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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CRECHE DA UNICAMP
CAMPINAS - SP
2015
i
Universidade Estadual de Campinas
Faculdade de Educação
Goulart de Faria.
Campinas - SP
2015
ii
iii
À minha mãe e ao meu pai, por sempre estarem abertos a
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço a orientação da Ana Lúcia, por compartilhar sua sabedoria e pela parceria na luta
Agradeço a leitura do Flávio, que me ajudou em cada vírgula, desde o começo, até o final e
UNICAMP.
me ensinou muito durante minha trajetória na creche, pela paciência, pela amizade que
do dia a dia da creche, pelos debates nas reuniões de estagiárias, pelos lanches e almoços
Não teria como não agradecer as feministas mafiosas ‘deboistas’ que moram ou convivem na
Moradia da Unicamp. Esse foi um espaço muito importante de convivência coletiva, de troca
agradecida pelas amizades que nasceram desse espaço e por todas as pessoas queridas que
passaram pela D11: Tati, Mari, Elizete, Poli, Bia, Vicente e Mafer.
v
Pela amizade e companhia nos cafés da tarde e outras drogas: Stephs, Taina, Carol, Mari
Pimentel e Maurício.
Agradeço à todas amigues que fizeram da faculdade um lugar mais divertido. Valeu por todas
trocas de ideia, aprendi muito com vocês: Chris, Stelle, Rety, Mirela, Jana, Fer, Poli, Soraya,
Fabiola e Claire.
Ao Samba das Mina, por ser um espaço de fortalecimento, de trocas e por trazer tantas
e Nil Sena.
À minha família pelo apoio incondicional, por todo esforço e apoio que dedicaram na minha
educação. À minha mãe Lilian, ao meu pai Gilmar, ao meu irmão marcos, também a Titas, a
À minha família de Campinas que me acolheu com muito amor e respeito. Um agradecimento
Agradeço a Isadora, minha companheira, amiga, namorada, por proporcionar dias mais felizes
vi
O movimento feminista precisa ser interseccional, dar voz e
(RIBEIRO,2014).1
1
“As diversas ondas do feminismo acadêmico”. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-
feminista/feminismo-academico-9622.html. Acesso em 17 de Junho de 2015.
vii
RESUMO
CRECHE DA UNICAMP
Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo apresentar o processo de construção
dos estereótipos do feminino e masculino nas pedagogias desenvolvidas na CAS – Creche da
Área da Saúde da Unicamp. Trata-se de uma pesquisa com abordagem etnográfica realizada
com crianças pequenininhas entre dois e três anos de idade e suas professoras. A pesquisa
utilizou como instrumentos metodológicos observações na creche além de pequenas
intervenções, que consistiam em um jogo de cartas de baralho e três contações de história. A
partir dos pressupostos teóricos dos estudos sobre as relações de gênero, do feminismo, da
pedagogia da educação infantil e da sociologia da infância, analisamos de que modo os
meninos e as meninas percebem, reproduzem e resistem às imposições normativas referentes
a construção binária da masculinidade e feminidade. Por meio dos registros em diário de
campo, vídeo e áudio foi possível problematizar alguns episódios e discutir assuntos ainda
poucos debatidos na educação infantil como o sexismo, a heteronormatividade, o racismo e o
padrão de beleza. Ao final do trabalho lançamos nossos olhares para pensar práticas
pedagógicas para desconstruir e não reproduzir esses estereótipos, romper com os paradigmas
de gêneros de modo que este não se torne um aspecto limitante das construções subjetivas dos
sujeitos.
Relações de Gênero.
viii
Sumário
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................. 1
CAPÍTULO 1 - DAS EXPERIÊNCIAS NA CRECHE.................................................................................. 6
1.1 A TRAJETÓRIA DE AUXILIAR – DE ABRIL DE 2013 À JANEIRO DE 2015 ............................................... 6
1.2 PEDAGOGIA(S) DA(S) INFÂNCIA(S) E SOCIOLOGIA DAS INFÂNCIAS ................................................... 11
CAPÍTULO 2 – POR UMA METODOLOGIA DE PESQUISA FEMINISTA COM CRIANÇAS ............17
2.1 A ESCOLHA DA CRECHE E O ESPAÇO .......................................................................................................... 17
2.2 MUDANDO OS OLHARES PARA AS MESMAS DIREÇÕES ............................................................................... 22
2.3 AS INTERVENÇÕES COM AS CRIANÇAS ....................................................................................................... 24
2.4 O PAPEL DE UMA ADULTA QUE BRINCA...................................................................................................... 33
CAPÍTULO 3 - QUANDO A NORMA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NÃO REPRESENTA A
EXPERIÊNCIA .............................................................................................................................................42
3.1 POR UMA EDUCAÇÃO FEMINISTA ............................................................................................................... 42
CAPÍTULO 4 – RELAÇÕES DE GÊNERO E RAÇA: POR UMA EDUCAÇÃO INTERSECCIONAL ..58
4.1 RAÇA E GÊNERO ......................................................................................................................................... 58
4.2 HETERONORMATIVIDADE E PEDAGOGIA .................................................................................................. 70
4.3 PADRÕES ESTÉTICOS – GORDOFOBIA ....................................................................................................... 72
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................................79
CARTA ABERTA À CRECHE DA ÁREA DA SAÚDE DA UNICAMP ....................................................83
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................................................86
OBRAS ESTUDADAS .......................................................................................................................................... 90
ANEXOS........................................................................................................................................................91
1- MANIFESTO INDIGNADO II: A CONSTRUÇÃO DE VERDADES ÚNICAS ..................................................... 92
2- ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO ...................................................................................................................... 96
3- MODELO DE AUTORIZAÇÃO .................................................................................................................. 100
4- IMAGEM DO PLANEJAMENTO SEMANAL – TURMA DO MACACO .......................................................... 101
5- PÔSTER .................................................................................................................................................. 102
ix
Introdução
Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo discutir as relações de gênero
idade. É importante ressaltar que a CAS não é uma creche pública, mas sim uma creche de
empresa pública, onde a maioria das crianças são filhas e filhos de trabalhadoras e
trabalhadores do Hospital das Clínicas da Unicamp e algumas têm mães e pais trabalhadoras
da própria creche ou são estudantes da Unicamp. Sendo assim, todas têm mães ou pais
As relações de gênero estudadas não se limitam entre as crianças, vão além do mundo
Corsaro (2002)) a criança, ser de direitos, histórico, cultural e social, vive contextos de
meninas, limitando a construção social do gênero das pequenas e dos pequenos e perpetuando
presentes, levando em conta que Pedagogia é uma profissão atrelada à história da mulher na
sociedade e que a creche foi uma conquista do movimento feminista na década de 70.
Jurema Werneck (2010)), podemos pensar essas opressões de gênero sob a criança
1
relacionadas com outras questões, pois as opressões não se dão de forma isoladas. É
imprescindível também, levar em conta a raça, etnia, classe, idade, religião, entre outros. Ou
seja, analisar um conjunto de relações se faz necessário na discussão das opressões, dando
Por essa concepção feminista e por questões políticas, neste trabalho não será usado o
desconforto que surgiu de vivências na CAS, no período de abril de 2013 a janeiro de 2015,
em que eu trabalhava como auxiliar das professoras da educação infantil. Foram momentos de
relações de gênero, que muitas vezes caiam num determinismo de gênero, o tema da pesquisa
surgiu, interessado em aprofundar essas questões e esses assuntos que são pouco debatidos na
Educação Infantil e na área educacional como um todo, para que os estereótipos de gênero
professoras, entretanto, é fundamental explicitar que essas críticas são voltadas para a
1
para o “cistema”2 que oprime mulheres, negras e/ou LGBTs. Ou seja, essas críticas não são
pessoais às professoras que convivi e troquei experiências, pois elas também são vítimas
crianças também são vítimas dessa sociedade que impões estereótipos, as classifica e as
experiências e questões que suscitaram a pesquisa, como por exemplo a indagação de como a
mediação das professoras pode impedir a construção livre do gênero das crianças. Em que
feminino e masculino interferem nas relações das crianças? Será que as professoras têm
acesso às discussões de gênero? Em que momentos encontramos essas discussões dentro dos
bibliográfico das palavras chave: gênero, creche e culturas infantis, junto com algumas
necessário para discussão das infâncias, rompendo com a noção do estudo de uma criança
abarcar todas as questões para começar a (tentar) responder todas as perguntadas e a partir das
experiências em campo a proposta de uma pesquisa etnográfica foi a melhor escolha, dando
2 CIStema é uma palavra que pretende criticar o sistema que é composto prioritariamente por pessoas
cisgênero e que oprime as pessoas transgêneros, transsexuais, travestis, ou seja, todas as pessoas que fogem
dessa norma. Pessoas cisgênero são aquelas que possuem sua identidade de gênero equivalente ao sexo do
nascimento, independente da orientação sexual.
2
espaço para discussão do papel de uma pesquisadora no campo da educação infantil. Para este
machistas vividas enquanto auxiliar, desta maneira, levei histórias que colocavam a questão
da princesa em outra perspectiva, que davam voz às famílias homoafetivas e que poderiam se
crianças era esse, nós brincávamos, no banheiro, no almoço, no parque, em qualquer lugar.
cada coisa e contra a estrutura que não permite o brincar em alguns espaços e momentos,
colocando uma visão adultocêntrica num espaço que deveria ser pensado para as crianças e
pelas crianças, dando ouvido a elas e colocando-as como protagonistas daquele ambiente.
discurso, na prática encontrava uma cobrança de rigidez, para que fosse afirmada a hierarquia
dos corpos naquele espaço, criando uma relação de poder entre o meu papel na creche e na
relação com as crianças. Ser uma adulta que brinca, muitas vezes, era visto com um olhar
negativo por algumas pessoas, mas a certeza de que a brincadeira é um dos momentos mais
preciosos e importantes das crianças, fazia com que os dias na creche fossem mais leves do
que rígidos.
campo, vídeo e áudio, que as discussões acerca dos estereótipos de gênero e binarismo
3
mulheres, a relação delas com a educação e objetivando um olhar mais feminista para a
educação.
opressões, ou seja, é impossível discuti-las de formas isoladas. Portanto, o capítulo 4 traz essa
uma relação que cria desigualdades básicas, opressões que estão subordinadas ao mesmo
sistema.
Esse mesmo sistema que oprime mulheres, negras e crianças, faz ataques à educação
como um todo. A cidade em que a pesquisa foi realizada vive um contexto político
reacionário, com uma bancada moralista e conservadora que, com medidas antidemocráticas,
(PME, 2015-2025) e proibir a discussão de gênero nas escolas e creches, a partir de uma
Esses ataques a uma educação laica e crítica revelam a gravidade da falta de discussão
desses e outros temas não só no ensino superior, mas também na educação básica, portanto,
propõem a discussão.
3 A emenda foi proposta pelo vereador Campos Filho (DEM), acrescentando um parágrafo único no Art.
222: “Parágrafo único – Não será objeto de deliberação qualquer proposição legislativa que tenha por objeto a
regulamentação de políticas de ensino, currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma
complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou orientação sexual
(AC)” (http://camposfilho.com.br/?p=3959);
4 https://www.leismunicipais.com.br/lei-organica-campinas-sp#artigo_222;
5 Um exemplo é o Fórum Paulista de Educação Infantil (FPEI), que escreveu o Manifesto Indignado II: A
construção de verdades únicas (em anexo).
4
Por fim, este trabalho que deveria ser de “conclusão de curso” demonstra a emergência
da mudança dos currículos e cursos de Pedagogia, pois a maior parte das discussões propostas
Diante disso, fica o apelo a todas as professoras de qualquer área da educação, para
que tenham a mente aberta, a compreensão da responsabilidade da educação, para que sempre
se questionem sobre as imposições que o machismo nos coloca sobre nossas práticas
pedagógicas, para que tenhamos sororidade6 com nossas companheiras de luta e para que
6
“Sororidade é entender que as engrenagens que me oprimem são as mesmas que o fazem com muitas outras
pessoas e incluir mais vozes no meu grito, para que ele seja mais alto, mais efetivo, mais exigente, mais
pungente, alcance mais ouvidos. É incluir. É dar voz. É respeitar. Rever privilégios” (PIRES, 2013). Sobre
transexualidade, feminismo interseccional e sororidade. Disponível no site: <
http://blogueirasnegras.org/2013/06/06/transexualidade-feminismo-interseccional-e-sororidade/>. Acesso em 17
de Junho de 2015.
5
Capítulo 1 - Das experiências na creche
de 2013, acompanhando o dia a dia do módulo verde II, que em 2014 passou a ser chamado
(PRDU) por meio da Diretoria Geral de Recursos Humanos (DGRH). A DedIC possui mais
dois programas: o CECI (sendo duas unidades dentro do campus de Campinas) e o Prodecad
Logo no primeiro mês, uma professora foi afastada de uma das turmas, sendo assim,
assumi a Turma do Macaco10 com outra professora. Foi uma situação complicada e na minha
trabalho mais definido e mais próximo com apenas uma das turmas e teria mais autonomia
com as crianças. Porém, não foi como imaginava, apesar de muitas professoras me
considerarem como professora e não mais a auxiliar, na prática, não era isso o que acontecia.
Depois de alguns meses, percebi que essa era uma forma da creche não precisar
contratar outra professora, fazendo com que a profissão de auxiliar se tornasse ainda mais
desgastante. Uso esse adjetivo no sentido de explicitar o quanto é difícil trabalhar 30 horas
7 Nas creches da Unicamp o termo utilizado é “estagiária”, porém, prefiro o termo auxiliar e vou usá-lo daqui
em diante.
8 Sempre vou me referir a Creche da Área da Saúde da Unicamp como CAS.
9 A Convivência II abarca as crianças de 2 e 3 anos.
10 Os nomes das turmas e professoras são nomes fictícios. Os nomes das crianças são uma homenagem a
algumas crianças que moram ou moravam na Moradia Estudantil da Unicamp. Infelizmente. Não pude
homenagear todas, mas elas deixam sua presença pelos caminhos e lembranças da moradia.
6
universitária como um todo, com as vivências na Moradia Estudantil, com os debates do
movimento estudantil, entre outras demandas. Eu trabalhava como uma professora e recebia
um salário de auxiliar, é uma situação injusta e, infelizmente, comum. Porém, como não tinha
escolha, preferi aproveitar a situação a meu favor, acompanhei a turma ao longo do ano de
Em 2014, duas turmas foram para o CECI, pois completaram 4 anos de idade; as
outras duas, dentre elas a que eu acompanhava, permaneceram na Convivência II; e duas
novas turmas vieram do berçário. A tabela abaixo exemplifica as Turmas e idades de acordo
1 semestre.
da creche na época, é na turma das crianças mais novas. Sendo assim, eu e o auxiliar que
trabalhava na creche desde o começo de 2013 e até o final de 2014, nos aproximamos da nova
infelizmente, não podia aderir ao movimento. Portanto, aderi à greve enquanto estudante de
7
Durante a greve, a maioria das professoras da Convivência II aderiram ao movimento,
o que deixou eu e o auxiliar muito contentes por ter professoras de luta ao nosso lado, mas
não sabíamos como seria o dia a dia da creche diante disso. Apenas duas professoras
continuaram trabalhando, foram dias difíceis e de muita tensão entre as trabalhadoras pelas
discussões e desacordos políticos pelos corredores da creche. A pressão da equipe gestora era
A redução do número de crianças foi eminente, a equipe gestora deixou explícito aos
pais, mães e responsáveis que não seria possível “atender”11 todas as crianças, pois as
auxiliares não podem ser responsáveis pelas crianças sem o acompanhamento de uma
professora.
