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25/09/2016 Projeto Memória de Leitura ­ O MAL DA LEITURA EM A CARNE DE JÚLIO RIBEIRO

MAL DA LEITURA EM A CARNE DE JÚLIO RIBEIRO
JEOVÁ SANTANA

 
O ano de 1888 tem na palavra liberdade um dos motivos para ser lembrado quando se entra nos arquivos da
história. Neste recorte temporal, também a literatura foi marcada por substantivos acontecimentos. Estes
contribuem para que ela se destaque quando utilizada como instrumento de pesquisa para se entender os
mecanismos da formação nacional.

Na trincheira da teoria literária, Sílvio Romero ergue os pilares de sua crítica; na ficção, Raul Pompéia se
desvia da "fôrmas" naturalistas para imprimir embates psicológicos entre as paredes de O Atheneu;
inaugura­se o Gabinete Português de Leitura com a presença do escritor lusitano Ramalho Ortigão; funda­se
a revista/jornal A família por Josephina, irmã de Álvares de Azevedo, com a instigante chamada: "mulher
instruída é mulher emancipada". Estes são alguns tópicos que ajudam a enriquecer o clima cultural e político
daquele momento.

Neste ambiente movimentado, um respeitável professor e poliglota do Curso anexo da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, resolveu voltar à cena da vida literária. Depois da discreta publicação de O
padre Belchior de Pontes, feita onze anos antes, Júlio Ribeiro marca em definitivo seu nome na história da
literatura com o romance A carne.

Parece que o mote lançado pela irmã do autor de A lira dos vintes anos estava a merecer auxílio das malhas
da ficção. Daí Júlio Ribeiro ter confeccionado sua personagem Lenita com uma profunda inclinação para
transitar no mundo dos livros e exibir a invejável condição de pessoa culta.

Se o autor tivesse ficado só na atribuição das qualidades raras à sua criatura, estaria sujeito aos parâmetros
da crítica mas iria usufruir, posto em sossego, as carícias da glória. Seu problema é ter buscado no arsenal da
escola naturalista os ingredientes para mostrar a moça atravessando os infortúnios da histeria, submetendo­a
ao que Flora Sussekind chamou de "medicalização da linguagem". (nota 1)

Este breve ensaio tem dois objetivos: primeiro, catalogar as diferentes situações em que a principal
personagem de A carne está às voltas com práticas da leitura, e qual o efeito destas para o desdobramento da
trama romanesca. Em segundo, arrolar as opiniões que a crítica literária destilou em relação ao texto de
Júlio Ribeiro desde sua publicação até nossos dias.

O romance se abre com uma frase sobre Lopes Matoso, pai de Lenita. O narrador nos diz que ele não foi um
homem feliz, pois perdera pai e mãe muito cedo, num curto espaço do tempo. Esta fatalidade, contudo, não
o impediu de angariar uma condição acima da média. Ele perdera seus progenitores "quando apenas tinha
completado o seu curso de preparatórios"(nota 2) , mas o destino permitiu­lhe continuar o destino de
estudante através de "um amigo da família, o coronel Barbosa, que o fez continuar com os estudos e formar­
se em direito." (nota 3)A tragédia, porém, voltará a seu caminho, ao perder a esposa no terceiro ano de
casamento.

A temática da filha sozinha no mundo já havia frequentado outras vezes a culinária da literatura,
principalmente nas receitas do Naturalismo, cujo efeito orgânico imediato era a vítima cair nas garras da
histeria. O homem, O mulato e A normalista são exemplos dessa tendência.

