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FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE I NDAIATUBA

Coleção “Crônicas Indaiatubanas”

Recordações de um clarinetista
Por

Nabor Pires Camargo

Indaiatuba, Estado de São Paulo, BRASIL

2000
FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE INDAIATUBA
Avenida Jácomo Nazário, 1046 – Bairro Cidade Nova
13334-047 – Indaiatuba –SP
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Gentil Gonçales Filho
José Roberto Guedes de Oliveira ( até 01/03/99)
Lauro Ratti Jr. ( desde 16/06/99)
Lúcia Steffen ( até 05/06/1997)
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Sônia Maria Fonseca ( Superintendente) Denise Aparecida Soares de Oliveira ( Arquivista)
Meire Ap. Machado de Souza (Assessora de Direção) Izabel Ciscati Pereira ( Servente)
Laércio Victor de Siqueira ( Guarda de Patrimônio)
Márcia Rodrigues Tavares ( Auxiliar Administrativo)
Rosilda Paes de Almeida ( Auxiliar Administrativo)
Sheila Vanessa Souza ( Agente Administrativo)
Silvane Rodrigues Leite Alves ( Arquivista)
Sílvia Mendes Masson ( Arquivista)
Nabor Pires Camargo

Recordações de um clarinetista
FUNDAÇÃO PRÓ-MEMÓRIA DE INDAIATUBA
Coleção “Crônicas Indaiatubanas”
Nabor Pires Camargo, Recordações de um clarinetista

Créditos da publicação
Concepção e preparação dos originais: Janice Gonçalves; Sônia Maria Fonseca
Revisão: Abel Cardoso Junior; Sônia Maria Fonseca

Composição e Impressão:
Ottoni Editora
Rua Garcia Moreno, 55 – Centro – CEP 13300-610 - Itu - SP
Fone/Fax: ( 0xx11) 7823-0197 – 7822-5312 – 7822-5309
Sumário

Apresentação
Prefácio
Dados biográficos de Nabor Pires de Camargo
Agradecimento

Recordações de um clarinetista.

Primeira Parte: Minha Infância


. Minha Infância
. A botica do Chico
. Minha terra, meu amor!
. A escola primária
. Serões musicais
. Romaria a Pirapora
. Nossa família
. Jogos infantis
. As recordações continuam....
. Crime e castigo
. A mangueira que plantei
. A primeira invenção
. Outra invenção
. O Cometa Halley
. Os dois violeiros
. Mais uma travessura
. A clarineta, meu habeas-corpus
. Um incidente com cobra
. Gigante, o burro amigo
. A corrida de burros

Segunda Parte: A Banda


. A banda
. As bandas de Indaiatuba
. Maestro José Lopes dos Reis
. As lições de música
. Primeiros serviços da banda
. A remuneração da banda
. A sede da banda, os ensaios e as aulas
. Um novo maestro assume a direção da banda
. Minha primeira composição
. O primeiro avião que pousou em Indaiatuba
. Uma briga de cobra com lagarto
. O futebol em Indaiatuba

Terceira Parte: As serenatas


. As serenatas
. A serenata inesquecível
. Repertório
. A quebra da clarineta
. Viagem de volta
. A música como arte e como profissão
. Os três bailes famosos
. Um novo maestro
. Eu, mestre da banda
. O primeiro serviço
. Viagem a Salto
. Um caso pitoresco
. Outro caso pitoresco
. Composições até os dezoito anos
. A vida em Indaiatuba até os dezoito anos
. A caçada de paca e de capivara

Quarta Parte: A vinda para São Paulo


. A vinda para São Paulo
. Composições em São Paulo
. Hino Indaiatubano
. Outras composições
. Prêmios
. Gravações
. Métodos para clarineta e saxofone
. Método para saxofone
. Estações de rádio
. Orquestra sinfônica
. Marcha “Presidente Kennedy”
. Mais algumas composições

Índice remissivo
Apresentação

A Fundação Pró-Memória dá prosseguimento a publicação da Coleção “Crônicas


Indaiatubanas”, com este número dois, a obra “Recordações de um clarinetista” de Nabor Pires
Camargo. Com a edição destas memórias ditadas pelo músico, nascido em Indaiatuba, à sua esposa
D. Cleonice Mattioli Camargo, pretende-se trazer à luz os seus fragmentos de vida, histórias vividas
aqui e em outras paragens.
Contrariando a teoria do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-188?) que em sua obra
Genealogia da Moral defende que importa menos o artista que a obra, o leitor terá a
oportunidade de descobrir, nas páginas a seguir, o homem por trás da obra, sua formação musical, as
composições, as estrepulias de menino na pacata Indaiatuba do início do século.
Prefácio

Nabor Pires Camargo tem lugar de merecido destaque entre os grandes músicos brasileiros,
como clarinetista e compositor, conforme pode ser constatado, mais uma vez, e agora também pela
nova geração, nesta publicação, em boa hora lançada pela Fundação Pró-Memória de Indaiatuba,
sua muito querida cidade natal, sob a competente direção de Sônia Maria Fonseca.
Poucos músicos em nosso país tiveram a preocupação de registrar suas próprias memórias.
Nabor, felizmente, estimulado por D. Cleonice, sua mulher e reconhecida poetisa, teve esse cuidado,
razão pela qual podemos ter aqui o relato de sua vida, desde a infância, no alvorecer do século, até
seu êxito na capital paulista, tanto no gênero popular como na chamada música clássica, como
integrante de orquestra sinfônica.
É uma leitura palpitante e saborosa, que vai além dos episódios biográficos, pois nos oferece
igualmente a descrição dos usos e costumes do quotidiano de outrora, hoje esquecidos, pintados
num painel de expressivo colorido e de inestimável valor até como fonte de pesquisa social.
A convite de Antônio da Cunha Penna e Antônio Reginaldo Geiss, fiéis escudeiros da
memória de Nabor, estive em Indaiatuba, cidade agradabilíssima, em 1998, a fim de obter as
informações necessárias para o texto da contracapa do relançamento do LP Velha Guarda, de
Nabor. Em sua residência, tive a honra e o prazer de conhecê-lo, bem como conhecer D. Cleonice,
simpática e inteligente, num ambiente de alegria e hospitalidade. Não obstante os 86 anos, Nabor, a
par daquele traço caboclo e simples, tão típico dos antigos paulistas, deixou-me impressão de
perspicácia e jovialidade, ponteando suas observações com vivacidade e bom-humor.
A bibliografia de nossa música popular, sem dúvida, com esta insuspeitada e bem-vinda
autobiografia de Nabor Pires Camargo, fica bastante enriquecida, para satisfação de quantos, em
todo o Brasil, a cultivam com respeito e amor e desejam saber mais sobre seus personagens
fundamentais.

ABEL CARDOSO JUNIOR


Sorocaba - SP
Dados biográficos de Nabor Pires de Camargo

Nabor Pires de Camargo nasceu em Indaiatuba, SP, em 9.2.1902, e faleceu em Mococa, SP,
em 3.10.1996. Era o sétimo filho de um comerciante e criador de gado. Descendia de antigas
famílias paulistas. O escritor e folclorista tieteense Cornélio Pires costumava dizer a Nabor que eles
eram primos distantes.
Nabor começou na música com nove anos, praticando às escondidas na clarineta de um
irmão. Depois recebeu lições de um mestre, que chegou em Indaiatuba para formar uma banda de
crianças, na qual foi admitido.
Com dezenove anos, em 1922, foi para São Paulo estudar no Conservatório Dramático e
Musical. Trabalhou acompanhando filmes mudos num cinema de bairro e depois nos cinemas
centrais por haver demonstrado competência.
Vinha compondo desde criança e, no final dos anos 20, assinou um contrato com a editora
Irmãos Vitale, com a duração de 28 meses sob o compromisso de entregar uma música por mês,
tendo sido Triste separação a primeira.
Gravou suas primeiras músicas na pequena gravadora Brasilphone de São Paulo, em 1927:
os sambas No meu sertão, por Pilé, e Lágrima de caboclo, por A. Longo.
No mesmo ano, na gravadora Imperador, também de São Paulo, Artur Castro gravou seu
samba O cavanhaque do bode e o maxixe Mamãe me leva. O cinema falado, que chegou em São
Paulo em 1929, da noite para o dia, provou grande desemprego entre os músicos, restando a Nabor
tocar em orquestras patrocinadas por mecenas paulistanos. A remuneração era pequena, mas valia
pela possibilidade dele desenvolver-se na música clássica.
Em 1929, na recém-inaugurada Colúmbia de São Paulo, gravou com João Cibella sua valsa
Rosa, Rosa ( c/ Dicas) e com João Gentiluomo o samba Caboclo saudoso.
Obteve o 2 º prêmio no concurso promovido em São Paulo pela Associação Nacional dos
Negociantes e Editores de Música com a canção Por que te dei meu coração, gravada por Jorge
Fernandes na Parlophon, em 1930.
Arnaldo Pescuma, em 1931, gravou na Colúmbia seus samba Foi castigo. Nesse ano, solando
sua clarineta, lançou pela Victor sua mais famosa composição a valsa-choro Caindo das nuvens,
gravada no estúdio que havia na Praça da República de São Paulo. O nome surgiu-lhe quando um
músico, atrapalhado com a dificuldade da execução, disse que se sentia como que “caindo das
nuvens”. No outro lado desse disco, tocou seu choro Matando saudades.
Ainda em 1931, gravou músicas suas em vários discos da Ouvidor e Arte-Fone, ambas de
São Paulo, esta instalada, nesse ano, na Rua Hípia, na Moóca e tendo como diretor-artístico Alberto
Marino. Um desses discos foi gravado pelo Trio Antenógenes Silva ( Antenógenes-Vicente
Lima-Nabor).
Nessa ocasião, os Irmãos Vitale começaram a editar os álbuns Choros do Nabor, para o
estudo de clarineta, flauta, saxofone e violino. Até 1946, foram 10 álbuns, cada qual com 10 choros.
Em 1934 gravou na Colúmbia suas músicas Venenoso, choro, Último amor, valsa, e, com o
Sexteto Camargo, Luar de minha terra, valsa, e cavando a vida, choro.
Em 1935, para o carnaval Raquel de Freitas gravou seu samba Só pra machucar.
Nesse ano, ingressou como 2º-clarinetista da Orquestra Sinfônica Municipal, um ano depois
por concurso passando a 1 º-clarinetista, e nela se aposentando. Esteve sob a regência de
Villa-Lobos, Souza Lima, Eleazar de Carvalho e outros, inclusive os estrangeiros que passaram por
São Paulo, como Toscanini e Stravinski. Só em 1954 veio a conhecer com a Orquestra a cidade do
Rio de Janeiro, que aí se apresentou pela comemoração do 4 º Centenário da capital paulista.
Ganhou 16 prêmios em concursos musicais. Seu samba Vá carregar piano levou o 1º prêmio,
da categoria, no concurso carnavalesco de 1936 da Prefeitura paulistana, sendo gravado na Victor
por Januário de Oliveira e Arnaldo Pescuma. Nesse ano, gravou em solo de clarineta, na Colúmbia,
de sua autoria, Implorando o teu amor, valsa, e Soluçando, choro. No carnaval de 1938, gravou a
marcha Vem meu bem, com Nestor Amaral, Garota, samba, com Januário de Oliveira, e De tostão
em tostão, marcha, com Alzirinha Camargo.
Lecionou clarineta, saxofone e piano. Em 1948, por encomenda dos Irmãos Vitale, preparou
um Método para Clarineta, aprovado e recomendado pelo Conservatório de São Paulo, que se
tornou o mais vendido do Brasil e continua em catálogo. Para a Casa Manon, escreveu dois métodos
para saxofone.
Em 1948, a Orquestra Fon-Fon gravou na Odeon seu choro Tupi.
Pela continental, em 1964, lançou seu único LP, chamado Velha Guarda, sendo
acompanhado por Caçulinha ( acordeão) e Poli ( violão) entre outros, o qual foi reeditado, em 1988,
por Silva & Penna ( Foto e Vídeo), de Indaiatuba.
Em 1929, compôs o Hino Indaiatubano, oficializado em 1974. Em 1975 fez a canção Luar
de Indaiatuba, com versos da poetisa Cleonice Mattioli Camargo, sua esposa. Sua última obra foi a
peça-bailado Ara erê uçu ( Grande dia de festa), com texto de D. Cleonice, sobre a formação do
povo de sua terra, encenada.
Entre os instrumentistas, chorões e estudantes de música de todo o Brasil, o indaiatubano
Nabor Pires Camargo continua a ser um dos referenciais mais importantes e mais lembrados.

ABEL CARDOSO JUNIOR

1902: nasceu, em 09 de fevereiro, na casa número 16 da Rua 15 de Novembro, Município de


Indaiatuba.
1912: foi admitido como clarinetista da banda infanto-juvenil regida pelo maestro José Lopes dos
Reis, o “Dunga”, durante a administração do Prefeito Major Alfredo Camargo Fonseca.
1916: tornou-se auxiliar maestro da banda infanto-juvenil.
1920: admitido como empregado na usina de açúcar da companhia Agrícola de Guatapará; no
mesmo ano, impressão da composição “Triste Separação”.
1921: transferiu-se para São Paulo; deu início aos estudos de música no Conservatório
Dramático-Musical de São Paulo.
Nos primeiros tempos na capital, foi clarinetista da Banda do 4 º B.C. d o Exército ( durante o
serviço militar), empregado da Companhia de Estrada de Ferro Santos-Jundiaí ( a “Inglesa”),
clarinetista da Banda da Lapa, clarinetista da orquestra do Cine São Bento e do Cinema Olímpia.
Fez amizade com o jornalista e poeta Dieno Castanho, iniciando com ele,a aprtir do maxixe
“Mamãe me leva”, uma longa parceria em suas composições.
1923: passou a atuar em programas de rádio na Rádio Record
1930: foi escolhido “Melhor Clarinestista de 1930”, prêmio concedido pela Gazeta Esportiva.
Gravou seu primeiro disco, no estúdio da Victor da Praça da República, com as composições
“Matando Saudades” e “Caindo das Nuvens”.
1932: iniciou a impressão dos álbuns “Choros do Nabor”. Durante o movimento constitucionaista,
participou da Banda do Batalhão Piratininga.
1933 a 1937: participou da orquestra e do grupo regional de música da Rádio Educadora.
1934: casou-se com Dona Cleonice, com quem teve uma filha, Marizaura.
1936: o samba “Vá carregar piano” obtém o primeiro lugar no concurso de sambas de São Paulo,
interpretado por Arnaldo Pescuma e Januário de Oliveira.
1937: integrou a Orquestra Sinfônica da Rádio Tupi. Ainda na década de 1930, foi músico na Rádio
Gazeta e na Rádio e Televisão Nacional, além da Orquestra Sinfônica Musical de São Paulo (
oficializada no final da década de 1940).
1947: primeiros entendimentos com a Editora Irmãos Vitale, visando a elaboração e publicação de
um método para clarineta.
1954: acompanha a Orquestra Sinfônica Musical de São Paulo ao Rio, para um concerto no Teatro
Municipal, em sua primeira e única viagem àquela cidade.
1967: aposentou-se pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo, órgão ao qual estava
subordinada a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo.
1984: primeiro ganhador da Medalha “João Tibiriçá Piratininga”.
1985: retornou a Indaiatuba. No final da década de 1980 transferiu-se para Mococa.
1985: declarado sócio honorário do Rotary Club de Indaiatuba no ano rotário de 1985/86 e
renovado anualmente até a sua morte.
1996: faleceu em 03 de outubro de 1996, aos 94 anos, deixando esposa ( Dona Cleonice), filha (
Marizaura), netos e bisnetos.
Agradecimento

Na condição de viúva de Nabor Pires de Camargo agradeço à Fundação Pró-memória de


Indaiatuba, nas pessoas de sua Superintendente – Sônia Maria Fonseca e de seus Conselheiros
Antonio Reginaldo Geiss e Antônio da Cunha Penna, que não pouparam esforços para realizar a
publicação deste livro.Oxalá, possam as memórias de meu marido, incentivar os novos artistas da
arte musical!
Acompanhei sessenta e quatro anos da vida artística de meu marido e sei o quanto ele lutou
para conseguir concretizar o que havia planejado em sua adolescência. Felizmente, foi um
vencedor!
Apresento, aqui, também o meu agradecimento ao insigne escritor – Abel Cardoso Junior
que gentilmente, nos concedeu a honra de prefaciar este livro.

Cleonice Mattioli Camargo


Mococa, 14 de janeiro de 2000.
Primeira Parte:

MINHA INFÂNCIA
M in h a I n fân cia

O sino da tarde
a dondolear
com muita saudade
me vem recordar
os tempos da infância,
de ameno folgar,
vivendo feliz
a rir e a brincar

O sino da tarde
solene a bater
nos traz à lembrança
o alegre viver
sem ter dissabores,
só riso e prazer,
por verdes campinas
brincando a correr.

