Nord Perdu (1999):

O estrangeiro, dizíamos, é aquele que se adapta.


Ora, a necessidade perpétua de se adaptar, que
induz nele uma consciência exacerbada da
linguagem, pode ser extremamente propícia
para a escrita. A aquisição de uma segunda
língua anula o caráter “natural” da língua de
origem – e a partir daí, nada mais nos é dado
de ofício, nem em uma nem em outra; nada
mais nos pertence por origem, direito e
evidência. (HUSTON, 1999, p. 43)4

3
Tradução nossa : Je l’avais délaissée trop longtemps, ma langue mère; elle ne me
reconnaissait plus comme sa fille. Tout comme en français, la gamme entière des
possibilités m’était ouverte [...].
4 Tradução nossa: L’étranger, disions-nous, est celui qui s’adapte. Or le besoin

perpétuel de s’adapter qu’induit en lui une conscience exarcebée du langage peut être
extrêmement propice à l’écriture. L’acquisition d’une deuxième langue annule le
caractère «naturel» de la langue d’origine – et à partir de là, plus rien n’est donné
d’office, ni dans l’une ni dans l’autre; plus rien ne vous appartient d’origine, de droit
et d’évidence.

180
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Assim, a perda da ilusão de transparência da língua materna


causada pelo aprendizado de outra língua pode ser um dado
positivo, já que abre espaço para o jogo criativo da escrita. Por outro
lado, as consequências do encontro inevitável entre (as) línguas
podem ser dolorosas, pois, como Huston afirma:

[...] aquele que conhece duas línguas, conhece,


obrigatoriamente, duas culturas, conhecendo
também a difícil passagem de uma para a outra
e a dolorosa relativização de uma por outra
(HUSTON, 1999, p. 37)5.

Mas, por mais paradoxal que possa parecer, é nessa “difícil


passagem” que se define a tarefa da escrita. Tarefa marcada
essencialmente pela descontinuidade, pela fragmentação e, muitas
vezes, pela dor, pois, como assinala Huston: “Toda dor é traduzível”
(op. cit., p. 92)6. Para a autora, a tradução é uma espécie de “proteção
nos momentos de desespero” (p. 92).
Ainda a respeito dos tênues limites entre uma língua e outra,
Huston escreve:

O problema, veja só, é que as línguas não são


apenas línguas; são também world views, ou seja,
modos de ver e compreender o mundo. Há o
intraduzível aí... E se você tem mais de um world

5 Tradução nossa: Car celui qui connaît deux langues connaît forcément deux cultures
aussi, donc le passage difficile de l’une à l’autre et la douloureuse relativisation de
l’une par l’autre.
6 Tradução nossa: Toute douleur est traduisible (...).

181
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

view... você não tem, de certo modo, nenhum


(HUSTON, 1999, p. 51)7.

Nessa passagem, notamos o uso de termos em inglês que, a


princípio, poderiam estar em francês. A presença da expressão
“world views” chama nossa atenção principalmente por aparecer no
momento em que a autora explica a impossibilidade de traduzir o
modo de ver o mundo, fazendo-nos pensar, então, que se trata de
uma exemplificação dessa impossibilidade, na medida em que ela
não considera a expressão francesa “visions du monde” equivalente à
expressão inglesa “world views”. Apesar de Huston colocar-se como
sujeito escrevente de língua francesa que, eventualmente, se
autotraduz, sua escrita aponta para o desafio do “entre”, desafio ao
qual ela não pode se furtar, uma vez que esse parece se impor como
a própria condição de escrita.
Dessa forma, a letra atravessada por uma espécie de rasura
das línguas (do francês e do inglês) denuncia o sujeito dividido entre
desejo e renúncia, gozo e dor, vazio e plenitude; pois se não
podemos negar que somos uma construção, como afirma Huston,
nossa história é cheia de buracos, muitas páginas são arrancadas de
nosso livro (op. cit., p. 100). Mas o livro sempre está lá, ele é texto
que remete a outros textos, constituindo-se, dessa forma, como a

7Tradução nossa: Le problème, voyez-vous, c’est que les langues ne sont pas seulement
des langues ; ce sont aussi des world views, c’est-à-dire des façons de voir et de
comprendre le monde. Il y a de l’intraduisiblie là-dedans... Et si vous avez plus d’une
world view... vous n’en avez, d’une certaine façon, aucune.

