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A fabricação da nação
EVALDO CABRAL DE MELLO
O nacionalismo brasileiro não precedeu, sucedeu, a criação do Estado nacional. O Brasil não se tornou
independente porque fosse nacionalista, mas fez-se nacionalista por haver-se tornado independente. Não
havia sentimento nacionalista na América Portuguesa em 1822, o que havia era ressentimento antilusitano,
este mesmo limitado às camadas médias e populares das grandes cidades costeiras: Rio, Bahia, o Recife.
O brasileiro dos estratos superiores percebia-se como o súdito de um Estado que não pretendia encarnar
uma nação inexistente, mas o velho sonho luso-brasileiro de um "grande império" na América, projeto que
já se esboça nos primeiros cronistas e que d. João 6º viera declaradamente estabelecer. Àquela altura, os
nacionalistas não éramos nós, mas os portugueses de Portugal que, dentro e fora das cortes de Lisboa,
clamavam contra o que lhes parecia a escandalosa inversão de papéis pela qual o Brasil se transformara no
centro da monarquia lusitana, relegando a metrópole à posição de colônia. Destarte, o império não foi o
produto de uma aspiração nacional preexistente e cruelmente reprimida por uma potência exterior, como
acontecia, por exemplo, na Grécia (lorde Byron não teria dado a vida pela nossa independência), mas o
desfecho de um somatório de circunstâncias, como a impossibilidade de fazer aceitar, tanto pelo Brasil
quanto pela Inglaterra, a abolição da liberdade de comércio concedida em 1808; a luta pelo poder entre o
regente d. Pedro e os "vintistas", vale dizer, os constitucionalistas portugueses, conflito de complexas
implicações dinásticas; e os interesses da burocracia régia, que, civil ou militar, graduada ou subalterna,
fabricava no Rio de Janeiro, desde a chegada do Bragança, seu pequeno paraíso tropical, enquanto não
chegava o dia de se transportar para a solidão do Planalto Central, mais propícia à sua mandância.
"Florzinha tenra"
Se o Brasil surgiu para a vida autônoma sob o signo de uma aspiração avançada, a liberdade de comércio,
esta foi utilizada com vistas a obter o apoio da população a um movimento, a Independência, retrógrado
na sua inspiração original, pois encarnou uma contra-revolução de altos funcionários públicos contra a
demolição, pelo constitucionalismo lusitano, do aparelho de Estado instalado por d. João 6º. Maria Odila
Silva Dias, a quem se devem algumas das melhores páginas sobre os pródromos da Independência, cita a
afirmação de Armitage, que redigiu sua história do Brasil pouco tempo decorrido dos acontecimentos, em
que ele observava ironicamente que "todos os indivíduos espoliados dos seus empregos pela extinção dos
tribunais (isto é, das repartições públicas) converteram-se em patriotas exaltados; e como se tivessem sido
transformados por um agente sobrenatural, aqueles mesmos que haviam, durante a maior parte da sua
vida, serpejado entre os mais baixos escravos do poder, ergueram-se como ativos e estrênuos defensores
da Independência". O berço da nação brasileira foi assim uma dádiva do funcionalismo público; e os
malsinados senhores rurais, contra quem tanto se aferra nossa historiografia politicamente correta, só virão
embalá-lo muito tempo depois. Como toda escolha entre opções que tinham seus prós e seus contras, o
dilema da Independência teve algo de pungente. Por um lado, as cortes de Lisboa nos ofereciam um
regime político representativo, sob uma monarquia constitucional, muito embora deixassem claro que
cobrariam o preço não da restauração pura e simples do monopólio comercial, que era impossível
ressuscitar de todo, mas de um sistema, para nós onerosamente preferencial, em benefício do comércio e
da navegação portugueses no Brasil. Por outro lado, a Independência com d. Pedro garantir-nos-ia a
liberdade de comércio, mas apresentaria a fatura de um regime autoritário e centralista baseado no Centro-