(Versos de Dieno Castanho)

Naquele tempo, eu, um menino igual aos outros, percorria descalço os campos da minha
querida Indaiatuba. Nunca ia só. O nosso grupo de moleques era bem grande, como grandes também
eram as nossas travessuras.
Nas nossas aventuras levávamos sempre conosco os nossos estilingues, armas indispensáveis
a todo bom moleque daquele tempo. Perto do pontilhão da estrada de ferro, o grupo se dividia, e
como a Itália e a Turquia estavam em guerra, nós também fazíamos a nossa “guerra ítalo-turca”, em
Indaiatuba.
As laterais da via férrea nos serviam de trincheiras, a munição eram pelotes de barro.
Entretanto, numa das batalhas, o inimigo foi traiçoeiro, pois usou munição proibida: chumbo.
Um desses chumbos atingiu um olho de meu mano Arlindo.
O susto foi muito grande! Nós julgamos que o mano tinha ficado cego. Às pressas, o levamos
para a farmácia do Chico Boticário, o qual, com relativa facilidade, extraiu o chumbo, que por sorte
havia se alojado no canto de um dos olhos, sem ofender o olho.
Bem... é inútil dizer que nesse dia a “guerra ítalo-turca” acabou...
A bot ica do Ch ico

Eu falei em Chico Boticário, e ao pensamento me veio o muro de taipa de um velho


cemitério que existira em frente à sua botica, no qual, de espaço em espaço, havia buracos onde se
alojavam vespas vermelhas.
Freqüentemente, crianças e senhoras eram picadas por essas terríveis vespas; e nós, os
moleques, incitados pelo Chico Boticário, éramos incansáveis perseguidores desses insetos.
Enquanto alguns de nós, com uma taquara, desalojávamos as vespas, outros, que já estavam
em prontidão, atacavam-nas, sem dó nem piedade, com galhos de árvores, até exterminá-las.
Algumas vezes também éramos picados por elas e, nesse caso, corríamos à botica para recebermos o
curativo adequado.
Assim, reuníamos o útil ao agradável: matávamos as vespas, evitando que elas atacassem as
pessoas, e nos divertíamos apostando quem mataria maior número delas.

Mi nh a terra, meu amor!

Eu nunca pude esquecer minha pequenina terra! Nunca pude esquecer a vida simples e
tranqüila daqueles tempos: a casa grande, a família numerosa, o céu aberto, o ar puro, a igreja
matriz, a banda no jardim, o cinema, os bailes, as festas juninas, o circo, o chafariz, a raia reta, as
touradas, os rodeios, a cervejaria do Hildebrando Pinfari, o verdadeiro samba, as quadrilhas bem
marcadas, os jogos de futebol e, principalmente, os verdes campos cheios de frutos deliciosos! Neles
havia os indaiás, os araticuns, os guapicurus, as uvaias, as amoras, as pitangas, os cajuzinhos do
campo, as guapevas, os araçás e as guabirobas. E, para completar tudo isso, havia mais uma coisa: a
clarineta.
Dizem que as pessoas são fruto do meio em que vivem. Em se tratando de música, essa tese
é discutível. A música, como todas as artes, é um dom nato. E eu senti, desde menino, que a minha
vocação era a música. A ela, eu me entreguei desde então, nunca permitindo que coisa alguma nos
separasse. Com ela, eu realizei o meu ideal. Eu não aspirei a muito, é verdade. Apenas desejei ser
um músico perfeito; não para me envaidecer com isso, mas para minha satisfação pessoal.
Amo tanto a música que, se outra vida eu pudesse ter, nela eu gostaria de ser músico
novamente.

A es cola prim ária

Em 1909, com sete anos de idade, ingressei no grupo escolar.


Naquele tempo, antes das aulas começarem, nós cantávamos hinos patrióticos. Estávamos
cantando, quando um dos meus colegas desafinou. A professora procurou saber quem era o
desafinado. O menino que se achava ao meu lado, não sei o porquê, afirmou que o desafinado era
eu, e não teve dúvidas em dizê-lo à professora. Esta ficou junto a mim, e fez toda a classe cantar
novamente. Eu meti o peito!
Terminada a prova, a professora disse: “Você está enganado, Pedro. Nabor é um dos mais
afinados da classe!”
O elogio agradou-me, porque eu já gostava muito de música; e o que eu mais apreciava na
escola eram os momentos em que cantávamos hinos patrióticos. Embora, com meus sete anos
apenas, não pudesse compreender o que aqueles poemas diziam, adivinhava que eles elogiavam a
minha terra, e que continham uma mensagem de amor ao meu Brasil!

Serões mu si cais

Quando atingi a idade de sete anos, conheci as irmãs Zilda e Mariquinha, já então famosas
cantoras de igreja. As duas moças eram muito populares na cidade, porque, além de cantarem nas
igrejas, costumavam tomar parte em serões musicais em casas de família. Esses serões estavam
muito em voga naquela época.
As irmãs Zilda e Mariquinha também tocavam violão; e, elas mesmas, quando cantavam, se
acompanhavam com esse instrumento. Constantemente, eram solicitadas para cantar em festas, pois
o seu repertório era vastíssimo e de muito bom gosto. As músicas que elas cantavam e me ficaram
na memória são: “A casinha pequenina”, “O bem-te-vi”, “O luar do sertão”, “Gondoleiro do amor”,
“Talento e formosura”, “Na casa branca da serra”, “Acorda, Adalgisa”, “Três horas da madrugada”,
“Dirce”, “Flor amorosa” e “Flor do mal”.
Em nossa casa, esses serões eram muito apreciados! Na sala grande nos reuníamos todos, e
cada um solicitava a sua música preferida.
Mamãe, lá pelas vinte e uma horas, servia um “café com as duas mãos”, isto é, café
acompanhado de bolinhos fritos, de broinhas de fubá ou de bolão de fubá com erva-doce (coisas em
moda naquele tempo). Durante o inverno, principalmente nos dias das festas juninas, tomava-se
quentão acompanhado de pinhões, batatas doces, pipocas e de amendoins torrados na hora.
Eram tão simples e tão agradáveis as festas daquele tempo! Não se faziam convites: quem
quisesse ia chegando. Quanta saudade de tudo isso!

Romaria a Pirapora

Anualmente, Pirapora recebe romeiros de várias cidades paulistas que para aí vão, a fim de
cumprir promessas.
Minha tia, irmã de papai, “Nhá” Zinha e seu marido “Nhô” Zinho, fazendeiros em Monte
Mor, costumavam com sua numerosa família tomar parte nessas romarias; e para essas viagens
usavam um grande carro puxado por bois, e coberto - muito bem coberto - com couros. No seu
interior havia relativo conforto; nele eram estendidas grossas esteiras, nas quais repousavam as
mulheres e as crianças. Num dos cantos, em uma grande caixa, eram transportados os comestíveis
previamente preparados para serem consumidos durante a viagem. Almoçavam à sombra de alguma
árvore copada e viajavam até Indaiatuba, onde faziam a primeira grande parada.
Os homens viajavam a cavalo, escoltando o carro de bois. Eles vestiam bizarros palas e
usavam chapéus com abas exageradamente largas.
Chegados a Indaiatuba, hospedavam-se em nossa casa. A primeira coisa que faziam, após os
cumprimentos e os apertados abraços, era soltar os cavalos e os bois em nosso pasto, próximo à
cidade, onde havia boa aguada e ótimo capim.
A chegada do tio, com sua grande família, era para nós uma verdadeira festa! Já prevíamos
longos serões musicais, nos quais, além da Zilda e da Mariquinha, teríamos números executados por
meu tio e por meu primo Dalmiro, que fazia dueto com o pai. Este, além de cantar, também tocava
violão.
Nunca consegui esquecer uma das canções do seu repertório que dizia:

“Na gaiolá empoleirado, minha mãe,


cantava um lindo passarinho,
desfiando seus queixumes
com sáudadê do seu ninho:
ai, ai, ai...ai, ai, ai...
com sáudadê do seu ninho.”

Esse “ai, ai, ai” era cantado pelo coro. Nele, a turma inteira tomava parte. E as palavras
“gaiolá” e “sáudadê” eram pronunciadas assim mesmo, porque a nota tônica da música assim o
exigia. Eu, na minha ingenuidade infantil, não conseguia saber quem estava empoleirado na “gaiolá”
- se era o passarinho, ou se era a minha tia....
Bem... como eu estava contando, meus tios e sua família hospedavam-se em nossa casa e
geralmente lá permaneciam durante três dias, antes de partirem para Pirapora, e dois dias, na viagem
de volta para Monte Mor.
Nesses dias, nosso quintal ficava repleto de provisões. Parecia até um pequeno zoológico!
Nele havia frangos, cabritos, leitões, perus, carneiros, patos e algumas vezes até caças de pelo, como
capivaras e pacas. Ovos, a galinhada se incumbia de botar. No quintal sempre havia frutas.
Minha tia trazia algumas latas com doce de cidra, de laranja azeda, de mamão, potes com
melado e rapaduras muito clarinhas... muito gostosas! Mamãe fazia tachadas de doce de abóbora ou
de frutas da época do ano. Precisava haver mesmo muita fartura, pois as bocas aumentavam de
catorze para vinte e cinco!
Pela manhã, logo após o café, começava a correria no quintal para pegar e matar os
animais que deviam ser consumidos no almoço desse dia. Na cozinha, mamãe e mais duas
empregadas já estavam a postos, acendendo o grande fogão à lenha. No quintal, num outro fogão
improvisado, grandes caldeirões de água eram postos a ferver a fim de depenar frangos e pelar
leitões.
O movimento era geral. Ninguém ficava parado, apenas como espectador, a não ser papai e
meu tio, que ficavam no negócio para atender os fregueses.
Nas horas das refeições só se sentavam ao redor da mesa as senhoras e os mais velhos. A
criançada comia em uma mesa improvisada com cavaletes e tábuas, no quintal. Tudo era muito
pitoresco!
O que nos interessava era que houvesse fartura, e isso, felizmente, havia! Durante o dia
inteiro, só se pensava em comida, porque, para alimentar tanta gente, o trabalho na cozinha era
contínuo. Além do mais, era costume naquela época haver cinco refeições diárias, isto é, o café da
manhã bem reforçado, o almoço às onze horas, uma merenda às quinze horas, o jantar às dezoito e,
antes de dormir, um “café com as duas mãos”, porque, segundo diziam os “antigos”, com o
estômago vazio não se dorme bem.
Que saudade de tudo! Daquelas comidas tão gostosas! Dos leitões bem à pururuca, das
pacas, das capivaras, das batatas doces assadas no forno, das pamonhas, das rapaduras de cidra, do
melado com farinha torrada, das coisas boas que só naquele tempo havia!
À noite, nós, as crianças, dormíamos em colchões, no chão. Para esse fim é que em cada
cama, lá em casa, havia dois colchões.
Tudo isso para nós era uma festa! Ter hóspedes em casa, ter mais companhia, sair da rotina!

Noss a fa míl ia

Nossa família não era tão numerosa como a do tio Zinho e da tia Zinha. Eles tiveram ao todo
vinte e dois filhos. Nem todos viveram, é certo. Dos vinte e dois, cresceram somente dezoito.
Em nossa casa éramos doze irmãos, papai e mamãe. Éramos nove rapazes e três meninas. As
meninas apreciavam música e gostavam de cantar. Quanto aos rapazes, posso afirmar que todos
fomos músicos, embora os outros não houvessem feito da música o seu único interesse, como foi, é
e sempre será o meu. Papai e mamãe gostavam imensamente de música e nos incentivavam quando
tocávamos. Mas...voltemos à Indaiatuba da minha infância...
Meus companheiros e eu nadávamos no tanque do Bicudo. Quando comecei a aprender a
nadar, quase morri afogado! Fui salvo por meu companheiro Zeca do Sul, a quem fiquei devendo a
vida.
Algumas vezes atravessávamos o Brejo do Coronel, pegado à chácara do Montebello, para lá
fazermos nossas caçadas. Nada nos impedia, nem intimidava, quando nos propúnhamos a atravessar
o tal brejo. Lá havia olhos-d’água, cobras, lagartos, etc...
Diariamente íamos buscar água no chafariz. Que água maravilhosa! Leve, pura e cristalina!
Interessante era o espetáculo a que se assistia, ali, todos os dias: grande número de crianças, com
seus carrinhos de madeira, nos quais levavam uma lata de querosene, chegavam a cada instante às
imediações do chafariz. Os adultos levavam carrinhos com duas latas. A ordem da chegada era
automaticamente obedecida. O povo formava filas, aguardando cada qual a sua vez de se prover
com o precioso líquido.
Naquele tempo, as mulheres usavam vestidos de chita florida, geralmente de cores vivas.
Algumas usavam chapéu de palha, com grandes abas; outras usavam lenços também de cores vivas.
Isso dava um tom festivo àquela cena.
Jogos in fan ti s

Volto ao meu tempo de criança. Os meus companheiros de então desfilam pelo meu
pensamento, e me sinto entre eles, participando dos jogos infantis.
Esses jogos eram divertimentos sadios e nos proporcionavam muita alegria.
Lembro-me muitas vezes do bondoso Padre Ladeira, que nos ensinava sempre novos jogos, e
como se fosse também criança, disputava torneios conosco.
O nosso jogo predileto era a “barra-manteiga”. Jogávamos bola, peteca, diabolô, “lá vai uma
barquinha”; empinávamos papagaios, pulávamos amarelinha e andávamos de bicicleta.
Para descansar de toda essa brincadeira, pegava, às escondidas, a clarineta do meu mano
Miloca, e ensaiava sozinho, sem ninguém ter me ensinado coisa alguma, a melodia da conhecida
valsa “O gondoleiro do amor”. Essa música estava muito em voga, naquele tempo. E, diariamente,
às escondidas, eu a estudava na clarineta do meu mano Miloca, até que um dia fui apanhado com a
boca na botija... digo, na clarineta.
Empalideci de susto! O mano era enérgico, não admitia falta de respeito com ele. E eu
esperava uma reação diferente da que houve. Quando olhei para ele, notei que seu rosto estava
repleto de alegria e de admiração. Ao contrário do que eu esperava, ele foi dizendo:
“Ah! Então era você que quebrava as minhas palhetas? Bem... não faz mal!... De hoje em
diante, vamos estudar por música, que tudo ficará mais fácil.”
De fato, ele me ensinou as primeiras notas musicais, as primeiras noções de música e a
conhecer bem o instrumento. Assim, “O gondoleiro do amor” e a clarineta do Miloca ficaram
ligados para sempre à minha vida artística.
Desde então, eu diariamente estudava música durante uma hora. Essa era para mim a hora
mais agradável do dia. Não querendo aborrecer o pessoal de casa com os meus estudos, arranjei um
saquinho de pano, onde colocava o instrumento para melhor subir à copa de uma frondosa
mangueira que havia no nosso quintal; e num dos galhos mais altos, que parecia ter sido preparado
para o fim que lhe dei, passava uma hora inteira estudando clarineta com grande satisfação.
Algumas vezes, até platéia tinha, pois o som da minha clarineta espalhava-se por um bom
pedaço de Indaiatuba. Quando, uns anos depois, apareceu a radiotelefonia, mamãe dizia orgulhosa:
“Para mim, isso não é novidade... Nabor há muito tempo já o fazia!”

As recordações con tin u am .. .

As recordações continuam e me vejo em minha casa, em Indaiatuba, contando os passos de


mamãe, desde a cozinha até o fim do corredor, onde havia um depósito de mercadorias destinadas a
sortir o armazém. Lá, mamãe foi esconder uma tachada de doce, para que esfriasse bem.
Contei seus passos, pelas batidas do seu chinelo no chão. Depois diminui o tamanho dos
meus, dei o mesmo número de passos que mamãe havia dado, e fui dar direitinho no tacho de
marmelada. Achado o “tesouro”, eu enfiei a mão nele, e comi até enjoar, sem me preocupar sequer
em desmanchar as marcas que os meus dedos ali tinham deixado.
Mamãe nem precisava conferir aquelas marcas... Ela me conhecia muito bem!
O “pito” pouco adiantou, porque, uma semana depois, desci por uma corda amarrada no
esteio do quarto de dormir do meu tio João, para, enquanto ele almoçava tranqüilo em nossa casa,
roubar doce de laranja, que havia em cima de uma mesa, nesse cômodo.
Lá em casa tinha havido desse doce para comer a fartar, mas já havia terminado. E aquele
doce roubado tinha um sabor especial para mim: tinha o sabor da conquista de uma coisa difícil, ou
quase impossível. A porta do quarto do meu tio João estava constantemente trancada à chave.
Bem...eu comi...comi...comi doce de laranja! Quando me fartei e quis subir para sair por
onde eu havia entrado, é que me atrapalhei muito. A parede era bem alta, e entre ela e o telhado
existia um grande vão. Para baixo, qualquer santo ajuda... mas, para cima e com a barriga cheia de
doce, a coisa mudou muito... E agora?
Nem quero lembrar o apuro em que me vi! O certo é que, com grande dificuldade, consegui
sair.
Não é necessário dizer que o resto do doce azedou, pelo fato de eu ter-lhe metido os dedos.
Isso, para mim, foi motivo de grande alegria, porque mamãe o ferveu e apurou novamente; e assim,
eu ainda pude comer mais uma vez aquela gostosura!
Quando meu tio levou o doce para nossa casa, disse à mamãe: “Olha, Vina, não sei o que
aconteceu... mas desta vez o doce azedou muito depressa...” Mamãe olhou-me logo. Ela me
conhecia pelo avesso, e sabia que não iria adiantar nem um pouco passar-me mais uma
descompostura pelo fato de eu ter roubado o doce do tio João.
O tempo passou!... Hoje não roubo mais doces, porém, tenho uma imensa saudade de
quando o fazia! É que o doce roubado tinha para mim um sabor especial: o sabor da aventura... do
impossível atingido!