Lenita vive sem mãe e vai perder o pai no desenrolar do romance. Mas recebe do genitor ­ ao contrário de
suas companheiras de infortúnio ­ o legado de uma educação especial. Atado à viuvez precoce, o doutor
Lopes Matoso, ameniza sua existência casmurra e faz da dedicação à filha sua única finalidade na vida:

"Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês,
espanhol, natação, equitação, ginástica, música, em tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha
porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros de
melhor nota, e tudo quanto havia de mais seleto na literatura do tempo." (nota 4)

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Este perfil feminino não encontrava oponente, tanto no bojo de outras páginas literárias, quanto nas ruas da
São Paulo de então. Talvez fosse uma atitude de ironia por parte do autor, pois a educação feminina estava
muito longe de degustar tantos e tão variados acepipes ligados ao corpo e ao espírito:

"Lenita teve ótimos professores de línguas e de ciências; estudou o italiano, o alemão, o inglês,
o latim, o grego; fez curso muito completos de matemáticas, de ciências físicas, e não se
conservou estranha às mais complexas ciências sociológicas. Tudo lhe era fácil, nenhum
campo parecia fechado a seu vasto talento." (nota 5)

Este procedimento estético abre­lhe a guarda para o olhar afiado da crítica. O primeiro adversário é o padre
Senna Freitas que, através dos jornais, irá desfiar golpes impiedosos contra o autor de A carne. Ás vezes
sem levar em conta que o cerne da questão deveria ser centrada no fato de se estar diante de uma obra
ficcional, o litigante de batinas busca elementos externos para embasar seu parecer crítico:

"Se eu lograsse ter notícia do fojo encantado onde residia essa Aspásia do século XIX, ia lá
fazer­lhe a minha romaria de amante das ciências. Vocação insólita, inaudita em S. Paulo,
onde as moças, mesmo puramente literatas, só se podem descobrir com o olhar telescópico de
um bom observador." (nota 6)

Mas o opositor de Júlio Ribeiro também teve seus momentos de fino trato ao mover o bisturi de analista.
Tentando se desvencilhar da esfera do meramente pessoal – a atitude do escritor atingido é muito mais
agressiva – ele oferece uma importante contribuição para que se possam averiguar as condições materiais
existentes em torno do livro em questão:

"A carne é um romance de 278 páginas, elegantemente impresso em Portugal e editado em S.
Paulo pelo livreiro Teixeira, emérito comprador em grosso de charqueada. Meus parabéns
calorosos...

O livro custa 3$000, como já disse. É provável que a 2ª edição, se aparecer, e aparecer
expurgada, custe o dobro. Não será caro. Eu não comprei a 1ª edição e dava 6$ por aquele
incontestável primor de estilo, com a placenta de menos. Mas neste caso o romance reduzido às
meras descrições aberrantes do âmago do enredo, à dedicatória e à capa."(nota 7)

Estes detalhes externos se tornam relevantes quando se observa que o êxito da personagem passa pelo crivo
da economia. Depois de formar seu rico cabedal e se encontrar sozinha, Lenita vai em busca do ex­tutor de
seu pai ­ o velho coronel Barbosa, que agora cuida da velhice, da fazenda e do reumatismo da esposa. Na
sua bagagem, o narrador destaca os objetos formadores de sua sensibilidade, destacando os que ela aprendeu
a amar na companhia do pai: "tinha levado consigo o seu piano, alguns bronzes artísticos, algum bibelots
curiosos e muitos livros."(nota 8) Nesta lista é significativa a falta de referência a índices consagrados à
vaidade feminina como jóias, roupas e perfumes.

Ao se instalar em seu novo ambiente, começa o ritual de valorização da leitura. Entre as lembranças do pai ­
presentificadas nos livros em pequenos sinais como "passagem marcada a unha" e "folha dobrada" – e o
esforço inútil de se fazer entender pela mulher do coronel, Lenita começa uma tensa relação com os textos
que poderiam diminuir sua solidão.

"Tal entretenimento cansava a moça, e ela recolhia­se logo aos seu cômodos para ler, para
procurar distrair­se.
Tomava um livro, deixava; tomava outro, deixava; era impossível a leitura" (nota 9)

Esta falta de sintonia é o prenúncio dos distúrbios físicos que se tornarão o empecilho para que os livros
recebam a mesma atenção de antes. A falta de novas leituras é uma ameaça à condição espiritual da
personagem.

