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ANO 12 / NÚMERO 134 R$ 14,90

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DEZ ANOS DE CRISE EDUCAÇÃO DOCUMENTÁRIO CENSURADO
LIBERAIS OU POPULISTAS: A MILITARIZAÇÃO DAS COMO ISRAEL ESPIONA
UMA FALSA OPÇÃO ESCOLAS PÚBLICAS NORTE-AMERICANOS
POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT POR RUDÁ RICCI POR ALAIN GRESH

00134

LE MONDE 9 771981 752004

diplomatique
BRASIL

O PLANO
CONSERVADOR
2 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

LIBERAIS VS. POPULISTAS, UMA DIVISÃO ENGANOSA

Dez anos de crise


As respostas dadas à crise de 2008 desestabilizaram a ordem política e geopolítica. Há tempos vistas como a forma última
de governo, as democracias liberais estão na defensiva. Perante as “elites” urbanas, as direitas nacionalistas encampam uma
contrarrevolução cultural no campo da imigração e dos valores. Contudo, elas perseguem o mesmo projeto econômico de seus
rivais. O peso excessivo jogado pela mídia nessa clivagem visa constranger a população a escolher entre esses dois males
POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT*

B
udapeste, 23 de maio de 2018. – e sem se preocupar com a OMC. Tur-
De jaqueta escura e camisa ro- quia, Rússia, Irã, União Europeia, Ca-
xa solta, aberta, sobre uma ca- nadá, China: a cada semana, um lote
miseta, Stephen Bannon se co- de sanções comerciais contra Estados,
loca diante de uma plateia de amigos ou não, que Washington tem
intelectuais e notáveis húngaros. “O como alvo. A invocação da “segurança
pavio que incendiou a Revolução nacional” permite que o presidente
Trump foi aceso em 15 de setembro, às Trump dispense a aprovação do Con-
9 da manhã, quando o Lehman Bro- gresso, onde os parlamentares e os lo-
thers foi forçado à falência.” O ex-es- bbies que financiam suas campanhas
trategista da Casa Branca não ignora: continuam comprometidos com o
ali, a crise foi particularmente violen- livre-comércio.
ta. “As elites salvaram a si próprias. de mercado a forma acabada da histó- mem há muito convencido de que, lon- Nos Estados Unidos, a China está
Elas socializaram totalmente o risco”, ria. O necrotério de uma tecnocracia ge de ser lucrativa para seu país, a glo- obtendo mais consenso, mas contra
continua o ex-vice-presidente do ban- untuosa, transferida para Nova York balização tinha precipitado seu ela. Não apenas por razões comerciais:
co Goldman Sachs, cujas atividades ou Bruxelas, impondo medidas impo- declínio e assegurado a decolagem de Pequim também é percebida como a
políticas são financiadas por fundos pulares em nome da expertise e da seus concorrentes estratégicos. Com rival estratégica por excelência. Além
especulativos. O cidadão comum foi modernidade, abriu o caminho para ele, a “América primeiro” tem prece- de gerar desconfiança por sua força
socorrido? Esse “socialismo para os ri- governos falastrões e conservadores. dência sobre o “ganha-ganha” dos de- econômica, oito vezes maior que a da
cos” teria provocado em vários pontos De Washington a Varsóvia, passan- fensores do livre-comércio. Por exem- Rússia, e por suas tentações expansio-
do globo uma “verdadeira revolta po- do por Budapeste, Trump, Jarosław plo, em 4 de agosto, em Ohio, um nistas na Ásia, seu modelo político au-
pulista. Em 2010, Viktor Orbán voltou Kaczynski e Orbán reivindicam tan- estado industrial geralmente disputa- toritário concorre com o de Washing-
ao poder na Hungria”; ele foi o “Trump to capitalismo quanto Barack Oba- do, mas onde ele atingiu mais de oito ton. Além disso, ainda que sustente
antes de Trump”. ma, Angela Merkel, Justin Trudeau e pontos à frente de Hillary Clinton, o que sua teoria de 1989 sobre o triunfo
Uma década depois da tempestade Emmanuel Macron; mas um capitalis- presidente dos Estados Unidos recor- irreversível e universal do capitalismo
financeira, o colapso econômico global mo transmitido por outra cultura, “an- dou o déficit comercial fabuloso (e liberal permanece válida, o cientista
e a crise da dívida pública na Europa de- tiliberal”, nacional e autoritária, exal- crescente) de seu país – “US$ 817 bi- político norte-americano Francis Fu-
sapareceram dos terminais da Bloom- tando o país profundo, e não os valores lhões por ano!” –, antes de fornecer a kuyama a ela acrescenta um ponto es-
berg, onde cintilam as curvas vitais do das grandes metrópoles. explicação para ele: “Não quero mal sencial: “A China é de longe o maior
capitalismo. Mas sua onda de choque Uma fratura divide as classes do- aos chineses. Mas mesmo eles não desafio à narrativa do ‘fim da história’,
amplificou dois grandes distúrbios. minantes. Ela é encenada e amplifica- conseguem acreditar que nós os dei- uma vez que se modernizou economi-
Em primeiro lugar, o da ordem in- da pela mídia, que reduz o horizonte xamos agir tanto à nossa custa! Real- camente, permanecendo uma ditadu-
ternacional liberal da era pós-Guerra das possíveis escolhas políticas possí- mente reconstruímos a China; é hora ra. [...] Se, ao longo dos próximos anos,
Fria, centrada na Organização do Tra- veis a esses dois irmãos inimigos. Ora, de reconstruir nosso país! Ohio per- seu crescimento continuar e ela se
tado do Atlântico Norte (Otan), nas os recém-chegados visam tanto quan- deu 200 mil empregos industriais de- mantiver como a maior potência eco-
instituições financeiras ocidentais e to os outros enriquecer os ricos, mas pois que a China [em 2001] entrou para nômica do mundo, admitirei que mi-
na liberalização do comércio. Se, ao explorando o sentimento que o libera- a Organização Mundial do Comércio. nha tese foi definitivamente refuta-
contrário do que prometia Mao Tsé- lismo e a social-democracia inspiram A OMC, um desastre total! Por déca- da”.1 No final, Trump e seus adversários
-tung, o vento do leste ainda não pre- a uma porção muitas vezes majoritária das, nossos políticos permitiram que internos convergem pelo menos em
valece sobre o vento do oeste, a recom- das classes populares: um desgosto outros países roubassem nossos em- um ponto: o primeiro considera que a
posição geopolítica começou: cerca de misturado com raiva. pregos, tirassem nossa riqueza e sa- ordem internacional liberal é muito
trinta anos depois da queda do Muro queassem nossa economia”. cara para os Estados Unidos; os ou-
de Berlim, o capitalismo de Estado “RECONSTRUÍMOS A CHINA” No início do século passado, o pro- tros, que o sucesso da China ameaça
chinês amplia sua influência; com ba- A resposta à crise de 2008 expôs, tecionismo impulsionou a decolagem deitá-la por terra.
se na prosperidade de uma classe mé- sem permitir a possibilidade de des- industrial dos Estados Unidos, assim Da geopolítica à política há apenas
dia em ascensão, a “economia socia- viar o olhar, três negações à ladainha como a de muitas outras nações; os um passo. A globalização causou a
lista de mercado” liga seu futuro à sobre o bom governo que os líderes de impostos alfandegários financiaram destruição de empregos e a queda dos
contínua globalização do comércio, centro-direita e de centro-esquerda por muito tempo o poder público, já salários no Ocidente – sua participa-
que está minando a indústria manufa- alardeavam desde o colapso da União que o imposto de renda não existia an- ção nos Estados Unidos passou de 64%
tureira da maioria dos países ociden- Soviética. Nem a globalização, nem a tes da Primeira Guerra Mundial. Ci- para 58% do PIB apenas nos últimos
tais – incluindo a dos Estados Unidos, democracia, nem o liberalismo saí- tando William McKinley, presidente dez anos, uma perda anual igual a US$
que o presidente Donald Trump pro- ram ilesos. republicano de 1897 a 1901 (que foi as- 7.500 por trabalhador! 2
meteu, em seu primeiro discurso ofi- Primeiro, a internacionalização da sassinado por um anarquista), Trump Ora, foi precisamente nas regiões
© Daniel Kondo

cial, salvar da “carnificina”. economia não é boa para todos os paí- insiste: “Ele entendeu a importância industriais devastadas pela concor-
O abalo de 2008 e seus tremores se- ses, nem mesmo para a maioria dos as- decisiva das tarifas alfandegárias para rência chinesa que os trabalhadores
cundários também sacudiram a or- salariados do Ocidente. A eleição de manter o poder de um país”. A Casa norte-americanos se voltaram mais
dem política, que via na democracia Trump levou à Casa Branca um ho- Branca agora recorre a elas sem hesitar para a direita nos últimos anos. É claro
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 3

que essa mudança eleitoral pode ser rio de suas promessas, os líderes libe- para nenhum governo, nenhum parla- dos piores desastres econômicos au-
atribuída a uma série de fatores “cul- rais, tanto de direita como de esquerda, mento, especialmente para o Parla- toinfligidos já observados”, observa o
turais” (sexismo, racismo, apego a ar- reforçam essa suspeita em quase toda mento Europeu”.8 É a assembleia, no historiador Adam Tooze.11
mas de fogo, hostilidade ao aborto e eleição. Para romper com as políticas entanto, na qual Moscovici aspira a O descrédito da classe dirigente e a
casamento entre pessoas do mesmo conservadoras de seus antecessores, ocupar um lugar no próximo ano. reabilitação do poder do Estado só po-
sexo etc.). Mas devemos observar uma Obama reduziu os déficits públicos, Autoritário e “antiliberal” à sua diam abrir o caminho para um novo
explicação econômica pelo menos comprimiu os gastos sociais e, em vez maneira, esse desprezo pela soberania estilo de governo. Quando perguntado
igualmente convincente: enquanto o de instaurar um sistema público de popular alimenta um dos mais pode- em 2010 se o fato de ascender ao poder
número de condados que concentram saúde, impôs aos norte-americanos a rosos argumentos de campanha dos em plena tempestade global o preocu-
mais de 25% dos empregos norte-ame- compra de um seguro médico de um líderes conservadores de ambos os la- pava, o primeiro-ministro húngaro
ricanos do setor manufatureiro entrou cartel privado. Na França, Nicolas Sar- dos do Atlântico. Ao contrário de par- sorriu: “Não, eu amo o caos. Porque,
em colapso de 1992 a 2016, passando kozy aumentou em dois anos a idade tidos de centro-esquerda ou de centro- com base nele, posso construir uma
de 862 para 323, o equilíbrio entre os da aposentadoria que ele havia se com- -direita, que se comprometem sem nova ordem. A ordem que eu quero”.12
votos dos democratas e dos republica- prometido formalmente a não alterar; fornecer os meios para reanimar uma Mas, em vez de garantir direitos so-
nos nesses locais se metamorfoseou. François Hollande fez votar um pacto democracia moribunda, Trump e Or- ciais incompatíveis com as exigências
Há um quarto de século, eles estavam de estabilidade europeu, que ele tinha bán, assim como Kaczynski na Polônia dos proprietários, o poder público
divididos quase igualmente entre os prometido renegociar. No Reino Uni- e Matteo Salvini na Itália, apoiam sua afirma-se fechando as fronteiras para
dois principais partidos (cerca de qua- do, o líder liberal Nick Clegg juntou-se, agonia. Conservam apenas o voto ma- os migrantes e proclamando-se um
trocentos cada); em 2016, 306 escolhe- para surpresa geral, ao Partido Conser- joritário e revertem as cartas: ao auto- fiador da “identidade cultural” da na-
ram Trump, e 17, Hillary Clinton.3 Pro- vador, e, em seguida, transformado em ritarismo independente do Estado e ção. O arame farpado marca então o
movida por um presidente democrata vice-primeiro-ministro, concordou em especialista de Washington, Bruxelas retorno do Estado.
– Bill Clinton, precisamente –, a ade- triplicar o valor das taxas universitá- ou Wall Street, eles opõem um autori- No momento, essa estratégia que
são da China à OMC deveria acelerar a rias que ele tinha jurado eliminar. tarismo nacional e direto que apresen- recupera, desvia e distorce uma de-
transformação desse país em uma so- Na década de 1970, alguns partidos tam como uma reconquista popular. manda popular de proteção parece
ciedade capitalista liberal. Isso jogou comunistas da Europa ocidental suge- funcionar. Basta dizer que as causas
os trabalhadores norte-americanos riram que seu eventual acesso ao po- INTERVENCIONISMO MACIÇO da crise financeira que fez descarrilar
contra a globalização, o liberalismo e o der por meio das urnas seria um “bi- Depois daquelas relacionadas à glo- o mundo permanecem intactas, mes-
voto democrata... lhete de ida”, pois a construção do balização e à democracia, a terceira ne- mo quando a vida política de países
Pouco antes da queda do Lehman socialismo, uma vez lançada, não po- gação feita pela crise no discurso domi- como a Itália, a Hungria ou regiões co-
Brothers, o ex-presidente do Federal deria depender dos caprichos eleito- nante dos anos anteriores se refere à mo a Baviera parece assombrada pela
Reserve, Alan Greenspan, explicava rais. A vitória do “mundo livre” sobre a eliminação do papel econômico do po- questão dos refugiados. Alimentada
tranquilamente: “Graças à globaliza- hidra soviética acomodou esse princí- der público. Tudo é possível, mas não pelas prioridades dos campi norte-a-
ção, as políticas públicas dos Estados pio com mais astúcia: o direito de voto para todo mundo: raramente a de- mericanos, uma parte da esquerda
Unidos foram amplamente substituí- não está suspenso, mas ele vem com o monstração desse princípio foi admi- ocidental, moderada demais ou radi-
das pelas forças globais do mercado. dever de confirmar as preferências das nistrada com tanta clareza quanto na cal demais, adora afrontar a direita
Fora as questões de segurança nacio- classes dominantes. Caso contrário, década passada. Criação maciça de di- nesse terreno.13
nal, a identidade do próximo presiden- pode ser preciso começar de novo. “Em nheiro, nacionalizações, desdém pelos Em resposta à grande recessão, os
te quase não tem mais importância”.4 1992”, lembra o jornalista Jack Dion, tratados internacionais, ação discricio- líderes de governo desvelaram, por-
Dez anos depois, ninguém retomaria “os dinamarqueses votaram contra o nária dos eleitos etc.: para salvar sem tanto, a farsa democrática, a força do
tal diagnóstico. Tratado de Maastricht: eles foram for- contrapartida as instituições bancárias Estado, a natureza bastante política da
Nos países da Europa central, cuja çados a retornar às urnas. Em 2001, os das quais dependia a sobrevivência do economia e a inclinação antissocial de
expansão ainda é baseada nas expor- irlandeses votaram contra o Tratado de sistema, a maioria das operações de- sua estratégia geral. O ramo que os
tações, o questionamento da globali- Nice: eles foram forçados a retornar às cretadas impossíveis e impensáveis foi abrigava se viu fragilizado, como evi-
zação não diz respeito às trocas co- urnas. Em 2005, os franceses e os ho- realizada sem um tiro em ambos os la- denciado pela instabilidade eleitoral
merciais. Mas os “homens fortes” no landeses votaram contra o Tratado dos do Atlântico. Esse intervencionis- que refaz os mapas políticos. Desde
poder denunciam a imposição pela Constitucional Europeu (TCE): este mo maciço revelou um Estado forte, ca- 2014, a maior parte das eleições oci-
União Europeia de “valores ociden- lhes foi imposto sob o nome de Tratado paz de aproveitar seu poder em uma dentais assinala uma decomposição
tais” considerados fracos e decaden- de Lisboa. Em 2008, os irlandeses vota- área onde ele parecia ter deposto a si ou um enfraquecimento das forças
tes, porque favoráveis à imigração, à ram contra o Tratado de Lisboa: foram mesmo.9 Mas, se o Estado é forte, é em tradicionais e, simetricamente, a as-
homossexualidade, ao ateísmo, ao fe- obrigados a votar de novo. Em 2015, primeiro lugar para garantir um qua- censão de personalidades ou de cor-
minismo, à ecologia, à dissolução da 61,3% dos gregos votaram contra o pla- dro estável para o capital. rentes antes marginais que contestam
família etc. Eles também contestam a no de ajuste de Bruxelas – que ainda as- Inflexível quando se tratava de re- as instituições dominantes, muitas ve-
natureza democrática do capitalismo sim lhes foi impingido.”6 duzir os gastos sociais para levar o dé- zes por razões opostas, como Trump e
liberal. Não sem fundamento, no últi- Exatamente naquele ano, falando a ficit público para menos de 3% do PIB, Bernie Sanders, ambos críticos de Wall
mo caso. Porque, em matéria de igual- um governo de esquerda eleito poucos Jean-Claude Trichet, presidente do Street e da mídia. O mesmo cenário do
dade de direitos políticos e civis, a meses antes e forçado a administrar Banco Central Europeu de 2003 a 2011, outro lado do Atlântico, onde os novos
questão de saber se as mesmas regras um tratamento de choque liberal à sua admitiu que os compromissos finan- conservadores consideram a constru-
se aplicam a todos se viu mais uma população, o ministro das Finanças ceiros assumidos no final de 2008 pelos ção europeia muito liberal nos planos
vez desafiada após 2008: “Nenhuma alemão, Wolfgang Schäuble, resumiu chefes de Estado para salvar o sistema social e migratório, enquanto as novas
acusação foi feita contra um agente fi- o escopo que confere ao circo demo- bancário representavam em meados vozes de esquerda, como o Podemos
nanceiro de alto nível”, destaca o jor- crático: “As eleições não devem permi- de 2009 “27% do PIB da Europa e dos na Espanha, A França Insubmissa e Je-
nalista John Lanchester. Durante o es- tir que se altere a política econômica”.7 Estados Unidos”.10 Dezenas de milhões remy Corbyn à frente do Partido Tra-
cândalo das poupanças dos anos Por sua vez, Pierre Moscovici, comissá- de desempregados, de expropriados e balhista no Reino Unido, criticam suas
1980, 1.100 pessoas tinham sido acu- rio europeu para assuntos econômicos de doentes despejados em hospitais políticas de austeridade.
sadas.5 Os detentos de uma peniten- e monetários, explicaria depois: “Vinte com falta de medicamentos, como na Como não pretendem virar a mesa,
ciária francesa já diziam de forma e três pessoas, com seus auxiliares, to- Grécia, nunca tiveram o privilégio de apenas mudar os jogadores, os “ho-
zombeteira no século passado: “Quem mam – ou não – decisões fundamen- constituir um “risco sistêmico”. “Por mens fortes” podem obter o apoio de
rouba um ovo vai preso; quem rouba tais para milhões de outras – os gregos, meio de suas escolhas políticas, os go- uma fração das classes dominantes.
um boi vai para o Palais Bourbon [As- no caso –, seguindo parâmetros ex- vernos da zona do euro mergulharam Em 26 de julho de 2014, na Romênia,
sembleia Nacional francesa]”. traordinariamente técnicos, decisões dezenas de milhões de seus cidadãos Orbán anunciou a posição em um re-
O povo escolhe, mas o capital deci- isentas de qualquer controle democrá- nas profundezas de uma depressão se- tumbante discurso: “O novo Estado
de. Ao governarem no sentido contrá- tico. O Eurogrupo não presta contas melhante à da década de 1930. É um que estamos construindo na Hungria
4 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

é um Estado antiliberal: um Estado a crescente abstenção das classes po- janeiro de 2018 em Davos, “podemos eclosão da crise financeira, a luta vito-
não liberal”. Mas, ao contrário do que a pulares, o “voto útil” provocado pela re- corrigir o quadro, mas não alterá-lo”. riosa contra a “ordem brutal e perigo-
mídia tradicional repisa desde então, pulsa que os “extremos” inspiravam e a A globalização, Obama admite, foi sa” que está surgindo exige algo bem
seus objetivos não se limitavam à re- pretensão dos partidos centrais de re- acompanhada por erros e pilhagens. diferente – de início, o desenvolvimen-
jeição do multiculturalismo e da “so- presentar os interesses combinados da Ela enfraqueceu o poder dos sindica- to de uma força política capaz de com-
ciedade aberta” e à promoção dos va- burguesia e da classe média. Mas os de- tos. Ela “permitiu ao capital escapar bater simultaneamente os “tecnocra-
lores familiares e cristãos. Ele também magogos reacionários agora mobili- dos impostos e das leis dos Estados tas esclarecidos” e os “bilionários
anunciava um projeto econômico, o zam os abstencionistas; a grande reces- mudando de lugar centenas de bilhões enraivecidos”,19 recusando, assim, o
de “construir uma nação competitiva são enfraqueceu a classe média; e as de dólares com um simples toque nu- papel da força de apoio de um dos dois
na grande concorrência global das arbitragens políticas dos “moderados” ma tecla de computador”. Certo, mas e blocos que, cada um a seu modo, colo-
próximas décadas”. “Nós considera- e seus brilhantes conselheiros desen- o remédio? Um “capitalismo inclusi- cam a humanidade em perigo.
mos”, ele disse, “que uma democracia cadearam a crise do século... vo”, iluminado pela moralidade hu-
não deve necessariamente ser liberal e O desencanto em relação à utopia manista dos capitalistas. Só esse cau- *Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é
que não é porque um Estado deixa de das novas tecnologias vem se juntar à terizador em uma perna de madeira membro da direção do Le Monde Diplomatique.
ser liberal que deixa de ser uma demo- amargura dos entusiastas da socieda- pode, segundo ele, corrigir alguns dos
cracia.” Tomando como exemplo a de aberta. Ontem celebrados como os defeitos do sistema. Desde que ele não
1 Francis Fukuyama, “Retour sur ‘La fin de l’histoi-
China, a Turquia e Cingapura, o pri- profetas de uma civilização liberal li- veja nenhum outro na loja e que, no re?’” [Retorno sobre “O fim da história”?], Com-
meiro-ministro húngaro devolveu ao bertária, os empresários democratas fundo, aquele lhe sirva bem... mentaire, n.161, Paris, primavera 2018.
remetente a frase “Não há alternativa”, do Vale do Silício construíram uma O ex-presidente norte-americano 2 William Galston, “Wage stagnation is everyone’s
problem” [A estagnação salarial é problema de to-
de Margaret Thatcher: “As sociedades máquina de vigilância e de controle não nega que a crise de 2008 e as más dos], The Wall Street Journal, Nova York, 14 ago.
que têm uma democracia liberal como social tão poderosa que o governo chi- respostas que foram dadas a ela (inclu- 2018. Sobre a destruição de empregos em razão
base provavelmente não conseguirão nês a imita para manter a ordem. A es- sive por ele, diga-se) favoreceram o da globalização, cf. Daron Acemo’ler et al., “Import
competition and the great US employment sag of
manter sua competitividade nas pró- perança de uma ágora global impul- surgimento de uma “política do medo, the 2000s” [Importar a concorrência e a grande
ximas décadas”.14 Tal conformação sionada por uma conectividade do ressentimento e da contenção”, da queda do emprego dos Estados Unidos nos anos
atrai os líderes poloneses e tchecos, universal entra em colapso, para des- “popularidade dos homens fortes”, de 2000], Journal of Labor Economics, v.34, n.S1,
Chicago, jan. 2016.
mas também os partidos de extrema gosto de alguns que outrora comunga- um “modelo chinês de controle autori- 3 Bob Davis e Dante Chinni, “America’s factory towns,
direita francês e alemão. vam com ela: “A tecnologia, pelas ma- tário considerado preferível a uma de- once solidly blue, are now a GOP haven” [As cidades
nipulações que permite, pelas fake mocracia percebida como desordena- industriais norte-americanas, outrora solidamente
azuis, são agora um refúgio do Partido Republicano],
O LENGA-LENGA DO “CAPITALISMO INCLUSIVO” news, mas ainda mais porque veicula da”. Mas ele atribui a responsabilidade e Bob Davis e Jon Hilsenrath, “How the China shock,
Diante do brilhante sucesso de seus emoção em vez de razão, reforça ainda essencial por esses distúrbios aos “po- deep and swift, spurred the rise of Trump” [Como o
concorrentes, os pensadores liberais mais os cínicos e os ditadores”, solu- pulistas” que recuperam as insegu- choque da China, profundo e rápido, estimulou a as-
censão de Trump], The Wall Street Journal, 19 jul.
perderam sua beleza e atratividade. “A çou um editorialista.16 ranças e ameaçam o mundo com um 2018 e 11 ago. 2016, respectivamente.
contrarrevolução é alimentada pela À medida que se aproxima o trigé- retorno a uma “ordem antiga, mais pe- 4 Citado por Adam Tooze, Crashed: How a Decade
polarização da política interna, com o simo aniversário da queda do Muro de rigosa e mais brutal”, salvando de pas- of Financial Crises Changed the World [Quebra-
do: como uma década de crise financeira mudou o
antagonismo substituindo o compro- Berlim, os arautos do “mundo livre” sagem as elites sociais e intelectuais mundo], Penguin Books, Nova York, 2018.
misso. E tem como alvo a revolução li- temem que a festa seja morosa. “A (seus pares...) que criaram as condi- 5 John Lanchester, “After the fall” [Depois da queda],
beral e os ganhos obtidos pelas mino- transição para as democracias liberais ções da crise – e que muitas vezes se London Review of Books, v.40, n.13, 5 jul. 2018.
6 Jack Dion, “Les marchés contre les peuples” [Os mer-
rias”, arrepia-se Michael Ignatieff, foi em grande parte impulsionada por beneficiaram dela. cados contra o povo], Marianne, Paris, 1º jun. 2018.
reitor da Universidade da Europa Cen- uma elite educada, muito pró-ociden- Tal panorama tem muitas vanta- 7 Yanis Varoufakis, Adults in the Room. My Battle
tral em Budapeste, instituição fundada tal”, Fukuyama admite. Infelizmente, gens para elas. Em primeiro lugar, re- Against Europe’s Deep Establishment [Adultos na
sala. Minha batalha contra o establishment profun-
por iniciativa do bilionário liberal as populações menos educadas “nun- petir que a ditadura nos ameaça torna do da Europa], The Bodley Head, Londres, 2017.
George Soros. “Está claro”, acrescenta ca foram seduzidas por esse liberalis- possível acreditar que a democracia 8 Pierre Moscovici, Dans ce clair-obscur surgissent
ele, “que o breve momento de domina- mo, pela ideia de que poderíamos ter impera, mesmo que ainda exija pe- les monstres. Choses vues au cœur du pouvoir
[Nesse claro-escuro surgem monstros. Coisas vis-
ção da sociedade aberta acabou.”15 Em uma sociedade multirracial, multiét- quenos ajustes. Mais fundamental- tas no coração do poder], Plon, Paris, 2018.
sua opinião, os governantes autoritá- nica, em que todos os valores tradicio- mente, a ideia de Obama (ou aquela, 9 Ler Frédéric Lordon, “Le jour où Wall Street est de-
rios que tomam por alvo o estado de di- nais se desvaneceriam diante do casa- idêntica, de Macron) de que “duas vi- venu socialiste” [O dia em que Wall Street se tornou
socialista], Le Monde Diplomatique, out. 2008.
reito, o equilíbrio dos poderes, a liber- mento gay, da imigração etc.”17 Mas a sões muito diferentes do futuro da hu- 10 Jean-Claude Trichet, “Nous sommes encore dans
dade dos meios de comunicação quem imputar a culpa por essa falta de manidade competem pelos corações e une situation dangereuse” [Ainda estamos em uma
privados e os direitos das minorias ata- efeito cascata da minoria esclarecida? mentes dos cidadãos de todo o mun- situação perigosa], Le Monde, 14 set. 2013.
11 Adam Tooze, op. cit.
cam na verdade os pilares essenciais À indolência de todos os jovens bur- do” permite esconder o que essas 12 Drew Hinshaw e Marcus Walker, “In Orban’s Hun-
das democracias. gueses que, irrita-se Fukuyama, “se “duas visões” têm em comum: nada gary, a glimpse of Europe’s demise” [Na Hungria
O semanário britânico The Econo- contentam em ficar em casa, para se menos do que o modo de produção e de Orbán, um vislumbre da morte da Europa], The
Wall Street Journal, 9 ago. 2018
mist, que faz as vezes de boletim de liga- congratularem por sua mente aberta, de propriedade, ou, para retomar as 13 Ler Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, “La nouvelle
ção das elites liberais globais, concorda por sua falta de fanatismo. [...] E só se mesmas palavras do ex-presidente vulgate planétaire” [A nova vulgata mundial], Le
com essa visão. Quando, em 16 de ju- mobilizam contra o inimigo indo sen- norte-americano, “a desproporcional Monde Diplomatique, maio 2000.
14 “Discurso do primeiro-ministro Viktor Orbán no 25º
nho, ele entrou em pânico por causa de tar-se no terraço de um café com um influência econômica, política e mi- Acampamento de Estudantes e Universidade Livre
uma “deterioração alarmante da demo- mojito na mão”.18 diática dos que estão no topo”. A esse de Verão de Bálványos”, 30 jul. 2014. Disponível
cracia desde a crise financeira de 2007- De fato, isso não é suficiente... E respeito, de fato, nada distingue Ma- em: <http://2010-2015.miniszterelnok.hu>.
15 Michael Ignatieff e Stefan Roch (orgs.), Rethinking
2008”, não incriminou as desigualdades muito menos o fato de enquadrar a mí- cron de Trump, como aliás foi de- Open Society: New Adversaries and New Oppor-
abissais de fortuna, nem a destruição dia ou inundar as redes sociais com monstrado por sua ânsia comum de tunities [Repensando a sociedade aberta: novos
dos empregos industriais pelo livre-co- comentários indignados direcionados reduzir, assim que chegaram ao poder, adversários e novas oportunidades], CEU Press
Budapeste, 2018.
mércio, nem o desrespeito à vontade a “amigos” igualmente indignados, a taxação da renda do capital. 16 Éric Le Boucher, “Le salut par l’éthique, la démo-
dos eleitores pelos líderes “democráti- sempre pelas mesmas coisas. Obama Resumir obstinadamente a vida cratie, l’Europe” [A salvação pela ética, pela demo-
cos”. Mas atacou “os homens fortes entendeu isso. Em 17 de julho, ele di- política das próximas décadas ao en- cracia, pela Europa], L’Opinion, Paris, 9 jul. 2018.
17 Citado por Michael Steinberger, “George Soros
[que] minam a democracia”. Em rela- vulgou uma análise detalhada, muitas frentamento entre democracia e po- bet big on liberal democracy. Now he fears he is
ção a eles, espera, “os juízes indepen- vezes lúcida, das últimas décadas. Mas pulismo, abertura e soberania, não losing” [George Soros apostou alto na democracia
dentes e os jornalistas inquietos são a não pôde deixar de retomar a ideia fixa trará nenhum alívio para essa porção liberal. Agora teme que esteja perdendo], The New
York Times Magazine, 17 jul. 2018.
primeira linha de defesa” – um dique da esquerda neoliberal desde que ela crescente das categorias populares de- 18 Alexandre Devecchio, “Francis Fukuyama: ‘Il y a un
tão estreito quanto frágil. adotou o modelo capitalista. Em es- siludida com uma “democracia” que a risque de défaite de la démocratie’” [Francis Fuku-
Durante muito tempo, as classes su- sência, como o ex-primeiro-ministro abandonou e com uma esquerda que yama: “Há um risco de derrota da democracia”], Le
Figaro Magazine, Paris, 6 abr. 2018.
periores tiraram proveito do jogo elei- italiano de centro-esquerda Paolo se metamorfoseou em partido da bur- 19 Thomas Frank, “Four more years” [Mais quatro
toral graças a três fatores convergentes: Gentiloni lembrou a Trump em 24 de guesia graduada. Dez anos após a anos], Harper’s, abr. 2018.
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 5

EDITORIAL
© Claudius

Na linguagem do povo
POR SILVIO CACCIA BAVA

A
s eleições deste ano buscam O golpe de 2016, que derrubou a Já aqueles que se organizam para a zações, seja do sistema político, seja da
sensibilizar um eleitorado no presidenta Dilma, os péssimos resulta- defesa da democracia e dos direitos que sociedade civil.
qual 49% dos que têm mais de dos do governo Temer, a espoliação das estão sendo suprimidos não encontram Mas se falar a linguagem do povo já
25 anos ainda não completaram maiorias promovida por iniciativas de uma linguagem capaz de sensibilizar a é um passo gigantesco de aproxima-
o ciclo do Ensino Fundamental (IB- entidades empresariais como a Fiesp e maioria do povo e são ignorados pelos ção com as maiorias, é importante
GE); no qual 95 milhões de brasileiros a CNI (especialmente a reforma traba- grandes meios de comunicação. lembrar que a ação e as identidades
têm renda de até R$ 14 por dia (46%) e lhista e a Emenda Constitucional n. 95, O que significa, para aqueles que políticas se constroem graças aos cole-
41 milhões, renda entre R$ 14 e R$ 21 que congela por vinte anos os gastos suam a camisa no dia a dia para garan- tivos que se mobilizam e, assim, criam
por dia (20%); no qual 13,7 milhões de sociais), o desrespeito aos direitos con- tir seu sustento e o de sua família, a seus afetos políticos3. Casos recentes
desempregados se somam aos mi- sagrados em nossa Constituição, tudo discussão sobre desenvolvimento sus- exemplares foram as caravanas pro-
lhões que perderam as esperanças de isso gera o descrédito com a política e tentável, taxa de câmbio, juros, refor- movidas por Lula pelo país e os comí-
encontrar uma vaga. com os políticos, colocando perigosa- ma tributária etc.? cios realizados ao longo da caravana;
Buscar mantê-los na ignorância, mente todos no mesmo saco. Buscar o engajamento da popula- as marchas e ocupações do MST; a
doutriná-los por meio da televisão, Para estudiosos dos processos elei- ção em um processo eleitoral significa Marcha das Mulheres Negras; as inú-
controlá-los pela violência parece torais, a abstenção, somada aos votos mobilizar suas expectativas e deman- meras manifestações e passeatas em
ser a alternativa adotada pelos do- brancos e nulos, pode superar os 40% das e estabelecer compromissos que defesa de direitos; os acampamentos
nos do poder para tentar submetê- do eleitorado nestas eleições1, sinal de venham abordar os problemas do coti- do Levante Popular da Juventude.
-los à sua vontade. Segundo eles, as que esse sistema político já não dá diano e propor como enfrentá-los. Para as grandes maiorias empobre-
questões sociais não cabem no orça- conta de processar os conflitos de inte- O sucesso da campanha de Bernie cidas, o que interessa são suas condi-
mento público e os pobres têm de fi- resse em nossa sociedade. Some-se a Sanders para a presidência dos Estados ções de vida e a possibilidade de sonhar
car no seu lugar. isso o impedimento legal, que contra- Unidos se deveu à sua linguagem clara com uma vida melhor. Garantir seu em-
O ciclo de eleições da primeira dé- diz a Constituição da República, de e direta e ao seu compromisso com os prego e seus direitos trabalhistas; au-
cada do século XXI na América Latina um candidato com mais de 39% da interesses das maiorias. Sua platafor- mentar o salário mínimo; garantir saú-
mostrou que os pobres não são igno- preferência eleitoral, e temos uma si- ma tinha como carro-chefe dobrar o de e educação pública, gratuita e de
rantes, não estão sujeitos a todo tipo tuação inédita.2 salário mínimo e garantir educação qualidade para todos; garantir a quali-
de manipulações e não querem ficar Nesse cenário, o conjunto dos par- pública, gratuita e de qualidade, em to- dade de vida dos aposentados pela via
no lugar subalterno destinado a eles tidos da direita abraça um programa dos os níveis. Tais propostas atendem a da Previdência; baixar o preço do boti-
pelas elites. Eles querem superar o fos- único: o da implantação do ultralibe- todos. Embora não tenha ganho a dis- jão de gás. Esses são alguns elementos
so da desigualdade. ralismo econômico. Todos defendem o puta pela candidatura do Partido De- centrais para atender e mobilizar as
As manifestações populares dizem corte nas políticas sociais, o rebaixa- mocrata, Sanders conseguiu encantar maiorias. Tudo ao contrário do que reza
hoje que eles também não querem as mento dos salários, a precarização do uma parcela importante do eleitorado, a cartilha da austeridade e do liberalis-
políticas de austeridade que lhes são trabalho, a violência como solução pa- especialmente a juventude. mo arcaico preconizada no programa
impostas para garantir os ganhos do ra a criminalidade, as privatizações, Forma e conteúdo se combinam único da direita.
1% mais rico. Mas, na atualidade, uma entre outras coisas. E encobrem seus numa estratégia eleitoral. As propos-
parte desses mesmos pobres pende propósitos com discursos em prol de tas claras e objetivas precisam ser
para defender seus algozes, iludida por uma falsa retomada do desenvolvi- apresentadas na linguagem do povo. E 1 Lejeune Mirhan, sociólogo, escritor, pesquisador,
professor e analista internacional. Presidiu o Sindi-
uma santa campanha contra a corrup- mento e de um Estado mais eficiente, aqui está um desafio para as organiza- cato dos Sociólogos do Estado de São Paulo e a
ção que é extremamente seletiva e se como se não tivéssemos um registro ções de esquerda, melhor dizendo, pa- Federação Nacional dos Sociólogos.
concentra em atacar o PT, sobretudo histórico de que a desigualdade avan- ra as organizações que defendem a de- 2 Pesquisa Datafolha, divulgada em 22 ago. 2018.
3 Antonio Negri e Michael Hardt, Declaração: isto
Lula, que lidera com folga todas as pes- ça com o baixo crescimento da econo- mocracia e os direitos humanos, o que não é um manifesto, N-1 Edições, São Paulo,
quisas eleitorais. mia e a extinção do Estado social. abarca um arco mais amplo de organi- 2014, p.31.
6 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

DIMINUIR TRIBUTOS OU REFORMAR A DISTRIBUIÇÃO DOS IMPOSTOS

O que interessa ao povo brasileiro?