Cri me e cas tigo

Certa ocasião, meus companheiros e eu resolvemos ir caçar passarinhos, lá pelas bandas do


chafariz.
Em um cambará bastante torto vimos entrar em seu ninho um joão-de-barro. A árvore tinha
uns quatro metros de altura, e o tal galho torto uns três metros.
Sem pestanejar, subi na árvore, com bastante precaução para não afugentar o joão-de-barro.
Quando já ia pôr a mão na porta da casa do pássaro, o galho rangeu, despencando em seguida. Cai
com ele e bati o peito no chão. Devo ter ficado desacordado durante vários minutos, o que assustou
bastante a turma.
Nas proximidades, havia um trabalhador roçando; ele correu para socorrer-me e fez-me
massagens para que eu recuperasse os sentidos.
Do joão-de-barro não tivemos mais notícias. E eu aprendi que devia respeitar os ninhos. O
crime não tinha compensado. O tombo fora um castigo! Talvez o meu anjo da guarda achasse justo,
em vez de me guardar, guardar o joão-de-barro...
A man gu ei ra qu e eu pl an tei

A sabedoria chinesa diz que, para marcar a passagem de uma pessoa pela terra, ela deve
fazer três coisas, isto é: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro.
É óbvio que, aos oito anos, quando plantei minha primeira árvore, eu desconhecia
completamente essa filosofia. A árvore que então plantei foi uma mangueira. Durante muitos anos
ela produziu deliciosas mangas que nos regalaram e que regalaram também os nossos vizinhos,
porque a quantidade de frutas era tal que mamãe sempre mandava cestadas delas para os vizinhos e
para os amigos.
Por ter sido eu quem plantou essa mangueira, a criançada, quando ia chupar mangas,
costumava convidar os companheiros ou os outros irmãos dizendo: “Vamos comer manga no pé do
Nabor”. Os adultos achavam graça nesse modo das crianças se expressarem, e a frase ficou célebre.
Depois dessa mangueira, plantei outras árvores. Porém, a que deixou saudade foi a
mangueira que plantei quando era ainda um garotinho...

A prim eira in ven ção

Eu estava com nove anos quando construi a minha “máquina a vapor”. Acreditava tê-la
inventado; nesse tempo, desconhecia completamente o funcionamento de uma máquina a vapor.
Comecei mandando soldar uma torneirinha no meio de uma lata cilíndrica. A lata tinha um
orifício natural, por onde eu a enchia de água, fechando-a depois, hermeticamente, com uma bucha
de madeira. Improvisei um forno com duas carreiras de tijolos, onde colocava deitada a minha
rudimentar caldeira. Esse forno estava instalado a doze metros da porta da cozinha de nossa casa.
Acendia o fogo e, quando a fervura da água atingia um determinado grau, abria a torneirinha para
escapar o vapor, e a “máquina” apitava.
Nem é preciso descrever a alegria que isso causava à criançada, que sempre acompanhava as
minhas travessuras de perto. Diariamente, durante uma boa temporada, fizemos funcionar o meu
invento.
A caldeira foi enfraquecendo e, numa trágica manhã em que, excepcionalmente, estava só,
fazendo-a funcionar, ela, por excesso de pressão, explodiu. E eu, que estava sentado bem perto
dela, fui atingido pela água fervendo, ficando com as pernas queimadas, desde as coxas até os pés.
As queimaduras foram de terceiro grau. A pele desceu toda, e a carne ficou exposta.
Com o ruído da explosão, mamãe, papai e alguns manos correram em meu socorro. Fiquei
quinze dias quase imóvel na cama. Durante esse tempo, recebi muitas visitas, principalmente as dos
garotos de minha turma brava, muito interessados em saber detalhadamente porque a “máquina”
explodira... Até aquele dia, tudo ia indo tão bem!!!
Ou tra in ven ção

Alguns anos depois, estando já com os meus catorze anos, quis fazer uma experiência
radiotelefônica. Cheguei até a desenhar os planos de uma estação transmissora de rádio. Mamãe e
papai pediram-me que não pusesse tais planos em execução. Temiam que eu ateasse fogo na casa.
E foi por esse motivo que Marconi, e não eu, descobriu a radiotelefonia, alguns anos depois.
Entretanto, continuo apaixonado por invenções; e tenho algumas que talvez algum dia venham a ser
realidade.

O Comet a Hall ey

Revivendo a minha infância em Indaiatuba, os acontecimentos que mais me impressionaram


desfilam pela minha mente. Um deles foi a passagem do cometa Halley, em 1910.
Tinha apenas oito anos. Entretanto, jamais esqueci aquele maravilhoso espetáculo!
Era uma estrela cor de ouro, muito brilhante, situada no horizonte. Partindo dela, um facho
de luz se abria em forma triangular, cobrindo toda a extensão do horizonte visível aos nossos olhos.
O cometa só aparecia pela madrugada. E todo o povo de Indaiatuba saía à rua para ver o que
poucas pessoas terão oportunidade de ver duas vezes, porque o cometa Halley só é visível na Terra
a cada setenta e seis anos.
O interessante é que um acontecimento tão natural dava, naquela época, motivo às mais
estranhas superstições. Alguns diziam que tinha chegado o fim do mundo; outros, que devia ser um
castigo. Consta que, devido ao aparecimento desse cometa, houve até casos de suicídio.
Durante cinco ou seis madrugadas, o cometa Halley esteve presente nos nossos céus. Como
era maravilhoso!

Os dois vi olei ros

Como já contei, papai tinha um armazém e negociava com os mais variados artigos, inclusive
alguns tipos de instrumentos musicais e acessórios para os mesmos.
Num domingo, após a missa, dois sitiantes encontravam-se em frente à nossa casa, na
calçada oposta à nossa, onde havia o armazém do Césare Lisoni. Conversavam e ouvi, no meio da
conversa, o nome de papai. Fiquei atento para saber de que se tratava. Pelo diálogo, deduzi logo que
os dois eram violeiros, porém não possuíam violas. Um propôs ao outro irem ao nosso armazém com
o pretexto de comprar uma. Assim, eles tocariam durante algum tempo, para satisfazer a vontade;
depois, dariam uma desculpa qualquer e nada comprariam.
Corri para casa a fim de prevenir papai, que, por estar muito ocupado, atendendo um
freguês, não me dava a mínima atenção. Entretanto, insisti até papai me ouvir. Mostrei os dois
violeiros e contei o que ouvira. Apenas acabei de contar, os dois caboclos já estavam entrando no
nosso armazém. Um deles disse: “Nhô Juca, mecê tem uma viola pra vendê? Nóis qué cumprá
uma...”
Papai mostrou a vitrine, onde havia uma dúzia delas. Em seguida, escolheu duas,
entregando-as aos violeiros, e mandou-os experimentá-las num cômodo anexo ao armazém,
dizendo: “Eu sei que vocês não querem comprar viola, mas também sei que vocês são bons
violeiros! Podem, portanto, tocar à vontade, porque eu gosto muito de música!”
Papai não os conhecia, não sabia se eles tocavam bem ou mal; todavia, como bom
negociante, conhecia o efeito de um elogio.
Os caboclos tocaram apenas duas músicas, e conversaram baixinho durante alguns minutos.
Depois voltaram ao armazém e disseram: “Nhô Juca, as viola é boa!... Nóis vai cumprá as duas!”.
Durante o almoço desse dia, ouvi papai comentar com mamãe sobre o negócio que fizera, e
terminou dizendo: “Nabor é muito esperto! Se não fosse ele, eu não teria vendido as duas violas”.

M ais u ma trave ssu ra

Meu tio João mandou-me pegar um cavalo no pasto. Como o cavalo era de corrida,
recomendou-me que não o montasse porque ele só tinha o cabresto; portanto, não obedeceria ao
manejo do cavaleiro. Foi como se me tivesse dito: “Vá buscar o cavalo, e venha montado nele!”
O pasto ficava na rua da Candelária, em frente ao Hotel da Mérita. O cavalo estava
acostumado a sair desse local, e ir para o sítio. Logo que o montei, ele, em vez de levar-me para
casa, como eu desejava que o fizesse, saiu num trote largo, passando pela frente da igreja da
Candelária, em grande velocidade. Eu ia gritando, e isso ainda o entusiasmou mais.
As ruas encheram-se de gente, e algumas pessoas tentaram deter o fogoso animal.
Em frente à chácara do Bicudo, ele virou repentinamente para tomar o caminho do nosso
sítio. Nesse movimento brusco, fui jogado ao chão; por sorte, caí em pé. Imediatamente, ele estacou
junto a mim.
O Pinhão - esse era o seu nome - suava como um desgraçado. E eu, nem é bom contar o que
senti durante essa corrida!...
Depois de esperar alguns minutos a fim de que o Pinhão se refizesse do cansaço, levei-o pelo
cabresto para casa. Quando lá cheguei, a notícia do acontecido já havia chegado há muito tempo, e
todos estavam aflitos esperando-me na porta. Até hoje não consigo esquecer a cara do meu tio,
naquele momento...

A clarin eta, m eu habe as-cor pus

Eu já disse que fui um menino muito travesso. Muitas vezes, fiz coisas que mereciam uma
boa surra! Abusava da bondade de papai, mas, quando percebia que ele ia chegar às vias de fato,
pegava a minha clarineta e tocava durante um bom espaço de tempo. Isso acalmava os nervos do
velho e fazia-o esquecer-se da surra que pretendia dar-me. Assim, a minha arte sempre desculpava
as minhas “artes”!

Um in ciden t e com c obra

De vez em quando acompanhava papai nas suas costumeiras caçadas e pescarias. Certo dia,
fomos pescar na fazenda do Dr. Juca do Amaral. Fomos de cabriolé: papai, Miloca e eu.
Conforme seu costume, papai, quando lá chegamos, desatrelou o cavalo, a fim de que ele
pudesse pastar livremente, deixando o cabriolé encostado a uma árvore.
Garoava, e por esse motivo não aparecia peixe. Papai resolveu pôr fim à pescaria, pois já
fazia quase uma hora que estava tentando pegar algum peixe.
Atrelamos novamente o animal e encetamos a viagem de volta. Papai e o mano viajavam
sentados no cabriolé; e por não ter lugar nele para mim, eu ia em pé, na traseira, com meu boné
enfiado até as orelhas. Como quase sempre, eu estava descalço e com calças curtas.
Logo que o cabriolé entrou na estrada, senti uma coisa lisa, subindo na minha perna. Quando
olhei, vi com grande susto uma jararacuçu de tamanho regular, já na altura do meu joelho. Procurei
afirmar-me bem no cabriolé e dei um tranco brusco com a perna, jogando a cobra no chão. Só então
falei a papai e ao mano o que tinha acontecido.
Papai e Miloca desceram do cabriolé, e viram a cobra ainda contorcendo-se nervosamente,
ali. Nós estávamos sem espingardas, e não havia por perto um pau suficientemente forte para
matá-la. Fomos obrigados, pelas circunstâncias, a deixá-la viva.

Gig an te, o bu rro am igo

Gigante era manso e amigo da criançada lá de casa. Ele tinha um nome muito adequado ao
seu tamanho. Por ser manso, nós nunca lhe púnhamos cabresto.
Quando íamos buscá-lo no pasto, subíamos na porteira e gritávamos o seu nome: “Gigante!
Gigante!” Ele geralmente estava pastando na parte mais baixa, próxima ao riacho. Ao ouvir o nosso
chamado, ficava de orelhas em pé, e em seguida vinha trotando até a porteira, que nos servia de
plataforma para subirmos ao seu lombo.
Muitas vezes, quatro e até cinco moleques montávamos nele, e o animal ficava lotado do
pescoço até as ancas. Até parecia um ônibus!
O primeiro menino que o montava segurava-se na sua crina; os demais seguravam-se na
cintura do que estava à sua frente. Quando todos estávamos em seu lombo, o Gigante partia
cauteloso, o trote lento, e assim entrava na cidade com um ar triunfante! Pelo menos, essa era a
nossa impressão...
Acontece que papai era negociante de gado...Um dia apareceu um comprador que pagava
muito bom preço pelo Gigante. Papai, não obstante nosso protesto, vendeu o burro nosso amigo...
Esse foi um dia de muita choradeira lá em casa!

A corrida de bu rro s

Por falar em burro, lembro-me bem da corrida de burros que havia em Indaiatuba. Essa
corrida era realizada de vez em quando, após a corrida de cavalos, na raia reta, situada ao lado da
chácara onde morava o popular “Lourenço Sem Chapéu”.
A prova era feita da seguinte maneira: nenhum concorrente montava no seu próprio animal,
porque o interessante dessa corrida era que o burro que chegasse em último lugar seria o vencedor,
de maneira que cada jóquei fazia sua montaria correr o máximo, a fim de que o animal de sua
propriedade - que estava sendo montado por outro jóquei - chegasse em último lugar e vencesse a
corrida.
Não é preciso dizer que o espetáculo era divertidíssimo. A torcida vibrava, pelo fato de
haver também apostas, como na corrida de cavalos. A gritaria ajudava a instigar os animais. Era um
pandemônio!
Inúmeras vezes assisti a essas corridas; e o estranho é que nunca ouvi falar de semelhante
competição, pelos lugares por onde andei.

E assim decorreram os dez primeiros anos de minha vida... anos inesquecíveis na minha
querida Indaiá, brincando, correndo, nadando, “guerreando” como os outros meninos; mas já
começando a sonhar com um futuro diferente, porque eu já tinha tido os meus primeiros contatos
com a música, eu a sentia dentro de mim, e ela pouco a pouco foi me dominando, afastando-me dos
folguedos e do convívio constante de meus companheiros, até que eu me entregasse totalmente a
ela.
O meu ideal seria tocar sempre e passar desta para a outra vida tocando uma das minhas
melodias prediletas! E, se uma nova vida me fosse dado ter, eu gostaria de ser músico outra vez.
Segunda Parte:

A BANDA
A ban da

Esqueci de dizer que não fui bom aluno no grupo escolar. Entediava-me aquela rotina, e
não suportava ficar horas e horas entre as quatro paredes da sala de aulas.
Por ser irrequieto e travesso, já era sobejamente conhecido na escola. Não! Aquilo não era
para mim! Não era para um moleque com o meu temperamento! O pouco que eu havia aprendido
até então já me parecia suficiente, e um dia eu resolvi abandonar o grupo escolar, para sempre.
Um outro tipo de aprendizado me atraía: era o estudo de música que eu iniciara há dois anos.
Nele sim, eu me sentia feliz! Com a clarineta na mão, o tempo voava!
Era isso o que eu queria, e foi assim que, aos dez anos, ingressei na banda.