Eu e o auxiliar concordávamos com essa medida, mas na prática não foi isso o que
aconteceu. Assumimos a turma das pequenas e dos pequenos (Turma da Natureza), enquanto
as outras duas professoras assumiram as crianças que frequentavam as outras duas turmas
responsabilizariam por qualquer coisa que acontecesse com a turma, e que, diante disso, não
estávamos sozinhas, mas, de fato, estávamos. Foram 55 dias de greve, dias em que
trabalhamos muito, com muita responsabilidade e tendo sido nosso trabalho elogiado por
parte dos pais e mães da turma, o que nos deixava contentes, porém, frustradas.
Devido a muito desacordo com algumas medidas da equipe gestora e pelo fato de
conviver com professoras que não aderiram à greve, ficava ainda mais cansada e com menos
vontade de ir trabalhar. Mas o fato de ter, mais uma vez, a oportunidade de criar laços mais
11 Esse termo foi usado pela equipe gestora da creche e passa a ideia de educação enquanto mercadoria, onde
as trabalhadoras da creche atendem os clientes: mães, pais e responsáveis.
8
Eu e o auxiliar planejamos várias atividades e inserimos discussões de gênero, raça e
etnia com aquelas crianças. Desde contações de histórias até atividades em lugares que as
crianças não estavam acostumadas a ir e com diversos materiais que não estavam
acostumadas a ter contato. Foram dias exaustivos, mas de grandes recompensas, tenho certeza
Nesse período, pudemos planejar e realizar com as crianças ideias que nunca
cúmplice de atos de machismo e racismo por não conseguir intervir e por saber que uma
intervenção também não seria suficiente. É necessário um projeto que se desenvolva ao longo
do ano para intervir e desconstruir machismos e racismos no dia a dia, e não só com as
nas meninas e do masculino nos meninos, e, ao mesmo tempo, impediam que as meninas
comportamento considerado feminino, o que acaba sendo mais uma situação machista dentro
da educação.
essa postura traz consequências em todos os âmbitos da vida de uma mulher e também de um
héteros e cisgêneros12
questionávamos atitudes machistas e racistas que já estavam enraizadas no dia a dia da creche.
12 Uma pessoa cisgênero tem sua identidade de gênero igual a seu sexo do nascimento. Caso sua identidade de
gênero seja diferente de seu sexo, então, é uma pessoa transgênero. A não ser que a pessoa se identifique
como não-binária, andrógena ou intersex.
9
Com a chegada do final da greve, também veio um sentimento de angústia, sabíamos que não
iríamos mais planejar e ter aqueles momentos com as crianças. Enfim, colhemos muitos frutos
ao longo do ano de 2014, tentamos e tivemos a certeza que as crianças entenderam várias
Trabalhar com o auxiliar foi uma experiência muito significativa, aprendi muito com
É importante situar a instituição nessa pesquisa, pois foi o meu envolvimento com a
CAS e todas essas vivências que fizeram surgir o interesse pelo desenvolvimento de uma
pesquisa que tratasse de todos os assuntos que tentamos desenvolver com as crianças. O tema
da sexualidade e construção dos sujeitos, como também as discussões sobre idade, classe, raça
e etnia.
Convivi com professoras que respeito e admiro, mas que possuem ainda um atraso em
relação aos assuntos de gênero e até mesmo de classe, de raça e de etnia. Não pretendo fazer
uma crítica pessoal, pois deve ser considerada uma crítica conjuntural, fundamentada pelo
fato dos cursos de pedagogia não darem o devido espaço aos estudos da infância e gênero e
das instituições não darem a devida atenção para os temas das formações continuadas.
Faculdade de Educação da Unicamp, coordenado pela professora Ana Lúcia Goulart de Faria.
O grupo tem aberto espaço para novas discussões e novas pesquisas, contribuindo tanto para
13 Kimberlé Crenshaw foi uma das primeiras feministas negras a cunhar o termo “Interseccionalidade” em:
Crenshaw, K. “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of
Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory, and Antiracist Politics,” University of Chicago Legal Forum,
1989, 139–67.
10
Tendo contato com as pesquisas realizadas pelo grupo e junto com as angústias que
surgiram enquanto auxiliar da creche, desenvolvi muitas questões: Como a mediação das
estereótipos do feminino e masculino interferem nas relações das crianças? Como afetam as
culturas infantis? Até que ponto a criança é transgressora das imposições dos estereótipos de
gênero? Até que ponto as professoras também são vítimas do sistema que padroniza os
gêneros? Será que as professoras tiveram acesso a discussões de gênero? Será que existe esse
interesse? Em que momentos encontramos essas discussões dentro dos cursos de Pedagogia?
contemplado com a bolsa PIBIC/ CNPq em Janeiro de 2015. Diante disso, comecei a pesquisa
partindo com o objetivo de voltar à creche e desenvolver mais momentos que não tive tempo
É evidente que possuímos uma lacuna na nossa formação, e mais pesquisas sobre
gênero na educação infantil só tem a acrescentar nas discussões. Daniela Finco (2003) aponta
que as pesquisas nessa área ainda são poucas e, portanto, não abordam toda discussão
A infância ainda é pouco debatida nas ciências sociais, mas tem seu caráter próprio
minuciosa dentro da Educação. Durante o curso de Pedagogia da Unicamp não tive contato
com uma disciplina específica para o estudo da Sociologia da Infância e das Culturas Infantis
ou para os estudos de gênero. As matérias voltadas para a pequena infância são apenas duas:
11
pedagogia da educação infantil e políticas da educação infantil, sendo um semestre para cada,
necessariamente, que abordar sobre o universo das crianças e suas minúcias, como,
Unicamp e é uma pesquisa pioneira que trouxe muitas contribuições na pesquisa com crianças
e sobre o universo das culturas infantis, como afirma Roger Bastide (2004):
Para poder estudar a criança, é preciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que
não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus
brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas
preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo. E isso não é dado a toda a
gente. O primeiro mérito do trabalho de Florestan Fernandes é que ele é o resultado
de uma observação que começou por uma interpretação profunda; o autor fez parte
da grande conjuração das crianças (BASTIDE, 2004, p. 230).
Muitas pesquisas na área da educação são sobre as crianças e não com as crianças. A
criança é tão deixada de lado que até no curso de Pedagogia sua cultura própria tem um
perpassam por várias autoras e autores que entendem essa infância de maneiras distintas.
moralizante no campo da infância (ABRAMOWICZ, 2011, p. 26). Esta área estuda a criança
na perspectiva das adultas e adultos, dando mais atenção para as fases e etapas do
Estudar e pesquisar a pequena infância acabam sendo uma militância. A criança é uma
relação à cultura. As adultas e adultos que convivem com as crianças em todos os espaços,
casa, creche, e outros, possuem uma posição de cuidado, preservação e, de certa forma,
arrogância, por entender a criança enquanto um vir a ser, que precisa aprender sobre a vida e
pequenas e pequenos. Ou seja, a criança vive uma experiência escolarizante por toda sua
Corsaro (2002) entende que a produção da cultura de pares não é uma simples
imitação e nem uma apropriação direta do mundo adulto, e explica o processo de apropriação
Pensar a criança como uma mera imitadora das práticas adultas é desconsiderá-la
enquanto um ser histórico, social e produtor de culturas. Nesse sentido, devemos trazer a
Da mesma forma, na segunda metade dos anos de 1990, Eloisa Rocha (1998)
constrói o conceito de pedagogia da infância distinguindo-a da pedagogia clássica
escolar, escola de transmissão de um/a adulto/a profissional para os/as alunos/as.
Uma pedagogia da infância que favorece desvendar as origens da desigualdade,
como afirma Chauí (1978). Uma pedagogia da diferença, da escuta, das relações,
diríamos uma pedagogia macunaímica (FINCO & FARIA, 2011, p. 3).
determinações etapistas da construção dos sujeitos e vão além dos sistemas cronológicos e
eurocêntrica e que advém do sistema capitalista, das relações de poder desiguais da sociedade
14 Adultocentrismo é o mundo pensado pelos adultos para os adultos, deixando as especificidades das crianças
de lado.
13
e da cultura ocidental. A sociologia da infância faz parte de um movimento de
Devemos pensar a:
Infância como experiência, devolvendo ao conceito uma multiplicidade que lhe foi
retirada. […] O que se quer dizer é que a experiência da infância não está vinculada
unicamente à idade, à cronologia, a uma etapa psicológica ou a uma temporalidade
linear, cumulativa e gradativa, já que ligada ao acontecimento; vincula-se à arte, à
inventividade, ao intempestivo, ao ocasional, vincula-se, portanto, a uma des-idade
(ABRAMOWICZ, 2011, p. 34).
educação infantil e da criança enquanto um campo teórico, é possível entender que a pequena
infância é a primeira fase da vida dos sujeitos, e é nesse começo de vida que nos construímos
socialmente. Cada criança vive uma infância diferente, por isso, infâncias, nesse sentido,
baseado nos estudos das infâncias, cada criança tem uma cultura própria.
Sendo a criança singular e múltipla e sendo a infância uma categoria de análise, essa
pequena infância não pode ser vista de forma isolada, devemos levar em conta outras
categorias de análise, como classe, raça e etnia e a proposta principal desta pesquisa, o gênero.
Fernandes em 1944, o qual define como elementos culturais construídos pelas crianças e entre
elas no convívio em sociedade, com as adultas e adultos, caracterizados por sua natureza
15 Androcentrismo: É o homem no centro da sociedade, onde sua opinião sempre vai ser a mais valorizada
14
formas diversificadas, nem sempre dentro do que era esperado pelos adultos – o que
mostrava que elas não estavam submetidas somente a este referencial, mas
inovavam a partir dele. Desse modo, por intermédio da mediação com o outro, que
ensina, aprende e faz junto, as crianças constroem seu mundo de cultura, um sistema
de comunicação e uma rede de significados e, portanto, expressões culturais
específicas (PRADO, 1999, p. 114).
A criança, ao mesmo tempo em que está inserida num contexto que reproduz as
e sociedade.
Não somente levar em conta que existem infâncias no plural se faz necessário, mas
também considerar que as crianças participam de contextos sociais diferentes, o que, portanto,
acaba por impossibilitar a existência de uma criança “genérica”. Tendo isso em vista, vemos a
Muitas vezes, a criança não é levada em conta não só na pesquisa que estudam as
próprias, mas como em outros setores da sociedade, como explica Jens Qvortrup (2011):
participa da sociedade, o mesmo autor afirma em sua quarta tese que a infância é uma parte
dos pais, mas também do mundo social e econômico. A infância interage, então,
15
estruturalmente, com os outros setores da sociedade” (QVORTRUP, 2011, p. 205). Mais um
motivo pelo qual a sociologia da infância deve ter seu espaço nas formações de professoras e
proposta de discutir gênero, por exemplo, perpassa pela ideia da infância enquanto uma
se relaciona com outras questões, como (idade, classe, raça, etnia,), elementos estes
importantes para pensar a infância como um todo de acordo como as pautas dos movimentos
feministas.
16
Capítulo 2 – Por uma metodologia de pesquisa feminista com
crianças
Fazer a pesquisa na creche em que eu já trabalhava por dois anos fez com que a
pesquisa ficasse mais completa com informações que eu não poderia obter em duas semanas
dia a dia, fizeram com que a sensibilidade com algumas questões fosse mais fácil. O ambiente
acolhedor da CAS também foi um diferencial, toda equipe sempre se mostrou aberta a pessoas
(DedIC), que possui outros programas como o CECI e o Prodecad. A DedIC é subordinada à
A creche estudada conta com três módulos: berçário, módulo I e módulo II. Cada
módulo possui quatro salas alinhadas num corredor que dá de frente para o parque, cada sala
chamado de “salão”, os módulos são ligados por um grande corredor que atravessa toda a
creche.
Figura 3: Acervo pessoal: Salão Módulo II CAS Figura 2: Acervo pessoal: Salão Módulo II CAS
09/02/2015 09/02/2015 18
Além disso, a CAS conta com um jardim, sala de computador, da direção, da
Essa creche é muito colorida e harmoniosa, os espaços são muito bem cuidados por
anos, convivendo juntas entre conflitos e amizades, entre perdas e ganhos, entre alegrias e
tristezas, fazendo com que a CAS tenha um clima acolhedor para quem chega e saudade dos
O fato de ter trabalhado nessa instituição por quase 2 anos fez com que surgisse um
são impostos fez com que o método etnográfico se tornasse a melhor escolha, fornecendo a
enquanto auxiliar fossem revividos de maneira diferente e a ideia de práticas que pudessem
turma escolhida, explicando que gostaria de realizar uma pesquisa e que faria algumas
19
Combinamos durante essa semana quais seriam os melhores dias para as contações de
história e a brincadeira com o jogo de cartas de baralho. Devido ao início do ano a turma
ainda não tinha um projeto a ser desenvolvido, então, logo na semana seguinte foram
impressões importantes. Depois assistia as gravações e anotava mais percepções que não tinha
Dentre tantos, escolhi alguns fragmentos para problematizá-los ao longo dos capítulos.
Durante a escrita lembrava de fatos que vivi enquanto auxiliar e que complementavam a
pesquisa. Não seria possível problematizar esses assuntos apenas com as duas semanas de
observação e quatro intervenções, a vivência enquanto auxiliar fez toda diferença. E o fato de
já conhecer as crianças também foi um diferencial, pois elas ficavam animadas com o fato de
vividos enquanto auxiliar, pois a partir de Fevereiro de 2015 as visitas foram voltadas
exclusivamente para a pesquisa. Fez toda a diferença ir para a creche com um outro olhar, se
atentando a outras questões. Enquanto auxiliar tinha outras responsabilidades e, às vezes, não
ficar nos espaços, nos horários e com as crianças que eu queria. Foi muito importante a
abertura da creche para esta pesquisa e tive grande liberdade para participar do cotidiano das
professoras me davam medo do que isso traria de consequências na vida daquelas crianças. O
20
machismo na educação está presente em muitos espaços, não só em nossos corpos, mas em
nossas práticas, desde a creche até a universidade. As professoras também são vítimas desse
que nos foi ensinado sem perceber, pois muitas atitudes são vistas como algo natural do ser
humano, quando, na verdade, é uma atitude que exclui e rejeita outras tantas formas de se
relacionar.
heteronormatividade17 estão presentes em uma instituição que deveria ser um espaço para o
incentivarem os estereótipos, por não possuírem contato com as questões de gênero desde sua
formação inicial, mas também a desconfiança por parte de algumas famílias em relação ao
acompanhando a Turma do Leão junto com uma professora e o auxiliar, pois a outra
professora da turma tinha faltado. No meio de uma atividade de massinha as crianças não
paravam de levantar, elas queriam mostrar suas esculturas para as outras crianças que estavam
do outro lado da mesa. Por fim, a professora diz para o auxiliar “Ai, usa essa sua voz grave ai
Ela não só (re)afirmou que por ser homem possui uma figura de autoridade maior que
a minha e a dela, só por sermos mulheres, como também, sem querer, acaba passando essa
imagem para as crianças. O auxiliar possui uma postura muito diferente da esperada pela
professora, portanto, não usou da sua figura de homem estabelecida na sociedade para
17 Heteronormatividade significa que as relações heterossexuais são tidas como naturais e colocadas como a
única forma de se relacionar, excluindo e rechaçando todas as outras formas como as homoafetivas, entre outras.