Para resolver os problemas do país devem-se cortar tributos e diminuir ainda mais os investimentos
estatais ou fazer uma reforma tributária estrutural que leve o Estado a aumentar a arrecadação,
principalmente sobre o 1% mais rico da população?
POR ODILON GUEDES*

A
eleição para presidente coloca TABELA 1 – CARGAS TRIBUTÁRIAS EM PERSPECTIVA indiretos, favorecendo principalmente
um tema fundamental para o os cidadãos de baixa renda. Isso ocorre-
PIB em % da carga Total da Capacidade de
debate: a reforma tributária. O População rá porque as empresas, diante da redu-
US$ tributária em carga investimento
País em milhões/
Brasil possui uma das estrutu- hab. 2016
bilhões relação ao tributária em do governo (per ção dos tributos que pagam ao Estado,
ras tributárias mais injustas, em que 2016 PIB US$ bilhões capita) em US$ terão como consequência a diminui-
a população de baixa renda e a classe EUA 327 18.570 25,4 4.716 14.422 ção de custos, o que as levará a abaixar
média pagam, proporcionalmente, Brasil 207 1.799 33,7 606 2.928 os preços de seus produtos.
mais tributos que o 1% mais rico. Isso Alemanha 81 3.467 36,7 1.272 15.703 Do outro lado propomos o aumento
ocorre porque a maior parte dos tri- dos tributos diretos da seguinte forma:
Japão 128 4.139 29,5 1.221 9.539
butos é indireta e recai sobre o con- • Imposto de Renda: isenção para
sumo, atingindo da mesma forma Coreia do Sul 51 1.411 24,3 343 6.725 quem ganha o equivalente ao salário
quem ganha dois, trinta ou trezentos Chile 18 277 20,2 56 3.111 mínimo definido pelo Dieese (art. 7º,
salários mínimos. Fonte: FMI/IBGE.
item IV, da CF), que, em junho de 2018,
Apesar disso, as forças conservado- estava em R$ 3.804,06. A partir desse
ras que disputam a eleição afirmam que patamar, aumentar as alíquotas em
TABELA 2 – RESULTADOS DO PISA (EM UM TOTAL DE SETENTA PAÍSES)
um dos principais problemas do Brasil é 8% até chegar ao limite de 40%. Outra
o alto percentual da carga tributária em País Leitura Matemática Ciências medida importante é passar a cobrar
relação ao PIB; e que a solução é abaixá- Estados Unidos 24º 41º 25º Imposto de Renda sobre a distribuição
-lo. Pelos dados que apresentamos a se- Alemanha 11º 16º 16º de lucros e dividendos.
guir ficará evidente que o Estado brasi- • Imposto sobre herança: imposto
Japão 8º 5º 2º
leiro arrecada por cidadão muito menos progressivo até o limite de 30% e que
Coreia do Sul 7º 7º 11º
que os demais países analisados. De- seja federalizado. Hoje, esse imposto é
monstraremos também que o Brasil vi- Chile 43º 51º 46º estadual e, segundo a Resolução 09/92
ve uma situação social muito pior que Brasil 59º 69º 67º do Senado, a alíquota máxima que po-
esses países, o que significa que são ne- Fonte: OCDE. de ser cobrada é de 8%.
cessários muito mais recursos para in- • Imposto sobre a propriedade: au-
vestir em educação, saúde, segurança mento econômico de uma população comprometendo o presente e o futuro mentar a progressividade do Imposto
pública e outras áreas. Em resumo, a com base em três critérios: saúde (ex- das crianças e jovens de nosso país. Territorial Rural (ITR) e que o Estado
questão a ser analisada não é o percen- pectativa de vida ao nascer), educação passe a fazer uma fiscalização tão ri-
tual da carga tributária em relação ao (média de anos de estudo dos adultos e SEGURANÇA PÚBLICA gorosa como a do Imposto de Renda.
PIB, e sim quanto o governo dispõe para anos esperados de escolaridade das Comparar o número de homicídios Salientamos que a atual arrecadação
investir por cidadão. crianças) e renda, medida pela Renda permite que tenhamos uma noção de do ITR, durante todo o ano de 2017, em
Pelos dados da Tabela 1 observamos Nacional Bruta (RNB). que atualmente enfrentamos uma ver- todo o Brasil, foi menor que dois meses
que, apesar de a carga tributária dos Estamos bem atrás de todos, o que dadeira guerra civil, à qual, infeliz- de arrecadação do IPTU na cidade de
países, com exceção da Alemanha, ser evidencia a necessidade de muito in- mente, muitos já se acostumaram. Ve- São Paulo.
menor que a nossa, todos têm muito vestimento público, sobretudo na área jamos o número de homicídios por 100 • Imposto sobre as grandes fortu-
mais recursos para investir. Apesar de a de saúde, uma vez que 160 milhões de mil habitantes: Estados Unidos, 5,3 nas: regulamentação do artigo 153,
carga tributária norte-americana ser brasileiros não têm plano privado, por- (2016); Alemanha, 0,7 (2015); Japão, item VII, da CF, por meio de lei comple-
25,4% do PIB, e a nossa, 33,7%, os Esta- tanto dependem diretamente do SUS. 0,73 (2015); Coreia do Sul, 0,8 (2014); mentar, que a Receita Federal passe a
dos Unidos têm US$ 14.422 por habitan- Chile, 3,3 (2017); e Brasil, 30,5 (2016) informar o valor do patrimônio das
te, enquanto o Brasil tem US$ 2.928. A PISA 2015 (fontes: FBI; UN Office on Drugs and pessoas por faixa de renda e que as alí-
situação social do Brasil, comprovada O Programa Internacional de Ava- Crime; InSight Crime; Ipea). quotas aplicadas sejam progressivas.
pelos indicadores a seguir, é muitas ve- liação de Alunos (Pisa) mede o nível Uma reforma tributária com essas
zes pior do que a desses países. Isso sig- educacional de jovens de 15 anos por * características, além de fazer justiça
nifica que precisamos de muito mais meio de provas de Leitura, Matemáti- Esses números comprovam que vi- tributária, dará muito mais condições
investimentos para melhorar a qualida- ca e Ciências. O exame é realizado a vemos aqui no Brasil uma situação ao Estado para investir em políticas
de de vida de nossa população. cada três anos pela Organização para caótica. Essa realidade nos traz uma públicas.
a Cooperação e o Desenvolvimento pergunta a ser respondida: para resol-
ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO Econômico (OCDE). ver os problemas do país devem-se *Odilon Guedes é economista, mestre em
A classificação dos países citados Esses dados, expostos na Tabela 2, cortar tributos e diminuir ainda mais Economia pela PUC-SP, professor do curso de
em relação ao Índice de Desenvolvi- falam por si e demonstram uma situa- os investimentos estatais ou fazer uma pós-graduação Gerente de Cidades e do cur-
mento Humano (IDH) é a seguinte: ção calamitosa. Com base nesse con- reforma tributária estrutural que leve so de Economia da Fundação Armando Álva-
Estados Unidos, 8º colocado; Alema- texto, destacamos que 83% dos estu- o Estado a aumentar a arrecadação, res Penteado (Faap) e do curso de Economia
nha, 6º; Japão, 20º; Chile, 42º; Coreia dantes, antes de ingressarem na principalmente sobre o 1% mais rico das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente
do Sul, 12º; e Brasil, 72º. universidade, estudam em escolas pú- da população? do Sindicato dos Economistas no Estado de
Esse índice é uma medida impor- blicas. Portanto, se não houver inves- De um lado, a proposta que defen- São Paulo, vereador e subprefeito da cidade
tante concebida pela ONU para ava- timentos em educação por parte do demos é de uma reforma tributária que de São Paulo. Autor do livro Orçamento públi-
liar a qualidade de vida e o desenvolvi- Estado, essa situação não mudará, seja pautada pela redução dos tributos co e cidadania (Ed. Livraria da Física, 2012).
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 7

CAI A MÁSCARA DA REFORMA TRABALHISTA

Desemprego e
precarização vêm
à tona
Os argumentos de “modernização” do trabalho para
retirar direitos são os mesmos utilizados no século XIX,
que geraram sociedades pauperizadas e violentas
POR EUZÉBIO JORGE SILVEIRA DE SOUZA, ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA
E BARBARA VALLEJOS VAZQUEZ*

© Caio Borges
A
reforma trabalhista completou res são responsáveis pelo desemprego no Brasil existe uma ampla gama de si- tos de “modernização” do trabalho
em agosto nove meses de vigên- está fundada na ideia de que estes pre- tuações que não podem ser adequada- para retirar direitos são os mesmos
cia e já é evidente seu fracasso na ferem o desemprego a trabalhar por mente mensuradas pelo binômio em- utilizados no século XIX, que geraram
missão de criar mais empregos baixos salários – o que justificaria reti- prego/desemprego. Aliás, o grande sociedades pauperizadas e violentas.
formais de qualidade e contribuir na rar direitos trabalhistas como seguro- aumento do total de desocupados Na mesma linha, a reforma agrava
retomada do crescimento econômico. -desemprego, com o propósito de (+101%) no Brasil desde 2015, início da problemas históricos brasileiros, co-
Com o aprofundamento da crise combater o “corpo mole”. Por outro la- crise econômica – 6,4 milhões de pes- mo alto desemprego e informalidade,
econômica a partir de 2015, o Brasil do, o nível de emprego depende do vo- soas em dezembro de 2014 para 12,9 degradação da qualidade dos postos
acompanhou os malabarismos teóri- lume de gastos e investimentos na milhões em junho de 2018 –, foi acom- de trabalho formais, grande peso do
cos de economistas ortodoxos para es- economia como um todo: buscar en- panhado pelo aumento do subempre- desemprego oculto por situações de
tabelecer uma relação causal entre a tender o nível de desemprego obser- go e do desalento, sintomas dos tem- trabalhos precários ou desalento, que
superação da crise econômica e a des- vando apenas o mercado de trabalho é pos presentes. O desalento chegou a acabam empurrando os desemprega-
truição do aparato político e institu- como tentar apreender o funciona- 4,8 milhões no segundo trimestre de dos para a inatividade.
cional que promovia seguridade ao mento do motor de um carro olhando 2018, ponto mais alto da série histórica. A partir da reforma tem ocorrido
trabalhador e mitigava a assimetria no para suas rodas. De dezembro de 2014 a junho de 2018, uma substituição de ocupações mais
mercado de trabalho. A reforma traba- Até poucos anos atrás, as estatísti- o número de trabalhadores em situa- estáveis, como emprego por tempo in-
lhista, mal debatida e aprovada em cas oficiais acerca do trabalho não ha- ção de subemprego aumentou 38%, e a determinado, por ocupações em tem-
tempo recorde pelo Congresso em ju- viam sido capazes de incorporar espe- força de trabalho potencial, 91%. po parcial e contratos intermitentes,
lho de 2017, foi apresentada como me- cificidades brasileiras e ao mesmo Entretanto, a reforma prometia, PJs, terceirizados etc. Em suma, o im-
dida imprescindível para a “moderni- tempo adequar-se a padrões interna- além de reduzir a desocupação e o de- pacto real da reforma trabalhista não
zação” das relações de trabalho no cionais de medição das situações de salento, gerar novos postos de traba- se deu sobre o desemprego, que persis-
país e para a superação da crise econô- emprego e desemprego. No entanto, lho. Segundo o Cadastro Geral de Em- te, e sim nos postos de trabalho for-
mica. Os mesmos defensores da auste- com a Pnad Contínua (PnadC), houve pregados e Desempregados (Caged), o mais, que estão sendo paulatinamente
ridade1 que transformou uma desace- uma tentativa de medição mais com- saldo de emprego formal entre novem- substituídos por contratos precários.
leração em recessão econômica em plexa de fenômenos que impactam os bro de 2017 e junho de 2018, período de
2015 defendiam a reforma trabalhista mercados de trabalho periféricos co- vigência da reforma, é de 3.226 postos. *Euzébio Jorge Silveira de Souza é mes-
como saída para a crise. mo o Brasil (ao contrário da Europa): Já o saldo de geração de empregos in- tre em Economia Política pela PUC-SP, dou-
A reforma, ao flexibilizar as rela- subemprego, desalento, entre outros, termitentes é de 22.901, e de postos em torando em Desenvolvimento Econômico na
ções de trabalho, reduzir direitos tra- consolidados no indicador “Subutili- tempo parcial, de 12.507. A PnadC re- Unicamp, presidente do Centro de Estudos e
balhistas, permitir a livre negociação zação da força de trabalho”. vela também uma degradação do mer- Memória da Juventude (CEMJ) e conselheiro
entre trabalhadores e empresários e Sobre esse indicador, do segundo cado de trabalho, expressa na redução do Conselho Nacional de Juventude (Conju-
deixar que o próprio mercado defina trimestre de 2017 para o segundo tri- em 10,1% do total do emprego com ve); Ana Luíza Matos de Oliveira é profes-
níveis de remunerações e condições mestre de 2018, cresceu de 26,3 mi- carteira assinada no Brasil, passando sora visitante da Flacso-Brasil e economista
de trabalho, contribuiria para a reto- lhões para 27,6 milhões a quantidade de 36,5 milhões para 32,8 milhões en- pela UFMG, mestra e doutoranda em Desen-
mada do crescimento econômico, se- de pessoas subutilizadas, isto é, os tre outubro, novembro e dezembro de volvimento Econômico na Unicamp; e Bar-
gundo seus defensores. Tal pensa- subocupados por insuficiência de ho- 2014 e abril, maio e junho de 2018, pon- bara Vallejos Vazquez é mestre em Desen-
mento é baseado na ideia de que o ras trabalhadas, os desocupados e a to mais baixo da série histórica. Entre o volvimento Econômico pela Unicamp,
mercado de trabalho brasileiro não força de trabalho potencial. Para quarto trimestre de 2014 e o segundo graduada em Ciências Sociais pela USP, téc-
era flexível e que o desemprego e a comparação, antes da adoção das po- trimestre de 2018, houve recuo da ocu- nica do Dieese e professora da Escola Diee-
queda da atividade econômica são res- líticas de austeridade no Brasil (o que pação, que passou de 92,9 milhões pa- se de Ciências do Trabalho.
ponsabilidades dos trabalhadores. Em ocorreu a partir de 2015), havia no ra 91,2, representando uma queda de
primeiro lugar, o Brasil possui um país 15,3 milhões de subutilizados no 1,8% no período e aumento no total de 1 Essa política de austeridade teve e tem profundos
impactos no mercado de trabalho e nos gastos so-
mercado de trabalho historicamente segundo trimestre de 2014, quase a empregadores (10,1%), dos trabalha- ciais, e é analisada no estudo “Austeridade e retro-
marcado por informalidade, alta rota- metade do número hoje. dores por conta própria (6,0%), do em- cesso: impactos sociais da política fiscal no Bra-
tividade, baixos salários e desrespeito A análise desse indicador compos- prego sem carteira (4,8%) e do traba- sil”, Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert, São
Paulo, ago. 2018. Disponível em: <http://brasilde-
à regulação do trabalho. Ademais, a to revela que, à dessemelhança do que lho doméstico (4,8%). bate.com.br/wp-content/uploads/DOC-AUSTE-
pressuposição de que os trabalhado- se observa em mercados estruturados, E é bom lembrar que os argumen- RIDADE_doc3-_L9.pdf>.
8 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

EM FACE DOS OBJETIVOS DAS ESTATAIS

O discurso da privatização
As tragédias de Mariana e da Ponte Morandi, que desmoronou recentemente na Itália, para citar apenas dois casos,
expõem as diferenças de prioridades entre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido
evitadas se a segurança tivesse sido considerada mais importante do que o lucro a curto prazo
POR ADHEMAR MINEIRO, CLOVIOMAR CARARINE, FERNANDO AMORIM TEIXEIRA, GUSTAVO TEIXEIRA, IDERLEY COLOMBINI NETO E PAULO JÄGER*

A
discussão sobre a privatização pólios naturais, são segmentos em que põem as diferenças de prioridades en-
das empresas estatais brasilei- há poucos participantes com expressi- tre os distintos modelos de gestão. São
ras, de forma geral, tem sido rea- vo poder de mercado (oligopólios), calamidades que poderiam ter sido
lizada de forma maniqueísta: principalmente em função de barreiras evitadas se a segurança tivesse sido
um lado argumenta que o setor público à entrada de novos atores. Essa é uma considerada mais importante do que o
é eficiente, e o outro, que é ineficiente; razão adicional para que o Estado tenha lucro a curto prazo.
uma parte afirma que as empresas dão participação nesses mercados. Não à toa, hoje duas tendências são
lucro, a outra, que causam prejuízo ao Empresas e centros de pesquisa observadas no mundo: 1) em nome do
Estado; uma parcela diz que a venda de estatais são fundamentais para eco- interesse e da soberania nacionais,
ativos públicos resolve o problema de nomias modernas, pois realizam in- vários países têm adotado medidas de
déficit nas contas públicas, enquanto a vestimentos em projetos de ciência, restrição ao investimento estrangeiro
outra proclama o contrário. tecnologia e inovação, pouco atrativos em setores estratégicos. A China é um
O discurso da superioridade do de- à iniciativa privada, uma vez que re- exemplo. Por meio das grandes em-
sempenho do setor privado em relação querem longos períodos para pesqui- presas estatais, o país tem aplicado
ao público e dos prejuízos causados pe- sa e desenvolvimento e se caracteri- uma política de investimento em nível
las estatais tem carga ideológica pesada zam por elevada incerteza. Assim, os mundial; 2) é enorme o número de ca-
e desconsidera o que essas empresas re- recursos destinados por empresas es- sos de reestatização dos serviços pú-
presentam para o país. As estatais de- tatais são decisivos em qualquer pro- blicos (835 casos) para resolver os pro-
sempenham papel fundamental no de- jeto de desenvolvimento que almeje a blemas de ineficiência da gestão
senvolvimento da sociedade e são, ao redução da dependência tecnológica privada no fornecimento dos serviços
mesmo tempo, mecanismo de política de outros países. à população.1
econômica e externa, já que podem de- A atuação e os investimentos esta- A análise de experiências em paí-
senvolver funções importantes na geo- tais também podem ser fatores de es- ses desenvolvidos mostra a viabilidade
política internacional. E isso porque são tabilização econômica, do nível de de diferentes tipos de gestão no setor
essas empresas que viabilizam grandes emprego e da renda, à medida que, por público, com controle social, que re-
investimentos de longo prazo; ofere- não obedecerem apenas à lógica de duziram acentuadamente problemas
cem serviços essenciais à vida; assegu- mercado e lucro, asseguram um míni- relacionados à corrupção e à apropria-
ram um nível de concorrência adequa- mo de expansão da demanda agrega- ção indevida por interesses privados. É
do (oferta e preço) em mercados da, atuando como instrumento de po- possível gerir empresas estatais de for-
concentrados; investem em ciência, líticas anticíclicas. ma eficiente, sob a perspectiva do inte-
tecnologia e inovação; atuam como Além disso, bens escassos e que são resse público.
instrumento de políticas anticíclicas; insumos essenciais para o conjunto da Por fim, dado o caráter público, as
asseguram o controle de bens escassos estrutura produtiva, em especial pe- empresas estatais estão sujeitas à in-
© Caio Borges

que são elementos essenciais para o tróleo, gás e derivados, são estratégicos fluência dos grupos políticos que ocu-
conjunto da estrutura produtiva; para o desenvolvimento econômico e pam diferentes esferas de poder, o que
atuam em nome do interesse e da sobe- social. Os poucos países que detêm torna imprescindível o desenvolvi-
rania nacionais; e tomam decisões em- grandes reservas e competência para mento de mecanismos que aprimo-
presariais orientadas pelo interesse co- explorá-las procuram protegê-las e uti- rem gestão, controle e participação
letivo, e não só pelo lucro. da população, não podem ser tratados lizá-las da melhor maneira possível. social, e, consequentemente, garan-
Muitos setores de atividade econô- como uma mercadoria qualquer. Importante lembrar que as estatais tam maior engajamento da sociedade
mica, em função de características in- A Constituição brasileira define o diferem das empresas privadas na me- civil organizada.
trínsecas, precisam de altos investi- fornecimento de uma série de bens e dida em que, pela própria natureza,
mentos com longo prazo de maturação, serviços como propriedade/competên- devem tomar decisões orientadas pelo *Adhemar Mineiro, Cloviomar Cararine,
como ocorre com a construção de es- cia do Estado – União, estados e muni- interesse coletivo, e não apenas por Fernando Amorim Teixeira, Gustavo Teixei-
tradas e ferrovias. Em muitas situa- cípios. Entre eles, estão as jazidas e de- critérios econômico-financeiros. No ra, Iderley Colombini Neto e Paulo Jäger
ções, o investimento não interessa à mais recursos minerais; potenciais de debate sobre privatização, a questão são técnicos do Dieese e componentes do
iniciativa privada, mas é fundamental energia elétrica; tratamento e distribui- do lucro diante do interesse coletivo grupo de estudos da entidade que analisa a
para o desenvolvimento econômico e ção de água e coleta de esgoto; gestão merece muita atenção. As tragédias de questão das estatais. Texto produzido com
social de uma região e, por isso, a so- dos recursos hídricos; infraestrutura Mariana, com o rompimento da Bar- base na Nota Técnica 189 do Dieese, “Em-
ciedade decide arcar com os custos. aeroportuária; serviços e instalações ragem de Fundão, erguida pela Samar- presas estatais e desenvolvimento: conside-
Existem ainda serviços essenciais à nucleares; serviços de transporte; e ser- co, subsidiária da Vale (Vale do Rio Do- rações sobre a atual política de desestatiza-
vida – como captação, tratamento e viços postais. ce, enquanto era estatal), empresa ção”, disponível em: <www.dieese.org.br>.
distribuição da água e geração, trans- Para assegurar a oferta e preços ade- privatizada nos anos 1990, e da Ponte
missão e distribuição de energia elétri- quados, é preciso considerar que alguns Morandi, também sob controle priva- 1 Ver Transnational Institute (TNI), Reclaiming Public
Services: How cities and citizens are turning back
ca – que, sob pena de colocarem em ris- setores têm estrutura de mercado mui- do, que desmoronou recentemente na privatization, 2016. Disponível em: <www.tni.org/
co a economia do país e a sobrevivência to concentrada: quando não são mono- Itália, para citar apenas dois casos, ex- en/publication/reclaiming-public-services>.
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 9

SAÚDE

SUS pós-2018: a caravana passa?


Demandas empresariais como prontuário único, organização de regiões de saúde e coordenação do cuidado pularam,
sem mediação, das páginas de documentos de grandes grupos econômicos setoriais para as de partidos políticos.
O que não entrou na agenda empresarial foram as associações causais entre saúde e desigualdade
POR LIGIA BAHIA*

S
istemas universais de países eu- reita, ainda que seja importante res- também como um “cofrinho” para Agrotóxicos e transgênicos não dizem
ropeus, que inspiraram a for- salvar casos de doenças para as quais sustentar necessidades de saúde ao respeito apenas ao “que está na nossa,
mulação do Sistema Único de o aumento da assistência e dos custos longo do ciclo de vida, que são mal ou na minha mesa”, e sim à alavancagem
Saúde (SUS), estão sendo ques- será inócuo. Ocorre que não foi assim não supridas por mercados, caracteri- do agrobusiness e ao extermínio de in-
tionados, mas não desmontados. A cri- que as sociedades ocidentais organi- zados por informações assimétricas e dígenas em pleno século XXI. Quando
se econômica de 2008, políticas de zaram suas instituições. Na maioria elevados custos de transação. o conceito ampliado de saúde e o SUS
austeridade e a vitória eleitoral de das nações, a saúde, ao lado de outras Infelizmente, não são esses os ter- foram incluídos na Constituição de
coalizões de centro-direita e direita políticas sociais, compõe um espaço mos que predominam no debate atual 1988, sabíamos que éramos um país
em países europeus e nos Estados “desmercantilizado”. Ações de saúde sobre o SUS. Sob um suposto e disse- não rico em PIB, em renda; exatamen-
Unidos abalaram, mas não erodiram, têm custos, mas não são necessaria- minado pragmatismo teríamos dois te por isso precisávamos lutar por di-
os alicerces da concepção de garantia mente mercadorias. Uma mercadoria sistemas: o SUS e outro para “os que reitos sociais universais. Considera-
de direito independente da contri- para ser adquirida requer renda e de- podem pagar”. O SUS propiciaria co- mos que ser pobre não era destino, que
buição pecuniária de indivíduos e fa- pende do preço. bertura para 65% da população pelas a desigualdade deve ser combatida, re-
mílias. Por lá, houve mudanças, mas A oferta pública de serviços de saú- unidades de saúde da família, e os pla- duzida. As grandes conquistas do SUS
também resistência. Talvez, a conse- de permite que pessoas os utilizem de nos de saúde e assistência ambulato- estão relacionadas com políticas uni-
quência mais dramática da reedição acordo com necessidades, e não com a rial e hospitalar, para cerca de 27%. O versais que ousaram questionar pa-
das críticas aos sistemas universais capacidade de pagamento. Existem passo seguinte seria a integração do drões conservadores, injustos e discri-
tenha sido a absorção de concepções duas dimensões envolvidas com polí- público com o privado: o público fica minatórios de sociabilidade.
conservadoras por instituições polí- ticas de saúde. A primeira é normativa com a atenção básica; o privado, com a Não conseguiremos controlar ou
ticas e políticos influenciados por e ideológica; diz respeito à distribui- “média complexidade”; e a “alta” seria reduzir as violências, a obesidade,
agências como o Banco Mundial, em ção (quanto e de que poder, renda, ri- dividida entre os dois. Essa proposta sob o ideário errôneo segundo o qual
nações como o Brasil. queza). Igualdade, eficiência e liberda- de integração, apresentada em 2015 os gordos são preguiçosos, “mal-edu-
A comemoração dos setenta anos de são fundamentos gerais, mas seus por entidades empresariais como cados” nutricionais e que “bandido
do sistema nacional de saúde inglês pesos variam de acordo com distintos agenda inovadora, influencia políticas bom é bandido morto”, ou ainda a
(NHS), criado em 1948, tem sido mar- posicionamentos. Liberais valorizam governamentais e diversas platafor- versão “soft”, a de que é necessário
cada por polêmicas que chegam aqui a liberdade, e socialistas, a igualdade. mas eleitorais em 2018. “pacificar” os supostos espaços-po-
atrasadas e deturpadas. O centro de O segundo enfoque é técnico. A aloca- Demandas empresariais como pulação que guerreiam entre si, por-
gravitação do debate internacional é ção realizada pelo mercado não é certa prontuário único, organização de que neles habitam seres irracionais
a sustentabilidade de sistemas públi- ou errada, boa ou má. Similarmente, a regiões de saúde e coordenação do que precisam que as forças policiais
cos de países de renda alta em tem- intervenção governamental pode ser cuidado pularam, sem mediação, os civilizem. O sentido (significado e
pos de inovações terapêuticas e crise muito eficiente ou não. das páginas de documentos de gran- direção) do SUS constitucional é o de
econômica. A interrogação concen- Uma ambulância da prefeitura não des grupos econômicos setoriais pa- projeto democrático. Foi a reinter-
tra-se em torno dos limites da distri- é mercadoria e, se atende muitos ca- ra as de partidos políticos. O que não pretação das forças econômicas e po-
buição, da natureza e da carga dos sos, tenderá a ser mais eficiente do que entrou na agenda empresarial foram líticas conservadoras que reduziu o
impostos necessários para financiar um veículo semelhante restrito ao as associações causais entre saúde e sistema universal para o convênio
o acesso universal, inclusive para tra- chamado de pessoas que podem pa- desigualdade. A cobertura para 95% entre governo e setor privado. Por-
tamentos muito caros. Há consenso gar. Obviamente, o argumento esti- dos brasileiros seria aprimorada. tanto, o equacionamento das políti-
sobre a necessidade de aumentar o fi- mula comentários: depende do salário Contudo, não teríamos um sistema cas públicas para o setor público e
nanciamento. Parlamentares ingle- do motorista, da equipe de saúde. A de saúde capaz de responder efetiva- para o privado não é trivial; requer
ses usam o símbolo do NHS na lapela resposta é: depende dos custos, mas mente às epidemias de obesidade, reconhecimento sobre a existência
e Theresa May anunciou um aporte também dos objetivos do sistema de prematuridade, aumento de cânce- de grandes grupos econômicos seto-
de mais 20 bilhões de libras esterlinas saúde. Os resultados em termos de res, altas de taxas de homicídios e riais e seus movimentos, não apenas
por ano até 2023. melhoria de condições de saúde serão arboviroses. Simplificadamente, te- de concentração de capitais, mas
No Brasil, os trinta anos de SUS diferentes se o transporte de pacientes ríamos cobertura e não necessaria- também de influência na agenda po-
não motivaram declarações ou even- for organizado mediante critérios de mente políticas para reduzir, con- lítica. Narrativas para serem real-
tos oficiais. Pairam no ar acepções gravidade clínica ou maior capacidade trolar, eliminar riscos ou sequer mente disputadas não podem ser len-
ideológicas sobre as virtudes do mer- de pagamento. No primeiro caso, a realizar diagnósticos precoces. das, discursos laudatórios; devem
cado para alocar eficientemente re- maioria da população terá direito a au- Saúde é muito mais que médico, condensar valores, posicionamentos
cursos para atenção à saúde. A aten- mentar as chances de sobrevida. In- remédio, hospital e ambulância. É tra- políticos e, sobretudo, práticas.
ção à saúde pode ser mercadoria, é versamente, o impacto das ambulân- balho digno, salário mínimo genero-
óbvio, contanto que não seja social, cias privadas nos indicadores so, emancipação e também redes as- *Ligia Bahia é professora da Faculdade de
política e moralmente mediada. Tal populacionais tenderá a ser inexpres- sistenciais. Os povos indígenas são Medicina da Universidade Federal do Rio de
como em outros mercados, para um sivo. Em sistemas de saúde universais, quem adoecem e morrem mais preco- Janeiro (UFRJ) e integrante da Comissão de
dado preço, a oferta pode aumentar os impostos distribuem rendimentos cemente. Sem a demarcação das terras Política, Planejamento e Gestão em Saúde
ou diminuir e inovações tecnológicas ao longo da vida dos indivíduos, e não indígenas, essa brutal e secular injus- da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
tendem a deslocar a curva para a di- apenas entre ricos e pobres. Servem tiça será preservada e reproduzida. (Abrasco).
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EDUCAÇÃO

Entre histéricos,
demagogos
e financistas
Escola sem Partido, militarização dos colégios estaduais e
entrada do grande capital na rede privada. O que importa é que,
ao contrário dos filhos das famílias mais ricas, os jovens pobres
estejam sujeitados à disciplina mais restrita, aquela necessária
a quem vai se inserir na sociedade em posição subalterna
POR JOSÉ RUY LOZANO*

© Caio Borges
“O
conhecimento não só amplia ção Industrial, presente em livros de sileiros) adotam metodologias ativas que às condições de produção autôno-
como multiplica nossos dese- História, como opiniões de esquerda. e investem fortemente na formação ma do conhecimento.
jos. Portanto, o bem-estar e a fe- Nada mais partidarizado que o Es- de professores, para que as aulas se- Simultaneamente, grupos educa-
licidade de todo Estado ou Rei- cola sem Partido. A pretexto de expur- jam dialogadas, baseadas em proble- cionais gigantescos, como a Kroton,
no requerem que o conhecimento dos gar um suposto viés político à esquerda mas e desenvolvedoras do raciocínio controladora de dezenas de faculda-
trabalhadores pobres fique confinado dos professores, seus militantes que- e do pensamento crítico, nos colégios des e grande vitoriosa na expansão das
dentro dos limites de suas ocupações e rem extirpar da escola sua institucio- militarizados nada disso tem vez. O matrículas no ensino superior privado
jamais se estenda [...] além daquilo que nalidade pública, de espaço de debate professor fala, o aluno limita-se a ou- via Fies, avança no nicho de mercado
se relaciona com sua missão. Quanto e formação acima e além das crenças vir e anotar. da educação básica. Recentemente, a
mais um pastor, um arador ou qualquer familiares e valores religiosos de cará- Evidente que o milagre dos colé- Kroton adquiriu a Somos Educação,
outro camponês souber sobre o mundo ter privado. O verdadeiro pavor do Es- gios militares tradicionais não vai se que agrega colégios, cursos pré-vesti-
e sobre o que lhe é alheio ao seu traba- cola sem Partido é a inserção das crian- repetir. Neles, há seleção prévia e os bulares como o Anglo e as editoras Sa-
lho e emprego, menos capaz será de su- ças no mundo fora da família, que alunos têm vocação para a carreira raiva, Ática e Scipione, que têm como
portar as fadigas e as dificuldades de começa na escola. O que o movimento castrense. O que importa é que, ao principal fonte de receita a venda de
sua vida com alegria e contentamento.” combate é a ideia de escola como espa- contrário dos filhos das famílias mais livros didáticos para o governo.
Esse trecho foi extraído de um famoso ço público, onde crianças e jovens vão ricas, os jovens pobres estejam sujeita- Empresas privadas sustentadas
compêndio de filosofia moral do século necessariamente ao encontro da dife- dos à disciplina mais restrita, aquela pelos fundos públicos: na educação,
XVIII: A fábula das abelhas: vícios priva- rença, transcendendo a vida privada. necessária a quem vai se inserir na so- essa constante brasileira se repete.
dos, benefícios públicos, de Bernard de ciedade em posição subalterna. Para uma empresa como a Kroton,
Mandeville (1670-1733). A lição de MILITARIZAÇÃO NAS REDES ESTADUAIS tanto a BNCC como a reforma do ensi-
Mandeville volta a fazer sentido no mo- A publicação do último Atlas da vio- A ARTICULAÇÃO DO GRANDE CAPITAL no médio podem representar verda-
mento atual da educação brasileira, lência no Brasil expõe a situação dra- O Ministério da Educação é hoje deiras minas de ouro. Seus técnicos já
cuja herança de inovação se depara mática na segurança pública. As séries campo de atuação de fundações de di- estão elaborando as “soluções” neces-
com diversas ameaças. Inventariamos estatísticas, incluindo a impressionan- reito privado, alimentadas pelo finan- sárias, com livros adequados às novas
algumas no texto que se segue. te cifra de homicídios, não escondem a ciamento de grandes grupos econômi- normas e programas de ensino a dis-
principal vítima dos crimes contra a vi- cos. Fundação Lehman, Instituto tância para a parte flexível do nível
ESCOLA SEM PARTIDO da: o jovem pobre, morador das perife- Península (Abílio Diniz), Itaú Cultural e médio, vendidos a preço módico às
Boletim de ocorrência. Esse é um rias dos grandes centros urbanos. Fa- Todos pela Educação são alguns dos escolas de todo o país.
dos links presentes no site do movimen- mílias assustadas são alvo fácil da mais braços que articulam políticas públicas A histeria aparece na mídia, a de-
to Escola sem Partido, e o nome já anun- recente solução simples – e errada – pa- educacionais dentro do governo. A re- magogia ganha o noticiário, mas o ca-
cia, ou denuncia, como seus integrantes ra o complexo problema da violência forma do ensino médio e a Base Nacio- pital trabalha mais discretamente. En-
veem a educação. Caso de polícia. juvenil, correlato da evasão escolar: a nal Comum Curricular (BNCC) nasce- quanto os palhaços ocupam o palco e
Acessando a página, o leitor é con- militarização dos colégios estaduais. ram das demandas dessas entidades. distraem o público, os diretores do es-
vidado a apontar episódios de pretensa A ideia consiste em colocar, na dire- Não se nega a situação precaríssi- petáculo fazem seu trabalho discreta e
doutrinação ideológica perpetrada por ção e nas coordenações dos colégios es- ma do segmento médio da educação minuciosamente. Como diria Mande-
docentes de escolas e universidades, taduais, oficiais da Polícia Militar. Com básica, cuja evasão chega à metade dos ville, nada de desejos: apenas o neces-
ou até mesmo fora de sala de aula, em sua autoridade, restaurariam a disci- alunos matriculados, tampouco a ne- sário ao trabalho... e ao lucro.
opiniões nas redes sociais, por exem- plina, eliminariam os desvios e melho- cessidade de um mínimo curricular
plo. O discurso persecutório é eviden- rariam o rendimento dos alunos. Os nacional, importante fator de equida- *José Ruy Lozano é sociólogo, autor de li-
te, e as “acusações” abundam, num indicadores dos colégios militares bra- de. A condução de tais temas, no en- vros didáticos, conselheiro da Comunidade
linguajar grotesco que denuncia desde sileiros seriam a prova da eficiência. tanto, tem por objetivo mais a adequa- Reinventando a Educação (Core – www.co-
a defesa dos direitos humanos básicos, Enquanto os países com os me- ção da escolaridade a parâmetros reduc.org) e coordenador pedagógico geral
inscritos na Constituição, até a análise lhores indicadores de educação (e os supostamente objetivos de quantifica- do Colégio Nossa Senhora do Morumbi –
das condições de trabalho na Revolu- mais caros colégios particulares bra- ção e preparação de mão de obra do Rede Alix.
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 11

SEGURANÇA

Violência, subjetividades e projetos


de vida e cidadania no Brasil
Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais
do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam
a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar
POR BRUNO PAES MANSO, RENATO SÉRGIO DE LIMA E SAMIRA BUENO*