182
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

origem disseminada da letra e de seu devir; uma espécie de origem


da origem, tal como sugerido por Derrida:

O rastro não é somente o desaparecimento da


origem, ele quer dizer aqui [...] que a origem
nem ao menos desapareceu, que ela não foi
constituída senão em contrapartida por uma
não-origem, o rastro que se torna, assim, a
origem da origem (DERRIDA, 1967, p. 90)8.

Por mais que a língua estrangeira pareça um espaço livre das


interdições maternas, é sempre carregada de ambivalências e
contradições internas, criando seus próprios interditos na
subjetividade de cada um. Huston admite só ter conseguido escrever
romances após a morte de seu mestre, Barthes, e revela sua surpresa
ao perceber que a sede por uma “inocência teórica”, ou seja, uma
escrita despojada de obrigações estilísticas e engajamentos
filosóficos existia também em suas tentativas de escrita em inglês.
Em suas palavras:

Sem dúvida é uma das razões pelas quais eu


decidi, cerca de uns dez anos depois, voltar à
língua inglesa. Estava sedenta de inocência
teórica; queria fazer frases livres e irregulares,
explorar todos os registros da emoção,
incluindo, por que não, o patético, contar
histórias no primeiro grau, com fervor, e
acreditar nelas, sem medo dos comentários
irônicos dos discípulos de Barthes ou de Perec.
8 Tradução nossa: La trace n’est pas seulement la disparition de l’origine, elle veut dire
ici [...] que l’origine n’a même pas disparu, qu’elle n’a jamais été constituée qu’en
retour par une non-origine, la trace qui devient ainsi l’origine de l’origine.

183
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

[...] Mas o que descobri? [...], que a aporia


estilística não concernia apenas à minha língua
de adoção; ela arruinava também meu domínio
do inglês (HUSTON, 1999, p. 50-51)9.

Huston quer “contar histórias no primeiro grau”, sem se


preocupar com a sofisticação do estilo, por vezes afetado, dos meios
acadêmico-literários. Para ela, interessa o registro da emoção e da
inocência, teórica e estilística, ainda que seus desejos se revelem
quase impossíveis. A escrita lhe aparece como possibilidade de fazer
a língua falar em outro lugar e de uma outra maneira, em uma
espécie de ruído da comunicação, que pode arruinar o estilo e a
crença na propriedade da língua, pois esta sempre se apresenta de
forma imprópria e estranhamente estrangeira.
Sobre o estranhamento da língua como possibilitadora da
escrita, Éric Clémens, em seu ensaio “Les langues dans les langues”
(1997), afirma que o escritor tem justamente essa missão de usar a
seu favor a disfunção da língua, pois é capaz de transitar entre as
várias línguas que existem em “sua” língua. Dessa forma, afirma que:

Se a escrita se forja e a ficção se forma nessa


travessia e nesse confronto, sem os quais
nenhuma experiência vivida, nenhuma

9Tradução nossa: Sans doute est-ce l’une des raisons pour lesquelles j’ai décidé, une
dizaine d’anées plus tard, de retourner à la langue anglaise. J’étais assoiffée
d’innocence théorique; j’avais envie de faire des phrases libres et dépenaillées,
d’explorer tous les registres de l’émotion y compris, pourquoi pas, le pathétique, de
raconter des histoires au premier degré, avec ferveur, en y croyant, sans redouter les
commentaires narquois des barthésiens et autres pérequiens. [...] Mais qu’ai-je
découvert ? Eh bien [...], l’aporie stylistique ne concernait pas seulement ma langue
d’adoption; elle ruinait aussi ma maîtrise de l’anglais.

184
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

memória, nenhuma reflexão e nenhuma


invenção têm lugar, não há nenhum paradoxo
na dupla afirmação de que nós somos
escritores de língua francesa, não importa de
onde viemos, e que a língua francesa, como
toda língua, é estrangeira a ela mesma para
quem tenta falar. Se o escritor tem uma função,
onde ela pode aparecer senão na revelação de sua
experiência da disfunção da língua? Toda
linguagem verdadeira é incompreensível em
termos de função, de comunicação e de
compreensão (CLÉMENS, 1997, p. 121-
122)10.

