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Resumo: O ensaio trata do filme A Má Educação, de Pedro Almodóvar, tecendo uma reflexão
sobre a violência inerente à constituição psicossexual do sujeito. Ao mesmo tempo, ele trata da
questão essencial de como a arte, e em especial o cinema, agiria sobre a subjetividade, lançando
perspectivas teóricas para uma contribuição psicanalítica a respeito da questão da imagem.
Uma boa educação há tempos mês. Não é à toa que se fala do gozo
veio domar a sexualidade, pondo-a a sexual, em francês, como uma peque-
serviço do amor ou, pela via oposta, na morte.
fazendo do sexo uma espécie de espor- A má educação de Almodóvar é
te onde se trataria de ganhar ou não nos lembrar tudo isso. Com este filme,
prazer, ou ainda acumular prazer ou o cineasta retoma a virulência que mar-
parceiros, segundo a lógica capitalista. cava suas primeiras obras, abandonan-
O sexual continua, porém, resistindo a do o melodrama que fez de Carne Trê-
tal domesticação, selvagem; ele surge mula (1997), Tudo Sobre Minha Mãe
em sua violência, de forma fugaz, em (1998) e Fale com Ela (2001) grandes
instantes que em geral preferimos rapi- sucessos de público. Ele afirma em sua
damente esquecer. Nesses momentos o homepage oficial que A Má Educação
desejo mostra sua face ameaçadora e o é um filme noir, ou ao menos assim
prazer revira-se em violência, escon- gosto de considerá-lo1. Os temas aí tra-
dendo mal o horror que é seu irmão sia- tados são, sem dúvida, sombrios, o di-
1
Http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios, retirado da web
em 08/12/2004. A autora traduz esta e as demais citações.
2
Citado por Barbosa, N., Má Educação, in Cineweb (http:www.cineweb.com.br/em cartaz/
emcartaz.asp?idfilme=1278, retirado da web em 08/12/2004).
3
ASPDEN, P., Lessons in a Forbidden Passion, in Financial Times, Londres, 20 de maio de 2004, p. 10 (Arts).
4
Citado por Strauss, B., Má Educação, a Escola do Escândalo de Almodóvar, in http://noticias.uol.com.br/
midiaglobal/outros/2004/12/05/ult586u206.jhtm (tradução de artigo publicado no The New York Times).
ao citar o escritor espanhol Paco Um- na, Juan e o Sr. Berenguer vão assistir a
bral: Tudo o que não é autobiografia é uma mostra de filmes noir. Ao deixar a
plagio5. sala de cinema, Berenguer comenta:
Entre plágio e autobiografia, é de Parece que todos esses filmes falam de
notar que o próprio Almodóvar canta- nós. Será que La Mala Educación fala
va em seus tempos de colégio e afirmou de nós? Essa é a terrível pergunta que o
em entrevista concedida a Frédéric filme nos lança. Ou falaria ele apenas
Strauss, publicada em livro em 1994, do passado de um diretor de cinema,
que muitas vezes foi o escolhido por portanto de um só homem, ou de uma
algum padre de seu colégio para cele- só questão, a da pedofilia, ou ainda a
brar uma missa a dois, prática segundo da homossexualidade, ou ainda da per-
ele comum entre os salesianos. Esta versidade que levaria alguém a matar o
missa se convertia assim, para o padre, próprio irmão?
em um ato noturno, secreto, íntimo. A A Má Educação fala do sexual em
criança podia não perceber mas tudo toda sua violência, do erotismo conju-
se passava como se o padre lhe disses- gado à morte a que aludi há pouco com
se: eu celebro esta missa para você6. Bataille sem dúvida influenciado por
Uma cena onde uma missa desse tipo Freud, que aponta essa terrível conjun-
se realiza já havia aparecido em A Lei ção antes e melhor do que ninguém,
do Desejo (1986), antes de A Má Edu- com sua revolucionária pulsão de mor-
cação. Mas talvez não importe muito, te8. O filme denuncia que nunca esta-
como defende o diretor, se tratar ou não mos totalmente prontos para suportar
de sua vida real. O mais importante é o que o sexo aponta de mortífero, e que
que isso possa deter alguma verdade. o erotismo carrega uma potência trau-
Afinal o cinema, nota Almodóvar, é mática que tratamos de neutralizar em
uma representação em todos os aspec- nosso dia-a-dia. Mostra que o sexo gira
tos do termo, é através dessa represen- em torno de um ponto insondável e
tação que eu chego à verdade da reali- terrível que não podemos abordar se-
dade7. Que se chegue a alguma verda- não através da ficção, e que uma dessas
de, a partir de uma assumida e reafir- ficções fundamentais que nos constitu-
mada representação: tal é a condição em, de forma recôndita, e que a psica-
para que o cinema funcione, ou seja, nálise denomina fantasias, é a fantasia
nos atinja, seja gerando elogios ou con- de sedução. A cena de sedução da cri-
trovérsias, ou até mesmo críticas. A ança por um adulto dá conta do enig-
verdade, como tanto afirma Lacan, tem ma da origem do sexual e é violenta por
uma estrutura de ficção e não é a ela definição, pois deixa no corpo uma
que buscamos, à nossa verdade, quan- marca de gozo seja ela claramente
do vamos ao cinema? subjugante, quando o adulto, professor
Querendo matar o tempo enquan- ou padre, abusa de seu poder para fazer
to levam Ignácio à morte graças a uma da criança seu objeto sexual, seja ela
bela dose de heroína de pureza assassi- amorosa, quando o adulto que dela cui-
5
ALMODÓVAR, P., Autoentrevista, in http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/
malaeducacion/esp_auto.htm, retirado da web em 08/12/2004.