"Uma languidez crescente, um esgotamento de forças, uma prostração quase completa ia­se
apoderando de todo o seu ser: não lia, o piano conservava­se mudo"(nota 10)

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Após a primeira crise de histerismo e do diagnóstico médico, o repouso irá normalizar as funções do corpo e
trazer de novo o apetite pela leitura. Mas agora o narrador aponta uma novidade: a heroína não quer mais
saber de leituras densas, voltadas para informações científicas. Em troca desses livros "masculinos", Lenita
agora se sente atraída por leituras mais "femininas". Nestas estão incluídas obras como Paulo e Virgínia, de
Bernardim de Sainte Pierre (1737­1814). Trata­se de um dos romances mais consumidos no século XIX,
com seu lacrimoso enredo entre dois jovens criados como irmãos numa ilha das Antilhas. Eles descobrem o
amor na adolescência e terão a morte como inimiga do desfecho amoroso. É interessante notar que tal
receituário adocicado passe a fazer parte da leitura de uma personagem que tinha ido muito além do acervo
permitido aos olhos femininos do seu tempo. Há, no discurso deste narrador, a marcação ideológica das
etiquetas a serem timbradas nas "leituras" ecomendadas para ambos os sexos. Aqui se instaura a pata do
romantismo como a única a ser acariciada pelas gazelas urbanas.

"E Lenita sentia­se outra, feminizava­se. Não tinha mais os gostos viris de outros tempos,
perdera a sede de ciência: de entre os livros que trouxera procurava os mais sentimentais.
Releu Paulo e Virgínia, o livro quarto da Eneida, o sétimo de Telêmaco. A fome picaresca de
Lazarilho de Tormes fê­la chorar." (nota 11)

A leitura torna­se, então, um agente modificador da conduta da personagem. Se antes, ela invadira a sala de
conhecimentos mais consagrados ao homem, "os gostos viris", agora se purga desse ato, tentando se situar
no perfil de leitora de coisas amenas. Sua fome de leitura, portanto, só pode ser saciada no gabinete do
romantismo.

Um outro confronto sugestivo se dá entre seu corpo, espicaçado pelo desejo, e sua mente. Esta tenta
sublimá­lo através do nível intelectual que havia alcançado. Podemos citar como exemplo desse embate
uma passagem do terceiro capítulo, quando Lenita começa a observar os contornos de uma estátua intitulada
"Gladiador Borghese". A virilidade com que as formas masculinas são apresentadas acaba por perturbar seu
pensamento. Ela acha que todo seu conhecimento é inútil, pois se sente humilhada diante da força que a
imagem esculpida tem ao despertar seus desejos carnais. Reconhecer tal volúpia é diminuir o valor de um
cérebro que andara às voltas, inclusive, com matemática transcendental:

"Não passava, na espécie, de uma simples fêmea, e que o que sentia era o desejo, era a
necessidade orgânica do macho."(nota 12)

Amenizar o braseiro dos instintos através de sentimentos mais nobres vai ser uma constante na trajetória da
personagem; os livros não podem abarcar todas as explicações para os fenômenos da vida, mas ela vai
buscá­las sempre que possível em suas páginas. Assim, diante do pavor da primeira menstruação, mesmo
com as informações dadas pelo pai, são os livros encarregados em fornecer detalhes mais precisos. O
narrador se arma com tintas do ateliê do naturalismo para adensar o texto, sapecando­lhe a terminologia
médica.

"Com o tempo, os livros de fisiologia acabaram de a edificar; em Püss aprendera que a
menstruação é um muda epitelial do útero, conjunta por simpatia com a ovulação, e que o
terrorífero e caluniado corrimento é apenas uma consequência natural dessa muda." (nota 13)

A volta da saúde e os diferentes rumos da leitura trarão para Lenita a consciência de sua condição de
mulher. Além de se integrar com a natureza através de idílicos passeios e caças, passa a cuidar melhor do
item vaidade, aprumando melhor os vestidos e os cabelos e encharcando­se de perfumes.