21
Esses episódios do Diário de Campo foram essenciais para a problematização do tema
dentro do campo, como comenta a autora Ethel Volfzon Kosminskye, sobre a pesquisa
etnográfica e feminista:
Ela se diferencia das demais técnicas por possibilitar o estudo das pessoas no seu
próprio tempo e espaço, nas suas vidas diárias. A vantagem dessa técnica está em
permitir a observação direta não apenas de como as pessoas atuam, mas também de
como elas entendem e experimentam esses atos. Ela nos possibilita sobrepor o que
as pessoas dizem com o que elas realmente fazem (KOSMINSKYE, 2007, p. 800).
Neste caso, a questão de sobrepor o discurso com a ação fica explícita no momento em
que as professoras afirmam tratar todas as crianças da mesma forma, mas, segundo as
observações, foi possível identificar pequenas diferenciações que se davam pelas diferentes
sexistas não são privilegiadas com essas ações, a perpetuação do machismo não as
Se uma das maiores preocupações da etnografia é “[...] obter uma descrição densa, a
mais completa possível, sobre o que um grupo particular de pessoas faz e o significado das
perspectivas imediatas que eles têm do que eles fazem [...]” (MATTOS, 2011, p. 54) essa
Essa mudança foi importante, pois como auxiliar a preocupação se voltava quase toda
aos horários e atividades das turmas. A ida à creche para acompanhar apenas uma das turmas,
sem cumprir com algumas tarefas de auxiliar, fez com que tivesse mais embasamento para
22
A partir dessa mudança de postura, atrelado com a bibliografia, o método etnográfico
conjunto com as observações o levantamento bibliográfico se deu logo no início das visitas,
partindo das palavras chave: Creche, culturas infantis e gênero na busca online do acervo da
Unicamp, surgiram então muitas autoras e autores, como por exemplo: Florestan Fernandes
(1944), Jens Qvortrup (2011), William Corsaro (2002 & 2005), Daniela Finco (2003),
Guacira Lopes Louro (2001), Ana Lúcia Goulart de Faria (2011), Patrícia Prado (1999 &
2011), Anete Abramowicz (2011), entre outras e outros. Também tive contato com inúmeras
pesquisas orientadas pela professora Ana Lúcia Goulart de Faria e realizadas pelo grupo
Santiago (2014) e Peterson Rodrigues (2014). Além de pesquisas de autoras feministas como
Elisabeth Badinter (1985), Judith Butler (2003), Kimberlé Crenshaw (1989) e Jurema
Werneck (2010).
Com base nas experiências vivenciadas em campo e nas leituras realizadas ao longo da
A partir desse roteiro adentrei na creche com um olhar voltado para diversas
indagações e atento a todo momento, pois a criança está o tempo todo inventado, criando e
fazendo algo surpreendente, ou, para algumas pessoas, nada mais do que o já esperado. A
diferença do surpreendente e do esperado é que essas ações carregam questões subjetivas que
devem ser levadas em conta: a idade, a classe social, o gênero, a raça e etnia. A construção do
gênero perpassa por essas questões que estão interseccionadas, pois todo esse sistema
18 Houve algumas modificações de data e propostas de brincadeiras que foram previamente combinadas com as
professoras. O roteiro de observação está em anexo.
23
Levando em conta essas experiências no campo, enquanto auxiliar e enquanto
Além disso, se existe uma ética na pesquisa etnográfica, na pesquisa com crianças a
[...] uma investigação com crianças somente se justifica se aporta algo importante (e
bom) PARA as crianças, se melhora a qualidade de suas vidas, se abre novos
espaços para ser e viver, isto é, propõe-se uma ação de investigação que seja ética
com todos os participantes, como parte de uma ética do cuidado e da
responsabilidade. Mesmo quando o tema da investigação não trata de qualquer coisa
íntima ou sensível, o fato de participar de uma investigação leva os sujeitos,
pesquisadores e pesquisados, a reflexões e a transformações pessoais e sociais,
produzindo uma experiência de compartilhamento de ideias ou situações vividas
(BARBOSA, 2014, p. 241, grifos da autora).
que as pesquisas não sirvam apenas para a academia, mas tenham um retorno positivo e
A pesquisa que se preocupa com a criança cria espaços comuns, numa relação
respeitosa entre adulta e criança, num ambiente acolhedor em que a criança é escutada e sua
voz é enaltecida.
é desafiadora, por já conviver com a Turma do Leão enquanto auxiliar, foi fácil pensar em
intervenções que eu sabia que eles iriam gostar e participar. Essa turma gosta muito de
interagir com os livros e adoram ouvir histórias. A partir disso, combinei com as professoras
da memória, com imagens de homens e mulheres fazendo diversas tarefas, por exemplo, lavar
louça, andar de bicicleta, dirigir carro, entre outras, como podemos ver nas imagens abaixo.
São diversos personagens entre mulheres, homens, crianças, idosas e idosos, deficientes
físicos, brancas e brancos, negras e negros, japonesas e japoneses. O baralho tenta abarcar a
diversidade em todos os sentidos, mas ainda assim tem pouca representação da população
negra.
26
Propus o baralho enquanto uma brincadeira e não um jogo de memória, pois a ideia
não era que as crianças procurassem as atividades realizadas por homens e mulheres, isso só
iria reforçar o binarismo. A proposta foi feita como uma brincadeira livre, onde as crianças
Propus que a brincadeira fosse realizada na sala de artes, por tem uma mesa grande em
que poderíamos utilizar para colocar todas as cartas do baralho de forma mais ou menos
acessível para todas as crianças. Foi curioso perceber o quanto o espaço da sala de artes
iríamos fazer e eu apenas respondia “vamos brincar”, mas sentia que minha resposta não as
deixavam satisfeitas.
A creche tem uma rotina21 muito inflexível e parece separar os momentos em entrar,
comer, fazer atividade, brincar, higienizar, comer, dormir e ir embora. Assim, perdem-se as
21 Apenas de não gostar do termo “rotina”, por lembrar de uma educação higienizada e controlada pelo
hospital, o dia a dia da creche, muitas vezes sem surpresas, faz com que seja uma rotina, dura e inflexível.
27
oportunidades de criação, do lúdico, perde-se o momento da criança. É o adultocentrismo
acesso livre a alguns livros que ficam ao fundo da sala, além de visitas a biblioteca
planejamentos semanais. Então, o contato com o livro é muito grande, porém, possuem pouca
Figura 8: Acervo pessoal: Espaço dos livros - Sala Turma do Leão CAS - 20/03/15
Devido a sala de biblioteca da CAS ser muito pequena, as professoras estão pensando
num novo espaço para os livros (diário de campo, 2015). Enquanto o espaço não é planejado,
28
os livros ficam no “Salão”, dentro de caixas ao alcance das crianças, como mostram as
imagens:
29
Analisando uma das caixas separei os livros entre:
Percebe-se que as opções não vão muito além dos contos de fadas e livros bíblicos.
Partindo dessa problemática e tentando fugir um pouco desses livros que as crianças
costumam ter contato, a primeira história escolhida para a atividade de contação de história
foi “Procurando Firme” (1984) da autora Ruth Rocha. “Uma história que parece história de
fadas, mas não é. Também parece história para criança pequena, mas não é” (ROCHA, 1984).
Este é o primeiro parágrafo do livro. Quando li a história e pensei como seria a contação
30
resolvi contar a história e não ler palavra por palavra, pois possuíam alguns diálogos que seria
difícil para as crianças entenderem e o objetivo era focar no fato da princesa subverter os
As meninas foram as protagonistas das perguntas. Era uma história de princesa, mas
que não era de uma princesa comum. Isso despertou dúvidas, angústias e risadas. Foi
A segunda história escolhida foi “Ceci tem Pipi?” (2004) do autor Thierry Lenain. O
livro conta a história da amizade entre Max e Ceci, no qual Max dividia o mundo entre os
fato de um menino pensar num mundo com pessoas com pipi e sem pipi é carregado de
significados, desde a influência das imagens fálicas, que se referem ao pênis, além de um
pensamento misógino22, de colocar que a mulher não possui o que o homem possui. Além de
No livro “Ceci tem Pipi?” as crianças pouco perguntaram durante a história. Achavam
primeira contação. Foi interessante numa parte do livro, onde o Max foi espionar a Ceci no
banheiro e viu que ela fazia xixi sentada, e, ao invés de colocar isso como mais uma parte da
investigação do Max, se ela era uma “com-pipi” ou não, resolvi mostrar como se fosse só
mais uma passagem da história, que é normal meninas fazerem xixi sentadas, tanto quanto
meninos.
2015). Foi uma afirmação muito segura dele, uma demonstração de que ele não tinha
problemas em fazer xixi sentado e que não fazia diferença se era sentado ou em pé, ao
contrário do que alguns pais pensam sobre isso. Isso porque quando acompanhei a Turma da
Natureza durante alguns meses de 2014, época em que as crianças entraram no período de
retirada da fralda, um dos meninos da turma ia ao banheiro e sentava para fazer xixi. Passadas
algumas semanas, o pai da criança veio conversar com a professora e pediu para que ela o
Foi mais um episódio do quanto a criança sofre com o machismo logo cedo. Fazer xixi
de pé, na cabeça desse pai, é coisa de homem, é coisa de quem tem virilidade, masculinidade
e o filho dele não poderia ser diferente. Felizmente, a professora disse que não incentivava as
crianças a fazerem xixi sentadas ou em pé, que era uma preferência dele e que ela não iria
A contação de histórias do terceiro livro escolhido não foi como o esperado. Eu não
conhecia a história e só resolvi contar por causa do título “Olívia tem dois papais” da autora
Marcia Leite, e por ter uma protagonista negra. Fiquei animada com o fato de tentar
desconstruir o ideal da família tradicional e mostrar um outro tipo de família. Porém, ao ler a
história me deparei com vários problemas e divergências e acabei inventando uma história
apenas com as imagens do livro, centrando mais no fato de ser uma família com dois pais e
uma filha.
Por fim, essa última contação, se deu da forma mais atrapalhada possível. Me senti
insegura durante a contação e as crianças dispersaram rápido. Eu teria feito a mesma coisa no
lugar delas. A história reforçava o estereótipo feminino dizendo que a menina adotada por
dois pais não tinha a oportunidade de brincar com as coisas da mãe, como batom, vestido e
etc. Além disso, a autora reforçava o racismo numa parte do livro em que a menina escolhe a
32
boneca mais bonita para ela e outra qualquer para o pai, sendo a dela uma boneca branca e
loira e a do pai uma boneca negra. A criança era negra, adotada por dois pais brancos. Qual
referência essa criança tinha? Como ela iria construir sua identidade enquanto mulher negra?
Como está se dando a construção da sua identidade enquanto uma criança negra? O que a
Percebi o quanto é importante planejar uma atividade e ter sempre um plano B. Além
da história não ser apropriada, as crianças não estavam interessadas e eu não consegui propor
8:30 e 9:00), depois do lanche das crianças e antes delas irem ao parque. Pude escolher o local
das atividades e registrei em vídeo e áudio, que foram autorizadas23 pelas famílias das
crianças. Essas ferramentas ajudaram na análise posterior, pois na hora da brincadeira não era
possível prestar atenção em todas as crianças e lembrar de anotar tudo no caderno de campo.
A filmagem e o áudio ajudaram a perceber situações que no momento tinha deixado passar.
Foi interessante ter esse contato com as crianças, perceber seus corpos no espaço e
tempo da brincadeira, suas perguntas, angústias, conflitos, suas risadas e conversas entre si, os
presentes na vida dessas crianças e o quanto é difícil tentar desconstruir certas atitudes, ideias
e conceitos.
A CAS tem uma visão sobre o trabalho das professoras e o trabalho das auxiliares
outro local, enquanto a professora fica com o resto da turma. Sendo assim, as professoras se
É importante citar essa diferença que existe no trabalho da creche, pois o olhar de uma
professora sob a turma acaba sendo muito diferente do olhar da auxiliar, por ter outras
educadoras em formação, portanto, devem participar mais dos planejamentos e reuniões e não
depois de pesquisadora fez com que tivesse mais sensibilidade para enxergar certas situações.
Porém, a pesquisa etnográfica com as pequenas e os pequenos torna esse aspecto muito mais
desafiador, não só pela comunicação, mas pelo espaço, pois o nosso tamanho físico as vezes é
Presenciei uma situação parecida com a que o autor explica. Clarissa (3 anos), me
chamou para vê-la subindo até o lugar mais alto do trepa-trepa. Quando ela chegou ao topo do
brinquedo elogiei sua habilidade e subi ao seu lado, pensando que brincaríamos juntas. Então,
ela foi para dentro do brinquedo, pulou para a parte debaixo e disse: “você não vai conseguir
34
Figura 12: Acervo pessoal: "Trepa-trepa" Parque Convivência II CAS - 20/03/15
Clarissa tinha razão, aquele brinquedo era adaptado para a idade dela e nem se eu
quisesse conseguiria entrar naquele espaço e pular para a parte debaixo. Desde o começo o
objetivo era que eu a visse fazendo algo extraordinário. Ao subir no lugar mais alto e ficar ao
lado dela fiz com que a brincadeira perdesse a graça, então ela lançou um desafio impossível
de ser realizado por mim, e assim, ela conseguiu o que queria, mostrar que ela sabia fazer algo
brincando na areia, na creche, muitas vezes, é perceptível o lugar das crianças e o lugar das
adultas e adultos. Em todo o tempo de estágio e pesquisa nunca presenciei uma professora
35
Figura 13: Acervo pessoal: "Casa de madeira" Parque Convivência II CAS - 20/03/15
Corsaro (2005) conta sobre suas experiências em diversas creches e explica que as
comparado a outras adultas e adultos ele não tinha a mesma autoridade sob as crianças.