Essa fala de Clémens se deu durante um encontro de


escritores francófonos em Paris, e o autor questiona exatamente a
noção de escritor francófono, título dado aos não franceses que
escrevem em francês por diversas razões. Assim, entendemos que,
para Clémens, o francês é língua estrangeira não pelo fato de ele não
ser francês, mas sim porque o francês é sua língua de escrita, muito
além de uma simples ferramenta de comunicação é língua imbricada
de várias outras línguas.
É também na imbricação das línguas, do francês e do inglês,
que situamos a escrita de Huston, nesse movimento que vai do um

10 Tradução nossa: Si l'écriture se forge et la fiction se forme dans cette traversée et cet
affrontement, sans lesquels aucune expérience vécue, aucune mémoire, aucune
réflexion et aucune invention n'ont lieu, nul paradoxe ne réside dans la double
affirmation que nous sommes des écrivains de langue française, d'où que nous venions,
et que la langue française, comme toute langue, est étrangère à elle-même pour qui
cherche à parler. Si l'écrivain a une fonction, où peut-elle apparaître sinon dans la
monstration de son expérience du dysfonctionnement de la langue? Tout vrai langage
est incompréhensible en termes de fonction, de communication et de compréhension.

185
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

ao outro, ainda que não se decida por nenhum ou que se deixe levar
pelo não-lugar dessa travessia.
Catherine Klein-Lataud, em um estudo sobre Huston
(1996), ao analisar os textos Plaisong e Cantique des Plaines, conclui que
a diferença mais marcante entre eles reside no nível do registro de
língua, o inglês se apresentando sob uma forma standard e o francês
sob uma forma mais familiar. Essa proximidade talvez possa ser
explicada pelo modo como os livros foram escritos. Huston, em
entrevista à Klein-Lataud, comenta que os livros foram elaborados
paralelamente, segundo ela “a ‘tradução’ sempre obriga a ver quais
são as falhas do texto original. Então, graças ao francês, eu
melhorava o inglês e vice-versa” (KLEIN-LATAUD, 1993 apud
KLEIN-LATAUD, 1996, p. 226)11.
O trabalho de Huston se revela, de fato, na escrita do entre-
dois, no mais de um da tradução, no “ao menos dois” do eu, como
citado anteriormente. Se o tradutor está sempre entre línguas,
podemos dizer que ele é um escritor por excelência, já que toda
escrita supõe um trabalho de atravessamento de lugares (de mundo,
de línguas, de saberes...) incessante.
Coracini (2005), em artigo intitulado “O sujeito tradutor
entre a ‘sua’ língua e a língua do outro”, retoma a questão do “entre”
na tradução. De acordo com a autora:

Tradução nossa: (...) la ‘traduction’ oblige toujours à voir quelles sont les faiblesses du texte original.
11

Donc, grâce au français, j’améliorais l’anglais et vice-versa.

186
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

(...) o tradutor constitui um sujeito entre-


línguas-culturas, lugar onde se mesclam e se
confundem umas e outras, onde se apagam ou
se embaraçam os limites, os contornos e as
dicotomias arraigadas na cultura ocidental da
qual somos todos herdeiros e na qual somos
prisioneiros (CORACINI, 2005, p. 11).

Se não podemos negar essa herança cultural, que marca as


dicotomias de nosso pensamento, se somos, de certo modo,
atravessados por “limites”, podemos ao menos deslocá-los em seus
propósitos, à maneira de Huston, escrevendo e traduzindo ou se
(auto)traduzindo ao escrever. A escrita, enquanto atividade
tradutória, deve então servir para ir além desses limites ou
simplesmente tocá-los, desestabilizando-os, de alguma maneira. A
tarefa de tradução assim concebida é o que o permite dizer o
intervalo ou o interstício das línguas; pois, no fundo, o que nos resta
ainda, segundo Huston, é a escrita (cf. op. cit., p. 92), ou a tradução.