As ban das de In daiat u ba

Em 1912, um alegre acontecimento sacudiu a nossa cidade, sempre tão calma! Foi a chegada
de um maestro de banda. Seu nome era José Lopes dos Reis, mais conhecido por “Dunga”.
A novidade causou alegria geral. O acontecimento era um marco de progresso para
Indaiatuba.
É preciso lembrar que, naquele tempo, ninguém sonhava com o rádio e, muito menos ainda,
com a televisão. Os divertimentos se resumiam em festas de igrejas, circos, corridas de cavalos e de
burros, touradas, jogos de futebol e bailes em salões ou em casas de família. As funções do circo, as
festas de igreja, o cinema e os bailes requeriam música, razão pela qual as bandas desempenhavam
papel importante naquela época. Além da banda, havia nas cidades do interior os grupos regionais e
os sanfonistas.
Por isso a chegada de um maestro de banda a Indaiatuba causou tanto rebuliço! E a alegria
era maior porque a banda daquela data em diante seria oficializada.
Anteriormente, houvera outras bandas em nossa cidade. Recordo-me, por ter ouvido falar,
que o Maestro Hilário Dias de Almeida havia regido uma durante alguns anos. Pertenceram a essa
banda, entre outros músicos, José Mário, que foi célebre nas redondezas da nossa terra, como
pistonista, Vicente Tancler, Rafael Tancler Filho, Luiz Laurenciano (o “Canivete”), Carlos
Montebello e Alziro Pires de Camargo (“Miloca”). Após o Maestro Hilário Dias de Almeida,
assumiu a direção da banda o Maestro Francisco Fávero, pai do grande jurista Flamínio Fávero.
Entre as músicas mais executadas pela banda, nessa época, destacavam-se: “Agudense”,
“Duas águias”, “Ayrosa Galvão”, “Sylvino Rodrigues” (marchas). As valsas preferidas eram:
“Saudade de Iguape”, “Gondoleiro do amor”, “Flor do mal”, “Dirce” e “Acorda Adalgisa”. Os
maxixes preferidos eram: “Flor do abacate”, “Flor amorosa” e “Corta jaca”. A banda também
tocava quadrilhas, polcas, mazurcas e xotes.
Maest ro Jos é Lopes dos Re is

Quando o Maestro José Lopes dos Reis, o Dunga, assumiu a direção da “Primeira Banda
Oficial de Indaiatuba”, teve a incumbência de inaugurá-la no prazo de seis meses, o que cumpriu.
Três famílias formavam a base dessa banda; eram elas os Minioli, os Coppini e os Pires de
Camargo. Nesta banda atuaram também elementos das bandas anteriores, e mais: Hermenegildo
Pinto, João Nunes, Afonso Bonito, Sylvio Talli, Rêmulo Zoppi, José Minas, Alfredo Coppini, Higino
Coppini, Atílio Minioli, Godofredo Pires de Camargo, Jayme Pires de Camargo e eu, que era o
elemento mais jovem dela.
No dia da nossa estréia, um pequeno incidente demonstrou que eu, não obstante ter apenas
dez anos, era dotado de grande presença de espírito; ou, melhor dizendo, já tinha espírito de
iniciativa.
Estávamos tocando uma marcha de cor, quando a maioria dos músicos se perdeu. Eu, então,
toquei com muita força cinco ou seis compassos, impedindo, assim, que a execução fosse
interrompida. O público nada percebeu, porque cada músico foi entrando novamente na peça,
conforme foi possível, para alegria do maestro, que já suava frio, prevendo um fracasso.
Terminada a execução da marcha, o maestro fez questão de cumprimentar-me, e elogiou a
minha iniciativa. O resto do programa foi executado “a contento”, tendo sido o maestro, com muita
razão, cumprimentado pelo Prefeito Alfredo Camargo Fonseca e pela população em geral.
Esta banda, durante muito tempo, prestou seus serviços, não só em Indaiatuba, como
também em várias cidades vizinhas.

As l ições de músi ca

O maestro Dunga exercia duas funções: a de maestro e a de professor de música. No


exercício da segunda, ele dava as explicações e depois passava exercícios para fazermos em casa.
Algumas vezes, meus manos Jayme e Godofredo, ambos mais velhos do que eu, cometiam
erros nas suas lições escritas, e eu os corrigia com absoluta certeza do que estava fazendo, não
obstante os protestos dos dois. Em princípio, eles não acatavam as minhas opiniões, por ser mais
jovem do que eles, e ainda criança! Para tirarem suas dúvidas, consultavam o maestro, que sempre
me dava razão, elogiando-me pela minha precocidade musical.
Esses elogios muito me animaram, e contribuíram para que cada dia eu me aplicasse mais, no
estudo de música.
Em casa, meus pais também me estimulavam bastante. E foi por todos esses motivos que
me decidi pela música, e resolvi que haveria de ser músico profissional.
Prime iros servi ços da ban da

A banda, como já disse anteriormente, prestava serviço em festas religiosas, circos e bailes.
As festas religiosas começavam pelas alvoradas. A alvorada tinha início às cinco horas da
manhã. Primeiramente, a banda dava uma volta pela cidade, tocando nas portas das casas do padre,
do Prefeito e nas de algumas pessoas de destaque. Depois ia tomar café na casa do festeiro. Era um
“café com as duas mãos”, como então se dizia. Nele eram servidos salgadinhos, bolos, doces, etc.
Era comum algumas pessoas da cidade, já famosas como “fila-bóias”, acompanharem a banda, a fim
de tomarem parte nesses banquetes matinais.
Às dez horas, era celebrada missa solene. Durante a missa, a banda ficava em guarda, fora
da igreja, e no momento da elevação da hóstia executava a marcha mais bonita do seu repertório.
Após a missa, começava o leilão de prendas, que também era intercalado por números
musicais. À tarde, a procissão percorria as ruas principais da cidade, acompanhada pela banda,
executando música religiosa.
Quando sobravam prendas do leilão matinal, um outro leilão era feito à tarde, depois da
procissão, e sempre a banda participando. À noite, geralmente havia espetáculos circenses, que não
podiam prescindir da colaboração da banda.

A re mu n eraçã o da ban da

A banda, embora tendo o título de municipal, não recebia salário algum da Prefeitura.
Apenas o maestro tinha um pequeno ordenado.
Os serviços particulares prestados pela banda eram remunerados; contudo, a importância
paga por eles era geralmente insignificante. Então, o maestro propunha que, em vez de dividirmos
tão pequena quantia, fizéssemos um piquenique; proposta essa sempre bem recebida por todos.
Os piqueniques, geralmente, eram realizados nos arredores de Indaiatuba.
Um incidente desagradável marcou nosso último piquenique... Fomos a Itaici. Atravessamos
a ponte da estrada de ferro sobre o rio Jundiaí, a qual liga Itaici a Pimenta, e fizemos o nosso
piquenique na chácara dos padres salesianos de Itu.
Na volta, o maestro recomendou-nos não atravessarmos a ponte sem antes nos certificarmos
de que nenhum trem dela se aproximava. O João Nunes, que tocava gênis, por sinal muito bom
músico, mas muito indisciplinado, não obedeceu à recomendação do maestro, e entrou na ponte.
No mesmo instante, ouvimos o apito de uma locomotiva que se aproximava veloz.
O irmão do João, para evitar o desastre, correu atrás dele, e foi alcançá-lo já no fim da ponte,
onde, com um empurrão, jogou-o de lado, evitando que o trem o esmagasse. Alguns poucos
segundos mais, o trem teria esmagado os dois rapazes.
Felizmente, nesse instante houve apenas uma perda. O instrumento do Nunes caiu no rio, no
momento em que ele salvou o irmão.
A sede da ban da, os en sai os e as au las

A sede da banda ficava próxima à estação da estrada de ferro. Ao lado dela, havia um valo
fundo. Nos intervalos das aulas, brincávamos nele.
Com folhas secas caídas das palmeiras do largo da Matriz, improvisávamos nossos “trenós”,
para escorregarmos neles até o fundo do valo.
Quando o maestro nos chamava para recomeçar a aula, ninguém lavava as mãos; e no papel
de música, onde encostávamos nossos dedos, ficavam nossos sinais digitais.
Tínhamos dias e horários preestabelecidos para nossas aulas e ensaios musicais. Entretanto,
quando havia um serviço extraordinário, o maestro, usando o meio de comunicação mais primitivo,
mandava o bumbeiro bater o bumbo, numa rua bem elevada, para que o som se espalhasse por toda
a cidade.
Não é preciso dizer que esse sistema nunca falhou, porque além do toque do bumbo, sempre
havia a colaboração do povo, para que a banda se reunisse.
Um caso interessante aconteceu certa ocasião: Dona Mariquinha, a esposa do maestro
Dunga, estava aguardando a chegada da cegonha. O maestro, no fim de um ensaio, nos preveniu da
seguinte maneira: “Amanhã, se o bumbo tocar, tem ensaio; se não tocar, é porque a Mariquinha deu
à luz.”
E o bumbo não tocou!...

Um n ovo m aest ro as su me a di reção da ban da

O maestro Dunga precisou mudar-se de Indaiatuba para tratar de seus interesses particulares.
Os proventos que recebia como maestro da banda eram muito escassos e obrigavam-no a ter um
outro serviço. Uma oportunidade melhor se apresentou em outra cidade, e ele, embora relutando, foi
obrigado a aceitar a proposta.
Assumiu então a direção da banda o bombardinista Esterlino Minioli.
Esta banda completa ficou assim constituída:
- Esterlino Minioli, maestro; Julio Minioli, trombonista; Atílio Minioli, bombardinista;
Ociamo Minioli, baterista (os três, irmãos do maestro);
- Augusto Coppini, pistonista; Higino Coppini, bombardinista; Alfredo Coppini, trombonista
(também irmãos);
- os irmãos Laurenciano: Luiz Laurenciano, o “Canivete”, contrabaixista; Ernesto
Laurenciano, caixinha;
- os irmãos: Alziro Pires de Camargo (“Miloca”), clarinetista; Godofredo Pires de Camargo,
trombonista, baixista e bombardinista; Nabor Pires de Camargo, clarinetista;
- e mais: Rêmulo Zoppi, bombardinista e barítono; Francisco Bento, clarinetista; Juvenal
Fonseca, clarinetista; Sylvio Talli, clarinetista; João Nunes, gênis; Hermenegildo Pinto, gênis;
Afonso Bonito, trombonista; José Minas, trombonista.
Nesta banda, eu colaborei até os dezoito anos, e, quando a deixei, era o maestro dela.
Deixei-a para ir trabalhar em Guatapará, onde teria um emprego na Companhia Agrícola Guatapará,
com a condição de prestar meus serviços também na banda que lá existia.

M in h a prim eira compos ição

Aos onze anos compus a primeira música. Foi uma polca muito alegre, e quando a banda a
tocava nos bailes, ninguém ficava sentado, quero dizer, sem dançar. Por isso, dei-lhe o nome de
“Limpa banco”.
Em casa, o acontecimento causou imensa alegria, e meus pais muito me incentivaram para
que eu continuasse compondo. Alguns meses depois, apresentava a minha segunda composição.
Desde então, não parei mais de compor. Quando deixei a banda, aos dezoito anos, eu já havia
composto aproximadamente cinqüenta músicas.
A última composição dessa época foi a valsa “Triste separação”, inspirada pela tristeza de
deixar os entes queridos e a minha boa Indaiatuba, para ir trabalhar em Guatapará.
Na verdade, eu estava bastante deprimido naqueles dias. Papai percebeu e insistiu para que
ficasse. Em casa nada me faltava; eu, porém, estava com dezoito anos, reconhecia que devia
sustentar-me com o provento do meu próprio trabalho, e decidi ir mesmo para Guatapará, onde
trabalhei durante um ano e meio.
Nos primeiros dias, longe de casa, estava inconsolável. Sentia uma imensa vontade de voltar
para casa e nunca mais sair de lá. O Teófilo Leandro, que também trabalhava na Companhia
Agrícola, e foi quem me levou para lá, notando a minha angústia, disse: “Indaiatuba não é longe,
menino! A gente toma o trem de manhã e de noite está em casa.” Isso me consolou um pouco;
então, resolvi ficar, e logo fiz camaradagem com todos os empregados da fazenda.
Trabalhava na usina de açúcar; ocupava o lugar de evaporador, o que equivalia a dizer muita
responsabilidade para um rapaz com apenas dezoito anos! Quando comecei a exercer minha função,
foi-me dado um prazo de quinze dias para eu aprender o meu serviço. Porém, surpreendi meu chefe,
por ter em dois dias ficado apto para assumir o meu posto.
Tinha sido convidado para trabalhar em Guatapará por ser músico, e portanto fazer parte
também da banda da fazenda. A Companhia Agrícola gratificava-me com quinhentos réis diários
para fazer esse serviço extra. Essa “enorme” gratificação era motivo para eu ser invejado por outros
elementos da Companhia Agrícola que nada recebiam para atuarem na banda.
Em Guatapará, fiquei até completar dezenove anos. Depois, a saudade dos meus aumentou,
e resolvi voltar para casa, onde fiquei um ano; após esse tempo, tomei a resolução de vir estudar em
São Paulo.
O pri mei ro avi ão qu e pou sou em In daiat u ba

Continuo recordando e volto ao ano de 19152. Nesse ano, o primeiro avião pousou no chão
de Indaiatuba.
É óbvio que foi um pouso de emergência, e portanto uma grande surpresa para os
indaiatubanos! É fácil imaginar quanta curiosidade o acontecimento despertou em todos!
O avião desceu no terreno onde hoje existe o Hospital Augusto de Oliveira Camargo. Em
poucos minutos, o local ficou repleto de gente: trabalhadores interromperam o seu serviço, donas de
casa abandonaram suas panelas queimando sobre o fogão, crianças deixaram de comparecer às
aulas - enfim, todos queriam ver o avião de perto e examiná-lo por fora nos seus mínimos detalhes.
Entretanto, duas pessoas não ficaram ali paradas vendo a máquina voadora.
Sabendo que devido à avaria no motor o avião só levantaria vôo no dia seguinte, as duas
quituteiras mais famosas de Indaiatuba resolveram tirar proveito da situação: apenas deram uma
olhadela no avião e, vendo que havia muita gente à sua volta, gente que não iria arredar pé dali,
enquanto o avião não partisse, ambas correram para suas casas e arrumaram seus tabuleiros de
quitutes, voltando em seguida para o improvisado campo de aviação.
Nesses tabuleiros havia pastéis, empadinhas, bolinhos, cocadas, pés-de-moleque,
bons-bocados, suspiros, broinhas de fubá, canudos recheados com cocada ou com creme.
Não preciso dizer que em pouquíssimo tempo elas venderam tudo, e voltaram depressa para
suas casas, a fim de confeccionarem novas iguarias para serem vendidas no dia seguinte.
Elas, como todos, sabiam que o avião ficaria ali até o dia seguinte, quando deveria chegar de
Campinas a peça a ser substituída em seu motor.
Ninguém, entretanto, sabia que antes do avião levantar vôo, suas hélices provocam
verdadeiros vendavais!
Para mais depressa venderem seus quitutes, “Nhá” Bernardina e “Nhá” Rosinha tinham se
instalado muito próximas ao avião. Quando ele ficou pronto para subir, e as suas hélices se
puseram em movimento, a ventania por elas provocada virou os tabuleiros, espalhando pelo chão
tudo o que eles continham.
Foi uma festa para a criançada, que imediatamente caiu em cima daquelas gostosuras e nada
se perdeu!
O avião partiu em seguida e todos estavam contentes pela oportunidade de terem visto um
avião de perto!
Todos... exceto “Nhá” Rosinha e “Nhá” Bernardina... que nesse dia tiveram um grande
prejuízo!

2
– Outros cronistas da cidade, como Antonio Zoppi e Archimedes Prandini, dão como certo o ano de 1921. Antônio
Charybdes Costa Sampaio em seu depoimento em 27 de maio de 1997, situa o fato no ano de 1920.
Uma briga de c obra co m l agart o

Eu devia ter dezesseis anos quando assisti a uma cena muito interessante!
Estava passarinhando no pasto do Bicudo, quando ouvi um chamado em surdina e virei-me:
era o Lita, que também estava caçando ali e, até então, eu não tinha visto.
Quando olhei, ele, com gestos, mostrou-me o fundo de um valo.
Julgando tratar-se de um animal qualquer, fiz-lhe sinal para atirar. O Lita, entretanto, insistia
para que eu fosse ver o que estava acontecendo.
Aproximei-me e vi no fundo do valo, no meio da folhagem, uma briga entre uma caninana e
um lagarto.
A cena era muito rara: a cobra picava o lagarto, e este corria até uma planta que havia ali
perto, arrancava algumas folhas e mastigava-as, até produzirem uma espuma semelhante à do sabão.
Depois, voltava para o campo da luta, enfiava a cabeça no chão e, com a cauda, batia na cobra.
Quando a cobra conseguia livrar-se da cauda do lagarto, ela o picava novamente. Ele voltava
até a referida planta, mastigava mais folhas e voltava para continuar brigando com a cobra. Isso
aconteceu umas três vezes, depois do que, o lagarto venceu a luta, e a cobra ficou morta, ali mesmo.
Terminada a briga, o lagarto nos avistou e desapareceu rapidamente entre a folhagem.
Algum tempo depois, conversando com um caboclo, contei-lhe o fato, e ele me disse que
também tivera a oportunidade de assistir a uma briga semelhante, e que o lagarto só enfrenta a cobra
quando existe essa erva por perto; caso contrário... ele foge....
Às vezes fico pensando se aquela planta que o lagarto mastigava não seria um bom antídoto
para veneno de cobra.
Foi pena não termos pego algumas folhas, para que fossem feitas experiências nesse sentido.