N
as salas de aula do ensino mé- A prisão passou a ser uma das pou- Se a educação é a maior “arma” da pelo Ministério Público, secretarias
dio da rede pública, professo- cas políticas públicas universais para cidadania, a frustração ajuda a sabotar de administração penitenciária, insti-
res costumam reclamar dos os jovens brasileiros pobres e negros, a tarefa dos educadores de abrir portas tuições de investigação econômica e
desafios para prender a aten- independentemente de ela ser hoje o para o futuro dos adolescentes. A se- penal, em âmbito estadual e federal.
ção dos jovens. Numa mistura de ceti- principal celeiro do crime e da violên- gurança passa a ser vista como tema Quem são os chefes e grandes finan-
cismo e fatalismo, muitos alunos pre- cia no país. Vivemos em um transe, em exclusivo das polícias e vira presa fácil ciadores, onde o dinheiro é depositado
ferem abandonar a escola para ganhar que se acredita que o veneno que nos de discursos pautados no medo e na e lavado, de onde vêm as mercadorias
dinheiro e se sustentar, como se sou- sufoca como nação democrática é o exploração da desesperança e na falta ilegais, quais são as conexões com auto-
bessem dos obstáculos que teriam pa- remédio para nossos males. de perspectivas. O mata-mata é esti- ridades, onde compram armas. A capa-
ra escapar do futuro insosso que os es- Em 2005, no primeiro levantamen- mulado pela covardia política e pela cidade de sedução das facções e quadri-
pera. É como se as escolas não fossem to feito pelo Anuário Brasileiro de Se- valentia retórica de quem se arvora lhas vai diminuir com a queda do lucro
capazes de despertar em muitos jo- gurança Pública, o país tinha registra- porta-voz da virtude. gerado nessas atividades. Para tanto, a
vens a capacidade de sonhar; não fos- do 40.975 homicídios. Em 2017, foram Nas prisões lotadas, as lideranças batalha urgente a ser travada é aquela
sem capazes de interagir com múlti- 63.880 casos. Isso para não falar dos criminais se aproveitam para engros- para emperrar a engrenagem financei-
plas moralidades e estimular um novo mais de 60 mil registros de estupros e sar suas fileiras, criando um discurso ra do crime. Não precisamos de mais
padrão ético pautado na cidadania e das mais de 220 mil ocorrências de sedutor. “O crime fortalece o crime” é guerras para alimentar os senhores da
na vida como valor público supremo. violência doméstica contra mulheres. um dos motes dos grupos criminosos. morte, encarcerar e/ou exterminar jo-
Escolas que poderiam servir como As prisões superlotadas, em vez de Como o sistema os enxerga como ini- vens pobres e negros.
portas de entrada da rede de acolhi- controlarem o crime, se tornaram lo- migos, sujeitos a serem exterminados Mais importante, contudo, é a dis-
mento, atendimento social e cidadania cais de articulação e formação de re- ou trancafiados sem direitos, cabe se puta das subjetividades masculinas na
isolam-se em seus edifícios cada vez des para as lideranças criminais. O rá- organizar para ganhar dinheiro no cri- transição da adolescência para a vida
mais vilipendiados e ameaçados pelo pido fortalecimento e espraiamento me e “bater de frente” com o sistema. adulta. O desafio é liderar e apontar
crime, que parece seduzir principal- das facções dentro e fora dos presídios Uma política de segurança precisa caminhos para esses corações e essas
mente as subjetividades masculinas mudou a cena do crime no Brasil, am- desmontar essa máquina de guerra e mentes. Para construir sonhos e sedu-
em formação, oferecendo a possibilida- pliando o mercado de drogas e de ar- de encarceramento que ajudou a pro- zir, as instituições do Estado devem
de de uma vida de aventura, insubmis- mas em escala inédita. mover a expansão do crime e fortale- abrir portas, estimular a vontade de
são, consumo, satisfação desenfreada Mesmo diante das evidências dos ceu as facções. Para isso, as polícias compartilhar uma vida comum e soli-
das pulsões e desejos, e luta contra um limites dessa política, alguns candi- devem agir com estratégia e foco, de dária. Isso é feito com escola, arte, cul-
sistema que oprime e humilha, mesmo datos seguem prometendo mais do forma inteligente, para fragilizar eco- tura, esporte, lazer, saúde de qualida-
que ao preço de morrer jovem ou de mesmo remédio-veneno. Defendem nomicamente as tiranias armadas fi- de, debates, conversas, incluindo
perder a liberdade numa prisão lotada. só construir prisões e endurecer as nanciadas pelo dinheiro ilegal, que ge- aqueles que um dia se iludiram com as
Como convencer os adolescentes a penas; defendem e louvam a violên- ra violência no tráfico de drogas, nas promessas do crime até perceber que
duvidar das ilusões e promessas da vi- cia como resposta à violência, em milícias e nos grupos de extermínio estavam sendo enganados. Enganam-
da no crime? Como despertar nesses uma vendeta que parece longe de que matam e cobram para oferecer -se aqueles que acreditam que a auto-
jovens sonhos de contribuir para o acabar. Poucos olham para os custos proteção, entre outras atividades. ridade e o poder são exercidos com o
bem-estar coletivo do mundo em que econômicos e sociais dessas opções A vitalidade de democracias mo- uso desmedido da violência. Conse-
vivem? Como gerar empatia diante de político-ideológicas. dernas depende da capacidade do Es- guem liderar e fortalecer numa demo-
tantas injustiças e desigualdades? Co- As incursões cotidianas das polí- tado de preservar o monopólio do uso cracia aqueles que percebem que, na
mo fazer frente ao imaginário social cias militares nos bairros pobres, legítimo da força. A engrenagem de verdade, estão construindo sonhos e
que divide a sociedade entre “cidadãos prendendo muitas vezes usuários de guerra, além de produzir revolta nos disputando o futuro.
de bem” e “bandidos” e aceita que es- droga ou pequenos vendedores, geram jovens perseguidos, vem criando gru-
tes últimos sejam matáveis? violência desnecessária e excessiva. pos paramilitares que, ao terem carta
Em vez de despertarem sonhos e Um policial é morto todos os dias no branca para matar, acabam se voltan-
vocações, as instituições passaram a país. Em sentido inverso, as polícias do contra o Estado em defesa de seus
agir como se estivessem em conflito brasileiras mataram ao menos 14 pes- interesses financeiros e corporativos. *Bruno Paes Manso é doutor em Ciência
aberto contra os jovens pobres. Em soas por dia em 2017 e, mesmo que en- Mais do que o esforço brutal de Política pela USP, jornalista e pesquisador do
1990, o país tinha 90 mil presos, total tre estas haja casos legítimos, pouco se prender em flagrante nos bairros po- Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP);
que passou para 726 mil em 2016. Mes- divulga acerca das investigações e das bres, os alicerces estratégicos e fi- Renato Sérgio de Lima é doutor em So-
mo com a escalada vertiginosa de en- razões que motivaram essas mortes. nanceiros dessa atividade devem ser ciologia pela USP, professor da FGV-Eaesp e
carceramento, que dependeu também Em vez de controlar o crime e a violên- fragilizados. Isso depende do com- diretor presidente do Fórum Brasileiro de Se-
de investimentos crescentes no policia- cia, isso aumenta a sensação de raiva e partilhamento de informações entre gurança Pública; Samira Bueno é doutora
mento ostensivo militarizado nos bair- de impotência daqueles que passam a as instituições policiais e de justiça em Administração Pública e Governo pela
ros pobres, a situação degringolou. se enxergar como inimigos. desde Polícia Militar e Civil, passando FGV-Eaesp e diretora executiva do Fórum
12 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

AGRICULTURA E MEIO AMBIENTE

Diga-me o que propõe e


eu lhe direi quem você é
Nenhum dos programas dos presidenciáveis questiona a importância da
agropecuária. PT e Rede seguem essa toada. O programa de Ciro, apesar de
dedicado ao fortalecimento da indústria, não deixa de citar a importância do agro
e traz Kátia Abreu como vice. O programa de Alckmin diz em poucas frases tudo
o que o setor quer ouvir, como o aumento dos recursos para o Plano Safra
POR SERGIO LEITÃO E JAQUELINE FERREIRA*

© Caio Borges
Q
uem leva proposta de candida- O debate apressado da eleição, so- tais associados ao setor, como o uso de ga e energia. Nesse quesito, o famoso
to a sério no Brasil? Quem lê mado a propostas simplificadas sobre agrotóxicos e o desmatamento, os pro- licenciamento ambiental é visto como
programa de governo para de- temas relevantes, estimula o apareci- gramas dos candidatos Bolsonaro e condição necessária e importante ou
cidir voto? Ninguém, seria a mento de clivagens que, se não forem Alckmin preferem ignorar tais ques- limitador das propostas. O programa
resposta imediata e apressada. Afinal, bem resolvidas, podem implicar para- tões e levantar propostas que mais do PT faz duras críticas à flexibilização
parte-se do pressuposto de que em pa- lisia pela falta de um consenso míni- agradam ao setor, sem o estabeleci- das regras de licenciamento ambiental
lavra de político não se deve confiar e mo de como solucionar os problemas mento de quaisquer condicionantes pelo governo Temer, indicando uma
que suas promessas são como amor de pós-eleição. Além disso, por mais pa- para sua livre atuação. possível mudança em relação a esse
Carnaval. Um acaba na Quarta-Feira radoxal que isso seja, emulando Nel- O programa do Bolsonaro é uma ponto. Marina reforça a importância
de Cinzas; a outra dura somente até o son Rodrigues, que dizia que toda ode à sagrada propriedade privada e da consulta livre, prévia e informada
dia da eleição. unanimidade é burra, pode estimular nos remete a um texto escrito com tin- aos povos indígenas e comunidades
Esse senso comum merece uma re- a predominância de um projeto majo- tas do século XIX. Essa é uma ideia que tradicionais impactadas. Ciro fala em
lativização. Ao contrário do que mui- ritário e sufocar a possibilidade de are- já fora afastada pelas Constituições e aprimoramento das regras gerais de li-
tos acreditam ser o pouco apreço dos jarmos a visão do país sobre seu futu- leis dos países desenvolvidos, que ad- cenciamento ambiental, de modo a
brasileiros por fazer escolhas políticas ro. A forma como o setor agropecuário mitem intervenções no domínio dos combinar a necessidade de investi-
alicerçadas em conteúdo, a verdade é e sua interface com o meio ambiente meios de produção, como é o caso da mento e preservação ambiental e a ne-
que uma proposta ou programa, se são tratados pelos candidatos é um terra, justamente para propiciar o me- cessidade de utilizar outros instru-
não elege, pode fazer a diferença para bom exemplo nesse sentido. lhor funcionamento da economia, o mentos de política ambiental, como o
derrotar um candidato. Em que pese a maior ou menor pre- que é do interesse do país, porque gera zoneamento ambiental, para dirimir
O exemplo recente disso foi o caso sença de propostas ao setor nos progra- resultados para todos. conflitos sobre o uso da terra.
do candidato Celso Russomano na elei- mas, é preciso registrar que nenhum O candidato propõe ainda uma mu- Já Bolsonaro deixa claro que o li-
ção para prefeito da cidade de São Paulo deles questiona a importância da agro- dança radical no que ele chama de ges- cenciamento ambiental tem sido um
em 2012, quando propôs que a tarifa dos pecuária para nossa economia. Tanto o tão do espaço rural. A ideia é unir em entrave para os projetos de infraestru-
ônibus fosse estabelecida de acordo programa do PT como o da Rede se- um só ministério todas as políticas que tura, chamando-o de “barreiras in-
com a distância percorrida. A proposta guem essa toada. O programa de Ciro interfiram no espaço rural, do crédito à transponíveis”. Como solução, o can-
poderia fazer todo o sentido, pois, como Gomes, apesar de se dedicar, em sua gestão dos recursos naturais, que esta- didato propõe que o licenciamento
em um táxi, quanto mais se roda, mais maior parte, às propostas de fortaleci- riam espalhadas e “loteadas” em dife- ocorra no máximo em três meses,
cara é a corrida. O candidato só não mento da indústria, não deixa de citar a rentes ministérios. Isso significa dizer uma solução mágica para um proble-
avaliou que a população de menor ren- importância do agro e traz como vice- que a gestão das unidades de conserva- ma de extrema complexidade, que
da é quem ficaria no prejuízo, justa- -presidente ninguém mais, ninguém ção e demarcação de terras indígenas e exige estudos técnicos e consulta aos
mente por ser a que mora longe e per- menos do que Kátia Abreu. O programa quilombolas, por exemplo, estaria nas interessados, o que leva tempo, goste
corre as maiores distâncias. Quando ele de Alckmin, por sua vez, diz em poucas mesmas mãos de quem decide sobre o o candidato ou não.
se deu conta do erro, já tinha perdido frases tudo o que o setor quer ouvir, co- crédito rural – obviamente, algum re- Para Lula, Ciro, Marina e Alckmin,
uma eleição que estava quase ganha. mo o aumento dos recursos para o Pla- presentante do agro, que tem força su- já está claro que não dá mais para igno-
As propostas em um programa de no Safra, e traz em sua chapa presiden- ficiente para indicar o nome para rar o Acordo de Paris, o desmatamento
governo e as promessas que vão sendo cial a senadora Ana Amélia, uma compor ministérios e contrariar os le- e os Objetivos do Desenvolvimento
anunciadas ao longo da campanha na legítima representante do agro. gítimos interesses de indígenas e qui- Sustentável, por exemplo – compreen-
desesperada tentativa de melhorar os Os programas de Lula, Marina e Ci- lombolas pelo reconhecimento de são compartilhada também por parte
percentuais nas pesquisas, bem como ro afirmam que não é mais preciso seus direitos. A pergunta que fica é: se- do setor agropecuário. Em direção
o desmentido daquilo que não pegou desmatar para a agricultura do país rá que o setor gostaria de ter suas políti- oposta, Bolsonaro reforça a ideia de que
bem – que é o descarte da verdade que expandir sua produção. Lula e Marina cas arbitradas pelo Ministério do Meio a legislação ambiental é um entrave pa-
não interessa mais ao candidato –, fa- falam explicitamente em zerar o des- Ambiente? Por sua vez, e sem muitos ra o desenvolvimento, seguindo os pas-
zem parte do arsenal para disputar o matamento, enquanto Ciro, apesar de detalhes, Alckmin relaciona em um sos de um certo presidente do Norte.
voto. Esse jogo compreende, princi- não usar esse conceito, afirma que o mesmo parágrafo a ampliação do Plano Será que o Brasil e o agro que já deram
palmente, questões relevantes para a problema não é falta de espaço, mas de Safra e a garantia da paz e da segurança um passo à frente voltarão para trás?
sociedade, como aquelas que envol- ordenamento no uso e ocupação das jurídica no campo, deixando a interpre-
vem valores ou as voltadas para seto- terras. Enquanto os três candidatos tação para o leitor. *Sergio Leitão, advogado, é diretor executi-
res importantes da economia e com tentam superar a oposição entre a am- Por fim, todos os candidatos ressal- vo do Instituto Escolhas; Jaqueline Ferreira,
grande poder e influência, como é o pliação da produção agropecuária e o tam a importância de investir em in- cientista social, é coordenadora do Instituto
caso do agronegócio. enfrentamento de questões ambien- fraestrutura, como transporte de car- Escolhas.
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13

PERFIS DOS CANDIDATOS

Discursos políticos
e disputa hegemônica
Mais que uma análise objetiva das
propostas, queremos dar destaque
aos componentes estratégicos e
emocionais que as candidaturas
promovem em sua prática discursiva.
A imprecisão e o apelo emocional
ou moral das práticas discursivas,
que poderiam ser criticados do
ponto de vista racional dos
programas, passam a ter sentido

© Alves
como mecanismos estratégicos
de interpretaçãoda sociedade
e seus sujeitos
POR JORGE O. ROMANO,
ALEX L. B. VARGAS,
ANNAGESSE C. FEITOSA,
PAULO A. A. BALTHAZAR,
THAIS P. BITTENCOURT E
YAMIRA R. S. BARBOSA*

A
dimensão do “político” procura textos, performances e ações significa- públicos, declarações à imprensa, pos- não se sente representada”. A “crise
reconstruir tanto a sociedade na tivas dos sujeitos – é um dos principais tagens nas mídias sociais, assim como política” é o principal problema a ser
qual vivemos quanto seus pró- meios de articulação de suas identida- os programas de governo propostos. superado no país, pois dela derivaria o
prios sujeitos. des múltiplas. Passemos a uma síntese dos casos. conjunto de crises e problemas.
No olhar de Ernesto Laclau e Chan- Com esse referencial, procuramos Com base nesse diagnóstico, seu
tal Mouffe,1 a luta política é sempre uma olhar as eleições em curso por meio da MARINA: A NOVA POLÍTICA discurso nomina um “nós”, sob o signi-
confrontação entre diferentes práticas e análise dos discursos políticos de um O discurso político de Marina, mu- ficante vazio2 da “nova política”. A nova
projetos hegemônicos antagônicos. O conjunto das principais candidaturas lher, negra, 60 anos, candidata pela política torna-se o ponto nodal3 de seu
antagonismo é inerente ao político, e as – Marina, Bolsonaro, Lula, Alckmin, Rede Sustentabilidade, constrói uma discurso, articulando em seu entorno
questões políticas sempre envolvem es- Ciro e Boulos – como um momento da autoidentidade que articula a ambien- uma cadeia de equivalências4 que ten-
colhas entre alternativas muitas vezes disputa hegemônica que vem se tra- talista, a evangélica convertida, a polí- ta preencher as principais demandas e
opostas sobre a sociedade. vando no país. tica íntegra e ética, e a superação: de insatisfações: “verdade, ética e con-
Ao mesmo tempo, no mundo de ho- Mais que uma análise objetiva das menina analfabeta num seringal do fiança; legitimidade e credibilidade;
je há uma pluralidade de posições ocu- propostas de seus programas de gover- Acre a atual candidata. Seus antago- protagonismo da sociedade; projeto de
padas pelos sujeitos. Suas identidades no, queremos dar destaque aos compo- nistas conservadores a veem como país, fim da reeleição; refundar a Repú-
sociais são múltiplas, descentradas e nentes estratégicos e emocionais que melancia: verde por fora, vermelha por blica; renovação e dignidade para a po-
deslocadas: estão em processo de re- as candidaturas promovem em sua dentro, pelo fato de ter sido petista. Pa- lítica”. O mecanismo de deslocamento
construção e abertas a diferentes arti- prática discursiva. A imprecisão e o ra a esquerda, Marina é criticada pelo de sentido dessas cadeias faz que, para
culações, sempre parciais e não defini- apelo emocional ou moral das práticas oportunismo político em razão de sua aquele que escuta, um elo atualize os
tivas. O discurso político tem a virtude, discursivas, que poderiam ser critica- glorificação da Operação Lava Jato. outros, conformando um campo se-
e o poder, de articular essas identidades dos do ponto de vista racional das pro- Também há críticas tingidas de ma- mântico amplo que não necessita ser
múltiplas e contingentes dos sujeitos. postas, passam a ter sentido como me- chismo ao desqualificá-la por sua fra- expresso em sua totalidade para ser
O discurso político entendido co- canismos estratégicos de interpretação gilidade para o cargo que disputa. apreendido em seu conjunto.
mo um conjunto articulado de marcos da sociedade e seus sujeitos. O discurso de Marina se constrói Sendo a construção das identidades
de interpretação da realidade funciona Para caracterizar o discurso de ca- em torno da identificação de uma de- políticas sempre em oposição, o discur-
estruturando pensamento, fala e ações da candidatura analisamos um con- manda e insatisfação latentes na so- so político de Marina nomeia como par
individuais e coletivas. Assim, a prática junto significativo de falas, textos e/ou ciedade brasileira: “A sociedade está antagonista – o “eles” – por meio do sig-
discursiva política – que inclui falas, performances expressos em eventos indignada, insatisfeita com a política, nificante vazio da “velha política”, ou
14 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

“política de conchavos”, articulando tam de segurança no campo”. Num o povo brasileiro: “Não sou mais uma dad, candidato a vice-presidente na
elos negativos como: “berçário da cor- apelo que está sendo eficaz, segundo pessoa, sou uma ideia..., andarei pelos chapa do Lula, e te convido para essa
rupção, projeto de poder pelo poder, ló- as pesquisas eleitorais, o discurso con- pés de vocês, pensarei pela cabeça de caminhada por todo o Brasil”.
gica patrimonialista, agenda de retro- clama os jovens que querem “subir na vocês... Eles não conseguirão prender
cessos, estelionato eleitoral, interesse vida”, valorizando o “mérito”. Em sín- as ideias e sonhos”. Tendo terminado ALCKMIN: FAZER O BRASIL CRESCER
de grupos privilegiados”. tese, o “nós” está conformado pelos seu segundo mandato com 87% de O discurso político de Geraldo Alck-
Como forma de mobilizar, é co- “verdadeiros patriotas”. É no âmbito aprovação, seus críticos ressaltam que min, homem, branco, 65 anos, médico,
mum que os discursos façam uma re- da dimensão moral que se deve perse- “ele enganou muita gente” e que “está por quarenta anos ocupante de cargos
construção mítico-histórica do passa- guir o objetivo político de mobilizar – e embaralhando” o jogo democrático políticos, recentemente governador de
do, que estaria sob ameaça ou perigo. armar – os “cidadãos de bem” e cons- “mantendo sua candidatura”. São Paulo, candidato pelo PSDB em co-
Assim, Marina destaca o período de truir uma nova ordem. Sua interdição política marca seu ligação com o PTB e os partidos do
“33 anos da Constituição Federal de No sentido inverso, “eles”, “esquer- diagnóstico sobre o principal problema “centrão” PP, PR, DEM, PRB e SD, pro-
1988, de consolidação das instituições distas”, o inimigo que articula o negati- do país: “o golpe contra o povo”. “Lula cura construir uma autoidentidade de
públicas, direitos sociais e estabilidade vo e desprezível na sociedade é asso- preso fora das eleições” é a volta da ex- candidato “da mudança, do novo” e a
política e econômica”. A emoção é ciado a “bandidagem, imoralidade e clusão social e econômica da maioria, de um “político experiente e ético”.
acionada como forma de conquistar corrupção” e a grupos sociais específi- com “o governo que só fala em corte e Argumenta que não se devem con-
corações e mentes. No lançamento de cos: “gays e homossexuais; mulheres; só corta dos mais pobres”. Com base siderar as pesquisas de intenção de
sua pré-candidatura, bandeiras do ativistas de direitos humanos proteto- nesse diagnóstico, “Lula livre” passa a voto: “As eleições mudam... Tiro vinte,
Brasil nas cores do partido flamejam res de traficantes e estupradores; de- ser construído como o ponto nodal de trinta selfies em cada viagem... Nin-
num teatro de arena, onde Marina se fensores do desarmamento; indígenas, seu discurso, sendo o “resgate de Lula guém vai chegar à Presidência da Re-
encontra ao centro, rodeada de segui- quilombolas, sem-terra e terroristas do preso o resgate de um Brasil feliz”. pública com sombra e água fresca”.
dores com cartazes: “Não dá pra querer campo; invasores da propriedade pri- O discurso constrói um “nós” em Seus críticos apontam que ele é o re-
mudar e não mudar, #2018 chegou”. vada, movimentos sociais e comunis- simbiose de “Lula livre” com o “povo, presentante do establishment neolibe-
Seus apoiadores acreditam que Ma- tas; cotistas, bolsistas e refugiados; in- trabalhadores, movimentos sociais, ral, que mente sem se perturbar quan-
rina é capaz de promover a chamada telectuais e jornalistas; socialistas e sindicatos, artistas; verdade; inocên- do diz que “São Paulo venceu a crise
nova política, governando com “o que sociais-democratas, doutrinadores de cia; fé na justiça imparcial baseada em hídrica” ou que detrás da pregação de
há de melhor na sociedade”, em que se Paulo Freire e Gramsci”. Em síntese, os provas, na política, na negociação, na “homem do diálogo” está quem auto-
incluem “empresários, acadêmicos, “antipatriotas”. paz; Brasil que avança e é feliz; sonho rizou reprimir manifestações como
técnicos, políticos”, independentemen- O passado idealizado que mobiliza de Lula: pobre comer carne, ir para a em 2013 ou 2015.
te de partido ou orientação política. Bolsonaro é o do “golpe militar, mo- universidade, ter carro, comprar casa”. No marco de seu diagnóstico, o
mento de ordem e progresso”. Em sua Sintetizando, “Lula candidato é resgate principal problema é a “estagnação
BOLSONARO: CIDADÃOS DE BEM, prática discursiva, a difusão repetida de da democracia e resgate da cidadania”. econômica do país”, associada a “uma
SEGURANÇA E MORAL imagens de sua recepção nos aeropor- Por sua vez, o “eles” apresenta uma crise de legitimidade dos três pode-
No discurso político de Bolsonaro, tos do país carregado nos ombros por cadeia de equivalências que articula: res”. Diante disso, Alckmin propõe
homem, branco, 63 anos, parlamentar seus seguidores, portando uma bandei- “elites; Lava Jato do mal, Polícia Federal “fazer o Brasil crescer” como ponto
por diversos mandatos, capitão do ra brasileira, procura reafirmar sua e Ministério Público da Lava Jato; Globo nodal de seu discurso, articulando
Exército reformado, candidato pelo condição de “mito” admirado pelo po- e grande mídia; justiça parcial baseada uma cadeia de equivalências com as
PSL, ele se autodefine por possuir po- vo. O tom do discurso é principalmente em convicções; negação da política, principais insatisfações da sociedade:
sições “em defesa da família, do direito emocional, direto, fundado no senso violência; Brasil para poucos, que anda “desemprego, falta de renda, carga tri-
à propriedade e da livre-iniciativa, comum e particularmente agressivo. para trás, vira-lata e deprimido; sonho butária”. Para superar os problemas
contra a erotização infantil nas esco- Justifica sua falta de resposta ante ques- deles: Lula fora de 2018, pobre não po- propõe “reformas estruturantes: polí-
las e por um maior rigor disciplinar”. tões específicas, alegando “não ser da der andar de avião, não poder fazer uni- tica, tributária, previdenciária e do Es-
Muitos de seus seguidores admiram área”, e sim “um capitão de Exército”, versidade”. Isto é: “Lula fora das eleições tado”, de cunho neoliberal.
suas posições contra a homossexuali- apesar de ter trinta anos de exercício é golpe contra o povo e perda da cidada- A identidade política do “nós” se dá
dade e concordam que bandido bom é parlamentar. Com seu desprezo ao inte- nia”. Porém, apesar de crítico, o discur- sob os significantes do “verdadeiro,
bandido morto. Para seus críticos, o lectual, procura converter seu limite e so de Lula mantém abertos seus canais não fazer espetáculo, experiência, des-
destaque obtido por Bolsonaro é fruto preconceito em virtude, tendo êxito de diálogo com a classe média, com o temido que enfrenta o corporativismo,
do contexto no qual medo, ressenti- nessa empreitada: “Ele é honesto, é sin- campo político e com o mercado. o novo, abertura comercial, diálogo e
mento e raiva são estimulados, e os cero, reconhece que não sabe tudo”. Partindo da memória recente sobre convencimento, do povo e interiora-
preconceitos e as posturas antirrepu- A aspiração do discurso político de o legado dos mandatos presidenciais no”. Na fronteira estabelecida, o “eles”
blicanas emergem, fertilizando o ter- Bolsonaro é que o processo eleitoral Lula e Dilma, as “Caravanas Lula pelo representa “estagnação, desencanto,
reno para a propagação do fascismo. seja dominado pelo moralismo, em Brasil” produzem em torno de Lula desesperança, antigo, demagogos que
Em seu diagnóstico, o que explica e que o “mito” representa o sentimento uma narrativa bíblica e dramática. É só falam, PT, corporativismo que coop-
caracteriza a injustiça no Brasil são a da “família ordeira brasileira”, ancora- um discurso de esclarecimento, que se tou o Brasil, populismo da Venezuela,
crise de insegurança e, sobretudo, as do na “tradição” e na “propriedade”. dirige ao racional, e de mobilização, bala como caminho ruim para resolver
crises ética e moral: “Nos últimos trin- Para ele, os recentes “governos demo- que se dirige à emoção por meio de os problemas, e dinastias políticas”.
ta anos, o marxismo cultural e suas cráticos esquerdistas aniquilaram a imagens que criam uma atmosfera de Como reconstrução mítica histórica
derivações, como o gramscismo, se ordem, a moral e os avanços do perío- devoção e simbiose entre “Lula e o po- do passado, o discurso de Alckmin re-
uniram às oligarquias corruptas para do militar”, tornando necessária a vo”. O formato caravana tem também mete – alinhado à visão tradicional da
minar os valores da Nação e da família “restrição dos direitos”, com repressão um significado de jornada coletiva, de classe média – aos anos dourados do
brasileira”. Com base nesse diagnósti- dos movimentos sociais por meio de odisseia heroica e de romaria, que po- Brasil, a um “passado próspero”, apon-
co, o discurso delimita o “nós”, “cida- seu governo: “liberal” economica- de ser de redenção e de um “novo co- tando as “décadas de 1930 até 1980” co-
dãos de bem”, articulados a “seguran- mente e “forte” politicamente, com meço”, uma “purificação”, que tradu- mo período de “ascensão e progresso”.
ça e moral; defesa da família, valores “autoridade” e “disciplinador”. ziria uma resposta para as demandas Sua imagem pessoal asséptica, de
cristãos conservadores, Escola sem de revisão de diretrizes equivocadas e camisas impecáveis, se conjuga com
Partido; redução da maioridade penal LULA: LULA LIVRE, O RESGATE DE UM BRASIL FELIZ de “erros cometidos no passado”. um discurso técnico do gestor pro-
e controle da natalidade; homens que No discurso político de Lula, ho- O discurso construído em torno de nunciado como provérbios e parábo-
valorizam as armas, a polícia e os mili- mem, branco, 72 anos, metalúrgico e Lula livre e do resgate do Brasil feliz las, mas sem carisma, reafirmando a
tares, e preferem as milícias às drogas; dirigente sindical, duas vezes presi- coloca o desafio de, caso Lula seja im- visão de seus críticos: é um “picolé de
proprietários que defendem a livre-i- dente do Brasil, candidato pelo PT em pedido de participar das eleições, seu chuchu”. Ele responde: “Não sou um
niciativa, em particular proprietários coligação com o PCdoB, a autoidenti- sucessor ter de falar e agir como uma showman”. É um dos candidatos com
rurais e do agronegócio que necessi- dade aponta para uma amálgama com extensão dele: “Eu sou Fernando Had- menor entrada nas mídias sociais. Po-
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 15

rém, sua coligação detém quase meta- meiro governo Lula – nos quais ele A refundação da democracia brasilei- sência dada à campanha de descrédito
de do tempo eleitoral na TV, assim co- foi ministro –, teriam resistido às ra e o enfrentamento da desigualdade na política e a interdição do candidato
mo o maior fundo partidário. “chantagens emedebistas”. Procu- implicam “colocar o dedo na ferida”, deli- com maior intenção de voto. Quarto, o
rando atrair o eleitor de Lula, diz: mitando o “nós”, a “aliança que represen- desafio para as candidaturas de cons-
CIRO: PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO “Depois de Lula, eu sou o mais pro- ta a diversidade do povo brasileiro: Psol, truir, expressar e replicar seus discur-
E SUSTENTAÇÃO DO PACTO SOCIAL gressista”. Com um tom enérgico e PCB, articulação de povos indígenas bra- sos por meio das novas mídias, dada a
No discurso político de Ciro Go- de autoridade e comportamento des- sileiros, MTST, coletivos feministas, LB- previsão de menor peso da TV nestas
mes, homem, branco, 60 anos, forma- temido, seu discurso articula um es- GT, movimento negro, Mídia Ninja, artis- eleições. Quinto, o discurso das candi-
do em Direito, deputado, governador e tilo tecnocrático didático com outro tas e intelectuais críticos, a sociedade daturas não pode ser predominante-
ministro, atualmente candidato pelo emocional, usando referências po- organizada”; isto é, os “99%”. Do outro mente intelectual, técnico e progra-
PDT, a autoidentidade passa por uma pulares nordestinas. “Cirão da mas- lado da fronteira fica o “eles”, que se arti- mático. Junto com a razão, a paixão é
valorização de sua trajetória: “Tem 38 sa” é visto por seus apoiadores como cula em torno do “sistema político cor- parte constituinte do político. Há de
anos de vida pública e seu nome nunca o único candidato capaz de promo- rupto” e da “república dos bancos: gran- haver um forte componente emocio-
foi associado a escândalos ou rouba- ver esse projeto para o país: um can- des corporações; elites e oligarquias; o nal, que chegue às pessoas. Sexto,
lheira. Ficha limpa, tem o preparo, a didato “preparado”, com “autorida- PMDB e as máfias do Congresso Nacio- transmitir autoridade – e não necessa-
firmeza, a experiência e a honestidade de” e “larga experiência na gestão nal; os fundamentalismos; o monopólio riamente autoritarismo – para dar
de que o Brasil precisa”. Porém, seu ca- pública”, com a “sinceridade” e rea- privado da mídia; o agronegócio”. Isto é, conta do sentimento urgente de mu-
ráter explosivo é motivo permanente lismo de quem conhece. os que defendem os interesses do “1%”. dar ou pôr ordem na “bagunça” em
de críticas, até agressivas (“necessita No marco motivacional, destaca que que tem se transformado o país.
uma cirurgia de língua”). BOULOS: REFUNDAR A DEMOCRACIA BRASILEIRA “o golpe jurídico-parlamentar-midiático Teremos de aprender a conviver
Em seu diagnóstico, o principal O discurso político de Guilherme de 2016 nos remeteu ao processo de des- com o conflito, e não só com o consen-
problema é a “desindustrialização do Boulos, homem, branco, 36 anos, for- nacionalização iniciado na década de so como fator central de nossa demo-
país”, intimamente ligada ao “cresci- mado em Filosofia, coordenador do 1990, que aprofundou as desigualdades cracia. Assim, o candidato ou candida-
mento da desigualdade social”. Para Movimento dos Trabalhadores Sem sociais”. Por sua vez, a defesa do “Lula li- ta terá de assumir um lado da fronteira
enfrentar tais problemas, o ponto no- Teto, candidato pelo Psol em coliga- vre” não impede a crítica à agenda reces- política. E qual fronteira prevalecerá
dal de seu discurso é a “construção de ção com o PCB, procura reafirmar a siva do PT de 2015, resultado da “infrutí- dependerá da eficácia e da ressonân-
um projeto nacional de desenvolvi- militância em sua autoidentidade: fera tentativa de conciliar os interesses cia dos discursos políticos nos recep-
mento que retome a industrialização, “Política pra mim não é carreira, é dos trabalhadores e da casa-grande”. tores nessa disputa hegemônica.
sustentado por um pacto social, uma desafio e ousar”. A escolha de Sônia Boulos expressa seu discurso com
aliança entre quem produz e quem Guajajara como primeira indígena a clareza, procurando fazer que sua análi- *Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Anna-
trabalha no Brasil”. disputar a Vice-Presidência reforça se intelectual e sua emoção de militante gesse C. Feitosa, Paulo A. A. Balthazar,
Seu discurso propicia a delimita- essa diferença militante. Além de sua dialoguem com a linguagem e as neces- Thais P. Bittencourt e Yamira R. S. Barbosa,
ção de um “nós” no qual “povo” e “Es- juventude e falta de experiência em sidades do povo. Para isso, parece inspi- professor, doutorandos e mestrandos, con-
tado” se conjugam numa cadeia de cargos públicos, seu engajamento é rar-se no discurso do Lula jovem. Na formaram no Programa de Pós-Graduação
equivalência que compreende: “cen- objeto das críticas mais ásperas: “De aplicação de seu programa antiesta- de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
tro-esquerda, povo soberano, defesa notório promotor da violência e do blishment, propõe “a construção de ou- Agricultura e Sociedade da Universidade Fe-
do interesse nacional, classe trabalha- confronto, agora brinca de ser o todo- tro projeto de poder cujo princípio seja a deral Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFR-
dora, pobres, burguesia nacional, se- -puro do jogo político”. radicalização da democracia e da parti- RJ) um grupo de reflexão sobre análise de
tor produtivo” e também o “São Lula Seu diagnóstico identifica a desi- cipação popular”. discurso populista.
(velho amigo)”. O “eles” articula “ren- gualdade social como principal pro-
tismo, plutocracia financeira; a direita blema do país, o que “exige um Esta- QUAL É A IMPORTÂNCIA POLÍTICA
entreguista; o MDB (quadrilha), Te- do que combata os privilégios e crie DESSES DISCURSOS?
1 Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemonía y
mer e suas providências antipovo e an- igualdade de oportunidades para Para responder, temos de nos per- estrategia socialista. Hacia una radicalización de la
tinacional; os bolsominions e a bandi- seu povo”. Para isso, o ponto nodal guntar: o que realmente vai pesar nestas democracia, FCE, Buenos Aires, 2015.
dagem; e a burocracia do PT”. de sua proposta é “refundar a demo- eleições? Primeiro, o bolso ante o de- 2 Quando palavras ou elementos de um discurso
perdem sua singularidade originária para significar
Sua reconstrução histórica valori- cracia brasileira”, articulado à neces- semprego, a perda aquisitiva das classes todo o conjunto de demandas.
za o “desenvolvimentismo” e resgata o sidade de “ouvir o povo, acabar com médias, o endividamento. Segundo, o 3 Elemento ou palavra articuladora das diferentes
“legado do primeiro governo Lula: go- o abismo entre Brasília e Brasil”. Afi- sentimento “antissistema, anti o que es- demandas.
4 Constitui-se pela articulação de diferentes deman-
verno mais útil ao Brasil” e “o governo nal, “é de baixo para cima que nós tá ali”. Terceiro, o crescimento dos votos das em torno de uma delas com potencial para
Itamar Franco”, que junto com o pri- vamos mudar a política”. em branco, nulos e justificativas de au- funcionar como um significante vazio.