3. Conflitos não apagados

A escrita de Huston revela que a prática da tradução ou, mais


especificamente, em seu caso, da autotradução, tem implicações que
ultrapassam, em muito, a velha polêmica do “passar o texto de uma
língua para outra”, já que, em sua obra, a problemática se situa na
travessia e não na chegada, o que mobiliza, de fato, sua escrita é a
questão do “entre”. Seu percurso literário, como ela própria o

187
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

assinala (cf. HUSTON, 1999), constrói-se na indecidibilidade entre


a invenção e a imitação, como algo que antecipa a tarefa da tradução,
ou o que ela nomeia de autotradução.
Huston relata que, tendo se questionado, durante muito
tempo, sobre o que era de fato importante em sua vida, chegou à
seguinte conclusão:

No momento, eis o que encontrei de melhor: é


importante o que é traduzível (HUSTON, 1999, p.
90)12.

O traduzível (que é também uma forma de indizível) se situa


para Huston na tensão entre as línguas, entre a necessidade de se
comunicar e a impossibilidade de ser compreendido, entre o familiar
e o estrangeiro. Nesse sentido, o (in)traduzível coloca em cena o
estrangeiro e pode aparecer como uma ameaça para aqueles que
preferem relegar ao ininteligível a diferença entre as línguas, tal como
a autora denuncia em suas palavras:

Bárbaro: “estrangeiro, estranho, ignorante, diz o


dicionário. Radical herdado: barbar, utilizado para a
fala ininteligível dos estrangeiros”. É estúpido e
ameaçador, aquele com quem não podemos
nos comunicar com palavras (HUSTON, 1999,
p. 79)13

12 Tradução nossa: Voilà, à ce jour, ce que j’ai trouvé de mieux: est important ce qui est
traduisible.
13 Tradução nossa: Barbare: “étranger, étrange, ignorant, dit le dictionnaire. Base échoïque:

barbar, utilisé pour le parler inintelligible des étrangers.”Est stupide et menaçant, celui avec qui
vouz ne pouvez pas communiquer par les mots.

188
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Mais uma vez, é a ideia de língua como “comunicação” que


é questionada pela autora, já que, para Huston, o que importa é o
que se traduz (ou se autotraduz), o que se diz não como promessa
de entendimento, mas como apelo à alteridade e ao que de
incompreensível nela se (des)vela.
Nesse contexto, resgatar as diferenças, recuperar as marcas
intrínsecas da escrita, ou seja, fazer valer as divergências de origem
é tarefa primordial da tradução. O que nos é dado a conhecer por
meio do texto traduzido, o (des)velamento da letra estrangeira, torna
“outro” o destino da tradução. São esses caminhos que percorre a
escrita de Nancy Huston, longe de buscar a reconciliação impossível
das línguas, a escritora explora os riscos do desvio significante sob
uma forma de “desassossego” intelectual e subjetivo, quase “barbar”.
Para Huston, não há escrita, nem tradução, sem esses desencontros.
No entanto, ainda há algo que norteia esse “norte perdido”
da (auto)tradução, esse “perder o norte” ao escrever; algo que deriva
do humano, uma crença segundo a qual a escrita (e suas múltiplas
traduções) “é o que celebra este reconhecimento dos outros em si e
de si nos outros. É o gênero humano por excelência” (HUSTON,
1999, p. 107)14.

14 Tradução nossa: c’est ce qui célèbre cette reconnaissance des autres en soi, et de soi dans les autres. Le
genre humain par excellence.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Referências bibliográficas

CLÉMENS, É. Les langues dans la langue. In: Études françaises. vol.


33, n. 1, 1997. p. 119-122.

CORACINI, M. J. O sujeito tradutor entre a “sua” língua e a língua


do outro. In: Cadernos de Tradução, nº 16, 2005/2, Florianópolis. p. 9-
24.

DERRIDA, J. De la Grammatologie. Paris: Minuit, 1967.

______. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996.

HUSTON, N. Cantique des plaines: Paris: Actes Sud, 1993a.

______. Plainsong. Toronto: Harper-Collins, 1993b.

______. Nord perdu. Paris: Actes Sud, 1999.

KLEIN-LATAUD, C. Les voix parallèles de Nancy Huston. In :


TTR: traduction, terminologie, rédaction. vol. 9, n. 1, 1996. p. 211-231.