A entrada em cena de Barbosa, filho do coronel, que também vivia metido com livros, é o reforço para que a
leitura não se perca naqueles devaneios e continue sendo um dos fundamentos básicos para o
encaminhamento do romance. Antes de conhecê­lo, Lenita traça um retrato idealizado de sua figura, calcada
no recente contato com leituras e releituras mais leves. Por causa disso, estas novamente ficam suspensas:

"Voltava à casa, estendia­se na rede, com uma perna estirada sobre a outra, com um livro que
não lia caído sobre o peito, com a cabeça muito pendida para trás, com os olhos meio
cerrados, e assim quedava­se horas e horas em um lugar cheio de encantos." (nota 14)

Depois do primeiro encontro, desanuvia­se seu castelo, pois a moça se decepciona com os modos rudes do
cavalheiro. Mas os gosto pela leitura será a razão para que as falhas de etiqueta e indumentária sejam
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relevadas:

"Daí em diante Lenita e Barbosa não se deixaram: liam juntos, estudavam juntos, passeavam
juntos, tocavam piano a quatro mãos." (nota 15)

São vários os caminhos didáticos que se desdobram a partir daí. Barbosa vai se tornar o tutor intelectual de
Lenita. Traz para ela conhecimentos que ainda não haviam entrado em seu considerável bordado de leituras.
O leitor vai junto neste périplo pedagógico, que nada mais é do que uma amostra grátis da bagagem
intelectual do autor de A carne. O lastro em que as personagens se amparam é prova cabal disso, pois são
informações extra­literárias que ajudam o texto se manter dentro dos moldes da escola naturalista:

"Satisfeita a curiosidade científica de Lenita quanto ao estudo experimental da eletrologia, que
ela dantes só aprendera teoricamente, passaram à química e à fisiologia. Depois foram à
glótica, estudaram línguas, grego e latim com especialidade: traduziram os fragmentos de
Epicuro, o De Natura Rerum de Lucrécio." (nota 16)

Esta convivência, entre um homem separado e uma rapariga em flor, como era se esperar, termina por ser
brindada com o colírio da paixão. A leitura enquanto fruição é outra vez obrigada ao silêncio:

"Deitava­se, procurava ler, mas debalde. A imagem de Lenita interpunha­se entre ele e o
impresso. Via­o junto de si, absorvia­se em contemplá­la nessa semi­alucinação, falava­lhe em
voz alta, desesperava, depunha o livro ou o jornal, estendia­se, virava­se, adormecia,
acordava, riscava o fósforo, olhava o relógio, via que era noite, tornava a adormecer, tornava a
acordar, e assim continuava até que amanhecia, até que chegava a hora de levantar­se." (nota
17)

Enquanto isso, Lenita entra numa fase mais aguda entre indisposição e leituras. Passa o dia "encorujada na
rede", lendo a maior parte do dia, "friorenta, aborrecida, esplenética", se torturando para definir se seu
problema era "patológico" ou "fisiológico".

Pensando na "voz da carne", Lenita sente­se parte do elenco das mulheres devassas que circularam pelas
alcovas da história como Pasifae, Fedra, Júlia, Messalina, Teodora, Impéria, Lucrécia Borgia, Catarina da
Rússia. Tais companhias brotam de sua convivência com o ritmo alucinante da "lascívia da flora" e do
"furor erótico da fauna".