SELEÇÃO OFICIAL
FESTIVAL DE CANNES
16 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

ONDA DE GREVES NOS ESTADOS REPUBLICANOS

Vermelhos em disputa nos EUA


Donald Trump adora se vangloriar da defesa dos “americanos esquecidos”, que vivem longe das metrópoles, em particular
em estados pobres e rurais. Ora, é exatamente nesses locais que um movimento social coloca em xeque a política republicana
de abandono dos serviços públicos. Nesse enfrentamento, os professores desempenham um papel-chave
POR CLÉMENT PETITJEAN*

C
hicago, abril de 2018. No cená- pouco menos que o salário médio. Es-
rio improvável de um hotel de se número, contudo, marca disparida-
luxo situado nos arredores do des importantes. Em razão da organi-
aeroporto O’Hare, cerca de du- zação federal do país, a política
zentas pessoas, de punho erguido, educativa (orçamentos, programas es-
bradam slogans de apoio aos professo- colares, faixas salariais, convenções
res do Arizona, Kentucky e Oklahoma: coletivas, direitos sindicais) varia for-
“Aguentem firme!”, “Não recuem!”. Es- temente de um estado a outro, e as dis-
se momento de solidariedade fecha paridades se agravam. Dessa forma,
uma oficina da Conferência Sindical enquanto os professores do estado de
Bianual organizada pela revista mili- Nova York recebem até US$ 79,5 mil
tante Labor Notes. Na tribuna, seis pro- brutos por ano (com 8,9% de aumento
fessores – um homem e cinco mulhe- real desde 2000), os do Mississippi re-
res – vestem roupas vermelhas, cor cebem US$ 42 mil (com uma queda sa-
emblemática do movimento Red for larial de 6% desde 2000). Neste último,
Ed (“Vermelhos pela educação”), que alguns professores precisam acumu-
joga com a ambiguidade característica lar dois, às vezes três empregos para
do vermelho: de um lado associado à fechar as contas no fim do mês. As
tradição socialista e, de outro, ao Par- condições de trabalho em geral são
tido Republicano, que governa os esta- inaceitáveis. Na tribuna da oficina rea-
dos tomados por uma onda de greves lizada no evento da Labor Notes, Dylan
desde o fim de fevereiro. Wegela, docente do Arizona, descreve,
Os primeiros protestos irrompe- diante de um auditório horrorizado, os
ram em pleno inverno na Virgínia Oci- barulhos de ratos no forro das salas de
dental. Controlado pelos democratas a aula, ou ainda as luzes acesas durante
partir dos anos 1930 e cenário de lon- toda a noite para espantar as baratas.
gas e violentas greves do setor de mi- O movimento se desenvolveu à
neração nos anos 1970, esse estado vi- votação em todas as escolas uma pro- livre associado aos Estados Unidos, margem das organizações sindicais
rou bruscamente à direita no início posta de paralisação. Os resultados não Porto Rico também se deparou com burocráticas que foram pegas de sur-
dos anos 2000, quando seus eleitores foram animadores, mas os 55 comitês uma greve de professores que protes- presa. Como ressalta Chris Brooks, um
mantiveram sistematicamente na li- da Virgínia Ocidental decidiram por tam contra o programa de privatiza- dos assalariados da Labor Notes, “vá-
derança o candidato republicano às unanimidade paralisar a partir de 22 de ção orquestrado com a secretária de rios sindicatos afiliados à Associação
eleições presidenciais. Junto com o fevereiro. Foi a primeira greve de profes- Educação da ilha, Julia Keleher. Desde Nacional de Educação funcionam de
Wyoming, é um dos dois estados onde sores e funcionários públicos desde sua posse em janeiro de 2017, ela fe- maneira legalista. Concentram-se na
Trump obteve a maioria dos votos ex- 1990, e eles figuraram em posição de chou cerca de 170 escolas, 15% dos es- prestação de serviços para seus afilia-
pressos (68%) nas eleições de 2016. força com centenas de postos vazios. No tabelecimentos. Uma lei votada em dos e se apoiam fortemente em profis-
Em novembro de 2017, um grupo dia 7 de março, após nove dias de greve março de 2018 prevê o fechamento de sionais da comunicação na área de po-
de professores, entre os quais alguns – dos quais cinco foram reivindicados mais trezentas escolas.3 Algumas gre- lítica para pressionar seus eleitos”.5 À
pertencentes aos Socialistas Demo- pela base diante da disposição imediata ves foram pontuais (um dia na Caroli- frente da greve no Arizona, Os Educa-
cratas da América (Democratic Socia- do sindicato de negociar com o governo na do Norte); outras duraram mais dores Unidos do Arizona se constituí-
lists of America, DSA), começou a se –, eles obtiveram 5% de aumento para tempo: seis dias no Arizona, dez em ram paralelamente ao principal sindi-
organizar e debater uma resposta co- trabalhadores da educação e outros Oklahoma, mais de quinze no Colora- cato docente do estado, utilizando as
letiva à degradação de sua situação funcionários públicos, assim como do. Vários movimentos obtiveram au- redes sociais como paliativo da ausên-
econômica e social junto ao principal uma moratória no aumento das mensa- mento salarial (de 2%, no Colorado, a cia de estruturas militantes.
sindicato local de educação. Em um lidades do seguro-saúde. Ao mesmo 20% em três anos, no Arizona) e au- A maior parte das greves, além dis-
estado onde os salários reais dos do- tempo, detiveram o projeto de expan- mento de recursos nas salas de aula. so, se desenrolou em estados onde os di-
centes caíram 8,9% desde 20001 e as são de escolas privadas sob contrato pú- No Colorado, os eleitos de duas cadei- reitos sindicais não possuem nenhuma
mensalidades do seguro-saúde não blico (charter schools).2 ras votaram aumento de orçamento ou quase nenhuma existência jurídica.
param de aumentar, o governador Depois desse êxito, a greve pouco a na educação, que leva o estado de volta As convenções coletivas não resultam
propôs um reajuste salarial de apenas pouco se expandiu para outros esta- aos índices de investimento na área de de negociações entre sindicatos e pode-
2% e um novo congelamento das pres- dos, do Arizona a Oklahoma, do Ken- 2008, antes da crise. Para além das es- res públicos no nível dos Conselhos de
tações relacionadas à saúde da Agên- tucky ao Colorado, passando pela Ca- pecificidades locais, pontos em co- Educação (Boards of Education), mas
cia dos Funcionários Públicos (Public rolina do Norte. Precarização dos mum se destacam. Essas greves che- são objeto de leis votadas por parlamen-
Employees Insurance Agency). salários, degradação das condições de garam primeiro a territórios onde a tares locais. Soma-se o fato de que
trabalho, ausência de recursos, insufi- profissão docente enfrentava condi- Oklahoma, Kentucky ou mesmo o Ari-
ciência dos mecanismos de proteção ções mais duras. Em nível nacional, zona figuram entre os 28 estados norte-
© Cau Gomez

RATOEIRAS NAS SALAS DE AULA


Depois de criarem redes militantes social (previdência e seguro-saúde) e um professor ganha em média um sa- -americanos onde se aplicam, em virtu-
descentralizadas, notadamente graças privatização do sistema público de en- lário bruto (antes dos descontos) de de da Lei Taft-Hartley de 1947, leis ditas
à internet, os docentes colocaram em sino são as principais queixas. Estado US$ 59 mil por ano (em 2017),4 um de “direito ao trabalho”, que permitem a
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17

todos os assalariados, sindicalizados ou tiva. Eles se opunham, principalmen- centes conquistaram o apoio e a con- torais em novembro. Por outro, é evi-
não, beneficiar-se das convenções co- te, à vontade das autoridades de fiança dos pais dos estudantes com dente que eles se oporiam fortemente
letivas negociadas pelo sindicato – o incentivar desempenhos individuais e quadros informativos nas saídas das se acontecesse em cidades controla-
que acaba por privar as organizações estimular contratos de concessão com escolas, organizando ocupações de das por eles”, analisa Kevin Prosen,
de trabalhadores de fontes importan- escolas privadas. Presente na confe- estabelecimentos ou ainda distribuin- militante sindical que ensina inglês
tes de recursos, como a contribuição rência da Labor Notes, Rebecca Garelli do refeições para os estudantes desse em um colégio no Queens, Nova York.
sindical mensal. ensinava em Chicago antes de se mu- estado em que 24,5% das crianças vi- A questão poderia muito bem se
O recente parecer entregue pela dar para o Arizona em 2017. Participou vem na linha da pobreza. Assim, quan- colocar, pois o movimento já começou
Corte Suprema sobre o dossiê “Janus ativamente do movimento em 2012. do o governador do estado denunciou a extrapolar as salas de aula. Em julho
vs. American Federation of State, Cou- “Minha experiência em Chicago me a “mentalidade de bandido” dos pro- de 2018, mais de 2 mil enfermeiras e
nty and Municipal Employees Council ensinou que é necessário e impreterí- fessores, além de chamá-los de “egoís- cuidadoras de Burlington, em Ver-
31” [Janus contra a Federação Ameri- vel obter o apoio dos pais e da comuni- tas e míopes”, suas declarações não mont, entraram em greve por dois
cana dos Funcionários Públicos de dade”, afirma ela sob o olhar vibrante encontraram nenhum eco.9 dias, reivindicando aumento de salá-
Municípios, Condados e Estados, de Jesse Sharkey, copresidente do sin- rio e cobertura de saúde universal pa-
AFSCME] poderia, ademais, estender dicato dos docentes de Chicago (Chi- EM CIDADES DEMOCRATAS TAMBÉM ra seus pacientes. Esse movimento de
esse tipo de disposição ao resto do cago Teachers Union, CTU) e media- A greve de Chicago também evi- solidariedade se constituiu em torno
país. Encorajado pelo governador re- dor do debate. Fato raro, a greve denciou as continuidades ideológicas das palavras de ordem “Red for Med”
publicano de Illinois, o bilionário Bru- terminou em vitória: revalorização sa- entre republicanos e democratas no (“Vermelhos pela medicina”). Entre os
ce Rauner, o trabalhador social Mark larial, extensão das jornadas de aulas, que se refere à educação. A mobiliza- signatários do apelo por apoio, estão
Janus, desse mesmo estado, entrou em fim dos prêmios por mérito. ção se desenrolou em um bastião de- várias lideranças e participantes do
2015 com um processo contra a Desde 2010, com sua eleição para a mocrata, cujo prefeito, Rahm Ema- movimento dos professores.
AFSCME, reivindicando que as men- liderança do comitê de docentes de ba- nuel, defende uma política agressiva
salidades obrigatórias estabelecidas se (Caucus of Rank-and-file Educators, de privatização dos serviços públicos *Clément Petitjean é doutorando em Civili-
pelo sindicato violavam seu direito Core), a CTU desenvolveu um sindica- (transportes, hospitais, educação). zação Americana na Sorbonne, França.
constitucional à liberdade de expres- lismo de luta que buscava romper com o Desde sua eleição, em 2011, ele fechou
são, garantida pela primeira emenda. modelo norte-americano de organiza- metade dos hospitais psiquiátricos da
O caso chegou à Corte Suprema, que, ção burocrática e corporativista. Uma cidade, assim como dezenas de esta- 1 “Digest of Education Statistics 2017” [Sumário de
em 27 de junho último, deliberou a fa- das primeiras decisões da nova direção belecimentos escolares nos bairros estatísticas da educação 2017], National Center
for Education Statistics, Departamento de Educa-
vor do reclamante.6 Com atualmente sindical foi criar um serviço chamado pobres, cuja população é majoritaria- ção dos Estados Unidos, Washington, DC.
70% dos 3,8 milhões de docentes da re- “implantação militante”. “Queremos mente negra ou hispânica – favorecen- 2 Sobre as charter schools, ler Diane Ravitch, “Volte-
de pública, os sindicatos são particu- ser um sindicato combativo, tecer laços do o desenvolvimento de charter -face d’une ministre américaine” [A reviravolta de
um ministro norte-americano], Le Monde Diploma-
larmente visados pela decisão da Cor- com os pais dos estudantes, com a cole- schools. Enquanto as greves desses úl- tique, out. 2010.
te Suprema. Eles correm o risco de tividade”, lembra Sarah Chambers, do- timos meses são enaltecidas em sua 3 “Gobernador de Puerto Rico firmó la ley de refor-
perder até um terço de seus integran- cente em educação especial desde 2009 grande maioria por comentaristas ma educativa enfocada en las escuelas charter y
vales educativos” [O governador de Porto Rico
tes e suas mensalidades.7 e copresidente do Core de 2013 a 2017. “progressistas”, os professores de Chi- sancionou a lei da reforma educativa focada nas
Enaltecer excessivamente o con- “Na minha escola, por exemplo, come- cago, cujas reivindicações não diferem charter schools e vales educativos], Univision,
texto político atual, contudo, pode çamos por fundar um comitê encarre- muito das de seus colegas do Kentucky Guaynabo, 29 mar. 2018.
4 “Digest of Education Statistics 2017”, op. cit.
obliterar o fato de que a importância gado de discutir a convenção coletiva. ou de Oklahoma, foram unanime- 5 Chris Brooks, “After the wave” [Depois da onda],
da mobilização dos docentes se ins- Foram atribuídos papéis a cada um: mente crucificados pelo New York Ti- Jacobin, Nova York, 7 maio 2018.
creve em uma ascensão de movimen- ocupar-se da comunicação, estabelecer mes e pelo Washington Post. “As greves 6 Doug Henwood, “The disappearing strike” [A gre-
ve minguante], Jacobin, 12 fev. 2018.
tos sociais que vem acontecendo há laços e diálogos com os pais, com o de docentes jamais são uma boa ideia 7 Dana Goldstein e Erica L. Green, “What the Su-
certo tempo: longa greve de assalaria- bairro, com os estudantes. Durante o porque prejudicam os alunos e suas preme Court’s Janus decision means for teacher
dos do setor público no estado de Wis- movimento, os integrantes do comitê famílias”, determinou o primeiro (11 unions” [O que a decisão da Suprema Corte sobre
o caso de Janus significa para os sindicatos docen-
consin8 e movimento Occupy Wall desempenharam um papel de motori- set. 2012), enquanto o segundo consi- tes], The New York Times, 27 jun. 2018.
Street em 2011, luta dos assalariados zação. Os pais sustentavam os piquetes derou também que as greves “afetam o 8 Ler Rick Fantasia, “Sursaut du mouvement social
da restauração para obter aumento do da greve, nós levávamos comida de ma- desempenho dos alunos” (10 set. américain” [Sobressalto do movimento social nor-
te-americano], Le Monde Diplomatique, abr. 2011.
salário mínimo a partir de 2013. Em nhã e na hora do almoço; os estudantes 2012). “O movimento atual das greves 9 Philip M. Bailey, “Bevin renews spat with Kentucky
setembro de 2012, os cerca de 30 mil tocavam música.” coloca os democratas em maus len- teachers, saying pension opponents have a ‘thug
docentes de Chicago já tinham parado Essa estratégia inspirou outras çóis: de um lado, apoiam o movimento mentality’” [Bevin renova seus argumentos sobre
os professores do Kentucky, dizendo que oposito-
o trabalho depois do fracasso das ne- ações. No Kentucky, por exemplo, para porque ele acontece em terras republi- res da pensão têm uma “mentalidade criminosa”],
gociações de sua nova convenção cole- se preparar para a greve de 2018, os do- canas e esperam colher os frutos elei- The Courier-Journal, Louisville, 22 mar. 2018.
18 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

LUCROS EM ALTA, RESULTADOS EM BAIXA

O fiasco da privatização
das escolas na Suécia
Durante a campanha para as eleições gerais na Suécia, em 9 de setembro, o inesperado crescimento da direita xenofóbica
ocultou o debate sobre o futuro dos serviços públicos. Encabeçando um governo minoritário há quatro anos, os sociais-democratas
não conseguiram nem sequer limitar os lucros das empresas privadas que investiram na saúde ou na educação
POR VIOLETTE GOARANT*

“É
uma escola duas em uma”, resu- Sjödin, que ensina Matemática, enu-
me Elsa Heuyer. Essa professora merar as reivindicações dos alunos:
de Francês do liceu Drottning- “Eles querem poder ir ao banheiro a
-Blanka teve de aprender a “oti- qualquer hora, usar boné, mascar chi-
mizar” o tempo e o espaço em benefício clete na classe e usar celular”. Sofia
da AcadeMedia, a “empresa educativa” Berglin, professora de Biologia, inter-
cotada em Bolsa que a emprega em vém: “Os bonés não me incomodam”.
tempo parcial: 28,7%. Situado na região Segue-se uma discussão. “Aceitamos
sul de Estocolmo, seu liceu, um estabe- os bonés e continuamos proibindo os
lecimento privado sob contrato (cha- celulares?”, pergunta Sjödin.
mado friskola; plural: friskolor), divide Wall afirma invejar a França, esse
espaço com outro do mesmo grupo. “país civilizado onde, ao que parece,
Como o lucro é obrigatório, Heuyer pre- os professores apenas preparam e dão
© Daniel Kondo

cisa cuidar de duas turmas na mesma as aulas, e prescrevem os deveres”.


classe: “Na prática, sou obrigada a divi- Aqui, além de vigiar a recreação e a
dir o tempo do curso por dois”. cantina, a equipe docente organiza
Seus colegas professores de Espa- uma série de atividades: exames, even-
nhol, Sandra Nylen e Adrian Reyes, le- tos de integração, programas esporti-
cionam em tempo integral e ensinam exemplo, custa 10 mil euros por ano). so, consagrando mais de 7% do PIB à vos, agenda e informações gerais por
também outra matéria – fato comum Resultado: quase inexistentes na déca- educação, tornou-se o país europeu intermédio do blog da equipe de tra-
na Suécia. Cada um assiste quinze alu- da de 1990, os colégios particulares que mais gasta na área.3 A diferença balho. Esta se reúne toda semana para
nos, desempenhando o papel de men- sob contrato representavam em 2017 diminui entre os bons alunos e os de- um encontro chamado aprendizagem
tor, como se diz em sueco. Por e-mail quase 20% dos colégios suecos.1 mais, sobretudo os de famílias de imi- colegial, que discute assuntos pedagó-
ou telefone, devem manter contato A busca pelo “cliente satisfeito” le- grantes. Paradoxalmente, os alunos gicos. O conjunto dos professores do
permanente com os pais a fim de con- va a uma inflação de boas notas, facili- continuam a afluir para as escolas pri- colégio tem de produzir “documentos
trolar a frequência e o progresso dos tada pelo fato de os exames nacionais vadas, ainda que, com perfil socioeco- de reflexão” e fazer pesquisas sobre o
alunos em todas as matérias. “Quando serem corrigidos pelos professores do nômico equivalente, os resultados se- ambiente de trabalho para a diretoria.
um aluno encontra dificuldades, a cul- mesmo estabelecimento dos alunos. A jam melhores nas escolas públicas Baseando-se nos métodos das fris-
pa é do mentor”, suspira Reyes. Assim, escola melhora a tal ponto os boletins, (como na maior parte dos países oci- kolor, os professores da rede pública
não é raro ver o professor ajudando o para cuidar da própria imagem, que dentais). De fato, como as escolas pri- precisam oferecer um acompanha-
aluno a melhorar as notas em uma pais e alunos podem obrigar o profes- vadas atraem menos jovens das clas- mento individualizado, velando pela
matéria que ele não ensina. “Sempre sor a rever as provas. “É à la carte”, ses pobres, seus resultados parecem dinâmica de grupo. Precisam também
procuro garantir, junto aos alunos, zomba Heuyer, que no final de junho globalmente melhores. realizar esse exercício de equilibrismo
que tudo caminhe bem, pois sei que o deixa de ministrar cursos suplementa- sem levantar a voz para não parecerem
diretor vai me cobrar”, explica Nylen, res para “corrigir” as notas de alunos RELAÇÃO CLIENTE-PRESTADOR autoritários e serem rotulados como
nervosa. “Mas que fazer quando eles descontentes com a avaliação. Muitos A concorrência da área privada in- tais. Na aula de Matemática de Sjödin,
fracassam em várias matérias?” professores preferem passá-los de ano fluencia fortemente o sistema público, a porta permanece totalmente aberta e
O diretor do Drottning-Blanka “co- a lhes dar notas baixas e gerar um sen- tanto mais que ela se beneficia de uma os alunos têm o direito de ouvir música
bra” porque precisa de bons resultados timento de fracasso, além de um exce- reforma pedagógica comum de indivi- enquanto fazem os exercícios. “Isso
para conservar seus alunos e atrair ou- dente de trabalho e estresse. dualização do aprendizado, que dá melhora minha concentração”, explica
tros. Após a volta ao poder dos “parti- Desse modo, numerosos alunos, mais liberdade aos alunos – e prejudi- Kevin em meio ao vaivém dos colegas
dos burgueses”, em 1991, o primeiro- pais e autoridades políticas alimen- ca os das famílias mais modestas. “O que se levantam para buscar um lápis
-ministro do partido dos moderados tam uma ilusão de sucesso, enquanto relacionamento entre aluno e profes- ou uma borracha, à disposição nas sa-
(do nome oficial Partido Moderado de o país vai caindo nas avaliações inter- sor se transforma no de cliente e pres- las de aula. Alguns preferem trabalhar
União), Carl Bildt, implantou o siste- nacionais. Na última classificação do tador”, constata Henrik Wall, professor em dupla; ajudam-se e tagarelam em
ma dos “cheques-educação”. Desde Programa Internacional de Avaliação de História e Sociedade no colégio pú- voz alta. Para aqueles que necessitam
então, não há mais carteirinha escolar Estudantil (Pisa, na sigla em inglês), blico de Skarpnäck, na área sul de Es- de silêncio, como Märta, são entregues
e as famílias podem matricular gratui- em 2015,2 a Suécia ficou na média dos tocolmo. Seus três colegas e ele, reuni- protetores de ouvido.
tamente os filhos na escola privada de países da Organização para a Coope- dos em “equipe de trabalho”, cuidam Uma adolescente que prefere ma-
sua escolha. A prefeitura entrega ao es- ração e o Desenvolvimento Econômi- de uns setenta alunos do 6º ano. Sema- tar aula é convidada por sua mentor a
tabelecimento um cheque, ou voucher, co (OCDE); já não ocupa os melhores nalmente ocorre um “conselho de alu- tomar um chocolate quente. Berglin
correspondente ao valor gasto por alu- lugares, como na primeira classifica- nos”, que ouve as sugestões dos inte- comunica aos colegas uma agenda
no do setor público que resida no mu- ção, em 2000, e registra um claro recuo ressados. Sentado à mesa de reuniões personalizada para ela, ainda que ela
nicípio (um colegial de Estocolmo, por em Ciências e Matemática. Além dis- na sala dos professores, Wall ouve Ida não se comprometa a segui-la... Um
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19

garoto traquinas vai para a sala da psi- Construídos na idade de ouro da Os lucros obtidos pela Kunskapsskolan cionando”, explica sua colega Shirin
cóloga da escola, onde é recebido com escola sueca, os dois prédios do colé- são por enquanto reinvestidos a fim de Ahlbäck Öberg, professora pesquisa-
doces. Faz-se de tudo para evitar o gio de Skarpnäck, que acolhem mil permitir sua expansão para além das dora na área de administração públi-
conflito e manter uma relação “simé- alunos, se destacam pelo conforto. fronteiras suecas. ca. “Tiramos da profissão todo o seu
trica” com o aluno, observa Wall. O ob- Voltados para o sul a fim de captar me- Uma missão complexa como a edu- atrativo.” Em média, os professores re-
jetivo é favorecer o diálogo e a nego- lhor a luz, abrigam dois ginásios de es- cação não pode ser considerada uma servavam apenas um terço de seu tem-
ciação, com risco de permitir abusos portes no interior e duas quadras de indústria, replica Samuel E. Abrams, po para preparar e ministrar as aulas,6
de poder por parte dos adolescentes. basquete. Perto de um campo de fute- diretor do Centro de Estudos da Priva- contra metade na França.7
Em 2017, o Departamento Sueco de bol, ergue-se a cantina e, em cima, a tização da Educação, da Universidade O grosso das tarefas administrati-
Ambiente de Trabalho recebeu 767 de- biblioteca escolar. de Colúmbia, Estados Unidos. “Quem vas visa mostrar resultados para o
núncias de ameaças e violência nas es- aufere lucros nesse setor tem a motiva- conselho municipal a que pertence a
colas primárias, colégios e liceus, ou ALUNOS SEM BIBLIOTECA E SEM LIVROS ção implícita de contrariar os interes- escola. “O Parlamento tentou limitar
seja, duas vezes mais que em 2012. Es- Os alunos de Kunskapsskolan não ses dos cidadãos. Pais, contribuintes e essas tarefas ladras de tempo, mas os
sa violência se volta principalmente têm biblioteca. Aliás, nem livros eles legisladores não podem saber se os conselhos continuaram exigindo rela-
contra os professores.4 têm! Após algumas reclamações de alunos aprendem o que devem apren- tórios de atividades e resultados”, con-
No colégio público de Skarpnäck, o pais, eles dispõem, todavia, de uma li- der. Onde há lucros, aumenta a possi- ta Ahlbäck Öberg. “Seria necessário
mal-estar se traduz por um forte ab- cença de livros on-line para Biologia: e bilidade de malversações.” que os 290 conselhos se entendessem
senteísmo: a cada dia, faltam em mé- é tudo. Pedra angular de sua organiza- para deixar os professores trabalhar
dia cerca de 10% dos professores. ção, as atividades dos alunos em papel PROFISSÃO DE PROFESSOR NÃO SEDUZ MAIS em paz, o que é muito difícil.” Privada
Quando não são substituídos por inte- serão logo abandonadas, para imensa Estudos recentes mostram que as assim de sua essência, a profissão já
rinos de uma empresa privada, seus tristeza dos professores. Mas, para a friskolor atraem mais as famílias prós- não seduz, tanto que um professor ga-
colegas presentes supervisionam as Kunskapsskolan, “as gerações futuras peras. “Imigrantes e membros de fa- nha, em geral, 200 euros a menos que o
classes ou dão cursos suplementares devem estar preparadas para um mílias pobres não nos procuram”, salário médio. “Filhos de professores
em matérias que não são as suas, a tí- mundo em evolução constante e ser confirma Arsenau-Buissière. “Temos não querem mais ser professores: é um
tulo de “colaboração” e “flexibilidade”. capazes de se adaptar a um mercado quinhentos alunos na lista de espera e sinal”, observa Bertilsson. “Além do
Erika Frimodig, professora de Espor- de trabalho imprevisível”, alardeia um seus pais querem matriculá-los por- mais, os bons alunos, para quem a es-
tes e delegada sindical, diz que ensi- vídeo promocional. que conhecem o sistema.” Pesquisa- colha dessa profissão era outrora um
nou francês a iniciantes do 6º ano... Toda semana, o aluno da Kunskaps- dor independente que estuda a segre- caminho natural, foram aos poucos
durante dois anos: “Tenho noções de skolan elabora sua própria agenda, se- gação gerada por esse modo de ignorando-a.” Nota-se uma queda no
francês, minha filha mora em Paris”, gundo seu ritmo e suas necessidades. organizar a educação, Per Kornhall número de candidatos dos cursos de
explica ela em tom convicto. Entra e sai das “oficinas”, onde, inclina- acrescenta: “Quando acaba de se ins- formação de professores, que se tor-
Em 2018, uma nova emenda ao pro- do sobre seu notebook, vai percorrendo talar num país cuja língua desconhe- nam cada vez menos seletivos.
grama geral impõe o aprendizado por as “etapas” do conteúdo on-line, que ce, você não tem muito acesso a boas Contratados diretamente pelas es-
computador. O equipamento de infor- um professor presente acompanha. informações. E as matrículas são feitas colas com base em currículos e cartas
mática se tornou obrigatório e sua Um encontro semanal de quinze mi- imitando os amigos, os vizinhos...”. de apresentação, os professores ficam
qualidade constitui um argumento nutos com o mentor lhe permite pôr em Para compensar a falta de informação, submetidos às regras do mercado de
para atrair os alunos. O Drottning- dia seus “planos de ação”. Instalada na no site da cidade de Estocolmo há um empregos, o que agrava as desigualda-
-Blanka fornece MacBook Air a seus cafeteria, que faz as vezes de sala de au- quadro comparativo que mostra uma des entre os estabelecimentos. “Os
alunos e professores, enquanto o colé- la, Stéphanie Arsenau-Buissière, pro- lista das escolas segundo critérios co- melhores querem trabalhar onde os
gio público de Skarpnäck adquiriu fessora de Inglês e Francês, alega “fa- mo resultados de pesquisas de satisfa- alunos tiram notas mais altas”, obser-
centenas de iPad e organiza conferên- miliaridade” com seus alunos. Como ção junto aos alunos, número de alu- va Bertilsson.
cias com convidados de fora, que esti- afirma um vídeo promocional, todo nos por professor ou porcentagem de Embora isso seja ilegal desde 2006,
mulam o uso de computadores em funcionário da Kunskapsskolan deve professores diplomados. quase um quarto dos professores de
classe. Todavia, apesar dos muitos ser ao mesmo tempo “mentor, facilita- Ex-defensores da reforma reconhe- colégio trabalharam sem diploma em
utensílios de que dispõem em sua pla- dor, acompanhante pessoal, proficien- cem seu erro: “Subestimamos a força 2017-2018, segundo a Skolverket, a
taforma, os professores do liceu Drott- te numa matéria, amigo e guia”. do poder econômico”, admite Åsa Fah- agência de educação nacional. Como o
ning-Blanka ainda distribuem fotocó- Diretora-geral do grupo fundado lén, presidente do sindicato de profes- diploma é exigido para a adesão a um
pias e lápis: “Os alunos não gostam de por seu pai em 1999, Cecilia Carnefeldt sores Lärarnas Riksförbund. “A socie- sindicato, a mobilização se torna difí-
ler na tela”, explica Heuyer, consterna- coloca nas nuvens o sistema Kunskaps- dade sueca é muito ingênua.” Ela nos cil. Alguns ignoram até que dispõem
da com a dependência extrema da in- skolan, que, diz ela, favorece a autono- recebe na sede do sindicato, situado do direito de greve, conforme se vê por
formática. Nylen reforça: “Na última mia dos alunos e exige menos professo- em frente ao túmulo de Olof Palme, uma pergunta feita com frequência no
quinta-feira, tivemos uma pane na in- res. Sem dúvida, seu país despencou no primeiro-ministro assassinado em site de um sindicato. Eis uma verda-
ternet. Vários alunos me perguntaram Pisa, mas, a seu ver, essa classificação 1986 e encarnação do socialismo à ma- deira ofensa à rica história das lutas
se a aula seria cancelada...”. “não é uma referência”, principalmente neira sueca de outrora: trabalhista, ter- outrora conduzidas por uma profissão
Um dos principais atores desse por não levar em conta “a criatividade e ceiro-mundista, feminista e favorável a que, cansada da guerra, acabou de-
“mercado”, o grupo Kunskapsskolan o trabalho em equipe”. Contudo, ela um Estado forte. Fahlén reconhece o pondo as armas.
(“escola do saber” em sueco), reivin- própria matriculou seus filhos na escola papel desempenhado pelos dois prin-
dica 13 mil alunos. O computador fi- do Castelo de Fredrikshovs, que afirma cipais sindicatos – Lärarnas Riksför- *Violette Goarant é jornalista em Estocolmo.
gura entre suas “seis competências aplicar um método de ensino de Mate- bund e Lärarforbundet – na adoção das
do futuro”, conforme se lê em seu site mática criado em Cingapura, país que reformas: “Éramos favoráveis a escolas
na internet; ele propõe um método pa- ocupava o primeiro lugar na classifica- particulares com diferentes tipos de 1 Serviço de Imprensa de Skolverket, a agência de
educação nacional.
dronizado on-line, o Kunskapsskolan ção Pisa 2015. Ela defende o princípio pedagogia”, admite ela, sorrindo. “Isso 2 “PISA à la lupe” [Pisa sob a lupa], OCDE, Paris,
Education (KED), que faz do aluno “o dos lucros obtidos por estruturas priva- deveria aumentar o pluralismo, a di- 2016. Disponível em: <www.oecd-library.org>.
ator de seu aprendizado”. O colégio de das com base em fundos públicos: versidade, e favorecer uma concorrên- 3 “Statistiques sur les dépenses d’éducation” [Esta-
tísticas das despesas da educação], Eurostat. Dis-
Enskede, a dois passos do de Skarpnäck, “Existem muitos fornecedores da ini- cia benéfica para os salários. Mas o que ponível em: <http://ec.europa.eu>.
é seu estabelecimento-vitrine. Nas ins- ciativa privada negociando com o Esta- aconteceu foi o contrário.” 4 “Fler utsätts vör våld i skolan”, Dagens Samhälle,
talações de uma antiga empresa, perto do”, alega. “Alguns produzem móveis; Para Emil Bertilsson,5 professor de Estocolmo, 12 abr. 2018.
5 Emil Bertilsson, “Skolla¨rare. Rekrytering till utbild-
de quinhentos alunos se apinham em outros, livros... Se você for sério em Ciências da Educação da Universidade ning och yrke 1977-2009”, 23 maio 2014. Disponí-
apenas dois andares, compartimenta- qualquer empreendimento, terá de ob- de Uppsala, “os sindicatos contribuí- vel em: <www.skolporten.se>.
dos por paredes de vidro. Para o pátio, ter lucros. Perder dinheiro não seria ram para a degradação da condição 6 “Lärarnas yrkesvardag”, Skolverket, 2013. Disponí-
vel em: <www.skolverket.se>.
o estabelecimento aluga da prefeitura bom para os clientes... se é que posso dos professores”. “Eles passam mais 7 Nota informativa do Ministério da Educação Nacio-
um campo de futebol. empregar esse termo para os alunos.” tempo redigindo relatórios do que le- nal, Paris, jul. 2013.
20 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

EDUCAÇÃO

A militarização das
escolas públicas
O cotidiano do aluno é profundamente alterado e o aprendizado é substituído pela repressão e por normas rígidas de
comportamento. Ele é obrigado a vestir o uniforme militar completo de estudante. O corte de cabelo dos meninos segue
o padrão militar e as meninas devem manter o seu preso. Esmalte escuro é proibido. Mascar chiclete, falar palavrão
ou se comunicar com gírias também são práticas banidas
POR RUDÁ RICCI*

© Daniel Kondo
A
educação pública brasileira se cional Comum Curricular (BNCC) foi fessor Waldocke Fricke de Lyra. Goiás fessor de uma escola estadual da cida-
tornou objeto de desejos estra- palco de uma ofensiva política de conta, hoje, com o maior índice de es- de de São Cristóvão, baleado por um
nhos ao mundo da educação. grande impacto por empresas e ban- colas militarizadas no país: um total aluno de 17 anos insatisfeito com a no-
Nos anos 1990, foi percebida co- cadas parlamentares vinculadas a in- de 26, seguido por Minas Gerais, com ta que recebera. Em Aracaju, a diretora
mo um grande mercado. Empresas se teresses religiosos e empresariais. 22, e pela Bahia, com 13, de acordo de uma escola municipal foi espanca-
lançaram na captura das redes educa- Entre as iniciativas de captura das com dados das secretarias estaduais da e golpeada com uma caneta por um
cionais públicas. Começaram pres- redes públicas de ensino, a mais es- de Educação. adolescente de 16 anos que acabara de
tando assessorias técnicas e cursos de drúxula foi a entrega de sua gestão às A medida segue um roteiro midiá- ter sido suspenso por ter causado uma
formação. Logo, avançaram sobre a corporações militares. Goiás, Distrito tico focado na espetacularização dos explosão dentro do banheiro da esco-
venda de apostilas com conteúdo edu- Federal, Roraima, Pará, Amazonas, casos de violência, como no caso da la. Foi a senha para a instalação do
cacional e cursos de formação. Mais Bahia, Santa Catarina, Ceará, Tocan- escola estadual Fernando Pessoa, em processo de militarização em várias
tarde, incluíram equipamentos de in- tins, Sergipe, Piauí. Governos esta- Valparaíso (GO). Para criar comoção e escolas estaduais.
formática e programas educacionais. duais governados por partidos distin- envolver a comunidade escolar no O efeito-demonstração é outra téc-
Até que começaram a adquirir escolas tos e até adversários convergem na apoio à militarização, foi divulgado à nica adotada para o convencimento
particulares e praticamente definir a adoção da militarização da gestão das exaustão o sequestro relâmpago de público. Destaca-se não apenas o im-
concepção curricular de muitas redes escolas públicas. Os motivos alegados uma professora da escola, além do as- pacto sobre a redução dos índices de
municipais de ensino. Levantamento são invariavelmente impressionistas, sassinato de um ex-aluno e o tráfico de violência, mas os resultados pedagógi-
da ONG Ação Educativa e do Grupo de fincados em relatos de violência no in- drogas no banheiro da unidade esco- cos. Em Goiás, as cinco melhores esco-
Estudos e Pesquisas em Políticas Edu- terior das escolas. Outras localidades lar. Um caso extremo e grave que é es- las públicas são administradas pela
cacionais (Greppe) identificou que, em já adotaram ou pretendem adotar a tampado como padrão estadual. PM, assim como as seis melhores esco-
2013, 339 municípios brasileiros ado- medida. É o caso de Santa Catarina, Em seguida, foram anunciados os las públicas baianas. No Ceará, a me-
taram esses sistemas privados de ensi- cujo governo estadual, representantes convênios que entregaram a adminis- lhor escola pública é gerida pela PM, e
no, sendo 159 deles em São Paulo. Em da Polícia Militar e os secretários exe- tração das escolas a um militar. No caso a quarta melhor, pelo Corpo de Bom-
2015, esse último número subiu para cutivos das Agências de Desenvolvi- de Goiás, a direção pedagógica ficou beiros Militar. No Distrito Federal, a
182 das 645 cidades paulistas. mento Regional decidiram implantar alinhada à Secretaria de Educação, mas melhor escola pública é o Colégio
Em seguida, a educação pública unidades educacionais militarizadas essa não é a regra em outros estados. A Dom Pedro II, sob o comando e res-
passou a ser palco de disputa do con- em Blumenau, Joinville e Laguna a partir de então, são adotados os princí- ponsabilidade do Corpo de Bombei-
teúdo a ser ministrado. Escola sem partir de 2018. Em Florianópolis e La- pios básicos militares de hierarquia e ros Militar. Em Tocantins, o Colégio
Partido, ONGs que passaram a tercei- ges já existem unidades escolares pú- disciplina em cada unidade escolar. da Polícia Militar já é uma das melho-
rizar oficinas de reforço ou comple- blicas militarizadas. Em Manaus, o Os mesmos argumentos espetacu- res escolas públicas.
mentação curricular, fundações e ins- modelo de gestão militar foi colocado lares e dramáticos foram realçados O desempenho diferenciado dos
titutos que sugeriram conteúdos ou em prática pelo prefeito Artur Virgílio nas justificativas para a adoção desse alunos de escolas militares em exa-
reformas educacionais às redes públi- Neto, do PSDB, na escola que agora se modelo de gestão em Sergipe. Desta- mes de proficiência como Prova Bra-
cas. A própria formulação da Base Na- chama 3º Colégio Militar da PM Pro- caram fartamente o caso de um pro- sil e Enem tem dado força à visão de
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que essas instituições deveriam ser- 1. A exclusão, que exila;


vir de referencial para as escolas pú- 2. A compensação, que impõe repa-
blicas do Brasil. ro à vítima do dano e provoca obriga-
ções àquele que é considerado infrator;
O QUE É ALTERADO COM A MILITARIZAÇÃO? 3. A marcação, que impinge uma
Entre as funções dos militares es- cicatriz, uma mácula simbólica no no-
tão as de cunho administrativo – o co- me do não ajustado, que humilha e re-
mandante e o subcomandante fazem duz seu status;

© Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil


parte do corpo diretivo – e as de coor- 4. O encarceramento, que gera a re-
denadores de disciplina, responsáveis clusão e se impõe como expediente
por fazer que os alunos cumpram as entre os séculos XVIII e XIX.
regras da cartilha militar. A disciplinarização da juventude
O cotidiano do aluno é profunda- estaria emoldurada por essa lógica pu-
mente alterado e o aprendizado é nitivista, em especial, definida pelas
substituído pela repressão e por nor- táticas da compensação e marcação,
mas rígidas de comportamento, na tal como sugere Foucault. O portal De-
quase totalidade dos casos. Ele é obri- sacato, fundado em 25 de agosto de
gado a vestir o uniforme militar com- 2007, publicou “5 razões contra a mili-
pleto de estudante. Camisa para fora tarização de escolas”, que sintetizam
da calça pode gerar advertência. O os principais elementos dessa lógica
punitivista. Seriam elas: Coral do Colégio Militar de Brasília durante desfile do 7 de Setembro
corte de cabelo dos meninos segue o
padrão militar e as meninas devem 1. O despreparo educacional dos
manter o seu preso. Esmalte escuro é policiais, que substituem o debate de Já a Associação Nacional de Pós- garante educação pública de qualida-
proibido, assim como acessórios mui- ideias pela coerção; -Graduação e Pesquisa em Educação de a todos os cidadãos, sem nenhum
to chamativos. Mascar chiclete, falar 2. A adoção do regime disciplinar (Anped) publicou em seu site o artigo tipo de distinção”.
palavrão ou se comunicar com gírias arbitrário; “Militarização de escolas públicas – Estudo elaborado por Alesandra de
também são práticas banidas da esco- 3. A relativização dos conceitos de solução?”, no qual sustenta que o ce- Araújo Benevides (UFC, campus de So-
la desde que ela se tornou militar. Ao direito, garantias e liberdades, subor- nário de violência nas escolas tem rela- bral) e Ricardo Brito Soares (Caen/
chegarem à escola, o cumprimento dinados a um rol de deveres; ção com as condições de trabalho nas UFC), intitulado “Diferencial de de-
passou a ser uma continência. Em se- 4. A associação da noção de bom ci- unidades escolares que aderiram a es- sempenho das escolas militares: bons
guida são perfilados em formação mi- dadão à obediência, mesmo que isso o se projeto. Segundo o artigo, o Fórum alunos ou boa escola?”, relativiza a re-
litar, seguida da revista de um coorde- tolha de suas individualidades e direi- Estadual de Educação (FEE) de Goiás lação entre gestão militarizada e de-
nador de disciplina. Uma vez por tos, perpetuando ainda mais as desi- repudiou a militarização, por ir contra sempenho escolar de seus alunos. Se-
semana há também a formação geral gualdades e a discriminação; os “princípios constitucionais de uma gundo os autores: “Esta atribuição
para cantar o Hino Nacional e o Hino à 5. A apologia ao regime de domina- escola pública, gratuita, democrática, direta do diferencial como efeito escola
Bandeira, hasteada conforme manda ção rigorosa, reafirmando o ciclo de com igualdade de condições de acesso é questionável dado que seus alunos
o protocolo militar. Ao currículo ofi- dominação e violência na qual se e permanência, pautada no pluralis- são diferenciados tanto por caracterís-
cial nacional os militares adicionaram formaram. mo de ideias e concepções pedagógi- ticas familiares como pelo acúmulo de
aulas de música, cidadania, educação Outros especialistas corroboram a cas”. O FEE-Goiás elencou quatro pon- conhecimentos (condição inicial), e o
física militar, ordem unida, prevenção crítica à política do terror e à instalação tos principais que demonstram a próprio processo de seleção que as es-
às drogas e Constituição Federal. do medo para o cumprimento e a acei- problemática desse novo ambiente es- colas militares estabelecem. Desta for-
Quem estuda no colégio militar tação de regras em detrimento do pro- colar aos quais o fórum se opõe: “De- ma, estimou-se uma função de produ-
Fernando Pessoa é convidado a “con- cesso educativo. “Resolve a violência terminar a cobrança de taxas em esco- ção à la Hanushek, na qual o efeito
tribuir voluntariamente” com o paga- por causa do medo da repressão, mas las públicas; implantar uma gestão escola está dissociado do efeito de he-
mento de uma matrícula (R$ 100) e de não resolve o problema real”, defende militar que não conhece a realidade terogeneidade dos alunos, relaciona-
uma mensalidade (R$ 50). O custo pa- Miriam Abramovay, doutora em Ciên- escolar, destituindo os diretores elei- do tanto a características familiares
ra o aluno inclui também a compra do cia da Educação e coordenadora do tos pela comunidade escolar; impor a atuais como a seu acúmulo de conhe-
uniforme militar, no valor de R$ 150. Observatório de Violência nas Escolas professores e estudantes as concep- cimento passado. Utilizou-se o méto-
Com a implantação da militariza- do Brasil. A escola atestaria, ao adotar ções, normas e valores da instituição do de pareamento CEM (Coarsened
ção em diversas escolas, o quadro de práticas exógenas aos processos edu- militar, comprometendo o processo Exact Matching) como estratégia de
docentes passou a ser formado por cativos, que se tornou incapaz de supe- formativo plural e se apropriando do seleção de amostra para permitir iso-
professores da rede estadual e por rar os quadros de indisciplina, de edu- espaço público em favor de uma lógica lar os efeitos dos alunos que já eram
policiais militares com licenciaturas car, segundo a especialista. O método de gestão militarizada; reservar 50% bons antes de chegarem ao ano letivo
específicas. da disciplina que proíbe o uso de pala- das vagas da escola para dependentes em análise (9º ano do ensino funda-
São distribuídas honrarias aos alu- vrões e de um linguajar mais despoja- de militares”. A coordenadora do FEE- mental). O diferencial de desempe-
nos que atingem médias acima de 8,5 do também é questionado por Abra- -Goiás, a professora Virginia Maria Pe- nho dos alunos militares tanto se deve
pontos em todas as disciplinas e regis- movay: “Falar palavrões e usar gírias é reira de Melo, acredita que os resulta- ao fato de estes serem bons alunos
tros de bom comportamento. normal entre os jovens, faz parte da dos obtidos nas escolas militarizadas, quanto à boa estrutura e qualidade
linguagem juvenil; em algum momen- os quais têm seduzido parte da socie- das escolas. Quando há o controle da
MILITARIZAÇÃO DO ENSINO to sai palavrão. Proibi-los disso é mais dade, advêm de “uma situação privile- performance anterior dos estudantes,
EM UMA SOCIEDADE PUNITIVA uma forma de repressão”. Por último, a giada e são decorrentes não da gestão observa-se uma queda de mais de 50%
Michel Foucault, numa série de pesquisadora pontua que não há nú- militar, mas das condições diferencia- deste diferencial de notas”.
conferências que realizou em 1973 no meros concretos que comprovem a efi- das efetivamente oferecidas. Caso es- O estudo corrobora, em síntese, os
Collège de France, tratou da lógica da ciência dos militares no combate à vio- sas mesmas condições estivessem pre- argumentos apresentados pela Anped.
sociedade punitiva. Para o autor, as so- lência na escola: “Nos Estados Unidos, sentes nas demais escolas públicas, Nos últimos anos houve reação de
ciedades contemporâneas não apenas quando a polícia entrou nas escolas, a elas e seus profissionais seriam com estudantes secundaristas à terceiriza-
excluem, mas também assimilam o violência só aumentou. Sabemos isso certeza capazes de assumir o trabalho ção da gestão de escolas estaduais de
que consideram anormais. O doente porque lá tem números, aqui não te- com a competência necessária”. A pro- Goiás. A resposta do governo foi o uso
apareceria como objeto de um saber mos. Os adolescentes e jovens estão fessora também aponta como esse ca- da força. Vale recordar que, desde 2011,
científico que o enquadra socialmen- sempre tentando burlar as formas de minho tem se afastado do “ideal repu- a Secretaria Estadual de Educação de-
te. Foucault destaca quatro formas de repressão que sofrem, por isso não se blicano definido após longos debates senvolveu a reforma educacional intitu-
táticas punitivas: resolve a violência desse jeito”. no Plano Nacional de Educação, que lada Pacto pela Educação, que adotou
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como referência o documento “Pacto Goiás conta com 46 escolas, com 53 dade, na medida em que regras morais A militarização das escolas públi-
pela educação: um futuro melhor exige mil alunos, sob administração da PM. já estabelecidas socialmente nortea- cas é mais uma faceta dessa experi-
mudanças”. O projeto foi estruturado Há cinco anos, o estado tinha apenas riam e adestrariam sua pulsão à liber- mentação que assola o meio educacio-
pela empresa de consultoria Bain & oito colégios militares. De 2013 para dade sem regras. nal brasileiro, cujos resultados são
Company, sediada em Boston, respon- cá, trinta escolas foram retiradas da O fundamento de toda concepção pouco estudados e o impressionismo
sável pela reforma educacional de Nova administração civil da Secretaria de educacional tradicional não é cons- é seu maior avalista.
York e Boston e, no Brasil, do Amazonas. Educação e transferidas para a PM. truir a autonomia do educando, mas Nas décadas passadas, esse experi-
A Fundação Itaú também se envolveu Outras 39 escolas estão em processo sua submissão. Esse é o centro do de- mentalismo jogou a educação norte-a-
com a reforma goiana. Em 2012, a refor- de militarização. bate educacional que o Brasil parece se mericana num fracasso desmoraliza-
ma motivou uma greve dos profissio- A mesma matéria indica que, entre negar a fazer. Ao adotarmos políticas dor. A adoção de modelos empresariais,
nais da educação que durou 51 dias. 2013 e 2018, o número de escolas esta- imediatistas, definidas ao calor da cri- focados em avaliações externas e pre-
O movimento dos estudantes se- duais geridas pela Polícia Militar sal- se por que passamos, sem reflexão ou miação de resultados, motivou fraudes
cundaristas destacou três grandes tou de 39 para 122 em catorze estados profundidade, e muitas vezes alimen- avaliativas e baixa aprendizagem. Os es-
bandeiras: fim da militarização dos da Federação, aumento de 212%. Em tadas por intenções populistas e de ga- tudantes passaram a ser treinados para
colégios estaduais, saída das organi- 2019, outras setenta escolas deverão rantia de resultados espetaculares, fazer testes, mas não para pensar ou de-
zações sociais (OSs) da educação e ser colocadas sob a gestão de militares mesmo que pouco duradouros, nos jo- senvolver a inteligência. Quem sustenta
reabertura do Colégio Estadual José nesses estados. A militarização das es- gamos na aventura e no desperdício de essa crítica foi a formuladora da refor-
Carlos de Almeida (fechado em 2014, colas públicas é mais intensa no Norte recursos que afetarão a vida de mi- ma, Diane Ravitch, que detalha os erros
sem consulta prévia à comunidade e no Centro-Oeste. lhões de crianças e adolescentes. cometidos em seu livro Vida e morte do
escolar). O movimento chegou a ocu- A militarização das escolas públi- grande sistema escolar americano: como
par a Secretaria de Educação, Cultu- O MODELO PEDAGÓGICO TRADICIONAL: cas está inserida nessa discussão ina- os testes padronizados e o modelo de mer-
ra e Esporte (Seduce) de Goiás, em A SUBMISSÃO CONSENTIDA cabada ou até mesmo inexistente. cado ameaçam a educação (publicado
2016. Segundo Criz Abreu, do grupo Do ponto de vista pedagógico, a Convivemos com concepções díspares no Brasil pela editora Sulina, em 2011).
de articulação da ocupação, “diante militarização das escolas públicas se em nosso país em termos de concep- A militarização das escolas é mais
das tentativas frustradas de dialogar apoia numa velha concepção educa- ção educacional. Concepções tradicio- uma aventura nessa direção, nascida
com o governador e com a secretária cional do início do século XX, sugerida nais (aquelas baseadas na formatação da falta de definição de nosso país em
de Educação [Raquel Teixeira], nós por Émile Durkheim. Para o sociólogo dos educandos para corresponderem relação aos princípios e objetivos edu-
ocupamos a Seduce”. Goiás foi um e professor de pedagogia francês, a às expectativas do mercado de traba- cacionais que perseguimos. Uma in-
dos estados com maior destaque de “submissão consentida” do educando lho ou de uma conduta social padroni- coerência que conflita até mesmo com
escolas estaduais ocupadas por se- seria um objetivo prioritário da educa- zada), concepções críticas (que priori- dados oficiais. Esse é o caso de recen-
cundaristas em 2016. No início de de- ção para que ocorra sua socialização. zam situações de reflexão crítica sobre tes estudos realizados pelo IBGE que
zembro daquele ano, alunas e alunos Segundo ele, o papel da educação é a o mundo em que vivemos e nossas op- indicam que o principal fator de de-
da rede estadual ocuparam 27 esco- socialização, ou seja, um processo em ções, tendo a construção da autonomia sempenho escolar nas redes públicas
las, envolvendo as cidades de Anápo- que se eleva o educando (a criança) de como objetivo pedagógico) e concep- brasileiras é o grau de instrução das
lis, Cidade de Goiás, Goiânia e São um estágio egocêntrico e selvagem pa- ções pós-estruturalistas (focadas em mães dos alunos. Mães com quatro
Luís de Montes Belos. Algumas esco- ra o de moralização, aceitação de re- experiências pessoais e grupais, nas anos de estudo formal têm filhos com
las sofreram processo de reintegra- gras de convívio e conduta social. identidades culturais e comportamen- três vezes melhor desempenho que
ção e foram desocupadas, por conta As regras, lembremos, são prescri- tais e nas pequenas narrativas cotidia- alunos cuja mãe nunca estudou.
da constante pressão da Secretaria tas, segundo Durkheim, pela religião e nas) se sobrepõem ou se digladiam Mas, para nossos gestores da área
Estadual de Educação, com apoio da pela educação laica. Tais instituições diariamente nas escolas e redes de en- educacional, dados e avaliações rigoro-
Associação de Pais. imporiam regras e normas que garan- sino brasileiras, criando um relativis- sas pouco interessam quando o objeti-
Segundo relatos publicados nas re- tiriam a coesão social. Em A educação mo pedagógico cujas vítimas são obje- vo é criar um programa espetaculoso,
des sociais, policiais atropelaram dois moral, Durkheim destaca os elemen- to de tal irresponsabilidade. que polemiza e atrai a atenção, um ata-
alunos de uma escola estadual goiana, tos da moralidade: o espírito da disci- Tamanha relativização sobre o pro- lho que pode dizer muito em termos
pularam o muro sem mandato de rein- plina, a adesão aos grupos sociais e a jeto educacional do país abre possibili- eleitorais, mas pode interditar o futuro
tegração de posse e ordenaram que to- autonomia da vontade. A escola teria, dades de todos os tipos: do pot-pourri de nossas crianças e adolescentes.
dos saíssem do colégio, dando tapas, para o autor francês, a responsabilida- de oficinas sem unidade pedagógica
cadeiradas e chutes até em crianças. de de gerar uma moral racional, com entre si às reformas educacionais fun- *Rudá Ricci é doutor em Ciências Sociais
Segundo matéria publicada na re- refinamento de sua sensibilidade mo- dadas na venda de assessoria (e equi- pela Unicamp e diretor-geral do Instituto Cul-
vista Época (23 jun. 2018), atualmente ral. Ao estudante caberia certa passivi- pamentos) externos. tiva em Minas Gerais.

Amor, ciúmes e cinema.


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GRANDES E PEQUENOS SEGREDOS DO LOBBY ISRAELENSE NOS ESTADOS UNIDOS

Como Israel espiona


norte-americanos
Investigação realizada pelo canal catari Al Jazeera revela os métodos dos grupos de pressão
norte-americanos favoráveis a Israel. Entretanto, preocupado em não se isolar dessas organizações
em sua disputa com a Arábia Saudita, o Catar congelou a exibição da reportagem
POR ALAIN GRESH*

N
a tela, ele surge como um per- cisão e anuncia um período sabático.5 O
feito cavalheiro. A despeito de documentário foi sacrificado na impie-
seu ar de estudante, Anthony dosa batalha travada entre o Catar, de
Kleinfeld, um jovem judeu bri- um lado, e a Arábia Saudita e os Emira-
tânico adequado em todos os aspectos dos Árabes Unidos, de outro, para me-
– formado na prestigiada Universida- recer os favores de Washington no con-
de de Oxford, fala seis línguas, entre as flito que os opõe desde junho de 2017.6 E
quais o holandês e o iídiche, e navega que melhor maneira de vencê-la do que
sem dificuldade nos mistérios dos ganhando a simpatia do poderoso lob-
conflitos no Oriente Médio –, encon- by pró-Israel, com sua conhecida in-
traria facilmente lugar nos gabinetes fluência na política norte-americana no
de um ministério das relações exterio- Oriente Médio?
res ocidental ou de um think tank res- Para mudar a balança, o Catar
peitável. Por ora, ele tem outros pla- “adiou” a exibição planejada, obtendo
nos: envolver-se com as organizações em troca a ajuda inesperada de parte da
pró-Israel. Kleinfeld foi recrutado pelo ala direita de um lobby que, como um
The Israel Project (TIP), que se dedica todo, já se localiza bem à direita. Mor-
a manter a boa imagem de Israel na © Alpino ton Klein, presidente da Organização
mídia. Recebido de braços abertos por Sionista da América (Zionist Organiza-
causa de suas competências, faz cinco tion of America, ZOA), amigo de Ste-
meses que está ao lado da nata dos phen Bannon, ex-assessor do presiden-
membros de associações engajadas na te Donald Trump, chegou a visitar Doha
defesa incondicional de Israel, incluin- e alegrou-se por ter enterrado o docu-
do o poderoso lobby pró-Israel nos Es- mentário (ver boxe). O fato de tais gru-
tados Unidos, o American Israel Public pos, que há pouco acusavam o Catar de
Affairs Comittee (Aipac).1 Com eles, financiar o Hamas e o terrorismo, terem
Kleinfeld circula por coquetéis, con- concordado em mudar de lado, em tro-
gressos, convenções, estágios de for- ao primeiro-ministro Benjamin Ne- equipe liderada por Phil Rees, da uni- ca da contenção do documentário, diz
mação para militantes, tecendo cone- tanyahu. Um de seus líderes confia a dade de investigação do canal, reuniu muito sobre o caráter embaraçoso das
xões aqui e ali. Agradável, caloroso, Kleinfeld: “Somos um governo que todos os ingredientes de um docu- revelações que ele contém.
eficiente, o rapaz ganha a confiança trabalha em território estrangeiro e mentário espetacular. Sua divulgação Engavetar um trabalho que durou
dos interlocutores, que falam com ele devemos ser muito, muito cuidado- era aguardada com grande expectati- mais de um ano causou rebuliço no
de coração aberto, deixando de lado os sos”. Realmente, já que algumas de va, especialmente depois de uma re- canal. Havia quem desejasse que as re-
eufemismos e os “elementos de lin- suas ações poderiam ser levadas aos portagem da Al Jazeera sobre o lobby velações não afundassem na areia mo-
guagem” convencionais. E suas confi- tribunais dos Estados Unidos. pró-Israel no Reino Unido3 ter mostra- vediça dos compromissos geopolíti-
dências são explosivas. Quando terminou o estágio de do, em 2017, as ingerências israelenses cos. Foi por isso que conseguimos
Como eles influenciam o Congres- “Tony”,2 Eric Gallagher, seu chefe na nos assuntos internos de um país es- assistir, por intermédio de um amigo
so? “Os membros do Congresso não fa- TIP, estava tão satisfeito com seus ser- trangeiro e suas tentativas de derrubar que vive no Golfo, aos quatro episó-
zem nada sem pressão, e a única forma viços que quis contratá-lo. “Eu adora- um ministro visto como pró-palestino dios do documentário, de 50 minutos
de pressioná-los é o dinheiro.” Como ria que você viesse trabalhar para – o que levou a um pedido público de cada, em sua versão quase final.
combatem os militantes pelos direitos mim. Preciso de alguém que tenha es- desculpas do embaixador em Londres O que chama a atenção é a febre
dos palestinos nos campi universitá- pírito de equipe, trabalhe duro, seja e ao precipitado retorno para Tel Aviv que tomou conta do lobby há alguns
rios? “Com os anti-israelenses, o mais apaixonado, curioso, bem treinado, de um diplomata de alto escalão. anos, provocado por um medo surdo
eficaz é fazer pesquisas sobre eles, co- fale bem, tenha leitura. Você é tudo is- Assim, era esperado um aconteci- de perder influência. Como explicar is-
locar informações em um site anôni- so.” Mas seu pupilo recusou. Isso por- mento midiático, com suas negativas so, quando o apoio a Israel é maciço
mo e divulgá-las por meio de anún- que, como já se adivinhou, ele não era indignadas e violentas polêmicas. Mas nos Estados Unidos e os eleitos dos
cios direcionados no Facebook.” Com exatamente quem dizia ser, embora não: a exibição, programada para o iní- dois partidos – Republicano e Demo-
uma franqueza ampliada pelo fato de seus diplomas e competências sejam cio de 2018, foi adiada indefinidamente, crata – dão total aval a qualquer aven-
acreditarem estar se abrindo para um indiscutíveis: ele era um infiltrado, en- sem explicações oficiais. Acabamos sa- tura do país? A eleição de Trump não
amigo, os interlocutores de Kleinfeld viado pela Al Jazeera, propriedade do bendo, sobretudo por artigos na im- levou os Estados Unidos a desistir de
admitem realizar operações de espio- emirado do Catar, para fazer um do- prensa judaica norte-americana,4 que o qualquer vontade de assumir o papel
nagem de cidadãos norte-america- cumentário sobre o lobby pró-Israel. documentário não seria exibido, o que de mediador no conflito árabe-is-
nos, com a ajuda do Ministério dos As- Com uma câmera escondida, ele fil- foi confirmado por Clayton Swisher, di- raelense e a sentar-se sem disfarces ao
suntos Estratégicos de Israel. Criado mou algumas das confidências que retor da unidade de investigação do ca- lado do governo mais à direita da his-
em 2006, o órgão é diretamente ligado ouviu e, com outros membros de uma nal, em um artigo no qual lamenta a de- tória de Israel? Sem dúvida. Mas, nessa
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paisagem aparentemente favorável, rio, e, sempre que a presidência mudar, das, que vão da vida privada às ativi- explicam que foram “enganados”, mui-
um espectro assombra o lobby: o do a política em relação a Israel correrá o dades profissionais, passando pelas to parecidas com aquelas arrancadas
BDS, sigla do movimento Boicote, De- risco de mudar. Isso é perigoso para Is- convicções políticas. Nos últimos dos suspeitos de simpatias comunistas
sinvestimento e Sanções. rael. É isso que está em jogo na batalha anos, o lobby pró-Israel armou uma do tempo do macarthismo, nos Estados
Lançado em 2005, o BDS propõe nas universidades”. John Mearsheimer, rede de espionagem. “Nossas opera- Unidos dos anos 1950, ou em regimes
aplicar a Israel os métodos não violen- autor de um famoso livro7 sobre o lob- ções de pesquisa”, orgulha-se Baime, autoritários da atualidade. “É guerra
tos que se mostraram bem-sucedidos by, cujos comentários pontuam o do- “contam com tecnologia de ponta. psicológica. Eles estão aterrorizados”,
contra o apartheid da África do Sul. Ele cumentário, confirma. Ele constata Quando cheguei, há alguns anos, nos- comemora Baime. “Ou param, ou gas-
floresceu nas universidades norte-a- que, agora, o apoio a Israel cresce no so orçamento era de alguns milhares tam seu tempo fazendo pesquisa [sobre
mericanas. Mas deveríamos mesmo Partido Republicano, mas diminui no de dólares; hoje é de 1,5 milhão, talvez as acusações feitas contra eles] em vez
nos alarmar? – pergunta-se David Democrata: “Há uma diferença subs- 2. Nem sei direito, é enorme.” Mas ele de atacar Israel. É muito eficaz.” Outro
Brog, diretor executivo do Christians tancial entre os dois partidos”. e seus amigos tentam ficar “invisí- interlocutor de “Tony” lamenta, no en-
United for Israel (Cristãos Unidos por veis”: “Fazemos isso de maneira segu- tanto, que “difamar alguém chaman-
Israel, Cufi) e do Maccabee Task Force, ra e anônima – essa é a chave”. do-o de antissemita não tenha mais o
um dos grupos que lutam contra o Entre os grupos mais temidos pelos mesmo impacto”.
BDS. “Israel é a ‘start-up nation’. O país “Ligaram para meu militantes favoráveis aos direitos dos Essas cruzadas, que dependem da
recebe mais investimentos estrangei- palestinos está a Canary Mission,8 cujo coleta de dados pessoais de cidadãos
empregador pedindo
ros hoje do que em qualquer outro mo- financiamento, membros e funciona- norte-americanos, não seriam possí-
mento de sua história. Então, que tal que eu fosse mento permanecem secretos. Um jor- veis sem os meios concedidos pelo
nos acalmarmos, percebermos que o demitida, ameaçando nalista próximo ao lobby explica seu Ministério de Assuntos Estratégicos
BDS não significa nada e apenas o ig- denunciá-lo como papel: “Aqueles que a odeiam, que são de Israel. A diretora-geral do órgão, Si-
norarmos?” E insiste: “Eu acho que o antissemita se ele alvo dela, falam em ‘lista negra’. Há no- ma Vaknin-Gil, reconheceu isso em
BDS nunca teve como objetivo que as mes, de estudantes e professores uni- uma conferência no IAC: “Coletar da-
universidades retirassem seus investi- não fizesse isso” versitários, além de organizações que dos, analisar informações, trabalhar
mentos de Israel. Quanto ao dinheiro, têm ligações com o terrorismo, liga- em organizações militantes, seguir o
podemos ficar tranquilos. Mas, se to- ções diretas ou com terroristas que pe- dinheiro, tudo isso é algo que só um
marmos consciência dos esforços rea- Como conter essa mudança? Parti- diram a destruição do Estado judeu”. O país com os recursos que ele possui
lizados para cavar um fosso entre nós, cipando de um debate político? Difí- próprio site da organização resume seu pode fazer direito”. E acrescenta: “O
que amamos Israel, e a próxima gera- cil, pois desde o fracasso dos acordos objetivo: “Garantir que os radicais de fato de o governo israelense ter decidi-
ção, acho que devemos nos preocupar. de Oslo, em 1993, Israel tem sido lide- hoje não sejam seus funcionários ama- do ser um ator fundamental significa
Entre os jovens nascidos após o ano rado por partidos de extrema direita nhã”. Sobre a biografia de cada vítima muito, pois podemos oferecer compe-
2000 e os estudantes, nossa situação é que recusam qualquer solução diplo- do pelourinho, o slogan: “Se você é ra- tências que as ONGs envolvidas na
ruim. Estamos chegando ao ponto em mática. Não se pode discutir o destino cista, o mundo deve saber”. questão não possuem. Somos o único
que a maioria é mais favorável aos pa- dos palestinos, o futuro dos assenta- Kleinfeld conseguiu rastrear seu ator da rede pró-Israel que pode
lestinos do que aos israelenses”. Jacob mentos ou a tragédia de Gaza. E a liga- fundador e financiador, Adam Mils- preencher as lacunas. [...] Temos orça-
Baime, diretor executivo do Israel on ção do lobby a Netanyahu e a Trump é tein, presidente do Conselho Israelo-A- mento e podemos colocar na mesa
Campus Coalition, um grupo de orga- pouco propícia a despertar o entusias- mericano (Israeli-American Council, coisas bem diferentes”. Em seguida,
nizações que emprega mais de uma mo dos estudantes norte-americanos. IAC), condenado à prisão por evasão suas palavras são ameaçadoras: “To-
centena de pessoas para combater o O jornalista Max Blumenthal observa fiscal em 2009, o que não o impediu de dos que têm algo a ver com o BDS de-
BDS nas universidades, preocupa-se: que é essa tática de recusar a discus- continuar suas atividades do fundo de veriam se perguntar duas vezes: devo
“A única coisa que todos os membros são que o lobby mobiliza em relação sua cela. Ele expõe ao jovem sua filoso- escolher este lado ou o outro?”.
do Congresso, todos os presidentes, to- ao documentário da Al Jazeera: tratar fia: “Primeiro, investigá-los [os mili-
dos os embaixadores têm em comum é o jornalismo de investigação como “es- tantes favoráveis à Palestina]. Qual é VIOLAÇÃO DAS LEIS NORTE-AMERICANAS
o fato de terem passado algum tempo pionagem”; desacreditar o canal, redu- seu projeto? Atacar os judeus, porque é Nesse trabalho de coleta de infor-
na universidade, e foi durante esse pe- zindo-o a seu proprietário, o Catar; fácil, porque é popular. Devemos des- mações, Vaknin-Gil admite: “Temos a
ríodo que foram formados”. No futuro, afirmar que o assunto é “o lobby judai- mascará-los pelo que são: racistas, FDD e outros trabalhando [para nós]”.
eles ainda serão “amigos de Israel”? co”, e não o apoio a Israel (Twitter, 15 pessoas hostis à democracia. Devemos A Fundação para a Defesa das Demo-
fev. 2018); e, assim, evitar qualquer dis- colocá-los na defensiva”. E acrescenta: cracias (FDD) é um think tank neo-
DESACREDITAR O MENSAGEIRO cussão sobre o conteúdo das revela- “Eles não são apenas antissemitas, são conservador que, nos últimos anos,
Há mais uma coisa que preocupa o ções e sobre a política israelense. também inimigos da liberdade, do tem desempenhado um papel impor-
lobby. O apoio a Israel sempre trans- Diretor executivo do Comitê de cristianismo, da democracia”. tante na reaproximação entre os Emi-
cendeu as divisões entre democratas e Emergência para Israel (Emergency Diversos estudantes falam dos ris- rados Árabes Unidos e Israel. No verão
republicanos. Barack Obama, poucos Committee for Israel, ECI), Noah Pol- cos que correm. Summer Awad, que passado, ele participou da campanha
meses antes do fim de seu mandato, lak resume a linha adotada perante os participou da campanha pelos direitos contra o Catar e a Al Jazeera, acusan-
colocou em votação uma ajuda incon- críticos: “Para desacreditar a mensa- dos palestinos em Knoxville, no Ten- do o canal de ser um instrumento de
dicional de US$ 38 bilhões a Israel em gem, desacredite o mensageiro. Quan- nessee, conta como foi assediada no desestabilização regional. Mas, se-
dez anos, apesar de suas relações de- do você fala sobre o BDS, precisa dizer Twitter, como “eles” postaram informa- gundo a lei norte-americana, organi-
testáveis com Netanyahu. Mas a pai- que é um grupo que defende o ódio, a ções sobre ela há mais de dez anos: zações ou indivíduos que trabalhem
sagem política está mudando, e o ali- violência contra os civis. Isto é, que “Eles cavaram e continuam cavando. para um governo estrangeiro devem
nhamento incondicional do lobby a apoia o terrorismo”. E, claro, que é an- Ligaram para meu empregador pedin- se registrar como tal no Departamen-
Trump reduz sua base, que se resume tissemita. E a organização Voz Judaica do que eu fosse demitida, ameaçando to de Justiça. Este terá a ousadia de le-
cada vez mais ao Partido Republicano pela Paz (Jewish Voices for Peace, JVP)? denunciá-lo como antissemita se ele var a FDD ao tribunal, por não cum-
e à direita evangélica. David Hazony, Ele prefere chamá-la de “Voz Judaica não fizesse isso”. Esses métodos de de- prir os procedimentos?10
ex-diretor da The Tower Magazine e pelo Hamas”... Mas continua otimista, núncia podem significar assassinato Como observa Ali Abunimah, que
membro influente do TIP, admite isso pois, como explica para “Tony”, a profissional ou, para um estudante, mantém o site The Electronic Intifada
no documentário: “O boicote imediato maioria dos norte-americanos conti- complicar a busca por emprego no final [Intifada Eletrônica]: “Se você tivesse a
a Israel não é um problema. O maior nua favorável a Israel, enquanto o Rei- do curso. Alguns dos acusados envia- gravação de um alto funcionário russo
problema é o Partido Democrata, os no Unido “é ódio puro. Vocês deixa- ram “mensagens de arrependimento”, ou iraniano, ou até canadense, reco-
partidários de Bernie Sanders, todos os ram metade desses paquistaneses de que são publicadas em uma seção espe- nhecendo que seu país conduz opera-
anti-israelenses que eles trazem para o m... se instalarem em seu país”. cial do site da Canary Mission,9 em tro- ções clandestinas de espionagem de
Partido Democrata. Ser pró-Israel logo Para “desacreditar o mensageiro” é ca da remoção de seu nome da lista ne- cidadãos norte-americanos e usa para
não será mais um consenso bipartidá- preciso acumular informações varia- gra: “confissões” anônimas nas quais isso a fachada de uma organização
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 25

norte-americana, seria uma bomba!”.


Até porque essa cooperação não se li-
mita à FDD, e muitos dos interlocuto- CATAR EM CAMPANHA
res de Kleinfeld, como Baime, só falam
disso sob confidência, dizendo que o
assunto é “delicado” e que é melhor E m 10 de abril de 2018, o site da Organização Sionista da
América (Zionist Organization of America, ZOA) emitiu um
comunicado anunciando que ela e seu presidente, Morton
tou uma posição de mediador na crise. Em abril de 2018, Trump
chegou a receber Al-Thani, que, em agradecimento, anunciou a
compra de armamentos norte-americanos. Ele fez inclusive
não se alongar.
O documentário contém outras re- Klein, estavam “orgulhosos e felizes de anunciar que, graças a doações para diversas entidades sionistas, entre as quais a Our
velações. A maneira como jornalistas seus esforços, incluindo as reuniões longas, numerosas e apro- Soldiers Speak (Nossos Soldados Falam), que organiza visitas
fundadas de Klein em Doha, no Catar, com o emir e outras de oficiais do Exército israelense aos Estados Unidos.9
dos Estados Unidos são “bancados”
autoridades do país, [...] o Catar concordou em não exibir o do- A reaproximação com o Catar, no entanto, divide o lobby pró-Is-
em Jerusalém pelo TIP,11 dirigidos,
cumentário viciosamente antissemita da Al Jazeera elaborado rael. Em um artigo intitulado “Catar: o emirado que engana a to-
além de receberem matérias “prontas por um infiltrado no dito ‘lobby judaico norte-americano’”.1 dos”, Yigal Carmon, diretor do Instituto de Pesquisa de Mídias do
para usar”, que só precisam divulgar Uma semana depois, o canal respondeu: “Morton Klein des- Oriente Médio (Middle East Media Research Institute, Memri), um
em seu país; o pagamento de férias de creve equivocadamente o assunto da série como sendo o ‘lob- site que “monitora” as mídias árabes – e que não hesita em dis-
luxo para membros do Congresso dos by judaico norte-americano’, quando a investigação trata das torcer o que elas publicam10 –, mostra-se indignado: “É triste ver
Estados Unidos em Israel, contornan- organizações pró-Israel norte-americanas (incluindo a ZOA) líderes judeus norte-americanos reforçando estereótipos antisse-
do a própria lei norte-americana; as que se esforçam para promover os interesses de uma potência mitas ao intervirem por ignorância em conflitos internos que não
pressões exercidas sobre as mídias e estrangeira em solo norte-americano. [...] É espantoso que lhes dizem respeito, conflitos interárabes complexos e difíceis de
agências de notícias para modificar Klein fale, em termos negativos, imprecisos e incendiários, de entender, mesmo para quem os acompanha”.11
notícias ou artigos... uma série de documentários que ele não viu”.2 A Al Jazeera No jornal israelense Haaretz, Jonathan Schanzer, da FDD, se
estava certa pelo menos em um ponto: não há no documentá- queixa: “Não há nada de errado no fato de analistas e intelec-
Embora tudo pareça sorrir para Is-
rio nenhuma referência a um “lobby judaico” – muito embora tuais irem ao Catar em busca de informações. O problema é
rael, seus partidários norte-america-
esse termo, que foi usado por um ex-presidente do Congresso que, durante essas visitas, eles não ouvem a outra versão da
nos, apesar de todo seu poder, estão Judaico Mundial,3 seja corrente nos Estados Unidos. O canal, história. Ouvem a posição do governo e depois vão para casa.
nervosos. O futuro parece estar fican- no entanto, permaneceu em silêncio sobre sua decisão de não Eles deveriam ouvir também os críticos do Catar. Há muito ma-
do mais sombrio, inclusive nos círcu- divulgar a investigação. terial que deveriam conhecer sobre os laços do Catar com o
los mais propensos a apoiá-los. Vak- Para entender o que está em jogo em relação ao documen- Hamas, a Al-Qaeda, o Talibã, a Irmandade Muçulmana e outros
nin-Gil admite: “Perdemos a geração tário, precisamos voltar à crise que desde o verão de 2017 se atores problemáticos”.12 Longamente entrevistado por Anthony
dos judeus nascidos depois do ano estabeleceu entre o Catar e alguns de seus vizinhos, a começar Kleinfeld no documentário da Al Jazeera, Schanzer lamenta o
2000. Seus pais me falam sobre as difi- pela Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, apoiados fracasso de todos os seus esforços para associar o movimento
culdades que enfrentam com os filhos pelo Egito.4 Esse grupo sujeitou o emirado a um embargo. Eles Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) a organizações
durante os jantares do Shabat. [Os exigem que o Catar rompa suas relações com o Irã, liquidem a “terroristas” (sendo a primeira delas o Hamas, seguido pela
Al Jazeera, fechem a base militar turca em construção e colo- Frente Popular para a Libertação da Palestina) na opinião pú-
mais jovens] não reconhecem o Esta-
quem fim em suas ligações com “organizações terroristas”, es- blica norte-americana.
do de Israel e não nos veem como uma
pecialmente a Irmandade Muçulmana e o Hezbollah. Durante o último ano, o Catar tem conseguido repelir os pe-
entidade a ser admirada”. É verdade que, desde que o xeque Hamad bin Khalifa al-Tha- rigos que o ameaçaram e colocar seus adversários na defensi-
ni, pai do atual emir Tamim bin Hamad al-Thani, chegou ao po- va. Mas qual será o preço pago pelos palestinos por essa nova
*Alain Gresh é diretor do jornal on-line der, em 1995, a política externa do Catar é no mínimo original política? Alguns comentaristas falam na possibilidade de uma
OrientXXI.info. e se quer independente, sobretudo em relação à Arábia Saudi- cooperação entre Israel e o emirado para “estabilizar” a situa-
ta. O país abriga uma das bases estratégicas dos Estados Uni- ção em Gaza. Mas são apenas conjecturas...13 (A.G.)
1 Ler Serge Halimi, “Le poids du lobby pro-israélien dos na região; manteve, até a eclosão da Primavera Árabe, ex-
aux États-Unis” [O peso do lobby pró-Israel nos Es- celentes relações com o Hezbollah e o regime sírio, antes de
tados Unidos], Le Monde Diplomatique, ago. 1989. passar a ajudar os rebeldes; mantém estrito contato com o Ha-
2 É assim que ele é chamado no documentário; seu
sobrenome não é mencionado.
mas e presta assistência financeira a Gaza; foi um dos únicos
países árabes a receber uma missão comercial israelense (fe- 1 ZOA, “ZOA/Mort Klein convinced Qatar to cancel anti-semitic Al Jazeera ‘Je-
3 Ver: <www.aljazeera.com/investigations/thelobby/>.
wish lobby’ series” [ZOA/Mort Klein convencem Catar a cancelar a série an-
4 Cf., por exemplo, Richard Silverstein, “Israel lobby chada após a guerra de 2008-2009 contra Gaza). Por fim, a Al tissemita da Al Jazeera Lobby judaico]. Disponível em: <https://zoa.org>.
pressures Qatar to kill Al Jazeera documentary” Jazeera, apesar de todas as críticas que recebeu pela forma 2 “Al Jazeera denies claims of pro-Israel group on The Lobby films” [Al Jazee-
[Lobby de Israel pressiona Catar a matar o docu-
como tratou as revoltas árabes – especialmente a guerra na ra nega reivindicações de grupo pró-Israel nos episódios de O lobby], Al
mentário da Al Jazeera], Tikun Olam, 8 fev. 2018.
Líbia – ou, mais recentemente, a situação na Turquia e sua Jazeera, 17 abr. 2018. Disponível em: <www.aljazeera.com>.
Disponível em: <www.richardsilverstein>.
3 Em novembro de 1978, Nahum Goldmann, presidente do Congresso Ju-
5 Clayton Swisher, “We made a documentary exposing complacência em relação ao regime de Erdogan, abriu um
daico Mundial, pediu ao presidente James Carter que quebrasse o “lobby
the ‘Israel lobby’. Why hasn’t it run?” [Fizemos um do- campo de debate sem precedentes no mundo árabe, que abor- judaico”, que ele considerava “uma força de destruição”, “um obstáculo à
cumentário expondo o “lobby de Israel”. Por que não rece a maioria dos regimes em vigor. paz no Oriente Médio”.
passou?], The Forward, Nova York, 8 mar. 2018.
6 Ler Akram Belkaïd, “Le Qatar ne cède rien” [Catar
Durante os meses após o ultimato de seus vizinhos, o Catar 4 Ler Fatiha Dazi-Héni, “Drôle de guerre dans le Golfe” [Uma guerra estranha
pareceu vacilar. Falou-se até na hipótese de invasão do peque- no Golfo], Le Monde Diplomatique, jul. 2017.
não cede], Le Monde Diplomatique, mar. 2018.
5 Alex Emmons, “Saudi planed to invade Qatar last summer. Rex Tillerson’s
7 John Mearsheimer e Stephen M. Walt, Le Lobby no emirado pela Arábia Saudita.5 Ainda mais porque o presi- efforts to stop it may have cost him his job” [Arábia Saudita planejou invadir
pro-israélien et la politique étrangère américaine dente Donald Trump, cujo filho, Jared Kushner, tem estreitas Catar no verão passado. Os esforços de Rex Tillerson para impedir podem
[O lobby pró-Israel e a política externa dos Estados
ligações com os Emirados Árabes e a Arábia Saudita, tomou ter custado seu emprego], The Intercept, 1º ago. 2018. Disponível em:
Unidos], La Découverte, Paris, 2009.
posição contra o Catar. <https://theintercept.com>.
8 The Forward, cujo leitorado é composto por uma
6 Ler Dan Lazare, “La redoutable influence de Riyad à Washington” [A temí-
maioria de judeus norte-americanos, publicou uma É nesse contexto tenso que o emir decidiu por uma ofensiva
vel influência de Riad em Washington], Le Monde Diplomatique, jul. 2017.
reportagem sobre a Canary Mission e o uso de suas de relações públicas em Washington, onde seus oponentes 7 Jordan Schachtel, “Inside Qatar’s $20+ million a year lobbying effort in
informações pelas autoridades israelenses para in- sauditas e dos Emirados já tinham densas relações, sobretudo Washington” [Por dentro do esforço de lobby de mais de US$ 20 milhões
terrogar cidadãos dos Estados Unidos “suspeitos”
– inclusive judeus – que chegam a Israel. Josh Na-
com a Fundação para a Defesa das Democracias (FDD).6 Doha do Catar em Washington], Conservative Review, 13 set. 2017. Disponível
comprou os serviços de várias agências de relações públicas em: <www.conservativereview.com>.
than-Kazis, “Canary Mission’s threat grows, from the
8 Ver Amir Tibon, “Qatar doubles down on PR campaign appealing to US
US campus to Israel’s borders” [Cresce ameaça da nos Estados Unidos por uma soma que chegou a US$ 5 mi- Jews and DC Insiders” [Catar duplica campanha de relações públicas ape-
Canary Mission, das universidades dos Estados Uni- lhões, em outubro de 2017, e a US$ 20 milhões, alguns meses lando para judeus norte-americanos e pessoas influentes de Washington],
dos às fronteiras de Israel], The Forward, 3 ago.
depois.7 Seus alvos: os círculos conservadores próximos a Haaretz, Tel Aviv, 20 jan. 2018.
2018. Cf. também Peter Beinart, “I was detained at
Trump, especialmente o lobby pró-Israel, cujas simpatias ele 9 Tamara Nassar e Ali Abunimah, “Qatar funded Zionist Organization of
Ben Gurion Airport because of my beliefs” [Fui deti-
America” [Catar financia Organização Sionista da América], The Electro-
do no Aeroporto Ben Gurion por causa das minhas precisava ganhar.
nic Intifada, 10 jul. 2018. Disponível em: <https://electronicintifada.net>.
crenças], The Forward, 13 ago. 2018. Várias visitas ao emirado – incluindo a de Alan Dershowitz, 10 Ler Mohammed El-Oifi, “Désinformation à l’israélienne” [Desinformação ao
9 Ver: <https://canarymission.org/ex-canary>. um acadêmico pró-Israel ao mesmo tempo democrata e amigo estilo de Israel], Le Monde Diplomatique, set. 2005.
10 Cf. Asa Winstanley, “What’s in Al Jazeera’s under-
cover film on the US Israel lobby?” [O que há no
do presidente Trump; a de Michael Huckabee, ex-governador 11 Citado por Amir Tibon, “Israeli Embassy in US: We oppose Qatar’s ‘Ou-
republicano do Arkansas e cristão sionista cuja filha é porta-voz treach to pro-Israel U.S. Jews’” [Embaixada de Israel nos Estados Unidos:
filme secreto da Al Jazeera sobre o lobby de Israel
Somos contra a “promoção junto aos judeus norte-americanos pró-Israel”
nos Estados Unidos?], The Electronic Intifada, 5 da Casa Branca; e a de John Batchelor, apresentador de rádio do Catar], Haaretz, 31 jan. 2018.
mar. 2018. conservador – deram indícios de que a campanha teve algum 12 Ibidem.
11 Ler “Propagande et désinformation à l’israélienne”
sucesso.8 Os efeitos foram sentidos em Washington, que ado- 13 Tamara Nassar e Ali Abunimah, op. cit.
[Propaganda e desinformação ao estilo israelense]
I e II, Nouvelles d’Orient, Les blogs du Diplo, 13 e
26 jan. 2010.
26 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