Quando ele chamava atenção das crianças as próprias falavam que ele não era o professor e
Nos meus primeiros meses na creche passei por uma situação parecida, pois eu não
sabia muito o que fazer naquele espaço, não sabia exatamente qual era a minha função, o que
eu deveria fazer e etc. Então ficava com as crianças e brincava com elas. Algumas vezes
ficava na rodinha das professoras na sombra do parque, mas preferia interagir com as
crianças. Depois de algumas semanas, uma das professoras pediu para eu ser “mais firme”
36
com as crianças, pois só ela chamava a atenção e eu era vista como uma “irmã mais velha”
O problema é que eu não queria chamar a atenção das crianças nesses momentos em
que ela achava necessário. Na hora da roda eu sentava no chão e não na cadeirinha como
algumas professoras faziam. Na hora do parque eu entrava na casinha para brincar com elas e
não interagia unicamente para chamar a atenção delas. Essas diferenças faziam com que as
crianças me vissem como essa adulta brincante, essa adulta atípica como cita Corsaro (2005).
pelo período de adaptação, mas como as adultas e adultos também precisam desse tempo.
Tive que rever pequenos comportamentos, como por exemplo, ao sentar na mesa do lanche
não ficar “batucando”, pois todas as crianças queriam batucar também e, segundo algumas
professoras, na hora do lanche não é hora de brincadeira. Infelizmente, tive que ir aprendendo
com algumas professoras que em muitos espaços na creche não é permitido brincar.
Foi curioso perceber que por mais que eu ainda fosse vista como uma figura de
autoridade as crianças sabem quem é quem nas relações de poder. Durante as férias de verão,
a maioria das crianças tiram os tênis, sandálias e chinelos para ir ao parque. Na maioria das
vezes elas pediam primeiro a mim. Por quê? Porque elas sabiam que provavelmente eu diria
Em 2013, quando ainda era auxiliar, uma criança veio a mim e pediu para tirar o tênis,
era um dia nublado, o parque estava seco e apesar das muitas nuvens e ausência do Sol, não
estava frio. Respondi que sim e pedi para que ela guardasse o tênis e a meia na sala. A criança
chegou correndo no parque e assim que pisou na areia a professora falou alto e de longe:
“cadê seu sapato? Vai pegar” (Diário de campo, 2013), nem tive coragem de dizer para a
professora que a criança tinha pedido para tirar, pois senti que aquela bronca também era pra
mim. O que mais me surpreendeu foi que em nenhum momento a criança argumentou com a
37
professora que tinha sido eu quem tinha dado a autorização. Foi uma situação de
cumplicidade que me fez entender que as crianças sabem para quem e como pedir as coisas.
Depois disso, em muitas outras vezes, eu respondia: “por mim pode tirar, mas
pergunta para a sua professora” (Diário de campo, 2013). Entendo que não era a melhor
maneira de fazer isso, pois além de tirar a minha autonomia e tomada de decisões, passei uma
não e depois conversar com a professora sobre isso. Todavia, existem dias na creche em que
estamos tão cansadas de discutir por tantas coisas que acabamos pegando a saída mais fácil.
Hoje, entendo que essa fala é muito problemática e que não deveria ter feito isso, é preciso
Essa situação de cumplicidade, entre tantas outras, me fez sentir parte da turma, e é
uma sensação muito acolhedora. Ser chamada para brincar pelas crianças ou quando elas
perguntam: “você vai ficar com a nossa turma hoje?” além de ser uma oportunidade de troca
de experiências muito rica, facilita a pesquisa etnográfica, pois fico numa posição cada vez
Se toda professora assumisse esse papel de adulta brincante tenho certeza que iria
intervir de modo positivo não só no mundo adulto, mas no mundo da criança. A proximidade
traria mais equilíbrio nas relações, as professoras saberiam cada vez mais do que as crianças
gostam e as crianças teriam mais voz e seriam mais compreendidas. Acredito que muitas
Essa relação mais igualitária traria muitas questões a serem debatidas. Talvez a
professora iria observar que o Otávio adora brincar de massinha, mesmo ela sendo cor de rosa
38
sensibilidade do olhar seria maior e poderia mudar o senso comum, não só em relação ao
Corsaro (2005) também comenta de sua experiência numa creche italiana, em que ele
possuía dificuldades de comunicação por conta do idioma. No entanto, o autor conta que teve
ajudavam com a questão da língua e o fato delas ensinarem algo a uma pessoa adulta faz com
que a relação ficasse mais próxima, mais horizontal. Geralmente é a pessoa adulta que ensina
Concordo que as professoras não devem ficar junto às turmas o tempo todo e interferindo em
infantis, mas o problema é que a maioria das intervenções das professoras neste espaço são
para chamar a atenção das crianças para alguma coisa que, segundo elas, não pode ser feita.
sensibilidade em alguns momentos. Por exemplo, um dia quando uma criança foi até a
torneira para lavar as mãos e a professora, ao ver a criança mexendo na água, fala em voz alta:
“Enzo, não é pra pegar água hoje” (Diário de campo, 2014). A criança se afasta da torneira e
volta a brincar. A professora poderia ter ido até a criança perguntar o que ela estava fazendo e
explicar que não iriam brincar com água naquele dia, assim, a criança teria a chance de
39
É fundamental apontar o recorte de gênero nessas situações, pois na maioria das vezes
as professoras chamam mais a atenção dos meninos. Não só isso, mas como também já
avisam para “ficar de olho” em alguns meninos específicos, pois já é esperado que eles
arranjem briga, mexam na água, joguem brinquedo para fora da cerca do parque, joguem areia
em outra criança e etc. Algumas professoras, quando recebem a lista das crianças da turma, já
contam quantos meninos e meninas vão ter. Segundo algumas delas, ter mais meninos
significa uma turma mais agitada e ter mais meninas significa uma turma mais tranquila.
ou não, do que as meninas, pois desde pequenos eles são ensinados que os meninos são mais
agitados, enquanto as meninas são mais delicadas. Mesmo alguns meninos sabendo que em
dias de frio não pode pegar água eles desafiam os combinados e vão até a torneira encher o
baldinho para brincar. Enquanto as meninas desafiam menos, brigam menos, ou quando
brigam, é por conta de um menino pegar o brinquedo ou provocar uma situação de conflito.
Porém, ainda é possível observar muitos momentos em que as adultas e adultos extrapolam a
relação adulto-criança e acabam limitando a visão das crianças ao dito comum e tido como
bonecas24, ela está deduzindo e reafirmando que os meninos só gostam de bola e as meninas
só gostam de bonecas e então, cada uma vai brincar com o seu respectivo brinquedo.
24 Em anexo o planejamento de uma das turmas que acompanhei no começo do estágio enquanto auxiliar
40
Essa prática sexista invade o universo da infância e interfere na construção subjetiva de cada
um.
Observando vários momentos de brincadeira foi possível levantar a hipótese de que
as crianças ainda não possuem práticas sexistas em suas brincadeiras e, portanto, não
reproduzem o sexismo presente no mundo adulto. Esses meninos e meninas ainda
não possuem o sexismo da forma como ele está disseminado na cultura construída
pelo adulto: as crianças vão aprendendo a oposição e a hierarquia dos sexos ao longo
do tempo que permanecem na escola (FINCO, 2003, p.7).
sociedade, dividindo as práticas entre o que é o ideal para as meninas e o que é o ideal para os
meninos.
41
Capítulo 3 - Quando a norma das relações de gênero não
representa a experiência
Por que a educação é uma profissão atrelada a mulher? Ser professora é uma vocação
da mulher? A mulher é mais sensível para lidar com as crianças? Toda mulher nasceu para ser
Essas questões deveriam ser mais discutidas e aprofundadas nos cursos de pedagogia,
pois são importantes para entendermos a origem de nossa profissão e porque ela é atrelada à
que as mulheres não tinham liberdade para fazer suas próprias escolhas.
escolar, enquanto as mulheres eram obrigadas a cumprir funções ditas de seu sexo, como
costurar, lavar, cuidar das crianças e etc. Só em 1827 as mulheres tiveram o direito ao acesso
amor materno sobre a criação das Escolas Comunais de Moças da Cidade de Paris em 1835
também para as mulheres da burguesia, com o objetivo de torná-las melhores mães e esposas:
A tal ponto, dizia-se, que as duas palavras são sinônimas: “A vocação da mulher
resume-se em duas palavras: mãe de família e professora.” Esses dois tipos
reduzem-se a um só: "a mãe deve ser a primeira professora dos filhos, e a professora
não poderia ter ambição mais nobre do que a de ser mãe para seus alunos
(BADINTER, 1985, p. 263).
Os cursos para formação docente foram se tornando cada vez mais feminino, ao ponto
magistério e arranjando outros empregos. Além disso, por ser um trabalho apenas de um
turno, fazia com que as mulheres tivessem tempo para cuidar da casa, das filhas e filhos:
É importante citar que as mulheres negras eram totalmente excluídas desse espaço. As
Esse pensamento hegemônico que coloca a mulher como única responsável pelos
cuidados com o lar é um dos fatores que contribuiu para a docência de educação infantil ser
majoritariamente feminina, pois a ideia de cuidado com as crianças perpassa pelas questões de
seria capaz de ter essa sensibilidade, afetividade, cuidado e higiene tidos como necessárias na
por mulheres e devido ao machismo, essa caracterização de pedagogia como algo estritamente
25 Considerando a educação infantil como um espaço importante dentro da educação, o acesso das crianças
brancas é maior que o acesso das crianças não brancas. “Kappel, Carvalho e Kramer (2001), em pesquisa
sobre o perfil das crianças de 0 a 6 anos que frequentavam creches, pré-escolas e escolas, baseados nos
resultados da pesquisa sobre padrões de vida do IBGE, concluíram que, no que se refere à cor, o acesso de
crianças brancas à educação infantil mostrou-se maior que o de pretas/pardas, o que, segundo as
pesquisadoras, “configura um contexto em que a discriminação está presente, confirmando resultados de
outras pesquisas” (KAPPEL; CARVALHO; KRAMER, 2001, p. 46).” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2010,
p. 211)
43
Sendo assim, o currículo dos cursos de Pedagogia necessita aprofundar a discussão
dessa visão equivocada da creche enquanto uma substituição ou extensão do lar e do perfil
feminino do curso de Pedagogia, associado com a ideia de uma educação maternal, uma
ausência dela produz um déficit imenso em nossa formação, por exemplo, fazendo com que as
Cerisara (idem)27 e Rosemberg (1996)28 nos atentam para o fato de que, esta
ausência de identidade profissional, associado a uma desqualificação profissional,
contribui profundamente para a desvalorização social e econômica atribuída às
professoras que atuam na Educação Infantil, resultando num verdadeiro desprestígio
social e, portanto, numa hierarquia de gênero. Assim, ser professora de crianças
pequenas não é lago tão importante assim, chegando a ser uma profissão
dispensável, já que para se atuar nas creches e pré-escolas, não se necessita de
conhecimentos acadêmicos e específicos. Assim prevalecendo a ideia de que para
trabalhar com crianças, já é bastante suficiente saber como trocar fraldas, dar banho,
etc. E para isso, não se faz necessário formação, bastando somente os
conhecimentos que já possuíam, principalmente em se tratando de mulher-esposas-
mães (MIR, 2005, p. 30).
sociais fora da universidade é possível entender melhor a imagem das mulheres na sociedade,
os papeis de mãe e esposa impostos e as relações de gênero de uma forma geral, pois falar de
feminismo é falar dos estudos de gênero. “Para o feminismo, a palavra “gênero” passou a ser
usada no interior dos debates que se travaram dentro do próprio movimento, que buscava uma
26 CARVALHO, Marília Pinto de. Um Olhar de Gênero sobre as Políticas Educacionais. In:
MEC/SEF/DPE/COEDI. Gênero e Educação. São Paulo: SOF, 1999, p. 9-24
27 CERISARA, Ana Beatriz. Professoras de Educação Infantil: entre o feminino e o profissional. São
Paulo: Cortez, 2002.
28 ROSEMBERG, Fúlvia. Educação Infantil, Classe, Raça e Gênero. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: n. 96,
p. 58-65, 1996.
44
Acredito que antes de buscar uma explicação para a subordinação das mulheres é
questionamentos sobre esses privilégios, entender porque eles existem e de onde nasceram.
Isso é fundamental, pois essa soberania masculina ainda é pouco questionada, não só nos
Por isso a necessidade de uma educação feminista, para que nos formemos pedagogas
homens detêm o poder, a voz e ocupam cargos de mais prestígio na sociedade. A mulher teria
seu espaço que é de direito, com salários iguais, funções iguais, afirmando que a profissão de
professora não tem menos prestígio e que a mulher pode ter a profissão que quiser.
Sendo assim, o movimento feminista deve estar próximo das discussões dentro da
Pedagogia, não só pelo motivo de que toda mulher deve ter acesso a esse debate para
também por ter uma relação histórica, já que a creche foi uma conquista do movimento
feminista em 197029.
Joan Scott (1999), uma das primeiras feministas a problematizar o conceito de gênero
explica que essa palavra começou a ser utilizada num sentido mais literal “como uma maneira
de referir-se à organização social da relação entre os sexos” (SCOTT, 1999, p. 2). Na década
de 80, as feministas começaram a usar a palavra “gênero” ao invés de “sexo”, para enfatizar
mas sim, eram definidos pelo gênero e ligados à cultura (PEDRO, 2005).
Contudo, Judith Butler (2003) afirma que a ideia do gênero construído culturalmente
pode ser tão limitante quanto o conceito ligado ao biológico, afirmando que o corpo acaba
ficando numa posição passiva em relação à cultura, fundada num determinismo de gênero.
Sendo assim, Butler (2003) cita a famosa frase da feminista Simone de Beauvoir a
gente não nasce mulher, torna-se mulher e explica que mesmo que ela entenda o gênero
enquanto uma construção “há um agente implicado em sua formulação” (BUTLER, 2003, p.
26).
O conceito gênero, mesmo discutido há anos por várias feministas, ainda não chega a
ser algo tão fluente e que deve considerar suas variantes, como a cultura, o corpo, a próprio
disso, a discussão pautada num feminismo interseccional se faz necessária, pois “introduzir as
Uma mulher negra e lésbica, por exemplo, não sofre com o sistema machista e racista
separadamente, mas sim são opressões transversais que geram situações particulares. Ou seja,
o contexto de uma criança negra é diferente de uma criança branca, ambas são oprimidas pelo
46
machismo e sexismo, mas a criança negra é oprimida também pelo racismo. Kimberlé
faz uma analogia com o tráfego de um cruzamento, como se a opressão viesse de todos os
lados e a mulher negra estivesse no meio. Quando o acidente é causado, não dá para avaliar se
foi opressão de gênero ou de raça, mas sim, que podem ser opressões simultâneas
(ADETOKUMBO, 2015).
trabalho seria fugir do tema principal, as relações de gênero na educação infantil, mas não
considerar todas as opressões seria isentar a responsabilidade com todas as lutas que
Ou seja, esses 'papéis próprios', inibem e punem qualquer comportamento que fuja do
padrão determinado da relação sexo e gênero, e assim, todas as crianças são fadadas a crescer
humanos são ensinados desde muito pequenos a seguirem certas regras sociais impostas
culturalmente. A luta por uma educação feminista e não-binária é emergente para que
nenhuma menina ou menino tenha suas vontades impedidas, seus sonhos apagados e sua vida
47
definida a partir de seu sexo. Os estereótipos interferem nas escolhas de meninas e meninos
desde muito cedo e por vivermos numa sociedade machista a menina é a que tem menos
Como explica Janaína Damasceno (2008), de acordo com o sociólogo Stuart Hall, os
É bom recordar que para Hall (1997), produzir estereótipos serve para a manutenção
tanto da ordem social, quanto da ordem simbólica de nossa sociedade. As
dificuldades impostas pelo seu uso se referem ao seu caráter de reduzir,
essencializar, naturalizar e fixar a diferença do Outro. Para tanto, o estereótipo usa a
“cisão” como estratégia. Ele divide o normal e o aceitável do anormal e do
inaceitável. Então exclui ou expele tudo aquilo que não se adapta, que é diferente
(DAMASCENO, 2008, p. 258).
como algo individual, biológico e natural. Mas sendo todo esse processo ditado
longo de toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos” (LOURO, 2007, p.11).