Sul, como logo perceberam os espertos. A agudeza de tal dilema foi especialmente sentida no Nordeste,
por obra e graça da revolução de 1817; e é ele que explica em boa parte as reservas com que se
contemplaram ali, desde o início, o projeto independentista formulado por José Bonifácio, reservas cuja
procedência ver-se-á confirmada pela dissolução da Constituinte em 1823. Já sabemos qual foi a escolha
imposta ao Brasil. Hoje, contudo, tendemos a esquecer que, mesmo após o estabelecimento do Estado
brasileiro, o sentimento nacional continuou por muito tempo aquela "florzinha tenra" da metáfora que já
serviu para definir a democracia entre nós. É claro que a coroa de d. Pedro 2º a aguou e a estrumou com
assiduidade, como atestam suas iniciativas no plano cultural, inclusive no historiográfico. Graças inclusive
ao segundo imperador, fomos desde então um país de intelectuários, de literatos empregados pelo Estado e
de funcionários públicos com veleidades intelectuais. Daí que as primeiras manifestações do nacionalismo
ao longo de Oitocentos nos pareçam postiças. No plano econômico, quase todo o período monárquico
coincidiu com a hegemonia da concepção livre-cambista sustentada pela riqueza e pelo poder naval da
Inglaterra, embora entre os políticos do Império, como entre os de hoje, na prática a teoria muitas vezes
fosse outra. Quando, malgrado os arreganhos ingleses, aprovou-se a tarifa Alves Branco, o que se
almejava não era proteger a infância de uma indústria inexistente, apenas fornecer dinheiro ao Estado para
rematar sua obra de centralização. O romantismo, que na Europa fora componente essencial do
nacionalismo, em especial nos países que haviam emergido para a existência autônoma no decurso da
centúria ou que haviam realizado sua unificação após séculos de divisão, o romantismo, dizia, pariu entre
nós o indianismo, que foi uma expressão mofina da ambição de construir o que virá posteriormente a ser
designado por "identidade nacional". Malgrado o "I-Juca-Pirama" e o "Guarani", as classes dirigentes
sentiam-se muito pouco nacionais. Nos anos 80 do século 19, um dos estadistas do Império, Martinho
Campos, mineiro, fazendeiro de café e liberal que chegou a primeiro-ministro, declarava em pleno recinto
do Parlamento que os brasileiros éramos "os portugueses da América". Como tantos outros representantes
dos grupos privilegiados, o barão do Rio Branco, nosso brasileiríssimo Juca Paranhos, sempre às voltas
com os velhos mapas e com a boa mesa, falava com sotaque lusitano.
Patriotismo local
Eles representaram uma forma de patriotismo local, tão comum quanto o dos gregos, o qual, nas suas
formas anódinas, podiam até ser tolerados pelas autoridades coloniais, embora esporadicamente
alcançassem, como no Nordeste dos dias da Independência e dos começos do primeiro reinado, um grau
inusitado de virulência e exacerbação. Entretanto não se falava ali em "nação", mas em "pátria" e em
"patriotas", conceito que, embora tivesse recebido na França revolucionária conotação nacional, ainda
continha na Europa do Antigo Regime, inclusive nos seus prolongamentos americanos, o significado
inofensivo do apego à terra ou ao lugar em que se nasceu. Em todo caso, a "pátria" dos revolucionários de
1817 ainda não era o Brasil, o que não redunda em desdouro do seu sacrifício. Esses nativismos de
Seiscentos e de Setecentos foram sobretudo a expressão do ensimesmamento da América portuguesa,
consequente à expansão territorial e ao povoamento de boa parte do território. Um dos mais surrados
lugares comuns da historiografia brasileira, ainda usado em discursos de 7 de setembro, enxerga no
levante de Pernambuco contra o domínio holandês os pródromos da consciência nacional brasileira. É
possível; mas na medida em que a restauração do domínio lusitano no Nordeste constituiu uma
manifestação da consciência coletiva, torna-se impossível separar quimicamente o que já era sentimento
local da ganga do que ainda era sentimento português. O movimento foi antes uma reação da consciência