Com a chegada de Barbosa, suas crises de histerismo e sua solidão por não ter com que dividir a paixão
pelos livros tiveram um intervalo. E no seu desejo de ultrapassar limites desafiava, inclusive, o crivo do
casamento como álibi para se obter felicidade. Por isso, não sente o menor pudor em se imaginar ao lado do
seu amado e de quantos cruzassem seu caminho. Esta atitude só poderia nascer de uma mente acostumada
ao uso dos mecanismos da lógica:

"Teria amantes, por que não? Que lhe importava a ela as murmurações, os diz­que­diz­ques da
sociedade brasileira, hipócrita maldizente. Era moça, sensual, rica – gozava. Escandalizavam­
se, pois que se escandalizassem." (nota 18)

Barbosa tem um discurso marcado pelo meio termo. Posiciona­se contra a sociedade, mas cataloga almeja
ficar com Lenita sem afrontar as regras sociais:

"Casar com Lenita não podia, era casado. Tomá­la por amante? Certo que não. Preconceitos
íntimos não os tinha; para ele o casamento era uma instituição egoística, hipócrita,
profundamente imoral, soberanamente estúpida. Todavia era uma instituição velha de milhares
de anos, e nada demais perigoso do que arrostar, contrariar de chofre as velhas instituições;
elas hão de cair, sim, mas com o tempo, com a mesma lentidão com que se formaram, e não de
chofre, como um relâmpago. A sociedade estigmatizava o amor livre, o amor ficará fora do
casamento; força era aceitar o decreto da sociedade." (nota 19)

Ao criar personagens com tão alta linhagem intelectual, Júlio Ribeiro vai além de contar uma simples
história de amor. Inserir o tema do histerismo foi a pitada suficiente para que o livro ganhasse o rótulo de
leitura perigosa para as relações entre o leitor e sua sociedade. Mas antes da literatura, os padrões morais
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tinham sofrido o ataque arrasador vindo das descobertas científicas. No afã de dar seu testemunho estético
em época tão tumultuada, o autor logrou os resultados que estariam ao alcance de sua proposta, embora
muitas vezes, ele pareça se esquecer do leitor ao esmiuçar tanta erudição:

"A árvore é autóctone da China e do Japão, onde vive em estado selvagem, é a eribotria,
mespilus japonica. Está destinada a um grande papel no futuro, quando este país se tornar
industrial. A geléia que produz não tem competidora, e a sua aguardente, coobada, levará de
vencida a famosa kirchwasser." (nota 20)

Dentro da perspectiva anti­romântica em que a obra se situa, há certamente momentos de exagero. Um deles
é a longa carta que Barbosa envia para Lenita, quando vai a Santos resolver uma pendência jurídica do pai.

A angústia com que ela procura declarações mais íntimas – que só aparecem depois de uma exaustiva
descrição da paisagem santista – deve ter sido compartilhada pelas leitoras da época, já acostumadas com a
rapidez das cartas e bilhetes da dupla Alencar­Machado. Nada mais enfadonho do que aquela enxurrada de
palavras a deslizar numa carta escrita em "muitas folhas de papel paquete, pelure d’oignon cobertas de letras
cursivas em todas as laudas, tudo numerado muito em ordem." (nota 21)

No momento em que a carta se torna mais pessoal, o dedo do anti­romantismo se faz presente para dizer que
estas personagens são de outra estirpe, com menos camada de fantasia no molde que lhes dá forma. Daí a
crueza com que Barbosa expõe seu sentimento em relação à ausência de Lenita, arrefecendo quaisquer
possibilidades de ser fisgado pelos chavões que marcam os pares românticos:

"Não sinto saudade da nossa convivência, de nossas palestras aí no sítio: a expressão saudade
tem poesia demais e realismo de menos. O que há é necessidade , é fome, é sede de companhia
de quem me compreenda, de quem me faça pensar... da sua companhia." (nota 22)

O reencontro, que deveria ser consumido em redizer juras de amor, é marcado pelas considerações em torno
das lições que foram interrompidas por causa da viagem, criando­se um clima totalmente artificial, como se
os dois enamorados estivessem numa sala de aula:

"­ Diga­me, perguntou­lhe a moça, como se chamam estes pássaros verdes de bico redondo?