O gênero e a sexualidade são construções sociais, e como afirma Foucault (1930 apud
LOURO, 2007, p. 11 - 12) é um “dispositivo histórico”, ou seja, é uma invenção, advém dos
As creches e escolas não devem ser como essas instituições que definem e delimitam
as sexualidades, mas sim, mostrar que são inúmeras as possibilidades, para uma
30 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. v.1: A vontade de saber. 11 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
48
Dentre as muitas identidades que possuímos, a de gênero não é mais ou menos
importante do que as outras e o processo de sua construção acontece ao longo da
vida toda e não se conclui no final da infância ou adolescência. No enquanto, o
período pré-escolar é fundamental. A formação do conceito de gênero nesse período
certamente afetará as atitudes e comportamentos futuros (FINCO, 2004, p.18).
para que esse processo de construção, que acontece ao longo da vida, não seja limitado logo
na infância.
que impõem esses valores e que oprime por todos os lados, nós precisamos nos apropriar
dessa resistência, lutar contra as imposições, racismos e acabar com essas expectativas que
limitam o crescimento livre da criança, para que elas estabeleçam e construam suas próprias
verdades e identidades.
[...] as crianças ainda não possuem práticas sexistas em suas brincadeiras e, portanto,
não reproduzem o sexismo presente no mundo adulto. Esses meninos e meninas
ainda não possuem o sexismo da forma como ele está disseminado na cultura
construída pelo adulto: as crianças vão aprendendo a oposição e a hierarquia dos
sexos ao longo do tempo que permanecem na escola (FINCO, 2003, p.95).
49
Durante as observações na CAS participei da festa do Carnaval. Ao longo da semana
a professora já conversava com as crianças sobre a tão esperada sexta-feira do dia da fantasia
Frida, menina negra de 3 anos, não via a hora de se vestir de Cinderela, a própria
mãe comentou que estava tentando convencê-la a ir com outra fantasia, pois era um
vestido muito elaborado e que limitava os movimentos, mas a menina insistia em
colocá-lo. Entre os meninos, cada um viria de um super-herói diferente, até o
caçador da Chapeuzinho Vermelho estava querendo aparecer e as outras meninas
também desejavam ir de princesas (Diário de campo, 2014).
Acredito que o momento da brincadeira da fantasia, sendo carnaval ou não, poderia ser
uma oportunidade para desconstruir o sexismo, principalmente nas famílias, mas isso só seria
com que a maioria das meninas deseje ir de princesas e da maioria dos meninos desejem ir de
super heróis. Essa lógica se faz presente devido maneira de 'biologizar as características',
acreditando que são naturais essas diferenças entre as meninas e os meninos e acabam
passando despercebidas pelo olhar de algumas professoras, que já estão acostumadas com
Mesmo sendo uma mulher cis-gênero, pois nasci com o sexo feminino e minha
50
roupas, modo de falar, andar, entre outros comportamentos fazem com que as professoras
A reação das crianças foi um pouco diferente, ficaram de olhos arregalados e até
deram risada, mas elas adoraram minha fantasia e todas queriam brincar com a
minha espada feita de gravetos31.
No meio das brincadeiras Frida, de fantasia de Cinderela, me chamou para dançar, é
impressionante o quanto o mundo Disney e rosa faz parte do seu dia a dia, pois em
todas as brincadeiras que ela faz ou participa, acaba colocando a princesa ou a
bailarina e tem atitudes como das princesas dos filmes e desenhos, num
comportamento submisso e dramático.
Frida: Pirata, vamos pro baile?
Eu: Piratas não vão em bailes de princesas!
Frida: não? Piratas não vão com as princesas?
Eu: não, eles fazem festas nos navios em alto mar!
Ela me olhou, pensou e disse:
Frida: mas...mas...Pirata...você quer ir no baile comigo?
Eu: tudo bem, vou abrir uma exceção! (Diário de campo, 2013).
Foi interessante ver uma menina me chamando para dançar. Geralmente ela chamava
seu amigo Miguel (menino branco e loiro de 3 anos), ele é o mais parecido com um príncipe
encantado das histórias de pessoas majoritariamente brancas. Fiquei feliz com o convite e
percebi que as crianças não tinham problemas em dançar com crianças do mesmo sexo e
Esse momento das fantasias explicitava ainda mais todo o sexismo e binarismo
presente na creche. A maioria das meninas foi de princesas, vestidos, coroas, sandálias e até
varinha, enquanto a maioria dos meninos foi de super-heróis e vilões, com shorts, camiseta,
Por isso a importância de sempre questionar a ideia de criança e infância como algo
natural, um dado biológico, para se pautar em uma compreensão cultural e social da
criança e da infância que considera, portanto, suas similaridades, mas também suas
singularidades, ou seja, aquilo que as une, mas também que as diferencia (FINCO &
OLIVEIRA, 2011, p. 60).
Ou seja, não é natural e não faz parte do ser menina a vontade de ser princesa. As
31 É importante citar que minha fantasia foi construída totalmente de roupas reaproveitadas e retalhos de
tecido, enquanto a maioria das professoras foram com fantasias alugadas ou que tinham comprado já fazia
alguns anos e as crianças com fantasias também compradas.
51
totalmente submisso em relação às escolhas e preferências. Porém, as princesas têm tudo que
desejam, desde um palácio, joias, vestidos, sapatos, até o parceiro mais bonito e o final feliz.
Refletindo assim, mulheres fúteis, dependentes do pai ou marido, criando a imagem do “sexo
frágil”. Enquanto, o fato dos meninos serem mais agressivos e liderarem muitos momentos,
também não é natural e biológico. Os meninos já estão acostumados a liderar desde pequenos,
pois possuem referências das histórias dos reis, dos príncipes, ou dos vários outros papéis
sociais masculinos das histórias e realidades, o pai, o irmão mais velho, o marido ou o patrão.
A supremacia do sexo masculino não pode ser justificada por ser natural ou biológica, pois
não é.
A criança já sofre uma violência até mesmo antes de nascer: na escolha de seu nome
que tende a ser masculino ou feminino; na preferência de cores no quarto e roupas; até mesmo
na escolha dos primeiros brinquedos e na forma de interação com aquela criança. Se existe
um senso comum que a menina é mais delicada ela será tratada com muito mais cuidado e
zelo do que um menino, que é considerado agitado e mais agressivo. Essas concepções
enraizadas das adultas e adultos influenciam e são refletidas no comportamento das crianças.
As roupas e acessórios das crianças diferem não só pelas cores ditas de meninas ou de
meninos, mas o tamanho, os detalhes e o material. As roupas dos meninos são mais
confortáveis, dando mais liberdade para o movimento, enquanto das meninas, são justas e
52
Felizmente a professora propôs que as crianças tirassem as fantasias para ir ao parque,
com medo que sujassem ou estragassem. Ainda bem que ela pediu isso, pois o motivo mais
importante era que as meninas não conseguiriam brincar com aqueles vestidos, o movimento
escolher qual vestido usar, qual calcinha e ainda não conseguiam colocar as sandálias
sozinhas, pois eram pequenas e delicadas, enquanto os meninos vestiam qualquer camiseta,
shorts, chinelo ou tênis, de maneira rápida e pronta para fazer outra coisa. Algumas vezes, a
competição entre as meninas nesses momentos se tornava explicita: se uma das meninas da
turma colocasse um vestido, então todas queriam colocar também, como se o vestido fosse
um sinal de status, o estereótipo da princesa com um belo vestido sendo refletido na prática.
A importância de uma educação não binária é justamente para lutar contra esse
gêneros e sexualidades que já existem, mas ainda vivem à margem da sociedade. Essa
53
bipolarização é limitante e castradora, a partir do momento que julga errado um menino
brincar de dançar ballet, pois é uma dança delicada, considerada feminina. Esse modelo de
Frida me convida para dançar ballet. Isso era uma brincadeira muito comum para
ela. Começamos a dançar, olho para a turma, cada criança brincando de alguma
coisa, vejo o Yukai nos olhando e o convido para a dança:
Eu: vem Yukai dançar com a gente!
Yukai não reage prontamente, talvez na cabeça dele tenha despertado uma vontade,
mas ao mesmo tempo um impedimento, ele apenas olha por mais alguns segundos e
quando ia se levantar...
Frida: NÃO! Yukai não, ballet é de menina!
Eu: Frida, Ballet não é só de meninas. Meninos também podem dançar ballet.
Frida: Não...ballet é de meninas!
Eu: Frida, os meninos também podem gostar de ballet, é pra todo mundo. O Yukai
pode dançar com a gente se ele quiser. Tem meninos que gostam, tem meninos que
não gostam. E tem meninas que não gostam de ballet e preferem futebol!
Frida fica parada pensando, enquanto isso, Yukai começa a dançar e eu também.
Então Frida diz para mim:
Frida: Ei...você não pode dançar! Porque você joga futebol! (Diário de campo,
2014).
espaços para a transgressão, para a superação e para a expressão de seus desejos” (FINCO &
OLIVEIRA, 2011, p. 72). E foi isso que Yukai fez, com muita coragem e segurança,
sentimentos que precisam surgir para alcançar a transgressão do gênero imposto desde seu
nascimento.
Nesse momento, fiquei impressionada por ela lembrar de um fato que já tínhamos
conversado em outra ocasião. Ela trouxe um debate que tivemos num dia em que o
Otto (menino, branco, 3 anos) comentou da chuteira dele e eu falei que também
tinha uma chuteira. Frida ficou espantada por eu ter uma chuteira, então expliquei
que eu tinha porque jogava futebol com as minhas amigas.
No episódio da chuteira, Otto ficou feliz em saber que eu também jogava e sempre
me convidava para jogar bola com ele e com o Yukai no parque, mas Frida ficou
com aquela ideia na cabeça por muito tempo e chegou a conclusão que eu sou uma
menina que joga futebol, então não posso dançar ballet. Eu não tenho direito de
fazer essas duas coisas ao mesmo tempo, ou eu escolho o estereótipo feminino e
danço ballet ou eu vou contra o senso comum e jogo futebol.
Quando ela fez esse comentário não permitindo que eu dançasse, parei de dançar,
abaixei e comecei a conversar com ela. Expliquei de novo que não existem
brincadeiras de meninos ou de meninas, que todo mundo pode brincar do que quiser
e etc. (Diário de campo, 2014).
Esses episódios me fizeram entender o quanto o binarismo está presente na vida das
crianças e o quanto essa discussão não chama a atenção das professoras. Outro episódio que
54
chamou atenção para o sexismo e binarismo presente foi a brincadeira com o baralho, que
continha ações diversas realizadas por homens e mulheres. Otto foi uma das crianças que mais
Otto pegou uma das cartas que estavam sob a mesa, era uma mulher de cabelo curto
segurando um bebê e ele falou que era o pai. Mesmo eu dizendo que era uma
mulher, ele não aceitava. Em outra carta que tinha de fato uma mulher e uma
criança, ele falou que o pai estava no trabalho (Diário de Campo, 2015).
Ele demonstrou em sua fala uma ideia sexista de quem tem cabelo curto é pertencente
ao estereótipo masculino, então, uma pessoa de cabelo curto é homem, mesmo estando com
pensar que o homem tem uma figura tão dominadora que pode ser imaginado com uma
criança e uma mulher não pode ser imaginada com o cabelo curto. Além disso, Otto possui
uma ideia de família tradicional, alegando que mesmo que na carta do baralho só tenha
aparecido uma mulher e uma criança, o pai estava ausente. Ele vem de uma família nesses
É muito difícil romper com essa dicotomia do feminino e masculino, como considerar
e as travestis? Existem muitas pessoas não binárias, mas elas não estão no espaço dessa
o ensino fundamental e médio, por conta de todo preconceito, violência e LGBTTfobia que
sofrem dentro da escola. Muitas e muitos são expulsas/os de casa e acabam sobrando poucas
alternativas, como comenta a autora Guacira Lopes Louro, sobre as pessoas que fogem da
norma heteronormativa:
As coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com
interesses ou desejos distintos da norma heterossexual. A esses restam poucas
alternativas: o silêncio, a dissimulação ou a segregação. A produção da
heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Uma
rejeição que se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia (LOURO, 2007, p.
18).
55
Acredito que se tivéssemos mais materiais que enfatizasse esse assunto de modo
didático já seria um passo para transcender as barreiras dos estereótipos, mostrando para as
crianças que não existe limite para a construção das identidades, mas para isso, é preciso
onipresente na cultura ocidental moderna – poderia ser efetivamente criticada e abalada por
“...um pensamento que elege e fixa como fundamente ou como central uma ideia, uma
entidade ou um sujeito, determinando, a partir desse lugar, a posição do ‘outro’, o seu oposto
subordinado. O termo inicial é compreendido sempre como superior, enquanto que o outro é o
ordem que coloca posições superiores e inferiores nas relações. Além disso, uma maior
cabeça de adultas e esquecemos que as crianças produzem as culturas infantis e possuem uma
ideia de sexualidade do mundo adulto passa por todos os preconceitos enraizados pelos
56
técnicas psicopedagógicas. A infância é falada na voz do adulto e de acordo com seu
pensar. O sistema educativo desconhece a criança, procurando nela o adulto e
esquecendo-se de olhar para ela como um ser que tem lugar no mundo, esquecendo-
se de que a sexualidade é uma dimensão da existência, que não tem idade, que o
princípio da transformação está na essência do próprio ser e esquecendo-se também
de que a criança elabora suas próprias teorias sexuais de acordo com suas vivências
em um estilo pessoal, individual, único. A sexualidade, assim como as demais
características do ser humano, está em constante transformação e é nesse
permanente movimento que deve ser compreendida (CAMARGO & RIBEIRO,
1999, p. 34).
formas de nascer, crescer, amar ou morrer (LOURO, 2007), fazendo com que a infância tenha
a liberdade que lhe é de direito, sendo a criança livre para construir as suas subjetividades e
sua sexualidade de acordo com sua construção de gênero que se dá ao longo da vida.