O fu t ebol em In daiat u ba

Em Indaiatuba, como em qualquer outro lugar, o futebol sempre esquentava o sangue do


pessoal.
Certa vez, o clube da fazenda do Barnabé foi jogar em Indaiatuba, para dar uma surra no
Primavera, conforme eles diziam...
Antes do início da partida, os barnabenses estavam muito seguros da sua vitória, arreliando
os primaverenses, e prometendo que a surra seria grande. Eles já antegozavam a vitória e falavam
até em tirar uma fotografia para documentá-la.
A partida começou às quinze horas. O Sr. Barnabé, presidente do clube, ficou incentivando
os seus jogadores durante alguns minutos; contudo, percebeu que as coisas não iam muito bem.
Logo de início, os primaverenses fizeram três gols. Então, o Sr. Barnabé resolveu ir esperar o
resultado da partida no bar, comendo sanduíches e bebendo cerveja. Naquele tempo não existia
rádio e as notícias eram levadas ao Sr. Barnabé pelo Berge, que de instante a instante ia até o bar do
Miguel João, para dizer que os primaverenses tinham feito mais um gol.
Até o fim do primeiro tempo, os primaverenses tinham feito dez gols! E os barnabenses
nada!
Quando o Berge chegou no bar com a notícia do décimo gol, o Sr. Barnabé, dando um forte
soco na mesa, gritou: “Berge, tire o clube de campo!”
Assim terminou a partida: sem fotografias, sem festa e sem briga. Dizem que os barnabenses
desistiram de jogar futebol!!!
Terceira Parte:

AS SERENATAS
As s eren atas

Hoje, que a qualquer momento uma pessoa pode ligar o rádio e procurar ouvir uma música
do seu agrado, falar em serenata é para muita gente coisa até ridícula! Entretanto, naquele tempo,
em que só se ouvia música quando a banda dava retreta na praça, e quando havia festa cívica, ou de
igreja, uma serenata para qualquer pessoa era coisa agradabilíssima!
Em Indaiatuba, as noites de sábado não passavam sem serenatas.
Desde que completei catorze anos até vir para São Paulo, tomei parte em inúmeras
serenatas. Algumas, às vezes, queria esquivar-me delas, e escondia-me num dos cômodos da casa,
na hora em que meus companheiros iam buscar-me.
Mas era inútil!... Mamãe e papai gostavam imensamente de música e insistiam para que eu
fosse tocar; parecia-lhes que, eu não indo, decepcionava os meus companheiros.
Assim, muitas vezes, fizemos serenatas que começaram às vinte e duas horas e só
terminaram às seis horas, quando o dia já estava bem claro. Tocávamos sem parar e sem nos
cansarmos, durante todas essas horas...
Dizem que “o que é de gosto regala a vida”!... Acredito que as nossas serenatas não só nos
regalavam, como também deviam regalar a muita gente.

A seren at a i n esqu ecível

Uma das nossas serenatas ficou-me para sempre na memória: a noite estava demasiadamente
fria!
Organizamos a nossa serenata com o meu mano Godofredo tocando baixo, o Afonso Bonito
tocando trombone, o João Nunes tocando gênis e eu tocando clarineta. Nenhum de nós bebia e,
como já disse, o frio era intenso!
Quando terminamos a serenata, já era dia, e todos na cidade comentavam a nossa coragem,
porque, estando dentro de casa e debaixo de três cobertores, todos sentiam muito frio naquela noite.
E nós, com ternos de brim e sem agasalho algum, tínhamos feito serenata pelas ruas, até amanhecer.

Repert ório

Naquele tempo, as músicas mais tocadas em serenatas eram: “Ave Maria”, “Supremo
Adeus”, “Dirce”, “Mariinha”, “Piquenique trágico”, “Saudade de Ouro Preto”, “Club XV”, “Ideal
desfeito”, “Gondoleiro do Amor”, “Saudade de Iguape”, “Acorda, Adalgisa”, “Flor do mal”,
“Bem-te-vi”, “A casinha pequenina”, “Longe de ti”, “Primeiro amor”, “Olhos de veludo”, “Dor de
uma paixão”, “Talento e formosura”, “Noite enluarada”, e a música predileta do Lino Chimin, que
às vezes tomava parte nas nossas serenatas, tocando sanfona , “Vendedor de pássaros”.
E, além dessas, tocávamos também algumas músicas de minha autoria.

A qu ebra da cl arin et a

Outra serenata que ficou inesquecível foi uma no fim da qual quebrei a clarineta.
Estávamos chegando perto de nossa casa, tocando ainda, após uma serenata pela cidade,
quando um intruso bastante embriagado quis juntar-se ao nosso grupo. Papai, que com outras
pessoas estava na esquina, apreciando a serenata, foi buscar-me, a fim de evitar algum incidente
desagradável com o dito intruso.
Não compreendi logo a intenção de papai e, revoltado, peguei a clarineta pela campana, e
arremessei-a violentamente contra a calçada.
O instrumento ficou em estilhaços... e o meu coração também!...
Reconheço que o meu ato me fez merecedor de uma boa surra; entretanto, papai
compreendeu que eu assim agira por não ter entendido a sua boa intenção, e deu o caso por
encerrado.
E agora?.. Que fazer?... Eu, que vivia com o instrumento na mão, grande parte do tempo,
como iria arrumar-me sem ele?
Passei dois ou três dias calado, jururu, cabisbaixo, ao redor de mamãe, sem ter coragem para
dizer o que estava querendo. Papai era criador de gado, e costumava, para nos incentivar, dar um
bezerrinho a cada filho; sendo assim, eu era proprietário de um bezerrinho que valia na época trinta
mil-réis. Acontece que uma clarineta nova iria custar-me cem mil-réis...
Após muito relutar, pedi a mamãe que intercedesse junto a papai e o convencesse a comprar
o meu “boi” por cem mil-réis, a fim de que, com esse dinheiro, eu pudesse adquirir um instrumento
novo em Campinas. Mamãe retrucou: “Você não tem um boi, você tem um bezerro!”. Ao que eu
argumentei: “Bem, hoje ele é um bezerro, mas dentro de seis meses ele será um boi.”
Mamãe riu da minha esperteza e foi ajeitar o “negócio” com papai.
A transação não era fácil de ser feita. Papai era ótimo negociante e dificilmente iria
concordar em pagar cem mil-réis por um “boi” que só valia trinta.
A minha sorte foi papai também ser louco por música, principalmente quando eu a
executava, e ficava ainda mais feliz e orgulhoso quando eu tocava alguma das minhas composições.
Sendo assim, ele topou o mau negócio, sem discutir o preço...
No dia seguinte, em posse daquela pequena fortuna, fui para Campinas e adquiri a minha
nova clarineta na Casa Pedro Barbieri, situada na Rua José Paulino.
Eu tinha apenas catorze anos; escolhi sozinho o meu instrumento, pedi e consegui um
abatimento de dez mil-réis, que me serviram para as despesas de viagem.
Na Casa Pedro Barbieri havia vários fregueses, e, para experimentar a clarineta, toquei
algumas músicas. A platéia foi aumentando... e todos queriam saber quem eu era. Contei que era de
Indaiatuba e disse o meu nome. Fui muito cumprimentado por todos!
O Sr. Pedro Barbieri ficou meu amigo, insistindo para que fosse visitá-lo, quando tivesse
oportunidade de ir a Campinas. Nesse dia, dei o meu primeiro “recital” fora de Indaiatuba....

Vi agem de vol ta

Sentado no vagão de segunda classe, voltei feliz para Indaiatuba, com a clarineta sem estojo,
apenas embrulhada em papel de jornal. De vez em quando, rasgava um pedacinho do papel para ver
o brilho das chaves novas, e para que o meu vizinho de viagem também as visse...
Eu estava nas nuvens!
A viagem pareceu-me mais longa, pois não via a hora de chegar em casa, mostrar a clarineta
a todos e fazê-los ouvir o som.
Afinal cheguei e, como era justo, a primeira pessoa a quem fui mostrar o instrumento foi
papai. Em seguida, toquei algumas músicas para ele e para mamãe. Lá em casa foi um dia de festa!
A clarineta era bem superior à outra que eu tinha quebrado.
O primeiro negócio com o meu “boi” deu bom resultado, e depois disso, quando eu tinha
algum aperto financeiro, não sentindo coragem para pedir abertamente dinheiro, tornava a vender o
mesmo boi... E o comprador também, era sempre o mesmo!... Assim é que esse boi foi vendido
algumas vezes.

A m úsic a com o art e e com o prof iss ão

Já tive ocasião de dizer que, aos dez anos, eu já fazia parte da banda. Tocava exclusivamente
por prazer, e não com fim pecuniário. Do mesmo modo, até ter quinze anos, tomei parte em
conjuntos musicais, sem nada receber. Por esse motivo, era constantemente solicitado para tocar.
Durante muito tempo, toquei em bailes, acompanhado somente pela harmônica do Valeriano
Fiore; e, nem de longe, pensava em ser remunerado pela minha participação nesses bailes. Sentia
prazer em tocar, e jamais havia pensado em tornar-me músico profissional.
Papai, há muito tempo, vinha percebendo que eu estava sendo explorado. Era o único
músico que nada recebia pelo meu trabalho. Um dia, após eu ter sido convidado para tocar em um
baile, papai, com muita habilidade, fez-me compreender que não estavam me convidando para eu ir
divertir-me em uma festa, mas, sim, para tocar para outros se divertirem.
Refleti um pouco e concordei com ele. Depois desse dia, só trabalhei mediante pagamento
previamente combinado, e sempre valorizei bem o meu serviço.
Entretanto, continuei tocando de graça, com muito prazer, sempre que estava com
verdadeiros amigos, e a música era executada para nosso divertimento.

Os t rês baile s f amosos

Prim eiro bail e

Três bailes dessa etapa da minha vida ficaram para sempre gravados na minha lembrança.
O primeiro foi o que se realizou no dia da inauguração da Companhia de Luz e Força de
Monte Mor. Eu devia ter quinze anos.
Papai e eu fomos assistir aos festejos da inauguração. Fomos na véspera, e nos hospedamos
na casa de meus tios, “Nhá” Zinha e “Nhô” Zinho.
Ao amanhecer do dia festivo, fomos acordados pelo estrondo das baterias e dos rojões. Logo
após, a banda local iniciou o seu desfile pelas principais ruas da cidade.
Depois do almoço, papai e eu saímos para um passeio.
Na praça principal, veio-me ao encontro uma comissão da “Sociedade Treze de Maio”, que
me perguntou se eu era o Nabor de Indaiatuba, irmão do “Seu” Miloca. Respondi que sim...
Perguntaram-me se eu tinha levado comigo a clarineta... Respondi afirmativamente... Então eles
disseram que, devido aos festejos na cidade, todos os músicos estavam ocupados, e que eles também
desejavam festejar com um baile, mas não tinham conseguido músicos; por isso, quando souberam
que eu lá me encontrava, resolveram sair à minha procura, para pedirem-me o favor de ir tocar na
sua festa.
Perguntei quem me acompanharia, no caso de eu concordar em ir tocar para eles.
“Ninguém”, foi a resposta, “o senhor terá que tocar sozinho”.
Papai estava comigo, e já tinha adquirido dois bilhetes para irmos ao teatro, naquela noite;
sugeriu, por isso, que eu não aceitasse o trabalho, que não seria interessante para mim.
A comissão insistiu demais, dizendo que, além de me pagarem quanto eu pedisse, ainda eu
lhes prestaria um grande favor.
Bem... naquele tempo, um conjunto musical de dez figuras cobrava, para tocar a noite
inteira, de vinte e cinco a trinta mil-réis. Pedi quarenta mil-réis!
Eles concordaram em pagar-me quanto pedi. Nesse tempo, essa importância equivalia a um
terço dos subsídios mensais do Prefeito de Indaiatuba.
Na hora combinada, apresentei-me no local do baile. Fiquei sentado numa cadeira colocada
sobre uma mesa, em um dos cantos do salão.
Toquei a primeira música; ainda não havia no salão nem um par para dançar. Lá só se
encontrava o mestre-sala, que a cada instante me oferecia comida e bebida. Eu nada aceitava, e já
estava arrependido por ter aceito aquela incumbência; parecia-me que o baile iria ser um fracasso,
e a comissão não iria ter meios para pagar-me o combinado.
Felizmente, depois de ter tocado três músicas, o ambiente modificou-se repentinamente, com
a chegada de muitos pares, que logo começaram a dançar. A festa pegou fogo!
O mestre-sala, muito alegre com o sucesso, fez questão de pagar-me adiantadamente. Achei
muito boa essa resolução.
Comecei a tocar às vinte e duas horas, e toquei até o dia seguinte, quando o sol já entrava no
salão. Apenas à meia-noite parei meia hora, para cear.
Nessa ocasião, o meu feito foi muito comentado em Indaiatuba. O próprio Prefeito Alfredo
de Camargo Fonseca, que era primo de papai, foi até nossa casa para saber se era verdade que me
haviam pago quarenta mil-réis para tocar sozinho em um baile, durante toda a noite.

O segu n do bai le

O segundo baile inesquecível aconteceu em Elias Fausto. Foi organizado pela “Sociedade
Treze de Maio” dessa localidade, com a participação da sociedade do mesmo nome de Indaiatuba.
Fui contratado para tocar nesse baile, tendo por acompanhante o sanfonista Alceu.
O traje obrigatório para os cavalheiros que participaram dessa festa era calça branca e paletó
azul-marinho. As damas estavam todas com vestidos brancos.
O salão onde foi realizado o baile ficava em frente à estação da estrada de ferro.
Tudo ia acontecendo normalmente. O sanfoneiro e eu estávamos sentados em cima de uma
mesa, num dos cantos do salão. O baile estava bastante animado!
Tudo ia bem até às vinte e três horas, quando houve um desentendimento entre um rapaz de
Indaiatuba e um de Elias Fausto. Fora chovia torrencialmente, havia já algum tempo. No salão, a
discussão ficou acalorada e, não obstante a chuva, os dois briguentos saíram para a rua, a fim de
resolverem a questão a braço. Os participantes do baile também foram para fora, para tomar partido
na contenda.
Ninguém ficou no salão! Nada entendi da briga, apenas sei que, em pouco tempo, ela se
generalizou: os homens tinham saído para brigar na rua, e as damas, arregaçando seus vestidos
longos, pulavam a janela do fundo do salão, para se refugiarem em outros cômodos ali existentes.
A música continuou... Em dado momento, embora eu tivesse apenas quinze anos, parei de
tocar, fui até a porta da rua e gritei para os briguentos: “Vocês vieram aqui para dançar ou para
brigar? Decidam! Porque... se quiserem continuar brigando, o sanfoneiro e eu vamos embora!”
Dito isso, voltei para o meu posto e toquei uma polca alegre.
Fazia já meia-hora que estavam brigando; entretanto, em vista de minha ameaça, um por um
dos cavalheiros foi entrando no salão. As damas também foram voltando, e o baile recomeçou com
uma pequena diferença: é que o traje dos homens, devido à briga e ao barro que havia na rua, não
era mais calça branca e paletó azul marinho e, sim, calça marrom e paletó azul furta-cor.
O baile, depois de acalmados os ânimos, prosseguiu até o amanhecer, sem mais novidades. O
sanfonista e eu recebemos a importância que havíamos combinado com os organizadores da festa.
Às oito horas, parti para Indaiatuba, juntamente com o bloco da “Sociedade Treze de Maio”
indaiatubana. Durante a viagem, a briga foi muito comentada; e todos foram unânimes em afirmar
que, se não fosse a minha interferência, o mal-entendido poderia ter se transformado em uma
contenda entre as duas cidades, o que seria para se lastimar, pois o motivo foi demasiado fútil!
O t ercei ro bai le

Toda a banda foi convidada para tocar em um baile, em uma fazenda de um povoado
distante vinte e cinco quilômetros de Indaiatuba.
Nem todos puderam aceitar o convite, devido aos afazeres particulares de cada um. Fomos
apenas dez elementos da banda.
A fazenda pertencia a um próspero fazendeiro, e o convite para irmos lá ele mesmo havia
feito.
Saímos de Indaiatuba às quinze horas e chegamos à fazenda às dezoito horas... Hora de
jantar, portanto! Justamente naquele momento, a família do fazendeiro estava terminando a sua
refeição.
Nós tínhamos sido convidados para uma festa, e não contratados para tocarmos em uma.
Logo que chegamos, alguns curiosos nos rodearam e começaram a pedir que tocássemos.
Nós, entretanto, estávamos cansados e com fome, como era natural. Ao serem pedidos números
musicais, nós dissemos que desejávamos descansar um pouco, e, logo após o jantar, tocaríamos o
que pedissem.
O fazendeiro, que estava terminando o seu jantar, mostrou-se surpreso com a nossa
pretensão. Alegou que havia sobrado só um restinho de comida, e que não bastaria para todos.
A princípio, nós pensamos que ele estava brincando... Não podíamos supor que, na qualidade
de convidados para tocar de graça, não nos fosse oferecido ao menos um prato de comida.
A dona da casa, não sei se por vergonha ou por ter ficado com raiva, sumiu lá para dentro; as
filhas do fazendeiro também sumiram. Entretanto, os filhos, com alguns colonos, queriam
obrigar-nos a tocar de qualquer maneira, chegando mesmo a ameaçar-nos. Diante de tais
demonstrações de valentia, fomos obrigados a enfrentá-los, dizendo que também estávamos
dispostos para o que desse e viesse.
Eles resolveram se acalmar - ou, melhor dizendo, acovardaram-se -, e nós declaramos que
íamos nos retirar imediatamente.
O fazendeiro ficou furioso! Disse que, se não tocássemos, não nos forneceria troles para
irmos até a estação da estrada de ferro, que ficava bem distante da fazenda.
Nem essa ameaça nos demoveu do propósito de não tocarmos. O fazendeiro, de fato, não
nos forneceu os troles, e partimos assim mesmo.
Ao sair, eu disse bem alto: “Vocês não vão ouvir nenhuma música, mas aquela vaca que está
perto da porteira vai ser homenageada por nós!”.
Fomos até a porteira. Nela nos sentamos, ao lado da vaca, e executamos, com toda a alma, a
valsa “Saudades de Iguape”. Quando terminamos de tocar, a vaca agradeceu com um longo
mugido... Depois, fomos para a estação da estrada de ferro, e lá ficamos aguardando o primeiro
trem para Indaiatuba, o qual só passou às sete horas do dia seguinte.
Na estação, nem uma torneira de água, sequer, havia! Lá passamos toda a noite, sofrendo
frio, fome e sede... Apesar de tudo, chegamos às nossas casas sãos e salvos...
O acontecimento foi muito comentado em Indaiatuba, onde o fazendeiro era bastante
relacionado. Depois desse papelão, será que ele teve coragem para convidar mais algum conjunto
para tocar em sua fazenda? Duvido!...