Chamam­se sabiacis.
No Brasil os psitacídios serão representados sempre por arás e papagaios?
Em São Paulo, pelo menos, são.
Quantas espécies temos de papagaios?
Ao certo, que eu saiba, seis: tuins, periquitos, cuiús, sabiacis, que são estes, baitacas e
papagaios propriamente ditos."(nota 23)

São recursos dessa ordem que fizeram da obra de Júlio Ribeiro um alvo fácil para muitas críticas corrosivas.
O casamento de Lenita para dar um pai ao filho que era de Barbosa e o suicídio deste, acabaram por
fragilizar de vez a estrutura do romance que tinha no histerismo seu grande trunfo. O que se salva, então, é a
alta dosagem de erotismo que marca o encontro entre as duas personagens. A celebração da carne se torna
muito mais forte que o discurso que questiona os valores burgueses.

"No amor enorme de que se via repassada, Lenita reconheceu o sentimento tão ridiculamente
guindado ao sublime pelo romantismo piegas, e todavia tão egoístico, tão animal – a
maternidade." (nota 24)

Como ficou estabelecido na primeira parte, procuramos captar o papel que a leitura exerceu dentro romance.
Ela foi o instrumento que serviu para a edificação espiritual das personagens, mas não pôde salvá­las de sua
ruína como atestam estas palavras de Lenita em sua última carta para Barbosa:

"Qual tem sido a minha vida desde que vim da fazenda? Nem eu mesma sei. Estudar não tenho
estudado; fui sábia, fui preciosa tanto tempo, que achei de justiça dar­me ao luxo de ser
ignorante, de ser mulher um poucochinho." (nota 25)

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Com as exceções do padre Senna Freitas e de Silvio Romero, que vêem no excesso de conhecimentos de
Lenita um dos defeitos capitais da obra de Júlio Ribeiro, a maior parte dos críticos volta­se para o histerismo
e a relação deste com os pressupostos naturalistas. O primeiro a tomar esta direção foi José Veríssimo:

"A carne, nos mais apertados moldes do zolismo e cujo título por si indica a feição voluntária e
escandalosamente obscena do romance. Salva­o, entretanto, de completo malogro o vigor de
certas descrições. Mas A carne vinha ao cabo confirmar a incapacidade do distinto gramático
para obras de imaginação já provada em Padre Belchior de Pontes. É como ela descrevi em
1889, ainda vivo o autor, o parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo (138). Mas
ainda assim no nosso mofino naturalismo sectário, um livro que merece lembrado (sic) e que,
com todos os seus defeitos, seguramente revela talento." (nota 26)

Caminho não muito diferente é seguido por Araripe Jr., que dedica ao livro um capítulo no segundo volume
de sua obra crítica onde, entre algumas considerações de estética, nega a tese do histerismo apresentada no
romance:

"O autor apaixonou­se por essa tese difícil de uma mulher que, de súbito acordando da
inocência, entregou­se às fúrias da carne. Passou­lhe por diante dos olhos a imagem da Fedra
moderna; e o seu pincel, lançando­se de um lado para outro da tela fulgurante, fê­la surgir em
toda a sua beleza e consciente hediondez. Não foi, porém, como a muitos outros tem parecido,
a Fedra histérica, mas a Fedra literária. Não é um caso mórbido de uma outra Magda, mas um
caso perfeitamente fisiológico. E, para isto, basta atender às cenas críticas, aos pontos
culminantes do livro, em que as pujanças eróticas dessa moça, ilustrada como a quis fazer o
romancista, e, portanto, inacessível aos prejuízos e pudores extemporâneos, erguem­se,
desenvolvem­se, atingem ao acume, descambam e resolvem­se por um modo frio, filosófico, ­
progresão e resolução inteiramente incompatíveis com a fenomenalidade mórbida da histeria
maior que se tem querido atribuir à amante de Barbosa." (nota 27)

Saindo um pouco da discussão clínica, Ronald de Carvalho lembra que os dois romances de Júlio Riberiro,
A carne e O padre Belchior de Pontes, não estiveram à altura do seu talento. Em relação ao livro aqui
discutido, ele contrabalança seus aspectos positivos e negativos:

"A carne é um livro de exaltação, um hino dionisíaco ao prazer, ao gosto relativista, ao
aproveitamento do momento que passa. Apesar do processo zolista, evidente que no arranjo
das cenas, no exagero das paixões, na brutalidade das criaturas, e, até, num certo propósito de
confundir o leitor ingênuo; apesar da grosseria da palavra e do gesto, notadamente violentos e
estranhos, ásperos e pesados, há na Carne uma poesia instintiva, um penetrante perfume de
selva exuberante e selvagem. É uma obra comprometida pelo tom geral e escandaloso e
atrevido, mas onde, não se pode negar, sobressaem muitas qualidades apreciáveis e um forte
lirismo." (nota 28)

Agripino Grieco retorna à linha do escândalo em sua análise sobre a evolução da ficção brasileira e a
posição da obra de Júlio Ribeiro dentro da mesma:

"Com as patifarias de Lenita, esse professor da Paulicéia serviu pastilhas afrodisíacas aos
estudantes ginasianos, embora depois lhes esfriasse o ânimo com as austeras lições de
complicadíssima gramática. Pedagogo atacado de delírio erótico, Julio Ribeiro, pôs o seu
casal frascário a vagar por entre as mais lindas paisagens, à maneira de um magarefe idílico,
de um charcuteiro que amasse as árvores e as flores. Mas, examinando­se bem, haveria na
publicação desse romance uma espécie de provocação aos puritanos da província que
irritavam o evocador do padre Belchior de Pontes." (nota 29)

Na mesma linha concisa trabalha Antonio Soares Amora, que contrapões o tom polêmico do livro e seus
deslizes estéticos:

"Desde o momento do seu aparecimento teve, A carne, como não podia deixar de ser, o condão
de despertar violentas críticas: é que o romance, intencionalmente naturalista, dedicado a
Emilio Zola, vinha de consagrado mestre da língua; no entanto chocava, como ainda hoje
choca, pela concepção materialista da vida, onde são falsos os caracteres, sobretudo Lenita, a
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protagonista, e má a tecedura gramatical. Boa no romance apenas a expressão literária, que é
de um admirável escritor. Apesar de tudo o que evidentemente tem de mau o romance, enquanto
romance, continua a despertar interesse de certo público, pelo que oferece, já no título, dos
"segredos materialistas" da patologia sexual."(nota 30)

Bem mais cortante é a avaliação de Lúcia Miguel Pereira. Ela não ameniza os defeitos do livro e encontra
nele qualidades mínimas. Lenita, em sua opinião, é a causa maior para o desarranjo estrutural da trama
elaborada por Júlio Ribeiro:

"O caso de Júlio Ribeiro é típico. Filólogo e polemista de valor, autor de um romance histórico
do mais desmarcado romantismo, com cenas à Eurico, deixou­se empolgar pelos famosos
‘estudos de temperamento’. E malgrado seu poder descritivo, só conseguiu compor um livro
ridículo.

(...)

Lenita é tão inexistente, com seu corpo demasiadamente exigente, como as incorpóreas
heroínas românticas. Como a maior parte das personagens do nosso naturalismo, foi uma
romântica às avessas, isto é, construída, não segundo a observação, mas de acordo com
fórmulas preestabelecidas, que prescreviam a substituição dos sentimentos pelos instintos."
(nota 31)

A personagem mais famosa de Júlio Ribeiro também recebeu as agudas considerações de Silvio Romero.
Ao comentar os livros naturalistas lançados em 1888, o eminente crítico chama a atenção para o papel da
leitura na formação da personalidade difusa da amante de Barbosa:

"Lenita é uma preciosa de truz, uma pedantesca moça, a quem a leitura e o estudo
desorientado não puderam sofrear os ímpetos da carne e que se prostituiu sofregamente com o
primeiro que lhe apareceu e que lhe dava lições." (nota 32)