SARDIN-DAMESTOY, P. Samuel Beckett/Nancy Huston ou le


bilinguisme de malentendus en contrefaçons: deux expériences
similaires? In: GASQUET, A.; SUREZ, M. (Org.). Écrivains
multilingues et écritures métisses. Clermont-Ferrand: Presses
universitaires Blaise Pascal, p. 257-269, 2007.

190
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

TRAITE PETIT DE TITROLOGIE : REGARD CRITIQUE


SUR LA TRADUCTION DE TITRES

Slav PETKOV

1. Qu’est-ce que la titrologie?

Si vous ouvrez un dictionnaire et que vous cherchez le


substantif « titrologie », il est presque sûr que vous ne trouverez pas
de définition. C’est sans aucun doute parce que c’est un terme
relativement neuf, élaboré par L. Hoek dans les années 1980, et qui
présente une réalité restreinte et spécifique, au sens de
« spécialisée ». Les dictionnaires, comme le Trésor de la langue française,
par exemple, dévoilent le sens du mot « titre » . Nous apprenons
ainsi que c’est « une inscription au début d’un ouvrage pour indiquer
son sujet; nom donné par son auteur à une oeuvre littéraire ou
artistique et qui évoque plus ou moins son contenu, sa
signification1 ».
La titrologie concerne les études sur les titres, les différentes
manières de nommer des textes, des films, des séries télévisées etc.
G. Genette (2009) attribue la même appellation à ce domaine, ce qui
renforce le bien-fondé de la notion.


Université de Plovdiv « Paissii Hilendarski », Département d’études romanes et
germaniques, Bulgarie, sslav_plovdiv@hotmail.com
1 http://atilf.atilf.fr/

191
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

En y réfléchissant en détail, nous sommes capables


d’affirmer que la titrologie peut être incorporée dans la théorie de la
traduction, dans des cours d’écriture créative ou en musicologie ;
aussi pouvons-nous parler de théorie et pratique du titre.

2. Mécanismes du titre

Considéré comme un nom-guide pour l’interprétation ou


comme un texte contenant l’instruction pour la lecture
(PROTOCHRISTOVA, 2014, p. 11), le titre est une entité
paratextuelle, un brin d’inconnu, qui sert à provoquer l’intérêt, à attirer
l’attention plus ou moins approfondie, à attiser la réflexion et à
pousser au pas vers l’oeuvre. Pour Danièle Pistone il s’agirait, en en
parlant, d’ « un début d’invite, un appel à l’accueil, un premier
façonnement de notre imaginaire » (PISTONE, 2012). Les meilleurs
titres ont toujours des aspects énigmatiques ou incisifs. Le
mécanisme du titre tient de celui de la traduction : le titre révèle sa
vraie nature, son sens, plus tard, après la première vue, le premier
heurt au texte ; une traduction apparaît plus tard que l’original fixé
par l’auteur.

3. Pour une typologie en titrologie

192
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

On peut trouver bien des typologies de titres. En littérature,


par exemple, Cléo Protochristova distingue
(PROTOCHRISTOVA, 2014, p. 15-20) :
 des titres lyriques : agissent de manière purement instructive ; fixent,
pour ainsi dire, orientent la compréhension dès le début (c’est un
cas spécial) ;
 des titres romanesques : agissent de manière rétroactive ; on les
décortique ralativement tard (parfois à la fin de l’oeuvre – La
Chartreuse de Parme de Stendhal, 1839).
Suivant des critères visant à une généralisation nous aurons
deux autres typologies :
 Typologie sémantique : c’est la systématisation des titres en porteuses
de sujets, thèmes, énigmes, sens etc. Titres référentiels : noms (Matilda,
Dahl), moments dans le temps, années (1984, Orwell), parties du
corps, liens de parenté (Trois soeurs, Tchékov) etc.;
 Typologie structuro-syntaxiques : elle présente le titre à travers la
structure qu’il possède : structures dichotomiques (... et ...), les
formules fréquentes (L’histoire de...) etc.
Dans son article, intitulé Seuils éditoriaux, Philippe Lane
(1991, p. 91-108) présente, lui aussi, une typologie des titres, en se
fondant sur les conceptions de Gérard Genette, il y affirme, « selon
la typologie des titres proposée par G. Genette, il faut noter deux
grandes catégoriques de titres : les titres thématiques (“ce livre parle
de ...”) et les titres rhématiques (“ce livre est ...”) ».