57
Capítulo 4 – Relações de gênero e raça: por uma educação
interseccional
Por acreditar numa formação além da academia, sala de aula e biblioteca, e por
Foi um espaço que me fez questionar sobre diversas ações, pensamentos, desde a
minha atuação na educação e até o meu próprio feminismo, pois foi a primeira vez que ouvi
Foi assim que iniciei uma breve pesquisa sobre esse feminismo e se já considerava que
estudar gênero atrelado a outras discussões era imprescindível, quando tomei conhecimento
das discussões percebi que inserir essa teoria no meu TCC era fundamental. Perceber algumas
contradições dentro do próprio movimento feminista me fez questionar que até este momento
estava me debruçando sobre alguns textos de feministas brancas e não tinha tido contato com
nenhuma autora negra. Onde estavam as feministas negras que contribuíram muito na história
e na luta das mulheres, Bell Hooks, Audre Lorde, Angela Davis, Alice Walker, Jurema
58
Assim, introduzir essa discussão neste trabalho, também, é uma maneira de tentar
enegrecer a discussão e dar voz às companheiras do feminismo negro que muito acrescentam
na luta, mas que não recebem a mesma e a devida atenção comparada às feministas brancas.
minha própria militância, a partir de espaços como esse, por isso a importância de sempre se
reivindicaram esses espaços, pois elas não são fechadas para a discussão, porém, esses
espaços nunca eram para todas, mas mesmo assim, elas propunham vários temas e muitas
Assuntos que muitas vezes feriam as ideologias interiorizadas por elas por tantos anos
de profissão, sendo que a CAS conta com professoras de até 25 anos de educação infantil, ou
seja, professoras que nasceram e viveram numa cultura muito mais fechada e preconceituosa
algumas professoras, que desejam sempre atualizar e rever suas práticas, além de estarem
O indivíduo interioriza-os o preconceito a seu pesar, e tanto é atingido por eles quem
os formula e os mantém em circulação como aquele que é por eles estigmatizado.
Para refutá-los e destruí-los é mister não apenas uma notabilíssimase tomada de
posição consciente, mas também a coragem da rebelião, que não é dada a todos
(BELOTTI, 1975, p. 15).
mulheres falam por si mesmas e reivindicam suas pautas com sua voz e força. Ressaltando,
novamente, que as professoras são tão vítimas quanto às crianças nessa reprodução dos
ditadura da beleza e etc.. Como explica Kimberlé Williams Crenshaw, uma das primeiras
Mesmo que essas professoras também sejam vítimas desses sistemas discriminatórios,
temos que considerar a responsabilidade de ser uma professora e estar lidando com crianças
CAS tem uma postura de considerar que “todos somos iguais”, que não tem discriminação,
mas isso é uma forma de silenciar as diferenças e/ou oprimi-las, ocultar os sistemas de
subordinação que atingem, principalmente, uma parcela das crianças, as minorias, as crianças
negras, gordas e que transgridem os estereótipos de gênero, é pensar que vivemos numa
sociedade que não é machista, nem racista e isso está longe de ser nossa realidade.
opressões, é uma tarefa complexa e de difícil entendimento para algumas professoras, que
análise das discriminações interseccionais são parte de uma discussão que não está presente
na creche. Os poucos debates sobre gênero, sexualidade e racismo, não eram aprofundados,
pois esbarravam em questões que não eram levantadas para discussão e mesmo que existiam
60
professoras e auxiliares que estavam dispostas a discutir esses assuntos, eram vozes
silenciadas.
Não adianta uma professora ou uma auxiliar dentro da creche pensar sozinha em como
desconstruir os preconceitos no espaço em que ela trabalha, ela seria marginalizada e não teria
forças para fazer tudo sozinha. “A rebelião suscita a hostilidade, e a condenação daquele que
tenta subverter as leis do costume, mais profundas e mais persistentes que as leis escritas,
Por isso a importância da luta ser coletiva, a educação é um trabalho coletivo, não só
entre as professoras, mas entre elas e as auxiliares da creche, as crianças, as famílias e toda a
comunidade.
É importante dizer que as professoras da turma que acompanhei entendiam que não
delas em relação a isso ainda eram insuficientes, diante de todo contexto de influências que as
crianças sofrem no dia a dia. Mesmo que possuam essa consciência que o sexo não determina
se uma criança pode brincar de certas coisas ou não e que a criança pode brincar do que
quiser, ao oferecer brinquedos de utensílios de cozinha cor de rosa e bonecas num canto da
sala e no outro colocar uma pista de carrinhos, isso também é sexismo, pois dividiu a sala
entre brinquedos que são direcionados para meninos e brinquedos direcionados para meninas.
meninos nesse enfrentamento das brincadeiras ditas do sexo oposto, também é uma
consequência do machismo, onde os homens constroem uma liberdade muito maior do que as
mulheres, que desde pequena são ensinadas a fazer somente coisas ligadas ao cuidado da casa
61
e da família, enquanto os homens possuem tempo para seu próprio divertimento e não tem a
Além disso, não faziam um recorte de raça, fazendo uma ponte entre as opressões de
gênero e as opressões raciais, onde meninas brancas e meninas negras desejavam ser
princesas brancas, mas essa questão não era debatida num todo, era problematizada só na
perspectiva de gênero.
Fazendo uma ponte com a infância, sabendo que essas práticas de subordinação estão
presentes tanto na vida das professoras, como na vida das crianças, essa vulnerabilidade
interseccional, quando investigada, é sempre pelo olhar das adultas (de cima para baixo), o
Essas estruturas devem ser analisadas desde a infância para desconstruir esse sistema de
subordinação na relação adulto/criança, onde a adulta é sempre quem tem o poder sob a
criança e determina todas as situações a seu modo, e na relação criança/criança, por exemplo,
quando algumas crianças negras já apresentam uma identidade negativa, enquanto as crianças
As autoras de uma pesquisa sobre as relações raciais de uma creche no interior de São Paulo
autoestima das crianças negras e de seu pertencimento étnico como cita as autoras acima. Em
uma dessas situações na creche, Frida, menina negra de 3 anos, gostava tanto das histórias de
princesas que acabava colocando-as no seu mundo real, demonstrando a vontade de viver uma
vida de princesa:
Na terceira vez, a professora se irritou e percebeu que não era sem querer ou por falta
de atenção, mas sim uma situação provocada pela criança, e então acaba dizendo para a
menina parar com essa história de esquecer o chinelo no refeitório. Nesse dia, fiquei aliviada
com a ação da professora, que finalmente tomou uma atitude, pois desde o primeiro dia em
que isso aconteceu eu sabia que ela fazia de propósito e acreditava que, por ser uma atitude
forçada da criança para se parecer ainda mais com uma das princesas, não poderia deixá-la
Souza (2002)32 aponta que as crianças negras revelaram, muitas vezes, o desejo de
serem brancas, de cabelo liso, querendo se comparar com os personagens das
histórias infantis, reforçando a imagem que a criança negra faz de si, evidenciando a
negação de sua condição racial. Em contrapartida, o educador infantil, segundo
Souza (2002), depara frequentemente com uma série de evidências das questões
raciais e do preconceito, tendo ou não clareza delas, algumas vezes utilizando
práticas do senso comum que podem, segundo a autora, até mesmo reforçar o
racismo (SOUZA, apud ABRAMOWICZ & OLIVEIRA, 2010. p. 213).
32 SOUZA, Y. C. de. Crianças negras: deixei meu coração embaixo da carteira. Porto Alegre: Mediação, 2002.
63
Ao mesmo tempo em que o desejo de Frida ser princesa é algo ruim, ser uma princesa,
nesse contexto, é algo incrível, pois uma princesa representa a beleza e o poder e essa criança
negra também quer se sentir assim. A beleza também é colonizada e construída em espaço
social com símbolos e hierarquias estruturadas, o fato dela não se identificar enquanto negra
traz inúmeras consequências para sua vida, se ela tivesse uma visão de princesas negras e
Sobre a identidade das mulheres negras, a autora Jurema Werneck (2010) almeja que
opressões:
As mulheres negras não podem ser consideradas bonitas apenas no Carnaval e não
devem ser sempre exaltadas pela beleza. Esse fetichismo é racista, essas mulheres podem
construir suas identidades do jeito que quiserem, como uma menina ou mulher, empoderada,
emancipada, que resolve seus problemas sozinha e que não precisa de um pai, marido ou
patrão.
racistas, pois essa opressão sempre foi naturalizada em nossa educação, por isso, precisamos
desconstruir esse racismo em nossas práticas, sempre revendo nossas ações com as crianças,
pois o racismo está presente de muitas formas e pode se colocar das maneiras mais sutis.
64
Outro episódio que demonstra a falta de debate e combate ao racismo, aconteceu
enquanto eu era auxiliar, participei de uma atividade em que cada criança escolheria uma
imagem para colar num papel, esse papel teria o nome da criança e a representaria no
momento da “chamadinha33”.
como esmalte, maquiagem, roupas e coisas para o cabelo, também possuíam anúncios de
suas casas luxuosas. Eram imagens de pessoas famosas e ricas, sendo a representatividade da
população negra praticamente zero. Produtos de beleza dedicados a pele e cabelos negros,
Figura 16: Acervo Pessoal: Revistas aleatórias - Sala de Artes CAS - 20/03/15
Bianca, menina negra e gorda, escolheu a imagem de uma mulher branca e magra para
representá-la na chamadinha.
33 As turmas fazem a chamadinha no horário da entrada. Cada sala possui um quadro diferente para as crianças
colocarem um cartão com o seu nome, sua foto, figura ou desenho. As professoras cantam uma música e
falam o nome da criança, ela se levanta e coloca seu cartão no quadro.
65
e destaque) de um conjunto de características que vieram a constituir nossa
identidade (WERNECK, 2010, p.11).
Como uma menina negra que não possui representatividade de sua identidade na
televisão, nos desenhos e nas revistas consegue se identificar enquanto negra? Como essa
menina vai construir sua identidade, gênero e sexualidade? Ela vai tentar cada vez mais se
parecer com uma mulher branca, num exercício de se embranquecer cada vez mais e apagar
todos os traços da cultura negra em si. Além de sofrer uma opressão estética em seu corpo,
que está fora dos padrões da magreza esquelética. “Dentro deste contexto, as crianças
pequenininhas negras aprendem a ser o outro, aquele que não é representado no contexto da
A partir do momento em que as crianças passam os olhos por essas revistas e não se
enxergam ali, nem sua família e nem seus amigos, não enxergam sua casa, nem sua rua e nem
seu bairro, isso não só representa um padrão estético de beleza, mas um padrão social de vida,
em que além de ser negro significa ser abaixo desse padrão, ser pobre também é visto como
práticas educativas produzem e revelam sobre a questão racial? conclui que “as crianças aos
4 anos de idade já passaram por processos de subjetivação que as levaram a concepções já tão
possuem essas concepções sobre ser branca ou ser negra, ser rica ou ser pobre.
Essa pedagogia racista explícita não recebe a devida atenção. Na creche, a maioria das
funcionárias da limpeza e cozinha são negras e a maioria das professoras e toda a equipe
gestora é composta por mulheres brancas. Fazer um recorte de gênero dentro da discussão
66
sobre raça é importante e necessário, levando em conta que a história do povo negro é
Assim, constatamos que a exclusão da presença das mulheres negras (a exemplo das
mulheres indígenas e de outras pessoas e grupos) dos relatos da história política
brasileira e mundial, e da história do feminismo, deve ser compreendida,
principalmente, como parte das estratégias de invisibilização e subordinação desses
grupos, ao mesmo tempo em que pretendem reordenar a história de acordo com o
interesse dos homens e mulheres branc@s. Isso permite apontar o quanto tal
invisibilização tem sido benéfica para aquelas correntes feministas não
comprometidas com a alteração substantiva do status quo (WERNECK, 2010, p.
16).
A cultura do povo negro sempre foi esmagada pela cultura europeia, branca e
colonizadora, “Todas essas contribuições vindas do povo africano são ocultadas pela
vindas do povo negro, o próprio movimento feminista, muitas vezes, não considera os
contextos das mulheres negras. O feminismo feito pelas mulheres brancas não é pensado pelas
e para as mulheres negras, e faz com que a luta por uma sociedade livre de machismo e
opressão, não seja possível. Por isso uma luta e um feminismo interseccional se fazem
necessárias. A mulher negra precisa ser protagonista nessa luta e sua identidade valorizada,
não em detrimento de outras, mas ocupando o espaço que sempre lhe foi refutado.
Uma das professoras da Turma do Leão34 (2014) é uma mulher branca, magra e tem o
Estávamos brincando todas sentadas no chão da sala, Bianca (menina negra, 3 anos),
é uma menina muito carinhosa, ela se levantou e foi sentar perto da professora. Em
algum momento da brincadeira, a professora parou para prender o cabelo, então
Bianca fez um carinho no cabelo da professora e falou: ‘Regina, seu cabelo é muito
grande e bonito, que nem o da Rapunzel’. Nesse momento a professora apenas
agradeceu e continuaram a brincadeira (Diário de campo, 2014).
34 A Turma do Leão é composta por nove crianças, dentre elas, cinco são negras.
67
Bianca também já fez isso comigo, mas além de agradecer eu elogiei o cabelo dela, fiz
um carinho em sua cabeça e dei um beijo em sua testa, dizendo que ela que era linda e tinha o
cabelo mais lindo ainda. Episódios como esse demonstram um tratamento diferenciado com
as crianças negras:
Assim, as crianças negras vivem diversas experiências que as levam a constituir uma
autoimagem negativa. Os dados obtidos pela autora35 mostram que há um
tratamento diferenciado em relação às crianças negras e brancas, baseado em uma
linguagem não-verbal, por meio de atitudes, gestos e tons de voz que reforçam o
racismo e a rejeição por parte das crianças negras em relação ao seu pertencimento
racial [...]” (ABRAMOWICZ & OLIVEIRA, 2010, p. 212).
algumas professoras dando mais carinho para crianças brancas do que para as crianças negras,
dando mais colo para crianças brancas do que para crianças negras, chamando crianças
brancas de filha ou filho e etc. Ou seja, o racismo, na pequena infância, incide diretamente
(ABRAMOWICZ & OLIVEIRA, 2010, p. 222). As crianças têm os mesmos direitos e não
pode haver maneiras distintas de lidar com crianças negras e brancas, como quase aconteceu
Na hora da troca de roupas, a Professora Regina decidiu dar banho nas crianças, mas
tinha que ser rápido senão atrasaria o almoço. Comecei a dar banho na Frida.
Apesar do horário apertado, não dei banho com pressa, já que resolveu fazer então
vou fazer direito, o momento da troca e do banho deve ser um momento lúdico e
divertido para a criança, por mais que isso atrase o horário de almoço. Enfim, quase
no final do banho, a professora com pressa para entrar com outra criança no lugar da
Frida, comenta: “não precisa lavar o cabelo não, nem solta porque dá muito trabalho,
é só um banho rápido”.