portuguesa dos colonos do Nordeste, consciência envolta ainda num casulo religioso e dinástico e
reavivada entre nós pela recente restauração da independência do reino relativamente a Castela e pela
dominação estrangeira e herética dos Países Baixos. A realidade é que os luso-brasileiros do Nordeste
encararam invariavelmente suas relações com os neerlandeses em termos de radical incompatibilidade que
hoje diríamos cultural. Só definitivamente expulso o invasor é que o episódio passará a ser interpretado
em termos nativistas e, depois, nacionalistas. A precocidade dos nativismos, de um lado, e a tardança do
nacionalismo, de outro, observam-se igualmente na origem dos nossos gentílicos. As populações regionais
começaram a ter apelativos muito tempo antes de que se consagrasse uma designação para os habitantes
da América portuguesa. Em finais de Quinhentos, já havia "paulistas" ou "sam-paulistas"; e, nos começos
de Seiscentos, "pernambucanos". Enquanto isso, ao longo de Setecentos, "brasileiro" era apenas o
indivíduo que vivia a cortar o pau-brasil nas matas e de transportá-lo para os portos. Por sua vez, o
adjetivo "brasílico" tinha sabor erudito. Quando a Independência se desenhou no horizonte, os brasileiros
éramos designados "portugueses da América" para distinguir dos "portugueses da Europa". Àquela altura,
Hipólito José da Costa excogitava, no seu exílio inglês, o termo adequado com que batizar os cidadãos do
país que se ia criar. "Brasiliano" havia sido tradicionalmente o termo dado aos índios e como tal resultava
excludente de quem não tivesse sangue ameríndio. Quanto a "brasileiro", parecia-lhe inapropriado devido
ao sufixo que denota a profissão, não a origem. Daí que optasse por "brasiliense", o qual adotou no título
da sua gazeta londrina.
Intenção pejorativa
O termo não vingou; o hino da Independência referia-se à "brava gente brasileira". A suspeita teria de ser
submetida à prova dos textos do século 18, mas é plausível que a expressão "brasileiro", usada entre nós
para designar quem se dedicava a fazer a madeira, fosse empregada em Portugal aos naturais do Brasil
com intenção pejorativa, da mesma maneira que nós utilizávamos o vocábulo "marinheiro" para o
imigrante lusitano. Não seria, aliás, a única vez em que um povo importa seu gentílico. Embora "España"
seja palavra imemorial, de origem talvez púnica, "espanhol" foi de começo o vocábulo com que na
Provença medieval eram denominados os habitantes da península que se estendia ao sul dos Pirineus.
Os nativismos brasileiros comportaram, é certo, um teor protonacionalista, do mesmo modo pelo qual na
Europa o nacionalismo foi precedido por formas frustas de sentimento nacional desde o fim da Idade
Média. O que importa assinalar, porém, é que tais nativismos podiam também, e foi o que ocorreu ao
tempo da Independência, ser manipulados em sentido antagônico ao nacionalismo, que se viu assim na
necessidade de digeri-los para eliminá-los. Para voltarmos à região onde o nativismo foi o mais intenso no
decurso da história brasileira, isto é, o Nordeste, foi ali também onde se ofereceu a mais cerrada
resistência à criação do Estado brasileiro. Ao passo que o nativismo respondia a uma experiência
espontânea das gentes, a criação de um Estado nacional parecia algo artificioso, o "grand design" de altos
funcionários da Coroa ou o enigma político escondido no autoritarismo e no dinasticismo do regente d.
Pedro.
Quanto ao Rio de Janeiro, era encarado com o disfarce grosseiro da antiga dominação portuguesa. Por sua
vez, o Estado Novo considerou-se obrigado a promover a queima pública das bandeiras estaduais, no
objetivo de exorcizar os restos de sentimento local que a seu ver comprometiam a unidade nacional,
embora essas bandeiras, exceto em dois ou três casos, fossem meras improvisações estadualistas da
República Velha.
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