193
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Palimpsestes et Seuils semblent relever de la première catégorie


; en effet, ces deux titres portent sur le “contenu” des livres. Il s’agit
de titres métaphoriques pour désigner le paratexte […].
Introduction à l’architexte nous paraît relever de la seconde
catégorie de titres, le titre rhématique : ce livre est une introduction
à l’architexte (LANE, 1991, p. 102).
Sur le vaste réseau Internet, nous pouvons trouver aussi des
typologies ayant comme objet principal le titre. Cela vient montrer
que les gens s’intéressent à ce genre de problèmes. Le site
http://www.madmoizelle.com/2 propose les réflexions d’une
blogueuse – Gingermind – en la matière. Elle s’arrête plus précisément
sur la typologie de titres de films traduits. Voilà ce qu’elle nous révèle
au tout début : « Dans la vie, il y a deux genres de titres de film que
je tolère :
 Ceux qui ne sont pas traduits. Ne rien tenter c’est encore le
meilleur moyen de ne pas se planter (quoique Kick-Ass ça aurait été
drôle à traduire) ;
 Ceux qui sont des traductions exactes du titre original. »
Nous souscrivons nous aussi à cet avis bien cerné.
Gingermind s’est lancée après cette constatation dans l’élaboration
de sa typologie des titres de films (mal) traduits. Des titres à rallonge
(Brokeback Mountain est transmis en français comme Le secret de
Brokeback Mountain, ce qui a détruit quelque peu la surprise générale),

2 http://www.madmoizelle.com/titres-films-traduits-163527 (05.07.2014).

194
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

des titres complexifiés (There is something about Mary est devenu Mary
à tout prix), des titres bien « originaux » (le traducteur veut faire croire
qu’il a gardé le même titre anglais, alors qu’en fait il l’a changé… par
un autre titre anglais), ou des titres « faux amis » (La proposition – The
proposal – mais le mot proposal n’a pas le sens général de proposition
en anglais ; c’est la demande en mariage) attisent la discussion sur la
traduction non seulement en titrologie...

4. Titres et traduction

Nous partons d’un cas idéal : dès le titre une œuvre étrangère
devrait faire penser à une altérité. Pour y atteindre il faut opter pour
la traduction la plus littérale possible. On pourrait penser que c’est
une mission impossible ; or bien souvent ce n'est pas comme cela.
Nous voudrions comparer maintenant quelques titres traduits à
leurs originaux. Cela renforcera l’aspect critique de notre article.

 The Hundred-foot journey (titre original), Les recettes du bonheur


(titre en France), Le voyage de cent pas (titre au Québec), A
portée de la louche (На един черпак разстояние, titre en Bulgarie).

Le titre original contient l’idée de mouvement, de


découverte culturelle par le voyage, mais aussi celle de proximité (on
doit faire seulement cent pas). Le titre français a fait voir une autre
facette du film / livre, s’éloignant ainsi de l’original : on aura une

195
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

aventure culinaire comme moteur de la fable. Le titre québécois est


très réussi : tout d’abord c’est une reproduction exacte de l’original
; après il ressemble à la Guerre de cent ans, ce qui orientera les
esprits subtils vers une sorte de rivalité qui sera mise au centre de
notre attention. Le titre bulgare manque uniquement d’idée de
mouvement.

 The Casual Vacancy (titre original), Une place à prendre (titre


français), Вакантен пост (Une vacance fortuite, titre bulgare).

Le titre du roman de J. K. Rowling est marqué par le manque


(l’absence) qui “a eu lieu” de manière brusque et brutale. Cette idée
est partiellement gardée dans la traduction bulgare. Le traducteur
français pourtant a mis l’accent sur le remplissage de ce manque ;
ainsi traduit, le titre comporte l’idée de lutte en germe.