VOTAÇÃO HISTÓRICA NO KNESSET

Israel torna-se
uma “etnocracia”
O Knesset aprovou, em 19 de julho último, uma lei de valor
constitucional definindo Israel como “Estado-nação do povo
judeu”. Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, esse
texto que fundamenta os direitos dos cidadãos israelenses
em função de sua origem e crenças é a consolidação
ideológica do Estado judeu
POR CHARLES ENDERLIN*

© Alpino
É
um momento histórico para o Com a ausência de uma Constituição, tos sionistas se posicionou a favor de Antiguidade, no Egito, muitos séculos
sionismo. Cento e vinte e dois essa lei fundamental é acoplada ao um Estado composto por uma maioria antes do cristianismo, e persiste: “Ain-
anos depois de Herzl ter publi- aparato jurídico atual. de judeus, sob domínio do Império Bri- da somos ameaçados de extermina-
cado [sua visão do] Estado dos Nenhuma palavra, nem a menor re- tânico, em que o presidente judeu teria ção. As pessoas acreditam que o Holo-
judeus,1 estabelecemos na lei o princí- ferência à independência do Estado de um vice árabe e todos os cidadãos se- causto passou, mas não”, declarou em
pio fundamental de nossa existência.” Israel, proclamada no dia 14 de maio de riam iguais, independentemente de uma entrevista concedida em compa-
Ao fazer essa declaração em 19 de ju- 1948. E não surpreende: Netanyahu ja- origem e religião. As comunidades ju- nhia de seu filho para o canal Arutz 2,
lho, às 3h35 da manhã, após a aprova- mais a mencionou em sua obra sobre a daicas e árabes, assim como suas res- no dia 7 de fevereiro de 2009. Para ele,
ção de uma nova lei fundamental pelo história do sionismo.2 Há um silêncio pectivas línguas, deveriam dispor das o inimigo eram os árabes: “Esta terra é
Parlamento israelense, Benjamin Ne- sobre esse texto fundador da jurispru- mesmas condições reconhecidas pela dos judeus, não é para os árabes. Aqui
tanyahu se considerava ele próprio o dência do país, lido na ocasião por Da- lei.4 Secretário do governo Menachem não há lugar para eles, nunca haverá.
fundador do Estado judeu? vid Ben-Gurion, o primeiro chefe de Es- Begin (Likud) de 1977 a 1982 e hoje pro- Eles jamais aceitarão nossas condi-
De acordo com o primeiro-minis- tado de Israel: “O Estado de Israel será fessor de Ciência Política da Universi- ções”, afirmava ele três anos depois.5
tro, “Israel é o Estado-nação do povo aberto à imigração de judeus de todos dade Hebraica de Jerusalém, Arieh Benzion deixou ao filho a missão de fa-
judeu, que respeita os direitos indivi- os países por onde estiverem dispersos; Naor revela que “a visão nacionalista zer que os israelenses avaliassem bem
duais de todos os seus cidadãos. No desenvolverá o país em prol de todos os liberal de Jabotinsky é totalmente dife- a realidade do perigo: “Uma das coisas
Oriente Médio, apenas Israel respeita seus habitantes; será fundado sob os rente do neoliberalismo extremista da mais graves em Israel é a crença es-
esses direitos”. Ora, ao priorizar a con- princípios da liberdade, justiça e paz nova lei sobre o ‘Estado-nação judeu’, querdista de que os árabes renuncia-
dição de judeu na definição de Estado, ensinados pelos profetas de Israel; asse- que nega qualquer direito coletivo às ram à determinação de nos destruir”.6
várias disposições do texto, ao contrá- gurará uma completa igualdade dos di- minorias. Essa medida conduz a um Esses temas foram bastante desenvol-
rio, atentam contra os direitos de 2 mi- reitos sociais e políticos a todos os seus governo etnocrático”. vidos nos livros de Benjamin, publica-
lhões de cidadãos não judeus, em cidadãos, sem distinção de credo, raça dos pouco antes de sua primeira pas-
grande parte árabes: “Apenas os ju- ou sexo; garantirá a plena liberdade de A MELHOR CONJUNTURA POSSÍVEL sagem pelo poder (1996-1999).
deus podem exercer integralmente consciência, culto, educação e cultura”. Netanyahu bebe na fonte ideológi- Sob pressão do presidente norte-a-
seu direito natural, cultural, religioso Netanyahu também se distancia de ca moldada por seu pai, Benzion Ne- mericano Bill Clinton, o jovem primei-
e histórico à autodenominação”, diz a Vladimir Zeev Jabotinsky (1880-1940), tanyahu, morto em 2012. Esse univer- ro-ministro precisou apertar a mão do
nova lei fundamental. E precisa que “o o pai fundador do sionismo revisionis- sitário – que por um período breve foi dirigente palestino Yasser Arafat e es-
hebraico é a língua oficial do Estado de ta, nacionalista e antissocialista. Se por secretário de Jabotinsky – desenvol- tabelecer com ele dois acordos de re-
Israel”. Igualmente destitui o árabe da um lado o atual chefe do Likud (direita) veu, ao longo de sua carreira intelec- cuada das forças israelenses de uma
qualidade de língua oficial e o coloca à o cita com frequência,3 por outro sem- tual, uma teoria catastrófica da histó- parte da cidade de Hebron. Essa con-
espera de um “estatuto especial que pre omite o fato de que, no fim da vida, ria judaica. Ele pretendia demonstrar cessão – que ele não podia recusar sob
será determinado posteriormente”. em 1940, o dirigente histórico em direi- que o antissemitismo existia desde a pena de acirrar uma crise maior – o fez
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 27

perder votos junto à direita e junto aos pados, como a B’Tselem. Esses ele- apoiá-lo e reforçá-lo”, o que não muda entre Israel e as comunidades judaicas
colonos nas eleições legislativas de mentos de “reformatação” da socieda- nada seu caráter “racista”, avalia Mor- da Diáspora. Em agosto, o presidente
1999. Os dirigentes ocidentais acredi- de judaica seguem integralmente a dechai Kremnitzer, jurista e ex-diretor do Congresso Mundial Judeu, Ron
taram que esse episódio era um sinal visão de Benzion Netanyahu.7 Igual- adjunto do Instituto Israelense pela Lauder, lançou um aviso severo ao go-
de certo pragmatismo. mente integrante do Lar Judaico, a Democracia. verno de Netanyahu, acusando-o de
Depois, quando Netanyahu se tor- ministra da Justiça, Ayelet Shaked, vai “solapar a aliança entre o judaísmo e
nou outra vez chefe de governo, em para a linha de frente contra a Corte ÁRABES, JUDEUS E DRUSOS SE MANIFESTAM as Luzes”. “A partir do momento em
março de 2009, precisou enfrentar Ba- Suprema, considerada muito liberal. Imediatamente após a votação, em que ele recusa o valor sagrado da igual-
rack Obama. O presidente norte-ame- Nos próximos meses, os juízes devem sessão plenária, os deputados árabes dade, muitos de seus apoiadores sen-
ricano recém-eleito solicitou que Is- examinar vários recursos contra a no- da Lista Unificada, que dispõe de treze tem que ele está dando as costas à sua
rael reconhecesse a legitimidade va lei, e a ministra já avisou: “Se a anu- cadeiras, rasgaram o texto da lei e acu- herança judaica, ao ethos sionista e ao
palestina e cessasse a construção das larem, haverá guerra!”. saram a maioria de ter estabelecido espírito de Israel”, escreveu. “Essas no-
colônias. No dia 4 de junho, em um um regime de apartheid afirmando e vas políticas não reforçam Israel: elas
discurso solene, Netanyahu, discreta- reforçando discriminações das quais o enfraquecem e, a longo prazo, colo-
mente, pronunciou pela primeira vez eles mesmos se fazem objeto. No dia 11 cam em perigo a coesão social, o êxito
as palavras “Estado palestino”. Em se- Os deputados árabes de agosto, chamados por seu comitê econômico e seu estatuto internacio-
guida colocou condições reveladoras da Lista Unificada representativo, milhares de árabes is- nal. [...] Se as tendências atuais persis-
de sua ideologia: os palestinos devem raelenses tomaram as ruas de Tel Aviv tirem, jovens judeus poderão se recu-
rasgaram o texto da sar a se afiliar a uma nação que
“reconhecer Israel como Estado do po- para reivindicar a anulação de um tex-
vo judeu”. Em Ramallah, a reação de lei e acusaram a maioria to que transforma os integrantes dessa discrimina judeus não ortodoxos, mi-
Mahmoud Abbas, presidente da Auto- de ter estabelecido comunidade de 1,8 milhão de pessoas norias de não judeus e integrantes da
ridade Palestina, foi imediata: “Não! um regime (cerca de 20% da população total) em comunidade LGBT.”10
Jamais. Essa ideia jamais avançou nas cidadãos inferiores. Eles foram apoia- O primeiro-ministro, contudo, diz
de apartheid
negociações com o Egito e a Jordânia, dos por numerosos simpatizantes ju- sentir-se confortável com as pesqui-
nem durante o processo de Oslo”. Ab- deus e personalidades de esquerda, sas. Em um estudo do Instituto pela
bas lembrou que não há nenhuma de- entre os quais dois ex-generais. A pre- Democracia,11 52% dos judeus is-
finição de Israel nesses termos em sua No âmbito internacional, o primei- sença de várias bandeiras palestinas raelenses interrogados se dizem favo-
declaração de independência. ro-ministro israelense não poderia ao lado do emblema israelense fez que ráveis à lei, enquanto 40% não a apro-
A primeira proposta de lei funda- imaginar uma situação mais favorá- Netanyahu declarasse o ato como “a vam. Se 60% do conjunto gostaria que
mental sobre esse tema foi depositada vel. Donald Trump, grande amigo da prova que a lei do Estado-nação de Is- o princípio da igualdade fosse incluído
no Knesset em 2011 por Avi Dichter, de- direita israelense, está sentado na Ca- rael é indispensável”. no texto, 69% dos eleitores de direita
putado do partido de centro-direita sa Branca. Na Europa, Netanyahu po- Já os 150 mil drusos e circassianos9 apoiam a versão atual, assim como
Kadima, que depois se juntou ao Likud. de contar com os dirigentes gregos e se consideram traídos. Depois de pres- 72% dos israelenses que se definem re-
O texto tinha por ambição “reforçar a cipriotas, com os quais já fechou acor- tar um sermão de fidelidade ao Estado, ligiosos. O eleitorado de Netanyahu
natureza de Israel como Estado-nação dos. E ainda há o apoio infalível dos realizaram serviço militar obrigatório está com ele. Ele pode sonhar com
do povo judeu com o objetivo de codifi- quatro países do grupo Visegrad por três anos. Representando respecti- eleições antecipadas, com o objetivo,
car os valores de Israel como Estado ju- (Hungria, Polônia, República Tcheca e vamente 145 mil e 5 mil pessoas (1,62% espera ele, de reforçar seu poder.
deu e democrático no espírito de sua Eslováquia), conduzidos pelo húngaro da população), eles são proporcional-
declaração de independência”. A direi- Viktor Orbán, o que permite bloquear mente mais numerosos a se engajar *Charles Enderlin é jornalista em Jerusalém.
ta pretendia definir Israel primeiro co- eventuais condenações de Bruxelas. A que os jovens judeus, e 10% entre eles
mo Estado judeu e somente depois co- socióloga Eva Illouz salienta a afinida- tornam-se oficiais, alguns de patente
mo Estado democrático. A esquerda de ideológica profunda de Netanyahu elevada. Um druso é general de divi-
exigia o contrário: “democrático e ju- com certos regimes “iliberais”: “Todos são e integrante do Estado-Maior; vá-
1 Teórico do sionismo político, o jornalista vienense
deu”, nessa ordem. As discussões dura- se opõem à diluição étnica, religiosa rios generais de brigadas comanda- Theodor Herzl publicou em 1896 O Estado dos
ram até o momento em que Netanyahu ou racial de seu país”, explica. “Israel ram importantes unidades de judeus, no qual preconiza o estabelecimento de
considerou que dispunha da melhor serve de modelo às nações que se infantaria. Também estão em vários um Estado que reúne os judeus da diáspora com o
apoio de grandes potências. Para avançar com a
conjuntura possível. opõem à imigração e afirmam a supre- níveis de comando da polícia e servi- ideia de um lar nacional na Palestina – o que pou-
No âmbito interno, a coalizão go- macia de um grupo étnico, mas ainda ços de segurança. cos judeus apoiavam naquele momento –, fundou
vernamental que ele construiu após as reivindicam a democracia – apelação No dia 4 de agosto, 50 mil drusos, em 1897 a Organização Sionista Mundial.
2 Benjamin Netanyahu, Place Among the Nations:
eleições de 2015 – a mais à direita na necessária para continuar a usufruir apoiados por um número equivalente Israel and the World [Lugar entre nações: Israel e
história do país – prossegue com a co- de vários privilégios que o título de de- de judeus, manifestaram-se em Tel o mundo], Bantam, Nova York, 1993, e sua versão
lonização evitando qualquer crise mocrata confere”, ainda que à custa de Aviv bradando “Igualdade! Igualdade!” em hebraico, Um lugar ao sol, Edições Yediot Aha-
ronot, Tel Aviv, 1995.
com a “comunidade internacional”, renunciar à luta contra o antissemitis- e “Não somos cidadãos de segundo es- 3 Ler Dominique Vidal, “Aux origines de la pensée de
que, de todas formas, tem protestado mo. Nitzan Horowitz, jornalista e ex- calão”. O xeque Mowafak Tarif, chefe M. Netanyahou” [Nas origens do pensamento de
de forma branda. No Parlamento, ele -deputado do Meretz (esquerda laica e espiritual da comunidade, declarou: Netanyahu], Le Monde Diplomatique, nov. 1996.
4 Zeev Jabotinsky, Os judeus e a guerra (1939-
mostra sua coerência ideológica perse- socialista), resume assim o princípio “Ninguém vai nos ensinar o que é sa- 1940), em hebraico, Instituto Jabotinsky, Tel Aviv,
guindo objetivos comuns que se tradu- que funda os laços entre dirigentes crifício, lealdade, devoção. Infelizmen- 2016.
zem em vários textos-chave que visam húngaros e poloneses com Netanya- te, apesar de nossa lealdade sem res- 5 Aroutz 2, entrevista veiculada no dia de sua morte,
30 abr. 2012.
principalmente reduzir a influência de hu: “Perdoem meu antissemitismo, e salvas ao Estado [de Israel], ele não nos 6 Ari Shavit, Haaretz (em hebraico), Tel Aviv, entre-
ONGs na sociedade civil, proibir o boi- eu perdoarei suas ocupações [de terri- reconhece como iguais. O que podem vista realizada em 1998 e publicada em 30 de abril
cote das colônias e proibir a criação de tórios palestinos]”.8 ainda exigir de nós se somos totalmen- de 2012.
7 Ler “Israël à l’heure de l’Inquisition” [Israel em
estabelecimentos escolares em asso- Antes de sua adoção definitiva em te solidários ao Estado e à sua declara- tempo de inquisição], Le Monde Diplomatique,
ciações que não respeitem os princí- 19 de julho último, por 62 votos contra ção de independência?”. Os drusos re- mar. 2016.
pios estabelecidos pelo ministro da 55 e duas abstenções, o texto de Dichter jeitaram a proposta de Netanyahu para 8 Nitzan Horowitz, “Netanyahu’s dark deal with Euro-
pe’s radical right” [O acordo obscuro de Netanya-
Educação, Naftali Bennett, diretor do sofreu várias modificações. A palavra apaziguá-los: a adoção de uma lei ad hu com a esquerda radical europeia], Haaretz, 9
Lar Judaico, partido sionista religioso “democracia” não figura mais, e o arti- hoc que define um estatuto especial jul. 2018.
e neomessiânico. Essa última lei foi go que prevê “a criação de localidades dentro do Estado judaico, com vanta- 9 Sob dominação otomana, diversas populações
vindas do Cáucaso do Norte se instalaram na Pa-
feita sob medida para associações co- sobre bases religiosas ou étnicas” foi gens econômicas, para os não judeus lestina, e seus descendentes permaneceram aí.
mo a Breaking de Silence, de ex-solda- reescrito. Agora, a lei diz o seguinte: “O que fazem serviço militar. 10 Ron Lauder, “Israel: This is not what we are” [Israel:
dos que são contra a ocupação de ter- Estado considera o desenvolvimento Nos planos religioso, cultural e po- isso não é o que somos], The New York Times, 13
ago. 2018.
ritórios palestinos, ou de defesa de de implantação judaica um valor na- lítico, contudo, a nova lei fundamental 11 “The Peace Index”, 31 jul. 2018. Disponível em:
direitos humanos nos territórios ocu- cional e trabalhará para encorajá-lo, transforma profundamente a relação <www.peaceindex.org>.
28 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

DA COMIDA DE LUXO AO FLAGELO ECOLÓGICO

A globalização explicada pelos salmões


Metade dos peixes consumidos no mundo vem, agora, de uma criação. Produto de consumo habitual, o salmão gera
a riqueza da Noruega e do Chile, onde é o segundo produto mais exportado. A aquicultura industrial, resposta imperfeita
para o esgotamento dos recursos técnicos da pesca, provoca significativas ameaças ambientais e sanitárias
POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL

E
m 29 de janeiro de 2018, pouco tura da Região XII ficarão congeladas.
antes de deixar a presidência do Óscar Garay nos recebe em seu es-
Chile, a socialista Michelle Ba- critório de Puerto Natales, a três horas
chelet oficializou, em Punta Are- da estrada de Punta Arenas através
nas, a criação do Parque Nacional Ka- dos pampas. O gerente da empresa
wéskar, o maior do país, com uma Salmones Magallanes é também vice-
extensão de 2,8 milhões de hectares -presidente da Salmonicultores Ma-
dispersos nas ilhas e penínsulas do su- gallanes, que agrupa os aquicultores
doeste da Patagônia. No entanto, so- da Região XII. “Não sou cego. A aqui-
mente as terras emersas são protegi- cultura tem um impacto ambiental”,
das; as águas adjacentes e seu frágil admite, antes de relativizar: “Toda ati-
ecossistema não foram contemplados. vidade humana tem um impacto, até
A explicação dessa incongruência foi a mesmo tomar um avião. A questão é:
vontade de não frear a expansão das qual é o impacto real e como reduzi-
aquiculturas de salmão... -lo?” A diminuição das presas consta-
Antigamente ingrediente de luxo tada pelos pescadores? “Acontece em
nas festas de fim de ano, o salmão tor- todo o mundo, mesmo onde não exis-
nou-se um produto de consumo corri- te nenhuma criação de salmão. Ao
queiro. No comércio mundial de pro- contrário, a aquicultura permite evi-
dutos do mar e de água doce, estimado tar a pesca intensiva que esvazia os
em 136 bilhões de euros, o salmão e a oceanos.” O novo parque nacional
truta representam as principais espé- privado do litoral e os recursos dos ka-
cies em matéria de valor e as segundas wéskar de acordo com a Lei Lafken-
em toneladas – após os tunídeos (atuns che? “Um punhado de kawéskar gos-
e afins). A aquicultura mundial produ- taria de reivindicar o litoral. Outros
ziu 2,25 milhões de toneladas de sal- não têm problema com o parque. Os
mão atlântico em 2016, enquanto em indígenas evidentemente têm direi-
1993 essa produção se limitava a 300 tos. Mas a Lei Lafkenche é demasiada-
mil.1 No Chile, em 2017, depois do co- mente imprecisa; qualquer um pode
bre, esse peixe era o segundo produto wéskar reconhecidas pelo Estado des- INDÍGENAS DEFENDEM O OCEANO reivindicar o uso exclusivo do oceano
mais exportado (com uma receita de de 1993 recusaram-se a aprovar a cria- Várias ONGs de Santiago confir- porque seus ancestrais indígenas te-
3,4 bilhões de euros).2 Nos anos 1980, a ção desse parque, considerando mam essa avaliação. “O crescimento riam vivido ali. Espero que o presiden-
ditadura militar introduziu a criação insatisfatória a proposta que consta no econômico é a única motivação da te Piñera a melhore.” Sebastián Piñe-
do salmão do Atlântico – a espécie Sal- estatuto: “zona marinha costeira para aquicultura. Jamais se perguntou se o ra, biliardário conservador reeleito
mo salar –, apostando com êxito nas usos diversos”. “O mar é parte inte- ecossistema é capaz de suportar”, de- este ano para o La Moneda após um
semelhanças climáticas e geográficas grante de nossa cosmogonia”, explica- clara Liesbeth van der Meer, vice-pre- primeiro mandato entre 2010 e 2014,
entre o Chile e a Noruega, pioneira da -nos Leticia Caro, porta-voz das comu- sidente da Ocean Chile, associação de assumiu o compromisso, em 7 de se-
aquicultura (ler virando a página). nidades kawéskar pela defesa do mar. defesa do meio ambiente marinho. “A tembro de 2017, em Puerto Montt, de
Tanques cilíndricos multiplicaram-se “É nosso dever cuidar do meio mari- Magallanes [região do sul do Chile] “aperfeiçoar essa lei para garantir a
nos fiordes do Pacífico Sul. Atualmen- nho. Esse parque usurpa o nome ‘ka- abriga cetáceos, pinguins”, lembra Es- proteção de lugares ancestrais sem
te, a criação no Chile corresponde a wéskar’ e libera o mar para os donos de tefania Gonzalez, coordenadora do frear a atividade econômica”.
23,6% do salmão consumido no mun- indústrias do salmão”. Seu pai, Reinal- Greenpeace Chile. “Nos fiordes, calcu- “No Chile, a aquicultura é concebi-
do: dois terços da produção são expor- do Caro, pescador marinho septuage- lamos que as águas levam trinta anos da como um modelo de produção que
tados, principalmente para os Estados nário, constata que as presas são cada para se renovar completamente. Por o Estado controla muito pouco, con-
Unidos, o Japão e o Brasil. Em janeiro vez mais raras: “Agora, precisamos de que instalar uma indústria poluidora tando com a autorregulação das em-
de 2018, o Serviço Nacional da Pesca e um dia inteiro para pescar o que anti- em um ecossistema tão frágil?” presas”, resume Juan Carlos Cárde-
da Aquicultura (Sernapesca) compu- gamente pegávamos em uma hora e Em abril de 2018, os kawéskar re- nas, veterinário e diretor da ONG de
tou 539 concessões na Região X de Los meia”. Culpa da aquicultura, segundo beldes conseguiram uma primeira vi- defesa do mar Centro Ecocéanos.
Lagos, 635 na Região XI de Aysén e 126 ele: “Onde existem salmoneras, as tória: baseando-se na lei votada em Apenas um a cada dez pedidos de con-
na Região XII de Magallanes. águas estão mortas. Seus resíduos se 2008 que criou espaços costeiros dos cessão é objeto de um estudo de im-
As mais interessadas no novo par- depositam no fundo do mar. Neste fim povos autóctones, chamada Lei Laf- pacto ambiental (EIA). Nos outros no-
que nacional são as populações ka- do mundo, que era tão puro! O pior é kenche, obtiveram, em detrimento dos ve casos, as autoridades se contentam
wéskar, descendentes dos pescadores que, se pegarmos salmões que esca- industriais, a classificação das águas com uma “declaração de impacto am-
indígenas nômades que, até se fixa- pam das aquiculturas e os vendermos, do parque. Enquanto as diversas ad- biental” (DIA)... redigida pelo aquicul-
© Daniel Kondo

rem, em meados do século XX, percor- temos de pagar uma multa: continuam ministrações não tomarem uma deci- tor! “As altas esferas do Estado estão
riam a Patagônia em canoas. Consul- propriedade das empresas”. Em julho, são sobre essa classificação, um pro- ligadas aos industriais”, diz Cárdenas.
tadas previamente pelas autoridades, 690 salmões cheios de antibióticos fu- cesso que levará vários anos, 80% das Ele lembra que Jorge Rodríguez Gros-
quatro das doze comunidades ka- giram de uma criação. demandas de concessões de aquicul- si, ministro da Fazenda de outubro de
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 29

2017 a março de 2018, foi diretor da lei que favoreceu sete famílias ligadas San Diego, na Califórnia, e vive em de bactérias resistentes, repreendida
Australis Seafoods entre 2012 e 2015, aos industriais do salmão e que con- Chiloé. Segundo ele, “o amônio favo- pela Organização Mundial da Saúde
uma das maiores empresas de criação trolam 80% da pesca. rece esse tipo de fenômeno. E a de- (OMS), a Sernapesca exige, desde en-
de salmão do país. Felipe Sandoval “Como indenização, o governo pro- composição da matéria orgânica – os tão, que se reduza sua utilização.
Precht, presidente do SalmonChile de pôs 100 mil pesos [R$ 620] para cada cadáveres de salmão – produz o amô- O governo chileno admite nas en-
2014 a 2017, órgão que agrupa quase pescador. Então, levantamos barrica- nio. A Sernapesca depende do Minis- trelinhas que a aquicultura atingiu
todos os produtores de salmão, foi se- das”, conta Marcela Ramos. Essa pro- tério da Fazenda: qual é a prioridade seus limites na Região X (Los Lagos) e
cretário do Estado para a pesca. Essa fessora sexagenária tornou-se uma das desse ministério? O meio ambiente ou na XI (Aysén): “Não haverá novas con-
proximidade entre o mundo da políti- ativistas do movimento de defesa de o crescimento econômico?” cessões na Região X e na XI”, especifica
ca e o da aquicultura não é exclusiva Chiloé: “Bloqueamos as rodovias e as Gallardo. “Considerando as condições
do Chile: na Noruega, Marit Solberg, ferrovias durante dezoito dias. Quería- 80% DAS IMPORTAÇÕES DE ANTIBIÓTICOS ambientais e o desenvolvimento sus-
vice-presidente do gigante do setor, mos que fosse admitida a responsabili- Com 5 mil a 6 mil pessoas traba- tentável da produção, estamos em um
Marine Harvest, é simplesmente irmã dade da indústria do salmão e que ela lhando diretamente para a indústria processo de relocalização das cria-
da primeira-ministra conservadora pagasse os estragos”. A ilha foi cortada do salmão e o dobro indiretamente, as ções.” Desde então, os industriais es-
Erna Solberg. Isso dá argumentos pa- do mundo entre 2 e 19 de maio. “San- autoridades alegam permanentemen- tão de olho na Região XII, Magallanes:
ra os que criticam os governos por não tiago queria acabar com isso antes do te a importância do emprego. Mas são “Nela, temos 52 mil quilômetros de
terem tirado uma lição das crises sa- 21 de Maio, dia em que o Chile celebra postos precários e mal remunerados, costas”, detalha Garay. “É mais que a
nitárias ou ambientais que atingem sua Marinha”, explica Adriana Ampue- argumenta Gustavo Cortez, emprega- Região X e a XI juntas.”
constantemente as aquiculturas. ro, membro do Movimento Separatista do em uma fábrica chilote da empresa Ativista na revolta estudantil de
Em 2007, a anemia infecciosa do do Chiloé e coordenadora do partido norueguesa Marine Farms e presiden- 2011, Gabriel Boric, deputado do parti-
salmão (AIS) devastou as costas chile- de esquerda Frente Amplio. Ela conti- te da federação dos trabalhadores do do Frente Amplio, apresentou ao Parla-
nas, levando a produção a cair quase nua: “Eles tiveram de fazer acordos de salmão da ilha: “Dez horas por dia pa- mento, em maio de 2017, um projeto de
pela metade. O vírus se propagou rapi- indenizações, mas nada foi feito para ra receber 400 mil pesos [R$ 2,5 mil] suspensão das novas concessões “até
damente porque havia grande concen- evitar que a situação se reproduzisse”. por mês. Muita gente acumula horas que um estudo científico estabeleça o
tração das fazendas de criação e as Os manifestantes chilotes estão extras para poder terminar o mês. A que o ecossistema é capaz de supor-
normas de proteção eram insuficien- convencidos de que a maré vermelha maré vermelha, assim como o vírus da tar”, explica ele, antes de acrescentar:
tes. Posteriormente, no início de 2016, foi provocada pelo lançamento do pei- AIS em 2007, provocou uma enorme “Mas meu projeto foi rejeitado como
uma proliferação de algas tóxicas do xe apodrecido no mar. Os partidários crise: 80% a 90% dos assalariados en- inconstitucional: eles não querem que
gênero Chattonella envenenou os sal- da aquicultura se referem a episódios contram-se desempregados. É preciso a gente interfira na economia!”. Quan-
mões em seus tanques em torno da passados para negar qualquer ligação se mobilizar para conseguir indeniza- do se fala para Garay de seu jovem e
Ilha de Chiloé. Transtornados, os aqui- causal: o escritor chilote Francisco Co- ções do Estado. O Chile é um país mui- implacável opositor, ele suspira: “O
cultores pediram socorro: “Os volumes loane já tinha tratado do fenômeno em to neoliberal... O pior é que, apesar problema do deputado Boric é que ele
de mortalidade são superiores às capa- Golfo de penas, publicado em 1945; Ga- dessa crise, os industriais tiveram um não gosta do capitalismo...”.
cidades logísticas”, escreveu Sandoval ray lembra a morte de toda uma colô- ano muito bom!”, diz o sindicalista
Prechtle em 3 de março de 2016.3 Sem o nia do Estreito de Magalhães no século com veemência. *Cédric Gouverneur é jornalista.
menor estudo de impacto, a Sernapes- XVI: “Essa tragédia de Puerto del O preço do salmão passou de US$
1 “La situation mondiale des pêches et de l’aquacul-
ca autorizou a partir do dia seguinte “a Hambre já teria ocorrido devido a uma 5,90 o quilo, em março de 2016, para ture” [A situação mundial das pescas e da aquicul-
adoção de medidas de exceção por mo- maré vermelha. Havia criações de sal- US$ 7,33, em abril, e depois para US$ 9, tura], Organização das Nações Unidas para a Ali-
tivo de força maior”. Entre 15 e 25 de mão naquela época?”. Subdiretora da em setembro.5 Garay confirma: “É a lei mentação e a Agricultura, Roma, 2016.
2 Segundo o Banco Central do Chile, Santiago, na
março, a Marinha nacional despejou divisão de aquicultura da Sernapesca da oferta e da procura. A oferta diminui Newsletter do site Aqua.cl.
nos arredores da ilha 9 mil toneladas em Valparaíso, Alicia Gallardo vai e a demanda continua a mesma, então 3 Carta de Sandoval Precht, então presidente da
de salmão em putrefação. Ocorreu, en- mais longe: “O Tribunal Ambiental jul- os preços sobem. O mesmo fenômeno SalmonChile, às autoridades, reproduzida no do-
cumento “Reporte crisis social ambiental en Chi-
tão, uma segunda proliferação de algas gou que não existia prova alguma de ocorreu em 2007 com o vírus da AIS”. loé. Resumen ejecutivo” [Relatório crise social
tóxicas do gênero Alexandrium catenel- uma ligação entre a aquicultura e a Para combater as doenças, um ambiental em Chiloé. Resumo executivo],
la, uma “maré vermelha” de amplitude maré vermelha.4 A explicação deve ser grande número de industriais chile- Greenpeace Chile, Santiago, set. 2016.
4 Tribunal Ambiental de Valdivia, 29 dez. 2017. “Re-
inédita, que dizimou a fauna. Todos os buscada no aquecimento climático”. nos recorre aos antibióticos: cinco a chazan demanda ambiental por vertimiento de sal-
produtos do mar tornaram-se impró- “A mudança climática não tem na- sete vezes mais que seus homólogos mones muertos en Chiloé” [Rechaçam demanda
prios para consumo. A crise reavivou da a ver com essa maré vermelha”, noruegueses. “Oitenta por cento dos ambiental por lançamento de salmões mortos em
Chiloé], Tercer Tribunal Ambiental de Chile, 29
os antagonismos entre industriais e contesta o doutor Tarsicio Antezana, antibióticos que o Chile importa vão dez. 2017. Disponível em:<https://3ta.cl>.
pescadores chilotes [de Chiloé], já re- biólogo marinho aposentado, que le- para a aquicultura”, especifica Van der 5 Estudos de mercado. Disponível em:<www.index-
forçados em fevereiro de 2013 por uma cionava no Instituto Oceanográfico de Meer. Diante do risco de emergência salmon.com>.