6
Pedro Almodóvar. Conversations avec Frédéric Strauss, s/l, Editions de LÉtoile/Cahiers du Cinéma, 1994, p. 46.
7
Id., p. 75.
8
Cf. FREUD, S. Além do Princípio de Prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
(ESB), Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVIII, p. 13-85.
da lhe faz sua higiene íntima, por exem- le11. Ignácio deixou de ser um anjo can-
plo, como já notava Freud9. A sexuali- tor e caiu para reencarnar, por fim, em
dade vem do outro, e divide o sujeito. Juan como anjo exterminador12. Viola-
A entrada deste na linguagem já é trau- ção, como conclui ainda Bataille, li-
mática per se, como sabemos, ao instau- mítrofe ao ato de matar13.
rar esse campo de gozo e de opacidade Também em Fale com Ela trata-se
à significação que o outro, inconscien- do sexo como violação, estupro. A bela
temente, porta e veicula. e jovem Alicia (Leonor Watling) en-
Eu o amava, diz o padre Manolo carna uma inocência suprema não sem
a Zahara referindo-se a Ignácio. Ao que volúpia, tão bela quanto adormecida
Juan-Zahara-Ignácio responde: A um em seu leito. Em torno dessa imagem
menino de dez anos não se ama, dele gira todo o melodrama, e por ela se se-
se abusa. De fato. Esse amor sexual é duz Benigno (Javier Camara), que a
traumático para a criança, ele a fere e engravidará e em conseqüência disso
divide, como mostra espetacularmente terminará, sem saber, salvando-a do
Almodóvar ao fazer cair o menino acos- coma. Ali o estupro salva, enquanto
sado pela paixão do padre, sangrando aqui a investida pedófila leva a um des-
na fronte e literalmente se dividindo tino de sofrimento que culmina com a
então, cortado pelo vermelho-sangue morte, o assassinato. Mas em ambos se
que escorre por seu rosto. O que sig- encena, faz espetáculo, uma imagem
nifica o erotismo dos corpos senão a arrebatadora. Em Fale com Ela essa ima-
violação do ser dos parceiros, já per- gem é a da moça adormecida que nos
guntava Bataille10. A inocência divina seduz e com quem devemos falar para
de Ignácio que faz dele a imagem por não sermos tragados, para que não pe-
excelência do filme então se perde, ele netremos nela e em seu corpo nos per-
se dividirá a partir daí em travesti, Ig- camos como acontece no pequeno tre-
nácio-Zahara, Juan, Ángel. Anjo caí- cho de cinema mudo dentro do filme,
do. o Amante Minguante que nos apre-
O menino Ignácio, sexualmente senta Almodóvar.
despertado pelo desejo do outro, se Em A Má Educação, é a imagem de
entregará então a Manolo espontane- Ignácio menino angelical que nos co-
amente, numa atitude dúbia que visa- move e que se perpetua depois de sua
ria proteger seu objeto de amor, Enri- perda, à maneira da notícia de jornal
que. Ignácio se deixará abusar como a que Enrique lê para seu assistente na
moça que, na poderosa imagem que fe- abertura do filme: um rapaz morre de
cha o filme encantando a Enrique, se frio em plena Nacional 4, e continua
atira aos crocodilos e se abraça a um estranhamente a rodar por mais de 90
deles, sem soltar um pio até ser inteira- kilômetros, até ser detido por policiais.
mente devorada. O erotismo envolve De fato, em Juan-Ángel a imagem de
uma violação limítrofe ao limiar da Ignácio se prorroga para Enrique, não
morte, como já dissemos com Batail- sem estranheza, até a revelação de sua
9
Cf., por exemplo, Freud, S. Sexualidade Feminina (1931). In: ESB, v. XXI, p. 267 e 275.
10
Bataille, G., O Erotismo. Ensaio. São Paulo: Arx, 2004, p. 28.
11
Bataille, G., ibidem
12
Como nota finamente Ángel Fernandez Santos em sua crítica La Perversidad del Ángel (in El País,
Madrid, 19 de maio de 2004, p. 52 (Espectáculos)).
13
BATAILLE, G., ibidem.
14
LACAN, J. Maurice Merleau-Ponty (1961). In: Autres Écrits, Paris: Seuil, 2001, p. 183.
15
LACAN, J. Le Séminaire Livre X. LAngoisse. Paris: Seuil, 2004, p. 190.
16
LACAN, J. La Logique do Fantasme. Compte Rendu du Séminaire 1966-1967 (1969). In: Autres Écrits, idem, p. 219.
17
Pedro Almodóvar. Conversations avec Frédéric Strauss, idem, p. 73.