Como se pôde observar a crítica é unânime em apontar os defeitos estampados em A carne. Mas ele
continua a ser um romance de referência a certo momento da cronologia literária brasileira. Conseguiu
sobreviver com a mesmo marcado pela precariedade estética, como exemplifica estas duas citações de
Nelson Werneck Sodré. A primeira quando diz que " A carne terá longa vida, apesar de todas as suas
deficências."(nota 33) A Segunda, bem mais ácida, quando explica como o livro atingiria tal longevidade,
mesmo sendo a criação de Júlio Ribeiro "marginal nas letras, não resiste à menor análise, seja de forma, seja
de conteúdo"(nota 34). O fato de o romancista ser um conhecedor da língua serviu, segundo Werneck, para
que existissem no texto "fragmentos aproveitáveis. Isso não importa, entretanto, para a sua conceituação,
não altera o problema fundamental."(nota 35)

Uma voz um pouco mais solidária vem de Flora Sussekind ao rebater as opiniões de José Veríssimo e Lúcia
Miguel Pereira. Estes vêem inconsistência nos romances que abordavam casos de doenças, pois tal tema
estaria distanciado da realidade nacional:

"Seriam, no entanto, tais estudos de temperamento tão fora de propósito, tão afastados da
sociedade brasileira? Por que fizeram escola? Por que a prefer6encia pelas ‘nevropatas’ em
detrimento de personagens coletivos ou romances cujo cenário fosse mais amplo do que uma
típica casa de família? Seria possível, ainda, considerarmos gratuita tal refer6encia quando
associamos à voga cientificista e ao desenvolvimento de uma medicina do comportamento no
final do século?"(nota 36)

Outro parecer importante veio nas notas homeopáticas de Alfredo Bosi em sua História concisa da
literatura brasileira. Segundo ele, a criação de romances como A carne em obediência rígida aos princípios
naturalistas, fez com eles fossem marcados "por desvios melodramáticos ou distorções psicológicas
grosseiras"(nota 37). Tanto o romance de Júlio Ribeiro quanto O missionário, de Inglês de Sousa e A
normalista, de Adolfo Caminha, "caíram sob o peso de esquemas preconcebidos, pouco vindo a salvar­se do
ponto de vista ficcional"(nota 38). Para arrematar , Bosi diz que A carne, ao lado de O cromo, de Horácio
Carvalho, são "meros apêndices do naturalismo" (nota 39)

É salutar que tanta divergência tenha sido causado por este ato aparentemente simples: a leitura de um texto. 7/8
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É salutar que tanta divergência tenha sido causado por este ato aparentemente simples: a leitura de um texto.
A análise que o "mal" que a leitura pode provocar, usando­se a própria literatura como paciente, não deixa
de ser uma experiência ímpar. Se o legado de Júlio Ribeiro suscita tanta controvérsia, apesar dos defeitos
que tanto são unânimes em apontar em seu livro, imagine os tesouros se serem obtidos se tal empreitada
investigativa for feita, por exemplo, em Madame Bovary e Dom Quixote, dois ícones da relação entre o
prazer e a ruína provocados pela leitura .

Mas isso já é uma outra história, isto é, uma outra página. Por enquanto, fiquemos com os fragmentos que o
discurso de Júlio Ribeiro foi capaz de fazer para a construção amorosa deste ensaio.

Campinas, sexta­feira, 13 de novembro de 1998.

12:25
BIBLIOGRAFIA
AMORA, Antonio Soares. História da literatura brasileira. São Paulo: Edição Saraiva, 1958.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1993.
CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguet & Cia.,
Editores, 1935.
GRIECO, Agripino. Evolução da prosa brasileira. Rio de janeiro: Ariel, 1933.
JUNIOR, Araripe. Obra crítica. Rio de janeiro: MEC/Casa de Rui Barbosa, 1960.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1950
RIBEIRO, Júlio. A carne. Rio de Janeiro: Editora Três, 1972.
ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1954.
SODRÉ, Nelson Werneck. O naturalismo no Brasil, Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1992.
_____________________. História da literatura brasileira. São Paulo: Difel, 1982
SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de janeiro: Achiamé, 1984.
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1954

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