 The Hundred-Year-Old Man Who Climbed Out the Window and


Disappeared (titre en anglais, titre qui est une reproduction
exacte de l’original qui est en suédois), Le Vieux qui ne voulait
pas fêter son anniversaire (titre en France), Стогодишният
старец, който скочи през прозореца и изчезна (titre en Bulgarie,
reproduction exacte de l’original).

196
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Le titre français a entièrement transformé l’original, l’a


simplifié en quelque sorte, et la disparition – si importante ici – fait
défaut.

 Cougar Town (titre original, titre en France), Bienvenue à Cougar


Town (titre québécois), Агнешко (titre bulgare: De l’agneau).

Le sustantif « cougar » est présent dans les dictionnaires


français ; il y est entré par l’intermédiaire de cette série télévisée ; au
Québéc on « a embelli », le titre de celui-ci en ajoutant
« Bienvenue » ; en Bulgarie, on a adopté un autre point de vue, en
choisissant d’expliciter « la proie » des cougars – c’est un exemple
de modulation en traduction.

 Desperate Housewives (titre original, titre en France), Beautés


désespérées (titre québécois), Отчаяни съпруги (titre en
Bulgarie, reproduction exacte de l’original).

Nous voyons ici que le traducteur québécois a préféré beautés


à femmes de ménage ; peut-être l’a-t-on fait parce que c’est un peu plus
poétique ; or toutes les femmes de ménage dans la série ne sont pas
des beautés...

197
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

5. Conclusions

- La traduction de titres nous amène à des constatations curieuses et


à des réflexions intéressantes ;
- S’attacher à l’original semble être parmi les meilleures solutions
devant le traducteur ;
- Un titre peut avoir plusieurs « visages » dans des pays différents :
c’est une question de goût ou de tradition ;
- Les traductions d’un même titre présentent souvent des voyages à
travers des points de vue bien précis ;
- La titrologie, ayant abrité les études sur les titres, devrait devenir
plus riche en études sur les transferts de ceux-ci.

Bibliographie

LANE, Ph. Seuils éditoriaux. In : Espaces Temps, 1991. La fabrique


des sciences sociales. Lectures d’une écriture. p. 91-108. Disponible
sur:
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/espat_
0339-3267_1991_num_47_1_3790. Consulté : le 06 juil. 2014.

PISTONE, D. Réflexions sur la titrologie appliquée aux œuvres


musicales. Musicologies, Paris, n. 9, 2012. Disponible sur :
http://omf.paris-sorbonne.fr/IMG/pdf/titrologie.pdf. Consulté :
le 04 juil. 2014.

PROTOCHRISTOVA, C. Записки от преддверието : теория и


практики на заглавието. Plovdiv : Presses Universitaires de
Plovdiv, 2014.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

Sobre as organizadoras

Angélica Karim Garcia Simão é docente do curso de graduação de


Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor,
na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp),
câmpus de São José do Rio Preto. Hispanista, especialista em língua
espanhola (MAE/AECI), mestre em Estudos Linguísticos (Unesp),
e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). É
tradutora, autora do livro Xeretando a Linguagem em Espanhol (Disal) e
de artigos na área de Tradução que enfocam as questões do léxico e
da fraseologia do espanhol e do português brasileiro. É supervisora
de língua espanhola na Oficina de Tradução (Unesp/São José do
Rio Preto) desde 2004.

Maria Angélica Deângeli é docente do curso de graduação de


Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor,
na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp),
câmpus de São José do Rio Preto. Doutora em Letras pela Unesp,
mestre em Linguística Aplicada pela Université de la Sorbonne
Nouvelle Paris III. É tradutora e autora do livro A literatura na língua
do outro: Jacques Derrida e Abdelkebir Khatibi (Editora Unesp) e de
artigos na área de Tradução que enfocam questões diretamente
ligadas à língua francesa, à problemática da língua materna e da
língua estrangeira e à própria questão da tradução. Tem se dedicado
ao estudo de pensadores franceses contemporâneos, principalmente
aos escritos de Jacques Derrida, Jean-Luc Nancy, Marc Crépon,
entre outros.

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TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO [VOLUME 1]

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