Um n ovo m aestro

Depois do Maestro Dunga, a direção da banda foi entregue ao bombardinista Esterlino


Minioli, que nesse cargo permaneceu durante alguns anos; porém, devido aos seus interesse
particulares, foi obrigado a deixá-lo, ficando a banda acéfala.
O serviço de música era então muito mal remunerado! Era considerado um “bico”. O que se
recebia, mal chegava para adquirir repertório novo e conservar os instrumentos, que eram
propriedade de cada um de nós.
Nessa ocasião, a banda ficou empresada de um cinema, o Internacional. O Internacional era
um barracão de zinco no Largo da Cadeia. Além de ser cinema, esse barracão servia também de
sede para ensaios e reuniões da banda.
Freqüentemente, no meio de um ensaio, apareciam na sede familiares dos músicos, a fim de
organizarem um “assustado” para logo depois do ensaio.
Os “assustados” eram bailes improvisados... Ninguém se preocupava com traje: todos
queriam apenas um pouco de diversão.

Eu , me stre da ban da

Estava com dezessete anos quando a banda, novamente, ficou sem maestro.
Em reunião, na qual se encontravam também meus irmãos Godofredo, Jaime e Miloca, meus
companheiros elegeram-me maestro, por unanimidade.
Declarei que aceitaria tal responsabilidade com a condição de ser obedecido e respeitado por
todos, e principalmente por meus irmãos. Isso, devido serem mais velhos do que eu.
É sabido que, naquele tempo, em muitas famílias, era costume os irmãos mais jovens
obedecerem aos mais velhos; por isso, eu havia imposto aquela condição.
Felizmente, meus manos não só concordaram como também nunca me causaram
aborrecimentos.
O prim eiro serv iço

O primeiro serviço da banda sob minha direção foi a inauguração da igrejinha de Itupeva.
Nesse dia, aconteceu um fato curioso: tínhamos sido contratados para tocar no leilão, logo
após o almoço, e à tarde, acompanhando a procissão.
Por volta do meio-dia, ofereceram-nos um banquete, e notei que na mesa havia grande
quantidade de garrafas de vinho italiano. Naquela época, o Brasil ainda não produzia vinho, e a
maior parte do vinho aqui consumido provinha da Itália. É, portanto, fácil imaginar como a turma,
principalmente os descendentes de italianos, ficou alvoroçada.
Prevendo o que poderia acontecer, reuni a banda e avisei que cada um só tomaria um copo
de vinho.
O protesto foi geral! Todos ficaram carrancudos; e o mau humor ainda aumentou porque o
dono da festa insistia para que bebêssemos, assegurando que o vinho era da melhor qualidade, e
portanto não embriagaria, mesmo que tomássemos três ou quatro copos dele.
Eu, entretanto, mantive a minha ordem dizendo com energia: “Quem quiser, pode beber à
vontade; porém, eu aviso que, se algum de vocês tomar mais de um copo de vinho, voltarei
imediatamente para Indaiatuba, e quem quiser dirija a banda! Exijo isto só ao almoço, vocês sabem
que a nossa responsabilidade é muito grande! Ao jantar, como não temos de tocar mais, vocês
podem beber à vontade, e quem quiser pode até embriagar-se!”
Foi o que aconteceu!... Após o jantar, fui chamado para ver três componentes da banda, dos
quais não convém dizer os nomes, deitados no chiqueiro, junto aos porcos, com os quais, naquele
momento, estavam bem identificados.
Imaginem, se não fosse a minha exigência, o que teria acontecido!... Os que se embriagaram
eram homens feitos, e eu era o mais jovem da banda.
Posteriormente, em Indaiatuba, todos reconheceram que eu estava com a razão.

Viagem a Salt o

Um fazendeiro italiano, radicado em Salto, convidou a banda para participar de uma festa em
sua fazenda.
Como em quase todas as festas em fazendas, só foi possível ir uma parte da banda. Conosco,
nesse dia, foi também o nosso amigo Lino Chimin, que era bom sanfonista.
A fazenda ficava a três quilômetros da estação da estrada de ferro, e esse percurso fizemos
em troles.
Apenas partimos da estação, desabou um grande temporal, e para proteger o fole da sanfona
do Lino, precisamos cobri-lo com os nossos paletós. Os outros instrumentos eram de metal, e
podiam ficar molhados sem prejuízo.
Ao anoitecer, chegamos à casa do fazendeiro, que se chamava Giuseppe. Lá, cinco gerações
da família moravam juntas. Havia gente de todas as idades, desde bebês até veneráveis anciãos
nonagenários. Parecia até um acampamento cigano!...
Como eu ia dizendo, chovia. O dono da casa, prevendo que iríamos chegar encharcados,
preparou roupas para trocarmos. Aconteceu, então, que alguns de nós ficamos vestidos com calças
que nos chegavam até os joelhos, enquanto outros as tinham arrastando no chão, sendo obrigados a
dobrá-las várias vezes, para poderem caminhar.
Para evitar que nos resfriássemos, o Sr. Giuseppe, assim que nos trocamos, mandou
servir-nos um copo de vinho delicioso!
Fomos recebidos num rancho enorme, onde, em um canto, havia um fogão, e sobre ele um
grande parol, no qual uma apetitosa polenta estava sendo preparada. O fumeiro, sobre o fogão,
estava repleto de lingüiça feita em casa, e grande parte dela foi preparada para acompanhar a
polenta.
Além da polenta com lingüiça, havia também frangos ao “primo canto”, já prontos em uma
travessa.
Meia hora após a chegada, estávamos saboreando aquele delicioso jantar, que foi regado a
vinho italiano. À sobremesa, nos serviram marmelada e goiabada com queijo.
Após o jantar, começou o baile, que só terminou com o romper do dia.
Nessa festa, também, fomos tocar por amor à arte, e nada recebemos além da generosa
hospitalidade dos donos da casa.
Voltamos felizes para Indaiatuba!
Essa festa deixou-nos recordações agradáveis que foram comentadas durante muito tempo;
tirando a impressão negativa da outra festa, na outra fazenda.

Um caso pit oresco

Anexo ao nosso cinema, tínhamos um bar e, durante a exibição dos filmes, alguns roceiros,
em vez de assistirem às fitas, costumavam ficar nesse bar, conversando.
Certa ocasião, num dia Sete de Setembro, um desses roceiros excedeu-se na bebida e ficou
um tanto inconveniente. Foi logo convidado por um guarda para retirar-se do local, onde, nesse dia,
estava sendo festejada a nossa grande data cívica.
O roceiro negou-se a cumprir a ordem do guarda, e este não teve outra alternativa: deu-lhe
ordem de prisão!...
Nesse instante, a banda executou o Hino Nacional. O guarda fez continência e o preso
aproveitou-se da situação, saindo de fininho. Nunca mais tivemos notícias dele...

Ou tro caso pit oresco


Estávamos no mês de maio... no mês em que todas as igrejas celebram com grande pompa
o culto à Santíssima Virgem.
Nesse tempo, eu, rapazinho de onze anos, também estava na igreja de Nossa Senhora da
Candelária, assistindo à reza. À minha frente estava o Tibúrcio, crioulo muito popular em
Indaiatuba. Percebi que, ao responder a ladainha, ele não dizia “Ora pro nobis”, e sim coisa
parecida. Prestei atenção, e pude ouvir distintamente as suas respostas. Em vez de responder “Ora
pro nobis”, o Tibúrcio dizia: “Óia o tomove!... Óia o tomove!...”

Compos ições até os dezoit o an os

Das músicas que escrevi até os dezoito anos, apenas a valsa “Triste separação” foi impressa.
Eu reuni todas as outras composições em um álbum manuscrito, que mais tarde emprestei ao mano
Godofredo. Após seu falecimento, não sei em poder de quem esse álbum se encontra.
Lembro-me dos nomes de duas composições que serviram de tema para filmes seriados,
quando foram exibidos em Indaiatuba. São eles: “Cidade perdida” (para o filme com o mesmo
nome) e “Roleaux” (idem).
Escrevi, durante esses anos: as polcas “Limpa banco” e “Noite de pândegas”; as valsas
“Meus quinze anos”, “Maria”, “Saudade de Auta”, “Luar de Indaiatuba”, “Primavera”, “Sorriso”,
“Serenata amorosa”; os sambas “Na piririca”, “Contando papo”, “Carinha de boneca”, “Doce de
abóbora”, “Levantando poeira”, “Um baile na tulha”, “Alegria de caboclo”, “Pescando no seco”,
“Briga no salão”, “Saracoteando” e “Boa vida”.

A vida em In dai atu ba at é os dezoi to an os

Aos catorze anos, trabalhei na Companhia Telefônica de Indaiatuba, juntamente com o mano
Miloca.
Por meus serviços recebia vinte mil-réis mensais. Exercia as funções de telefonista,
mensageiro e examinador de linha. Para exercer essa última função, era obrigado a subir em postes,
freqüentemente. Trabalhei nesse serviço apenas um ano; depois, decidi ajudar papai nas suas
compras e vendas de gado.
Por esse tempo, papai herdou, por morte de seu irmão João, a fazenda Votura. Foi então que
papai começou a se dedicar quase que exclusivamente à compra e à venda de gado. Para esse fim,
o velho e eu viajávamos pelos arredores de Indaiatuba, visitando sítios, onde adquiríamos bezerros e
novilhos que eram levados para a nossa fazenda, na qual existia uma boa invernada e também boa
aguada, para o crescimento e engorda dos animais.
Foi então que de telefonista eu me transformei em vaqueiro!... Nesse trabalho, os perigos
não eram poucos; eu ajudava a laçar, a capar e a marcar o gado. Muitas vezes, também ajudei a
dominar estouros de boiadas.
Um episódio interessante, relacionado com a compra de gado, ficou-me na mente: certa
ocasião, o trem atropelou e matou uma vaca, próximo à Caneleira. A vaca deixou uma cria de dois
dias.
Uma mulher, que estava lenhando nas imediações e presenciou o desastre, pegou a cria e
levou-a para sua casa. Na casa havia diversas crianças, que ficaram muito contentes com a cria,
que, por ser tão pequena, parecia ser uma cabrita.
O animalzinho foi alimentado com mamadeira, e também comia pão molhado no leite, ao
lado das crianças, na cozinha. Além disso, tomava café, e quando desejava tomá-lo, dava sinal,
empurrando o bule com o focinho.
A cria foi crescendo e tornou-se novilha. Portanto, não era mais possível mantê-la em casa:
já tinha dois pequenos chifres. Além disso, já estava com três meses, e embora continuasse muito
mansa, os donos da casa temiam pela segurança da criançada; por essa razão, resolveram vendê-la.
Papai comprou-a com a condição de só ir retirá-la, quando as crianças estivessem na escola.
Fui com ele buscá-la...
Essa foi a rês que deu mais trabalho para ser conduzida. Percebia-se que ela também tinha se
afeiçoada às crianças.

Nota:
Dizem que na Fazenda Votura teria sido fundada Indaiatuba. Tive oportunidade de ver os
alicerces das casas que lá existiam e que foram abandonadas.

A caçada de paca e de capi vara

Certa ocasião em que o rio Jundiaí estava baixo, papai e alguns sitiantes organizaram uma
caçada de paca e de capivara. Fui também com eles.
A caçada foi ótima! Matamos, nesse dia, três capivaras e uma paca. À medida que os
animais eram abatidos, eu e mais dois mocinhos os levávamos para um local próximo ao mangueirão
e lá os deixávamos cobertos com folhas de guaimbê, para evitar que as moscas neles pousassem, e
também para conservá-los frescos. Nesse lugar, eles ficariam até o fim da caçada, para então serem
repartidos entre os caçadores.
Para transportar os animais mortos, amarramos, como era costume, as patas dianteiras e as
traseiras, com cipós, e atravessamos um pau entre as patas, ao comprimento do corpo. Duas pessoas
seguravam cada extremidade do pau.
Quando estávamos transportando um dos animais, eu vi, atravessada na estrada, uma enorme
jibóia! Como, no momento, eu estava sem arma, peguei a espingarda de dois canos de um dos
rapazes e dei dois tiros na cobra, que com o primeiro já estava morta. Não satisfeito com isso, tomei,
sob protesto, a espingarda de um cano do outro rapaz, e atirei novamente.
Voltamos para junto dos caçadores e encontramos papai muito preocupado com o
bombardeio que ouvira, porque o capão do mato que nós havíamos atravessado era grande, e ali
constantemente apareciam porcos do mato. Papai censurou-me por eu ter dado tantos tiros. Ele
sabia que eu atirava muito bem com bala, não havendo motivo para eu ter dado três tiros com
espingarda de chumbo.
Sempre tive horror de cobras; por essa razão, queria ter certeza de que aquela estava bem
morta.
Quarta Parte:

A VINDA PARA SÃO PAULO


A vin da para São Pau lo

Aos vinte anos, eu me convenci de que, para progredir na minha arte, necessitava estudar em
São Paulo. Tomei então a grande resolução da minha vida!
Logo que cheguei à capital, matriculei-me no Conservatório Dramático e Musical, nas
classes de clarineta, de piano complementar e de composição. No próprio Conservatório, freqüentei
aulas de português e matemática.
Estava começando a tornar realidade o que sempre dizia à mamãe, enquanto ela cozinhava,
e eu, fingindo que o grande fogão à lenha da nossa casa era um piano de cauda, nele executava
concertos imaginários, afirmando-lhe que algum dia eu ainda haveria de tocar no Teatro Municipal
de São Paulo. Mamãe ria desse meu sonho infantil; entretanto, incentivava-me, dizendo: “Estuda
bastante, meu filho, porque ninguém vence sem se esforçar.”
Os anos passaram rapidamente, e, em 1930, quando a Sociedade de Cultura Artística de São
Paulo iniciou suas atividades, tive a honra de ser convidado para integrar o seu quadro artístico,
como clarinetista, e então realizei o meu sonho: tocar no Teatro Municipal.
Note-se que, naquele tempo, os grandes músicos eram quase todos estrangeiros, ou filhos
deles, e um artista brasileiro tinha de vencer inúmeras dificuldades para entrar no seu meio. Isto
acontecia, simplesmente, pelo fato de não ser como na banda de Indaiatuba, na qual eu tocava por
amor à arte, mas sim, um cargo que se ia exercer, e que embora na ocasião fosse muito mal
remunerado, não deixava de ser uma promessa para os dias melhores que haveriam de vir.
Lembro-me de que, muitos anos depois, quando eu já ocupava o lugar de clarinetista solista,
classificado em concurso, na Orquestra Municipal de São Paulo, um colega, filho de italianos,
perguntou-me certa vez de que modo eu, caipirinha de Indaiatuba, tinha conseguido chegar àquele
posto. Todavia, só eu sabia que aquele cargo fora conquistado a duras penas, e algumas vezes, em
tom de brincadeira, eu dizia que era um dos pouquíssimos “estrangeiros” na Orquestra.
A vida em São Paulo, no começo, foi cheia de percalços! Nem sei como consegui vencer
tantas barreiras!...
Nos primeiros tempos, para manter meus estudos, precisei trabalhar tocando em um
cinema... Nessa ocasião, toquei uns três meses no Cinema Brasil, no Largo do Arouche. Isso foi
logo que cheguei a São Paulo: eu estava com vinte anos e, prevendo a possibilidade de ser
convocado para o serviço militar obrigatório, resolvi apresentar-me voluntariamente, porque dessa
forma me seria permitido escolher o corpo em que desejasse servir.
Escolhi um batalhão que possuía banda. Assim, eu pude reunir o útil ao agradável: os ensaios
na banda aperfeiçoaram a minha arte, e o tempo disponível eu aproveitava para estudar as lições de
música que à noite eu devia apresentar no Conservatório.
Como militar, o meu horário de levantar era às cinco horas e as aulas no Conservatório
terminavam às vinte e duas horas; nessa hora, o meu cansaço era tanto que, quando eu me sentava
no bonde que me levaria de volta ao quartel, no bairro de Santana, muitas vezes adormecia, e
quando acordava, o quartel já tinha ficado para trás. Quando isso acontecia, eu sentia vontade de
sentar-me na soleira de alguma porta e dormir ao relento o resto da noite.
Durante o tempo em que fiz o serviço militar, conquistei duas promoções e, ao darmos baixa,
eu e o meu colega Giovanni Serafini, fomos insistentemente convidados pelo comando para
continuarmos na banda - onde, segundo afirmavam, iríamos fazer muita falta. Caso ficássemos,
como o quadro iria ficar com excesso de músicos, o comando se propunha a criar mais duas
primeiras classes, ou seja, duas classes distintas.
Mas a minha obrigação para com a Pátria, na ocasião, já estava satisfeita - eu já estava apto
para defendê-la se um dia ela precisasse de mim. Os meus planos eram outros: eu queria dedicar-me
só à música, quer como instrumentista, quer como compositor.
Entretanto, tal não foi possível, porque nessa época a vida, como diziam, estava difícil, e o
serviço de música continuava sendo muito mal remunerado. Os poucos empregos bons já estavam
sendo ocupados por músicos experientes, que já vinham exercendo a profissão há algum tempo, e
que não deixariam os seus lugares, a não ser por motivos muito especiais. Por isso, aceitei o convite
de um chefe de seção da Companhia Inglesa, que era presidente da Banda da Lapa: ele me oferecia
um emprego na Companhia, com a condição de eu dedicar meus préstimos como clarinetista na
referida banda.
Nessa Companhia trabalhei apenas um ano, quando um dos clarinetistas da banda foi
convidado para tocar no Cinema Olímpia. Não lhe interessou esse emprego, porque ele era
mecânico na Companhia, e, como tal, o seu ordenado era bem superior ao que lhe ofereciam no
Cinema Olímpia. Fui encarregado por ele para agradecer ao Maestro Modesto Tavares de Lima o
convite que lhe fizera e, ao mesmo tempo, explicar o motivo da sua recusa. Aproveitei o ensejo
para dizer que também tocava clarineta e já havia participado de bandas; estava ainda estudando
no Conservatório, porém, não tinha prática em orquestras.
O maestro apreciou a minha franqueza e ofereceu-me o emprego. Aceitei, com a condição
de ser posto à prova durante uma semana. O maestro concordou.
No terceiro dia do estágio, ele me chamou, na hora do intervalo, e comunicou-me que o
lugar era meu, dizendo-me: “Nabor, você está colocado! O seu ordenado são duzentos e quarenta
mil-réis, por mês. ” Eu lhe respondi: “Duzentos e quarenta mil-réis?” O maestro julgou que eu
não ficara contente com aquela quantia, e retrucou: “É para começar... No próximo mês, você terá
um aumento, e ficará ganhando igual aos outros.”
De fato, no mês seguinte houve um aumento nos ordenados de toda a orquestra, e todos
passaram a ganhar trezentos mil-réis. O gerente avisou-me que eu passaria a ganhar duzentos e
setenta mil-réis. Depois perguntou se estávamos satisfeitos. Aproveitei e respondi que eu não estava,
porque o maestro havia prometido que eu passaria a ganhar igual aos meus colegas... Ao que ele
respondeu: “Se você não está satisfeito, pode passar pelo meu escritório, acertar as contas e ir
embora”. Fui ao escritório para acertar as contas, e o gerente disse sorrindo: “Vá embora,
‘brasileiro’. Você também está ganhando trezentos mil-réis.”
O certo, porém, é que eu achara os duzentos e quarenta mil-réis iniciais muito dinheiro. Na
Companhia Inglesa, para trabalhar oito horas diárias, eu ganhava apenas cento e cinqüenta mil-réis,
e ainda tinha um desconto de quinze mil-réis.
Com o meu emprego no Cinema Olímpia, iniciara a minha carreira musical. Desde então, me
dediquei somente à música. Trabalhei em cinemas, teatros de revistas, de operetas, de óperas,
concertos e balés. Comecei como segundo clarinetista, depois, fui primeiro, e finalmente solista, na
Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo.
Assim, aconteceu exatamente o que eu dizia à mamãe, na cozinha lá de casa, fingindo que
tocava piano no velho fogão: “Algum dia, ainda hei de tocar no Teatro Municipal de São Paulo”.
Composi ções em São Pau l o

Pouco tempo depois de chegar a São Paulo, conheci o poeta e jornalista Dieno Castanho.
Nessa época, os editores de músicas davam preferência às composições para piano que eram
acompanhadas de letras. O Dieno e eu fizemos amizade, e costumávamos encontrar-nos, após o meu
trabalho no cinema, no Café Guarani, na Rua Quinze de Novembro, que era muito freqüentado
pelos boêmios de São Paulo. Foi ali que, durante um bate-papo, tivemos a idéia de batizar os ônibus
então em circulação na capital de “mamãe me leva”. O Dieno era poeta de boa veia e, com esse
tema, na mesma hora escreveu os versos para um maxixe. Eram versos brejeiros, muito ao sabor da
época. Eu sempre carregava papel de música no bolso, e ali mesmo escrevi a melodia para
acompanhar aquela letra. No dia seguinte, harmonizei-a para piano, e levei a nossa composição para
os Editores Irmãos Vitale. Eles gostaram da idéia e aceitaram a música para imprimir.
Naquele tempo, não existia rádio, nem outros meios de divulgação de músicas, a não ser o
teatro de revistas e os circos.
A sorte estava a nosso favor! O célebre ventríloquo Batista Júnior, justamente naqueles dias,
estava apresentando um ato variado, nos intervalos das exibições cinematográficas nos cinemas
pertencentes à Companhia Serrador - à qual também pertencia o Cinema Olímpia, onde eu estava
trabalhando. O Batista Júnior encerrava o seu ato variado dançando com uma boneca do seu
tamanho, com os pés presos em seus sapatos, o seu braço esquerdo prendendo-a pela cintura, e o
direito segurando-lhe a mão esquerda, dando a impressão de ser realmente uma moça. Num dos
ensaios da orquestra do Olímpia, toquei ao piano, para meus colegas ouvirem, o maxixe que o Dieno
e eu tínhamos composto. O Batista ia entrando para começar o seu ensaio com a orquestra, ouviu a
música e gostou muito, pedindo para incluí-la no seu ato variado.
Ficou combinado que, daquele dia em diante, durante o número de encerramento do
programa, no qual ele dançava com a boneca, devia ser tocado o “Mamãe me leva”. Nossa
orquestra fazia rodízio com as outras da Companhia Serrador; para aquele ato variado do Batista
Júnior, por já estar ensaiada com ele, era a orquestra do Cinema Olímpia que o acompanhava em
todos os cinemas onde ele atuava. E quando ia iniciar o último número, o Batista fazia questão de
dizer, em voz alta: “Maestro, atocha o ‘Mamãe me leva’”.
Foi por isso que esse meu primeiro trabalho em São Paulo ficou conhecidíssimo em várias
cidades brasileiras.
Logo depois, o Dieno e eu lançamos o samba “Cavanhaque do bode” ( homenagem ao Dr.
Washington Luís Pereira de Souza), e outro samba, “Coitado do Juca Pato” ( homenagem ao
Belmonte).
O Belmonte foi um dos maiores caricaturistas da época, e o Juca Pato era um personagem
criado por ele - essa figura representava o povo. Em vista da homenagem, o Belmonte fez questão
de ilustrar a capa da música; e depois, além dessa, ilustrou algumas outras capas de músicas nossas.
Com esses três sucessos, estava aberto nosso caminho com os Irmãos Vitale, que firmaram
comigo um contrato, no qual eu me comprometia a entregar-lhes, mensalmente, uma composição
para ser impressa. Durante vários anos, esse contrato foi renovado, e, na maioria das minhas
composições desse tempo, os versos continuaram sendo do meu amigo Dieno Castanho.
As composições editadas nessa época foram: “Mamãe me leva” (maxixe), “Cavanhaque do
bode” (samba), “Coitadinho do Juca Pato” (samba), “Triste separação” (valsa), “Rose... Rose....”
(valsa), “Se os corações falassem” (valsa). “Lamentos de um sino” (tango), “Musa de tango”
(tango), “Buscando amor” (tango), “Diva” (tango), “Viver sonhando” (tango), “Vem cá”
(marchinha), “Meu coração” (fox), “Luar do Guarujá” (fox), “Balada da lua”, (canção), “Porque te
dei meu coração” (canção), “Sonhos” (canção), “Fé” (canção), “Lá vem cruzeiro” (samba), “Vida
apurada” (samba), “Capuchinho” (samba), “O meu sofrer “ (samba), “Espanta vaca” (samba),
“Lágrimas de caboclo” (samba), “Nosso café” (samba), “No pico do Jaraguá” (samba), “No
muchirão” (samba), “Nhá Chica traga o pito” (samba).

Hi n o In dai atu ban o

Em fins de 1929, fui passar uns dias em Indaiatuba. O Prefeito Alfredo de Camargo Fonseca,
sabendo que eu me encontrava na cidade, procurou-me para conversar sobre os festejos do primeiro
centenário da fundação de Indaiatuba, que aconteceria no ano seguinte. Disse-me que seria
interessante eu escrever um hino a Indaiatuba, para homenageá-la pela sua grande data. Acatei a
sugestão com grande prazer!
Lembrei-me logo do Acrísio de Camargo para escrever os versos do hino. Ele era poeta e já
havia colaborado comigo em uma das minhas composições. Submeti a escolha ao prefeito, que a
aprovou totalmente, pois conhecia bem sua capacidade.
Falei com o Acrísio e com grande alegria ele aceitou a incumbência de escrever o poema.
Embora natural de Jundiaí, o Acrísio amava muito nossa cidade. Morava em Indaiatuba desde muito
criança e era indaiatubano por adoção.
Assim, compusemos o hino...
A primeira execução deu-se em sessão solene realizada pela Câmara no dia do Centenário.
Os presentes, no momento da execução, ficaram em pé, tendo as autoridades se posto em posição
de sentido.
Desde essa data, o povo de Indaiatuba adotou o hino, que vem sendo cantado em todas as
nossas comemorações cívicas.

Ou tras compo sições

A clarineta é, como a flauta, um instrumento que se presta muito para a execução de choros.
Por esse motivo, a partir de 1929, comecei a compor alguns choros, a fim de formar um repertório
exclusivamente meu.
Nessa época, eu tocava em uma estação de rádio, e nela havia um bom conjunto regional,
que, com poucos ensaios, acompanhava bem qualquer executante.
A estação de rádio onde eu trabalhava em 1929 era a Rádio Record, e o conjunto regional
que lá atuava tinha o mesmo nome. Era um conjunto pequeno, porém os seus músicos eram os
melhores da capital, naquele tempo. Eram eles: o Armandinho Neves (violonista), o Vicente Lima
(também violonista) e o Pinheirinho (ótimo executante de cavaquinho para acompanhamento).
Na Rádio Record, acompanhado por esse conjunto regional, eu tinha semanalmente três
programas de músicas de minha autoria, e em cada programa apresentava três músicas. Resultante
disso, freqüentemente recebia cartas provenientes de lugares bem distantes do nosso país,
solicitando cópias das músicas por mim apresentadas nos meus programas, e que até então eram
inéditas. Resolvi, por isso, publicá-las em álbuns contendo dez choros cada um. Nessa ocasião, já
devia ter uns cinqüenta deles, aproximadamente.
Foi para atender a tantos pedidos de meus choros que resolvi imprimi-los; seria dificílimo
enviar cópias manuscritas a todos que as solicitavam.
Selecionei dez choros a fim de imprimir o primeiro álbum. Estava pensando que nome daria
a esses álbuns, quando inesperadamente encontrei o meu amigo Marcelo Tupinambá. Conversei
com ele sobre o que pretendia fazer, e ele aprovou a idéia, achou-a muito original, e quando lhe pedi
que sugerisse um nome, foi logo dizendo: “Ponha esse nome: ‘Choros do Nabor’ ”.
Assim, naquele dia os álbuns ficaram batizados e o seu padrinho foi o compositor Marcelo
Tupinambá.
Comecei então a procurar editor que se interessasse por imprimir meus choros. Corri todos
os editores da capital e nenhum se interessou por eles. Alguns chegaram a dizer-me que a idéia era
temerária pois, até aquela época, eles só imprimiam músicas para piano, e esses álbuns eram
somente de melodias para serem acompanhadas por conjuntos regionais.
Constatando a falta de interesse das editoras, tomei a resolução de imprimir esses álbuns por
minha conta. Para isso, fui à Editora Irmãos Vitale e solicitei um orçamento para a impressão de
duzentos exemplares. Quando me forneceram esse orçamento, pedi o orçamento para quinhentos e
também mil exemplares. Eles responderam que quanto maior fosse a edição, menor seria o preço
por exemplar, uma vez que a matriz já estava pronta. Quando pedi o orçamento para mil
exemplares, o editor deve ter me julgado paranóico, porque sorriu ironicamente, dizendo: “Não
acredito que você consiga vender cinqüenta exemplares, e você pensa poder imprimir mil?”
O editor já me havia dito que exigia para as encomendas 50% no ato da entrega e 50% trinta
dias após.
Como sempre, fui muito teimoso, autorizei a impressão de duzentos exemplares, e sem perda
de tempo, parti para a propaganda. Comecei-a pelos quartéis da capital, onde havia bandas. Os
maestros delas eram todos meus amigos, e apresentavam-me às bandas para que eu lhes expusesse o
motivo da minha presença ali. Eu, então, mostrava-lhes o meu álbum manuscrito, e dizia-lhes que
estava sendo impresso, que seu preço seria de cinco mil-réis, nas casas de música; porém, quem
fizesse encomenda antecipadamente teria um abatimento de dois mil-réis. O pagamento dos álbuns
encomendados seria feito em conjunto, por intermédio dos maestros das bandas. Para facilitar, fazia
na hora uma lista de pedidos, e entregava-a ao maestro, que se incumbia de cobrá-los quando saísse
o pagamento da banda.
Visitei as bandas de cinco quartéis. Cada uma tinha aproximadamente cinqüenta elementos;
alguns deles adquiriram mais de um exemplar, para oferecerem a amigos ou parentes que residiam
em outras cidades do Brasil.
Após quinze dias de propaganda e de vendas, voltei à editora para saber como ia a minha
encomenda, e também para aumentá-la. Em vez dos duzentos exemplares que eu havia autorizado a
imprimir, encomendei mil exemplares, porque o número deles vendidos já passava dos quinhentos e
nessa ocasião já me tinham sido pagos.
O editor pareceu duvidar do que eu lhe dizia, mas convenceu-se quando lhe mostrei as listas
de encomendas, quase todas encabeçadas pelos maestros das bandas, os quais o editor conhecia
muito bem. E, para provar o que estava dizendo, efetuei na hora o pagamento de toda a edição,
isto é, dos mil exemplares, dizendo ao editor que lhe estava pagando com dinheiro recebido
adiantadamente dos álbuns vendidos.
Aproveitei o ensejo para encomendar uns folhetos com a propaganda dos meus álbuns.
Quando eles me entregaram esses folhetos, fiz uma lista de todas as bandas militares de todo
o Brasil e enviei-lhes a aludida propaganda. Não tardou a chegarem pedidos de diversas partes do
nosso país.
Nesse ínterim, fui convidado para tocar em uma orquestra que ia para Curitiba, acompanhar
espetáculos de ópera. Aceitei o convite e aproveitei a ocasião para levar comigo duzentos
exemplares dos choros, os quais, com muita facilidade, vendi em Curitiba e em Ponta Grossa,
também nas bandas dos quartéis, como tinha feito em São Paulo.
A edição de mil exemplares esgotou-se em menos de seis meses. Então, quem me procurou
foi o editor, propondo-me reeditar o primeiro álbum e também providenciar a impressão dos álbuns
seguintes.
Foi assim que imprimi as dez seleções de dez choros cada uma, as quais até hoje continuam
sendo vendidas pelo Brasil afora.
Depois que lancei esse sistema de seleções de choros em álbuns contendo dez choros cada,
apareceram alguns imitadores que, aproveitando a minha idéia e a minha propaganda, lançaram
também os seus trabalhos. Eles me imitaram em tudo, começando pelos dizeres da capa ( “Contém
este álbum.... etc.”).
Algumas vezes, por curiosidade, ia às lojas de música e perguntava aos caixeiros como iam
os meus choros. Geralmente, a resposta era esta: “Nabor, enquanto vendemos dez dos seus álbuns,
vendemos apenas um dos outros autores.”
Depois das dez seleções de choros, resolvi encerrar esse tipo de composição, isto é, choros
só com melodias; entretanto, como já disse, meus álbuns continuam sendo vendidos depois de tantos
anos que foram lançados. Ultimamente, compus três choros para piano, que também foram
editados pelos Irmãos Vitale. São eles: “Indiferente”, “Tamoio” e “Grã-fino”.