Ensaio sobre a origem dos Três utopias Lutas e auroras:


conhecimentos humanos contemporâneas Os avessos do Grande
Esta é uma obra capital Neste livro, Francis Wolff sertão: veredas
para a filosofia das propõe que se crie uma nova Ao prosseguir suas análises sobre o
Luzes. Realiza-se aí uma utopia para nossa exata escritor mineiro Guimarães Rosa, o
sistemática e minuciosa medida: que deixemos de crítico Luiz Roncari se debruça neste
reconstituição das negar as fronteiras naturais — livro sobre a “parte negra” do romance
operações da alma aquelas que nos separam de Grande sertão: veredas. A investigação
humana. Em meio a essa deuses ou dos animais — e sensível das agruras de Riobaldo em sua
investigação, a passemos a um estágio constituição de sujeito, do despreparo
linguagem surge como o superior do humanismo, para ser chefe à ação integradora,
ponto de apoio do qual defendendo a abolição das mediada pela relação ambígua com o
depende a própria fronteiras geopolíticas e a poder, é palmilhada e recebe assim
constituição das adoção da ideia de novas luzes interpretativas pelo autor.
faculdades superiores do concidadãos.
espírito. Produzir conteúdo
Compartilhar conhecimento.
Desde 1987.
www.editoraunesp.com.br
30 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

NAS ÁGUAS TURVAS DA AQUICULTURA

Intocáveis criações da Noruega


POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL

N
ão longe de Bergen, na Norue- foi-nos fornecido um estudo de 1982
ga, a companhia Lerøy, segun- que mostra que o diflubenzuron mata
do produtor mundial do sal- as larvas de caranguejos...4
mão de aquicultura, nos O Instituto de Pesquisa Marinha,
convida a visitar sua criação-piloto de que se juntou ao Instituto Norueguês
Sagen 2. Um hangar abriga reservató- de Nutrição e de Pesquisa sobre os
rios onde são criados exércitos de Frutos do Mar (Nifes), em janeiro de
Cyclopterus lumpus. A aquicultura fez 2018, depende do Ministério da Pesca.
desse pequeno peixe dotado de vento- Titular da pasta entre 2009 e 2013, Lis-
sa um aliado: o lumpus é um predador beth Berg-Hansen (Partido Trabalhis-
do parasita lakselus (ou piolho-do-sal- ta) possuía ações de empresas de aqui-
mão, Lepeophtheirus salmonis). “Nós cultura. Seu sucessor, de direita, Per
produzimos cerca de 6 milhões de Sandberg (Partido do Progresso), tem
lumpus por ano”, explica Harald a ambição de quintuplicar a produção
Sveier, diretor técnico da Lerøy. Se- de salmão até 2050.5 Em 2016, ele qua-
gundo ele, “isso permite reduzir 90% lificou de “forças obscuras” aqueles
do uso de tratamentos contra os pio- que ousam criticar a aquicultura. E is-
lhos”. A companhia nos mostra tam- so não ficou só em palavras: o jornal
bém um protótipo singular, denomi- semanal Morgenbladet e o site Harvest
nado “o tubo”. Trezentos mil salmões Magazine identificaram uma dúzia de
jovens são criados durante vários me- cientistas arrolados em uma lista ne-
ses nessa estrutura de plástico de 50 gra por terem colocado em questão o
metros de comprimento que flutua no discurso dominante.6
fiorde, dotada de uma corrente artifi- Entre eles, o francês Jérôme Ruz-
cial e alimentada por água bombeada zin, professor e pesquisador na área de
no fundo. “A 35 metros [de profundi- toxicologia da Universidade de Ber-
dade], a água é extremamente fria pa- gen, onde estuda os poluentes orgâni-
ra os piolhos”, esclarece Sveier. E pros- cos persistentes (POPs). Os peixes ri-
segue: “Os salmões nadam na corrente cos em lipídios, como o salmão, são
e ficam em sua melhor forma. Dejetos procurados por suas proteínas e como
e resíduos são recolhidos e tratados” – fontes de ômega 3, “de cadeia longa”,
em vez de se acumularem e poluírem o mão (54,8% da produção mundial), LISTA NEGRA DE CIENTISTAS CRÍTICOS necessários para o sistema nervoso.
fiorde, o que suscita uma das críticas por aproximadamente 6 bilhões de Diante das críticas e, sobretudo, da Mas sua gordura concentra também
recorrentes contra a aquicultura. euros.1 O salmão permite construir perda de confiança dos consumidores, poluentes como a dioxina e o PCB [bi-
A Lerøy prevê a colocação de um fortunas colossais: nascido em 1993, os industriais reagiram. Tentam redu- fenilo policlorado]. O Instituto de Pes-
segundo tubo, no final de 2018, “qua- Gustav Magnar Witzøe, herdeiro do zir a poluição, frear as evasões, limitar quisa Marinha quer tranquilizar: ele
tro vezes maior, com capacidade para grupo Salmar, é um dos biliardários os tratamentos tóxicos, lutar contra os “controla anualmente os índices de
1,2 milhão de salmões”. Com toda cer- mais jovens do mundo. vírus e parasitas. O uso de predadores poluentes e os publica em seu site”, sa-
teza elevado, o custo desse dispositivo Entretanto, por causa do piolho- naturais do piolho visa diminuir o uso lienta ele, e “os valores estão abaixo
continua “confidencial”. Nos escritó- -do-salmão, as criações de novas aqui- de pesticidas (diflubenzuron e teflu- das doses máximas estabelecidas pela
rios de Oslo, a Cermaq, outra gigante culturas estão congeladas desde 2013. benzuron). Mas a Associação dos Pes- União Europeia”.
norueguesa do salmão e filial da Mit- E, como no Chile (ler artigo anterior), o cadores Marinhos (Fiskarlaget) os A indústria do salmão acrescenta:
subishi, também nos apresenta proje- meio ambiente sofre. Assim, em trinta acusa de matar outros crustáceos, en- “Fazemos testes e respeitamos as exi-
tos inovadores, tal como o iFarm: “Ne- anos, a população de salmões selva- tre os quais pequenos camarões e gências estritas do governo. Estamos
le poderemos criar apenas os salmões gens teria caído para menos da metade krills.3 A indústria contesta, alegando bem abaixo dos limites”, garante
necessários”, afirma Wenche Grøn- (470 mil, em 2016, comparados a 1 mi- que esse problema existe também em Grønbrekk. Ela faz disso um argu-
brekk, responsável por “riscos e sus- lhão nos anos 1980). A hibridização zonas onde não há aquicultura. E, co- mento em prol da aquicultura: “Pes-
tentabilidade”. E continua: “Cada pei- com salmões provenientes da aquicul- mo no Chile, ela é apoiada por um ór- quisas recentes mostram que o sal-
xe será identificado por um sistema de tura os torna mais vulneráveis.2 Em gão do Estado, o Instituto Norueguês mão da aquicultura contém menos
reconhecimento facial”. 2015, em razão do impacto da aquicul- de Pesquisa Marinha (Havforskning- poluentes ambientais que os peixes
Reconhecimento facial dos pei- tura, dezessete associações (ecologis- sintituttet), em Bergen. “Não há liga- selvagens e são ricos em lipídios. A
xes... Essas proezas da biotecnologia tas, montanhistas, de pescadores, de ção evidente”, afirma-nos uma cientis- vantagem da aquicultura é que con-
quase nos levariam a esquecer que, no caçadores) apresentaram uma denún- ta do Instituto, Rita Hannisdal. E trolamos a alimentação dos peixes”.
início, a criação de salmão era uma cia contra o governo norueguês, para a prossegue: “Mortes de inúmeros krills Um estudo publicado em novembro
atividade artesanal, um complemento autoridade de vigilância da Associação ocorreram bem antes da existência da de 2016 na revista francesa 60 Millions
dos rendimentos para os agricultores. Europeia de Livre-Comércio (Aelc), aquicultura. Certas pessoas querem de Consommateurs, de fato, tende a
Agora, a aquicultura ultramoderna e por não ter respeitado a diretiva do ver uma correlação, mas não há ele- mostrar que o salmão pescado e mes-
© Daniel Kondo

automatizada gera poucos empregos Parlamento e do Conselho europeus mentos suficientes para pôr em evi- mo o peixe da criação orgânica (ali-
(apenas 7.650 em toda a Noruega), visando à proteção dos recursos hídri- dência uma causalidade. Precisamos mentado com peixe selvagem) con-
mas muitos lucros. Em 2017, o país ex- cos, que passou a vigorar em 23 de ou- de provas, e, no momento, não há pes- têm mais poluentes que o salmão da
portou 1,2 milhão de toneladas de sal- tubro de 2000. quisa sobre essa questão”. Entretanto, criação clássica, pois sua alimentação
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 31

comporta mais farinha animal e me- “A indústria do salmão compra a pes- a utilização de algas e insetos. As Na-
nos vegetais. quisa”, acusou. Como prova disso, ela ções Unidas estimam que 30% das re-
No entanto, para Ruzzin, os limites nos mostra um estudo de 2006 coorde- servas de peixes selvagens sejam supe-
fixados são duvidosos: “Em novembro nado pelo Nifes... e financiado pela rexploradas, o que não é viável. É
de 2000, a União Europeia havia fixado Marine Harvest. “Conheci jovens pes- importante para nosso futuro utilizar-
um limite de 7 picogramas por sema- quisadores que passavam de um con- mos o mar como agricultores, e não
na [1 picograma = 10 –15 quilograma]. trato precário para outro. Desde então, como caçadores”, conclui ela, ao se re- O olhar da cidadania
Mas muitos consumidores excediam trabalham para a indústria do salmão, ferir ao oceanógrafo Jacques-Yves
essa dosagem. Então, seis meses de- que lhes proporciona uma vida com Cousteau (1910-1997), que via na aqui-
pois, o valor dobrou para 14 picogra- segurança material.” cultura uma solução sobressalente pa-
mas”. Esse remendo foi criticado na ra a pesca.
época pela Agência Federal Alemã do Outras pistas são exploradas no
Meio Ambiente.7 Ruzzin trabalhava no
Nifes, onde estudou o impacto na saú- “As Nações Unidas
Canadá, “o único país que aceitou um
animal geneticamente modificado Na luta
de do consumo do salmão contendo estimam que destinado ao consumo humano”, de
esses POPs: “Constatei efeitos deleté- 30% das reservas de acordo com a associação Vigilance
rios no metabolismo de ratos alimen-
tados com óleo de salmão, compara-
peixes selvagens sejam
superexploradas,
OGM. Criado no Panamá pela empre-
sa norte-americana AquaBounty, esse pela
dos com um grupo alimentado com salmão se tornaria adulto “duas vezes
óleo não contaminado. Os animais de- o que não mais depressa”, segundo seus criado-
senvolviam diabetes de tipo 2 e uma
obesidade muito grave.8 O Nifes me
proibiu de falar diretamente com a mí-
é viável” res. Na falta de catalogação, e como es-
sa filial da Intrexon guarda a lista de
seus distribuidores em caráter confi-
construção
dia e de participar de congressos cien- dencial, 4,4 toneladas foram vendidas

de uma
tíficos, e restringiu consideravelmente Outro fato inquietante: uma pes- para o Quebec com toda discrição em
minhas atividades de pesquisa. Tudo quisadora do Nifes, Victoria Bohne, 2017... Vem aí, extasia-se o site
era controlado de A a Z”. descobriu em 2008 que a etoxiquina AquaBounty, “o salmão mais sustentá-
encontrada na ração dos salmões pode vel do mundo!”.

sociedade
DÚVIDAS SOBRE OS BENEFÍCIOS DO ÔMEGA 3 ultrapassar a barreira hematoencefáli-
Também se sabe pouco sobre as ca que protege o cérebro. Ela acusa o *Cédric Gouverneur é jornalista.
consequências da acumulação dos tó- Nifes de tê-la “forçado a sair”.11 Os fa-
xicos e os efeitos “coquetel” desses acú- bricantes de farinhas animais escolhe-
mulos. Quanto ao ômega 3 tão vanglo- ram esse antioxidante (E324) para evi-
mais justa,
1 Escritório norueguês de estatísticas, Oslo.
riado, Ruzzin contesta suas supostas tar que a ração fique rançosa e impedir 2 Relatório 2017 do Comitê Consultivo Científico do
Salmão Atlântico. Agência Norueguesa do Meio Am-
virtudes: “Os esquimós consomem sua combustão espontânea, um risco biente. Disponível em: <www.vitenskapsradet.no>.
muito ômega 3 e têm poucas doenças que a Organização Marítima Interna- 3 “Lusemidler ødelegger”, Norges Fiskarlag, 19 jan.
cardiovasculares. Então, comer ômega cional impõe que se leve em conta.12 O 2018. Disponível em: <www.fiskarlaget.no>.

solidária e
4 Marit Ellen Christiansen e John D. Costlow, “Ultras-
3 seria ‘bom para a saúde’... De fato, sa- E324 foi originalmente desenvolvido tructural study of the exoskeleton of the estuarine
bemos que os esquimós têm um patri- por uma indústria da borracha para crab (Rhithropanopeus harrisii): Effect of the in-
mônio genético específico.9 Pacientes evitar fissuras nos pneus.13 Seu efeito sect growth regulator Dimilin (Diflubenzuron) on
the formation of the larval cuticle” [Estudo ultraes-
vítimas de infarto se viam com prescri- estabilizador sobre as vitaminas solú- trutural do exoesqueleto do caranguejo de estuário
ções de ômega 3 sem constatarem ne-
nhuma melhora”. Ele nos mostra uma
veis nas gorduras e sua capacidade de
impedir sua oxidação levaram à sua
(Rhithropanopeus harrisii): efeito do regulador de
crescimento de insetos Dimilin (Diflubenzuron) na
formação da cutícula larval], Marine Biology, n.66,
sustentável.
publicação do Ministério das Ciências utilização como conservante. Assim, Berlim, 1982.
norueguês, de maio de 2012, admitin- ele foi produzido pela Monsanto nos 5 Per Sandberg, “The future is bright blue” [O futuro é
do que “os efeitos positivos dos ômega anos 1960 para tratar frutas e legumes, azul brilhante], The European Files, n.47, Bruxelas,
jun. 2017. Ele demitiu-se em 13 de agosto de 2018.
3 não estão suficientemente documen- antes de ser proibido pela União Euro- 6 “De forbannede lakseforskerne” [Os cientistas
tados”. Ruzzin saiu do Nifes em 2010 e peia. Em junho de 2017, Bruxelas tam- malditos do salmão], Morgenbladet e Harvest,
nos confessa que “não come mais sal- bém suspendeu a utilização do E324 na Oslo, 16 jan. 2018.
mão de aquicultura”. Na França, a alimentação animal a partir de 2019. O
7 Andreas Gies, Günther Neumeier, Marianne Ra-
ppolder e Rainer Konietzka, “Risk assessment of Quartas, às 17h,
Agência Nacional de Segurança Sani- grupo Cermaq afirma ter “reduzido o dioxins and dioxin-like PCBs in food. Comments by Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
tária da Alimentação (Anses) reco- uso da etoxiquina, graças a um diálogo the German Federal Environment Agency” [Avalia-
ção de risco de dioxinas e dioxinas como PCB na Ribeirão Preto: 107,9 FM)
menda, todavia, o consumo de peixe com [seus] fornecedores de alimentos comida. Comentários da Agência Federal de Meio
duas vezes por semana, alternando um para salmão”, substituindo-a princi- Ambiente Alemã], Chemosphere, v.67, n.9, Lon-
peixe que tenha grande teor de ômega palmente por “um antioxidante natu- dres, abr. 2007.
8 Jérome Ruzzin et al., “Persistent organic pollutant
Quartas, à meia-noite
3 com um peixe magro, “a fim de ga- ral, o tocoferol (vitamina E), nas [suas] exposure leads to insulin resistance syndrome” TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
rantir todos os benefícios do consumo empresas na Noruega”. [Exposição a poluente orgânico persistente leva a
síndrome de resistência à insulina], Environmental Vivo Fibra e 186 da Vivo.
do peixe e suprir as necessidades que a O uso dos produtos da pesca para
Health Perspectives, v.118, n.4, Durham, abr. 2010.
população tem de ômega 3 de cadeia alimentar os peixes da aquicultura in- 9 Matteo Fumagalli et al., “Greenlandic Inuit show gene-
longa, minimizando os riscos de supe- valida o argumento principal alegado tic signatures of diet and climate adaptation” [Es-
rexposição a determinadas substân- em favor dessa atividade: a proteção quimós da Groenlândia mostram combinações gené-
ticas de dieta e adaptação ao clima], Science, v.349,
cias que possam contaminar”.10 dos recursos haliêuticos. Como a aqui- n.6254, Washington, DC – Cambridge, 18 set. 2015.
Bioquímica e pediatra no hospital cultura fez também de sua emissão de 10 Recomendação de 14 de abril de 2016, Agência
Haukeland de Bergen, Anne-Lise Bjør- dióxido de carbono relativamente fra- Nacional de Segurança Sanitária da Alimentação
(Anses), Maisons-Alfort. observatorio3setor
ke-Monsen também está na lista ne- ca um argumento de venda, ela tenta 11 Nicolas Daniel e Louis de Barbeyrac, “Poissons: éle-
gra. Em 10 de junho de 2013, nas colu- diversificar a alimentação de seus sal- vage en eaux troubles” [Peixes: criação em águas
nas do jornal diário Verdens Gang, ela mões: “A proporção de ingredientes turvas], Envoyé Spécial, France 2, 7 nov. 2013.
aconselhou que crianças e grávidas marinhos não passa de 30% e não para
12 “Ethoxyquin in fish feed” [Etoxiquina na alimenta- observatorio3setor
ção dos peixes], IMR, Bergen, 26 mar. 2011. Dis-
não consumissem salmão. Sua entre- de diminuir”, especifica Grønbrekk ponível em: <https://nifes.hi.no>.
vista teve enorme repercussão na No- em nome da Cermaq. “Os ingredientes 13 “Reregistration Eligibility Decision – Ethoxyquin”
ruega e em outros países. Seus supe- agrícolas devem vir de fontes sustentá-
[Etoxiquina – Decisão de elegibilidade de novo re- www. observatorio3setor.org.br
gistro], Agência de Proteção Ambiental dos Esta-
riores a desabonaram publicamente. veis. Existem pesquisas em curso para dos Unidos, Washington, DC, nov. 2004.
32 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

VITÓRIA ELEITORAL DA DIREITA, CRESCIMENTO DA ESQUERDA

Na Colômbia, as urnas
ameaçam a paz
Em 17 de junho, os colombianos elegeram um novo presidente, Iván Duque, que se opõe ao acordo de paz assinado com
as Farc. A eleição também foi marcada pelo avanço da esquerda, presente no segundo turno, tradicionalmente disputado por
dois candidatos de direita. Mas a esperança de normalização choca-se com o recrudescimento das organizações criminosas
POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL

E
ncostados em uma árvore, dois setas – desafiam despreocupadamente DEPARTAMENTO SOB CONTROLE PARAMILITAR mente instalados no departamento.
homens observam as idas e vin- a proibição de fazer propaganda eleito- Os eleitores não são a única coisa Oficialmente desmobilizados em
das dos eleitores no local de vo- ral nos arredores dos locais de votação. importada da Venezuela. Na estrada 2005, durante o primeiro mandato do
tação. “Olha os frangos”, suspira Nenhum panfleto, nenhuma imagem que acompanha o rio, a cada 100 me- presidente Uribe, a maioria deles con-
Martín Rogelio Ramírez, secretário do em favor de Petro: “A direita manda na tros vendedores ambulantes chamam verteu-se à alta criminalidade ou se
Partido Comunista da cidade de Cúcu- cidade”, conclui Ramírez. os motoristas sacudindo garrafas plás- tornou o braço armado dos proprietá-
ta: “O laranja é um código”. Nas localidades vizinhas, as mes- ticas. “São os pimpineros: eles vendem rios de terra locais. Ameaças, ataques,
Neste 17 de junho de 2018, os co- mas cenas se repetem diante de nos- combustível transportado ilegalmen- assassinatos etc.: inúmeros militantes
lombianos vão às urnas eleger seu fu- sos olhos... e dos policiais. Na entrada te através da fronteira”, nos explicam, de esquerda sofrem agressões desses
turo presidente da República. A popu- das cidades, o Exército posicionou tro- apontando para os galões de gasolina grupos de extrema direita, que os
lação chega para votar na escola do pas e veículos blindados. Ônibus da mal escondidos embaixo das árvores. equiparam aos partidários de organi-
bairro de San Martín, no departamen- cidade venezuelana de Ureña, a pou- Na Colômbia, 1 litro de gasolina custa zações marxistas armadas. A grande
to de Norte de Santander, no nordeste cos quilômetros de distância, despe- mais de 2.300 pesos, o equivalente a justificativa dos ataques: nos anos
do país. O conservadoríssimo Iván Du- jam dezenas de cidadãos colombianos R$ 3,30, contra R$ 2,67 no mercado ne- 1970 e 1980, Petro participou da guer-
que enfrenta o ex-prefeito de Bogotá, que vivem do outro lado do Rio Táchi- gro... e o equivalente a R$ 0,05 na Vene- rilha urbana no Movimento 19 de Abril
Gustavo Petro, cuja presença no se- ra. Muitas pessoas, em ambos os lados zuela. Diante dessa sangria, o governo (M-19) – uma passagem pela luta ar-
gundo turno é uma proeza para a es- do rio, têm dupla nacionalidade. O venezuelano, em janeiro de 2017, ele- mada, no entanto, ainda bastante co-
querda. Aqui, os candidatos progres- panfleto do candidato de direita cola- vou o preço da gasolina para cerca de mum no cenário político colombiano,
sistas são há muito tempo descartados do na janela de um dos veículos deixa R$ 1,67 em áreas na fronteira com a especialmente na direita.
logo no primeiro turno das eleições pouca dúvida sobre as intenções de Colômbia. Embora reduzida, a mar- O candidato da esquerda também
presidenciais, quando não sofrem sim- voto dos passageiros. gem dos contrabandistas permanece. foi vítima de um ataque, em uma via-
plesmente a eliminação física. Duque, “A região de Norte de Santander é gem a Cúcuta, durante a campanha
jovem senador há alguns meses ainda historicamente ligada às atividades ile- eleitoral. Ele só se salvou graças à blin-
desconhecido do grande público, con- gais”, diz Rafael James, advogado e dagem de seu veículo. Para a esquerda,
ta com o apoio de seu mentor, o ex-pre- “Lá dentro, o pessoal membro do Comitê Permanente pela o ataque foi assinado pelo ex-prefeito
sidente Álvaro Uribe Vélez. Este, du- de Duque dá dinheiro Defesa dos Direitos Humanos (PCHR). da cidade, Ramiro Suárez Corzo (2004-
rante seus dois mandatos (2002-2010), a todos que provarem, “Sua proximidade com a fronteira e a 2007). Atualmente preso por mandar
aplicou uma política de belicosa esca- ausência dos poderes públicos favore- matar um adversário político, Suárez
lada contra as guerrilhas e contra qual-
com uma foto de ceram toda uma série de dinâmicas Corzo continua sendo uma figura in-
quer forma de oposição. Aliado fiel dos celular, ter votado mafiosas. A direita usa o espantalho do fluente. Segundo a senadora Claudia
Estados Unidos, ele aparece em um re- no candidato chavismo para vencer a eleição. É uma López (Aliança Verde), que fez essa de-
latório de 1991, feito pelo serviço de in- de direita” hipocrisia, já que neste departamento núncia publicamente, o homem faria,
teligência desse país, como “envolvido todo mundo vive na Venezuela! Todos de sua cela na prisão de La Picota, em
em atividades de narcotráfico”.1 os produtos que consumimos aqui Bogotá, videoconferências por Skype
“Laranja é a cor dos apoiadores de vêm de lá.” Como consequência da cri- para dar instruções à nova equipe diri-
Duque”, prossegue Ramírez. “Assim é Mais discretos, os partidários de se econômica no país vizinho, milha- gente da cidade.
possível identificá-los.” Ele aponta com Petro também estão mobilizados. res de venezuelanos (e antigos emigra- “A particularidade do fenômeno
o queixo para uma casa adornada com Perto da cidadezinha de Villa del Ro- dos da Colômbia) cruzaram a fronteira. paramilitar no departamento”, acres-
cartazes em favor do candidato do Cen- sario, um grupo aguarda, em uma ca- “Eles acabam nas redes de prostituição centa James, “é que ele é suficiente-
tro Democrático (direita). Visitantes sa, a van que o levará ao local de vota- ou contrabando, vivem de pequenos mente poderoso para absorver o poder
aglomeram-se na entrada, sob o olhar ção. Nenhum traço visível de sua cor tráficos etc. Tudo isso alimenta o dis- político, subordiná-lo.” Peça essencial
atento de homens usando bonés tam- política. Esses eleitores também cru- curso da direita contra Maduro.” E do sistema econômico, os grupos pa-
bém laranja. “Lá dentro, o pessoal de zaram a fronteira, guiados por uma contra aquilo que ela apresenta como ramilitares atacam as comunidades
Duque dá dinheiro a todos que prova- militante do Partido Socialista Unido seu clone colombiano: Petro. Este, no camponesas que desafiam projetos de
rem, com uma foto de celular, ter votado da Venezuela (Psuv), o partido do pre- entanto, embora seja desfavorável a mineração ou grandes monoculturas,
no candidato de direita”, garante. Não sidente Nicolás Maduro. “Organiza- qualquer interferência externa, tem si- numerosos na região. “A luta, aqui, é
pudemos verificar essa informação, mos o transporte para garantir que os do extremamente crítico à gestão da entre dois modelos de desenvolvimen-
mas a demonstração de força é impres- camaradas pudessem votar”, explica a crise pelas autoridades venezuelanas. to”, lança Junior Maldonado, membro
sionante: seria difícil contar as imagens jovem. A travessia é perigosa: o depar- Além dos ataques da mídia que a da associação de camponeses de Cata-
do candidato da direita que – em adesi- tamento é um corredor de contraban- associam ao regime bolivariano, a es- tumbo, ainda na região de Norte de
vos e cartazes, nos para-brisas dos car- do, e diversos grupos criminosos pas- querda local tem de enfrentar a hosti- Santander. “O nosso: comunitário e
ros, nas paredes das lojas e até em cami- sam por ali regularmente. lidade dos grupos paramilitares, forte- local. O do governo: agroindustrial. A
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 33

ratificou antes de deixar o cargo, ao


passo que anteriormente se opusera a
ele – uma violação dos acordos logo
denunciada pelos ex-membros da
guerrilha. De agora em diante, como
desejava a direita, os militares serão
julgados por um tribunal diferente.
“Não é aceitável que nossas Forças Ar-
madas sejam julgadas por um tribunal
criado pelas Farc e para as Farc. A polí-
cia e o Exército merecem um julga-
mento justo”, avalia a senadora de di-
reita Paloma Valencia.2
O segundo objetivo de Duque:

© Efraín Herrera / Presidencia Colombia


modificar o tratamento dos pedidos
de extradição recebidos pela Colôm-
bia. A JEP terá de se contentar em ve-
rificar se as acusações feitas por ou-
tros países estão relacionadas a
crimes posteriores à assinatura do
acordo – uma referência clara ao caso
de Jesús Santrich, ex-comandante da
guerrilha e membro da equipe de ne-
gociação das Farc em Havana. Preso
Ivan Duque durante cerimônia de aniversário do Batalhão de Guarda Presidencial em abril por uma acusação norte-a-
mericana de tráfico de drogas, ele es-
tá ameaçado de ser transferido. “Veja
que nosso objetivo inicial era elimi-
estratégia dos paramilitares tem o ob- área metropolitana de Cúcuta, longe mo e violência”. Um exemplo: a sena- nar a JEP. Hoje a reconhecemos e a
jetivo de limpar o território para que as da guerra. Dos 30% restantes, apenas dora Aída Merlano, do Partido Conser- ajudamos a avançar”, insiste, magnâ-
multinacionais possam se estabele- 10% são afetados pelo conflito: é a re- vador da Colômbia (direita), foi nima, a senadora Valencia.
cer.” Exemplo emblemático dos proje- gião de Catatumbo” – área cujos qua- acusada de “comprar votos” durante No entanto, apesar de sua derrota,
tos que elas apoiam aqui: a produção tro municípios colocaram Petro na li- as eleições legislativas de março. De a esquerda sai fortalecida dessa bata-
de palma, transformada em combus- derança, enquanto ele foi maciçamente acordo com os resultados da investiga- lha política. “É histórico!”, diz anima-
tível para motores a diesel. derrotado em todo o resto do departa- ção, a candidata da cidade de Barran- da Yolima Gómez, militante da coali-
mento. Em nível nacional, os resulta- quilla, no norte do país, pagou até 40 zão Colômbia Humana, de Petro, em
ESPECTROS DA CRISE VENEZUELANA dos confirmam o fenômeno: Petro ga- mil pesos (R$ 58) por voto. “Os barona- Cúcuta. “Agora, teremos 8 milhões de
Em 17 de junho, após a apuração, o nhou nos territórios mais marcados tos locais garantem a lealdade dos fun- pessoas resistindo à política de Duque.
resultado é claro: 54% dos votos (10 mi- pelo conflito, principalmente em áreas cionários, com a ameaça de demissão, Nosso objetivo é organizá-las. Mas que
lhões) para Duque, contra 41,8% para rurais remotas (sobretudo no Norte e e a da população, maltratada pelas po- avanço! Antes, a oposição a Juán Ma-
Petro (8 milhões), e 4,2% de cédulas no Sudoeste). O candidato de esquer- líticas neoliberais, por meio de doa- nuel Santos era Álvaro Uribe. Hoje, so-
em branco. Os jovens militantes comu- da também conquistou a capital e as ções ou comissões”, detalha Olave. mos uma alternativa.” “O país mu-
nistas recebem a notícia sem nenhuma grandes cidades (Cali, Barranquilla, “De resto, a direita pede aos grupos ar- dou”, afirma por sua vez Olave: “É a
surpresa. A vitória de Duque represen- Cartagena etc.), com exceção de Me- mados que intimidem e ataquem to- primeira vez que a direita foi colocada
ta a do campo hostil ao acordo de paz dellín, onde a influência e a aura de das as pessoas relacionadas à oposi- na parede. Obrigada a reunir todas as
assinado em 2016, em Havana, com as Uribe ainda foram mais fortes. ção, de esquerda ou não.” O governo suas forças, ela ficou com medo”. Sím-
Forças Armadas Revolucionárias da Então, por que ele perdeu? “Nós de- contabiliza 326 assassinatos de líderes bolo dessa união sagrada: os dois par-
Colômbia (Farc), cujos laços ideológi- nunciamos as fraudes no primeiro de movimentos sociais e defensores tidos tradicionais do país, o Partido Li-
cos e humanos com o Partido Comu- turno, mas elas não explicam a vitória dos direitos humanos entre janeiro de beral e o Partido Conservador,
nista Colombiano continuam fortes. de Iván Duque”, admite Ariel Ávila, 2016 e julho de 2018. Entre os departa- uniram-se a Duque após o primeiro
Referindo-se ao texto do acordo, o pu- subdiretor da Fundación Paz y Recon- mentos mais afetados, Cauca (81 mor- turno. Candidato à presidência pelo
pilo da direita havia prometido “rasgá- ciliación, observatório do conflito. tos), Antioquia (47) e Norte de Santan- Partido Liberal e principal artífice do
-lo em pedaços”, antes de suavizar seu “Dois espectros assombram hoje toda der (19). acordo de paz com as Farc, Humberto
discurso: hoje fala em “corrigi-lo”. Sua a América Latina – e não apenas a Co- de la Calle (que ficou em quinto lugar
eleição também coloca em risco as ne- lômbia: a crise venezuelana e o voto AS FARC NÃO SERVEM MAIS DE ESPANTALHO no primeiro turno, com 2% dos votos)
gociações com a segunda maior guer- evangélico. O que dizem aqui a mídia Duque também conseguiu con- surpreendeu ao anunciar que votaria
rilha do país, o Exército de Libertação e a direita? Que Petro é um novo Chá- vencer. Entre os principais projetos em branco no segundo turno, recu-
Nacional (ELN), particularmente ativo vez e que iria fechar igrejas e templos. atribuídos a ele, está a reforma da Ju- sando-se, assim, a apoiar Petro, o úni-
no departamento e com o qual o presi- Essas ideias tomaram forma em am- risdição Especial para a Paz (JEP). Or- co candidato que prometeu dar conti-
dente Juan Manuel Santos, no posto plas camadas dos setores populares. ganismo de transição nascido do acor- nuidade ao processo de paz. Ele seguiu
até 7 de agosto, definitivamente não Por si só, o voto evangélico coloca 1 do de Havana, a JEP encarrega-se de os passos de Sergio Fajardo, candidato
conseguiu chegar a um acordo de ces- milhão de cédulas na conta de Du- julgar os crimes cometidos durante o de uma coalizão que reunia a Aliança
sar-fogo. “Os militares vão fazer hora que.” Para essa parte da população, o conflito por todas as partes, tanto os Verde e o Polo Democrático (centro-
extra”, caçoa um rapaz. programa de Petro – defesa do direito insurgentes quanto os militares – sen- -esquerda), o qual ficou em terceiro lu-
Devemos então concluir que a ao aborto, extensão das liberdades se- do alguns crimes, principalmente o de gar, com quase 24% dos votos.
maioria dos colombianos deseja aca- xuais etc. – parecia um espantalho. rebelião pelos guerrilheiros, automati- Segundo Olave, um fenômeno ex-
bar com a paz? Segundo William Sociólogo, Harold Olave enfatiza camente anistiados. “Um monumento plica essa mudança: o processo de
Cañizares, diretor da organização de que, embora a fraude não tenha pesa- à impunidade”, declarou Duque du- paz. “Privada de seu conforto tradi-
defesa dos direitos humanos Progre- do tanto quanto alguns proclamam, o rante a campanha. Por iniciativa dos cional, a direita teve de se posicionar
sar, na região, o conflito não foi o ele- apoio a Duque decorre da “mecânica senadores de seu partido, seu campo sobre os problemas reais. Um espaço
mento crucial da votação: “70% do paramilitar” e suas duas alavancas obteve, no dia 18 de julho, a emenda democrático se abriu com o desarma-
eleitorado do departamento está na tradicionais nas eleições: “clientelis- dos regulamentos da JEP, que Santos mento, e os jovens, especialmente, fo-
34 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

ram exigir respostas para suas per- vem os ex-combatentes e suas famí- relação de forças política pode deter a nuncia conspiração e “sabotagem” dos
guntas. O discurso sobre o perigo lias. Eles contam com um campo de mecânica da violência contra os guer- acordos. “Tenho a impressão de que a
venezuelano não poderia substituir futebol, uma biblioteca, um restau- rilheiros desmobilizados. “Eu não es- paz na Colômbia está presa nas redes
completamente aquele que erigia a rante e até um bar. “Tudo foi construí- queço que o governo é um adversário. da traição”, escreveu em uma carta
guerrilha em mal absoluto, como es- do pelos companheiros, com o mate- Ele não está traindo o acordo, está fa- aberta no dia 16 de julho.
perava a classe dirigente.” Em um ar- rial doado pelo governo”, esclarece zendo sua parte. Se os 8 milhões de Sinal de um possível retorno da
tigo de 2008, De la Calle, que também nossa guia. Nas fachadas, afrescos so- eleitores de Petro se mobilizarem, os guerrilha marxista? “Acho que o ciclo
foi vice-presidente da República entre bre a glória da guerrilha e seus márti- assassinatos diminuirão.” de violência política acabou”, respon-
1994 e 1996, havia declarado que “a es- res: Manuel Marulanda Vélez, Alfonso de Ávila, na Fundación Paz y Reconci-
tabilidade política da Colômbia” era Cano, Mono Jojoy etc. Aqui vivem 295 liación. “Claro que sempre haverá dis-
“devida às Farc”, acrescentando que o pessoas. Cada ex-combatente recebe sidentes. Mas o risco, caso não se faça
desaparecimento do grupo armado 700 mil pesos por mês (R$ 955, quase A desmobilização das a reforma agrária ou não se substi-
“aumentaria a pressão social” e o “ní- 90% do salário mínimo colombiano), diferentes estruturas tuam outras produções agrícolas por
vel de confrontação”.3 Visionário? depositados em uma conta bancária – das Farc “criou uma aquelas erradicadas – coisas previstas
Quatro horas de carro ao sul de Bo- que a maioria precisou abrir e apren- pelo acordo de Havana –, é tornar ine-
gotá, no departamento de Tolima, está der a administrar. Terminada a guerra
espécie de anarquia vitável um novo ciclo de violência cri-
uma das 26 áreas de reinserção (ofi- para eles, os ex-guerrilheiros agora se criminal” e minosa.” Segundo um relatório da
cialmente, “espaços territoriais de for- dedicam à atividade política de sua um “aumento da Fundación de julho de 2017,4 a desmobi-
mação e reincorporação”, ETCR) dos nova organização legal: a Força Alter- insegurança” lização das diferentes estruturas das
ex-combatentes das Farc. Chegamos nativa e Revolucionária do Comum Farc “criou uma espécie de anarquia
ali após uma subida difícil, de jipe, por (também Farc). criminal” e um “aumento da insegu-
uma estrada de montanha escarpada, Atraindo todas as atenções pós- rança”, fenômeno provocado pela “ex-
perto de Icononzo. No caminho, ne- -eleitorais, o partido imediatamente Nem todo mundo tem a mesma pansão de grupos ilegais” ao redor das
nhum controle, nenhuma presença se declarou aberto ao diálogo com o confiança no futuro. Segundo várias or- 242 comunas onde operava a guerrilha.
visível, nem do Exército colombiano novo presidente. Muitos, à esquerda, ganizações, os dissidentes da guerrilha, Em Catatumbo, os dois últimos
nem da ONU, que deveriam estabele- temem que o retorno ao poder de uma hostis à paz, seriam hoje quase 1.200, grupos de insurgentes armados, cerca
cer perímetros de segurança em torno direita revanchista resulte no aumen- enquanto as autoridades estimam seu de 1.500 guerrilheiros do ELN e qui-
da área para proteger os ex-guerrilhei- to do número de assassinatos políti- número em cerca de seiscentos. Em nhentos do Exército Popular de Liber-
ros. “Esta é a terceira visita de jornalis- cos. Segundo as organizações de defe- Norte de Santander, muitos retomaram tação (EPL), empreendem uma guerra
tas em uma semana”, suspira Laura F., sa dos direitos humanos, cerca de as armas. “Nossa preocupação”, explica para tomar posse do território antes
apresentada como uma das responsá- sessenta ex-combatentes já foram Cañizares, o diretor da Progresar, “é que controlado pelas Farc – uma zona es-
veis do campo. “Todos querem saber o mortos entre a assinatura do acordo de o pequeno grupo oriundo das Farc que tratégica, fronteiriça, que eles também
que achamos do novo presidente. O paz, em 24 de novembro de 2016, e se apresenta como ‘Frente 33’, ativo em disputam com os grupos paramilita-
último escreveu um artigo que não maio de 2018. Difícil não pensar no Catatumbo, cresça por causa da política res e as máfias. Em suma, um caos que
agradou aos companheiros. Ele nos exemplo da União Patriótica (UP), or- de Duque e do não respeito ao acordo.” algumas pessoas temem que se espa-
descreveu como pessoas desengaja- ganização política criada pela guerri- lhe para outras regiões do país.
das no processo de paz, o que é falso. lha na década de 1980 com o objetivo RETORNO DA GUERRILHA MARXISTA?
Então, eles não vão querer falar com (já naquela época!) de entregar as ar- Outro sinal de desafio: o ex-guerri- *Loïc Ramirez é jornalista.
você hoje.” mas e inserir-se na via democrática. lheiro Luciano Marín Arango, conheci-
Quinze anos de luta armada dentro Os assassinatos de mais de 3 mil mili- do como Iván Márquez, anunciou em 1 Sibylla Brodzinsky, “Ex-Colombian president’s fa-
da guerrilha e das milícias urbanas da tantes, entre eles dois candidatos à meados de julho que não ocuparia sua mily face US extradition over drugs charges” [Famí-
rede Alejandro-Nariño aguçaram a presidência, acabaram enterrando as cadeira no Senado (o acordo de paz lia do ex-presidente colombiano ameaçada de ex-
tradição pelos Estados Unidos por tráfico de
desconfiança da jovem. Ela avalia seu esperanças da esquerda e mandando concedeu à ex-guerrilha cinco assen- drogas], The Guardian, Londres, 11 jun. 2012.
interlocutor com os olhos antes de res- as Farc de volta à selva. tos no Senado e cinco na Câmara dos 2 “‘Justicia para policías y soldados’, pide Paloma
ponder: “A vitória de Duque era previ- Que preço os ex-guerrilheiros es- Deputados): a prisão de seu amigo Je- Valencia” [“Justiça para policiais e soldados”, pede
Paloma Valencia], El Tiempo, Bogotá, 3 jul. 2018.
sível. É claro que isso vai complicar as tão dispostos a pagar hoje? “Neste sús Santrich e a confirmação do inqué- 3 “Buena parte de la estabilidad política se debe a las
coisas, mas não recuaremos na ques- país, tanto na guerra como na política rito em que ele é acusado nos Estados FARC” [Boa parte da estabilidade política se deve
tão da paz”. Fincado no topo de uma há mortes; isso é parte da luta de clas- Unidos por tráfico de drogas levaram- às Farc], El Espectador, Bogotá, 26 nov. 2008.
4 Relatório n.2 da Fundación Paz y Reconciliación,
montanha que domina o vale, o cam- ses”, responde nossa interlocutora, -no a fugir de Bogotá para refugiar-se Bogotá, jul. 2017. Disponível em: <www.pares.
po compõe-se de várias casas onde vi- dando de ombros. Para ela, apenas a em Caquetá, no sul do país, de onde de- com.co>.
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 35

MINERAÇÃO

Estranhas cooperativas bolivianas


Por que atacar esta importante força, as cooperativas de mineiros, uma das partes interessadas nos movimentos
sociais que apoiam Morales? Provavelmente, antes de mais nada, por causa da queda do preço das matérias-primas,
que estrangulou as finanças públicas, obrigando o Estado a procurar novas receitas
POR AMANDA CHAPARRO*, ENVIADA ESPECIAL