Nesse momento, fiquei sem reação, enquanto auxiliar desobedecer a ordem da
professora causaria um problema para mim e deixar de lavar o cabelo da criança
seria mais um ato racista na vida dela. Eu não ia deixar de lavar o cabelo dela. Tentei
ser rápida e pedi para que a Frida me ajudasse, no final, nem foi tão difícil como a
professora esperava. Se vai dar banho e lavar o cabelo das crianças, então faremos
isso com todas, não só com os meninos de cabelo curto e as meninas de cabelo liso
(Diário de campo, 2014).
enquanto que com as mães negras, não possui amizade e não estabelece a mesma relação de
proximidade.
Não é por acaso que essa professora estabelece uma relação mais próxima e amigável
com as mães brancas e ricas e uma relação mais fria e até mais questionadora com as mães
negras e de classes sociais mais baixas. Quando digo 'mais questionadora', quero dizer sobre
O recorte de raça e classe dessa turma é evidente, enquanto uma das meninas
brancas viaja para o sítio dos avós e nas férias de julho viaja para a Disney, as
crianças negras dessa turma não contam de viagens, só contam que brincaram em
casa com irmãos, irmãs, pais, mães, avôs e avós, ou que foram ao shopping (Diário
de campo, 2014).
relação às crianças negras. A menina branca que viajou para a Disney aos 3 anos de idade, já
teve contato com outro idioma e até canta algumas músicas em inglês, além de conhecer outro
país, teve vivências totalmente diferentes do que as crianças negras dessa turma, que tem
Essas crianças, que já possuem essas vivências de uma realidade social burguesa,
provavelmente vão sair da creche e estudarão em escolas particulares, não enfrentarão o dia a
dia de uma escola pública, não precisarão decidir entre fazer um curso supérfluo ou um curso
profissionalizante, não precisarão decidir entre trabalhar para ajudar a família ou estudar. São
69
essas pequenas diferenças que vemos desde cedo no contexto das diferentes infâncias e que
desde propagandas televisivas, a histórias infantis e datas comemorativas. A CAS não tem
uma opinião formada sobre as datas comemorativas, sempre aconteciam discussões sobre
isso, sobre o que o módulo II faria para o dia das mães, decoração, lembrancinha, etc. Essas
A professora que tem um relacionamento mais próximo com as mães brancas, também
tem uma postura que reafirma a heteronormatividade em diversos momentos, através de seus
A professora adora contar dos seus planos de casamento, parece um filme da Disney,
como aqueles que algumas crianças assistem e querem viver igual. Não tem
problema essa professora expressar seu sonho, mas entrar de branco na igreja e fazer
todo ritual católico tradicional tem um peso e significado, portanto, não deve
interferir em seu trabalho, mas ela comenta sobre isso em muitos momentos, até
mesmo na frente das crianças, até porque as mães da Laila e Clara (meninas brancas)
serão convidadas para a cerimônia (Diário de campo, 2014).
Esse era um problema recorrente, comentários pessoais na frente das crianças. Será
que as crianças não ouvem? Será que elas não entendem o que as adultas falam? Será que não
possuem curiosidade sobre o que nós adultas conversamos? Será que as crianças precisam ter
racismos a última coisa a fazer é reforçar o ideal do casamento cristão. Se essa professora não
70
vê problemas em continuar uma tradição milenar que reforça a submissão da mulher, em que
ela é 'passada' do poder do pai para os cuidados do marido, além de entrar na igreja de branco,
representando a pureza e a virgindade, tudo bem, mas as crianças não precisam ter esse ideal
O fato de ela querer casar nesses moldes tradicionais e patriarcais não pode interferir
em seu trabalho enquanto professora de educação infantil, mas o fato dela comentar sobre isso
com outras professoras e na frente das crianças, mais uma vez reforça o estereotipo da
heteronormatividade.
Durante o dia dos pais (2014), numa das paredes da entrada do módulo II, me deparei
com um painel de fotos recortadas de revistas, 99% das famílias eram compostas por pai, mãe
e crianças brancas, tinha apenas uma família negra e nenhuma família homoafetiva, nenhuma
mãe solteira, nenhuma criança que morava com os avós, nenhuma outra configuração familiar
que fosse diferente do padrão “propaganda de margarina”. A CAS nunca se posicionou contra
que não eram representadas por essas imagens, pelo contrário, destinavam um tempo para
organizar presentes para pais e mães e decorações nos corredores da creche, como o exemplo
deste painel.
Os presentes que as crianças levavam para casa nessas datas também demonstravam o
coisas delicadas e supérfluas em tons de rosa e para os pais, eram presentes úteis como coisas
71
As crianças passam por uma ditadura heteronormativa e tentam superá-la,
principalmente em suas brincadeiras. Uma vez no parque uma criança perguntou se eu tinha
filhos, respondi que não, então ela perguntou se eu era casada, respondi que não, mas que
tinha uma namorada. Em nenhum momento essa criança me questionou sobre o fato de eu ter
enquanto os meninos sempre eram o pai e pouco se faziam de filho, pois o pai é o poder
brincadeiras em que as crianças, por elas mesmas, inventavam famílias com dois pais ou duas
mães.
contemplam de fato todas as formas de família, mesmo que na creche não tenha nenhuma
família de dois pais ou de duas mães, a representação dessa configuração também deve ser
inserida nesses contextos, para além de comemoração de datas impostas no nosso calendário.
Uma discussão sobre o planejamento da creche se faz necessária, pois um planejamento que
crianças, outra professora também fez algo parecido, ela teve um problema de saúde e
fazia comentários recorrentes sobre isso, também sem se importar se as crianças estavam
ouvindo.
Ela contava a dieta que estava seguindo, as conversas com nutricionista, as atividades
físicas que fazia e até mostrava o quanto a calça dela estava larga por ter perdido não sei
quantos quilos. Isso causava uma situação constrangedora para algumas pessoas que
algum comentário que gerasse polêmica, a discussão era abafada, como se as opiniões
diferentes não pudessem ser debatidas de forma respeitosa. O fato de uma professora gorda
começar a emagrecer e falar sobre isso a todo o momento, demonstra o quanto as mulheres
Fernanda Theodoro Roveri37, desde seu TCC até seu doutorado, estuda a influência
que a “Barbie” possui na infância das meninas e dos meninos, mas principalmente na
educação das meninas, e em um artigo escrito com sua orientadora Carmem Lúcia Soares,
comenta que:
No Brasil, 80% das mulheres a partir dos 13 anos estão insatisfeitas com algo no seu
corpo e metade delas considera-se acima do peso. Além disso, 93% das mulheres
afirmam que a mídia é capaz de gerar uma busca doentia por um padrão de beleza e
73% acreditam que a moda é feita para magras (ROVERI & SOARES, 2011, p.
149).
36 Percebo uma grande recusa das pessoas em usarem a palavra “gorda”, pois sempre foi associada a
xingamentos e tons pejorativos, mas as pessoas gordas existem, possuem essa identidade, e são oprimidas
pelo padrão de beleza onde magra é ser bonita e gorda é ser feia.
37 ROVERI, Fernanda Theodoro. A boneca mais chique é um choque: considerações acerca da educação de
meninas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação. 2004.
______. Barbie: tudo o que você quer ser...:ou considerações sobre a educação de meninas. Dissertação
(mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. 2008.
______. Criança, o botão da inocência: as roupas e a educação do corpo infantil nos “anos dourados”. Tese
(doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. 2014.
73
Com certeza uma professora da educação infantil deve se preocupar com a saúde,
nosso trabalho exige isso, carregamos peso, sentamos, levantamos, precisamos fortalecer
nosso corpo para conseguir trabalhar sem nos machucarmos e sem acarretar problemas sérios
no futuro. Porém, tudo o que algumas professoras faziam era mais pela estética e nem tanto
pela saúde. A professora que emagreceu e comentava disso a todo momento, não percebia o
quanto estava sendo opressora com as outras pessoas que estavam acima do peso. Era como
beleza branca e magra, mas em outras discussões, são tão vítimas quanto às crianças. Essas
professoras também são oprimidas pelo sistema, reproduzem o que aprenderam e está
inculcado em suas vidas. Diante de muitos comentários dessa natureza e outras vivências,
uma das crianças da turma do Leão, Bianca, menina negra e gorda, foi oprimida pela
gordofobia.
Bianca não tinha dificuldades para correr, ela corria, pode até ser mais devagar que
outras crianças, mas ela corria e brincava do jeito dela. Essas situações extrapolavam o
momento do parque e chegavam até a hora do almoço. Bianca não podia repetir que nem as
outras crianças, pelo contrário, a professora colocava um pouco mais de comida em seu prato
e falava que ela não iria repetir. Quando questionei se a nutricionista da creche tinha feito
alguma observação, a professora disse que não, desse modo, nunca entendia essa lógica de
Diante desses casos de gordofobia, dos comentários na frente das crianças e até
conversas de corredor com mães das crianças, as professoras não percebiam, mas isso
74
Estava brincando no gira gira com Clarissa (menina branca, magra, 3 anos), ela
parou e falou: “é melhor você descer se não vai quebrar.” Eu disse que não ia
quebrar, porque o brinquedo era forte. Ela respondeu: “mas você é gorda.” Nessa
hora deu vontade de rir, mas entendi que era um assunto sério e minha resposta era
importante. Tive que pensar rápido e a única coisa que respondi foi: “é, eu sou.”
Então ela perguntou: “você é gorda porque come muito chocolate”. Nessa hora,
imaginei a mãe dela falando para ela não comer muito chocolate se não ela ficaria
gorda. Também me lembrei das professoras elogiando as meninas que comiam tudo,
dizendo o quanto elas ficariam bonitas e o quanto o cabelo delas iria crescer. Tentei
dialogar: “Não, na verdade eu sempre fui gorda, mas eu como alface, tomate, arroz,
feijão, não como só chocolate. Tem pessoas que são gordas e tem pessoas que são
magras, isso não é um problema, desde que todo mundo seja saudável, não fique
doente, entende? (Diário de campo, 2014).
Para além de toda opressão de gênero, as crianças ainda são influenciadas pela
opressão estética do padrão do corpo e da beleza e algumas professoras também estão dentro
desse sistema opressor. Como se libertar? Como romper com as determinações da beleza da
mais belas, porque elas já são, cada uma tem sua identidade, e o que a sociedade está fazendo
E como fazemos isso? Se olharmos para o nosso dia a dia podemos perceber diversas
situações opressoras que passamos, desde alguém chamando sua atenção na rua ou até o ponto
opressoras, no momento em que elogiamos o menino pela sua força e a menina por sua
mostrando que a menina também é forte e que a beleza existe de muitos jeitos, mas não é o
mais importante.
que é possível desconstruir muitos pensamentos hegemônicos, inculcados desde muito cedo
na vida das crianças, o livro tenta mostrar uma princesa diferente do estereótipo da princesa
75
submissa e delicada. Por ser uma história de princesas, as meninas ficaram animadas e o mais
Frida relacionava as imagens do livro, com as imagens que ela já conhecia dos contos
de fadas que teve contato e que tanto admirava. Essas associações entre a história do livro,
Frida se considera princesa, então ela precisa de um príncipe e quem seria o príncipe?
Miguel, o menino branco e loiro. E porque ela não escolheu o Yukai (menino negro)? Porque
ela já reconhece o padrão branco e loiro, estereótipo de um príncipe encantado. Para tentar
desconstruir esse padrão, é necessário mostrar mais referências de príncipes negros, reis
negros, livros com crianças negras, protagonismo negro nas histórias e contos de fadas.
Além do padrão de beleza branca, Frida ainda chama a atenção à outra problemática: o
estereótipo da princesa: “Na parte da história que a princesa tinha tido uma ideia, que
consistia em fazer as mesmas aulas do irmão para sair do castelo, e então tirou o vestido, os
sapatos e cortou os cabelos, Frida fala: 'ela não é uma princesa agora?'.” (Diário de campo,
2015)
76
E assim fica a questão: como uma menina, que parecia um menino, ainda poderia ser
princesa? A ordem binária e as imposições de gênero impedem isso. A princesa tem que estar
nos padrões do feminino, ou então não pode mais ser considerada princesa. Respondi que se
ela era filha do rei e da rainha, ela era uma princesa, mas sentia que minhas respostas não
eram suficientes para as crianças, elas levantavam questões que nem eu e nem aquele livro
Ao final, perguntei quem queria contar a história, então Bianca pediu pra contar, e
ela começa: “era uma vez uma princesa, a princesa foi no castelo, e o dragão... não
conseguia sair.”
Frida interrompe: “porque ela deu tchau?”
Eu respondo: “porque ela foi embora.”
Enquanto isso, Bianca continuava contando, mas Frida ainda não estava satisfeita:
“ela não quer casar com o príncipe?”
Respondo que não, porque “ela queria fazer outras coisas”. Entre vozes, Marian fala:
“eu quero casar com ele.”
Nesse momento as crianças conversavam muito, só consegui perceber que Frida e
Marian pareciam discutir por alguma coisa e então Frida diz: “não, eu sou uma
princesa! (Diário de campo, 2015).
Frida questionava a história a todo o momento, pois o livro não estava nos padrões de
contos de fadas que ela conhecia, além disso, ao perceber que Marian também se interessava
em ser princesa, começa uma discussão, como se apenas uma delas pudesse alcançar essa
posição. Podemos perceber quanto o machismo é cruel, pois além de oprimir as mulheres
uma menina e na visão de um menino. Bianca começa a contar do jeito que mais estava
acostumada e iniciou com “era uma vez uma princesa.”, enquanto que, ao dar a chance para
Bianca termina de contar e passa o livro para o Otto, e ele começa: “era uma
vez...o...dragão.........ninguém saia do castelo. Ai...o menino da irmã dela, matou ele!
Frida: “Esse é da princesa Frida?”
Otto:“Ai...ele tava matado!
Eu perguntando para o Otto: “e o que a princesa foi fazer?”
Otto: “foi feliz para sempre (Diário de campo, 2015).
Otto, conta a história partindo do mais emocionante e próximo para ele, o dragão e
apresenta uma história emocionante, misteriosa, mais agressiva, mas com um final feliz. A
77
menina conta da princesa e do castelo em que vivia, colocando o desafio de sair do castelo.
Foi possível perceber o referencial de uma menina e de um menino sobre a mesma história,
aquela história era a dela, então, quando Otto terminou de contar, ofereci o livro para ela:
Quando ela começa contando que a princesa não queria casar com o príncipe, fiquei
impressionada, depois de tantas questões ela tinha aceitado que a princesa não queria casar,
mas quando resolvi perguntar mais sobre a história, ela acabou criando um novo final.
As crianças em suas brincadeiras criam novas regras para satisfazer seus prazeres, com
a história não foi diferente, mesmo que a princesa não tivesse casado com o príncipe, era isso
o que a Frida ouviu em toda sua vida e era isso que ela queria naquele momento. Ao final da
história Frida diz: “gostei dessa história da princesa, eu sou uma princesa!” E se a professora
apresenta-se mais histórias de princesas fazendo outras coisas, escalando montanhas, brigando
criatividade é infinita e precisamos ser criativas, pois o sistema não é, ele cumpre seu papel de
padronizar os corpos.