Prêmios

De vez em quando, concursos de composições musicais são instituídos em São Paulo, no Rio
de Janeiro e em alguns lugares do Brasil.
No ano de 1929, houve um concurso patrocinado pela “Associação Nacional dos Editores de
Músicas”. Concorri com a canção “Porque te dei meu coração” e conquistei o segundo prêmio.
Em 1932, houve um concurso de marchas carnavalescas promovido pela Rádio Educadora
Paulista, concorri nesse concurso com a marcha “Foi sem querer” e obtive o primeiro prêmio.
Em 1933, a Prefeitura Municipal de São Paulo, instituiu concurso para premiar os melhores
sambas e as melhores marchas para o carnaval daquele ano. Nesse concurso, conquistei o primeiro
prêmio com a marcha “Vá carregar piano”.
Em 1935, em concurso para escolha de marchas e sambas para o carnaval, também instituído
pela Prefeitura Municipal de São Paulo; conquistei dois prêmios: a segunda colocação com o samba
“Fiquei sobrando” e a terceira com o samba “Só pra machucar”.
Em 1938, obtive o primeiro lugar num concurso organizado pela comissão promotora da
Festa da Uva, em Jundiaí, com o samba “Beba até no funil”.
Em 1945 o Departamento Nacional do Trabalho, instituiu um concurso para a escolha do
Hino do Trabalho. Nesse concurso mais de trezentos compositores enviaram suas músicas, pois além
dos prêmios não serem para desprezar, o concurso teve muita repercussão por ser de âmbito
nacional. Também concorri e conquistei o segundo prêmio.
Conquistei ainda três prêmios no setor de músicas para propagandas, sendo um para as Casas
Pernambucanas, outro para as “Sardinhas Rubi” e outro para “Caixa Eça” ??????.
Como instrumentista, obtive o Prêmio “Medalha de Ouro” oferecido pelo Jornal “A
Gazeta”, para os melhores executantes de cada instrumento. Esse concurso foi em 1929.

Gravações

A primeira gravação de música de minha autoria fiz na Victor, situada na Praça da


República, em São Paulo. O diretor-artístico dessa gravadora convidou-me para gravar duas
músicas. Aceitei o convite e escolhi para minha primeira gravação a valsa “Caindo das nuvens” e o
choro “Matando saudades”. Fiz a gravação acompanhado por dois violões e um cavaquinho.
Meus acompanhantes e eu fizemos diversos ensaios, em minha casa, para não causar perda
de tempo no momento da gravação. Naquela época, em São Paulo, só havia um técnico para esse
serviço. Fizemos a primeira prova em cera, e ele a achou tão perfeita que nos julgou veteranos em
gravações, ficando muito admirado ao saber que era a primeira vez que gravávamos.
Após esse disco, tive oportunidades para gravar em diversas gravadoras. Gravei na Artefone,
na Odeon, na Colúmbia, e ultimamente na Continental. Com esta última gravadora, aconteceu-me
um fato digno de nota.
Fui com meu genro para um rancho à beira do rio Pardo, em Mococa, a fim de realizarmos
uma pescaria. Lá já se encontravam vários pescadores. Em certo momento, um deles, velho
conhecido meu, disse: “Nabor, está aí um senhor de São Paulo que deseja lhe ser apresentado.” E
saiu no mesmo instante, indo buscar a pessoa, à qual me apresentou dizendo: “Sr. Miguel, esse é o
Nabor, de quem lhe falei.” O Sr. Miguel disse-me que já me conhecia muito, de nome, e que sentia
imenso prazer por estar conhecendo-me pessoalmente. Conversamos bastante e, como não podia
deixar de ser, o assunto foi música.
No meio da conversa, o Sr. Miguel perguntou-me se eu gostaria de gravar um long play de
músicas de minha autoria. Sorri e disse: “Gostaria muito, mas atualmente isso é impossível!” E
prossegui: “O Sr. naturalmente não está a par do assunto. Imagine que para se conseguir gravar uma
ou duas músicas, já é difícil! E um long play? Só se acontecer um milagre!”.
O Sr. Miguel, sempre interessado no assunto, perguntou-me quando eu voltaria para São
Paulo. Respondi: “Amanhã”. Então ele tirou uma carta do bolso, escreveu umas linhas,
apresentando-me ao diretor-artístico da Continental, e entregou-me dizendo: “Eu vou ficar mais uns
dias aqui. Este cartão é para você, quando chegar a São Paulo, ir procurar o mais depressa possível
esta pessoa e entrar em entendimentos com ela sobre gravações. Se você não for bem sucedido,
procure-me na próxima semana, que conversaremos novamente sobre o assunto.”
Segui as instruções do Sr. Miguel e no mesmo dia da minha chegada a São Paulo procurei o
diretor-artístico da Continental. Apresentei-lhe o cartão do Sr. Miguel e expus-lhe o meu desejo de
gravar um long play. Fiquei muito surpreso com a resposta que tive imediatamente: “Sr. Nabor,
pode marcar o dia e a hora para essa gravação. E pode também escolher os elementos necessários
para acompanhá-lo.” Julguei que ele não tivesse entendido que se tratava de um long play, e
insisti, dizendo: “São doze músicas que vou gravar; quer dizer que está tudo combinado?” Ao que
ele respondeu: “Está combinado. Não é o que o Sr. deseja?”
Escolhi as doze músicas. Ensaiei-as com os acompanhantes e, alguns dias depois, a gravação
foi realizada. Para mim, até parecia um sonho!
Procurei então saber onde poderia encontrar o Sr. Miguel. No cartão que ele me havia dado
constava apenas o seu nome, Miguel Campodarte. Disseram-me que ele trabalhava lá mesmo, na
Continental. E quando eu disse que desejava falar com ele para agradecer-lhe por ter-me
apresentado ao diretor-artístico da firma, fui levado à sua presença por um funcionário.
O Sr. Miguel atendeu-me amabilíssimo, perguntando logo sobre a gravação. Declarei que
estava pronta, e que eu estava contentíssimo, não tendo mesmo palavras para agradecer-lhe a
apresentação ao diretor-artístico. O Sr. Miguel desviou habilmente o assunto, perguntando se eu já
conhecia toda a fábrica. E como eu lhe respondesse com uma negativa, demonstrando ao mesmo
tempo interesse em conhecê-la, acompanhou-me pessoalmente na visita a diversas seções. Em certo
momento, ele foi chamado ao telefone e, após desculpar-se, encarregou o diretor do departamento
de prensagem de discos para acompanhar-me no resto da visita.
Aproveitei aquela oportunidade para saber quem era o Sr. Miguel, e qual era a sua função na
gravadora. Fiquei entre surpreso e sem jeito, quando o funcionário sorrindo me disse: “O Sr. Miguel
Campodarte é o nosso Diretor-Superintendente!” O milagre tinha acontecido!
O long play foi lançado na praça e teve boa aceitação. Esgotou-se logo a primeira
prensagem de discos. Algum tempo depois, foi realizada nova prensagem, que também se esgotou
com rapidez, continuando o disco a ser procurado nas lojas de músicas por muito tempo.
Nesse long play gravamos as seguintes músicas: “Cleonice”, “Denise”, “Lúcia Helena”,
“Nilza”, “Saudade de Mococa”, “Velha amizade” (valsas), “Chorinho da velha guarda”,
“Indaiatuba querida”, “No rancho da coroa”, “Vá carregar piano”, “Totorito pescador”, “Polca da
princesa”. Essas doze músicas também foram impressas pela Editora Arlequim.
Mét odos para cl arin et a e saxof on e

Em 1947, fui procurado pelos editores Irmãos Vitale, para entrarmos em entendimentos
sobre a elaboração de um método para clarineta. Pediram-me eles que eu escrevesse um método
destinado aos principiantes desse instrumento, pois os até então existentes eram muito complicados,
e só serviam para alunos com algum adiantamento.
Declarei que não me julgava apto para um trabalho de tal envergadura, ao que eles
responderam que acreditavam na minha competência, e que se comprometiam a imprimir o método
que eu lhes apresentasse. Com tais argumentos, acedi ao pedido.
Antes de iniciar o trabalho, passei vários dias pensando em como fazê-lo. Eu não queria
copiar nem imitar os métodos até então existentes. Comecei escrevendo o que a minha experiência
como professor de clarineta ditou-me. Dos métodos tradicionais, usei apenas a escala para o
instrumento, que é uma só. Antes de entrar na parte referente à música, elaborei uma série de
conselhos indispensáveis aos principiantes de clarineta: como tratar o instrumento, asseio com ele,
modo de respirar e de sentar, etc... Logo após, escrevi os exercícios, começando por lições bem
fáceis, em semibreves, e aumentando gradativamente as dificuldades. Incluí no método uma parte
recreativa, para estimular o estudo do instrumento.
Sobre esse método, transcrevo a opinião do grande Maestro João de Souza Lima: “Seus
álbuns são precisos e oportunos, assim como os pequenos exercícios e peças recreativas, elaborados
com evidente bom gosto.”
O método mereceu também apreciações do hoje Coronel Antônio Romeo, Maestro da banda
militar. Do Maestro Armando Belardi e do meu ex-professor Alfério Mignone, pai dee Francisco
Mignone.
Teve a honra de ser oficializado pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Um
fato interessante aconteceu nessa ocasião.
Informaram-me que o Professor Cunha estava adotando o meu método em seu curso, no
citado estabelecimento de ensino musical. Por esse motivo, resolvi enviar um exemplar à direção do
Conservatório, pedindo que uma comissão de professores o examinasse e, no caso de o aprovarem,
ele fosse oficializado para o ensino de clarineta.
Demorou algum tempo a resposta a meu pedido, e eu já considerava meu trabalho recusado
como obra didática quando recebi um ofício da Diretoria do Conservatório, convidando-me para lá
comparecer, a fim de tratar de assunto do meu interesse. Fiquei deprimido com o chamado e
comentei com minha senhora: “Eles devem ter-me chamado para dizer que o método não
corresponde ao que eles necessitam.” Minha senhora disse que eu não devia ser tão pessimista, e
que, se essa fosse a resposta, eles a teriam enviado por carta, o que tornaria mais simples o assunto.
De fato! Uns dias depois, compareci ao encontro, e tive a grata satisfação de ouvir do
professor Samuel Arcanjo dos Santos, muito digno Diretor do Conservatório, as seguintes palavras:
“Nabor, o seu método é ótimo! Ele já está oficializado aqui, no Conservatório. Continue
escrevendo, para o progresso do nosso ensino musical!”.
Posteriormente, soube que o meu método estava sendo adotado em todos os conservatórios
brasileiros, e até em alguns estrangeiros.
Mét odo para saxof on e

Pouco tempo depois, tive uma nova encomenda de método musical. Desta vez, foi a Editora
Casa Manon que recorreu aos meus modestos préstimos: pediram-me que escrevesse um método
para principiantes de saxofone, nos mesmos moldes do de clarineta.
Atendi ao pedido e escrevi dois métodos para o referido instrumento, isto é, primeira e
segunda partes.
Tanto esses dois métodos como o de clarineta, desde que foram editados até hoje, estão
sendo usados nos conservatórios musicais, apesar de terem aparecido outros métodos imitando-os,
como já havia acontecido com os meus álbuns de choros.

Estaç ões de rádi o

Já contei que nos primeiros anos em São Paulo toquei em orquestras de cinemas e de teatros.
Falei de passagem na minha atuação em estações de rádio.
Iniciei no rádio quando das primeiras transmissões realizadas neste setor, em 1923, numa
garagem da rua Sete de Abril. Poucas pessoas tiveram conhecimento dessas experiências. Nelas teve
parte destacada, como diretor artístico, o consagrado compositor Alberto Marino, autor da
inesquecível valsa “Rapaziada do Brás”. No elenco artístico estavam o Sivan, o Ernesto Bevilacqua,
o Antônio Pigatti e eu.
As experiências nesse local não duraram muito tempo. Dias depois, elas passaram a ser
realizadas no Palácio das Indústrias.
Algum tempo depois, nasceu a primeira emissora oficial no Estado de São Paulo, a Rádio
Educadora Paulista.
Nessa época, ainda havia orquestras nos cinemas, e eu estava muito bem colocado,
ganhando razoavelmente, não me interessando, portanto, o trabalho no rádio. Todavia, com o
aparecimento dos filmes com sistema sonoro, em 1929, as orquestras dos cinemas foram
dispensadas da noite para o dia. Nós, os músicos que nelas trabalhávamos, ficamos na rua da
amargura!
Sendo a música nossa profissão, tivemos de procurar onde exercê-la. Alguns de nós fomos
para as estações de rádio, trabalhando com o sistema de cachês. Nessa época, muitos músicos
profissionais deixaram de sê-lo. Eu, porém, continuei firme na música... Ela era tudo para mim!
Então, comecei a atuar nas estações de rádio. Trabalhei nas rádios Record, Educadora
Paulista, Tupi, São Paulo, Excelsior, Nacional e, por último, na Rádio Gazeta, sendo que a minha
maior atuação foi nesta última emissora, onde trabalhei desde a sua inauguração, em 1943, até 1949.
Geralmente, nas estações de rádio em que atuei como integrante de orquestra, eu também
tinha programas exclusivamente meus, nos quais executava os choros de minha autoria, com
acompanhamento de grupo regional. Esse foi um dos motivos dessas músicas terem ficado muito
conhecidas, e até hoje estarem sendo vendidas em todo o nosso país.
Orqu est ra si n fôn ic a

Em 1950, foi oficialmente instituída a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Há


alguns anos, já vinha funcionando, aqui na Capital, uma orquestra sinfônica, em caráter semi-oficial,
quer dizer, sob contrato que anualmente era renovado.
Também participei dessa orquestra, desde a sua organização, ocupando o lugar de segundo
clarinetista. Com a oficialização dela, coincidiu haver uma vaga para primeiro clarinetista, e para o
preenchimento dessa vaga, e também o de outras vagas de outros instrumentos, foi instituído um
concurso.
A comissão examinadora declarou-me dispensado dos exames, pois já conhecia bem o meu
trabalho, e me considerava bastante competente para assumir o cargo de primeiro clarinetista. Eu,
porém, quis submeter-me às provas, e recusei a confiança em mim depositada. Assim sendo, prestei
exame, fui aprovado com distinção e assumi o cargo. Nele fiquei durante trinta anos, vinte dos quais
oficialmente nomeado.
Durante esse período, tomei parte em todas as atuações da Orquestra, as quais incluíam
concertos, óperas e balés. Também tive a honra e o prazer de acompanhar grandes solistas, entre os
quais: os pianistas Guiomar Novaes, Antonieta Rudge, Magdalena Tagliaferro, Ana Stella Schic,
João de Souza Lima, Arnaldo Estrela, Arthur Rubinstein; grandes violinistas, como Ricchi, Said
Menuhin e Raul Laranjeira; e grandes violonistas, como André Segovia e Barbosa Lima.
Toquei sob a batuta de alguns dos mais célebres regentes do mundo: os maestros Baldi,
Tullio Serafini, Ormandy, Edoardo De Guarnieri, Ernesto Melich, Franco Ghioni, Nino Stinco, Wolf,
Leopold Stokowsky, Kachaturian, Heinz Geyer, João de Souza Lima, Armando Belardi, Camargo
Guarnieri, Rodinsky, Francisco Mignone e muitos outros.

M arch a “Preside n te K en n edy”

Em 1963, quando tragicamente desaparecia o grande presidente americano John Fitzgerald


Kennedy, escrevi uma marcha, dedicando-a à sua memória. Essa música tem o estilo das marchas
de Souza. Foi gravada pela Banda da Força Pública do Estado de São Paulo, sob a regência do
Maestro Capitão Alcide Degobbi.
Enviei-a ao governo americano, por intermédio do seu embaixador, Lincoln Gordon, a quem
a entreguei pessoalmente.
Alguns meses depois, recebi um ofício da Embaixada Americana no Rio de Janeiro,
comunicando-me que a minha música tinha sido entregue nos Estados Unidos, e se encontrava no
Museu Kennedy, fazendo parte do seu acervo.
Mai s al gu mas com posiçõ es

Além das músicas impressas, escrevi um grande número de peças em diversos estilos, que
ainda estão inéditas. São marchas, polcas, mazurcas, romances, canções e um álbum de músicas
infantis. Ultimamente, compus uma valsa-balé, à qual dei o nome de “Brasília”, em homenagem à
nossa bela capital. Também escrevi uma marcha em homenagem ao meu amigo Maestro Major
Rubens Leonelli. Espero dentro de pouco tempo ter a satisfação de ouvir estas duas composições
gravadas pela Banda da Polícia Militar, sob a sua impecável regência.
E continuarei compondo, enquanto tiver inspiração. A música está dentro de mim, pede para
sair e não há jeito de contê-la. As composições que não consegui imprimir, nem gravar, deixo-as
para os meus descendentes. Tanto as impressas como as inéditas são a marca da minha passagem
por este mundo de Deus.
Já posso dizer que plantei uma árvore, tenho uma filha e escrevi três métodos musicais.
E aqui continuo, na capital, onde estou desde 1922. No setor musical, trabalhei em todos os
ramos. Hoje, estou aposentado como clarinetista solista da Orquestra Sinfônica Municipal. Também
não atuo mais em rádio, e nem leciono; apenas, como já disse, continuo compondo.
Vivo das recordações dos velhos tempos, e o meu pensamento se volta para Indaiatuba,
sempre que:

O sino da tarde
a dondolear
com muita saudade
me vem recordar
os tempos da infância,
de ameno folgar,
vivendo feliz
a rir e a brincar

O sino da tarde
solene a bater
nos traz à lembrança
o alegre viver
sem ter dissabores,
só riso e prazer,
por verdes campinas
brincando a correr.

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