N
as primeiras horas do dia, na dores. Nós assinamos contratos por de normas ambientais que, em sua opi- emancipação. De fato, os cooperati-
saída da mina de San José, em preço fixo, por tarefa ou por dia. Aqui é nião, se mostram muito restritivas. vistas parecem ter se beneficiado de
Oruro, Alfredo Huari arruma cada um por si”. No coração da monta- “Privilégios intoleráveis”, retruca sua proximidade com o poder para
suas ferramentas. Ele passou a nha, o trabalho, duro, ceifa vidas. As diante de nós Álvaro García Linera, o “promover um capitalismo selvagem
noite nas galerias escuras da monta- temperaturas variam de 0 °C a mais de vice-presidente, sentado sob o retrato por meio da adoção do modelo neoli-
nha para extrair alguns gramas de 40 °C, em meio à poeira tóxica. Marco de Simón Bolívar em um salão do palá- beral de recusa de qualquer regula-
minério: prata, estanho, zinco, chum- Gandarillas, pesquisador do Centro de cio presidencial. Arquiteto da política mentação estatal”, resume o pesquisa-
bo... Aqui, 250 associados reunidos em Documentação e Informação da Bolí- do MAS, ele nos apresenta a contra- dor Claude Le Gouill.2 Assim, desde
cooperativas dividem os veios de uma via (Cedib) e especialista em questões proposta feita pelo governo antes da 2006 e da chegada do MAS ao poder,
das maiores jazidas de metais precio- de mineração, explica a organização eclosão do conflito: “Ou vocês operam mineiros cooperativistas e mineiros
sos da Bolívia. A 3.700 metros acima dessas “cooperativas”: “Os lucros não como empresas e pagam impostos, ou empregados pela Corporación Minera
do nível do mar, sob o sol já ardente, são distribuídos. Grupos privilegiados adotam o status de cooperativas, mas de Bolivia (Comibol), empresa estatal,
Huari, ombros largos e rosto vigoroso, exploram o trabalho dos outros, com renunciam a ceder suas concessões ou se enfrentam pelo controle dos veios
lembra os trágicos acontecimentos de jornadas de trabalho que às vezes ul- a alugá-las a particulares”. em Huanuni, uma mina pública do
2016, quando um conflito com o go- trapassam dezesseis horas. É por isso Cerro Posokoni, no departamento de
verno se degenerou. “É verdade que que eles se opõem à sindicalização”. Oruro. Resultado: dezesseis mortos e
nós, os mineiros, somos sanguíneos. Há alguns anos, o presidente Mo- 81 feridos. Seis anos depois, eles ainda
Mas ambas as partes agiram de forma rales, no entanto, apresentou os mi- “Eu trabalho exigiam concessões na mina de Col-
violenta”, ele conta, sentado ao lado neiros cooperativistas como “aliados com um terceirizado quiri. Novos confrontos. Em 2014, a Lei
dos colegas que descansam depois de naturais e incondicionais” de seu go- que tem seus próprios de Mineração, que integra grande par-
uma noite de trabalho. verno (Página Siete, nov. 2013). Mesma te de suas demandas, foi adotada após
Agosto de 2016, “agosto negro”. Mi- conversa com Simón Condori, líder da
trabalhadores. três anos de elaboração e de negocia-
neiros conhecidos como “cooperati- Federação dos Mineiros para a capi- Nós assinamos contratos ções pontuadas por graves conflitos
vistas” bloqueiam os eixos estratégi- tal: “Estivemos na vanguarda do pro- por preço fixo, por entre governo, mineiros cooperativis-
cos do país. Os confrontos com a cesso de mudança e da luta contra o tarefa ou por dia” tas e mineiros assalariados.
polícia levam à morte cinco pessoas e neoliberalismo dos anos 2000”, decla- Após o violento episódio de 2016,
fazem dezenas de feridos nos dois la- ra. Com mais de 130 mil trabalhado- cinco decretos, seguidos de leis, forta-
dos. Até a tragédia que marca o fim das res, essa organização forma um bata- lecem o controle sobre as cooperati-
mobilizações: o sequestro e depois o lhão eleitoral ainda mais importante Esse ultimato levanta uma ques- vas. Eles preveem o retorno ao Estado
assassinato, em 25 de agosto, do vice- pelo fato de cada mineiro geralmente tão: por que atacar essa importante de concessões não exploradas ou cedi-
-ministro do Interior, Rodolfo Illanes, mobilizar os votos de sua família. “So- força, uma das partes interessadas nos das a empresas privadas – uma vitória
que viera para tentar uma mediação. O mos um monstro”, concluía Mamani, movimentos sociais que apoiam Mo- para o governo, ainda que comprome-
presidente Evo Morales denunciou o um tanto ameaçador, durante os pro- rales? Provavelmente, antes de mais ta o relacionamento com o antigo alia-
crime como “imperdoável” e decretou testos de 2016. nada, por causa da queda do preço das do. Novos atos violentos podem ocor-
luto nacional. A crise marcou um pon- A partir de 2005, os mineiros coo- matérias-primas, que estrangulou as rer: os cooperativistas ameaçam
to de virada nas relações com um de perativistas apoiaram o Movimento finanças públicas, obrigando o Estado retomar as manifestações se os sus-
seus principais aliados. Na origem para o Socialismo (MAS), o partido de a procurar novas receitas, sobretudo peitos em prisão provisória no âmbito
dessa explosão de violência, o anúncio Morales. Em troca, eles mantêm pos- alargando a base do imposto da mine- da investigação do assassinato de Illa-
da revisão da Lei das Cooperativas pa- tos-chave nas administrações e nos ração.1 “O governo estava recebendo nes não forem libertados.
ra permitir aos trabalhadores do setor ministérios. Em 2006, o ministro das muitas críticas”, analisa igualmente Em Oruro, em frente à mina de San
se sindicalizarem livremente: uma Minas, Walter Villarroel, era originário Ricardo Bajo, redator-chefe do edição José, um mineiro que quer permanecer
“declaração de guerra”, considera Car- da Fencomin, e vários deputados ema- boliviana do Le Monde Diplomatique. anônimo deixa escapar, em tom defi-
los Mamani, então presidente da Fede- nam de suas fileiras. Segundo o Cedib, “As pessoas diziam: ‘Os mineiros coo- nitivo, a respeito da eleição presiden-
ração Nacional das Cooperativas Mi- eles se beneficiaram de pelo menos no- perativistas fazem o que querem por- cial de 2019: “Ya no apoyamos” – “desta
neiras (Fencomin) – algumas das ve medidas legislativas desde a vitória que são aliados do governo. Todo vez, não vamos mais apoiar [o MAS]”.
quais parecem ter mantido esse modo do presidente indígena, incluindo a Lei mundo segue as regras, paga impos- Por enquanto, essa opinião não é majo-
de organização apenas no nome. de Mineração, que “coloca seus direi- tos, exceto eles’. Mas o governo tinha ritária entre seus companheiros...
Potosí, o outro grande centro de tos acima dos de outros atores econô- registrado uma série de vitórias contra
mineração do país, dominado pela micos do país”, estima o pesquisador os setores com os quais estava em con- *Amanda Chaparro é jornalista.
Cerro Rico, a “montanha de prata”, Pablo Villegas, especialista em ques- flito, e a oposição estava enfraquecida.
com 4.800 metros de altura. Na família tões energéticas. No entanto, em 2016, Ele se sentiu forte o suficiente para fa-
de Miguel Delgadello, a atividade de a federação exibiu uma nova lista de zer que os mineiros se dobrassem e
mineiro passa de pai para filho. Ele su- queixas. Além do cancelamento da obrigá-los a entrar na linha.” 1 Entre 2015 e 2016, as receitas provenientes do
petróleo caíram 33% (Cepal), e as do imposto de
biu os degraus e se tornou chefe de se- modificação da Lei das Cooperativas, A tensão, no entanto, remonta à mineração, 2%.
tor. Capacete na cabeça, botas nos pés ela exige a possibilidade de se associar própria origem dessa aliança antina- 2 Claude Le Gouill, “La politique minière du gouver-
e folha de coca no vão da bochecha, ele com empresas privadas (para que estas tural entre um poder em busca do “so- nement d’Evo Morales: entre mythes et pragmatis-
me politique” [A política de mineração do governo
explica: “Eu trabalho com um terceiri- últimas garantam a exploração de suas cialismo do século XXI” e um setor de Evo Morales: entre mitos e pragmatismo políti-
zado que tem seus próprios trabalha- concessões), bem como o relaxamento menos sensível à urgência da luta pela co], IdeAs Paris, outono 2016.
36 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

UM MASSACRE DESACREDITA AS MISSÕES DA ONU

Na República Centro-Africana, a
falência da comunidade internacional
Mal equipada e mal planejada, a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República
Centro-Africana acumula fracassos e escândalos. Os capacetes azuis são acusados de atirar contra uma multidão desarmada
em Bangui, em abril. Entre a miséria e uma guerra civil insidiosa, o país é palco de uma disputa de influências internacional
POR JUAN BRANCO*, ENVIADO ESPECIAL

© UN/MINUSCA / Hervé Serefio

Soldado das Forças Armadas Centro-Africanas (Faca)

D
ez de abril de 2018. No coração mil mortos, a ONU acusou os dois ad- na de jovens desocupados, ele está em A população se refugia perto da mes-
de Bangui, o rumor cresce: um versários de “limpeza étnica”. Apesar da relação direta com os chefes rebeldes quita; homens de Force se misturam
grupo armado teria sequestra- assinatura de um acordo de paz em ju- do norte e do leste do país, ex-Seleka, aos manifestantes; o contingente da
do uma mãe e sua filha. Esta- nho de 2017, o conflito continuou. O go- que tomaram temporariamente a ca- ONU, composto de certa de vinte solda-
mos nos limites do bairro PK5, enclave verno do presidente Faustin-Archange pital em 2013 e ameaçam regularmen- dos ruandeses apoiados por dois veícu-
muçulmano de alguns milhares de Touadéra, eleito em 2016, controla ape- te retornar a Bangui. Aqui, ninguém los, abre fogo. Enquanto os milicianos
habitantes no coração da capital da nas 20% do território. entra sem sua autorização, e as organi- replicam, um blindado quebra, obri-
República Centro-Africana. Desde a Desde 8 de abril de 2018, uma ope- zações humanitárias fizeram as ma- gando os soldados a fugir a pé. Um dos
destituição, em março de 2013, do presi- ração militar da Minusca, nomeada las. Ironizando a autoridade do presi- capacetes azuis é abatido. No dia se-
dente François Bozizé, os enfrentamen- Sukula, semeia turbulências na capi- dente Touadéra, Force diminui agora a guinte, dezessete corpos são colocados
tos entre anti-balakas, cristãos e ani- tal. As expedições dos capacetes azuis, credibilidade de tropas internacionais diante do quartel-general da Minusca
mistas, partidários em sua maioria do que visam retomar o controle de um já muito desacreditadas. Apesar de por manifestantes silenciosos, carrega-
chefe de Estado destituído, e a Seleka, bairro que caiu na mão das milícias, suas intervenções, a Minusca não con- dos em lençóis brancos. Entre os cadá-
coalizão heteróclita de maioria muçul- são cotidianas. A memória dos cami- segue retomar o controle do bairro. veres, ícones do bairro, reconhecidos
mana, deixaram milhares de mortos e nhões de refugiados fugindo em dire- por seus feitos esportivos, mulheres e
centenas de milhares de deslocados. ção ao Chade em 2013, perseguidos DIAMANTES E PETRÓLEO crianças. Em missão em Bangui, Jean-
Lançada pela França com o aval das Na- pelos anti-balakas sob o olhar indife- Neste 10 de abril, a população irri- -Pierre Lacroix, secretário-geral adjun-
ções Unidas em dezembro de 2013, à rente das forças internacionais, vem à tada cerca o comissariado onde vêm se to da ONU encarregado da manutenção
operação Sangaris1 somou-se em abril tona. A Minusca tenta emboscar Ni- instalar as Forças Armadas Nacionais da paz, evoca os “incidentes” cuja res-
de 2014 a Missão Multidimensional In- mery Matar Djamous, conhecido co- Centro-Africanas (Faca). Muito tensa, ponsabilidade recai sobre os milicianos
tegrada das Nações Unidas para a Esta- mo Force, um miliciano de autodefesa a situação degenera rapidamente. As que “manipulam os jovens”.
bilização da República Centro-Africana que reina sobre uma parte desse bair- tropas formadas pela União Europeia, Apenas no dia 10 de abril, a Cruz
(Minusca). Em janeiro de 2015, enquan- ro muçulmano. Desertor do Exército acompanhadas de mercenários russos Vermelha centro-africana contou 34
to os enfrentamentos já tinham feito 6 centro-africano, liderando uma cente- da divisão Wagner, entram em pânico. mortos e 145 feridos, entre os quais
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 37

uma maioria de civis. Ainda que a Mi- chamento da base militar de Bouar, soldados do Nepal, Uruguai e Marro- uma isenção à Rússia no embargo que
nusca tenha lançado oficialmente qua- oficialmente por razões financeiras, e a cos tinham sido expulsos por tráfico foi imposto desde a guerra civil. O alia-
tro investigações sobre os fatos que de Béal, as tropas francesas se reinsta- de armas, estupros, assassinatos ma- do mantido por tanto tempo não existe
aconteceram no PK5, nenhuma resul- laram no vizinho Chade, em N’Djame- quiados como erros... Empregada en- mais. A presença russa se tornou paten-
tou na menor sanção ou reconheci- na, Abéché e Faya-Largeau. Pouco a quanto a operação Sangaris chegava te nas concessões de minas ou nas ruas
mento de culpa e nenhum comandan- pouco, os raros franceses que explora- ao fim sem glória, em dezembro de da capital: 175 instrutores e cerca de 8
te foi retirado de suas funções. Todos vam açúcar, madeira e algodão se reti- 2016, no meio de acusações de pedofi- mil armas desembarcaram.
os relatórios concluem um uso “pro- raram, substituídos pelos vendedores lia organizada, a Minusca já perdeu 73 Escândalos já atingem os mercená-
porcional” da força e o respeito das re- de diamante libaneses, os petroleiros soldados – nesse contexto apocalíptico rios russos, afiliados em grande parte
gras de engajamento diante dos “movi- russos e chineses, os mercadores de emergindo semana após semana das à empresa Wagner e suspeitos de te-
mentos militarmente estruturados por ouro do Sahel e os guardas florestais acusações hostis. rem encomendado o assassinato sel-
ações sofisticadas”. Após novas denún- norte-americanos. Areva e Total, por Assim se multiplicam as missões vagem de três jornalistas investigati-
cias, a pressão aumentou; o secretário- um tempo instaladas em Bakouma e de todo tipo, que deveriam reforçar vos de seu país, que vieram pesquisar
-geral adjunto encabeçou outro relató- Birao,2 partiram com a debandada. instituições nacionais inexistentes. Os no local. Em breve, a guarda próxima
rio na divisão dos diretos humanos da especialistas enviados pela sede da do presidente Touadéra, dirigida por
Minusca. Em 11 de julho de 2018, Par- ONU se sucedem. Ganhando US$ 500 um certo Valeri Zakharov, poderia ser
fait Onanga-Anyanga, o chefe da Mi- por dia, eles produzem relatórios este- substituída por forças especiais fran-
nusca, em três páginas “estritamente Apenas no dia reotipados que ninguém lê a respeito cesas vindas para apoiar a rebelião do
confidenciais” excluiu qualquer culpa. 10 de abril, de um país que nunca percorreram. O norte. Isso dependeria da reação de
São deixados de lado os testemu- fim da ajuda bilateral, em proveito de Paris e das pressões que o aparelho de
nhos coletados no local por jornalistas
a Cruz Vermelha fundos multilaterais, deveria ter per- segurança norte-americano exercerá
e especialistas, mas também o relató- centro-africana contou mitido, diante dessa má administra- sobre seu aliado. Enquanto isso, al-
rio, que, no entanto, não tem nenhuma 34 mortos e 145 feridos, ção, evitar as urgências humanitárias. guns mercadores de sonhos aprovei-
ambiguidade, do comando das forças entre os quais uma A expectativa de vida no nascimento tam a expectativa para vender a preço
de operações especiais assinado pelo passou de 44 anos em 2002 para 52 baixo sua mediação, e representantes
responsável adjunto das operações es-
maioria de civis anos em 2016, mas continua sendo a de Erik Prince, fundador da Blackwa-
peciais Ikram Ul Haque e pelo tenente- mais baixa do mundo, segundo o Ban- ter, a empresa norte-americana de
-coronel ruandês Jean-Paul Ruhoraoh- co Mundial. mercenários, aparecem no único hotel
za, encarregados da operação: os A guerra civil de 2013 marcou uma Em 10 de abril, as Faca, infiltradas de luxo da cidade.
capacetes azuis abriram fogo primeiro virada. Depois do afundamento do po- pelos mesmos que elas deveriam com- Nesse contexto nocivo, nasceu a
em cima de uma multidão desarmada, der de transição encarnado por Michel bater, tinham revelado os detalhes da Corte Penal Especial. Instituição híbri-
da qual apenas a segunda e a terceira Djotodia, fraco sucessor de Bozizé, o operação iminente da Minusca aos mi- da misturando direito centro-africano
linhas eram aparentemente infiltradas país caiu no caos: os governadores não licianos de Force, precipitando um dra- e internacional, ela tem por objetivo
por milicianos que permaneceram eram mais nomeados. Pouco a pouco, ma que ninguém ousou assumir. A al- dar um fim à impunidade. Depois de
inativos. Esses documentos confiden- os grupos rebeldes tomaram definiti- guns quilômetros dali, o proto-Estado três anos de inatividade e enquanto
ciais se acrescentam aos relatórios da vamente o controle do essencial do constituído pela Frente Popular pelo seu orçamento representa um treze
polícia militar nacional. Estes confir- país. Antes bem recebido, o estrangei- Renascimento da República Centro- avos das receitas do Estado centro-
mam a violência de uma operação que ro, o mungiu, bem pago, que exercia -Africana (FPRC), antiga coluna verte- -africano, sua gestão operacional e sua
terminou pela fuga a pé de soldados uma economia de predação, hoje é per- bral da Seleka, chamou as forças rebel- proteção foram confiadas à Minusca,
ruandeses, atirando sem olhar a cada cebido como o espoliador de uma po- des a se reunirem para preparar uma tornando ilusórias as promessas de in-
esquina da zona mais densa do país pulação privada de qualquer forma de tomada de Bangui em reação ao massa- dependência da instituição. Dotado de
para prevenir eventuais represálias. soberania – e que vive com 89 centavos cre. Noureddine Adam solicitou o apoio uma dúzia de oficiais de polícia judi-
Pequeno país-eixo, fazendo fron- de euro por dia em média, enquanto o da França. Os Mirages estacionados no ciária e apoiado por juízes de instrução
teira com o Chade e a República De- menor funcionário internacional mul- Chade efetuaram voos a baixa altitude internacionais, seu principal procura-
mocrática do Congo (RDC), a Repúbli- tiplica por cem essa renda no cotidia- para assustar os rebeldes e, assim, evi- dor, Toussaint Muntazini, não iniciou
ca Centro-Africana foi por muito no. O PIB por habitante é de US$ 382, a tar o pior. Mas o que seria o pior? A nem a menor investigação desde sua
tempo a pedra angular da estratégia riqueza produzida pelos 5 milhões de substituição de um poder fantoche por nomeação em 2017, em um país onde
colonial francesa na África subsaaria- centro-africanos é inferior aos lucros outro, a reprodução do drama de 2013, os primeiros processos contra crimi-
na, e o controle desse território nunca anuais da Total. A Minusca, símbolo de quando, por irritação, a França deixou nosos de guerra, ocorridos em janeiro
foi nada além de um meio a serviço de uma presença estrangeira parasita, cair seu aliado Bozizé em proveito de de 2018 por meio da justiça nacional,
lutas de influência entre grandes po- concentra todos os ódios. uma força heteróclita (a Seleka) que conheceram grande repercussão. Nes-
tências, que ainda consomem a região. A força internacional (14.787 sol- não esperava tanto, surpreendida por ses limbos, os olhares da população, de
Deixado de lado, entravado por uma dados e agentes de mais de dez nacio- ter tão facilmente tomado a capital, uma outra dominação, se endurecem
centralização econômica e comercial nalidades) acumula escândalos. Os afundando-se desde que chegou a imperceptivelmente. As forças colo-
em torno da sua capital, o país viveu ao relatórios oficiais denunciam suas Bangui e multiplicando roubos e vio- niais, que se tornaram multinacionais,
ritmo dos caprichos de um antigo ofi- “insuficiências”, sua incapacidade de lências anárquicas? continuam, por sua vez, povoando, in-
cial do Exército francês, Jean-Bédel garantir a proteção das populações e A França, que então deixou aconte- diferentes, as noites de um país onde a
Bokassa (no poder de 1966 a 1979), co- a falta de formação de seus contin- cer, promete que desta vez não vai in- esperança de vida se negocia ao preço
roado “imperador” em 1977 ao final de gentes.3 Em junho de 2017, 629 capa- tervir. O embaixador nos disse e repete, dos silêncios mais culpados.
uma cerimônia que custou um terço cetes azuis congoleses foram demiti- enquanto as forças rebeldes se reúnem
do PIB do país. dos por abusos sexuais, após a retirada no Chade sob a égide do aliado Idriss *Juan Branco é jornalista e doutor em Direi-
A sequência foi uma sucessão de forçada dos chadianos, acusados de Déby. Seu principal conselheiro nos to, autor de D’après une image de Daech
decepções. A República Centro-Africa- parcialidade e de apoio às forças mu- mostra o novo mapa de um país onde [Uma imagem do Estado Islâmico], Nouvelles
na, apesar de seus recursos naturais – çulmanas do país. Em maio de 2018, o abundam as instalações de ONGs flo- Éditions Lignes, Paris, 2017.
dos quais o diamante e o coltan ainda contingente gabonês, cuja retirada ti- restais controladas por baixo do pano
são os mais promissores –, sofreu com nha sido anunciada, foi mantido in ex- pela CIA para contra-atacar a influên- 1 Ler Anne-Cécile Robert, “François Hollande, prési-
o desinteresse crescente de sua antiga tremis depois de longas negociações cia crescente dos mercenários russos e dent à Bangui” [François Hollande, presidente em
Bangui], Le Monde Diplomatique, jan. 2014.
potência colonial. A reconfiguração implicando o Ministério das Relações dos operadores econômicos chineses. 2 Ler “Aux sources du scandale UraMin” [Nas fontes
militar lançada pelo presidente Nicolas Exteriores francês, preocupado em A França, que tem o controle de qual- do escândalo UraMin], Le Monde Diplomatique,
Sarkozy fez que barbuzes e neocolonos manter um olho sobre a África central, quer assunto relacionado à República nov. 2016.
3 Relatório S2018/125 do secretário-geral sobre a
perdessem o pouco de soberba que enquanto as acusações de abuso se- Centro-Africana no Conselho de Segu- República Centro-Africana e as atividades da Mi-
lhes restava. Na continuidade do fe- xual acabavam de vir à tona. Antes, rança da ONU, estranhamente aceitou nusca, Nova York, 15 fev. 2018.
38 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018

MISCELÂNEA

livros internet
COMO SE IMPERIALISMO, NOVAS NARRATIVAS DA WEB
REVOLTAR? ESTADO E RELAÇÕES Sites e projetos que merecem o seu tempo
Patrick Boucheron, INTERNACIONAIS
Editora 34 Luiz Felipe Osório,
Editora Ideias & Letras
ENTREVILAS
O documentário interativo faz um traçado
imaginário pelas vilas operárias de São Pau-
lo. Conflitos urbanos, memórias, seus mora-
dores e modos de vida foram registrados e
podem ser acessados sem começo, meio ou
fim da narrativa. Foi produzido durante três
meses, coordenado pelo Estúdio Crua, du-

A Idade Média tem sido imaginada como tem-


po de reis, castelos e igrejas, mas também foi
período de grande opressão sem aparente resis-
A s contribuições marxistas são fundamental-
mente internacionalistas, mas relegadas nos
estudos das relações internacionais. A relação
rante uma oficina com catorze pessoas no
Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em
São Paulo.
tência, com turbulências, agitações e insurreições. entre saber e poder não é irrelevante. O livro de <www.entrevilasdoc.com.br>
Quem fala sobre isso é Patrick Boucheron, espe- Luiz Felipe Osório traz à tona as contribuições te-
cialista nesse período, em livro com uma estrutura óricas marxistas para o campo das Relações In- HÍBRIDOS
de palestra e perguntas, derivado das “pequenas ternacionais, principalmente em torno da teoria do Durante três anos, os produtores e cineastas
conferências” dirigidas a jovens na França. Aí o Estado e do imperialismo, desde suas origens até Priscilla Telmon, Vincent Moon e Fernanda
autor constata que as juventudes já se revoltavam as discussões mais recentes. Abreu saíram para explorar as várias formas
contra as estruturas sociais. Nessa história das Osório propõe uma divisão dos autores em ritualísticas do Brasil, sua musicalidade, seu
revoltas medievais é apresentada uma série de torno de três grandes debates. O primeiro, que movimento, com vontade de criar um “corpo
manifestações, populares ou não, em linguagem se estende de 1870 a 1945, reúne os intérpre- digital” que permitisse uma melhor compreen-
simples, com base em documentos e “lendas”. tes pioneiros de Marx: Rudolf Hilferding, Rosa são dessas pessoas e suas práticas. Não ha-
É possível revoltar-se num período conhecido Luxemburgo, Karl Kautsky, Nikolai Bukharin e via ideia inicial do formato, que terminou numa
pelo senso comum como “idade das trevas”, mas Vladimir Lenin. O segundo debate ocorre duran- coleção de mais de cem filmes em viagens por
no qual estudos já mostraram o quanto a vida eco- te a Guerra Fria e apresenta um grupo amplo de toda a América Latina. A maior procissão ca-
nômica e cultural era dinâmica. escolas chamadas neomarxistas: a corrente do tólica do mundo, ou um ritual desconhecido in-
Um dos argumentos do autor se refere ao tipo de capital monopolista (Paul Baran e Paul Sweezy), dígena de Mato Grosso. Um longa-metragem,
revolta – por exemplo, aquelas da pequena nobreza os teóricos da dependência (Andre Gunder Frank, instalações imersivas e outras formas de apre-
contra a grande nobreza, o que ele chama de “re- Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia sentação do projeto estão em andamento.
volta fiscal”, que tem a ver com cobrança de taxas Bambirra), e os pensadores do sistema-mundo Não há entrevistas ou narrações, apenas uma
e impostos cobrados pelos reis e senhores da no- e das trocas desiguais (Immanuel Wallerstein, experiência plástica e sensorial protagonizada
breza, donos de terra e castelos, em geral abusivos. Giovanni Arrighi e Samir Amin). Por fim, o debate por corpos de fiéis em transe religioso. Sem
O cavaleiro solitário Robin Hood não poderia contemporâneo, que foi dividido em três campos. dúvida, dos mais completos projetos de narra-
ficar de fora dessa história. Alguns historiadores Na vertente politicista, apresentam-se os autores tivas multimídia ou, digamos, híbridas.
colaram a imagem do “herói” popular nas revoltas Michael Hardt, Antonio Negri, Leo Panitch, Sam <http://hibridos.cc/en/rituals/>
de camponeses. Boucheron mostra, ao contrá- Gindin e Ellen Wood; na parcial politicista, David
rio, que esse personagem não era um “bandido Harvey e Alex Callinicos; e na plena crítica, Ev- GOOD CITY LIFE
comum” que pretendia distribuir renda, como se geni Pachukanis, Christel Neusüss, Klaus Busch, A retórica das cidades inteligentes corporati-
acreditou durante algum tempo (Hobsbawm, por Claudia von Braunmühl, Joachim Hirsch, Alysson vas fala sobre eficiência, segurança, previsi-
exemplo). Na perspectiva do autor, o salteador Mascaro e China Miéville. bilidade: chegar rápido ao trabalho, câmeras,
pertencia à pequena nobreza (gentry) da Ingla- Para muito além de uma luxuosa e instigante re- sem filas no shopping. Basicamente, uma ci-
terra. Mas também houve várias contestações visão bibliográfica, deve ser destacada a impres- dade para trabalhar e consumir, não necessa-
populares da ordem social vigente, e Boucheron sionante apresentação do atual estado da arte riamente para viver bem. Os pesquisadores do
arrisca interpretar com outros que “a cruzada das das reflexões marxistas. A leitura de Imperialis- Good City Life buscam entender o que faz de
crianças” poderia ser um desses protestos. mo, Estado e relações internacionais é essencial uma cidade um lugar especialmente bom para
Ao abordar a Idade Média, o livro remete às a todo internacionalista, seja qual for sua matriz de morar, um lugar feliz. “Recentemente, usamos,
insurgências e manifestações globais e locais pensamento teórico. por exemplo, dados de mídias sociais para ma-
com sentidos econômicos, mas também culturais pear camadas de emoções e sensações pela
e sociais. Recentemente houve revoltas globais cidade”, explicam. Daniele Quercia, cientista
contra impostos (movimentos antiglobalização e britânico da computação, já falou sobre seus
anticapitalista em Seattle), manifestações contra happy maps no TED, conferência mundial-
o preço do ônibus (jornadas do MPL em junho de mente famosa em que falam personalidades
2013), protesto exitoso contra a privatização das de destaque nas áreas de tecnologia, entrete-
águas (a “guerra pelas águas” em Cochabamba). nimento e design.
Enfim, esse livrinho nos lembra que não faltam <http://goodcitylife.org>
motivos para revoltas.
[Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
[Valmir de Souza] Professor, pesquisador e en- professor de Jornalismo na ESPM, mestre em
saísta, associado ao Instituto Pólis e ao Sinpro/ [Henrique Paiva] Professor do Instituto de Re- Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
Guarulhos. lações Internacionais e Defesa (Irid), da UFRJ. torando em Design na FAU-USP.
SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Marx e a exploração da natureza


O livro A ecologia de Marx: materialismo e nature- Ano 12 – Número 134 – Setembro 2018
za, de Foster, é excelente e contesta de forma muito www.diplomatique.org.br

convincente as críticas formuladas contra Marx


DIRETORIA
no tocante ao tema da natureza. Foi publicado pe- Diretor da edição brasileira e editor-chefe
la Civilização Brasileira. Silvio Caccia Bava

Mauricio Miranda 2 LIBERAIS VS. POPULISTAS, UMA DIVISÃO ENGANOSA


Dez anos de crise
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Rubens Naves
Por Serge Halimi e Pierre Rimbert
Vale a pena sacar que nessa não valoração dos ser- Editor
viços naturais de manutenção do equilíbrio am- Luís Brasilino

biental o nosso país acaba exportando água a pre- 5 EDITORIAL


Na linguagem do povo Editor-web
ço e formato de banana... Por Silvio Caccia Bava Cristiano Navarro

João Naves Editores de Arte

Os endividados
6 CAPA
Diminuir tributos ou reformar a distribuição dos impostos
Adriana Fernandes e Daniel Kondo

Estagiária
Por Odilon Guedes
“Assim, a tendência global de financeirização da Taís Ilhéu
Reforma trabalhista: desemprego e precarização vêm à tona
vida como forma de controle social ganha contor- Revisão
Por Euzébio de Souza, Ana L. M. de Oliveira
nos radicais no Brasil, estabelecendo uma nova ca- e Barbara V. Vazquez
Lara Milani e Maitê Ribeiro

tegoria social, a dos endividados, com muito mais O discurso da privatização Gestão Administrativa e Financeira
dificuldades de superar essa condição e saldar Por Adhemar Mineiro, Cloviomar Cararine, Fernando A.
Arlete Martins

seus débitos que em qualquer outra parte do mun- Teixeira, Gustavo Teixeira, Iderley C. Neto E Paulo Jäger Assinaturas
do. Aqui se cobram os maiores juros do planeta.” SUS pós-2018: a caravana passa? Viviane Alves

Esse é o conceito, financeirização da vida, que ne- Por Ligia Bahia Tradutores desta edição
cessita ser assimilado pela sociedade e estimulá-la Educação: entre histéricos, demagogos e financistas Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Por José Ruy Lozano Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
a criar mecanismos coletivos de sobrevivência.
Violência, subjetividades e projetos de vida
Romulo Oliveira Conselho Editorial
e cidadania no Brasil Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Por Bruno P. Manso, Renato S. de Lima e Samira Bueno
Capa Agricultura e meio ambiente
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Amei a capa! Cheia de detalhes e muita informa- Por Sergio Leitão e Jaqueline Ferreira Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
ção. Marcou presença de maneira sutil e inteligen- Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
te! As cartas do tarô que estão sobre a mesa já fa-
zem a leitura do cenário “catastrófico”.
13 PERFIS DOS CANDIDATOS
Discursos políticos e disputa hegemônica
Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.

Apoiadores da campanha de financiamento coletivo


Denise Cabral Por Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino,
Annagesse C. Feitosa, Paulo A. A. Balthazar, Rita Claudia Jacintho e Vinícius D. Cantarelli Fogliarini

A Torre vem trazendo um rompimento; do auge é Thais P. Bittencourt e Yamira R. S. Barbosa


Assessoria Jurídica
que você despenca. O Enforcado traz uma situa- Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

ção seguinte de armadilhas, porém possíveis de 16 ONDA DE GREVES NOS ESTADOS REPUBLICANOS
Vermelhos em disputa nos EUA Escritório Comercial Brasília
serem resolvidas com muito sofrimento, dor e as- Por Clément Petitjean
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
túcia. Diabo e Arcano sem Nome trazem, respecti-
vamente, ressurgimento e renovação de uma si- Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação

tuação que aprisiona negativamente. 18 LUCROS EM ALTA, RESULTADOS EM BAIXA


O fiasco da privatização das escolas na Suécia
da associação Palavra Livre, em parceria com o
Instituto Pólis.
Thiago D’Carlo Por Violette Goarant
Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Entrevista: José Trajano 20 EDUCAÇÃO
A militarização das escolas públicas
Tel.: 55 11 2174-2005
diplomatique@diplomatique.org.br
Sinto falta das reportagens que existiam, que tra- www.diplomatique.org.br
Por Rudá Ricci
ziam informações e conhecimento diversos. Havia
Assinaturas
mais cultura geral nesses programas também, e os
23 SEGREDOS DO LOBBY ISRAELENSE NOS EUA assinaturas@diplomatique.org.br
programas do Trajano sempre se preocuparam Como Israel espiona norte-americanos
Tel.: 55 11 2174-2015

com isso. Agora, muitos engomadinhos robotiza- Por Alain Gresh Impressão
dos e contadores de piada chatas. Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Mário Tiengo
26 VOTAÇÃO HISTÓRICA NO KNESSET
Israel torna-se uma “etnocracia”
Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001

Distribuição nacional
O WhatsApp e a oportunidade do fortalecimento Por Charles Enderlin DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
da democracia Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –

28 DE COMIDA DE LUXO AO FLAGELO ECOLÓGICO Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624


Uma coisa é certa: o cretino que me enviar propa-
A globalização explicada pelos salmões
ganda política pelo Whats vai direto para minha LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
Por Cédric Gouverneur, enviado especial
lista de rejeição de chamadas ou será registrado Fundador
como número spam! Vão para o inferno com a in- Hubert BEUVE-MÉRY

vasão geral e irrestrita de privacidade. 32 VITÓRIA ELEITORAL DA DIREITA,


CRESCIMENTO DA ESQUERDA Presidente, Diretor da Publicação
Romilda Raeder Na Colômbia, as urnas ameaçam a paz Serge HALIMI

Por Loïc Ramirez, enviado especial Redator-Chefe


Philippe DESCAMPS

35 MINERAÇÃO
Estranhas cooperativas bolivianas
Diretora de Relações e das
Edições Internacionais
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas Por Amanda Chaparro, enviada especial Anne-Cécile ROBERT
críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, Le Monde diplomatique
se necessário, resumidas para a publicação. 36 UM MASSACRE DESACREDITA AS MISSÕES DA ONU
Na República Centro-Africana, a falência
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus www.monde-diplomatique.fr
da comunidade internacional
autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação
do periódico. Por Juan Branco, enviado especial Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37
edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5
eletrônicas.

Capa: © Caio Borges


38 MISCELÂNEA
ISSN: 1981-7525
NÃO VAI SER
Que dizem uma coisa antes da eleição e fazem outra completamente
diferente depois de assumirem seus mandatos. Mas até em seus

NA PORRADA.
defeitos a democracia revela sua inigualável qualidade. Somente
sob o regime democrático podemos acompanhar e verificar
o comportamento daqueles que elegemos. Saber se o discurso

NÃO VAI SER


vendido na campanha eleitoral virou verdade e descobrir quem
honrou nosso voto ou quem nunca mais o merece de novo.

NA GRITARIA.
A democracia, e só ela, nos permite corrigir civilizadamente
e pacificamente os equívocos que porventura nossas escolhas
tenham nos trazido.

NÃO VAI SER


Este ano teremos eleição. No dia 7 de outubro, será possível
mostrar, de fato, sua indignação e renovar mais de 95% do

NA IGNORÂNCIA.
Congresso Nacional. Seu voto pode mudar praticamente
tudo. Se é importante eleger para a Presidência da República
alguém comprometido com a justiça social e a democracia,

VAI SER PELO VOTO


é fundamental eleger para o Congresso pessoas que representem
também esses valores. Somente com um Congresso digno e capaz

QUE VAI NASCER


o futuro Presidente, seja quem for, poderá realizar suas promessas
eleitorais, sem ficar à mercê das mesmas barganhas e chantagens

UM NOVO
a que assistimos nos dias de hoje. Isso não pode mais acontecer.
Um novo Congresso é necessário. E, mais importante, um novo

CONGRESSO.
Congresso é possível.
A internet permite que, em segundos, se tenha acesso à história
e ao passado de todos os candidatos à Câmara dos Deputados
Como você já deve ter notado, o texto deste anúncio é longo. e ao Senado. É fácil pesquisar as entrevistas, os discursos, as
Por isso, se você é daquelas raríssimas pessoas que têm orgulho posições de cada um deles.
da atuação do deputado ou deputada federal que elegeram ou Em breve, novas ferramentas estarão disponíveis ajudando você
que só têm aplausos para a postura do senador ou senadora a alinhar suas expectativas e desejos com os programas dos
que escolheram, nem precisa se dar ao trabalho de ir até o fim. candidatos, garantindo uma maior assertividade na escolha
Pode parar por aqui. de seus deputados e deputadas, senadores e senadoras.
Por outro lado, se você faz parte da gigantesca maioria Esta é uma campanha apartidária e foi criada para que
da população brasileira que se envergonha do atual Congresso o Congresso Nacional que nascerá a partir das eleições
Nacional, não deixe de ler este texto até o fim. Ele é longo de 2018 possa ser formado por homens e mulheres que
porque tem o tamanho da indignação de milhões de brasileiros. exerçam verdadeiramente sua real e insubstituível função:
Indignação com a produção quase que diária de escândalos a partir do povo, fiscalizar e legislar para o povo e pelo povo.
e negociatas de congressistas que, por definição, deveriam estar
produzindo outra coisa: leis que tornem o Brasil socialmente A campanha “Um Novo Congresso” tem como horizonte
mais justo, progressivamente mais inclusivo, economicamente a Constituição de 1988: um Brasil justo, igualitário,
mais próspero e ambientalmente sustentável. democrático e respeitoso dos Direitos Humanos; uma
O Congresso Nacional é um dos pilares básicos da democracia. sociedade pacífica e solidária; uma economia voltada
Qualquer país só pode ser chamado de democrático se tem um para a redução das desigualdades e para o atendimento
Congresso Nacional livre, isto é, formado por representantes das necessidades humanas, em harmonia com a natureza
não impostos por governantes autoritários ou ditadores, e sim e a sustentabilidade.
eleitos diretamente pelo voto popular.
Nenhum dos atuais 513 deputados e 81 senadores foi enfiado
goela abaixo de nenhum de nós. Ninguém foi obrigado
a escolher esse ou aquele candidato, essa ou aquela candidata.
Gostemos ou não, o atual Congresso Nacional é resultado
exclusivo das nossas próprias escolhas.
Essa é uma das consequências da democracia: às vezes,
elegemos representantes que, infelizmente, não nos representam.

umnovocongresso.org.br
APOIO
Ação Educativa | Agenda Pública| Associação Poços Sustentável | Atletas pelo Brasil | Casa Fluminense | Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo |
Delibera Brasil | Escola de Fé e Política Waldemar Rossi | Escola de Governo | Frente Nacional pela Qualidade na Educação | Fundação Tide Setubal | Fundación Avina |
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Observatório do Recife | Oxfam Brasil | Pastoral da Educação da Arquidiocese de São Paulo | Pastoral Fé e Política da Arquidiocese de São Paulo | Pastoral Fé e Política da Região Episcopal Belém |
Programa Cidades Sustentáveis | Rede Nossa Mogi das Cruzes | Rede Nossa São Paulo | Rede Cidades por Territórios Justos, Democráticos e Sustentáveis | Tribunal Tiradentes

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