78
Considerações Finais
Com base nos dados coletados durante a pesquisa de campo podemos perceber que
existe uma reprodução das desigualdades e das opressões nas práticas pedagógicas
desenvolvidas com as crianças na CAS, por vivermos num contexto machista as docentes
também são vítimas dessas opressões, de gênero, classe, raça, etnia, idade, entre outras.
opressões dentro da nossa própria cultura, as crianças são oprimidas com as determinações
binárias do gênero antes mesmo de nascer, também por conta de uma reprodução das
ambiente acolhedor que mostre diversas maneiras de se relacionar com o mundo e com as
instituição construir um ambiente em que ela possa se construir livremente enquanto sujeito.
imprescindível que essa consciência das relações de gênero que limitam as visões e os
comportamentos das crianças, seja não só das professoras, mas de todas as pessoas que estão
inseridas na creche. Por acreditarmos que a criança chega à creche com uma forma de ver, ser
e estar no mundo, pois ela não é uma folha em branco e nem apenas um vir-a-ser, as práticas
Todavia, essa consciência por parte das docentes e demais pessoas na creche só seria
possível com uma formação adequada, desde os cursos de Pedagogia até as formações
continuadas. As discussões de gênero não são pouco debatidas apenas na educação infantil,
79
mas na nossa sociedade como um todo. A primeira infância acaba sendo vítima dessa ausência
Esses espaços podem ser a base para desenvolver práticas que visam desconstruir os
base nas teorias foi possível compreender que a luta contra as opressões tem que ser diária e
vai além dos muros da creche. Além disso, não existe uma receita certa para as pedagogias,
não existe um método infalível de combate às opressões, mas existe uma base que devemos
levar em conta, como os direitos das crianças, que perpassa gênero, sexualidade, raça, etnia,
Essa visão que coloca o direito das crianças à frente e se propõe a desconstruir
escolarização demonstra que cada vez mais querem acabar com o brincar e estabelecer que
estudar conteúdos escolares é mais importante. A produção das culturas infantis demonstra
uma resistência das crianças contra esse sistema escolarizador e padronizador dos sujeitos.
transgressoras dos padrões estabelecidos e impostos pela sociedade, como demonstra esse
A Bianca sempre recorria as adultas para resolver seus problemas. Ela vinha
reclamar que o Otto ou Yukai pegavam seu brinquedo ou não estavam deixando ela
brincar. Na maioria das vezes as professoras conversavam com as duas crianças
envolvidas e pediam para que brincassem juntas, que precisa ser legal com os
amigos e que não pode brigar. Eu e o auxiliar costumávamos incentivar que ela fosse
resolver sozinha, que ELA teria que ir lá e falar tudo isso que a professora fala. Um
dia no parque, estava observando a brincadeira das crianças dentro da casinha, a
Bianca estava saindo da casinha com uma cara de choro e vindo na minha direção,
de longe eu já falei: Bianca, vai resolver com ele! Ela hesitou, mas depois conseguiu
voltar pra casinha e falar tudo que queria. Observei de longe para não atrapalhar esse
momento em que ela estava sendo a protagonista da história. O menino envolvido
ouviu tudo e voltou a brincar sem falar nada. Se ele nunca mais vai fazer isso com
ela, eu não sei, mas que foi um momento empoderador pra ela, tenho certeza que foi
(Diário de campo, 2014).
A criança deve ser protagonista da sua história e um dos papeis da creche é criar um
80
ambiente em que ela possa construir sua identidade de modo que não reproduza as opressões
ou se torne passiva diante delas. No caso da Bianca, menina negra e gorda, não tem como
separar situações em que ela sofre racismo ou machismo ou gordofobia, essas situações estão
desigualdades básicas, portanto, todos devem ser combatidos ao mesmo tempo e com a
mesma força, não basta acabar com a opressão de classe, se ainda existe opressão de gênero e
vice versa, não basta acabar com o racismo, se ainda existe opressão de gênero e vice versa.
com perguntas que questionavam as práticas pedagógicas de algumas professoras que atuam
práticas das professoras seria apenas um passo contra essas opressões interseccionadas
observadas na creche.
São pequenas intervenções que junto com uma formação continuada para as
professoras, com mais espaços que possibilite troca de experiências entre professoras,
fomentem a reflexão, com brinquedos, livros, desenhos e filmes que não sejam machistas,
sexistas e racistas, todo esse conjunto de ações pode facilitar na construção de um ambiente
A creche também é responsável pelo combate às opressões e deve fazer parte das
de acesso a todas e todos. Este estudo das relações de gênero na creche deu subsídio para
sonhar com uma educação feminista apontando para novas pesquisas que discutam os temas
81
relacionados a gênero, como o feminismo interseccional junto com os estudos das infâncias.
82
Carta Aberta à Creche da Área da Saúde da Unicamp
minha iniciação científica que foi financiada pela CNpQ/PIBIC, realizei um levantamento
bibliografia foram realizadas observações e intervenções com uma das turmas do Módulo II
da CAS. Com os estudos das relações de gênero e problematização dos episódios vividos
perceber que algumas professoras reproduziam certas práticas machistas e racistas com as
crianças de 2 e 3 anos.
com a sociologia da infância e com a pedagogia da educação infantil, podemos perceber que o
das crianças, está inserido no contexto de uma sociedade machista e racista, sendo assim, as
Com o objetivo que esta pesquisa não seja mais uma pesquisa voltada para a academia
e sem contribuição para a creche que a acolheu, além de tentar dar um retorno as professoras e
crianças que participaram, deixo algumas sugestões para a construção de um ambiente mais
Uma maneira de explorar mais essas questões seria aproximando o contato com as
famílias. Os momentos que isso acontece são irrisórios quando se pretende de fato ter uma
relação de trocas, pois na entrada e saída das crianças e em uma reunião anual é impossível
83
criar esse vínculo. A creche tem um papel importante de formação e informação, é papel da
creche – família – comunidade. Uma ideia para aproximar esse contato seria incrementando
Esses cadernos podem ir além de recados como: “não esqueçam que sexta é o dia do
brinquedo” ou “pedimos a doação de ‘x-y-z’ para alguma atividade ou festa” e podem trazer
informações importantes sobre o mundo das crianças, pequenos textos didáticos, com uma
linguagem mais informal, de rápida leitura, que apresente conceitos simples da pedagogia, das
Outro momento que poderia ser melhor aproveitado são as datas comemorativas. Ao
invés de organizar uma decoração e uma “lembrancinha”, porque não pensar em um texto
para as famílias explicando porque essa creche não comemora o dia das mães e dos pais,
porque essa creche acredita em várias formas de família, entre outras discussões?
creche, com textos, histórias, contos, relatos de experiência, desenhos, fotos, relacionados
com o dia a dia da creche construídos pelas professoras, pelas funcionárias e, principalmente,
pelas crianças.
diversidade, colocando mais negros e negras, pessoas gordas e fora do padrão de beleza e
Pensando no espaço da creche, se faz necessário pensar nos materiais. Uma melhor
escolha dos livros, desenhos e filmes que as crianças têm acesso é urgente. Além da
faltam livros com crianças negras, gordas e fora do padrão de beleza, com histórias que vão
84
Faltam bonecas negras e bonecos negros. Faltam carrinhos e bolas cor de rosa e faltam
utensílios de cozinha e higiene em azul. Faltam desenhos e filmes com protagonistas negros,
com histórias e músicas que vão além da Galinha Pintadinha e do Patati Patata, como
Outra medida que poderia ser realizada é o melhor aproveitamento dessa creche dentro
Culturas Infantis, que se interessa em pesquisar a educação infantil, sendo assim, o incentivo a
projetos de parceria entre a creche e a Faculdade de Educação da Unicamp para que realizem
debates sobre temas como gênero, sexualidade, raça, etc, seriam espaços muito ricos para as
Os dados mostram que essa creche, por ser de uma empresa pública e não credenciada,
ainda sofre com uma falta de organização por parque da equipe gestora. Não existe um
Projeto Político Pedagógico na CAS e nos outros programas da DEdIC, existem apenas
documentos como “Regimento Interno” da CAS. Isso faz com que a creche não tenha uma
distanciam, não que isso seja totalmente ruim, a autonomia das professoras é fundamental,
mas fornece espaço para práticas que não abarquem, de fato, todas as especificidades das
crianças.
Quando a professora tem seu trabalho valorizado não só pela própria instituição, mas
pelo estado e município, ela tem um espaço favorável para aprofundar sua formação e
desenvolver projetos e práticas pedagógicas que discutam gênero, que combatem o racismo e
Sendo assim, espero que esta pesquisa tenha contribuído de alguma forma com a CAS
85
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87
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CRENSHAW, K. “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique
ROSEMBERG, Fúlvia. Educação Infantil, Classe, Raça e Gênero. Cadernos de Pesquisa. São Paulo:
SILVA, Peterson Rigato da. Não sou tio, nem pai, sou professor!: a docência masculina na educação
90
Anexos
91
1- Manifesto Indignado II: A construção de verdades únicas
O Fórum Paulista de Educação Infantil (FPEI), frente a atual conjuntura política que
vem minando as conquistas e as lutas dos movimentos sociais pela construção de uma sociedade
mais justa, equânime e que valorize e respeite os diferentes sujeitos, manifesta seu repúdio ao
segregação e a domesticação dos corpos das crianças pequenas estão alicerçadas na lógica
sociedade brasileira têm defendido e, por outro lado, aponta para a importância da inclusão
As inserções destas temáticas no contexto da educação não são resultado de uma mera
discussão partidária ou modismo educacional; são, antes, posturas éticas daqueles/as que,
creches, pré-escolas e escolas. Além disso, temas como gênero, orientação sexual, racismo etc.
são bandeiras de luta dos movimentos sociais para que os sujeitos, em sua multiplicidade, sejam
respeitados em suas singularidades e que, a partir disto, seja possível repensar outras relações
92
sociais, para além da hierarquização, discriminação e exclusão da diversidade. Assim, não se
direito de todo cidadão, mas, trata-se de um projeto político para a construção de uma sociedade
O que então está em pauta é a construção de uma sociedade na qual as pessoas tenham o
direito de fazer escolhas. Uma educação que não problematiza as normas e os padrões
limite, sustentam a intolerância e a violência contra uma parte considerável, e ainda excluída, da
sociedade brasileira.
inclusiva, desde a creche até o ensino superior, é fundamental a problematização destes temas,
essenciais na construção de nossas identidades, para que todos possam ter criticamente a
publicado em 2009, para a Educação Básica, segundo a qual é necessário “fomentar a inclusão,
no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião,
orientação sexual, pessoas com deficência, entre outros, bem como todas as formas de
Portanto, esse debate deve estar presente desde a creche, na educação das crianças
pequenininhas, para que elas possam reconhecer as origens das desigualdades e construir as
ferramentas teóricas necessárias para a luta, se assim se engajarem, por uma sociedade plural e
mais justa. Como afirma Chauí (1980, p.40), “a ideologia não está fora de nós como um poder
93
perverso que falseia nossas boas intenções: ela está dentro de nós, talvez porque tenhamos boas
intenções”. Finalizamos este manifesto com as charges de Laerte (2015) e, reiterando o quanto
subordinação e das hierarquias, podendo vir a alimentar a intolerância e a violência contra uma
94
Referências Bibliográficas
CHAUÍ, Marilena. Ideologia e Educação. Educação e Sociedade, ano II, nº. 5, p. 24-40,
janeiro, 1980.
ROSEMBERG, Fúlvia. È de pequeno que se torce o pepino: criança negra, casa e escola;
95
2- Roteiro de observação
UNICAMP
si, com as professoras e com o espaço. Utilizar de fotos e vídeos. A observação será dividida
- ENTRADA: Observar a entrada, a acolhida da nova turma num novo espaço, uma nova sala
algumas crianças foram embora e outras novas chegaram. Na Turma do Leão, a professora
que acompanhava essas crianças desde o berçário foi para outro módulo, apenas a que
acompanhou no ano passado vai continuar, junto com uma nova professora. As crianças dessa
Observar a ida das crianças até o refeitório, se vão em fila, de mãos dadas ou livre, se os
meninos dão as mãos pros outros meninos e vice versa. Observar como se organizam na mesa,
se escolhem seus lugares, se tem preferência pela cor das cadeiras. Observar a relação com os
meninos correm e as meninas vão andando? Ambas as turmas vão juntas no mesmo horário.
Observar cada criança, como elas se relacionam com o espaço do parque, com os brinquedos
fixos e móveis, com a natureza, com as outras crianças e com as professoras. Será que as
96
meninas brincam com os carrinhos e bolas? Será que os meninos brincam com os utensílios
crianças agem nesse momento, se elas vão todas juntas pro banheiro, se vão individualmente,
se podem brincar nesses espaços, a autonomia da troca, da lavagem das mãos, do uso do
banheiro. Será que meninas e meninos tomam banho juntos? Como os meninos e meninas
arrumação? Será que a professora pede ajuda somente as meninas? Será que algum menino
ajuda sem mesmo a professora pedir? Observar o horário da saída, chegada das mães e pais,
Observações gerais:
Nos primeiros dias, observar a turma e o espaço mais geral. Desde a sala da turma, os
interação das crianças. Será que os meninos e meninas brincam com todos os brinquedos da
sala igualmente? Será que a professora trata meninos e meninas de forma diferente?
97
Observar a interação das crianças no parque, com os brinquedos grandes e mais
'perigosos', com os brinquedos de casinha, com os carrinhos, as bolas e etc. Será que as
meninas sobem até o topo do trepa-trepa? Será que os meninos fazem comidinha com a areia?
Será que as meninas jogam bola? Será que os meninos brincam na casinha? Observar a
Nos últimos dias observar cada criança por alguns minutos, sua interação com as
Observar as regras inventadas pelas crianças, as brincadeiras que vão surgir, o interesse pelas
cartas com meninas ou meninos, a organização do baralho pelas crianças. Será que vão
separar em coisas de meninos e meninas? Será que vão separar por sexo? Será que alguma
criança fale que aquilo não é coisa de menino ou menina? Será que alguma criança vai
reconhecer alguma ação que ela mesma prática no seu dia a dia?
98
Observar as intervenções durante a contação, desde verbal quanto corporal.
99
3- Modelo de autorização
Ao mesmo tempo, libero a utilização destas fotos (seus respectivos negativos) e/ou
depoimentos para fins científicos e de estudos (livros, artigos, slides e transparências), em
favor da pesquisadora da pesquisa, acima especificada, obedecendo ao que está previsto nas
Leis que resguardam os direitos das crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, Lei N.º 8.069/ 1990), dos idosos (Estatuto do Idoso, Lei N.°
10.741/2003) e das pessoas com deficiência (Decreto Nº 3.298/1999, alterado pelo Decreto Nº
5.296/2004).
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Pesquisadora responsável pelo projeto
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Responsável Legal
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4- Imagem do planejamento semanal – Turma do Macaco
Planejamento Semanal
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5- Pôster
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